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A produção do espaço - MOM. Morar de Outras Maneiras.

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HENRILEFEBVREA PRODUÇÃO DO ESPAÇOTRADUÇÃODORALICEBARROSPEREIRAE SÉRGIOMARTINS


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão : início - fev.2006SUMÁRIOPrefácioI. Propósito da obraII. O espaço socialIII. A arquitetônica espacialaç IV.Do espaço absoluto ao espaço abstratoV. O espaço contraditórioVI. Das contradições <strong>do</strong> espaço ao espaço diferencialVII. Aberturas e conclusões138232


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006PREFÁCIOA PRODUÇÃO DO ESPAÇO1) Há <strong>do</strong>ze ou quinze anos, quan<strong>do</strong> este livro foi escrito, as concepções sobre o espaço estavamconfusas, para<strong>do</strong>xais, incompatíveis. A partir das performances <strong>do</strong>s cosmonautas, <strong>de</strong>pois com osfoguetes interplanetários, o espaço estava incontestavelmente “na moda”: espaço disto, espaçodaquilo (espaço pictórico, escultural, até musical); mas a imensa maioria das pessoas e <strong>do</strong> público sóentendiam por essa palavra, o Espaço (maiúsculo) carrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> conotações novas e singulares, asdistâncias cósmicas. Tradicionalmente, o termo não evocava senão os matemáticos, a geometria(euclidiana) e seus teoremas, portanto uma abstração: um recipiente sem conteú<strong>do</strong>. Na filosofia?Com freqüência, o espaço era <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha<strong>do</strong>, trata<strong>do</strong> como uma “categoria” entre outras (um “a priori”,diziam os kantianos: uma maneira <strong>de</strong> dispor os fenômenos sensíveis). Às vezes, era carrega<strong>do</strong> <strong>de</strong>todas as ilusões e <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os erros: <strong>de</strong>svian<strong>do</strong> a interiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “si”, o <strong>de</strong>sejo e a ação, para oexterior, portanto, a vida psicológica para fora e para o inerte, espedaçante e espedaça<strong>do</strong> (com ecomo a linguagem: Bergson). Quanto às ciências que <strong>de</strong>le se ocupavam, elas o repartiam, o espaço sefragmentan<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> postula<strong>do</strong>s meto<strong>do</strong>lógicos simplifica<strong>do</strong>s: o geográfico, o sociológico, ohistórico etc. No melhor <strong>do</strong>s casos, o espaço passava por um meio vazio, recipiente indiferente aoconteú<strong>do</strong>, mas <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> certos critérios inexprimi<strong>do</strong>s: absoluto, ótico-geométrico,euclidiano-cartesiano-newtoniano. Se “espaços” eram admiti<strong>do</strong>s, eram reuni<strong>do</strong>s num conceito cujoalcance permanecia mal <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>. A noção <strong>de</strong> relativida<strong>de</strong>, mal assimilada, se estabelecia àmargem <strong>do</strong> conceito, das representações e, sobretu<strong>do</strong>, <strong>do</strong> cotidiano, <strong>de</strong>vota<strong>do</strong>s à tradição (o tridimensional,a separação <strong>do</strong> espaço e <strong>do</strong> tempo, <strong>do</strong> metro e <strong>do</strong> relógio etc.).2) Para<strong>do</strong>xalmente, ou seja, com uma contradição (diabólica) inexprimida, inconfessada,inexplicitada, a prática – na socieda<strong>de</strong> e no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção existentes – ia num outro senti<strong>do</strong> queo das representações e <strong>do</strong>s saberes fragmentários. Se (os políticos? Não; antes seus colabora<strong>do</strong>res eauxiliares tecnocratas, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> uma autorida<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ráveis) se inventava aplanificação espacial - e isso na França, principalmente - não se propunha nada menos que formar,mo<strong>de</strong>lar racionalmente o espaço francês, <strong>do</strong> qual se consi<strong>de</strong>rava (não sem argumento) que eletomava, “inexoravelmente”, um mau aspecto e disposições <strong>de</strong>ploráveis: aqui <strong>de</strong>sertificação, alhuresaglomeração etc. Notadamente, o eixo “espontâneo”, in<strong>do</strong> <strong>do</strong> Mediterrâneo aos mares <strong>do</strong> Norte pelosvales <strong>do</strong> Reno, da Saône, <strong>do</strong> Sena, já colocava alguns problemas. Projetava-se a construção <strong>de</strong>“metrópoles <strong>de</strong> equilíbrio” em torno <strong>de</strong> Paris e nalgumas regiões. Não faltavam meios, nemambições, à <strong>de</strong>legação ao or<strong>de</strong>namento <strong>do</strong> território e das regiões, organização potente e3


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006centralizada: produzir um espaço nacional harmonioso, pôr um pouco <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nação na urbanização“selvagem”, apenas obe<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> à procura <strong>de</strong> lucros.3) Atualmente, ninguém ignora que essa tentativa original <strong>de</strong> planificação (que não coincidia nemcom os planos por balanços-matérias, nem com o controle estatista <strong>do</strong> emprego <strong>de</strong> capitais, ou seja, aplanificação pela via financeira) foi rompida, reduzida a quase nada pelo neo-liberalismo, malreconstituída <strong>de</strong>pois.4) De on<strong>de</strong> uma contradição notável e, entretanto, pouco notada entre as teorias <strong>do</strong> espaço e daprática espacial. Contradição coberta – po<strong>de</strong>-se dizer sufocada – pelas i<strong>de</strong>ologias que misturavam asdiscussões sobre o espaço, saltan<strong>do</strong> <strong>do</strong> cosmológico ao humano, <strong>do</strong> macro ao micro, das funções àsestruturas, sem precauções conceituais, nem meto<strong>do</strong>lógicas. A i<strong>de</strong>ologia da espacialida<strong>de</strong>, muitoconfusa, interpenetrava o saber racional, a planificação efetiva, mas autoritária, as representaçõestriviais e correntes.5) De on<strong>de</strong> o esforço para sair da confusão consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o espaço (social), assim como o tempo(social), não mais como fatos da “natureza” mais ou menos modificada, nem como simples fatos <strong>de</strong>“cultura”, mas como produtos. O que acarretava uma modificação no emprego e no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>sseúltimo termo. A produção <strong>do</strong> espaço (e <strong>do</strong> tempo) não os consi<strong>de</strong>rava como “objetos” e “coisas”insignificantes, sain<strong>do</strong> das mãos ou das máquinas, mas como os aspectos principais da segundanatureza, efeito da ação das socieda<strong>de</strong>s sobre a “primeira natureza”; sobre os da<strong>do</strong>s sensíveis, amatéria e as energias. Produtos? Sim, num senti<strong>do</strong> específico, notadamente por um caráter <strong>de</strong>globalida<strong>de</strong> (não <strong>de</strong> “totalida<strong>de</strong>”) que os produtos não têm na acepção ordinária e trivial, objetos ecoisas, merca<strong>do</strong>rias (ainda que justamente o espaço e o tempo produzi<strong>do</strong>s, mas “lotea<strong>do</strong>s”, sãotroca<strong>do</strong>s, são vendi<strong>do</strong>s, são compra<strong>do</strong>s, como “coisas” e objetos!)6) Brevemente, é preciso sublinhar que naquele tempo (ao re<strong>do</strong>r <strong>de</strong> 1970) já se colocavam, comuma evidência (cegante para muitos, que preferiam olhar alhures), as questões urbanas. Os textosoficiais não bastavam nem para regular, nem para mascarar a nova barbárie. Massiva e “selvagem”,sem outra estratégia que a maximização <strong>do</strong>s ganhos, sem racionalida<strong>de</strong> nem originalida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra, aurbanização, como se dizia, e as construções engendravam efeitos <strong>de</strong>sastrosos, observáveis, jáconstatáveis <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. Des<strong>de</strong> então, em nome da “mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>”.7) Como manter sem novos argumentos a tese (greco-latina: a nossa, a da nossa civilização!)segun<strong>do</strong> a qual a Cité, a Cida<strong>de</strong>, o Urbano, são os centros, os lugares privilegia<strong>do</strong>s, os berços <strong>do</strong>pensamento, da invenção? A relação “cida<strong>de</strong>-campo” se modificava à escala mundial, cominterpretações “extremistas” (o campo mundial contra a cida<strong>de</strong> mundial!). Como pensar a Cida<strong>de</strong>(sua explosão-implosão generalizada, o Urbano mo<strong>de</strong>rno) sem conceber claramente o espaço que elaocupa, <strong>do</strong> qual ela se apropria (ou <strong>de</strong>sapropria)? Impossível pensar a cida<strong>de</strong> e o urbano mo<strong>de</strong>rnos,4


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006enquanto obras (no senti<strong>do</strong> amplo e forte da obra <strong>de</strong> arte que transforma seus materiais) sem <strong>de</strong>início concebê-los como produtos. E isso num mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>, que ao mesmo tempoenfraquece, mostra suas conseqüências extremas, por vezes <strong>de</strong>ixa passar “outra coisa”, ao menoscomo alerta {expectativa}, exigência, apelo. Decerto, os ecologistas já tinham adverti<strong>do</strong> e opina<strong>do</strong>:território, meio ambiente, ar e água poluí<strong>do</strong>s, a natureza, essa “matéria primeira”, material daCida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vastada sem escrúpulos. Faltava a essa tendência ecológica uma teoria geral da relaçãoentre o espaço e a socieda<strong>de</strong>, entre o territorial, o urbanístico, o arquitetural...8) A concepção <strong>do</strong> espaço como produto social não avançava sem dificulda<strong>de</strong>s. Dito <strong>de</strong> outramaneira, sem uma problemática em parte nova e imprevista.9) Não <strong>de</strong>signan<strong>do</strong> um “produto” insignificante, coisa ou objeto, mas um conjunto <strong>de</strong> relações, esseconceito exigia um aprofundamento das noções <strong>de</strong> produção, <strong>de</strong> produto, <strong>de</strong> suas relações. Comodizia Hegel, um conceito só aparece quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>signa, anuncia, aproxima-se <strong>de</strong> seu fim – e <strong>de</strong> suatransformação. O espaço não po<strong>de</strong> mais ser concebi<strong>do</strong> como passivo, vazio, ou então, como os“produtos”, não ten<strong>do</strong> outro senti<strong>do</strong> senão o <strong>de</strong> ser troca<strong>do</strong>, o <strong>de</strong> ser consumi<strong>do</strong>, o <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecer.Enquanto produto, por interação ou retroação, o espaço intervém na própria produção: organização<strong>do</strong> trabalho produtivo, transportes, fluxos <strong>de</strong> matérias-primas e <strong>de</strong> energias, re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> repartição <strong>de</strong>produtos. À sua maneira produtivo e produtor, o espaço (mal ou bem organiza<strong>do</strong>) entra nas relações<strong>de</strong> produção e nas forças produtivas. Seu conceito não po<strong>de</strong>, portanto, ser isola<strong>do</strong> e permanecerestático. Ele se dialetiza: produto-produtor, suporte <strong>de</strong> relações econômicas e sociais. Ele não entratambém na reprodução, a <strong>do</strong> aparelho produtivo, da reprodução ampliada, das relações que elerealiza praticamente, “no terreno”?10) Des<strong>de</strong> que formulada, essa noção não se esclarece e não esclarece muitos fatos? Ela não atingiriaa evidência: a realização “no terreno”, portanto num espaço social produzi<strong>do</strong>, <strong>de</strong> relações sociais <strong>de</strong>produção e <strong>de</strong> reprodução? Elas po<strong>de</strong>m permanecer “no ar”, abstrações pelo e para o saber?A<strong>de</strong>mais, essa teorização permite compreen<strong>de</strong>r a originalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> projeto (permanecen<strong>do</strong> no quadrolimita<strong>do</strong> <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção existente), o da planificação espacial. Para compreendê-lo, mastambém para modificá-lo, completá-lo, em função <strong>de</strong> outras <strong>de</strong>mandas e <strong>de</strong> outros projetos; masconsi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> sua qualida<strong>de</strong>, e notadamente o fato que ele se preocupava da urbanização. Portanto, aretomar.11) Em segun<strong>do</strong> lugar, e sem menos dificulda<strong>de</strong>: na estrita tradição marxista, o espaço social podiaser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como uma superestrutura. Como resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> forças produtivas e <strong>de</strong> estruturas, <strong>de</strong>relações <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> entre outras. Ora, o espaço entra nas forças produtivas, na divisão <strong>do</strong>trabalho; ele tem relações com a proprieda<strong>de</strong>, isso é claro. Com as trocas, com as instituições, acultura, o saber. Ele se ven<strong>de</strong>, se compra; ele tem valor <strong>de</strong> troca e valor <strong>de</strong> uso. Portanto, ele não se5


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006situa a tal ou tais “níveis”, “planos” classicamente distingui<strong>do</strong>s e hierarquiza<strong>do</strong>s. O conceito <strong>do</strong>espaço (social) e o próprio espaço escapam, portanto, à classificação “base-estrutura-superestrutura”.Como o tempo? Talvez. Como a linguagem? É o que veremos. Seria preciso, por isso, aban<strong>do</strong>nar aanálise e a orientação marxistas? De to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s surge esse convite, essa sugestão. E não apenas apropósito <strong>do</strong> espaço. Mas não se po<strong>de</strong>ria, ao contrário, retornar às fontes, aprofundar a análiseaportan<strong>do</strong>-lhe novos conceitos, aprimoran<strong>do</strong> e experimentan<strong>do</strong> renovar as démarches? É o que setenta nesta obra. Ela supõe que o espaço aparece, se forma, intervém ora a alguns “níveis” ora aoutros. Ora no trabalho e nas relações <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação (<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>), ora no funcionamento dassuperestruturas (instituições). Portanto, <strong>de</strong>sigualmente, mas por toda parte. A produção <strong>do</strong> espaçonão seria “<strong>do</strong>minante” no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção, mas religaria os aspectos da prática coor<strong>de</strong>nan<strong>do</strong>-os,reunin<strong>do</strong>-os, precisamente, numa “prática”.12) E isso não é tu<strong>do</strong>. Longe disso. Se o espaço (social) intervém no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção, ao mesmotempo efeito, causa e razão, ele muda com esse mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção! Fácil <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r: ele mudacom “as socieda<strong>de</strong>s”, se se quiser exprimir assim. Portanto, há uma história <strong>do</strong> espaço. (Como <strong>do</strong>tempo, <strong>do</strong>s corpos, da sexualida<strong>de</strong> etc.). História ainda por escrever.13) O conceito <strong>de</strong> espaço reúne o mental e o cultural, o social e o histórico. Reconstituin<strong>do</strong> umprocesso complexo: <strong>de</strong>scoberta (<strong>de</strong> espaços novos, <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>s, continentes ou o cosmos) -produção (da organização espacial própria a cada socieda<strong>de</strong>) - criação (<strong>de</strong> obras: a paisagem, acida<strong>de</strong> como a monumentalida<strong>de</strong> e o décor). Isso evolutivamente, geneticamente (com uma gênese),mas segun<strong>do</strong> uma lógica: a forma geral da simultaneida<strong>de</strong>; pois to<strong>do</strong> dispositivo espacial repousasobre a justaposição na inteligência e na junção material <strong>de</strong> elementos <strong>do</strong>s quais se produz asimultaneida<strong>de</strong>...14) No entanto, a questão se complexifica. Haveria uma relação direta, imediata e imediatamenteapreendida, portanto transparente, entre o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção (a socieda<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rada) e seu espaço?Não. Existem <strong>de</strong>sencontros: i<strong>de</strong>ologias se intercalam, ilusões se interpõem. O que esta obra começa aelucidar. Assim, a invenção da perspectiva, na Toscana, nos séculos XIII e XIV. Não somente napintura (escola <strong>de</strong> Siena), mas <strong>de</strong> início na prática, na produção. O campo muda: passa <strong>do</strong> <strong>do</strong>míniofeudal ao arrendamento; alamedas <strong>de</strong> ciprestes conduzem os arrendatários à morada <strong>do</strong> senhor, on<strong>de</strong>se encontra um administra<strong>do</strong>r, pois o proprietário mora na cida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> é banqueiro, gran<strong>de</strong>comerciante. A cida<strong>de</strong> muda, com implicações arquiteturais: a fachada, o alinhamento, o horizonte.Essa produção <strong>de</strong> um novo espaço, o perspectivo, não se separa <strong>de</strong> uma transformação econômica:crescimento da produção e das trocas, ascensão <strong>de</strong> uma nova classe, importância das cida<strong>de</strong>s etc.Mas o que efetivamente se passou não teve a simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um enca<strong>de</strong>amento causal. O espaçonovo foi concebi<strong>do</strong>, engendra<strong>do</strong>, produzi<strong>do</strong> para e pelos príncipes? Por ricos merca<strong>do</strong>res? Por um6


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006compromisso? Ou pela cida<strong>de</strong> enquanto tal? Mais <strong>de</strong> um ponto permanece obscuro. A história <strong>do</strong>espaço (como a <strong>do</strong> tempo social) está longe <strong>de</strong> ser esgotada.15) Outro caso, ainda mais surpreen<strong>de</strong>nte, igualmente evoca<strong>do</strong> e mal elucida<strong>do</strong> nesta obra: aBauhaus; mais Le Corbusier. Os integrantes da Bauhaus, Gropius e seus amigos, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>srevolucionários, na Alemanha, entre 1920 e 1930; consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s Bolcheviques! Persegui<strong>do</strong>s, forampara os EUA, on<strong>de</strong> revelaram-se práticos (arquitetos e urbanistas) e até teóricos <strong>do</strong> espaço ditomo<strong>de</strong>rno, aquele <strong>do</strong> capitalismo “avança<strong>do</strong>”. Eles contribuíram para a sua construção: para a suarealização “no terreno”, através <strong>de</strong> suas obras e <strong>de</strong> seu ensino. Desventura e <strong>de</strong>stino trágico para LeCorbusier! E, em seguida, novamente, para os que consi<strong>de</strong>raram os gran<strong>de</strong>s conjuntos e os “bairros”como o habitat específico da classe operária. Eles negligenciaram o conceito <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção,produzin<strong>do</strong> também seu espaço e assim se terminan<strong>do</strong>. Em nome da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. O espaço da“mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” tem características precisas: homogeneida<strong>de</strong>-fragmentação-hierarquização. Ele ten<strong>de</strong>para o homogêneo por diversas razões: fabricação <strong>de</strong> elementos e materiais - exigências análogasintervenientes -, méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> gestão e <strong>de</strong> controle, <strong>de</strong> vigilância e <strong>de</strong> comunicação. Homogeneida<strong>de</strong>,mas não <strong>de</strong> plano, nem <strong>de</strong> projetos. De falsos “conjuntos”, <strong>de</strong> fato, isola<strong>do</strong>s. Pois para<strong>do</strong>xalmente(ainda) esse espaço homogêneo se fragmenta: lotes, parcelas. Em pedaços! O que produz guetos,isola<strong>do</strong>s, grupos pavilhonares 1 e pseu<strong>do</strong>conjuntos mal liga<strong>do</strong>s aos arre<strong>do</strong>res e aos centros. Com umahierarquização estrita: espaços resi<strong>de</strong>nciais, espaços comerciais, espaços <strong>de</strong> lazer, espaços para osmarginais etc. Uma curiosa lógica <strong>de</strong>sse espaço pre<strong>do</strong>mina: que ele se vincula ilusoriamente àinformatização e oculta, sob sua homogeneida<strong>de</strong>, as relações “reais” e os conflitos. Além disso,parece que essa lei ou esse esquema <strong>do</strong> espaço com sua lógica (homogeneida<strong>de</strong>-fragmentaçãohierarquização)tomou um alcance maior e atingiu uma espécie <strong>de</strong> generalida<strong>de</strong>, com efeitosanálogos, no saber e na cultura, no funcionamento da socieda<strong>de</strong> inteira.16) Esta obra procura, portanto, não apenas caracterizar o espaço em que vivemos e sua gênese, masreencontrá-la, através <strong>do</strong> e pelo espaço produzi<strong>do</strong>, da socieda<strong>de</strong> atual. Ambição que o título nãoanuncia abertamente. Resumamos esse propósito, inerente à démarche perseguida: um estu<strong>do</strong> “paratrás” <strong>do</strong> espaço social na sua história e sua gênese, a partir <strong>do</strong> presente, remontan<strong>do</strong> para essa gênese– em seguida, retorno sobre o atual, o que permite entrever, senão prever o possível e o futuro. Essadémarche permite estu<strong>do</strong>s locais a diversas escalas, inserin<strong>do</strong>-os na análise geral, na teoria global.As implicações e imbricações lógicas se compreen<strong>de</strong>m como tais, mas saben<strong>do</strong>-se que essacompreensão não exclui (ao contrário) os conflitos, as lutas, as contradições. Nem, inversamente, osacor<strong>do</strong>s, entendimentos, alianças. Se o local, o regional, o nacional, o mundial se implicam e se1 Fazer nota explicativa.7


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006imbricam, o que se incorpora no espaço, os conflitos atuais ou virtuais, não estão nem ausentes nemelimina<strong>do</strong>s. Implicações e contradições, no espaço e nos outros <strong>do</strong>mínios, têm mais amplitu<strong>de</strong>atualmente <strong>do</strong> que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quan<strong>do</strong> este livro foi escrito. As relações <strong>de</strong> implicação não impe<strong>de</strong>m asestratégias adversas, nem sobre os merca<strong>do</strong>s, nem nos armamentos. Portanto, no espaço.17) O territorial, o urbanístico, o arquitetural têm, entre si, relações análogas: implicações-conflitos.O que só se po<strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r se estiverem compreendidas as relações: “lógica-dialética”, “estruturaconjuntura”,expostas e supostas aqui numa certa perspectiva, explicitadas alhures 2 . Essas relações,ao mesmo tempo abstratas e concretas, revelam uma “cultura” filosófica e política que <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> la<strong>do</strong>essa “complexida<strong>de</strong>” para buscá-la alhures.18) A pesquisa sobre o espaço social apóia-se numa globalida<strong>de</strong>. Ela não exclui, reiteramos,pesquisas precisas e <strong>de</strong>terminadas “no terreno”. Contu<strong>do</strong>, o perigo <strong>do</strong> “pontual”, a esse títulovaloriza<strong>do</strong> porque controlável, por vezes mensurável, é que ele separa o que se implica, isola o quese “articula”. Portanto, ele aceita ou ratifica a fragmentação. O que conduz a práticas excessivas <strong>de</strong><strong>de</strong>sconcentração, <strong>de</strong> <strong>de</strong>scentralização, que <strong>de</strong>slocam as re<strong>de</strong>s, os laços e relações no espaço, portanto,o espaço social lhe escapa ao fazer <strong>de</strong>saparecer a produção! O que evita muitas questõespedagógicas, lógicas, políticas...19) Tese central sobre a qual é preciso retornar antes <strong>de</strong> concluir. O mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção organiza –produz – ao mesmo tempo que certas relações sociais, seu espaço (e seu tempo). É assim que ele serealiza. Seja dito, en passant: o socialismo engendrou um espaço? Se não, é que o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produçãosocialista ainda não tem existência concreta. O mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção projeta essas relações no terreno, oqual reage sobre elas. Sem que haja correspondência exata, <strong>de</strong>finida <strong>de</strong> antemão, entre as relaçõessociais e as relações espaciais (ou espaço-temporais). Não se po<strong>de</strong> afirmar que o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produçãocapitalista tenha, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, “or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>”, por inspiração ou inteligência, sua extensão espacial,<strong>de</strong>stinada a se enten<strong>de</strong>r em nosso tempo ao planeta inteiro! De início, houve utilização <strong>do</strong> espaçoexistente, por exemplo, das vias aquáticas (canais, rios, mares), <strong>de</strong>pois das estradas; na seqüência,construção <strong>de</strong> estradas <strong>de</strong> ferro, para continuar pelas auto-estradas e pelos aeroportos. Nenhum meio<strong>de</strong> transporte no espaço <strong>de</strong>sapareceu inteiramente, nem a caminhada, nem o cavalo, nem a bicicletaetc. Contu<strong>do</strong>, um espaço novo se constituiu no século XX, à escala mundial; sua produção, nãoterminada, continua. O novo mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção (a socieda<strong>de</strong> nova) se apropria, ou seja, organizapara seus fins, o espaço preexistente, mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong> anteriormente. Modificações lentas penetram uma2 Cf. Logique formelle, logique dialectique, 3ème éd. Messi<strong>do</strong>r, 1981.Em língua portuguesa, cf. LEFEBVRE, Henri. Lógica formal. Lógica dialética. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 3ª ed. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. (N.T.)8


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006espacialida<strong>de</strong> já consolidada, mas às vezes a subvertem com brutalida<strong>de</strong> (caso <strong>do</strong>s campos epaisagens rurais no século XIX).20) Incontestavelmente, as estradas <strong>de</strong> ferro <strong>de</strong>sempenharam um papel primordial no capitalismoindustrial, na organização <strong>de</strong> seu espaço nacional (e internacional). Senão, ao mesmo tempo, à escalaurbana: os bon<strong>de</strong>s, metrôs, ônibus. Em seguida, à escala mundial, os transportes aéreos. Aorganização anterior se <strong>de</strong>sintegra e o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção integra para si os resulta<strong>do</strong>s. Processoduplo, visível nos campos e cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> algumas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> anos, com a ajuda <strong>de</strong> técnicasrecentes, mas se esten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>do</strong>s centros às periferias longínquas.21) A organização <strong>do</strong> espaço centraliza<strong>do</strong> e concentra<strong>do</strong> serve ao mesmo tempo ao po<strong>de</strong>r político eà produção material, otimizan<strong>do</strong> os benefícios. Na hierarquia <strong>do</strong>s espaços ocupa<strong>do</strong>s as classes sociaisse investem e se travestem.22) À escala mundial, contu<strong>do</strong>, um novo espaço ten<strong>de</strong> a se formar, integran<strong>do</strong> e <strong>de</strong>sintegran<strong>do</strong> onacional, o local. Processo cheio <strong>de</strong> contradições, liga<strong>do</strong> ao conflito entre uma divisão <strong>do</strong> trabalho àescala planetária, no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção capitalista, e o esforço em direção a uma outra or<strong>de</strong>mmundial mais racional. Essa penetração <strong>do</strong> e no espaço teve tanta importância histórica quanto aconquista da hegemonia pela penetração no institucional. Ponto capital, senão final <strong>de</strong>ssa penetração:a militarização <strong>do</strong> espaço, ausente (e com razão) <strong>de</strong>sta obra, mas que culmina a <strong>de</strong>monstração àescala ao mesmo tempo planetária e cósmica.23) Essa tese, como a <strong>de</strong> um espaço ao mesmo tempo homogêneo e fragmenta<strong>do</strong> (como o tempo!),suscita muitas objeções há uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> anos. Como um espaço po<strong>de</strong>ria ao mesmo tempo obe<strong>de</strong>cera regras <strong>de</strong> conjunto, constituir um “objeto” social, e se espedaçar?24) Não se trata <strong>de</strong> afirmar que a recente e já célebre teoria <strong>do</strong> objeto fractal (B. Man<strong>de</strong>lbrot) teveuma relação com a tese <strong>do</strong> espaço fragmenta<strong>do</strong>, aqui sustentada. Contu<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>-se indicar ao mesmotempo a quase simultaneida<strong>de</strong> das teorias, e o fato que a teoria físico-matemática torna a teoria sócioeconômicamais acessível e mais aceitável. O espaço físico-matemático comporta vazios eplenitu<strong>de</strong>s, cavida<strong>de</strong>s e saliências; ele mantém uma coerência, embora “trabalhada” pelofracionamento. Há, portanto, analogia entre essas tentativas teóricas 3 .25) Resta elucidar a relação entre esse espaço fragmenta<strong>do</strong> e as múltiplas re<strong>de</strong>s que combatem afragmentação e restabelecem, senão uma unida<strong>de</strong> racional, ao menos a homogeneida<strong>de</strong>. Através econtra a hierarquização, não po<strong>de</strong> romper, aqui ou ali, arquitetural ou urbanisticamente, “algo” quesai <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção existente, que nasce <strong>de</strong> suas contradições, revelan<strong>do</strong>-as e não as cobrin<strong>do</strong>com um véu?3 Cf. La Recherche, n° <strong>de</strong> novembro 1985, p.1313 e seguintes. Assim como a obra <strong>de</strong> Paul Virilio, L’espace éclaté.9


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.200626) Indicação autocrítica: falta a este livro ter <strong>de</strong>scrito <strong>de</strong> forma direta, incisiva, até mesmopanfletária, a produção <strong>do</strong>s subúrbios, guetos, enclaves étnicos, falsos “conjuntos”. O projeto <strong>de</strong> umnovo espaço permanece incerto; hoje, mais <strong>de</strong> um traço po<strong>de</strong> se ajustar ao esboço. O papel daarquitetura como uso <strong>do</strong> espaço não aparece sempre claramente.27) Não obstante, nos dias <strong>de</strong> hoje este livro, que conserva muitos centros, po<strong>de</strong> se re-ler com umadémarche que o utilize proveitosamente (para o conhecimento).28) Primeiro tempo ou momento: os elementos e a análise que os isola, os “atores” da produção, oslucros obti<strong>do</strong>s etc.29) Segun<strong>do</strong> tempo: as oposições paradigmáticas evi<strong>de</strong>nciadas: público e priva<strong>do</strong> - troca e uso -estatista e íntimo – frontal e espontâneo - espaço e tempo...30) Terceiro tempo: dialetização <strong>de</strong>sse quadro estático: as relações <strong>de</strong> força, <strong>de</strong> aliança - osconflitos, os ritmos sociais e os tempos produzi<strong>do</strong>s no e por esse espaço...31) Essa leitura <strong>de</strong>veria evitar a este trabalho a dupla acusação <strong>de</strong> u-topia (construção fictícia, novazio verbal) e também <strong>de</strong> a-topia (eliminação <strong>do</strong> espaço concreto, para só <strong>de</strong>ixar o vazio social).Henri LEFEBVREParis, 4 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1985.10


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006DedicatóriaEncerra<strong>do</strong> entre quatro pare<strong>de</strong>s(ao norte, o cristal <strong>do</strong> não-saber,paisagem a inventarao sul, a memória reflexiva11


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006a leste, o espelhoa oeste, a pedra e o canto <strong>do</strong> silêncio)escrevo mensagens sem resposta.Octavio PAZ(trad. J. C. Lambert)12


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006I. PROPÓSITODA OBRAI. P1) I.1 O espaço! Há poucos anos esse termo não evocava nada a não ser um conceito geométrico, o<strong>de</strong> um meio vazio. Toda pessoa instruída logo o completava com um termo erudito, tal como“euclidiano”, ou “isotrópico”, ou “infinito”. O conceito <strong>de</strong> espaço <strong>de</strong>pendia, geralmente se pensava,da matemática e tão-somente <strong>de</strong>ssa ciência. O espaço social? Essas palavras causavam surpresas.2) Sabia-se que o conceito <strong>de</strong> espaço tinha experimenta<strong>do</strong> uma longa elaboração filosófica, mas ahistória da filosofia também resumia a emancipação progressiva das ciências, e principalmente dasmatemáticas, em relação ao seu tronco comum: a velha metafísica. Descartes passava para a etapa<strong>de</strong>cisiva da elaboração <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> espaço e <strong>de</strong> sua emancipação. Ele havia concluí<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> amaioria <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res <strong>do</strong> pensamento oci<strong>de</strong>ntal, a tradição aristotélica segun<strong>do</strong> a qual o espaço eo tempo fazem parte das categorias; <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que eles permitem nomear e classificar os fatossensíveis, por mais que seu estatuto permaneça in<strong>de</strong>ciso. Nesse senti<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>-se consi<strong>de</strong>rá-los sejacomo simples maneiras empíricas <strong>de</strong> agrupar esses fatos sensíveis, seja como generalida<strong>de</strong>seminentes, superiores aos da<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s órgãos <strong>do</strong> corpo. Com a razão cartesiana, o espaço entra noabsoluto. Objeto diante <strong>do</strong> Sujeito, “res extensa” diante da “res cogitans”, presente nesta, ele<strong>do</strong>mina, porque os contém, os senti<strong>do</strong>s e os corpos. Atributo divino? Or<strong>de</strong>m imanente à totalida<strong>de</strong><strong>do</strong>s existentes? Segun<strong>do</strong> Descartes, assim se punha a questão <strong>do</strong> espaço para os filósofos: Spinoza,Leibniz, os newtonianos. Até que Kant retoma, modifican<strong>do</strong>-a, a antiga noção <strong>de</strong> categoria. Oespaço, relativo, instrumento <strong>de</strong> conhecimento, classificação <strong>de</strong> fenômenos, não se separa menos(com o tempo) <strong>do</strong> empírico; segun<strong>do</strong> Kant, ele se vincula, a priori, à consciência (ao “sujeito”), à suaestrutura interna e i<strong>de</strong>al, portanto, transcen<strong>de</strong>ntal, portanto, inapreensível em si.3) Essas longas controvérsias marcaram a passagem da filosofia à ciência <strong>do</strong> espaço. Elas teriamprescrito? Não. Elas têm uma outra importância que a <strong>de</strong> momentos e <strong>de</strong> etapas no curso <strong>do</strong> Logosoci<strong>de</strong>ntal. Elas se <strong>de</strong>senrolariam na abstração que seu <strong>de</strong>clínio atribui à filosofia dita “pura”? Não.Elas se vinculam a questões precisas e concretas, entre outras as das simetrias e dissimetrias, <strong>do</strong>sobjetos simétricos, <strong>de</strong> efeitos objetivos <strong>de</strong> reflexão e <strong>de</strong> espelho. Questões que serão retomadas nocurso da presente obra e repercutirão na análise <strong>do</strong> espaço social.4) I.2 Então chegaram os matemáticos, no senti<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno, paladinos <strong>de</strong> uma ciência (e <strong>de</strong> umacientificida<strong>de</strong>) afastada da filosofia, consi<strong>de</strong>rada necessária e suficiente. Os matemáticosapo<strong>de</strong>raram-se <strong>do</strong> espaço (e <strong>do</strong> tempo); tornaram-no seu <strong>do</strong>mínio, mas <strong>de</strong> uma forma para<strong>do</strong>xal. Elesinventaram espaços, uma infinida<strong>de</strong>: espaços não-euclidianos, espaços <strong>de</strong> curvaturas, espaços a xdimensões e até a uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dimensões, espaços <strong>de</strong> configuração, espaços abstratos, espaços<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s por uma <strong>de</strong>formação ou transformação, topologia etc. A linguagem matemática, muito13


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006geral e muito especializada, discerne e classifica com precisão esses inumeráveis espaços (o conjuntoou espaço <strong>de</strong> espaços não se concebem, parece, sem algumas dificulda<strong>de</strong>s). A relação entre amatemática e o real (físico, social) não era evi<strong>de</strong>nte, um abismo se cavava entre eles. Osmatemáticos, que faziam surgir essa “problemática”, a <strong>de</strong>ixavam para os filósofos, que encontravamuma maneira <strong>de</strong> restabelecer sua situação <strong>de</strong> compromisso. Desse fato, o espaço tornava, ou melhor,retornava àquilo que uma tradição filosófica, a <strong>do</strong> platonismo, tinha oposto à <strong>do</strong>utrina das categorias:uma “coisa mental” (Leonar<strong>do</strong> da Vinci). A proliferação <strong>de</strong> teorias (topologias) matemáticasagravava o velho problema dito “<strong>do</strong> conhecimento”. Como passar <strong>de</strong> espaços matemáticos, ou seja,<strong>de</strong> capacida<strong>de</strong>s mentais da espécie humana, da lógica, à natureza, à prática, <strong>de</strong> início e em seguida àteoria da vida social que se <strong>de</strong>senrola também no espaço?5) I.3 Dessa filiação (a filosofia <strong>do</strong> espaço revista e corrigida pelos matemáticos), uma pesquisamo<strong>de</strong>rna, a epistemologia, recebeu e aceitou um certo estatuto <strong>do</strong> espaço como “coisa mental” ou o“lugar mental”. Visto que a teoria <strong>do</strong>s conjuntos, apresentada como lógica <strong>de</strong>sse lugar, fascinou nãoapenas os filósofos, mas os escritores, os lingüistas. De to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s proliferaram “conjuntos” (àsvezes práticos 4 ou históricos 5 ) e “lógicas” associadas seguin<strong>do</strong> um cenário que ten<strong>de</strong> a se repetir,conjuntos e “lógicas” que não têm mais nada em comum com a teoria cartesiana.6) Mal explicita<strong>do</strong>, misturan<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> os autores a coerência lógica, a coesão prática, a autoregulaçãoe as relações das partes com o to<strong>do</strong>, o engendramento <strong>do</strong> semelhante pelo semelhante numconjunto <strong>de</strong> lugares, a lógica <strong>do</strong> recipiente e a <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>, o conceito <strong>de</strong> espaço mental segeneraliza <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então sem que nenhuma barreira lhe coloque limites. Pergunta-se continuamente,espaço disto e/ou espaço daquilo: espaço literário 6 , espaços i<strong>de</strong>ológicos, espaço <strong>do</strong> sonho, tópicospsicanalíticos etc. Ora, o “ausente” <strong>de</strong>ssas pesquisas ditas fundamentais ou epistemológicas, é nãosomente “o homem”, mas também o espaço, <strong>do</strong> qual se fala, contu<strong>do</strong>, a cada página 7 . “Um saber étambém o espaço no qual o sujeito po<strong>de</strong> tomar posição para falar <strong>do</strong>s objetos com os quais ele se<strong>de</strong>fronta no seu discurso”, <strong>de</strong>clara tranqüilamente M. Foucault 8 , sem se perguntar <strong>de</strong> qual espaço elefala, e como ele salta <strong>do</strong> teórico (epistemológico) ao prático, <strong>do</strong> mental ao social, <strong>do</strong> espaço <strong>do</strong>sfilósofos àquele das pessoas que têm <strong>de</strong> se haver com objetos. Cientificida<strong>de</strong> (que é <strong>de</strong>finida pelareflexão dita “epistemológica” sobre o saber adquiri<strong>do</strong>) e espacialida<strong>de</strong> se articulam“estruturalmente” <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com uma conexão pressuposta: evi<strong>de</strong>nte pelo discurso científico, jamais4J. P. Sartre. Critique <strong>de</strong> la raison dialectique, I, Théorie <strong>de</strong>s ensembles pratiques, Gallimard, 1960.5 Michel Clouscard, L’Être et le Co<strong>de</strong>, Procés <strong>de</strong> production d’un ensemble précapitaliste, Mouton, 1972.6 M. Blanchot, L’Espace littéraire, Gallimard, coll. Idées, 1968.7Cf. a coletânea intitulada Panorama <strong>de</strong>s sciences humaines, N.R.F., 1973, da qual essa é a menor lacuna.8 Archéologie du Savoir, p.328. Cf. também p.196: “Le parcours d’un sens”, p.200, “l’espace <strong>de</strong>s dissensions” etc.14


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006elevada ao conceito. O discurso científico, sem receio da ociosida<strong>de</strong>, confronta o estatuto <strong>do</strong> espaçoe o <strong>do</strong> “sujeito”, o “eu” pensante e o objeto pensa<strong>do</strong>, retoman<strong>do</strong>, assim, as posições <strong>do</strong> Logoscartesiano (oci<strong>de</strong>ntal) que, por outro la<strong>do</strong>, <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s pensa<strong>do</strong>res julgaram “fechar” 9 . A reflexãoepistemológica, conjugada com os esforços teóricos <strong>do</strong>s lingüistas, chega a um curioso resulta<strong>do</strong>. Elaliqui<strong>do</strong>u o “sujeito coletivo”, o povo como gera<strong>do</strong>r <strong>de</strong> tal língua, porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> tais seqüênciasetimológicas. Ela afastou o sujeito concreto, substituto <strong>do</strong> <strong>de</strong>us que nomeia as coisas. Ela <strong>de</strong>uprecedência ao “se”, ao impessoal, gera<strong>do</strong>r da linguagem em geral, <strong>do</strong> sistema. Contu<strong>do</strong>, énecessário um sujeito. É então o sujeito abstrato, o Cogito filosófico quem reaparece. Daí areatualização, à moda “neo”, da velha filosofia (neo-hegeliana, neo-kantiana, neo-cartesiana), através<strong>de</strong> Husserl que, sem escrúpulos excessivos, põe a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> (quase tautológica) <strong>do</strong> Sujeitocognoscente e da Essência concebida, inerente ao “fluxo” (<strong>do</strong> vivi<strong>do</strong>) e, por conseguinte, ai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> quase “pura” <strong>do</strong> saber formal com o saber prático 10 . Não surpreen<strong>de</strong>, portanto, que ogran<strong>de</strong> lingüista N. Chomsky restitua o Cogito (sujeito) cartesiano 11 quan<strong>do</strong> afirma a existência <strong>de</strong>um nível lingüístico on<strong>de</strong> não se po<strong>de</strong> representar cada frase simplesmente como a série finita <strong>de</strong>elementos <strong>de</strong> um certo tipo, engendrada “da esquerda para a direita” por um mecanismo simples,mas que é preciso <strong>de</strong>scobrir um conjunto finito <strong>de</strong> níveis or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s “<strong>de</strong> alto a baixo” 12 . N. Chomskypostula sem outra forma <strong>de</strong> processo um espaço mental <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>finidas:orientações e simetrias. Ele se entrega generosamente à passagem <strong>de</strong>sse espaço mental da linguagemao espaço social on<strong>de</strong> a linguagem torna-se prática, sem dimensionar o abismo que ele transpõe. Domesmo mo<strong>do</strong>, J. M. Rey 13 : “O senti<strong>do</strong> se oferece como o po<strong>de</strong>r legal <strong>de</strong> substituir os significa<strong>do</strong>ssobre a mesma ca<strong>de</strong>ia horizontal, no espaço <strong>de</strong> uma coerência regulada e calculada <strong>de</strong> antemão”.Esses e vários outros autores, que se colocam sob o signo <strong>do</strong> rigor formal perfeito, cometem o erroperfeito – o paralogismo - <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista lógico-matemático: o salto por cima <strong>de</strong> uma regiãointeira, evitan<strong>do</strong> o enca<strong>de</strong>amento, salto vagamente legitima<strong>do</strong> pela noção <strong>de</strong> “corte” ou <strong>de</strong> “ruptura”,utilizada segun<strong>do</strong> as necessida<strong>de</strong>s da causa. Eles interrompem a continuida<strong>de</strong> <strong>do</strong> raciocínio em nome<strong>de</strong> uma <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> que sua meto<strong>do</strong>logia <strong>de</strong>veria proscrever. O vazio assim organiza<strong>do</strong> e oalcance <strong>de</strong>ssa ausência variam segun<strong>do</strong> os autores e as especialida<strong>de</strong>s; essa acusação não poupa nemJ. Kristeva e sua “semiótica”, nem J. Derrida e sua “gramatologia”, nem R. Barthes e sua semiologia9 Cf. J. Derrida. Le vivre et le phénomène, P.U.F., 1967.10 Cf. as reflexões críticas <strong>de</strong> Michel Clouscard, L’Être et le Co<strong>de</strong> , Introduction. No Matérialisme et Empiriocriticisme , Lêninresolveu brutalmente o problema suprimin<strong>do</strong>-o: o pensamento <strong>do</strong> espaço reflete o espaço objetivo, como uma cópia oufotografia.11 La linguistique cartésienne, Seuil, 1969.12Cf. Structures syntactiques, tradução francesa, p.27.13 L’enjeu <strong>de</strong>s signes, Seuil, 1971, p.13.15


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006generalizada 14 . Nessa escola, que se torna cada vez mais <strong>do</strong>gmática (o sucesso ajudan<strong>do</strong>), incorre-sefreqüentemente nesse sofisma fundamental: o espaço <strong>de</strong> origem filosófica-epistemológica sefetichiza e o mental envolve o social com o físico. Se alguns <strong>de</strong>sses autores suspeitarem da existênciaou da exigência <strong>de</strong> uma mediação 15 , a maioria <strong>de</strong>les salta, sem outra forma <strong>de</strong> processo, <strong>do</strong> mental aosocial.7) Uma forte corrente i<strong>de</strong>ológica (fortemente agarrada à sua própria cientificida<strong>de</strong>) exprime, <strong>de</strong>forma admiravelmente inconsciente, as representações <strong>do</strong>minantes, portanto, aquelas da classe<strong>do</strong>minante, talvez as contornan<strong>do</strong> ou <strong>de</strong>las <strong>de</strong>svian<strong>do</strong>. Uma certa “prática teórica” engendra umespaço mental, ilusoriamente exterior à i<strong>de</strong>ologia. Por um inevitável circuito ou círculo, esse espaçomental torna-se, por seu turno, o lugar <strong>de</strong> uma “prática teórica” distinta da prática social, que se erigeem eixo, pivô ou centro <strong>do</strong> Saber 16 . Dupla vantagem para a “cultura” existente: ela parece tolerar emesmo favorecer a veracida<strong>de</strong> e nesse “espaço mental” se passam muitos pequenos eventosutilizáveis, seja positiva, seja polemicamente. Que esse espaço mental se aproxima singularmentedaquele on<strong>de</strong> os tecnocratas operam, no silêncio <strong>do</strong>s gabinetes, voltaremos a isto mais adiante 17 .Quanto ao Saber <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> assim a partir da epistemologia, e mais ou menos finamente discerni<strong>do</strong> dai<strong>de</strong>ologia ou da ciência em movimento, ele não <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ria em linha direta <strong>do</strong> Conceito hegeliano e<strong>de</strong> suas núpcias com a Subjetivida<strong>de</strong>, her<strong>de</strong>ira da gran<strong>de</strong> família cartesiana?8) A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> quase lógica pressuposta entre o espaço mental (aquele <strong>do</strong>s matemáticos e <strong>do</strong>sfilósofos da epistemologia) aprofunda o abismo entre esses três termos: o mental, o físico, o social.Se alguns malabaristas transpõem o precipício, propician<strong>do</strong> um belo espetáculo e uma boa vibraçãoaos especta<strong>do</strong>res, em geral a reflexão dita filosófica, a <strong>do</strong>s filósofos especializa<strong>do</strong>s, não experimentamais o “salto mortal”. Eles ainda percebem o fosso? Desviam os olhos. A filosofia profissionalaban<strong>do</strong>na a problemática atual <strong>do</strong> saber e a “teoria <strong>do</strong> conhecimento” pela introversão redutora nosaber absoluto, ou que assim se preten<strong>de</strong>: aquele da história da filosofia e das ciências. Um tal saberseparar-se-ia da i<strong>de</strong>ologia e <strong>do</strong> não-saber, ou seja, <strong>do</strong> “vivi<strong>do</strong>”. Impossível <strong>de</strong> se efetuar, talseparação tem a vantagem <strong>de</strong> não impedir um “consenso” banal, que se busca implicitamente: quem14 Ela alcança outros autores, em si mesmos ou através <strong>do</strong>s prece<strong>de</strong>ntes. R. Barthes fala <strong>de</strong> J. Lacan nesses termos: “Suatopologia não é a <strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro e <strong>do</strong> fora, ainda menos <strong>do</strong> alto e <strong>do</strong> baixo, mas, antes, <strong>de</strong> um anverso e <strong>de</strong> um reverso moventes,<strong>do</strong> qual a linguagem não cessa precisamente <strong>de</strong> trocar os papéis e <strong>de</strong> virar as superfícies em torno <strong>de</strong> alguma coisa que setransforma e, para começar, não é.” (Critique et vérité, p.27).15 Esse não é o caso <strong>de</strong> Cl. Lévi-Strauss, que em toda a sua obra i<strong>de</strong>ntifica o mental e o social pela nomenclatura (das relações<strong>de</strong> troca) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primórdios da socieda<strong>de</strong>. Por seu turno, J. Derrida, colocan<strong>do</strong> a “grafia” diante da “fonia”, a escrita à frenteda voz, ou J. Kristeva, evocan<strong>do</strong> os corpos, buscan<strong>do</strong> uma transição (a articulação) entre o espaço mental previamente postopor eles, portanto pressuposto, e o espaço físico-social.16Essa pretensão transpira a cada capítulo da já citada coletânea: Panorama <strong>de</strong>s sciences humaines.17 Cf. H. Lefebvre: Vers le Cybernanthrope, Rééd. Denoel, 1972.16


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006recusaria o Verda<strong>de</strong>iro? Cada um sabe, ou crê saber, que ele retorna quan<strong>do</strong> se estabelece umdiscurso sobre a verda<strong>de</strong>, a ilusão, a mentira, a aparência e a realida<strong>de</strong>.9) I.4 A reflexão epistemológica-filosófica não propiciou um eixo a uma ciência que há muitotempo se procura através <strong>de</strong> um número imenso <strong>de</strong> publicações e trabalhos: a ciência <strong>do</strong> espaço. Aspesquisas culminam seja em <strong>de</strong>scrições (sem alcançar o momento analítico, ainda menos o teórico),seja em fragmentações e recortes <strong>do</strong> espaço. Porém, muitas razões induzem a pensar que <strong>de</strong>scrições erecortes chegam somente a inventários <strong>do</strong> que há no espaço, no melhor <strong>do</strong>s casos, a um discursosobre o espaço, jamais chegam a um conhecimento <strong>do</strong> espaço. Na falta <strong>de</strong> um conhecimento <strong>do</strong>espaço, transfere-se para o discurso, para a linguagem como tal, quer dizer, ao espaço mental, umaboa parte das atribuições e “proprieda<strong>de</strong>s” <strong>do</strong> espaço social.10) A semiologia coloca algumas questões <strong>de</strong>licadas, na mesma medida em que esse conhecimentoinacaba<strong>do</strong> se expan<strong>de</strong> e não conhece seus limites, <strong>de</strong> sorte que é preciso, não sem dificulda<strong>de</strong>, lhosassinalar. Caso se empregue códigos, elabora<strong>do</strong>s a partir <strong>de</strong> textos literários, aos espaços (urbanos,por exemplo), uma tal aplicação permanece <strong>de</strong>scritiva; o que não é difícil <strong>de</strong>monstrar. Caso seprocure construir assim uma codificação – um procedimento <strong>de</strong>codificante <strong>do</strong> espaço social -, não secorre o risco <strong>de</strong> reduzir o espaço a uma mensagem, e sua freqüentação a uma leitura? O que elu<strong>de</strong> ahistória e a prática. Entretanto, não houve, outrora, entre os séculos XVI (o Renascimento e a cida<strong>de</strong><strong>do</strong> Renascimento) e o XIX, um código ao mesmo tempo arquitetural, urbanístico, político, umalinguagem comum aos habitantes <strong>do</strong>s campos e das cida<strong>de</strong>s, às autorida<strong>de</strong>s, aos artistas, permitin<strong>do</strong>não apenas “ler” um espaço, mas produzi-lo? Se esse código existiu, como foi engendra<strong>do</strong>? On<strong>de</strong>,como, por que <strong>de</strong>sapareceu? Essas questões <strong>de</strong>vem encontrar, mais tar<strong>de</strong>, sua resposta.11) Quanto aos recortes e fragmentações, vão até o in<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>. E o in<strong>de</strong>finível. Visto que o recortepassa por uma técnica científica (uma “prática teórica”) permitin<strong>do</strong> simplificar e discernir“elementos” nos fluxos caóticos <strong>do</strong>s fenômenos. Deixemos <strong>de</strong> la<strong>do</strong>, por enquanto, a aplicação <strong>de</strong>topologias matemáticas. Que se escute as competências discorrer sobre o espaço pictural, sobre oespaço <strong>de</strong> Picasso, sobre o espaço <strong>de</strong> Demoiselles d’Avignon e <strong>de</strong> Guernica. <strong>Outras</strong> competênciasfalam <strong>do</strong> espaço arquitetural, ou <strong>do</strong> espaço plástico, ou <strong>do</strong> espaço literário, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que <strong>do</strong>“mun<strong>do</strong>” <strong>de</strong> tal escritor, <strong>de</strong> tal cria<strong>do</strong>r. Os textos especializa<strong>do</strong>s informam seus leitores sobre to<strong>do</strong>sos tipos <strong>de</strong> espaços precisamente especializa<strong>do</strong>s: espaços <strong>de</strong> lazer, <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> jogos, <strong>de</strong>transportes, <strong>de</strong> equipamentos etc. Alguns não hesitam em falar <strong>de</strong> “espaço <strong>do</strong>ente” ou <strong>de</strong> “<strong>do</strong>ença <strong>do</strong>espaço”, <strong>de</strong> espaço louco ou <strong>de</strong> espaço da loucura. Haveria, uns acima <strong>do</strong>s outros (ou uns nosoutros), uma multiplicida<strong>de</strong> in<strong>de</strong>finida <strong>de</strong> espaços: geográficos, econômicos, <strong>de</strong>mográficos,sociológicos, ecológicos, políticos, comerciais, nacionais, continentais, mundiais. Sem esquecer oespaço da natureza (físico), o <strong>do</strong>s fluxos (as energias) etc.17


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.200612) Antes <strong>de</strong> refutar minuciosa e precisamente tal ou qual <strong>de</strong>sses procedimentos, admiti<strong>do</strong>s emnome da “cientificida<strong>de</strong>”, eis uma nota prévia: a multiplicida<strong>de</strong> in<strong>de</strong>finida <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrições e recortes ostorna suspeitos. Não vão eles no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma tendência muito forte, talvez <strong>do</strong>minante, no seio dasocieda<strong>de</strong> existente (<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção)? Nesse mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção, o trabalho <strong>do</strong> conhecimento,assim como o trabalho material, se divi<strong>de</strong> sem fim. A<strong>de</strong>mais, a prática espacial consiste numaprojeção “no terreno” <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os aspectos, elementos e momentos da prática social, separan<strong>do</strong>-os, eisso sem aban<strong>do</strong>nar por um instante o controle global, a saber o assujeitamento da socieda<strong>de</strong> inteira àprática política, ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>. Como se verá, essa práxis implica e aprofunda mais <strong>de</strong> umacontradição, mas este ainda não é o lugar <strong>de</strong> enunciá-las. Se essa análise se confirma, a “ciência <strong>do</strong>espaço” procurada:13) a) equivale ao emprego político (“neo-capitalista”, caso se trate <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte) <strong>do</strong> saber, <strong>do</strong> qualse sabe que ele se integra às forças produtivas <strong>de</strong> uma maneira cada vez mais “imediata”, e <strong>de</strong>maneira “mediata” às relações sociais <strong>de</strong> produção;14) b) implica uma i<strong>de</strong>ologia mascaran<strong>do</strong> esse uso, assim como os conflitos inerentes ao empregointeressa<strong>do</strong> ao mais alto grau <strong>de</strong> um saber em princípio <strong>de</strong>sinteressa<strong>do</strong>, i<strong>de</strong>ologia que não carregaseu nome e se confun<strong>de</strong> com o saber para os que aceitam essa prática;15) c) contém, no melhor <strong>do</strong>s casos, uma utopia tecnológica, simulação ou programação <strong>do</strong> futuro(<strong>do</strong> possível) nos marcos <strong>do</strong> real, isto é, <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção existente. Operação realizan<strong>do</strong>-se apartir <strong>de</strong> um saber integra<strong>do</strong>-integra<strong>do</strong>r no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção. Essa utopia tecnológica, que povoaos romances <strong>de</strong> ficção científica, se reencontra em to<strong>do</strong>s os projetos concernentes ao espaço:arquiteturais, urbanísticos, planifica<strong>do</strong>res.16) Essas proposições <strong>de</strong>verão, mais tar<strong>de</strong>, ser explicitadas, apoiadas em argumentos, <strong>de</strong>monstradas.Se elas se verificam, é que, em primeiro lugar, existe a verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> espaço (análise seguida <strong>de</strong> umaexposição propician<strong>do</strong> essa verda<strong>de</strong> global) e não constituição ou construção <strong>de</strong> um espaçoverda<strong>de</strong>iro, seja geral, como pensam os epistemólogos ou filósofos, seja particular, como estimam osespecialistas <strong>de</strong> tal ou qual disciplina científica concernente ao espaço. Em segun<strong>do</strong> lugar, isso querdizer que é preciso inverter a tendência <strong>do</strong>minante, a que vai em direção à fragmentação, àseparação, ao esmigalhamento subordina<strong>do</strong>s a um centro ou po<strong>de</strong>r central, efetua<strong>do</strong> pelo saber emnome <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r. Tal inversão não po<strong>de</strong> se realizar sem dificulda<strong>de</strong>s; não basta, para operá-la,substituir preocupações globais às “pontuais”. Po<strong>de</strong>-se supor que ela mobilizará muitas forças.Convirá motivá-la, orientá-la no curso <strong>de</strong> sua própria execução, etapa por etapa.17) I.5 Hoje em dia poucas pessoas recusariam admitir “a influência” <strong>de</strong> capitais e <strong>do</strong> capitalismonas questões práticas concernentes ao espaço, da construção <strong>de</strong> imóveis à repartição <strong>de</strong>investimentos e à divisão <strong>do</strong> trabalho no planeta inteiro. Porém, o que enten<strong>de</strong>m por “capitalismo” e18


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006por “influência”? Para uns, representam “o dinheiro” e suas capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> intervenção, ou a trocacomercial, a merca<strong>do</strong>ria e sua generalida<strong>de</strong>, posto que “tu<strong>do</strong>” se compra e se ven<strong>de</strong>. Para outros,representam mais nitidamente os atores <strong>do</strong>s dramas: “socieda<strong>de</strong>s” nacionais e multinacionais,bancos, promotores, autorida<strong>de</strong>s. Cada agente suscetível <strong>de</strong> intervir teria sua “influência”. Assim,coloca-se entre parênteses ao mesmo tempo a unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> capitalismo e sua diversida<strong>de</strong>, portanto,suas contradições. Faz-se tanto uma simples soma <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s separadas, quanto um sistemaconstituí<strong>do</strong> e fecha<strong>do</strong>, coerente porque é duro e pelo único fato <strong>de</strong> que ele dura. Ora, o capitalismo secompõe <strong>de</strong> muitos elementos. O capital fundiário, o capital comercial, o capital financeiro intervêmna prática, cada um com possibilida<strong>de</strong>s mais ou menos gran<strong>de</strong>s, a seu momento, não sem conflitosentre os capitalistas da mesma espécie ou <strong>de</strong> outra. Essas diversas raças <strong>de</strong> capitais (e <strong>de</strong> capitalistas)compõem, com os diversos merca<strong>do</strong>s que se entrelaçam (o das merca<strong>do</strong>rias, o da mão-<strong>de</strong>-obra, o <strong>do</strong>sconhecimentos, o <strong>do</strong>s próprios capitais, o <strong>do</strong> solo), o capitalismo.18) Alguns esquecem facilmente que o capitalismo tem ainda um outro aspecto, liga<strong>do</strong>, <strong>de</strong>certo, aofuncionamento <strong>do</strong> dinheiro, <strong>do</strong>s diversos merca<strong>do</strong>s, das relações sociais <strong>de</strong> produção, mas distintoporque <strong>do</strong>minante: a hegemonia <strong>de</strong> uma classe. O conceito <strong>de</strong> hegemonia, introduzi<strong>do</strong> por Gramscipara prever o papel da classe operária na construção <strong>de</strong> uma outra socieda<strong>de</strong>, ainda permite analisar aação da burguesia, em particular no que concerne ao espaço. O conceito <strong>de</strong> hegemonia refina este,um pouco pesa<strong>do</strong> e brutal, <strong>de</strong> “ditadura” <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> após a da burguesia. Ele <strong>de</strong>signa muito maisque uma influência e que o emprego perpétuo da violência repressiva. A hegemonia se exerce sobrea socieda<strong>de</strong> inteira, cultura e saber incluí<strong>do</strong>s, o mais freqüente por pessoas interpostas: os políticos,personalida<strong>de</strong>s e parti<strong>do</strong>s, mas também por muitos intelectuais, cientistas. Ela se exerce, portanto,pelas instituições e pelas representações. Hoje em dia, a classe <strong>do</strong>minante mantém sua hegemoniapor to<strong>do</strong>s os meios, aí incluí<strong>do</strong> o saber. O vínculo entre saber e po<strong>de</strong>r torna-se manifesto, o que emnada impe<strong>de</strong> o conhecimento crítico e subversivo e <strong>de</strong>fine, ao contrário, a diferença conflitual entre osaber ao serviço <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r e o conhecer que não reconhece o po<strong>de</strong>r 18 .19) Como a hegemonia <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> la<strong>do</strong> o espaço? Este seria tão-somente o lugar passivo dasrelações sociais, o meio <strong>de</strong> sua reunificação ten<strong>do</strong> toma<strong>do</strong> consistência, ou a soma <strong>do</strong>sprocedimentos <strong>de</strong> sua recondução? Não. Mais adiante, mostrar-se-á o la<strong>do</strong> ativo (operatório,instrumental) <strong>do</strong> espaço, saber e ação, no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção existente. Demonstrar-se-á que o espaçoserve e que a hegemonia se exerce por meio <strong>do</strong> espaço constituin<strong>do</strong>-se por uma lógica subjacente,pelo emprego <strong>do</strong> saber e das técnicas, um “sistema”. Engendran<strong>do</strong> um espaço bem <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>, purifica-18 Diferença conflitual e, por conseguinte, diferenciante entre saber e conhecer, dissimulada por M. Foucault em seuArqueologia <strong>do</strong> saber ao não discernir no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> um “espaço <strong>de</strong> Jogo” (p.241), e pela cronologia, a repartição no tempo(p.244 x 8 seq.).19


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006se o espaço <strong>do</strong> capitalismo (o merca<strong>do</strong> mundial) <strong>de</strong> contradições? Não. Se fosse assim, o “sistema”po<strong>de</strong>ria legitimamente preten<strong>de</strong>r a imortalida<strong>de</strong>. Alguns espíritos sistemáticos oscilam entre asimprecações contra o capitalismo, a burguesia, suas instituições repressivas, e a fascinação, aadmiração <strong>de</strong>svairadas. Eles fornecem, a essa totalida<strong>de</strong> não fechada (a tal ponto que ela temnecessida<strong>de</strong> da violência), a coesão que lhe falta, fazen<strong>do</strong> da socieda<strong>de</strong> o “objeto” <strong>de</strong> umasistematização que eles se obstinam em encerrar concluin<strong>do</strong>-a. Se fosse verda<strong>de</strong>ira, essa verda<strong>de</strong> se<strong>de</strong>spedaçaria. De on<strong>de</strong> proviriam as palavras, os conceitos, que permitem <strong>de</strong>finir o sistema? Elesseriam apenas os intrumentos.20) I.6 A teoria que se busca, que se ressente <strong>de</strong> um momento crítico e que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo recai no saberem migalhas, essa teoria se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>signar, por analogia, como “teoria unitária”. Trata-se <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrirou <strong>de</strong> engendrar a unida<strong>de</strong> teórica entre “campos” que se dão separadamente, assim como na física asforças moleculares, eletromagnéticas, gravitacionais. De quais campos se trata? De início, <strong>do</strong> físico,a natureza, o cosmos. Em seguida, <strong>do</strong> mental (aí incluídas a lógica e a abstração formal). Por fim, <strong>do</strong>social. Dito <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, a pesquisa concerne ao espaço lógico-epistemológico – o espaço daprática social -, aquele que os fenômenos sensíveis ocupam, sem excluir o imaginário, os projetos eprojeções, os símbolos, as utopias.21) A exigência <strong>de</strong> unida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> se formular <strong>de</strong> outra maneira, o que a acentua. O pensamentoreflexivo ora confun<strong>de</strong>, ora separa os “níveis” que a prática social discerne, colocan<strong>do</strong> assim aquestão <strong>de</strong> suas relações. O habitar, a habitação, “o habitat”, como se diz, concernem à arquitetura. Acida<strong>de</strong>, o espaço urbano, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> uma especialida<strong>de</strong>: o urbanismo. Quanto ao espaço maisamplo, o território (regional, nacional, continental, mundial), é da alçada <strong>de</strong> uma competênciadiferente, a <strong>do</strong>s planifica<strong>do</strong>res, <strong>do</strong>s economistas. Portanto, ora essas “especialida<strong>de</strong>s” entram umasnas outras, interpenetram-se sob o tacão <strong>de</strong> um ator privilegia<strong>do</strong> - o político -, ora elas caem umasfora das outras, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> projeto comum e toda comunida<strong>de</strong> teórica.22) Uma teoria unitária poria fim a essa situação, da qual as consi<strong>de</strong>rações prece<strong>de</strong>ntes não esgotama análise crítica.23) O conhecimento da natureza material <strong>de</strong>fine conceitos ao nível o mais eleva<strong>do</strong> <strong>de</strong> generalida<strong>de</strong> e<strong>de</strong> abstração científica (<strong>do</strong>tada <strong>de</strong> um conteú<strong>do</strong>). Mesmo se as conexões entre esses conceitos e asrealida<strong>de</strong>s físicas correspon<strong>de</strong>ntes ainda não se <strong>de</strong>terminam, sabe-se que essas conexões existem eque os conceitos e as teorias que elas implicam não po<strong>de</strong>m nem se confundir nem se separar: aenergia, o espaço, o tempo. O que a linguagem comum <strong>de</strong>nomina “matéria”, ou “natureza”, ou“realida<strong>de</strong> física” – da qual as primeiras análises distinguem e até separam os momentos –reencontrou uma certa unida<strong>de</strong>. A “substância” <strong>de</strong>sse cosmos (ou <strong>de</strong>sse “mun<strong>do</strong>”) ao qual pertencema terra e a espécie humana com sua consciência, essa “substância”, para empregar o velho20


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006vocabulário da filosofia, tem proprieda<strong>de</strong>s que se resumem nesses três termos. Se alguém diz“energia”, <strong>de</strong>ve imediatamente acrescentar que ela se <strong>de</strong>senvolve num espaço. Se alguém diz“espaço”, imediatamente <strong>de</strong>ve dizer o que o ocupa e como: o <strong>de</strong>senvolvimento da energia em torno<strong>de</strong> “pontos” e num tempo. Se alguém diz “tempo”, imediatamente <strong>de</strong>ve dizer o que se move oumuda. Toma<strong>do</strong> separadamente, o espaço torna-se abstração vazia; e, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong>, a energia e otempo. Se <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> essa “substância” é difícil <strong>de</strong> conceber, ainda mais <strong>de</strong> imaginar ao nívelcósmico, também se po<strong>de</strong> dizer que sua evidência fere os olhos: os senti<strong>do</strong>s e o pensamentoapreen<strong>de</strong>m tão-somente ela.24) O conhecimento da prática social, a ciência global da realida<strong>de</strong> dita humana, proce<strong>de</strong>ria <strong>de</strong> ummo<strong>de</strong>lo empresta<strong>do</strong> da física? Não. As tentativas nesse senti<strong>do</strong> sempre resultaram em fracasso 19 . Ateoria física impe<strong>de</strong> à teoria das socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>terminadas démarches, notadamente a separação <strong>de</strong>níveis, <strong>do</strong>mínios e regiões. Ela incita às démarches unitárias, que reúnem os elementos dispersos. Elaserve <strong>de</strong> parapeito, não <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo.25) A procura <strong>de</strong> uma teoria unitária em nada impe<strong>de</strong>, ao contrário, os conflitos no interior <strong>do</strong>conhecimento, as controvérsias e as polêmicas. Mesmo em física e em matemáticas! Existemmomentos conflituais até na ciência que os filósofos crêem “pura”, porque eles a purificam <strong>de</strong> seusmomentos dialéticos.26) Que o espaço físico não tenha nenhuma “realida<strong>de</strong>” sem a energia que se <strong>de</strong>senvolve, issoparece fora <strong>de</strong> dúvidas. As modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>senvolvimento, as relações físicas entre os centros,os núcleos, as con<strong>de</strong>nsações, e, <strong>de</strong> outro la<strong>do</strong>, as periferias, permanecem conjecturais. A teoria daexpansão supõe um núcleo inicial, uma explosão primordial. Essa unicida<strong>de</strong> original <strong>do</strong> cosmos temprovoca<strong>do</strong> muitas objeções, em razão <strong>de</strong> seu caráter quase teológico (teogônico). F. Hoyle opôs-lheuma teoria muito mais complexa: a energia se <strong>de</strong>senvolve em todas as direções, <strong>do</strong> infinitamentepequeno ao infinitamente gran<strong>de</strong>. Um centro único <strong>do</strong> cosmos, seja original, seja final, éinconcebível. A energia-espaço-tempo se con<strong>de</strong>nsa numa multiplicida<strong>de</strong> in<strong>de</strong>finida <strong>de</strong> lugares(espaços-tempos locais) 20 .27) Na medida em que a teoria <strong>do</strong> espaço dito humano po<strong>de</strong> se associar a uma teoria física, esta nãoseria aquela? O espaço se consi<strong>de</strong>ra como produto da energia. Esta última não po<strong>de</strong> se comparar aum conteú<strong>do</strong> ocupan<strong>do</strong> um recipiente vazio. O que recusa um causalismo e um finalismoimpregna<strong>do</strong>s <strong>de</strong> abstração metafísica. Já o cosmos, oferece uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espaçosqualifica<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s quais a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, entretanto, <strong>de</strong> uma teoria unitária, a cosmologia.19 Aí incluí<strong>do</strong> o mo<strong>de</strong>lo empresta<strong>do</strong> por Cl. Lévi-Strauss da classificação <strong>do</strong>s elementos por Men<strong>de</strong>liev e da combinatóriageneralizada.21


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.200628) Essa analogia tem limites. Não há nenhuma razão para alinhar as energias sociais às energiasfísicas, os campos <strong>de</strong> forças ditas “humanas” aos campos <strong>de</strong> forças físicas. Esse reducionismo seráexplicitamente refuta<strong>do</strong>, como os outros reducionismos. Não obstante, as socieda<strong>de</strong>s humanas, nãomais que os corpos viventes, humanos ou não, não po<strong>de</strong>m se conceber fora <strong>do</strong> cosmos (ou, caso sequeira, <strong>do</strong> “mun<strong>do</strong>”); a cosmologia, sem absorver seu conhecimento, não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixá-las <strong>de</strong> la<strong>do</strong>,como um Esta<strong>do</strong> no Esta<strong>do</strong>!29) I.7 Como <strong>de</strong>nominar a separação que mantém à distância, uns fora <strong>do</strong>s outros, os diversosespaços: o físico, o mental, o social? Distorção? Defasagem? Corte? Fissura? Pouco importa o nome.O que interessa é a distância que separa o espaço “i<strong>de</strong>al”, <strong>de</strong>pe<strong>de</strong>nte das categorias mentais (lógicomatemáticas),<strong>do</strong> espaço “real”, o da prática social. Enquanto cada um implica, põe e supõe o outro.30) Qual terreno <strong>de</strong> início escolher para a pesquisa teórica que elucidaria tal situação, ultrapassan<strong>do</strong>a?A filosofia? Não, pois “parte interessada” e “pressuposta” na situação. Os filósofos contribuírampara aprofundar o abismo, elaboran<strong>do</strong> as representações abstratas (metafísicas) <strong>do</strong> espaço, entreoutros, o espaço cartesiano, a “res extensa” absoluta, infinita, atributo divino apreendi<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong>uma só intuição porque homogênea (isotrópica). Po<strong>de</strong>-se tanto mais lastimar que a filosofia, em seusprimórdios, mantinha estreitas relações com o espaço “real”, o da cida<strong>de</strong> grega, ligação rompida emseguida. Essa observação não impe<strong>de</strong> o recurso à filosofia, a seus conceitos e concepções. Mas nãopermite <strong>de</strong>la partir. A literatura? Por que não? Os escritores têm <strong>de</strong>scrito particularmente os lugares eos sítios. Mas <strong>de</strong> quais textos? Por que estes ao invés daqueles? Céline utiliza fortemente o discursocotidiano para falar <strong>do</strong> espaço parisiense, <strong>do</strong>s subúrbios, da África. Platão, no Crítias e alhures,<strong>de</strong>screveu maravilhosamente o espaço cósmico e o da cida<strong>de</strong>, imagem <strong>do</strong> cosmos. Quincey,inspira<strong>do</strong>, perseguin<strong>do</strong> a sombra da mulher <strong>de</strong>sejada nas ruas <strong>de</strong> Londres, ou Bau<strong>de</strong>laire nos seusQuadros parisienses, também falaram <strong>do</strong> espaço urbano tão bem quanto Victor Hugo ouLautréamont. A partir <strong>de</strong> quan<strong>do</strong> a análise busca o espaço nos textos literários, ela o <strong>de</strong>scobre emtu<strong>do</strong> e por to<strong>do</strong> la<strong>do</strong>: incluí<strong>do</strong>, <strong>de</strong>scrito, projeta<strong>do</strong>, sonha<strong>do</strong>, especula<strong>do</strong>. De quais textos,consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s privilegia<strong>do</strong>s, po<strong>de</strong>ria partir uma análise “textual”? Uma vez que se trata <strong>do</strong> espaçosocialmente “real”, a arquitetura e os textos que lhes são concernentes seriam mais indica<strong>do</strong>s que aliteratura, <strong>de</strong> início. Mas o que é a arquitetura? Para <strong>de</strong>fini-la, é preciso já ter analisa<strong>do</strong>, <strong>de</strong>poisexposto, o espaço.31) Não se po<strong>de</strong>ria partir <strong>de</strong> noções científicas gerais, tão gerais quanto a <strong>de</strong> texto, por exemplo, as<strong>de</strong> informação e <strong>de</strong> comunicação, <strong>de</strong> mensagem e <strong>de</strong> código, <strong>de</strong> conjunto <strong>de</strong> signos, noções em curso<strong>de</strong> elaboração? Mas, então, a análise <strong>do</strong> espaço correria o risco <strong>de</strong> se fechar numa especialida<strong>de</strong>, o20 F. Hoyle: Aux frontiers <strong>de</strong> l’astronomie.22


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006que não daria conta das dissociações, o que as agravaria. Não resta que o apelo a noções universais,<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> aparentemente da filosofia, não entran<strong>do</strong> em nenhuma especialida<strong>de</strong>. Tais noçõesexistem? O que Hegel <strong>de</strong>nominava o universal concreto ainda tem um senti<strong>do</strong>? Será preciso<strong>de</strong>monstrá-lo. Des<strong>de</strong> agora, é possível indicar que os conceitos da produção e <strong>do</strong> produzirapresentam a universalida<strong>de</strong> concreta reclamada. Elabora<strong>do</strong>s pela filosofia, eles a ultrapassam. Seuma ciência especializada, como a economia política, os açambarcou durante um perío<strong>do</strong> passa<strong>do</strong>,eles escapam a essa usurpação. Retoman<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> amplo que eles tinham em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s textos<strong>de</strong> Marx, o produzir e a produção per<strong>de</strong>ram um pouco da precisão ilusória propiciada peloseconomistas. Sua retomada, seu acionamento, não ocorrerá sem dificulda<strong>de</strong>s. “Produzir o espaço”.Essas palavras surpreen<strong>de</strong>m: o esquema segun<strong>do</strong> o qual o espaço vazio preexiste ao que o ocupaainda tem muita força. Quais espaços? E o que é “produzir”, no que concerne ao espaço? Serápreciso passar <strong>de</strong> conceitos elabora<strong>do</strong>s, portanto formaliza<strong>do</strong>s, a esse conteú<strong>do</strong> sem cair na ilustraçãoe no exemplo, essas ocasiões <strong>de</strong> sofismas. É, portanto, uma exposição completa <strong>de</strong>sses conceitos, e<strong>de</strong> suas relações, <strong>de</strong> uma parte com a extrema abstração formal (o espaço lógico-matemático) e, daoutra, com o prático-sensível e o espaço social, que ela precisará fornecer. Dito <strong>de</strong> outra maneira, ouniversal concreto se dissociara e recaíra nesses momentos, segun<strong>do</strong> Hegel: o particular (aqui osespaços sociais <strong>de</strong>scritos ou recorta<strong>do</strong>s), o geral (a lógica e a matemática), o singular (os “lugares”consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como naturais, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s apenas <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> física e sensível).32) I.8 Cada um sabe <strong>do</strong> que se trata quan<strong>do</strong> se fala <strong>de</strong> uma “peça” num apartamento, da “esquina”da rua, da “praça”, <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, <strong>do</strong> “centro” comercial ou cultural, <strong>de</strong> um “lugar” público etc. Essaspalavras <strong>do</strong> discurso cotidiano discernem, sem os isolar, espaços e <strong>de</strong>screvem um espaço social. Elascorrespon<strong>de</strong>m a um uso <strong>de</strong>sse espaço, portanto, a uma prática espacial que elas <strong>de</strong>signam ecompõem. Esses termos se enca<strong>de</strong>iam seguin<strong>do</strong> uma certa or<strong>de</strong>m. Não seria preciso, <strong>de</strong> início,inventariá-los 21 , <strong>de</strong>pois procurar qual paradigma lhes confere uma significação e segun<strong>do</strong> qualsintaxe eles se organizam?33) Ou eles constituem um código mal conheci<strong>do</strong> que o pensamento po<strong>de</strong>rá reconstituir epromulgar, ou a reflexão po<strong>de</strong> construir, partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>sses materiais (as palavras) e <strong>de</strong>sse material (asoperações sobre as palavras), um código <strong>do</strong> espaço.34) Em ambos os casos, a reflexão construiria um “sistema <strong>do</strong> espaço”. Ora, sabe-se, porexperiências científicas precisas, que um tal sistema não traz consigo senão indiretamente o “objeto”e que, em verda<strong>de</strong>, ele só contém o discurso sobre o objeto e a ele concerne. O projeto que se esboça21 Cf. Matoré, L’espace humain, 1962 (e o índice lexicológico ao final <strong>do</strong> volume).23


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006aqui não tem por objetivo produzir um (o) discurso sobre o espaço, mas mostrar a produção <strong>do</strong>próprio espaço, reunin<strong>do</strong> os diversos espaços e as modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua gênese numa teoria.35) Estas breves notas esboçam uma resposta a um problema que será preciso, na seqüência,examinar com cuida<strong>do</strong> para saber se ele é aceitável ou se não representa senão uma obscurainterrogação sobre as origens. A linguagem prece<strong>de</strong> (lógica, epistemológica, geneticamente) oespaço social, o acompanha ou o segue? Nela se encontra a condição ou a formulação? A tese dapriorida<strong>de</strong> da linguagem não se impõe; as ativida<strong>de</strong>s que <strong>de</strong>marcam o solo, que <strong>de</strong>ixam traços, queorganizam gestos e trabalhos em comum, não teriam priorida<strong>de</strong> (lógica, epistemológica) em relaçãoàs linguagens bem regradas, bem articuladas? É preciso, talvez, <strong>de</strong>scobrir algumas relações aindadissimuladas entre o espaço e a linguagem, a “logicida<strong>de</strong>” inerente à articulação funcionan<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> oinício como espacialida<strong>de</strong>, redutora <strong>do</strong> qualitativo da<strong>do</strong> caoticamente com a percepção das coisas (oprático-sensível).36) Em qual medida um espaço se lê? Se <strong>de</strong>codifica? A interrogação não receberá uma respostasatisfatória tão ce<strong>do</strong>. Com efeito, se as noções <strong>de</strong> mensagem, <strong>de</strong> código, <strong>de</strong> informação etc., nãopermitem seguir a gênese <strong>de</strong> um espaço (proposição enunciada mais acima, que aguarda argumentose provas), um espaço produzi<strong>do</strong> se <strong>de</strong>cifra, se lê. Ele implica um processo significante. E mesmo senão existe um código geral <strong>do</strong> espaço, inerente à linguagem ou às línguas, talvez códigos particularestenham se estabeleci<strong>do</strong> ao longo da história, provocan<strong>do</strong> efeitos diversos; <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que os “sujeitos”interessa<strong>do</strong>s, membros <strong>de</strong>sta ou daquela socieda<strong>de</strong>, acedam ao mesmo tempo a seu espaço e à suaqualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “sujeitos” atuan<strong>do</strong> nesse espaço, o compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> (no senti<strong>do</strong> o mais forte <strong>de</strong>ssetermo).37) Se houve (sem dúvida, a partir <strong>do</strong> século XVI e até o século XIX) uma linguagem codificadasobre a base prática <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada relação entre a cida<strong>de</strong>, o campo e o território político,fundada na perspectiva clássica e no espaço euclidiano, por que e como essa codificação explodiu? Épreciso se esforçar para reconstruir uma tal linguagem comum aos diversos membros da socieda<strong>de</strong>:usuários e habitantes, autorida<strong>de</strong>s, técnicos (arquitetos, urbanistas, planifica<strong>do</strong>res)?38) A teoria só po<strong>de</strong> se formar e se formular ao nível <strong>de</strong> um sobrecódigo. O conhecimento sóassimila pelo abuso <strong>de</strong> uma linguagem “bem feita”. Ele se situa ao nível <strong>do</strong>s conceitos. Ele nãoconsiste, portanto, nem em uma linguagem privilegiada, nem em uma metalinguagem, mesmo seesses conceitos convêm à ciência da linguagem como tal. O conhecimento <strong>do</strong> espaço não po<strong>de</strong> sefechar <strong>de</strong> início nessas categorias. Código <strong>do</strong>s códigos? Caso se queira, mas essa função “ao segun<strong>do</strong>grau” da teoria não elucida gran<strong>de</strong> coisa. Se existiram códigos <strong>do</strong> espaço caracterizan<strong>do</strong> cada práticaespacial (social), se essas codificações foram produzidas com o espaço correspon<strong>de</strong>nte, a teoria<strong>de</strong>verá expor sua gênese, sua intervenção, seu <strong>de</strong>finhamento. O <strong>de</strong>slocamento da análise, em relação24


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006aos trabalhos <strong>do</strong>s especialistas nesse <strong>do</strong>mínio, é claro: em lugar <strong>de</strong> insistir no rigor formal <strong>do</strong>scódigos, dialetizar-se-á a noção. Ela será situada numa relação prática e numa interação <strong>do</strong>s“sujeitos” com seu espaço, com seus arre<strong>do</strong>res. Tentar-se-á mostrar a gênese e o <strong>de</strong>saparecimentodas codificações-<strong>de</strong>codificações. Esclarecer-se-á os conteú<strong>do</strong>s: as práticas sociais (espaciais)inerentes às formas.39) I.9 O surrealismo aparece, nos dias <strong>de</strong> hoje, diferentemente <strong>do</strong> que apareceu já há um meioséculo. Algumas pretensões <strong>de</strong>sapareceram: a substituição da poesia pela política e a politização dapoesia, a idéia <strong>de</strong> uma revelação transcen<strong>de</strong>nte. Esta escola literária não se reduz, entretanto, àliteratura (que inicialmente ela amaldiçoava {<strong>de</strong>sonrava}), portanto, a um simples evento literárioliga<strong>do</strong> à exploração <strong>do</strong> inconsciente (a escrita automática), da aura subversiva no início, recuperadaem seguida por to<strong>do</strong>s os meios: as glosas, as exegeses e comentários – a glória e a publicida<strong>de</strong> etc.40) Os principais surrealistas tentaram a <strong>de</strong>cifração <strong>do</strong> espaço interior e se esforçaram paraesclarecer a passagem <strong>de</strong>sse espaço subjetivo à matéria, corpo e mun<strong>do</strong> exterior, assim como à vidasocial. O que confere ao surrealismo um alcance teórico <strong>de</strong> início <strong>de</strong>spercebi<strong>do</strong>. Essa tentativa <strong>de</strong>unida<strong>de</strong>, anuncian<strong>do</strong> uma pesquisa em seguida obscurecida, se revela em L’amour fou, <strong>de</strong> AndréBreton. A mediação <strong>do</strong> imaginário e da magia (“Assim para me fazer aparecer uma mulher sou euvisto a abrir uma porta, a fechar, a reabrir – quan<strong>do</strong> eu constatara que era insuficiente <strong>de</strong>slizar umalâmina num livro escolhi<strong>do</strong> ao acaso após ter postula<strong>do</strong> que tal linha da página da esquerda ou dadireita <strong>de</strong>via me informar <strong>de</strong> uma maneira mais ou menos indireta sobre suas disposições, meconfirmar sua vinda iminente ou sua não-vinda – <strong>de</strong>pois, recomeçar a <strong>de</strong>slocar os objetos, buscar unsem relação aos outros – lhes fazer ocupar posições insólitas” etc. 22 ), essa estranheza {extravagância}não retira nada <strong>do</strong> valor anuncia<strong>do</strong>r da obra 23 . Todavia, os limites <strong>do</strong> fracasso <strong>de</strong>ssa tentativa poéticatambém po<strong>de</strong>m ser mostra<strong>do</strong>s. Não que falte à poesia surrealista uma elaboração conceitual exibin<strong>do</strong>o senti<strong>do</strong> (os textos teóricos, manifestos e outros, <strong>do</strong> surrealismo não faltam e se po<strong>de</strong> até perguntar oque resta <strong>do</strong> surrealismo sem essa sobrecarga). As <strong>de</strong>ficiências inerentes a essa poesia vão maisfun<strong>do</strong>. Ela privilegia o visual além <strong>do</strong> ver, raramente põe-se “à escuta” e curiosamente negligencia omusical no “dizer” e mais ainda na “visão” central. “É como se, <strong>de</strong> repente, a noite profunda daexistência humana tivesse si<strong>do</strong> aberta, como se a necessida<strong>de</strong> natural consentin<strong>do</strong> a não fazer senãocom a necessida<strong>de</strong> lógica, todas as coisas sen<strong>do</strong> liberadas à transparência total...” 24 .22 Cf. L’amour fou, éd. originale, p.23.23Mesma apreciação, após tantos anos, para muitas poesias <strong>de</strong> Éluard.24 Id. p.6.25


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.200641) O projeto, hegeliano <strong>de</strong> origem (segun<strong>do</strong> o próprio A. Breton, cf. p.61), não se persegue senãono curso <strong>de</strong> uma sobrecarga afetiva, portanto subjetiva, <strong>do</strong> “objeto” (ama<strong>do</strong>) por uma sobreexaltação<strong>de</strong> símbolos. Postulan<strong>do</strong> sem excesso o dizer, e sem mostrá-lo, o fim hegeliano da história na e pelapoesia, os surrealistas só propiciaram uma metalinguagem lírica da história, uma fusão ilusória <strong>do</strong>sujeito com o objeto num metabolismo transcen<strong>de</strong>ntal. Metamorfose verbal, anamorfose,anaforização da relação entre os “sujeitos” (as pessoas) e as coisas (o cotidiano), os surrealistas,portanto, sobrecarregaram o senti<strong>do</strong> e não mudaram nada. Porque eles não podiam passar da troca(<strong>do</strong>s bens) ao uso, pela única virtu<strong>de</strong> da linguagem.42) Como a <strong>do</strong>s surrealistas, a obra <strong>de</strong> G. Bataille aparece, hoje, sob uma outra perspectiva quedurante sua vida. Ele também não teria <strong>de</strong>seja<strong>do</strong> (entre outros propósitos) reunir o espaço daexperiência interior ao espaço da natureza física (abaixo da consciência: a árvore, o sexo, o acéfalo)e ao espaço social (o da comunicação, da palavra). Como os surrealistas, mas numa outra via que ada síntese imaginada, G. Bataille <strong>de</strong>marca o trajeto entre o real, o infra-real e o supra-real. Qual via?A traçada por Nietzsche, o eruptivo, o disrruptivo. G. Bataille acentua os <strong>de</strong>svios, aprofunda osabismos ao invés <strong>de</strong> preenchê-los; <strong>de</strong>pois jorra o clarão da intuição-intenção explosiva que vai <strong>de</strong>uma borda à outra, da terra ao sol, da noite ao dia, da vida à morte. Mas também da lógica àheterológica, <strong>do</strong> normal ao hetero-nômico (então além e aquém <strong>do</strong> a-nômico). O espaço inteiro,mental, físico e social, se apreen<strong>de</strong> tragicamente. Se existe centro e periferia, o centro tem suarealida<strong>de</strong> trágica, a <strong>do</strong> sacrifício, da violência, da explosão. A periferia igualmente, à sua maneira.43) Ao oposto, muito exatamente, <strong>do</strong>s surrealistas e <strong>de</strong> G. Bataille, na mesma época, um teórico datécnica entreviu uma teoria unitária <strong>do</strong> espaço. J. Lafitte, muito esqueci<strong>do</strong>, confiava a exploração darealida<strong>de</strong> material, <strong>do</strong> conhecimento, <strong>do</strong> espaço social a uma “mecanologia”, ciência geral <strong>do</strong>sdispositivos técnicos 25 . J. Lafitte perseguia algumas pesquisas <strong>de</strong> Marx resumidas por K. AxelosEle não dispunha <strong>de</strong> elementos e conceitos indispensáveis, ignoran<strong>do</strong> a informática e a cibernética, epor conseguinte a diferença entre máquinas <strong>de</strong> informação e máquinas <strong>de</strong> energias massivas. Ahipótese unitária não é menos atualizada por J. Lafitte, com um “rigor” característico da i<strong>de</strong>ologiatecnocrática-funcional-estruturalista, rigor que culmina em proposições as mais arriscadas, emenca<strong>de</strong>amentos conceituais dignos da ficção científica. É a utopia tecnocrática! Assim esse autorintroduz como explicativas da história, analogias entre as “máquinas passivas”, portanto estáticas,correspon<strong>de</strong>ntes aos vegetais, e a arquitetura. Enquanto as “máquinas ativas”, mais dinâmicas, mais“reflexas”, correspon<strong>de</strong>riam aos animais. A partir <strong>de</strong>sses conceitos, J. Lafitte construiu séries26 .25 Cf. Réflexions sur la science <strong>de</strong>s machines , publica<strong>do</strong> em 1932, republica<strong>do</strong> em 1972 (Vrin, Paris, com um prefácio <strong>de</strong> J.Guillerme).26


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006evolutivas ocupan<strong>do</strong> o espaço; ele reproduziu audaciosamente a gênese da natureza, <strong>do</strong>conhecimento, da socieda<strong>de</strong>: “Através <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento harmonioso <strong>de</strong>sses três gran<strong>de</strong>s cortes,séries ao mesmo tempo divergentes e complementares” 27 .44) A hipótese <strong>de</strong> J. Lafitte anunciava muitas outras, <strong>do</strong> mesmo gênero. Esse pensamento reflexivoda tecnicida<strong>de</strong> coloca à frente o explicita<strong>do</strong>, o <strong>de</strong>clara<strong>do</strong> – não apenas o racional, mas o intelectual,afastan<strong>do</strong> <strong>de</strong> imediato o lateral, o hetero-lógico, o que se dissimula na práxis, e ao mesmo tempo opensamento que <strong>de</strong>scobre o que se dissimula. Como se tu<strong>do</strong>, no espaço <strong>do</strong> pensamento e <strong>do</strong> social, sereduzisse à frontalida<strong>de</strong>, ao “face a face”.45) I.10 Se é certo que a pesquisa <strong>de</strong> uma teoria unitária <strong>do</strong> espaço (físico, mental, social) se perfilajá há algumas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> anos, por que e como ela foi aban<strong>do</strong>nada? Por que muito vasta, emergin<strong>do</strong><strong>de</strong> um caos <strong>de</strong> representações, umas poéticas, subjetivas, especulativas, - outras marcadas pelotampão da positivida<strong>de</strong> técnica? Ou então por que estéril?...46) Para compreen<strong>de</strong>r o que se passou, é preciso remontar a Hegel, essa Place <strong>de</strong> l’Étoile <strong>do</strong>minadapelo Monumento filosófico-político. Segun<strong>do</strong> o hegelianismo, o Tempo histórico engendra o Espaçoon<strong>de</strong> se esten<strong>de</strong> e sobre o qual reina o Esta<strong>do</strong>. A história não realiza o arquétipo <strong>do</strong> ser racional numindivíduo, mas num conjunto coerente <strong>de</strong> instituições, <strong>de</strong> grupos e <strong>de</strong> sistemas parciais (o direito, amoral, a família, a cida<strong>de</strong>, o ofício etc.) ocupan<strong>do</strong> um território nacional <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> por um Esta<strong>do</strong>. OTempo, portanto, se congela e se fixa na racionalida<strong>de</strong> imanente ao espaço. O fim hegeliano dahistória não acarreta o <strong>de</strong>saparecimento <strong>do</strong> produto da historicida<strong>de</strong>. Ao contrário: esse produto <strong>de</strong>uma produção animada pelo conhecimento (o conceito) e orientada pela consciência (a linguagem, oLogos), esse produto necessário afirma sua suficiência. Ele persevera no ser por sua própria potência.O que <strong>de</strong>saparece é a história, que se modifica <strong>de</strong> ação em memória, <strong>de</strong> produção em contemplação.O tempo? Não tem mais senti<strong>do</strong>, <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pela repetição, a circularida<strong>de</strong>, a instauração <strong>de</strong> umespaço imóvel, lugar e meio da Razão realizada.47) Após essa fetichização <strong>do</strong> espaço às or<strong>de</strong>ns <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, a filosofia e a ativida<strong>de</strong> prática só po<strong>de</strong>mtentar a restauração <strong>do</strong> tempo 28 . Fortemente em Marx, que restitui o tempo histórico como tempo darevolução. Sutilmente, mas <strong>de</strong> uma maneira abstrata e incerta, porque especializada, em Bergson(duração psíquica, imediaticida<strong>de</strong> da consciência), na fenomenologia husserliana (fluxo“heraclitiano” <strong>de</strong> fenômenos, subjetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Ego), e numa geração <strong>de</strong> filósofos 29 .26 Marx, penseur <strong>de</strong> la technique, Éditions <strong>de</strong> Minuit, 1961.27 Op. cit. p.92 et seq.28Cf. H. Lefebvre, La fin <strong>de</strong> l’histoire, Éd. Minuit, 1970, assim como os estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> A. Kojève sobre Hegel e o hegelianismo.29 À qual se vinculam M. Merleau-Ponty e G. Deleuze (Anti-Œdipe, p.114).27


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.200648) No hegelianismo anti-hegeliano <strong>de</strong> G. Lukacs, o espaço <strong>de</strong>fine a reificação, assim como a falsaconsciência. O tempo reencontra<strong>do</strong>, <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pela consciência <strong>de</strong> classe que se eleva até o pontosublime on<strong>de</strong> ela apreen<strong>de</strong>, com uma vista <strong>de</strong> olhos, os meandros da história, rompe a primazia <strong>do</strong>espacial 30 .49) Somente Nietzsche manteve o prima<strong>do</strong> <strong>do</strong> espaço e a problemática da espacialida<strong>de</strong>: repetição,circularida<strong>de</strong>, simultaneida<strong>de</strong> <strong>do</strong> que parece diverso no tempo e nasce <strong>do</strong> tempo diverso. No <strong>de</strong>vir,mas contra o fluxo <strong>do</strong> tempo, toda forma <strong>de</strong>finida luta para se estabelecer, para se manter, que elaassinala <strong>do</strong> físico, <strong>do</strong> mental, <strong>do</strong> social. O espaço nietzscheano nada mais tem <strong>de</strong> comum com oespaço hegeliano, produto e resíduo <strong>do</strong> tempo histórico. “Creio no espaço absoluto que é o substratoda força, a <strong>de</strong>limita, a mo<strong>de</strong>la.”. O espaço cósmico contém a energia, as forças, e daí proce<strong>de</strong>. Comoo espaço terrestre e social. “On<strong>de</strong> está o espaço está o ser.” 31 . As relações entre a força (a energia), otempo e o espaço constituem problema. Por exemplo, não se po<strong>de</strong> nem conceber um começo (umaorigem), nem se abster <strong>de</strong> pensá-lo. “O interrompi<strong>do</strong> e o sucessivo concordam”, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se afaste aativida<strong>de</strong>, além disso, indispensável que difere e assinala as diferenças. Uma energia, uma força, sóse constatam por efeitos no espaço, embora “em si” (mas como apreen<strong>de</strong>r “em si”, pelo intelectoanalítico, uma “realida<strong>de</strong>” qualquer, energia, tempo, espaço?), as forças diferem <strong>de</strong> seus efeitos.Assim como o espaço nietzscheano não tem nada <strong>de</strong> comum com o espaço hegeliano, o temponietzscheano, teatro da tragédia universal, espaço-tempo da morte e da vida, cíclico, repetitivo, nãotem nada <strong>de</strong> comum com o tempo marxista, historicida<strong>de</strong> impulsionada pelas forças produtivas,orientadas <strong>de</strong> maneira satisfatória (otimista) pela racionalida<strong>de</strong> industrial, proletária, revolucionária.50) Ora, o que advém na segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XX a qual “nós” assistimos:51) a) o Esta<strong>do</strong> se consolida à escala mundial. Ele pesa sobre a socieda<strong>de</strong> (as socieda<strong>de</strong>s) com to<strong>do</strong>seu peso; ele planifica, organiza “racionalmente” a socieda<strong>de</strong> com a contribuição <strong>de</strong> conhecimentos etécnicas, impon<strong>do</strong> medidas análogas, senão homólogas, quaisquer que sejam as i<strong>de</strong>ologias políticas,o passa<strong>do</strong> histórico, a origem social das pessoas no po<strong>de</strong>r. O Esta<strong>do</strong> esmaga o tempo reduzin<strong>do</strong> asdiferenças a repetições, a circularida<strong>de</strong>s (batizadas <strong>de</strong> “equilíbrio”, “feed-back”, “regulações” etc.).O espaço o arrasta segun<strong>do</strong> o esquema hegeliano. Esse Esta<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno se põe e se impõe comocentro estável, <strong>de</strong>finitivamente, <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s e espaços (nacionais). Fim e senti<strong>do</strong> da história, comoentrevira Hegel, ele achata o social e o “cultural”. Ele faz reinar uma lógica que põe fim aos conflitose contradições. Ele neutraliza o que resiste: castração, esmagamento. Entropia social? Ex-crescência{ex-crescimento} monstruosa tornada normalida<strong>de</strong>? O resulta<strong>do</strong> está aí.30 Cf. J. Gabel, La fausse conscience , Éd. <strong>de</strong> Minuit, 1962, p.193 et seq. E, obviamente, G. Lukacs, Histoire et conscience <strong>de</strong>classe.28


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.200652) b) Entretanto, as forças fervilham nesse espaço. A racionalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, técnicas, planos eprogramas, suscita a contestação. A violência subversiva replica a violência <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r. Guerras erevoluções, fracassos e vitórias, confrontos e distúrbios, o mun<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno correspon<strong>de</strong> à visãotrágica <strong>de</strong> Nietzsche. A normalida<strong>de</strong> estatista também impõe a perpétua transgressão. O tempo? Onegativo? Surgem explosivamente. Sua negativida<strong>de</strong> nova, trágica, se manifesta: a violênciaincessante. As forças fervilhantes <strong>de</strong>stampam a panela: o Esta<strong>do</strong> e seu espaço. As diferenças jamaisdisseram sua última palavra. Vencidas, elas sobrevivem. Elas se batem, às vezes ferozmente, para seafirmar e se transformar na adversida<strong>de</strong>.53) c) A classe operária, não mais ela, não disse sua última palavra; ela prossegue seu trajeto, orasubterrâneo, ora a céu aberto. Não se <strong>de</strong>sembaraça facilmente da luta <strong>de</strong> classes que ganhou formasmúltiplas, diferentes <strong>do</strong> esquema empobreci<strong>do</strong> que guarda esse nome e não se encontra bem emMarx conforme seus guardiães reclamam. Po<strong>de</strong> ser que, num equilíbrio mortal, a oposição da classeoperária à burguesia não chegue ao antagonismo, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que a socieda<strong>de</strong> periga, o Esta<strong>do</strong> apodreçain loco ou se fortaleça convulsivamente. Po<strong>de</strong> ser que a revolução mundial ecloda após um perío<strong>do</strong><strong>de</strong> latência – ou a guerra planetária à escala <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> mundial. Po<strong>de</strong> ser... Tu<strong>do</strong> se passa como seos trabalha<strong>do</strong>res, nos países industriais, não apanhem nem a via <strong>do</strong> crescimento e da acumulaçãoin<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s, nem a da revolução violenta, levan<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> ao seu <strong>de</strong>saparecimento, mas a <strong>do</strong><strong>de</strong>finhamento <strong>do</strong> próprio trabalho. A simples inspeção <strong>do</strong>s possíveis mostra que o pensamentomarxista não <strong>de</strong>sapareceu nem po<strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecer.54) A confrontação entre as teses e hipóteses <strong>de</strong> Hegel, Marx, Nietzsche, começa. Nãoimpunemente. Quanto ao pensamento filosófico e à reflexão sobre o espaço e o tempo, ela se cindiu.De um la<strong>do</strong>, eis a filosofia <strong>do</strong> tempo, da duração, ela própria dispersada em reflexões e valorizaçõesparciais: o tempo histórico, o tempo social, o tempo psíquico etc. Do outro la<strong>do</strong>, eis a reflexãoepistemológica que constrói seu espaço abstrato e reflete sobre os espaços abstratos (lógicomatemáticos).A maioria <strong>do</strong>s autores, senão to<strong>do</strong>s, se instalam muito confortavelmente no espaçomental (portanto, neo-kantiano ou neo-cartesiano), provan<strong>do</strong> assim que a “prática teórica” se reduz àreflexão ego-cêntrica <strong>do</strong> intelectual oci<strong>de</strong>ntal especializa<strong>do</strong>, e por conseqüência à consciênciainteiramente separada (esquizói<strong>de</strong>).55) É preciso <strong>de</strong>tonar essa situação. A propósito <strong>do</strong> espaço, perseguir a confrontação entre as idéiase proposições que esclarecem o mun<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno, mesmo se elas não o guiam. Tomar taisproposições, não como teses ou hipóteses isoladas, como “pensamentos” que em seguida se estuda,31 Coletânea intitulada (erroneamente) Volonté <strong>de</strong> puissance, tr. G. Bianquis, Gallimard, 1935, fragmentos 315, 316 et seq.29


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006mas como figuras anuncia<strong>do</strong>ras, situadas nos limites da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> 32 . Tal é o propósito <strong>de</strong>sta obrasobre o espaço.56) I.11 O propósito consistiria numa teoria crítica <strong>do</strong> espaço existente, substituin<strong>do</strong> as <strong>de</strong>scrições erecortes que aceitam esse espaço, assim como nas teorias críticas da socieda<strong>de</strong> em geral, daeconomia política, da cultura etc.? Não. A substituição da utopia tecnológica por uma utopianegativa e crítica, a respeito <strong>do</strong> espaço, como a respeito <strong>do</strong> “homem” ou da “socieda<strong>de</strong>” não é maissuficiente. A teoria crítica, levada até a contestação e mesmo até a contestação radical (seja“pontual”, atacan<strong>do</strong> este ou aquele “ponto” vulnerável, seja global), acabou seu tempo.57) Seria preciso assinalar como primeira tarefa a <strong>de</strong>struição metódica <strong>do</strong>s códigos concernentes aoespaço? Não. O problema é inverso. Esses códigos, inerentes ao saber ou à prática social, sedissolvem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre. Persistem apenas ruínas: palavras, imagens, metáforas. Evento capital, emque pese <strong>de</strong>spercebi<strong>do</strong>, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que sua invocação se imponha a cada momento: em torno <strong>de</strong> 1910,o espaço comum ao bom senti<strong>do</strong>, ao saber, à prática social, ao po<strong>de</strong>r político, conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> discursocotidiano como <strong>do</strong> pensamento abstrato, meio e canal <strong>de</strong> mensagens, aquele da perspectiva clássica eda geometria, elabora<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Renascença, a partir da herança grega (Eucli<strong>de</strong>s e a lógica), atravésda arte e da filosofia <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte, incorpora<strong>do</strong> na cida<strong>de</strong>, esse espaço se enfraquece. Ele recebetantos choques e sofre tantas agressões que só retém uma realida<strong>de</strong> pedagógica num ensinoconserva<strong>do</strong>r com muitas dificulda<strong>de</strong>s. O espaço euclidiano e perspectivo <strong>de</strong>saparece comoreferencial, com os outros lugares comuns (a cida<strong>de</strong>, a história, a paternida<strong>de</strong>, o sistema tonal namúsica, a moral tradicional etc.). Momento crucial. É, além <strong>do</strong> mais, fácil compreen<strong>de</strong>r que o espaço<strong>do</strong> “bom senti<strong>do</strong>”, euclidiano e perspectivo, como a álgebra e a aritmética elementares, como agramática, como a física newtoniana, não po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>saparecer num instante sem <strong>de</strong>ixar traços nasconsciências, no saber e na pedagogia. Não se trata mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir códigos por uma teoria crítica,mas se trata <strong>de</strong> explicar sua <strong>de</strong>struição, <strong>de</strong> constatar os efeitos e (talvez) construir um novo códigoatravés <strong>do</strong> sobrecódigo teórico.58) Inversão da tendência <strong>do</strong>minante, e não substituição, essa operação prece<strong>de</strong>ntemente indicada,se precisa. Como no tempo <strong>de</strong> Marx (e isto será longamente mostra<strong>do</strong>, senão <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong>), a32Anuncian<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já os nomes {matizes}, eis (sem muita ironia) algumas fontes: as obras <strong>de</strong> Charles Dodgson (pseudônimo:Lewis Carroll), <strong>de</strong> preferência Symbolic Logic, The game of logic e Logique sans peine a Through the looking glass, Alice inWon<strong>de</strong>rland – Le jeu <strong>de</strong>s perles <strong>de</strong> verre, <strong>de</strong> Hermann Hesse, especialmente p.126 et seq. da tradução, sobre a teoria <strong>do</strong> jogo esua dupla relação com a linguagem e o espaço, espaço <strong>do</strong> jogo, espaço on<strong>de</strong> acontece o jogo, a Castália {la Castalie} –Hermann Weyl: Symétrie et mathématique mo<strong>de</strong>rne, 1952, tr. fr. Flammarion, 1964; <strong>de</strong> Nietzsche, cf. Das Philosopher Buch,sobretu<strong>do</strong> os fragmentos sobre a linguagem e “a introdução teorética sobre a verda<strong>de</strong> e a mensagem”, p. 185 da tradução.Observação importante: os textos cita<strong>do</strong>s prece<strong>de</strong>ntemente aqui e mais adiante só têm senti<strong>do</strong> em ligação com a práticaespacial e seus níveis: planificação, “urbanismo”, arquitetura.30


