REPORTAGEM | teatro digitalQUANDO O EFÊMEROENCONTRA O DIGITALExperiências inovadoras têm expandido as artes cênicas para além dos limites do aqui e agora presencialTEXTO leonardo folettoILUSTRAÇÃO valentina fraizSeja como espectadores, seja como atores, aprendemosdesde sempre que o teatro é olho no olho,é a presença física de uma plateia assistindo aovivo ao jogo entre atores de carne e osso. Essanatureza efêmera do teatro, que dura quanto ca<strong>da</strong>espetáculo deixar, sempre foi ti<strong>da</strong> como impossívelde reproduzir – e é o que vinha poupandoa cena teatral dos ventos digitais que há temposvarreram discos, fotografias e filmes e os tornaramdisponíveis a cliques de mouse diante de uma telade computador. De alguns anos para cá, porém,os ventos se tornaram furacão e finalmente atingiramo teatro. Com a internet, estar em algum lugardeixou de ser uma condição real, física. Os corposse digitalizaram e, com eles, as artes cênicas.Ain<strong>da</strong> não são muitos pelo Brasil, nem pelo mundo,mas já existem grupos cênicos que pesquisamas possibili<strong>da</strong>des binárias <strong>da</strong> relação <strong>da</strong> culturadigital com o teatro. Hoje, as principais experiênciasusam transmissões ao vivo pela web como intuito de ligar palcos e plateias em diferenteslugares. Mas junte projeção de vídeos, performances,iluminação e as artes visuais com streamingde vídeo, tecnologia 3D, holografias, videomapping,celulares e presenças on e off-line e teremospossibili<strong>da</strong>des ca<strong>da</strong> vez maiores de experimentaçõescriativas para um futuro próximo.Uma <strong>da</strong>s experiências brasileiras na área é <strong>da</strong>companhia Phila7, de São Paulo. Em 2006, comseu segundo espetáculo, Play on Earth, o grupotornou-se pioneiro no uso <strong>da</strong> internet para criaçãoe apresentação de uma peça teatral que uniutrês elencos em três continentes ao mesmo tempo:Phila7 em São Paulo, Station House Operaem Newcastle, Inglaterra, e Cia Theatreworks emCingapura. Em 2008 surgiu a continuação de Playon Earth, a peça What’s Wrong with the World?,espetáculo ao vivo entre Rio de Janeiro e Londresque contava com quatro telões e cinco possibili<strong>da</strong>desde imagens. As mesmas cenas eramapresenta<strong>da</strong>s nas duas ci<strong>da</strong>des, com transmissãosimultânea via streaming em inglês e português,com três atores em ca<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de interagindo entresi e também via internet, por telas digitais.
DE FATO, NÃO É “SÓ TEATRO”, E NENHUM DOSENVOLVIDOS NESSAS EXPERIÊNCIAS SUSTENTAO CONTRÁRIO – EMBORA SE MANTENHA A TRÍADEATORES, PÚBLICO E MENSAGEM QUE DEFINETEORICAMENTE ESSA ARTE.TEATRO PELA INTERNETOutro grupo brasileiro que se destaca na misturade teatro e tecnologia digital é o Teatropara Alguém. Criado em dezembro de 2008pelo casal Renata Jesion – atriz forma<strong>da</strong> peloCentro de Pesquisa Teatral (CPT-Sesc) – eNelson Kao – cenógrafo, iluminador e diretorde fotografia –, o grupo consolidou um formatoespecífico. Encena<strong>da</strong>s numa sala a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong>para teatro na casa dos criadores, as peças sãocurtas – inicialmente de até 10 minutos, masque depois se estenderam para 30 minutos – egrava<strong>da</strong>s por uma câmera que “joga” com osatores e transmite ao vivo, de graça, via streamingpelo site teatroparaalguem.com.br.Nesse formato, o grupo realizou mais de 50 espetáculos,entre parcerias e produções próprias.Em 2009, seu ano mais profícuo, montou 13 peças.Além disso, fez apresentações em outrosformatos, como a antinovela Corpo Estranho, doescritor e quadrinista Lourenço Mutarelli, um seriadoem episódios curtos que teve duas tempora<strong>da</strong>sgrava<strong>da</strong>s (2009 e 2010) para a exibição nosite, sem transmissão ao vivo. A produção constantee inovadora valeu ao Teatro para Alguémdestaque na mídia nacional e uma indicação aoPrêmio