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006inversão consiste em passar <strong>do</strong>s produtos (estuda<strong>do</strong>s <strong>de</strong> perto ou <strong>de</strong> longe, <strong>de</strong>scritos, enumera<strong>do</strong>s) àprodução.59) Essa inversão <strong>de</strong> tendência e <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> não tem nada a ver com a conversão <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s aossignificantes, praticada em nome <strong>de</strong> uma preocupação intelectualista <strong>de</strong> teoria “pura”. O retrato <strong>do</strong>significa<strong>do</strong>, a colocação entre parênteses <strong>do</strong> “expressivo”, o apelo apenas aos significantes formais,prece<strong>de</strong>ram a inversão <strong>de</strong> tendência que vai <strong>do</strong>s produtos à ativida<strong>de</strong> produtora. Essas operações asimulam reduzin<strong>do</strong>-a a uma série <strong>de</strong> intervenções abstratas sobre a linguagem, e, no final das contas,sobre a literatura.60) I.12 O espaço (social) é um produto (social). Essa proposição parece próxima da tautologia,portanto da evidência. Contu<strong>do</strong>, é preciso examinar <strong>de</strong> perto, vislumbrar suas implicações econseqüências, antes <strong>de</strong> aceitá-la. Muitas pessoas não aceitaram que, no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção atual e na“socieda<strong>de</strong> em ato” tal como ela é, o espaço tenha assumi<strong>do</strong>, embora <strong>de</strong> maneira distinta, umaespécie <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> própria, ao mesmo título e no mesmo processo global que a merca<strong>do</strong>ria, odinheiro, o capital. <strong>Outras</strong>, diante <strong>de</strong>sse para<strong>do</strong>xo, procuraram provas. Visto que o espaço assimproduzi<strong>do</strong> também serve <strong>de</strong> instrumento ao pensamento, como à ação, que ele é, ao mesmo tempo,um meio <strong>de</strong> produção, um meio <strong>de</strong> controle, portanto, <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação e <strong>de</strong> potência {po<strong>de</strong>r} – masque ele escapa parcialmente, enquanto tal, aos que <strong>de</strong>le se servem. As forças sociais e políticas(estatistas) que o engendraram tentam controlá-lo e não conseguem; aqueles mesmos que levam arealida<strong>de</strong> espacial em direção a uma espécie <strong>de</strong> autonomia impossível <strong>de</strong> <strong>do</strong>minar se esforçam paraesgotá-lo, para fixá-lo e o subjugar. Esse espaço seria abstrato? Sim, mas ele também é “real”, comoa merca<strong>do</strong>ria e o dinheiro, essas abstrações concretas. Ele seria concreto? Sim, mas não da mesmamaneira que um objeto, um produto qualquer. Ele é instrumental? Decerto, mas, como oconhecimento, ele transcen<strong>de</strong> a instrumentalida<strong>de</strong>. Ele seria redutível a uma projeção – a uma“objetivação” <strong>do</strong> saber? Sim e não: o saber objetiva<strong>do</strong> num produto não coinci<strong>de</strong> mais com oconhecimento teórico. O espaço contém relações sociais. Como? Por que? Quais?61) Daí a exigência <strong>de</strong> uma minuciosa análise e <strong>de</strong> uma longa exposição <strong>de</strong> conjunto. Comintrodução <strong>de</strong> idéias novas: <strong>de</strong> início, a <strong>de</strong> uma diversida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espaços,distintos da fragmentação, <strong>do</strong> recorte ao infinito. E isso no curso <strong>do</strong> que se chama “história” e que<strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo recebe uma nova elucidação {abordagem}.62) Quan<strong>do</strong> o espaço social <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> se confundir com o espaço mental (<strong>de</strong>fini<strong>do</strong> pelos filósofos epelos matemáticos), com o espaço físico (<strong>de</strong>fini<strong>do</strong> pelo prático-sensível e pela percepção da“natureza”), ele revela sua especificida<strong>de</strong>. Será preciso mostrar que esse espaço social não consistenuma coleção <strong>de</strong> coisas, numa soma <strong>de</strong> fatos (sensíveis), nem tão-somente num vazio preenchi<strong>do</strong>,como uma embalagem, <strong>de</strong> matérias diversas, que ele não se reduz a uma “forma” imposta aos31


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006fenômenos, às coisas, à materialida<strong>de</strong> física. O caráter social <strong>do</strong> espaço, afirma<strong>do</strong> aqui como prévia(hipótese), será confirma<strong>do</strong> durante a exposição.63) I.13 O que dissimula essa verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> espaço (social), a saber que ele é um produto (social)?Uma dupla ilusão, cada la<strong>do</strong> remeten<strong>do</strong> ao outro, reforçan<strong>do</strong> o outro, cobrin<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> outro: a ilusão<strong>de</strong> transparência e a <strong>de</strong> opacida<strong>de</strong> (a ilusão “realística”).64) a) Ilusão da transparência – O espaço? Luminoso, inteligível, ele oferece seu campo livre àação. O que se realiza no espaço maravilha o pensamento: sua própria encarnação numa intenção (ou<strong>de</strong>senho, a proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas palavras têm um senti<strong>do</strong> 33 ). A intenção serve <strong>de</strong> media<strong>do</strong>ra, elaprópria fiel, entre a ativida<strong>de</strong> mental que inventa e a ativida<strong>de</strong> social que realiza; a intenção se<strong>de</strong>senvolve no espaço. A ilusão da transparência se confun<strong>de</strong> com a <strong>de</strong> uma inocência <strong>do</strong> espaço:sem ciladas, nem escon<strong>de</strong>rijos profun<strong>do</strong>s. O dissimula<strong>do</strong>, o oculto, portanto o perigoso, se opõem àtransparência, apreensível por um lance <strong>de</strong> olhar <strong>do</strong> espírito que ilumina o que contempla. Semobstáculos intransponíveis, a compreensão faria passar o que ela percebe, seu objeto, <strong>de</strong> regiõesobscuras às regiões iluminadas; ela <strong>de</strong>slocaria o objeto, seja atravessan<strong>do</strong>-o com um raio penetrante,seja metamorfosean<strong>do</strong>-o, com algumas precauções, <strong>de</strong> sombrio em luminoso. Assim coincidiriam,aproximadamente, o espaço social e o espaço mental, o <strong>do</strong>s lugares pensa<strong>do</strong>s e fala<strong>do</strong>s (tópicos). Porqual trajeto? Por qual magia? O críptico se <strong>de</strong>cifra isoladamente, após intervenção da palavra e, naseqüência, da escrita. Ele se <strong>de</strong>cifra, diz-se e se crê, pelo simples <strong>de</strong>slocamento e pela simplesiluminação, mudan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> lugar, sem modificação outra que topológica.65) Por que pronunciar assim a equivalência na espacialida<strong>de</strong> entre o conheci<strong>do</strong> e o transparente?Esse é o postula<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ologia difusa (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a filosofia clássica); essa i<strong>de</strong>ologia, misturada à“cultura” oci<strong>de</strong>ntal, valoriza a palavra e sobrevaloriza a escrita, em <strong>de</strong>trimento da prática social, queela oculta. Ao fetichismo <strong>do</strong> falar, à i<strong>de</strong>ologia da palavra, replicam o fetichismo e a i<strong>de</strong>ologia daescrita. Para uns, <strong>de</strong> maneira explícita ou implícita, o falar se <strong>de</strong>senvolve na clareza da comunicação,<strong>de</strong>sentoca o que se escon<strong>de</strong>, o obriga a se mostrar ou o acabrunha com imprecações mortais. Paraoutros, a palavra não basta; falta a prova e a operação suplementar da escrita, gera<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> maldição e<strong>de</strong> sacralização. O ato <strong>de</strong> escrever, além <strong>de</strong> seus efeitos imediatos, implicaria numa disciplina capaz<strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r o “objeto” para e pelo “sujeito”, aquele que escreve e fala. Em ambos os casos, apalavra e a escrita se tomam por prática (social); está entendi<strong>do</strong> que a absurdida<strong>de</strong> e a obscurida<strong>de</strong>que caminham juntas se dissipam sem que se <strong>de</strong>svaneça o “objeto”. A comunicação contém o objeto<strong>do</strong> incomunica<strong>do</strong> (o incomunicável não ten<strong>do</strong> outra existência senão a <strong>de</strong> um resíduo semprepersegui<strong>do</strong>) no comunica<strong>do</strong>. Tais são os postula<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ologia, que i<strong>de</strong>ntifica o conhecimento, a33 Na tradução per<strong>de</strong>u-se a proximida<strong>de</strong> entre <strong>de</strong>ssein, aqui traduzi<strong>do</strong> como intenção, e <strong>de</strong>ssin, <strong>de</strong>senho (N.T.)32


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006informação, a comunicação, colocan<strong>do</strong>-se a transparência <strong>do</strong> espaço. De mo<strong>do</strong> que se pô<strong>de</strong> acreditardurante um perío<strong>do</strong> bastante longo que uma transformação revolucionária seria realizada pelacomunicação. “Dizer tu<strong>do</strong>!”, “a palavra ininterrompida! Escrever tu<strong>do</strong>! A escrita transforma<strong>do</strong>ra dalinguagem, logo, da socieda<strong>de</strong>... A escrita como prática significante!” Des<strong>de</strong> então, revolução etransparência ten<strong>de</strong>ram a se i<strong>de</strong>ntificar.66) A ilusão da transparência revela-se como uma ilusão transcen<strong>de</strong>ntal, retoman<strong>do</strong>momentaneamente a velha linguagem <strong>do</strong>s filósofos: como um engo<strong>do</strong>, funcionan<strong>do</strong> por sua própriapotência quase mágica, mas remeten<strong>do</strong> assim e <strong>do</strong> mesmo movimento a outros engo<strong>do</strong>s, seus álibis,suas máscaras.67) b) A ilusão realística – Ilusão da ingenuida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> ingênuos, já os filósofos, os teóricos dalinguagem <strong>de</strong>nunciada sob diversos pretextos e vocábulos: naturalida<strong>de</strong>, substancialida<strong>de</strong>. Segun<strong>do</strong>os filósofos da boa velha tendência i<strong>de</strong>alista, a credulida<strong>de</strong> particular no senti<strong>do</strong> comum implica umaconvicção enganosa: as “coisas” têm mais existência que o “sujeito”, seu pensamento, seu <strong>de</strong>sejo. Arecusa <strong>de</strong>ssa ilusão envolve a a<strong>de</strong>são ao “puro” pensamento, ao Espírito, ao Desejo. O que remete dailusão realística à da transparência.68) Para os lingüistas, semânticos, semiólogos, uma ingenuida<strong>de</strong> primeira e última admite a“realida<strong>de</strong> substancial” da linguagem, enquanto ela se <strong>de</strong>fine pela forma. A língua passa por um“saco <strong>de</strong> palavras”; os ingênuos crêem apanhar no saco a palavra que convém à coisa, a cada“objeto” correspon<strong>de</strong>nte à palavra a<strong>de</strong>quada. No curso <strong>de</strong> toda leitura, o imaginário e o simbólico, apaisagem, o horizonte que bor<strong>de</strong>ja o percurso <strong>do</strong> leitor, se tomam ilusoriamente pelo “real” porqueos caracteres verda<strong>de</strong>iros <strong>do</strong> texto, assim como a forma significante que o conteú<strong>do</strong> simbólicoescapam à inconsciência ingênua (A notar que essas ilusões propiciam aos “ingênuos” prazeres quedissipam o saber que dissipa as ilusões! A ciência substitui as fruições inocentes da naturalida<strong>de</strong>, realou fictícia, por prazeres refina<strong>do</strong>s, sofistica<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s quais ninguém provou que sejam mais<strong>de</strong>liciosos).69) A ilusão da substancialida<strong>de</strong>, da naturalida<strong>de</strong>, da opacida<strong>de</strong> espacial, sustenta sua mitologia. Oartista <strong>do</strong> espaço opera numa realida<strong>de</strong> dura ou espessa diretamente oriunda da Mãe Natureza.Escultor ao invés <strong>de</strong> pintor, arquiteto antes que músico ou poeta, ele trabalha sobre uma matéria queresiste ou escapa. O espaço, se não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong> geômetra, possui proprieda<strong>de</strong>s e qualida<strong>de</strong>s físicas daterra.70) A primeira ilusão, a da transparência, se reaproxima da i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong> filosófica, ao passo que asegunda avizinha-se <strong>do</strong> materialismo (naturalista e mecanicista). Contu<strong>do</strong>, essas ilusões não secombatem à maneira <strong>de</strong> sistemas filosóficos, que se fecham como couraças e se procuram para se<strong>de</strong>struírem. Cada ilusão contém a outra e a mantém. A passagem <strong>de</strong> uma a outra, intermitência,33


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006oscilação, tem portanto tanta importância quanto cada ilusão tomada separadamente. Os simbolismosvin<strong>do</strong>s da natureza obscurecem a clareza racional que provém, no Oci<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong> sua história, da<strong>do</strong>minação conquistada sobre a natureza. A aparente transluci<strong>de</strong>z tomada por obscuras forçashistóricas e políticas em seu <strong>de</strong>clínio (o Esta<strong>do</strong>, a nacionalida<strong>de</strong>) reencontra imagens vindas da terrae da natureza, da paternida<strong>de</strong>, da maternida<strong>de</strong>. O racional se naturaliza e a natureza se cobre <strong>de</strong>nostalgias que suplantam a razão.71) I.14 Programaticamente, para anunciar o que virá, po<strong>de</strong>-se a partir <strong>de</strong> agora enumerar algumasimplicações e conseqüências da proposição inicial: o espaço (social) é um produto (social).72) Primeira implicação: o espaço-natureza (físico) se distancia. Irreversivelmente. Com certeza, elefoi e permanece terreno comum <strong>de</strong> início: a origem, o original <strong>do</strong> processo social, talvez a base <strong>de</strong>toda “originalida<strong>de</strong>”. Com certeza, ele não <strong>de</strong>saparece pura e simplesmente da cena. Fun<strong>do</strong> <strong>do</strong>quadro, cenário e mais que cenário, ele persiste e cada <strong>de</strong>talhe, cada objeto da natureza se valorizatornan<strong>do</strong>-se símbolo (o menor animal, a árvore, a erva etc.). Fonte e recurso, a natureza obseda,como a infância e a espontaneida<strong>de</strong>, através <strong>do</strong> filtro da memória. Quem não quer protegê-la, salvála?Reencontrar o autêntico? Quem quer <strong>de</strong>struí-la? Ninguém. Porém, tu<strong>do</strong> conspira para prejudicála.O espaço-natureza se distancia: horizonte afasta<strong>do</strong>, para os que se voltam. Ele escapa aopensamento. O que é a Natureza? Como reaprendê-la antes da intervenção, antes da presença <strong>do</strong>shomens e <strong>de</strong> seus instrumentos <strong>de</strong>vasta<strong>do</strong>res? A natureza, esse mito po<strong>de</strong>roso, se transforma emficção, em utopia negativa: ela não é mais que a matéria-prima sobre a qual operam as forçasprodutivas <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s diversas para produzir seu espaço. Resistente, <strong>de</strong>certo, e infinita emprofundida<strong>de</strong>, mas vencida, no curso da evacuação, da <strong>de</strong>struição...73) I.15 Segunda implicação: cada socieda<strong>de</strong> (por conseguinte, cada mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção com asdiversida<strong>de</strong>s que ele engloba, as socieda<strong>de</strong>s particulares nas quais se reconhece o conceito geral)produz um espaço, o seu. A Cité antiga não po<strong>de</strong> ser compreendida como uma coleção <strong>de</strong> pessoas ecoisas no espaço; ela não po<strong>de</strong> mais ser concebida a partir <strong>de</strong> um certo número <strong>de</strong> textos e discursossobre o espaço, ainda que alguns <strong>de</strong>ntre eles, como o Crítias e o Timeu, <strong>de</strong> Platão, ou o livro A daMetafísica aristotélica, forneçam conhecimentos insubstituíveis. A Cité teve sua prática espacial; elamo<strong>de</strong>lou seu espaço próprio, isto é, apropria<strong>do</strong>. Daí a exigência nova <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> <strong>de</strong>sse espaço queo apreen<strong>de</strong>sse como tal, na sua gênese e em sua forma, com seu tempo ou seus tempos específicos(os ritmos da vida cotidiana), com seus centros e seu policentrismo (a ágora, o templo, o estádioetc.).74) A cité grega aqui comparece apenas para balizar o caminho. Programaticamente, cadasocieda<strong>de</strong>, ten<strong>do</strong> seu espaço próprio, propõe esse “objeto” à análise, assim como à exposição teóricaglobal. Cada socieda<strong>de</strong>? Sim, cada mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção, incluin<strong>do</strong> certas relações <strong>de</strong> produção, com34


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006variantes apreciáveis. O que não ocorre sem dificulda<strong>de</strong>s, das quais muitas se manifestarão naseqüência. Obstáculos, lacunas, brancos surgirão. Que sabemos, na Europa, com os conceitosoci<strong>de</strong>ntais por instrumentos, <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção asiático, <strong>de</strong> seu espaço, <strong>de</strong> suas cida<strong>de</strong>s e darelação entre a cida<strong>de</strong> e o campo? Conhecemos os i<strong>de</strong>ogramas que, parece, dão essa relaçãofiguran<strong>do</strong>-a?75) Geralmente, a própria noção <strong>de</strong> espaço social, por sua novida<strong>de</strong>, pela complexida<strong>de</strong> <strong>do</strong> real e <strong>do</strong>formal que ela <strong>de</strong>signa, resiste à análise.76) O espaço social contém, ao lhe assinalar os lugares apropria<strong>do</strong>s (mais ou menos), as relaçõessociais <strong>de</strong> reprodução, a saber, as relações bio-fisiológicas entre os sexos, as ida<strong>de</strong>s, com aorganização específica da família – e as relações <strong>de</strong> produção, a saber, a divisão <strong>do</strong> trabalho e suaorganização, portanto, as funções sociais hierarquizadas. Esses <strong>do</strong>is enca<strong>de</strong>amentos, produção ereprodução, não po<strong>de</strong>m se separar: a divisão <strong>do</strong> trabalho repercute na família e aí se sustenta;inversamente, a organização familiar interfere na divisão <strong>do</strong> trabalho; todavia, o espaço socialdiscerne essas ativida<strong>de</strong>s para “localizá-las”. Não sem fracassos!77) Mais precisamente, até o capitalismo, imbricam-se tais níveis, o da reprodução biológica e o daprodução sócio-econômica, envolven<strong>do</strong> assim a reprodução social, a da socieda<strong>de</strong> que se perpetua naseqüência <strong>de</strong> gerações, apesar <strong>do</strong>s conflitos, confrontações, lutas e guerras. Será necessário mostrarque o espaço <strong>de</strong>sempenha um papel <strong>de</strong>cisivo nessa continuida<strong>de</strong>.78) Com o capitalismo, e sobretu<strong>do</strong> com o neo-capitalismo “mo<strong>de</strong>rno”, a situação se complica. Trêsníveis se imbricam, o da reprodução biológica (a família) – o da reprodução da força <strong>de</strong> trabalho (aclasse operária como tal) – o da reprodução das relações sociais <strong>de</strong> produção, ou seja, das relaçõesconstitutivas da socieda<strong>de</strong> capitalista, cada vez mais (e progredin<strong>do</strong>) <strong>de</strong>sejadas e impostas como tais.O papel <strong>do</strong> espaço nesse triplo arranjo <strong>de</strong>ve ser estuda<strong>do</strong> especificamente.79) Para tornar as situações mais complexas, o espaço também contém certas representações <strong>de</strong>ssadupla ou tripla interferência <strong>de</strong> relações sociais (<strong>de</strong> produção e <strong>de</strong> reprodução). Por representaçõessimbólicas, ele as mantêm em esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> coexistência e <strong>de</strong> coesão. Ele as exibe transpon<strong>do</strong>-as,portanto, dissimulan<strong>do</strong>-as <strong>de</strong> maneira simbólica, com a ajuda e sobre o fun<strong>do</strong> da Natureza. Asrepresentações das relações <strong>de</strong> reprodução consistem em símbolos sexuais, <strong>do</strong> feminino e <strong>do</strong>masculino, com ou sem os das ida<strong>de</strong>s {gerações}, juventu<strong>de</strong> e velhice. Simbolização que dissimulamais <strong>do</strong> que não mostra, visto que essas relações se divi<strong>de</strong>m em relações frontais, públicas,<strong>de</strong>claradas e portanto codificadas – e relações veladas, clan<strong>de</strong>stinas, reprimidas e <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>ras <strong>de</strong>s<strong>de</strong>então <strong>de</strong> transgressões, em particular no que concerne não tanto ao sexo como tal, mas à fruiçãosexual, com suas condições e conseqüências.35


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.200680) Assim, o espaço contém esses entrecruzamentos múltiplos, em lugares e praças assinala<strong>do</strong>s.Quanto às representações <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> produção, que envolvem relações <strong>de</strong> potência, elas tambémse efetuam no espaço, e o espaço contém as representações nos edifícios, nos monumentos, nas obras<strong>de</strong> arte. As relações frontais, por conseguinte, geralmente brutais, não impe<strong>de</strong>m completamente osaspectos clan<strong>de</strong>stinos e subterrâneos; não há po<strong>de</strong>r sem cúmplices e sem polícia.81) Assim, ganha contornos uma triplicida<strong>de</strong> sobre a qual se voltará em mais <strong>de</strong> uma retomada:82) a) A prática espacial, que engloba produção e reprodução, lugares especifica<strong>do</strong>s e conjuntosespaciais próprios a cada formação social, que assegura a continuida<strong>de</strong> numa relativa coesão. Essacoesão implica, no que concerne ao espaço social e à relação <strong>de</strong> cada membro <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadasocieda<strong>de</strong> ao seu espaço, ao mesmo tempo uma competência certa e uma certa performance 34 .83) b) As representações <strong>do</strong> espaço, ligadas às relações <strong>de</strong> produção, à “or<strong>de</strong>m” que elas impõem e,<strong>de</strong>sse mo<strong>do</strong>, ligadas aos conhecimentos, aos signos, aos códigos, às relações “frontais”.84) c) Os espaços <strong>de</strong> representação, apresentam (com ou sem código) simbolismos complexos,liga<strong>do</strong>s ao la<strong>do</strong> clan<strong>de</strong>stino e subterrâneo da vida social, mas também à arte, que eventualmentepo<strong>de</strong>r-se-ia <strong>de</strong>finir não como código <strong>do</strong> espaço, mas como código <strong>do</strong>s espaços <strong>de</strong> representação.85) I.16 Na verda<strong>de</strong>, o espaço social “incorpora” atos sociais, os <strong>de</strong> sujeitos ao mesmo tempocoletivos e individuais, que nascem e morrem, pa<strong>de</strong>cem e agem. Para eles, seu espaço se comporta,ao mesmo tempo, vital e mortalmente; eles aí se <strong>de</strong>senvolvem, se dizem e encontram os interditos;<strong>de</strong>pois caem e seu espaço contém sua queda. Para e diante <strong>do</strong> conhecimento, o espaço socialfunciona – com seu conceito – como analisa<strong>do</strong>r da socieda<strong>de</strong>. Um esquema simplista se afastaimediatamente, o <strong>de</strong> uma correspondência termo a termo (pontual) entre os atos e os lugares sociais,entre as funções e as formas espaciais. Esse esquema “estrutural”, porque grosseiro, não terminou <strong>de</strong>assombrar as consciências e o saber.86) Gerar (produzir) um espaço social apropria<strong>do</strong>, no qual a socieda<strong>de</strong> gera<strong>do</strong>ra toma formaapresentan<strong>do</strong>-se e representan<strong>do</strong>, apesar <strong>de</strong> não coincidir com ela e mesmo que seu espaço seja tantosua queda quanto seu berço, isso não se realiza num dia. Trata-se <strong>de</strong> um processo. É necessário(essas palavras indicam uma necessida<strong>de</strong> que, justamente, é necessário explicitar) que a capacida<strong>de</strong>prática <strong>de</strong>ssa socieda<strong>de</strong> e suas potências soberanas disponham <strong>de</strong> lugares privilegia<strong>do</strong>s: os lugaresreligiosos e políticos. Tratan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s pré-capitalistas (<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da antropologia, daetnologia, da sociologia, mais que da economia política), é preciso lugares nos quais se realizemuniões sexuais e mortes simbólicas, on<strong>de</strong> o princípio da fecundida<strong>de</strong> (a Mãe) se renove, on<strong>de</strong> sematam os pais, os chefes, os reis, os sacer<strong>do</strong>tes e, por vezes, os <strong>de</strong>uses. De sorte que o espaço se34 Termos empresta<strong>do</strong>s da lingüística (da N. Chomsky), o que <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> algum subordina a teoria <strong>do</strong> espaço à lingüística.36


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006encontra ao mesmo tempo sacraliza<strong>do</strong> e livre <strong>de</strong> potências benéficas e maléficas: reten<strong>do</strong> <strong>de</strong>las issopara que elas favorecem a continuida<strong>de</strong> <strong>do</strong> social, extirpan<strong>do</strong> isso para que elas são muito perigosas.87) É preciso que o espaço, ao mesmo tempo natural e social, prático e simbólico, apareça povoa<strong>do</strong>(significante e significa<strong>do</strong>) <strong>de</strong> uma “realida<strong>de</strong>” superior, por exemplo, a Luz (a <strong>do</strong> sol, da lua, <strong>do</strong>sastros), oposta às trevas, à noite, conseqüentemente, à morte, luz i<strong>de</strong>ntificada ao Verda<strong>de</strong>iro, à vida,portanto, ao pensamento e ao saber, e, por mediações incertas, ao po<strong>de</strong>r existente. O que transparecenos relatos míticos, no Oci<strong>de</strong>nte como no Oriente, mas se atualiza apenas no e pelo espaço(religioso-político). Como toda prática social, a prática espacial se vê antes <strong>de</strong> se conceber; mas oprima<strong>do</strong> especulativo <strong>do</strong> concebi<strong>do</strong> sobre o vivi<strong>do</strong> faz <strong>de</strong>saparecer com a vida, a prática; elerespon<strong>de</strong> mal ao “inconsciente” <strong>do</strong> vivi<strong>do</strong> como tal.88) É preciso também que a família (durante longo tempo muito ampla, ainda que limitada) seja<strong>de</strong>sautorizada com centro único (lar solitário) da prática social, o que ocasiona a dissolução dasocieda<strong>de</strong> – e simultaneamente retida e mantida, como “base” <strong>de</strong> relações pessoais e diretas, ligadasà natureza, à terra, à procriação, portanto à reprodução.89) É preciso, enfim, que a morte seja ao mesmo tempo figurada e rejeitada: “localizada”, elatambém, remetida ao infinito para liberar (purificar) a finitu<strong>de</strong> on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolve a prática social,on<strong>de</strong> reina a Lei que estabeleceu esse espaço. O espaço social é o da socieda<strong>de</strong>. O homem não vêsenão palavras; cada “sujeito” se situa num espaço on<strong>de</strong> ele se reconhece ou então se per<strong>de</strong>, <strong>do</strong> qualele usufrui ou modifica. Para<strong>do</strong>xo: para aí consentir, aquele que já se encontra aí (criança,a<strong>do</strong>lescente) <strong>de</strong>ve submeter-se a provas, o que instala espaços reserva<strong>do</strong>s no seio <strong>do</strong> espaço social,tais como os lugares <strong>de</strong> iniciação. Sem dúvida, to<strong>do</strong>s os lugares sagra<strong>do</strong>s-malditos, lugares <strong>de</strong>presença-ausência <strong>do</strong>s <strong>de</strong>uses e <strong>de</strong> sua morte e das potências ocultas e <strong>de</strong> seu exorcismo, sãoreserva<strong>do</strong>s. De mo<strong>do</strong> que no espaço absoluto o lugar <strong>do</strong> absoluto não existe (o que seria um nãolugar).O que evoca uma estranha composição <strong>do</strong> espaço religioso-político, conjunto <strong>de</strong> lugaressubtraí<strong>do</strong>s e reserva<strong>do</strong>s, portanto, misteriosos.90) Quanto à magia e à feitiçaria, elas também têm seus espaços próprios, que se opõem, supon<strong>do</strong>-o,ao religioso-político: espaços também reserva<strong>do</strong>s e subtraí<strong>do</strong>s, mais malditos que benditos ebenéficos. Enquanto certos espaços lúdicos, também consagra<strong>do</strong>s (à dança sagrada, à música etc.),sempre serão consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s mais benéficos que malditos e maléficos.91) O espaço social teria por último fundamento o interdito: o não-dito nas comunicações entre osmembros da socieda<strong>de</strong> - o afastamento entre eles, corpos e consciências, e a dificulda<strong>de</strong> das trocas -,o <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> suas relações as mais imediatas (a da criança com sua mãe) e <strong>de</strong> sua própriacorporeida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois a restituição jamais plenamente realizada <strong>de</strong>ssas relações em um “meio”, série<strong>de</strong> lugares especifica<strong>do</strong>s por <strong>de</strong>fesas e prescrições?37


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.200692) Nessa orientação, po<strong>de</strong>-se ir até explicar o espaço social por um duplo interdito: a interdição quedistancia o filho (varão) <strong>de</strong> sua mãe, porque o incesto é <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong> e o que o afasta <strong>de</strong> seu própriocorpo, porque a linguagem, compon<strong>do</strong> a consciência, <strong>de</strong>compõe a unida<strong>de</strong> imediata <strong>de</strong> seu corpo;porque o filho (varão) suporta simbolicamente a castração e que seu próprio falo se objetiva para elecomo realida<strong>de</strong> externa. O que lança a Mãe, seu sexo e seu sangue, no maldito-sagra<strong>do</strong>, o gozosexual com ela torna<strong>do</strong> fascinante e inacessível.93) Essa tese 35 pressupõe a anteriorida<strong>de</strong> lógica, epistemológica, antropológica da linguagem emrelação ao espaço. Do mesmo golpe, ela situa os interditos (a proibição, <strong>do</strong> incesto, entre outros) naorigem da socieda<strong>de</strong>, e não na ativida<strong>de</strong> produtora. Ela se põe <strong>de</strong> acor<strong>do</strong>, sem outro exame, com umespaço objetivo, neutro e vazio e gera somente o espaço da palavra (e da escrita). Veremos que essaspreliminares não convém apenas porque não dão conta da prática sócio-espacial, senão numasocieda<strong>de</strong> imaginária, mo<strong>de</strong>lo ou tipo i<strong>de</strong>al que constrói essa i<strong>de</strong>ologia e que ela i<strong>de</strong>ntificainsolentemente a todas as socieda<strong>de</strong>s “reais”. Contu<strong>do</strong>, a existência, no espaço, da verticalida<strong>de</strong>fálica (que vem <strong>de</strong> longe, mas tem uma tendência para se acentuar) pe<strong>de</strong> uma interpretação. Assimcomo o fato geral que o muro, o tapume, a fachada <strong>de</strong>finem ao mesmo tempo uma cena (on<strong>de</strong> algose passa) e uma obscena, o que não po<strong>de</strong> e não <strong>de</strong>ve advir nesse espaço: o inadmissível, maléfico einterdito, que tem seu espaço oculto, aquém ou além <strong>de</strong> uma fronteira. Tu<strong>do</strong> explicar pela psicanálisee pelo inconsciente conduz a um reducionismo e a um <strong>do</strong>gmatismo insuportáveis; assim como asuperestimaçäo <strong>do</strong> “estrutural”. Existem, entretanto, estruturas, existe o “inconsciente”, omalconheci<strong>do</strong> da consciência tomaria seu justo lugar nesta pesquisa. Se, por exemplo, afirma-se quetoda socieda<strong>de</strong> e especificamente a cida<strong>de</strong> têm uma vida subterrânea e reprimida, portanto um“inconsciente”, o interesse pela psicanálise em <strong>de</strong>clínio irrompe.94) I.17 O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma outra implicação da hipótese proposta exigirá ainda maisesforços. Se o espaço é um produto, o conhecimento reproduzirá essa produção, ele a exporá. Ointeresse e o “objeto” se transferem das coisas no espaço para a produção <strong>do</strong> espaço ele próprio,fórmula que reclama ainda muitas explicações. Os produtos parciais localiza<strong>do</strong>s no espaço, as coisas,<strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, e <strong>do</strong> outro os discursos sobre o espaço servem apenas como indicações e testemunhossobre esse processo produtivo (que compreen<strong>de</strong>, sem reduzir-se a isso, processos significantes). Nãoé mais, portanto, o espaço disto ou daquilo que importa, mas o espaço como totalida<strong>de</strong> ouglobalida<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>ve, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já, não apenas ser estuda<strong>do</strong> analiticamente (o que ameaça propiciarfragmentações e recortes ao infinito, subordina<strong>do</strong>s à intenção analítica), mas ser engendra<strong>do</strong> pelo eno conhecimento teórico. A teoria reproduz, com um enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> conceitos, mas num senti<strong>do</strong>35 Inerente aos textos <strong>do</strong> Dr. J. Lacan e <strong>de</strong> sua escola.38


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006muito forte, o processo gera<strong>do</strong>r: <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro e não somente <strong>de</strong> fora (<strong>de</strong>scritivamente) – comoglobalida<strong>de</strong>, passan<strong>do</strong> portanto sem cessar <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> ao atual (e inversamente). Com efeito, ohistórico e suas conseqüências, o “diacrônico”, a etimologia <strong>do</strong>s lugares, isto é, o que neles se passamodifican<strong>do</strong> as localida<strong>de</strong>s e praças, tu<strong>do</strong> isso inscreve-se no espaço. O passa<strong>do</strong> <strong>de</strong>ixou seus traços,suas inscrições, escrita <strong>do</strong> tempo. Mas esse espaço é sempre, hoje como outrora, um espaço presente,da<strong>do</strong> como um to<strong>do</strong> atual, com suas ligações e conexões em ato. De mo<strong>do</strong> que a produção e oproduto se apresentam como <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s inseparáveis e não como duas representações separáveis.95) Uma objeção: a uma ou outra época, numa socieda<strong>de</strong> (antiga-escravagista, medieval-feudal etc.)os grupos ativos não “produziram” seu espaço como se “produz” um vaso, um móvel, uma casa, umaárvore frutífera. Então, como aí consi<strong>de</strong>rá-los? A questão, altamente pertinente, cobre os “campos”consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s. Efetivamente, mesmo o neo-capitalismo ou capitalismo <strong>de</strong> organizações, mesmo osplanifica<strong>do</strong>res e programa<strong>do</strong>res tecnocráticos não produzem um espaço com pleno e inteiroconhecimento das causas, efeitos, razões e implicações.96) Os especialistas <strong>de</strong> diversas “disciplinas” po<strong>de</strong>m respon<strong>de</strong>r a essa questão ou tentar, a partir<strong>de</strong>las, respondê-la. Assim, o ecologista partirá <strong>do</strong>s ecossistemas na natureza; ele mostrará como aação <strong>do</strong>s grupos humanos perturba os equilíbrios <strong>de</strong>sses ecossistemas e como esses equilíbrios serestabelecem na maioria <strong>do</strong>s casos, quan<strong>do</strong> se trata <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s “pré-técnicas”, ou “arqueotécnicas”;em seguida, ele examinará as relações entre cida<strong>de</strong> e campo, as perturbações acarretadaspela cida<strong>de</strong>, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um novo equilíbrio ou <strong>de</strong> sua impossibilida<strong>de</strong>. Ele terá, assim,esclareci<strong>do</strong> e mesmo explica<strong>do</strong>, <strong>de</strong> seu ponto <strong>de</strong> vista, a gênese <strong>do</strong> espaço social mo<strong>de</strong>rno. Oshistoria<strong>do</strong>res proce<strong>de</strong>rão diferentemente, segun<strong>do</strong> seu méto<strong>do</strong> e sua tendência. Os que estudam osacontecimentos estabelecerão o quadro cronológico <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões concernentes à relação <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s eseu território, a construção <strong>de</strong> monumentos; outros reconstituirão a ascensão e o <strong>de</strong>clínio <strong>de</strong>instituições que <strong>de</strong>ram lugar aos edifícios; outros ainda estudarão economicamente as trocas entrecida<strong>de</strong>s, entre cida<strong>de</strong>s e territórios, Esta<strong>do</strong>s e cida<strong>de</strong>s etc.97) Para ir mais adiante, retomemos conceitos já indica<strong>do</strong>s e cuja elaboração será continuada.98) a) A prática espacial <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> secreta seu espaço; ela o põe e o supõe, numa interaçãodialética: ela o produz lenta e seguramente, <strong>do</strong>minan<strong>do</strong>-o e <strong>de</strong>le se aproprian<strong>do</strong>. Para a análise, aprática espacial <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> se <strong>de</strong>scobre <strong>de</strong>cifran<strong>do</strong> seu espaço.99) O que é a prática espacial no neo-capitalismo? Ela associa estreitamente, no espaço percebi<strong>do</strong>, arealida<strong>de</strong> cotidiana (o emprego <strong>do</strong> tempo) e a realida<strong>de</strong> urbana (os percursos e re<strong>de</strong>s ligan<strong>do</strong> oslugares <strong>do</strong> trabalho, da vida “privada”, <strong>do</strong>s lazeres). Associação surpreen<strong>de</strong>nte, pois ela inclui em si{pressupõe} a separação exacerbada entre esses lugares que ela religa. A competência e aperformance espaciais próprias a cada membro <strong>de</strong>ssa socieda<strong>de</strong> só se examinam empiricamente. A39


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006prática espacial “mo<strong>de</strong>rna” se <strong>de</strong>fine, portanto, pela vida cotidiana <strong>de</strong> um habitante <strong>de</strong> HLM nosubúrbio, caso-limite e significativo; o que não autoriza negligenciar as auto-estradas e a aeropolítica.Uma prática espacial <strong>de</strong>ve possuir uma certa coesão, o que não quer dizer uma coerência(intelectualmente elaborada: concebida e lógica).100) b) As representações <strong>do</strong> espaço, ou seja, o espaço concebi<strong>do</strong>, aquele <strong>do</strong>s cientistas, <strong>do</strong>splanifica<strong>do</strong>res, <strong>do</strong>s urbanistas, <strong>do</strong>s tecnocratas “retalha<strong>do</strong>res” e “agencia<strong>do</strong>res”, <strong>de</strong> certos artistaspróximos da cientificida<strong>de</strong>, i<strong>de</strong>ntifican<strong>do</strong> o vivi<strong>do</strong> e o percebi<strong>do</strong> ao concebi<strong>do</strong> (o que perpetua assábias especulações sobre os Números: o número <strong>de</strong> ouro, os módulos e “canhões”). É o espaço<strong>do</strong>minante numa socieda<strong>de</strong> (um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção). As concepções <strong>do</strong> espaço ten<strong>de</strong>riam (comalgumas reservas sobre as quais será preciso retornar) para um sistema <strong>de</strong> signos verbais, portanto,elabora<strong>do</strong>s intelectualmente.101) c) Os espaços <strong>de</strong> representação, ou seja, o espaço vivi<strong>do</strong> através das imagens e símbolos que oacompanham, portanto, espaço <strong>do</strong>s “habitantes”, <strong>do</strong>s “usuários”, mas também <strong>de</strong> certos artistas etalvez <strong>do</strong>s que <strong>de</strong>screvem e acreditam somente <strong>de</strong>screver: os escritores, os filósofos. Trata-se <strong>do</strong>espaço <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>, portanto, suporta<strong>do</strong>, que a imaginação tenta modificar e apropriar. De mo<strong>do</strong> queesses espaços <strong>de</strong> representação ten<strong>de</strong>riam (feitas as mesmas reservas prece<strong>de</strong>ntes) para sistemas maisou menos coerentes <strong>de</strong> símbolos e signos não verbais.102) A autonomização (relativa) <strong>do</strong> espaço como “realida<strong>de</strong>”, resultan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um longo processo –sobretu<strong>do</strong> no capitalismo e no neo-capitalismo (<strong>de</strong> organizações) – introduz contradições novas. Ascontradições <strong>do</strong> espaço serão <strong>de</strong>scobertas mais adiante. Aqui indicamos apenas a relação dialética noseio <strong>de</strong>ssa triplicida<strong>de</strong>: o percebi<strong>do</strong>, o concebi<strong>do</strong>, o vivi<strong>do</strong>.103) Triplicida<strong>de</strong>: três termos e não <strong>do</strong>is. Uma relação a <strong>do</strong>is termos reduz-se a uma oposição, a umcontraste, a uma contrarieda<strong>de</strong>; ela se <strong>de</strong>fine por um efeito significante: efeito <strong>de</strong> eco, <strong>de</strong>repercussão, <strong>de</strong> espelho. A filosofia dificilmente superou as relações a <strong>do</strong>is termos: o sujeito e oobjeto, a “res cogitans” e a “res extensa” <strong>de</strong> Descartes, o Eu e o Não-eu <strong>do</strong>s kantianos, póskantianos,neo-kantianos. O “binarismo” não tem mais nada a ver com as concepções mecânicas daluta encarniçada entre <strong>do</strong>is princípios cósmicos; torna<strong>do</strong> mental, ele evacua da vida, <strong>do</strong> pensamento,da socieda<strong>de</strong> (<strong>do</strong> físico, <strong>do</strong> mental, <strong>do</strong> social, <strong>do</strong> vivi<strong>do</strong>, <strong>do</strong> percebi<strong>do</strong>, <strong>do</strong> concebi<strong>do</strong>), tu<strong>do</strong> o que faza ativida<strong>de</strong> vivente. Após o esforço titânico <strong>de</strong> Hegel e <strong>de</strong> Marx, a filosofia sucumbe nas oposiçõesditas “pertinentes”, arrastan<strong>do</strong> várias ciências especializadas (ou arrastada por elas) e <strong>de</strong>terminan<strong>do</strong> ointeligível pelas oposições e sistemas <strong>de</strong> oposições, sob pretexto <strong>de</strong> transparência. Um tal sistemanão teria nem materialida<strong>de</strong> nem resíduo; um sistema perfeito, ele se oferece como uma evidênciaracional para a inspeção mental. O paradigma teria esse po<strong>de</strong>r mágico: metamorfosear o obscuro emtransparente, <strong>de</strong>slocar o “objeto” da sombra para a luz sem o <strong>de</strong>formar, tão-somente por sua40


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006formulação. Numa palavra, <strong>de</strong>scriptar. O saber coloca-se a serviço <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r com uma admirávelinconsciência, suprimin<strong>do</strong> as resistências, as sombras e seus “seres”.104) Para compreen<strong>de</strong>r o espaço social em três momentos, que se reporta ao corpo. Uma vez que arelação com o espaço <strong>de</strong> um “sujeito”, membro <strong>de</strong> um grupo ou <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, implica suarelação com seu próprio corpo, e reciprocamente. A prática social consi<strong>de</strong>rada globalmente supõeum uso <strong>do</strong> corpo: o emprego das mãos, membro, órgãos sensoriais, gestos <strong>do</strong> trabalho e os dasativida<strong>de</strong>s exteriores ao trabalho. É o percebi<strong>do</strong> (base prática da percepção <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> exterior, nosenti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s psicólogos). Quanto às representações <strong>do</strong> corpo, elas provêm <strong>de</strong> uma aquisição científicadifundida com uma mistura <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias: o anatômico, o fisiológico, as <strong>do</strong>enças e os remédios, arelação <strong>do</strong> corpo humano com a natureza, os arre<strong>do</strong>res e o “meio”. O vivi<strong>do</strong> corporal, ele, alcança umalto grau <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> estranheza, pois a “cultura” aí intervém sob a ilusão <strong>de</strong>imediaticida<strong>de</strong>, nos simbolismos e na longa tradição judaico-cristã, da qual a psicanálise <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bracertos aspectos. O “coração” vivi<strong>do</strong> (até os mal-estares e <strong>do</strong>enças) difere estranhamente <strong>do</strong> coraçãopensa<strong>do</strong> e percebi<strong>do</strong>. Ainda mais o sexo. As localizações nada têm <strong>de</strong> fácil e o corpo vivi<strong>do</strong> atinge,sob a pressão da moral, a estranheza <strong>do</strong> corpo sem órgãos, castiga<strong>do</strong>, castra<strong>do</strong>.105) A triplicida<strong>de</strong>: percebi<strong>do</strong>-concebi<strong>do</strong>-vivi<strong>do</strong> (espacialmente: prática <strong>do</strong> espaço - representação <strong>do</strong>espaço – espaços <strong>de</strong> representação) per<strong>de</strong> seu alcance caso se lhe atribua o estatuto <strong>de</strong> um “mo<strong>de</strong>lo”abstrato. Ou ela apreen<strong>de</strong> o concreto (e não o “imediato”), ou ela tem uma importância apenasreduzida, a <strong>de</strong> uma mediação i<strong>de</strong>ológica entre muitas outras.106) É imprecindível que o vivi<strong>do</strong>, o concebi<strong>do</strong>, o percebi<strong>do</strong> sejam reuni<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que o“sujeito”, o membro <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> grupo social, possa passar <strong>de</strong> um ao outro sem aí se per<strong>de</strong>r. Elesconstituem uma coerência? Talvez, nas circunstâncias favoráveis. Sem dúvida há então umalinguagem comum, um consenso, um código. Po<strong>de</strong>-se supor que a cida<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal, <strong>do</strong> renascimentoitaliano ao século XIX, teve essa chance. A representação <strong>do</strong> espaço <strong>do</strong>mina e subordina o espaço <strong>de</strong>representação (<strong>de</strong> origem religiosa), reduzi<strong>do</strong> a figuras simbólicas, o céu e o inferno, o diabo e osanjos. Pintores, arquitetos, teóricos toscanos elaboraram, então, uma representação <strong>do</strong> espaço, aperspectiva a partir <strong>de</strong> uma prática social, ela própria resulta<strong>do</strong>, como se verá, <strong>de</strong> uma modificaçãohistórica modifican<strong>do</strong> a relação “cida<strong>de</strong>-campo”. Ao passo que o senso comum, algo pouco reduzi<strong>do</strong>ao silêncio, conservou mal modifica<strong>do</strong> um espaço <strong>de</strong> representação advin<strong>do</strong> <strong>do</strong> Etruscosatravessan<strong>do</strong> os séculos da romanida<strong>de</strong> e da cristanda<strong>de</strong>. A linha <strong>de</strong> horizonte, a fuga e o encontro“no infinito” das paralelas, <strong>de</strong>terminaram uma representação ao mesmo tempo intelectual e visual,provocan<strong>do</strong> o prima<strong>do</strong> <strong>do</strong> olhar numa espécie <strong>de</strong> “lógica da visualização”. Essa representação, emcurso <strong>de</strong> elaboração durante séculos, investe-se na prática arquitetural e urbanística: as perspectivas,o código.41


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006107) Para concluir essa investigação e provar na medida <strong>do</strong> possível a teoria assim construída, seriapreciso generalizar, esten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> as distinções propostas, a todas as socieda<strong>de</strong>s, a todas as épocas, ato<strong>do</strong>s os “mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> produção”. Contentemo-nos por enquanto com alguns argumentos, semesperança <strong>de</strong> ir até o limite da tarefa. As representações <strong>do</strong> espaço seriam penetradas <strong>de</strong> saber(conhecimento e i<strong>de</strong>ologia misturadas) sempre relativo e em transformação. Elas seriam, portanto,objetivas, embora possam ser revistas. Verda<strong>de</strong>iras ou falsas? A questão não tem sempre um senti<strong>do</strong><strong>de</strong>fini<strong>do</strong>. A perspectiva é verda<strong>de</strong>ira ou falsa? Abstratas, com certeza, as representações <strong>do</strong> espaçoentram na prática social e política, as relações estabelecidas entre os objetos e as pessoas no espaçorepresenta<strong>do</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma lógica que os faz, ce<strong>do</strong> ou tar<strong>de</strong>, explodir porque incoerentes. Osespaços <strong>de</strong> representação, vivi<strong>do</strong>s mais que concebi<strong>do</strong>s, não constrangem jamais à coerência, nãomais que à coesão. Penetra<strong>do</strong>s <strong>de</strong> imaginário e <strong>de</strong> simbolismo, eles têm por origem a história, <strong>de</strong> umpovo e a <strong>de</strong> cada indivíduo pertencente a esse povo. Os etnólogos, os antropólogos, os psicanalistasestudam, saben<strong>do</strong> ou não, esses espaços <strong>de</strong> representação, freqüentemente esquecen<strong>do</strong> <strong>de</strong> confrontáloscom as representações <strong>do</strong> espaço que coexistem, concilian<strong>do</strong>-se ou neles interferin<strong>do</strong>,negligencian<strong>do</strong> ainda mais a prática espacial. Os cientistas aí reconhecem isoladamente o que lhesinteressa: lembranças da infância, sonhos, imagens e símbolos uterinos (ninhos, corre<strong>do</strong>res,labirintos). O espaço <strong>de</strong> representação se vê, se fala; ele tem um núcleo ou centro afetivo, o Ego, acama, o quarto, a moradia ou a casa; - a praça, a igreja, o cemitério. Ele contém os lugares da paixãoe da ação, os das situações vividas, portanto, implica imediatamente o tempo. De sorte que ele po<strong>de</strong>receber diversas qualificações: o direcional, o situacional, o relacional, porque ele é essencialmentequalitativo, flui<strong>do</strong>, dinamiza<strong>do</strong>.108) Se a distinção for generalizada, ela exigirá uma reconsi<strong>de</strong>ração da história. Conviria não apenasestudar a história <strong>do</strong> espaço, mas a das representações, assim como a <strong>do</strong>s laços entre elas, com aprática, com a i<strong>de</strong>ologia. Uma tal história comportaria, por conseguinte, a gênese <strong>de</strong>sses espaços,mas sobretu<strong>do</strong> <strong>de</strong> suas conexões, distorções, <strong>de</strong>slocamentos, interferências e <strong>de</strong> seus laços com aprática espacial das socieda<strong>de</strong>s (mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> produção).109) Po<strong>de</strong>-se rebater que as representações <strong>do</strong> espaço tenham um alcance prático, que elas se inserem,modifican<strong>do</strong>-as, nas texturas espaciais, emprestadas <strong>de</strong> conhecimentos e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias eficazes. Asrepresentações <strong>do</strong> espaço teriam assim um alcance consi<strong>de</strong>rável e uma influência específica naprodução <strong>do</strong> espaço. Como? Pela construção, ou seja, pela arquitetura, concebida não como aedificação <strong>de</strong> tal “imóvel” isola<strong>do</strong>, palácio, monumento, mas como um projeto se inserin<strong>do</strong> numcontexto espacial e numa textura, o que exige “representações” que não se per<strong>de</strong>m no simbólico ouno imaginário.42


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006110) Em contrapartida, os espaços <strong>de</strong> representação não seriam produtivos, senão <strong>de</strong> obrassimbólicas, freqüentemente únicas, por vezes <strong>de</strong>terminan<strong>do</strong> uma direção “estética”, esgotan<strong>do</strong>-se aofim <strong>de</strong> um certo tempo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter suscita<strong>do</strong> uma série <strong>de</strong> expressões e <strong>de</strong> incursões no imaginário.111) Uma tal distinção <strong>de</strong>ve ser manejada com bastante precaução. Rapidamente ela introduziriadissociações, enquanto se trata, ao contrário, <strong>de</strong> restituir a unida<strong>de</strong> produtiva. A<strong>de</strong>mais, não é certoque ao avançar ela possa ser generalizada. O Oriente (a China) conheceu a diferença entre asrepresentações <strong>do</strong> espaço e os espaços <strong>de</strong> reprentação? Nada é menos certo. É possível, ao contrário,que seus i<strong>de</strong>ogramas contenham indissoluvelmente uma presença da or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> (espaçotempo)e uma apreensão <strong>do</strong> espaço-tempo concreto (prático e social) nos quais se <strong>de</strong>senvolvem ossimbolismos, se compõem as obras <strong>de</strong> arte, se constroem os edifícios, templos e palácios. Maisadiante retornaremos a essa questão, sem, aliás, respondê-la, por falta <strong>de</strong> um conhecimento<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> <strong>do</strong> Oriente. Em contrapartida, no Oci<strong>de</strong>nte e quanto à prática oci<strong>de</strong>ntal, a partir daGrécia e <strong>de</strong> Roma, tentaremos mostrar a gênese <strong>de</strong>ssa distinção, seu alcance e seu senti<strong>do</strong>. Não é,além disso, certo que a distinção se mantenha sem alteração até a época mo<strong>de</strong>rna, nem que não tenhahavi<strong>do</strong> inversões <strong>de</strong> situação (a produtivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong> representação, por exemplo).112) Determina<strong>do</strong>s povos (digamos, por exemplo, os andinos <strong>do</strong> Peru, época Chavin) tiveram umarepresentação <strong>do</strong> espaço da qual são testemunhos os planos <strong>de</strong> templos e palácios 36 , e um espaço <strong>de</strong>representação que figura nas obras <strong>de</strong> arte, grafismos, teci<strong>do</strong>s etc. Qual relação havia entre esses <strong>do</strong>isaspectos <strong>de</strong> uma época? Hoje em dia o conhecimento obstina-se em reconstituir pela via conceitualuma conexão que nada tem <strong>de</strong> uma aplicação à “realida<strong>de</strong>” <strong>de</strong> um saber preexistente. Daí a extremadificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa reconstrução: os símbolos, que se sente e pressente, escapam como tais ao nossosaber abstrato, sem corpo, sem temporalida<strong>de</strong>, sofistica<strong>do</strong>, eficaz, mas “irreal” em relação a certas“realida<strong>de</strong>s”. Que houve nesse meio ou interstício, entre as representações <strong>do</strong> espaço e o espaço <strong>de</strong>representação? Uma cultura? Decerto, mas a palavra tem uma plenitu<strong>de</strong> enganosa. O trabalho daarte? Certamente, mas quem e como? A imaginação? Talvez, mas por que e para quem?113) A distinção proposta teria ainda mais alcance se os teóricos e os práticos <strong>de</strong> hoje operassem,cada um <strong>de</strong> seu la<strong>do</strong>, uns elaboran<strong>do</strong> espaços <strong>de</strong> representação, outros representações <strong>do</strong> espaço.Para citar nomes, po<strong>de</strong>-se pensar que Frank Lloyd Wright aceita um espaço <strong>de</strong> representaçãocomunitária, oriun<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma tradição bíblica e protestante, ao passo que Le Corbusier elabora umarepresentação <strong>do</strong> espaço tecnicista, cientificista, intelectualizada.36 Cf. F. Hebert Stevens, L’Art <strong>de</strong> l’Amérique du sud , Arthaud, 1973, p.55 et seq. Para compreen<strong>de</strong>r o espaço medieval,representação <strong>do</strong> espaço – espaço <strong>de</strong> representação, ler le Grand et le Petit Albert e sobretu<strong>do</strong> le Traité <strong>de</strong>s influences astrales,reed. Albin Michel, 1971.43


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006114) Talvez seja preciso ir mais longe e admitir que os produtores <strong>do</strong> espaço sempre agiram segun<strong>do</strong>uma representação, ao passo que os “usuários” suportam o que se lhes é imposto, mais ou menosinseri<strong>do</strong> ou justifica<strong>do</strong> em seu espaço <strong>de</strong> representação. Como se efetuam tais manipulações? Cabe àanálise respon<strong>de</strong>r. Se é certo que os arquitetos (e os urbanistas) têm uma representação <strong>do</strong> espaço, <strong>de</strong>on<strong>de</strong> eles a tiram? Em proveito <strong>de</strong> quem ela se “operacional”? Se é certo que os “habitantes” têm umespaço <strong>de</strong> representação, um curioso mal-entendi<strong>do</strong> começa a se elucidar. O que não quer dizer queele <strong>de</strong>saparece na prática social e política.115) A noção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia, ferida <strong>de</strong> obsolescência, periga mesmo se a teoria crítica ainda admite suanecessida<strong>de</strong>. Esse conceito nunca se elucida; abusou-se <strong>de</strong>le: i<strong>de</strong>ologia marxista, i<strong>de</strong>ologia burguesa,i<strong>de</strong>ologia proletária, revolucionária, socialista etc. Distinções incongruentes entre a i<strong>de</strong>ologia emgeral e as i<strong>de</strong>ologias particulares, entre “aparelhos i<strong>de</strong>ológicos” e instituições <strong>do</strong> saber etc.116) O que é uma i<strong>de</strong>ologia sem um espaço ao qual ela se refere, que ela <strong>de</strong>screve, <strong>do</strong> qual ela utilizao vocabulário e as conexões, <strong>do</strong> qual ela contém o código? Que seria da i<strong>de</strong>ologia religiosa, naespécie judaico-cristã, se ela não se baseasse nos lugares e seus nomes: a igreja, o confessionário, oaltar, o santuário, o púlpito, o sacrário etc.? Que seria da Igreja sem as igrejas? A i<strong>de</strong>ologia cristã,veiculan<strong>do</strong> um judaísmo reconhecível e malconheci<strong>do</strong> (Deus, o pai etc.), criou espaços queasseguram sua duração. Mais geralmente, o que se <strong>de</strong>nomina “i<strong>de</strong>ologia”, só adquire consistênciaintervin<strong>do</strong> no espaço social, na sua produção, para aí ganhar corpo. Em si, ela não consistiriasobretu<strong>do</strong> num discurso sobre esse espaço?117) Se o conhecimento, segun<strong>do</strong> uma fórmula célebre que vem <strong>de</strong> Marx, torna-se imediatamente enão mais mediatamente uma força produtiva, e isso a partir <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção capitalista 37 , arelação i<strong>de</strong>ologia-conhecimento muda. O saber toma o papel da i<strong>de</strong>ologia. A i<strong>de</strong>ologia, enquantodistinta <strong>do</strong> saber, caracteriza-se pela retórica, a metalinguagem, portanto, verborréia e elucubração(não mais pela sistematização filosófico-metafísica, pela “culturas” e “valores”). Mais ainda:i<strong>de</strong>ológica e lógica po<strong>de</strong>m se confundir, na medida em que a pesquisa obstinada <strong>de</strong> uma coerência e<strong>de</strong> uma coesão extirpa as contradições pelo alto – informação e saber – e por baixo, o espaço da vidacotidiana.118) Um representação <strong>do</strong> espaço pô<strong>de</strong> misturar i<strong>de</strong>ologia e conhecimento no interior <strong>de</strong> uma prática(sócio-espacial). Assim, tipicamente, a perspectiva clássica. Do mesmo mo<strong>do</strong>, hoje em dia, o espaço<strong>do</strong>s planifica<strong>do</strong>res, aquele da localização que atribui a cada ativida<strong>de</strong> um lugar pontual.37 Cf. Grundrisse.44


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006119) A i<strong>de</strong>ologia e o saber, mal discerníveis, entram no conceito mais amplo <strong>de</strong> representação, quesuplanta <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo o <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia. Esse conceito po<strong>de</strong> servir <strong>de</strong> instrumento (operatório) para aanálise <strong>de</strong> espaços, assim como <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s que os geraram e se assenhorearam <strong>de</strong>les.120) Na Ida<strong>de</strong> Média, a prática espacial compreendia as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> caminhos na vizinhança <strong>de</strong>comunida<strong>de</strong>s camponesas, <strong>de</strong> monastérios e castelos, e as estradas religan<strong>do</strong> as cida<strong>de</strong>s, as gran<strong>de</strong>svias <strong>de</strong> peregrinações e cruzadas. Quanto às representações <strong>do</strong> espaço, elas são emprestadas dasconcepções <strong>de</strong> Aristóteles e <strong>de</strong> Ptolomeu, modificadas pelo cristianismo: a terra, o “mun<strong>do</strong>”subterrâneo, e o Cosmos luminoso, céu <strong>do</strong>s justos e <strong>do</strong>s anjos, habita<strong>do</strong> por Deus, o pai, seus Filhos eo Espírito. Uma esfera fixa, num espaço finito, secciona<strong>do</strong> diametralmente pela superfície terrestre,abaixo da qual situam-se os infernos, acima da qual, parte superior da esfera, encontra-se oFirmamento, a cúpula portan<strong>do</strong> as estrelas fixas, os círculos <strong>de</strong> planetas, espaço atravessa<strong>do</strong> pelasmensagens e mensageiros divinos, preenchi<strong>do</strong> pela Glória luminosa da Trinda<strong>de</strong>, tal foi a concepção<strong>do</strong> espaço em São Tomás e n’A Divina Comédia. Quanto aos espaços <strong>de</strong> representação, eles colocamno centro da vizinhança a igreja al<strong>de</strong>ã, o cemitério, o edifício da câmara e os campos, ou ainda apraça e a torre da cida<strong>de</strong>. Esses espaços <strong>de</strong> representação interpretam por vezes maravilhosamente asrepresentações cosmológicas; assim, o caminho <strong>de</strong> Saint Jacques duplica sobre a superfície terrestrea Via que vai <strong>do</strong> Câncer ao Capricórnio na cúpula celeste, a Via láctea, rastro <strong>de</strong> esperma divinoon<strong>de</strong> nascem as Almas, que seguem a encosta, caem na terra e encontram, se conseguem, a via dare<strong>de</strong>nção: a peregrinação que os conduz a Compostela (o campo <strong>de</strong> estrelas). O corpo,evi<strong>de</strong>ntemente, entra no jogo <strong>de</strong> representações concernentes ao espaço: “Touro <strong>do</strong>mina sobre opescoço; Gêmeos sobre os ombros; Câncer sobre as mãos e os braços; Leão sobre o peito, o coraçãoe o diafragma; Virgem sobre o estômago; Libra diz respeito à segunda parte <strong>do</strong>s rins; Escorpião oslocais próprios à concupiscência...”, <strong>de</strong>clara Alberto, o Gran<strong>de</strong>.121) Po<strong>de</strong>-se supor que a prática espacial, as representações <strong>do</strong> espaço e os espaços <strong>de</strong> representaçãointervêm diferentemente na produção <strong>do</strong> espaço: segun<strong>do</strong> suas qualida<strong>de</strong>s e proprieda<strong>de</strong>s, segun<strong>do</strong> associeda<strong>de</strong>s (mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção), segun<strong>do</strong> as épocas. As relações entre esses três momentos – opercebi<strong>do</strong>, o concebi<strong>do</strong>, o vivi<strong>do</strong> – nunca são simples, nem estáveis, tampouco são, mais “positivas”,no senti<strong>do</strong> em que esse termo opor-se-ia ao “negativo”, ao in<strong>de</strong>cifrável, ao não-dito, ao interdito, aoinconsciente. Esses momentos e suas conexões cambiantes são conscientes? Sim, e contu<strong>do</strong>malconheci<strong>do</strong>s. Po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>clará-los “inconscientes”? Não, pois geralmente são ignora<strong>do</strong>s, e a análiseos retira da sombra, com risco <strong>de</strong> equívocos. Tais conexões, das quais sempre é preciso falar, o quenão equivale a saber, mesmo “inconscientemente”.122) I.18 Se há produção e processo produtivo <strong>do</strong> espaço, há história; assim, po<strong>de</strong>-se formular aquarta implicação. A história <strong>do</strong> espaço, <strong>de</strong> sua produção enquanto “realida<strong>de</strong>”, <strong>de</strong> suas formas e45


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006representações, não se confun<strong>de</strong> nem com o enca<strong>de</strong>amento causal <strong>de</strong> fatos ditos “históricos”(data<strong>do</strong>s), nem com a sucessão, com ou sem finalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> costumes e leis, <strong>de</strong> idéias e i<strong>de</strong>ologias, <strong>de</strong>estruturas sócio-econômicas ou <strong>de</strong> instituições (superestruturas). As forças produtivas (natureza,trabalho e organização <strong>do</strong> trabalho, técnicas e conhecimentos) e, obviamente, as relações <strong>de</strong>produção, têm um papel – a <strong>de</strong>terminar – na produção <strong>do</strong> espaço.123) Trata-se, afinal, <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar que a passagem <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção a outro apresenta o maiorinteresse teórico, enquanto efeito <strong>de</strong> contradições nas relações sociais <strong>de</strong> produção, que não po<strong>de</strong>m<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> se inscrever no espaço, subverten<strong>do</strong>-o. Cada mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção ten<strong>do</strong>, por hipótese, seuespaço apropria<strong>do</strong>, um novo espaço se produz durante a transição. O mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>como acaba<strong>do</strong> (sistema fecha<strong>do</strong>) passa por objeto privilegia<strong>do</strong>; o pensamento ávi<strong>do</strong> <strong>de</strong> transparênciaou <strong>de</strong> substancialida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> ambos tem uma predileção por um tal “objeto”. Ao contrário, astransições revelarão a produção <strong>de</strong> um espaço novo, pela seqüência or<strong>de</strong>nada. Assim, a cida<strong>de</strong> <strong>do</strong>Renascimento, dissolução <strong>de</strong> relações feudais e crescimento <strong>do</strong> capitalismo comercial. Então seconstitui o código ao qual foi feita alusão, <strong>do</strong> qual a análise (pon<strong>do</strong> o acento no paradigma) ocuparámais adiante um bom número <strong>de</strong> páginas. Em via <strong>de</strong> formação <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a antigüida<strong>de</strong> (a cité grega eromana, mas também os trabalhos <strong>de</strong> Vitrúvio e <strong>do</strong>s filósofos) esse código fornecera uma linguagemaos escritores. Ele correspon<strong>de</strong> à prática espacial, e sem dúvida à representação <strong>do</strong> espaço, mais queaos espaços <strong>de</strong> representação, ainda impregna<strong>do</strong>s <strong>de</strong> magia e <strong>de</strong> religião. Que o código se estabelece,isso quer dizer que as “pessoas” – habitantes, construtores, políticos – <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ir <strong>de</strong> mensagensurbanas ao código <strong>de</strong>cifran<strong>do</strong> (<strong>de</strong>scriptan<strong>do</strong>) a realida<strong>de</strong>, cida<strong>de</strong> e campo, para ir <strong>do</strong> código àsmensagens produzin<strong>do</strong> discurso e realida<strong>de</strong> a<strong>de</strong>quadas. Esse código tem uma história, que resulta dahistória inteira da cida<strong>de</strong>, no Oci<strong>de</strong>nte. Ele <strong>de</strong>ve permitir à organização urbana, a várias retomadassubvertida, tornar-se saber e po<strong>de</strong>r, portanto, instituição. O que começa o <strong>de</strong>clínio, o fim daautonomia das cida<strong>de</strong>s e <strong>do</strong> sistema urbano como realida<strong>de</strong> histórica. O Esta<strong>do</strong> erige-se acima dascida<strong>de</strong>s históricas; ele fará explodir a estrutura e o código. Um tal código é uma superestrutura, não aprópria cida<strong>de</strong> e o espaço e a relação “cida<strong>de</strong>-campo” nesse espaço. Com esse código fixaram-se oalfabeto e a língua da cida<strong>de</strong>, os signos elementares, seu paradigma e suas ligações sintagmáticas.Em termos menos abstratos, as fachadas se conciliam para <strong>de</strong>terminar as perspectivas; as entradas esaídas, portas, janelas, subordinam-se às fachadas, às perspectivas; ruas e praças or<strong>de</strong>nam-se emtorno <strong>de</strong> edifícios, palácios <strong>de</strong> chefes políticos e <strong>de</strong> instituições (as autorida<strong>de</strong>s municipais ten<strong>do</strong>ainda uma pre<strong>do</strong>minância). A diversos níveis, da morada familiar ao monumento, <strong>do</strong> espaço“priva<strong>do</strong>” ao território, os elementos <strong>de</strong>sse espaço se dispõem e se compõem <strong>de</strong> uma maneira aomesmo tempo conhecida e surpreen<strong>de</strong>nte, que não per<strong>de</strong>u seu charme no final <strong>do</strong> século XX. Ocódigo <strong>do</strong> espaço permitia ao mesmo tempo nele viver, compreendê-lo, produzi-lo. Ele não fornecia46


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006um simples procedimento <strong>de</strong> leitura. Ele reunia signos verbais (palavras, frases, com seu senti<strong>do</strong>resultan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um processo significante) e signos não verbais (músicas, sons, chama<strong>do</strong>s, construçãoarquitetural).124) A história <strong>do</strong> espaço não po<strong>de</strong> se contentar em estudar esses momentos privilegia<strong>do</strong>s: aformação, o estabelecimento, o <strong>de</strong>clínio e o estilhaçamento <strong>de</strong> tal código. Ela não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong>la<strong>do</strong> o global: os mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> produção como generalida<strong>de</strong>s, as socieda<strong>de</strong>s particulares que elesenglobaram com suas singularida<strong>de</strong>s, eventos, instituições. A história <strong>do</strong> espaço periodizará oprocesso produtivo <strong>de</strong> uma maneira que não coincidirá exatamente com as periodizações admitidas.125) O espaço absoluto consiste em fragmentos da natureza, em lugares eludi<strong>do</strong>s por suas qualida<strong>de</strong>sintrínsecas (caverna ou cume, fonte ou rio), mas <strong>do</strong>s quais a consagração termina por esvaziá-los<strong>de</strong>ssas características e particularida<strong>de</strong>s naturais. O espaço-natureza se povoa <strong>de</strong> forças políticas. Aarquitetura subtrai à natureza um lugar para aprestá-lo ao político através <strong>de</strong> um simbolismo (assimcomo o estatuto <strong>do</strong> <strong>de</strong>us local ou da <strong>de</strong>usa no templo grego, o santuário vazio ou conten<strong>do</strong> umsimples espelho num templo xintoísta etc.). Uma interiorida<strong>de</strong> consagrada se opõe à exteriorida<strong>de</strong>natural e, entretanto, a retoma e a reúne. O espaço absoluto no qual se <strong>de</strong>senrolam ritos e cerimôniasretém da natureza certos traços que se modificam para se incorporar ao cerimonial: as ida<strong>de</strong>s, ossexos, a genitalida<strong>de</strong> (fecundida<strong>de</strong>). Ao mesmo tempo cívico e religioso, o espaço absoluto conserva,pois, nele, as <strong>de</strong>scendências, relações imediatas, mas transferidas à cida<strong>de</strong>, ao Esta<strong>do</strong> políticofunda<strong>do</strong> sobre a cida<strong>de</strong>. As forças sócio-políticas que ocupam esse espaço também têm implicaçõesadministrativas e militares: nem os escribas, nem os exércitos ficam <strong>de</strong> la<strong>do</strong>. Os que fazem o espaço(os camponeses, os artesãos) não são os que o gerem servin<strong>do</strong>-se <strong>de</strong>le para organizar a produção e areprodução sociais, a saber, os sacer<strong>do</strong>tes, guerreiros, escribas, príncipes. Estes possuem o espaçoque outros produzem, e o apropriam <strong>de</strong>le usufruin<strong>do</strong>.126) Do espaço absoluto, religioso e político, produzi<strong>do</strong> por comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sangue, <strong>de</strong> terror, <strong>de</strong>língua, proce<strong>de</strong> o espaço relativiza<strong>do</strong>, histórico. O espaço absoluto não <strong>de</strong>saparece por isso; elepersiste como camada ou sedimento <strong>do</strong> espaço histórico, suporte <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong> representação(simbolismos religiosos, mágicos, poéticos). Um movimento dialético interno o anima, impele-o paraseu fim e, entretanto, o perpetua: o pleno e o vazio se combatem nele. A plenitu<strong>de</strong> invisível <strong>do</strong>espaço político (aquele da cité da Cida<strong>de</strong>-Esta<strong>do</strong>) se instaura no vazio <strong>de</strong> um espaço naturalsubtraí<strong>do</strong> à natureza, à maneira da “nave” ou du “vaisseau” <strong>de</strong> uma catedral. Em seguida, ahistoricida<strong>de</strong> rompe <strong>de</strong>finitivamente a naturalida<strong>de</strong> instauran<strong>do</strong>-se sobre as ruínas <strong>de</strong>ste espaço <strong>de</strong>acumulação (<strong>de</strong> todas as riquezas e recursos: os conhecimentos, as técnicas, o dinheiro, os objetospreciosos, as obras <strong>de</strong> arte e os símbolos). Dessa acumulação e sobretu<strong>do</strong> <strong>de</strong> seu perío<strong>do</strong> primitivo,on<strong>de</strong> se distinguem ainda mal a naturalida<strong>de</strong> e a historicida<strong>de</strong>, Marx <strong>de</strong>ixou a teoria, sobre a qual47


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006será preciso retornar, pois ela permanece incompleta. Um “sujeito” <strong>do</strong>mina esse perío<strong>do</strong>: a cida<strong>de</strong>histórica oci<strong>de</strong>ntal, com seu território que ela <strong>do</strong>mina. No curso <strong>de</strong>sse perío<strong>do</strong>, a ativida<strong>de</strong> produtiva(o trabalho) <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> se confundir com a reprodução que perpetua a vida social; ela se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>,mas para se tornar a presa da abstração: trabalho social abstrato, espaço abstrato.127) Esse espaço abstrato assume a seqüência <strong>do</strong> espaço histórico, que também nele persiste comosedimento e suporte, que vai se <strong>de</strong>bilitan<strong>do</strong>, <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong> representação. O espaço abstrato funciona“objetalmente” como conjunto <strong>de</strong> coisas-signos, com suas relações formais: o vidro e a pedra, ocimento e o aço, os ângulos e as curvas, os plenos e os vazios. Esse espaço formal e quantifica<strong>do</strong>nega as diferenças, as que provêm da natureza e <strong>do</strong> tempo (histórico), assim como as oriundas <strong>do</strong>corpo, ida<strong>de</strong>s, sexos, etnias. A significância <strong>de</strong> um tal conjunto remete a uma sobre-significância queescapa ao senti<strong>do</strong>: o funcionamento <strong>do</strong> capitalismo, ao mesmo tempo estilhaçante e dissimula<strong>do</strong>. Oespaço <strong>do</strong>minante, o <strong>do</strong>s centros <strong>de</strong> riqueza e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, se esforça para aprestar os espaços<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s, os das periferias. Ele reduz a si, por uma ação freqüentemente violenta, os obstáculos eresistências. Quanto às diferenças, são remetidas por sua própria conta a simbolismos que tomamobrigatoriamente a forma <strong>de</strong> uma arte ela própria abstrata. De fato, o simbólico <strong>de</strong>riva<strong>do</strong> <strong>do</strong>malconhecimento <strong>do</strong> sensível, <strong>do</strong> sensual, <strong>do</strong> sexual, malconhecimento inerente às coisas-signos <strong>do</strong>espaço abstrato, se objetiva <strong>de</strong> maneira <strong>de</strong>rivada: aura fálica <strong>de</strong> monumentos-edificações, arrogânciadas torres, autoritarismo (burocrático-político) imanente ao espaço repressivo. O que exige umaanálise aprofundada. Uma das contradições inerentes ao espaço abstrato consiste na negação <strong>do</strong>sensual e <strong>do</strong> sexual ao passo que não tem por referência senão a genitalida<strong>de</strong>: a célula familiarmoradia, apartamento, pavilhão, vivenda etc.), a paternida<strong>de</strong> e a maternida<strong>de</strong>, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> colocadaentre a fecundida<strong>de</strong> e o gozo. A reprodução das relações sociais se confun<strong>de</strong>, assim, brutalmentecom a reprodução biológica, ela mesma concebida <strong>de</strong> uma maneira tão simples quanto grosseira. Naprática espacial, a reprodução das relações sociais pre<strong>do</strong>mina. A representação <strong>do</strong> espaço, ligada aosaber como ao po<strong>de</strong>r, reserva apenas um lugar mínimo aos espaços <strong>de</strong> representação, reduzi<strong>do</strong>s àsobras, às imagens, às lembranças, on<strong>de</strong> o conteú<strong>do</strong> afasta<strong>do</strong> (sensorial, sensual, sexual) aflora apenaso simbolismo. Se a criança po<strong>de</strong> viver num tal espaço indiferente à ida<strong>de</strong> e ao sexo (ao própriotempo), o a<strong>do</strong>lescente aí sofre, pois ele não <strong>de</strong>scobre sua própria realida<strong>de</strong> nem como imagem virilou feminina, nem como imagem <strong>de</strong> gozo possível. O a<strong>do</strong>lescente que não po<strong>de</strong> enfrentar nem aarrogância <strong>do</strong>s edifícios, nem a exibição <strong>do</strong>s signos, só po<strong>de</strong> encontrar as diferenças, o natural, osensorial-sensual, o sexual e o gozo, pela revolta.128) O espaço abstrato não se <strong>de</strong>fine apenas pela <strong>de</strong>saparição das árvores, o distanciamento danatureza; e não só pelos gran<strong>de</strong>s vazios estatistas e militares, os lugares-cruzamentos, ou peloscentros comerciais on<strong>de</strong> confluem as merca<strong>do</strong>rias, o dinheiros, os veículos. Ele não se <strong>de</strong>fine48


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006partin<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> percebi<strong>do</strong>. Sua abstração nada tem <strong>de</strong> simples: ela não é transparente e não se reduznem a uma lógica, nem a uma estratégia. Sua abstração não coinci<strong>de</strong> nem com a <strong>do</strong> signo, nem coma <strong>do</strong> conceito que funciona negativamente. Esse espaço carrega a negativida<strong>de</strong> em relação ao que oprece<strong>de</strong> e o suporta: o histórico, o religioso-político. Ele funciona também negativamente em relaçãoao que nele nasce e ao que o atravessa, um espaço-tempo diferencial. Ele nada tem <strong>de</strong> um “sujeito” e,contu<strong>do</strong>, ele age como um “sujeito” veiculan<strong>do</strong> e manten<strong>do</strong> <strong>de</strong>terminadas relações sociais,dissolven<strong>do</strong> outras, opon<strong>do</strong>-se, ainda, a outras. Esse espaço abstrato funciona positivamente emrelação à suas implicações: técnicas, ciências aplicadas, saber liga<strong>do</strong> ao po<strong>de</strong>r. Ele é mesmoi<strong>de</strong>nticamente o lugar, o meio, o instrumento <strong>de</strong>ssa “positivida<strong>de</strong>”. Como é possível? Definir-se-iapela alienação reificante, o meio da merca<strong>do</strong>ria torna<strong>do</strong> ele próprio merca<strong>do</strong>ria, vendi<strong>do</strong> no ataca<strong>do</strong> eno varejo? Talvez, mas sua “negativida<strong>de</strong>” não é por isso negligenciável, e o abstrato não se reduz à“coisa absoluta”. A partir <strong>de</strong> agora, o estatuto <strong>de</strong>sse espaço abstrato aparece como altamentecomplexo. Se ele dissolve, engloban<strong>do</strong>-os, os “sujeitos” antigos, a al<strong>de</strong>ia, a cida<strong>de</strong>, ele substitui esses“sujeitos”. Ele se constitui em espaço <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, o que provoca eventualmente (possivelmente) suaprópria dissolução em razão <strong>de</strong> conflitos (contradições) que nele nascem. Haveria, portanto, opseu<strong>do</strong>-sujeito aparente, impessoal, o Se abstrato, o espaço social mo<strong>de</strong>rno – e, escondi<strong>do</strong> nele,vela<strong>do</strong> por sua transparência ilusória, o verda<strong>de</strong>iro “sujeito”, o po<strong>de</strong>r estatista (político). Nesseespaço, e sobre ele, tu<strong>do</strong> se <strong>de</strong>clara: se diz e se escreve. Enquanto há pouco a dizer, ainda menos aviver. O vivi<strong>do</strong> se esmaga. O concebi<strong>do</strong> o assalta. O histórico se vive como nostalgia, e a naturezacomo nostalgia, o horizonte para trás {perdi<strong>do</strong>}. O afetivo, com o sensorial-sensual, permanecen<strong>do</strong>aquém <strong>de</strong>sse espaço, não impregnan<strong>do</strong> nenhum simbolismo, teria, portanto, encontra<strong>do</strong> esse nomeque <strong>de</strong>signa um sujeito e sua refutação pela absurda racionalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> espaço: o inconsciente.129) A respeito <strong>de</strong>sse espaço abstrato, instrumental (portanto, manipula<strong>do</strong> por toda espécie <strong>de</strong>“autorida<strong>de</strong>s”, seu lugar e meio) ganha corpo uma interrogação cujo alcance só aparecerá mais tar<strong>de</strong>.Ela concerne ao silêncio <strong>do</strong>s usuários. Por que eles suportam sem vastas revoltas as manipulaçõesque lhes custam seus espaços, suas vidas cotidianas? Por que os protestos permanecem limita<strong>do</strong>s a“grupos esclareci<strong>do</strong>s”, portanto, elitistas, que geralmente evitam essas manipulações? Os meioselitistas, à margem <strong>do</strong>s meios políticos, fazem barulho – falatórios {palavrea<strong>do</strong>s} – sem gran<strong>de</strong>sresulta<strong>do</strong>s. Por que os protestos não ganham os parti<strong>do</strong>s políticos ditos “<strong>de</strong> esquerda”? Por que ospolíticos mais avista<strong>do</strong>s {esclareci<strong>do</strong>s} pagam caro por sua luci<strong>de</strong>z? 38 A burocracia já teria um talpeso que nada <strong>de</strong> política possa resistir a ela? Um tal fenômeno, muito surpreen<strong>de</strong>nte, mundial, <strong>de</strong>ve38Trata-se, entre outros, <strong>do</strong> PSU e <strong>de</strong> seu dirigente, M. Rocard, venci<strong>do</strong> nas eleições <strong>de</strong> 1973, na França; como também, nosEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> Mc Govern, em 1971.49


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006ter causas e razões múltiplas. Como uma também estranha indiferença po<strong>de</strong>ria se manter se a atençãoe o interesse <strong>do</strong>s “usuários” não estão <strong>de</strong>svia<strong>do</strong>s para outra coisa? Se não houvessem álibis propostosàs suas reivindicações e proposições? Se não houvesse substituição <strong>de</strong> objetos a esses objetivos,porém, essenciais? Ao espaço social substitui, talvez, uma porção ilusoriamente privilegiada <strong>de</strong>sseespaço, a parte escrituraria e imaginada, assentada em escritos (jornalismo, literatura), acentuadapela mídia, em suma, a abstração <strong>do</strong>tada <strong>de</strong> uma terrível potência redutora <strong>do</strong> “vivi<strong>do</strong>”.130) Apoia<strong>do</strong> pelo saber não crítico (positivo), sustenta<strong>do</strong> por uma capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> violênciaterrificante, manti<strong>do</strong> por uma burocracia que se apo<strong>de</strong>ra <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> capitalismo ascen<strong>de</strong>nte emseu proveito, esse espaço abstrato durará sempre? Se fosse assim, seria preciso ver nele o lugar emeio da última abjeção, a estabilida<strong>de</strong> final prevista por Hegel, o resulta<strong>do</strong> da entropia social. Contraessa abjeção, não haveria mais outro recurso a não ser os espasmos <strong>do</strong> Acéfalo (Georges Bataille). Oterreno vago seria o último recurso da vitalida<strong>de</strong> irredutível.131) Numa perspectiva menos pessimista, po<strong>de</strong>-se mostrar que o espaço abstrato contém contradiçõesespecíficas; essas contradições <strong>do</strong> espaço proce<strong>de</strong>m, em parte, <strong>de</strong> antigas contradições, oriundas <strong>do</strong>tempo histórico, modifican<strong>do</strong>-as: ora agravan<strong>do</strong>-as, ora atenuan<strong>do</strong>-as. Entre essas antigascontradições nascem novas, que eventualmente conduzem o espaço abstrato em direção a seu fim.No seio <strong>de</strong>sse espaço, a reprodução das relações sociais <strong>de</strong> produção não se consuma sem um duplomovimento: dissolução <strong>de</strong> relações, nascimento <strong>de</strong> novas relações. De mo<strong>do</strong> que o espaço abstrato,em que pese sua negativida<strong>de</strong> (ou melhor, em razão <strong>de</strong>ssa negativida<strong>de</strong>), engendra um novo espaço,que terá o nome <strong>de</strong> espaço diferencial. Por que? Porque o espaço abstrato ten<strong>de</strong> para ahomogeneida<strong>de</strong>, porque ele reduz as diferenças (particularida<strong>de</strong>s) existentes, e porque o espaço novosó po<strong>de</strong> nascer (ser produzi<strong>do</strong>) acentuan<strong>do</strong> as diferenças. Ele reunirá o que o espaço abstrato separa:as funções, os elementos e momentos da prática social. Ele acabará com as localizações que rompema unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> corpo (individual e social), <strong>do</strong> corpo <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s, <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong> conhecimento. Aocontrário, ele discernirá o que o espaço abstrato ten<strong>de</strong> a confundir, entre outras, a reprodução socialcom a genitalida<strong>de</strong>, o gozo com a fecundida<strong>de</strong> biológica, as relações sociais com as relaçõesfamiliares (enquanto uma diferenciação cada vez mais indispensável os discerne, e que o espaço <strong>do</strong>gozo, se ele se produz, não terá nada em comum com os espaços funcionais, sobretu<strong>do</strong> com o espaçoda genitalida<strong>de</strong>: as células familiares e sua disposição em caixas superpostas, os imóveis“mo<strong>de</strong>rnos”, as torres, os “conjuntos urbanos” etc.).132) I.19 Se cada socieda<strong>de</strong> produz um espaço, o seu, seguem-se ainda algumas conseqüências. Uma“existência social” que se <strong>de</strong>sejasse e se dissesse “real”, mas não produzisse seu espaço,permaneceria uma entida<strong>de</strong>, uma espécie <strong>de</strong> abstração muito particular; ela não sairia <strong>do</strong> i<strong>de</strong>ológico,até <strong>do</strong> “cultural”. Ela cairia no folclore e ce<strong>do</strong> ou tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>finharia, per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ao mesmo tempo sua50


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, sua <strong>de</strong>nominação, seu pouco <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>. O que <strong>de</strong>ixa entrever um critério, permitin<strong>do</strong>discernir o i<strong>de</strong>ológico da prática, assim como <strong>do</strong> saber (distinguir o vivi<strong>do</strong> <strong>do</strong> percebi<strong>do</strong> e <strong>do</strong>concebi<strong>do</strong>, com suas relações, oposições e disposições, esclarecimentos e ocultações).133) Sem nenhuma dúvida, a socieda<strong>de</strong> medieval (o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção feudal, suas variantes eparticularida<strong>de</strong>s locais) criou seu espaço. Ele se estabeleceu sobre o espaço anteriormenteconstituí<strong>do</strong>, conservan<strong>do</strong>-o como sedimento e suporte <strong>de</strong> símbolos; <strong>de</strong> maneira análoga, ele persiste.Castelos, monastérios, catedrais, foram os pontos fortes, fixan<strong>do</strong> na paisagem, transformada pelascomunida<strong>de</strong>s camponesas, a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> caminhos e estradas. Esse foi o espaço <strong>do</strong> “take off”, daarrancada da acumulação na Europa oci<strong>de</strong>ntal, as cida<strong>de</strong>s sen<strong>do</strong> o lugar original, o berço <strong>de</strong>ssaacumulação.134) O capitalismo e o neo-capitalismo produziram o espaço abstrato que contém o “mun<strong>do</strong> damerca<strong>do</strong>ria”, sua “lógica” e suas estratégias à escala mundial, ao mesmo tempo que a potência <strong>do</strong>dinheiro e a <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> político. Esse espaço abstrato apóia-se em enormes re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> bancos, centros<strong>de</strong> negócios, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> produção. E também no espaço das auto-estradas, <strong>do</strong>saeroportos, das re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> informação. Nesse espaço, a cida<strong>de</strong>, berço da acumulação, lugar da riqueza,sujeito da história, centro <strong>do</strong> espaço histórico, explodiu.135) O “socialismo” (isso que hoje em dia assim se chama, <strong>de</strong> uma maneira confusa; <strong>de</strong> fato, nãoexiste “socieda<strong>de</strong> comunista” e seu conceito se obscurece, a noção <strong>de</strong> “comunismo” servin<strong>do</strong>sobretu<strong>do</strong> para sustentar <strong>do</strong>is mitos solidários, o <strong>do</strong> anti-comunismo e o da revolução comunistarealizada aqui ou acolá), o socialismo <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> produziu um espaço?136) A questão tem sua importância. Uma revolução que não produz um espaço novo não vai até olimite <strong>de</strong> si própria; ela fracassa; ela não muda a vida; ela só modifica superestruturas i<strong>de</strong>ológicas,instituições, aparelhos políticos. Uma transformação revolucionária se verifica pela capacida<strong>de</strong>cria<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> obras na vida cotidiana, na linguagem, no espaço, um não acompanhan<strong>do</strong>,necessariamente, o outro, igualmente.137) Todavia, a questão não requer uma resposta precipitada. Ela merece longa reflexão e paciência.Não é impossível que o perío<strong>do</strong> revolucionário, o da alteração {transformação} intensa, coloque nolugar as condições <strong>de</strong> um novo espaço, mas que sua realização exija um tempo muito longo: umperío<strong>do</strong> <strong>de</strong> calma. A prodigiosa fermentação cria<strong>do</strong>ra da Rússia soviética, entre 1920 e 1930,fracassou na arquitetura e no urbanismo mais ainda que noutros <strong>do</strong>mínios; e os anos estéreissuce<strong>de</strong>ram os anos fecun<strong>do</strong>s. Que querem dizer esse fracasso, essa esterilização? On<strong>de</strong> se encontra,nos dias <strong>de</strong> hoje, a produção arquitetural que se po<strong>de</strong>ria qualificar <strong>de</strong> “socialista”, ou simplesmente<strong>de</strong> nova em relação às produções capitalistas. On<strong>de</strong> se encontra o urbanismo correspon<strong>de</strong>nte? EmBerlim Oriental, no ex-Stalinallée, rebatiza<strong>do</strong> Karl Marxallée {Karl-Marx-Allee}? Em Cuba? Em51


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006Moscou? Em Pequim? On<strong>de</strong> está a confrontação entre a socieda<strong>de</strong> “real” dita com ou sem razãosocialista e o projeto <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> nova segun<strong>do</strong> K. Marx e F. Engels? Como conceber e apropriar oespaço global <strong>de</strong> uma sociea<strong>de</strong> “socialista”? Em suma, on<strong>de</strong> está a prova pelo espaço, ou seja, pelaprática espacial das socieda<strong>de</strong>s que se situam num mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção “socialista”? Maisprecisamente ainda, qual relação existe entre o espaço inteiro <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> pelas relações <strong>de</strong> produção“socialistas” e o merca<strong>do</strong> mundial oriun<strong>do</strong> <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção capitalista, que pesa sobre o planetainteiro e impõe uma divisão <strong>do</strong> trabalho à essa escala, portanto, uma repartição <strong>do</strong> espaço, das forçasprodutivas nesse espaço, das fontes <strong>de</strong> riqueza e <strong>do</strong>s fluxos?138) Questões múltiplas às quais atualmente é difícil respon<strong>de</strong>r, pela falta <strong>de</strong> informações, pela falta<strong>de</strong> conhecimentos. E, entretanto, se não existe invenção arquitetural, criação <strong>de</strong> um espaçoespecífico, po<strong>de</strong>-se falar <strong>de</strong> um socialismo, ou não é necessário falar <strong>de</strong> uma transição não realizada?139) Para anunciar o que virá, po<strong>de</strong>-se a partir <strong>de</strong> agora dizer que duas direções, duas vias se abremao “socialismo”. Numa orientação, coloca-se o acento no crescimento acelera<strong>do</strong>, a qualquer preço,por razões diversas (competição, prestígio, potência). O socialismo <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> contenta-se com umaversão aperfeiçoada <strong>do</strong>s processos capitalistas <strong>de</strong> crescimento; ele reforça {acentua} pontos fortes:gran<strong>de</strong>s empresas, gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s (ao mesmo tempo enormes unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> produção e centros <strong>de</strong>po<strong>de</strong>r político). As conseqüências <strong>de</strong>sse processo, a saber, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sigual agrava<strong>do</strong>, oatraso <strong>de</strong> regiões e <strong>de</strong> camadas inteiras da população, são consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s, nessa perspectiva, comonegligenciáveis. Na segunda perspectiva, a estratégia reforça {acentua}, <strong>de</strong> início, empresaspequenas e médias, em cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> mesmo porte; ela se esforça para conduzir ao <strong>de</strong>senvolvimento oconjunto <strong>do</strong> território e <strong>do</strong> povo, sem separar o crescimento <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. A inevitávelurbanização da socieda<strong>de</strong> não se realizaria em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> setores inteiros, acentuan<strong>do</strong> as<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> crescimento e <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento; ela proce<strong>de</strong>ria superan<strong>do</strong> a oposição “cida<strong>de</strong>campo”ao invés <strong>de</strong> <strong>de</strong>gradar um pela outra num magma indiscernível.140) A luta <strong>de</strong> classes? Ela intervém na produção <strong>do</strong> espaço, produção da qual as classes, frações egrupos <strong>de</strong> classes são os agentes. A luta <strong>de</strong> classes, hoje mais que nunca, se lê no espaço. Para dizer averda<strong>de</strong>, só ela impe<strong>de</strong> que o espaço abstrato se estenda ao planeta, literalmente apagan<strong>do</strong> asdiferenças; só a luta <strong>de</strong> classes tem uma capacida<strong>de</strong> diferencial, a <strong>de</strong> produzir diferenças que nãosejam internas ao crescimento econômico consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como estratégia, “lógica” e “sistema”(diferenças induzidas ou toleradas). As formas <strong>de</strong>ssa luta são muito mais variadas que outrora. Delafazem parte, certamente, as ações políticas das minorias.52


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006141) Na primeira meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XX, as reformas agrárias e as revoluções camponesasremo<strong>de</strong>laram a superfície <strong>do</strong> planeta; uma gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>ssas modificações foi útil ao espaçoabstrato, nivelan<strong>do</strong> (e mecanizan<strong>do</strong>) 39 o espaço anterior, o <strong>do</strong>s povos e cida<strong>de</strong>s históricas. Emseguida, as guerrilhas urbanas e a intervenção das “massas” até nas cida<strong>de</strong>s prolongou essa ação,especialmente na América Latina. Em maio <strong>de</strong> 1968, na França, a ocupação e tomada <strong>de</strong> seu espaço,inicialmente pelos estudantes, em seguida pela classe operária, anunciou algo <strong>de</strong> novo nomovimento. A interrupção (momentânea, sem nenhuma dúvida) <strong>de</strong>ssa reapropriação <strong>do</strong> espaçosuscita <strong>de</strong>sesperos. Somente o trator e o coquetel Molotov po<strong>de</strong>riam modificar o espaço existente.Destruir para reconstruir? Sim, mas o quê? Refazer os mesmos produtos com os mesmos meios <strong>de</strong>produção? Destruir também os meios? Essa atitu<strong>de</strong> minimiza as contradições da socieda<strong>de</strong> e <strong>do</strong>espaço existentes; ela admite, sem prova, o fechamento <strong>do</strong> “sistema”; cobrin<strong>do</strong> esse sistema <strong>de</strong>injúrias, ela se <strong>de</strong>ixa fascinar e, impon<strong>de</strong>radamente, exalta sua potência. Um tal “esquerdismo”esquizofrênico retém em si {guarda consigo} suas próprias contradições, “inconscientes”. O apelo àespontaneida<strong>de</strong> absoluta na <strong>de</strong>struição e na construção implica também a <strong>de</strong>struição <strong>do</strong> pensamento,<strong>do</strong> saber, das capacida<strong>de</strong>s inventivas, sob pretexto <strong>de</strong> que elas não permitem, imediatamente, umarevolução total e absoluta, que não se sabe, aliás, <strong>de</strong>finir.142) É preciso reconhecer, no entanto, que a burguesia dirige sua luta pelo espaço e no espaçoconservan<strong>do</strong> a iniciativa. O que respon<strong>de</strong> à questão já colocada: a passivida<strong>de</strong>, o silêncio <strong>do</strong>s“usuários”.143) O espaço abstrato funciona <strong>de</strong> maneira altamente complexa. Ao mesmo título que o diálogo,esse espaço implica um acor<strong>do</strong> tácito, um pacto <strong>de</strong> não-agressão, um quase contrato <strong>de</strong> nãoviolência.Ou seja, <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uso partilha<strong>do</strong>. Na rua, cada passante é presumi<strong>do</strong> não atacaro que encontra; o agressor que transgri<strong>de</strong> essa lei comete um ato criminoso. Um tal espaço supõeuma “economia espacial”, solidária da economia verbal, apesar <strong>de</strong> distinta, que valoriza para aspessoas algumas relações em alguns lugares (os magazines e butiques, os cafés, os cinemas etc.) e,por conseguinte, suscita discursos conotativos a propósito <strong>de</strong>sses lugares, levan<strong>do</strong> a um “consenso” ea uma convenção: nesses locais, evita-se os aborrecimentos, propõe-se andar tranqüilamente, estarbem etc. Quanto aos discursos <strong>de</strong>notativos, isto é, <strong>de</strong>scritivos, têm um aspecto quase jurídico,também conduzin<strong>do</strong> a um consenso: não se luta para ocupar o mesmo local; <strong>de</strong>ixa-se espaçosdisponíveis, or<strong>de</strong>nan<strong>do</strong>-se, ressalvada a impossibilida<strong>de</strong>, os “proxêmios”, as distâncias respeitosas. Oque, por sua vez, exercita uma lógica e uma estratégia da proprieda<strong>de</strong> no espaço: “o que é seu não émeu, lugares e coisas”. E, não obstante, existem lugares comuns, lugares partilha<strong>do</strong>s, cuja posse e39 Aqui per<strong>de</strong>u-se a homofonia entre raboter (aplainar, nivelar) e robotiser, aqui traduzi<strong>do</strong> como mecanizar (N.T.).53


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006consumo não po<strong>de</strong>m ser inteiramente priva<strong>do</strong>s, como os cafés, as praças, os monumentos. Oconsenso espacial, aqui rapidamente <strong>de</strong>scrito, faz parte da civilização, como a interdição <strong>de</strong><strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s atos grosseiros ou ofensivos (vis-à-vis das crianças, das mulheres, <strong>do</strong>s velhos e mesmo<strong>de</strong> toda a população). Portanto, ele opõe à luta <strong>de</strong> classes, como a outras violências, um fim <strong>de</strong> nãoreceber.144) Cada espaço foi coloca<strong>do</strong> antes da chegada <strong>do</strong> ator, sujeito individual e coletivo, porque sempremembro <strong>de</strong> um grupo, <strong>de</strong> uma classe, que procura apropriar-se <strong>de</strong>sse espaço. Essa existência présupostacondiciona a presença, a ação, o discurso <strong>de</strong>sse “sujeito”, a competência e a performance: e,porém, sua presença, sua ação, seu discurso a negam, supon<strong>do</strong>-a: ele a aprova enquanto obstáculo,como objetalida<strong>de</strong> resistente, às vezes implacavelmente dura, como nos casos <strong>de</strong> muros <strong>de</strong> concreto,difíceis <strong>de</strong> modificar um pouco que seja, e como no <strong>de</strong> excesso <strong>de</strong> regulamentos draconianos queimpe<strong>de</strong>m tocá-la <strong>de</strong> uma maneira que as modifique. Portanto, uma textura <strong>do</strong> espaço não propiciatão-somente lugar a atos sociais sem lugar e sem laço com ela, mas a uma prática espacial<strong>de</strong>terminada por ela: a um uso coletivo e individual. Portanto, a um enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> atos que não sereduzem a uma prática significante, ainda que eles a envolvam. No curso <strong>de</strong>sses atos, a vida e amorte não são pensadas, nem estimuladas, tampouco ditas: acontecem. O tempo, no seio <strong>do</strong> espaço,consome, <strong>de</strong>vora o ser vivente: sacrifício, gozo ou sofrimento. Ora, o espaço abstrato, aquele daburguesia e <strong>do</strong> capitalismo, enquanto liga<strong>do</strong> à troca (<strong>de</strong> bens e merca<strong>do</strong>rias, <strong>de</strong> palavras, escritas efaladas etc.) mais que qualquer outro, implica consensos. É preciso acrescentar que nesse espaço aviolência não fica sempre latente e oculta? É uma <strong>de</strong> suas contradições: entre a segurança aparente ea violência que ameaça sem cessar explodir e, às vezes, aqui ou ali, explo<strong>de</strong>.145) A antiga luta <strong>de</strong> classes entre a burguesia e a aristocracia produziu espaços on<strong>de</strong> essa lutatransparece manifestamente. Muitas cida<strong>de</strong>s históricas foram remanejadas por esse conflito que<strong>de</strong>ixou traços e resulta<strong>do</strong>s evi<strong>de</strong>ntes como tais. A burguesia, vitoriosa politicamente, rompe o espaçoaritocrático <strong>do</strong> Marais, no centro da Paris histórica, o integra à produção material, instala-se nosedifícios suntuosos <strong>de</strong> ateliês, butiques, apartamentos; à sua maneira, ela <strong>de</strong>sfigura e vivifica esseespaço, “popularizan<strong>do</strong>-o”. Nos dias <strong>de</strong> hoje, a elitização, aburguesamento ao segun<strong>do</strong> grau, aíprossegue; a burguesia conserva a iniciativa, numa gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong> histórica. Ela a conserva a escalasmuito mais vastas. Ela começa a exportação <strong>de</strong> indústrias “poluentes” em direção aos países mal<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s: para o Brasil, na América, para a Espanha, na Europa, induzin<strong>do</strong>, assim, diferençasinternas ao mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção.146) Os arre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Mediterrâneo tornam-se espaço <strong>de</strong> lazer para a Europa industrial. Esse é umcaso notável <strong>de</strong> uma produção <strong>do</strong> espaço que prossegue por diferença interna ao mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção;espaço <strong>de</strong> lazer e mesmo num senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> não-trabalho (férias, mas também convalescenças,54


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006repousos, retiros etc.), assim os arre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Mediterrâneo entram na divisão social <strong>do</strong> trabalho; umneo-colonialismo aí se instala, econômica e socialmente, arquitetural e urbanisticamente. Às vezesesse espaço ten<strong>de</strong> a extravasar os constrangimentos <strong>do</strong> neo-capitalismo que o regem; seu uso exigequalida<strong>de</strong>s ecológicas: a imediatida<strong>de</strong> <strong>do</strong> sol e <strong>do</strong> mar, a proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong> centros urbanos e <strong>de</strong>habitações provisórias (hotéis, pavilhões). Há, portanto, uma certa especificida<strong>de</strong> qualitativa emrelação aos gran<strong>de</strong>s centros industriais on<strong>de</strong> <strong>de</strong>staca-se, em esta<strong>do</strong> puro, o quantitativo. Esse espaçopo<strong>de</strong>ria ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>, caso essa “especificida<strong>de</strong>” seja aceita sem crítica, como o espaço <strong>de</strong> uma<strong>de</strong>spesa improdutiva, <strong>de</strong> um vasto esperdício, <strong>de</strong> um sacrifício intenso e colossal <strong>de</strong> coisas, <strong>de</strong>símbolos, <strong>de</strong> energias em excesso: o esporte, o amor, a renovação, mais que o repouso. Essacentralida<strong>de</strong> quase sacrificial das cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> lazer opor-se-ia fortemente à centralida<strong>de</strong> produtiva dascida<strong>de</strong>s na Europa <strong>do</strong> Norte. O esperdício, a <strong>de</strong>spesa {o dispêndio}, <strong>de</strong>scobrir-se-iam ao final daca<strong>de</strong>ia temporal que vai <strong>do</strong>s lugares <strong>de</strong> trabalho e <strong>do</strong> espaço produtivista ao consumo <strong>do</strong> espaço, <strong>do</strong>sol e <strong>do</strong> mar, ao erotismo espontâneo ou provoca<strong>do</strong>, à Festa das férias. O esperdício e a <strong>de</strong>spesa {odispêndio} não se situariam, portanto, no início da ca<strong>de</strong>ia, como evento original, mas no fim, dan<strong>do</strong>lheseu senti<strong>do</strong>. Que ilusão! Que falsa transparência e que naturalida<strong>de</strong> enganosa! As <strong>de</strong>spesas {osdispêndios} improdutivas são organizadas zelosamente; centralizadas, or<strong>de</strong>nadas, hierarquizadas,simbolizadas, programadas elas são a<strong>de</strong>quadas ao lucro <strong>do</strong>s “tour operators”, banqueiros epromotores {empreen<strong>de</strong><strong>do</strong>res} <strong>de</strong> Londres, Hamburgo etc. Em termos mais precisos, e para retomaros conceitos já aponta<strong>do</strong>s: na prática espacial <strong>do</strong> neo-capitalismo, com os transportes aéreos, asrepresentações <strong>do</strong> espaço permitem manipular os espaços <strong>de</strong> representações (os <strong>do</strong> sol, <strong>do</strong> mar, dafesta, <strong>do</strong> esperdício e da <strong>de</strong>spesa).147) Estas notas ocorrem aqui para tornar, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já, mais concreta a noção <strong>de</strong> uma produção <strong>do</strong>espaço – e para mostrar como a luta <strong>de</strong> classes é conduzida, sob a hegemonia da burguesia.148) I.20 “Mudar a vida”, “mudar a socieda<strong>de</strong>”, isso não quer dizer nada se não há produção <strong>de</strong> umespaço apropria<strong>do</strong>. Dos construtivistas soviéticos, entre 1920 e 1930, e <strong>de</strong> seu fracasso, persiste esseensinamento: à relações sociais novas, espaço novo. E reciprocamente. Essa proposição, implicadana proposição fundamental, merecerá um longo <strong>de</strong>senvolvimento. “Mudar a vida!” Vinda <strong>do</strong>s poetase filósofos, formulada como utopia negativa, essa idéia logo cai no <strong>do</strong>mínio público, ou seja,político. Ela se difun<strong>de</strong> <strong>de</strong>gradan<strong>do</strong>-se em palavras <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m políticas. “Viver melhor...” “Viver <strong>de</strong>outro mo<strong>do</strong>” “A qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida...” “O quadro <strong>de</strong> vida...” Daí, passa-se naturalmente às poluições,ao respeito à natureza, ao “meio ambiente”. E trata-se <strong>de</strong> um engano {um truque}: escamoteadas, apressão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> mundial, a transformação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, a produção <strong>de</strong> um novo espaço. A idéiarecai na i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong>, ao passo que se trata <strong>de</strong> conduzir ao dia {<strong>de</strong>spontar, alvorecer}, gradualmente oupor saltos, uma prática espacial diferente. O projeto <strong>de</strong> “mudar a vida” permanecerá um slogan55


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006político, ora aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>, ora retoma<strong>do</strong>, enquanto persistir a cotidianeida<strong>de</strong> no espaço abstrato comseus constrangimentos muito concretos, enquanto houver tão-somente melhorias técnicas <strong>de</strong> varejo(horários <strong>do</strong>s transportes, rapi<strong>de</strong>z, conforto relativo), enquanto os espaços (<strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> lazer, <strong>de</strong>habitação) permanecerem separa<strong>do</strong>s e reuni<strong>do</strong>s apenas pela instância política e seu controle.149) Nessa situação, o pensamento teórico se <strong>de</strong>bate, buscan<strong>do</strong>, com dificulda<strong>de</strong>s, contornar osobstáculos. De um la<strong>do</strong>, ele percebe o abismo <strong>de</strong> utopias negativas, a presunção da teoria crítica,eficaz apenas no plano das palavras e representações (i<strong>de</strong>ológicas); <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong>, ele se choca comutopias tecnológicas, altamente positivas: prospectiva e programação. Ele só po<strong>de</strong> constatar aaplicação, ao espaço (portanto, às relações sociais existentes), da cibernética, da eletrônica, dainformática, para daí tentar tirar alguns ensinamentos.150) A via aqui indicada se liga, portanto, a uma hipótese estratégica, isto é, a um projeto teórico eprático a longo prazo. Projeto político? Sim e não. Ele envolve uma política <strong>do</strong> espaço, mas vai maislonge que a política e supõe uma análise crítica <strong>de</strong> toda política espacial e <strong>de</strong> toda política geral.Indican<strong>do</strong> a via para produzir um outro espaço, o <strong>de</strong> uma vida (social) outra, e <strong>de</strong> um outro mo<strong>do</strong> <strong>de</strong>produção, o projeto transpõe o intervalo entre ciência e utopia, entre realida<strong>de</strong> e i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong>, entre oconcebi<strong>do</strong> e o vivi<strong>do</strong>. Ele ten<strong>de</strong> a superar sua oposição exploran<strong>do</strong> a relação dialética: “possívelimpossível”,objetiva e subjetivamente.151) O papel da hipótese estratégica no conhecimento não é mais o <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar. Ela centra oconhecimento em torno <strong>de</strong>ste ou daquele ponto, <strong>de</strong>ste ou daquele núcleo, <strong>de</strong> tal conceito ougrupamento <strong>de</strong> conceitos toma<strong>do</strong>s focalmente. A estratégia tem êxito ou não; ela tem mais ou menosmuito tempo, <strong>de</strong>pois se dissolve ou se cin<strong>de</strong>. Relativamente durável em relação às operações táticasno conhecimento e na ação, ela permanece necessariamente momentânea, por isso, revisável. Elaexorta, mas não visa nenhuma verda<strong>de</strong> eterna. O jogo estratégico, ce<strong>do</strong> ou tar<strong>de</strong>, se vê frustra<strong>do</strong>.Então, o <strong>de</strong>scentramento abala o que foi construí<strong>do</strong> em torno <strong>de</strong> um centro.152) Recentemente, várias operações táticas e estratégicas foram lançadas, visan<strong>do</strong> o estabelecimento(o establishment, po<strong>de</strong>r-se-ia ironizar) <strong>de</strong> uma fortaleza inexpugnável <strong>do</strong> saber. Ingênuos e astutos,certos cientistas exprimiram sua fé em sua cientificida<strong>de</strong>, colocan<strong>do</strong> entre parênteses as questões quea própria cientificida<strong>de</strong> coloca: o prima<strong>do</strong> atribuí<strong>do</strong> ao sabi<strong>do</strong> e ao visto sobre o vivi<strong>do</strong>. A maisrecente operação estratégica tenta centrar o saber na lingüística e nas disciplinas <strong>de</strong>rivadas:semântica, semiologia, semiótica. Ela suce<strong>de</strong> a outras tentativas que centraram o saber em torno daeconomia política, da história, da sociologia etc.153) Essa recente hipótese suscitou um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> pesquisas, trabalhos e obras, algumas <strong>de</strong>primeiro plano, outras superestimadas ou subestimadas, a hierarquia sempre revisável, não ten<strong>do</strong>, elaprópria, nada <strong>de</strong> eterno. Ao passo que visava a construção <strong>de</strong> um centro <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> e <strong>de</strong>finitivo, essa56


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006certeza se abala. De <strong>de</strong>ntro e <strong>de</strong> fora. Por <strong>de</strong>ntro, ela suscita interrogações às quais não po<strong>de</strong>respon<strong>de</strong>r: a questão <strong>do</strong> sujeito, por exemplo. O estu<strong>do</strong> sistemático da linguagem e/ou o estu<strong>do</strong> dalinguagem como sistema, <strong>de</strong>struíram o “sujeito” em todas as acepções <strong>do</strong> termo. E eis que opensamento reflexionante {que reflete} apanha os estilhaços <strong>de</strong> seu espelho: é preciso um “sujeito” erecorre-se aos velhos “sujeitos” <strong>do</strong>s filósofos: o Cogito cartesiano (retoma<strong>do</strong> por Chomsky, com suassingulares proprieda<strong>de</strong>s; a unicida<strong>de</strong> das estruturas profundas <strong>do</strong> discurso, a generalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seucampo <strong>de</strong> consciência), ou o Ego husserliano, visão mo<strong>de</strong>rnizada <strong>do</strong> Cogito cartesiano. Mas esseCogito não po<strong>de</strong> manter sua substancialida<strong>de</strong> filosófica (meta-física), sobretu<strong>do</strong> se se tentaconfrontá-lo com o inconsciente inventa<strong>do</strong> para <strong>de</strong>le escapar.154) É aqui que uma indicação anterior assume seu alcance. Nessa hipótese, acorda-se generosamenteo espaço social e físico. Reduz-se-o ao espaço epistemológico (mental), o <strong>do</strong> discurso, o <strong>do</strong> Cogitocartesiano. Esquece-se que o “eu” prático, indivisivelmente individual e social, encontra-se numespaço on<strong>de</strong> ele se reconhece, a menos que ele aí não se engane. Saltan<strong>do</strong> inconsi<strong>de</strong>radamente <strong>do</strong>mental ao social e inversamente, transfere-se ao discurso (e particularmente ao discurso sobre oespaço) as proprieda<strong>de</strong>s <strong>do</strong> espaço como tal. É verda<strong>de</strong> que se busca uma mediação entre o mental eo social no corpo: a voz, os gestos. Mas esse corpo abstrato, toma<strong>do</strong> isoladamente como mediaçãoentre o “sujeito” e o “objeto”, correspon<strong>de</strong> ao corpo prático e carnal, toma<strong>do</strong> como totalida<strong>de</strong> comsuas qualida<strong>de</strong>s espaciais (simetrias e dissimetrias), com suas proprieda<strong>de</strong>s energéticas (<strong>de</strong>spesas,economias e esperdícios)? Mostrar-se-á mais adiante que basta consi<strong>de</strong>rar o corpo total (práticosensível)para centrar <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong> o conhecimento, para provocar um <strong>de</strong>slocamento <strong>do</strong> centro.155) A estratégia <strong>do</strong> saber centra<strong>do</strong> em torno <strong>do</strong> discurso elu<strong>de</strong> um questionamento escabroso entreto<strong>do</strong>s: a relação <strong>do</strong> saber e <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r. Além disso, ela não respon<strong>de</strong> <strong>de</strong> maneira satisfatória para opensamento reflexionante {que reflete} ao problema teórico que ela levanta: “os conjuntos,codifica<strong>do</strong>s ou não, sistematiza<strong>do</strong>s ou não, <strong>de</strong> signos e símbolos não verbais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m das mesmascategorias que os conjuntos verbais, ou então lhes são irredutíveis?” Entre os conjuntos significantesnão verbais, <strong>de</strong>ve-se colocar a música, a pintura e a escultura, a arquitetura, o teatro sem dúvida,porque ele comporta, ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> um texto ou pretexto, gestos, máscaras, costumes, uma cena, umamise en scène, em suma, um espaço. Os conjuntos não verbais caracterizam-se, portanto, por umaespacialida<strong>de</strong> irredutível à “mentalida<strong>de</strong>”. Num senti<strong>do</strong>, as paisagens, rurais e urbanas, fazem parte.Subestimar o espaço, negligenciá-lo, reduzi-lo, equivale a superestimar os textos, os escritos eescrituras, o legível e o visível, reduzin<strong>do</strong> o inteligível a eles.156) A hipótese estratégica aqui colocada apresenta-se como segue: “As questões teóricas e práticasrelativas ao espaço ganham uma importância cada vez mais forte. Elas não suprimem, mas <strong>de</strong>slocamos conceitos e problemas concernentes à reprodução biológica, à reprodução <strong>do</strong>s meios <strong>de</strong> produção57


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006e <strong>do</strong>s bens <strong>de</strong> consumo.”. Um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção não <strong>de</strong>saparece antes <strong>de</strong> ter libera<strong>do</strong> as forçasprodutivas e realiza<strong>do</strong> todas as virtualida<strong>de</strong>s que ele contém, escreveu Marx. Afirmação que se po<strong>de</strong>tratar tanto como uma evidência, quanto como um surpreen<strong>de</strong>nte para<strong>do</strong>xo. Um salto adiante dasforças produtivas – realiza<strong>do</strong> sem que as relações capitalistas <strong>de</strong> produção tenham <strong>de</strong>sapareci<strong>do</strong> –substitui, ou melhor, sobrepõe à produção <strong>de</strong> coisas no espaço a produção <strong>do</strong> espaço. Estaacompanha, ao menos em alguns casos observáveis e analisáveis, a pressão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> mundial e areprodução das relações <strong>de</strong> produção capitalistas. A burguesia, <strong>de</strong>spoticamente esclarecida, e ocapitalismo <strong>do</strong>minaram parcialmente o merca<strong>do</strong> das merca<strong>do</strong>rias, servin<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> espaço abstratocomo instrumento. O <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> capitais se revela mais difícil (dificulda<strong>de</strong>s ditas“monetárias”). De uma <strong>do</strong>minação política muito forte, <strong>de</strong> um impulso das forças produtivas e <strong>de</strong> um<strong>do</strong>mínio insuficiente <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s, resulta um caos espacial a todas as escalas, da ilhota <strong>de</strong>vizinhança ao planeta. A burguesia e o capitalismo têm, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> agora, muita dificulda<strong>de</strong> para <strong>do</strong>minarseu produto e seu meio <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação: o espaço. Eles não po<strong>de</strong>m reduzir a prática (o práticosensível,o corpo, e a prática sócio-espacial) ao seu espaço abstrato. Contradições novas, as <strong>do</strong>espaço, surgem e se manifestam. O caos espacial engendra<strong>do</strong> pelo capitalismo, apesar da potência eda racionalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, não tornam seu setor frágil, seu corpo vulnerável?157) Essa hipótese estratégica po<strong>de</strong> influenciar ou suplantar as estratégias políticas geralmenteadmitidas, a saber, a revolução mundial realizada politicamente por um e único parti<strong>do</strong>, por um eúnico país, por uma e única <strong>do</strong>utrina, por uma e única classe, numa única palavra: por um e únicocentro? O fracasso da hipótese monocêntrica fez surgir, cada um se lembra, uma outra hipóteseestratégica, a <strong>de</strong> uma transformação realizada pelo terceiro-mun<strong>do</strong>.158) A bem da verda<strong>de</strong>, não po<strong>de</strong> se tratar nem <strong>de</strong> substituir <strong>do</strong>gmaticamente uma <strong>de</strong>ssas hipótesespor uma outra, nem <strong>de</strong> ultrapassar, pura e simplesmente, a oposição entre “monocentrismo” e“policentrismo”. A transformação mundial dita, <strong>de</strong> uma palavra passada pelos costumes {pelamoral}, “revolução” se revela verda<strong>de</strong>iramente mundial (planetária) 40 , portanto, múltipla emultiforme. Certamente, ela também se realiza no plano teórico, como no plano político, o teóricoatravessan<strong>do</strong> o político. Ela se persegue com a técnica como no conhecimento e na prática. Aqui, oscamponeses foram e permanecem o elemento principal, ativo e/ou passivo. Aqui, marginais, ou aclasse operária avançada, com opiniões surpreen<strong>de</strong>ntes. Aqui, a transformação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ganha umaaura precipitada, violenta, e ali ela se persegue em profundida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> maneira aparentementetranqüila, ou pacificada. Aqui, uma classe <strong>do</strong>minante <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>, e ali ela voa em pedaços.40O que não a reduz ao “jogo <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”, concebi<strong>do</strong> por K. Axelos no curso <strong>de</strong> sua longa meditação filosófica, na linhaheracliteana.58


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006159) A hipótese estratégica concernente ao espaço não exclui nem o papel <strong>do</strong>s países ditos “sub<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s”,nem o <strong>do</strong>s países industriais e <strong>de</strong> sua classe operária. Ao contrário: ela coloca, emprincípio e como objetivo, a reunião <strong>de</strong> aspectos dissocia<strong>do</strong>s, a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> movimentos e elementossepara<strong>do</strong>s. Buscan<strong>do</strong> conceber a experiência mundial como tal – como conjunto <strong>de</strong> provas diferentes<strong>do</strong> espaço mundial – a hipótese se pronuncia contra a homogeneização pelo Esta<strong>do</strong>, pelo po<strong>de</strong>rpolítico, pelo merca<strong>do</strong> mundial e o mun<strong>do</strong> da merca<strong>do</strong>ria, homogeneização que se traduzpraticamente pelo e no espaço abstrato. A hipótese implica a tomada a cargo <strong>de</strong> diferenças, aíincluídas as oriundas da natureza e que acentua isoladamente a ecologia (regimes, países, sítios,etnias, recursos etc.).160) Será necessário provar longamente que o “direito à diferença” só tem senti<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> lutasreais para diferir, que as diferenças produzidas no curso <strong>de</strong>ssas lutas teóricas e práticas diferem, elaspróprias, das particularida<strong>de</strong>s naturais e das distinções induzidas no interior <strong>do</strong> espaço abstratoexistente? Sim. As diferenças que merecem ser retidas, no reforço {fortalecimento} das quais ateoria e a ação po<strong>de</strong>m ???, só uma análise fina po<strong>de</strong> mostrar.161) Restituir um “código” <strong>do</strong> espaço, ou seja, uma linguagem comum à prática e à teoria, aoshabitantes, aos arquitetos, aos científicos {cientistas}, po<strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar taticamente como umatarefa imediata. Um tal código reapreen<strong>de</strong>ria, inicialmente, a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> elementos dissocia<strong>do</strong>s: opriva<strong>do</strong> e o público, o encontro e a diferença no espaço. Ele reuniria os termos dispersa<strong>do</strong>s pelaprática espacial existente e pelas i<strong>de</strong>ologias que a justificam: o micro (a escala ou nível arquitetural)e o macro (atribuí<strong>do</strong> aos urbanistas, aos políticos, aos planifica<strong>do</strong>res), o cotidiano e o urbano, o<strong>de</strong>ntro e o fora {o interior e o exterior}, o trabalho e o não-trabalho (a festa), o durável e o efêmeroetc. O código compor-se-ia, assim, <strong>de</strong> oposições pertinentes (paradigmáticas), retomadas <strong>de</strong> termosconfundi<strong>do</strong>s na homogeneida<strong>de</strong> <strong>do</strong> espaço politicamente controla<strong>do</strong>. Nesse senti<strong>do</strong>, ele contribuiriapara inverter a tendência <strong>do</strong>minante e inserir-se-ia no projeto. Sob condição <strong>de</strong> não consi<strong>de</strong>rar ocódigo uma prática! Sob condição, por conseguinte, <strong>de</strong> não separar da prática e das alterações{modificações} da prática (<strong>do</strong> processo mundial <strong>de</strong> transformação) a pesquisa concernente àlinguagem...162) Essa elaboração implica, ela mesma, um esforço para trabalhar no paradigmático, ou seja, nasoposições essenciais, ocultas, implícitas, não-ditas, que orientam uma prática social, mais quetrabalhar nas ligações explícitas, no enca<strong>de</strong>amento operatório <strong>de</strong> termos, numa palavra, nossintagmas (a linguagem, o discurso usual, a escrita, a leitura, a literatura etc.).163) Um tal código tem uma relação com um saber. Ele agrupa um alfabeto, um léxico, umagramática, num quadro (se se po<strong>de</strong> dizer) global; ele se situa sem o excluir em relação ao não-saber(ignorância ou malconhecimento), isto é, em relação ao vivi<strong>do</strong> e ao percebi<strong>do</strong>. Um tal conhecimento59


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006sabe-se aproximativo, ao mesmo tempo certo e incerto. Ele se relativiza a cada passo, proce<strong>de</strong>n<strong>do</strong>(ou tentan<strong>do</strong> proce<strong>de</strong>r) à sua autocrítica, sem por isso se dissolver na apologia <strong>do</strong> não-saber, daespontaneida<strong>de</strong> absoluta ou da violência pura. Ele passa entre o <strong>do</strong>gmatismo e o malconhecimento.164) I. 21 A démarche aqui perseguida po<strong>de</strong> se dizer “regressiva-progressiva”. Ela toma,inicialmente, o que acontece nos dias <strong>de</strong> hoje: o avanço das forças produtivas, a capacida<strong>de</strong> técnica ecientífica <strong>de</strong> transformar o espaço natural tão radicalmente quanto a <strong>de</strong> ameaçar a própria natureza.Os efeitos <strong>de</strong>ssa potência <strong>de</strong>strutiva e construtiva se constatam por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. Eles se conjugamcom as pressões <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> mundial <strong>de</strong> uma maneira freqüentemente inquietante. Decerto, noquadro global, a lei leninista da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> joga {pesa} muito; certos países encontram-se noinício da produção <strong>de</strong> coisas (bens) no espaço e somente os países os mais industriais e os maisurbaniza<strong>do</strong>s utilizam as novas possibilida<strong>de</strong>s das técnicas e <strong>do</strong>s conhecimentos. A produção <strong>do</strong>espaço, elevada ao conceito e à linguagem, reage sobre o passa<strong>do</strong>, aí revela aspectos e momentosmalconheci<strong>do</strong>s. O passa<strong>do</strong> se esclarece <strong>de</strong> uma maneira diferente; e, por conseguinte, o processo quevai <strong>de</strong>sse passa<strong>do</strong> ao atual se expõe também diferentemente.165) Essa démarche é a que Marx propôs no seu principal texto “meto<strong>do</strong>lógico”. As categorias(conceitos) que exprimem as relações sociais na socieda<strong>de</strong> a mais <strong>de</strong>senvolvida, a socieda<strong>de</strong>burguesa, “permitem ao mesmo tempo apreen<strong>de</strong>r a estrutura e as relações <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> todas associeda<strong>de</strong>s passadas, não apenas porque subsistem vestígios, mas porque algumas virtualida<strong>de</strong>s(possibilida<strong>de</strong>s), <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong>-se, tomam to<strong>do</strong> senti<strong>do</strong>.” 41166) À primeira vista para<strong>do</strong>xal, essa démarche rapidamente se aproxima <strong>do</strong> bom senti<strong>do</strong>: comocompreen<strong>de</strong>r uma gênese, a <strong>do</strong> presente, e suas condições, e seu processo, sem partir <strong>de</strong>ssa presente,sem ir <strong>do</strong> atual ao passa<strong>do</strong> e inversamente? Não seria a démarche inevitável <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r, <strong>do</strong>economista, <strong>do</strong> sociólogo, por isso que esses especialistas tenham uma meto<strong>do</strong>logia?...167) Claro e preciso na sua formulação e na sua aplicação, o méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> Marx não vai semdificulda<strong>de</strong>s. Que se percebem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a aplicação que Marx faz <strong>de</strong> seu méto<strong>do</strong> ao conceito e àrealida<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalho. A principal dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> que na exposição, como na pesquisa,entrelaçam-se os <strong>do</strong>is movimentos. Quan<strong>do</strong>, então, a parte “regressiva” sempre ameaça invadir aparte “progressiva”, interrompê-la ou a obscurecer. O começo se encontra no fim, e o fim seapresenta <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início. O que acrescenta uma complexida<strong>de</strong> suplementar à iluminação das41 Cf. Grundrisse, Introduction, trad. Dangeville, Éd. Anthropos, p.35 et seq. Esta é a ocasião <strong>de</strong> assinalar alguns equívocos <strong>do</strong>Panorama <strong>de</strong>s sciences sociales. Ele atribui esse méto<strong>do</strong> a J. P. Sartre. Ora, no texto on<strong>de</strong> este último expõe seu méto<strong>do</strong>, elecita sua fonte, a saber, H. Lefebvre, Perspectives, in Cahiers Internationaux <strong>de</strong> sociologie, 1953, artigo reproduzi<strong>do</strong> em Durural à l’Urbain, Anthropos, 1970. Cf. <strong>de</strong> J. P. Sartre, Critique <strong>de</strong> la raison dialectique, p.41 e 42, e Panorama, p.89 et seq. Areflexão <strong>de</strong>sta última obra é, portanto, duplamente insuficiente, posto que o caminho traça<strong>do</strong> não é outro, senão o <strong>do</strong>pensamento marxista.60


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006contradições que levam adiante e, conseqüentemente, segun<strong>do</strong> Marx, em direção a seu fim to<strong>do</strong>processo histórico.168) Tal é, então, a dificulda<strong>de</strong> enfrentada aqui. Um conceito novo, a produção <strong>do</strong> espaço, se<strong>de</strong>scobre no início; ele <strong>de</strong>ve “operar”, ou, como se diz às vezes, “trabalhar” esclarecen<strong>do</strong> processos<strong>do</strong>s quais ele não po<strong>de</strong> se separar porque <strong>de</strong>les se origina. É preciso, portanto, servir-se <strong>de</strong>le<strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>-o se <strong>de</strong>senvolver, sem por isso admitir, à maneira <strong>do</strong>s hegelianos, a vida e a força próprias<strong>do</strong> conceito, a realida<strong>de</strong> autônoma <strong>do</strong> saber. Ao final, após ter esclareci<strong>do</strong> verifican<strong>do</strong>-se sua própriaformação, a produção <strong>do</strong> espaço (conceito teórico e realida<strong>de</strong> prática indissoluvelmente liga<strong>do</strong>s)explicitar-se-á e isso será a <strong>de</strong>monstração: uma verda<strong>de</strong> “em si e para si”, realizada e, contu<strong>do</strong>,relativa.169) A dialetização <strong>do</strong> próprio méto<strong>do</strong> se persegue, assim, sem que a lógica e a coerência tenham quesofrer. Não obstante, há riscos <strong>de</strong> obscurida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> repetições. Marx nem sempre as evitou. Ele asconhecia. A tal ponto que a exposição d’O capital não segue exatamente o méto<strong>do</strong> promulga<strong>do</strong> nosGrundrisse. A gran<strong>de</strong> exposição <strong>do</strong>utrinal parte <strong>de</strong> uma forma, a <strong>do</strong> valor <strong>de</strong> troca, e não <strong>de</strong>conceitos postos no primeiro plano na obra anterior: a produção e o trabalho. A démarche anunciadanos Grundrisse se reencontra a propósito da acumulação <strong>do</strong> capital: Marx mantinha suas proposiçõesmeto<strong>do</strong>lógicas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quan<strong>do</strong> estudava na Inglaterra o capitalismo o mais avança<strong>do</strong>, paracompreen<strong>de</strong>r os outros países e o próprio processo <strong>de</strong> formação <strong>do</strong> capitalismo.61


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006II. O ESPAÇO ESPAÇO SOCIAL170) II.1 O projeto <strong>de</strong>manda um exame muito atento <strong>de</strong> seus termos e noções: a produção <strong>do</strong> espaço.Aprofundamento tão necessário que nem um, nem outro são elucida<strong>do</strong>s.171) No hegelianismo, a produção tem uma importância <strong>de</strong>terminante. A Idéia (absoluta) produz omun<strong>do</strong>; <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> que, a natureza produz o ser humano o qual, por sua vez, produz, por suas lutas eseu trabalho, às vezes a história, o conhecimento e a consciência <strong>de</strong> si, portanto, o Espírito quereproduz a Idéia inicial e final.172) Em Marx e Engels, o conceito <strong>de</strong> “produção” não sai da ambigüida<strong>de</strong>, que faz sua riqueza. Elepossui duas acepções, uma muito ampla, a outra restrita e precisa. Na acepção ampla, os homensenquanto seres sociais produzem sua vida, sua história, sua consciência, seu mun<strong>do</strong>. Nada há nahistória e na socieda<strong>de</strong> que não seja adquiri<strong>do</strong> e produzi<strong>do</strong>. A “natureza”, ela mesma, tal como seapresenta na vida social aos órgãos <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, foi modificada, portanto, produzida. Os sereshumanos produziram formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas, filosóficas, i<strong>de</strong>ológicas. Aprodução no senti<strong>do</strong> amplo abrange então obras múltiplas, formas diversas, mesmo se essas formasnão trazem a marca <strong>do</strong>s produtores e da produção (como a forma lógica, aquela da abstração quepassa facilmente por intemporal e não-produzida, ou seja, metafísica).62


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006173) Nem Marx, nem Engels <strong>de</strong>ixaram o conceito da produção in<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>. Eles ocircunscreveram, mas então não se trata mais <strong>de</strong> obras no senti<strong>do</strong> amplo; o conceito se refere apenasa coisas: produtos. Ao precisá-lo, o conceito se aproxima da acepção corrente, portanto banal, a <strong>do</strong>seconomistas. Quem produz? Como? Quanto mais a acepção se precisa, menos se trata <strong>de</strong> umaquestão da capacida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra, da invenção, da imaginação, mas somente <strong>do</strong> trabalho. “Um imensoprogresso foi realiza<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> Adam Smith rejeita toda forma particular da ativida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra <strong>de</strong>riqueza, para consi<strong>de</strong>rar apenas o trabalho simplesmente… A essa universalida<strong>de</strong> da ativida<strong>de</strong>cria<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> riqueza correspon<strong>de</strong> a universalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> objeto, o produto simplesmente, e também otrabalho em geral…” 42 . A produção, o produto, o trabalho, conceitos que emergem simultaneamentee permitem fundar a economia política, constituem abstrações privilegiadas, abstrações concretas:elas permitem analisar as relações <strong>de</strong> produção. Quanto ao conceito <strong>de</strong> produção, ele só se tornaplenamente concreto e recebe seu conteú<strong>do</strong> com a resposta às questões que ele permite colocar:“Quem produz? O que? Como? Por que e para quem?” Fora <strong>de</strong>stas questões e <strong>de</strong> sua resposta, oconceito permanece uma abstração. Em Marx e em Engels, o conceito não se forma nunca. Somente,muito mais tar<strong>de</strong>, o economismo tentará circunscrever o conceito na acepção a mais estreita. “O fatorque <strong>de</strong>termina em última instância a história é a produção e a reprodução da vida real”, escreveEngels a Bloch, em 20 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1890. Frase <strong>do</strong>gmática e vaga: a produção engloba areprodução biológica, econômica, social, sem outra precisão.174) Segun<strong>do</strong> Marx e Engels, quais são as forças produtivas? A natureza, primeiramente, em seguidao trabalho, portanto a organização (a divisão) <strong>do</strong> trabalho, por conseguinte também os instrumentosemprega<strong>do</strong>s, as técnicas, portanto os conhecimentos.175) A gran<strong>de</strong> abertura <strong>do</strong> conceito permitiu interpretações que o ampliaram <strong>de</strong> tal mo<strong>do</strong> que eleper<strong>de</strong>u to<strong>do</strong> o seu contorno. Produção <strong>de</strong> conhecimentos, <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias, <strong>de</strong> escritura e <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>imagens, <strong>de</strong> discursos, <strong>de</strong> linguagem, <strong>de</strong> signos e símbolos - trabalho <strong>do</strong> sonho, trabalho <strong>de</strong> conceitos“operatórios” etc. - esses conceitos tomaram uma extensão tal, que sua compreensão se diluiu. Tantoque os promotores <strong>de</strong>ssas extensões utilizam abusivamente a conduta que Marx e Engelsempregaram ingenuamente: beneficiar a acepção ampla, portanto filosófica, da positivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umaacepção estreita, científica (econômica).176) Uma retomada <strong>de</strong>sses conceitos parece, então, bastante indicada para os revalorizar e osdialetizar, <strong>de</strong>terminan<strong>do</strong> com um certo rigor a relação: “produção-produto”, assim como as relações:“obra-produto” e “natureza-produção”. Para resumir o que se seguirá, digamos imediatamente que aobra tem algo <strong>de</strong> insubstituível e <strong>de</strong> único, enquanto o produto po<strong>de</strong> se repetir e resulta <strong>de</strong> gestos e42 Cf. Grundrisse, Introdução, p. 32.63


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006atos repetitivos. A natureza cria e não produz; ela oferece recursos a uma ativida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra eprodutiva <strong>do</strong> homem social; mas ela fornece valores <strong>de</strong> uso e to<strong>do</strong> valor <strong>de</strong> uso (to<strong>do</strong> produtoenquanto ele não é trocável) retorna à natureza ou assume a função <strong>de</strong> bem natural. Evi<strong>de</strong>ntemente, aterra e a natureza não se separam.177) A natureza produz? É o senti<strong>do</strong> inicial da palavra: conduz e leva adiante, faz sair daprofundida<strong>de</strong>. No entanto, a natureza não trabalha; e é mesmo um traço que a caracteriza: ela cria. Oque ela cria (a saber: “seres” distintos), surge e aparece. Ela os ignora (se não se supõe, na natureza,um <strong>de</strong>us calcula<strong>do</strong>r, uma providência). Uma árvore, uma flor, um fruto não são “produtos”, mesmonum jardim. A rosa não tem razão <strong>de</strong> ser, ela floresce porque floresce. “Não se preocupa em servista” (Angelus Silesius). Ela não sabe que é bela, cheirosa, que apresenta uma simetria <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m netc. Como não seguir ou retomar estas questões? A “natureza” não po<strong>de</strong> operar seguin<strong>do</strong> a mesmafinalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ser humano. O que ela cria, estes “seres”, são obras: eles são “alguma coisa” <strong>de</strong> único,embora pertencen<strong>do</strong> a um gênero e a espécies: esta árvore, esta rosa, este cavalo. A natureza seapresenta como o vasto terreno <strong>de</strong> nascimentos. As “coisas” nascem, crescem e morrem; elasenvelhecem e morrem. Um infinito se escon<strong>de</strong> sob estes termos. Violenta, generosa, avara,abundante, sempre aberta, a natureza se mostra [<strong>de</strong>sabrocha]. O espaço-natureza não é um cenário.Por que? Não há porque. A flor não sabe que é flor. Nem a morte que morre. O essencial se passa emprofundida<strong>de</strong> se se acredita na palavra “natureza”, com seu antigo prestígio metafísico e teológico.Quem diz “natureza” afirma espontaneida<strong>de</strong>. Todavia a natureza se distancia; é o mínimo que sepo<strong>de</strong> dizer. Sem dúvida, <strong>de</strong>ve-se ir até a idéia <strong>de</strong> uma morte da natureza pela antinatureza: aabstração, os signos e imagens, o discurso, mas também o trabalho e seus produtos. Com Deus, anatureza morre. O “homem” a mata e talvez se suici<strong>de</strong> imediatamente.178) “O homem”, ou seja, a prática social cria obras e produz coisas. Nos <strong>do</strong>is casos, necessita-se <strong>de</strong>trabalho, mas no que se refere à obra, o papel <strong>do</strong> trabalho (e <strong>do</strong> cria<strong>do</strong>r enquanto trabalha<strong>do</strong>r) parecesecundário, pois ele <strong>do</strong>mina a fabricação <strong>de</strong> produtos.179) Ao precisar o conceito filosófico (hegeliano) <strong>de</strong> produção, recorren<strong>do</strong> aos economistas e àeconomia política, Marx <strong>de</strong>sejou <strong>de</strong>stacar uma racionalida<strong>de</strong> imanente ao conceito e ao seuconteú<strong>do</strong>: a ativida<strong>de</strong>. Essa racionalida<strong>de</strong> o dispensa <strong>de</strong> se referir a uma razão preexistente, divina ou“i<strong>de</strong>al”, logo teológico-metafísica. Ela não acrescenta nele uma atenção a uma finalida<strong>de</strong> ulterior eposterior à ação produtora que orientaria essa ação. A produção no senti<strong>do</strong> marxista ultrapassa aoposição filosófica <strong>do</strong> “sujeito” e <strong>do</strong> “objeto”, bem como as relações construídas pelos filósofos apartir <strong>de</strong>sta separação. Em que consiste a racionalida<strong>de</strong> imanente à produção? Naquilo em que eladispõe, em vista <strong>de</strong> um certo “objetivo” (o objeto a produzir) uma seqüência <strong>de</strong> atos que se suce<strong>de</strong>m.Ela compõe temporal e espacialmente uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> operações que se enca<strong>de</strong>iam e cujos resulta<strong>do</strong>s64


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006coexistem. Des<strong>de</strong> o início da ativida<strong>de</strong> orientada para um tal objetivo, elementos espaciais (o corpo,os membros, os olhos) se colocam em movimento, incluin<strong>do</strong> matérias (pedra, ma<strong>de</strong>ira, osso, couroetc.) e material (instrumentos, armas, linguagem, coman<strong>do</strong>s e palavras <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m). Relações <strong>de</strong>or<strong>de</strong>m, portanto <strong>de</strong> simultaneida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> sincronismo, se estabelecem pelo intelecto ativo entre oselementos da ação materialmente perseguida. Mais que invariâncias ou constâncias, essa passagemincessante da temporalida<strong>de</strong> (sucessão, enca<strong>de</strong>amento) à espacialida<strong>de</strong> (simultaneida<strong>de</strong>,sincronização) <strong>de</strong>fine toda ação produtora. Esta forma é inseparável da finalida<strong>de</strong>, portanto dafuncionalida<strong>de</strong> (fim e senti<strong>do</strong> da ação, energia dispensada para a satisfação <strong>de</strong> uma “necessida<strong>de</strong>”) eda estrutura posta em movimento (saber-fazer, habilida<strong>de</strong>, gestos e cooperação no trabalho etc.). Asrelações formais que permitem a coesão <strong>do</strong>s atos no seu conjunto não se separam das condiçõesmateriais da ativida<strong>de</strong> individual e coletiva, quer se trate <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocar um roche<strong>do</strong>, <strong>de</strong> perseguir umacaça, <strong>de</strong> realizar um projeto simples ou complica<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> esta análise, a racionalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> espaçonão resulta <strong>de</strong> uma qualida<strong>de</strong> ou proprieda<strong>de</strong> da ação humana em geral, <strong>do</strong> trabalho humano comotal, <strong>do</strong> “homem” ou da organização social. Ao contrário: ela é a origem e a fonte (não distante, masimediata ou sobretu<strong>do</strong> inerente) da racionalida<strong>de</strong> ativa, origem escondida e contu<strong>do</strong> implicada peloinevitável empirismo <strong>do</strong>s que se servem <strong>de</strong> suas mãos ou <strong>de</strong> seus instrumentos, que compõem oucombinam seus gestos empregan<strong>do</strong> suas energias.180) Com estas precisões, o conceito <strong>de</strong> produção permanece o universal concreto emiti<strong>do</strong>[libera<strong>do</strong>/revela<strong>do</strong>] por Marx a partir <strong>de</strong> Hegel, obscureci<strong>do</strong> e diluí<strong>do</strong> em seguida. Isto que justificacertas críticas que, além disso, revelam imediatamente seu objetivo tático: a liquidação <strong>de</strong>steconceito, <strong>do</strong>s conceitos marxistas em geral, e em conseqüência <strong>do</strong> universal concreto como tal (embenefício da abstração e <strong>do</strong> irreal generaliza<strong>do</strong>s em uma vertigem niilista) 43 .181) Do la<strong>do</strong> direito [No campo da direita], po<strong>de</strong>-se dizer, o conceito <strong>de</strong> produção dificilmente selivra da i<strong>de</strong>ologia produtivista, <strong>do</strong> economismo grosseiro e brutal que tentou conquistá-lo. Do la<strong>do</strong>esquer<strong>do</strong> [No campo da esquerda], (ou “esquerdista”) se as palavras, os sonhos, os textos, osconceitos trabalham e produzem por sua própria conta, tem-se um curioso quadro <strong>de</strong> trabalhos semtrabalha<strong>do</strong>res, <strong>de</strong> produtos sem produção ou da produção sem produtos, <strong>de</strong> obras sem cria<strong>do</strong>res (sem“sujeito”, nem “objeto”!). As palavras “produção <strong>de</strong> conhecimentos” têm um certo senti<strong>do</strong>,concernente à gênese <strong>do</strong>s conceitos: to<strong>do</strong> conceito nasce e cresce; mas sem os fatos e sem osdiscursos <strong>do</strong>s seres – <strong>de</strong> “sujeitos” - sociais, quem então os produzirá? Sain<strong>do</strong> <strong>de</strong> certos limites, oemprego <strong>de</strong> fórmulas tais como “produção <strong>de</strong> conhecimentos”, enfrenta riscos graves. Ora alinha-seo conhecer sobre a produção industrial, aceitan<strong>do</strong> a divisão <strong>do</strong> trabalho existente e o emprego <strong>de</strong>43 Cf. J. Baudrillard, Le miroir <strong>de</strong> la production (O espelho da produção), Casterman, 1973.65


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006máquinas (a informação), sem outra forma <strong>de</strong> processo. Ora retira-se <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> produção, como<strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> conhecimento, to<strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> “objeto” como <strong>de</strong>ste “sujeito”,o que abre a porta às elucubrações e aos <strong>de</strong>lírios <strong>do</strong> irracional.182) Ora, o espaço (social) não é uma coisa entre as coisas, um produto qualquer entre os produtos;ele engloba as coisas produzidas, ele compreen<strong>de</strong> suas relações em sua coexistência e suasimultaneida<strong>de</strong>: or<strong>de</strong>m (relativa) e/ou <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m (relativa). Ele resulta <strong>de</strong> uma seqüência e <strong>de</strong> umconjunto <strong>de</strong> operações, e não po<strong>de</strong> se reduzir a um simples objeto. Todavia, ele não tem nada <strong>de</strong> umaficção, <strong>de</strong> uma irrealida<strong>de</strong> ou “i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong>” comparável àquela <strong>de</strong> um signo, <strong>de</strong> uma representação, <strong>de</strong>uma idéia, <strong>de</strong> um sonho. Efeito <strong>de</strong> ações passadas, ele permite ações, as sugere ou as proíbe. Entretais ações, umas produzem, outras consomem, ou seja, gozam os frutos da produção. O espaço socialimplica múltiplos conhecimentos. Qual é então seu estatuto? Sua relação com a produção?183) Produzir o espaço. Este acoplamento <strong>de</strong> palavras não tem nenhum senti<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> os filósofosreinam sobre os conceitos. O espaço <strong>do</strong>s filósofos, só Deus o po<strong>de</strong> criar como sua primeira obra, o<strong>de</strong>us <strong>do</strong>s cartesianos (Descartes, Malebranche, Spinoza, Leibniz), ou o Absoluto <strong>do</strong>s pós-kantianos(Schelling, Fichte, Hegel). E se mais tar<strong>de</strong> o espaço parece uma <strong>de</strong>gradação <strong>do</strong> “ser” que se<strong>de</strong>senvolve no tempo, esta apreciação pejorativa em nada muda a questão. Relativiza<strong>do</strong>,<strong>de</strong>svaloriza<strong>do</strong>, o espaço não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> menos <strong>do</strong> absoluto, a duração (Bergson).184) Consi<strong>de</strong>re-se uma cida<strong>de</strong>, espaço forma<strong>do</strong> [molda<strong>do</strong>], mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong>, ocupa<strong>do</strong> por ativida<strong>de</strong>s sociaisao longo <strong>do</strong> tempo histórico. Obra ou produto? Pensem em Veneza. Se a obra é única, genuína eoriginal (primária) – se a obra ocupa um espaço mas se agarra a um tempo, a uma maturação entreum nascimento e um <strong>de</strong>clínio – Veneza não po<strong>de</strong> não se dizer obra. Eis um espaço tão fortementeexpressivo e significativo, quanto único e unitário como uma pintura ou uma escultura. Expressivo esignificativo <strong>de</strong> que? De quem? Po<strong>de</strong>mos dizê-lo ou procurar dizê-lo, in<strong>de</strong>finidamente. O conteú<strong>do</strong> eseu senti<strong>do</strong> são inesgotáveis. Felizmente, este que não é “conhece<strong>do</strong>r” po<strong>de</strong> vivê-lo como uma festa,sem ter <strong>de</strong> conhecê-lo. Quem <strong>de</strong>sejou a unida<strong>de</strong> arquitetural e monumental, in<strong>do</strong> <strong>de</strong> cada palácio àcida<strong>de</strong> inteira? Ninguém, se bem que Veneza, mais que qualquer outra cida<strong>de</strong>, testemunha aexistência a partir <strong>do</strong> século XVI <strong>de</strong> um código unitário, <strong>de</strong> uma linguagem comum concernente àcida<strong>de</strong>. Esta unida<strong>de</strong> se mostra mais profundamente e mais alta <strong>do</strong> que o espetáculo ofereci<strong>do</strong> aoturista. Ela reúne a realida<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong> e sua i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong>: a prática, o simbólico, o imaginário. Arepresentação <strong>do</strong> espaço (o mar, ao mesmo tempo <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> e evoca<strong>do</strong>) e o espaço <strong>de</strong> representação(as curvas extraordinárias [<strong>de</strong>licadas/requintadas], o gozo refina<strong>do</strong>, o dispêndio luxuoso e cruel dariqueza acumulada por to<strong>do</strong>s os meios) se reforçam mutuamente. Assim como o espaço <strong>do</strong>s canais eo das ruas, a água e a pedra, numa dupla textura, num reflexo recíproco. Uma teatralização tão66


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006refinada quanto pouco procurada, uma cenografia involuntária reúnem e metamorfoseiam oquotidiano com suas funções. E acrescentam um pouco <strong>de</strong> loucura!185) O momento da criação <strong>de</strong>sapareceu. O <strong>do</strong> <strong>de</strong>saparecimento se aproxima. Vivente e ameaçada, aobra exprime o que se usa por seu prazer e contribui para que tal uso conduza ao seu fim, o poucoque isto seja. O que se po<strong>de</strong> também dizer <strong>de</strong> uma al<strong>de</strong>ia, ou <strong>de</strong> um belo vaso. Esses “objetos”ocupam um espaço que não é produzi<strong>do</strong> como tal. Veja agora esta flor. “A rosa não sabe que ela érosa” 44 . Certamente, a cida<strong>de</strong> não se oferece como uma flor que ignora sua beleza. Pessoas, gruposbem <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s a “compuseram”. Mas ela não tem nada <strong>de</strong> intencional, como um “objeto <strong>de</strong> arte”. Aobra <strong>de</strong> arte! Esta qualificação parece a muitos o elogio supremo. Todavia, entre a obra da natureza ea intencionalida<strong>de</strong> da arte existe um abismo. Em que consistiram as catedrais ? Em atos políticos. Asestátuas imortalizam um <strong>de</strong>sapareci<strong>do</strong> e o impe<strong>de</strong>m <strong>de</strong> incomodar os vivos [viventes]. Teci<strong>do</strong>s, vasosserviam. Quan<strong>do</strong> a arte aparece, pouco prece<strong>de</strong>n<strong>do</strong> seu conceito, a obra se <strong>de</strong>grada. Talvez nenhumaobra tenha si<strong>do</strong> jamais criada para ser obra <strong>de</strong> arte, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que a arte e especialmente a arte daescrita – a literatura – anuncie o <strong>de</strong>clínio das obras. Talvez a arte, enquanto ativida<strong>de</strong> especializada,tenha <strong>de</strong>struí<strong>do</strong> a obra para substitui-la lenta e implacavelmente pelo produto, ele próprio <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>à troca, ao comércio, à reprodução in<strong>de</strong>finida. Talvez o espaço das mais belas cida<strong>de</strong>s tenha nasci<strong>do</strong>à maneira das plantas e das flores, nos jardins, ou seja, à maneira <strong>de</strong> obras da natureza, únicas, sebem que trabalhadas por pessoas muito civilizadas?…186) Isto merece atenção. Haveria transcendência da obra em relação ao produto? Os espaçoshistóricos, os das al<strong>de</strong>ias e <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ram somente da noção <strong>de</strong> obra, aquela <strong>de</strong> umacoletivida<strong>de</strong> ainda próxima da natureza, <strong>de</strong> tal mo<strong>do</strong> que eles não tiveram gran<strong>de</strong> coisa a ver com osconceitos <strong>de</strong> produção e produto, portanto, com uma “produção <strong>do</strong> espaço”? Não vamos tambémfetichizar a obra, introduzin<strong>do</strong> separações entre a criação e a produção, a natureza e o trabalho, afesta e o labor, o único e o reprodutível, o diferente e o repetitivo, e finalmente, o vivo e o morto?187) Da mesma forma [Ao mesmo tempo], separaríamos brutalmente o histórico <strong>do</strong> econômico. É<strong>de</strong>snecessário examinar longamente as cida<strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rnas e as periferias e as construções novas, paraconstatar que tu<strong>do</strong> se parece. A dissociação mais ou menos estimulada entre o que se <strong>de</strong>nomina“arquitetura” e o que se <strong>de</strong>nomina “urbanismo”, ou seja, entre o “micro” e o “macro”, entre estaspreocupações e estas duas profissões, não acentuou a diversida<strong>de</strong>. Ao contrário. Triste evidência: orepetitivo apo<strong>de</strong>ra-se da [prevalece sobre a] unicida<strong>de</strong>, o artificial e o sofistica<strong>do</strong> sobre o espontâneoe o natural, logo, o produto sobre a obra. Esses espaços repetitivos saem <strong>de</strong> gestos repetitivos (os <strong>do</strong>strabalha<strong>do</strong>res) e <strong>de</strong> dispositivos ao mesmo tempo repeti<strong>do</strong>s e <strong>de</strong> repetição: as máquinas, tratores,44 Cf. o comentário <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger sobre o dístico <strong>de</strong> Angelus Silesius em Principe <strong>de</strong> Raison.67


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006betoneiras, gruas, brita<strong>de</strong>iras etc. Porque homólogos, estes espaços são trocáveis? Eles sãohomogêneos para que se possa trocá-los, comprá-los, vendê-los, não ten<strong>do</strong> entre si senão diferençasapreciáveis em dinheiro, portanto quantificáveis (volumes, distâncias)? A repetição reina. Um talespaço po<strong>de</strong> ainda se consi<strong>de</strong>rar “obra”? Incontestavelmente, é um produto, no senti<strong>do</strong> o maisrigoroso: repetível, resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> atos repetitivos. Seguramente existe, portanto, produção <strong>do</strong> espaço,mesmo quan<strong>do</strong> essa produção não tem a amplitu<strong>de</strong> das gran<strong>de</strong>s auto-estradas, <strong>do</strong>s aeroportos, dasobras-<strong>de</strong>-arte 45 . Note-se ainda que: estes espaços têm um caráter visual cada vez mais pronuncia<strong>do</strong>.São fabrica<strong>do</strong>s para o visível: pessoas e coisas, espaços e aqueles que os envolvem. Este traço<strong>do</strong>minante, a visualização (mais importante que a “espetacularização”, que, aliás, ele inclui) mascaraa repetição. As pessoas olham, confundin<strong>do</strong> a vida, a vista, a visão. Constrói-se sobre <strong>do</strong>ssiês eplanos. Compra-se a partir <strong>de</strong> imagens. A vista e a visão, figuras clássicas, no Oci<strong>de</strong>nte, <strong>do</strong>inteligível, se transformam em armadilhas; elas permitem, no espaço social, a simulação dadiversida<strong>de</strong>, o simulacro da luz inteligível: a transparência.188) Veneza. Retomemos este caso exemplar. Sim, espaço único, maravilha. Obra <strong>de</strong> arte? Não, semplano preconcebi<strong>do</strong>. Ela nasceu das águas. E, contu<strong>do</strong>, com lentidão, não como Afrodite, numinstante. Na origem, houve um <strong>de</strong>safio (à natureza, aos inimigos) e um objetivo (o comércio). Oespaço ocupa<strong>do</strong> sobre a laguna, utilizan<strong>do</strong> os pântanos, as águas rasas, a <strong>de</strong>sembocadura para oamplo, não po<strong>de</strong> se separar <strong>de</strong> um espaço mais vasto, o espaço das trocas comerciais, sobretu<strong>do</strong>mediterrâneas e orientais, que ainda não estavam mundializadas. Necessitou-se da continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong>um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>senho, <strong>de</strong> um projeto prático, <strong>de</strong> uma casta política, a talassocracia, a oligarquiamercantil. Des<strong>de</strong> os primeiros pilotis instala<strong>do</strong>s na laguna, cada lugar foi projeta<strong>do</strong>, <strong>de</strong>pois realiza<strong>do</strong>por pessoas: “chefes” políticos, o grupo que os apoiava, aqueles que trabalhavam para sua realização.Depois das exigências práticas <strong>do</strong> <strong>de</strong>safio ao mar – o porto, as vias marítimas – vieram osagrupamentos, as festas, os ritos grandiosos (o casamento <strong>do</strong> <strong>do</strong>ge 46 e <strong>do</strong> mar) com a invençãoarquitetural. Aqui percebe-se a ligação entre um lugar elabora<strong>do</strong> por uma vonta<strong>de</strong> e por umpensamento coletivos, e as forças produtivas da época. Este lugar foi trabalha<strong>do</strong>. Instalar os pilotis,construir os cais e instalações portuárias, edificar os palácios, isto também foi um trabalho socialrealiza<strong>do</strong> em condições difíceis e sob <strong>de</strong>cisões constrange<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> uma casta que se aproveitavaamplamente. Por meio da obra, não há produção? O sobreproduto social, anterior à mais-valiacapitalista, não o anuncia? Com esta diferença: em Veneza, o sobretrabalho e o sobreproduto socialse realizam e se gastam principalmente no lugar: na cida<strong>de</strong>. O uso estético <strong>de</strong>ste sobreproduto,45 Neste caso, o termo ouvrages d’art utiliza<strong>do</strong> pelo autor refere-se às obras-<strong>de</strong>-arte, ou seja, às obras viárias <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte,ao contrário <strong>do</strong> termo œuvre d’art. (N.T.)68


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006segun<strong>do</strong> os gostos das pessoas prodigiosamente <strong>do</strong>tadas, e por que não dizer altamente civilizadas,apesar <strong>de</strong> sua rigi<strong>de</strong>z [<strong>de</strong> seu rigor], não po<strong>de</strong> disfarçar sua origem. Este esplen<strong>do</strong>r hoje <strong>de</strong>clinanterepousa à sua maneira sobre os gestos repetitivos <strong>do</strong>s carpinteiros e pedreiros, <strong>do</strong>s marinheiros eestiva<strong>do</strong>res. E <strong>de</strong> patrícios gerin<strong>do</strong> seus negócios dia a dia. Não obstante, em Veneza, tu<strong>do</strong> diz e tu<strong>do</strong>canta a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gozos, a invenção nas festas, nos prazeres, nos ritos suntuosos. Se se trata <strong>de</strong>manter a distinção entre a obra e o produto, esta distinção só tem um alcance relativo. Talvez se<strong>de</strong>scubrirá entre estes <strong>do</strong>is termos, uma relação mais sutil que aquela que consiste, seja numai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, seja numa oposição. Toda obra ocupa um espaço, o engendra, o mo<strong>de</strong>la. To<strong>do</strong> produto,ocupan<strong>do</strong> também um espaço, circula no espaço. Qual relação se estabelece entre estas duasmodalida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> espaço ocupa<strong>do</strong>?189) Mesmo em Veneza, o espaço social se produz e se reproduz em conexão com as forçasprodutivas (e as relações <strong>de</strong> produção). As forças produtivas, ao longo <strong>de</strong> seu crescimento, não se<strong>de</strong>senvolvem num espaço preexistente, vazio, neutro ou somente <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> geograficamente,climaticamente, antropologicamente etc. Não há nenhuma razão para se separar a obra <strong>de</strong> arte <strong>do</strong>produto até se colocar a transcendência da obra. Se é assim, toda esperança <strong>de</strong> reencontrar ummovimento dialético tal que a obra atravesse o produto e que o produto não <strong>de</strong>vore a criação norepetitivo não está perdida.190) Nem a natureza – o clima e o sítio – nem a história anterior bastam para explicar um espaçosocial. Nem a “cultura”. Além disto, o crescimento das forças produtivas não conduz à constituição<strong>de</strong> um espaço ou <strong>de</strong> um tempo que resultariam segun<strong>do</strong> um esquema causal. Mediações emedia<strong>do</strong>res se interpõem: grupos atuantes, razões no conhecimento, na i<strong>de</strong>ologia, nas representações.Um tal espaço contém objetos muito diversos, naturais e sociais, re<strong>de</strong>s e filões, veículos <strong>de</strong> trocasmateriais e <strong>de</strong> informação. Ele não se reduz nem aos objetos que ele contém, nem à sua soma. Esses“objetos” não são apenas coisas, mas relações. Como objetos, eles possuem particularida<strong>de</strong>sconhecíveis, contornos e formas. O trabalho social os transforma; ele os situa diferentemente nosconjuntos espaço-temporais, mesmo quan<strong>do</strong> respeita sua materialida<strong>de</strong>, sua naturalida<strong>de</strong>: <strong>de</strong> umailha, <strong>de</strong> um golfo, <strong>de</strong> um rio, <strong>de</strong> uma colina etc.191) Eis um outro caso, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> na Itália. Por que? Porque neste país a história <strong>do</strong> précapitalismoé particularmente rica e a preparação da era industrial especialmente significativa,mesmo que esse avanço tenha si<strong>do</strong> salda<strong>do</strong> [custa<strong>do</strong>], ao longo <strong>do</strong>s séculos XVIII e <strong>do</strong> XIX, por umaperda <strong>de</strong> velocida<strong>de</strong> e um atraso relativo.46 Chefe eletivo da antiga república <strong>de</strong> Veneza. (N.T.)69


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006192) A Toscana. A partir mais ou menos <strong>do</strong> século XIII, a oligarquia urbana (comerciantes,burgueses) transforma os <strong>do</strong>mínios senhoriais (os latifundia) que ela possui por herança ou adquire.Sobre essas terras, ela instala o “colonato parciário”: colonos no lugar <strong>de</strong> servos. O colono recebesua parte <strong>do</strong> produto; ele tem, portanto, interesse em produzir, mais que o escravo ou o servo. Omovimento que se produz então, e que produz uma nova realida<strong>de</strong> social, não se baseia nem sobre acida<strong>de</strong> (o urbano) consi<strong>de</strong>rada à parte, nem sobre o campo toma<strong>do</strong> isoladamente, mas sobre suarelação (dialética) no espaço, a partir <strong>de</strong> sua história. A burguesia urbana <strong>de</strong>seja ao mesmo tempoalimentar as pessoas das cida<strong>de</strong>s, investir na agricultura, se apoiar no território inteiro, suprir omerca<strong>do</strong> <strong>de</strong> cereais, <strong>de</strong> lãs, <strong>de</strong> peles sob seu controle. Então, ela transforma o país e a paisagem,sobre o plano preconcebi<strong>do</strong> seguin<strong>do</strong> um mo<strong>de</strong>lo: os po<strong>de</strong>ri, casas <strong>de</strong> colonos, que se agrupam emtorno <strong>do</strong> palácio on<strong>de</strong> permanece [resi<strong>de</strong>/habita], na ocasião, o proprietário, on<strong>de</strong> habita seu gerente.Alamedas <strong>de</strong> ciprestes ligam os po<strong>de</strong>ri ao palácio. Que simboliza o cipreste? A proprieda<strong>de</strong>, aimortalida<strong>de</strong>, a perpetuida<strong>de</strong>. E eis que as alamedas <strong>de</strong> ciprestes se inscrevem na paisagem, dan<strong>do</strong>lheao mesmo tempo uma profundida<strong>de</strong> e um senti<strong>do</strong>. As árvores, as alamedas, se recortan<strong>do</strong>,recortam os terrenos [províncias] e os organizam. Na paisagem, a perspectiva se indica; ela se acaba[conclui/termina/culmina] no lugar [na praça] urbano, entre as arquiteturas que a circunscrevem. Umespaço foi engendra<strong>do</strong> pela cida<strong>de</strong> e pelo campo e suas relações, espaço que os pintores (escola <strong>de</strong>Siena, a primeira na Itália) irão liberar, formular, <strong>de</strong>senvolver.193) Na Toscana, e alhures à mesma época (na França, que reaparecerá mais adiante a propósito da“história <strong>do</strong> espaço”), não houve apenas produção material e aparição <strong>de</strong> formas sociais, ou, ainda,produção social <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s materiais. As formas sociais novas não são “inscritas” no espaçopreexistente. O espaço produzi<strong>do</strong> não foi nem rural, nem urbano, mas resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua relaçãoespacial novamente engendrada.194) Causa e razão <strong>de</strong>sta transformação: o crescimento das forças produtivas, as <strong>do</strong> artesanato, daindústria nascente, as da agricultura. Mas o crescimento não ocorre senão através da relação social“cida<strong>de</strong>-campo”, e por conseqüência através <strong>do</strong>s grupos motores <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento: a oligarquiaurbana, uma fração <strong>de</strong> camponeses. Resulta<strong>do</strong>: uma maior riqueza, logo um maior sobreproduto,resulta<strong>do</strong> que reage sobre suas condições. O luxo, a construção <strong>de</strong> palácios e monumentos permiteaos artistas, e <strong>de</strong> início aos pintores, dizerem a seu mo<strong>do</strong> o que se faz; fazer ver o que eles discernem.Eles <strong>de</strong>scobrem, teorizam a perspectiva porque um espaço em perspectiva lhes é ofereci<strong>do</strong>: porqueesse espaço foi produzi<strong>do</strong>. A obra e o produto só se distinguem através da análise retrospectiva. Umaseparação absoluta, um corte, mataria o movimento gera<strong>do</strong>r, ou antes, isto que <strong>de</strong>le nos resta: seuconceito. Esse crescimento, e o <strong>de</strong>senvolvimento solidário, não ocorrem sem múltiplos conflitos,sem lutas <strong>de</strong> classes (entre aristocracia e burguesia ascen<strong>de</strong>nte, entre o “popolo minuto” e o “popolo70


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006grosso”, na cida<strong>de</strong>, entre as pessoas das cida<strong>de</strong>s e as <strong>do</strong>s campos etc). Este enca<strong>de</strong>amentocorrespon<strong>de</strong>, até um certo ponto, à “revolução” comunal” numa parte da França e da Europa; mas aligação <strong>do</strong>s diversos aspectos <strong>do</strong> processo global é melhor conhecida que alhures, mais marcada,com efeitos mais explosivos.195) Ao fim <strong>de</strong>sse processo emerge uma nova representação <strong>do</strong> espaço: a perspectiva visual queaparece nas obras <strong>do</strong>s pintores e que os arquitetos colocam em forma [formalizam], <strong>de</strong>pois osgeômetras. O saber sai <strong>de</strong> uma prática, acrescentan<strong>do</strong>-lhe a elaboração: formalização, enca<strong>de</strong>amentológico.196) Ao longo <strong>de</strong>ste perío<strong>do</strong>, na Itália, na Toscana, em torno <strong>de</strong> Florença e <strong>de</strong> Siena, os habitantes dascida<strong>de</strong>s e al<strong>de</strong>ias continuam a viver seu espaço <strong>de</strong> uma certa maneira emocional, religiosa. Elesrepresentam um jogo <strong>de</strong> forças sagradas e malditas que se combatem no mun<strong>do</strong>, na vizinhança <strong>de</strong>lugares privilegia<strong>do</strong>s, que são, para cada um, seu corpo, sua casa, seu terreno [sua província], etambém sua igreja e o cemitério que recebe seus mortos. Este espaço <strong>de</strong> representação figura emmuitas obras (as <strong>do</strong>s pintores, <strong>do</strong>s arquitetos etc.). Contu<strong>do</strong>, alguns artistas e intelectuais [cientistas]chegam a uma representação <strong>do</strong> espaço bem diferente: o espaço homogêneo, bem <strong>de</strong>limita<strong>do</strong>, com alinha <strong>de</strong> horizonte, o ponto <strong>de</strong> fuga <strong>do</strong>s paralelos.197) II.2 Por volta da meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XIX, em alguns países “avança<strong>do</strong>s”, uma nova realida<strong>de</strong>agita os povos e estimula os espíritos, por colocar múltiplos problemas, cuja solução ainda nãoaparece. Essa “realida<strong>de</strong>”, para empregar este termo convencional e um pouco grosseiro, não seapresenta à análise e à ação <strong>de</strong> uma maneira clara e distinta. Na prática, ela se <strong>de</strong>nomina: indústria;para o pensamento teórico, ela se <strong>de</strong>nomina: economia política. Uma acompanha a outra. A práticaindustrial induz uma série <strong>de</strong> novos conceitos e <strong>de</strong> novas questões; a reflexão sobre essa prática,ligan<strong>do</strong>-se à reflexão sobre o passa<strong>do</strong> (a história), à apreciação crítica sobre as inovações (asociologia) faz nascer esta ciência rapidamente <strong>do</strong>minante: a economia política.198) Como proce<strong>de</strong>m as pessoas <strong>de</strong>ssa época, os que se atribuem responsabilida<strong>de</strong>s no plano <strong>do</strong>conhecimento (filósofos, intelectuais [cientistas], principalmente “economistas”) – ou no plano dasações (políticos, mas também “empreen<strong>de</strong><strong>do</strong>res” capitalistas)? Eles proce<strong>de</strong>m <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> que lhesparece sóli<strong>do</strong>, irrefutável, “positivo” (em conexão com o positivismo que então emerge).199) Alguns contam coisas, objetos. Eles <strong>de</strong>screvem sejam máquinas (como o genial Babbage), sejamos produtos <strong>de</strong>ssas ferramentas, insistin<strong>do</strong> sobre as necessida<strong>de</strong>s às quais as coisas produzidasrespon<strong>de</strong>m, sobre os merca<strong>do</strong>s abertos a esses produtos. Salvo algumas exceções, tais pessoas seper<strong>de</strong>m no <strong>de</strong>talhe, nos fatos; enveredan<strong>do</strong> num terreno que parece sóli<strong>do</strong> (e que o é), eles seper<strong>de</strong>m. No limite, as <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> não importa qual dispositivo mecânico ou qual procedimento <strong>de</strong>71


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006venda passam por saber (É necessário acrescentar que, neste <strong>do</strong>mínio, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um século,não há muita mudança).200) As coisas e produtos medi<strong>do</strong>s (equipara<strong>do</strong>s a uma medida comum, o dinheiro) não dizem suaverda<strong>de</strong>; eles a escon<strong>de</strong>m, enquanto coisas e produtos. Certamente, eles falam à sua maneira, na sualinguagem <strong>de</strong> coisas e produtos, para proclamar a satisfação que proporcionam e as necessida<strong>de</strong>s quesatisfazem; eles mentem dissimulan<strong>do</strong> o tempo <strong>de</strong> trabalho social que contêm e o trabalho produtivo,e as relações sociais <strong>de</strong> exploração-<strong>do</strong>minação. Sua linguagem <strong>de</strong> coisas, como toda linguagem,serve para mentir tanto quanto dizer verda<strong>de</strong> (a verda<strong>de</strong>). A coisa mente. Ao mentir a propósito <strong>de</strong>sua origem – o trabalho social -, ao dissimular-se, a coisa tornada merca<strong>do</strong>ria ten<strong>de</strong> a se erigir emabsoluto. O produto e os circuitos que ele engendra (no espaço) se fetichizam, tornam-se mais“reais” que o real, a ativida<strong>de</strong> produtora, apo<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se <strong>de</strong>la. O que chega, como sabemos, aoextremo com o merca<strong>do</strong> mundial. O objeto escon<strong>de</strong> algo <strong>de</strong> muito importante, e o escon<strong>de</strong> tão bemque nós (o “sujeito”) não po<strong>de</strong>mos prescindir <strong>de</strong>le. Ele propicia uma fruição, ilusória ou real (mascomo distinguir a ilusão <strong>do</strong> real no fruir?) A aparência e a ilusão não se encontram no uso e no gozo,mas na coisa como suporte <strong>de</strong> signos e significações falaciosas. Tirar a máscara das coisas pararevelar as relações (sociais), eis a força <strong>de</strong> Marx, a aquisição <strong>do</strong> pensamento marxista, quaisquer quesejam as ambições políticas que as reclamem. Obviamente, esta rocha sobre a montanha, esta nuveme este céu azul, este passarinho, esta árvore não mentem. A natureza se oferece porque ela é: cruel,generosa. A natureza não engana; ela nos reserva mais <strong>de</strong> uma má direção, mas sem mentir. Arealida<strong>de</strong> dita social é dupla, múltipla, plural. Em que medida ela assegura uma realida<strong>de</strong>? Ela não atem mais, ela não a é mais, à maneira <strong>de</strong> uma materialida<strong>de</strong>. Ela contém, ela implica abstraçõesterrivelmente concretas (ainda e sempre: o dinheiro, a merca<strong>do</strong>ria, a troca <strong>de</strong> bens materiais), assimcomo formas “puras”, como as da troca, da linguagem, <strong>do</strong> signo, das equivalências, reciprocida<strong>de</strong>s,contratos etc.201) De acor<strong>do</strong> com Marx, e ninguém po<strong>de</strong> duvidar <strong>de</strong>sta análise fundamental (senão a ignoran<strong>do</strong>), aconstatação das coisas, seja <strong>de</strong> tal objeto, seja <strong>do</strong> “objeto” em geral, negligencia isto que essas coisascontêm, dissimulan<strong>do</strong>-as: relações sociais e as formas <strong>de</strong>ssas relações. Se isolamos essas relaçõesinerentes às coisas sociais, o conhecimento divaga; ele não po<strong>de</strong> mais <strong>do</strong> que constatar a varieda<strong>de</strong>in<strong>de</strong>finida e in<strong>de</strong>finível das coisas; ele se per<strong>de</strong> nas classificações, nas <strong>de</strong>scrições, nasfragmentações.202) Para atingir esta inversão e revolução <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> que <strong>de</strong>scobre um senti<strong>do</strong> verídico, Marxnecessitou abalar as certezas <strong>de</strong> uma época: a bela confiança nas coisas e na “realida<strong>de</strong>”. O“positivo”, o “real” jamais se abstiveram <strong>de</strong> boas razões e <strong>de</strong> bons argumentos para o senso comum ea vida quotidiana; Marx precisou literalmente <strong>de</strong>compô-los. Convenhamos, os filósofos já haviam72


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006feito uma boa parte <strong>do</strong> trabalho, pois já haviam ataca<strong>do</strong> as tranqüilas seguranças <strong>do</strong> senso comum.Nem por isso, Marx pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> liquidar as i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong>s filosóficas, o recurso à transcendência, àconsciência, ao Espírito ou ao Homem: superar a filosofia salvan<strong>do</strong> a verda<strong>de</strong>.203) O trajeto <strong>de</strong> Marx se <strong>de</strong>marca, para o leitor atual, com polêmicas bastante conhecidas, das quaisse abusa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então. Às vezes supérfluas, elas per<strong>de</strong>ram to<strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, apesar <strong>do</strong>s comentários aindamais supérfluos <strong>do</strong>s orto<strong>do</strong>xos. Já naquele tempo, muitos se felicitavam pelos progressos realiza<strong>do</strong>spela racionalida<strong>de</strong> (econômica, social, política). Nisso viam facilmente a passagem a uma realida<strong>de</strong>“melhor”; Marx os contestava mostran<strong>do</strong> que não se tratava senão <strong>de</strong> um crescimento <strong>de</strong> forçasprodutivas, agravan<strong>do</strong> os problemas ditos “sociais” e “políticos” ao invés <strong>de</strong> os resolver. Aocontrário, àqueles que lamentavam os tempos passa<strong>do</strong>s, o mesmo Marx expunha as novaspossibilida<strong>de</strong>s que se abriam em razão das forças produtivas crescentes. Aos revolucionários ávi<strong>do</strong>s<strong>de</strong> ação total e imediata, ele respondia por conceitos; aos coletores <strong>de</strong> fatos, ele replicava por teorias,cujo alcance “operacional” somente apareceria mais tar<strong>de</strong>: organização da produção como tal,planificação.204) De um la<strong>do</strong>, Marx <strong>de</strong>via reapreen<strong>de</strong>r os conteú<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s quais se distanciava da tendênciaprepon<strong>de</strong>rante, a da classe <strong>do</strong>minante (não percebida como tal). Quais conteú<strong>do</strong>s? O trabalhoprodutivo, as forças produtivas, as relações e o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção. Ao mesmo tempo, contra afragmentação e a divisão em “fatos”, em inventários estatísticos, Marx liberava [resgatava] a forma,a mais geral das relações sociais, a saber, a forma da troca (o valor <strong>de</strong> troca). Digamos: não mais aforma única, mas a generalida<strong>de</strong> formal.205) E agora, consi<strong>de</strong>remos um espaço qualquer, um “intervalo”, sob a condição <strong>de</strong> que ele não sejavazio. Esse espaço contém coisas e, contu<strong>do</strong>, não é uma coisa, um “objeto” material. Seria um“meio” flutuante, uma abstração simples, uma “pura” forma? Não. Ele tem um conteú<strong>do</strong>.206) Desse espaço, <strong>de</strong>ve-se dizer que ele implica, contém e dissimula relações sociais. Se bem quenão seja uma coisa, mas um conjunto <strong>de</strong> relações entre as coisas (objetos e produtos). Seria outen<strong>de</strong>ria a se tornar a Coisa absoluta? Sem dúvida, pois toda coisa, tornada autônoma no curso datroca (tornada merca<strong>do</strong>ria), ten<strong>de</strong> a se tornar absoluta e tal tendência <strong>de</strong>fine o fetichismo, segun<strong>do</strong>Marx (a alienação prática no capitalismo). Mas a Coisa não chega a isso. Ela não po<strong>de</strong> se emancipar[libertar] da ativida<strong>de</strong>, <strong>do</strong> uso, da necessida<strong>de</strong>, <strong>do</strong> “ser social”. Quanto ao espaço?...Esta é a questãocentral.207) Se vemos um campo <strong>de</strong> trigo ou milho, sabemos bem que os silos, a semeadura, as barreiras [oslimites] <strong>do</strong>s campos, sebes ou cercas <strong>de</strong> arames, <strong>de</strong>signam relações <strong>de</strong> produção e <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>. Eque isso é bem menos verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> que um terreno [território] inculto, matas <strong>de</strong>gradadas ou floresta.Então, o pertencimento <strong>de</strong> um espaço à natureza o dispensa <strong>de</strong> entrar nas relações sociais <strong>de</strong>73


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006produção. O que não seria espantoso. Vale o mesmo para um roche<strong>do</strong>, para uma árvore. Mas essecaráter <strong>de</strong> espaços, no seio <strong>do</strong>s quais prevalecem particularida<strong>de</strong>s naturais e objetos <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> taisparticularida<strong>de</strong>s, esse caráter se distancia. Com a natureza! Um “parque natural”, nacional ouregional, pertence ao natural ou ao artificial? Po<strong>de</strong>mos hesitar. Outrora pre<strong>do</strong>minante, o traço“natural” se atenua e se torna subordina<strong>do</strong>. Ao passo que, inversamente, o caráter social <strong>do</strong> espaço(as relações sociais que ele implica, que ele contém e dissimula) começa a conquistá-lo visivelmente.Tal traço característico, a visibilida<strong>de</strong>, não conduz todavia à legibilida<strong>de</strong> das relações sociaisinerentes. A análise <strong>de</strong>ssas relações, ao contrário, torna-se difícil, a tal ponto que chega a seaproximar <strong>do</strong> para<strong>do</strong>xo.208) Eis uma residência camponesa; ela contém, implica relações sociais; ela abriga uma família: talfamília <strong>de</strong> tal país, <strong>de</strong> tal região, <strong>de</strong> tal terreno [província]; além <strong>do</strong> que, ela se insere num sítio enuma paisagem. Bela ou pobre, é uma obra tanto quanto um produto, se bem que ela correspon<strong>de</strong>sempre a um tipo. Ela faz parte mais ou menos da natureza. É um objeto intermediário entre a obra eo produto, a natureza e o trabalho, o simbólico e o significativo. Ela engendra um espaço? Sim. Esteespaço é natural ou cultural, imediato ou mediatiza<strong>do</strong> (por quem? para quem?) da<strong>do</strong> ou artificial?Um e outro. Resposta ambígua a uma questão bastante clara: entre “natureza” e “cultura”, comoentre a obra e o produto, existem relações complexas, mediações. Mesmo entre o tempo e “o objeto”no espaço.209) Comparemos diversos mapas <strong>de</strong> uma região ou país, a França por exemplo. Sua diversida<strong>de</strong>explo<strong>de</strong>. Alguns têm objetivos toleravelmente mistifica<strong>do</strong>res; assim, os mapas das “belezasnaturais”, <strong>do</strong>s sítios e monumentos históricos, acompanha<strong>do</strong>s <strong>de</strong> uma retórica habilitada; eles<strong>de</strong>signam os lugares on<strong>de</strong> o consumo <strong>de</strong>vorante chega a mastigar os restos da natureza e <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>,quer dizer se alimentam <strong>de</strong> signos, aqueles <strong>do</strong> histórico e <strong>do</strong> original. Acreditan<strong>do</strong> nos mapas e guias,o turista se enche <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong>. As “legendas”, códigos permitin<strong>do</strong> a leitura <strong>de</strong>sses <strong>do</strong>cumentos,enganam melhor que as coisas: ao segun<strong>do</strong> grau. Mas eis um simples mapa <strong>de</strong> estradas e vias <strong>de</strong>comunicação francesas. O que ele <strong>de</strong>clara, não ao olho ingênuo, mas ao analista pouco adverti<strong>do</strong> – osenti<strong>do</strong> <strong>de</strong>sse mapa, - é ao mesmo tempo claro e pouco legível. Uma diagonal atravessa a República,una e indivisível, que carrega como colar esse lenço maléfico. Do Berre ao Hâvre, passan<strong>do</strong> pelosvales <strong>do</strong> Rhone (o gran<strong>de</strong> Delta), <strong>do</strong> Saône, <strong>do</strong> Sena, tem-se a estreita zona superindustrializada esuperurbanizada que relega o resto da querida velha França ao sub<strong>de</strong>senvolvimento e à “vocaçãoturística”. Ontem segre<strong>do</strong> <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> guarda<strong>do</strong> nos escritórios <strong>de</strong> tecnocratas, hoje (verão 1973)verda<strong>de</strong> banal. Menos banal, contu<strong>do</strong>, se completarmos os mapas turísticos com os <strong>de</strong> instalaçõesmilitares, estabelecidas ou em projeto, na parte sul da França. Facilmente constata-se que esta imensaregião, consagrada, salvo setores bem <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s, ao turismo, aos parques nacionais, portanto à74


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006<strong>de</strong>cadência econômica e social, será fortemente sustentada pelo exército que encontra nessas regiõesperiféricas um contexto a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> às suas diversas ativida<strong>de</strong>s.210) Estes espaços são produtos. A partir <strong>de</strong> uma “matéria-prima”, a natureza. São produtos <strong>de</strong> umaativida<strong>de</strong> que implica o econômico, a técnica, mas vai bem além: produtos políticos, espaçosestratégicos. Este termo, “estratégia”, compreen<strong>de</strong> projetos e ações muito diversos, combinan<strong>do</strong> apaz com a guerra, o comércio <strong>de</strong> armas com a dissuasão em caso <strong>de</strong> crise, o emprego <strong>de</strong> recursospróprios aos espaços periféricos com os das riquezas provenientes <strong>do</strong>s centros (industrializa<strong>do</strong>s,urbaniza<strong>do</strong>s, estatiza<strong>do</strong>s).211) O espaço não é jamais produzi<strong>do</strong> como um quilograma <strong>de</strong> açúcar ou um metro <strong>de</strong> teci<strong>do</strong>. Elenão é mais a soma <strong>de</strong> lugares e praças <strong>de</strong>sses produtos: o açúcar, o trigo, o teci<strong>do</strong>, o ferro. Não. Elese produziria como uma superestrutura? Não. Ele seria antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, a condição e o resulta<strong>do</strong>: oEsta<strong>do</strong>, e cada uma das instituições que o compõem, supõem um espaço e o organizam segun<strong>do</strong> suasexigências. O espaço não tem, portanto, nada <strong>de</strong> uma “condição” a priori <strong>de</strong> instituições e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>que as coroa. Relação social? Sim, <strong>de</strong>certo, mas inerente às relações <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> (a proprieda<strong>de</strong><strong>do</strong> solo, da terra, em particular), e <strong>de</strong> outra parte ligada às forças produtivas (que parcelam essa terra,esse solo), o espaço social manifesta sua polivalência, sua “realida<strong>de</strong>” ao mesmo tempo formal ematerial. Produto que se utiliza, que se consome, ele é também meio <strong>de</strong> produção; re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trocas,fluxo <strong>de</strong> matérias-primas e <strong>de</strong> energias que recortam o espaço e são por ele <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s. Este meio<strong>de</strong> produção, produzi<strong>do</strong> como tal, não po<strong>de</strong> se separar nem das forças produtivas, das técnicas e <strong>do</strong>saber, nem da divisão <strong>do</strong> trabalho social, que o mo<strong>de</strong>la, nem da natureza, nem <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e dassuperestruturas.212) II.3 O conceito <strong>de</strong> espaço social se <strong>de</strong>senvolve, portanto, amplian<strong>do</strong>-se. Ele se introduz no seio<strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> produção e mesmo o inva<strong>de</strong>; ele se torna o conteú<strong>do</strong>, talvez essencial. Então, eleengendra um movimento dialético muito específico, que certamente não revoga a relação “produçãoconsumo”aplicada às coisas (os bens, as merca<strong>do</strong>rias, os objetos da troca), mas a modificaamplian<strong>do</strong>-a. Uma unida<strong>de</strong> se entrevê entre os níveis freqüentemente separa<strong>do</strong>s da análise: as forçasprodutivas e seus componentes (natureza, trabalho, técnica, conhecimento), as estruturas (relações <strong>de</strong>proprieda<strong>de</strong>), as superestruturas (as instituições e o próprio Esta<strong>do</strong>).213) Quantos mapas, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>scritivo (geográfico) serão necessários para absorver [esgotar] umespaço social, para codificar e <strong>de</strong>codificar to<strong>do</strong>s os seus senti<strong>do</strong>s e conteú<strong>do</strong>s? Não é certo que sepossa enumerá-los. Ao contrário: o não-enumerável se introduz aqui, uma espécie <strong>de</strong> infinito atualcomo num quadro <strong>de</strong> Mondrian. Não são somente os códigos (legendas, convenções <strong>de</strong> escrita e <strong>de</strong>leitura) que mudam, mas os objetos e objetivos, as escalas. A idéia <strong>de</strong> um pequeno número <strong>de</strong> mapasou <strong>de</strong> um mapa exclusivo e privilegia<strong>do</strong>, só po<strong>de</strong> vir <strong>de</strong> uma especialida<strong>de</strong> que se afirma isolan<strong>do</strong>-se.75


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006214) Além disso, seria difícil ou impossível, atualmente, cartografar da<strong>do</strong>s muito importantes. On<strong>de</strong>,como, por quem e para quem se concentram e se tratam as informações? Como, para quem funcionao software? Sabe-se suficientemente para se suspeitar da existência <strong>de</strong> um espaço da informática,mas não o bastante para o <strong>de</strong>screver, menos ainda para o conhecer.215) Não há um espaço social, mas vários espaços sociais, e mesmo uma multiplicida<strong>de</strong> in<strong>de</strong>finida,da qual o termo “espaço social” <strong>de</strong>nota o conjunto não-enumerável. Nenhum espaço não <strong>de</strong>saparece,no curso <strong>do</strong> crescimento e <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. O mundial não revoga o local. Não se trata <strong>de</strong> umaconseqüência da lei <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sigual, mas <strong>de</strong> uma lei própria. A implicação <strong>do</strong>s espaçossociais é uma lei. Toma<strong>do</strong>s isoladamente, cada um é apenas uma abstração. Abstrações concretas,eles existem “realmente” para re<strong>de</strong>s e filiais, leques ou feixes <strong>de</strong> relações. Por exemplo, as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong>comunicações à escala mundial, <strong>de</strong> trocas, <strong>de</strong> informações. Re<strong>de</strong>s recentes, estas últimas não lançamao vazio social as antigas re<strong>de</strong>s, superpostas ao longo <strong>de</strong> séculos, <strong>de</strong>stes diversos merca<strong>do</strong>s: omerca<strong>do</strong> local, o merca<strong>do</strong> regional, nacional, internacional – o merca<strong>do</strong> das merca<strong>do</strong>rias, o <strong>do</strong>dinheiro e <strong>do</strong>s capitais, aquele <strong>do</strong> trabalho, o das obras, símbolos e signos – enfim este, o últimoadvin<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s próprios espaços. Cada merca<strong>do</strong>, ao longo <strong>do</strong>s tempos, se consoli<strong>do</strong>u e concretizounuma re<strong>de</strong>: os pontos <strong>de</strong> venda e <strong>de</strong> compra para as trocas <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>rias, nas estradas comerciais; -os bancos e bolsas <strong>de</strong> valores financeiros para a re<strong>de</strong> bancária e a circulação <strong>de</strong> capitais; - as bolsas<strong>de</strong> trabalho etc. O que se materializa nas cida<strong>de</strong>s por edifícios apropria<strong>do</strong>s. O espaço social esobretu<strong>do</strong> o espaço urbano aparecem, a partir <strong>de</strong> então, em sua multiplicida<strong>de</strong>, comparável àquela <strong>de</strong>um “folhea<strong>do</strong>” (a <strong>do</strong> <strong>do</strong>ce <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> “mil-folhas”), bem mais que à homogeneida<strong>de</strong>-isotropia <strong>de</strong>um espaço matemático clássico (euclidiano-cartesiano).216) Os espaços sociais se compenetram e/ou se superpõem. Não são coisas, limitadas umas pelasoutras, se chocan<strong>do</strong> por seu contorno ou pelo resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> inércias. Certos termos, como “camada”ou “capa”, não são <strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> inconvenientes. Metáforas, mais que conceitos, eles aproximam oespaço das coisas e por conseqüência reenviam o conceito à abstração. As fronteiras visíveis (porexemplo, os muros, as cercas em geral) fazem nascer a aparência <strong>de</strong> uma separação entre espaços aomesmo tempo em ambigüida<strong>de</strong> e em continuida<strong>de</strong>. O espaço <strong>de</strong> um “cômo<strong>do</strong>”, <strong>de</strong> um quarto, <strong>de</strong> umacasa, <strong>de</strong> um jardim, separa<strong>do</strong> <strong>do</strong> espaço social por barreiras e muros, por to<strong>do</strong>s os signos daproprieda<strong>de</strong> privada, não é menos espaço social. Estes espaços também não são “meios” vazios,recipientes separáveis <strong>de</strong> seu conteú<strong>do</strong>. Produzi<strong>do</strong>s ao longo <strong>do</strong> tempo, distintos mas nãodissociáveis, não se po<strong>de</strong> compará-los nem aos espaços locais <strong>de</strong> certos astrônomos (Hoyle), nem asedimentos, ainda que esta metáfora seja mais justa que uma comparação matemática. Não seria àdinâmica <strong>do</strong>s flui<strong>do</strong>s que se <strong>de</strong>veria recorrer? O princípio da superposição <strong>de</strong> pequenos movimentosinforma que a escala, a dimensão, o ritmo <strong>de</strong>sempenham um gran<strong>de</strong> papel. Os gran<strong>de</strong>s movimentos,76


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006os ritmos vastos, as gran<strong>de</strong>s ondas se contrastam [chocam], interferem. Os pequenos movimentos secompenetram; cada lugar social só po<strong>de</strong> então ser compreendi<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> uma dupla <strong>de</strong>terminação:conduzi<strong>do</strong>, arrasta<strong>do</strong>, às vezes rompi<strong>do</strong> pelos gran<strong>de</strong>s movimentos – os que produzirão interferências– mas, em contrapartida, atravessa<strong>do</strong>, penetra<strong>do</strong> pelos pequenos movimentos, os das re<strong>de</strong>s e filiais.217) Resta compreen<strong>de</strong>r o que produz os diversos movimentos, ritmos, freqüências, o que osentrelaça e mantém a hierarquia precária <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s e pequenos, <strong>de</strong> estratégias e táticas, <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s elugares. A<strong>de</strong>mais, a dinâmica <strong>do</strong>s flui<strong>do</strong>s sugere uma metáfora que parece conter uma análise e umaexplicação; levada além <strong>de</strong> certo limite, essa análise se transformaria em erro. Se existe uma possívelcomparação entre os movimentos físicos (ondas, tipos <strong>de</strong> ondas, quanta associa<strong>do</strong>s, ou seja,classificação <strong>de</strong> radiações pela extensão da onda), a analogia que orienta a análise não <strong>de</strong>ve reger ateoria inteira. Ela implica uma conseqüência para<strong>do</strong>xal: quanto mais a extensão da onda é curta, maiso quantum relativo da energia ligada ao elemento discreto é consi<strong>de</strong>rável. Descobre-se no espaçosocial algo <strong>de</strong> análogo a esta lei <strong>do</strong> espaço físico? Talvez, se é verda<strong>de</strong> que a “base” prática e socialguarda uma existência concreta, se é verda<strong>de</strong> que a contra-violência que se ergue para combater talgran<strong>de</strong> movimento estratégico tem sempre uma origem particular e local, a energia <strong>de</strong> um“elemento” na base, <strong>de</strong> um “movimento” elementar.218) Seja como for, os lugares não se justapõem somente no espaço social, em contraste com aqueles<strong>do</strong> espaço-natureza. Eles se interpõem; se compõem, eles se superpõem e às vezes se chocam. Oresulta<strong>do</strong> é que o local (o “pontual”, <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> por tal ou tal “ponto”) não <strong>de</strong>saparece, absorvi<strong>do</strong>pelo regional, pelo nacional, pelo próprio mundial. O nacional e o regional englobam muitos“lugares”. O espaço nacional engloba regiões; o mundial não apenas envolve espaços nacionais, masprovoca (até nova or<strong>de</strong>m) sua formação, num notável fracionamento. Múltiplos fluxos atravessamesses espaços. O espaço social começa a aparecer em sua hiper-complexida<strong>de</strong>: unida<strong>de</strong>s individuaise particularida<strong>de</strong>s, fixida<strong>de</strong>s relativas, movimentos, fluxos e ondas, uns se compenetram, outros seafrontam etc.219) O princípio da interpenetração e da superposição <strong>do</strong>s espaços sociais comporta uma preciosaindicação: cada fragmento <strong>de</strong> espaço reti<strong>do</strong> pela análise não escon<strong>de</strong> uma relação social, mas umamultiplicida<strong>de</strong> que a análise revela. O mesmo acontece para os objetos: correspon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> àsnecessida<strong>de</strong>s, eles resultam <strong>de</strong> uma divisão <strong>do</strong> trabalho, entram nos circuitos <strong>de</strong> troca etc.220) A hipótese inicial se alarga, se amplia. Agora ela po<strong>de</strong> ser assim formulada:221) a) Existe uma certa analogia entre a situação atual (prática e teórica) e aquela que tendia a seestabelecer na meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XIX. Um conjunto <strong>de</strong> novas questões (uma “problemática”, como sediz no vocabulário <strong>do</strong>s filósofos) <strong>de</strong>sloca os antigos problemas, os substitui e se superpõe a eles sempor isso os abolir.77


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006222) Os mais orto<strong>do</strong>xos, como se diz, entre os marxistas, negaram essa situação. Eles se mantêmsolidamente no exame da produção, no senti<strong>do</strong> habitual: produção <strong>de</strong> coisas, <strong>de</strong> “bens”, <strong>de</strong>merca<strong>do</strong>rias. Concordariam exatamente a idéia <strong>de</strong> que a “cida<strong>de</strong>”, constituin<strong>do</strong> um meio <strong>de</strong> produção(qualquer coisa a mais que os “fatores produtivos” que ela reúne), possui um conflito entre o carátersocial <strong>de</strong>sta produção e a proprieda<strong>de</strong> privada <strong>do</strong>s lugares. O que trivializa o pensamento como acrítica. Alguns, parece, chegam a dizer que as questões relativas ao espaço, à cida<strong>de</strong>, à terra e aourbano, obscurecem a “consciência <strong>de</strong> classe” e prejudicam a luta <strong>de</strong> classes. Uma tal imbecilida<strong>de</strong>merece que nela nos retar<strong>de</strong>mos? Não. Contu<strong>do</strong>, a revisitaremos mais tar<strong>de</strong>.223) b) Trata-se principalmente <strong>do</strong> espaço. A problemática <strong>do</strong> espaço, envolven<strong>do</strong> as <strong>do</strong> urbano (acida<strong>de</strong>, sua extensão) e <strong>do</strong> cotidiano (o consumo programa<strong>do</strong>), <strong>de</strong>sloca a problemática daindustrialização. Sem, por isso, a abolir, pois as relações sociais preexistentes subsistem e oproblema novo é precisamente o <strong>de</strong> sua reprodução.224) c) No tempo <strong>de</strong> Marx, a ciência econômica (as tentativas para se constituir a economia políticaem ciência) se per<strong>de</strong>u no inventário, na <strong>de</strong>scrição, na contabilização <strong>do</strong>s produtos (objetos, coisas).Os especialistas já dividiam essas tarefas – servin<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> conceitos ou pseu<strong>do</strong>-conceitos que aindanão eram ditos “operacionais” e que, não obstante, já permitiam classificar, contar as “coisas”, asorganizar sobre prateleiras mentais. A este estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> coisas, tomadas “em si”, umas fora das outras,Marx substituiu a análise crítica da própria ativida<strong>de</strong> produtiva (trabalho social, relações e mo<strong>do</strong> <strong>de</strong>produção). Retoman<strong>do</strong> e renovan<strong>do</strong> a iniciativa <strong>do</strong>s funda<strong>do</strong>res da ciência dita econômica (Smith,Ricar<strong>do</strong>), ele juntou a isto a análise crítica <strong>do</strong> capitalismo, levan<strong>do</strong> assim o conhecimento a um nívelmais eleva<strong>do</strong>.225) d) Hoje não se impõe uma démarche análoga? Agora, o espaço <strong>de</strong>ve ser analisa<strong>do</strong> como,outrora, as coisas no espaço: <strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong> nele as relações sociais. A tendência <strong>do</strong>minante fragmenta,recorta o espaço. Ela inventaria os conteú<strong>do</strong>s <strong>do</strong> espaço, as coisas, os objetos diversos. Especialistas<strong>de</strong>smembram o espaço e sobre ele agem parcelan<strong>do</strong>-o, colocan<strong>do</strong> barreiras mentais e cercas práticosociais.Assim, o arquiteto teria por proprieda<strong>de</strong> (privada) o espaço arquitetural, como o economistateria para si o espaço econômico, o geógrafo seu “lugar, seu “bem” ao sol” no espaço, e assimsucessivamente. A tendência i<strong>de</strong>ologicamente <strong>do</strong>minante reparte, segun<strong>do</strong> a divisão social <strong>do</strong>trabalho social, as partes e parcelas <strong>do</strong> espaço. Ela representa as forças que o ocupam, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>ocomo receptáculo passivo. No lugar <strong>de</strong> revelar as relações sociais implicadas nos espaços (aíincluídas as relações <strong>de</strong> classe), no lugar <strong>de</strong> se voltar para a produção <strong>do</strong> espaço e para as relaçõessociais inerentes a essa produção (que introduzem nela contradições específicas, retoman<strong>do</strong> acontradição entre a proprieda<strong>de</strong> privada <strong>do</strong>s meios <strong>de</strong> produção e o caráter social das forçasprodutivas), cai-se na armadilha <strong>do</strong> espaço “em si” e como tal: da espacialida<strong>de</strong>, <strong>do</strong> fetichismo <strong>do</strong>78


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006espaço. Como anteriormente nas armadilhas da troca, <strong>do</strong> fetichismo da merca<strong>do</strong>ria e da “coisa”consi<strong>de</strong>rada isoladamente, tomada “em si”.226) e) Sem dúvida, a problemática <strong>do</strong> espaço nasce <strong>de</strong> um crescimento das forças produtivas (termomais exato que o “crescimento” em geral, abstração cheia <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias). Forças produtivas etécnicas permitem intervir a to<strong>do</strong>s os níveis <strong>do</strong> espaço: local, regional, nacional, planetário.Modifica-se o espaço inteiro (geográfico, histórico) sem revogar suas implicações, os “pontos”iniciais, os primeiros <strong>do</strong>micílios e núcleos, os lugares (localida<strong>de</strong>s, regiões, país) situa<strong>do</strong>s emdiferentes níveis <strong>do</strong> espaço social que substitui o espaço-natureza por um espaço-produto. Do espaçoproduto, <strong>do</strong> espaço da produção (das coisas no espaço), o pensamento reflexionante [que reflete]passa assim à produção <strong>do</strong> espaço como tal, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao crescimento contínuo (relativamente) dasforças produtivas, mas nos quadros <strong>de</strong>scontínuos (relativamente) das relações e <strong>do</strong>s mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong>produção. Resulta que para apreen<strong>de</strong>r o conceito proposto, ou seja, a produção <strong>do</strong> espaço, énecessário <strong>de</strong> início dissipar as i<strong>de</strong>ologias que mascaram o uso das forças produtivas no seio <strong>do</strong>smo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> produção em geral e, em particular, <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção existente. É preciso, portanto,<strong>de</strong>struir as i<strong>de</strong>ologias da espacialida<strong>de</strong> (abstrata), os recortes e representações <strong>do</strong> espaço, ou seja, asi<strong>de</strong>ologias que não se dão como tais, evi<strong>de</strong>ntemente, mas explicitamente para saber. Esta críticaesten<strong>de</strong> [tira/obtém/<strong>de</strong>riva] sua dificulda<strong>de</strong> e sua complexida<strong>de</strong> daquilo que ela traz ao mesmo temposobre as formas (mentais) <strong>do</strong> espaço e sobre seus conteú<strong>do</strong>s práticos (sociais).227) f) Há anos a ciência <strong>do</strong> espaço se busca por diversos encaminhamentos: a filosofia, aepistemologia, a ecologia, a geopolítica, a análise sistêmica (análise <strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong>cisórios e <strong>de</strong>sistemas cognitivos), a antropologia, a etnologia etc. Esta ciência virtual, tão próxima, não chega.Suplício <strong>de</strong> Tântalo 47 para os pesquisa<strong>do</strong>res. Começa-se a saber porque. O conhecimento <strong>do</strong> espaçooscila entre a <strong>de</strong>scrição e a fragmentação. Descrevem-se coisas no espaço, ou porções <strong>de</strong> espaço.Recorta-se espaços parciais no espaço social. Apresenta-se, assim, um espaço geográfico, ouetnológico, um espaço da <strong>de</strong>mografia, um espaço da informática etc. Ou ainda um espaço pictural,um espaço musical, um espaço plástico. Esquece-se que assim se vai no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> umafragmentação <strong>de</strong>sejada não somente pela linguagem e pelos especialistas, mas pela socieda<strong>de</strong>existente, que recorta a si própria em espaços heteróclitos, no seio <strong>de</strong> uma totalida<strong>de</strong> severamentecontrolada, portanto, nesse senti<strong>do</strong> homogêneo: os espaços <strong>do</strong> habitat, <strong>do</strong> trabalho, <strong>do</strong>s lazeres, osespaços <strong>do</strong> esporte, <strong>do</strong> turismo, da astronáutica etc. Então, a atenção se dispersa e se per<strong>de</strong> em47 Filho <strong>de</strong> Zeus, ele tem favores <strong>do</strong>s <strong>de</strong>uses, mas abusa revelan<strong>do</strong> aos mortais os segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Olimpo ou extorquin<strong>do</strong> o néctare a ambrosia. Há uma versão na qual ele sacrifica seu filho Pélops e o serve aos <strong>de</strong>uses. Por um <strong>de</strong>stes crimes, ele é envia<strong>do</strong>exemplarmente ao inferno ou coloca<strong>do</strong> em um roche<strong>do</strong> sempre a ponto <strong>de</strong> cair ou colidir, ou ele é mergulha<strong>do</strong> na água até o79


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006consi<strong>de</strong>rações ora sobre o que há no espaço (as coisas, tomadas à parte, relacionadas a elas mesmas,a seu passa<strong>do</strong>, a seus nomes), ora sobre o espaço vazio (separa<strong>do</strong> <strong>do</strong> que ele contém), ora, portanto,sobre os objetos no espaço, ora sobre o espaço sem objeto, neutro. É então, por conseguinte, emrecortes e representações que se per<strong>de</strong> este conhecimento, integra<strong>do</strong> sem o saber à socieda<strong>de</strong>existente, operan<strong>do</strong> em seus marcos. Freqüentemente aban<strong>do</strong>na-se o global, aceitan<strong>do</strong>-se afragmentação e reunin<strong>do</strong>-se os pedaços. Às vezes “totaliza-se” arbitrariamente à partir <strong>de</strong>sta oudaquela: tal ou qual especialida<strong>de</strong>. Será preciso mostrar a diferença entre a “ciência <strong>do</strong> espaço”sonhada ou buscada, e o conhecimento <strong>de</strong> sua produção. Esta, diferente <strong>do</strong>s recortes, interpretações,representações, reencontrará o tempo (e <strong>de</strong> início aquele da produção) no e através <strong>do</strong> espaço.228) g) Este conhecimento tem um alcance retrospectivo e um alcance prospectivo. Se a hipótese seconfirma, ele reage sobre a história, por exemplo, e sobre o conhecimento <strong>do</strong> tempo. Ele permitirámelhor compreen<strong>de</strong>r como as socieda<strong>de</strong>s engendraram seu espaço e seu tempo (sociais), quer dizerseus espaços <strong>de</strong> representação e suas representações <strong>do</strong> espaço. Igualmente, ele <strong>de</strong>verá permitir, nãoprever o futuro, mas fornecer elementos a serem coloca<strong>do</strong>s em perspectiva no futuro: ao projeto <strong>de</strong>um outro espaço e <strong>de</strong> um outro tempo numa socieda<strong>de</strong> outra, possível ou impossível…229) II.4 Crítica <strong>do</strong> espaço! Se propomos este projeto sem antecipá-lo, ele po<strong>de</strong> passar por umpara<strong>do</strong>xo intelectualmente escandaloso. Uma crítica <strong>do</strong> espaço tem um senti<strong>do</strong>? Critica-se alguém oualguma coisa; porém, o espaço não é pessoa nem coisa. Como diria um filósofo: isto não é nem umsujeito, nem um objeto. Como se pren<strong>de</strong>r a ele? Ele escapa às tomadas <strong>do</strong> espírito dito crítico, esseespírito que parece ter atingi<strong>do</strong> seus limites com a “teoria crítica”, versão enfraquecida <strong>do</strong> marxismo.Não seria por esta razão que ainda não existe, ao la<strong>do</strong> da “crítica <strong>de</strong> arte”, da “crítica literária”, dascríticas teatrais, musicais etc., uma crítica arquitetural e urbanística? Aparentemente sua existência seimpõe; seu “objeto” tem pelo menos tanta importância e interesse quanto os objetos estéticos <strong>de</strong>consumo corrente. Trata-se <strong>do</strong> “quadro da vida”, como se diz. Mas a crítica literária, pictural, teatralvisa pessoas, instituições: os pintores, os comerciantes <strong>de</strong> quadros, as galerias, as exposições, osmuseus, - ou então os editores, os escritores, o merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> consumo cultural. O espaço arquitetural eurbanístico parece fora <strong>de</strong> alcance. No plano mental, ele apresenta nomes prestigiosos: legibilida<strong>de</strong>,visibilida<strong>de</strong>, inteligibilida<strong>de</strong>; no plano social, se dá pelo intangível resulta<strong>do</strong> da história, dasocieda<strong>de</strong>, da cultura nele reuni<strong>do</strong>s. A ausência <strong>de</strong> uma crítica <strong>do</strong> espaço <strong>de</strong>correria somente <strong>de</strong> umafalta <strong>de</strong> linguagem apropriada? Talvez, mas mesmo essa falta tem razões que merecem ser reveladas.pescoço, mas o nível d’água abaixa cada vez que ele tenta beber; <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong>, um ramo carrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> frutos atinge a suamão mas <strong>de</strong>la escapa quan<strong>do</strong> ele se esforça para apanhá-las. (N.T.)80


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006230) Contu<strong>do</strong>, se os espaços não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m nem da imagem mítica <strong>de</strong> uma transparência pura, nem<strong>do</strong> mito inverso, a opacida<strong>de</strong> natural, - se eles dissimulam o que eles contêm sob significações,insignificâncias ou sobre-significâncias, - se às vezes eles mentem como coisas, mesmo que nãosejam coisas, a crítica <strong>do</strong> espaço possui um senti<strong>do</strong>.231) Eventualmente, esta crítica romperá as aparências que não têm nada <strong>de</strong> falacioso. Eis uma casa,uma rua. Esta casa <strong>de</strong> seis andares tem aparência estável; nela po<strong>de</strong>ríamos mesmo ver o símbolo dafixi<strong>de</strong>z: concreto, linhas exatas, frias, rígidas. Construída em torno <strong>de</strong> 1950. Ainda não é <strong>de</strong> metal evidro! Porém, esta rigi<strong>de</strong>z não resiste à análise. Que o pensamento <strong>de</strong>snu<strong>de</strong> este imóvel <strong>de</strong> suasplacas <strong>de</strong> concreto, <strong>de</strong> suas estreitas muralhas, quase muros-cortinas. Como ele aparece nesta análiseimaginária? Ele se cerca <strong>de</strong> todas as partes nos fluxos <strong>de</strong> energia que o percorrem, o atravessam <strong>de</strong>um la<strong>do</strong> a outro: a água, o gás, a eletricida<strong>de</strong>, o telefone, as ondas <strong>de</strong> rádio e televisão. A fixi<strong>de</strong>z seconverte num nó <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> condutos que fornecem [alimentam/nutrem] e evacuam. Umaimagem <strong>do</strong> imóvel, mais exata que um <strong>de</strong>senho ou uma foto, mostraria a convergência <strong>de</strong>stas ondase fluxos, mostran<strong>do</strong> ao mesmo tempo neste “imóvel”, coisa aparentemente imóvel, uma duplamáquina análoga a um corpo ativo: máquina <strong>de</strong> energias massivas, máquina <strong>de</strong> informação. Aspessoas contidas pela casa percebem, recebem, manipulam essas energias, que a própria casaconsome massivamente (para o eleva<strong>do</strong>r, para a cozinha e os banhos etc.). Do mesmo mo<strong>do</strong>, a ruainteira, re<strong>de</strong> <strong>de</strong> canalizações constituin<strong>do</strong> uma estrutura, ten<strong>do</strong> uma forma global, executan<strong>do</strong>funções. Assim como a cida<strong>de</strong>, que consome e consuma energias colossais, físicas e humanas, quecintila e ar<strong>de</strong> como um braseiro. De mo<strong>do</strong> que a representação tão exata quanto possível <strong>de</strong>ste espaçodiferirá bastante <strong>do</strong> espaço <strong>de</strong> representação que as pessoas que o habitam têm em sua cabeça e que,no entanto, integra a prática social.232) Segue-se um erro, ou uma ilusão: colocar o espaço social fora <strong>de</strong> alcance, escamoteia seu caráterprático para gerar uma espécie <strong>de</strong> absoluto à maneira <strong>do</strong>s filósofos. De mo<strong>do</strong> que o “usuário” fazespontaneamente abstração <strong>de</strong> si, <strong>de</strong> sua presença, <strong>de</strong> seu “vivi<strong>do</strong>” e <strong>de</strong> seu corpo, face a estaabstração tornada fetiche. O espaço abstrato fetichiza<strong>do</strong> engendra, ao mesmo tempo, essa abstraçãoprática <strong>do</strong> “usuário” que não se percebe num tal espaço, e a abstração da reflexão, que não concebe acrítica. Inverten<strong>do</strong> a tendência, é preciso, ao contrário, mostrar que a análise crítica <strong>do</strong> espaço“vivi<strong>do</strong>” coloca questões mais graves que tal ou qual ativida<strong>de</strong> importante, mas parcial: a literatura, aleitura e a escrita, a pintura, a música. O espaço? Para o “vivi<strong>do</strong>”, não se trata nem <strong>de</strong> um simples“quadro” [<strong>de</strong> uma simples “moldura”], comparável ao quadro [à moldura] <strong>de</strong> uma tabela, nem <strong>de</strong>uma forma ou recipiente quase indiferentes, <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> somente a receber o que nele colocamos. Oespaço é a morfologia social; é portanto ao “vivi<strong>do</strong>” isto que é ao organismo vivo sua própria forma,intimamente ligada às funções e estruturas. Pensar o espaço à maneira <strong>de</strong> um “quadro” ou <strong>de</strong> uma81


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006caixa, na qual entra não importa qual objeto, contanto que o conteú<strong>do</strong> seja menor que o recipiente, eque este não tenha outra atribuição senão a <strong>de</strong> guardar o conteú<strong>do</strong>, é sem dúvida o erro inicial. Erro?I<strong>de</strong>ologia? Mais esta que aquela. Mas então, o que propaga <strong>de</strong>sta ilusão i<strong>de</strong>ológica? Quem <strong>de</strong>la seserve? Por que e como?233) Contentar-se em ver um espaço sem o conceber, sem concentrar num ato mental o que se dá <strong>de</strong>maneira dispersa, não atingir o conjunto da “realida<strong>de</strong>” a partir <strong>do</strong>s <strong>de</strong>talhes, não pensar os contornosapreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-os nas suas relações no seio <strong>do</strong> recipiente formal, eis o erro teórico, cuja <strong>de</strong>núnciapo<strong>de</strong>ria eventualmente levar à <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> algumas gran<strong>de</strong>s ilusões i<strong>de</strong>ológicas! É o que propõemas consi<strong>de</strong>rações prece<strong>de</strong>ntes; elas tentaram mostrar que o espaço “neutro”, “objetivo”, fixo,transparente, inocente ou indiferente em aparência, não é apenas a instalação cômoda <strong>de</strong> um saberinoperante, não é somente um erro que se elu<strong>de</strong> falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> “ambiente”, da ecologia, da natureza e daanti-natureza, da cultura e assim por diante. É um conjunto <strong>de</strong> erros, um complexo <strong>de</strong> ilusões. Nolimite, esquece-se totalmente que existe um sujeito total que age para conservar e reproduzir suaspróprias condições, a saber: o Esta<strong>do</strong> (apoia<strong>do</strong> sobre as classes sociais e frações <strong>de</strong> classe). Esquecesetambém que existe um objeto total, o espaço político absoluto, o espaço estratégico que busca seimpor como realida<strong>de</strong>, ao passo que é apenas uma abstração, embora <strong>do</strong>tada <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res enormesporque lugar e meio <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r. Don<strong>de</strong> a abstração <strong>do</strong> “usuário” e <strong>do</strong> pensamento dito crítico, que seesquecem diante <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s Fetiches.234) A essa verda<strong>de</strong> po<strong>de</strong>-se chegar por diversas vias. É necessário ainda se engajar numa <strong>de</strong>ssas viase por esta repudiar os álibis, recusar a fuga (mesmo para frente!). Correntemente remete-se aosespecialistas e às especialida<strong>de</strong>s o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> espaço “real”, ou seja, social: aos geógrafos, aosurbanistas, aos sociólogos etc. Enquanto que o conhecimento <strong>do</strong> espaço “verda<strong>de</strong>iro”, quer dizermental, é <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> aos matemáticos e aos filósofos. Duplo ou múltiplo erro. E, <strong>de</strong> início, a cisãoentre o “real” e o “verda<strong>de</strong>iro” evita <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a origem a confrontação entre a prática e a teoria, entre ovivi<strong>do</strong> e o conceito, o que mutila cada parte interceptada. Em seguida, existe uma armadilha emremeter às especialida<strong>de</strong>s que prece<strong>de</strong>m a “mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>”, anteriores à época na qual o capitalismoabsorveu o espaço inteiro para o utilizar, e na qual, <strong>de</strong> outra parte, as ciências e as técnicaspermitiram a produção <strong>do</strong> espaço. Suprema ilusão: consi<strong>de</strong>rar os arquitetos, urbanistas ouplanifica<strong>do</strong>res como peritos em espaço, juízes supremos da espacialida<strong>de</strong>. Os “interessa<strong>do</strong>s” não seapercebem que assim eles torcem a <strong>de</strong>manda diante da encomenda, e que esse aban<strong>do</strong>no ocorrediante <strong>do</strong>s anseios <strong>do</strong>s que manipulam as consciências! Ao passo que é necessário revelar e estimulara <strong>de</strong>manda, mesmo se ela verga e a encomenda se impõe opressivamente-repressivamente. O reenvio<strong>do</strong> “vivi<strong>do</strong>”, da morfologia <strong>do</strong> quotidiano, aos especialistas não seria o erro i<strong>de</strong>ológico?82