Shell de 2010 na categoria Especial pelainiciativa de criação cênica via internet.De 2011 para cá, o grupo diminuiu o ritmo deprodução e passou a diversificar suas ativi<strong>da</strong>des.Começou, por exemplo, a gravar e transmitirtambém os ensaios de algumas de suaswebpeças. E, em 30 de junho deste ano, partiupara outros campos e inaugurou um novo projeto:a TPA, rede social de artistas em que ca<strong>da</strong>profissional pode criar sua página, montar seuportfólio e se relacionar com outros “trabalhadores”<strong>da</strong>s artes.O projeto Vila Digital, ligado ao teatro Vila Velha,de Salvador, é um dos que mais recentementetentaram buscar uma ligação entre o efêmerodo teatro e os bits do digital. Encabeçado porMárcio Meirelles, ex-secretário de Cultura <strong>da</strong>Bahia e atual diretor do Vila, o projeto buscaconstruir um núcleo de tecnologia que viabilizea criação de cenários e instalações digitais/interativas. A primeira experiência se deu comO Olho de Deus – o Avesso dos Retalhos, que encerroutempora<strong>da</strong> no final de junho deste ano.O espetáculo se passava em dois lugares do teatroVila Velha ao mesmo tempo, no Palco Principale no do Cabaré dos Novos, interligadosatravés de projeções audiovisuais, transmissõessimultâneas de voz, imagens e trilha sonora. Ain<strong>da</strong>em junho, houve a transmissão ao vivo pelainternet diretamente do blog <strong>da</strong> peça [oavessodosretalhos.blogspot.com.br].O espectador, tantoao vivo quanto pela rede, podia escolher deonde queria assistir à ação <strong>da</strong> peça, uma crônica<strong>da</strong> decadente aristocracia baiana conduzi<strong>da</strong> porduas senhoras muito religiosas que vivem numadimensão “fantástica” do mundo.MÚLTIPLOS TEATROSDuas <strong>da</strong>s principais conversas que ouvi durantea produção de Efêmero Revisitado: Conversassobre Teatro e Cultura Digital (selo BaixaCultura)– livro que produzi em 2011 sobre o assuntopor meio <strong>da</strong> bolsa Funarte para Reflexão Críticaem Mídias Digitais – foram especulações sobrea “morte” <strong>da</strong>s peças tradicionais e a ironia típicados puristas: “Isso não é teatro”. De fato, não é “sóteatro”, e nenhum dos envolvidos nessas experiênciassustenta o contrário – embora se mantenhaa tríade atores, público e mensagem quedefine teoricamente essa arte.Renata Jesion, do Teatro para Alguém, fala de“outro teatro, uma bifurcação que está acontecendoagora, no século XXI, que te dá outra possibili<strong>da</strong>de”.Rodolfo Araújo, jornalista, pesquisador eautor <strong>da</strong> dissertação de mestrado pela PUC/SPPanorama <strong>da</strong> Teatrali<strong>da</strong>de Remidia<strong>da</strong>, diz que“estamos falando de algo que não é mais teatro,mas que tem na essência uma teatrali<strong>da</strong>de expandi<strong>da</strong>”.Rubens Velloso, diretor <strong>da</strong> companhiaPhila7, endossa o coro de Araújo: “Eu não queronomear de teatro nem de digital, porque, quandovocê fala em teatro digital, nomeia duas coisasque já têm carimbo na socie<strong>da</strong>de. Mas certamenteo teatro está no que a Phila7 faz”, diz.Quanto à questão sobre a “morte” <strong>da</strong>s peças tradicionais,parece não haver mais crise. As invençõesde hoje não acabam com as tecnologias epráticas já existentes, mas convivem com elas.Declarou-se o fim do concerto musical ao vivocom a criação do fonógrafo, na segun<strong>da</strong> metadedo século XIX, assim como <strong>da</strong> pintura com a fotografia,do teatro com a criação do cinema, docinema com o alvorecer <strong>da</strong> televisão, e assim pordiante. Ante a sobrevivência de to<strong>da</strong>s as artes declara<strong>da</strong>smortas tempos atrás, não é difícil preverque também o teatro tradicional não acabará. Émais provável que estejamos vendo o nascimentode múltiplos teatros – midiáticos, digitais, virtuais,computacionais, abertos, flexíveis, remixáveis.Melhor para o público.11CONTINUUM10