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006235) Que cada um olhe o espaço em torno <strong>de</strong> si. O que ele vê? Ele vê o tempo? Ele o vive. Ele está<strong>de</strong>ntro. Cada um vê apenas movimentos. Na natureza, o tempo se apreen<strong>de</strong> no espaço, no coração,no seio <strong>do</strong> espaço: a hora <strong>do</strong> dia, a estação, a altura <strong>do</strong> sol acima <strong>do</strong> horizonte, o lugar da lua e dasestrelas no céu, o frio e o calor, a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada ser natural. Antes que a natureza seja localizada nosub<strong>de</strong>senvolvimento, cada lugar carrega sua ida<strong>de</strong> e a marca, como o tronco <strong>de</strong> uma árvore, <strong>do</strong>tempo em que foi engendra<strong>do</strong>. O tempo se inscreve no espaço e o espaço-natureza é apenas a escritalírica e trágica <strong>do</strong> tempo-natureza. Não digamos, como alguns filósofos, a <strong>de</strong>gradação da duração, ouo simples resulta<strong>do</strong> da “evolução”. Ora, o tempo <strong>de</strong>saparece no espaço social da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Ele seescreve apenas sobre os aparelhos <strong>de</strong> medida, isola<strong>do</strong>s, eles também especializa<strong>do</strong>s: os relógios. Otempo vivi<strong>do</strong> per<strong>de</strong> forma e interesse social, exceto o tempo <strong>do</strong> trabalho. O espaço econômico<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong> [se subordina ao] tempo; quanto ao espaço político, ele o evacua como ameaçante eperigoso (para o po<strong>de</strong>r). A priorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> econômico e, mais ainda, a <strong>do</strong> político provoca asupremacia <strong>do</strong> espaço sobre o tempo. Po<strong>de</strong>r-se-ia dizer, portanto, que o erro concernente ao espaçose refere na verda<strong>de</strong> e mais intimamente ao tempo: mais próximo ainda, mais fundamental que oespaço. O tempo, esse “vivi<strong>do</strong>” essencial, esse bem entre os bens, não se vê, não se lê. Não seconstrói. Ele se consome, se exaure, e isto é o fim. O tempo <strong>de</strong>ixa apenas marcas. Ele se dissimulano espaço sob os fragmentos que o encobrem e <strong>do</strong>s quais nos livramos o mais rápi<strong>do</strong>: os rejeitospoluem.236) Essa evacuação aparente <strong>do</strong> tempo não seria um <strong>do</strong>s traços característicos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>? Elanão teria um alcance maior <strong>do</strong> que um simples apagamento <strong>de</strong> traços, <strong>de</strong> rasuras sobre uma folha <strong>de</strong>papel? Se é verda<strong>de</strong> que o tempo é avalia<strong>do</strong> em dinheiro, que é compra<strong>do</strong> e vendi<strong>do</strong> como um objetoqualquer (tempo é dinheiro!), ele <strong>de</strong>saparece como tal; ele nem é mais uma dimensão <strong>do</strong> espaço, maso rascunho ou a garatuja que uma apuração bem feita vai apagar. Tal evacuação visaria o tempo ditohistórico? Sim, mas a título <strong>de</strong> símbolo. Este é o tempo <strong>de</strong> viver, o tempo como bem irredutível queelu<strong>de</strong> a lógica da visualização e da espacialização, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que exista lógica. Elevada à dignida<strong>de</strong>ontológica pelos filósofos, o tempo é abati<strong>do</strong> pela socieda<strong>de</strong>.237) Como uma operação tão inquietante, tão monstruosa po<strong>de</strong> se realizar sem escândalo? Comopo<strong>de</strong> parecer “normal”? Resposta: ela se inclui precisamente nas normas sociais, nas ativida<strong>de</strong>snormativas. Este trio, a “legibilida<strong>de</strong>-visibilida<strong>de</strong>-inteligibilida<strong>de</strong>”, esta tría<strong>de</strong>, esta trinda<strong>de</strong>mo<strong>de</strong>rnista, não conteria a fonte <strong>de</strong> muitos erros, ou, pior ainda: <strong>de</strong> mentiras?238) Eis-nos, portanto, longe <strong>do</strong> prático-social, nas velhas distinções entre a aparência e o real, averda<strong>de</strong> e a mentira, a ilusão e a revelação, numa palavra na filosofia? Sim e não. Que esta análisecrítica prolonga a filosofia, nenhuma dúvida; isso já foi dito acima. Contu<strong>do</strong>, “o objeto” da crítica se<strong>de</strong>sloca. Trata-se das ativida<strong>de</strong>s práticas e sociais que passam por conter e “mostrar” a verda<strong>de</strong>, e83


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006que, em verda<strong>de</strong>, fracionam o espaço e “mostram” os resulta<strong>do</strong>s mentirosos <strong>de</strong>sses recortes.Preten<strong>de</strong>-se mostrar o espaço em meio ao próprio espaço. Essa operação, que se <strong>de</strong>nomina“tautologia”, usa e abusa <strong>de</strong> uma démarche conhecida, da qual é tão fácil abusar quanto usar: apassagem da parte ao to<strong>do</strong> (a metonímia). Eis aqui imagens: <strong>de</strong> fotos, da publicida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> filmes. Aimagem po<strong>de</strong> revelar um erro sobre o espaço? Dificilmente. Se existe um erro ou ilusão, a imagem aescon<strong>de</strong>; ela o consolida. Por mais “bela” que seja, ela se situa no “meio” incrimina<strong>do</strong>: Se o erroconsiste numa fragmentação <strong>do</strong> espaço – e se a ilusão consiste no <strong>de</strong>sconhecimento <strong>de</strong>sse<strong>de</strong>slocamento – nenhuma imagem <strong>de</strong>nunciará o erro. Ao contrário. A imagem fragmenta; ela é umfragmento <strong>do</strong> espaço. Recorte-montagem, eis a primeira e a última palavra da arte das imagens. Oerro e a ilusão? Encontrar-se-ão também no olho <strong>do</strong>s artistas e no seu olhar, no “objetivo” <strong>do</strong>fotógrafo, no lápis <strong>do</strong> <strong>de</strong>senhista e em sua folha branca. O erro se introduz nos objetos que o artistadistingue e os grupos <strong>de</strong> objetos que ele efetua. Se existe ilusão, o mun<strong>do</strong> óptico e visual <strong>de</strong>la fazparte integrada-integrante, preda<strong>do</strong>r e presa. Ele fetichiza a abstração, norma imposta. Ele separa aforma pura <strong>de</strong> seu impuro conteú<strong>do</strong>, o tempo-vivi<strong>do</strong>, o tempo cotidiano, aquele <strong>do</strong>s corpos, <strong>de</strong> suaespessura opaca, <strong>de</strong> seu calor, <strong>de</strong> sua vida e <strong>de</strong> sua morte. À sua maneira, a imagem mata. Comoto<strong>do</strong>s os signos. Às vezes, contu<strong>do</strong>, a ternura e a cruelda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um artista transgri<strong>de</strong>m os limites daimagem. Algo aflora, uma outra verda<strong>de</strong> e uma outra realida<strong>de</strong> que as da exatidão, da clareza, dalegibilida<strong>de</strong>, da plasticida<strong>de</strong>. O que vale para as imagens como para os sons, para as palavras, para otijolo e o concreto, para to<strong>do</strong>s os signos 48 .239) Esse espaço tem efeitos estranhos. Ele incita o <strong>de</strong>sejo. Na sua transparência, o <strong>de</strong>sejo se ergue:ele se apo<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>sse campo livre (em aparência). E eis que ele recai. Ele não tem nem objeto<strong>de</strong>sejável o esperan<strong>do</strong>, nem obra <strong>de</strong> seu ato. Inutilmente ele ten<strong>de</strong> para a plenitu<strong>de</strong> e se satisfaz <strong>de</strong>palavras, a retórica <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo. Após essa <strong>de</strong>cepção, o espaço parece vazio. As palavras mencionamesse vazio. Espaços <strong>de</strong>sola<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>sola<strong>do</strong>res, incompreensivelmente (é preciso uma longa reflexão).“Nada é permiti<strong>do</strong>. Nada é proibi<strong>do</strong>” escreveu um habitante. Espaços estranhos: homogêneos,racionais, constrange<strong>do</strong>res como tais e contu<strong>do</strong> <strong>de</strong>sloca<strong>do</strong>s. Sem fronteiras. Elas <strong>de</strong>sapareceram entrea cida<strong>de</strong> e o campo, entre as periferias e os centros, entre os subúrbios e os núcleos urbanos, entre o<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s automóveis e o das pessoas. Entre o infortúnio e a felicida<strong>de</strong>! E, todavia, tu<strong>do</strong> ésepara<strong>do</strong>, projeta<strong>do</strong> isoladamente sobre “lotes” e “ilhas” <strong>de</strong>sunidas: os “equipamentos”, os imóveis,o habitat: os espaços, como os trabalhos na divisão social e técnica <strong>do</strong> trabalho, são especializa<strong>do</strong>s.240) Desse espaço, po<strong>de</strong>-se dizer que ele supõe e propõe uma lógica da visualização. Quan<strong>do</strong> uma“lógica” dirige uma série operacional, trata-se <strong>de</strong> uma estratégia, consciente ou inconsciente. Se48 Cf. Politique-Heb<strong>do</strong>, 29 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1972, apresentação <strong>de</strong> uma reportagem fotográfica <strong>de</strong> Henri Cartier-Bresson.84


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006existe “lógica da visualização”, convém mostrar a formação e o emprego. A orgulhosa verticalida<strong>de</strong>das casas-torres, <strong>do</strong>s edifícios públicos e sobretu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s prédios estatais inclui no visual umaarrogância fálica, ou melhor, falocrática; ela se exibe, se faz ver, mas para que nela cada especta<strong>do</strong>rperceba a autorida<strong>de</strong>. O vertical e a altura sempre manifestaram espacialmente a presença <strong>de</strong> umpo<strong>de</strong>r capaz <strong>de</strong> violência. Em relação ao especta<strong>do</strong>r, essa espacialização muito particular, ainda quepara muitos ela pareça “normal” e mesmo “natural”, implica uma dupla “lógica”, ou seja, uma duplaestratégia. A lógica da metonimização consiste numa incessante passagem, suscitada e imposta, daparte ao to<strong>do</strong> (num imóvel composto <strong>de</strong> volumes empilha<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> “caixas para habitar”, o especta<strong>do</strong>re o habitante, que ten<strong>de</strong>m a coincidir, pren<strong>de</strong>n<strong>do</strong> imediatamente a relação da parte ao to<strong>do</strong> e sepren<strong>de</strong>n<strong>do</strong> nessa relação). Essa passagem compensa, por uma constante extensão <strong>de</strong> escala, o que apequenez <strong>do</strong>s volumes tem <strong>de</strong> irrisório; ele põe, supõe, impõe uma homogeneida<strong>de</strong> na separação <strong>do</strong>slugares; no limite, ele toma uma aura lógica, portanto tautológica: o espaço contém o espaço, ovisível contém o visível e a caixa se encaixa na caixa.241) A segunda “lógica” implicada nessa espacialização é uma lógica (estratégia) da metáfora ou,antes, da incessante metaforização. Os corpos vivos [viventes], os <strong>do</strong>s “usuários”, presos naengrenagem <strong>de</strong> partes <strong>do</strong> espaço, também o são pelos análogos, em termos filosóficos: imagens,signos e símbolos. Transporta<strong>do</strong>s fora <strong>de</strong> si, transferi<strong>do</strong>s, os corpos vivos [viventes] se esvaziampelos olhos: chama<strong>do</strong>s, interpelações, solicitações múltiplas propõem aos corpos vivos [viventes]duplos <strong>de</strong>les próprios, mais bonitos [embeleza<strong>do</strong>s], sorri<strong>de</strong>ntes, felizes; e os evacuam [esvaziam] namedida exata em que a proposição correspon<strong>de</strong> a uma “necessida<strong>de</strong>” para cuja formação, aliás, elacontribui. A entrada <strong>de</strong> informações, as chegadas massivas <strong>de</strong> mensagens reencontram estemovimento inverso: a evacuação, no seio mesmo <strong>do</strong> corpo, <strong>de</strong> sua vida, <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sejo. Não é até oscarros que funcionam como análogos: ao mesmo tempo extensão <strong>do</strong> corpo e casa ambulante queacolhe esses corpos a <strong>de</strong>riva. As palavras, a dispersão <strong>de</strong> fragmentos <strong>do</strong> discurso não bastariam, semos olhos e o espaço existente, para essa “transferência” <strong>do</strong>s corpos.242) Metáforas e metonímias. Estes conceitos bem conheci<strong>do</strong>s são empresta<strong>do</strong>s da lingüística.Todavia, não se trata <strong>de</strong> palavras, mas <strong>do</strong> espaço e da prática espacial. Um tal empréstimo exige umexame profun<strong>do</strong> das relações entre espaço e linguagem.243) Um espaço <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>, portanto compartimenta<strong>do</strong>, aceita este e rejeita aquela (na nostalgia àsvezes, ou no simples interdito). Ele afirma, nega, contesta. Existem certos atributos <strong>do</strong> “sujeito” eoutros <strong>do</strong> “objeto”. Uma fachada, dispõe <strong>de</strong> uma potência muita forte: ela admite no visível certosatos, seja sobre a fachada (balcões, apoios <strong>de</strong> janelas [parapeitos] etc.), seja a partir da fachada(<strong>de</strong>sfiles na rua etc.). Ela rejeita para o obsceno muitos outros atos, que se passam atrás da fachada.O que já evoca uma psicanálise <strong>do</strong> espaço.85


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006244) A propósito da cida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> suas extensões (subúrbios, periferias) reencontramos às vezes asexpressões: “<strong>do</strong>ença <strong>do</strong> espaço”, “espaços <strong>do</strong>entes”. O que permitia a este ou aquele - arquiteto,urbanista, planifica<strong>do</strong>r -, <strong>de</strong>nominar-se “médico <strong>do</strong> espaço”, ou sugerir essa idéia. O quegeneralizava representações particularmente mistifica<strong>do</strong>ras: a cida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna não resulta dasocieda<strong>de</strong> capitalista (ou neocapitalista) mas <strong>de</strong> uma <strong>do</strong>ença da socieda<strong>de</strong>.245) Estas fórmulas <strong>de</strong>sviam a crítica <strong>do</strong> espaço e substituem a análise crítica por esquemas aomesmo tempo pouco racionais e muito reacionários. No limite, a socieda<strong>de</strong> inteira e “o homem”enquanto ser social po<strong>de</strong>m passar por <strong>do</strong>enças da Natureza. Tese filosoficamente <strong>de</strong>fensável: não éinterdita<strong>do</strong> pensar que “o homem” é um monstro, um erro, um malogro num planeta fracassa<strong>do</strong>. E<strong>de</strong>pois? Dessa filosofia, como <strong>de</strong> várias outras só resulta um niilismo.246) II.5 Por que não tomar, hic et nunc, uma <strong>de</strong>cisão: a <strong>de</strong> se inspirar d’O capital <strong>de</strong> Marx? Não parao recortar em citações, ou para se entregar a uma última exegese, mas para tratar <strong>do</strong> espaço seguin<strong>do</strong>o plano <strong>de</strong>ssa obra. Muitos motivos e razões conduzem nesse senti<strong>do</strong>, incluin<strong>do</strong> a problemática e suaanalogia com a <strong>do</strong> século XIX. Hoje se encontram “marxistas” para pensar [existem “marxistas” quepensam] que as questões colocadas pelo espaço (as questões urbanas, as da gestão <strong>do</strong> território)obscurecem os verda<strong>de</strong>iros problemas políticos. Atrela<strong>do</strong> à obra <strong>de</strong> Marx, o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> espaçoafastaria grosseiros mal-entendi<strong>do</strong>s.247) Não é até no plano d’O capital que não parece se impor. As numerosas leituras e releituras <strong>do</strong>livro (das quais as mais literais parecem as melhores) esclareceram esse plano. Nos trabalhospreparatórios, Marx atualizou conceitos essenciais, como, por exemplo, o <strong>de</strong> trabalho (social). Emtodas as socieda<strong>de</strong>s existiu trabalho e representações <strong>de</strong>le (pena, punição etc.), mas o conceito sóemergiu no século XVIII. Marx mostra como e porque. Estabelecida essa preliminar, Marx passa aoessencial, que não é uma substância ou uma “realida<strong>de</strong>”, mas uma forma. No início e no centro,Marx <strong>de</strong>scobre uma forma (quase) pura, a da comunicação <strong>do</strong>s bens materiais, a da troca. Formaquase lógica, próxima <strong>de</strong> outras formas “puras” e, a<strong>de</strong>mais, em relação com elas: a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e adiferença, a equivalência, a coerência, a reciprocida<strong>de</strong>, a recorrência, a repetição. A comunicação e atroca <strong>de</strong> bens materiais se distinguem da comunicação e da troca <strong>de</strong> signos (linguagem, discurso)mas <strong>de</strong>las não se separam. A forma “pura” tem uma estrutura polar (valor <strong>de</strong> uso-valor <strong>de</strong> troca) efunções expostas pela obra <strong>de</strong> Marx. Essa abstração concreta se <strong>de</strong>senvolve no pensamento como se<strong>de</strong>senvolveu no tempo e no espaço, até à prática social: a moeda, o dinheiro, o trabalho e suas<strong>de</strong>terminações (seu movimento dialético: individual e social, dividi<strong>do</strong> e global, particular e médio,qualitativo e quantitativo). Como se sabe, este <strong>de</strong>senvolvimento, mais enriqueci<strong>do</strong> pelos conceitosque a <strong>de</strong>dução clássica, mais leve que a indução ou a construção, irá até a mais-valia. O pivô não86


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006muda; para<strong>do</strong>xo dialético, é um quase-vazio, uma quase ausência: a forma da troca que rege a práticasocial.248) Ora, conhece-se a forma <strong>do</strong> espaço social. Ela foi revelada. Abstração concreta que emergiu emmuitos momentos (nas filosofias, nas gran<strong>de</strong>s teorias científicas) das representações <strong>do</strong> espaço e <strong>do</strong>sespaços <strong>de</strong> representação. Ela veio à luz recentemente. Como a da troca, ela está próxima das formaslógicas; ela evoca um conteú<strong>do</strong> e não se concebe sem um conteú<strong>do</strong>; mais precisamente, ela seconcebe por abstração, fora <strong>de</strong> to<strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>. Igualmente, a forma <strong>de</strong> troca material não dizo que é troca<strong>do</strong>; ela apenas estipula que “alguma coisa”, que tem um uso, também é objeto <strong>de</strong> troca.Igualmente, a forma da comunicação não-material não diz qual signo se comunica, mas que énecessário um repertório <strong>de</strong> signos distintos, uma mensagem, um canal, um código. Igualmenteainda, a forma lógica não diz o que é coerente, o que é pensa<strong>do</strong>, mas que é preciso uma coerênciaformal, para que haja pensamento.249) A forma <strong>do</strong> espaço social é o encontro, a reunião, a simultaneida<strong>de</strong>. O que se reúne? O que éreuni<strong>do</strong>? Tu<strong>do</strong> o que há no espaço, tu<strong>do</strong> o que é produzi<strong>do</strong>, seja pela natureza, seja pela socieda<strong>de</strong>, -seja por sua cooperação, seja por seus conflitos. Tu<strong>do</strong>: seres vivos, coisas, objetos, obras, signos esímbolos. O espaço-natureza justapõe, dispersa; ele coloca uns ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s outros, os lugares e o queos ocupa. Ele particulariza. O espaço social implica a reunião atual ou possível em um ponto, emtorno <strong>de</strong>ste ponto. Logo, a acumulação possível (virtualida<strong>de</strong> que se realiza em certas condições).Esta afirmação se verifica no espaço da al<strong>de</strong>ia, da morada; ela se confirma no espaço urbano, querevela os segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> espaço social ainda incertos na al<strong>de</strong>ia. O espaço urbano reúne as multidões, osprodutos nos merca<strong>do</strong>s, os atos e os símbolos. Ele os concentra, os acumula. Quem diz“espacialida<strong>de</strong> urbana”, diz também centro e centralida<strong>de</strong>, atual ou possível, saturada, quebrada,inquieta, pouco importa; ou seja, centralida<strong>de</strong> dialética.250) Po<strong>de</strong>r-se-ia então elaborar esta forma, mostrar a estrutura (centro-periferia), as funções sociais,as relações com o trabalho (os diversos merca<strong>do</strong>s), por conseguinte com a produção e a reprodução,com as relações <strong>de</strong> produção pré-capitalistas e capitalistas, o papel das cida<strong>de</strong>s históricas e <strong>do</strong> teci<strong>do</strong>urbano mo<strong>de</strong>rno etc. Assim como os processos dialéticos, liga<strong>do</strong>s a essa relação entre a forma e osconteú<strong>do</strong>s: as explosões [os estilhaçamentos], as saturações, as contestações, os assaltos leva<strong>do</strong>s acabo pelos conteú<strong>do</strong>s expulsos para as periferias etc. Em si e por si, o espaço social não possui to<strong>do</strong>sos caracteres da “coisa”, oposta à ação cria<strong>do</strong>ra. Como espaço social, ele é obra e produto: realização<strong>do</strong> “ser social”. Mas em conjunturas <strong>de</strong>terminadas, ele toma os caracteres fetichiza<strong>do</strong>s,autonomiza<strong>do</strong>s, da coisa (da merca<strong>do</strong>ria e <strong>do</strong> dinheiro).251) A esse propósito ambicioso, não faltam argumentos. Contu<strong>do</strong>, fora mesmo <strong>de</strong> sua amplitu<strong>de</strong>, elesuscita algumas objeções.87


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006252) Em primeiro lugar, o plano d’O capital não é o único vislumbra<strong>do</strong> por seu autor. Elecorrespon<strong>de</strong> a um objetivo na exposição mais que no conteú<strong>do</strong>: a uma formatação rigorosa masempobrece<strong>do</strong>ra, porque redutora. Nos Grundrisse existe um outro projeto, um outro plano e umamaior riqueza. Os Grundisse insistem, em to<strong>do</strong>s os níveis, sobre as diferenças, enquanto O capitalenfatiza a racionalida<strong>de</strong> homogeneizante, a partir da forma quase “pura”, a <strong>do</strong> valor (<strong>de</strong> troca). OsGrundisse não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> la<strong>do</strong> a forma, mas vão <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong> em conteú<strong>do</strong> e engendram as formas apartir <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s. Um menor rigor, uma coerência formal menos <strong>de</strong>senvolvida, e porconseqüência uma formalização ou axiomatização menos elaboradas, tem por contrapartidatematizações mais concretas, notadamente no que se refere à relação (dialética) entre cida<strong>de</strong> ecampo, entre a realida<strong>de</strong> natural e a realida<strong>de</strong> social. Marx, nos Grundisse, consi<strong>de</strong>ra todas asmediações históricas, a comunida<strong>de</strong> da al<strong>de</strong>ia, a família etc. 49 O “mun<strong>do</strong> da merca<strong>do</strong>ria” se separamenos <strong>de</strong> seu contexto histórico e <strong>de</strong> suas condições práticas, que O capital só encontra ao final(inacaba<strong>do</strong>).253) Em segun<strong>do</strong> lugar, ainda assim existem mudanças e o novo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um século. Mesmo se hojemantivermos no centro da teoria os conceitos e categorias <strong>de</strong> Marx (a produção, entre outros), épreciso introduzir categorias só vislumbradas por Marx no final <strong>de</strong> sua vida; como a reprodução dasrelações <strong>de</strong> produção, que se superpõe à reprodução <strong>do</strong>s meios <strong>de</strong> produção e à reprodução ampliada(quantitativamente) <strong>do</strong>s produtos, e <strong>de</strong>las se distingue. Logo, a reprodução consi<strong>de</strong>rada comoconceito acarreta outros conceitos: o repetitivo, o reprodutível etc. Eles não tiveram lugar na obra <strong>de</strong>Marx, não mais que o urbano, o cotidiano, o espaço.254) Se é verda<strong>de</strong> que a produção <strong>do</strong> espaço correspon<strong>de</strong> a um salto adiante das forças produtivas(técnicas, conhecimentos, <strong>do</strong>minação sobre a natureza); se por conseqüência, no limite (dito <strong>de</strong> outraforma: certos limites transpostos) resulta um outro mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção que não mais seria ocapitalismo <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, nem o socialismo <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, mas a gestão coletiva <strong>do</strong> espaço, a gestão socialda natureza, a superação da contradição “natureza-anti-natureza”, não se po<strong>de</strong> mais utilizar somenteas categorias “clássicas” <strong>do</strong> pensamento marxista.255) Em terceiro lugar (o que virá a seguir envolve e <strong>de</strong>senvolve o prece<strong>de</strong>nte), o novo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> umséculo, entre outros, é a aparição <strong>de</strong> múltiplas ciências, ditas “ciências da socieda<strong>de</strong>”, ou “humanas”.Seus <strong>de</strong>stinos, pois cada uma tem seu <strong>de</strong>stino, suscitam algumas interrogações inquietantes:<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> crescimento, crises, fortes ascensões seguidas <strong>de</strong> bruscos <strong>de</strong>clínios. Os especialistase as instituições especializadas têm por objetivo negar, combater, calar o que po<strong>de</strong> incomodá-las. Emvão. Houve fracassos retumbantes, <strong>de</strong>gringoladas catastróficas. Os economistas acreditaram se livrar49 Cf. H. Lefebvre : La pensée marxiste et la ville, Casterman, 1972.88


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006<strong>de</strong> prescrições marxistas, a saber dar à crítica o passo sobre a “mo<strong>de</strong>lação” - consi<strong>de</strong>rar a economiapolítica como conhecimento da penúria. A ruína <strong>de</strong> sua ciência fez barulho [foi estron<strong>do</strong>sa] apesar <strong>de</strong>suas precauções. A lingüística? As ilusões e o fracasso saltam aos olhos, na medida em que alingüística, <strong>de</strong>pois da história, <strong>de</strong>pois da economia política, se promove como ciência suprema,ciência das ciências. Ao passo que ela se refere apenas à <strong>de</strong>cifração <strong>de</strong> textos e mensagens, àcodificação-<strong>de</strong>codificação. Ao passo que o “homem” não vive só <strong>de</strong> palavras. A lingüística <strong>de</strong>stesúltimos <strong>de</strong>cênios? Metalinguagem, análise <strong>de</strong> metalinguagens, e, por conseguinte, <strong>do</strong> repetitivosocial, que permite compreen<strong>de</strong>r a enorme redundância <strong>do</strong>s escritos e discursos passa<strong>do</strong>s, nem maisnem menos.256) Apesar <strong>do</strong> caráter <strong>de</strong>sigual e <strong>do</strong>s aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> seus percursos, estas ciências não existem menos.Porém, elas não existiam no tempo <strong>de</strong> Marx, ou só existiam virtualmente, no esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> germes e <strong>de</strong>esboços; sua especialização não era pronunciada e suas tentativas <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>ras ainda eraminconcebíveis.257) Esses conhecimentos especializa<strong>do</strong>s, ao mesmo tempo isola<strong>do</strong>s e imperialistas (um nãoacompanharia o outro?), têm uma relação com o espaço mental e social. Entre os cientistas, unstalharam sua parte, resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um recorte, fechan<strong>do</strong> seu “campo”. Outros, à maneira <strong>do</strong>smatemáticos, construíram um espaço mental <strong>de</strong> maneira a interpretar, em função <strong>de</strong> seus princípios,os eventos da história teórica e prática (social); eles obtiveram representações <strong>do</strong> espaço. Aarquitetura fornece muitos exemplos <strong>de</strong>sses procedimentos, que giram em círculos. O arquiteto temum ofício. Ele se interroga sobre a “especificida<strong>de</strong>” da arquitetura, ou seja, ele procura legitimar seulugar. Alguns concluem que existe um “espaço da arquitetura” e uma “produção arquitetural”(específica, bem entendi<strong>do</strong>). E a vez é jogada. Essa relação (recorte-representação) no que concerneao espaço, já ganhou lugar na or<strong>de</strong>m e na <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m das razões aqui examinadas.258) Estes recortes e estas interpretações po<strong>de</strong>m ser compreendidas e retomadas, não em função <strong>de</strong>uma “ciência <strong>do</strong> espaço” ou <strong>de</strong> um conceito totalizante da espacialida<strong>de</strong>, mas partin<strong>do</strong> da ativida<strong>de</strong>produtora. Os especialistas enumeraram os objetos no espaço; uns catalogaram os objetos vin<strong>do</strong>s danatureza, outros os objetos produzi<strong>do</strong>s. Substituin<strong>do</strong> o conhecimento <strong>do</strong> espaço (enquanto produto enão como soma <strong>de</strong> objetos produzi<strong>do</strong>s) ao das coisas no espaço, os inventários e as <strong>de</strong>scriçõestomam um outro senti<strong>do</strong>. Po<strong>de</strong> se conceber uma economia política <strong>do</strong> espaço que reconsi<strong>de</strong>re aeconomia política, que a retire da falência, propon<strong>do</strong>-lhe um novo objeto: a produção <strong>do</strong> espaço. Se oconhecimento retoma a crítica da economia política (que coinci<strong>de</strong> para Marx, com o conhecimento<strong>do</strong> econômico), ele mostrará como esta economia política <strong>do</strong> espaço arrisca coincidir com asaparências <strong>do</strong> espaço, como meio mundial <strong>de</strong> uma instalação <strong>de</strong>finitiva <strong>do</strong> capitalismo. Po<strong>de</strong>r-se-á89


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006proce<strong>de</strong>r <strong>de</strong> maneira análogo com a história, com a psicologia, com a antropologia e assim pordiante. Talvez mesmo com a psicanálise!...259) Esta perspectiva implica uma distinção bem elucidada entre o pensamento e o discurso noespaço (num espaço, tal ou qual, data<strong>do</strong> e situa<strong>do</strong>) – o pensamento e os discursos sobre o espaço, quesão apenas palavras e signos, imagens e símbolos – e, enfim, o pensamento <strong>do</strong> espaço, que parte <strong>de</strong>conceitos elabora<strong>do</strong>s. Esta distinção supõe um atento exame crítico <strong>do</strong>s materiais utiliza<strong>do</strong>s, aspalavras, as imagens, os símbolos, os conceitos, assim como <strong>do</strong> material: os procedimentos <strong>de</strong>agregação, o instrumental emprega<strong>do</strong> para recortar e “montar” – nos quadros da divisão <strong>do</strong> trabalhocientífico.260) Com efeito, po<strong>de</strong>-se distinguir, transferin<strong>do</strong>-se aqui elaborações conceituais efetuadas noutros<strong>do</strong>mínios, o material (técnico) e o material (físico). Os materiais são indispensáveis e duráveis, comotambém a pedra, o tijolo, o cimento, o concreto. Assim como os sons, as gamas [as séries], os mo<strong>do</strong>se os tons na música. Quanto ao material, ele se usa rápi<strong>do</strong>; é preciso mudar sempre; ele se compõe <strong>de</strong>instrumentos, <strong>de</strong> regras <strong>de</strong> emprego; sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> adaptação não vai longe; inventa-se, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>que novas necessida<strong>de</strong>s se fazem sentir, um novo material. Assim a lira, o piano, o sax na música.Ou então, os méto<strong>do</strong>s e procedimentos novos na construção <strong>de</strong> casas. Esta distinção po<strong>de</strong> ter umcerto alcance “operatório”, permitin<strong>do</strong> discernir o efêmero e o durável: o que nesta ou naqueladisciplina científica po<strong>de</strong> se conservar ou se <strong>de</strong>sviar e servir para novos usos, e o que só merecenegação e relegação. Enten<strong>de</strong>mos assim que o material <strong>de</strong>susa<strong>do</strong> não se emprega mais, senãomarginalmente. Com freqüência, o <strong>de</strong>suso cai no pedagógico.261) A reconsi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> recortes e <strong>de</strong> representações, <strong>de</strong> seus materiais e materiais, não po<strong>de</strong> selimitar às ciências especializadas. Ela não respeitará as filosofias, pois os filósofos propuseramrepresentações <strong>do</strong> espaço e <strong>do</strong> tempo. A crítica das i<strong>de</strong>ologias filosóficas não po<strong>de</strong>ria dispensar oexame das i<strong>de</strong>ologias políticas enquanto elas se referem ao espaço. Ora, elas se preocupam <strong>de</strong>leprioritariamente: nele intervêm como estratégias. A eficácia das estratégias no espaço, e sobretu<strong>do</strong>um fato novo, a saber: que as estratégias mundiais tentam engendrar um espaço global, o seu, eerigi-lo em absoluto, propicia uma razão, e não a menor, na renovação <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> espaço.262) II.6 Reduzir, é um procedimento científico, diante da complexida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> caos das constataçõesimediatas. De início, é preciso simplificar, mas em seguida e o mais rápi<strong>do</strong> possível restituirprogressivamente o que a análise afasta. Sem o que, a exigência meto<strong>do</strong>lógica se transforma emservidão e da redução legítima passa-se ao reducionismo. Este perigo espreita o saber sem trégua.Nenhum méto<strong>do</strong> po<strong>de</strong> evitá-lo, pois ele se escon<strong>de</strong> no próprio méto<strong>do</strong>. Indispensáveis, os esquemasredutores se transformam em armadilhas.90


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006263) O reducionismo se introduz com ares <strong>de</strong> cientificida<strong>de</strong>. Constrói-se mo<strong>de</strong>los reduzi<strong>do</strong>s (dasocieda<strong>de</strong>, da cida<strong>de</strong>, das instituições, da família etc.) e a eles se limita. É assim que o espaço socialse reduz ao espaço mental, por uma operação “científica” cuja cientificida<strong>de</strong> dissimula a i<strong>de</strong>ologia.Os reducionistas fazem o elogio incondicional <strong>do</strong> procedimento inerente à ciência, <strong>de</strong>pois atransformam em atitu<strong>de</strong> e em seguida em saber absoluto, com ares <strong>de</strong> ciência da ciência(epistemologia). Em que pese a redução meto<strong>do</strong>lógica exigir dialeticamente a reintrodução <strong>de</strong> umconteú<strong>do</strong>, exalta-se a forma reduzida, a lógica interna da démarche, sua coerência. Depois disto, opensamento crítico (embora o <strong>do</strong>gmatismo o proscreva) percebe que a redução sistematizada e oreducionismo correspon<strong>de</strong>m a uma prática política. O Esta<strong>do</strong> e o po<strong>de</strong>r político se preten<strong>de</strong>m e sefazem redutores das contradições; a redução e o reducionismo aparecem então como meios aoserviço <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r: não como i<strong>de</strong>ologias, mas enquanto saber; não ao serviço <strong>de</strong> talEsta<strong>do</strong>, ou <strong>de</strong> tal governo, mas ao serviço <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r em geral. Como o Esta<strong>do</strong> e o po<strong>de</strong>rpolítico reduzem as contradições (os conflitos nascentes e renascentes na socieda<strong>de</strong>), senão pelamediação <strong>do</strong> saber, utilizan<strong>do</strong>-se estrategicamente <strong>de</strong> uma mistura <strong>de</strong> ciência e i<strong>de</strong>ologia?264) Hoje admite-se que houve um funcionalismo redutor da realida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> conhecimento dassocieda<strong>de</strong>s, o que voluntariamente exime tais reduções funcionais da crítica. Assim, omite-se, ousilencia-se sobre o fato <strong>de</strong> que, à sua maneira, o estruturalismo e o formalismo também propõemesquemas redutores. Ao privilegiar-se um conceito, extrapolan<strong>do</strong>-o, eles o reduzem; inversamente aredução acarreta a extrapolação. Deve-se corrigir, compensar. A i<strong>de</strong>ologia vem a termo, com afraseologia (o “discurso i<strong>de</strong>ológico”, para empregar esse jargão) e o abuso <strong>de</strong> signos, verbais eoutros.265) A redução? Ela po<strong>de</strong> ir longe. Po<strong>de</strong> “<strong>de</strong>positar-se”, na prática. As pessoas, <strong>do</strong>s diversos grupos eclasses, sofrem - <strong>de</strong>sigualmente - os efeitos <strong>de</strong> múltiplas reduções pesan<strong>do</strong> sobre suas capacida<strong>de</strong>s,suas idéias, seus “valores” e, no final das contas, sobre suas possibilida<strong>de</strong>s, seu espaço e seu corpo.Os mo<strong>de</strong>los reduzi<strong>do</strong>s, construí<strong>do</strong>s por tal ou qual especialista, nem sempre são abstratos, <strong>de</strong> uma vãabstração; construí<strong>do</strong>s em vista <strong>de</strong> uma prática redutora, com um pouco <strong>de</strong> sorte eles conseguemimpor uma or<strong>de</strong>m, compor os elementos <strong>de</strong>ssa or<strong>de</strong>m. Por exemplo, no urbanismo e na arquitetura.Em particular, a classe operária sofre os efeitos <strong>do</strong>s “mo<strong>de</strong>los reduzi<strong>do</strong>s”: <strong>de</strong> espaço, <strong>de</strong> consumo, da“cultura”, como se diz.266) O reducionismo atrela um saber (analítico e não crítico), com os recortes e interpretações que eleimplica, ao serviço <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r. I<strong>de</strong>ologia que não diz seu nome, ele se confun<strong>de</strong> com a“cientificida<strong>de</strong>”, em que pese exce<strong>de</strong>r o saber e execrar o conhecer. Ele constitui a i<strong>de</strong>ologiacientífica por excelência, pois basta passar <strong>de</strong> uma meto<strong>do</strong>logia a um <strong>do</strong>gmatismo para afirmar aatitu<strong>de</strong> reducionista, e <strong>de</strong>la passar a uma prática homogeneizante, sem cobertura científica.91


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006267) De início, meto<strong>do</strong>logicamente, toda démarche científica proce<strong>de</strong> por redução. Uma das<strong>de</strong>sgraças <strong>do</strong> especialista, é que ele se instala na redução; a aprofunda; e nela encontra felicida<strong>de</strong> ecerteza. O especialista que <strong>de</strong>limitou seu “campo” está assegura<strong>do</strong>, mesmo que tenha ti<strong>do</strong>dificulda<strong>de</strong>s para o cultivar, dali faz germinar qualquer coisa. O que ele encontra, o que cultiva, se<strong>de</strong>fine pelas coor<strong>de</strong>nadas locais <strong>de</strong> sua especialida<strong>de</strong> e por seu lugar no merca<strong>do</strong> <strong>do</strong> saber. Isto, oespecialista não quer saber. Em relação à redução constitutiva <strong>de</strong> seu <strong>do</strong>mínio, ele toma uma atitu<strong>de</strong>que o justifica, a da negação.268) Ora, qual ciência especializada não se ocupou, imediatamente ou por mediação, <strong>do</strong> espaço?269) a) Cada especialida<strong>de</strong>, já se sabe, arroga a si seu espaço mental e social, <strong>de</strong>finin<strong>do</strong>-o com umacerta arbitrarieda<strong>de</strong>, recortan<strong>do</strong>-o no conjunto “natureza-socieda<strong>de</strong>” e mascaran<strong>do</strong> uma parte daoperação “recorte-montagem” (recorte <strong>de</strong> um “campo”, montagem <strong>de</strong> enuncia<strong>do</strong>s e <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>losreduzi<strong>do</strong>s a ele concernentes, passagem <strong>do</strong> mental ao social). O que necessita da adjunção <strong>de</strong>proposições justificativas, portanto interpretativas <strong>do</strong> recorte-montagem.270) b) To<strong>do</strong>s os especialistas limitam-se à nomenclatura e à classificação <strong>do</strong> que se encontra noespaço. Constatar, <strong>de</strong>screver, classificar os objetos que ocupam o espaço será a ativida<strong>de</strong> “positiva”<strong>de</strong>sta ou daquela especialida<strong>de</strong>, digamos a geografia, a antropologia, a sociologia. Por bem ou pormal, tal especialida<strong>de</strong> se ocupará <strong>de</strong> enuncia<strong>do</strong>s sobre o espaço, por exemplo em teoria política, na“análise sistêmica” etc.271) c) Os especialistas oporão um mo<strong>de</strong>lo reduzi<strong>do</strong> <strong>do</strong> saber (limitan<strong>do</strong>-se tanto à constatação <strong>de</strong>objetos no espaço, quanto às proposições sobre o espaço, recortan<strong>do</strong>-o) a um pensamento global <strong>do</strong>espaço (social). O que terá a vantagem suplementar <strong>de</strong> liquidar o tempo (reduzin<strong>do</strong>-o a uma simples“variável”).272) Em conseqüência, existem muitas chances para que os especialistas que se aproximam <strong>do</strong>espaço social com seu material e seus esquemas redutores se oponham ao conceito da produção <strong>do</strong>espaço, assim como à teoria conjunta, visto que o conceito e a teoria ameaçam os campos <strong>do</strong>sespecialistas: eles po<strong>de</strong>m abalar e talvez <strong>de</strong>rrubar os muros das proprieda<strong>de</strong>s privadas.273) E agora, por que recear introduzir nesta exposição um diálogo com um interlocutor ao mesmotempo fictício (imaginário) e real (representan<strong>do</strong> as objeções)?274) – Seus argumentos não me convenceram. Produzir o espaço! Quanta obscurida<strong>de</strong> nesseenuncia<strong>do</strong>, para não dizer nesse conceito, pois isso seria muito para convosco concordar. Ou oespaço faz parte da natureza, e então as ativida<strong>de</strong>s humanas, ditas sociais, nele se inscrevem, oocupam, modificam os da<strong>do</strong>s geográficos e os traços ecológicos; o conhecimento só po<strong>de</strong> <strong>de</strong>screvertais modificações. Ou o espaço é um conceito e já faz parte, a esse título, <strong>do</strong> conhecimento, da92


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006ativida<strong>de</strong> mental, por exemplo, nas matemáticas; então, a reflexão científica o explora, o elabora, o<strong>de</strong>senvolve. Num e noutro caso, não existe produção <strong>do</strong> espaço.275) – Desculpe! Essas dissociações “natureza-conhecimento” e “natureza-cultura”, esse dualismo“matéria-espírito”, aliás muito freqüente, é inadmissível. Assim como o inverso, a confusão. Aativida<strong>de</strong> tecnológica e a cientificida<strong>de</strong> não se contentam em modificar a natureza. Elas <strong>de</strong>sejam<strong>do</strong>miná-la, e para a <strong>do</strong>minar ten<strong>de</strong>m a <strong>de</strong>struí-la; antes <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>struição, elas a <strong>de</strong>sconhecem. Oprocesso começa com o primeiro instrumento.276) – Você data esse começo da ida<strong>de</strong> da pedra. Um pouco ce<strong>do</strong> ;…277) – Ele data <strong>do</strong> primeiro ato premedita<strong>do</strong> visan<strong>do</strong> matar; <strong>do</strong> instrumento e da arma, que foramjunto com a linguagem.278) – Para você, “o homem” sai da natureza. Ele a conhece <strong>de</strong> fora. Ele só a conhece <strong>de</strong>struin<strong>do</strong>-a.279) – O homem? Admitamos esta generalida<strong>de</strong>. Sim, “o homem” nasce da natureza, sai <strong>de</strong>la e sevolta contra ela, até o resulta<strong>do</strong> insuportável ao qual assistimos.280) – Esse<strong>de</strong>struição da natureza, segun<strong>do</strong> você, provém <strong>do</strong> capitalismo?281) – Sim, em gran<strong>de</strong> medida. Porém, o capitalismo e a burguesia tem, se ouso dizer, costas largas.Atribui-se-lhes to<strong>do</strong>s os danos. Como e on<strong>de</strong> eles próprios nasceram?282) – O homem! A natureza humana!283) – Não. O homem oci<strong>de</strong>ntal.284) – Assim você chega a incriminar a história inteira <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte, a razão, o Logos, a próprialinguagem!285) O Oci<strong>de</strong>nte arrogou a si, como e porque seria interessante saber, mas secundário, a transgressãoda natureza. Ele a exce<strong>de</strong>u. A felix culpa 50 ! Diria a teologia. Sim, ele arrogou a si o que Hegel<strong>de</strong>nomina a potência <strong>do</strong> negativo, a violência, o terror, a agressão permanente contra a vida.Generalizou-a, mundializou a violência e por ela engendrou o mundial. O espaço como lugar <strong>de</strong>produção, como produto e produção é, ao mesmo tempo, a arma e o signo <strong>de</strong>ssa luta. In<strong>do</strong> até ofun<strong>do</strong>, mas como recuar, essa tarefa titânica obriga hoje a produzir, a criar outra coisa que anatureza; a natureza segunda, outra e nova. Portanto, a produzir o espaço, este <strong>do</strong> urbano, ao mesmotempo como produto e como obra, no senti<strong>do</strong> on<strong>de</strong> a arte foi obra. Se esse projeto fracassa, será umfracasso total, com conseqüências inapreciáveis…286) II.7 To<strong>do</strong> espaço social resulta <strong>de</strong> um processo com múltiplos aspectos e movimentos:significante e não-significante, percebi<strong>do</strong> e vivi<strong>do</strong>, prático e teórico. Em suma, to<strong>do</strong> espaço social50 Palavras <strong>de</strong> Santo Agostinho referentes à queda <strong>do</strong> primeiro casal, que valeu a re<strong>de</strong>nção (N.T.)93


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006tem uma história, a partir <strong>de</strong>ssa base inicial: a natureza, da<strong>do</strong> genuína e original (primária), pois<strong>do</strong>tada sempre e <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s <strong>de</strong> particularida<strong>de</strong>s (sítios, clima etc.).287) A relação <strong>de</strong> um espaço com o tempo que o engendrou difere, assim que se expõeexpressamente a história <strong>do</strong> espaço, como tal, das representações admitidas pelos historia<strong>do</strong>res. Paraestes, o pensamento opera um corte na temporalida<strong>de</strong>; ele imobiliza sem muitos inconvenientes oprocesso; sua análise fragmente e recorta. Porém, na história <strong>do</strong> espaço como tal, o histórico, odiacrônico, o passa<strong>do</strong> gera<strong>do</strong>r se inscrevem incessantemente sobre o espacial, como sobre umquadro. Sobre e no espaço, há mais que traços incertos <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>s pelos acontecimentos; existe ainscrição da socieda<strong>de</strong> em ato, o resulta<strong>do</strong> e o produto das ativida<strong>de</strong>s sociais. Existe mais que umaescrita <strong>do</strong> tempo. O espaço gera<strong>do</strong> pelo tempo é sempre atual, sincrônico e da<strong>do</strong> como um to<strong>do</strong>;ligações internas, conexões religam seus elementos, elas também produzidas pelo tempo.288) Eis um primeiro aspecto, o mais simples, <strong>de</strong>ssa história <strong>do</strong> espaço que vai da natureza àabstração. Imaginemos o tempo no qual cada povo chegou a medir o espaço ten<strong>do</strong> suas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>medida emprestadas das partes <strong>do</strong> corpo: polegada, pé, palmo etc. Os espaços <strong>de</strong> um povo como asdurações <strong>de</strong>viam permanecer incompreensíveis aos outros. As particularida<strong>de</strong>s naturais <strong>do</strong> espaço eas naturezas particulares aos povos interferiam. Mas qual inserção <strong>do</strong> corpo no espaço assim medidasegun<strong>do</strong> particularida<strong>de</strong>s! A relação <strong>do</strong> corpo com o espaço, relação social <strong>de</strong> uma importância malconhecida em seguida, conservou então uma imediatida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>via se alterar e se per<strong>de</strong>r: o espaço,a maneira <strong>de</strong> medi-la e <strong>de</strong>la falar, apresentam aos membros da socieda<strong>de</strong> uma imagem e um espelhovivo <strong>de</strong> seu corpo.289) A a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> <strong>de</strong>uses <strong>de</strong> um outro povo ocasionava a <strong>de</strong> seu espaço e <strong>de</strong> sua medida. O Panteãoimplica Roma e a compreensão <strong>de</strong> <strong>de</strong>uses venci<strong>do</strong>s e a <strong>de</strong> espaços subordina<strong>do</strong>s a um espaço-senhor,o <strong>do</strong> império e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.290) O estatuto <strong>do</strong> espaço e <strong>de</strong> sua mensuração não mu<strong>do</strong>u senão com uma extrema lentidão, poisessa mudança está longe <strong>de</strong> ser terminada. Mesmo na França, país <strong>do</strong> “sistema métrico”, curiosasmedidas se aplicam ainda às vestimentas, aos “tamanhos” <strong>do</strong>s calça<strong>do</strong>s. Uma revolução se opera,como cada um sabe <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a escola, com a generalida<strong>de</strong> abstrata <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong>cimal (que nãoacarretou o <strong>de</strong>saparecimento <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> base XII para o tempo, os ciclos, as curvas,circunferências, esferas). As flutuações da mensuração e por conseqüência das representações <strong>do</strong>espaço acompanham a história geral conferin<strong>do</strong>-lhe um certo senti<strong>do</strong>: a tendência ao quantitativo, aohomogêneo, à <strong>de</strong>saparição <strong>do</strong> corpo que busca refúgios na arte.291) II.8 Para abordar <strong>de</strong> uma maneira mais concreta a história <strong>do</strong> espaço, po<strong>de</strong>-se examinar a naçãoe o nacionalismo. Como <strong>de</strong>finir a nação? Uns, a maioria, a <strong>de</strong>finem como um tipo <strong>de</strong> substâncianascida da natureza (<strong>de</strong> um território às fronteiras “naturais”) e ampliada no tempo histórico. O que94


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006lhe atribui uma “realida<strong>de</strong>” consistente, talvez <strong>de</strong>finitiva, tanto quanto <strong>de</strong>finida. Tese que convêm àburguesia (porque ela justifica e seu Esta<strong>do</strong> nacional e sua atitu<strong>de</strong>) que a<strong>do</strong>ta como verda<strong>de</strong>s eternas,porque “naturais”, o patriotismo e até mesmo o nacionalismo absoluto. Sob a influência stalinista, elechegou ao pensamento marxista para a<strong>do</strong>tar a mesma posição, ou quase (com um suplemento <strong>de</strong>historicismo). Em contrapartida, para outros teóricos, a nação como o nacionalismo reduzir-se-iam ài<strong>de</strong>ologia. Mais que uma “realida<strong>de</strong> substancial”, ou que uma pessoa moral, a nação não seria maisque uma ficção projetada pela burguesia sobre suas próprias condições históricas e sua origem, <strong>de</strong>início para os engran<strong>de</strong>cer no imaginário, em seguida para eclipsar as contradições <strong>de</strong> classes econduzir a classe operária consigo a uma unida<strong>de</strong> fictícia. A partir <strong>de</strong>ssa hipótese, é fácil reduzir asquestões nacionais e regionais à questões lingüísticas e culturais, <strong>de</strong> importância secundária. O queconduz a um certo internacionalismo abstrato.292) Mas o problema da nação, assim coloca<strong>do</strong>, seja a partir da naturalida<strong>de</strong>, seja a partir dai<strong>de</strong>ologia, não faz abstração <strong>do</strong> espaço? Os conceitos se <strong>de</strong>senvolvem num espaço mental, que opensamento acaba por i<strong>de</strong>ntificar como espaço real, o da prática social e política, ao passo que <strong>de</strong>leoferece apenas uma representação, ela própria submetida a uma representação <strong>do</strong> tempo histórico.293) Consi<strong>de</strong>rada em sua relação com o espaço a nação compreen<strong>de</strong> <strong>do</strong>is momentos, duas condições:294) a) um merca<strong>do</strong>, lentamente construí<strong>do</strong> no curso <strong>do</strong> tempo histórico, mais ou menos longo, ouseja, um conjunto complexo <strong>de</strong> relações comerciais e <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> comunicação. Esse merca<strong>do</strong>subordina os merca<strong>do</strong>s locais e regionais ao merca<strong>do</strong> nacional; logo, existem níveis hierarquiza<strong>do</strong>s.Lá, on<strong>de</strong> muito ce<strong>do</strong> as cida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>minaram os campos, a formação (social, econômica, política) <strong>do</strong>merca<strong>do</strong> nacional difere um pouco <strong>de</strong> sua formação nos países on<strong>de</strong> as cida<strong>de</strong>s se <strong>de</strong>senvolveramsobre um fun<strong>do</strong> camponês, rural e feudal preexistente. O resulta<strong>do</strong> é quase o mesmo: um espaçocentra<strong>do</strong>, com uma hierarquia <strong>de</strong> centros (essencialmente comerciais, mas também religiosos,“culturais” etc.), com um centro principal, a capital.295) b) uma violência, a <strong>de</strong> um Esta<strong>do</strong> militar (feudal, burguês, imperialista etc.): po<strong>de</strong>r políticoutilizan<strong>do</strong> os recursos <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> ou o crescimento das forças produtivas e disso se apo<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> comobjetivos <strong>de</strong> potência.296) À relação falta <strong>de</strong>terminar entre o crescimento econômico “espontâneo”, a intervenção daviolência, e seus efeitos respectivos. Nesta hipótese, os <strong>do</strong>is “momentos” conjugaram seus efeitospara produzir um espaço: o <strong>de</strong> um Esta<strong>do</strong>-Nação. Este não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>finir nem por umasubstancialida<strong>de</strong> personalista, nem por uma pura ficção (um “centro especular”) i<strong>de</strong>ológica. Há umoutro mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> existência, <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> por sua relação com um espaço. Resta, enfim, estudar hoje aconexão <strong>de</strong>sses espaços com o merca<strong>do</strong> mundial, o imperialismo e as estratégias, as firmasmultinacionais e suas áreas.95


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006297) Agora tomemos a questão <strong>de</strong> uma matéria muito geral. Produzir um objeto, sempre é modificaruma matéria-prima, pela aplicação <strong>de</strong> um conhecimento, <strong>de</strong> um procedimento técnico, <strong>de</strong> um esforçoe <strong>de</strong> um gesto repetitivo (<strong>de</strong> um trabalho). A matéria-prima provém diretamente ou não da naturezamaterial: ma<strong>de</strong>ira, lã, algodão, seda, pedra, metal. Ao longo <strong>do</strong> tempo, existiu a substituição dasmatérias provenientes diretamente da natureza por materiais cada vez mais elabora<strong>do</strong>s, logo cada vezmenos “naturais”. A importância das mediações técnicas e científicas não cessou <strong>de</strong> aumentar.Pensemos no concreto, nas fibras artificiais, nos plásticos. O que não fez <strong>de</strong>saparecer, por isso, osprimeiros materiais: lã, algodão, tijolo, pedra, etc.298) Freqüentemente, o objeto produzi<strong>do</strong> contém alguns traços <strong>do</strong> material e <strong>do</strong> tempo utiliza<strong>do</strong>s:operações que modificaram a matéria-prima. Então po<strong>de</strong>mos reconstitui-las. Contu<strong>do</strong>, as operaçõesprodutivas ten<strong>de</strong>m a apagar seus traços; algumas têm esse objetivo: polir, envernizar, revestir,endurecer etc. Terminada a construção, retiram-se os andaimes; rasgam-se os rascunhos e o pintorsabe quan<strong>do</strong> passa <strong>do</strong> esboço ao quadro. Eis porque os produtos e mesmo as obras também têm essetraço característico: <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r-se <strong>do</strong> trabalho produtivo. A tal ponto que o esquecemos, e talesquecimento – essa ocultação, diria um filósofo – torna possível o fetichismo da merca<strong>do</strong>ria: o fato<strong>de</strong> que ele implica relações sociais e o fato <strong>de</strong> que ela causa seu <strong>de</strong>sconhecimento.299) Nunca é fácil retornar <strong>do</strong> objeto (produto ou obra) à ativida<strong>de</strong> (produtiva e/ou cria<strong>do</strong>ra).Contu<strong>do</strong>, somente esta démarche permite esclarecer a natureza <strong>do</strong> objeto, ou se preferir, a relação <strong>do</strong>objeto com a natureza, reconstituin<strong>do</strong> o processo <strong>de</strong> sua gênese e <strong>de</strong> seu senti<strong>do</strong>. Todas as outrasdémarches constroem um objeto abstrato (um mo<strong>de</strong>lo). A<strong>de</strong>mais, não se trata <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r umasimples estrutura <strong>do</strong> objeto, o engendran<strong>do</strong>, mas <strong>de</strong> gerar (reproduzir pelo e no pensamento) o objetointeiro, formas, estruturas, funções.300) Como percebemos (o “nós” <strong>de</strong>signa um “sujeito” qualquer) um quadro, uma paisagem, ummonumento? Evi<strong>de</strong>ntemente, a percepção <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong> “sujeito”; um camponês não percebe “sua”paisagem como um citadino que lá passeia. Suponhamos um ama<strong>do</strong>r culto que observa um quadro.Seu olhar não é nem <strong>de</strong> um profissional, nem <strong>de</strong> um inculto. Ele vai <strong>de</strong> um objeto a outro entre osque o quadro contêm; ele começa por discernir relações entre esses objetos no quadro; <strong>de</strong> início, elese <strong>de</strong>ixa tomar pelo efeito ou efeitos <strong>de</strong>seja<strong>do</strong>s pelo pintor. Ele sente um certo prazer, se contu<strong>do</strong> oquadro faz parte das obras que se propõem a oferecer um prazer (<strong>do</strong> olho, da compreensão). Mas esteama<strong>do</strong>r já sabe que o quadro está enquadra<strong>do</strong>, que as relações internas entre cores e formas sãoregidas pelo conjunto. Ele passa, assim, <strong>do</strong>s objetos no quadro, ao quadro como objeto, e <strong>do</strong> que elepercebeu no espaço pictural ao que ele discerniu <strong>de</strong>sse espaço. Assim, ele acaba por pressentir oucompreen<strong>de</strong>r “efeitos” que não foram expressamente <strong>de</strong>seja<strong>do</strong>s pelo pintor. Então, o ama<strong>do</strong>r <strong>de</strong>cifrao quadro e nele <strong>de</strong>scobre o imprevisto, mas no quadro formal, nas relações e proporções impostas96


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006por esse quadro. As <strong>de</strong>scobertas <strong>de</strong> nosso distinto ama<strong>do</strong>r se situam ao nível <strong>do</strong> espaço (pictural).Nesse grau <strong>de</strong> sua investigação estética, o “sujeito” se coloca questões; busca resolver um problema:a relação entre os efeitos <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> tecnicamente prepara<strong>do</strong>s e os efeitos <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> involuntários(<strong>do</strong>s quais alguns <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong>le, o “observa<strong>do</strong>r”). Assim, ele começa a remontar efeitos sofri<strong>do</strong>spela ativida<strong>de</strong> produtora <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> para reencontrá-la e tentar (ilusão talvez) com ela coincidir. Suapercepção “estética” se situa então em múltiplos níveis, como cada um o sabe.301) Não é difícil reconhecer a propósito <strong>de</strong> um caso privilegia<strong>do</strong>, o movimento da filosofia retomadapor Marx e pelo pensamento marxista. Os pensa<strong>do</strong>res gregos (pós-socráticos) analisaram a práticasocial <strong>do</strong> conhecimento; refletin<strong>do</strong> sobre o saber, eles repertoriaram as démarches a propósito <strong>do</strong>sobjetos conheci<strong>do</strong>s. No auge <strong>de</strong>ssa elaboração teórica se encontra a <strong>do</strong>utrina aristotélica <strong>do</strong> discurso(logos) e das categorias, ao mesmo tempo elementos <strong>do</strong> discurso e apreensão (classificação) <strong>de</strong>objetos. Muito mais tar<strong>de</strong>, na Europa, a filosofia cartesiana apura e modifica a <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> Logos. Ofilósofo questiona o Logos e o coloca em questão: lhe cobra seus papéis e títulos, suas cartas <strong>de</strong>nobreza, seu certifica<strong>do</strong> <strong>de</strong> origem, seu esta<strong>do</strong> civil. Assim, com Descartes, a filosofia <strong>de</strong>slocaquestões e respostas. Ela muda <strong>de</strong> centro; ela passa <strong>do</strong> “pensamento-pensa<strong>do</strong>” ao “pensamentopensante”,<strong>do</strong>s objetos ao ato, <strong>do</strong> discurso sobre o conheci<strong>do</strong> à démarche <strong>do</strong> conhecer. O queintroduz uma “problemática” (e novas dificulda<strong>de</strong>s).302) Marx recomeça esse <strong>de</strong>slocamento, aperfeiçoan<strong>do</strong>-o e o amplian<strong>do</strong>. Para Marx, não se trata maissomente <strong>de</strong> obras <strong>do</strong> conhecimento, mas <strong>de</strong> coisas na prática industrial. Ele remonta, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>Hegel e <strong>do</strong>s economistas ingleses, <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s à ativida<strong>de</strong> produtora como tal. Toda realida<strong>de</strong>dada no espaço se expõe e se explica por uma gênese no tempo. Mas uma ativida<strong>de</strong> que se<strong>de</strong>senvolve no tempo (histórico) engendra (produz) um espaço e somente num espaço assume uma“realida<strong>de</strong>” prática, uma existência concreta. Este esquema se esclarece, em Marx e por ele, aindamal <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>, a partir <strong>de</strong> Hegel.303) É assim para uma paisagem, um monumento, um conjunto espacial (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> quan<strong>do</strong> ele não é“da<strong>do</strong>” na natureza), como para um quadro, como para o conjunto das obras e produtos. Decifra<strong>do</strong>s,uma paisagem ou um monumento remetem a uma capacida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra e a um processo significante.Essa capacida<strong>de</strong> contém aproximadamente uma data: é um fato histórico. Seria uma data no senti<strong>do</strong><strong>do</strong> acontecimento, a data exata <strong>de</strong> inauguração <strong>do</strong> monumento, ou o dia <strong>de</strong> sua encomenda por talnotável? Esta seria uma data no senti<strong>do</strong> institucional, a data na qual uma <strong>de</strong>manda imperiosa exigiuque tal organização social se incorpore a um edifício, a justiça num palácio, a igreja numa catedral?Nem uma, nem outra. A capacida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra, é sempre a <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> ou coletivida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> um97


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006grupo, <strong>de</strong> uma fração <strong>de</strong> classe atuante, <strong>de</strong> um “agente” ou “actante” 51 . Ainda que a encomenda e a<strong>de</strong>manda caibam a grupos diferentes, a atribuição não po<strong>de</strong> se fazer nem a um indivíduo, nem a umaentida<strong>de</strong>, mas a uma realida<strong>de</strong> social suscetível <strong>de</strong> se investir em um espaço: <strong>de</strong> produzi-lo, com osmeios e recursos <strong>do</strong>s quais disponha (forças produtivas, técnicas e conhecimentos, meios <strong>de</strong> trabalhoetc.). Se existe uma paisagem, foram os camponeses que a mo<strong>de</strong>laram, portanto, comunida<strong>de</strong>s(al<strong>de</strong>ias), seja autônomas, seja <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r (político). Se existe um monumento, foi umgrupo urbano que o construiu, seja livre, seja <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r (político). A <strong>de</strong>scrição énecessária, mas insuficiente. Seria completamente insuficiente, para conhecer o espaço, <strong>de</strong>screverpaisagens rurais, <strong>de</strong>pois paisagens industriais, <strong>de</strong>pois uma espacialida<strong>de</strong> urbana. A passagem <strong>de</strong> umaa outro é essencial. A pesquisa da capacida<strong>de</strong> produtiva e <strong>do</strong> processo criativo remonta em muitoscasos, até um po<strong>de</strong>r (político). Como se exerce um tal po<strong>de</strong>r? Ele se contenta em comandar? Ele nãoé também “<strong>de</strong>manda<strong>do</strong>r”? Qual é a sua relação com os grupos subordina<strong>do</strong>s, eles também“<strong>de</strong>manda<strong>do</strong>res”, muitas vezes “encomenda<strong>do</strong>res”, sempre “participantes”? Este é um problemahistórico: o <strong>de</strong> todas as cida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os monumentos, <strong>de</strong> todas as paisagens. A análise <strong>de</strong> umespaço conduz a esta relação dialética: <strong>de</strong>manda-encomenda, com as interrogações: “Quem? Porquem? Para quem? Por que e como?”. Assim que cessa esta relação dialética (logo conflituosa),assim que só exista <strong>de</strong>manda sem encomenda, ou encomenda sem <strong>de</strong>manda, então cessa a história<strong>do</strong> espaço. Sem nenhuma dúvida, a capacida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra cessa igualmente. Se existe ainda produção<strong>do</strong> espaço, é segun<strong>do</strong> a or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r; produz-se sem criar, reproduz-se. Quanto à <strong>de</strong>manda, elapo<strong>de</strong> cessar? O silêncio não é o fim.304) Desta maneira se evoca uma longa história <strong>do</strong> espaço, se bem que este espaço não seja nem um“sujeito”, nem um “objeto”, mas uma realida<strong>de</strong> social, ou seja, um conjunto <strong>de</strong> relações e <strong>de</strong> formas.Esta história <strong>do</strong> espaço não coinci<strong>de</strong> nem com o inventário <strong>do</strong>s objetos no espaço (o querecentemente tem-se <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>: a cultura ou civilização material), nem com as representações ediscursos sobre o espaço. Ela <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar espaços <strong>de</strong> representação e representações <strong>do</strong> espaço,mas sobretu<strong>do</strong> seus laços entre si, assim como com a prática social. Ela tem assim o seu lugar entre aantropologia e a economia política. A nomenclatura (<strong>de</strong>scrição, classificação) <strong>do</strong>s objetos propiciaalguma coisa à história clássica, se o historia<strong>do</strong>r se preocupa com os mo<strong>de</strong>stos objetos cotidianos, aalimentação, os utensílios <strong>de</strong> cozinha, os pratos e os comidas – ou ainda as vestimentas, - ou aconstrução <strong>de</strong> casas: materiais e materiais <strong>de</strong> fabricação etc. Esta vida cotidiana toma figura nosespaços <strong>de</strong> representação, ou lhe dá figura. Quanto às representações <strong>do</strong> espaço (e <strong>do</strong> tempo), elasfazem parte da história das i<strong>de</strong>ologias (caso preocupemo-nos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias outras que as <strong>do</strong>s51 Agente da ação indicada pelo verbo. (N.T.)98


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006filósofos ou das classes dirigentes alargan<strong>do</strong> esse conceito freqüentemente limita<strong>do</strong> às idéias nobres:filosofia, religião, moral). A história <strong>do</strong> espaço mostraria a gênese (e em conseqüência as condiçõesno tempo) <strong>de</strong>ssas realida<strong>de</strong>s que alguns geógrafos <strong>de</strong>nominam as re<strong>de</strong>s, subordinadas a armaduras(políticas).305) A história <strong>do</strong> espaço não tem <strong>de</strong> escolher entre “processo” e “estruturas”, entre mudança einvariância, entre acontecimentos e instituições, etc. A periodização <strong>de</strong>ve igualmente diferir <strong>de</strong>periodizações geralmente admitidas. Evi<strong>de</strong>ntemente essa história não se dissocia <strong>de</strong> uma história <strong>do</strong>tempo (ela própria diferente <strong>de</strong> toda teoria filosófica sobre o tempo em geral). O ponto <strong>de</strong> partida,para uma tal pesquisa, não se situa nas <strong>de</strong>scrições geográficas <strong>do</strong> espaço-natureza, mas sobretu<strong>do</strong> noestu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ritmos naturais, das modificações trazidas a esses ciclos e à sua inscrição no espaço pelosgestos humanos, os <strong>do</strong> trabalho em particular. No início, portanto, os ritmos espaço-temporais, os danatureza foram transforma<strong>do</strong>s por uma prática social.306) No início, encontraremos <strong>de</strong>terminações antropológicas, o que implica conexões com as formaselementares da apropriação da natureza: quantida<strong>de</strong> [números], oposições e simetrias, imagens <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>, mitos 52 , elaborações nas quais não se po<strong>de</strong>m facilmente se discernir o saber e os símbolos, aprática e a teoria, o <strong>de</strong>notativo e o conotativo (retórica), ou ainda, os recortes (espaçamentos) e asinterpretações (representações <strong>do</strong> espaço), as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> grupos parciais (família, tribo etc.) e asdas socieda<strong>de</strong>s globais. Inicialmente, o que havia por trás e sob essas elaborações? Os primeirosbalizamentos, as orientações <strong>do</strong>s caça<strong>do</strong>res, <strong>do</strong>s pastores, <strong>do</strong>s nôma<strong>de</strong>s, em seguida memoriza<strong>do</strong>s,marca<strong>do</strong>s e interpreta<strong>do</strong>s simbolicamente.307) Sobre o espaço-natureza, sobre o fluxo heraclitiano <strong>do</strong>s fenômenos espontâneos, sobre esse caos(aquém <strong>do</strong> corpo) a ativida<strong>de</strong> mental e social lança suas malhas; ela estabelece uma or<strong>de</strong>m que, logoveremos, coinci<strong>de</strong>, até um certo ponto, com a das palavras.308) Percorri<strong>do</strong> [Esquadrinha<strong>do</strong>; Atravessa<strong>do</strong>]por caminhos [caminhamentos] e re<strong>de</strong>s, o espaçonaturezamuda; po<strong>de</strong>-se dizer que a ativida<strong>de</strong> prática nele se inscreve, que o espaço social se escrevesobre a natureza (em garatujas, talvez), implican<strong>do</strong> uma representação <strong>do</strong> espaço. Os lugares sãomarca<strong>do</strong>s e remarca<strong>do</strong>s, nomea<strong>do</strong>s. Entre os lugares, como entre as re<strong>de</strong>s, existem brancos [lacunas],margens. Não são somente os Holzwege, as trilhas florestais, mas os <strong>de</strong> pradarias e campos. O queimporta, o que dura é o caminho, mais <strong>do</strong> que os que encaminham: as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> animais (selvagens ou<strong>do</strong>mésticos), <strong>de</strong> pessoas (nas casas, em torno das casas na al<strong>de</strong>ia ou no povoa<strong>do</strong>, nos arre<strong>do</strong>res). Por52 Cf. múltiplas publicações, como: Viviane Pâques: L’arbre cosmique, Paris, 1964; Frobénius: Mythologie <strong>de</strong> l’Atlanti<strong>de</strong> , tr.fr.Payot 1949; G. Balandier: La vie quotidienne au royaume <strong>de</strong> Konga, Paris, 1965; Luc <strong>de</strong> Heusch: Structure et Praxis chez lesLele <strong>de</strong> Kasaï, L’homme, 1964. Cf. também: Semeiological Analysis of the traditional Africa settlement, Ekistics, fevereiro1972, por A. P. Logopoulos, etc.99


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006toda parte, os traços distintos e bem indica<strong>do</strong>s se referem a “valores” liga<strong>do</strong>s aos trajetos percorri<strong>do</strong>s:o perigo, a segurança, a expectativa, a promessa. O grafismo (que apenas aparece como tal aos“actantes”, mas se revela na abstração da cartografia mo<strong>de</strong>rna) se assemelha mais a uma teia <strong>de</strong>aranha que a um <strong>de</strong>senho.309) Po<strong>de</strong>-se dizer que se trata <strong>de</strong> um texto? De uma mensagem? Digamos que a analogia nãoesclarece gran<strong>de</strong> coisa e que se trata mais <strong>de</strong> texturas que <strong>de</strong> textos. As arquiteturas po<strong>de</strong>m se dizerarqui-texturas, toman<strong>do</strong> cada monumento ou cada edifício com seus arre<strong>do</strong>res, sua contextura, com oespaço povoa<strong>do</strong> e suas re<strong>de</strong>s, como produção <strong>de</strong>sse espaço. Tal analogia esclarece a prática espacial?Voltaremos a isto.310) O tempo e o espaço não se dissociam nas texturas: o espaço implica um tempo e inversamente.Em nenhum lugar estas re<strong>de</strong>s se fecham. De todas as partes ele reencontra o estranho e o estrangeiro,o ameaça<strong>do</strong>r e o favorável, o inimigo ou o amigo. A distinção abstrata <strong>do</strong> aberto e <strong>do</strong> fecha<strong>do</strong>(confina<strong>do</strong>) não lhe convém.311) Que mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> existência tomam os percursos nos momentos em que a prática não os atualiza,quan<strong>do</strong> eles entram nos espaços <strong>de</strong> representação? Eles são percebi<strong>do</strong>s na natureza ou fora <strong>de</strong>la?Nem um, nem outro. As pessoas animam esses trajetos e percursos, essas re<strong>de</strong>s e caminhos[caminhamentos], por narrações [relatos], por “presenças” míticas, gênios, espíritos favoráveis ounão, percebi<strong>do</strong>s como existências concretas. Existem mitos e símbolos fora <strong>de</strong> um espaço mítico esimbólico, <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> também como prática? Provavelmente não.312) A<strong>de</strong>mais, jamais é excluí<strong>do</strong> [não se po<strong>de</strong> esquecer] que tais <strong>de</strong>terminações antropológicas,veiculadas ao longo das épocas [eras] por tal grupo, retomadas, <strong>de</strong>slocadas, transferidas, não seconservam. Contu<strong>do</strong>, antes <strong>de</strong> concluir às invariâncias estruturais, a uma repetição-reprodução, éindispensável um exame atento. Retomemos o caso <strong>de</strong> Florença 53 . Em 1172, a comuna <strong>de</strong> Florençarearranja seu espaço urbano para respon<strong>de</strong>r à extensão da cida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> seu tráfico, <strong>de</strong> sua jurisdição.Houve, portanto, projeto, globalida<strong>de</strong>, e não só repercussão sobre a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma realizaçãoarquitetural parcial: uma praça, cais, pontes, estradas. O historia<strong>do</strong>r po<strong>de</strong> muito bem seguir os jogosda encomenda e da <strong>de</strong>manda; os <strong>de</strong>mandantes são pessoas que querem beneficiar proteções evantagens que lhes oferece a cida<strong>de</strong>, então o cinturão [a cercam]. A encomenda vem <strong>de</strong> umaautorida<strong>de</strong> ambiciosa e que tem os meios <strong>de</strong> sua ambição. As muralhas romanas são aban<strong>do</strong>nadas.No lugar das quatro portas tradicionais, <strong>do</strong>ravante haverá seis portas principais, mais quatrosecundárias sobre a margem direita <strong>do</strong> Arno, três portas no Oltrarno <strong>do</strong>ravante integra<strong>do</strong> à cida<strong>de</strong>. Oespaço urbano assim produzi<strong>do</strong> reproduz uma Flor simbólica: a Rosa <strong>do</strong>s ventos; ele se configura53 Cf. J. Renouard: Les villes d’Italie, apostila reproduzida, fascículo 8, páginas 20 e seguintes.100


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006segun<strong>do</strong> uma “imago mundi”. Mas o historia<strong>do</strong>r <strong>do</strong> espaço não po<strong>de</strong> atribuir a esse espaço <strong>de</strong>representação, que vem <strong>de</strong> longe e <strong>de</strong> alhures, a mesma importância que às perturbações[reviravoltas] que transformam o “conta<strong>do</strong>” (território toscano) e suas relações com o centro, e dãolugar a uma representação <strong>do</strong> espaço. O que, nos tempos mais antigos, antropologicamente foiessencial, torna-se aci<strong>de</strong>nte no curso da história. O antropológico entra no histórico como ummaterial, trata<strong>do</strong> diversamente segun<strong>do</strong> as circunstâncias, as conjunturas, os recursos, e o materialemprega<strong>do</strong> 54 . O <strong>de</strong>vir histórico acarretan<strong>do</strong> <strong>de</strong>slocamentos, substituições, transferências, sesubordina aos materiais e materiais (físico). Na Toscana, passa-se <strong>de</strong> um espaço <strong>de</strong> representação (aimagem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>) a uma representação <strong>do</strong> espaço, a perspectiva. O que permite datarhistoricamente um evento importante da história consi<strong>de</strong>rada.313) A história <strong>do</strong> espaço conduziria <strong>do</strong> tempo no qual cessa a pre<strong>do</strong>minância <strong>do</strong> antropológico até aotempo no qual começa expressamente a produção <strong>do</strong> espaço como produto industrial: on<strong>de</strong> oreprodutível, a repetição e a reprodução <strong>de</strong> relações sociais, sobrepujam <strong>de</strong>liberadamente a obra, areprodução natural, a própria natureza e os tempos naturais. Uma tal consi<strong>de</strong>ração não coinci<strong>de</strong> comnenhuma outra. Esta história tem um começo e um fim, uma pré-história e uma pós-história. Umapré-história: a natureza <strong>do</strong>mina o espaço social. Uma pós-história: a natureza, localizada, sedistancia. Assim <strong>de</strong>limitada, a história <strong>do</strong> espaço é indispensável. Nem seu começo, nem seu fimpo<strong>de</strong>m se datar em termos <strong>de</strong> acontecimentos. O próprio começo tem preenchi<strong>do</strong> um perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> qualmais <strong>de</strong> um traço permanece (nas casas, nas al<strong>de</strong>ias, nas cida<strong>de</strong>s). Ao longo <strong>de</strong>sse processo que sepo<strong>de</strong> dizer histórico, constituem-se relações abstratas: o valor <strong>de</strong> troca que se generaliza, o dinheiro eo ouro (suas funções) <strong>de</strong>pois o capital. Essas abstrações, relações sociais implican<strong>do</strong> formas, tomamuma dupla existência sensível. O instrumento e o equivalente geral <strong>do</strong> valor <strong>de</strong> troca, a moeda,existem na “peça” <strong>de</strong> moeda. Mas as relações comerciais que o emprego da moeda supõe e induzexistem socialmente apenas projetadas sobre o terreno: as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> relações (estradas, merca<strong>do</strong>s) e oscentros hierarquiza<strong>do</strong>s, as cida<strong>de</strong>s. Deve-se então supor, a cada época, um certo equilíbrio entre oscentros (funcionamento <strong>de</strong> cada um) e o conjunto. Po<strong>de</strong>r-se-á, portanto, falar <strong>de</strong> “sistemas” (urbano,comercial etc.) mas isto é apenas um aspecto menor, uma implicação ou conseqüência da ativida<strong>de</strong>fundamental: a produção <strong>do</strong> espaço.314) Com o século XX, entra-se na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, estes termos (o “século”, o mo<strong>de</strong>rno e amo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>) dissimulam sob sua familiarida<strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um enigma e, por serem grosseiros, pe<strong>de</strong>m54 Cf. mais acima, as indicações sobre o espaço na Toscana e suas repercussões, no Quattrocento, na arte e na ciência. Maislonge, a propósito <strong>do</strong>s livros <strong>de</strong> E. Panovsky: Architecture gothique et pensée scolastique, et <strong>de</strong> P. Francastel sobre Arte etTechnique, estas questões serão retomadas. Se aceitarmos colocar ênfase na arquitetura, a melhor obra permanece a <strong>de</strong> Violletle-Duc:Entretiens sur l’architecture.101


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006uma análise mais aprimorada. Quanto ao espaço, mudanças <strong>de</strong>cisivas se operam, que dissimulaminvariâncias, prolongamentos, estagnações, sobretu<strong>do</strong> nos espaços <strong>de</strong> representação. Que então sequeira consi<strong>de</strong>rar a Casa, a Morada. Nas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, e mais ainda no “teci<strong>do</strong> urbano” queprolifera ao re<strong>do</strong>r <strong>de</strong>ssas cida<strong>de</strong>s porque resulta <strong>de</strong> sua explosão, a Casa não possui mais <strong>do</strong> que umarealida<strong>de</strong> histórico-poética, que se liga ao [é reunida no] folclore, ou se se <strong>de</strong>sejar à [na] etnologia.Porém, esta recordação obseda; ela persiste na arte, na poesia, no teatro, na filosofia. Mais: elaatravessa a terrível realida<strong>de</strong> urbana que se instaura no século XX; ela a ornamenta com uma auranostálgica; ela estimula a crítica. Disso, tanto Hei<strong>de</strong>gger quanto Bachelard nos falam, com emoção e<strong>de</strong> maneira comomente, nos seus textos, cuja importância e influência não levantam nenhumadúvida. A Casa transporta a impressão <strong>de</strong> um espaço privilegia<strong>do</strong>, ainda consagra<strong>do</strong>, quase religioso,próximo <strong>do</strong> absoluto. A Poética <strong>do</strong> Espaço, <strong>de</strong> Bachelard, e sua “topofilia” reúnem os espaços <strong>de</strong>representação, que ele percorre sonhan<strong>do</strong> (e que ele distingue das representações <strong>do</strong> espaço,elaboradas pelo conhecimento científico) neste espaço íntimo e absoluto 55 . O que ele contém atingeuma dignida<strong>de</strong> quase ontológica; as gavetas, os cofres, os armários se aproximam <strong>de</strong> seus análogosnaturais percebi<strong>do</strong>s pelo filósofo-poeta, figuras fundamentais: o Ninho, a Concha, a Esquina, aCircunferência. No fun<strong>do</strong>, se se po<strong>de</strong> dizer, perfila-se maternal e mesmo uterinamente: a Natureza. ACasa é tão cósmica quanto humana. Da a<strong>de</strong>ga à granja, das fundações ao telha<strong>do</strong>, ela tem uma<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> ao mesmo tempo sonha<strong>do</strong>ra e racional, terrestre e celeste. Entre a Morada e o Ego, arelação se aproxima da coincidência. A Concha, espaço secreto e vivi<strong>do</strong>, é para Bachelard oprotótipo <strong>do</strong> “espaço” humano e <strong>de</strong> sua qualida<strong>de</strong>.315) Quanto a Hei<strong>de</strong>gger, sua idéia <strong>do</strong> Construir próxima <strong>do</strong> Pensar, seu projeto da Moradacontrastante com a errância e se alian<strong>do</strong> talvez com ela um dia para acolher o Ser, essa ontologia serefere às coisas e não-coisas um pouco distantes porque próximas da Natureza, elas também: oCântaro 56 , a casa camponesa na Floresta Negra57 , o Templo 58 . Contu<strong>do</strong>, o espaço, o bosque, ocaminho não são nada <strong>de</strong> mais e nada <strong>de</strong> outro que os “ser-lá”, os sen<strong>do</strong>, Dasein. E se o filósofo seinterroga sobre sua proveniência, se coloca uma questão “histórica”, a direção e o senti<strong>do</strong> nãooferecem nenhuma dúvida: o tempo para Hei<strong>de</strong>gger conta mais que o espaço; o Ser tem uma históriae a história é apenas a História <strong>do</strong> Ser. O que o leva a uma idéia restrita e restritiva <strong>do</strong> Produzir: umfazer-aparecer, um aparecimento que leva a uma coisa, como coisa presente, entre as coisas jápresentes. Quase-tautologia, estas proposições agregam pouco `a admirável mas enigmática fórmula:55 Cf. Op. citada, p.19.56Cf. Essais et conférences, p. 198.57 Id., p. 191.58 Cf. Holzwege, tr. Fr. p. 31 e seguintes.102


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006“Habitar é o traço fundamental <strong>do</strong> ser, em virtu<strong>de</strong> <strong>do</strong> qual os mortais são”. E a linguagem não é outraque a Morada <strong>do</strong> Ser.316) Essa obsessão <strong>do</strong> espaço absoluto atravessa o histórico (história <strong>do</strong> espaço – espaço da história –representação <strong>do</strong> espaço – espaços <strong>de</strong> representação). Ela reenvia a um saber <strong>de</strong>scritivo, recuan<strong>do</strong>diante <strong>do</strong> analítico e mais ainda diante da exposição global <strong>do</strong> processo gera<strong>do</strong>r. Tal ciênciaparticular e parcelar quis assumir esse papel, entre outras a antropologia (no nome batismal ao qualacrescenta-se voluntariamente um predica<strong>do</strong>, para especificar a ambição: cultural, estrutural etc.).Don<strong>de</strong> a responsabilida<strong>de</strong> e aplicação (transpon<strong>do</strong> e/ou extrapolan<strong>do</strong>) ao mun<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong>consi<strong>de</strong>rações relativas à al<strong>de</strong>ia (<strong>de</strong> preferência bororo ou <strong>do</strong>gon, às vezes provençal ou alsaciano) ouà casa tradicional.317) Como essas consi<strong>de</strong>rações guardam um senti<strong>do</strong>? Por muitas razões. De início, a nostalgia.Quantas pessoas, entre as quais muitos jovens, fogem da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, das cida<strong>de</strong>s, da vida difícil,em direção aos campos, ao folclore, ao artesanato e a criação artesanal. Quantos turistas vão viveruma vida elitista, ou passan<strong>do</strong> por tal, nos países sub<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s, esses que margeiam oMediterrâneo, entre outros. Não é uma das menores contradições <strong>do</strong> espaço que essa fuga que dirigeas hordas turísticas para os espaços citadinos (Veneza! Florença!) ou rústicos que sua chegada<strong>de</strong>strói. Pois eles consomem e consumam o espaço.318) A liquidação brutal pela mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> da história e <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> que hoje se realiza prosseguemuito <strong>de</strong>sigualmente. Países inteiros fream a industrialização (por exemplo, na área islâmica) paraconservar suas residências, seus costumes, seus espaços <strong>de</strong> representação que <strong>de</strong>sarrumam o espaço ea representação <strong>do</strong> espaço industriais. Outros, muito mo<strong>de</strong>rnos, se esforçaram para manter imutáveisas residências, o espaço tradicional e o que o acompanha, costumes, representações. No Japão,superindustrializa<strong>do</strong> e superurbaniza<strong>do</strong>, a casa, a vida, os espaços tradicionais <strong>de</strong> representação,persistem e não sobre o mo<strong>do</strong> folclórico (sobrevivência, cenário turístico, consumo <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>cultural), mas como “realida<strong>de</strong>” atual e prática. O que intriga os visitantes, irrita os mo<strong>de</strong>rnistas etecnocratas <strong>de</strong>sse país, encanta os humanistas. O que correspon<strong>de</strong> também, mas <strong>de</strong> muito longe, aoentusiasmo oci<strong>de</strong>ntal pelas al<strong>de</strong>ias e pelas residências camponesas.319) Essa persistência surpreen<strong>de</strong>nte torna interessante o livro <strong>de</strong> Amos Rappoport sobre aantropologia da Casa 59 . De fato, a casa perigordina60 merece ser analisada, tanto quanto o igluesquimó ou a cabana <strong>do</strong> Quênia, <strong>do</strong>mínios clássicos da antropologia. Os limites da antropologiaaparecem melhor e mesmo saltam aos olhos quan<strong>do</strong> este autor tenta generalizar esquemas redutores59Pour une anthropologie <strong>de</strong> la Maison, Dunod, 1971, cf. p. 101, p.113 sobre o Japão, etc.60 Região <strong>de</strong> Périgord, na França (N.T.).103


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006(porque binários: a intimida<strong>de</strong> valorizada e/ou <strong>de</strong>svalorizada pela residência etc.) e não hesita emafirmar que na França, tradicionalmente se (quem?) não recebe jamais em casa mas no café, no bar 61 .320) A antropologia não po<strong>de</strong> dissimular o essencial. Não é nem no Quênia, nem entre oscamponeses franceses ou outros que se <strong>de</strong>scobre o espaço da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> (<strong>do</strong> capitalismo mo<strong>de</strong>rno)e se anunciam tendências. Priorizar tais estu<strong>do</strong>s é contornar a realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sviar o saber, virar ascostas à “problemática” atual <strong>do</strong> espaço. Para apreendê-la não é preciso se dirigir aos etnólogos,etnógrafos, antropólogos. É preciso, inicialmente, reconsi<strong>de</strong>rar o próprio mun<strong>do</strong> “mo<strong>de</strong>rno”, com seuduplo aspecto que o disfarça: capitalismo, mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.321) A matéria-prima da produção <strong>do</strong> espaço, não é, como para os objetos particulares, um materialparticular; é a própria natureza, transformada em produto, brutalizada [<strong>de</strong>stroçada], hoje ameaçada,talvez arruinada, com certeza localizada, cheia <strong>de</strong> para<strong>do</strong>xo.322) Ainda é preciso po<strong>de</strong>r datar o que po<strong>de</strong> ser chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> momento da emergência. Quan<strong>do</strong> eon<strong>de</strong>, como e por que um conhecimento negligencia<strong>do</strong>, o <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> mal conhecida, a saber, aexistência <strong>do</strong> espaço e sua produção, foi reconhecida? Sim, po<strong>de</strong>-se datar com precisão essaemergência. Esse foi o papel “histórico” da Bauhaus, que a análise crítica reencontrará muitas vezes.A Bauhaus não só apresentou uma “posição <strong>do</strong> objeto” no espaço, nem perspectivas sobre o espaço,mas uma concepção <strong>do</strong> espaço, um conceito global. Nesse momento (próximo a 1920, <strong>de</strong>pois daprimeira guerra mundial) <strong>de</strong>scobriu-se nos países avança<strong>do</strong>s (França, Alemanha, Rússia, Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s) uma conexão já vislumbrada praticamente, mas ainda não racionalizada: entre aindustrialização e a urbanização, entre os lugares <strong>de</strong> trabalho e os lugares <strong>de</strong> habitação. Entran<strong>do</strong> nopensamento teórico, esta ligação logo se transforma em projeto e mesmo em programa. O para<strong>do</strong>xalé que essa “programática” passará ao mesmo tempo por racional e por revolucionária, ao passo queconvém perfeitamente ao Esta<strong>do</strong>, o <strong>do</strong> capitalismo <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> e o <strong>do</strong> socialismo <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>. O que emseguida se tornará evi<strong>de</strong>nte e banal. O programa era, para Gropius como para Le Corbusier, aprodução <strong>do</strong> espaço. Paul Klee o <strong>de</strong>clarou: o artista, o pintor, o escultor, o arquiteto, não mostramum espaço, eles o criam. Os integrantes da Bauhaus compreen<strong>de</strong>ram que não se po<strong>de</strong> produzir coisasfora umas das outras no espaço, móveis e imóveis, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> suas relações e seu conjunto.Impossível acrescentá-los uns aos outros, acumulação, soma ou coleção <strong>de</strong> objetos. Sen<strong>do</strong> dadas asforças produtivas, os meios técnicos, os problemas da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, coisas e objetos po<strong>de</strong>m serproduzi<strong>do</strong>s em suas relações, com suas relações. Antes os conjuntos – os monumentos, as cida<strong>de</strong>s, osmobiliários – cria<strong>do</strong>s por diversos artistas, <strong>de</strong>pendiam <strong>de</strong> critérios subjetivos: o gosto <strong>do</strong>s príncipes, ainteligência <strong>do</strong>s mecenas, o gênio <strong>do</strong>s artistas. Para receber tais ou tais [estes ou aqueles] objetos61 Op. citada, p. 96, etc.104


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006(“móveis”) liga<strong>do</strong>s a uma maneira aristocrática <strong>de</strong> viver, os arquitetas construíam palácios, ao la<strong>do</strong><strong>de</strong> praças para o povo e <strong>de</strong> monumentos para as instituições. O conjunto compunha um espaço<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um estilo, freqüentemente fascinante jamais <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> racionalmente, que nascia e morriasem razão clara. Doravante, pressente Gropius <strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong> o passa<strong>do</strong>, esclarecen<strong>do</strong>-o à luz <strong>do</strong> atual,a prática social muda. A produção <strong>do</strong>s conjuntos espaciais como tais correspon<strong>de</strong> à capacida<strong>de</strong> dasforças produtivas, a uma racionalida<strong>de</strong>. Portanto, não é mais questão <strong>de</strong> introduzir isoladamenteformas, funções, estruturas, mas <strong>de</strong> <strong>do</strong>minar o espaço global engloban<strong>do</strong> as formas, as funções, asestruturas, numa concepção unitária. O que comprova uma idéia <strong>de</strong> Marx: a indústria abre diante <strong>do</strong>solhos o livro on<strong>de</strong> se inscrevem as capacida<strong>de</strong>s cria<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> “homem” (<strong>do</strong> ser social).323) Os integrantes da Bauhaus, artistas associa<strong>do</strong>s para a elaboração <strong>de</strong> um projeto total (o <strong>de</strong> umaarte total) <strong>de</strong>scobriram com Klee 62 , que o observa<strong>do</strong>r po<strong>de</strong> girar em torno <strong>de</strong> cada objeto no espaçosocial – compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-se entre os objetos: as casas, os edifícios, os palácios – e não apenas ovislumbrar, o consi<strong>de</strong>rar segun<strong>do</strong> um aspecto privilegia<strong>do</strong>. O espaço se abre à percepção, àconcepção, como à ação prática. O artista passa <strong>do</strong>s objetos no espaço ao conceito <strong>do</strong> espaço. Àmesma época, os pintores <strong>de</strong> vanguarda chegaram a proposições muitos próximas. Simultaneamentepo<strong>de</strong>-se consi<strong>de</strong>rar to<strong>do</strong>s os aspectos <strong>de</strong> um objeto, a simultaneida<strong>de</strong> reten<strong>do</strong> e resumin<strong>do</strong> umasucessão temporal. Don<strong>de</strong> muitas conseqüências:324) a) Uma nova consciência <strong>do</strong> espaço, que o explora (o surrounding 63 , os arre<strong>do</strong>res <strong>de</strong> um objeto),tanto reduzin<strong>do</strong>-o intencionalmente ao <strong>de</strong>senho, ao plano, à superfície da tela, quanto, ao contrário,tratan<strong>do</strong>-o por brechas e rupturas <strong>de</strong> planos para restituir a profundida<strong>de</strong> espacial sobre a tela. Don<strong>de</strong>uma dialetização específica.325) b) A fachada <strong>de</strong>saparece: rosto vira<strong>do</strong> para o observante, aspecto ou la<strong>do</strong> privilegia<strong>do</strong> <strong>do</strong>squadros e monumentos (o fascismo, ao contrário, amplia a importância das fachadas e, aposta numa“espetacularização” completa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o perío<strong>do</strong> 1920-1930).326) c) O espaço global se estabelece na abstração enquanto vazio a preencher, um meio a povoar.De que? Somente mais tar<strong>de</strong> a prática social <strong>do</strong> capitalismo encontrará uma resposta. O espaço sepovoará <strong>de</strong> imagens, <strong>de</strong> signos, <strong>de</strong> objetos comerciais. O que dará esse [resultará nesse] pseu<strong>do</strong>conceito:o ambiente (<strong>de</strong> quem? <strong>de</strong> que?).327) O historia<strong>do</strong>r <strong>do</strong> espaço, abordan<strong>do</strong> a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong> afirmar sem risco <strong>de</strong> errar o papelhistórico da Bauhaus. Nessa data (1920-1930), além <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s sistemas filosóficos, fora dasinvestigações matemáticas e físicas, a reflexão sobre o espaço e o tempo se liga à prática social, e62“L’art ne reflète pas le visible; il rend visible” (Klee, 1920). A arte não reflete o visível, ela o torna visível.63 Gerúndio <strong>do</strong> verbo da língua inglesa “surround” (ro<strong>de</strong>ar, circundar, cercar), conforme grafa<strong>do</strong> pelo autor. (N.T.).105


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006mais precisamente à prática industrial, assim como às pesquisas arquiteturais e urbanísticas. Essapassagem da abstração filosófica à análise da prática social merece ser sublinhada. Ao longo <strong>de</strong>ssapassagem, que eles estimulam, os integrantes da Bauhaus e <strong>de</strong> outras, se consi<strong>de</strong>ravam mais queinova<strong>do</strong>res: revolucionários. Meio século mais tar<strong>de</strong>, essa qualida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rá ser atribuída somente aDada e aos dadaístas (com algumas precauções e reservas, a alguns surrealistas).328) É fácil estabelecer o papel histórico da Bauhaus, mas difícil mostrar sua amplitu<strong>de</strong> e seuslimites. Causa e razão <strong>de</strong> uma mudança <strong>de</strong> perspectivas estéticas, ou sintoma <strong>de</strong> uma mudança naprática social? Mais isto que aquilo, contrariamente ao que pensa a maioria <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res da arte,da arquitetura, da pintura. Em que iriam resultar as audácias da Bauhaus? Na arquitetura mundial,homogênea e monótona, <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, capitalista ou socialista. Como e por que 64 ?329) Se existe uma história <strong>do</strong> espaço, se há uma especificida<strong>de</strong> <strong>do</strong> espaço segun<strong>do</strong> os perío<strong>do</strong>s, associeda<strong>de</strong>s, os mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> produção e as relações <strong>de</strong> produção, existe um espaço <strong>do</strong> capitalismo, ouseja, da socieda<strong>de</strong> gerida e <strong>do</strong>minada pela burguesia. Os textos e obras da Bauhaus, <strong>de</strong> Mies Van <strong>de</strong>rRohe entre outros, esboçaram, formularam, realizaram esse espaço? Enquanto a Bauhaus aspirava ese dizia revolucionária! É preciso retornar longamente a esta ironia da “História” 65330) A iniciativa <strong>de</strong> uma reflexão sobre a história <strong>do</strong> espaço reaparece em E. Gie<strong>de</strong>on 66 . Afastan<strong>do</strong>-seda prática, mas elaboran<strong>do</strong> o objeto teórico, ele coloca o espaço no centro da história que eleconcebe, e não o gênio cria<strong>do</strong>r, o espírito <strong>do</strong> tempo, as técnicas etc. De acor<strong>do</strong> com Gie<strong>de</strong>on,suce<strong>de</strong>ram-se três perío<strong>do</strong>s. Durante o primeiro (Egito, Grécia), os volumes arquiteturais sãoconcebi<strong>do</strong>s e realiza<strong>do</strong>s com suas relações sociais, portanto, <strong>de</strong> fora [externamente]. O Panteão <strong>de</strong>Roma indica uma outra concepção: o espaço interno <strong>do</strong> monumento torna-se prepon<strong>de</strong>rante. Nossaépoca busca ultrapassar a oposição externa-interna conceben<strong>do</strong> a interação e a unida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s espaços.Esse autor inverte a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> espaço social. O Panteão, figura <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> (o Mundus) se abre paraa luz; a imago mundi, a semi-esfera ou o <strong>do</strong>mo interno, simboliza o externo. Quanto ao templogrego, ele encerra um espaço sagra<strong>do</strong> e consagra<strong>do</strong>, o <strong>do</strong> <strong>de</strong>us localiza<strong>do</strong> e <strong>do</strong> lugar diviniza<strong>do</strong>,centro político da Cité 67 . De on<strong>de</strong> vem a ilusão? De um erro inicial que se encontra um pouco portoda parte. Gie<strong>de</strong>on postula um espaço preexistente, o espaço euclidiano, no qual vêm se investir e setornar sensíveis as emoções e as expectativas humanas. O espiritualismo inerente a esta filosofia <strong>do</strong>espaço transparece no The eternal Present, <strong>do</strong> mesmo autor (1964). Ele não se livra <strong>de</strong>ssa oscilação64 Cf. Michel Ragon, Histoire mondiale <strong>de</strong> l’architecture et <strong>de</strong> l’urbanisme mo<strong>de</strong>rnes, notadamente II, p. 147 e seguintes.65 ???66Space, Time and Architecture, 194167 Cf. Hei<strong>de</strong>gger, Holzwege, tr. fr., o fragmento sobre o Templo, p. 31 e seguintes.106


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006ingênua entre o geométrico e o espiritual. Por outro la<strong>do</strong>, ele não separa a história que ele elabora dahistória da arte e da arquitetura. Ao passo que se trata <strong>de</strong> outra coisa.331) A imagem <strong>de</strong> um espaço vazio, povoa<strong>do</strong> <strong>de</strong> mensagens visuais, limita também o pensamento <strong>de</strong>Bruno Zévi. Para ele 68 , o espaço geométrico se anima <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> aos gestos e aos atos <strong>do</strong>s que ohabitam. Oportunamente forte, ele relembra uma verda<strong>de</strong>: to<strong>do</strong> edifício, to<strong>do</strong> imóvel tem um <strong>de</strong>ntro[interior]. E não apenas um fora [exterior]. Haveria então um espaço arquitetural <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> pelarelação <strong>de</strong>ntro/fora [interior/exterior], instrumento <strong>do</strong> arquiteto na sua ação social. O surpreen<strong>de</strong>ntenão seria que ele precisou rememorar esta dualida<strong>de</strong> diversos <strong>de</strong>cênios <strong>de</strong>pois da Bauhaus, na Itália,país clássico da arquitetura? O que não significa que a análise crítica da fachada não tenha si<strong>do</strong>operante. O espaço permaneceu estritamente visual, subordina<strong>do</strong> a uma “lógica da visualização”.Para Bruno Zévi, um elemento corporal (gestual), que a educação <strong>do</strong> olho <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar, suporta apercepção visual <strong>do</strong> espaço. Esse “vivi<strong>do</strong>” da experiência espacial, “encarnante” porque corporal, B.Zévi o chama ao saber, portanto à “consciência”, e, contu<strong>do</strong>, em seu livro, esse conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> espaçoóptico (geométrico-visual) não compromete a priorida<strong>de</strong>. O autor aprecia a importância apenas numplano pedagógico, na aprendizagem <strong>do</strong> arquiteto e na educação <strong>do</strong>s conhece<strong>do</strong>res. Ele não leva aquestão ao plano teórico. Conforme ele, se o olhar não aprecia <strong>do</strong>minar o espaço, como po<strong>de</strong>remosjulgar “belo” ou “feio” um espaço, e dar a esse critério estético, um valor primordial? Como umespaço construí<strong>do</strong> po<strong>de</strong>ria subjugar ou rejeitar, <strong>de</strong> outra maneira senão pelo uso 69 ? Os livrosmenciona<strong>do</strong>s se <strong>de</strong>stacam, sem dúvida, na história <strong>do</strong> espaço. Eles a anunciam, eles não a trazem.Eles assinalam seus problemas, balizam [<strong>de</strong>marcam] a via. Assim, a história <strong>do</strong> espaço <strong>de</strong>verámostrar a <strong>do</strong>minação crescente da abstração e <strong>do</strong> visual, expon<strong>do</strong> sua conexão interna. Da “lógica <strong>do</strong>visual”, ela <strong>de</strong>verá mostrar a gênese e o senti<strong>do</strong>, ou seja, a estratégia implicada numa tal “lógica”,posto que uma “lógica” particular é apenas a <strong>de</strong>nominação enganosa <strong>de</strong> uma estratégia.332) II.9 Da história assim vislumbrada, o materialismo histórico recebe uma extensão e umaverificação que o transformam. Aprofunda-se sua objetivida<strong>de</strong>. Ele não se refere somente à produção<strong>de</strong> coisas e <strong>de</strong> obras, sobre a história (dupla) <strong>de</strong>sta produção. A partir da natureza como “matériaprima”,o materialismo histórico se esten<strong>de</strong> ao espaço e ao tempo, ele <strong>de</strong>senvolve o conceito <strong>de</strong>produção e esse produto, o espaço, envolve ao mesmo tempo as coisas (bens, objetos) e as obras.333) O resumo da história, seu “compêndio” e seu “ín<strong>de</strong>x” não se encontram somente nas filosofias,mas além da filosofia, nesta produção que abrange também o concreto e o abstrato, os historian<strong>do</strong> aoinvés <strong>de</strong> os <strong>de</strong>ixar no absoluto filosófico. Reciprocamente, termina-se assim por relativizar a história68 Apprendre à voir l’architecture (trad. aux Éditions <strong>de</strong> Minuit).107


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006no lugar <strong>de</strong> se fazer um substituto da metafísica (uma ontologia <strong>do</strong> <strong>de</strong>vir), <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que a préhistória,o histórico e o pós-histórico recebem um senti<strong>do</strong>. O perío<strong>do</strong> propriamente histórico dahistória <strong>do</strong> espaço coinci<strong>de</strong> com a acumulação <strong>do</strong> capital, <strong>de</strong> sua fase primitiva ao merca<strong>do</strong> mundialno reino da abstração.334) Quanto ao materialismo dialético, ele também é amplifica<strong>do</strong>, verifica<strong>do</strong>, transforma<strong>do</strong>. Novosmovimentos dialéticos aparecem: obra-produto, repetição-diferença etc. O movimento dialéticoimanente à divisão <strong>do</strong> trabalho se aprofunda pelo exposto da relação entre a ativida<strong>de</strong> produtora (otrabalho ao mesmo tempo global enquanto trabalho social, e dividi<strong>do</strong>, parcela<strong>do</strong>) e esse produtoprivilegia<strong>do</strong>, porque ele é também instrumento: o espaço. A “realida<strong>de</strong>” <strong>do</strong> espaço como substâncianatural e sua “irrealida<strong>de</strong>” como transparência, se dissolvem simultaneamente. O espaço aparececomo “realida<strong>de</strong>” enquanto meio da acumulação, <strong>do</strong> crescimento, da merca<strong>do</strong>ria, <strong>do</strong> dinheiro, <strong>do</strong>capital; mas tal “realida<strong>de</strong>” per<strong>de</strong> a aparência substancial e autônoma quan<strong>do</strong> o exposto segue suagênese: sua produção.335) Resta uma questão que anteriormente não foi posta: qual é exatamente o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> existência dasrelações sociais? Substancialida<strong>de</strong>? Naturalida<strong>de</strong>? Abstração formal? O estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> espaço permiterespondê-la: as relações sociais <strong>de</strong> produção têm uma existência social contan<strong>do</strong> que tenham umaexistência espacial; elas se projetam em um espaço, elas se inscrevem nele, produzin<strong>do</strong>-o. Senão,elas permanecem na abstração “pura”, ou seja, nas representações e por conseqüência na i<strong>de</strong>ologia,outrora mencionada, o verbalismo, a fraseologia, as palavras.336) Quanto ao próprio espaço, simultaneamente produto <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção capitalista,instrumento econômico-político da burguesia, ele revela contradições. A dialética sai <strong>do</strong> tempo e serealiza; ela age, <strong>de</strong> uma maneira imprevista, no espaço. As contradições <strong>do</strong> espaço, sem eliminar asque provêm <strong>do</strong> tempo histórico, saem da história e na simultaneida<strong>de</strong> mundial colocam num outronível as contradições antigas, umas se enfraquecen<strong>do</strong>, outras se agravan<strong>do</strong>, o conjunto contraditóriotoman<strong>do</strong> um novo senti<strong>do</strong> e <strong>de</strong>signan<strong>do</strong> “outra coisa”: um outro mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção.337) II.10 Tu<strong>do</strong> não foi dito [Nem tu<strong>do</strong> foi dito], longe disso, no que concerne à inscrição <strong>do</strong> tempono espaço, ou seja, o processo temporal que engendra (produz) a espacialida<strong>de</strong>, que se refira aocorpo, à socieda<strong>de</strong>, ao cosmos e ao mun<strong>do</strong>.338) A filosofia apenas <strong>de</strong>ixou esquemas muito pobres. O mun<strong>do</strong>: seqüência <strong>de</strong> eventos obscuros,que se passam nas trevas. O cosmos: simultaneida<strong>de</strong> luminosa. O heraclitismo: o fluxo universal,sempre novo, que arrasta os “seres” e toda estabilida<strong>de</strong> é apenas aparência. O eleatismo: a69Cf. Apprendre à Voir , tr.fr. Éditions <strong>de</strong> Minuit, pp.15-16, e as observações <strong>de</strong> Ph. Bou<strong>do</strong>n, L’espace architectural, Dunod,1971, pp. 27 e seguintes.108


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006estabilida<strong>de</strong> sozinha [só a estabilida<strong>de</strong>] constitui o “real” e o torna inteligível, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que o <strong>de</strong>vir éapenas aparência. Daí o prima<strong>do</strong> absoluto – tanto da diferença (<strong>do</strong> novo, sempre e sem cessar <strong>do</strong>novo, tragicamente), – quanto da repetição (sempre e por to<strong>do</strong> lugar das repetições, comicamente).Para uns, portanto, o espaço é a <strong>de</strong>cadência, o isolamento, a queda fora <strong>do</strong> tempo o qual sucumbefora <strong>do</strong> Ser (eterno). O espaço, coleção <strong>de</strong> coisas, separa, dispersa, <strong>de</strong>sune, invólucro <strong>do</strong> finito emáscara da finitu<strong>de</strong>. Para outros, ao contrário, o espaço é o berço, o lugar <strong>de</strong> nascimento, o meio dascomunicações e das trocas, da natureza à socieda<strong>de</strong>. Portanto, sempre fecun<strong>do</strong>: tensões e/ou acor<strong>do</strong>s.339) Que um tempo a partir <strong>de</strong> um germe (e por conseqüência <strong>de</strong> uma origem relativa) se realize numespaço – que esta efetuação encontre dificulda<strong>de</strong>s e se <strong>de</strong>tenha, repouso e pausas, - que durante essesmomentos o processo retorne ao original que ele carrega em si, recorrência e recurso, - que emseguida ele parta novamente para continuar até que se esgote, esse não seria um esquema aindapouco explora<strong>do</strong> <strong>do</strong> tempo e <strong>do</strong> espaço? O “feedback”, por isso que ele existe, não acionaria umsistema atual, mas uma sincronização com o conjunto diacrônico, que não <strong>de</strong>saparece em nenhum“ser” vivo. O recurso, a disponibilida<strong>de</strong> retornam ao original.340) II.11 No que diz respeito às relações entre a linguagem e o espaço, muitas proposições já foramemitidas. Não é certo que os sistemas <strong>de</strong> signos não-verbais enfatizem os mesmos conceitos ecategorias que os sistemas verbais, e talvez eles não sejam sistemas, os elementos e momentos ten<strong>do</strong>entre eles mais relações <strong>de</strong> contigüida<strong>de</strong> ou similarida<strong>de</strong> que <strong>de</strong> sistematização coerente. Todavia, aquestão não foi resolvida. Como no discurso, as partes <strong>de</strong> um espaço se articulam: se incluem, seexcluem. Na linguagem, como no espaço, existe o antes e o <strong>de</strong>pois, e o passa<strong>do</strong> e o futuro, mas oatual <strong>do</strong>mina.341) Po<strong>de</strong>-se colocar as seguintes questões, perfeitamente admissíveis: “Os espaços mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong>s pelaativida<strong>de</strong> prático-social, as paisagens, os monumentos e edificações têm significações? O espaçoocupa<strong>do</strong> por um grupo social ou por vários grupos po<strong>de</strong> passar por uma mensagem? Deve-seconceber a obra (arquitetural ou urbana) como um caso notável <strong>de</strong> mass-media? Um espaço socialpo<strong>de</strong> ser concebi<strong>do</strong> como uma linguagem, como um discurso, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma prática <strong>de</strong>finida, aleitura-escrita?”342) À primeira questão <strong>de</strong>ve-se respon<strong>de</strong>r: “sim”. Está claro. A segunda questão suscita umaresposta ambígua: “Sim e não”. Um espaço contém uma mensagem; mas ele se reduz a estamensagem? Ele não implica outra coisa: outras funções, formas, estruturas, além <strong>do</strong> discurso?Convêm examinar com cuida<strong>do</strong>. Quanto ao terceiro questionamento, a resposta envolve maioresreservas e merece ser explicitada.343) Certamente o conhecimento da linguagem e <strong>do</strong>s sistemas <strong>de</strong> signos (verbais e não-verbais) nãoterá si<strong>do</strong> vão, no que se refere ao espaço. Outrora, tendia-se a examinar cada fragmento ou elemento109


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006<strong>do</strong> espaço à parte, reten<strong>do</strong>-o em seu passa<strong>do</strong>, portanto, etimologicamente. Hoje estuda-se conjuntos,configurações e texturas. Isto ao preço <strong>de</strong> um extremo formalismo, <strong>de</strong> um fetichismo da coerência nosaber e da coesão na prática: ao preço da logologia.344) Chega-se até a preten<strong>de</strong>r que o discurso e o pensamento não “aspirem” a nada dizer, que sipróprios. O que daria lugar não a uma verda<strong>de</strong>, mas a uma verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> “senti<strong>do</strong>”, ao trabalho“textual” e somente “textual”. Aqui, porém, intervém a teoria <strong>do</strong> espaço. Toda linguagem se situanum espaço. To<strong>do</strong> discurso diz qualquer coisa sobre um espaço (lugares ou conjuntos <strong>de</strong> lugares);to<strong>do</strong> discurso fala <strong>de</strong> um espaço. É preciso distinguir o discurso no espaço, o discurso sobre o espaçoe o discurso <strong>do</strong> espaço. Por conseguinte, entre a linguagem e o espaço existem relações mais oumenos malconhecidas. Sem dúvida, não existe espaço verda<strong>de</strong>iro (o que postulava a filosofiaclássica, o que postula seu prolongamento, a epistemologia e a “cientificida<strong>de</strong>” que ela <strong>de</strong>fine). Masindubitavelmente existe uma verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> espaço, que inclui o movimento da teoria crítica, sem a elase reduzir. No espaço e <strong>do</strong> espaço, os seres humanos (por que dizer “o homem”?) não po<strong>de</strong>m seausentar, não se <strong>de</strong>ixam excluir.345) Sem o que ele assinala concernente ao espaço, o discurso é apenas vazio mortal, fraseologia. Aanalogia entre a teoria <strong>do</strong> espaço (<strong>de</strong> sua produção) e a da linguagem (<strong>de</strong> sua produção) somentepo<strong>de</strong> se conceber <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> certos limites. A teoria <strong>do</strong> espaço <strong>de</strong>screve e analisa texturas. Veremosque o direito (a linha direita) e a curva (a linha curva), a gra<strong>de</strong> (xadrez) e o radioconcêntrico(centralida<strong>de</strong>-periferia) são formas e estruturas, mais que texturas. A produção <strong>do</strong> espaço apreen<strong>de</strong>se<strong>de</strong>ssas estruturas e as faz entrar nos conjuntos (texturas) muito diversos. Quem diz textura diztambém senti<strong>do</strong>, mas para quem? Para um “leitor” qualquer? Não. Para qualquer um que vive e ageno espaço consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>, “sujeito” <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um corpo, às vezes “sujeito coletivo”. Para um tal“sujeito”, o agenciamento das formas e estruturas correspon<strong>de</strong> às funções <strong>do</strong> conjunto. Brancos(ausências-presenças), margens, portanto re<strong>de</strong>s e tramas, têm um senti<strong>do</strong> vivi<strong>do</strong> que é preciso elevarao concebi<strong>do</strong> sem o romper.346) Tentemos levar a interrogação até o limite. Atualmente, na França e em outros lugares, atravésdas querelas <strong>de</strong> escolas, duas filosofias e duas teorias da linguagem se misturam e se opõem:347) a) para a primeira tendência, nenhum signo po<strong>de</strong> ser isola<strong>do</strong>; por conseqüência, o enca<strong>de</strong>amentoe a articulação <strong>do</strong>s signos tem uma importância maior; é somente numa e por uma concatenação queum signo possui uma significação. O signo se erige no centro <strong>de</strong> um saber e mesmo <strong>do</strong> saber teórico(semiologia, semiótica). A linguagem, porta<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> conhecimento, propicia um conhecimento dalinguagem, saber absoluto. O “sujeito” (<strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong> ou malconheci<strong>do</strong>) da linguagem somente setorna certeza <strong>de</strong> si enquanto sujeito <strong>do</strong> saber através <strong>do</strong> conhecimento da linguagem como tal.110


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006348) Conseqüentemente, o conhecimento colocará em primeiro plano o estu<strong>do</strong> metódico <strong>de</strong>ssesencaminhamentos. Ele partirá <strong>de</strong> signos da linguagem, mas esten<strong>de</strong>rá tal preocupação a tu<strong>do</strong> o queveicula significações e senti<strong>do</strong>: as imagens, os sons etc. O Saber constrói um espaço mental no qualele se instala, as conexões <strong>de</strong> signos, <strong>de</strong> palavras, <strong>de</strong> coisas, <strong>de</strong> conceitos não diferin<strong>do</strong>essencialmente. A lingüística estabelece assim uma área <strong>de</strong> certeza que ganha cada vez mais, queconquista novos territórios. Ela contém a essência <strong>do</strong> saber, o principio <strong>do</strong> saber absoluto, e indica aor<strong>de</strong>m da aquisição. O conhecimento possui, portanto, um fundamento estável, ao qual seacrescentam as extensões sucessivas, a epistemologia (que, com efeito, assenta-se sobre o saberadquiri<strong>do</strong> e sobre a linguagem <strong>de</strong>sse saber), a semiologia (que se ocupa <strong>do</strong>s sistemas <strong>de</strong> signos nãoverbaisetc.). Nessa perspectiva, tu<strong>do</strong> é linguagem: a música, a pintura, a arquitetura. Reduzi<strong>do</strong> aossignos, e aos conjuntos <strong>de</strong> signos, o espaço entra, por conseguinte, no saber. E, cada vez mais, to<strong>do</strong>sos objetos no espaço!349) A teoria <strong>do</strong>s signos se associa à teoria <strong>do</strong>s conjuntos e, por ela, à lógica, ou seja, às relações“puras” tais como a comutativida<strong>de</strong>, a transitivida<strong>de</strong>, a distributivida<strong>de</strong> (ou sua negação lógica).Toda relação mental e social se reduz a uma relação formal <strong>do</strong> tipo: A está para B como B está paraC. A pura formalização torna o centro (vazio) a partir <strong>do</strong> qual se estabelece a totalização <strong>do</strong> saber, <strong>do</strong>discurso, da filosofia e da ciência, <strong>do</strong> sensível e <strong>do</strong> inteligível, <strong>do</strong> tempo e <strong>do</strong> espaço, da “práticateórica” e da prática social.350) É preciso longamente lembrar o sucesso <strong>de</strong>sta tendência na França? (nos países anglo-saxões,ela passa por um sucedâneo <strong>do</strong> empirismo lógico). Por que? Devi<strong>do</strong> à instalação, promulgada porela, <strong>do</strong> saber e, por conseqüência, <strong>do</strong> ensino universitário, num lugar central <strong>do</strong> qual se acredita<strong>do</strong>minar o espaço social inteiro. E porque, ao final das contas, ela salva <strong>do</strong> <strong>de</strong>sastre o Logoscartesiano, oci<strong>de</strong>ntal, eurocêntrico, em que pese ver-se comprometi<strong>do</strong>, abala<strong>do</strong>, assalta<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>sos la<strong>do</strong>s, por <strong>de</strong>ntro e por fora. A lingüística, com suas extensões, se erige assim (quem ignora?) naciência das ciências, substituin<strong>do</strong> em boa hora as <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>s, as da economia política, da história, dasociologia. Quer a ironia que essa lingüística, acreditan<strong>do</strong> estabelecer um núcleo central <strong>do</strong> saber,estabeleceu <strong>do</strong>gmaticamente um branco, um vazio entorno <strong>do</strong> qual há apenas metalinguagem,logologia, falatório sobre o discurso, ou silêncio. A prudência (científica) impe<strong>de</strong> ultrapassarcorajosamente o corte que separa o sabi<strong>do</strong> <strong>do</strong> não sabi<strong>do</strong> (corte epistemológico). Fruto proibi<strong>do</strong>, ovivi<strong>do</strong> foge ou <strong>de</strong>saparece diante da redução: o silêncio reina em torno da fortaleza <strong>do</strong> saber.351) b) “Ich kann das Wort so hoch unmöglich schätzen” (Faust, V, 1226). Impossível <strong>de</strong> colocar emtão alta conta a linguagem, o verbo, a palavra! O Verbo jamais salvou e não po<strong>de</strong> salvar o mun<strong>do</strong>.352) Numa segunda orientação, o exame <strong>do</strong> signo revela qualquer coisa <strong>de</strong> terrível. Congela<strong>do</strong>,gela<strong>do</strong>, abstraí<strong>do</strong> por uma perigosa abstração, o signo carrega a morte, letra, palavra, imagem, som.111


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006Sua importância mostra uma íntima ligação entre a palavra e a morte, entre a consciência humana eos atos mortais: quebrar, matar, se matar. To<strong>do</strong> signo é mau signo, ameaça, arma. O que explica seucaráter críptico: escondi<strong>do</strong>s no fun<strong>do</strong> das grutas, proprieda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s feiticeiros (Lascaux, segun<strong>do</strong> G.Bataille). Signos e figuras <strong>do</strong> invisível ameaçam o visível. Os signos servem com as armas, entre asarmas. Quem e o que? A vonta<strong>de</strong> da potência. Com a escrita, o po<strong>de</strong>r. O que são eles? Os duplos dascoisas. Des<strong>de</strong> que tomam as qualida<strong>de</strong>s, passan<strong>do</strong> pelas coisas, emocionantes, eles suscitamfrustrações, engendram as neuroses. Duplos que <strong>de</strong>sarticulam os “seres”, eles permitem quebrá-los,<strong>de</strong>strui-los, por conseguinte, refazê-los <strong>de</strong> outra maneira. A potência <strong>do</strong> signo continua, pois, pelapotência <strong>do</strong> saber sobre a natureza e pelo po<strong>de</strong>r sobre os seres humanos; essa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> açãocontém a “terrível potência <strong>do</strong> negativo”, segun<strong>do</strong> Hegel. Compara<strong>do</strong> aos significa<strong>do</strong>s, coisa ou“ser”, presente ou possível, o signo tem um caráter repetitivo, pois ele os <strong>do</strong>bra <strong>de</strong> umarepresentação; entre os <strong>do</strong>is existe uma diferença fascinante, abismo engana<strong>do</strong>r: o salto parece fácil,e quem tem as palavras crê ter as coisas. Ele as têm, até um certo ponto - ponto terrível. Traço vão econtu<strong>do</strong> atuante, o signo tem a potência da <strong>de</strong>struição porque ele tem a potência da abstração e porconseguinte a da construção <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> outro (que a natureza inicial). Este é o segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> Logos,fundamento <strong>de</strong> toda potência e <strong>de</strong> to<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r; <strong>do</strong>n<strong>de</strong> o auge na Europa <strong>do</strong> conhecimento e da técnica,da indústria e <strong>do</strong> imperialismo.353) O espaço, igualmente, teria esse caráter mortal: lugar das comunicações pelos signos, lugar dasseparações, meio <strong>do</strong>s interditos, a espacialida<strong>de</strong> <strong>de</strong>finir-se-ia também por uma pulsão <strong>de</strong> morte,inerente à vida que só prolifera entran<strong>do</strong> em conflito consigo, se <strong>de</strong>struin<strong>do</strong>.354) A visão pessimista <strong>do</strong> signo remonta longe. Ela se encontra em Hegel 70 , negativida<strong>de</strong> emseguida compensada pela positivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> saber. Ela se reencontra, mais aguda, mais <strong>de</strong>senvolvida,em Nietzsche, poeta filólogo, filósofo ou sobretu<strong>do</strong>, metafilósofo 71 . Para Nietzsche, a linguagemcomo tal tem um caráter anafórico ainda maior que o metafórico. Ele sempre vai além da presença,para um alhures, e sobretu<strong>do</strong> para uma hipervisualização que, por sua vez, o mata. Aquém <strong>do</strong> saber ealém, existe o corpo e os atos <strong>do</strong> corpo, sofrimento, <strong>de</strong>sejo, gozo. Para Nietzsche poeta, em queconsiste a poesia? Em uma metamorfose <strong>do</strong>s signos. No <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> uma luta que supera a oposição<strong>do</strong> trabalho e <strong>do</strong> jogo, o poeta arranca as palavras da morte. No enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> signos, ele substituia vida à morte. Nesse senti<strong>do</strong>, ele as <strong>de</strong>scripta. Luta tão terrível quanto a armadilha que move oterreno sobre o qual ela se orienta. O poeta, por felicida<strong>de</strong>, encontra ajuda e recurso: o músico, o70 H. Lefebvre, Le Langage et la Société, Gallimard coll. Idées, 1966, p. 84 e seguintes.71 Cf. O fragmento já cita<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1873 no Le livre du philosophe, trad. A. Marieeti, p. 170 e seguintes.112


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006dançarino, o ator perseguem a mesma tentativa, marcada <strong>de</strong> angústia, recompensada porincomparáveis gozos.355) Muito fácil e muito bem em seu lugar vem aqui a oposição entre a poesia que intensifica a vida(O Fausto <strong>de</strong> Goethe, o Zaratustra) e a poesia da morte (Rilke, Mallarmé) 72 .356) As duas tendências da teoria (filosofia) da linguagem raramente apareceram em sua pureza. Amaior parte <strong>do</strong>s teóricos na França procuraram um compromisso. Exceto G. Bataille e A. Artaud. Apsicanálise permitiu esse ecletismo bastante difundi<strong>do</strong>. Passa-se <strong>de</strong> um discurso-saber ao saber <strong>do</strong>discurso, sem drama, sem corte sangrento. Ao saber <strong>do</strong> discurso, integra-se sem dificulda<strong>de</strong> o dito eo não-dito e o interdito, concebi<strong>do</strong>s como essência e senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> vivi<strong>do</strong>. Des<strong>de</strong> então, o saber <strong>do</strong>discurso vai até o discurso social. Pulsão <strong>de</strong> morte, interdições, notadamente a <strong>do</strong> incesto, castração eobjetivação <strong>do</strong> Fálico, projeção da voz na escrita, marcam as etapas <strong>de</strong>ssa extensão. A semiótica<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria das pulsões (<strong>de</strong> morte e <strong>de</strong> vida) tanto quanto o simbólico e o semântico, se ligariam aossignos como tais 73 . O espaço se ofereceria com a linguagem e na linguagem sem que para ele existauma formação diferente. Povoa<strong>do</strong> <strong>de</strong> signos e significações, cruzamento indistinto <strong>do</strong>s discursos,continente homólogo ao que ele contém, esse espaço se compõe <strong>de</strong> funções, <strong>de</strong> articulações, <strong>de</strong>enca<strong>de</strong>amentos, como o discurso. Necessários, os signos se bastam, pois o sistema <strong>de</strong> signos verbais(dan<strong>do</strong> lugar à escrita) contém a essência <strong>de</strong> enca<strong>de</strong>amentos, aí compreendi<strong>do</strong>s os <strong>do</strong> espaço. Ora,esse compromisso que sacrifica o espaço oferecen<strong>do</strong>-o como um presente à filosofia da linguagem,não se mantém. Neste espaço se <strong>de</strong>senvolvem processos significantes (uma prática significante) quenão se reduzem nem ao discurso cotidiano, nem à linguagem literária (aos textos). Se os signos comoinstrumentos <strong>de</strong> morte se transcen<strong>de</strong>m na poesia, o que dizia e tentava Nietzsche, eles se ultrapassamperpetuamente como tais no espaço. As duas teses sobre o signo não têm como se reconciliarem numecletismo que arranja ao mesmo tempo o saber “puro” e a impura poesia. Não se trata <strong>de</strong> apostar[acentuar/sublinhar]sobre uma ambigüida<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong> mostrar uma contradição, para a resolver, oumelhor, mostrar que o espaço a resolve. O <strong>de</strong>senvolvimento da energia <strong>do</strong>s corpos viventes noespaço vai sem cessar além das pulsões <strong>de</strong> morte e <strong>de</strong> vida e as ajusta. No e pelo espaço social, a <strong>do</strong>re o prazer, que a natureza distingue mal, se discernem. Os produtos e melhor ainda as obras, são<strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s ao gozo (após o trabalho, mistura <strong>de</strong> esforços <strong>do</strong>lorosos e <strong>de</strong> alegria cria<strong>do</strong>ra). Se existemespaços que dizem as separações intransponíveis, os jazigos, existem também espaços <strong>de</strong> encontro e72Cf. Maurice Blanchot, L’espace littéraire, Gallimard, coll. Idées, 1970.73 Cf. J. Kristeva, Langage, sens, poésie , tese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong>, 1973, que acentua a distinção entre o semiótico (pulsões) e osimbólico (linguagem enquanto sistema <strong>de</strong> comunicação). Esse autor vai mais longe nesse senti<strong>do</strong> que o Dr. J. Lacan nos seus“Écrits”. Aquele que <strong>de</strong>sempenha o melhor sobre os <strong>do</strong>is quadros é Roland Barthes em toda sua obra. Em Le jeu <strong>de</strong>s perles <strong>de</strong>verre, o problema, coloca<strong>do</strong> com força, permanece sem solução.113


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006<strong>de</strong> gozo. E se o poeta se bate contra a frieza das palavras e recusa cair nas armadilhas <strong>de</strong> signos, maisainda o arquiteto que dispõe <strong>de</strong> materiais análogos aos signos (o tijolo, a ma<strong>de</strong>ira, o aço, o concreto)e <strong>de</strong> um material análogo às “operações” que religam os signos, que os articulam e lhes conferesignificações (os arcos <strong>de</strong> abóbada, abóbadas, arcos, pilares e colunas, as aberturas e vedações, osprocedimentos <strong>de</strong> construção, conjunção e disjunção <strong>de</strong>sses elementos). É assim que o talentoarquitetural realizou espaços da volúpia (o Alhambra <strong>de</strong> Grena<strong>de</strong>), da contemplação e da sabe<strong>do</strong>ria(os claustros), da potência (os castelos etc.), da percepção realçada (um jardim japonês). O talentoarquitetural produziu espaços cheios <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, e, antes <strong>de</strong> mais nada, escapan<strong>do</strong> à morte: duráveis,radiantes, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> um tempo local específico. A arquitetura produz corpos viventes, com essestraços distintivos: o que anima esse corpo, sua presença, não é nem visível nem legível como tal, enão se discorre. A vida se reproduz no que faz uso <strong>do</strong> espaço, em seu vivi<strong>do</strong>, <strong>do</strong> qual o turista nãotem senão a sombra e <strong>do</strong> qual o especta<strong>do</strong>r é apenas o fantasma.357) O conceito <strong>do</strong> espaço assim religa<strong>do</strong> a uma prática social – ao mesmo tempo espacial esignificante – toma to<strong>do</strong> o seu alcance. O espaço reúne a produção material: bens, coisas, objetos <strong>de</strong>troca, tais como vestimentas, móveis, casas (residências), produção ditada pela necessida<strong>de</strong>. Elereúne também o processo produtivo consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> a um nível mais eleva<strong>do</strong>, resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong>conhecimentos acumula<strong>do</strong>s, o trabalho se penetran<strong>do</strong> <strong>de</strong> ciência experimental, materialmentecria<strong>do</strong>ra. Enfim, ele reúne o processo cria<strong>do</strong>r o mais livre – o processo significante – anuncian<strong>do</strong> o“reino da liberda<strong>de</strong>” e <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> em princípio a se <strong>de</strong>senvolver nele, a partir <strong>do</strong> momento on<strong>de</strong> cessao trabalho dita<strong>do</strong> pelas necessida<strong>de</strong>s cegas e imediatas, dito <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, o momento on<strong>de</strong> começao processo cria<strong>do</strong>r <strong>de</strong> obras, <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> e <strong>de</strong> gozo (eles próprios diversos, pois a contemplação porexemplo é também um gozo e este, que compreen<strong>de</strong> o sexo, não se reduz ao prazer sexual).358) Agora consi<strong>de</strong>raremos o texto fundamental <strong>de</strong> Nietzsche sobre a linguagem (escrito em 1873).Este filósofo, verda<strong>de</strong>iramente filólogo, amigo da linguagem, pois ele a compreen<strong>de</strong> como poeta, põeem primeiro plano conceitos já clássicos, vulgariza<strong>do</strong>s <strong>de</strong>pois: a metáfora e a metonímia. Para aescola mo<strong>de</strong>rnista, inspirada <strong>de</strong> Saussure, essas figuras <strong>de</strong> retórica, a metáfora e a metonímia, vãoalém da linguagem primeira ou, se se preferir, além <strong>do</strong> primeiro grau <strong>do</strong> discurso. É o senti<strong>do</strong> dapalavra grega: meta. A metáfora e a metonímia fazem parte da meta-linguagem, linguagem aosegun<strong>do</strong> graus.359) No pensamento nietzschiano (que aparece hoje muito diferente que no início <strong>do</strong> século), o termometa tem um senti<strong>do</strong> radical. A metáfora e a metonímia se revelam no início da linguagem. Aspalavras, enquanto palavras, já são metafóricas e metonímicas. – não somente os conceitos como114


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006acreditava S. Kofmann em seu livro a Métaphore nietzschéenne 74 . Elas vão além <strong>do</strong> imediato, além<strong>do</strong> sensível, ou seja, <strong>de</strong> um caos <strong>de</strong> impressões e <strong>de</strong> excitações. Substituir a esse caos uma imagem,uma representação sonora, uma palavra <strong>de</strong>pois um conceito, é o metamorfosear. Com as palavras dalíngua, possuímos somente as metáforas das coisas 75 . O conceito nasce da i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong> nãoidêntico,ou seja, <strong>de</strong> uma metonímia. O que é uma língua, que se acredita instrumento <strong>de</strong> veracida<strong>de</strong>e <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s acumuladas? “Uma quantida<strong>de</strong> movente <strong>de</strong> metáforas, <strong>de</strong> metonímias, <strong>de</strong>antropomorfismos, em suma, uma soma <strong>de</strong> relações humanas que foram poética e retoricamentetransmitidas, transpostas, ornadas e que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um longo uso, parecem a um povo formascanonicais e constrange<strong>do</strong>ras”. Em termos mo<strong>de</strong>rnos, a língua é mais importante que a linguagemem geral, que o discurso em geral; e a palavra mais cria<strong>do</strong>ra que o sistema da linguagem, mais aindaque a escrita e a leitura. A língua e a palavra inventam; elas dão vida aos signos e conceitos, usa<strong>do</strong>scomo peças <strong>de</strong> dinheiro [moeda]. Mas o que inventam, o que suscitam, o que traduzem, o que traem,as “figuras”, metáforas, metonímias, metamorfoses? A realida<strong>de</strong> teria por fundamento o imaginário?Um <strong>de</strong>us poeta, um dançarino, teria cria<strong>do</strong> este mun<strong>do</strong>? Não. Ao menos no social. Uma “or<strong>de</strong>mpiramidal”, portanto um mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> castas e <strong>de</strong> classes, <strong>de</strong> leis e <strong>de</strong> privilégios, <strong>de</strong> hierarquias e <strong>de</strong>coações se opõe ao mun<strong>do</strong> das impressões primeiras como sen<strong>do</strong> “isto que existe <strong>de</strong> mais fecha<strong>do</strong>,<strong>de</strong> mais geral, <strong>de</strong> mais conheci<strong>do</strong>, <strong>de</strong> mais humano, e <strong>de</strong>ste fato como o que é regula<strong>do</strong>r eimperativo” (p. 185). Uma socieda<strong>de</strong> é um espaço e uma arquitetura <strong>de</strong> conceitos, <strong>de</strong> formas e <strong>de</strong>leis, cuja verda<strong>de</strong> abstrata se impõe à realida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s corpos, <strong>do</strong>s quereres, e <strong>de</strong>sejos.360) Por várias vezes no conjunto <strong>de</strong> sua obra filosófica (meta-filosófica) e poética, Nietzsche insisteno caráter visual que <strong>do</strong>mina metáforas e metonímias constitutivas <strong>do</strong> pensamento abstrato: a idéia, avisão, a clareza, a luz e a obscurida<strong>de</strong>, - o véu, a perspectiva, o olho e o olhar <strong>do</strong> espírito, o sol <strong>do</strong>Inteligível etc. É uma das gran<strong>de</strong>s “<strong>de</strong>scobertas” (ainda uma metáfora visual) <strong>de</strong> Nietzsche. Ao longo<strong>do</strong> tempo histórico, o visual leva a melhor sobre os elementos <strong>do</strong> pensamento e <strong>do</strong>s atos vin<strong>do</strong>s <strong>do</strong>soutros senti<strong>do</strong>s (o ouvi<strong>do</strong>, com o entendimento, a escuta etc.) a mão e o ato voluntário, com“apreen<strong>de</strong>r”, “ter” etc.). O visual <strong>do</strong>minou e absorveu os outros senti<strong>do</strong>s até quase completamenteabsorver o o<strong>do</strong>r, o gosto, o toque. E o sexo. E o <strong>de</strong>sejo (travesti<strong>do</strong> em Sehnsucht). Assim se precisa ocaráter anafórico da linguagem, que reúne o metafórico e o metonímico.361) Po<strong>de</strong>-se concluir que:362) a) Inicialmente, a metáfora e a metonímia não são figuras <strong>de</strong> retórica. Elas se tornam. Noprincípio são atos. O que cumprem estes atos? Exatamente eles <strong>de</strong>scriptam, eles fazem surgir das74Payot, 1972.75 Le livre du philosophe, p. 179.115


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006profun<strong>de</strong>zas não o que existe, mas o que po<strong>de</strong>rá se dizer, o que dará figura: a linguagem. Asativida<strong>de</strong>s da palavra, da língua, ou <strong>do</strong> discurso, saem, <strong>de</strong>rivam ou provêm <strong>de</strong>sta fonte. Dever-se-iadizer: metaforização, metonimização. A partir <strong>de</strong> que? Do corpo, metamorfosea<strong>do</strong>. Asrepresentações <strong>do</strong> espaço e os espaços <strong>de</strong> representação, na medida em que utilizam “figuras”ten<strong>de</strong>m a naturalizar o espacial? Não somente. Eles ten<strong>de</strong>m também a evaporá-lo, a dissolvê-lo natransparência luminosa (óptica e geométrica).363) b) Elas <strong>de</strong>slocam, portanto transpõem ou transferem. Além <strong>do</strong> corpo, além das impressões e dasemoções, da vida e <strong>do</strong> sensível, <strong>do</strong> prazer e da <strong>do</strong>r, existe o <strong>do</strong>mínio das unida<strong>de</strong>s distintas earticuladas, <strong>do</strong>s signos e palavras: das abstrações. O signo se <strong>de</strong>fine pela metaforização e pelametonimização. É um próximo além que engendra a ilusão <strong>do</strong> distante. Se as figuras exprimembastante, elas per<strong>de</strong>m e esquecem ainda mais; elas <strong>de</strong>sviam, colocam entre parênteses.364) c) Existe (talvez) uma lógica <strong>do</strong> metafórico e uma lógica <strong>do</strong> metonímico, porque essas “figuras”fazem nascer uma forma, a <strong>do</strong> discurso coerente, articula<strong>do</strong>, próximo da forma lógica, e sobretu<strong>do</strong>porque elas fazem surgir uma arquitetura mental e social sob a vida espontânea. No discurso (comona percepção da socieda<strong>de</strong> e <strong>do</strong> espaço) existe perpetuamente seja passagem <strong>de</strong> um termo a umoutro, seja passagem da parte ao to<strong>do</strong>.365) d) Esse movimento muito amplo tem múltiplas conexões: com a razão, o Logos, a lógica, osraciocínios por analogia e por <strong>de</strong>dução <strong>de</strong> uma parte, com as estruturas sociais <strong>de</strong> outra parte, ligadaselas mesmas às estruturas políticas, logo a um po<strong>de</strong>r. O que ocasiona a pre<strong>do</strong>minância crescente davisão, <strong>do</strong> visível, <strong>do</strong> legível (<strong>do</strong> escrito e da escrita). Entre estes termos, estas formas, funções eestruturas, relações espaciais complexas po<strong>de</strong>m ser analisadas e expostas.366) Portanto, se existe fetichismo (<strong>de</strong> um espaço visual, inteligível, abstrato) e fascinação (<strong>de</strong> umespaço da natureza perdida e/ou reencontrada, espaço <strong>do</strong> absoluto religioso e político, espaços davolúpia ou da morte), a teoria po<strong>de</strong> seguir a gênese: a produção.367) II.12 O que o conceito <strong>de</strong> produção obscurece, no que concerne ao espaço? Deixemos <strong>de</strong> la<strong>do</strong>,as linguagens <strong>do</strong> saber absoluto e <strong>do</strong> neo-<strong>do</strong>gmatismo: campo ou “base” epistemológica, espaço daepisteme etc. Aqui não é o lugar para <strong>de</strong>monstrar que eles reconduzem o social ao mental, o práticoao intelectual e concomitantemente cobrem a extensão ao saber da proprieda<strong>de</strong> privada. Muitasrepresentações que ocultam o conceito vêm da semiologia, e notadamente da tese segun<strong>do</strong> a qual oespaço social resulta <strong>de</strong> uma simples marcação <strong>do</strong> espaço natural: <strong>de</strong> um traço. Essas representações(a marca e a marcação, o traço) utilizadas pelos semiólogos não lhes pertencem como algo particular.Os antropólogos, entre outros, servem-se <strong>de</strong>las. A semiologia insiste sobre o senti<strong>do</strong>: a marca seriasignificante, entraria num sistema, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria <strong>de</strong> uma codificação-<strong>de</strong>codificação. O espaço seriamarca<strong>do</strong> tanto <strong>de</strong> maneira material (os animais utilizam os o<strong>do</strong>res, - as socieda<strong>de</strong>s humanas116


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006empregam procedimentos visuais ou auditivos), quanto <strong>de</strong> maneira abstrata (pelo discurso, pelossignos). Um tal espaço toma valor simbólico. O símbolo implica sempre um investimento afetivo,uma carga emotiva (temor, atração) <strong>de</strong>positada por assim dizer em um lugar e “representada” paraaqueles que se distanciam <strong>do</strong> lugar privilegia<strong>do</strong>. De fato, a prática (no início da vida agropastoril) e osimbolismo não se separam. Muito mais tar<strong>de</strong>, a análise os discerne. Se ela os separa, o símbolo“físico” torna-se incompreensível, e também a prática, a <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> sem abstração. Quan<strong>do</strong>existe somente marcação, simbolização, po<strong>de</strong>-se falar <strong>de</strong> uma produção <strong>do</strong> espaço? Ainda não,apesar <strong>do</strong>s corpos viventes, móveis e ativos, esten<strong>de</strong>rem sua percepção e ocupação espaciais, comouma aranha esten<strong>de</strong> sua teia. Se existe produção, e tanto quanto exista produção, ela se limita durantelongo tempo às marcas, signos, símbolos; eles não mudam a materialida<strong>de</strong> que os recebe. A Terra-Mãe, berço, campo sexual labora<strong>do</strong>, túmulo, permanece Terra.368) Todavia essa ação (localização por marcas, alinhamento e balizamento) só caracteriza osprimórdios da socieda<strong>de</strong> organizada. Então os itinerários <strong>do</strong>s caça<strong>do</strong>res e pesca<strong>do</strong>res, das tropas sãomarca<strong>do</strong>s e os “topoi” (que mais tar<strong>de</strong> tornam-se os “lugares ditos”) indica<strong>do</strong>s por pedras, cairns 76 ,quan<strong>do</strong> os índices [indícios] naturais (uma árvore, um arbusto) não se bastam. Durante estesperío<strong>do</strong>s, os espaços naturais são simplesmente percorri<strong>do</strong>s. O trabalho social os modifica pouco.Mais tar<strong>de</strong> ainda, a marcação e a simbolização se alteram em procedimentos individuais ou lúdicos:uma criança marca seu canto; ela se diverte <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> um traço <strong>de</strong> sua passagem.369) Essa representação engendra a representação inversa e complementar: o espaço “fabrica<strong>do</strong>”resultaria somente da <strong>de</strong>snaturação ou <strong>de</strong>snaturalização <strong>do</strong> espaço objetivo, dito natural. Por quaisintervenções? Estas, evi<strong>de</strong>ntes, da ciência e da técnica, portanto da abstração. Porém, estarepresentação <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha da diversida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s espaços sociais, <strong>de</strong> sua gênese histórica, os reconduzin<strong>do</strong>para uma redução a um caráter comum, o da abstração (efetivamente inerente a todas as ações on<strong>de</strong>intervém o saber).370) A semiologia introduz a idéia <strong>de</strong> que o espaço <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma leitura e por conseqüente <strong>de</strong> umaprática, a leitura-escrita. Enquanto espaço na cité, ele comporta um discurso, uma linguagem 77 .371) Leitura <strong>do</strong> espaço? Sim e não. Sim: o “leitor” <strong>de</strong>cifra, <strong>de</strong>codifica. O “locutor”, que se exprime,traduz seus percursos em discurso. E contu<strong>do</strong> não. O espaço social não é jamais uma página brancasobre a qual se (mas quem?) teria escrito sua mensagem. O espaço natural e o espaço urbano sãosobrecarrega<strong>do</strong>s. Tu<strong>do</strong> aí é rascunho e rascunha<strong>do</strong>. De signos? Sobretu<strong>do</strong> <strong>de</strong> consignas, <strong>de</strong>prescrições múltiplas, interferentes. Se existe texto, traço, escrita, é num contexto <strong>de</strong> convenções, <strong>de</strong>76Pequenas pirâmi<strong>de</strong>s celtas. N.T.77 Cf. Roland Barthes, in Architecture d’aujourd’hui, no. 132 et no. 153.117


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006intenções, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>ns, no senti<strong>do</strong> da <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e da or<strong>de</strong>m social. O espaço é significante?Certamente. De que? Do que é necessário fazer ou não fazer. O que remete ao po<strong>de</strong>r. Mas amensagem <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r é sempre confusa, voluntariamente. Ela se dissimula. O espaço não diz tu<strong>do</strong>. Elediz sobretu<strong>do</strong> o interdito (o inter-dito). Seu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> existência, sua “realida<strong>de</strong>” prática (incluin<strong>do</strong>sua forma) difere radicalmente da realida<strong>de</strong> (<strong>do</strong> ser-lá) <strong>de</strong> um objeto escrito, <strong>de</strong> um livro. Resulta<strong>do</strong> erazão, produto e produzin<strong>do</strong>, é também um interesse [aposta], um lugar <strong>de</strong> projetos e <strong>de</strong> açõescoloca<strong>do</strong>s em jogo por essas ações (estratégias), objeto, portanto, <strong>de</strong> apostas sobre o tempo futuro,apostas que se dizem, mas jamais completamente.372) Um código <strong>do</strong> espaço? Existem vários. O que não <strong>de</strong>sencoraja o semiólogo. Ele estabelecera asucessão <strong>de</strong> níveis <strong>de</strong> interpretação e a existência <strong>de</strong> um resíduo susceptível <strong>de</strong> fazer ressaltar a<strong>de</strong>cifração. De acor<strong>do</strong>. Mas a consigna não é o signo. A consigna é a ação que se <strong>de</strong>senvolve nesseespaço e que o prescreve após uma escolha, aliás, limitada: o espaço or<strong>de</strong>na porque ele implica umaor<strong>de</strong>m, por conseguinte uma <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m. Como a “cena” implica o obsceno. A interpretação vem emseguida, para acrescentar [além disso]. O espaço comanda os corpos; ele prescreve ou proscrevegestos, trajetos e percursos. Ele é produzi<strong>do</strong> nesse objetivo; é seu senti<strong>do</strong> e sua finalida<strong>de</strong>. A leitura éapenas o inverso um pouco gratuito, à escala individual, e a recompensa um pouco supérflua <strong>de</strong> umaobediência nela própria cega, espontânea, vivida.373) Se, portanto, a leitura <strong>do</strong> espaço, tanto quanto haja leitura, vem em primeiro no saber, ela vemem último na gênese. Uma “leitura <strong>do</strong> espaço” das igrejas romanas e <strong>de</strong> seus arre<strong>do</strong>res (burgos oumonastérios) não permite em nada compreen<strong>de</strong>r ou prever o espaço das igrejas ditas góticas (comsuas condições e pressuposições: as cida<strong>de</strong>s, a revolução das comunas, a ativida<strong>de</strong> das corporaçõesetc.). Esse espaço foi produzi<strong>do</strong> antes <strong>de</strong> ser li<strong>do</strong> (e não foi produzi<strong>do</strong> para ser li<strong>do</strong> e sabi<strong>do</strong> mas paraser vivi<strong>do</strong> por pessoas ten<strong>do</strong> um corpo e uma vida, em seu contexto urbano). Dito <strong>de</strong> outra maneira, aleitura vem <strong>de</strong>pois da produção, salvo no caso especial on<strong>de</strong> o espaço é produzi<strong>do</strong> para ser li<strong>do</strong>. Oque coloca uma questão, a da legibilida<strong>de</strong> como critério. Ora, parece então que o espaço engendra<strong>do</strong>(produzi<strong>do</strong>) para ser li<strong>do</strong> seja o mais trapaceiro, o mais burlão <strong>do</strong>s espaços. O efeito gráfico <strong>de</strong>legibilida<strong>de</strong> dissimula intenções e ações estratégicas. É apenas um efeito <strong>de</strong> óptica. Amonumentalida<strong>de</strong> impõe sempre uma evidência legível; ela diz o que ela quer; ela escon<strong>de</strong> muitomais. Político, militar, no limite fascista, o monumento abriga a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> potência e o arbitrário <strong>do</strong>po<strong>de</strong>r sob signos e superfícies que pretendam exprimir a vonta<strong>de</strong> e o pensamento coletivos. E queocultam, ao mesmo tempo, o possível e o tempo.118


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006374) Sabe-se, após Vitrúvio e na época recente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Labrouste (morto em 1875), que a retomou,que a forma arquitetural <strong>de</strong>ve convir à função. Ao longo <strong>do</strong>s séculos, o conceito <strong>de</strong> “conveniência”se retraça e se precisa. Depois, pouca “conveniência” equivale à “legibilida<strong>de</strong>” 78 . A arquitetura querconstruir um espaço significante e a forma seria para a função o que o significante é para osignifica<strong>do</strong>: a forma dita a função, a <strong>de</strong>clara. Segun<strong>do</strong> esse princípio, o da maioria <strong>do</strong>s “<strong>de</strong>signers”, oambiente po<strong>de</strong>ria se mobiliar, se povoar <strong>de</strong> signos, e o espaço seria assim apropria<strong>do</strong> porque legível,ou seja, liga<strong>do</strong> “plausivelmente” à socieda<strong>de</strong> inteira. Ora, a inerência da função à forma, ou seja, ocritério <strong>de</strong> legibilida<strong>de</strong> (a legibilida<strong>de</strong> como critério) torna instantânea a leitura, o gesto, o ato. Don<strong>de</strong>o tédio que acompanha essa transparência formal-funcional. Sem distância interna nem externa: nadaa <strong>de</strong>cifrar nesse “ambiente” sem arre<strong>do</strong>res. A<strong>de</strong>mais, as oposições pertinentes entran<strong>do</strong> no código <strong>do</strong>espaço construí<strong>do</strong> para “ser” significante e legível são muito comuns e muito simples. Elas sereduzem aos contrastes entre as horizontais e as verticais (dissimulan<strong>do</strong> a significação altiva dasverticais). Esses contrastes se dão numa visualização que se crê intensa e que têm apenas umsemblante <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> por um olhar <strong>de</strong>sprendi<strong>do</strong>, para um passea<strong>do</strong>r i<strong>de</strong>al. A legibilida<strong>de</strong> aparentedissimula mais <strong>do</strong> que <strong>de</strong>clara; ela dissimula precisamente o que “é” o visível-legível, suasarmadilhas – o que “é” a verticalida<strong>de</strong>: arrogância, vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> potência, exibição da virilida<strong>de</strong>militar e policial, dimensão fálica, análogo espacial da brutalida<strong>de</strong> masculina. Nada vai <strong>de</strong> si noespaço, pois ele se trata <strong>de</strong> atos (reais ou possíveis) e não <strong>de</strong> esta<strong>do</strong>s mentais, <strong>de</strong> narrativas mais oumenos bem contadas. No espaço produzi<strong>do</strong>, os atos reproduzem o “senti<strong>do</strong>” próprio sem que “se”tenha em conta. O espaço repressivo conduz à repressão e ao terror, mesmo se os signos ostensivos<strong>do</strong> contrário (o consentimento, a aprovação, a alegria) nele se multiplicam.375) A tal ponto que os arquitetos aspiram seja à restituição da ambigüida<strong>de</strong> (da mensagemembaralhada, sem imediata <strong>de</strong>cifração), seja a diversificação <strong>do</strong> espaço. O que correspon<strong>de</strong>ria a umasocieda<strong>de</strong> liberal e pluralista 79 . Venturi, arquiteto e teórico da arquitetura, tentou uma dialetização <strong>do</strong>espaço. Ele não o concebe mais como meio vazio e neutro ocupa<strong>do</strong> por objetos mortos. Para Venturi,o espaço é um campo <strong>de</strong> forças, cheio <strong>de</strong> tensões, <strong>de</strong> distorções. Ele consegue sair <strong>do</strong> funcional, <strong>do</strong>formalismo, <strong>de</strong> outra maneira <strong>do</strong> que por correções formais? O que ainda não é certo, em 1972.Pintar sobre os imóveis? É um pobre produto <strong>de</strong> compensação, no lugar da riqueza das obras“clássicas”! Po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>senhar as contradições <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> sobre as superfícies murais <strong>de</strong> outramaneira que em grafite? Não é um para<strong>do</strong>xo que ele verifique que o “<strong>de</strong>sign”, a leitura-escrita comoprática, a relação “significante-significa<strong>do</strong>” projetada nas coisas como relação “forma-função” tem78Cf. Charles Fincks, Prager Papperbacks, New York, 1971, p. 115.79 Cf. R. Venturi, Complexity and Contradiction in Architecture, New York, Museum of Mo<strong>de</strong>rn Art, 1966.119


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006uma finalida<strong>de</strong> consciente ou não: o <strong>de</strong>saparecimento <strong>do</strong>s conflitos numa transparência, atualida<strong>de</strong>sem profundida<strong>de</strong>, superfície “pura”?376) Mais <strong>de</strong> um retorquirá: “seus argumentos ten<strong>de</strong>nciosos se esforçam para reabilitar o significa<strong>do</strong>,o conteú<strong>do</strong> contra a forma”. Porém os inova<strong>do</strong>res operam sobre as formas; eles inventam formastrabalhan<strong>do</strong> o significante, produzin<strong>do</strong> discursos se são escritores, e assim em seqüência. Osarquitetos que se preocupam com o conteú<strong>do</strong>, os “usuários”, o habitar, reproduzem sem inovarformas <strong>de</strong>gradadas…”.377) Reposta: “que o trabalho sobre o significante, que a produção <strong>de</strong> uma linguagem seja uma via dacriação, nenhuma dúvida. Mas é sempre assim e em to<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>mínios? Não chega um momento emque o formalismo se esgota? Então, a reinjeção <strong>de</strong> um conteú<strong>do</strong> na forma po<strong>de</strong> só <strong>de</strong>struí-la epermitir a inovação. Os harmonistas inventaram uma gran<strong>de</strong> forma musical; mas as <strong>de</strong>scobertasformais sobre a harmonia, as <strong>do</strong>s físicos, as <strong>do</strong>s teóricos da música, como Rameau, não levarammuito longe a exploração e a explotação das possibilida<strong>de</strong>s. Foi necessário Mozart, Beethoven.Quanto aos arquitetos, os construtores <strong>de</strong> palácios operavam com e sobre significantes (os <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r).Eles permaneceram nos limites <strong>de</strong> uma certa monumentalida<strong>de</strong>, sem os transgredir. A<strong>de</strong>mais, elesoperavam não sobre textos, mas sobre texturas (<strong>de</strong> espaço). Foi preciso, para permitir a invençãoformal, uma mudança na prática, logo um movimento dialético “significante-significa<strong>do</strong>”, certossignificantes se extenuan<strong>do</strong> num formalismo, certos significa<strong>do</strong>s se introduzin<strong>do</strong> com sua violênciaprópria nos significantes. A combinatória <strong>de</strong> elementos <strong>de</strong> um repertório (<strong>de</strong> signos, logo <strong>de</strong>significantes) se esgota mais rápi<strong>do</strong> que o número <strong>de</strong> combinações. De fato, primeiramente, todacombinatória cessa <strong>de</strong> interessar e <strong>de</strong> comover <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que é conhecida e reconhecida como tal; asaturação começa; mudar as combinações incluídas ou excluídas nada muda a situação. Em segun<strong>do</strong>lugar, o trabalho sobre o significante e a produção <strong>de</strong> um discurso não permitem à mensagem“passar” se o labor não se observa. Se “o objeto” comporta os traços <strong>do</strong> trabalho, a atenção <strong>do</strong> leitorse volta à escrita e ao escritor. O leitor compartilha a fadiga <strong>do</strong> produtor, o que o repugna bastanterápi<strong>do</strong>”.378) Des<strong>de</strong> agora insistimos sobre o efeito <strong>de</strong>strui<strong>do</strong>r (porque redutor) <strong>do</strong> legível-visível, dapriorida<strong>de</strong> absoluta concedida ao visual, o que implica a priorida<strong>de</strong> da leitura-escrita. O espaçovisual acompanha a busca <strong>de</strong> um efeito aéreo (sem peso); alguns teóricos <strong>de</strong> uma pretensa revoluçãoarquitetural atribuem o mérito a Le Corbusier, enquanto Brunelleschi, e mais recentemente Baltard,<strong>de</strong>pois Eiffel, foram os precursores. O peso, impressão da massa que o arquiteto utilizava outrora,<strong>de</strong>sapareceu. Des<strong>de</strong> então, os planos <strong>de</strong>compõem e recompõem arbitrariamente os volumes segun<strong>do</strong>um neo-plasticismo arquitetural. A expressão dita iconológica (signos e símbolos) na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>se reduz expressamente, se se po<strong>de</strong> dizer, a efeitos <strong>de</strong> superfície. Os volumes são priva<strong>do</strong>s <strong>de</strong> toda120


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006consistência material. O arquiteto crê assegurar a função social (o uso) <strong>do</strong>s locais, escritórios,habitações, mas as pare<strong>de</strong>s liberadas <strong>de</strong> toda função espacial (a das estruturas <strong>de</strong> suporte) e osinteriores se esvaziam. Os materiais não entram mais na substância <strong>do</strong>s muros, reduzi<strong>do</strong>s a umamembrana que materializa – apenas, o <strong>de</strong>ntro e o fora. O que não impe<strong>de</strong> os “usuários” <strong>de</strong> projetarnuma espécie <strong>de</strong> absoluto fictício a relação entre o interno (o íntimo) e o <strong>de</strong> fora (o exteriorameaçante); quan<strong>do</strong> eles não po<strong>de</strong>m proce<strong>de</strong>r <strong>de</strong> outra maneira, eles empregam signos <strong>de</strong>ssaoposição privilegian<strong>do</strong> os signos da proprieda<strong>de</strong> privada. Mas para o pensamento arquitetural queobe<strong>de</strong>ce o mo<strong>de</strong>lo da transparência, o engloba se <strong>de</strong>compon<strong>do</strong> [o envelope se <strong>de</strong>compõe]. O espaçose pulveriza em figuras e valores “iconológicos”, cada parte receben<strong>do</strong> particularida<strong>de</strong> e valorizaçãosimplesmente <strong>de</strong> uma cor ou <strong>de</strong> um material (tijolo, mármore etc.). Com a impressão <strong>do</strong> peso, a <strong>do</strong>espaço circunscrito se <strong>de</strong>svanece. A fusão se opera então entre o <strong>de</strong>ntro e o fora, na transparência: noindiscernível e no intercambiável. Para<strong>do</strong>xo tão mais surpreen<strong>de</strong>nte que ele se coloca sob a proteçãodas estruturas, das oposições pertinentes, da relação “<strong>de</strong>ntro-fora” e “significante-significa<strong>do</strong>”. Esteespaço visual, o da transparência e da legibilida<strong>de</strong>, não tem somente um conteú<strong>do</strong> que ele obscurececonten<strong>do</strong>-o: o fálico, a virilida<strong>de</strong> (pretendida). É também o espaço repressivo; o olhar <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r não<strong>de</strong>ixa nada escapar. O opaco, as pare<strong>de</strong>s, os muros mesmo em esta<strong>do</strong> simplifica<strong>do</strong> <strong>de</strong> muros-cortinas,<strong>de</strong>saparecem. Erro que inverte a disposição sustentável nos quadros atuais: o espaço da vida privada<strong>de</strong>veria se fechar e dar a impressão <strong>do</strong> termina<strong>do</strong>, ou seja, <strong>do</strong> perfeito, ao passo que o espaço público<strong>de</strong>veria se abrir. Faz-se o contrário.379) II.13 Como toda realida<strong>de</strong>, o espaço social <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, meto<strong>do</strong>lógica e teoricamente, <strong>de</strong> trêsconceitos gerais: a forma, a estrutura, a função. Isso quer dizer que to<strong>do</strong> espaço social po<strong>de</strong> tornar-seo objeto <strong>de</strong> uma análise formal, <strong>de</strong> uma análise estrutural, <strong>de</strong> uma análise funcional. Cada umaproporciona um código, um méto<strong>do</strong>, para <strong>de</strong>cifrar o que inicialmente parece impenetrável.380) Esses termos parecem claros. Na verda<strong>de</strong>, eles arrastam atrás <strong>de</strong> si bastante obscurida<strong>de</strong>, poiscada um <strong>de</strong>les não escapa à polissemia.381) O termo “forma” po<strong>de</strong> se tomar em diversas acepções: estética, plástica, abstrata (lógicomatemática)etc. Geralmente, seu uso implica a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> contornos, a <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> fronteiras,<strong>de</strong> envoltórios, áreas ou volumes. É neste senti<strong>do</strong> que a análise espacial a aceita. O que não evitatoda dificulda<strong>de</strong>. Uma <strong>de</strong>scrição formal que se quer exata po<strong>de</strong> se revelar em seguida penetrada <strong>de</strong>i<strong>de</strong>ologias, sobretu<strong>do</strong> se implícita ou explicitamente ela tem uma intenção redutora. O que <strong>de</strong>fine umformalismo. Po<strong>de</strong>-se reduzir um espaço aos elementos formais: a linha curva e a linha reta, ou asrelações “interna-externa”, “volume-superfície”. Esses elementos formais <strong>de</strong>ram em arquitetura, em121


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006pintura, em escultura, verda<strong>de</strong>iros sistemas: o <strong>do</strong> número <strong>de</strong> ouro – o das or<strong>de</strong>ns (o dórico 80 , oiônico 81 , o coríntio 82 ), - o <strong>do</strong>s módulos (ritmos e proporções) etc.382) O exame <strong>de</strong> efeitos estéticos ou <strong>de</strong> “efeitos <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>” não tem nenhum direito <strong>de</strong> priorida<strong>de</strong>. Oque conta no plano meto<strong>do</strong>lógico e teórico, é:383) a) A idéia <strong>de</strong> que não existe forma sem função nem estrutura. E reciprocamente. Formas,funções, estruturas são em geral dadas na e por uma materialida<strong>de</strong> que simultaneamente as une e asdistingue. Por exemplo, num organismo, o conhecimento discerne bastante facilmente as formas, asfunções, as estruturas no seio <strong>de</strong> uma totalida<strong>de</strong>, a “substância” viva [vivente]; mas a tripla análise<strong>de</strong>ixa sempre um residual, que uma análise aprofundada tenta discernir e conhecer. Tal é o senti<strong>do</strong><strong>de</strong>ssas antigas categorias filosóficas: o ser, a natureza, a substância, a matéria. Num “objeto”produzi<strong>do</strong>, essa relação constitutiva muda; agin<strong>do</strong> sobre os materiais, a ação (técnica, trabalho)prática ten<strong>de</strong> a reduzir, para a <strong>do</strong>minar, a distância entre forma, função, estrutura, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que nolimite elas se impliquem numa relação imediata. Esta tendência só aparece implicitamente nas obras<strong>de</strong> arte ou nos objetos antes <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> industrial – aí incluí<strong>do</strong>s os móveis, as casas, os palácios, osmonumentos; ela se aproxima <strong>do</strong> limite na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. No “<strong>de</strong>sign”, a materialida<strong>de</strong> ten<strong>de</strong> a<strong>de</strong>saparecer diante da transparência, a “legibilida<strong>de</strong>” perfeita. A forma não é mais que o signo dafunção e sua relação é o mais clara possível, ou seja facilmente produtível e reprodutível, ce<strong>de</strong> lugarà estrutura. Salvo se (caso freqüente) o “<strong>de</strong>signer” e o fabricante se divertem embaralharan<strong>do</strong> a pistaapresentan<strong>do</strong> numa forma (freqüentemente “clássica”) uma função que nada tem a ver com ela:cama-armário, gela<strong>de</strong>ira-biblioteca. A famosa relação “significante-significa<strong>do</strong>” encontra nessesobjetos uma aplicação privilegiada (mais limitada que o <strong>do</strong>gmatismo semântico-semiológico não<strong>de</strong>seja admiti-la). Em contrapartida, no que concerne às “realida<strong>de</strong>s” sociais, amplia-se a distânciaentre as formas, as funções, as estruturas. Elas se afastam. Sua relação se dissimula: elas se tornamin<strong>de</strong>cifráveis (in<strong>de</strong>codificáveis) e o “escondi<strong>do</strong>” vence o [apo<strong>de</strong>ra-se <strong>do</strong>] “legível” em favor da<strong>do</strong>minância <strong>de</strong>ste último na esfera <strong>do</strong>s objetos. Tal instituição tem funções diversas, diferentes <strong>de</strong>suas formas aparentes, <strong>de</strong> suas estruturas reveladas, e às vezes opostas. Que se pense na “justiça”, noexército, na polícia!... Dito <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, o espaço <strong>do</strong>s objetos e o espaço das instituições divergemna socieda<strong>de</strong> dita “mo<strong>de</strong>rna”. No limite, nesta socieda<strong>de</strong>, a burocracia se diz, se quer, se coloca e80Concernente a ou a mais antiga das três or<strong>de</strong>ns arquitetônicas gregas, notável por sua austerida<strong>de</strong>, com colunas <strong>de</strong>sprovidas<strong>de</strong> base, capitel <strong>de</strong>spoja<strong>do</strong>, arquitrave lisa, friso com métopas e tríglifos, e mútulos sob o frontão. (N.T.)81 Pertencente ou semelhante a uma das or<strong>de</strong>ns arquitetônicas clássicas, cujas colunas possuíam capitéis ornamenta<strong>do</strong>s comduas volutas, altura nove vezes maior que seu diâmetro, arquitrave ornamentada com frisos e base simples. (N.T.)82 Refere-se a uma das três or<strong>de</strong>ns da arquitetura grega clássica, a mais ricamente ornamentada <strong>de</strong> todas. (N.T.)122


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006talvez se crê “legível” e transparente; ao passo que ela é a opacida<strong>de</strong>, o in<strong>de</strong>cifrável, o ilegível. Domesmo mo<strong>do</strong>, os aparelhos (estatais e políticos).384) b) A relação entre esses termos e conceitos chaves (forma, função, estrutura) se complexificamcaso consi<strong>de</strong>remos formas muito abstratas, como a forma lógica, não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>scrição, einseparáveis <strong>de</strong> um conteú<strong>do</strong>. É preciso contar entre elas, com a forma lógica (a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>), areciprocida<strong>de</strong>, a recorrência, a repetição (iteração), a diferença. Marx, em seguida a Adam Smith eRicar<strong>do</strong>, mostrou como e porque a forma da troca conquistou uma importância pre<strong>do</strong>minante naprática social, em ligação com funções e estruturas especificadas. A forma <strong>do</strong> espaço social, a saber arelação “centro-periferia”, entrou recentemente na reflexão sobre as formas. Quanto à forma urbana,a saber a reunião, o encontro, a simultaneida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>mos mostrar que ela figura entre as gran<strong>de</strong>sformas, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que a centralida<strong>de</strong>, a repetição, a diferença, a recorrência, a reciprocida<strong>de</strong>etc.385) Essas formas quase “puras” (no limite, na “pureza”, a forma se <strong>de</strong>svanece, por exemplo na purai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> A com A) não po<strong>de</strong>m se passar <strong>de</strong> [por] um conteú<strong>do</strong>. O movimento “formaconteú<strong>do</strong>”,e a relação sempre concreta que religa esses termos, fazem o objeto <strong>de</strong> análises apropósito das quais se po<strong>de</strong> repetir o que foi dito mais acima: cada démarche trata <strong>de</strong> [assenta-sesobre] um resíduo <strong>de</strong> uma operação analítica anteriormente conduzida; o irredutível – fun<strong>do</strong>s oufundamentos da “presença” <strong>do</strong> objeto – subsiste e persiste sempre.386) Entre as formas próximas da pureza on<strong>de</strong> elas se <strong>de</strong>svanecem e os conteú<strong>do</strong>s, existemmediações: por exemplo, as formas espaciais, a curva e as figuras curvas, a reta e as linhas retas.To<strong>do</strong> dispositivo espacial utiliza curvas e/ou retas, com pre<strong>do</strong>minância possível <strong>de</strong> umas ou <strong>de</strong>outras.387) Os elementos formais entram numa textura aí se diversificam. Eles introduzem ao mesmo tempoo repetitivo e o diferencial. Eles articulam o conjunto, permitin<strong>do</strong> a passagem da parte ao to<strong>do</strong> einversamente a evocação no to<strong>do</strong> das partes constitutivas. As lonas [Os capitéis], num claustroromano, diferem sobre um mo<strong>de</strong>lo que autoriza essas diferenças. Eles divi<strong>de</strong>m o espaço ritman<strong>do</strong>-o.É a função <strong>do</strong> diferencial significante 83 . O arco da abóbada cheia ou em ogiva, toma<strong>do</strong> com ospilares e colunas <strong>de</strong> sustentação, muda <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> e <strong>de</strong> valor espacial segun<strong>do</strong> o que ele serve aarquitetura <strong>de</strong> tipo bizantino ou oriental, <strong>do</strong> tipo gótico ou renascentista. Os arcos funcionam aomesmo tempo repetitiva e diferencialmente num conjunto <strong>do</strong> qual eles <strong>de</strong>terminam o “estilo”. Po<strong>de</strong>sedizer tanto em música <strong>do</strong> tema e <strong>de</strong> seu tratamento na composição fugidia. Em to<strong>do</strong>s os83Cf. J. Kristeva, Semiotikè, Paris, 1969, p. 298 e seguintes. Distinguir bem o “diferencial significante” <strong>do</strong> “diferencialsemântico” (Osgood).123


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006tratamentos <strong>do</strong> espaço e <strong>do</strong> tempo se reencontram esses efeitos <strong>de</strong> “diégèse”, que os semiólogosreprovam da metonímia.388) O povoamento <strong>de</strong> um espaço (sua ocupação) se efetua sempre segun<strong>do</strong> formas <strong>de</strong>scritivas eanalisáveis: dispersão ou concentração, direções privilegiadas ou nebulosas. Inversamente, a reuniãoe a concentração como formas espaciais se realizam sempre no meio <strong>de</strong> formas geométricas: umacida<strong>de</strong> tem uma forma circular ou quadrangular (radioconcêntrica ou quadriculada).389) O conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssas formas as metamorfoseia. A forma quadrangular se reencontra no campomilitar romano, nas basti<strong>de</strong>s 84 medievais, na cida<strong>de</strong> colonial hispânica, na cida<strong>de</strong> americanamo<strong>de</strong>rna. Porém, essas realida<strong>de</strong>s urbanas diferem a tal ponto que só a forma abstrata autoriza umacomparação.390) O caso da cida<strong>de</strong> colonial hispano-americana tem muito interesse. A fundação <strong>de</strong>ssas cida<strong>de</strong>sem um império colonial acompanhou a produção <strong>de</strong> um imenso espaço, a América Latina. O espaçourbano da cida<strong>de</strong> colonial foi instrumental e a produção <strong>de</strong>sse espaço prossegue através dasperipécias <strong>do</strong> imperialismo, da in<strong>de</strong>pendência e da industrialização. Esse espaço po<strong>de</strong> melhor aindaser estuda<strong>do</strong> que as cida<strong>de</strong>s coloniais da América Latina fundadas no momento da Renascença naEuropa, ou seja, no momento <strong>de</strong> uma renovação <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s sobre a antiguida<strong>de</strong>, sobre a história, asconstituições, a arquitetura das cités antigas e os planos urbanos.391) A cida<strong>de</strong> hispano-americana se construiu sobre um plano estipula<strong>do</strong> por or<strong>de</strong>nação, segun<strong>do</strong> umverda<strong>de</strong>iro código <strong>do</strong> espaço urbano, a coleção <strong>de</strong> 1573 (“Or<strong>de</strong>nações <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta e <strong>de</strong>povoamento”) reuniram as instruções dadas aos funda<strong>do</strong>res <strong>de</strong> cités <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1513, segun<strong>do</strong> trêsrubricas: <strong>de</strong>scobrir, povoar, pacificar. A construção da cida<strong>de</strong> prepara e <strong>de</strong>termina a ocupação <strong>do</strong>território, sua reorganização sob a autorida<strong>de</strong> administrativa e política <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r urbano. Asor<strong>de</strong>nações as estipulam <strong>de</strong>screven<strong>do</strong> os sítios <strong>de</strong> fundação. Daí resulta uma hierarquização rigorosa<strong>do</strong> espaço, em torno <strong>do</strong> centro urbano, in<strong>do</strong> da “ciudad” aos “pueblos”. O plano se faz à régua e aocordão [muito regular] a partir da Plaza Mayor. O quadricula<strong>do</strong> se esten<strong>de</strong> in<strong>de</strong>finidamente, fixan<strong>do</strong>a cada lote (quadra<strong>do</strong> ou retangular) sua função e inversamente assinalan<strong>do</strong> a cada função um lugarmais ou menos vizinho da praça central: igreja, edifícios administrativos, pórticos, praças, ruas,instalações portuárias, entrepostos, prefeituras. Num espaço homogêneo se instaura uma segregaçãomuito acentuada 85 . Os historia<strong>do</strong>res qualificam essa cida<strong>de</strong> colonial <strong>de</strong> produto artificial, mas esseproduto artificial é também um instrumento <strong>de</strong> produção; essa superestrutura estrangeira [estranha]ao espaço original serve <strong>de</strong> meio político para introduzir uma estrutura econômica e social, <strong>de</strong> tal84Al<strong>de</strong>ias fortificadas e/ou cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> guarnição construídas no su<strong>do</strong>este francês a partir <strong>do</strong> século XIV. (N.T.).85 Cf. Emma Scovazzi, in Espaces et société, no. 3.124


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006maneira que ela se insere sobre os lugares e institui sua “base”. Nesse quadro espacial, a arquiteturacolonial espanhola livremente (se se po<strong>de</strong> dizer) exibiu o barroco: efeitos <strong>de</strong> fachada muitoacentua<strong>do</strong>s. A relação entre o nível “micro” (arquitetural) e o nível “macro” (estratégia espacial)existe, mas não se po<strong>de</strong> reduzir a uma relação lógica, a uma implicação formal. O ponto a marcarfortemente é, portanto, a produção <strong>de</strong> um espaço social pelo po<strong>de</strong>r político: por uma violência comobjetivo econômico. Um tal espaço social se gera a partir <strong>de</strong> uma forma racionalizada, teorizada, queserve <strong>de</strong> instrumento e que permite violentar um espaço existente.392) Po<strong>de</strong>-se perguntar se os diversos espaços em xadrez não possuem essa origem em comum: aação constrange<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r central. Entretanto, seria difícil generalizar sem precaução esseesquema “gera<strong>do</strong>r”. A transformação <strong>do</strong> espaço nova-iorquino a partir <strong>de</strong> 1810 se explica pelapresença e influência <strong>de</strong> um núcleo urbano já forte, pela ação <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s competentes. Ele temcomo finalida<strong>de</strong> a transferência <strong>de</strong> riquezas para a metrópole? Certamente que não; a colonizaçãoestava terminada. O espaço geométrico na América Latina permite a extorsão, a pilhagem, emproveito da acumulação na Europa Oci<strong>de</strong>ntal; pelas malhas da re<strong>de</strong> se vai longe a riqueza produzida.Na América Anglo-saxônica, um espaço formalmente homólogo serve à produção e à acumulação <strong>do</strong>capital nos lugares. A mesma forma abstrata tem funções opostas e engendra estruturas diversas. Elanão é, contu<strong>do</strong>, indiferente às funções e estruturas. Nos <strong>do</strong>is casos, o espaço anterior é <strong>de</strong>struí<strong>do</strong> <strong>de</strong>alto a baixo. Visa-se, realiza-se o homogêneo.393) Quanto ao espaço da cida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> campo asiáticos, igualmente quadricula<strong>do</strong>….Eis o muito breverelato <strong>de</strong> uma entrevista com um filósofo oriental (<strong>de</strong> origem budista) interroga<strong>do</strong> sobre as relaçõesentre o espaço, a linguagem, os i<strong>de</strong>ogramas. “Você dispensa tempo para compreen<strong>de</strong>r os i<strong>de</strong>ogramase o pensamento que se liga a essas formas que não são signos. Sabeis que para nós o sensível e ointeligível vão juntos, assim como o significante e o significa<strong>do</strong>. A imagem e o conceito sedistinguem mal. O senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ograma não se apresenta fora <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>senho, <strong>de</strong> seu grafismo. Pararetomar suas distinções, o sensível e o intelectual se dão juntos para nós no senti<strong>do</strong>. E agora olhe estei<strong>de</strong>ograma, um <strong>do</strong>s mais simples: um quadra<strong>do</strong>, duas linhas ligam o centro <strong>do</strong> quadra<strong>do</strong> no meio <strong>do</strong>sla<strong>do</strong>s. Eu leio, eu digo: ‘Tà’. O que você vê? Uma seca figura geométrica. Se eu tento traduzir paravocê o que eu vejo e compreen<strong>do</strong> ao mesmo tempo, eu diria inicialmente: o campo <strong>de</strong> arroz vistoatravés <strong>do</strong> olho <strong>de</strong> um pássaro. As linhas que o <strong>de</strong>limitam não se marcam com limites ou fios <strong>de</strong>arame farpa<strong>do</strong>, mas pelas calhas <strong>de</strong> irrigação <strong>do</strong> campo <strong>do</strong>s quais elas fazem parte. Eu olho essecampo <strong>de</strong> arroz, eu me torno o pássaro que olha. Eu ocupo a vertical a boa distância, o lugarfavorável para ver bem o campo <strong>de</strong> arroz. É um campo <strong>de</strong> arroz? Sim, mas é também a or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>universo, o princípio organiza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> espaço. E não somente <strong>do</strong> campo, mas da cida<strong>de</strong>. Tu<strong>do</strong> nouniverso se dispõem em quadra<strong>do</strong>s. Em cada quadra<strong>do</strong>, existem cinco partes. O centro <strong>de</strong>signa a125


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006presença Deste que pensa e suporta a or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> universo. Outrora, o Impera<strong>do</strong>r. Uma linha verticalparte <strong>do</strong> centro e se eleva; é uma linha i<strong>de</strong>al; ela vai até o pássaro que sobrevoa, que se apercebe <strong>do</strong>espaço. É pois a dimensão <strong>do</strong> pensamento, a <strong>do</strong> saber, que se i<strong>de</strong>ntifica aqui com a Sabe<strong>do</strong>ria, porconseguinte com o Po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> sábio, o <strong>de</strong> conceber e <strong>de</strong> conservar a or<strong>de</strong>m da natureza…”.394) “O ‘shin-gyo-sho’ japonês leva a elaboração mais longe. É um principio mais <strong>do</strong> que umsimples procedimento <strong>de</strong> reunião <strong>de</strong> elementos <strong>do</strong> espaço e <strong>do</strong> tempo. Ele rege tão bem as cercas <strong>do</strong>stemplos e palácios quanto o espaço das cida<strong>de</strong>s e o das casas; ele compõe conjuntos susceptíveis <strong>de</strong>conter os eventos os mais diversos: da vida familiar às gran<strong>de</strong>s manifestações religiosas e políticas.Das áreas públicas, espaços <strong>de</strong> relações e <strong>de</strong> ações, articulan<strong>do</strong>-se com áreas privadas, espaços <strong>de</strong>contemplação, <strong>de</strong> isolamento, <strong>de</strong> retirada, reunin<strong>do</strong>-os por áreas mistas, espaços <strong>de</strong> percursos, <strong>de</strong>passagens, <strong>de</strong> ligações. O termo ‘shin-gyo-sho’ <strong>de</strong>signa três níveis ou patamares <strong>de</strong> organização aomesmo tempo espacial e temporal, mental e social, uni<strong>do</strong>s numa relação <strong>de</strong> implicações. Essa relação<strong>de</strong> implicações não se reduz a uma relação lógica, ainda que ela a suponha. O ‘público’, templo oupalácio, compreen<strong>de</strong> o priva<strong>do</strong> e o misto. O ‘priva<strong>do</strong>’, uma casa, uma morada, compreen<strong>de</strong> tambémo público (os lugares <strong>de</strong> recepção) e o misto. Do mesmo mo<strong>do</strong>, enfim, a cida<strong>de</strong>…”.395) “Daí resulta, continua o filósofo, que para nós existe a percepção global <strong>do</strong> espaço e nãorepresentações <strong>de</strong> pontos isola<strong>do</strong>s. Os lugares <strong>de</strong> encontro, as intersecções <strong>de</strong> quadra<strong>do</strong>s, oscruzamentos têm mais importância <strong>do</strong> que os outros lugares. Don<strong>de</strong> o que parece estrangeiro[estranho] a vós antropólogos, como Hall em A dimensão oculta, e que para nós nada tem senão <strong>de</strong>normal. Sim, antes da chegada <strong>do</strong>s Americanos, os cruzamentos tinham nomes; as ruas que aí secruzam não tinham; as casas apresentavam números por or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> antiguida<strong>de</strong>. Nós não tínhamos,não temos itinerários fixa<strong>do</strong>s antecipadamente à vossa maneira, e contu<strong>do</strong> nós sabemos muito bem<strong>de</strong> on<strong>de</strong> viemos e on<strong>de</strong> iremos. A or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> espaço e sua forma, sua origem e sua atualida<strong>de</strong>, oabstrato e o concreto, a natureza e a socieda<strong>de</strong> não se separam. Não há casa sem jardim, mesmo queminúsculo, lugar <strong>de</strong> contemplação e contato com a natureza; mesmo alguns pedregulhos são anatureza e não algum símbolo distingui<strong>do</strong>. De início, não pensamos na distância que afasta osobjetos uns <strong>do</strong>s outros, à medida <strong>de</strong>ste distanciamento. O espaço não é jamais vazio; ele tem sempreuma significação. A percepção <strong>do</strong>s intervalos coloca em jogo nosso corpo inteiro. Cada grupo <strong>de</strong>lugares e <strong>de</strong> objetos tem um centro, incluin<strong>do</strong> portanto a casa, a cida<strong>de</strong>, o mun<strong>do</strong>. O centro sepercebe <strong>de</strong> todas as partes, <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>-se atingi-lo; <strong>de</strong> seu lugar, este que o ocupa,percebe-se tu<strong>do</strong> e <strong>de</strong>scobre tu<strong>do</strong> o que surge. Pela relação com ele se <strong>de</strong>terminam as significações.Esse centro po<strong>de</strong>ria ser neutro ou vazio? Lugar <strong>de</strong> ausência? Não. O Divino, o Saber, o Po<strong>de</strong>r oocupam, aí se tornam presentes e o vazio não é senão aparente. A acentuação, a valorizaçãometafísica <strong>do</strong>s centros não <strong>de</strong>svalorizam o que os circunda. A natureza, o divino <strong>de</strong> início, <strong>de</strong>pois a126


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006vida social e a vida <strong>de</strong> relações em seguida, e enfim a vida individual e privada, to<strong>do</strong>s estes aspectosda realida<strong>de</strong> humana têm seus lugares, se implicam uns nos outros <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> concreto. Que o acentose <strong>de</strong>sloca para as alturas, para dizer a transcendência <strong>do</strong> divino, <strong>do</strong> saber e <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r e que a vidaprivada se instala na horizontal, ao nível <strong>do</strong> solo, inclusive os gestos, não é uma objeção. A or<strong>de</strong>mengloba o conjunto. O espaço urbano compreen<strong>de</strong> por esta razão as gran<strong>de</strong>s avenidas in<strong>do</strong> na direção<strong>do</strong>s templos e palácios, <strong>de</strong>pois as praças e ruas médias, lugares <strong>de</strong> transição e passagem, <strong>de</strong> comércioe <strong>de</strong> troca, <strong>de</strong>pois as amáveis ruelas floridas que se articulam às casas”.396) O interessante não é reconstituir uma percepção diferente da percepção oci<strong>de</strong>ntal e tão atual(portanto, não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, senão indiretamente da antropologia e certamente não da etnologia), mas<strong>de</strong> se tirar uma gra<strong>de</strong>. Para<strong>do</strong>xalmente, um espaço religioso e político tem guarda<strong>do</strong> durante milêniosseu senti<strong>do</strong> [sua pregnância], porque já racional. Se a representamos pela letra G (global), o patamarmais largo, o “público”, templos, palácios, edifícios políticos e administrativo; - pela letra P o“priva<strong>do</strong>”, o habitar e seus lugares, as casas e apartamentos – e enfim pela letra M os itinerários, oslugares <strong>de</strong> passagem, en<strong>de</strong>reços comerciais, tem-se o seguinte esquema: G-M-P, primeiramente sedispon<strong>do</strong> assim:{ gmp{gmp{gmp397) Descritivamente, o “priva<strong>do</strong>”, P, compreen<strong>de</strong>, bem distintos, uma entrada, um limiar, um lugar<strong>de</strong> recepção [acolhida] e um lugar <strong>de</strong> vida familiar, <strong>de</strong>pois lugares retira<strong>do</strong>s, os quartos. Em cadalugar, existe também uma entrada, um ponto central, um recua<strong>do</strong> [retiro]. O nível M compreen<strong>de</strong>avenidas e praças, ruas médias, passagens menores levan<strong>do</strong> às casas. O G se fraciona em salasabertas e se<strong>de</strong>s <strong>de</strong> instituições, em itinerários acessíveis, em lugares reserva<strong>do</strong>s aos notáveis, padres,príncipes e chefes. E também em seguida por cada elemento <strong>do</strong> conjunto. Cada um <strong>de</strong>stes lugares em127


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006to<strong>do</strong>s os níveis recebe marcas características: aberto ou fecha<strong>do</strong>, baixo ou alto, simétrico oudissimétrico.398) E agora passemos a palavra ao filósofo oriental, pois ele se encoraja; ele não pleiteia, ele acusa,ele prossegue um requisitório contra o Oci<strong>de</strong>nte europeu: “Suas ruas, suas praças, suas avenidasapresentam nomes ridículos, sem relação com elas, nem com as pessoas, nem com as coisas. Muitosnomes <strong>de</strong> generais ou <strong>de</strong> batalhas. Nenhuma relação entre os significantes e os significa<strong>do</strong>s. Suascida<strong>de</strong>s colocaram em migalhas o espaço razoável. A gra<strong>de</strong> que lhe propomos, elaborada à suamaneira, recobre o que o Oci<strong>de</strong>nte encontrou <strong>de</strong> melhor neste <strong>do</strong>mínio. Sobre o que ela se funda?Sobre um grupo <strong>de</strong> transformações, sobre uma estrutura. Foi preciso que um <strong>do</strong>s seus gran<strong>de</strong>spesquisa<strong>do</strong>res se apercebesse que os espaços complexos, em re<strong>de</strong>s, semi-re<strong>de</strong>s, ripa<strong>do</strong>s, têm umasuperiorida<strong>de</strong> prática sobre os espaços simplifica<strong>do</strong>s, as árvores, os traços retilíneos. Essa gra<strong>de</strong>mostra porque. Você tem nesse momento uma lógica concreta, uma lógica <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>. Aceite estepresente. A<strong>do</strong>te a hipótese <strong>de</strong> um discurso ao mesmo tempo teórico e prático, cotidiano e nãocotidiano,mental e social, arquitetural e urbanístico. Como em seus ancestrais, eu falo <strong>do</strong>s Gregos enão <strong>do</strong>s Gauleses! Esse discurso não significaria a cida<strong>de</strong>; ele seria o próprio discurso urbano. Tira<strong>do</strong><strong>do</strong> absoluto? Por que não? Vivo [Vivente] e não mortal, como seu uso <strong>de</strong> signos. Decodifica<strong>do</strong>? Não,melhor: gera<strong>do</strong>!”.399) Réplica: “Não tão rápi<strong>do</strong>! De acor<strong>do</strong> com você o Oriente possuiria imemoravelmente o segre<strong>do</strong>que o Oci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>ixou escapar ou jamais teve, o da relação entre o que os homens viven<strong>do</strong> emsocieda<strong>de</strong> fazem e o que eles dizem. Então, segun<strong>do</strong> você, o Oriente conheceria essa conexão, vital,este acor<strong>do</strong> entre a religião, a política, o social que o Oci<strong>de</strong>nte teria mata<strong>do</strong> por seu uso <strong>do</strong>s signos eda análise. Em suma, você <strong>de</strong>sejaria que <strong>de</strong>finíssemos a partir <strong>de</strong> sua experiência e <strong>de</strong> seupensamento alguma coisa <strong>de</strong> análogo ao que M. Eric Panovsky nomeia pela ida<strong>de</strong> média seu modusoperandi, engendran<strong>do</strong> ao mesmo tempo a maneira <strong>de</strong> viver, o espaço, os monumentos, as idéias, acivilização. Você sugere uma gra<strong>de</strong>, uma estrutura em profundida<strong>de</strong>, implican<strong>do</strong>, explican<strong>do</strong> oslugares, suas ocupações, os percursos <strong>do</strong>s habitantes e até seus gestos. Permita assinalar-lhe aextrema complexida<strong>de</strong> da gra<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que você queira construi-la. Eis um espaço Gg, fecha<strong>do</strong>,situa<strong>do</strong> em altura, simétrico, que se distingue <strong>de</strong> um espaço Gm, aberto, situa<strong>do</strong> em altura, simétrico,e um espaço Gp, fecha<strong>do</strong>, situa<strong>do</strong> mais baixo, dissimétrico. E assim por diante. A combinatória serápesada, difícil <strong>de</strong> manusear, mesmo com computa<strong>do</strong>r. Você está seguro <strong>de</strong> que ela correspon<strong>de</strong> àrealida<strong>de</strong> concreta, por exemplo a tal templo <strong>de</strong> Kyoto, on<strong>de</strong> haveria uma parte pública, uma outraparte <strong>de</strong>stinada aos ritos, e uma outra ainda reservada aos padres, aos contemplativos? Eu concor<strong>do</strong>que seu esquema dá conta <strong>de</strong> alguma coisa importante: a diferença na repetição. Seu exemplo, ojardim, tem um gran<strong>de</strong> senti<strong>do</strong>. O jardim em diversos contextos é o mesmo e nunca é o mesmo: aqui128


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006parque real, lugar divino inacessível, lá vizinhança acessível <strong>de</strong> um santuário, acolá lugar público <strong>de</strong>festa, aqui lugar <strong>de</strong> solidão “privada”, <strong>de</strong> contemplação, ou lugar <strong>de</strong> passagem. Sempre microcosmo,obra <strong>de</strong> arte simbólica, objeto ao mesmo tempo que lugar, este maravilhoso jardim tem “funções”diversas que jamais são funções. Ele exclui em você a oposição “natureza-cultura” que <strong>de</strong>stroça oOci<strong>de</strong>nte; o jardim mostra uma apropriação da natureza; ele é inteiramente natureza, símbolo <strong>do</strong>macrocosmo e inteiramente cultura, projeção <strong>de</strong> uma maneira <strong>de</strong> viver. Muito bem. Mas nãocedamos à mania das analogias; como dizemos, você tem uma idéia racional. Qual? O espaço, você o<strong>de</strong>seja conceber como um discurso? O discurso se <strong>de</strong>comporia em átomos, unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> significações,as peças, a casa, aí incluí<strong>do</strong> o jardim, a rua e assim por diante, como sobre um tabuleiro <strong>de</strong> xadrez. Oque tornaria a aproximar o espaço urbano <strong>de</strong> uma escrita, <strong>de</strong>terminada pelo uso social. Seu espaço,ao mesmo tempo abstrato e concreto, tem isto <strong>de</strong> embaraçoso: é o espaço <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r. O implicanteimplica<strong>do</strong>,é o Divino e o Imperial, o saber e o po<strong>de</strong>r, uni<strong>do</strong>s ou confundi<strong>do</strong>s. É isso que você <strong>de</strong>sejaintroduzir no Oci<strong>de</strong>nte? Para nós é difícil admitir que o po<strong>de</strong>r político produza o espaço e o tempo.Esse ultra-hegelianismo, para empregar a terminologia oci<strong>de</strong>ntal, é muito bonito, mas inaceitável. OEsta<strong>do</strong>? Não é, não é mais, nunca mais será para nós a Sabe<strong>do</strong>ria unida à Potência. Vosso esquema,po<strong>de</strong>-se recear que ele se torne um instrumento terrível <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação. Você procura nele umaformalização científica ao mo<strong>do</strong> oci<strong>de</strong>ntal e nós, Oci<strong>de</strong>ntais, nós aí veríamos sem dificulda<strong>de</strong>s uma<strong>de</strong>finição autoritária da totalida<strong>de</strong> espaço-tempo!”.400) II 14 A análise formal e a análise funcional po<strong>de</strong>m dispensar as consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> escala, <strong>de</strong>proporções, <strong>de</strong> dimensões, <strong>de</strong> níveis. O que retém a análise estrutural. Ressaltan<strong>do</strong>-se portanto asrelações <strong>do</strong> to<strong>do</strong> e das partes, <strong>do</strong> micro e <strong>do</strong> macro. Meto<strong>do</strong>lógica e teoricamente, essa análise <strong>de</strong>vecompletar e não abolir as outras. É a ela que incumbe a tarefa <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir o conjunto (o global),<strong>de</strong>scobrir se ele implica uma lógica, ou seja, uma estratégia, assim como simbolismo (portanto, <strong>do</strong>imaginário). A relação entre o to<strong>do</strong> e as partes <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> categorias gerais e bem conhecidas, taiscomo a anáfora, a metonímia e a metáfora, mas a análise introduz categorias específicas.401) Já encontramos um caso <strong>de</strong> análise estrutural chaman<strong>do</strong> essas categorias específicas: a produção<strong>do</strong> espaço monumental. A antiguida<strong>de</strong> opera sobre massas pesadas. O pensamento e a prática <strong>do</strong>sGregos obtêm efeitos <strong>de</strong> unida<strong>de</strong> utilizan<strong>do</strong> ao mesmo tempo o peso e a luta contra o peso excessivo;as forças verticais, ascen<strong>de</strong>ntes e <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, se neutralizam e se equilibram sem <strong>de</strong>struir apercepção <strong>do</strong>s volumes. Com um princípio idêntico, a utilização <strong>de</strong> volumes pesa<strong>do</strong>s, os Romanosoperam por um dispositivo complexo, cargas opostas, apoios e suportes; eles obtêm um efeitomaciço, uma potência pelo peso excessivo não disfarça<strong>do</strong>s. Uma estrutura menos aparente, obtidapor um jogo <strong>de</strong> forças contrastantes, se precisa na ida<strong>de</strong> média; o equilíbrio e o efeito <strong>de</strong> equilíbrio seobtêm por impulsos laterais; a leveza, o balanço o conduzem [o arrastam/prevalecem]. Com os129


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006mo<strong>de</strong>rnos, o aéreo (sem peso) triunfa, na linha indicada pela arquitetura medieval. A análiseestrutural trata então das forças bem <strong>de</strong>terminadas e das relações materiais entre essas forças, dan<strong>do</strong>lugar a estruturas espaciais igualmente <strong>de</strong>terminadas: as colunas, as abóbadas, os arcos, os pilaresetc.402) Po<strong>de</strong>-se dizer que os conceitos analíticos correspon<strong>de</strong>m aos termos clássicos, <strong>de</strong> uso aindacorrente, concernente à produção <strong>do</strong> espaço arquitetural: a forma e a análise formal à composição; - afunção à construção -; a estrutura às proporções, escalas, ritmos, “or<strong>de</strong>ns”? Até um certo ponto! Acorrespondência é suficiente para permitir traduzir os textos “clássicos”, <strong>de</strong> Vitrúvio à Viollet-le-Duc, na linguagem mo<strong>de</strong>rna. Se se vai muito longe, a correspondência cessa. Esquece-se o contexto,os materiais e o material – o fato que a “composição” se inspira <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias – que a “construção”<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações sociais – que as técnicas influenciam as proporções, os ritmos, as or<strong>de</strong>naçõesespaciais e que elas mudam.403) Quanto à hipótese bastante divulgada, segun<strong>do</strong> a qual os Gregos teriam encontra<strong>do</strong> a unida<strong>de</strong>plenamente racional: “forma-função-estrutura” dissociada ao longo da história, e que seria necessárioreconstituir, esta hipótese seduz. Ela não consi<strong>de</strong>ra a problemática nova; a <strong>do</strong> edifício [daconstrução]. A famosa unida<strong>de</strong> grega concerne sobretu<strong>do</strong> à monumentalida<strong>de</strong>: o templo, o estádio, aágora.404) A problemática <strong>do</strong> espaço, a problemática <strong>de</strong> sua produção, ultrapassa a arquitetura clássica, a<strong>do</strong>s monumentos e <strong>do</strong>s edifícios públicos. Ela concerne também ao “priva<strong>do</strong>”, ao habitar e aohabitat. Ela se refere notadamente à relação entre o priva<strong>do</strong> e o público. Hoje o global envolve estes<strong>do</strong>is termos e sua relação, da qual <strong>de</strong>vem dar conta as análises parciais, tanto a formal quanto afuncional e a estrutural. O que modifica os temos, a terminologia, as concepções “clássicas” noOci<strong>de</strong>nte. Não é estranho que o Oriente tenha alguma coisa a ensinar ao Oci<strong>de</strong>nte sobre esse ponto, eque o “mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção asiático” tenha melhor consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> que o Oci<strong>de</strong>nte o “priva<strong>do</strong>”, o habitar?In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> que seja, estes termos – o priva<strong>do</strong> e o público, o monumento e o edifício – entramno paradigma.405) Não é, portanto, sem reserva que se po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar a tríplice análise (formal, funcional,estrutural) como capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifrar um espaço social. Essa “gra<strong>de</strong>” <strong>de</strong>ixa o essencial passar. Po<strong>de</strong>mosconstrui-la, <strong>de</strong>la nos servir, com reservas.406) Anteriormente tentamos mostrar que as categorias semânticas e semiológicas (a mensagem, ocódigo, a leitura e a escrita etc.), não se referiam senão a espaços já produzi<strong>do</strong>s, sem que elaspermitam conhecer a produção <strong>do</strong> espaço.407) Algumas relações fundamentais, a saber: signo (significante-significa<strong>do</strong>), símbolo e senti<strong>do</strong>,valor (valorizante-valoriza<strong>do</strong>, <strong>de</strong>svalorizante-<strong>de</strong>svaloriza<strong>do</strong>), referencial e não referi<strong>do</strong> encontram130


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006sua aplicação no espaço. Existem espaços significantes? Certamente. O significa<strong>do</strong> está nosignificante? Po<strong>de</strong> estar, aqui como alhures, existir <strong>de</strong>fasagem, distorção, flutuação, disparida<strong>de</strong>,substituições (assim como: as colunas gregas sobre a fachada da bolsa ou <strong>de</strong> um banco, uma ágoraou pretendida como tal numa cida<strong>de</strong> nova <strong>de</strong> periferia etc.). Que significam to<strong>do</strong>s estes casos? Semnenhuma dúvida, outra coisa que o que eles parecem ou querem significar. Notadamente, aincapacida<strong>de</strong> <strong>do</strong> capitalismo para produzir um espaço outro que o espaço capitalistae o esforço <strong>de</strong>dissimular essa produção como tal, <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>r toda marca <strong>do</strong> lucro máximo. Existem espaçosinsignificantes? Sim, porque neutros, vazios; ou, ao contrário, sobrecarrega<strong>do</strong>s. Tanto aquém, quantoalém <strong>do</strong> significante. Existem espaços sobre-significantes que embaralham as pistas, a <strong>de</strong>codificação,as mensagens implicadas; os espaços produzi<strong>do</strong>s pelos promotores capitalistas multiplicam os signos(<strong>do</strong> bem-estar, da felicida<strong>de</strong>, <strong>do</strong> estilo, da arte, da riqueza, da potência, da prosperida<strong>de</strong>) até apagar asignificação primeira, a da rentabilida<strong>de</strong>, até suprimir to<strong>do</strong> senti<strong>do</strong>.408) Que um espaço possa se <strong>de</strong>cifrar, se <strong>de</strong>codificar, é possível e até, po<strong>de</strong>-se assegurar, normal. Oque supõe um código, uma mensagem, uma leitura ou leitores. Segun<strong>do</strong> quais códigos? O pluralaqui, como na leitura filosófica ou literária, é regra, não se po<strong>de</strong> ter nenhuma dúvida. É preciso aindanomear e enumerar esses códigos, e se isso não é possível, dizer como e porque, dar conta <strong>de</strong>ssaimpossibilida<strong>de</strong>, dan<strong>do</strong>-lhe o senti<strong>do</strong>.409) De acor<strong>do</strong> com R. Barthes 86 , cada um dispõe <strong>de</strong> cinco códigos para ler um texto. Primeiramente,<strong>do</strong> código <strong>do</strong> conhecimento. “Ego” chegan<strong>do</strong> à praça São Marcos sabe um certo número <strong>de</strong> coisassobre Veneza, os <strong>do</strong>ges, o campanário etc. As recordações afluem. Então “Ego” produz um outrosenti<strong>do</strong>, li<strong>do</strong> o texto (materializa<strong>do</strong>) <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> que corresponda mais ou menos ao emprego <strong>do</strong>conceito <strong>de</strong> “função” e à análise funcional. Mais ou menos! Ele compreen<strong>de</strong> ao que servem ouserviram os palácios, os Plombs, e a Ponte <strong>do</strong>s Suspiros! Ao mesmo tempo, “Ego” não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar<strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r alguns símbolos, porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> “valores” atuais ainda e sempre; mesmo se a memórialhes atribua uma data: o leão, o falo (o campanário); o <strong>de</strong>safio ao mar. Estas impressões se misturam<strong>de</strong> conhecimentos; libera<strong>do</strong>, um outro código, um outro mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> leitura se solta: simbólico. “Ego”não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> se enternecer; ele veio aqui outrora; ele sonhou; ele leu livros ou viu um filme(Morte em Veneza); o código subjetivo e pessoal se <strong>de</strong>staca por sua própria conta e a <strong>de</strong>cifração <strong>do</strong>slugares toma a aparência musical <strong>de</strong> uma fuga; o tema (o lugar: a praça, o palácio) se reparte emmuitas vozes, se trança sem que as vozes possam se <strong>de</strong>sunir nem se confundir. Mas então, face àsconstatações puras e simples (empíricas: as lajes, o mármore, as ca<strong>de</strong>iras <strong>do</strong>s cafés) se colocam86 Cf. S/Z, 1970, p. 25 e seguintes.131


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006interrogações imprevistas: a verda<strong>de</strong> e a ilusão, a beleza e a mensagem, o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>sse espetáculoque não é “puro”, pois ele amotina [subleva].410) A pesquisa semântico-semiológica se pluraliza. No início, a partir da distinção significantesignifica<strong>do</strong>,tomada <strong>de</strong> uma maneira rígida, a teoria construíra <strong>do</strong>is códigos e <strong>do</strong>is somente: o das<strong>de</strong>notações (primeiro grau, a literalida<strong>de</strong>, o significa<strong>do</strong>, admiti<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s os lingüistas), e o dasconotações (o segun<strong>do</strong> grau: a retórica), recusa<strong>do</strong> pelos lingüistas <strong>de</strong> cientificida<strong>de</strong> estrita, porquemenos rigorosos. Após o que, os conceitos (mensagem, código, leitura) se atenuam, o plural oconduz sobre a unicida<strong>de</strong> rígida, e a diferença sobre o homogêneo. Mas até on<strong>de</strong> vai a diferença, equal diferença?411) Muitos códigos. Iguais em importância e em interesse: construí<strong>do</strong>s a posteriori pela análise. Porque cinco e não seis, sete, <strong>de</strong>z, <strong>do</strong>ze? O que permite escolher entre esses códigos? Passar <strong>de</strong> um aoutro? Não haveria nenhum resíduo? A <strong>de</strong>cifração seria exaustiva <strong>do</strong> texto da<strong>do</strong>, mesmo que se trate<strong>de</strong> signos verbais ou não? Se existe residual, ele não envia à análise infinita? Ou a outros códigos?Ou a um não código?412) A tentativa aqui perseguida mostra um duplo resíduo. Aquém <strong>do</strong> legível-visível: o corpo.Quan<strong>do</strong> “Ego” chega num país, numa cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>s, ele os prova primeiramente com to<strong>do</strong> oseu corpo: o o<strong>do</strong>r e o gosto, as pernas e os pés, se ele não se limita a atravessá-los num carro. Com oouvi<strong>do</strong>, perceben<strong>do</strong> os ruí<strong>do</strong>s, as vozes, suas qualida<strong>de</strong>s. Com o olhar: o que se passa assalta ochega<strong>do</strong>, lhe salta aos olhos. É a partir <strong>do</strong> corpo que se percebe e que se vive o espaço, e que ele seproduz. Além: o Po<strong>de</strong>r. Dividi<strong>do</strong> em alguns po<strong>de</strong>res legais ou ilegais, constitucionais ou não,disperso através <strong>de</strong> instituições e <strong>de</strong> uma burocracia, o po<strong>de</strong>r não se <strong>de</strong>codifica. Ele não tem código.Por que? O Esta<strong>do</strong> dispõe <strong>do</strong>s códigos existentes. Ele chega a construí-los para os impor, mas elemuda. Ele os manipula. O Po<strong>de</strong>r não se <strong>de</strong>ixa encerrar numa única lógica. Ele tem estratégias, tãovastas quanto ele tem <strong>de</strong> recursos. O significante e o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r coinci<strong>de</strong>m: a violência, porconseguinte, a morte. Em nome <strong>de</strong> Deus, <strong>do</strong> Príncipe, <strong>do</strong> Pai, <strong>do</strong> Patrão, <strong>do</strong> Patrimônio? Questãosubsidiária.413) Que a reflexão possa atingir, apreen<strong>de</strong>r ou <strong>de</strong>finir o que existe no espaço a partir <strong>de</strong> proposiçõessobre o espaço, e conceitos gerais (mensagem, código, legibilida<strong>de</strong> etc.), é uma ilusão. Essa ilusão,que reduz a matéria e o espaço a uma representação, possui nomes conheci<strong>do</strong>s: espiritualismo,i<strong>de</strong>alismo. Não seria a ilusão geral <strong>do</strong>s que colocam entre parêntesis o po<strong>de</strong>r político, portanto, oespaço estatista, para não ver senão coisas? Inventário, classificação, <strong>de</strong>codificação, essesprocedimentos não ultrapassam a <strong>de</strong>scrição. Porém, o empirismo, sutil ou grosseiro, lógico oufactual, supõe um conceito <strong>do</strong> espaço e esse conceito recusa o empirismo opon<strong>do</strong>-se igualmente àsenumerações limitadas (incluin<strong>do</strong> a lista <strong>de</strong> códigos em pequeno número) quanto à in<strong>de</strong>terminação132


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006da análise in<strong>de</strong>finida. Decodificação <strong>do</strong> espaço? Sim, para passar <strong>do</strong>s espaços <strong>de</strong> representação àsrepresentações <strong>do</strong> espaço, mostran<strong>do</strong> uma correspondência, uma analogia, uma certa unida<strong>de</strong> naprática espacial e na teoria <strong>do</strong> espaço. A <strong>de</strong>codificação como operação se revela tanto mais limitadaque se <strong>de</strong>tecta imediatamente a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espaços <strong>do</strong>s quais cada um po<strong>de</strong> se <strong>de</strong>codificarmultiplamente.414) Des<strong>de</strong> o espaço-matéria, as oposições paradigmáticas se multiplicam: a profusão e o <strong>de</strong>sértico, ofavorável e o hostil etc. Sobre esta primeira camada <strong>do</strong> espaço, as ativida<strong>de</strong>s agropastoris lançaram aprimeira re<strong>de</strong>, os lugares originários e suas marcas, os balizamentos, alinhamentos, com suas duplas<strong>de</strong>terminações iniciais (direção e orientação, assimetria e dissimetria). O espaço absoluto, o dareligião, introduz as oposições altamente pertinentes entre a palavra e a escrita, entre o prescrito e ointerdito, o acessível e o subtraí<strong>do</strong>, o cheio e o vazio. Tanto se antecipa na natureza um espaço que seacaba enchen<strong>do</strong>-o <strong>de</strong> seres e <strong>de</strong> símbolos até a saturação; tanto se suprime da natureza um espaçomanti<strong>do</strong> vazio, esse vazio simbolizan<strong>do</strong> uma transcendência e sua ausência-presença. O paradigmase complexifica: <strong>de</strong>ntro-fora, aberto-fecha<strong>do</strong>, móvel-fixo. No espaço histórico, os lugares sediversificam opon<strong>do</strong>-se e se marcan<strong>do</strong> cada vez mais fortemente. As muralhas <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong>estabelecem uma separação material e brutal mais forte <strong>do</strong> que os cortes formais “curva-reta”,“aberto-fecha<strong>do</strong>”. Essa separação tem mais <strong>de</strong> uma significação e implica mais <strong>do</strong> que significações,pois a cida<strong>de</strong> fortificada <strong>do</strong>mina administrativamente o campo, a protege e a explora. O quefreqüentemente acontece junto.415) Os lugares diversifica<strong>do</strong>s tanto se opõem, quanto se completam ou se assemelham. O queintroduz uma classificação (gra<strong>de</strong>) por topias (isotopias, heterotopias, utopias, ou seja, lugaresanálogos, lugares contrastantes, lugar <strong>do</strong> que não tem ou não tem mais lugar, o absoluto, o divino, opossível), mas também e sobretu<strong>do</strong> uma oposição altamente pertinente entre os espaços <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s eos espaços apropria<strong>do</strong>s.416) II. 15 Antes <strong>de</strong> retornar a estas últimas <strong>de</strong>terminações, é preciso atualizar [iluminar/que venha àluz] a relação entre os sedimentos (entre o diacrônico e o sincrônico). Nenhum espaço <strong>de</strong>saparececompletamente, aboli<strong>do</strong> sem traços. Mesmo Tróia, Suse ou Leptis-Magna persistem nos espaçossuperpostos, ocupa<strong>do</strong>s pelas cida<strong>de</strong>s sucessivas. Não haveria “interpenetração” (<strong>de</strong> espaços, <strong>de</strong>ritmos, <strong>de</strong> oposições) se fosse <strong>de</strong> outra maneira. Contu<strong>do</strong>, cada adjunção retoma e revolve o que aprece<strong>de</strong>. Cada perío<strong>do</strong>, cada camada comporta além <strong>de</strong>les mesmos suas próprias condições. Efeito <strong>de</strong>metaforização? Sim, mas que inclui um efeito <strong>de</strong> metonimização, pois os espaços superpostos não seconstituem menos num conjunto (um to<strong>do</strong>). Estes termos não permitem explicar o processo, masexpô-lo. Utilizan<strong>do</strong> esses conceitos, <strong>de</strong>screve-se como o espaço-natureza (portanto, físico efisiológico) não <strong>de</strong>saparece no espaço religioso-político, nem este <strong>de</strong>saparece no espaço histórico,133


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006nem nenhum <strong>de</strong>ntre eles <strong>de</strong>saparece no espaço prático-sensível no qual coabitam os corpos e osobjetos, os órgãos sensoriais e os produtos (a objectalida<strong>de</strong>). Descreve-se as metamorfoses,transferências, substituições; o objeto-natureza (este torrão <strong>de</strong> terra, esta árvore, esta colina) continuaa se perceber no seu contexto natural, enquanto o espaço social nos arre<strong>do</strong>res se povoa <strong>de</strong> objetos ese discerne também segun<strong>do</strong> esta “objectalida<strong>de</strong>” comum aos objetos da natureza e aos produtos.417) O <strong>do</strong>minante e o <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>: um espaço natural transforma<strong>do</strong> (mediatiza<strong>do</strong>) por uma técnica euma prática. Na época mo<strong>de</strong>rna, os casos e os exemplos saltam aos olhos, legíveis como tais: umalaje <strong>de</strong> concreto, uma auto-estrada. A <strong>do</strong>minação se torna, se ousamos dizer, completamente<strong>do</strong>minante. Pela tecnicida<strong>de</strong>. Chega-se a essa perfeição <strong>do</strong> “<strong>do</strong>minante” que vem <strong>de</strong> longe na históriae no histórico, pois ela começa com o po<strong>de</strong>r político como tal. A arquitetura militar, as fortificaçõese muralhas, os trabalhos <strong>de</strong> diques e <strong>de</strong> irrigação, mostram numerosos e belos exemplos <strong>de</strong> espaço<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>. Obra no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho mais <strong>do</strong> que obra no senti<strong>do</strong> artístico [Ouvrage em vez <strong>de</strong>obra], e não ainda “produto” na acepção estreita, mo<strong>de</strong>rna e industrial, o espaço <strong>do</strong>minante resulta <strong>de</strong>projetos <strong>de</strong> um mestre. O que parece muito simples. Contu<strong>do</strong>, o conceito pe<strong>de</strong> uma elucidação. Para<strong>do</strong>minar um espaço, a técnica introduz num espaço anterior uma forma, o mais freqüente uma formaretilínea, retangular (a malha, o quadricula<strong>do</strong>). A auto-estrada brutaliza a paisagem e o país: elacorta, como uma gran<strong>de</strong> faca, o espaço. O espaço <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> é geralmente fecha<strong>do</strong>, esteriliza<strong>do</strong>,vazio. Seu conceito só toma seu senti<strong>do</strong> ao se opor ao conceito inseparável da apropriação.418) Em Marx, a apropriação se opõe fortemente à proprieda<strong>de</strong>, mas o conceito não se elucidacompletamente, longe disso. Ele se distingue mal <strong>do</strong> “próprio” antropológico-filosófico; Marx buscaainda o “próprio <strong>do</strong> homem”; para ele, isso não é nem o rir, nem jogo, nem consciência da morte,nem no habitar; é o trabalho (social), com a linguagem, indissolúveis. Além disto, Marx não discerne<strong>do</strong>minação e apropriação. Para Marx, o trabalho e as técnicas, <strong>do</strong>minan<strong>do</strong> a natureza material,apropriam-na <strong>de</strong>ste único fato para as necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> homem (social); eles a transformam para esteuso. A natureza, <strong>de</strong> inimigo, <strong>de</strong> mãe ingrata, se transforma em “bens”.419) Somente o estu<strong>do</strong> crítico <strong>do</strong> espaço permite elucidar o conceito. De um espaço naturalmodifica<strong>do</strong> para servir as necessida<strong>de</strong>s e as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um grupo, po<strong>de</strong>-se dizer que este grupo<strong>de</strong>le se apropria. A possessão (proprieda<strong>de</strong>) não senão uma condição e, o mais freqüente, um <strong>de</strong>svio<strong>de</strong>sta ativida<strong>de</strong> “apropriativa” que atinge seu auge na obra <strong>de</strong> arte. Um espaço apropria<strong>do</strong>assemelha-se a uma obra <strong>de</strong> arte sem que <strong>de</strong>la seja o simulacro. Freqüentemente, trata-se <strong>de</strong> umaconstrução, monumento ou edifício. Nem sempre: um sítio, uma praça, uma rua po<strong>de</strong>m se dizer“apropriadas”. Tais espaços abundam, ainda que não seja sempre fácil dizer em que e como, porquem e para quem, eles foram apropria<strong>do</strong>s.134


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006420) As casas camponesas e os vilarejos falam e contam como um relato murmura<strong>do</strong> e um poucoconfuso, a vida <strong>do</strong>s que os construíram e os habitaram. Tanto eles apresentam [carregam] a marca.Um iglu, uma palhoça, uma casa japonesa, têm tantas qualida<strong>de</strong>s expressivas quanto uma casanormanda ou provençal 87 . O espaço <strong>do</strong> habitar abrange o <strong>de</strong> um grupo (<strong>de</strong> uma família, geralmentegran<strong>de</strong>) e o <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> (fracionada em castas ou classes, que ten<strong>de</strong>m a quebrá-la). O espaçopriva<strong>do</strong> se distingue <strong>do</strong> espaço público, sem dissociação. No caso mais feliz, o espaço externo, o dacomunida<strong>de</strong>, é <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>, e o espaço interno, o da vida familiar, apropria<strong>do</strong> 88 . O que permaneceexemplar <strong>de</strong> uma prática espacial ainda imediata, mas concretamente próxima da obra <strong>de</strong> arte. O queexplica o charme, o encantamento, que <strong>de</strong>spertam ainda essas residências. A apropriação não seacaba em função <strong>de</strong> um grupo imóvel: família, vilarejo, cida<strong>de</strong>. O tempo aí se inclui e a apropriaçãonão po<strong>de</strong> se compreen<strong>de</strong>r sem os tempos, os ritmos <strong>de</strong> vida.421) O <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> e o apropria<strong>do</strong> po<strong>de</strong>m ir juntos. Eles <strong>de</strong>veriam; mas a história (a da acumulação) étambém a história <strong>de</strong> sua separação, <strong>de</strong> sua contradição. O <strong>do</strong>minante o conduz [o arrasta/prevalece].Inicialmente houve apropriação sem <strong>do</strong>minação: a choupana, o iglu, a casa camponesa etc. A<strong>do</strong>minação aumenta com o papel das forças armadas, da guerra, <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r político. Aoposição “<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>-apropria<strong>do</strong>” não se limita ao discurso; não se trata <strong>de</strong> uma simples oposiçãosignificativa. Ela dá nascimento a uma contradição, a um movimento conflitual, que se <strong>de</strong>senvolveaté a vitória opressiva <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s termos: a <strong>do</strong>minação até a redução extrema <strong>de</strong> outro termo: aapropriação. Sem que esta última possa <strong>de</strong>saparecer. Ao contrário: a prática e a teoria proclamam suaimportância, reclaman<strong>do</strong> a restituição.422) Vale o mesmo para o corpo, para a sexualida<strong>de</strong>. Dominada por potências opressivas, aícompreendidas as técnicas brutais e a extrema visualização, o corpo se fragmenta, se <strong>de</strong>spoja <strong>de</strong> si:se <strong>de</strong>sapropria. Houve outrora, na antiguida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, culturas e técnicas <strong>do</strong> corpo que oapropriam. O esporte, a ginástica são apenas paródias, simulações <strong>de</strong> uma tal “cultura <strong>do</strong> corpo”, emais ainda, o “bronzeamento” e a exposição passiva da pele ao sol. Uma reapropriação <strong>do</strong> corpoligada à reapropriação <strong>do</strong> espaço faz parte integrante <strong>de</strong> to<strong>do</strong> projeto atual, utópico ou realista, se eleevita a mediocrida<strong>de</strong> pura e simples.423) Quanto ao sexo e à sexualida<strong>de</strong>, seu caso é mais complexo. Jamais houve apropriação <strong>do</strong> sexo,senão nas conjunções frágeis e para [por] um limita<strong>do</strong> número <strong>de</strong> pessoas (a civilização árabe daAndaluzia por exemplo)? A apropriação <strong>do</strong> sexo exige a distinção entre a função reprodutora e ogozo, separação <strong>de</strong>licada, que não se realiza senão tímida e dificilmente, por razões ainda obscuras,87 Cf. Amos Rapoport, Pour une anthropologie <strong>de</strong> la maison , tr. Fr. Dunod, Paris, 1972. Este autor <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que Hall,engrossa a importância <strong>do</strong>s fatores e atores sócio-culturais.135


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006apesar das pesquisas científicas muito avançadas (contraceptivos). A “função” biológica e a “função”humana, que não po<strong>de</strong>m mais se <strong>de</strong>finir como funcionalida<strong>de</strong>, mal chegam a se discernir sem que aanulação da primeira comprometa a segunda, parece, sem que se saiba bem como e porque. Tu<strong>do</strong> sepassa como se a “natureza” não conseguisse sempre distinguir a volúpia da <strong>do</strong>r; a capacida<strong>de</strong>analítica <strong>do</strong> ser humano busca realizar uma sem a outra, arriscan<strong>do</strong> dissolver ambas no neutro. Ouentão, limitan<strong>do</strong> o gozo a esta<strong>do</strong>s previsíveis, obti<strong>do</strong>s por procedimentos codifica<strong>do</strong>s: a droga, oerotismo, a leitura-escrita e os textos etc.424) O espaço <strong>do</strong> gozo, que seria o espaço apropria<strong>do</strong> verda<strong>de</strong>iramente não existe ainda. Algunscasos no passa<strong>do</strong> <strong>de</strong>ixam lugar para a esperança, mas o resulta<strong>do</strong> não correspon<strong>de</strong> ao <strong>de</strong>sejo.425) A apropriação não po<strong>de</strong> se confundir com uma prática próxima <strong>de</strong>la, mas distinta: o <strong>de</strong>svio. Umespaço existente, ten<strong>do</strong> ti<strong>do</strong> sua finalida<strong>de</strong> (sua razão <strong>de</strong> ser, condicionan<strong>do</strong> formas, funções,estruturas) po<strong>de</strong> se encontrar vago e em seguida <strong>de</strong>svia<strong>do</strong>. Portanto, reapropria<strong>do</strong> por um uso outroque o primeiro. Caso recente e célebre <strong>de</strong> <strong>de</strong>svio: o espaço <strong>do</strong>s Halles centrais, em Paris, durante umbreve perío<strong>do</strong> (1969-1971). Os Halles, <strong>do</strong> centro urbano <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> ao fornecimento, se alteraram emlugar <strong>de</strong> encontro e <strong>de</strong> festa, em centro lúdico para a juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris.426) O <strong>de</strong>svio e a reapropriação <strong>do</strong>s espaços têm um gran<strong>de</strong> senti<strong>do</strong> e po<strong>de</strong>m servir <strong>de</strong> ensinamentopara a produção <strong>de</strong> espaços novos. Po<strong>de</strong>-se [Talvez] mesmo durante um perío<strong>do</strong> difícil, no seio <strong>de</strong>um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção (capitalista) ameaça<strong>do</strong> e tendi<strong>do</strong> para sua recondução (reapropriação <strong>do</strong>smeios <strong>de</strong> produção) os <strong>de</strong>svios tenham mais alcance que as tentativas <strong>de</strong> criação (<strong>de</strong> produção).Assim, as comunida<strong>de</strong>s se instalam nos espaços morfologicamente anteriores, não <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s à vidacomunitária. Po<strong>de</strong>-se que [Talvez] esta inadaptação morfológica <strong>de</strong>sempenhe um papel nos fracassosda maior parte das tentativas comunitárias.427) Teoricamente falan<strong>do</strong>, é vão opor o <strong>de</strong>svio à produção. O pensamento teórico tem por finalida<strong>de</strong>e senti<strong>do</strong> a produção, não o <strong>de</strong>svio, que só é em si uma reapropriação e não uma criação. Ele colocafim à <strong>do</strong>minação apenas provisoriamente.88 Cf. G. BACHELARD, Poétique <strong>de</strong> l’espace, p. 91.136


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006III. ARQUITETÔNICAAESPACIALIII.1 Neste extremo ponto da abstração formal que o pensamento filosófico clássico (metafísico)estabelece em ontologia por <strong>de</strong>creto especulativo, ele põe o espaço ‘em si’, substancialmente,.Spinoza, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da Ética 89 consi<strong>de</strong>ra esse espaço absoluto como um atributo ou mo<strong>do</strong> <strong>do</strong> serabsoluto, Deus. Ora, o espaço “em si” <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> como infinito, não possui nenhum contorno porqueele não tem conteú<strong>do</strong>. Ele não tem nem forma assinalável, nem orientação, nem direção. É oincognoscível? Não, é o indiscernível (Leibniz).Na polêmica <strong>de</strong> Leibniz contra Spinoza e Descartes, naquela <strong>de</strong> Newton e <strong>de</strong> Kant contra Leibniz, osmatemáticos hoje em dia dão razão a Leibniz 90 . A maioria <strong>do</strong>s filósofos consagra o espaço absoluto,<strong>de</strong> uma vez, com tu<strong>do</strong> o que é presumi<strong>do</strong> conter: as figuras, as relações e proporções, os números.Contra eles, Leibniz sustenta que o espaço “em si” e como tal não é “nada” e não é “qualquer coisa”,ainda menos a totalida<strong>de</strong> das coisas ou a forma <strong>de</strong> sua soma: é o indiscernível. Para aí discernir“alguma coisa”, é necessário introduzir eixos e uma origem, uma direita e uma esquerda, isto é, umadireção <strong>do</strong>s eixos, uma orientação. Leibniz a<strong>do</strong>taria a tese “subjetivista”, segun<strong>do</strong> a qual oobserva<strong>do</strong>r e a medida fazem o real? Ao contrário: Leibniz quer dizer que é necessário ocupar oespaço. O que ocupa o espaço? Um corpo. Não o corpo em geral, a corporeida<strong>de</strong>, mas um corpo<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>, que indica uma direção <strong>de</strong> um gesto, uma rotação se reviran<strong>do</strong>, que <strong>de</strong>marca e orienta oespaço. Para Leibniz, o espaço é absolutamente relativo, isto é, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma abstração perfeita quefaz <strong>de</strong>le, para o pensamento matemático, o original (passan<strong>do</strong> facilmente por transcendência) e <strong>de</strong>um caráter concreto (é nele que os corpos existem e manifestam sua existência material). Como ocorpo “ocupa” o espaço? O termo metafórico “ocupar” é empresta<strong>do</strong> <strong>do</strong> espaço familiar, portanto, já89Éthique, I, prop. XIV, corolário 2, e prop. XV, Scolie.90 Cf. Le livre <strong>de</strong> H. Weyl, resumi<strong>do</strong> aqui a seguir.137


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006especifica<strong>do</strong>, já “ocupa<strong>do</strong>”. A conexão entre estes termos: “espaço disponível” e “ocupação <strong>do</strong>espaço” não tem nada <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nte, nem <strong>de</strong> simples. Uma metáfora não po<strong>de</strong> substituir a reflexão.Ocupar o espaço? Sabe-se que o espaço não é preexistente, vazio, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> somente <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>sformais. A crítica e a recusa <strong>do</strong> espaço absoluto equivalem à rejeição <strong>de</strong> uma representação, aquela<strong>de</strong> um continente que um conteú<strong>do</strong>, a matéria, o corpo vem preencher. Nessa representação, ocontinente (formal) e o conteú<strong>do</strong> (material) são indiferentes um ao outro e não apresentam, portanto,uma diferença discernível [apreensível]. Não importa qual coisa po<strong>de</strong> vir em não importa qual“conjunto” <strong>de</strong> lugares <strong>do</strong> continente. Não importa qual região <strong>do</strong> continente po<strong>de</strong> receber nãoimporta o que. A indiferença torna-se separação, o conteú<strong>do</strong> e o continente caem um fora <strong>do</strong> outro. Ocontinente vazio aceita uma coleção qualquer <strong>de</strong> objetos separáveis e separa<strong>do</strong>s; a separação seesten<strong>de</strong> assim às partes <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>; a fragmentação substitui o pensamento e o pensamento comoreflexão se esfuma para <strong>de</strong>saparecer, no limite, na ação empírica <strong>de</strong> contar isto ou aquilo.Constituin<strong>do</strong>-se como tal, a “lógica da separação” estabelece e justifica uma estratégia da separação.A hipótese inversa, portanto, se impõe. O corpo, com suas capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ação, suas energias, faria oespaço? Sem dúvida, mas não no senti<strong>do</strong> em que a ocupação “fabricaria” a espacialida<strong>de</strong> - no senti<strong>do</strong><strong>de</strong> uma relação imediata entre o corpo e seu espaço, entre o <strong>de</strong>senvolvimento no espaço e a ocupação<strong>do</strong> espaço. Antes <strong>de</strong> produzir (efeitos, na matéria, nos instrumentos e nos objetos), antes <strong>de</strong> seproduzir (se alimentan<strong>do</strong>) e <strong>de</strong> se reproduzir (pela geração <strong>de</strong> um outro corpo) cada corpo vivo é umespaço e tem seu espaço: ele aí se produz e o produz. Relação notável: o corpo, com suas energiasdisponíveis, o corpo vivo, cria ou produz seu espaço: inversamente, as leis <strong>do</strong> espaço, isto é, dadiscernibilida<strong>de</strong> no espaço, são aquelas <strong>do</strong> corpo vivo e <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> suas energias. É oque mostra Herman Weyl em seu livro sobre as simetrias 91 . Na natureza, inorgânica ou orgânica, assimetrias (segun<strong>do</strong> um plano ou um eixo), isto é, a existência <strong>de</strong> uma bilateralida<strong>de</strong> ou dualida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>uma esquerda e <strong>de</strong> uma direita, <strong>de</strong> uma reflexão ou “reflecção”, ou ainda <strong>de</strong> uma simetria <strong>de</strong> rotação(no espaço) não são proprieda<strong>de</strong>s exteriores ao corpo. Não é um pensamento preexistente que impõeessas proprieda<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>finíveis em termos “puramente” matemáticos (aplicações, operações,transformações e funções), a esses corpos materiais, como supõem os filósofos. O corpo, os<strong>de</strong>senvolvimentos <strong>de</strong> energia, produzem o espaço e se produzem, com seus movimentos, segun<strong>do</strong> asleis <strong>do</strong> espaço. E isto, quer se trate <strong>de</strong> corpúsculos ou <strong>de</strong> planetas, <strong>de</strong> cristais 92 , <strong>de</strong> campos91Hermann Weyl, Symétries et mathématique mo<strong>de</strong>rne, 2ª ed. Princeton.92 Id. p. 36 e seg.138


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006eletromagnéticos 93 , <strong>de</strong> divisões celulares 94 , <strong>de</strong> mariscos ou <strong>de</strong> formas arquiteturais às quais o autoratribui a maior importância. Eis, então, um percurso <strong>do</strong> abstrato ao concreto, que tem o interessemaior <strong>de</strong> mostrar sua inerência recíproca. Esse percurso vai também <strong>do</strong> mental ao social. O conceitoda produção <strong>do</strong> espaço toma uma força maior.Uma afirmação tão fortemente motivada autoriza (com algumas reservas e precauções) sua extensãoao espaço social. Existiria espaço específico, produzi<strong>do</strong> por forças aí se <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> (forçasprodutivas) numa prática espacial (social, <strong>de</strong>terminante-<strong>de</strong>terminada). O que incluiria “proprieda<strong>de</strong>s”- dualida<strong>de</strong>s, simetrias - que não seria necessário imputar nem ao espírito humano, nem a um espíritotranscen<strong>de</strong>nte, mas à própria “ocupação” <strong>do</strong> espaço, ocupação que conviria compreen<strong>de</strong>rgeneticamente, isto é, na or<strong>de</strong>m e na sucessão das operações produtivas. O que ocorre então com aantiga noção <strong>de</strong> Natureza? Ela se transforma.Uma vez quebrada a relação <strong>de</strong> inerência recíproca entre o espaço e o que ele “contém”, opensamento reflexionante faz intervir qualida<strong>de</strong>s e potências ocultas. O que provém da realida<strong>de</strong>biológico-espacial (po<strong>de</strong>r-se-ia dizer numa única palavra: automórfica ou biomórfica) portará o signo<strong>de</strong> uma finalida<strong>de</strong>. As simetrias parecerão ter si<strong>do</strong> antes calculadas por um <strong>de</strong>us matemático, <strong>de</strong>poisrealizadas materialmente por <strong>de</strong>creto da vonta<strong>de</strong> ou da potência divina. A flor que não sabe que éflor, que é bela, possui uma simetria <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m n. Como? A Natureza naturante (Spinoza) ou o <strong>de</strong>usmatemático (Leibiniz) o sabem, pois eles calcularam a rosa! Caso se hesite em conceber, comDescartes e sua escola, uma tal operação, atribuir-se-á o cálculo ao “espírito”, humano ou não, semmuito se perguntar como a finalida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> se realizar <strong>de</strong> outra forma que [senão] pela açãoprovi<strong>de</strong>ncial ou transcen<strong>de</strong>ntal da Idéia (Hegel). Em que e como a natureza como tal po<strong>de</strong> “ser”matemática, os filósofos têm torna<strong>do</strong> incompreensível, com as divisões [os recortes] científicoi<strong>de</strong>ológicas.O observa<strong>do</strong>r fica perplexo diante da beleza <strong>de</strong> um marisco, <strong>de</strong> um vilarejo, <strong>de</strong> umacatedral. Ao passo que se trata (talvez) apenas <strong>de</strong> modalida<strong>de</strong>s materiais <strong>de</strong> uma “ocupação” ativa, a<strong>do</strong> espaço. Po<strong>de</strong>-se perguntar se os “integrons” <strong>de</strong> F. Jacob 95 , introduzi<strong>do</strong>s para explicar a unida<strong>de</strong>orgânica, não são um expediente filosófico-i<strong>de</strong>ológico-científico, um substituto da providênciadivina.Toman<strong>do</strong> um outro ponto <strong>de</strong> partida, concebe-se como a gênese na natureza se faz segun<strong>do</strong> leis <strong>do</strong>espaço, que são leis da natureza. O espaço enquanto tal (ocupante-ocupa<strong>do</strong>, conjunto <strong>de</strong> lugares) se93A discussão conduzida por H. Weyl a partir das teses “clássicas” <strong>de</strong> Leibniz, Newton e Kant (p. 26 a 34) conduzem aformular alguma reserva sobre a posição <strong>de</strong> F. Mach. Daria ele, portanto, razão a Lenin no Materialismo e Empirocriticismo?Não exatamente. Sem dúvida, dir-se-ia que Lénin colocou a questão, mas visada e tocada fora <strong>do</strong> alvo.94Hermann Weyl, op. cit., p. 44.95 F. Jacob, La logique du vivant, p. 320 et seg.139


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006concebe materialistamente. Enquanto tal, ele implica diferenças. O que evita algumas dificulda<strong>de</strong>sno que concerne à gênese <strong>de</strong>ssas diferenças (ou recorrer ao original ou à origem como fonte <strong>de</strong>ssasdiferenças, ou cair sob a crítica materialista <strong>do</strong> empíreo-criticismo). A forma <strong>de</strong> uma concha nãoresulta nem <strong>de</strong> uma finalida<strong>de</strong> nem <strong>de</strong> um pensamento “inconsciente”, nem <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão superior.A poesia da concha e <strong>do</strong>s mariscos, seu papel metafórico 96 não se ligam a uma potência cria<strong>do</strong>ramisteriosa, mas à maneira pela qual se repartem imediatamente energias sujeitas a certas condições(a uma certa escala, num meio material <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> etc.). A relação “natureza-espaço” nãoimplicaria, portanto, na mediação <strong>de</strong> uma potência externa, naturalida<strong>de</strong> ou divinda<strong>de</strong>. A lei <strong>do</strong>espaço está no espaço e não se resolve numa relação falsamente clara, “<strong>de</strong>ntro-fora”, o que é tãosomenteuma representação <strong>do</strong> espaço. Uma aranha trabalha? Perguntar-se-ia Marx. Ela segueimpulsos cegos? Ela tem, ou melhor, ela é uma inteligência? Ela sabe o que faz? Ela produz, elasecreta, ela ocupa um espaço e o engendra à sua maneira, aquele <strong>de</strong> sua teia, aquele <strong>de</strong> suasestratégias e <strong>de</strong> suas necessida<strong>de</strong>s. Po<strong>de</strong>-se pensar o espaço da aranha à maneira <strong>de</strong> um espaçoabstrato ocupa<strong>do</strong> por objetos separa<strong>do</strong>s: o corpo da aranha, sua glan<strong>de</strong> secretora e suas patas, ascoisas às quais ela ata sua teia, os fios da teia, as moscas que ela quer capturar? Não. Atribuir àaranha o espaço <strong>do</strong> intelecto analítico e <strong>do</strong> discurso, o <strong>de</strong>sta folha <strong>de</strong> papel, <strong>de</strong>ixa em seguida emitiruma exclamação: “Mas não! É a natureza, o instinto, a providência, que atua sobre a aranha,intervenção <strong>do</strong>n<strong>de</strong> sai esta obra admirável, esta maravilha: a teia, seu equilíbrio, seu agenciamento,sua adaptação”. Po<strong>de</strong>-se dizer que a aranha tece sua teia como um prolongamento <strong>de</strong> seu corpo? Sim,ainda que esta frase se preste à crítica. A teia apresenta simetrias e dissimetrias, estruturas espaciais(pontos <strong>de</strong> ligação, re<strong>de</strong>s, centro e periferia). A aranha apreen<strong>de</strong> essas estruturas como tais, por umsaber como o nosso? Certamente não. Ela produz. Sem pensar? Certamente, ela “pensa”, mas não ànossa maneira. Sua “produção”, com suas características, aproxima-se mais <strong>do</strong> marisco ou da flordita por Ângelo <strong>de</strong> Silésius, assim como da abstração verbal. A produção <strong>do</strong> espaço, <strong>de</strong> início aquela<strong>do</strong> corpo, vai até a secreção produtora <strong>de</strong> um “habitar”, que serve ao mesmo tempo <strong>de</strong> instrumento,<strong>de</strong> meio. Segun<strong>do</strong> leis que se diz “admiráveis” na terminologia clássica. A natureza e o cálculo, oorgânico e o matemático, o produzir e o secretar, o interno e o externo, po<strong>de</strong>m se dissociar? Semnenhuma dúvida: não. Afinal, a aranha (como os grupos humanos) <strong>de</strong>marca (as direções) e se orientasegun<strong>do</strong> ângulos. Ela estabelece uma trama e uma ca<strong>de</strong>ia, <strong>de</strong> simetrias e dissimetrias. A partir daí elaesten<strong>de</strong> para além <strong>de</strong> seu corpo as proprieda<strong>de</strong>s duais constitutivas <strong>de</strong> seu próprio corpo, da relação<strong>de</strong> seu corpo consigo e com seus atos produtivos e reprodutivos. Para ela existe esquerda e direita,96 Cf. Bachelard, Poétique <strong>de</strong> l´espace, p. 125 e seg.140


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006alto e baixo. O aqui e agora, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> Hegel, não se reduz a uma “coisida<strong>de</strong>”, mas compreen<strong>de</strong>relações e movimentos.Segue-se que para um corpo vivo (à maneira da aranha, <strong>do</strong> marisco etc.) os lugares fundamentais, osindicativos <strong>do</strong> espaço, são, portanto, <strong>de</strong> início qualifica<strong>do</strong>s pelo corpo. O “outro” está lá, diante <strong>do</strong>Eu (corpo diante <strong>de</strong> um outro corpo). Impenetrável, salvo pela violência - ou pelo amor. Objeto <strong>de</strong>um dispêndio <strong>de</strong> energia, agressão ou <strong>de</strong>sejo. Mas o externo é também interno, enquanto que “ooutro” é também corpo, carne vulnerável, simetria acessível. Tardiamente, na espécie humana, osindicativos se quantificam. A direita e a esquerda, o alto e o baixo, o central e o periférico (nomea<strong>do</strong>sou não) provêm <strong>do</strong> corpo em ato. O que qualifica, parece, não é somente um gesto, mas o corpointeiro. O espaço qualifica<strong>do</strong> em função <strong>do</strong> corpo quer dizer que ele se <strong>de</strong>termina em função <strong>do</strong> queo ameaça ou o favorece. A <strong>de</strong>terminação parece ter três aspectos: o gesto, o traço, a marca. O gestono senti<strong>do</strong> amplo: girar em torno <strong>de</strong> si é um gesto, que modifica a orientação e os pontos <strong>de</strong>referência. Dir-se-á “gesto”, mais que “comportamento”, pois o ato gestual tem um objetivo, um fim(sem finalida<strong>de</strong>). A aranha que se <strong>de</strong>sloca, o molusco que sai <strong>de</strong> sua concha, fazem um gesto. Depoisvem o traço e a marca. Esses “conceitos”, a aranha não os tem enquanto tais e, entretanto, “tu<strong>do</strong> sepassa como se...”. A marca, <strong>de</strong> início, se faz com isto <strong>do</strong> qual o ser vivo dispõe: excrementos, urina,saliva etc. As marcas sexuais <strong>de</strong>vem vir ce<strong>do</strong>, mas ligadas a quem? A que? Enquanto marcasafetivas, elas parecem tardias e reservadas a poucas espécies. O intencional vem tar<strong>de</strong>, com o cérebroe as mãos. Contu<strong>do</strong>, muito ce<strong>do</strong>, na vida animal, o traço e a marca têm um papel. Os lugares semarcam e se remarcam. No começo foi o Topos. Antes, bem antes <strong>do</strong> Logos, no claro-escuro <strong>do</strong>vivo, o vivi<strong>do</strong> tem, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já, sua racionalida<strong>de</strong> interior; ele produz, bem antes <strong>do</strong> espaço pensa<strong>do</strong> e <strong>do</strong>pensamento <strong>do</strong> espaço representan<strong>do</strong> a projeção, a explosão, a imagem e a orientação <strong>do</strong> corpo. Bemantes que o espaço percebi<strong>do</strong> para e pelo “eu” se apresente como intervalo [afastamento] e corte,tensões e contatos simplesmente virtuais e diferencia<strong>do</strong>s [diferi<strong>do</strong>s]. Bem antes que o espaço se<strong>de</strong>senhe como meio <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s distantes, lugar das potencialida<strong>de</strong>s. Antes <strong>do</strong> intelectoanalítico que separa, bem antes <strong>do</strong> saber, existe uma inteligência <strong>do</strong> corpo.O tempo se distingue, mas não se separa <strong>do</strong> espaço. Os círculos concêntricos no tronco <strong>de</strong> umaárvore dizem sua ida<strong>de</strong>; assim como as espirais <strong>do</strong>s moluscos, “maravilhosamente” concretas noespaço, segun<strong>do</strong> leis que só operações matemáticas complexas po<strong>de</strong>m “traduzir” na linguagem daabstração. Os tempos, necessariamente, são locais; o que inclui relações entre os lugares e seustempos. Os fenômenos atribuí<strong>do</strong>s pela análise à única “temporalida<strong>de</strong>”, a saber o crescimento, oamadurecimento, o envelhecimento, não se separam da “espacialida<strong>de</strong>”, em si mesma abstração.Espaço e tempo aparecem, se manifestam como diferentes e inseparáveis. Os ciclos no tempocorrespon<strong>de</strong>m às formas circulares <strong>do</strong> espaço, <strong>do</strong>tadas <strong>de</strong> simetrias. Talvez os processos temporais141


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006lineares (repetitivos, <strong>de</strong> tipo mecânico) correspondam à constituição <strong>de</strong> eixos (ao longo <strong>do</strong>s quais sepo<strong>de</strong> reiterar a operação). O que quer que seja, a dissociação <strong>do</strong> espaço-temporal e a realizaçãosocial <strong>de</strong>ssa dissociação só po<strong>de</strong>m ser fenômenos tardios. O que acompanha o <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramento:representação <strong>do</strong> espaço - espaços <strong>de</strong> representação. A arte mantém a unida<strong>de</strong> ou tenta restitui-la 97 apartir <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong> representação.A partir <strong>de</strong> agora, se entrevê como e quanto a dualida<strong>de</strong> é constitutiva da unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ser materialvivo. Ele traz seu outro em si. Ele é simetria, portanto, duplo, e isso duplamente (simetria bilateral,simetria <strong>de</strong> rotação); o que se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra ainda em espaço e tempo, em repetição cíclica e linear.Em torno <strong>do</strong> ser vivo e por sua ação que se po<strong>de</strong> dizer “produtora” constitui-se o campo <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>“comportamental” pelos behavioristas. Ele se estabelece como uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações, re<strong>de</strong> projetada esimultaneamente efetuada pelo ser vivo atuan<strong>do</strong> em seu “meio” espacial, com e sobre esse meio.Existem, portanto, <strong>de</strong>terminações espaciais que provêm <strong>de</strong>ssa projeção: simetria direita-esquerda,oposição <strong>do</strong> alto e <strong>do</strong> baixo etc.Simultaneamente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seus primórdios, o ser vivo se constitui em espaço interno. Muito ce<strong>do</strong>, nafilogênese como na gênese <strong>do</strong> ser individual, a massa celular se arqueia. Uma cavida<strong>de</strong> se estabelece,inicialmente simples, <strong>de</strong>pois complexa, que se preenche <strong>de</strong> flui<strong>do</strong>s <strong>de</strong> início relativamente simples,<strong>de</strong>pois cada vez mais diversifica<strong>do</strong>s. As células adjacentes a essa cavida<strong>de</strong> formam pare<strong>de</strong>s,membranas, fronteiras permeáveis ou não. Des<strong>de</strong> então, ao espaço externo se opõe o espaço ou meiointerno: a primeira, a mais <strong>de</strong>cisiva diferença na história <strong>do</strong> ser biológico. Esse meio interno<strong>de</strong>sempenhará um papel cada vez maior; o espaço assim produzi<strong>do</strong> ganhará formas, estruturas efunções diversificadas, a partir <strong>do</strong> estágio inicial <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> “gástrula” pelos embriologistas.Um fechamento [encerramento] separa o interior <strong>do</strong> exterior e constitui o ser vivo em “corpodistinto”. Contu<strong>do</strong>, esse fechamento [encerramento] muito relativo não tem nada <strong>de</strong> um corte lógico,<strong>de</strong> uma dissociação abstrata. As membranas permanecem permeáveis; poros, orifícios atravessamnas.As trocas, longe <strong>de</strong> se interromper, multiplicam-se e se diversificam: trocas <strong>de</strong> energia(alimentação, respiração, excreções) e <strong>de</strong> informações (aparelho sensorial). A interação entre ointerior e o exterior não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> se diversificar e <strong>de</strong> se intensificar, na história da vida.A noção <strong>de</strong> “fechamento [encerramento]”, assim relativizada e separada <strong>de</strong> extrapolações esistematizações, tem um alcance operatório. Ela permite dizer o que se passa na vida natural e navida social. Na socieda<strong>de</strong>, os fechamentos [encerramentos] ten<strong>de</strong>m a se tornar absolutos. O quecaracteriza a proprieda<strong>de</strong> (privada), a posição no espaço da cida<strong>de</strong>, da nação, <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>-nação, é a97Cf. A análise <strong>de</strong> Clau<strong>de</strong> Gaignebet (Annalles, 2, 1972) da unida<strong>de</strong> espaço-temporal das festas e <strong>do</strong> ano cristão num quadro<strong>de</strong> Breugel (Carnaval e Mardi-Gras).142


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006fronteira fechada. Posto à parte esse caso limite, to<strong>do</strong> espaço-envelope [envoltório] distingue uminterior e um exterior, mas <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> relativo e sempre permeável numa membrana.III.2 O organismo vivo, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> dinamicamente, po<strong>de</strong> se <strong>de</strong>finir como um dispositivo que capta(por meios diversos) energias em sua vizinhança. Ele absorve calor, respira, se alimenta. Ele <strong>de</strong>tém eretém “normalmente” um excesso <strong>de</strong> energia disponível: mais <strong>do</strong> que lhe é necessário para respon<strong>de</strong>ràs solicitações e agressões imediatas. O que lhe <strong>de</strong>ixa uma margem <strong>de</strong> iniciativas (não submetidasaos <strong>de</strong>terminismos e, todavia, não <strong>de</strong>ixadas ao acaso). Esse exce<strong>de</strong>nte, esse supérfluo, <strong>de</strong>fine o quedistingue a vida da sobrevida (mínimo vital). Uma energia captada não é colocada em reservain<strong>de</strong>finidamente, conservada em esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> estagnação. Quan<strong>do</strong> isso acontece, o organismo <strong>de</strong>genera.Por essência, a energia se <strong>de</strong>spen<strong>de</strong> e isso produtivamente, mesmo se a “produção” não for senão a<strong>de</strong> um jogo, <strong>de</strong> uma violência gratuita. Ela sempre produz um efeito, um estrago ou uma realida<strong>de</strong>.Ela modifica o espaço ou engendra um espaço. A energia viva (vital) só parece atuante se háexcesso, exce<strong>de</strong>nte disponível, supérfluo e <strong>de</strong>spesa [dispêndio/gasto]. Então a energia se <strong>de</strong>sperdiça[esbanja-se]. Esse <strong>de</strong>sperdício explosivo não se distingue <strong>do</strong> emprego produtivo: o jogo, a luta, aguerra, o sexo caminham juntos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a vida animal. A produção, <strong>de</strong>struição, reprodução seentrecruzam.A energia se acumula: isso é um fato, uma evidência; contu<strong>do</strong>, é difícil conceber os dispositivos<strong>de</strong>ssa acumulação e sobretu<strong>do</strong> suas conseqüências. A <strong>de</strong>spesa [O dispêndio/gasto] parece sempre“excessivo”, até “anormal”. E contu<strong>do</strong>, se o ser vivo não dispõe <strong>de</strong>sse exce<strong>de</strong>nte que lhe abre opossível, ele reage muito diferentemente no presente.Dito <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, o princípio <strong>de</strong> economia, tão freqüentemente salienta<strong>do</strong> por um certoracionalismo e um funcionalismo grosseiro é biológica ou “biomorficamente” insuficiente. Princípio<strong>de</strong> baixa condição [categoria], organizan<strong>do</strong> a rarida<strong>de</strong> da energia e da <strong>de</strong>spesa [<strong>do</strong> dispêndio/gasto]energético, ele se situa ao nível da sobrevida [sobrevivência]. A hipótese adversa, a da necessida<strong>de</strong> -que faz virtu<strong>de</strong> - <strong>do</strong> <strong>de</strong>sperdício, <strong>do</strong> jogo, da luta, da arte, da festa, <strong>do</strong> Eros, se reencontra numa linha<strong>de</strong> filósofos que se opõem ao racionalismo <strong>do</strong> “princípio <strong>de</strong> economia” e a seu produtivismomesquinho (gastar o mínimo e somente para satisfazer “necessida<strong>de</strong>s”). A hipótese <strong>do</strong> excesso, <strong>do</strong>supérfluo, portanto da transgressão <strong>de</strong>fine uma linha que parte <strong>de</strong> Spinoza, passa por Schiller eGoethe, por Marx (que execrava o ascetismo, mesmo quan<strong>do</strong> se <strong>de</strong>ixava levar às vezes por umascetismo “proletário”). Ela culmina em Nietzsche. Melhor que em Freud, cujas teoriasbioenergéticas pen<strong>de</strong>m em direção a um mecanicismo. Nos psicanalistas, as oposições “Eros-Thanatos”, “princípio <strong>de</strong> prazer-princípio <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> rendimento”, “pulsão <strong>de</strong> vida-pulsão <strong>de</strong>morte”, ten<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong> toda característica dialética, tornam-se muito freqüentemente um jogomecânico <strong>de</strong> pseu<strong>do</strong>conceitos, metáforas da rarida<strong>de</strong> energética.143


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006Se o organismo vivo capta, <strong>de</strong>spen<strong>de</strong> [gasta], <strong>de</strong>sperdiça um exce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> energia, é porque isso lheé permiti<strong>do</strong> pelo Cosmos. O aspecto dionisíaco da existência, - <strong>de</strong>smedida, embriaguez, riscos àsvezes mortais - tem sua liberda<strong>de</strong> e seu valor. O organismo vivo, o corpo total, contém apossibilida<strong>de</strong> (o que não quer dizer nem a realização, nem as motivações) <strong>do</strong> jogo, da violência, dafesta, <strong>do</strong> amor.A distinção nietzschiana <strong>do</strong> apolíneo e <strong>do</strong> dionisíaco retém os <strong>do</strong>is aspectos <strong>do</strong> ser vivo e <strong>de</strong> suarelação com o espaço, o seu e o <strong>do</strong> outro: violência e estabilida<strong>de</strong>, excesso mais equilíbrio. Mesmose ela não basta, ela tem um senti<strong>do</strong>.O ser vivo não po<strong>de</strong> se reduzir à captação <strong>de</strong> energias e ao seu emprego “econômico”. Ele não captanão importa o que e não <strong>de</strong>spen<strong>de</strong> [gasta] não importa como. Ele tem suas presas, seus meios, seusinimigos. Noutros termos: seu espaço. Ele vive em seu espaço. Ele faz parte <strong>de</strong> seu espaço, comoelemento (<strong>de</strong> uma fauna ou <strong>de</strong> uma flora, <strong>de</strong> uma ecologia e <strong>de</strong> um sistema ecológico mais ou menosestável). Nesse espaço, o ser vivo recebe informações. Na origem, isto é, antes da abstraçãoinventada pelas socieda<strong>de</strong>s humanas, a informação não se separa mais da materialida<strong>de</strong> que oconteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> espaço <strong>de</strong> sua forma: a célula recebe a informação materializada. Todavia, aqueles que<strong>de</strong>scobriram esses fenômenos 98 têm uma tendência sistemática e filosófica a reduzir o ser vivo,célula e conjunto <strong>de</strong> células, a uma recepção <strong>de</strong> informações, isto é, <strong>de</strong> energias ínfimas. Elesnegligenciam, eles afastam o energético: o corpo vivo como receptáculo e reserva <strong>de</strong> energiasmaciças. Eles não discernem os fenômenos <strong>de</strong> auto-regulação que privilegiam das <strong>de</strong>sregulações,<strong>do</strong>s excessos e falhas, <strong>do</strong>s dispêndios [gastos]. O duplo sistema <strong>de</strong> regulações <strong>de</strong>scrito pela biologia(substâncias orgânicas e catalisa<strong>do</strong>ras) não <strong>de</strong>ixa nada, parece, fora <strong>de</strong> seu programa. É certo que ateoria energética tenha negligencia<strong>do</strong> o informacional, o racional, o situacional para reter somenteessas energias grosseiras, mensuráveis em calorias.Na verda<strong>de</strong>, em sua relação consigo mesmo e seu espaço, o ser vivo emprega os <strong>do</strong>is tipos (a nãoseparar, aliás) <strong>de</strong> energia, as finas e as maciças. Ele reúne os dispositivos que armazenamquantida<strong>de</strong>s enormes <strong>de</strong> energia e as <strong>de</strong>spen<strong>de</strong>m [gastam] explosivamente (os músculos, o sexo, osmembros), com os dispositivos que recebem estímulos muito frágeis, informações, sem consumosignificativo <strong>de</strong> energia (os senti<strong>do</strong>s, o cérebro e os órgãos <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s) 99 . A dualida<strong>de</strong> constitutivaaparece ou reaparece aqui. Nem uma máquina <strong>de</strong> informação, nem uma máquina <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejar, <strong>de</strong>matar, <strong>de</strong> produzir, o ser vivo contém um e outro.98 Cf. J. Monod, Hasard et necessté.99 É o que Georges Bataille eluci<strong>do</strong>u na Part Maudite, <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> um tema nietzschiano. Seria injusto omitir aqui o nome<strong>de</strong> W. Reich, que <strong>de</strong>senvolveu a teoria energética (e isso numa parte freqüentemente <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhada <strong>de</strong> sua obra). Cf. O filmeiugoslavo consagra<strong>do</strong>, não sem humor, a esta questão: Les mystères <strong>de</strong> l’organisme.144


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006Em torno <strong>do</strong> ser vivo, as energias que ele capta e as que o ameaçam são moventes. São “correntes”(“fluxos”). Em contrapartida, para captar estas energias disponíveis, o organismo <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>terdispositivos estáveis. Ele <strong>de</strong>ve respon<strong>de</strong>r às agressões por <strong>de</strong>fesas, <strong>de</strong>terminan<strong>do</strong> fronteiras que eleguarda e protege: em torno <strong>de</strong> seu corpo.Que um exce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> energia se acumule e se <strong>de</strong>spenda [gaste], isso faz parte, portanto, <strong>do</strong> próprioconceito <strong>de</strong> “corpo vivo” e <strong>de</strong> sua relação com seu espaço: consigo mesmo, com a vizinhança, osarre<strong>do</strong>res e o mun<strong>do</strong>. Desperdiçar-se produtivamente, isso tem um senti<strong>do</strong>; para que um dispêndio[gasto] possa se consi<strong>de</strong>rar como “produtivo”, é necessário e suficiente que ele mu<strong>de</strong> alguma coisano mun<strong>do</strong>, por pouco que seja. O conceito <strong>de</strong> produção se aviva assim e se renova sem por isso sedissolver: um jogo é uma ouvrage ou uma obra, um espaço lúdico é um produto, o <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong>que se regulariza (atribui-se uma regra) <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong>-se. A<strong>de</strong>mais, a energia produtiva implica arelação <strong>do</strong> ser vivo consigo e toma a forma da reprodução, ela própria caracterizada por repetições:células (divisões e multiplicações), atos, reflexos. A reprodução sexuada? É apenas uma dasnumerosas formas <strong>de</strong> reprodução ensaiadas pela natureza, forma que só parece privilegiada porquefoi exitosa em algumas linhagens. Com a reprodução sexuada, o caráter <strong>de</strong>scontínuo, explosivo, daenergia produtiva parece ter venci<strong>do</strong> [suplanta<strong>do</strong>] a produção contínua, a germinação e asproliferações.A energia exce<strong>de</strong>ntária, como a energia “normal” tem uma dupla relação: com ela mesma, isto é,com o corpo que a armazena, - com o “meio”, isto é, com o espaço. Na vida <strong>de</strong> to<strong>do</strong> “ser” (umaespécie, um indivíduo, um grupo) existem momentos nos quais a energia disponível abunda, ten<strong>de</strong> aexplodir. Ela po<strong>de</strong> se voltar contra ele mesmo, ou ainda se difundir para o exterior, na gratuida<strong>de</strong> ena graça. Os efeitos <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição, <strong>de</strong> auto<strong>de</strong>struição, <strong>de</strong> violência sem fim e <strong>de</strong> suicídio não sãoraros na natureza, ainda menos na espécie humana. Os excessos <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os tipos sempre advêm <strong>de</strong>um excesso <strong>de</strong> energia, compreen<strong>de</strong> G. Bataille <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Nietzsche, esten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong>smesuradamenteessa idéia ao exagero. Conseqüência: o famoso “instinto <strong>de</strong> morte”, tem apenas uma existência<strong>de</strong>rivada. O estu<strong>do</strong> sintomático, que os psicanalistas a partir <strong>de</strong> Freud fizeram das tendências epulsões ditas mórbidas, revelou muitos fatos exatos, nos “campos” <strong>de</strong>signa<strong>do</strong>s por estes termos: Erose Thanatos, narcisismo, sa<strong>do</strong>-masoquismo, auto<strong>de</strong>struição, erotismo, angústias, neuroses e psicoses.A vinculação a uma tendência primordial não é senão mais contestável. Existe uma diferença radicalentre a concepção <strong>de</strong> um instinto ou pulsão <strong>de</strong> morte, potência aniquilante, opon<strong>do</strong>-se a umaafirmação da vida sempre frustrada - e a tese <strong>de</strong> um choque em resposta à energia vital, em seguida<strong>de</strong> excessos necessários como tais. Mesmo se é necessário conceber no espaço o “negativo” daenergia, no que ela se <strong>de</strong>spen<strong>de</strong> [gasta], se difun<strong>de</strong>, se <strong>de</strong>grada, a morte e a auto<strong>de</strong>struição sãoefeitos, não causas e razões. A “pulsão <strong>de</strong> morte” só se <strong>de</strong>fine como emprego improdutivo, <strong>de</strong>suso145


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006[mau uso], “<strong>de</strong>semprego” [“mau emprego”], po<strong>de</strong>r-se-ia dizer, da energia fundamental. Ela resulta,dialeticamente, <strong>de</strong> uma relação conflituosa interna a essa energia, relação que não po<strong>de</strong> se reduzir asimples mecanismos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, <strong>de</strong> equilíbrio e a seus fracassos. A alegria pessimista tem um senti<strong>do</strong>.III.3 Nas consi<strong>de</strong>rações prece<strong>de</strong>ntes, o espaço foi toma<strong>do</strong> “partes extra partes”, como diz Spinoza.Não existe nenhuma dúvida que exista fim [finito], <strong>de</strong> partes e partições, <strong>de</strong> elementos, da origem e<strong>do</strong> original (<strong>do</strong> etimológico) por tal parte. O próprio conceito <strong>de</strong> uma forma e <strong>de</strong> uma “reflexão” ouduplicação no interior <strong>de</strong>ssa forma a constituin<strong>do</strong> como tal, dito <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, o conceito <strong>de</strong>simetria com suas dualida<strong>de</strong>s constitutivas (simetria <strong>de</strong> reflexão e simetria <strong>de</strong> rotação, - dissimetriasmarcan<strong>do</strong> as simetrias etc.) implica um espaço circunscrito: um corpo com contornos e fronteiras. Detoda evidência [Sem dúvida], essas partições e repartições <strong>de</strong> energias não se bastam; os “fluxos”circulam, propagam-se, num espaço infinito. “A infinida<strong>de</strong> é o fato original; seria preciso explicar<strong>do</strong>n<strong>de</strong> vem o finito... No tempo infinito e no espaço infinito, não existem fins.” 100 A vertigemapo<strong>de</strong>ra-se <strong>do</strong> pensamento. “Sem nenhum apoio é necessário que a humanida<strong>de</strong> possa ser verossímil:tarefa imensa <strong>do</strong>s artistas”, acrescenta Nietzsche, que não atribui, contu<strong>do</strong>, nenhuma priorida<strong>de</strong>absoluta, geral e total, ao imaginário.O infinito e o finito não seriam a ilusão, o um e o outro, o um <strong>do</strong> outro? Efeitos <strong>de</strong> miragem?Reflexões ou refrações, o aquém e o além <strong>de</strong> cada parte? O tempo em si é uma absurdida<strong>de</strong>; assimcomo o espaço em si. O relativo e o absoluto refletin<strong>do</strong>-se um no outro: remeten<strong>do</strong> sem cessar um aooutro, como o espaço e o tempo. Dupla superfície, dupla aparência, que tem uma lei e uma realida<strong>de</strong>,a da reflexão-refração. Diferença maximal dada em cada diferença, mesma mínima. “Toda formapertence ao sujeito. É a captura da superfície pelo espelho” 101 .III.4 Engendran<strong>do</strong> assim a superfície, a imagem 102 e o espelho, a reflexão atravessa a superfície emdireção às profun<strong>de</strong>zas da relação: repetição-diferença. A duplicação (simetria) repete e, entretanto,produz uma diferença, constitutiva <strong>de</strong> um espaço. É necessário concebê-la segun<strong>do</strong> a iteraçãonumérica numérica (1 e 1 e 1 etc.) ou segun<strong>do</strong> a recorrência <strong>de</strong> uma série? Não. Seria muito aocontrário. A duplicação e a simetria-dissimetria introduzem noções causais irredutíveis às noçõesclássicas (seriais, lineares). Se o espelho é “real” (o que acontece a cada instante entre os objetos), o100 Nietzche, Le livre du philosophe, fragm. 120101 Id. Fragm. 121. “Durch Spiegel”, no, pelo, através <strong>do</strong> espelho...102Conceito, diz Hermann Weyl, estritamente matemático e <strong>de</strong> uma absoluta precisão. Um corpo, uma figura no espaço sãosimétricos em relação a um plano E, se eles coinci<strong>de</strong>m com sua imagem em E consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como um espelho. A cada ponto pcorrespon<strong>de</strong> um ponto p e um único, situa<strong>do</strong> a mesma distância <strong>de</strong> E. A reflexão é a aplicação <strong>do</strong> espaço sobre si mesmo. (Cf.op. cit. p. 12-13).O interesse e a importância <strong>do</strong> espelho não <strong>de</strong>correm, por conseguinte, <strong>do</strong> que remete ao “sujeito” (Ego) sua imagem, mas <strong>do</strong>que ele esten<strong>de</strong> ao espaço a repetição (simetria), face a face, tão semelhantes quanto possível , quase idênticas - diferente146


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006espaço no espelho é imaginário; e é esse “ego” o lugar <strong>do</strong> imaginário (Lewis Carroll). Mas numcorpo vivo, on<strong>de</strong> o espelho da reflexão é imaginário, o efeito é real, tão real que <strong>de</strong>termina aestrutura <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s animais 103 . Tu<strong>do</strong> se passa como se a parte esquerda <strong>do</strong> seu corpo refletisse aparte direita num plano-espelho, <strong>de</strong>terminan<strong>do</strong> uma simetria <strong>de</strong> reflexão que conclui uma simetria <strong>de</strong>rotação: a vida da coluna vertebral.Socialmente falan<strong>do</strong>, o espaço tem uma dupla “natureza”, uma dupla “existência” geral (em todasocieda<strong>de</strong>). De uma parte se (cada membro da socieda<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rada) se refere a ele, se situa noespaço; tem para si e diante <strong>de</strong> si uma imediaticida<strong>de</strong> ao mesmo tempo que uma objetivida<strong>de</strong>. Ele secoloca no centro, se <strong>de</strong>signa, se me<strong>de</strong> e serve para medir. É o “sujeito”. O estatuto social, numahipótese <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong>, portanto <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição por e num esta<strong>do</strong>, implica um papel e uma função: umindivíduo e uma personagem. Mais um lugar, uma praça, um posto. Ao mesmo tempo, o espaço émedia<strong>do</strong>r (intermediário); através <strong>de</strong> cada plano, <strong>de</strong> cada contorno opaco, visa-“se” outra coisa. Oque ten<strong>de</strong> a estabelecer o espaço social como transparência, ocupada somente por luzes, por“presenças” e influências. De um la<strong>do</strong>, portanto, o espaço contém opacida<strong>de</strong>s, corpos e objetos,centros <strong>de</strong> ação eferentes e <strong>de</strong> energias efervescentes, lugares escondi<strong>do</strong>s, até impenetráveis,viscosida<strong>de</strong>s, buracos negros. De outro, ele oferece seqüências, conjuntos <strong>de</strong> objetos, enca<strong>de</strong>amentos<strong>de</strong> corpos, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que cada um se <strong>de</strong>scobre <strong>de</strong> outros, que <strong>de</strong>slizam sem cessar <strong>do</strong> não-visível aovisível, da opacida<strong>de</strong> à transparência 104 . Os objetos se tocam, se apalpam, se sentem ao o<strong>do</strong>r, aoouvi<strong>do</strong>. Em seguida eles se consi<strong>de</strong>ram pelo olho e pelo olhar. Tu<strong>do</strong> se passa como se cada contorno,cada plano <strong>do</strong> espaço oferecesse seu espelho e seu efeito <strong>de</strong> miragem: refletin<strong>do</strong> em cada corpo oresto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, aí reenvian<strong>do</strong>, e reciprocamente, num jogo sempre renova<strong>do</strong>: jogo <strong>de</strong> reflexos, <strong>de</strong>cores, <strong>de</strong> luzes, <strong>de</strong> figuras. Uma mudança <strong>de</strong> lugar, uma modificação <strong>de</strong> seu sítio e <strong>de</strong> seus arre<strong>do</strong>resbastam para que um objeto passe da sombra à luminosida<strong>de</strong>, <strong>do</strong> oculto ao lúci<strong>do</strong>, <strong>do</strong> críptico àclarida<strong>de</strong>. Um movimento <strong>do</strong> corpo po<strong>de</strong> ter um objetivo análogo. Assim se reencontram os <strong>do</strong>iscampos <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s.Sem esse duplo aspecto <strong>do</strong> espaço natural-social, como compreen<strong>de</strong>r a própria linguagem? A“natureza” não se percebe senão em objetos e contornos, mas num conjunto luminoso, no seio <strong>do</strong>qual emergem os corpos, passam <strong>de</strong> sua obscurida<strong>de</strong> e opacida<strong>de</strong> naturais à luminosida<strong>de</strong>, nãoimporta <strong>de</strong> qual mo<strong>do</strong>, mas num enca<strong>de</strong>amento, numa or<strong>de</strong>m, numa articulação. Lá on<strong>de</strong> existeabsolutamente, a imagem não ten<strong>do</strong> nenhuma espessura, nenhum peso. A direita e a esquerda estão lá, invertidas, o Egopercebe seu duplo.103 H. Wegl, op. cit.,p. 12.104 Cf. Sobre esta emergência e sua dualida<strong>de</strong> constitutiva, os últimos escritos <strong>de</strong> Merleau-Ponty, passan<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>scriçãofenomenológica da percepção a uma análise mais profunda (L’Œil <strong>de</strong> l’esprit). Todavia, M. Merleau-Ponty permanece liga<strong>do</strong>às categorias filosóficas <strong>do</strong> “sujeito” e <strong>do</strong> “objeto”, sem relação com a prática social.147


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006espaço natural e mais ainda lá on<strong>de</strong> existe espaço social, o movimento que vai da opacida<strong>de</strong> àiluminação, <strong>do</strong> críptico ao <strong>de</strong>scripta<strong>do</strong>, é perpétuo. A ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>scriptação, incessante, éobjetiva tanto quanto subjetiva; no que ela supera essa velha oposição filosófica. A <strong>de</strong>scriptação seaviva <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que às partes escondidas <strong>do</strong> espaço (parte interna das coisas e coisas fora <strong>do</strong> campoperceptivo) correspondam <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong> símbolos, signos, índices, freqüentemente interditos,sagra<strong>do</strong>s-malditos, <strong>de</strong>svelantes e vela<strong>do</strong>s. De mo<strong>do</strong> que essa ativida<strong>de</strong> perpétua não po<strong>de</strong> se dizernem subjetiva nem objetiva, nem consciente nem inconsciente, mas gera<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> consciência,inerência <strong>de</strong> mensagens ao próprio vivi<strong>do</strong>, através <strong>do</strong> espaço e <strong>do</strong> jogo <strong>de</strong> reflexos e miragens noespaço.O espaço: meu espaço, não é o contexto <strong>do</strong> qual eu seria o textual, é, <strong>de</strong> início, meu corpo, e é ooutro <strong>de</strong> meu corpo, que o segue como seu reflexo e sua sombra: a intersecção movente entre o quetoca, atinge, ameaça ou favorece meu corpo, e to<strong>do</strong>s os outros corpos. Portanto, para retomar ostermos já emprega<strong>do</strong>s, existem afastamentos e tensões, contatos e rupturas [recortes]. Mas o espaço,através <strong>de</strong>sses efeitos <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s diversos, é vivi<strong>do</strong> em suas profun<strong>de</strong>zas compostas <strong>de</strong> duplicações,<strong>de</strong> ecos e <strong>de</strong> repercussões, <strong>de</strong> redundâncias, <strong>de</strong> reduplicação [repetição] engendran<strong>do</strong> estranhasdiferenças e engendradas por estas: face e cu [bunda/traseiro], olho e carne, vísceras e excrementos,lábios e <strong>de</strong>ntes, orifícios e falo, punhos fecha<strong>do</strong>s - mãos abertas, mas também o vesti<strong>do</strong>-<strong>de</strong>svesti<strong>do</strong>, aabertura-fechamento, a obscenida<strong>de</strong>-familiarida<strong>de</strong> etc. 105 Oposições e conjunções-disjunções que,porém, não têm nada <strong>de</strong> uma lógica, nem <strong>de</strong> um formalismo.Po<strong>de</strong> ser que tenha existi<strong>do</strong> espelho e miragem sem anti-espelho, sem “vivi<strong>do</strong>” opaco e cego? Não.“Espelhos, frutos <strong>de</strong> angústias” (Tristan Tzara). “Eu, este espelho altera<strong>do</strong> <strong>de</strong> estilhaço” (G.Bataille). “É preciso apagar o reflexo da personalida<strong>de</strong> para que a inspiração saltasse <strong>do</strong> espelho” (P.Eluar<strong>de</strong>). O espelho 106 ? Esta superfície pura e impura, quase material, quase irreal, fez aparecerdiante <strong>do</strong> ego sua presença material; ela suscita seu inverso, sua ausência e sua inerência nesseespaço “outro”. Sua simetria aí se projetan<strong>do</strong>, ele aí a <strong>de</strong>scobre e po<strong>de</strong> acreditar que “ego” coinci<strong>de</strong>com este “outro”, ao passo que ele o representa, imagem inversa, on<strong>de</strong> a esquerda torna-se direita,105Cf. Os livros <strong>de</strong> Octávio Paz e sobretu<strong>do</strong> Conjonctions et disjonctions, trad. fr. Gallimard, 1972, no qual o corpo, o espelho,as dualida<strong>de</strong>s e seu movimento dialético aparecem à luz da poesia. Ele distingue e opõe em todas as socieda<strong>de</strong>s, culturas ecivilizações, os signos <strong>do</strong> corpo e aqueles <strong>do</strong> não-corpo (Cf. p.46, p.57 etc.).106Curiosamente ausente em Bachelard ( La poetique <strong>de</strong> l’espace ), o espelho muito tem preocupa<strong>do</strong> os surrealistas. Um <strong>de</strong>les,Mabille, lhe consagrou um livro. Cocteau fez o espelho <strong>de</strong>sempenhar um papel em sua obra poética e cinematográfica,inventan<strong>do</strong> então a superstição <strong>do</strong> “puro” visual. Papel imenso <strong>do</strong> espelho em todas as tradições, populares ou artísticas (Cf. G.L. Schefer: Scénographie d’un tableau). Os psicanalistas utilizaram amplamente o “efeito <strong>de</strong> espelho” para <strong>de</strong>struir a noçãofilosófica <strong>do</strong> Sujeito. Não sem abuso, pois eles examinam o efeito <strong>de</strong> espelho fora <strong>do</strong> contexto espacial e não consi<strong>de</strong>ram umespaço senão interioriza<strong>do</strong> nos “tópicos” e instâncias psíquicas. Quanto à generalização <strong>do</strong> “efeito <strong>de</strong> espelho” em uma teoriadas i<strong>de</strong>ologias (Cf. L. Althusser, em La Pensée, 1970, juin, p. 35), é o produto <strong>de</strong> um fantasma e <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo parcialmenteconsciente, o <strong>de</strong> salvar o <strong>do</strong>gmatismo marxista.148


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006reflexão que produz uma diferença extrema, repetição que transforma o corpo <strong>do</strong> eu num fantasmaobcecante. De mo<strong>do</strong> que o idêntico é também o absolutamente outro, o absolutamente diferente, e atransparência equivale à opacida<strong>de</strong>.III.5 Se existe em meu corpo uma lei gera<strong>do</strong>ra, ao mesmo tempo abstrata e concreta, esta superfície atorna visível; ela a <strong>de</strong>scripta. Ela apresenta portanto a relação entre eu e eu mesmo, entre meu corpoe a consciência <strong>de</strong> meu corpo; não que este reflexo (esta reflexão) constitua minha unida<strong>de</strong> enquantosujeito (nisto acreditam, parece, muitos psicanalistas e psicólogos) mas porque ela transforma o queeu sou em seu signo. Este obstáculo gela<strong>do</strong>, a superfície improdutiva, repete e revela no seio <strong>de</strong> umimaginário real o que eu sou; ela o significa. Abstração, fascinação! Para me saber, me <strong>de</strong>staco <strong>de</strong>mim mesmo 107 . Vertigem. Se o “ego” não se reconquista por um movimento, por um <strong>de</strong>safio à suaprópria imagem, “ego” torna-se Narciso, torna-se Alice. “Ego” corre o risco <strong>de</strong> não mais sereencontrar; o espaço-ficção o terá engoli<strong>do</strong> e a fria superfície o guardará em seu vazio, ausência<strong>de</strong>spojada <strong>de</strong> toda presença, <strong>de</strong> to<strong>do</strong> calor <strong>do</strong> corpo. Assim o espelho apresenta (oferece) a relação amais unificante, mas também a mais dissociante da forma e <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>: a potente realida<strong>de</strong> e airrealida<strong>de</strong> das formas, a maneira que elas expulsam e contêm os conteú<strong>do</strong>s, mas também a forçairredutível <strong>de</strong>sse conteú<strong>do</strong>, sua opacida<strong>de</strong>, meu corpo (conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong> “minha consciência”) e oscorpos, os outros. Quais objetos têm esta dupla característica: transicionais (em direção a outra coisa)e, contu<strong>do</strong>, fins ou “objetivos” ten<strong>do</strong> seu senti<strong>do</strong> em si! Entre tantos outros, po<strong>de</strong>-se dizerprivilegia<strong>do</strong> o espelho... E, entretanto, o que <strong>de</strong>finiria, como certos fanáticos da psicanálise, todaproprieda<strong>de</strong> por um tipo <strong>de</strong> efeito <strong>de</strong> espelho, sob pretexto que a posse <strong>de</strong> um objeto pelo “Ego” o<strong>de</strong>signa a si, isso ultrapassaria os limites que a “cultura” impõe à estupi<strong>de</strong>z em geral.Não existe, a<strong>de</strong>mais, muitos argumentos a favor <strong>de</strong> uma generalização sistemática <strong>do</strong>s efeitos <strong>de</strong>sseobjeto. Ele tem seu papel, a uma certa escala, nos arre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> corpo.O espelho é então um objeto entre os objetos, mas diferente <strong>de</strong> to<strong>do</strong> outro objeto: evanescente efascinante. Nele e por ele se reúnem os traços <strong>de</strong> outros objetos em relação a seu meio espacial:objeto no espaço, que informa sobre o espaço, que fala <strong>do</strong> espaço. Pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> “quadro”, tem, comoeste, uma borda que o especifica, vazio-cheio. No espaço produzi<strong>do</strong> pela vida natural, <strong>de</strong> início, vidasocial em seguida, o espelho introduz verda<strong>de</strong>iramente a dupla espacialida<strong>de</strong>: imaginário comoorigem e separação, concreta e prática enquanto coexistência e diferença. Muitos filósofos e não-107 Em seu livro, Le Système <strong>de</strong>s Objets , J. Baudrillard só vê o espelho como amplificação <strong>de</strong> “sua” sala e <strong>de</strong> “seu” quarto parao burguês. O que restringe a significação <strong>do</strong> espelho e faz mesmo <strong>de</strong>saparecer o conceito (psicanalítico) <strong>do</strong> narcisismo. Aambigüida<strong>de</strong> (a dualida<strong>de</strong>) <strong>de</strong> fenômenos <strong>de</strong>scritos reaparece com sua complexida<strong>de</strong> inerente nas análises <strong>de</strong> J. Lacan (cf. Lesta<strong>de</strong> du miroir, Enciclopédia francesa, VIII, 2, H) mas pouco elucidada. O espelho permite eludir os retalhamentos <strong>do</strong> corpopela linguagem, segun<strong>do</strong> J. Lacan, mas congela o Ego numa rigi<strong>de</strong>z, em lugar <strong>de</strong> indicar uma superação em direção e numespaço ao mesmo tempo, prático e simbólico (imaginário).149


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006filósofos (como Lênin) <strong>de</strong>sejaram <strong>de</strong>finir o pensamento pelo espelho, o reflexo, a reflexão. Elesconfundiram o ato e o símbolo. Antes <strong>de</strong> sua realização prática, antes <strong>de</strong> sua fabricação material, oespelho existiu magicamente, miticamente. A superfície da água simboliza a superfície daconsciência e da <strong>de</strong>criptação material (concreta) que leva o obscuro à luz.Na orientação aqui a<strong>do</strong>tada, tem-se, por conseguinte, que estabelecer e <strong>de</strong>senvolver certas relaçõesgeralmente consi<strong>de</strong>radas como “psíquicas” (relativas à psique). Aqui elas são estabelecidas comomateriais (da<strong>do</strong>s com duas matérias: o corpo-sujeito e o espelho-objeto), mas, ao mesmo tempo,como caso <strong>de</strong> uma relação mais “profunda” e mais geral que se encontrará <strong>de</strong>senvolvida em seguida[pela seqüência], o repetitivo e o diferencial. Quais são essas relações?a) a simetria, (planos e eixos), duplicação, reflexão, com sua correlação, as dissimetrias;b) a miragem e os efeitos <strong>de</strong> miragens: reflexos, superfície-profundida<strong>de</strong>, revela<strong>do</strong>-oculto,opacida<strong>de</strong>-transparência;c) a linguagem, a “reflexão”, as oposições conhecidas: conotante-conota<strong>do</strong>, valorizante-valoriza<strong>do</strong>; arefração pelo discurso.a consciência <strong>de</strong> si e <strong>do</strong> outro, <strong>do</strong> corpo e da abstração, da alterida<strong>de</strong> e da alteração (alienação);o tempo, ligação imediata (vivi<strong>do</strong>, portanto cego e “inconsciente”) <strong>do</strong> repetitivo e <strong>do</strong> diferencial;o espaço, enfim, com suas duplas <strong>de</strong>terminações: fictício-real, produto e produtivo, material-social,imediaticida<strong>de</strong>-mediação (meio e transição), conexão-separação etc.Nesse reino das sombras se <strong>de</strong>senvolve tardiamente o reino <strong>do</strong>s símbolos e signos, porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong>uma clareza fausta e nefasta. Inicialmente, os símbolos e os signos são crípticos, e issomaterialmente: enfia<strong>do</strong>s nas grutas, cavernas, <strong>de</strong>pósitos malditos e lugares santos, santuários,tabernas. A verda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s signos e os signos da verda<strong>de</strong> se dissimulam no mesmo enigma: o <strong>do</strong>“mundus” italiota e romano, o golfo, o buraco; o <strong>do</strong>s reliquiários cristãos, igrejas e capelassubterrâneas, justamente <strong>de</strong>nominadas: criptas. O enigma <strong>do</strong> corpo e <strong>do</strong>s corpos opacos, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> surgea verda<strong>de</strong> na luz. O corpo ilumina o reino das sombras.No caso <strong>do</strong>s sexos, que não tem nada <strong>de</strong> privilegia<strong>do</strong>, não haveria também:a) simetrias (e dissimetrias): macho e fêmea;b) um efeito <strong>de</strong> ilusões (<strong>de</strong> transparência e <strong>de</strong> opacida<strong>de</strong>) <strong>de</strong>sloca<strong>do</strong>; o outro transparece e é omesmo, na ambigüida<strong>de</strong> e na penumbra: o mesmo <strong>de</strong>sejo que se <strong>de</strong>sconhece como tal. Don<strong>de</strong> aquebra e a intrusão da vonta<strong>de</strong> (<strong>de</strong> potência) em favor <strong>do</strong> conhecimento-<strong>de</strong>sconhecimento.c) Essa quebra <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo que anuncia a quebra e a explosão <strong>do</strong> prazer <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia a separação, quenão exclui em nada a “reflecção” (termo a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> que “reflete” ou “reflexão” para <strong>de</strong>signar estarelação <strong>do</strong> Mesmo e <strong>do</strong> Outro on<strong>de</strong> cada um se persegue acreditan<strong>do</strong> alcançar o outro e persegue ooutro figuran<strong>do</strong>-se a si mesmo);150


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006d) Don<strong>de</strong> a gran<strong>de</strong> nostalgia, aquela <strong>do</strong> amor absoluto que remete ao amor relativo, aquela <strong>do</strong> amor“puro” que <strong>de</strong>cepciona [ludibria/engana] e não se concebe sem a carne, aquela que inverte atendência e a tensão substituin<strong>do</strong>-a pela realização, mais próxima, não menos <strong>de</strong>cepcionante[enganosa]. Nostalgia: dissentimento, ressentimento. O plano imaginário <strong>do</strong> espelho está lá,separan<strong>do</strong> os duplos, e cada um se vê misturan<strong>do</strong> seus próprios traços neste espaço imagina<strong>do</strong> nostraços <strong>do</strong> companheirismo.É evi<strong>de</strong>nte que o pensamento <strong>do</strong> Duplo não po<strong>de</strong> permanecer lá. Só se situa aqui o núcleo inicial<strong>de</strong>sta teoria <strong>do</strong>s reflexos e miragens. A teoria <strong>do</strong>s Duplos <strong>de</strong>ve ir até o espaço teatral, entre outros,este jogo <strong>de</strong> duplos fictícios-reais, esta interferência <strong>de</strong> olhares e <strong>de</strong> miragens on<strong>de</strong> se encontram,sem se confundir, o ator, o público, as “personagens”, o texto, o autor. Estes jogos fazem passar oscorpos <strong>do</strong> espaço “real”, imediatamente vivi<strong>do</strong> (a sala, a cena) a um espaço percebi<strong>do</strong>, um terceiroespaço, que não é mais nem o espaço cênico nem o espaço público. Este terceiro espaço, fictícioreal,é o espaço teatral (clássico).É uma representação <strong>do</strong> espaço ou um espaço <strong>de</strong> representação? Nem um nem outro. Ambos. Oespaço teatral implica uma representação <strong>do</strong> espaço, o espaço cênico, que correspon<strong>de</strong> a umaconcepção <strong>do</strong> espaço (teatro antigo, elisabetano, italiano). O espaço <strong>de</strong> representação, mediatiza<strong>do</strong>mas vivi<strong>do</strong>, envolven<strong>do</strong> uma obra e um momento, se efetua como tal no jogo.III.6 Desobstruir [Desbloquear/Liberar] as bases e fundamentos sobre as quais se edificam, no curso<strong>de</strong> um processo genético, os espaços <strong>de</strong> diversas socieda<strong>de</strong>s, é somente o início <strong>de</strong> uma exploração<strong>de</strong>ssa “realida<strong>de</strong>” aparentemente translúcida. Ainda é necessário afastar as representações <strong>do</strong> espaçoque confun<strong>de</strong>m a questão precisamente apresentan<strong>do</strong> uma realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já clara.Os efeitos <strong>de</strong> miragem, cujas condições primeiras foram estabelecidas acima (mas não<strong>de</strong>senvolvidas), po<strong>de</strong>m tornar-se extraordinários (introduzin<strong>do</strong>-se o extraordinário no seio <strong>do</strong>ordinário). Esses efeitos não po<strong>de</strong>m se reduzir à surpresa <strong>do</strong> Ego que se fita numa vidraça, revela-sea si próprio ou <strong>de</strong>sliza para o narcisismo. A potência <strong>de</strong> uma paisagem não <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> seuoferecimento em espetáculo, mas <strong>de</strong> sua apresentação como espelho e miragem a cada um (que osuporta) uma imagem, ao mesmo tempo ilusória e real, <strong>de</strong> uma capacida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra que o sujeito (oEgo) maravilhosamente parvo, se atribui durante um momento. Essa é também a potência sedutora<strong>de</strong> um quadro, sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> a paisagem que se apresenta assim é urbana e se impõeimediatamente como obra (Veneza). O que suscita a ilusão turística, <strong>de</strong> uma participação na obra e<strong>de</strong> uma compreensão, porque se passa através [se transpõe] da região e da paisagem, porque serecebe passivamente uma imagem. O que oculta e dissipa no esquecimento ao mesmo tempo a obraconcreta, os produtos engendra<strong>do</strong>s, e a ativida<strong>de</strong> produtora.151


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006Esses efeitos <strong>de</strong> miragem vão longe. Na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, quanto mais o espaço político absoluto seafirma, mais sua transparência torna-se enganosa, mais a ilusão <strong>de</strong> uma vida nova se reforça. AVida? Está lá, toda próxima [íntima]. Do seio da vida cotidiana, esten<strong>de</strong>m-se os braços em suadireção. Nada se separa: ela está lá, maravilha, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> espelho. Todas as condições já estãolá. O que falta? Dizer (pela palavra e pela escrita)? Um gesto? O ataque num ponto, <strong>de</strong>struin<strong>do</strong> talobstáculo, este ou aquele (a i<strong>de</strong>ologia, o saber ou tal instituição repressiva, a religião, a teatralida<strong>de</strong>,a escola, o espetáculo etc.)?A ilusão da Vida nova é ao mesmo tempo verda<strong>de</strong>ira e falsa, portanto, nem verda<strong>de</strong>ira nem falsa.Que as condições <strong>de</strong> uma vida outra se realizam, que essa vida outra se anuncie, isso é uma verda<strong>de</strong>;que o anúncio e a proximida<strong>de</strong> coinci<strong>de</strong>m, que o possível imediato se separa <strong>do</strong> longínquo e <strong>do</strong>impossível, isso é o erro. O espaço que contém as condições coinci<strong>de</strong> com o espaço que impe<strong>de</strong> oque elas permitem. Sua transparência abusa; ela tem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma elucidação, ao passo queela parece abolir essa necessida<strong>de</strong>. A revolução total (material, econômica, social, política, psíquica,cultural, erótica etc.) parece próxima, imanente ao presente. Em verda<strong>de</strong>, para mudar a vida, épreciso mudar o espaço. A revolução absoluta? É nossa imagem e nossa miragem, através <strong>do</strong> espelho<strong>do</strong> espaço absoluto (político).III.7 Um espaço social não é um espaço socializa<strong>do</strong> 108 . A teoria, que se quer geral, <strong>de</strong> uma“socialização” <strong>do</strong> que preexistiria à socieda<strong>de</strong>, natureza, biologia, fisiologia (necessida<strong>de</strong>s, vida“física”), resume uma i<strong>de</strong>ologia. E um efeito <strong>de</strong> miragem “reativo”. Acreditar, por exemplo, que oespaço-natureza, <strong>de</strong>scrito pela geografia, se socializa em seguida, <strong>de</strong>stina o i<strong>de</strong>ólogo ora a lamentarnostalgicamente a <strong>de</strong>saparição <strong>de</strong>sse espaço, ora a dizer que ele não tem nenhuma importânciaporque <strong>de</strong>saparece. Quan<strong>do</strong> uma socieda<strong>de</strong> se transforma, os materiais <strong>de</strong> uma tal mutação provêm<strong>de</strong> uma outra prática social, historicamente (geneticamente) preexistente. O Natural, o original emesta<strong>do</strong> puro, não se reencontra jamais. Daí as dificulda<strong>de</strong>s bem conhecidas da reflexão (filosófica)sobre as origens. O espaço, <strong>de</strong> início vazio, <strong>de</strong>pois preenchi<strong>do</strong> por uma vida social e por elamodifica<strong>do</strong>, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa hipótese <strong>de</strong> uma “pureza” inicial, i<strong>de</strong>ntificável como “natureza”, comoponto zero da realida<strong>de</strong> humana. O espaço vacante, vazio mental e social, permitin<strong>do</strong> a socialização<strong>do</strong> não-social, é uma representação <strong>do</strong> espaço. Concebe-se-o como transforma<strong>do</strong> em “vivi<strong>do</strong>” porum “sujeito” social, concerni<strong>do</strong> por <strong>de</strong>terminações práticas (o trabalho, o jogo), ou ainda por<strong>de</strong>terminações bio-sociais (os jovens, as crianças, as mulheres, as pessoas ativas). Essa representaçãoengendra para a reflexão um espaço no qual resi<strong>de</strong>m, vivem, e são consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s os “interessa<strong>do</strong>s”,108Essa tese, implícita, limita o alcance da obra [<strong>do</strong> livro] <strong>de</strong> G. Matoré, L’espace humain, Paris, la Colombe, 1962, contu<strong>do</strong>,um <strong>do</strong>s melhores quanto à semântica e às metáforas espaciais.152


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006indivíduos e grupos. Do espaço atual, resultante <strong>do</strong> histórico, po<strong>de</strong>-se dizer que ele é socializante(pela multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s) mais que socializa<strong>do</strong>, e mais justamente.O espaço <strong>do</strong> trabalho, quan<strong>do</strong> se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>le falar [se po<strong>de</strong>mos assim dizer], seria um vazio ocupa<strong>do</strong>por essa entida<strong>de</strong>, o trabalho? Não. Ele se produz no quadro <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> global, segun<strong>do</strong> asrelações <strong>de</strong> produção constitutivas. Na socieda<strong>de</strong> capitalista, em que consiste o espaço <strong>do</strong> trabalho?Em unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> produção: empresas, explorações agrícolas, escritórios. As diversas re<strong>de</strong>s que ligamessas unida<strong>de</strong>s fazem parte disso [<strong>de</strong>las]. As instâncias que or<strong>de</strong>nam essas re<strong>de</strong>s não coinci<strong>de</strong>m comas que regulam o trabalho, mas correspon<strong>de</strong>m a ele, com uma coerência relativa que não po<strong>de</strong>excluir os conflitos e as contradições. O espaço <strong>do</strong> trabalho resulta, portanto: <strong>de</strong> gestos (repetitivos) eatos (seriais) <strong>do</strong> labor produtivo, mas também e cada vez mais da divisão (técnica e social) <strong>do</strong>trabalho e, por conseguinte, <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s (locais, nacionais, mundial) e, enfim, das relações <strong>de</strong>proprieda<strong>de</strong> (a posse e a gestão <strong>do</strong>s meios <strong>de</strong> produção). O que significa que o espaço <strong>do</strong> trabalhoganha contornos e fronteiras apenas por e para um pensamento abstrai<strong>do</strong>r; re<strong>de</strong> entre re<strong>de</strong>s, espaçoentre espaços que se compenetram, ele não tem nenhuma existência relativa.Jamais o espaço social se livra <strong>de</strong> sua dualida<strong>de</strong>, mesmo quan<strong>do</strong> as <strong>de</strong>terminações triádicassuplantam o dual e o binário, recuperan<strong>do</strong>-os. Ele se apresenta e se representa diferentemente. Elenão é sempre e simultaneamente campo da ação (abrin<strong>do</strong> frente aos projetos e intenções práticas aextensão na qual eles se <strong>de</strong>senvolvem), - e suporte da ação (conjunto <strong>de</strong> lugares <strong>do</strong>s quais saem e<strong>do</strong>s quais visam as energias)? Ele não é ao mesmo tempo atual (da<strong>do</strong>) e potencial (meio <strong>de</strong>possíveis)? Ele não é ao mesmo tempo quantitativo (mensurável em unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> medida) equalitativo (extensão concreta, on<strong>de</strong> as energias se esgotam quan<strong>do</strong> não se renovam, on<strong>de</strong> a distânciase me<strong>de</strong> em fadiga, em tempo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>)? Ele não é ao mesmo tempo reunião <strong>de</strong> materiais (osobjetos, as coisas) – e conjunto <strong>de</strong> materiais (os instrumentos, as démarches [os procedimentos] parase servir eficazmente das ferramentas e das coisas em geral)?O espaço aparece, portanto, como objetivida<strong>de</strong>, mas só existe socialmente para a ativida<strong>de</strong> (para epela marcha [pelo movimento], os <strong>de</strong>slocamentos a cavalo, <strong>de</strong> carro, <strong>de</strong> barco, <strong>de</strong> trem, <strong>de</strong> avião).De um la<strong>do</strong>, ele oferece direções homólogas, e, <strong>do</strong> outro, certas direções são valorizadas. Do mesmomo<strong>do</strong> para os ângulos e rotações (a esquerda, sestra, sinistra – a direita, retidão). De uma parte, oespaço se quer homogêneo, aberta às ações racionáveis, autorizadas ou comandadas; <strong>de</strong> outra parte,ele se carrega <strong>de</strong> interditos, <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s ocultas, <strong>de</strong> favores e <strong>de</strong>sfavores, para os indivíduos e seusgrupos. À localização, respon<strong>de</strong> a irradiação, ao ponto central o brilho [o esplen<strong>do</strong>r], o influxo e adifusão. Como numa forma material, molecular ou atômica, a energia social se reparte e se dispersa,se concentra em lugares e age nos arre<strong>do</strong>res. O que estabelece, para os espaços sociais, bases aomesmo tempo materiais e formais: o concêntrico e o quadricula<strong>do</strong>, a direita [a reta] e a curva,153


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006modalida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> alinhamento e da orientação. Os espaços sociais não se <strong>de</strong>finem por redução a essadualida<strong>de</strong>; ao contrário, ela fornece materiais para realizações muito diferentes umas das outras. Noespaço-natureza, mais tar<strong>de</strong> dito “geográfico”, os trajetos se inscrevem por simples traços lineares.Os caminhos e veredas são os poros que se ampliam, que estabelecem lugares (etapas, lugaresprivilegia<strong>do</strong>s) sem se chocar, e fronteiras. Por esses poros, que acentuam as particularida<strong>de</strong>s locaisutilizan<strong>do</strong>-as, correm fluxos humanos cada vez mais <strong>de</strong>nsos: tropas, transumâncias, migrações.Essas ativida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>terminações espaço-temporais correspon<strong>de</strong>riam ao nível antropológico darealida<strong>de</strong> social. Definiu-se esse nível: alinhar, orientar. Dominantes nas socieda<strong>de</strong>s arcaicas,agropastoris, essas ativida<strong>de</strong>s tornam-se, em seguida, recessivas, subordinadas. O “homem” jamais<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> alinhar seu espaço, <strong>de</strong> balizá-lo, <strong>de</strong> marcá-lo, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar traços ao mesmo tempo simbólicos epráticos; “ele” não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> figurar nesse espaço mudanças <strong>de</strong> direção, <strong>de</strong> rotações, seja emrelação a seu corpo consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como centro, seja em relação a outros corpos (<strong>de</strong>marcação[sinalização] em relação aos corpos celestes, ângulos <strong>de</strong> iluminação [esclarecimento] afinan<strong>do</strong> apercepçäo angular).É necessário figurar-se apenas o “primitivo” (digamos o pastor transumante) se representa linhas(direitas [retas] ou curvas), ângulos (obtusos ou agu<strong>do</strong>s), medidas (mesmo virtualmente). As marcaspermanecem qualitativas, como nos animais. As direções? Elas aparecem como benéficas oumaléficas. As marcas? São objetos carrega<strong>do</strong>s <strong>de</strong> afetivida<strong>de</strong>, que mais tar<strong>de</strong> se <strong>de</strong>nominarão“simbólicos”. Os aci<strong>de</strong>ntes <strong>do</strong> terreno se pren<strong>de</strong>m seja a uma lembrança, seja a uma ação possível.As re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> veredas e caminhos constituem um espaço tão concreto quanto aquele <strong>do</strong>s corpos, queeles prolongam. Como as direções espaço-temporais aparecem a esse pastor <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong> quepovoadas <strong>de</strong> “criaturas” reais e fictícias, perigosas ou favoráveis? Esse espaço qualifica<strong>do</strong>, simbólicoe prático, carrega [contém] os mitos e narrativas que lhe concernem. Re<strong>de</strong>s e fronteiras constituemum espaço concreto, mais próximo da teia <strong>de</strong> aranha que <strong>do</strong> espaço geométrico. Já sabemos que ocálculo reconstrói <strong>de</strong> uma maneira complicada o que a “natureza” produz no corpo vivo ou [no] seuprolongamento. Sabemos também que simbolismo e práxis não se separam.As relações entre fronteiras têm, seguramente, a maior importância, assim como a relação entrefronteiras e localida<strong>de</strong>s [sítios/lugares/pontos] nomea<strong>do</strong>s (assim, para esse pastor, este lugar, recintofecha<strong>do</strong> [estábulo], no qual ele reúne os animais, - a fonte, - o limite das pastagens das quais eledispõe, o território <strong>de</strong> vizinhos que lhe é interdito). Portanto, to<strong>do</strong> espaço social, alinha<strong>do</strong> eorienta<strong>do</strong>, implica relações que se superpõem às re<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s lugares-ditos e compreen<strong>de</strong>m:a) o espaço acessível, <strong>de</strong> uso normal (percursos <strong>de</strong> cavaleiros ou tropas, caminhos que levam aoscampos etc.) com as regras e modalida<strong>de</strong>s práticas <strong>de</strong>sse uso, as prescrições;154


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006b) as fronteiras, as interdições, os espaços <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong>s relativamente (vizinhos e amigos) ouabsolutamente (vizinhos e inimigos);c) as residências, seja estáveis, seja efêmeras;d) os pontos <strong>de</strong> sutura [junção/ligação], freqüentemente lugares <strong>de</strong> passagem e <strong>de</strong> encontros, <strong>de</strong>relação e <strong>de</strong> troca, freqüentemente interditos, as interdições se levantam conforme ritos a talmomento. As <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> guerra e <strong>de</strong> paz fazem parte <strong>de</strong>sses ritos. É evi<strong>de</strong>nte que as fronteiras epontos <strong>de</strong> sutura [junção/ligação] (portanto, <strong>de</strong> fricção) se apresentam <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong> conforme oscasos: camponeses relativamente fixa<strong>do</strong>s, povos saquea<strong>do</strong>res e guerreiros, nôma<strong>de</strong>s ou transumantesregulares etc.O espaço social tem da natureza um caráter tri-dimensional: as montanhas, as alturas, os serescelestes, as grutas, as cavernas, fazem parte – a superfície das águas, os planos e planícies separan<strong>do</strong>e unin<strong>do</strong> altura e profundida<strong>de</strong>. O que se elabora numa representação <strong>do</strong> Cosmos. Do mesmo mo<strong>do</strong>,as cavernas, grutas, lugares escondi<strong>do</strong>s e subterrâneos, o que se elabora em representações e mitos daterra-mãe e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Oeste-leste, norte-sul, alto-baixo, frente-atrás, percebi<strong>do</strong>s pelo pastor, nãotem nada em comum com as representações abstratas. São, ao mesmo tempo, relações e qualida<strong>de</strong>s.O espaço qualifica<strong>do</strong> avalia-se em tempo, em medidas mal <strong>de</strong>finidas (<strong>do</strong>s passos, da fadiga) – emfragmentos <strong>do</strong> corpo (côva<strong>do</strong> [cúbito], polegada, pé, palmo etc.). No corpo daquele que reflete e agese substitui por <strong>de</strong>slocamento <strong>do</strong> centro um objeto social, cabana (a <strong>do</strong> chefe), mastro, mais tar<strong>de</strong>templo ou igreja. O “primitivo” situa o espaço ou fala <strong>de</strong>le enquanto membro <strong>de</strong> um coletivo elepróprio ocupan<strong>do</strong> um espaço regula<strong>do</strong>, liga<strong>do</strong> ao tempo. Ele não se vê no espaço como um pontoentre outros num meio abstrato. Essa percepção só advém mais tar<strong>de</strong>: com o espaço abstrato <strong>de</strong>“planos” e mapas.III.8 Como ponto <strong>de</strong> partida e <strong>de</strong> chegada, há o corpo. Já não temos encontra<strong>do</strong> nosso corporepetidas vezes? Mas qual corpo?Os corpos se assemelham, mas diferem mais que se assemelham. Que há em comum entre o corpo <strong>de</strong>um camponês preso [amarra<strong>do</strong>] a seu animal <strong>de</strong> trabalho, atrela<strong>do</strong> à terra pelo ara<strong>do</strong>, e o corpo <strong>de</strong> umbrilhante cavaleiro sobre seu cavalo <strong>de</strong> guerra ou <strong>de</strong> parada? Seus corpos diferem tanto quanto oscorpos <strong>do</strong> boi (castra<strong>do</strong>) e o <strong>do</strong> cavalo! O animal, nas duas situações, serve <strong>de</strong> medium (meio,instrumento, intermediário) entre o homem e o espaço. A diferença entre os <strong>do</strong>is “media” não se dásem uma diferença análoga entre os espaços. Bem se po<strong>de</strong> dizer que o campo <strong>de</strong> trigo é um outromun<strong>do</strong> que o campo <strong>de</strong> batalha.Qual corpo iremos tomar ou retomar, encontrar ou reencontrar como ponto <strong>de</strong> partida? Aquelesegun<strong>do</strong> Platão ou aquele <strong>de</strong> São Tomás, o que carrega o intelectus ou aquele que carrega o habitus?O corpo glorioso ou o corpo miserável? A “corporeida<strong>de</strong>”, abstração entre as abstrações? O corpo-155


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006objeto (aquele <strong>de</strong> Descartes), ou o corpo-sujeito (o da fenomenologia e <strong>do</strong> existencialismo?) O corpofragmenta<strong>do</strong>, representa<strong>do</strong> pelas imagens, pelas palavras, negocia<strong>do</strong> minuciosamente [em retalho/avarejo]? É preciso partir <strong>do</strong> discurso sobre o corpo? Como escapar da abstração mortífera <strong>do</strong>discurso? Como limitá-la e transpor esses limites, se se parte <strong>de</strong> uma abstração?Seria preciso partir <strong>do</strong> “corpo social”, portanto tortura<strong>do</strong>, quebra<strong>do</strong> [rompi<strong>do</strong>/mutila<strong>do</strong>] por umaprática acabrunhante – a divisão <strong>do</strong> trabalho – pela instâncias? Mas como <strong>de</strong>finir o espaço crítico sese aceita o corpo nesse espaço já “social”, mutila<strong>do</strong> por ele? De qual direito, porém e como <strong>de</strong>finiresse corpo nele mesmo, sem i<strong>de</strong>ologia?Quan<strong>do</strong>, prece<strong>de</strong>ntemente, o corpo apareceu no trajeto da análise, ele não foi da<strong>do</strong> nem como sujeitonem como objeto filosóficos, nem como meio interno opon<strong>do</strong>-se a um meio externo, nem comoespaço neutro, nem como mecanismo ocupan<strong>do</strong> esse espaço por partes ou fragmentos, mas como“corpo espacial”. O corpo espacial, produto e produção <strong>de</strong> um espaço, <strong>de</strong>le recebe imediatamente as<strong>de</strong>terminações: simetrias, interações e reciprocida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ações, eixos e planos, centros e periferias,oposições concretas, ou seja, espaço-temporais. A materialida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse corpo não se atribui nem àreunião <strong>de</strong> parcelas num dispositivo, nem a uma natureza indiferente ao espaço e se repartin<strong>do</strong> nelepara o ocupar. Essa materialida<strong>de</strong> advém <strong>do</strong> espaço, da energia que se <strong>de</strong>senvolve e se emprega. Pormais que se trate <strong>de</strong> uma “máquina”, ela é dupla: uma movida por energias maciças (os alimentos, osmetabolismos), outra por energias finas (as informações <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s). Uma “dupla máquina” ainda éuma máquina? A dialetização concretiza esse conceito cartesiano muito abstrato, situa<strong>do</strong> numarepresentação <strong>do</strong> espaço ela própria elaborada muito abstratamente, o conceito <strong>de</strong> máquina. Umamáquina dupla implica interações no seio <strong>de</strong> sua estrutura dual. Ela inclui efeitos surpreen<strong>de</strong>ntes; elaexclui o mecanismo, a <strong>de</strong>finição unívoca e unilateral. Os aparelhos emissores e receptores <strong>de</strong>energias finas localizam-se nos órgãos sensoriais, os canais aferentes-eferentes (os nervos), océrebro. Os órgãos maciços são os músculos, o sexo enfim, pólo da energia que se acumulaexplosivamente. Essa composição <strong>do</strong> corpo orgânico liga-se, ela própria, diretamente à constituição(organização) espacial. Como não haveria relação conflitual entre as tendências inerentes a esseconjunto, a tendência a captar a energia, a reservá-la, a acumulá-la, e a tendência a <strong>de</strong>spendê-labruscamente? Assim como entre a tendência a explorar o espaço e a tendência a ocupá-lo. Osconflitos inerentes à realida<strong>de</strong> espaço-temporal <strong>do</strong> corpo (que não é nem substância, nem entida<strong>de</strong>,nem mecanismo, nem fluxo, nem sistema fecha<strong>do</strong>) culminam com os conflitos entre o conhecimentoe a ação, entre o cérebro e o sexo, entre os <strong>de</strong>sejos e as necessida<strong>de</strong>s, no ser humano. O mais alto? Omais baixo da escala? Questão <strong>de</strong> valor; ela só tem senti<strong>do</strong> se se coloca uma hierarquia. O que nãotem senti<strong>do</strong>, ou melhor, per<strong>de</strong> o senti<strong>do</strong>. Com a hierarquia, entra-se no Logos oci<strong>de</strong>ntal, o ju<strong>de</strong>ocristianismo.Todavia, as dissociações ulteriores não se encontram [possuem/se fixam] somente na156


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006linguagem, nas fragmentações <strong>de</strong> palavras, <strong>de</strong> imagens, <strong>de</strong> lugares. Elas provêm também e sobretu<strong>do</strong>da oposição inerente ao organismo vivo, totalida<strong>de</strong> dialética. O pólo das energias finas (cérebro,nervos, senti<strong>do</strong>s) não se concilia [harmoniza] necessariamente, ao contrário, com o das energiasmaciças, o sexo. O organismo vivo só tem senti<strong>do</strong> e existência consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> com seusprolongamentos: o espaço que ele alcança, que ele produz (seu “meio”, termo corrente que reduz aativida<strong>de</strong> à inserção passiva numa materialida<strong>de</strong> natural). To<strong>do</strong> organismo vivo se reflete, se refrata,nas modificações que ele produz em seu “meio”, seu “ambiente”: seu espaço.Esse corpo que se oferece à <strong>de</strong>scoberta, acontece-lhe <strong>de</strong> ser recoberto, oculta<strong>do</strong> e <strong>de</strong>pois lhe acontece<strong>de</strong> reviver, <strong>de</strong> se ver ressuscita<strong>do</strong>. A história <strong>do</strong> corpo teria uma relação com a <strong>do</strong> espaço?Esse corpo oferta<strong>do</strong> com suas taras, mas também com suas forças, suas vitórias escapa à claradistinção, <strong>de</strong> fato i<strong>de</strong>ológica e vulgar, entre o esta<strong>do</strong> normal e o anormal, entre a saú<strong>de</strong> e opatológico. No que se <strong>de</strong>nomina convencionalmente a “natureza”, on<strong>de</strong> a fecundação é a regra, oprazer e a <strong>do</strong>r se discernem? Isso não é nem certo nem evi<strong>de</strong>nte. O discernimento não seria a obra, agran<strong>de</strong> obra da espécie humana, freqüentemente <strong>de</strong>sviada, para o qual colaboram os conhecimentos ea arte? Essa dissociação se paga com um alto preço: as separações entre o que não po<strong>de</strong> e não <strong>de</strong>veser cindi<strong>do</strong>.Que o inventário das oferendas <strong>do</strong> corpo prossiga. O espaço sensível possui, ainda que a essaspalavras faltem pertinência, uma base ou fundamento, um ground ou background 109 : olfativo. Seexiste gozo e seu contrário, se existe intimida<strong>de</strong> <strong>do</strong> “sujeito” e <strong>do</strong> “objeto”, para falar como osfilósofos, encontram-se nos o<strong>do</strong>res e seus lugares. “Eles avançam, percorrem matas [sub-bosques] <strong>de</strong>bétulas anãs, cortadas ano após ano pelas garras <strong>do</strong>s ursos e pelas galhadas <strong>do</strong>s caribus... Nos cortes<strong>do</strong>s cepos distinguem-se os traços da neve, <strong>do</strong> sol, e das fezes <strong>do</strong>s pássaros; percebe-se o grito daseiva jorrada das raízes profundas, o zuni<strong>do</strong> elétrico e obsessivo <strong>do</strong>s insetos, a chamada <strong>do</strong> bosque[da ma<strong>de</strong>ira] apodrecen<strong>do</strong> nas florestas putrefacientes, o baila<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ramos agonizantes que mofam eque estalam exalan<strong>do</strong> seu fe<strong>do</strong>r entre céu e terra. Aí se respira o cheiro nauseante da floresta,putrefação elétrica mais próxima que a putrefação humana, carne <strong>de</strong>composta, merda nauseabunda esangue vicia<strong>do</strong>, nada se sente mais <strong>de</strong>sagradável que a vida que se <strong>de</strong>svanece, a vida que não é maisvida e ainda não o sabe. Obriga<strong>do</strong>, Senhores filósofos!...” 110 .Os vigorosos e cruéis fe<strong>do</strong>res têm na natureza, em compensação e por contrapartida, o o<strong>do</strong>r dasflores, o perfume <strong>do</strong>s instintos sexuais. Mas por que se <strong>de</strong>ter nesse espaço que a higiene e a assepsiasuprimem? Seria necessário consi<strong>de</strong>rar, com Hull, que se trata <strong>de</strong> fatos antropológicos ou109 Ground (solo; terreno; campo...) e background (contexto; ambiente; fun<strong>do</strong>...), termos <strong>de</strong> língua inglesa conforme utiliza<strong>do</strong>spelo autor (N.T.).157


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006“culturais”? Se é certo que certos “mo<strong>de</strong>rnos” não gostam <strong>do</strong>s o<strong>do</strong>res, <strong>de</strong>ve-se consi<strong>de</strong>rar esse fatocomo causa e efeito da indústria <strong>de</strong> <strong>de</strong>tergentes? Deixan<strong>do</strong> aos antropólogos da cultura o encargo <strong>de</strong>encontrar a resposta, po<strong>de</strong>-se constatar que por toda parte, no mun<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno, há extinção <strong>do</strong>so<strong>do</strong>res.A gran<strong>de</strong> limpeza [lixiviação/<strong>de</strong>sinfecção/saneamento], a extinção <strong>do</strong>s aromas naturais e fe<strong>do</strong>respelos <strong>de</strong>so<strong>do</strong>rantes <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os tipos mostram que a mise en images, em espetáculo, em discurso, emescrita-leitura, são apenas aspectos <strong>de</strong> um empreendimento mais vasto. Quan<strong>do</strong> alguém tem o hábito(esse alguém é cada criança) <strong>de</strong> marcar [orientar-se] pelos o<strong>do</strong>res os lugares, pessoas e coisas, aretórica escorrega nele. O objeto transicional, ao qual o <strong>de</strong>sejo se pren<strong>de</strong> para sair da subjetivida<strong>de</strong> eatingir “o outro”, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> inicialmente <strong>do</strong> olfato, aí incluí<strong>do</strong> o objeto <strong>do</strong> Eros.Os o<strong>do</strong>res não se <strong>de</strong>codificam. Eles não se repertoriam; não se po<strong>de</strong> nem começar nem terminar seuinventário. Eles “informam” sobre esse “fun<strong>do</strong>”, a vida, a morte. Eles não entram em nenhumaoposição pertinente, se isto não é aquilo: a vida começan<strong>do</strong> e a vida acaban<strong>do</strong>. Não há outro canal anão ser a ligação direta entre o centro receptor e a periferia ambiente; o nariz, o faro. Entre ainformação e a estimulação direta <strong>de</strong> uma resposta brutal, o o<strong>do</strong>r sobressai-se na animalida<strong>de</strong>, antesque a “cultura”, a racionalida<strong>de</strong> e a instrução, o espaço limpo (assea<strong>do</strong>), atrofiem-no. Não seriapatogênico trazer consigo um órgão atrofia<strong>do</strong> que reclama sua dívida?A rosa que não sabe que é flor, que ignora sua beleza (Angelus Silesius), também ignora que exalaum o<strong>do</strong>r <strong>de</strong>licioso. Apesar da flor já ser submetida ao fruto, ela oferece seu esplen<strong>do</strong>r perecível; elase oferece, natureza e cálculo e projeto “inconscientes”, jogo <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong> morte. O o<strong>do</strong>r, violência egenerosida<strong>de</strong> da natureza, não significa; ele é e diz o que é, imediatida<strong>de</strong>, intensa particularida<strong>de</strong> <strong>do</strong>que ocupa um lugar e sai <strong>de</strong>sse lugar para os arre<strong>do</strong>res. Fe<strong>do</strong>res e perfumes naturais exprimem. Aprodução industrial, que freqüentemente sente mal, produz perfumes; os quer [preten<strong>de</strong>]“significantes”, e as palavras, os discursos publicitários, lhes acrescentam significa<strong>do</strong>s: mulher,frescor, natureza, o país <strong>de</strong> Lubin 111 , o “glamour”. Mas um perfume produz ou não produz um esta<strong>do</strong>erótico, ele não fala. Ele encanta um lugar ou o <strong>de</strong>ixa tal como era.Os sabores se discernem mal <strong>do</strong>s o<strong>do</strong>res e das sensações táteis (lábios, língua). Contu<strong>do</strong>, elesdiferem <strong>do</strong>s o<strong>do</strong>res no que eles se apresentam por pares; eles entram nas oposições: <strong>do</strong>ce-amargo,salga<strong>do</strong>-<strong>do</strong>ce. Eles se <strong>de</strong>ixaram, portanto, codificar e produzir segun<strong>do</strong> um certo código, o livro <strong>de</strong>cozinha estipulan<strong>do</strong> as regras <strong>de</strong> uma prática, a produção <strong>do</strong>s sabores. Contu<strong>do</strong>, eles não constituemuma mensagem e a codificação lhes acrescenta uma <strong>de</strong>terminação que eles não têm. O <strong>do</strong>ce não110Norman Mailer, Pourquoi nous sommes au Viet-Nam, último flash.111 Fazer nota explicativa.158


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006remete ao amargo, mas o <strong>do</strong>ce amargor e a amara <strong>do</strong>çura têm seu charme pregnante. O <strong>do</strong>ce opõe-setanto ao acre quanto ao amargo, em que pese o azedume não coincidir com o amargor. A práticasocial aqui separa o que o natural oferece conjuntamente; ela ten<strong>de</strong> a produzir o gozo. As oposiçõessaborosas só ganham força em ligação com outras qualida<strong>de</strong>s: o frio e o quente, o crocante e omacio, o liso e o rugoso, que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>do</strong> tato. Assim, para a prática social <strong>de</strong>nominada “cozinha”,arte <strong>de</strong> manejar o fogo e o frio, o cozi<strong>do</strong>, o conserva<strong>do</strong>, o assa<strong>do</strong>, emerge uma realida<strong>de</strong> <strong>do</strong>tada <strong>de</strong>um senti<strong>do</strong> que se po<strong>de</strong> dizer “humano”, ainda que o humanismo raramente faça alusão a ela; pois ohumanismo tradicional, como seu contrário mo<strong>de</strong>rno, pouco conhece o gozo; ele também se satisfazcom palavras. No centro <strong>do</strong> corpo existe esse núcleo pouco redutível, apesar <strong>do</strong>s esforços, um “algo”que não é ainda diferencial e contu<strong>do</strong> não é nem indiferente, nem indiferencia<strong>do</strong>: a associaçãoíntima, nesse espaço inicial, <strong>de</strong> o<strong>do</strong>res e sabores.Trata-se muito mais e <strong>de</strong> outra coisa que <strong>de</strong> uma co-presença <strong>do</strong> espaço e <strong>do</strong> Ego pela mediação <strong>do</strong>corpo, como diria elegantemente um filósofo. O corpo espacial, tornan<strong>do</strong> social, não se introduz num“mun<strong>do</strong>” preexistente; ele produz e reproduz; ele percebe o que ele reproduz ou produz. Esse corpotraz nele [carrega consigo] suas proprieda<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>terminação espaciais. Ele as percebe? No práticosensível,a percepção da direita e da esquerda <strong>de</strong>ve se projetar, se marcar na e sobre as coisas. Eleprecisa introduzir, ou seja, produzir no espaço, as duplas <strong>de</strong>terminações: o eixo e o quadrante, adireção e a orientação, a simetria e a dissimetria. As condições e princípios da lateralização <strong>do</strong>espaço encontram-se no corpo; ele precisa efetuá-la, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que a direita e a esquerda, o alto e obaixo se indiquem e se marquem permitin<strong>do</strong> a escolha (pelo gesto, pela ação).Segun<strong>do</strong> Tomatis 112 , a audição <strong>de</strong>sempenha um papel <strong>de</strong>cisivo na lateralização <strong>do</strong> espaço percebi<strong>do</strong>.Escuta-se o espaço tanto quanto se o vê, e se o enten<strong>de</strong> antes que ele se revele ao olhar. Aspercepções <strong>do</strong>s ouvi<strong>do</strong>s não coinci<strong>de</strong>m. Essa diferença alerta a criança e fornece as mensagens da<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>, <strong>do</strong> volume físico que ela recebe. A audição é, portanto, media<strong>do</strong>ra entre o corpo espaciale a localização <strong>do</strong>s corpos externos. O espaço orgânico <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong>, inicialmente engendra<strong>do</strong> pelasrelações da criança com sua mãe, esten<strong>de</strong>-se aos ruí<strong>do</strong>s mais distantes, às vozes. Os distúrbios daaudição acarretam distúrbios da lateralização, da percepção <strong>do</strong> espaço externo e <strong>do</strong> espaço interno(dislexias etc.).O espaço homogêneo completamente, perfeitamente simultâneo, cairia no indiscernível. Eleescaparia ao elemento conflitual, sempre resolvi<strong>do</strong>, sempre esboça<strong>do</strong>, entre o simétrico e odissimétrico. A partir <strong>de</strong> agora, po<strong>de</strong>-se notar que o espaço arquitetural e urbanístico na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>112Eminente especialista <strong>de</strong> audição, constructor <strong>de</strong> um ouvi<strong>do</strong> mecânico (eletrônico), autor <strong>de</strong> numerosos trabalhos sobre aortofonia.159


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006ten<strong>de</strong> para esse caráter homogêneo: lugar da confusão e da fusão entre o geométrico e o visual, eleengendra um mal-estar físico. Tu<strong>do</strong> se reúne [junta]. Não há mais localização, lateralização. Ossignificantes e significa<strong>do</strong>s, as marcas, os índices são acrescenta<strong>do</strong>s mais tar<strong>de</strong>, para [como] a<strong>de</strong>coração. O que aumenta a impressão <strong>de</strong>sértica, o mal-estar.Esse espaço assemelha-se analogicamente àquele da tradição filosófica (cartesiana). É<strong>de</strong>sgraçadamente tanto o espaço da folha <strong>de</strong> papel branco, da prancheta <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho, <strong>de</strong> planos, <strong>de</strong>cortes, <strong>de</strong> elevações, maquetes, projeções. Substituí-lo por um espaço verbal, semântico ousemiológico, agrava a insuficiência [<strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>]. Uma racionalida<strong>de</strong> estreita e <strong>de</strong>ssecada omite ofun<strong>do</strong> e o fundamento <strong>do</strong> espaço, o corpo total, o cérebro, os gestos etc. Ela esquece que o espaçonão consiste na projeção <strong>de</strong> uma representação intelectual, no legível-visível, mas que ele é,inicialmente, entendi<strong>do</strong> (escuta<strong>do</strong>) e atua<strong>do</strong> [efetua<strong>do</strong>] (pelos gestos e <strong>de</strong>slocamentos físicos).A teoria da informação, que assimila [coteja/compara] o cérebro a uma máquina receptora <strong>de</strong>mensagens, põe entre parênteses a fisiologia específica <strong>de</strong>sse órgão, seu papel no corpo. O cérebro,toma<strong>do</strong> com seu corpo, no seu corpo, não é somente uma máquina <strong>de</strong> registrar, um aparelho <strong>de</strong><strong>de</strong>codificar. Não mais que uma máquina <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejar. O corpo total constitui, ele produz o espaço noqual haverá mensagens, códigos, críptico e <strong>de</strong>scripta<strong>do</strong>, <strong>de</strong>cisões a tomar.O espaço físico, o prático-sensível, se restitui e se reconstitui assim, contra as projeções <strong>de</strong>aquisições intelectuais tardias, contra as reduções pelo saber. Contra o Absolutamente Verda<strong>de</strong>iro,Espaço <strong>de</strong> Clarezas soberanas, reabilitam-se o subterrâneo, o lateral, o labiríntico, quiçá o uterino, ofeminino. Contra os signos <strong>do</strong> não-corpo, reerguem-se [aprumam-se] os signos <strong>do</strong> corpo. “A história<strong>do</strong>s corpos na fase final <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte é a <strong>de</strong> suas revoltas.” 113Sim, o corpo carnal (espaço-temporal) se revolta, e isso não é um recurso às origens, ao arcaico, umapelo ao antropológico; trata-se <strong>do</strong> atual, <strong>de</strong> “nosso” corpo. Des<strong>de</strong>nha<strong>do</strong>, absorvi<strong>do</strong>, coloca<strong>do</strong> emmigalhas pela imagem. Mais que <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha<strong>do</strong>: omiti<strong>do</strong>. Isso não é nem uma rebelião política,substituta da revolução, nem uma revolta <strong>do</strong> pensamento, <strong>do</strong> indivíduo, da liberda<strong>de</strong>; é uma revoltaelementar e mundial, que não busca seu fundamento teórico, mas busca reencontrar pela teoria seufundamento, procura reconhecê-lo. E que, sobretu<strong>do</strong>, exige que a teoria não mais obstrua apassagem, que não mais oculte o fundamento. Essa exploração não recai na natureza e na ficção <strong>do</strong>“espontâneo”. Ela explora o “vivi<strong>do</strong>”: o que foi evacua<strong>do</strong> por um jogo <strong>de</strong> <strong>de</strong>svios, <strong>de</strong> reduçõesextrapolações,<strong>de</strong> figuras linguageiras, <strong>de</strong> analogias e tautologias. Incontestavelmente, o espaçosocial é o lugar <strong>do</strong> interdito. As interdições e seus complementos, as prescrições, povoam-no. Po<strong>de</strong>se,<strong>de</strong> fato, tirar uma <strong>de</strong>finição global? Não! O espaço não é somente o espaço <strong>do</strong> “não”, mas é113 Octavio Paz. Conjonctions et Disjonction, p.132.160


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006aquele <strong>do</strong> corpo, conseqüentemente, aquele <strong>do</strong> “sim”, <strong>do</strong> viver. Não se trata, portanto, somente <strong>de</strong>uma crítica teórica, mas <strong>de</strong> uma reinversão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> inverti<strong>do</strong> (Marx), <strong>de</strong> uma inversão <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>,<strong>de</strong> uma subversão que quebra as tábuas da Lei (Nietzsche).A passagem <strong>do</strong> espaço <strong>do</strong> corpo ao corpo no espaço, <strong>do</strong> opaco (quente) ao translúci<strong>do</strong> (frio), essapassagem difícil <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r permite a escamoteação, a escotomização <strong>do</strong> corpo. Como essamagia foi e ainda é possível? On<strong>de</strong> se funda a operação que faz <strong>de</strong>saparecer o fundamento? De quaispressões pô<strong>de</strong> se servir e ainda se servem disso que chega “normalmente” num certo percurso, o quevai <strong>do</strong> Ego ao Outro, ou melhor, <strong>do</strong> Ego para si através <strong>de</strong> seu duplo, o Outro?Para que o Ego apareça e se manifeste porque ele está no “meu corpo”, bastaria que ele tenhamarca<strong>do</strong> em torno <strong>de</strong> si sua esquerda e sua direita, que ele tenha baliza<strong>do</strong> direções? Bastaria que tal“Ego” tenha dito “meu corpo” para que ele possa <strong>de</strong>senhar os outros localizan<strong>do</strong> os corpos e osobjetos? Não. E, a<strong>de</strong>mais, para que ele diga “meu corpo”, ele tem necessida<strong>de</strong> da linguagem e <strong>de</strong> umcerto uso <strong>do</strong> discurso: então, toda uma história. Quais condições são requeridas para que exista essahistória, esse uso <strong>do</strong> discurso, essa intervenção da linguagem? Para que seja possível o código <strong>do</strong>Ego e <strong>do</strong> Alter-Ego? A codificação <strong>do</strong> intervalo?Para que o Ego apareça, é preciso que ele se apareça e que seu corpo lhe apareça subtraí<strong>do</strong>, portanto,extraí<strong>do</strong> e abstraí<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Ele, presa <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, visa<strong>do</strong> por mil ameaças, entrincheira-se[refugia-se]. Ele se fecha por <strong>de</strong>fesas, interdita seu acesso. À natureza, ele opõe barreiras, pois ele sesente vulnerável. Ele se quer invulnerável. Ficção? Evi<strong>de</strong>ntemente, magia! A operação mágicaprece<strong>de</strong> a <strong>de</strong>nominação? A suce<strong>de</strong>?As barreiras fictícias e reais opostas às agressões po<strong>de</strong>m se fortificar. As reações <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa vão atéconstruir uma forte armadura (o que mostrou W. Reich 114 ). <strong>Outras</strong> civilizações que a oci<strong>de</strong>ntalproce<strong>de</strong>m <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>. Um certo uso altamente cultiva<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo ten<strong>de</strong> a subtraí-loconstantemente às variações <strong>do</strong> “meio”, às agressões <strong>do</strong> espaço. É a resposta oriental à humil<strong>de</strong><strong>de</strong>manda <strong>do</strong> corpo espaço-temporal e prático-sensível, ao passo que a comanda oci<strong>de</strong>ntal forneceuuma verbalização, engendran<strong>do</strong> uma concha endurecida.Em certas situações, se produz um afastamento, um interstício, um intervalo, espaço bem particular,mágico e real. O inconsciente? Talvez não consista numa obscura natureza ou substancialida<strong>de</strong>(preten<strong>de</strong>nte e <strong>de</strong>sejante), numa fonte da linguagem ou então numa linguagem. Não seria essepróprio interstício, esse entre-<strong>do</strong>is? Com o que o ocupa, aí se introduz e aí se passa. Entre que e que?Entre si e si, entre o corpo e seu Ego (ou antes, entre o Ego que procura se constituir e seu corpo). Oque não po<strong>de</strong> ter lugar senão no curso <strong>de</strong> uma longa aprendizagem, no curso da formação-114 Cf. J.-M. Palmier, W. Reich, p.37.161


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006<strong>de</strong>formação que submete a criança, imaturo e prematuro, <strong>de</strong>votada à maturação familiar e social.Mas o que é que se introduz nesse interstício? A linguagem, as palavras, os signos, a abstração,necessárias e fatídicas, indispensáveis e perigosas. Intervalo mortal on<strong>de</strong> estagna a poeira, aimundície <strong>de</strong> palavras. O que aí se introduz permite o <strong>de</strong>slizamento <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> para fora <strong>do</strong> vivi<strong>do</strong>,para fora <strong>do</strong> corpo carnal. Palavras e signos permitem – bem mais, eles provocam, suscitam,comandam (no Oci<strong>de</strong>nte) – a metaforização, a <strong>de</strong>portação para fora <strong>de</strong> si <strong>do</strong> corpo físico.Indistintamente mágico e racional, a operação introduz um estranho movimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>sencarnação(verbal) e <strong>de</strong> reencarnação (empírica), <strong>de</strong> <strong>de</strong>senraizamento e <strong>de</strong> enraizamento, <strong>de</strong> espacializaçãonuma extensão abstrata e <strong>de</strong> localização numa extensão especificada. É o espaço misto (aindanatural, já produzi<strong>do</strong>) <strong>do</strong>s primeiros anos da vida, e mais tar<strong>de</strong> da poesia, da arte, espaço <strong>de</strong>representações.III.9 O corpo escapa ao pensamento analítico que separa o cíclico e o linear. A unida<strong>de</strong>, que areflexão <strong>de</strong>sejaria <strong>de</strong>scriptar, entra na opacida<strong>de</strong> críptica, gran<strong>de</strong> segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo. Pois o corpo uneo cíclico e o linear: os ciclos <strong>do</strong> tempo, das necessida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>sejos — as linearida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s gestos, damarcha, da preensão, da manipulação das coisas, <strong>do</strong>s instrumentos materiais e abstratos. Ele, ocorpo, subsiste no retorno perpétuo <strong>de</strong> uma à outra, na sua diferença vivida e não pensada. Não seriaele que inventa o novo através <strong>do</strong> repetitivo, porque ele retém a diferença no seio <strong>do</strong> repetitivo?Enquanto o pensamento analítico, evacuan<strong>do</strong> a diferença, não po<strong>de</strong> mais conceber como o repetitivoengendra o novo. Ele, o conhecimento, não reconhece que sanciona o infortúnio <strong>do</strong> corpo e suaprovação [seu sofrimento]. Introduzi<strong>do</strong> no interstício, entre o vivi<strong>do</strong> e o saber, o conhecimento aírealiza uma obra <strong>de</strong> morte. O corpo vazio, o corpo-coa<strong>do</strong>r, o corpo conjunto <strong>de</strong> órgãos análogo a ummonte <strong>de</strong> coisas, o corpo <strong>de</strong>smembra<strong>do</strong> em membros dissocia<strong>do</strong>s, o corpo sem órgãos, essessintomas ditos patológicos, são os efeitos <strong>de</strong>sastrosos da representação e <strong>do</strong> discurso, agrava<strong>do</strong>s pelasocieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, com suas i<strong>de</strong>ologias e suas contradições (aquela <strong>do</strong> permissivo e <strong>do</strong> repressivono espaço, entre outras).O retalhamento <strong>do</strong> corpo, sua fragmentação, melhor dizen<strong>do</strong>: a má relação <strong>do</strong> Ego com seu corpo,<strong>de</strong>correriam apenas da linguagem? A dissociação <strong>do</strong> corpo em localizações funcionais, o aban<strong>do</strong>no<strong>do</strong> corpo como totalida<strong>de</strong> (subjetiva e objetiva) teriam por origem a nominação das partes <strong>do</strong> corpo,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância, com palavras sem ligação [nexo/seqüência]? De maneira que essas partes (o falo, osolhos etc.) se dissociariam num espaço <strong>de</strong> representação que em seguida se vive patologicamente…Esta teoria <strong>de</strong>sculpa [inocenta] ao mesmo tempo a tradição cristã (ou antes: judaico-cristã) que<strong>de</strong>sconhece e <strong>de</strong>spreza [menospreza] o corpo, que o lança ao ossário quan<strong>do</strong> não ao diabo — e ocapitalismo que impulsionou a divisão <strong>do</strong> trabalho até o interior <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res e mesmo<strong>do</strong>s não-trabalha<strong>do</strong>res. O “sistema Taylor”, um <strong>do</strong>s primeiros sistemas científico-produtivistas, não162


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006retinha <strong>do</strong> conjunto <strong>do</strong> corpo senão um certo número <strong>de</strong> movimentos, submeti<strong>do</strong>s a um <strong>de</strong>terminismolinear severamente controla<strong>do</strong>. Essa divisão <strong>do</strong> trabalho, a especialização esten<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-se aos gestos,tiveram certamente tanta importância quanto o discurso na fragmentação <strong>do</strong> corpo em partesdisjuntas-conjuntas.A relação <strong>do</strong> Ego com o corpo, pouco a pouco chamada para o [invocada ao] pensamento teórico,revela-se complexa e diversa. Há tantas relações <strong>do</strong> Ego com o próprio corpo (tantas apropriações efracassos da apropriação) quantas socieda<strong>de</strong>s, culturas e talvez indivíduos.Ora, a relação prática <strong>do</strong> Ego com seu próprio corpo estabelece sua relação com outros corpos, com aNatureza, com o espaço. E inversamente: a relação com o espaço se reflete numa relação com ooutro, corpo e consciência. O corpo total se analisa e se auto-analisa, se situa e se fragmenta emfunção <strong>de</strong> uma prática, que inclui o discurso mas não se reduz ao discurso. Quan<strong>do</strong> o trabalho sesepara <strong>do</strong> jogo, <strong>do</strong>s gestos rituais, <strong>do</strong> erótico, as interações e interferências apenas se tornam maisimportantes. Com a indústria mo<strong>de</strong>rna e a vida urbana, a abstração comanda a relação com o corpo.A natureza se distancian<strong>do</strong>, nada restitui o corpo total, nada, nem nos objetos, nem nas ativida<strong>de</strong>s. Atradição oci<strong>de</strong>ntal e sua relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconhecimento com o corpo se reatualiza estranhamente;quan<strong>do</strong> atribuímos esses danos apenas ao discurso, lavamos <strong>de</strong> toda acusação não apenas a tradição,mas o espaço abstrato “real”.III.10 Não é preciso <strong>de</strong>monstrar a capacida<strong>de</strong> inventiva <strong>do</strong> corpo: ele a mostra, ele a manifesta[<strong>de</strong>senvolve] no espaço. Os ritmos, múltiplos, se interpenetram. No corpo e em torno <strong>de</strong>le, como àsuperfície <strong>de</strong> uma água, como na massa <strong>de</strong> um flui<strong>do</strong>, os ritmos se cruzam e se entrecruzam, sesuperpõem, liga<strong>do</strong>s ao espaço. Eles não <strong>de</strong>ixam fora <strong>de</strong>les [<strong>de</strong> fora] nem as impulsões elementares,nem as energias, que elas se repartam no interior <strong>do</strong> corpo ou à sua superfície, que sejam “normais”ou excessivas, réplica a uma ação exterior ou explosivas. Esses ritmos têm relação com asnecessida<strong>de</strong>s, dispersas em tendências ou concentradas em <strong>de</strong>sejo. Como as enumerar [enunciar]?Algumas se constatam imediatamente: a respiração, o coração, a se<strong>de</strong> e a fome, o sono. <strong>Outras</strong> sedissimulam, aquelas <strong>do</strong> sexo, da fecundida<strong>de</strong>, da vida social, <strong>do</strong> pensamento. Umas ficam nasuperfície, outras surgem das profun<strong>de</strong>zes escondidas.A ritmanálise <strong>de</strong>senvolveria a análise concreta e talvez o uso (a apropriação) <strong>do</strong>s ritmos. Ela<strong>de</strong>scobriria aqueles que não se revelam senão através <strong>de</strong> mediações, <strong>de</strong> efeitos e <strong>de</strong> expressõesindiretas. A ritmanálise, eventualmente, substituiria a psicanálise: mais concreta, mais eficaz, maispróxima <strong>de</strong> uma pedagogia da apropriação (<strong>do</strong> corpo, da prática espacial). Ela aplicaria ao corpovivo e às suas relações internas-externas os princípios e leis <strong>de</strong> uma ritmologia geral. Esteconhecimento teria por campo privilegia<strong>do</strong> e terreno experimental a dança e a música, as “célulasrítmicas”, seus efeitos. Nos ritmos, as repetições e redundâncias, as simetrias e assimetrias interagem163


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006<strong>de</strong> maneira irredutível às <strong>de</strong>terminações recortadas e fixadas pelo pensamento analítico. O corpopolirrítmico não se <strong>de</strong>ixa compreen<strong>de</strong>r e apropriar senão nessas condições. Os ritmos diferem pelasamplitu<strong>de</strong>s, as energias manifestadas [<strong>de</strong>senvolvidas] e veiculadas, as freqüências. Eles transportame reproduzem essas diferenças, na intensida<strong>de</strong>, na força da espera, da tensão, da ação, todas secruzan<strong>do</strong> no corpo como as ondas no “éter”.A música mostra como os ritmos compreen<strong>de</strong>m o cíclico e o linear, on<strong>de</strong> a medida e o batimento <strong>do</strong>stempos têm um caráter linear, enquanto que os grupos <strong>de</strong> sons, melodia e sobretu<strong>do</strong> harmonia, têmum caráter cíclico (divisão das oitavas em <strong>do</strong>ze semi-tons, retorno <strong>do</strong>s sons e intervalos no interiordas oitavas). Do mesmo mo<strong>do</strong> a dança, gestual organiza<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> um duplo código, aquele <strong>do</strong>dançarino, aquele <strong>do</strong> observa<strong>do</strong>r (que marca o compasso baten<strong>do</strong> as mãos, agitan<strong>do</strong>-se), <strong>de</strong> maneiraque voltam os gestos evoca<strong>do</strong>res (paradigma) e que eles se integram aos gestos enca<strong>de</strong>a<strong>do</strong>sritualmente.Que conhecemos <strong>do</strong>s ritmos, relações <strong>de</strong> sucessão no espaço, relações objetivas? A noção <strong>de</strong> fluxonão tem uma “suficiência” senão em economia política (fluxo <strong>de</strong> energias, <strong>de</strong> matérias etc). Ela aindase subordina à <strong>do</strong> espaço. A da “pulsão” transpõe em termos psíquicos a noção ao mesmo tempofundamental e dissociada <strong>de</strong> ritmo. Que vivemos? Ritmos, experimenta<strong>do</strong>s subjetivamente. Nisto,aqui, o “vivi<strong>do</strong>” e o “concebi<strong>do</strong>” se aproximam. As leis da natureza, aquelas <strong>de</strong> nosso corpo sereúnem e talvez aquelas da realida<strong>de</strong> dita social.Um órgão tem um ritmo, mas o ritmo não tem e não é um órgão; é uma interação. Um ritmo envolvelugares, ele não é um lugar; não é uma coisa, nem um agrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> coisas, nem um simples fluxo. Eletem sua lei em si, sua regularida<strong>de</strong>; esta lei lhe vem <strong>do</strong> espaço, o seu, e <strong>de</strong> uma relação entre oespaço e o tempo. To<strong>do</strong> ritmo <strong>de</strong>tém e ocupa uma realida<strong>de</strong> espaço-temporal, conhecida por nossaciência, e <strong>do</strong>minada no que concerne à realida<strong>de</strong> física (ondulações), <strong>de</strong>sconhecida no que concerneaos seres viventes, aos organismos, aos corpos, à prática social. Todavia, a prática social se compõe<strong>de</strong> ritmos, cotidianos, mensais, anuais etc. Que esses ritmos se complexifiquem em relação aosritmos naturais, é altamente provável. Uma gran<strong>de</strong> perturbação vem <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio prático-social dasrepetições lineares sobre as cíclicas, portanto <strong>de</strong> um aspecto <strong>do</strong>s ritmos sobre o outro.Para a mediação (no senti<strong>do</strong> triplo: médio, meio, intermediário) <strong>do</strong>s ritmos, se constitui um espaçoanima<strong>do</strong>, extensão daquele <strong>do</strong>s corpos. Como as leis <strong>do</strong> espaço e sua dualida<strong>de</strong> (simetrias edissimetrias, balizamentos e orientações etc) entram em acor<strong>do</strong> com as leis <strong>do</strong>s movimentos rítmicos(regularida<strong>de</strong>, difusão, compenetração) é uma questão sem resposta por enquanto.III.11 O inconsciente? Mas é a consciência! A consciência e seu duplo, que ela contém e retém,como “consciência-<strong>de</strong>-si”! É a consciência enquanto re<strong>do</strong>bramento, repetição e miragem. Que querdizer esta formulação? Primeiro isto: que toda substantificação ou naturalização <strong>do</strong> inconsciente,164


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006situada abaixo ou então acima da consciência, ce<strong>do</strong> ou tar<strong>de</strong> cai no irrisório [ridículo] i<strong>de</strong>ológico 115 .A consciência não se ignora; caso ela se ignorasse, <strong>de</strong> quem e <strong>de</strong> que ela seria consciência? Poressência, por <strong>de</strong>finição, a consciência-<strong>de</strong>-si se reduplica e se repete, ao mesmo tempo em que ela“reflete” objetos. Ela se conhece? Não. Ela não conhece nem suas condições nem suas leis (se as há).O que justifica uma analogia com a linguagem, não somente porque não há consciência sem umalinguagem, mas porque aquele que fala e mesmo aquele que escreve não conhecem as condições e asleis da linguagem (da linguagem <strong>de</strong>les) e todavia a praticam. Qual é pois o “estatuto” daconsciência? Entre o conhecimento e a ignorância, há uma mediação que po<strong>de</strong> servir <strong>de</strong>intermediário mas também bloquear a passagem: o <strong>de</strong>sconhecimento. Como a Flor que é flor não osabe, a consciência-<strong>de</strong>-si, tão exaltada no pensamento oci<strong>de</strong>ntal (<strong>de</strong> Descartes a Hegel e mesmo<strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ste na filosofifa), <strong>de</strong>sconhece suas condições naturais (físicas) e práticas, mentais e sociais.Sabe-se há muito tempo que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância a consciência <strong>do</strong> “ser consciente” se apreen<strong>de</strong>[ganha/assenhoreia/percebe] como reflexão <strong>do</strong> que ela fêz no “objeto”, no outro, através <strong>de</strong> produtosprivilegia<strong>do</strong>s: o objeto instrumental e o discurso. Ela se apreen<strong>de</strong> [ganha/assenhoreia/percebe] no epelo que ela produz (brincan<strong>do</strong> com um simples bastão, a criança pequena começa a “ser”:<strong>de</strong>sarruman<strong>do</strong> as coisas, quebran<strong>do</strong>-as). O ser consciente percebe-se numa mistura <strong>de</strong> violência, <strong>de</strong>falta, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos e <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> conhecimentos propriamente ou impropriamente ditos.Portanto, nesse senti<strong>do</strong> (mas não exatamente à maneira da linguagem como tal) a consciência se<strong>de</strong>sconhece, o que dá lugar a um conhecimento. Esse conhecimento da consciência, ela mesma lugar<strong>do</strong> conhecer, engendra mal-entendi<strong>do</strong>s: <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> o conhecimento perfeito, a transparência (a Idéia,a Divinda<strong>de</strong>, o Saber absoluto), e <strong>de</strong> outro o abismo, o mistério, a opacida<strong>de</strong>, o inconsciente. Esteúltimo termo? Não é falso nem verda<strong>de</strong>iro. É portanto verda<strong>de</strong>iro e falso ao mesmo tempo, comouma ilusão que tem suas razões, como um efeito <strong>de</strong> miragem. No inconsciente, coloca-se (opsicólogo, o psicanalista, o psiquiatra) tu<strong>do</strong> o que lhe convém: as condições da consciência nosnervos e no cérebro, a ação e a linguagem, a memória e o esquecimento, o corpo e sua própriahistória. A tendência a fetichizar o inconsciente é imanente à imagem <strong>do</strong> inconsciente. Don<strong>de</strong> aontologia e a metafísica, a pulsão <strong>de</strong> morte etc.Porém, o termo tem um senti<strong>do</strong> porque <strong>de</strong>signa esse processo singular que forma cada “ser” humano:duplicação, re<strong>do</strong>bramento, retomada a um outro nível <strong>do</strong> corpo espacial, linguagem e espacialida<strong>de</strong>fictícia-real, redundância e surpresa, aprendizagem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> (natural e social), apropriação semprecomprometida <strong>de</strong> uma “realida<strong>de</strong>” que <strong>do</strong>mina a natureza pela abstração, mas que <strong>do</strong>mina a piorabstração, aquela <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r. O “inconsciente”, lugar fictício e real <strong>de</strong> uma prova [provação], contra-115 Cf. L’inconscient, Colóquio <strong>de</strong> Bonneval, 1960, publica<strong>do</strong> em 1966, p.347 et seq.165


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006partida obscura <strong>de</strong> uma entida<strong>de</strong> “luminosa”, a cultura, o “Inconsciente” não tem nada a ver com oquarto <strong>de</strong> <strong>de</strong>spejo <strong>do</strong>s especialistas.O sono. Que enigma para a filosofia! Como o cogito po<strong>de</strong> a<strong>do</strong>rmecer? Ele <strong>de</strong>ve velar até o fim <strong>do</strong>stempos, o que Pascal compreen<strong>de</strong> e diz. O sono reproduz a vida pré-natal e anuncia a morte;entretanto este repouso tem sua plenitu<strong>de</strong>. O corpo se junta <strong>de</strong> novo [reúne/rearranja]; ele reconstituisuas reservas energéticas, colocan<strong>do</strong> em silêncio os receptores <strong>de</strong> informação. Ele se fecha, momentoque tem sua verda<strong>de</strong>, sua beleza, sua bonda<strong>de</strong>. Momento, <strong>de</strong>ntre outros, poético. Então, para<strong>do</strong>xo,surge “o espaço <strong>do</strong> sonho”, espaço fictício e real, diferente daquele da linguagem mas da mesmaor<strong>de</strong>m, guardião vigilante <strong>do</strong> sono, não mais da aprendizagem social. Espaço <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo? Das“pulsões”? Digamos, antes, da reunião <strong>do</strong>s ritmos dispersos e quebra<strong>do</strong>s [interrompi<strong>do</strong>s], recriaçãopoética <strong>de</strong> situações nas quais um <strong>de</strong>sejo se reencontra: se anuncia mais <strong>do</strong> que se realiza. Espaço <strong>de</strong>gozo, estabelecen<strong>do</strong> o reino virtual <strong>do</strong> prazer, ainda que o sonho erótico se esboroe [se <strong>de</strong>sfaça]sobre o [no] prazer e a [na] <strong>de</strong>cepção <strong>do</strong> sonha<strong>do</strong>r (ou da sonha<strong>do</strong>ra). Espaço estranho-estrangeiro eo mais próximo: raramente colori<strong>do</strong>, mais raramente anima<strong>do</strong> <strong>de</strong> música, e entretanto sensualsensorial.Espaço teatral, mais que cotidiano ou poético: coloca<strong>do</strong> em imagens <strong>de</strong> si, para si…O espaço visual especifica<strong>do</strong> contém uma imensa multidão [quantida<strong>de</strong>] <strong>de</strong> pessoas, <strong>de</strong> objetos, <strong>de</strong>coisas, <strong>de</strong> corpos. Eles diferem uns <strong>do</strong>s outros, pelo lugar e pelas particularida<strong>de</strong>s locais, por suarelação com os “sujeitos”. Há por toda parte objetos privilegia<strong>do</strong>s que captam a atenção e o interesse,e outros que caem na indiferença. Existem objetos conheci<strong>do</strong>s, outros ignora<strong>do</strong>s, outros<strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>s. Certos objetos servem <strong>de</strong> ligação; transitórios, transicionais, eles remetem a outros.O espelho, objeto privilegia<strong>do</strong>, não tem menos uma função transicional.Eis uma janela. Simples vazio por on<strong>de</strong> passa o olhar? Não. E qual olhar, o olhar <strong>de</strong> quem? A janela,não-objeto, não po<strong>de</strong> tornar-se objeto. Objeto transicional, ela tem <strong>do</strong>is senti<strong>do</strong>s: <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro para forae <strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro. Ambos se marcam e se remarcam. A janela se enquadra <strong>de</strong> uma outra maneiraao <strong>de</strong> fora (para o <strong>de</strong> fora) e ao <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro (para o <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro).Eis uma porta. Buraco na pare<strong>de</strong>? Não. Ela se enquadra. Sem enquadramento, a porta cumpriria umafunção: permitir a passagem; ela a cumpriria mal. Faltar-lhe-ia alguma coisa. A função quer qualquercoisa além, algo <strong>de</strong> mais, <strong>de</strong> melhor, que o funcional. O enquadramento faz da porta um objeto. Comsuas molduras, as portas tornam-se obras, não tão distanciadas como aquelas <strong>do</strong> quadro e <strong>do</strong> espelho.Transicional, simbólico e funcional, o objeto “porta” termina um espaço, aquele <strong>de</strong> uma “peça” ouda rua; ela prepara o acolhimento na “peça” vizinha, anuncia a casa inteira (ou o apartamento). Naporta <strong>de</strong> entrada, a soleira, um <strong>de</strong>grau, outro objeto transicional, teve tradicionalmente suaimportância quase ritual (transpor o limiar, uma “joeira” ou um “passo”). Os objetos, pois, se166


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006classificam espontaneamente segun<strong>do</strong> categorias (transicional, funcional etc.), mas essa classificaçãonão é senão provisória; as categorias mudam e os objetos mudam <strong>de</strong> categoria.Aqui começa uma articulação: <strong>do</strong> espaço sensorial ou prático-sensível ao espaço específico, ouprático-social, aquele <strong>de</strong> tal ou qual socieda<strong>de</strong>. O espaço social <strong>de</strong>finir-se-ia pela projeção <strong>de</strong> umai<strong>de</strong>ologia num espaço neutro? Não. As i<strong>de</strong>ologias prescrevem a localização <strong>de</strong> tal ativida<strong>de</strong>: tal lugarserá sagra<strong>do</strong>, tal outro, não. O templo, o palácio, a igreja, serão aqui e não lá. As i<strong>de</strong>ologias nãoproduzem o espaço: elas aí estão, elas o são. Quem produz o espaço social? As forças produtivas e asrelações <strong>de</strong> produção. Isto que constitui a prática social global, aí compreendidas as ativida<strong>de</strong>sdiversas que fazem, até nova or<strong>de</strong>m, uma socieda<strong>de</strong>: as ativida<strong>de</strong>s educativas, administrativas,políticas, militares etc. Portanto, não é preciso vincular [atribuir] à i<strong>de</strong>ologia todas as localizações.Se o “lugar” social, a nobreza e a ralé, a “esquerda” e a “direita” políticas po<strong>de</strong>m passar porlocalizações, isto não <strong>de</strong>corre somente da i<strong>de</strong>ologia, mas das proprieda<strong>de</strong>s simbólicas <strong>do</strong> espaço,inerentes à sua ocupação prática.Em que consiste o espaço sensorial no seio <strong>do</strong> espaço social? Num jogo teatraliza<strong>do</strong>“inconscientemente”: ligações e obstáculos, jogo <strong>de</strong> reflexos, <strong>de</strong> <strong>de</strong>voluções, <strong>de</strong> espelhos, <strong>de</strong> ecos,jogo que o discurso implica e não <strong>de</strong>signa como tal. Objetos especulares, objetos transicionaisavizinham-se <strong>do</strong>s instrumentos (<strong>do</strong> bastão aos instrumentos complexos) mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong>s pela mão e pelocorpo. Este último receberia sua unida<strong>de</strong>, rompida pela linguagem, <strong>de</strong> sua própria imagem vin<strong>do</strong> aoseu encontro? É preciso mais e melhor. Primeiro um espaço acolhe<strong>do</strong>r, o espaço-natureza, cheio <strong>de</strong>“seres” não fragmenta<strong>do</strong>s, as plantas, os animais (à arquitetura <strong>de</strong> reproduzir um tal espaço quan<strong>do</strong>ele falta). Em seguida ações efetivas, práticas, utilizan<strong>do</strong> os materiais e o material disponíveis.Afastamentos sempre reaparecem, são transpostos por metáforas e metonímias. A linguagem <strong>de</strong>témuma função prática, mas não encerra o saber senão mascaran<strong>do</strong>-o [encobrin<strong>do</strong>-o]. O la<strong>do</strong> lúdico <strong>do</strong>espaço lhe escapa e não é <strong>de</strong>scoberto a não ser no jogo (bem entendi<strong>do</strong>) <strong>de</strong>pois na ironia e no humor.Os objetos servem <strong>de</strong> ligação [fixação] a ritmos, pontos <strong>de</strong> referência, centros. Sua fixi<strong>de</strong>z é apenasrelativa. Distâncias se anulam pelo olhar, pela linguagem, pelo gesto, ou aumentam, distanciamentose aproximações, ausências e presenças, ocultações e aparições, realida<strong>de</strong>s e aparências: imbricadascenicamente, se implicam e se explicam sem outra trégua que o repouso. As relações sensíveis nãofiguram como tais as relações sociais; ao contrário, elas as dissimulam. No espaço sensorial-sensual(prático-sensível) as relações propriamente sociais, as relações <strong>de</strong> produção, não as vemos. Ascontornamos. É preciso <strong>de</strong>scriptá-las, mas a <strong>de</strong>codificação não sai senão dificilmente <strong>do</strong> espaçomental para entrar no espaço social. Este espaço sensorial-sensual ten<strong>de</strong> a se instaurar no seio <strong>do</strong>visível-lisível, <strong>de</strong>sconhecen<strong>do</strong> os aspectos todavia <strong>do</strong>minantes da prática social (a saber: o trabalho, adivisão <strong>do</strong> trabalho, a organização <strong>do</strong> trabalho etc.). O espaço sensorial-sensual, lúdico sem o saber167


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006(o jogo se apropria <strong>de</strong>le facilmente) contém as relações sociais; elas aparecem aí como relações <strong>de</strong>oposição e <strong>de</strong> contraste, seqüências enca<strong>de</strong>adas. Pre<strong>do</strong>minam aí muito tempo: a direita e a esquerda,o alto e o baixo, o central e o periférico, o baliza<strong>do</strong> e o orienta<strong>do</strong>, o próximo e o distante, o simétricoe o dissimétrico, o favorável e o <strong>de</strong>sfavorável. Sem esquecer: a paternida<strong>de</strong> e a maternida<strong>de</strong>, oslugares machos e os lugares fêmeas. E seus símbolos. Estabelecer o paradigma <strong>de</strong> um espaço, é oprojeto persegui<strong>do</strong> aqui. Mas não seria necessário tampouco esquecer, na vizinhança <strong>do</strong> corpo,prolongan<strong>do</strong>-o no meio <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> relações e encaminhamentos, os diversos tipos <strong>de</strong> objetos. Entreos quais as ferramentas e instrumentos (a panela, a xícara, a faca, o martelo, a forquilha)prolongan<strong>do</strong>-o segun<strong>do</strong> seus ritmos, <strong>de</strong>pois afastan<strong>do</strong>-se (instrumentos <strong>do</strong> camponês, <strong>do</strong> artesão)constituem zonas <strong>de</strong> espaço. Este espaço social <strong>de</strong>fine-se (também) como lugar e meio da palavra eda escrita, que ora revelam, ora mascaram, ora dizem o verda<strong>de</strong>iro e ora o falso (o falso servin<strong>do</strong> <strong>de</strong>ligação, <strong>de</strong> fun<strong>do</strong>, <strong>de</strong> fundamento ao verda<strong>de</strong>iro). Persegue-se o prazer neste mun<strong>do</strong>; ele procura seuobjeto e o <strong>de</strong>strói no ato <strong>de</strong> fruir. Ele foge. Jogo <strong>de</strong> espelhos: plenitu<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>cepções. Jogo incessante:o Ego se reconhece e se <strong>de</strong>sconhece no Alter-Ego. O mal-entendi<strong>do</strong> serve também <strong>de</strong> ligação àescuta, à espera. As ondas <strong>do</strong> visual e da clarida<strong>de</strong> rebentam sobre o que se escuta e se toca.Este não é ainda nem o espaço da produção nem a produção <strong>do</strong> espaço. O espaço sensorial-sensualnão constitui senão uma camada, um sedimento que persiste na sedimentação, na compenetração <strong>do</strong>sespaços sociais.Um traço geral da produção já foi nota<strong>do</strong>: nos produtos, objeto ou espaço, apaga-se tanto quantopossível os traços da ativida<strong>de</strong> produtora. A marca <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r ou <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res queproduziram? Isto não tem senti<strong>do</strong> e valor a não ser que o “trabalha<strong>do</strong>r” seja também o utiliza<strong>do</strong>r[usa<strong>do</strong>r] e o proprietário: o artesão, o camponês. Os objetos, os acabamos, é sua perfeição, seuacabamento.Esta verda<strong>de</strong> não é nova. Aqui é o lugar <strong>de</strong> reiterá-la. Ela não é sem conseqüências. Esse apagamentofacilita a operação que subtrai ao trabalha<strong>do</strong>r seu produto. É preciso dar-lhe um alcance geralafirman<strong>do</strong> que o apagamento <strong>do</strong>s traços pemite um imenso jogo <strong>de</strong> transferências, <strong>de</strong> substituições?De sorte que essa ocultação permitiria não somente os mitos, mistificações e i<strong>de</strong>ologias, mas oestabelecimento <strong>de</strong> toda <strong>do</strong>minação e <strong>de</strong> to<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r? É extrapolar. No espaço, nada <strong>de</strong>saparece,nenhum ponto, nenhum lugar. Todavia, a ocultação <strong>do</strong> trabalho produtivo no produto tem umaconseqüência importante. O espaco social não coinci<strong>de</strong> com o espaço <strong>do</strong> trabalho social. Por issoeste não é o espaço <strong>do</strong> prazer, <strong>do</strong> não-trabalho. Que um objeto produzi<strong>do</strong> ou trabalha<strong>do</strong> passe <strong>do</strong>espaço <strong>do</strong> trabalho ao espaço social que o envolve, isto só po<strong>de</strong> se efetuar com o apagamento <strong>do</strong>straços <strong>do</strong> trabalho. Assim, como sabemos, as merca<strong>do</strong>rias.168


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006III.12 Numa camada ou região <strong>do</strong> espaço social se <strong>de</strong>senvolve o enca<strong>de</strong>amento <strong>do</strong>s gestos. Nosenti<strong>do</strong> amplo, este conceito <strong>de</strong> “gestual” compreen<strong>de</strong> os gestos <strong>do</strong> trabalho (camponês, artesanal,industrial). No senti<strong>do</strong> preciso e restritivo, ele não compreen<strong>de</strong> os gestos técnicos e os atosprodutivos, mas somente os gestos e atos da vida “civil”, fora das ativida<strong>de</strong>s e lugares especializa<strong>do</strong>s(aqueles <strong>do</strong> trabalho, da guerra, da religião, da justiça, em suma, os gestos institucionais, codifica<strong>do</strong>se localiza<strong>do</strong>s como tais). Em to<strong>do</strong>s os casos, o conjunto <strong>do</strong>s gestos põe em movimento e em ação ocorpo total.Que se represente os corpos (cada corpo) e seu espaço intercorporal <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> um certoequipamento, materiais <strong>do</strong>s quais eles partem (hereditarieda<strong>de</strong>, objetos) e material <strong>do</strong> qual elesdispõem (comportamentos, conditionamentos, estereótipos como se diz). Para esses corpos, diante<strong>de</strong>les, em torno <strong>de</strong>les, o espaço-natureza e o espaço-abstração que a análise po<strong>de</strong> dissociar [quepo<strong>de</strong>m ser dissocia<strong>do</strong>s pela análise], não se separam. Cada um situa seu corpo no seu espaço epercebe o espaço em torno <strong>de</strong> seu corpo. A energia disponível <strong>de</strong> cada um visa a aí se empregar,encontran<strong>do</strong> nos outros corpos, inertes ou vivos, sucessivamente obstáculos, perigos, alianças,recompensas. Cada um age com seus múltiplos pertencimentos e sua dupla constituição inicial: oseixos e planos <strong>de</strong> simetria, que regem os movimentos <strong>do</strong>s braços, das pernas, das mãos, <strong>do</strong>smembros, — as rotações, giros, que regem toda sorte <strong>de</strong> movimentos <strong>do</strong> tronco, da cabeça, emcírculo, em espiral, em “oito” etc. A partir <strong>de</strong>sse material, os gestos implicam os pertencimentos, osgrupos (família, tribo, vila, cida<strong>de</strong> etc.) e a ativida<strong>de</strong>, e também certos materiais: os objetosdisponíveis para essas ativida<strong>de</strong>s, objetos “reais”, pois feitos <strong>de</strong> uma matéria, mas ao mesmo temposimbólicos e carrega<strong>do</strong>s <strong>de</strong> afetivida<strong>de</strong>.A mão? Ela não parece menos complexa, menos “rica” que o olho ou que a linguagem. Ela apalpa,acaricia, apreen<strong>de</strong>, brutaliza, fere, mata. O tocar <strong>de</strong>scobre as matérias. Para a ferramenta, separada danatureza e separan<strong>do</strong> <strong>de</strong>la o que ela alcança, mas que prolonga à sua maneira o corpo e seus ritmos(o martelo, repetitivo linear — o torno <strong>do</strong> oleiro, circular), a mão modifica os materiais. O esforçomuscular coloca em ação energias maciças, freqüentemente enormes, em gestos repetitivos, aqueles<strong>do</strong> trabalho, mas também aqueles <strong>do</strong>s jogos. Quanto à pesquisa <strong>de</strong> uma informação sobre as coisas,pelo contato, a palpação, a carícia, ela utiliza energias finas.O principal material que os gestos sociais utilizam consiste pois em movimentos articula<strong>do</strong>s. Osmembros são articula<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> uma maneira fina e complexa; se se tem em conta <strong>de</strong><strong>do</strong>s, mãos, pulso,braço, o número <strong>de</strong> segmentos é muito eleva<strong>do</strong>.Mais <strong>de</strong> um teórico estabeleceu um corte entre o inarticula<strong>do</strong> e o articula<strong>do</strong>, dissocian<strong>do</strong> natureza ecultura. Opõe-se o inarticula<strong>do</strong> <strong>do</strong>s gritos, <strong>do</strong>s choros, das expressões da <strong>do</strong>r ou <strong>do</strong> prazer, da vidaespontânea e animal, ao caráter articula<strong>do</strong> das palavras, da linguagem e <strong>do</strong> discurso, <strong>do</strong> pensamento,169


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006da consciência clara <strong>de</strong> si, das coisas, <strong>do</strong>s atos. Esquece-se a mediação: os gestos corporais. Eles nãoseriam, antes que as pulsões, enquanto articula<strong>do</strong>s e enca<strong>de</strong>a<strong>do</strong>s, na origem, (caso se queira assimfalar) linguagem? Eles não teriam contribuí<strong>do</strong>, enquanto gestos enca<strong>de</strong>a<strong>do</strong>s no trabalho, mas tambémfora <strong>do</strong> trabalho, para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sta parte <strong>do</strong> cérebro que “articula” as ativida<strong>de</strong>s,linguageiras e gestuais? Haveria, na infância e no corpo da criança, uma gestualida<strong>de</strong> pré-verbal,quer dizer prática (“operatória”) concretamente, primeira relação <strong>do</strong> “sujeito”, a criança, com osobjetos sensíveis. Estes gestos po<strong>de</strong>riam ser classifica<strong>do</strong>s em algumas categorias: <strong>de</strong>struir (antes <strong>de</strong>produzir), <strong>de</strong>slocar, seriar, agrupar (em séries fechadas).Os gestuais os mais refina<strong>do</strong>s, aqueles das danças nos países asiáticos, colocam em ação to<strong>do</strong>s ossegmentos (até a ponta <strong>do</strong>s <strong>de</strong><strong>do</strong>s) atribuin<strong>do</strong>-lhes um simbolismo (cósmico). Os gestuais menoscomplexos não constituem menos conjuntos <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, ou seja, codifica<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>codifica<strong>do</strong>s.Po<strong>de</strong>-se falar <strong>de</strong> “código”, já que o enca<strong>de</strong>amento <strong>do</strong>s gestos é estipula<strong>do</strong>, comporta ritual ecerimonial. Estes conjuntos compreen<strong>de</strong>m, como a linguagem, gestos simbólicos, gestos signos,gestos sinais. O símbolo contém em si o senti<strong>do</strong>; o signo remete <strong>de</strong> um significante a um significa<strong>do</strong>;o sinal evoca uma ação imediata ou retardada [posterior/tardia], agressiva, afetiva, erótica etc. Oespaço é percebi<strong>do</strong> como intervalo separan<strong>do</strong> da ação retardada [posterior/tardia] o gesto que aanuncia, a prepara, a significa. Os gestos se enca<strong>de</strong>iam segun<strong>do</strong> oposições (rápi<strong>do</strong>s ou lentos, rígi<strong>do</strong>sou flexíveis, pacíficos ou violentos) e segun<strong>do</strong> regras rituais (codificadas). É assim que elesconstituem uma linguagem na qual o expressivo (<strong>do</strong> corpo) e o significativo (para os outros, corpos econsciências) não se separam mais que a natureza e a cultura, o abstrato e o prático. O mo<strong>do</strong> <strong>de</strong>andar cheio <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> quer que os eixos e planos <strong>de</strong> simetria regulem os movimentos <strong>do</strong> corpo,que se <strong>de</strong>sloquem conservan<strong>do</strong>-os: postura ereta, gestos ditos harmoniosos. Em contrapartida, ahumilda<strong>de</strong> e a humilhação rebaixam, colam o corpo ao nível <strong>do</strong> solo, querem que o venci<strong>do</strong> seprosterne, que o crente se ajoelhe, que o culpável baixe a cabeça e beije a poeira. A clemência, aindulgência permitem compromissos: inclinacão, reverência.É evi<strong>de</strong>nte que esses códigos pertencem a uma socieda<strong>de</strong>; eles estipulam o pertencimento. Pertencera tal socieda<strong>de</strong>, é conhecer e utilizar os códigos, aqueles da poli<strong>de</strong>z, da cortesia, da afeição, dasnegociações, das transações comerciais e <strong>do</strong> negócio, da <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> hostilida<strong>de</strong> (os códigos daaliança completan<strong>do</strong>-se pelos seus apoios, aqueles da insolência, da injúria, da hostilida<strong>de</strong><strong>de</strong>clarada).No gestual 116 , os lugares e o espaço têm uma importância que é preciso sublinhar. O alto e o baixotêm um senti<strong>do</strong>, ou seja, o solo, os pés, os membros inferiores e a cabeça, o que a ultrapassa [coroa]:116 É preciso escrever “o gestual” ou “a gesticulação” [“la gestuelle”] ? Um e outro, com uma certa diferença <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>.170


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006cabelos, perucas, crinas, chapéu, guarda-sol etc. Assim como a direita e a esquerda (esta afetada noOci<strong>de</strong>nte por um signo e um senti<strong>do</strong> negros). As vozes, os cantos acentuam esses simbolismos eesses senti<strong>do</strong>s: graves ou agu<strong>do</strong>s, altos ou baixos, fortes ou fracos.O gestual encarna a i<strong>de</strong>ologia e a põe em comunicação [torna a ligá-la] com a prática. Com ele, ai<strong>de</strong>ologia não fica abstrata e realiza atos através <strong>do</strong>s gestos (o punho ergui<strong>do</strong>, o sinal da cruz). Ogestual torna a ligar as representações <strong>do</strong> espaço e os espaços <strong>de</strong> representação, pelo menos emcertos casos privilegia<strong>do</strong>s: os gestos litúrgicos, pelos quais os padres evocam, imitan<strong>do</strong>-os numespaço consagra<strong>do</strong>, os gestos divinos, cria<strong>do</strong>res <strong>do</strong> universo. Por outro la<strong>do</strong>, os gestos têm umarelação com os objetos que povoam o espaço: os móveis, as vestimentas, os instrumentos (<strong>de</strong>cozinha, <strong>de</strong> trabalho), os jogos, os lugares <strong>de</strong> habitá-lo. O que mostra sua complexida<strong>de</strong>.Haveria no gestual uma pluralida<strong>de</strong> quase in<strong>de</strong>finida, portanto in<strong>de</strong>finível, <strong>de</strong> códigos? Des<strong>de</strong> já esteponto escabroso po<strong>de</strong> ser elucida<strong>do</strong>. A multiplicação <strong>do</strong>s códigos entra nas <strong>de</strong>terminaçõescategóricas, por exemplo, os gestos cotidianos e aqueles da festa, os ritos da amiza<strong>de</strong> e aqueles dahostilida<strong>de</strong>, o microgestual cotidiano e o macrogestual, aquele das multidões reunidas. Não hátambém gestos, signos ou sinais , permitin<strong>do</strong> passar <strong>de</strong> um código ou subcódigo a um outro,interrompen<strong>do</strong> um para passar ao outro? Certamente.Certamente seria necessário falar <strong>de</strong> “subcódigos” e <strong>de</strong> códigos gerais — o que permitiria, caso sequeira [pretenda], classificá-los por espécies e gêneros — no lugar <strong>de</strong> multiplicar in<strong>de</strong>finidamenteestas entida<strong>de</strong>s, os códigos. Que se aplique, portanto, a esses conceitos relativamente novos(codificação, <strong>de</strong>codificação, mensagens e <strong>de</strong>ciframento) o princípio da navalha <strong>de</strong> Occam 117 ! Mas,sobretu<strong>do</strong>, que se evite pensar ou imaginar um código <strong>do</strong> espaço que seria tão-somente umsubcódigo <strong>do</strong> discurso, que alinharia asim o espaço construí<strong>do</strong> ao discurso ou a uma modalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>discurso. O estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s gestos o interdita.Essas consi<strong>de</strong>rações e propósitos não têm por objetivo a racionalização <strong>do</strong>s gestos, mas a elucidaçãoda relação entre o gestual e o espaço. Por que os povos <strong>do</strong> Oriente vivem ao rés-<strong>do</strong>-chão, commóveis baixos, acocoran<strong>do</strong>-se em repouso? Por que o Oci<strong>de</strong>nte tem móveis rígi<strong>do</strong>s, com ângulosretos, impon<strong>do</strong> atitu<strong>de</strong>s contraídas? Por que a fronteira que separa essas atitu<strong>de</strong>s e esses códigos (nãoformula<strong>do</strong>s) coinci<strong>de</strong> com os limites religiosos e políticos? A diversida<strong>de</strong> permanece tãoincompreensível quanto aquela das línguas. Talvez o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s espaços sociais po<strong>de</strong>rá respon<strong>de</strong>r aessas questões.Os gestos organiza<strong>do</strong>s, portanto ritualiza<strong>do</strong>s e codifica<strong>do</strong>s, não se <strong>de</strong>slocam somente no espaço“físico”, aquele <strong>do</strong>s corpos. Eles engendram espaços, produzi<strong>do</strong>s pelo e para seus gestos. Ao117 Fazer nota explicativa.171


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong>stes correspon<strong>de</strong>m a articulação e o enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> segmentos espaciais bem<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s, segmentos que se repetem mas cuja repetição engendra o novo. Assim, o claustro e opasso <strong>do</strong> grave passeio monástico. Os espaços assim produzi<strong>do</strong>s são freqüentemente polifuncionais(a ágora), ainda que certos gestos severamente prescritos (aqueles <strong>do</strong> esporte, aqueles da guerra)tenham muito ce<strong>do</strong> produzi<strong>do</strong> lugares especifica<strong>do</strong>s: os estádios, a praça <strong>de</strong> armas, o acampamentomilitar etc. Muitos <strong>de</strong>sses espaços sociais são ritma<strong>do</strong>s pelos gestos que aí se produzem e que osproduzem (medi<strong>do</strong>s em passos, em côva<strong>do</strong>s, em pés, em palmas, em polegadas etc.). O microgestualcotidiano engendra espaços (o passeio, o corre<strong>do</strong>r, o lugar on<strong>de</strong> comemos), mas também omacrogestual o mais soleniza<strong>do</strong> (o <strong>de</strong>ambulatório das igrejas cristãs, o pódio). Quan<strong>do</strong> se produz oencontro entre um espaço gestual e uma concepção <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> que possui sua simbólica, então surgeuma gran<strong>de</strong> criação, o claustro, por exemplo. Então, acaso: um espaço gestual fixa ao solo umespaço mental, aquele da contemplação e da abstração teológicas; ele lhe permite exprimir-se,simbolizar-se e entrar numa prática, aquela <strong>de</strong> um grupo bem <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> no seio <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> bem<strong>de</strong>finida. Num tal espaço, uma vida que oscila entre a autocontemplação <strong>de</strong> sua finitu<strong>de</strong> e acontemplação <strong>de</strong> um infinito trancen<strong>de</strong>nte experimenta uma felicida<strong>de</strong> feita <strong>de</strong> apaziguamento e <strong>de</strong>insaciabilida<strong>de</strong> aceita. Espaço <strong>do</strong>s contemplativos, lugar <strong>de</strong> percurso e <strong>de</strong> reunião, o claustro liga auma teologia <strong>do</strong> infinito um lugar finito e especifica<strong>do</strong>, particulariza<strong>do</strong> socialmente, semespecialização restritiva, mas com um pertencimento <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>, a uma or<strong>de</strong>m, a uma regra. Ascolunas, os capitéis, as esculturas, esses diferenciais semânticos, escan<strong>de</strong>m [<strong>de</strong>marcam] um percurso<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pelos passos <strong>do</strong>s contemplativos, no momento <strong>de</strong> um repouso ele mesmo <strong>de</strong>vota<strong>do</strong> àcontemplação.Se os gestos da troca “espiritual”, aquela <strong>do</strong>s símbolos e <strong>do</strong>s signos, com sua alegria própria,produziram espaços, os gestos da troca material não foram menos produtivos. Negociações,transações comerciais, negócios, tiveram necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espaços apropria<strong>do</strong>s. No <strong>de</strong>correr <strong>do</strong>stempos, os merca<strong>do</strong>res constituíram grupos ativos, originais, produtivos à sua maneira. Hoje, omun<strong>do</strong> da merca<strong>do</strong>ria, estendi<strong>do</strong> ao planeta com o capital, tomou um aspecto [velocida<strong>de</strong>]opressivo/a; o incriminamos; atribuímos-lhe às vezes to<strong>do</strong>s os males. Não se <strong>de</strong>ve esquecer que osmerca<strong>do</strong>res e a merca<strong>do</strong>ria, durante séculos, em relação aos constrangimentos <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>santigas, socieda<strong>de</strong>s agrárias e cida<strong>de</strong>s políticas, simbolizaram a liberda<strong>de</strong>, a esperança, o horizonte.Eles trouxeram a riqueza e as provisões indispensáveis: cereais, especiarias, teci<strong>do</strong>s. Então“comércio” significava comunicação; a troca <strong>de</strong> bens era inseparável da troca <strong>de</strong> idéias e prazeres, oque <strong>de</strong>ixou mais traços no Oriente que no Oci<strong>de</strong>nte (europeu ou americano). Aos espaços iniciais damerca<strong>do</strong>ria, logo que os merca<strong>do</strong>res e seus gestos engendraram seus lugares, não faltam beleza: o172


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006pórtico, a basílica, o merca<strong>do</strong> coberto. Os espaços da volúpia não seriam mais raros que aqueles <strong>do</strong>po<strong>de</strong>r e <strong>do</strong> saber ou da sabe<strong>do</strong>ria e <strong>do</strong> comércio?As “proxemias”, quer se trate <strong>de</strong> crianças ou <strong>de</strong> adultos, <strong>de</strong> casais ou <strong>de</strong> famílias, <strong>de</strong> grupos ou <strong>de</strong>multidões, não são suficientes para explicar essas criações múltiplas. O conceito antropológico <strong>de</strong>“proxemia” (Hull), <strong>de</strong> vizinhança, é restritivo (redutor) em relação ao <strong>de</strong> “gestual”.III.13 As distinções estruturais <strong>de</strong> oposições binárias, <strong>de</strong> níveis e <strong>de</strong> dimensões não po<strong>de</strong>m fazeresquecer os gran<strong>de</strong>s movimentos dialéticos que atravessam a mundialida<strong>de</strong>-totalida<strong>de</strong> e contribuempara <strong>de</strong>fini-la.Primeiro momento: as coisas (objetos) no espaço. A produção ainda respeita a natureza, proce<strong>de</strong>levantan<strong>do</strong> antecipadamente os fragmentos <strong>do</strong> espaço, utiliza-os com seu conteú<strong>do</strong>. A agricultura<strong>do</strong>mina, as socieda<strong>de</strong>s produzem palácios, monumentos, casas camponesas, obras <strong>de</strong> arte. O temponão se separa <strong>do</strong> espaço. O trabalho humano operan<strong>do</strong> sobre a natureza a <strong>de</strong>ssacraliza, mas concentrao caráter sagra<strong>do</strong> <strong>do</strong>s elementos nos edifícios religiosos e políticos; a forma (<strong>do</strong> pensamento, daação) não se separa <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>.Segun<strong>do</strong> momento: <strong>de</strong>ssa pré-história saem certas socieda<strong>de</strong>s que passam ao histórico: à acumulação(<strong>de</strong> riquezas, <strong>de</strong> conhecimentos, <strong>de</strong> técnicas), portanto à produção para a troca, <strong>de</strong>pois para odinheiro e o capital. Então o artifício que toma <strong>de</strong> início o aspecto da arte leva a melhor sobre anatureza, a forma e o formal se separam <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>; a abstração e os signos como tais se erigem emverda<strong>de</strong> primeira e última; por conseqüência, a reflexão filosófica e científica concebe o espaço semas coisas e objetos, acima <strong>de</strong>les, como média e meio. Fora das coisas, o espaço toma<strong>do</strong> como formaaparece na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> substância (espaço cartesiano) ou, ao contrário, como “puro a priori” (Kant).Espaço e tempo se dissociam, mas o primeiro se subordina ao segun<strong>do</strong> na práxis da acumulação.Terceiro momento: o espaço e as coisas, relativiza<strong>do</strong>s, se reencontram, o pensamento <strong>do</strong> espaço aírestitui o conteú<strong>do</strong> e, <strong>de</strong> início, o tempo. Com efeito, o espaço “em si” é inapreensível, impensável,incognoscível. O tempo “em si”, o tempo absoluto não é menos incognoscível. Mas, precisamente, otempo se conhece e se realiza no espaço, socialmente por uma prática espacial. O espaço, <strong>do</strong> mesmomo<strong>do</strong>, se conhece num tempo e por um tempo. A unida<strong>de</strong> na diferença, o mesmo no outro (ereciprocamente) se concretizam. Mas através <strong>do</strong> capitalismo e sua práxis, surge um problemaconcernin<strong>do</strong> as relações <strong>do</strong> espaço e <strong>do</strong> tempo. Neste mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção começa-se por produzircoisas, e por “investir” em lugares. Depois, a reprodução das relações sociais cria [traz/acarreta]problema, entra na prática modifican<strong>do</strong>-a. E eis que é preciso reproduzir também a natureza e<strong>do</strong>minar o espaço produzin<strong>do</strong>-o à escala planetária (produzin<strong>do</strong> a esta escala o espaço político <strong>do</strong>capitalismo), tu<strong>do</strong> reduzin<strong>do</strong> o tempo, para interditar a produção <strong>de</strong> novas relações. Não se aproximaum limiar on<strong>de</strong> a reprodução cessará <strong>de</strong> impedir a produção não <strong>de</strong> coisas mas <strong>de</strong> novas relações?173


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006Em que consistirão tais relações? Talvez na unida<strong>de</strong> conhecida e nova ao mesmo tempo <strong>do</strong> espaço e<strong>do</strong> tempo, unida<strong>de</strong> há muito tempo <strong>de</strong>sconhecida, dissociada, substituída pelo privilégio atribuí<strong>do</strong>irrefletidamente [impensadamente/levianamente] a um contra o outro.Este movimento parece abstrato. Com efeito! Aqui, neste momento, como na obra <strong>de</strong> Marx, ou numaparte <strong>de</strong>sta obra, uma reflexão sobre o virtual guia o conhecimento <strong>do</strong> real (atual) e reage paraesclarecê-los sobre os antece<strong>de</strong>ntes e condições. Neste “momento”, a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> apenas acaba <strong>de</strong>entrar, com suas contradições. Com um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> pensar análogo, Marx vislumbrou (no capítuloinédito e recentemente publica<strong>do</strong> d’O Capital) a extensão <strong>do</strong> “mun<strong>do</strong> da merca<strong>do</strong>ria” e <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>mundial, com suas implicações e conseqüências. Isto que não era em seu tempo senão umavirtualida<strong>de</strong> anunciada pela história (da acumulação).Esse mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> pensar ou méto<strong>do</strong> consiste numa extrapolação? Não, mas num pensamento no limite,levan<strong>do</strong> ao extremo uma hipótese. Produzir , no limite, hoje, não é mais produzir isto ou aquilo,coisas ou obras, é produzir espaço. Isto que reage sobre o conhecimento <strong>do</strong>s antece<strong>de</strong>ntes, forças eformas produtivas. Este procedimento consiste portanto numa espécie <strong>de</strong> “forcing”. Po<strong>de</strong>-se formularhipóteses extremas. A merca<strong>do</strong>ria (o merca<strong>do</strong> mundial) ocupará o espaço inteiro. O valor <strong>de</strong> trocaimporá a lei <strong>do</strong> valor ao planeta inteiro. Num senti<strong>do</strong>, a história mundial não será senão aquela damerca<strong>do</strong>ria? A hipótese levada ao extremo permite <strong>de</strong>scobrir os obstáculos e formular as objeções.Do mesmo mo<strong>do</strong> no que concerne o espaço. No limite, o Esta<strong>do</strong> produzirá seu espaço, o absolutopolítico? Veremos o <strong>de</strong>saparecimento no e pelo merca<strong>do</strong> mundial <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>-Nação, e <strong>de</strong> seu espaçopolítico absoluto? Por auto<strong>de</strong>struição? Por superação <strong>do</strong> <strong>de</strong>finhamento? Um ou outro? Um e outro?III.14 Na [Sob a] monumentalida<strong>de</strong> se reuniram [concentraram], durante milênios, to<strong>do</strong>s osmomentos prece<strong>de</strong>ntemente discerni<strong>do</strong>s da espacialida<strong>de</strong>: o percebi<strong>do</strong>, o concebi<strong>do</strong> e o vivi<strong>do</strong> – asrepresentações <strong>do</strong> espaço, os espaços <strong>de</strong> representação – os espaços próprios a cada senti<strong>do</strong>, <strong>do</strong>olfato à palavra – os gestos e os símbolos. O espaço monumental oferecia a cada membro <strong>de</strong> umasocieda<strong>de</strong> a imagem <strong>de</strong> seu pertencimento e <strong>de</strong> sua fisionomia [rosto, aspecto] social, espelhocoletivo mais “verda<strong>de</strong>iro” que um espelho individualiza<strong>do</strong>. O efeito <strong>de</strong> reconhecimento vai aindamais longe que “o efeito <strong>de</strong> espelho” <strong>do</strong>s psicanalistas. Desse espaço social, reunin<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s osmomentos e conferin<strong>do</strong> a cada um seu lugar, cada um tinha sua parte e to<strong>do</strong>s a tinham por inteiro, nointerior, bem entendi<strong>do</strong>, <strong>de</strong> uma Potência e <strong>de</strong> uma Sabe<strong>do</strong>ria aceitas. O monumento realizava um“consenso”: efetivamente, tornan<strong>do</strong>-o prático e concreto. O repressivo e o exaltante pouco podiam<strong>de</strong>le se <strong>de</strong>sembaraçar [distinguir, <strong>de</strong>senredar, discernir]; mais exatamente, nele o repressivo semetamorfoseava em exaltação. Analise o espaço <strong>de</strong> uma catedral. As codificações operadas pela174


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006semiologia, que busca classificar as representações, as impressões e evocações 118 (o código <strong>do</strong>conhecer, o código <strong>do</strong>s sentimentos pessoais, o código simbólico, o código hermenêutico) nãoesgotam a monumentalida<strong>de</strong>. Longe disso: o residual, o irredutível, o que não entra nasclassificações e codificações posteriores à produção é aqui, como sempre, o essencial o maisprecioso: o diamante no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> crisol. O uso <strong>de</strong>sse espaço monumental, a catedral, implica suaresposta a todas as questões que assaltam aquele que cruza o umbral. Ele ouve seus próprios passos,ele escuta os ruí<strong>do</strong>s, os cantos; ele respira o o<strong>do</strong>r <strong>do</strong> incenso; ele prova um mun<strong>do</strong>, aquele da culpa[falta] e da re<strong>de</strong>nção; ele recebe uma i<strong>de</strong>ologia; ele contempla os símbolos os <strong>de</strong>cifran<strong>do</strong>; eleexperimenta um ser total num espaço total, a partir <strong>de</strong> seu corpo. Para <strong>de</strong>struir uma socieda<strong>de</strong>, comodisso se serviram os conquista<strong>do</strong>res e revolucionários <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os tempos? Eles <strong>de</strong>struíam osmonumentos, pelo fogo ou pela <strong>de</strong>molição. Às vezes, eles chegavam a <strong>de</strong>sviá-los. Aqui comoalhures, o uso vai mais longe e mais profun<strong>do</strong> que os códigos da troca.Os mais belos monumentos se impõem por seu aspecto durável; uma muralha ciclopeana alcança abeleza monumental porque ela parece eterna: escapar ao tempo. A monumentalida<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong> amorte, e por conseguinte o que alguns chamam <strong>de</strong> “pulsão <strong>de</strong> morte”. Aparência e realida<strong>de</strong>, essatranscendência entra no monumento como seu fundamento irredutível; o aspecto intemporal suplantaa angústia, mesmo no monumento funerário, ou sobretu<strong>do</strong> nele. Cúmulo da arte: a forma nega osenti<strong>do</strong>, sepultan<strong>do</strong> a própria morte. No Tadj-Mahal, o túmulo da sultana se enfeita <strong>de</strong> graça, <strong>de</strong>alvura, <strong>de</strong> florações. Tanto como um poema ou uma tragédia, um monumento metamorfoseia emesplen<strong>do</strong>r o pavor diante <strong>do</strong> tempo, a angústia frente à morte.Contu<strong>do</strong>, a “durabilida<strong>de</strong>” monumental não po<strong>de</strong> iludir completamente. Em termos ditos mo<strong>de</strong>rnos,ela não tem jamais credibilida<strong>de</strong> perfeita. Ela substitui a aparência realizada materialmente àrealida<strong>de</strong> brutal assim modificada [convertida] em aparência. O durável? Não é senão a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>durar: a imperecibilida<strong>de</strong> monumental carrega uma marca: a da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Só o Querer, emsuas formas as mais elaboradas: querer <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong>, po<strong>de</strong> suplantar a morte ou crerque ele a suplanta. O saber fracassa, recuan<strong>do</strong> diante <strong>do</strong> abismo. Pelo monumento e pela intervenção<strong>do</strong> arquiteto-<strong>de</strong>miurgo, o espaço <strong>de</strong> morte se nega, se transfigura em espaço vivo, prolongamento <strong>do</strong>corpo, mas ao serviço <strong>do</strong> que reúne o religioso, o po<strong>de</strong>r (político), o saber.Para <strong>de</strong>finir o espaço monumental 119 , é preciso limitar a disciplina (codificação) semiológica e aexplicação simbólica. Limitar não quer dizer “recusar” ou “rejeitar”. Não que o monumento nãoresulte <strong>de</strong> uma prática significante, <strong>de</strong> uma maneira <strong>de</strong> estabelecer um senti<strong>do</strong>, mas porque ele não se118 Cf. Roland Barthes, S/Z, Éditions du Seuil, 1970.175


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006reduz nem a uma linguagem ou discurso, nem às categorias e conceitos elabora<strong>do</strong>s para o estu<strong>do</strong> dalinguagem. O caso da obra espacial (monumento, obra [ouvrage] da arquitetura) alcança umacomplexida<strong>de</strong> outra que a <strong>de</strong> um texto, prosa, ou poesia. Trata-se (diferença já indicada) <strong>de</strong> textura enão <strong>de</strong> textos. De uma textura, já sabemos que consiste num espaço geralmente bastante vastocoberto <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s e tramas, cujos monumentos compõem os pontos fortes, pontos <strong>de</strong> amarração[ligação] e sutura; os atos da prática social se dizem, mas não se explicam pelo discurso; eles seefetuam e não se lêem. Como uma obra musical, uma obra monumental não tem um significa<strong>do</strong> (ousignifica<strong>do</strong>s), mas um horizonte <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s: uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>finida e in<strong>de</strong>finida, umahierarquia mutável [variável, inconstante, cambiante] tal ou qual senti<strong>do</strong> passan<strong>do</strong> ao primeiro planodurante um momento, por e para uma ação. O funcionamento social e político <strong>de</strong> uma obramonumental atravessa [cruza] os diversos “sistemas” e “subsistemas”, códigos e subcódigos queconstituem e instituem essa socieda<strong>de</strong>. Ele extravasa os códigos e subcódigos, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> assim <strong>de</strong>uma sobrecodificação [supracodificação, supercodificação] porque ele ten<strong>de</strong> para a presençaapropriante da totalida<strong>de</strong>. Se há na prática social traços da violência e da morte, da negativida<strong>de</strong> e daagressivida<strong>de</strong>, a obra monumental os eclipsa ao substituí-los pela força tranqüila e a certeza queintegram a violência e o pavor. Assim o momento (elemento) mortal <strong>do</strong> signo <strong>de</strong>saparecemomentaneamente no espaço monumental. Na e pela obra no espaço, a prática social suplanta oslimites <strong>de</strong> outras “práticas significantes”, <strong>de</strong> outras artes, aí incluí<strong>do</strong>s os textos ditos literários; umconsenso, um acor<strong>do</strong> profun<strong>do</strong> se realiza. Um teatro grego supõe a tragédia e a comédia, portanto, apresença <strong>do</strong> povo da cida<strong>de</strong> [cité] e seu acor<strong>do</strong> com seus heróis e <strong>de</strong>uses. No espaço teatral, amúsica, os coros, as máscaras, as arquibancadas convergem com a linguagem e os atores. Um atoespacial suplanta (momentaneamente) os conflitos mesmo se ele não os resolve; ele permite apassagem da inquietação cotidiana ao gozo [júbilo] coletivo.Uma reviravolta começa quan<strong>do</strong> o monumento per<strong>de</strong> seu prestígio ou não o recupera senão pelaopressão e pela repressão evi<strong>de</strong>ntes. O edifício o arrasta [arrebata], com suas funções, quan<strong>do</strong> osujeito (a cida<strong>de</strong>, o povo) se dispersa; ao mesmo tempo, o habitat leva a melhor sobre o habitar nacida<strong>de</strong> [cité], no seio <strong>do</strong> povo. O edifício começa pelos entrepostos, as casernas, os hangares, ascasas <strong>de</strong> relação [casas <strong>de</strong> comércio]. O edifício tem uma função, uma forma, uma estrutura, no lugar<strong>de</strong> reunir to<strong>do</strong>s os momentos (formais, funcionais, estruturais) da prática social. Então, a contextura,o teci<strong>do</strong> que se esgarça, quer dizer as ruas, os subterrâneos, as periferias, engendram a violência no119Não se trata pois [logo, por conseguinte, então, enfim, afinal] <strong>do</strong> espaço arquitetural toma<strong>do</strong> como <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> umaprofissão especializada, no interior da divisão <strong>do</strong> trabalho.176


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006lugar <strong>do</strong> acor<strong>do</strong>, <strong>do</strong> fato [por]que os lugares, formas e funções, não são mais reuni<strong>do</strong>s e apropria<strong>do</strong>spelo centro monumental. Então, o espaço inteiro se carrega <strong>de</strong> violência eruptiva.A relação <strong>de</strong> forças entre monumento e edifício mu<strong>do</strong>u. O edifício tem a mesma ligação com omonumental que a vida cotidiana com a festa, que o produto com a obra, que o vivi<strong>do</strong> com opercebi<strong>do</strong>, que o cimento com a pedra etc. Aqui se esboça um novo movimento dialético, tão vastoquanto os prece<strong>de</strong>ntes. Como transgredir e suplantar a contradição entre o edifício e o monumento?Como levar mais longe o movimento que <strong>de</strong>struiu a monumentalida<strong>de</strong> e po<strong>de</strong>ria restituí-la, no seiomesmo <strong>do</strong>s edifícios, numa unida<strong>de</strong> reproduzida a um nível mais eleva<strong>do</strong>? Na falta <strong>de</strong> uma talsuperação dialética, a situação estagna na inteiração grosseira e na mistura <strong>de</strong> “momentos”, o caosespacial. O edifício, com as habitações, recebe os signos <strong>do</strong> monumento: a fachada, <strong>de</strong> início, <strong>de</strong>poisa organização interna. A habitação da classe abastada se “socializa” superficialmente: estruturas <strong>de</strong>acolhimento [recepção], bares, cantos <strong>de</strong> encontro e <strong>de</strong> erotismo (divãs etc.) imitan<strong>do</strong> <strong>de</strong> longe opalácio e o hotel aristocráticos. Enquanto a cida<strong>de</strong> (estilhaçada) se privatiza não menossuperficialmente: mobiliário urbano, “<strong>de</strong>sign”, elaboração artificial <strong>de</strong> ambientes. Não se trata mais<strong>de</strong> um movimento dialético a três termos que resolve uma contradição e supera “criativamente” umasituação conflitual. Trata-se <strong>de</strong> uma oposição estagnante on<strong>de</strong> os termos se <strong>de</strong>frontam “face a face”,significativamente, <strong>de</strong>pois se batem, se misturam na confusão.III.15 Isso não esgota, longe disso, a noção <strong>de</strong> monumento. Insistiremos sobre os la<strong>do</strong>s negativos <strong>de</strong>sua <strong>de</strong>finição, para afastar alguns erros. O monumento não po<strong>de</strong> ser concebi<strong>do</strong> nem como coleção <strong>de</strong>símbolos (ainda que to<strong>do</strong> monumento suporte símbolos, às vezes arcaicos e incompreensíveis), nemcomo enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> signos (ainda que cada conjunto monumental se componha <strong>de</strong> signos). Omonumento não é nem um objeto nem uma soma <strong>de</strong> objetos diversos, ainda que sua “objetalida<strong>de</strong>”, aposição <strong>de</strong> um objeto social, se lembre a cada instante pela brutalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s materiais e <strong>do</strong>s volumes,ou, ao contrário, por sua suavida<strong>de</strong>. Não se trata nem <strong>de</strong> uma escultura, nem <strong>de</strong> uma figura, nem <strong>de</strong>um resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> procedimentos materiais. A oposição “<strong>de</strong>ntro-fora”, indispensável e marcada pelosumbrais, as portas, os enquadramentos é frequentemente subestimada, mas não basta para <strong>de</strong>finir oespaço monumental. Este se <strong>de</strong>termina pelo que nele po<strong>de</strong> se passar e consequentemente pelo quenão po<strong>de</strong> e não <strong>de</strong>ve nele acontecer (o prescrito e o proscrito, a cena e a obscena). O vazio se revelacheio: o santuário, o “corpo” <strong>de</strong> uma catedral, a nave. O cheio po<strong>de</strong> se inverter num vazio, quaseheterotópico, num lugar: a abóbada, a cúpula. Assim, o Tadj-Mahal joga sobre a inversão <strong>de</strong>contornos e curvas cheias num vazio dramático. Os movimentos acústicos, gestuais e rituais, oselementos agrupa<strong>do</strong>s em vastas unida<strong>de</strong>s cerimoniais, as rupturas que se abrem em direção aoilimita<strong>do</strong>, as significações enca<strong>de</strong>adas, se organizam em um to<strong>do</strong>.177


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006O nível afetivo, portanto corporal, portanto liga<strong>do</strong> às simetrias e ritmos, se transpõe em“proprieda<strong>de</strong>” <strong>do</strong> espaço monumental, em símbolos inerentes a um conjunto político-religioso amaior parte das vezes, símbolos coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s. Uma or<strong>de</strong>nação constrange<strong>do</strong>ra reparte para o uso <strong>do</strong>espaço as componentes, as <strong>do</strong> primeiro nível (afetivo, corporal, vivi<strong>do</strong> e fala<strong>do</strong>), as <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> nível(percebi<strong>do</strong>: as significações sócio-políticas) e <strong>do</strong> terceiro (concebi<strong>do</strong>: o escrito, os conhecimentosreunin<strong>do</strong> no “consenso” os membros da socieda<strong>de</strong> e lhes conferin<strong>do</strong> o estatuto <strong>de</strong> “sujeito”). Oespaço monumental permite a transição perpétua da palavra privada (conversas, conversações) àpalavra pública, aquela <strong>do</strong> discurso, pregação, sermão, palavra teatralizada.Na medida em que através <strong>de</strong> um poema o poeta dita uma maneira <strong>de</strong> viver (<strong>de</strong> amar, <strong>de</strong> sentir, <strong>de</strong>pensar, <strong>de</strong> gozar ou <strong>de</strong> sofrer) o espaço monumental tem algumas analogias com a entrada e a estadana poesia. Ele se compreen<strong>de</strong>, todavia, melhor por analogias com os textos <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s ao teatro,diálogos portanto, que com poesias ou textos literários, monólogos.O espaço monumental não tem senão qualida<strong>de</strong>s plásticas, para o olhar. Ele contém qualida<strong>de</strong>sacústicas, e se não as tem, alguma coisa falta à monumentalida<strong>de</strong>. O próprio silêncio, num edifícioreligioso, tem sua musicalida<strong>de</strong>. Num claustro, numa catedral, o espaço se me<strong>de</strong> pela orelha; osruí<strong>do</strong>s, as vozes, os cantos se repercutem; um jogo análogo ao <strong>do</strong>s sons fundamentais e <strong>do</strong>s timbrespovoa esse espaço. Análogo também ao jogo da voz que retoma um texto escrito para o dizerreaniman<strong>do</strong>-o. O volume arquitetural assegura a correspondência entre os ritmos que o ocupam(marchas, gestos rituais, procissões e <strong>de</strong>sfiles etc.) e sua ressonância musical. É assim, a esse nível,no invisível, que os corpos se reencontram. Ali on<strong>de</strong> não é o eco que repercute as presenças numespelho acústico, um objeto recebe esse papel <strong>de</strong> uma mediação entre o inerte e o vivo: sinos esinetas (agita<strong>do</strong>s pelo vento que eles captam), jatos ou fluxos d’água, às vezes pássaros ou animaiscativos.Po<strong>de</strong>r-se-ia reencontrar no espaço monumental os <strong>do</strong>is processos analisa<strong>do</strong>s por alguns psicanalistase lingüistas como processos primários:a) o <strong>de</strong>slocamento, portanto a metonímia, a passagem da parte ao to<strong>do</strong>, a contigüida<strong>de</strong>;b) a con<strong>de</strong>nsação, portanto a substituição, a metáfora, a similarida<strong>de</strong>?Sem dúvida, até um certo ponto. O espaço social, aquele <strong>de</strong> uma prática espacial, aquele das relaçõessociais <strong>de</strong> produção, <strong>do</strong> trabalho e <strong>do</strong> não trabalho, relações mais ou menos codificadas, esse espaçosocial se con<strong>de</strong>nsa no espaço monumental. O conceito <strong>de</strong> “con<strong>de</strong>nsa<strong>do</strong>r social”, enuncia<strong>do</strong> pelosarquitetos russos entre 1920 e 1930, tem um alcance geral. As “proprieda<strong>de</strong>s” <strong>de</strong> uma texturaespacial se concentram ao re<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um ponto: santuário, trono, ca<strong>de</strong>ira [banco, assento], poltronapresi<strong>de</strong>ncial etc. Assim, cada espaço monumental torna-se o suporte metafórico e quase metafísico<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, no curso <strong>de</strong> um jogo <strong>de</strong> substituições, o religioso e o político trocam178


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006simbolicamente (cerimonialmente) seus atributos, aqueles <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r; então, a força <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong> e osagra<strong>do</strong> da força se transferem um sobre o outro e se reforçam igualmente. Ao enca<strong>de</strong>amentohorizontal <strong>de</strong> lugares <strong>do</strong> espaço se substitui então uma superposição vertical uma hierarquia quesegue caminhos para ace<strong>de</strong>r ao lugar <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, à disposição <strong>de</strong>sses lugares. Cada objeto antecipa<strong>do</strong>na prática cotidiana – um vaso, um assento, uma vestimenta - sofre um <strong>de</strong>slocamento que otransforma no transferente [transferi<strong>do</strong>r] no espaço monumental on<strong>de</strong> o vaso torna-se sagra<strong>do</strong>, avestimenta cerimonial, o assento aquele da autorida<strong>de</strong>. A famosa barra que separa, <strong>de</strong>pois da escolasaussuriana, o significante <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> seu objeto, se transporta para ali on<strong>de</strong> aencomenda social o quer, para separar o sagra<strong>do</strong> <strong>do</strong> profano, para reprimir os gestos que escapam àsprescrições <strong>do</strong> espaço monumental: para <strong>de</strong>scartar o profano.Sim, mas tu<strong>do</strong> isso não explica gran<strong>de</strong> coisa! Isso vale para toda “monumentalida<strong>de</strong>” e não diz qualpo<strong>de</strong>r opera. O obsceno é uma categoria geral da prática social e não <strong>do</strong>s processos significantescomo tais: a exclusão da cena se diz silenciosamente pelo espaço.III.16 A complexida<strong>de</strong> <strong>do</strong> espaço social (aqui <strong>do</strong> espaço monumental) se manifesta à análiseliberan<strong>do</strong> e <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bran<strong>do</strong> diferenças; o que parecia simples revela suas complicações. Estas não sesituam nem no espaço objetivo geométrico (quadra<strong>do</strong>s, retângulos, círculos, curvas, espirais), nemno espaço mental (inerências e coerências lógicas, ligações <strong>de</strong> predica<strong>do</strong>s a substantivos etc.). Tratasetambém e sobretu<strong>do</strong> <strong>de</strong>sses níveis, camadas e sedimentos da percepção, da representação, daprática espacial, que se supõem, que se propõem, se superpõem. Perceber a entrada <strong>de</strong> ummonumento, ou mesmo <strong>de</strong> um edifício, ou <strong>de</strong> uma simples cabana, esse enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> atos não émenos complexo que um fato linguageiro, enuncia<strong>do</strong>, proposição, seqüência <strong>de</strong> frases. Mas essascomplexida<strong>de</strong>s não se <strong>de</strong>finem uma pela outra, <strong>de</strong> maneira isomorfa, apesar das analogias e dascorrelações entre percursos e discursos. Elas diferem.a) O nível das singularida<strong>de</strong>s se dispõe ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s corpos (<strong>de</strong> cada corpo e <strong>de</strong> suas conexões) ; eleos prolonga em lugares afeta<strong>do</strong>s (afetivos) <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s opostas, o favorável e o <strong>de</strong>sfavorável, ofeminino e o masculino, qualida<strong>de</strong>s suportadas pelos lugares e a eles conferin<strong>do</strong> potência simbólica.Esse nível obe<strong>de</strong>ce, às vezes as inverten<strong>do</strong>, às leis das simetrias e dissimetrias. Os lugares assimafeta<strong>do</strong>s (valoriza<strong>do</strong>s) não se repartem num espaço mental, e não se separam. O que os religa?Ritmos, diferenciais semiológicos.b) Esse nível se refere a um outro nível, aquele da generalida<strong>de</strong>, por conseguinte, da prática social,através das transformações: o espaço da palavra política, da or<strong>de</strong>m e da or<strong>de</strong>nação, com seusatributos simbólicos, frequentemente religiosos, às vezes simples símbolos da potência e da violência– o espaço das ativida<strong>de</strong>s, portanto <strong>do</strong> trabalho dividi<strong>do</strong> entre os sexos, as ida<strong>de</strong>s, os grupos, portanto179


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006espaço das comunida<strong>de</strong>s (vilas, cida<strong>de</strong>s). Ritmos, corpos, palavras aí se subordinam a princípios <strong>de</strong>coexistência, prescritos e frequentemente escritos.c) Enfim, o nível das singularida<strong>de</strong>s reaparece, modifica<strong>do</strong>, em particularida<strong>de</strong>s atribuídas aosgrupos, notadamente às famílias, em espaços <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s, permiti<strong>do</strong>s ou <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong>s.III.17 Esta análise reconduz ao edifício, prosa <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, oposta ou aposta ao monumento-poesia.Matriz homogênea <strong>do</strong> espaço capitalista, o edifício, na sua pre<strong>do</strong>minância, sabe unir o objeto <strong>do</strong>controle pelo po<strong>de</strong>r e o objeto da troca comercial. Ele proce<strong>de</strong> por brutal con<strong>de</strong>nsação <strong>de</strong> relaçõessociais, como será mostra<strong>do</strong> mais adiante <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong>talha<strong>do</strong>, (econômico-político). Ele cobre, <strong>de</strong>maneira a reduzi-lo, o paradigma <strong>do</strong> espaço: <strong>do</strong>minação-apropriação (privilegian<strong>do</strong> a <strong>do</strong>minaçãotecnológica) – obra e produto (privilegian<strong>do</strong> o produto) – imediato e mediação (privilegian<strong>do</strong> asmediações e os media<strong>do</strong>res, <strong>do</strong> material técnico aos “promotores” financeiros das operaçõesconstrutivas). Ele reduz as oposições e valores significativos, aqueles <strong>do</strong> gozo e <strong>do</strong> sofrimento, <strong>do</strong>uso e <strong>do</strong> trabalho, entre outros. A brutal con<strong>de</strong>nsação <strong>do</strong>s atributos da socieda<strong>de</strong> se percebefacilmente no estilo <strong>do</strong>s edifícios administrativos, as escolas, as estações, as prefeituras, osministérios, a partir <strong>do</strong> século XIX. O <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s não tem menos importância que ascon<strong>de</strong>nsações; os “equipamentos” têm plena eficácia. Eles localizam e “pontualizam” as ativida<strong>de</strong>s,incluin<strong>do</strong> os lazeres, os esportes, os jogos, em lugares “especializa<strong>do</strong>s”, tão <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s quanto asempresas para o trabalho. Eles efetuam “sintagmaticamente” a ligação das ativida<strong>de</strong>s no espaçosocial como tal, quer dizer no espaço economicamente geri<strong>do</strong> pelo capital, socialmente <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>pela burguesia, politicamente regi<strong>do</strong> pelo Esta<strong>do</strong>.O espaço global <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong> arquitetônico, cujo estu<strong>do</strong> vai se terminar ao se abrir sob uma outraperspectiva <strong>de</strong> análises? Não. Por diversas razões. Primeiro, o global <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> movimentosdialéticos; esses movimentos não se reduzem a oposições binárias, a contrastes ecomplementarida<strong>de</strong>s, a efeitos <strong>de</strong> miragem e reduplicação, ainda que esses efeitos e essas oposições<strong>de</strong>les sejam parte integrante-integrada. Necessários, não bastam. O global põe em movimentotría<strong>de</strong>s, conflitos, conexões a três termos. Para citar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já, para lembrar a mais essencial <strong>de</strong>ssasconexões: o capitalismo não se analisa e não se expõe em oposições binárias: proletaria<strong>do</strong> eburguesia, salário e lucro, trabalho produtivo e parasitismo. Ele comporta três elementos, três termos,três momentos: a terra, o trabalho, o capital, quer dizer: as rendas, os salários e os lucros, numaunida<strong>de</strong> global: a mais-valia.Por outro la<strong>do</strong>, o global existe <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong> e tem outros efeitos que os efeitos parciais. Como alinguagem, o espaço global (entre os monumentos e edifícios, aquele das ruas e praças) exerce aola<strong>do</strong> <strong>do</strong>s efeitos <strong>de</strong> comunicação, efeitos contraditórios <strong>de</strong> violência e <strong>de</strong> persuasão, <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>(política) e <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrédito. Portan<strong>do</strong> os traços das inscrições e prescrições <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, o espaço global180


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006alcança uma eficácia que reage sobre os níveis menciona<strong>do</strong>s, o arquitetural (monumento-edifício) e ourbano. Ele se faz significar para e pelos habitantes, até no “priva<strong>do</strong>”, na medida em que elesaceitam e suportam o “público”.O que remete a outras análises.IV. DO ESPAÇO ABSOLUTO AO ESPAÇO ABSTRATOIV. D428) IV.1 Para resumir o que prece<strong>de</strong>; o espaço social, inicialmente biomórfico e antropológico, ten<strong>de</strong>a extrapolar essa imediatida<strong>de</strong>. Contu<strong>do</strong>, nada <strong>de</strong>saparece completamente; o que perdura não sepo<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>finir somente pelo traço [vestígio] ou pela recordação ou pela sobrevivência. O anterior,no espaço, permanece o suporte <strong>do</strong> que segue. As condições <strong>de</strong> tal espaço social guardam umaduração própria e uma atualida<strong>de</strong> no seio <strong>de</strong>sse espaço. Desse mo<strong>do</strong>, a natureza primeira na“natureza segunda”, num senti<strong>do</strong> completamente adquiri<strong>do</strong> [conquista<strong>do</strong>] e artificial: a realida<strong>de</strong>urbana. A arquitetônica <strong>de</strong>screve, analisa, expõe essa persistência que certas metáforas, tais como“camadas”, reinos, sedimentos etc., dizem em resumo [resumem]. Este estu<strong>do</strong> compreen<strong>de</strong>, pois, etenta reagrupar o que se dispersa nas ciências parcelares e especializadas: etnologia, etnografia,geografia humana, antropologia, pré-história e história, sociologia etc.429) O espaço assim concebi<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r-se-ia nomear “orgânico”. Na imediatida<strong>de</strong> da relação entre osgrupos, entre os membros <strong>de</strong> cada grupo, da “socieda<strong>de</strong>” com a natureza, o espaço ocupa<strong>do</strong> <strong>de</strong>clara[revela] no terreno a organização da socieda<strong>de</strong>, as relações constitutivas. Essas relações dão apenasum pouco <strong>de</strong> lugar à abstração. Elas permanecem no nível <strong>do</strong> sexo, da ida<strong>de</strong>, <strong>do</strong> sangue ementalmente da “imagem” sem conceito: da palavra.430) A antropologia 120 mostrou como o espaço ocupa<strong>do</strong> por um ou outro grupo <strong>de</strong> “primitivos”correspon<strong>de</strong> à classificação hierarquizada <strong>do</strong>s membros da socieda<strong>de</strong>: o torna perpetuamente atual epresente. Os membros <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> arcaica obe<strong>de</strong>cem às normas <strong>de</strong>ssa socieda<strong>de</strong> sem o saber:sem conhecê-las como tais. Eles as vivem espacialmente, sem ignorá-las, sem <strong>de</strong>sconhecê-las: naimediatida<strong>de</strong>. Isso não é menos verda<strong>de</strong>iro para um povoa<strong>do</strong> francês, italiano ou turco, com acondição <strong>de</strong> observar a intervenção - nesse espaço – <strong>do</strong> que vem <strong>de</strong> fora [alhures] e <strong>de</strong> longe: osmerca<strong>do</strong>s, as abstrações sociais (o dinheiro etc.), as autorida<strong>de</strong>s políticas. Sem dúvida, a or<strong>de</strong>mpróxima, a da vizinhança, e a or<strong>de</strong>m distante, a <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> coincidir; elas se120 Cf. E. Forkes e E. Pritchard, Systèmes politiques africains, Londres, 1940; trad. fr. 1964.181


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006reencontram ou se interpenetram 121 . É assim que as <strong>de</strong>terminações “arquitetônicas ”, como o espaçoque elas compreen<strong>de</strong>m [abrangem], persistem na socieda<strong>de</strong>, modificadas cada vez maisradicalmente, sem jamais se abolir. Essa continuida<strong>de</strong> subjacente não se produz somente na realida<strong>de</strong>espacial, mas nas representações. O espaço preexistente não suporta somente disposições espaciaisduráveis, mas também os espaços <strong>de</strong> representação, que trazem consigo imagens, narrativas [relatos]míticas. O que freqüentemente se <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> “mo<strong>de</strong>los culturais” utilizan<strong>do</strong> esse termo gera<strong>do</strong>r <strong>de</strong>confusões: a cultura.431) O conhecimento cai numa armadilha tão logo parte das representações <strong>do</strong> espaço para estudar a“vida” reduzin<strong>do</strong> o vivi<strong>do</strong>. A conexão entre as representações elaboradas <strong>do</strong> espaço e os espaços <strong>de</strong>representação (com seus suportes), conexão fragmentada e incerta, esse é o objeto <strong>do</strong> conhecimento,“objeto” que implica-explica um sujeito, no qual o vivi<strong>do</strong>, o percebi<strong>do</strong>, o concebi<strong>do</strong> (o sabi<strong>do</strong>) sereencontram numa prática espacial.432) “Nosso” espaço permanece assim qualifica<strong>do</strong> (qualificante) sob os sedimentos posteriores dahistória, da acumulação, da quantificação. Trata-se <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> espaço, não <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>salojadas [localizadas] no espaço, segun<strong>do</strong> uma representação tardia. Qualida<strong>de</strong>s constituin<strong>do</strong> uma“cultura” ou “mo<strong>de</strong>los culturais”? Estas palavras pouco agregam à análise.433) Essas qualida<strong>de</strong>s, que têm uma gênese e uma data, duram sobre uma certa base espacial (o sítio,a igreja, o templo, o castelo etc.), sem a qual teriam <strong>de</strong>sapareci<strong>do</strong>. A natureza, mesmo afastada,rompida, localizada, permanece o fundamento último, irredutivelmente, e alhures mal <strong>de</strong>finível comotal: como absoluto no seio e no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> relativo.434) De Roma e <strong>do</strong>s Romanos, a tradição cristã carrega [conduz] até a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> um espaçorepleto <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s mágico-religiosas, divinda<strong>de</strong>s maléficas ou benéficas, machos ou fêmeas, ata<strong>do</strong>sà terra e ao mun<strong>do</strong> subterrâneo (os mortos), mas submeti<strong>do</strong>s a ritos e formalismos. As representaçõesantigas <strong>do</strong> espaço periclitaram [<strong>de</strong>clinaram]: o firmamento, as esferas celestes, o Mediterrâneo nocentro da terra habitada. Ao passo que os espaços <strong>de</strong> representação sobreviveram: a terra <strong>do</strong>s mortos,as potências [forças] crônicas ou telúricas, a profundida<strong>de</strong> e a altitu<strong>de</strong>. A arte, pintura ou escultura ouarquitetura, aí encontrou e aí ainda encontra recursos. Na Ida<strong>de</strong> Média, a cultura (a in-culturamo<strong>de</strong>rna) tem um espaço épico, - o <strong>do</strong>s Romanceiros, da Távola Re<strong>do</strong>nda 122 - misto entre o sonho eo real, espaço das cavalgadas, cruzadas, torneios, guerra e festa misturadas. Ele não se confun<strong>de</strong>, masse discerne mal <strong>do</strong> espaço da romanida<strong>de</strong>, organizacional e jurídica, evocan<strong>do</strong> sem cessar asminúsculas <strong>de</strong>ida<strong>de</strong>s locais. Quanto ao espaço lírico das lendas e mitos, florestas, lagos, oceanos, ele121 Cf. H. Lefebvre, Perspectives <strong>de</strong> Ia sociologie rurale, in Du Rural à l'Urbain, Anthropos, 1970.182


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006rivaliza com o espaço burocrático e político <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> século XVII pelos Esta<strong>do</strong>s-Nações.Ele o completa, ele é o inverso “cultural”; esse romântico espaço <strong>de</strong> representação proce<strong>de</strong>, com oromantismo, <strong>do</strong>s bárbaros germânicos que alteram [transformam/subvertem]a romanida<strong>de</strong> e fazem aprimeira gran<strong>de</strong> reforma agrária <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte.435) O reenvio da forma atual à imediatida<strong>de</strong> através das mediações “históricas” reproduz, inverten<strong>do</strong>nele (reenvio), a formação. Entre os espaços <strong>de</strong> representação e os simbolismos que eles englobam,os conflitos não são raros, notadamente entre o imaginário que vem da tradição greco-romana(judaico-cristã) e a imagística 123 [imagética] romântica da natureza. É o que se agrega aos conflitosentre o racional e o simbólico. Até no atual [hoje/nos dias atuais], o espaço urbano apareceduplamente: cheio <strong>de</strong> lugares sagra<strong>do</strong>s-malditos, consagra<strong>do</strong>s à virilida<strong>de</strong> ou à feminilida<strong>de</strong>, ricos <strong>de</strong>fantasmas e fantasmagorias, mas também racional, estatal, burocrático, monumentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>gradadae recoberta pelas circulações diversas e pelas informações multiformes. Uma dupla leitura se impõe:o absoluto (aparente) no relativo (real).436) A fantasia da arte? Reenviar <strong>do</strong> atual, <strong>do</strong> próximo, das representações <strong>do</strong> espaço, ao maisdistante, à natureza, aos símbolos, aos espaços <strong>de</strong> representação. Gaudi fez a arquitetura passar pelaprova <strong>do</strong> <strong>de</strong>lírio, como Lautréamont fez para a poesia. Ele não submeteu o barroco ao extremoseguin<strong>do</strong> as teses e classificações admitidas. Lugar <strong>de</strong> uma sacralização ridícula [irrisória](ridicularizan<strong>do</strong> o sagra<strong>do</strong>), a “Sagrada Família” corrói um pelo outro o espaço mo<strong>de</strong>rno e o espaçoarcaico da natureza. A ruptura voluntária das codificações <strong>do</strong> espaço, a irrupção da fecundida<strong>de</strong>natural e cósmica, engendra uma extraordinária “infinitização” <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, uma vertigem. Aquém<strong>do</strong>s simbolismos aceitos, além das significâncias correntes, se exerce uma potência [força]sacralizante que não é a <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, nem a da Igreja, nem a <strong>do</strong> artista, nem a da divinda<strong>de</strong> teológica,mas a da naturalida<strong>de</strong>, i<strong>de</strong>ntificada audaciosamente à transcendência divina. Uma heresiamo<strong>de</strong>rnizada <strong>de</strong>sorganiza as representações <strong>do</strong> espaço e as metamorfoseia em espaço <strong>de</strong>representação on<strong>de</strong> as palmeiras, as fron<strong>de</strong>scências, dizem [exprimem] o divino. Don<strong>de</strong> uma virtualerotização ligada à sacralização <strong>de</strong> um gozo cruel, erótico-místico, inverso e reverso da alegria. Oobsceno, é o “real” mo<strong>de</strong>rno, <strong>de</strong>signa<strong>do</strong> como tal pelo realiza<strong>do</strong>r e encena<strong>do</strong>r, o arquiteta Gaudi.437) Nas extensões e proliferações da cida<strong>de</strong>, o habitat assegura a reprodutibilida<strong>de</strong> (biológica,social, política). A socieda<strong>de</strong> (capitalista) <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> totalizar seus elementos ou <strong>de</strong> tentar essaintegração total em torno <strong>do</strong>s monumentos. Ela tenta se incorporar no edifício. Substituto da antigamonumentalida<strong>de</strong>, sob o controle <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> que vigia [supervisiona] a produção e a reprodução, o122 Suposta mesa re<strong>do</strong>nda on<strong>de</strong> sentavam o lendário rei Artur e seus heróicos cavaleiros, em relação <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> e semdistinção <strong>de</strong> lugares (N.T.).183


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006habitat reenvia [remete] <strong>de</strong> uma naturalida<strong>de</strong> (o ar, a água, o sol, os “espaços ver<strong>de</strong>s”) cósmica, aomesmo tempo seca e fictícia, à genitalida<strong>de</strong>, à família, à célula familiar, à reprodução biológica.Comutáveis, permutáveis, intercambiáveis, os espaços diferem por sua “participação” na natureza(que ao mesmo tempo eles afastam e <strong>de</strong>stroem). O espaço familiar, liga<strong>do</strong> à naturalida<strong>de</strong> pelagenitalida<strong>de</strong>, garante a significação ao mesmo tempo que a prática social (espacial). Rompida pormúltiplas separações e segregações, a unida<strong>de</strong> social se reconstitui ao nível da célula familiar, para epela reprodução generalizada. A reprodução das relações <strong>de</strong> produção funciona plenamente na e pelaruptura <strong>do</strong>s laços sociais, o espaço simbólico da familiarida<strong>de</strong> (família e vida cotidiana) vencen<strong>do</strong>-o,sozinho “apropria<strong>do</strong>”. Isso só é possível pelo reenvio perpétuo das representações <strong>do</strong> espaço (osmapas e planos, os transportes e comunicações, as informações por imagens ou por signos) aoespaço <strong>de</strong> representação (a natureza, a fecundida<strong>de</strong>) numa prática cotidiana familiar. O reenvio <strong>de</strong>um a outro, a oscilação tem um papel i<strong>de</strong>ológico, se substituin<strong>do</strong> à i<strong>de</strong>ologia distinta. O espaço étanto mais aprisiona<strong>do</strong> quanto ele foge à consciência imediata. Don<strong>de</strong> talvez a passivida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s“usuários”. Só uma “elite” discerne as armadilhas e nelas não cai. O caráter elitista das contestaçõese das críticas po<strong>de</strong> assim se compreen<strong>de</strong>r. Durante esse tempo, o controle social <strong>do</strong> espaço pesasobre os usuários que não recusam a familiarida<strong>de</strong> <strong>do</strong> cotidiano.438) Porém, essa familiarida<strong>de</strong> se dissocia. O absoluto e o relativo também ten<strong>de</strong>m a se separar.Desviada e/ou fetichizada, sacralizada e profanada, álibi <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r e impotência, lugar fictício <strong>do</strong>gozo, a familiarida<strong>de</strong> resiste mal a essas contradições.439) As persistências no espaço não permitem portanto somente ilusões i<strong>de</strong>ológicas duplas(opacida<strong>de</strong>-transparência), mas retornos e substituições muito mais complexas. E é assim que oespaço social se expõe ou se explica parcialmente por um processo significante intencional, umasérie ou superposição <strong>de</strong> códigos, uma implicação <strong>de</strong> formas. Os movimentos dialéticos ultrapassame sobrecodificam as classificações e codificações encaixadas, as implicações lógicas. Aqui, trata-se<strong>de</strong> movimentos: “imediatida<strong>de</strong>-mediações” e/ou relativo-absoluto.440) Os símbolos e simbolismos, <strong>de</strong>les fala-se bastante e mal. Esquece-se que certos símbolos senãoto<strong>do</strong>s tiveram uma existência material e concreta antes <strong>de</strong> simbolizar. O labirinto foi <strong>de</strong> início umaconstrução militar e política <strong>de</strong>stinada a enganar os inimigos numa confusão inextricável. Palácio,fortificação, refúgio, proteção, o labirinto toma mais tar<strong>de</strong> uma existência simbólica (uterina) e, maistar<strong>de</strong> ainda, o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma modulação <strong>do</strong> par “presença-ausência”. Quanto ao Zodíaco, elerepresenta o horizonte <strong>do</strong> pastor na imensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pastos, o alinhamento e a orientação figura<strong>do</strong>s.123 Repertório <strong>de</strong> imagens. (N.T.).184


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006441) Inicial e fundamentalmente, o espaço absoluto tem alguma coisa <strong>de</strong> relativo. Quanto aos espaçosrelativos, eles encobrem um absoluto...442) IV.2 O espaço absoluto tem por berço, por origem (se quisermos empregar este termo), umfragmento <strong>do</strong> espaço agropastoril: um conjunto <strong>de</strong> lugares nomea<strong>do</strong>s e trabalha<strong>do</strong>s por camponeses,por pastores nôma<strong>de</strong>s ou semi-nôma<strong>de</strong>s. Um pedaço <strong>de</strong>sse espaço recebe uma outra afetação, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong>à ação <strong>do</strong>s senhores ou conquista<strong>do</strong>res. Des<strong>de</strong> então, ele aparece como transcen<strong>de</strong>nte, sagra<strong>do</strong>(marca<strong>do</strong> por potências [forças] divinas), mágica e cósmica. O para<strong>do</strong>xo, é que um tal espaço não<strong>de</strong>ixa, por isso, <strong>de</strong> ser percebi<strong>do</strong> como natureza; bem mais, seu mistério, seu caráter sagra<strong>do</strong>-malditosão atribuí<strong>do</strong>s às forças da natureza, enquanto a ação <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r político que nele se exerce o subtraiao contexto natural e que ele só tem senti<strong>do</strong> por essa ruptura.443) Centro <strong>do</strong> tempo porque centro <strong>do</strong> espaço, esse núcleo <strong>de</strong> uma coerência orgânica reparte emtorno <strong>de</strong> si, <strong>de</strong> uma maneira mais ou menos “harmoniosa”, uma população já <strong>de</strong>nsa. Em verda<strong>de</strong>,uma harmonia entre o núcleo e os arre<strong>do</strong>res só advém conjunturalmente, pela eventualida<strong>de</strong> [peloacaso] “histórica”. Ao contrário, o centro religioso e político traz, na maioria <strong>do</strong>s casos, a marca <strong>de</strong>uma relação conflituosa, a relação cida<strong>de</strong>-campo (espaço urbano-espaço agrário). Os ritos <strong>de</strong>interdição e <strong>de</strong> proteção que conferem ao espaço central seu caráter religioso e mágico sãomotiva<strong>do</strong>s pelas ameaças que pesam sobre esse lugar.444) A cida<strong>de</strong>, com seu lugar, vive <strong>do</strong> campo circundante; <strong>do</strong>s frutos da terra e <strong>do</strong>s trabalhoscamponeses ela extrai um tributo. Pela relação com esse campo circundante, ela tem portanto umcaráter duplo: grupo captan<strong>do</strong> o sobreproduto da socieda<strong>de</strong> rural, grupo <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong>sadministrativas e militares, apto portanto à proteção. Ora um <strong>de</strong>stes traços se reforça, ora o outro. Acida<strong>de</strong>, se aproprian<strong>do</strong> <strong>de</strong> um espaço rural, ganha uma realida<strong>de</strong> ora maternal (ela guarda[armazena], ela faz reservas, ela utiliza para trocas proveitosas uma parte <strong>do</strong> sobreproduto <strong>do</strong> qualela retroce<strong>de</strong> uma parte variável aos interessa<strong>do</strong>s) – ora masculina ou viril (ela protege exploran<strong>do</strong>;ela explora protegen<strong>do</strong>; ela <strong>de</strong>tém o po<strong>de</strong>r; ela vigia, regulamenta, às vezes - no Oriente- organiza aagricultura, se encarrega <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s trabalhos, diques [barramentos], irrigações, drenagens etc.).445) Deste mo<strong>do</strong> a cida<strong>de</strong>, espaço urbano, vive em simbiose com o espaço rural que ela controla, àsvezes dificilmente; acontece <strong>de</strong> os camponeses se agitarem [insurgirem]; quanto aos pastores,nôma<strong>de</strong>s ou semi-nôma<strong>de</strong>s, a cida<strong>de</strong> sempre teve dificulda<strong>de</strong> para os conter e são conquista<strong>do</strong>resvirtuais.446) A cida<strong>de</strong>-Esta<strong>do</strong> estabelece um centro fixo e se constitui em centro, lugar privilegia<strong>do</strong>,envolvida por uma periferia que traz sua marca. O imenso espaço preexistente parece <strong>de</strong>s<strong>de</strong> entãosubmeti<strong>do</strong> a uma or<strong>de</strong>m divina. Mas a cida<strong>de</strong> se coloca como lugar <strong>de</strong> reunião <strong>do</strong> que a envolve,incluin<strong>do</strong> o natural e o divino, as potências maléficas e as potências benéficas da terra. Imagem <strong>do</strong>185


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006universo (imago mundi), o espaço urbano se reflete no espaço rural que ele <strong>de</strong>tém e contém enquantotal; ao la<strong>do</strong> das <strong>de</strong>terminações econômicas, religiosas e políticas, já existe numa tal relação umsimbolismo, um aspecto <strong>de</strong> imagem e <strong>de</strong> reflexo: a cida<strong>de</strong> se percebe no seu duplo, sua repercussão,seu eco; ela se afirma contemplan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> alto <strong>de</strong> suas torres, <strong>de</strong> suas portas, <strong>de</strong> seus sinos, napaisagem que ela mo<strong>de</strong>lou: sua obra. Com suas vizinhanças [seus arre<strong>do</strong>res], é uma textura.447) O espaço absoluto, guardião da unida<strong>de</strong> cívica e por conseguinte <strong>do</strong> laço entre os membros dacida<strong>de</strong>, aí incluídas as pessoas <strong>do</strong> território, <strong>de</strong>tém [retém], con<strong>de</strong>nsan<strong>do</strong>-as, todas as forças difusas(caso se queira: parece <strong>de</strong>tê-las [retê-las]). As forças da morte prece<strong>de</strong>m ou seguem as potências davida? Questão abstrata; elas se acompanham. A unida<strong>de</strong> liga os vivos aos mortos como os vivosentre si, sobretu<strong>do</strong> no caso freqüente on<strong>de</strong> a cida<strong>de</strong>, que concentra a riqueza, se concretiza nummonarca. O espaço absoluto é portanto também e sobretu<strong>do</strong> o espaço da morte: <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>rabsoluto sobre os vivos cujo único soberano <strong>de</strong>tém uma parte. O espaço das tumbas, <strong>do</strong>smonumentos fúnebres pertence portanto ao espaço absoluto, com um duplo caráter, beleza formal econteú<strong>do</strong> terrificante. A beleza formal levada ao mausoléu, ao monumento vazio ainda queprestigioso. O conteú<strong>do</strong> político aterrorizante leva ao lugar assombra<strong>do</strong>, povoa<strong>do</strong> <strong>de</strong> mortos vivos,<strong>do</strong> qual o cemitério cristão oferece um bom exemplo, ainda que ele tenha um mérito, o <strong>de</strong><strong>de</strong>mocratizar a imortalida<strong>de</strong>.448) Um pouco por toda parte, em todas as socieda<strong>de</strong>s, o espaço absoluto se carrega <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s quepelas ameaças, pelas sanções, pelas emoções sempre postas à prova, não se dirigem ao intelecto, masaos corpos. Esse espaço é “vivi<strong>do</strong>” e não concebi<strong>do</strong>, espaço <strong>de</strong> representação mais que representação<strong>do</strong> espaço; <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que [a partir <strong>do</strong> momento em que] ele se concebe, seu prestígio se atenua e<strong>de</strong>saparece.449) Esse espaço possui dimensões, ainda que elas não coincidam com as <strong>do</strong> espaço abstrato(euclidiano). As direções tomam valores simbólicos: esquerda, direita, mas sobretu<strong>do</strong> o alto e obaixo. Já sabemos que ele tem três níveis: a superfície, a altura, a profundida<strong>de</strong>. Dito <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>,a terra, que homens trabalham e governam - os abismos, os precipícios - os cumes, as altitu<strong>de</strong>s. Essesníveis se afetam no espaço absoluto, mas <strong>de</strong> maneiras diversas. A altura, a verticalida<strong>de</strong> recebem umsenti<strong>do</strong> privilegia<strong>do</strong>, às vezes total (saber, po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>ver), mas esse senti<strong>do</strong> varia com as socieda<strong>de</strong>s eas “culturas”. Contu<strong>do</strong>, no conjunto o espaço horizontal simboliza a submissão - o espaço vertical, apotência - o espaço subterrâneo, a morte. Tais afirmações respon<strong>de</strong>m <strong>de</strong> maneira incisiva à procura<strong>de</strong> senti<strong>do</strong>; a noção <strong>de</strong> ambigüida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve temperá-las; em nenhum lugar a morte se percebe como“pura morte”, como “puro” nada, nem o po<strong>de</strong>r como “puro” po<strong>de</strong>r, nem a submissão, nem o saber,nem a sabe<strong>do</strong>ria etc. De tal mo<strong>do</strong> que o próprio conceito <strong>de</strong> espaço absoluto se corrige. Mesmoatenua<strong>do</strong> nesse senti<strong>do</strong>, o espaço absoluto conserva seus traços essenciais. Para os que o envolvem, é186


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006o espaço verda<strong>de</strong>iro, o espaço da verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> suas bruscas aparições (que <strong>de</strong>stroem as aparências, asaber os outros tempos e os outros espaços). Vazio ou cheio, é portanto um espaço superativo,receptáculo e estimulante <strong>de</strong> energias sociais como <strong>de</strong> forças naturais. Mítico e próximo, ele gera ostempos, os ciclos. Toma<strong>do</strong> em si, “absolutamente”, esse espaço absoluto não se situa em nenhumaparte. Ele não tem lugar, pois ele reúne to<strong>do</strong>s os lugares e não possui senão uma existênciasimbólica. É o que o aproxima <strong>do</strong> espaço fictício-real da linguagem e <strong>de</strong>sse espaço mentalmagicamente subtraí<strong>do</strong> (ficticiamente) ao espacial, no qual toma forma a consciência <strong>do</strong> “sujeito” ou“consciência <strong>de</strong> si”. Dele dispõe a casta sacer<strong>do</strong>tal. Ela consagra, e a consagração i<strong>de</strong>ntificametafisicamente não importa qual espaço ao espaço sagra<strong>do</strong> fundamental. O espaço <strong>do</strong>s santuários éo espaço absoluto, mesmo num pequeno templo, numa mo<strong>de</strong>sta igreja <strong>de</strong> povoa<strong>do</strong>. Quanto ao espaçodas tumbas, quan<strong>do</strong> ele não abriga um <strong>de</strong>us ou um rei, ele se contenta em se assemelhar ao [imitar o]<strong>do</strong> nascimento, da morte, <strong>do</strong> esquecimento. O espaço absoluto, portanto religioso ao mesmo tempoque político, implica instituições religiosas, que o submetem a estes <strong>do</strong>is gran<strong>de</strong>s procedimentos: ai<strong>de</strong>ntificação - a imitação. Estas categorias mentais, que se tornarão as <strong>do</strong> imaginário e <strong>do</strong>pensamento reflexivo, aparecem como formas espaciais. A extensão material <strong>do</strong> espaço absoluto seproduz por esses procedimentos, em benefício da casta sacer<strong>do</strong>tal e da potência política que ela<strong>de</strong>tém ou que ela serve.450) Ritualmente ligável [vinculável; atável] a não importa qual lugar e por conseguinte <strong>de</strong>stacável, ocaráter “absoluto” tem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma marca. Ele engendra formas e formas o recebem;resumidas <strong>do</strong> universo, seja o quadra<strong>do</strong> (a mandala 124 ), seja o círculo e a esfera, seja o triângulo, sejaum volume racional, ocupa<strong>do</strong> pelo princípio divino, seja a cruz...451) Na versão grega, o espaço absoluto po<strong>de</strong> nada conter. O Templo (cf. o Parthenon) se divi<strong>de</strong>[separa]: pórtico (ou pronau 125 ), nau (ou santuário), opistó<strong>do</strong>mo 126 ou morada secreta da divinda<strong>de</strong>:<strong>do</strong> pensamento. Faces sem fachada. O friso 127 contorna o edifício. Os que chegam po<strong>de</strong>m contornálo,mas não é um “objeto” diferentemente apreensível, a não ser pelo pensamento que o percebecomo totalida<strong>de</strong>; portanto com seu senti<strong>do</strong>. As curvas, efeito <strong>de</strong>seja<strong>do</strong> [propositalmente], parecemretilíneas; a curvatura das colunas, as linhas <strong>do</strong> entablamento 128 têm curvas “imperceptíveis” que o124 Diagrama composto <strong>de</strong> formas geométricas concêntricas, utiliza<strong>do</strong> no hinduísmo, no budismo, nas práticas psicofísicas daioga e no tantrismo como objeto ritualístico e ponto focal para meditação [Do ponto <strong>de</strong> vista religioso, a mandala éconsi<strong>de</strong>rada uma representação <strong>do</strong> ser humano e <strong>do</strong> universo; em sua forma menos elaborada, é <strong>de</strong>nominada iantra.] (N.T.).125 Vestíbulo aberto situa<strong>do</strong> antes da cela <strong>de</strong> um templo clássico. (N.T.).126 Recinto disposto na parte posterior <strong>de</strong> um templo da Grécia antiga, freq. us. como <strong>de</strong>pósito <strong>do</strong>s tesouros oferta<strong>do</strong>s àdivinda<strong>de</strong>. (N.T.).127 Na arquitetura clássica, parte intermediária <strong>de</strong> um entablamento, localizada entre a arquitrave e a cornija, geralmente ornada<strong>de</strong> pinturas, esculturas em baixo-relevo etc. (N.T.).128 Conjunto composto <strong>de</strong> arquitrave, friso e cornija (N.T.)187


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006olho endireita. A linha curva, para os Gregos, é absorvida na linha reta, que per<strong>de</strong> assim sua rigi<strong>de</strong>z,se atenua sem cessar <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r ao Logos. Pois as correções exigem cálculos minuciosos 129 .452) O volume percebi<strong>do</strong> e concebi<strong>do</strong>, ilumina<strong>do</strong> pela clarida<strong>de</strong> solar e pela <strong>do</strong> entendimento, resumeo cosmos. Vazio ou ocupa<strong>do</strong> pelo pensamento. Como a ágora 130 . Ela faz parte <strong>do</strong> espaço absoluto,religioso e político. Ela o concentra. Vazia: ela <strong>de</strong>ve mantê-lo para que a eclésia (assembléia <strong>de</strong>cidadãos livres) nela se reúna. O fórum romano ocupa<strong>do</strong> pelos monumentos estatais, a tribuna, ostemplos, os rostros 131 , mais tar<strong>de</strong> a prisão, povoa<strong>do</strong> <strong>de</strong> objetos e coisas, contradiz o espaço grego.453) Alcançada ao final <strong>de</strong> um outro encaminhamento, aqui se perfila <strong>de</strong> novo e se reconhece umaidéia que fornece a chave <strong>do</strong> “milagre” grego: a simples idéia da unida<strong>de</strong>. “Nos Gregos, escreviaViollet-Ie-Duc, a construção e a arte são apenas uma só e a mesma coisa: a forma e a estrutura sãointimamente ligadas”, ao passo que no espaço romano, existe cisão, separação. “Nestes aqui, diz omesmo autor, se existe construção, existe a forma da qual se essa construção se reveste [cobre]”. Osvolumes se dispõem visan<strong>do</strong> satisfazer tal ou qual função, na Basílica ou nas Termas; o uso <strong>do</strong>svolumes construí<strong>do</strong>s se distingue da apresentação das superfícies, da <strong>de</strong>coração (que se aplica paraos ornar sobre os pesa<strong>do</strong>s volumes <strong>de</strong> tijolos ou <strong>de</strong> blocos, diferentemente <strong>do</strong> cimento e <strong>de</strong> um tipo<strong>de</strong> concreto). As “or<strong>de</strong>ns”, inventadas pelos Gregos (o dórico, o iônico, o coríntico) eram a própriaestrutura; na noção da “or<strong>de</strong>m”, existe a da estrutura, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que a aparência exterior e acomposição (estrutura) interna <strong>do</strong>s edifícios gregos não po<strong>de</strong>m se distinguir: a primeira contém elibera a segunda. Impossível, diz Viollet-Ie-Duc, que <strong>de</strong>senvolve como técnico [especialista] asidéias <strong>de</strong> Hegel sobre a arte e a arquitetura na Grécia, <strong>de</strong>spojar um templo grego da “or<strong>de</strong>m” sem<strong>de</strong>struir o monumento. A or<strong>de</strong>m não é <strong>de</strong>corativa, nem as colunas, nem os capitéis. “As or<strong>de</strong>nsgregas são apenas a estrutura à qual <strong>de</strong>mos a melhor forma aparente em razão <strong>de</strong> sua função. OsRomanos não viram nas or<strong>de</strong>ns que eles tomaram <strong>do</strong>s Gregos senão uma <strong>de</strong>coração po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> serretiradas, suprimidas, <strong>de</strong>slocadas ou substituídas por outra coisa” 132 .454) Em conseqüência, no Oci<strong>de</strong>nte o espaço absoluto tomou uma forma rigorosa: o volume bemmedi<strong>do</strong>, vazio, fecha<strong>do</strong>, constitutivo da unida<strong>de</strong> racional, Logos e Cosmos. Ele contém, sob o signoda religião política, a da Cité, o princípio simples, regula<strong>do</strong>, metódico, lei mental e social, ao mesmotempo, da estabilida<strong>de</strong> coerente. O que se materializa nos monumentos que regulam o tempo pela129Cf. Vitruve, III, 3, VI, com as “mesas vitruvianas”.130 Praça principal das antigas cida<strong>de</strong>s gregas, local em que se instalava o merca<strong>do</strong> e que muitas vezes servia para a realizaçãodas assembléias <strong>do</strong> povo; forman<strong>do</strong> um recinto <strong>de</strong>cora<strong>do</strong> com pórticos, estátuas etc., era também um centro religioso. (N.T.).131Tribuna <strong>do</strong>s ora<strong>do</strong>res romanos (N.T.)132 Cf. Viollet-le-Duc, Entretiens...vol. 1, p. 102188


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006presença <strong>de</strong> materiais bem aparelha<strong>do</strong>s, cuja or<strong>de</strong>m objetiva – as pressões verticais, as massas físicas– basta para assegurar o equilíbrio ao mesmo tempo natural e racional.455) Enquanto o espírito <strong>do</strong>s Gregos percebia o espaço para amoldá-lo [mo<strong>de</strong>lá-lo], eles talvezfossem essencialmente escultores. Como dizia Hegel, os Gregos souberam tomar materiais nanatureza, <strong>de</strong> início a ma<strong>de</strong>ira, a pedra em seguida, para lhes dar significações que tornavam concretase práticas as abstrações sociais, tais como: se reunir, se abrigar, se proteger. Amoldan<strong>do</strong>[Mo<strong>de</strong>lan<strong>do</strong>] a natureza, portanto o espaço (que Hegel consi<strong>de</strong>ra ainda como situa<strong>do</strong> naexteriorida<strong>de</strong> em relação ao ato mental e social), <strong>de</strong> maneira a representar e simbolizar os <strong>de</strong>uses, osheróis, os reis e os chefes, esse é o senti<strong>do</strong> da arte grega. E notadamente da escultura inorgânica(arquitetural) ou orgânica (a obra <strong>do</strong> escultor).456) Deve-se reconhecer aqui o princípio funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte? Sim, mas incompletamente. Aunida<strong>de</strong> da forma com a função e a estrutura, nega-lhe o direito <strong>de</strong> se separar. Ora, os Romanossepararam o que os Gregos uniram. Eles reintroduziram a diferença, o relativo, as finalida<strong>de</strong>sdiversas, portanto civis, neste espaço grego que a cumplicida<strong>de</strong> <strong>do</strong> político e <strong>do</strong> religioso com aracionalida<strong>de</strong> matemática podia obstruir metafisicamente (eternamente). A Cité, ao mesmo tempobela, verda<strong>de</strong>ira, boa, i<strong>de</strong>ntificava o mental e o social, o simbolismo superior e a realida<strong>de</strong> imediata,o espaço <strong>do</strong> pensamento e o da ação, <strong>de</strong> uma maneira que <strong>de</strong>veria em seguida <strong>de</strong>generar. O apogeuda Grécia mostrava a rota <strong>do</strong> <strong>de</strong>clínio, como a observou Nietzsche. A diversida<strong>de</strong> romana, reguladamais por um princípio externo e coercivo que pela unida<strong>de</strong> interior, lhe permitia o <strong>de</strong>senvolvimento?Po<strong>de</strong>mos supô-lo.457) O habitus grego <strong>do</strong> espaço, inseparavelmente social e mental, autorizava a formulação <strong>do</strong>sconceitos essenciais: forma, função, estrutura? Certamente, pois a filosofia se aventura nestaformulação explícita e o filósofo, melhor ainda Aristóteles que Platão, <strong>de</strong>la se encarrega. Neste, aunida<strong>de</strong> resplan<strong>de</strong>ce na transcendência ontológica. Em Aristóteles, ela se torna teoria <strong>do</strong> discurso, daclassificação, da coerência. Tão logo ultrapassa<strong>do</strong> o limite da formulação, os conceitos se dissociam;o concebi<strong>do</strong> se separa <strong>do</strong> vivi<strong>do</strong> e o habitus <strong>do</strong> intuitus, quebran<strong>do</strong> sua unida<strong>de</strong> pressuposta. Emcontrapartida, no intuitus romano, a subordinação da forma, da estrutura, da função em cada coisa(nenhum exemplo melhor que as Termas) a um princípio ao mesmo tempo material (umanecessida<strong>de</strong>) e jurisdicional (cívico) <strong>de</strong>termina o uso social, <strong>de</strong>ixa, por assim dizer, espaço à unida<strong>de</strong>.O espaço romano se abarrotara <strong>de</strong> objetos (o fórum), mas fora produtivo. E mais livre, o quetestemunha um mais amplo emprego <strong>de</strong> curvas. A unida<strong>de</strong> da Lei, <strong>do</strong> Direito, da Proprieda<strong>de</strong>, daCida<strong>de</strong>-Esta<strong>do</strong>, porque vivida e percebida melhor que concebida, evitara a ruptura irremediável. Anecessida<strong>de</strong>, em Roma, aparece como um caráter quase total: as Termas como a Vivenda [Casa <strong>de</strong>189


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006campo; Domínio rural] contêm tu<strong>do</strong> o que os corpos e os espíritos <strong>do</strong>s livres (e ricos) cidadãosprocuram.458) Que os escravos tenham possibilita<strong>do</strong> a Cida<strong>de</strong>-Esta<strong>do</strong> é certo, mas uma filosofia da história quese diz marxista, basean<strong>do</strong> sua apreciação sobre este único fato e propon<strong>do</strong> como um to<strong>do</strong> o “mo<strong>do</strong> <strong>de</strong>produção” escravista, torna inexplicável o papel <strong>de</strong>sta Cida<strong>de</strong>-Esta<strong>do</strong>, <strong>de</strong> Atenas e <strong>de</strong> Roma, <strong>do</strong>Logos-Cosmos e <strong>do</strong> Direito romano.459) Houve ligação entre a invenção espacial <strong>do</strong>s Gregos e suas invenções concernentes ao alfabeto,à escrita alfabética, à disposição gráfica à aritmética, à geometria? Talvez, mas isto é apenas umaspecto subsidiário <strong>do</strong> habitus. De outro la<strong>do</strong>, não seria injusto e artificial limitar a invenção grega à<strong>do</strong> espaço cosmológico? O espaço absoluto engendra sempre formas diversas; não é certo que sepossa atribuir a razão a uns, a outros o mito, a <strong>de</strong>srazão. Ao Logos-Cosmos grego replica o labirinto,cujo simbolismo restabelece (localmente) a priorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> mistério original, <strong>do</strong> princípio maternal, <strong>do</strong>envolvimento, <strong>do</strong>s ciclos temporais 133 .460) Em resumo, o espaço absoluto (religioso e político) se compõe <strong>de</strong> lugares sagra<strong>do</strong>s-malditos:templos, palácios, monumentos comemorativos e funerários, lugares privilegia<strong>do</strong>s e marca<strong>do</strong>s.Portanto, muito <strong>de</strong> “interditos”. No limite, este espaço po<strong>de</strong> simplesmente ser indica<strong>do</strong>, sugeri<strong>do</strong>,significa<strong>do</strong>. Assim, uma pedra, um mastro reto (cuja verticalida<strong>de</strong> confere a um ponto <strong>do</strong> espaço adignida<strong>de</strong> suprema), um buraco, uma simples cavida<strong>de</strong> [vazio/fosso]. Geralmente, ele é circunda<strong>do</strong>,<strong>de</strong>fini<strong>do</strong> por um contorno, e recebe uma forma assinalada e significativa (o quadra<strong>do</strong>, a curva, aesfera, o triângulo etc.). Nas socieda<strong>de</strong>s consi<strong>de</strong>radas, tu<strong>do</strong> se situa, se percebe, se interpreta pelarelação com esses lugares. Esse espaço não se compreen<strong>de</strong>, portanto, como uma coleção <strong>de</strong> lugares e<strong>de</strong> signos; uma tal análise o <strong>de</strong>sconhece radicalmente; trata-se <strong>de</strong> um espaço, mental e socialindiscernivelmente que compreen<strong>de</strong> a existência inteira <strong>do</strong>s grupos consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s (primeiramente aCida<strong>de</strong>-Esta<strong>do</strong>) e <strong>de</strong>ve ser compreendi<strong>do</strong> como tal. Num tal espaço, não existe “ambiente”, nemmesmo “sítio” distinto da textura global. O significante se distingue <strong>do</strong> significa<strong>do</strong>? Certamente não,se por isso se enten<strong>de</strong> uma diferença operada por um intelletus. O espaço oculto, o <strong>do</strong> santuário ou<strong>do</strong> palácio, é inteiramente “<strong>de</strong>svela<strong>do</strong>” pela or<strong>de</strong>m espacial que ele <strong>do</strong>mina. O significa<strong>do</strong> político sedá no significante religioso. Realmente, é preciso distingui-los? Não, simbolismos e signos ainda nãose separam. A “<strong>de</strong>codificação” <strong>do</strong> espaço pelo tempo associa<strong>do</strong> se faz em ato, num cerimonial: asprocissões, as “teorias” gregas. Ritual, gestual, “inconsciente” portanto, porém real, a <strong>de</strong>codificaçãoentra no uso <strong>de</strong> um tal espaço e sua imagem. Ao Grego que sobe em direção ao Parthenon, que não133Cf. Sobre os palácios egeanos, o livro <strong>de</strong> Ch. Le Roy, Le mon<strong>de</strong> égéen , l’Archéologie, Larousse, 1969. Cf. também G. R.Hocke, Labyrinthe <strong>de</strong> l’art fantastique, trad. Collection Médiations, Gonthier, 1967.190


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006se lhe atribua a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> um turista que “lê” ou “<strong>de</strong>codifica” o espetáculo segun<strong>do</strong> suas emoções,seus conhecimentos, sua religião, sua nacionalida<strong>de</strong>. À aurora <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte, o tempo continha ocódigo espacial e reciprocamente. O <strong>de</strong>slocamento em direção ao estetismo, a integração <strong>de</strong> emoçõese <strong>do</strong> “vivi<strong>do</strong>” pela moralida<strong>de</strong>, essas “<strong>de</strong>codificações” impostas da obra outrora imediatamentevivida e percebida, não tinham ainda nenhum lugar. Quan<strong>do</strong> aqui utilizamos os conceitos <strong>de</strong> intuituse <strong>de</strong> habitus, é para impedir o uso antes <strong>de</strong> seu momento <strong>de</strong> categorias posteriores e ulteriormentegeradas pelo intelectus, portanto para afastar mal-entendi<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>sconhecimentos 134 . Quan<strong>do</strong> otempo não se separa <strong>do</strong> espaço, o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> um se <strong>de</strong>scobre no outro, imediatamente (sem mediaçãointelectual).461) O espaço absoluto não rege o espaço priva<strong>do</strong> (famílias e indivíduos). Ele lhe <strong>de</strong>ixava muito <strong>de</strong>liberda<strong>de</strong>? Este espaço não tolera a diferença entre o público e o priva<strong>do</strong>. Ele só o inclui na medidaem que a vida dita privada possui, ela própria, um estatuto distinto, religioso ou político: o lar. Débilliberda<strong>de</strong>, que permite às casas e residências agruparem-se, mais ou menos mo<strong>de</strong>stamente, em torno<strong>de</strong> lugares altos ou baixos.462) Aqui ainda a organização romana <strong>do</strong> espaço <strong>de</strong>ixa mais lugar à diversida<strong>de</strong>. Mas a que preço?463) IV.3 – Nas suas nobres amplificações, os poetas jamais negligenciaram o Precipício, o Abismo,e seus corolários, os Cumes, os Topos. No alvorecer da cultura oci<strong>de</strong>ntal, Dante trata com umaincomparável potência [capacida<strong>de</strong>] os temas da Profundida<strong>de</strong> e da Altitu<strong>de</strong> (o Inferno e o Paraíso)com um certo <strong>de</strong>sprezo pelas superfícies e pelo superficial que <strong>de</strong>pois foi necessário reabilitar(Nietzsche). Os contrastes <strong>do</strong> Tenebroso e <strong>do</strong> Luminoso, <strong>do</strong> Diabólico e <strong>do</strong> Divino, vão até a sublimeretórica <strong>de</strong> Hugo. Estas relações entre o espaço e a linguagem atravessaram peripécias ainda malconhecidas.464) O primeiro entre os filósofos, Hei<strong>de</strong>gger em Sein und Zeit 135 examinou o Mundus, imagem,símbolo, mito. E lugar. Ele examinou o “Mun<strong>do</strong>” como filósofo mais que como historia<strong>do</strong>r, comoantropólogo, como analista das socieda<strong>de</strong>s.465) O Mundus. O vilarejo italiota circunda este lugar sagra<strong>do</strong>-maldito. É um buraco: <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong>imundícies, <strong>de</strong>scarga pública. Nele se precipitam os resíduos, as sujida<strong>de</strong>s, os con<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s à morte, orecém-nasci<strong>do</strong> que o Pai <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> não “criar” (que ele não pren<strong>de</strong> ao solo, após o nascimento,elevan<strong>do</strong>-o acima <strong>de</strong> sua cabeça para o segun<strong>do</strong> nascimento, social e não biológico). O Buraco temum senti<strong>do</strong> profun<strong>do</strong>! Esse buraco religa a cida<strong>de</strong>, o espaço acima <strong>do</strong> solo, a luz, o terreno e oterritório aos espaços subterrâneos, escondi<strong>do</strong>s e clan<strong>de</strong>stinos, os da fecundida<strong>de</strong> e da morte, <strong>do</strong>134 Sobre estes conceitos <strong>de</strong> origem filosófica, cf. Fl. Gaboriau, Nouvelle initiation philosophique , T. II, p. 65 e seguintes,Casterman, 1963. E, obviamente, a Summa Theologica.191


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006começo e <strong>do</strong> fim, <strong>do</strong> nascimento e <strong>do</strong>s funerais. Como mais tar<strong>de</strong>, nos tempos cristãos, o cemitério…Lugar <strong>de</strong> passagem: por ele as almas mortas entram no seio da terra, sain<strong>do</strong> para renascer. Lugar <strong>do</strong>tempo, nascimentos e tumbas, vagina da terra mãe e nutriz, obscuro corre<strong>do</strong>r vin<strong>do</strong> das profun<strong>de</strong>zas,caverna se abrin<strong>do</strong> para as clarida<strong>de</strong>s, estuário <strong>de</strong> forças ocultas, cavida<strong>de</strong> <strong>de</strong> penumbra [boca <strong>de</strong>sombra], o “mundus” aterroriza e glorifica. Ambigüida<strong>de</strong>: a maior mácula, a maior pureza a vida e amorte, a fecundida<strong>de</strong> e a <strong>de</strong>struição, o horror e a fascinação. “Mundus est immundus” 136 .466) A psicanálise <strong>do</strong> espaço po<strong>de</strong> dar conta <strong>de</strong>ssa presença-ausência incompreensível e possante[po<strong>de</strong>rosa]? Sim, certamente, mas não é preciso, ao invés <strong>de</strong> uma racionalização tardia, serepresentar uma secreção “histórica” lenta, um <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> interpretações superpostas, com seus ritose seus mitos, os Italiotas localizan<strong>do</strong> e focalizan<strong>do</strong> suas crenças nos abismos? Que o vazio se tornecentro, e centro da concepção <strong>do</strong> “mun<strong>do</strong>”, é bastante estranho para não se explicar pela ação <strong>de</strong> umsó elemento, o psíquico. Quan<strong>do</strong> se pensa no futuro que este espaço <strong>de</strong> representação encerrava[continha]!467) Roma. A Cida<strong>de</strong> exorciza as forças subterrâneas. Ela as <strong>de</strong>safia representan<strong>do</strong>-as <strong>de</strong> umamaneira sensível. A Cida<strong>de</strong> eterna integra à sua or<strong>de</strong>m – militar, jurídica, política – a natureza,figuran<strong>do</strong>-a. O solda<strong>do</strong> cidadão, chefe e pai, atribui um lugar à feminida<strong>de</strong> no espaço da cida<strong>de</strong>, nasrepresentações e na realida<strong>de</strong>. Se o “Mundus” teve um papel na formação da romanida<strong>de</strong>, é peloinverso e corolário: a figura <strong>do</strong> Pai. O Pai <strong>do</strong>mina; ele se torna o que ele é: o chefe, o solda<strong>do</strong>político, portanto, a Lei e o Direito (impostos aos venci<strong>do</strong>s organizan<strong>do</strong> a vitória, a repartição <strong>de</strong>butins, a redistribuição <strong>de</strong> lugares e primeiramente da terra). O Pater-Rex não se submete ao mun<strong>do</strong>;ele o remaneja [refaz; modifica] sob seu po<strong>de</strong>r e seu direito, a Proprieda<strong>de</strong> e o Patrimônio, Jus utendiet abutendi 137 , limita<strong>do</strong>s não pelo “ser” <strong>do</strong>s outros, mas pelo direito daqueles entre os outros quecompartilham o mesmo po<strong>de</strong>r. O Pater-Rex, mais tar<strong>de</strong> Imperator, magistra<strong>do</strong> e padre, recompõe oespaço ao seu re<strong>do</strong>r [em torno <strong>de</strong> si]: o espaço <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r.468) Deste mo<strong>do</strong> se engendram as disposições espaciais (sociais) e mentais que <strong>de</strong>viam produzir asocieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte (com suas i<strong>de</strong>ologias). Dito <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>: o direito (romano), a noção daLei, as <strong>do</strong> Patrimônio e da Paternida<strong>de</strong> jurídica e moral.469) No momento em que a paternida<strong>de</strong> impõe sua lei (a Lei) jurídica à maternida<strong>de</strong>, a abstração seerige em lei <strong>do</strong> pensamento. A <strong>do</strong>minação <strong>do</strong> Pai sobre o solo, os bens, as crianças, os servi<strong>do</strong>res e135Ser e Tempo (N.T.)136 Em latim, conforme grafa<strong>do</strong> pelo autor (N.T.)137 Do latim ab utendi e latim eclesiástico abusari, abusar, consumir, gastar mal. Locução latina que <strong>de</strong>signa o uso absoluto dacoisa pelo proprietário, que podia usá-la como bem lhe aprouvesse e, até, <strong>de</strong>struí-la (jus utendi, fruendi et abutendi). O jusabutendi era a expressão <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio pleno da coisa pelo proprietário (N.T.).192


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006os escravos, as mulheres, introduz a abstração e a supõe. Do la<strong>do</strong> <strong>do</strong> feminino, existe o imediato, areprodução da vida (indiscernivelmente misturada, inicialmente à produção agrícola), o prazer e a<strong>do</strong>r, a terra e o abismo. Esse po<strong>de</strong>r paternal não ocorre sem a lei <strong>do</strong>s signos imposta à natureza, pelaescrita e pelas inscrições, pela pedra. A passagem da maternida<strong>de</strong> ainda importante (relações <strong>de</strong>consangüinida<strong>de</strong>) à pre<strong>do</strong>minância da paternida<strong>de</strong>, implica a constituição <strong>de</strong> um espaço mental esocial; ao mesmo tempo que a proprieda<strong>de</strong> privada <strong>do</strong>s solos, sua partilha, se impõe segun<strong>do</strong>princípios abstratos que <strong>de</strong>terminam ao mesmo tempo os limites das proprieda<strong>de</strong>s, e o estatuto <strong>do</strong>sproprietários.470) Roma. Urbs e Orbs 138 . A cida<strong>de</strong> antiga se apreen<strong>de</strong>, se percebe como “imago mundi”. Ela reúnee concentra o que se dispersa ao seu re<strong>do</strong>r. Inserida na natureza, num sítio, com uma situação bem<strong>de</strong>terminada e fortemente percebida em relação ao que a circunda, ela dá lugar a uma representação<strong>do</strong> espaço; o que os cidadãos pensam, não é tal ou qual espaço, mas alguma coisa mais vasta: suarepresentação <strong>do</strong> espaço inteiro, terra, mun<strong>do</strong>. Na cida<strong>de</strong>, em contrapartida, se formarão espaços <strong>de</strong>representação; as mulheres, os servi<strong>do</strong>res e os escravos, as crianças terão seu tempo e seus espaços.O livre cidadão, solda<strong>do</strong> político se representa a or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> incorporada espacialmente,figurada em sua cida<strong>de</strong>. O campo militar, espaço instrumental obe<strong>de</strong>ce a um outro or<strong>de</strong>namento(espaço retangular, severamente simétrico, orienta<strong>do</strong> pelo car<strong>do</strong> e pelo <strong>de</strong>cúmano).471) A fundação <strong>de</strong> Roma cumpriu-se segun<strong>do</strong> ritos <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s, se acreditarmos na tradição. Ofunda<strong>do</strong>r (Remus) traça um círculo com um ara<strong>do</strong>, subtrai um espaço à natureza, lhe atribui umsenti<strong>do</strong> político. Nessa fundação (passemos sobre os <strong>de</strong>talhes) tu<strong>do</strong> é simbólico e tu<strong>do</strong> é prático[prática]; o real e o senti<strong>do</strong> se reencontram, o imediato e o abstrato.472) Tu<strong>do</strong> se passa no espaço romano como se um “intuitus” orientasse a apreensão, a edificação <strong>do</strong>espaço. Orbs e Urbs: a forma circular, não geometrizada. A racionalida<strong>de</strong> resultante, espacial ejurídica, se perseguirá nas criações essenciais, as mais concretas, da romanida<strong>de</strong>: a abóbada, o arco,o círculo (o circo, circulus), até a toga romana que, ao menos em certas épocas, se cortavaperfuran<strong>do</strong> um buraco para a cabeça num círculo <strong>de</strong> teci<strong>do</strong>. “Intuitus” opon<strong>do</strong>-se ao “habitus”, não<strong>de</strong>signa aqui uma intuição teórica, <strong>de</strong> essência intelectual, mas uma prática (espacial) motivada porrepresentações (também elas espaciais).473) Que o passageiro curioso para compreen<strong>de</strong>r a geração <strong>do</strong> espaço não consi<strong>de</strong>re somente a Roma<strong>de</strong> mármore, mas a <strong>de</strong> tijolos; que ele não olhe apenas o Coliseu ou o Fórum, não obstante ricos <strong>de</strong>senti<strong>do</strong>s; que ele examine com cuida<strong>do</strong> o Pantheón 139 , sem muito se <strong>de</strong>morar na fachada <strong>de</strong>138Em latim, conforme grafa<strong>do</strong> pelo autor (N.T.)139 Templo <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os <strong>de</strong>uses (N.T.).193


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006mármore. O interior <strong>de</strong>ste monumento famoso reproduz o mun<strong>do</strong>, emergin<strong>do</strong> na cida<strong>de</strong>, se abrin<strong>do</strong>em direção às potências celestes, acolhen<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os <strong>de</strong>uses, conten<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os lugares. E que opassageiro, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> os guias, analise a construção <strong>de</strong>ste espaço: o prodigioso entrelaçamento <strong>de</strong>curvas, o emaranha<strong>do</strong> <strong>de</strong> arcaturas (portentosas ou não) que o constituem. Uma imagem gera<strong>do</strong>ra(produtiva) <strong>do</strong> espaço, eis o que oferece Roma. Qual espaço? Especifica<strong>do</strong>, o da potência. O espaçopolítico não se estabelece somente por atos (a violência material engendran<strong>do</strong> uma paz, umalegalida<strong>de</strong>, uma legislação). A gênese <strong>de</strong> um tal espaço implica uma prática, imagens, símbolos, aconstrução <strong>de</strong> edifícios, <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> relações sociais localizadas.474) O para<strong>do</strong>xo, é que esse intuitus, sofistica<strong>do</strong>, empobreci<strong>do</strong> tornar-se-á habitus. A representação<strong>do</strong> espaço, incorporada na pedra, na Cida<strong>de</strong>, na lei paternalista, no Império, se modificará em espaço<strong>de</strong> representação. Ela se banhará no Mundus reencontra<strong>do</strong>, em versão agravada, abismo subterrâneoe infernal. Este espaço <strong>de</strong> representação, toma<strong>do</strong> como “fundamento”, tornar-se-á o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong>cristianismo. No curso <strong>do</strong> longo <strong>de</strong>clínio <strong>do</strong> Império e da Cida<strong>de</strong>. Com Agostinho, bárbaro genial:“Mundus est immundus”.475) Para resumir Roma e a romanida<strong>de</strong>, a análise nelas discerne:476) a) A prática espacial, dupla. A Estrada, civil e militar, religa a Urbs aos campos <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s. Aestrada romana permite à Urbs, povo e sena<strong>do</strong>, afirmar a centralida<strong>de</strong> política, no meio da “orbisterrarum”. A Porta, passagem da estrada imperial, in<strong>do</strong> da Urbs ao Orbs, separa o muro sagra<strong>do</strong> <strong>do</strong>território submeti<strong>do</strong>, permite a entrada e a saída. No outro pólo, o da vida “privada” que se constituijuridicamente no seio da socieda<strong>de</strong> “política” e segun<strong>do</strong> os mesmos princípios, os da proprieda<strong>de</strong>, aCasa romana correspon<strong>de</strong> a necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>terminadas 140 .477) b) A representação <strong>do</strong> espaço, dupla: o Orbs e a Urbs, circulares, com suas aberturas e suasimplicações (o arco e a abóbada) e o campo militar, severamente quadricula<strong>do</strong>, com seus <strong>do</strong>is eixosperpendiculares, o car<strong>do</strong> e o <strong>de</strong>cúmano, espaço fecha<strong>do</strong>, reparti<strong>do</strong>, fortifica<strong>do</strong>.478) c) O espaço <strong>de</strong> representação, duplo: o princípio masculino, militar, autoritário, jurídico,<strong>do</strong>minante; o princípio feminino, não nega<strong>do</strong> mas integra<strong>do</strong>, “abismo” na terra, lugar <strong>de</strong> sementes e<strong>de</strong> mortes, “mun<strong>do</strong>”.479) Essas três <strong>de</strong>terminações correspon<strong>de</strong>m ao percebi<strong>do</strong>, ao concebi<strong>do</strong>, ao vivi<strong>do</strong>, numa unida<strong>de</strong>global. Na e pela prática espacial ajustada ao longo <strong>de</strong> uma história, um intuitus se modifica emhabitus, consolidação <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>gradação. Durante e <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> qual intervém o intellectus, oconcebi<strong>do</strong> que se manifesta na obra <strong>de</strong> Vitrúvio, mas também nos discursos diversos (Cícero ouSêneca). Esses três termos, e o que eles <strong>de</strong>notam e conotam, intervêm na produção <strong>do</strong> espaço, no140 Cf. a <strong>de</strong>scrição precisa em Vitruve, ed. A. Choisy, Paris, 1907, no VI, 7 e seguintes.194


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006curso <strong>de</strong> interações on<strong>de</strong> o intuitus original torna-se um quase-sistema: a abóbada e seu feitiço [suaconvexida<strong>de</strong>], o arco, o aqueduto. Na romanida<strong>de</strong>, a organização, o pensamento, a produção <strong>do</strong>espaço andavam juntos e quase no mesmo passo. Sob qual signo <strong>do</strong>minante? Não o <strong>do</strong> Logos, mas oda Lei.480) IV.4 O cristianismo viverá sobre um jogo <strong>de</strong> palavras, “Mundus et immundus” (uni<strong>do</strong>s a outrojogo, não menos célebre e sofistica<strong>do</strong>, sobre o Logos e o Verbo). Quanto à filosofia ulterior, a dasocieda<strong>de</strong> cristã, ela viverá na disjunção agostiniana <strong>do</strong> tempo e <strong>do</strong> espaço (<strong>do</strong> sujeito e <strong>do</strong> objeto)com <strong>de</strong>preciação <strong>de</strong>ste último 141 .481) Mais próximo da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, sob a influência <strong>de</strong> Marx, superestimou-se o econômico, orafusionan<strong>do</strong>-o com a história (materialismo dito histórico), ora opon<strong>do</strong>-o à história (economismobanal). Desconhecia-se assim a história como condição e base <strong>do</strong> econômico. O Logos e a lógica <strong>de</strong>origem grega? O Direito e a lei <strong>de</strong> origem romana? Seu estatuto permanecia in<strong>de</strong>ciso, fetichiza<strong>do</strong> poruns, <strong>de</strong>sacredita<strong>do</strong> por outros. Porém, eles engendraram práticas, não sen<strong>do</strong> apenas i<strong>de</strong>ologias. Alógica é parte integrante <strong>do</strong> saber, e o direito da práxis. Remetê-los à antropologia, à historicida<strong>de</strong>pura e simples? Não é fácil. Esse estatuto incerto se precisaria se o pensamento reflexivoconsi<strong>de</strong>rasse o espaço, entendamos o espaço “real” e não o espaço abstrato, purifica<strong>do</strong>, esvazia<strong>do</strong>: oespaço com suas modalida<strong>de</strong>s concretas. Lógica e Direito não foram inicialmente formas <strong>de</strong>organização espacial, implican<strong>do</strong> e conten<strong>do</strong> representações <strong>do</strong> espaço e espaços <strong>de</strong> representação?482) Situação surpreen<strong>de</strong>nte em vários aspectos: “nós”, oci<strong>de</strong>ntais, her<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> uma tradição no seulimite [exaurida; esgotada], quase no fim <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma cultura, <strong>de</strong> uma civilização que“nós” sabemos apenas caracterizar (capitalismo? Ju<strong>de</strong>o-cristianismo? Um e outro? Cultura <strong>do</strong> nãocorpo?Socieda<strong>de</strong> contraditoriamente permissiva e repressiva? Consumo dirigi<strong>do</strong> burocraticamente?etc.), “nós” nos acreditamos mais próximos <strong>do</strong> Logos e <strong>do</strong> Cosmos gregos que <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> romano,que contu<strong>do</strong> nos atormenta profundamente.483) A Pólis grega nasceu <strong>de</strong> um sinoecismo (reunião <strong>de</strong> al<strong>de</strong>ias) sobre sua eminência, com aacrópole e a ágora. Na clarida<strong>de</strong>. O mar, com seus recursos, jamais está longe. O <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>, olongínquo, perigosos mas não inacessíveis, estimulam a curiosida<strong>de</strong>, a imaginação e o pensamento,indissociáveis.484) Uma retórica tardia torna enigmático e maravilhoso o que resulta, aqui como alhures, <strong>de</strong> umencontro e <strong>de</strong> uma prática. A cida<strong>de</strong> grega não exorciza as forças subterrâneas; ela se eleva acima<strong>de</strong>las ultrapassan<strong>do</strong>-as. Às vezes captan<strong>do</strong>-as (Elêusis 142 ). Para os cidadãos-citadinos, o espaço <strong>de</strong>141Cf. O livro X das “Confissões”.142 Cida<strong>de</strong> da Ática (região da Grécia on<strong>de</strong> se localiza Atenas), famosa por seus cultos misteriosos (N.T.)195


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006representação e a representação <strong>do</strong> espaço, sem coincidir, concordaram e se acordaram 143 . A or<strong>de</strong>m<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, aquele da cida<strong>de</strong>, aquele da casa, três níveis ou partes: o espaço físico, o espaço político(a cida<strong>de</strong> com seu território), o espaço urbano (interno à cida<strong>de</strong>), encontraram uma unida<strong>de</strong>. Nãouma unida<strong>de</strong> simples, homogênea, mas uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> composição e <strong>de</strong> proporções, implican<strong>do</strong>diferenças e hierarquia. Simultaneamente, o saber e o po<strong>de</strong>r, a teoria e a prática sociais entram numamedida comum. Como o tempo e os ritmos, os <strong>do</strong>s dias e das festas, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a organização <strong>do</strong>espaço, <strong>do</strong> altar <strong>do</strong>méstico, <strong>do</strong> lar comum, a Boulè 144 sobre a Ágora – lugar aberto e disponível paraa reunião <strong>de</strong> cidadãos, centro político – os templos e os estádios.485) Todas as socieda<strong>de</strong>s históricas diminuíram a importância das mulheres e limitaram a influênciada feminida<strong>de</strong>. Nos Gregos, ela se reduz à fecundida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um campo, proprieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> esposo, por elecultivada; ela se localiza na casa: ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> altar, da lareira, em torno <strong>do</strong> ônfalo 145 , espaço re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>,fecha<strong>do</strong> e fixo, em torno <strong>do</strong> forno, último traço <strong>do</strong> precipício tenebroso. O estatuto social seguiu amesma restrição <strong>do</strong> estatuto simbólico e prático, ambos aspectos se mostran<strong>do</strong> indissociáveis naespacialida<strong>de</strong> (a prática espacial).486) Portanto, o mun<strong>do</strong> subterrâneo não <strong>de</strong>sapareceu. O dia, Zeus e a razão venceram as potênciastenebrosas (chtoniennes). Nas profun<strong>de</strong>zas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> infernal, os Titãs se inquietam após seufracasso. No país <strong>do</strong>s mortos, as sombras beberam o Leteu 146 . O gênio grego soube localizar omun<strong>do</strong> subterrâneo, especificá-lo, nomeá-lo, subordinan<strong>do</strong>-o à superfície, à montanha on<strong>de</strong>pastoreiam os rebanhos, ao campo cultiva<strong>do</strong>, ao mar que labora o étrave 147 <strong>do</strong>s navios porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong>riquezas. No lugar <strong>de</strong> <strong>do</strong>miná-lo e <strong>de</strong> apropriá-lo como em Roma, o gênio grego o afasta, o situa (emDelfos e nas festas das Bacantes). O senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssas imagens não se encontra nas obras literárias, aocontrário: os ritos, as narrativas [os relatos] míticas (<strong>de</strong> Hesío<strong>do</strong> a Platão) dizem com imagens esímbolos o que se passa no espaço social. A racionalização conceitual foi precisamente a obra tardia<strong>do</strong>s Gregos em direção ao fim da sua civilização (com a filosofia).487) IV.5 A maioria das socieda<strong>de</strong>s, ten<strong>do</strong> segui<strong>do</strong> esse caminho, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vêm as diferenças? Comoacontece <strong>de</strong> as socieda<strong>de</strong>s chegarem a estatutos diversos, a expressões e formulações variadas <strong>do</strong>princípio masculino e <strong>de</strong> sua <strong>do</strong>minante? A Grécia, moldada [mo<strong>de</strong>lada] por Atenas e a Itália por143 É o que mostra, em sua perspectiva, a <strong>de</strong> uma história psicológica, J.P. Vernant (Mythe et pensée chez les Grecs , cf. p. 209,225 etc.). Esta interpretação da grecida<strong>de</strong>, mais precisa <strong>do</strong> que a <strong>de</strong> Nietzsche, melhor fundada na filologia, per<strong>de</strong> a amplitu<strong>de</strong>poética.144 Instituição política da cida<strong>de</strong> grega (N.T.)145Gran<strong>de</strong> pedra sagrada <strong>do</strong> templo <strong>de</strong> Apolo, em Delfos, consi<strong>de</strong>rada como o centro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, e que simbolizava afecundida<strong>de</strong> da terra (N.T.).146 Divinda<strong>de</strong> grega concebida à época clássica como uma abstração. U m <strong>do</strong>s cinco rios <strong>do</strong> inferno cujas águas tinham aproprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer com que as almas <strong>do</strong>s mortos que <strong>de</strong>las bebessem não mais se lembrassem <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> na Terra (N.T.).147 Peça saliente que forma a proa <strong>de</strong> um navio (N.T.)196


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006Roma tornaram-se socieda<strong>de</strong>s tão diferentes que uma produziu e transmitiu o Logos (lógica e saber)ao passo que a outra produziu e transmitiu o Direito.488) O que a psicanálise, que <strong>de</strong>veria se sentir confortável diante <strong>de</strong>stes questionamentos, po<strong>de</strong>respon<strong>de</strong>r? O esquema edipiano, aquele <strong>do</strong> triângulo, permite construir apenas uma explicaçãocausal muito mecanicista, muito homogeneizante. O “triângulo edipiano” se encontra em toda parte.A estrutura triangular teria força explicativa; mas se esta é uma estrutura constante, como elaengendra efeitos tão diferentes?489) Aqui a questão foi tomada diferentemente: exploran<strong>do</strong> a prática social como extensão <strong>do</strong> corpo,e isso no curso <strong>de</strong> uma gênese <strong>do</strong> espaço no tempo, e em conseqüência <strong>de</strong> uma historicida<strong>de</strong> elaprópria consi<strong>de</strong>rada como produzida [produto].490) No curso <strong>de</strong>ssa história não é necessário discernir a virilida<strong>de</strong> da masculinida<strong>de</strong>? Em Roma, asvirtu<strong>de</strong>s e valores masculinos, os <strong>do</strong> militar e <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r comandam. À Grécia pertence avirilida<strong>de</strong>, que porta [carrega; contém; coloca] um perpétuo <strong>de</strong>safio aos inimigos e rivaliza com osamigos, que tem por senti<strong>do</strong> e objetivo, ora brutal ora sutil, a performance, que quer sobretu<strong>do</strong>exce<strong>de</strong>r, mas que as pequenas tarefas <strong>de</strong>sencorajam e que, versátil, mistura as questões quan<strong>do</strong> lheseria necessário <strong>de</strong>cidir a longo prazo. Essa virilida<strong>de</strong>, promovida à escala cósmica, a <strong>do</strong>s <strong>de</strong>uses,guarda as qualida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s pequenos grupos competitivos.491) Virilida<strong>de</strong> e rivalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s Gregos: eles distinguiram <strong>do</strong>is usos da erística 148 , da agonística 149 ,um bom, o outro mau. O mau uso da luta propõe a <strong>de</strong>struição <strong>do</strong> adversário; o bom uso valoriza oadversário buscan<strong>do</strong> fazer melhor <strong>do</strong> que ele 150 . A Diké 151 , a justiça, discerne esses aspectos <strong>do</strong><strong>de</strong>safio e da <strong>de</strong>sconfiança, que mistura o Hubris 152 . Se é permiti<strong>do</strong> distinguir, a propósito <strong>de</strong> Roma e<strong>de</strong> Romanos, o intuitus inicial e o habitus final, essa distinção cai a propósito <strong>do</strong>s Gregos.492) A imagem gera<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> espaço grego é um espaço já plenamente forma<strong>do</strong>, pertinentementepovoa<strong>do</strong>; é a feliz disposição <strong>do</strong>s lares, o <strong>de</strong> cada casa, o da Pólis, sobre uma eminência bemescolhida, bem situada, que recebe a luz <strong>do</strong> sol, junto <strong>de</strong> uma fonte abundante. Hierarquia espacial esocial, a cida<strong>de</strong> grega se serve <strong>do</strong> espaço bem <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> para integrar os démos 153 , as famílias148Na antiguida<strong>de</strong> grega, arte ou técnica da disputa argumentativa no <strong>de</strong>bate filosófico, <strong>de</strong>senvolvida sobretu<strong>do</strong> pelos sofistas,e baseada em habilida<strong>de</strong> verbal e acuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> raciocínio (N.T).149 Na Antiguida<strong>de</strong> greco-romana, ciência e prática <strong>do</strong>s combates ou lutas corporais, consi<strong>de</strong>radas uma utilização especial daginástica (N.T).150 Cf. a retomada nietzschiana <strong>do</strong> Eris, Zarathoustra, I, Vom Freun<strong>de</strong>, e II, Von <strong>de</strong>n Mitleidigen. “Immer sollst du <strong>de</strong>r bestesein… diese machte einem Griechen die Seele zittern” (Von Tausend und einem Ziele). Sobre a dupla Eris, cf. J. P. Vernant,op. cit. , p. 33.151 Justiça (personificada na <strong>de</strong>usa Díke, a Justiça, a Vingança, o Castigo) (N.T.).152 Orgulho arrogante. (N.T.).153Divisão territorial e unida<strong>de</strong> administrativa na Antiguida<strong>de</strong> grega. “Originariamente indica a porção <strong>de</strong> um territóriohabita<strong>do</strong> por um grupo ou comunida<strong>de</strong>. A seguir, ganho o senti<strong>do</strong> étnico <strong>de</strong> população ou povo <strong>de</strong> um país. Em seguida, recebe197


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006aristocráticas, as al<strong>de</strong>ias, os grupos <strong>de</strong> artesãos e <strong>de</strong> comerciantes, numa unida<strong>de</strong>: a Pólis. Ao mesmotempo meio e fim, conhecimento e ação, natural e político, este espaço se povoa <strong>de</strong> homens e <strong>de</strong>monumentos. O centro reúne. É a ágora. No topo da acrópole, o templo presi<strong>de</strong> e culmina o espaçoespaço-temporal. O Templo não é a imagem <strong>de</strong> nada. Ele está lá “em pé no vale rochoso”. Ele dispõee restitui em torno <strong>de</strong> si e <strong>do</strong> <strong>de</strong>us a unida<strong>de</strong> das relações nas quais têm lugar nascimentos e mortes,ruínas e prosperida<strong>de</strong>s, vitórias e fracassos (Hei<strong>de</strong>gger). Nada que seja <strong>de</strong>corativo, nada que sejafuncional. O espaço, o corte das pedras, a geometria da massa, o or<strong>de</strong>namento, não se separam. Asvigas e vergas, com seus apoios e suportes comandam a organização <strong>do</strong> espaço e a distribuição dasmassas. Don<strong>de</strong> o apelo às “or<strong>de</strong>ns” e sua importância. As colunas (dóricas, iônicas, coríntias) fazemas “or<strong>de</strong>ns”. Estas “or<strong>de</strong>ns” fazem parte ao mesmo tempo da construção e da <strong>de</strong>coração. O cosmos,semelhante a uma bela cabeleira acima <strong>de</strong> uma nobre testa, se dispõe luminosamente sem dissociar obem <strong>do</strong> belo.493) A diferença? Ela foi produzida. Não como tal, concebida, representada. Ela jamais fez partesenão tardia e indiretamente, <strong>de</strong> um saber, <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> enuncia<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> um campo epistemológicoassocia<strong>do</strong> ou não a um núcleo <strong>de</strong> saber. Uma diferença concebida já não é reduzida, apenas pelo fato<strong>de</strong> que os <strong>do</strong>is termos entram comparativamente num mesmo pensamento, num ato intelectual?Mesmo se esse ato prece<strong>de</strong> uma ação e mesmo se a ação prática realiza o ato intelectual, a diferençaé então apenas induzida.494) Entre o Cosmos e o Mun<strong>do</strong>, a diferença se engendra no curso <strong>de</strong> um processo dito “histórico”,cada um <strong>do</strong>s termos consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s ignoran<strong>do</strong> ou <strong>de</strong>sconhecen<strong>do</strong> o outro. Po<strong>de</strong>-se assegurar, bem maistar<strong>de</strong>, que uma imagem ou um conceito <strong>do</strong> espaço <strong>de</strong>via se inspirar ou <strong>do</strong> baixo ou <strong>do</strong> alto – ou bem<strong>do</strong> abismo ou bem <strong>do</strong> topo – colocan<strong>do</strong> a tônica sobre tal ou qual direção, tal ou qual orientação.Certamente. Mas uma das imagens opostas não é constituída contra a outra para [<strong>de</strong>la] diferir. Adiferença advém espontaneamente, o que distingue a diferença produzida da diferença produzida dadiferença induzida, geralmente reduzida.495) IV. 6 Qual é o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> existência <strong>do</strong> espaço absoluto? Fictício ou bem real?496) A <strong>de</strong>manda assim formulada comporta a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma resposta. A partir <strong>de</strong>ssaalternativa, oscilaremos in<strong>de</strong>finidamente entre os <strong>do</strong>is termos propostos. Ficção? Certamente! Comoum espaço “absoluto” possuiria uma existência concreta? Realida<strong>de</strong>? Certamente! Como o espaçoreligioso da Grécia ou <strong>de</strong> Roma não teria possuí<strong>do</strong> a “realida<strong>de</strong>” política?o senti<strong>do</strong> político <strong>de</strong> povo (por oposição ao rei e à aristocracia) e <strong>de</strong> conjunto <strong>do</strong>s cidadãos (na <strong>de</strong>mocracia). Em Atenas, com areforma <strong>de</strong> Clístenes, o démos é uma subdivisão da phylé ou tribo. Em senti<strong>do</strong> genérico: o povo, os cidadãos.” (CHAUÍ,Marilena. Introdução à história da filosofia: <strong>do</strong>s pré-socráticos à Aristóteles. v. I. 2ª ed. ver. e ampl. São Paulo: Companhiadas Letras, 2002, p.497). (N.T.).198


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006497) O espaço absoluto tem somente uma existência mental, portanto “fictícia”. Mas ele <strong>de</strong>témtambém uma existência social; ele possui uma “realida<strong>de</strong>” específica e potente. O “mental” se“realiza” num enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s “sociais” porque a ficção se converte em realida<strong>de</strong> noTemplo, na Cité, nos monumentos, nos palácios. A interrogação ignora ou <strong>de</strong>sconhece a existência<strong>de</strong>ssas obras cuja presença transgri<strong>de</strong> senão transcen<strong>de</strong> as categorias banalizadas e tardias, o “real”oposto ao “fictício”. Um templo, com o que o envolve, é fictício ou real? O realista só vê pedras; ometafísico apenas um lugar consagra<strong>do</strong> ao divino. Não existe outra coisa?498) Esse espaço absoluto não <strong>de</strong>sapareceu. Ele se conservaria somente nas igrejas e cemitérios?Não. O Ego se escon<strong>de</strong> num buraco, seu “mun<strong>do</strong>”, quan<strong>do</strong> ele não se empoleira num promontório <strong>do</strong>Logos. Sua voz sai <strong>de</strong> uma caverna geralmente mefítica e às vezes inspirada. O espaço da palavra?Fictício e real, ele sempre se enfia na fenda, no interstício inassinalável entre o espaço <strong>do</strong> corpo e oscorpos no espaço (o interdito). Quem fala? E <strong>de</strong> on<strong>de</strong>, <strong>de</strong> qual lugar? A questão, tornan<strong>do</strong>-sefamiliar, oculta o para<strong>do</strong>xo: espaço absoluto, espaço mental, no qual a abstração mortal <strong>do</strong>s signos seinsere e on<strong>de</strong> ela tenta se transcen<strong>de</strong>r (pelos gestos, pela voz, pela dança, pela música). As palavrasestão no espaço, e não estão aí. Elas falam <strong>do</strong> espaço; elas o envolvem. O discurso sobre o espaçoimplica uma verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> espaço, que não po<strong>de</strong> vir <strong>de</strong> um lugar situa<strong>do</strong> no espaço, mas <strong>de</strong> um lugarimaginário e real, portanto “surreal” e contu<strong>do</strong> concreto. E, não obstante, conceitual!499) Esse lugar subtraí<strong>do</strong> da natureza e porém <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s tão naturais quanto aquelas dasesculturas esculpidas na ma<strong>de</strong>ira e na pedra, não seria também o da arte?500) IV.7 No curso <strong>de</strong> um longo <strong>de</strong>clínio <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>-Cité-Império, caracteriza<strong>do</strong> pela potência políticae por seu fundamento na terra e na proprieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> solo, a Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>saparece. A Villa [Casa <strong>de</strong>campo; Domínio rural] que pertence a um proprietário fundiário (latifundiário) não tem mais nada <strong>de</strong>um lugar sagra<strong>do</strong>. Ela realiza no espaço agropastoril uma prática espacial codificada, legalizada, a daproprieda<strong>de</strong> privada <strong>do</strong> solo. Ela une, portanto, numa unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção material, os traços geraisda socieda<strong>de</strong> romana (o or<strong>de</strong>namento segun<strong>do</strong> os princípios jurídicos) com um gosto estético (poucocria<strong>do</strong>r, mas refina<strong>do</strong>), com o aprazível da vida. Como testemunham <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a época clássica os textos<strong>de</strong> Cícero, <strong>de</strong> Plínio etc. A diversida<strong>de</strong> no espaço, a pre<strong>do</strong>minância legal <strong>do</strong> priva<strong>do</strong>, comportam aperda da or<strong>de</strong>m grega, a ruptura da unida<strong>de</strong> forma-estrutura-função, assim como a separação nosedifícios entre as partes <strong>de</strong>coradas e as partes funcionais, entre o tratamento <strong>do</strong>s volumes e o dassuperfícies, portanto entre a construção e a composição, entre a arquitetura e a realida<strong>de</strong> urbana.Desse mo<strong>do</strong>, a villa [vivenda; casa <strong>de</strong> campo] romana (a <strong>do</strong> Baixo Império e da <strong>de</strong>cadência) aparececomo produtora <strong>de</strong> um espaço novo, prometi<strong>do</strong> [<strong>de</strong>vota<strong>do</strong>] ao maior futuro na Europa oci<strong>de</strong>ntal. É osegre<strong>do</strong> da permanência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> romano através <strong>do</strong> <strong>de</strong>clínio. A villa [vivenda; casa <strong>de</strong> campo] nãoapenas dará nascimento [origem] a muitas <strong>de</strong> nossas al<strong>de</strong>ias e cida<strong>de</strong>s. Ela propõe uma concepção <strong>do</strong>199


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006espaço cujos caracteres se manifestarão <strong>de</strong>pois: dissociação <strong>de</strong> elementos e em conseqüênciadiversificação prática – subordinação ao princípio unificante, mas abstrato, da proprieda<strong>de</strong> –incorporação num espaço <strong>de</strong>sse princípio em si mesmo impossível <strong>de</strong> viver, mesmo para oproprietário porque jurídico, portanto exterior e aparentemente superior ao “vivi<strong>do</strong>”.501) Assim a romanida<strong>de</strong> se encaminhará para seu limite (distante, pois no século XX ele ainda nãofoi alcança<strong>do</strong>). Libera<strong>do</strong>, o princípio da proprieda<strong>de</strong> privada não permanece estéril; ele engendra umespaço. O silêncio <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> durante séculos se traduz na história oficial e para a maioria <strong>do</strong>shistoria<strong>do</strong>res por um vazio [nada] <strong>de</strong> existência histórica. Que erro! No Oci<strong>de</strong>nte galo-romano seconservarão as mais preciosas conquistas romanas: a arte <strong>de</strong> construir, a arte <strong>de</strong> irrigar e represarcom diques, as gran<strong>de</strong>s estradas, os aperfeiçoamentos leva<strong>do</strong>s à agricultura (para os quais, por suaparte, haviam contribuí<strong>do</strong> os gauleses), e enfim e sobretu<strong>do</strong> o direito da proprieda<strong>de</strong> (privada). Nãose po<strong>de</strong> acusar esse “direito” <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os males. Não mais que o dinheiro ou a merca<strong>do</strong>ria. Ele nãotem nada <strong>de</strong> ruim “em si”. Dominan<strong>do</strong> o espaço (mais exatamente submeten<strong>do</strong>-o ao <strong>do</strong>minium), oprincípio <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> punha fim à contemplação da natureza, cosmos ou mun<strong>do</strong>, para exibir a viada ação <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>ra, que transforma ao invés <strong>de</strong> interpretar. A socieda<strong>de</strong> por ele <strong>do</strong>minada chegariaa um impasse? Sem dúvida, tomada isoladamente e levada ao absoluto. A entrada em cena <strong>do</strong>sBárbaros teve portanto um efeito favorável; violentan<strong>do</strong>-a, eles fecundaram a santa proprieda<strong>de</strong>.Ainda foi preciso os acolher, lhes oferecer sua sorte, a <strong>de</strong> se instalar, <strong>de</strong> valorizar os “villae”, <strong>de</strong> fazeros colonos galo-romanos trabalharem, submeten<strong>do</strong>-os aos chefes da comunida<strong>de</strong> al<strong>de</strong>ã torna<strong>do</strong>ssenhores. No que se refere ao espaço, os Bárbaros o avivaram, por assim dizer, nele reencontran<strong>do</strong>os balizamentos [as referências] mais antigos, os <strong>do</strong>s perío<strong>do</strong>s agropastoris e mais pastoris <strong>do</strong> queagrários.502) Nesse fim <strong>de</strong> império, nessa alta Ida<strong>de</strong> Média, na vacuida<strong>de</strong> aparente, é portanto um novoespaço que se coloca no lugar, suplantan<strong>do</strong> o absoluto, laicizan<strong>do</strong> o espaço religioso e político <strong>de</strong>Roma. O que o dispõe – condição necessária, mas não suficiente – a se modificar em espaçohistórico, em espaço da acumulação. A “villa”, tornada <strong>do</strong>mínio senhoril, ou al<strong>de</strong>ia, segun<strong>do</strong> oscasos, <strong>de</strong>fine duravelmente o lugar: fixação ao solo <strong>de</strong> um estabelecimento.503) IV.8 A imagem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, sofisticada pela teologia (agostiniana) atravessa o <strong>de</strong>clínio <strong>do</strong>Império e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> romanos, o perío<strong>do</strong> latifundiário e seu dramático encontro com os renova<strong>do</strong>resbárbaros. O ano mil? Nessa perspectiva, é o momento fecun<strong>do</strong> entre to<strong>do</strong>s. No seio <strong>do</strong> vazioaparente, outra coisa se anuncia. Os contemporâneos caem na angústia porque só vêem o passa<strong>do</strong>.Um espaço já transforma<strong>do</strong> já é o berço, o lugar <strong>de</strong> nascimento <strong>do</strong> que advirá.504) O cristianismo, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> suas modalida<strong>de</strong>s institucionais, venera os mausoléus. Oslugares sagra<strong>do</strong>s, marca<strong>do</strong>s com o selo divino, Roma, Jerusalém, Compostela, são túmulos: o <strong>de</strong>200


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006Cristo, o <strong>de</strong> São Pedro ou <strong>de</strong> São Tiago. As gran<strong>de</strong>s procissões <strong>de</strong>slocam as multidões em direção arelicários, relíquias, objetos santifica<strong>do</strong>s pela morte. O “mun<strong>do</strong>” reina. Essa religião codifica, sepo<strong>de</strong>mos empregar este termo, a morte. Ela a ritualiza, a cerimonializa, a soleniza. Nos monastérios,os monges contemplam e só po<strong>de</strong>m contemplar a morte, morren<strong>do</strong> para o “mun<strong>do</strong>”, o que finaliza[finalizan<strong>do</strong>] o “mun<strong>do</strong>”. A religião, <strong>de</strong> essência críptica, move-se em torno <strong>de</strong>sses lugaressubterrâneos, as criptas das igrejas. Embaixo <strong>de</strong> cada igreja, <strong>de</strong> cada monastério, a cripta contém osossos ou uma parte <strong>do</strong>s ossos <strong>de</strong> um personagem consagra<strong>do</strong>, mítico ou histórico. Esta última palavra<strong>de</strong>signa os mártires, os que, ao preço <strong>de</strong> sua vida, testemunharam e continuam a testemunhar <strong>do</strong>fun<strong>do</strong> das catacumbas e <strong>de</strong> uma “profundida<strong>de</strong>” que não tem mais nada <strong>do</strong> reino antigo das sombras.A presença <strong>do</strong> santo con<strong>de</strong>nsa na cripta as potências da vida e da morte difusas no “mun<strong>do</strong>”, oespaço absoluto i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> ao espaço subterrâneo. Essa religião sombria acompanha o fim <strong>de</strong>Roma, da Cida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Ela correspon<strong>de</strong> a uma socieda<strong>de</strong> agrícola, mediocremente produtora,on<strong>de</strong> a agricultura (salvo em torno <strong>do</strong>s monastérios) se <strong>de</strong>grada, on<strong>de</strong> as fomes ameaçam, on<strong>de</strong> todafecundida<strong>de</strong> se atribui às potências ocultas. Nessas condições se opera o sincretismo entre a Terra-Mãe, o Deus-Pai cruel, o media<strong>do</strong>r benfeitor. As criptas e mausoléus contêm signos e representações<strong>de</strong> santos personagens. Raramente, ou jamais (parece), esculturas. Sempre pinturas. Elas têm isto <strong>de</strong>notável que ninguém as vê, senão às vezes (à época da festa <strong>do</strong> santo) o clérigo que penetra na criptacom velas iluminadas. Então, momento intenso, as imagens se animam, os mortos aparecem. Essapintura críptica não tem nada <strong>de</strong> visual. Sua existência coloca um problema insolúvel para os quepensam segun<strong>do</strong> as categorias posteriores e as projetam no passa<strong>do</strong>. Como uma pintura po<strong>de</strong>permanecer invisível? Ser prometida [<strong>de</strong>votada] ao noturno? Por que os afrescos <strong>de</strong> Lascaux e os dacripta <strong>de</strong> Saint Savin? Essas pinturas não foram feitas para serem vistas, mas para “serem” e para quesaibamos que elas “estão” lá: imagens mágicas, con<strong>de</strong>nsan<strong>do</strong> as virtu<strong>de</strong>s subterrâneas, signos <strong>de</strong>morte, traços da luta contra a morte, para voltar contra elas suas potências.505) A Igreja. Que visão estreita, que erro imaginá-la como uma entida<strong>de</strong> possuin<strong>do</strong> uma “se<strong>de</strong>” emRoma e se instalan<strong>do</strong> pelo porta-voz <strong>do</strong> clero nas “igrejas” das al<strong>de</strong>ias e cida<strong>de</strong>s, <strong>do</strong>s conventos emonastérios, basílicas e outros! O “mun<strong>do</strong>”, o espaço fictício-real das trevas, a Igreja o habita, oobseda. O mun<strong>do</strong> subterrâneo rompe aqui e ali, em cada “se<strong>de</strong>”, a <strong>do</strong> menor pároco <strong>do</strong> campo até a<strong>do</strong> papa, rompe a superfície terrestre, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que o “mun<strong>do</strong>” surge. O “mun<strong>do</strong>”, o <strong>do</strong> militantismoreligioso, da Igreja sofre<strong>do</strong>ra e militante, esten<strong>de</strong>-se e se movimenta abaixo da superfície. Esteespaço, o da cristanda<strong>de</strong>, um Bernard <strong>de</strong> Clairvaux o ocupa com sua potente personalida<strong>de</strong>, noséculo XII. Só esta unida<strong>de</strong> mágico-mística, fictícia-real, dá conta da influência <strong>de</strong> um tal gênio, quecomanda <strong>do</strong>is reis e diz ao papa: “Eu sou mais papa que tu”. No momento no qual se anunciavaalguma coisa <strong>de</strong> outro [algo diferente], Bernard <strong>de</strong> Clairvaux revalorizava o espaço <strong>do</strong>s signos da201


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006morte, a contemplação <strong>de</strong>sesperada, o ascetismo. As multidões se agrupavam em torno <strong>de</strong>le, e nãosomente as multidões. Seu leito simbolizava seu espaço.506) O que acontece no século XII? Se seguirmos a opinião comum <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res, a históriaretorna, enfim, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um longo interlúdio. Somente então se preparam “fatores” que farão ostempos mo<strong>de</strong>rnos! Que “suspense”! À longa paciência da História respon<strong>de</strong> a paciência <strong>do</strong>shistoria<strong>do</strong>res, que se <strong>de</strong>batem nessa aurora crepuscular, que separam pouco a pouco a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m [amistura, o amálgama] <strong>do</strong>s fatos segun<strong>do</strong> as causas. Pru<strong>de</strong>ntes, esses historia<strong>do</strong>res 154 hesitam falar <strong>de</strong>revolução a propósito <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s movimentos <strong>do</strong> século XII. Eles são tanto mais reticentes quantosão leva<strong>do</strong>s a estudar a revolução camponesa – a “revolução <strong>do</strong>s servos” – que investe [se volta]contra a condição servil, conjuntamente com a revolução urbana que muda o estatuto global dasocieda<strong>de</strong>. Quem <strong>de</strong>la se beneficiará? O rei, <strong>de</strong>certo, e sua potência, e o Esta<strong>do</strong>, inicialmente feudal emilitar. O que é anuncia<strong>do</strong> no século XII não é, por isso, realiza<strong>do</strong> nesse momento. Que encontro <strong>de</strong>acasos e <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminismos permite a ação <strong>de</strong> homens tão excepcionais quanto Bernard <strong>de</strong> Clairvaux,Suger, Abélard? Como assistir retrospectivamente ao nascimento <strong>do</strong> que surge então, se não sepercebe os lugares e o berço? Que as cida<strong>de</strong>s tenham então retoma<strong>do</strong> importância, ninguém po<strong>de</strong>contestar. O que as cida<strong>de</strong>s introduzem, o que produzem? Um novo espaço. Esta resposta evitará asdificulda<strong>de</strong>s meto<strong>do</strong>lógicas e teóricas que resultam da única consi<strong>de</strong>ração <strong>do</strong> tempo (histórico oupresumi<strong>do</strong> como tal)? Talvez. A ascensão das cida<strong>de</strong>s medievais <strong>de</strong>ve se consi<strong>de</strong>rar com suasimplicações e conseqüências. Ela supõe a existência <strong>de</strong> um sobreproduto nos campos para alimentara população urbana, e porque a cida<strong>de</strong> se organiza em merca<strong>do</strong>, porque os artesãos tratam osmateriais provenientes <strong>do</strong> trabalho agrícola (lãs, couros). O que conduz à constituição <strong>de</strong> associaçõescorporativas <strong>de</strong> inspiração comunitária, no interior da comuna urbana. Ainda que os membros dascorporações não tenham nada <strong>de</strong> “proletário”, com essas associações entra em cena o trabalha<strong>do</strong>rcoletivo, capaz <strong>de</strong> produzir “socialmente”, para a socieda<strong>de</strong>, a saber, a cida<strong>de</strong>.507) O papa<strong>do</strong> se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, contra-ataca, marca pontos. Contu<strong>do</strong>, sua gran<strong>de</strong> intenção [<strong>de</strong>sejo], asaber, a substituição <strong>de</strong> um vasto Esta<strong>do</strong> eclesiástico pelo Esta<strong>do</strong> imperial <strong>do</strong> qual a igreja romana sequer a her<strong>de</strong>ira, este gran<strong>de</strong> intento [<strong>de</strong>sejo] faliu. Já apontam as nações, os Esta<strong>do</strong>s nacionais. Acultura monástica se distancia. O que <strong>de</strong>saparece, é o espaço absoluto. Ele se fragmenta, ele seesboroa. O que surge? É o espaço <strong>de</strong> uma vida laica, liberada <strong>do</strong> espaço político-religioso, <strong>do</strong> espaço<strong>de</strong> signos da morte e <strong>do</strong> não-corpo.508) A paisagem urbana medieval inverte o espaço anterior, aquele <strong>do</strong> “mun<strong>do</strong>”. Ela multiplica aslinhas rompidas, as verticais. Ela salta fora <strong>do</strong> solo; ela se sobrecarrega <strong>de</strong> esculturas. Contra a utopia154 Petit-Dutaiblis em Les Communes françaises e mesmo G. Duby em estu<strong>do</strong>s recentes.202


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006maléfica <strong>do</strong> “mun<strong>do</strong>” subterrâneo ela proclama uma utopia benéfica e luminosa; o saber terá suaautonomia; ele não servirá mais a um po<strong>de</strong>r acabrunhante, mas contribuirá para a consolidação <strong>de</strong>um po<strong>de</strong>r racionável. Que dizem as gran<strong>de</strong>s catedrais? Em relação aos edifícios religiosos anteriores,elas afirmam a inversão <strong>do</strong> espaço. Elas concentram o senti<strong>do</strong> difuso <strong>do</strong> espaço em torno da cida<strong>de</strong>medieval. Elas <strong>de</strong>cifram num senti<strong>do</strong> vigoroso (ainda mais <strong>do</strong> que rigoroso) esta palavra: elas seemancipam da cripta e <strong>do</strong> espaço críptico. O espaço novo não se contenta em “<strong>de</strong>cifrar” o antigo, oque, aliás, ele faz, mas o ultrapassan<strong>do</strong>; ele se libera iluminan<strong>do</strong>-se, elevan<strong>do</strong>-se. Ele leva consigo[carrega] então, e <strong>de</strong>cididamente, <strong>de</strong>cisivamente, o que alguns chamam a “comunicação branca” 155 .A outra, a negra, maldita mais ainda que sagrada, não se revoga. Ela se localiza na parte subterrâneada socieda<strong>de</strong>, nos lugares escondi<strong>do</strong>s, fora das comunicações frontais.509) Uma prodigiosa tría<strong>de</strong> anima e contraria esse gran<strong>de</strong> movimento <strong>de</strong> emergência: Bernard <strong>de</strong>Clairvaux, Suger, Abélard. Inseparáveis. O “reativo” por excelência, Bernard, tem o ouvi<strong>do</strong> <strong>do</strong>sgran<strong>de</strong>s e se faz ouvir pelas multidões. Suger, homem <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> (real, militar, já “nacional” porqueterritorial) concebe e realiza possibilida<strong>de</strong>s políticas. Quanto a Abélard, o herético, ele se situa noextremo ponto das virtualida<strong>de</strong>s, no pensamento que busca o fundamento e abala o edifício por suasfundações. O mais eficaz, apesar das aparências <strong>de</strong> insucesso, acossa<strong>do</strong> por uma perseguição que nãolhe economiza nenhuma ofensa, que toma como pretexto uma intriga amorosa para punir o herético,Abélard será reconheci<strong>do</strong> mais tar<strong>de</strong> como “o mais mo<strong>de</strong>rno”.510) Com Saint-Savin, a cripta contém “a poeira terrestre” tornada simbólica e as imagens <strong>do</strong>s santos(Gervais e Protais), <strong>de</strong> sua vida edificante e seu martírio. Mas a abóbada da igreja apresenta ahistória santa, o antigo e o novo Testamentos. Essa abóbada ornada contém a imagem inversa <strong>do</strong>espaço críptico. Ela o <strong>de</strong>cifra nele mostran<strong>do</strong> a céu aberto o que os subterrâneos contêm. Saint-Savinexpõe o momento da emergência num jogo <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong>s imaginadas [figurativas].511) Em seu livro Architecture gothique et pensée scolastique, E. Panovsky não se contentou com umchama<strong>do</strong> ao Zeitgeist hegeliano, ao espírito <strong>do</strong> tempo torna<strong>do</strong> banalida<strong>de</strong>, para expor os laços entreos diversos aspectos <strong>do</strong> século XII. A idéia <strong>de</strong> uma analogia entre a arquitetura e a filosofia nelaprópria não tem nada <strong>de</strong> para<strong>do</strong>xal nem <strong>de</strong> novo 156 . E. Panovsky irá mais longe <strong>do</strong> que a<strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> encontro fecun<strong>do</strong> entre técnica e símbolo 157 , o que já superava ainterpretação racionalista <strong>de</strong> Viollet-le-Duc, interpretação mecanicista, tecnicista, funcionalista155 Cf. G. Bataille, Le Coupable, N.R.F., 1961, p.81.156 Cf. K. Hampe, Le Haut Moyen Age , tr. fr. Gallimard, 1943, p. 212 a 230 on<strong>de</strong> esta idéia é claramente exposta ; notadamentep. 228 sobre a escrita gótica.157 Cf.E. Mâle, L’art religieux du XIIe. au XIIIe. siècles, Paris, 1896.203


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006(apesar <strong>de</strong> uma análise muito vigorosa <strong>do</strong> processo social e histórico) 158 . Nem o cruzamento daogiva, nem os arcobotantes e os contrabotantes explicam as catedrais, ainda que sejam condiçõesnecessárias. Nem, aliás, o arrebatamento da alma para o céu, nem o ar<strong>do</strong>r juvenil das novas gerações.E. Panovsky chegará a mostrar uma homologia (mais que uma analogia) entre a filosofia e aarquitetura. Cada formação, total à sua maneira, entra com a outra numa unida<strong>de</strong>, da qual cada uma éuma “manifestação”, uma elucidação, como a da fé pela razão. A quem retorna a priorida<strong>de</strong>? Àfilosofia. Pois tem priorida<strong>de</strong>. A escolástica produziu um hábito mental, um habitus, portanto ummodus operandi que <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> um modus essendi, <strong>de</strong> uma razão <strong>de</strong> ser. O habitus <strong>do</strong> arquitetoadvém em linha direta <strong>de</strong> uma razão provi<strong>de</strong>ncial que promulga nesse tempo a unida<strong>de</strong> da verda<strong>de</strong>, ada razão e da fé, que culmina na La Somme théologique 159 . A disposição espacial da igreja góticacorrespon<strong>de</strong>ria à <strong>de</strong>sta gran<strong>de</strong> obra, ou, melhor ainda, a “reproduziria”: conciliação <strong>do</strong>s contrários,triadismo na totalida<strong>de</strong>, equilíbrio <strong>de</strong> organização segun<strong>do</strong> um sistema <strong>de</strong> partes elas própriashomólogas 160 . Para E. Panovsky, fazer <strong>de</strong>rivar <strong>de</strong> uma representação abstrata (a unida<strong>de</strong> das parteshomólogas, unida<strong>de</strong> ela mesma análoga à da divinda<strong>de</strong>, uma em três e três em uma) um espaçomental, o <strong>de</strong> uma construção especulativa (a Somme théologique) e, <strong>de</strong>sse espaço mental, um espaçosocial, a catedral, isso não oferece nenhuma dificulda<strong>de</strong>. O que ele assim engendra e produz, oureproduz, é o próprio ato divino. Só um homem <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> fé po<strong>de</strong> não sentir vergonha disso; e isto éum belo exemplo <strong>do</strong>s abusos <strong>de</strong> um conceito toma<strong>do</strong> sem consi<strong>de</strong>ração fora <strong>de</strong> to<strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> e <strong>de</strong>to<strong>do</strong> contexto, o <strong>de</strong> produção. A introdução <strong>de</strong> conceitos que se <strong>de</strong>sejam científicos – a afinida<strong>de</strong>estrutural, a “pesquisa <strong>do</strong> lugar geométrico <strong>de</strong> expressão simbólica próprias a uma socieda<strong>de</strong> e a umaépoca” 161 – permitem a i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong> pensamento ao ato divino produtor. Substituir a palavra“criar” pela palavra “produzir” autorizaria esta curiosa substituição e <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> o i<strong>de</strong>alismo, oespiritualismo os mais exalta<strong>do</strong>s e os mais fáceis! Isso não é evi<strong>de</strong>nte.512) E. Panovsky tentou apreen<strong>de</strong>r um princípio <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>. Por que então um habitus mais <strong>do</strong> queum intuitus? Mas trata-se verda<strong>de</strong>iramente <strong>de</strong> um habitus que São Tomás <strong>de</strong>fine para a humanida<strong>de</strong>como uma “maneira <strong>de</strong> ser”, implican<strong>do</strong> um “po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> utilizar e <strong>de</strong> gozar” 162 , portanto, como umaqualida<strong>de</strong> que faz corpo com uma pessoa? (<strong>do</strong>n<strong>de</strong> a ligação com “habere” e “habitare”). É o que158 Cf. P. Francastel, Art et Technique, Gonthier, p. 83-84, 92 e seq.159 Cf. p.91 e seq.160Cf. Somme, 91 e seq.161 Cf. Posfácio <strong>de</strong> P. Bourdieu, op. cit. , p. 135.162 Cf. Gaboriau, op. cit., p. 62, p. 97. A introdução <strong>de</strong>stes conceitos filosóficos (escolásticos) não tem nada <strong>de</strong> embaraçoso.Seu uso especulativo, sem outra referência que o sistema (tomista) permite manipulações contestáveis.Tomismo: conjunto das <strong>do</strong>utrinas teológicas e filosóficas <strong>do</strong> pensa<strong>do</strong>r italiano santo Tomás <strong>de</strong> Aquino (1225-1274),consi<strong>de</strong>radas o ponto culminante <strong>do</strong> pensamento escolástico, e nas quais se <strong>de</strong>staca a busca <strong>de</strong> uma harmonia entre oracionalismo aristotélico e a tradição revelada <strong>do</strong> cristianismo (N. T.).204


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006distinguirá o habitus <strong>do</strong> hábito. Como uma <strong>do</strong>utrina conteria um habitus (um hábito mental) e ummodus operandi capazes <strong>de</strong> engendrar sem milagre vários esquemas particulares, o da escrita, o daarte, o da música?... Este galimatias 163 espiritualista recobre uma intuição concreta, a <strong>de</strong> umaunida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma produção. O que <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> E. Panovsky, ou o que se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua obra, é aidéia <strong>de</strong> uma “lógica visual” 164 . O que se enten<strong>de</strong> por isto? Que o edifício religioso se ilumina seelevan<strong>do</strong>, que as naves não têm mais a aparência compacta e sombria das igrejas ditas romanas, queas pare<strong>de</strong>s se aliviam, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> carregar to<strong>do</strong> o peso e que os pilares se abraçam em direção àabóbada com as colunetas e as nervuras, que os vitrais se posicionam [colocam no lugar] e que ovitral torna-se uma arte. E mais ainda: que o espírito escolástico admite e mesmo exige uma duplaclarificação, da função através da forma, <strong>do</strong> pensamento através da linguagem 165 .513) E. Panovsky não vai até o limite <strong>de</strong> seu pensamento. Que tu<strong>do</strong> apareça ao dia [venha à luz], tal éa or<strong>de</strong>m da “lógica visual”. Tu<strong>do</strong>? Sim, o que se escon<strong>de</strong>, os segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Mesmo os<strong>de</strong>mônios e os peca<strong>do</strong>s. Mesmo os seres da natureza, plantas, animais. Mesmo os corpos vivos. Oscorpos se vingam surgin<strong>do</strong> na luz; os signos <strong>do</strong> não-corpo 166 se subordinam aos <strong>do</strong> corpo, incluin<strong>do</strong>o corpo ressuscita<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>us vivo, o Cristo. É a nova aliança <strong>do</strong> “mun<strong>do</strong>” que nasce, com o Logos eo Cosmos. O que estimula a <strong>de</strong>scoberta <strong>do</strong> pensamento grego, Platão e Aristóteles. De longe, aressurreição da carne torna-se central; o que querem dizer os Julgamentos últimos (sem cessar <strong>de</strong>disseminar o terror, <strong>de</strong> falar da morte e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> subterrâneo). Quan<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> subterrâneo vem àsuperfície, quan<strong>do</strong> a superfície terrestre se eleva para o alto e se <strong>de</strong>ixa ver ocupan<strong>do</strong> o espaço, aescultura triunfa sobre a pintura críptica. Daí a profusão <strong>de</strong> capitéis, <strong>de</strong> estátuas sobre as fachadas. Assuperfícies, liberadas <strong>do</strong> pesadume [da carga], carregam a glorificação <strong>do</strong> corpo (mesmo se a idéia<strong>do</strong> peca<strong>do</strong>, aqui e ali, reconduz os espíritos para a putrefação, o imun<strong>do</strong> e o “mun<strong>do</strong>”). A esculturarecomeça a ser, como no tempo <strong>do</strong>s Gregos, a arte primordial, a arte-piloto. A pintura apenasconserva sua dignida<strong>de</strong> como arte <strong>de</strong> iluminação (nos vitrais).514) Limitar essa potência cria<strong>do</strong>ra a uma “composição arquitetural” permitin<strong>do</strong> “refazer a démarche<strong>do</strong> pensamento”, a da Somme théologique, é um esquema tão redutor que o surpreen<strong>de</strong> 167 . Duplavantagem: chegar a atualização da teologia escolástica e mal colocar o que ele teve <strong>de</strong> renova<strong>do</strong>r, <strong>de</strong>subversivo, <strong>de</strong> exemplar, na revolução medieval no Oci<strong>de</strong>nte. Lógica visual? Sim: sair das trevas,pôr à luz. O que vai bem além da arquitetura gótica e concerne às cida<strong>de</strong>s, à ação política, à poesia e163 Discurso verborrágico, hermético (N.T.).164 Cf.op.cit., p. 112.165 Id., p. 113.166 No Conjonction et Disjonction, O. Paz experimenta um quadro simétrico <strong>de</strong> relações – similitu<strong>de</strong>s e oposições – entre a artemedieval cristã e a arte budista (cf. p. 69).205


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006à música, ao pensamento. O papel <strong>de</strong> Abelar<strong>do</strong>, seu pensamento e sua vida, se compreen<strong>de</strong>msomente a partir <strong>de</strong> uma rebelião <strong>do</strong> corpo, que vai mais longe <strong>do</strong> que a “lógica visual”: até aexpectativa [espera] <strong>de</strong> uma reconciliação entre a carne e o espírito, pela intervenção da Terceira-Pessoa, o Espírito-Santo.515) Então, <strong>de</strong> que se trata? De uma produção, a <strong>de</strong> um espaço. Não somente <strong>de</strong> um espaçoconceitual e i<strong>de</strong>al, <strong>de</strong> um lugar <strong>do</strong>s espíritos, mas <strong>de</strong> um espaço social e mental. De uma emergência.Da <strong>de</strong>codificação <strong>do</strong> espaço anterior. O pensamento e a filosofia emergem, subin<strong>do</strong> das profun<strong>de</strong>zas,mas é também a vida que se <strong>de</strong>codifica, a socieda<strong>de</strong> inteira, com o espaço. E se tentássemosdistinguir à maneira da análise textual 168 , o genótipo <strong>do</strong> espaço <strong>do</strong> fenótipo, seria da emergência quese tiraria o genoespacial.516) Essa “produção” <strong>de</strong> uma originalida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> um alcance revolucionário tais como ela se difun<strong>de</strong>no Oci<strong>de</strong>nte com uma extraordinária rapi<strong>de</strong>z (relativa) a partir da Ilha <strong>de</strong> França, é exato que ela seopera para o “visual”.517) O que o mostra e bastaria para prová-lo, é a importância da fachada. Cuida<strong>do</strong>samenteorganizada, esta alta superfície obrada [operada] se submete aos coman<strong>do</strong>s da Igreja: à Lei, à Fé, àsEscrituras. O corpo vivo e nu tem apenas um lugar muito restrito: Eva, Adão. Pouco <strong>de</strong> corposfemininos, senão ascéticos e con<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s. A fachada se erige para o prestígio. Ela proclama ao usodas multidões que afluem em direção ao pátio [átrio], as potências associadas da Igreja, <strong>do</strong> Rei, daCida<strong>de</strong>. Apesar <strong>do</strong>s esforços <strong>do</strong>s arquitetos medievais para que o <strong>de</strong> fora apresente o <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, otorne visível, a fachada, somente por sua existência, rompe essa concordância.518) A produção <strong>de</strong> um espaço luminoso, sua emergência, não acarretam sua subordinação àescrita 169 , ainda no século XIII, nem à “encenação [espetacularização] ” 170 . Contu<strong>do</strong>, a formulação <strong>de</strong>Panovsky, na medida em que ela é exata, <strong>de</strong>nuncia um gesto ameaça<strong>do</strong>r. A visualização,impulsionada por uma estratégia, passa ao primeiro plano.Uma cumplicida<strong>de</strong> se efetua, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>com a abstração, a geometria e a lógica e, <strong>de</strong> outro, com a potência. O espaço social já toma estafórmula alquímica, com seus ingredientes inquietantes e seus efeitos surpreen<strong>de</strong>ntes. Sem dúvida,um limite não é transposto, o que separa (mal) a realização da reificação, a vitalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suaalienação. Ele se anuncia. A magia negativa e mortal <strong>do</strong>s signos, a que imobiliza o pássaro em plenovôo numa pintura, a que imita o golpe mortal <strong>do</strong> caça<strong>do</strong>r, vence. A outra magia, a da palavra, a <strong>do</strong>ssimbolismos que restabelecem a vida até no <strong>do</strong>mínio da morte – o sopro <strong>do</strong> espírito, o pássaro167 Cf. Panovsky, op. cit., p. 112.168Cf. J. Kristeva, Semiotiké.169 Descrita por McLuhan, a partir <strong>do</strong> século XV na La Galaxie Gutenberg.170 Descrita por Guy Debord na La Société du spectacle (A socieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> espetáculo).206


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006profeta, o gesto cria<strong>do</strong>r – recua com a visualização intensa. A escultura diz mais <strong>do</strong> que a pintura,nas três dimensões <strong>do</strong> espaço. Mas ela o diz <strong>de</strong> um golpe, <strong>de</strong> uma vez. Sem chama<strong>do</strong>.519) A verticalida<strong>de</strong>, a arrogância política das torres, seu feudalismo já esboçam a aliança entre Olhoe Falo. “Inconsciente” e ainda mais ativo.520) O Falo se vê. Ao passo que o órgão feminino, figura <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, permanece escondi<strong>do</strong>.Prestigioso, símbolo <strong>de</strong> força e <strong>de</strong> fecundida<strong>de</strong>, o Falo se impõe à visão se erigin<strong>do</strong>. No espaço on<strong>de</strong>o olho se arroga privilégios, o Fálico receberá ou produzirá privilégios. O Olhar, é o olho <strong>de</strong> Deus,<strong>do</strong> Pai, <strong>do</strong> Chefe. Este espaço on<strong>de</strong> o olhar se apo<strong>de</strong>ra <strong>do</strong> que o serve, será o espaço da força, daviolência, <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r sem outros limites que os <strong>de</strong> seus meios. Espaço <strong>do</strong> <strong>de</strong>us trinitário e <strong>do</strong>s Reis,não será mais o espaço <strong>do</strong>s signos crípticos, mas o das escritas [escrituras] e <strong>do</strong> histórico. Portanto daviolência militar, portanto masculino 171 .521) IV.9 Como e quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>saparecem juntos o não-cumulativo e o não-histórico, dito <strong>de</strong> outromo<strong>do</strong>, a socieda<strong>de</strong> que <strong>de</strong>spen<strong>de</strong> suntuosamente (festas, monumentos, guerras <strong>de</strong> parada e <strong>de</strong>prestigio) seu exce<strong>de</strong>nte?522) A teoria da acumulação, iniciada por Marx, permanece inacabada. Como foi possível aacumulação primitiva? Além da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> investir ao invés <strong>de</strong> entesourar e <strong>de</strong> consumir, e daracionalida<strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>nte (Max Weber), o que ela implica?523) A acumulação <strong>de</strong> dinheiro para investir e o investimento produtivo se concebem mal sem umaacumulação <strong>de</strong> técnicas e <strong>de</strong> conhecimentos. Os aspectos <strong>do</strong> processo acumulativo não se dissociam.Se, portanto, na Ida<strong>de</strong> Média, existe um crescimento das forças produtivas e da produção (<strong>de</strong> iníciona agricultura, o que permite a constituição das cida<strong>de</strong>s), é que técnicas se difundiram, se adaptaramaqui e ali. É o que confirmam os <strong>do</strong>cumentos.524) A questão mal resolvida é a seguinte: “Em muitas socieda<strong>de</strong>s, e notadamente na antiguida<strong>de</strong>oci<strong>de</strong>ntal, um certo número <strong>de</strong> condições <strong>do</strong> processo acumulativo foi realiza<strong>do</strong>, com a economiamercantil e monetária, o pensamento científico e os conhecimentos, as cida<strong>de</strong>s. Como foi possívelque esse processo não tenha começa<strong>do</strong> nesse momento e que, portanto, possamos lhe fixar umaorigem histórica, datan<strong>do</strong>-o da ida<strong>de</strong> média européia? Quais condições faltavam anteriormente? Oque se lhe opunha?” Nenhuma resposta satisfaz a análise teórica. O escravismo? As guerrasincessantes? As <strong>de</strong>spesas suntuosas? O parasitismo das classes <strong>do</strong>minantes e até da plebe romana?Cada um <strong>de</strong>sses “fatores” históricos pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhar um papel nessa interdição ou aniquilação <strong>de</strong>171 Nada <strong>de</strong> menos evi<strong>de</strong>nte e menos claro <strong>do</strong> que a ligação estabelecida por alguns psicanalistas entre a palavra e o pênis ( cf.C. Stein, L’enfant imaginaire, Denoël, 1971, p. 181). Quanto ao falo castra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> clitóris e redutor da vagina, se ele é um diacastra<strong>do</strong> pelo olhar <strong>de</strong> Deus, é um retorno justo das coisas. Ao longo <strong>de</strong>stas trocas <strong>de</strong> bons prece<strong>de</strong>ntes, o que se esquece? (Cf.S. Vi<strong>de</strong>rman, La construction <strong>de</strong> l’espace analytique, Denoël, 1970, p. 126 e seg.)207


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006um processo sem o explicar. Po<strong>de</strong>ríamos chegar a dizer que as autorida<strong>de</strong>s espirituais ou políticas,em sua profunda sabe<strong>do</strong>ria, tomaram medidas para impedi-lo? Esta hipótese supõe uma sabe<strong>do</strong>riasobre-humana das castas, padres, guerreiros, chefes políticos.525) Resposta: o espaço que emerge no século XII na Europa oci<strong>de</strong>ntal, que gradualmente ganha (aFrança, a Inglaterra, a Holanda, a Alemanha e a Itália), é o espaço da acumulação, seu berço, seulugar <strong>de</strong> nascimento. Por que e como? Porque este espaço laiciza<strong>do</strong> resulta da ressurreição <strong>do</strong> Logose <strong>do</strong> Cosmos, que subordinam a si o “mun<strong>do</strong>” e às forças subterrâneas. Com o Logos e a lógica, odireito se reconstitui; as relações contratuais (estipuladas) substituem os costumes e exigências[exações] costumeiras.526) Então se esfuma o “mun<strong>do</strong>” tenebroso e se atenua o terror <strong>de</strong>sse mun<strong>do</strong>. Ele não <strong>de</strong>saparece. Elese modifica em heterotópicos, lugares <strong>de</strong> bruxaria, <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio [loucura], <strong>de</strong> potências <strong>de</strong>moníacas,lugares fascinantes mas conjura<strong>do</strong>s. Mais tar<strong>de</strong>, bem mais tar<strong>de</strong>, os artistas reencontrarão essafomentação sagrada-maldita. No momento no qual ela se manifestava, ninguém a podia representar;ela estava presente. O espaço fervilhava <strong>de</strong> potências escondidas, frequentemente mais maléficas queboas. Cada lugar tinha seu nome e cada <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong>signava também uma <strong>de</strong>ssas obscuraspotências: “Numen-nomen”. Os nomes (nossos “lugares-ditos [lugares-<strong>de</strong>signa<strong>do</strong>s/localida<strong>de</strong>s]”)provenientes <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> agropastoril não tinham <strong>de</strong>sapareci<strong>do</strong> sob a romanida<strong>de</strong>. As mil pequenassuperstições terrenas <strong>do</strong>s Romanos, veiculadas pelas “villae”, associadas às gran<strong>de</strong>s maledicênciascristãs, pu<strong>de</strong>ram apenas manter esta profusão <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>-maldito à superfície <strong>do</strong> solo. No século XIIse opera uma metamorfose, um <strong>de</strong>slocamento, uma subversão <strong>de</strong> significantes. Mais exatamente, oque significava imediatamente o interdito se reenvia então aos significantes como tais, priva<strong>do</strong>s <strong>de</strong>seu significa<strong>do</strong> afetivo, mágico. Poucos lugares, parece, foram <strong>de</strong>sbatiza<strong>do</strong>s; mas muitos nomesnovos se superpuseram aos antigos, crian<strong>do</strong> uma re<strong>de</strong> terrestre <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> caráter religioso. Sãoos Château-Neuf [Castelo Novo], as Villes-Franches [Cida<strong>de</strong>s Livres], os Essarts [Desmatamentos],os Bois-le-Roi [Floresta <strong>do</strong> Rei]. O reenvio aos significantes (priva<strong>do</strong>s <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>) <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong>palavras e signos faria parte das gran<strong>de</strong>s subversões? Certamente. Somente alguns fetichistas <strong>do</strong>ssignos os tomam por fundamento imutável <strong>do</strong> saber e por base invariante da socieda<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>m negareste procedimento. O espaço medieval se <strong>de</strong>snuda ao mesmo tempo em que ele se <strong>de</strong>cifra. A práticasocial - que não sabe on<strong>de</strong> vai – torna o espaço disponível para outra coisa: vago, mas não vazio. Domesmo mo<strong>do</strong> [No mesmo momento], a “libi<strong>do</strong>” se libera, a tripla libi<strong>do</strong> estigmatizada pela teologiaagostiniana e que faz o mun<strong>do</strong>: libi<strong>do</strong> sciendi, <strong>do</strong>minandi, sentiendi: a curiosida<strong>de</strong>, a ambição, asensualida<strong>de</strong>. Liberada, a libi<strong>do</strong> se lança ao ataque <strong>do</strong> espaço aberto diante <strong>de</strong>la. Esse espaço<strong>de</strong>ssacraliza<strong>do</strong>, ao mesmo tempo espiritual e material, intelectual e sensorial, povoa<strong>do</strong> <strong>de</strong> signos <strong>do</strong>corpo, inicialmente recebe a acumulação <strong>de</strong> conhecimentos, <strong>de</strong>pois a <strong>de</strong> riquezas. Claramente208


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006localiza<strong>do</strong>, seu berço, não é tanto a cida<strong>de</strong> medieval enquanto comunida<strong>de</strong> burguesa, quanto a praça<strong>do</strong> merca<strong>do</strong> e merca<strong>do</strong> coberto (com seu acompanhamento obriga<strong>do</strong>: o campanário, o edifíciomunicipal).527) A propósito <strong>de</strong>sses lugares, a praça <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> e o merca<strong>do</strong> coberto, <strong>de</strong>ve-se repetir que aabjeção <strong>do</strong> dinheiro e o caráter nefasto da merca<strong>do</strong>ria se manifestam apenas mais tar<strong>de</strong>. No momentoem que nós falamos, a “coisa” trocável, o objeto produzi<strong>do</strong> para a venda, ainda raro, tem uma funçãoliberta<strong>do</strong>ra. Ele <strong>de</strong>ssacraliza. Ele escandaliza o espírito da <strong>de</strong>voção (<strong>do</strong> qual Bernard “a quimera <strong>do</strong>século”, funda<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> esta<strong>do</strong> cisterciense 172 , apologista da pobreza, <strong>do</strong> ascetismo e <strong>do</strong><strong>de</strong>sprezo pelo mun<strong>do</strong>, ao mesmo tempo que da supremacia eclesiástica, foi o porta-voz).528) O dinheiro e a merca<strong>do</strong>ria, ainda “in statu nascendi” não forneciam somente uma “cultura”, masum espaço. A originalida<strong>de</strong> da praça <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> não foi suficientemente esclarecida, oprimida peloesplen<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s edifícios religiosos e políticos. Quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>la se recorda, portanto: a antiguida<strong>de</strong>consi<strong>de</strong>rou o comércio e os comerciantes como exteriores à cida<strong>de</strong>, estrangeiros à constituiçãopolítica, relega<strong>do</strong>s às periferias. A base da riqueza permaneceu a proprieda<strong>de</strong> fundiária, a da terra. Arevolução medieval faz entrar o comércio na cida<strong>de</strong> e o instala no centro <strong>do</strong> espaço urbanotransforma<strong>do</strong>. A praça <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, diferente da ágora como <strong>do</strong> fórum, livre <strong>de</strong> acesso, se abre paratodas as partes sobre o território circundante (que a cida<strong>de</strong> <strong>do</strong>mina e explora), sobre a re<strong>de</strong> <strong>de</strong>estradas e caminhos. O merca<strong>do</strong> coberto, invenção genial, diferente <strong>do</strong> pórtico como da basílica,abriga as transações e permite às autorida<strong>de</strong>s controlá-las. A igreja catedral não está muito longe,mas não é mais o sino que carrega os símbolos <strong>do</strong> saber e <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r: o campanário <strong>do</strong>mina o espaço emesmo o tempo, pois ele logo sustentará um relógio.529) Os historia<strong>do</strong>res que hesitam diante <strong>do</strong> caráter subversivo <strong>de</strong>sse perío<strong>do</strong> esclareceram, contu<strong>do</strong>,a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>do</strong> processo. As cida<strong>de</strong>s marítimas (mediterrâneas) adquiriram facilmente asliberda<strong>de</strong>s municipais; assim como as antigas cida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> midi da França e as cida<strong>de</strong>s têxteis emFlandres. Em contrapartida, no norte da França, só a violência permitiu arrancar aos bispos e aossenhores concessões, isenções, títulos, constituições municipais. Este caráter <strong>de</strong>sigual (<strong>de</strong>sigualmenteviolento, <strong>de</strong>sigualmente coroa<strong>do</strong> <strong>de</strong> sucesso) apenas sublinha fortemente a difusão rápida e aextensão <strong>do</strong> novo espaço. No século XIV, esse espaço enfim conheci<strong>do</strong> e reconheci<strong>do</strong>, portantorepresenta<strong>do</strong> como tal, dará lugar a cida<strong>de</strong>s simbólicas: fundadas para o comércio, nas regiões aindaexclusivamente agropastoris, portanto sem comércio. As “basti<strong>de</strong>s 173 ” <strong>do</strong> su<strong>do</strong>este da França –172 Relativo à or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Cister ou membro <strong>de</strong>ssa or<strong>de</strong>m [Fundada no século XI, na Borgonha, expandiu-se pelo resto da Françae por quase toda a Europa, no século XII, com São Bernar<strong>do</strong> <strong>de</strong> Claraval.] N. T.173Al<strong>de</strong>ias fortificadas e/ou cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> guarnição construídas no su<strong>do</strong>este francês a partir <strong>do</strong> século XIV. (N.T.) [nota feita n’ Arevolução urbana].209


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006espaços comerciais em esta<strong>do</strong> puro, igualitárias e abstratas, povoa<strong>do</strong>s isola<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu iníciosonolentos, revestidas <strong>de</strong> nomes esplêndi<strong>do</strong>s: Granada, Barcelona, Florença, Cologne, Bruges –po<strong>de</strong>m apenas passar por uma <strong>de</strong>rivação tardiva da gran<strong>de</strong> subversão <strong>do</strong> século XII. Apesar distocontinuam sen<strong>do</strong> o “tipo i<strong>de</strong>al” da cida<strong>de</strong> comercial, sua representação (exemplo: Montauban) comimplicações e <strong>de</strong>senvolvimentos diversos, entre outros o caráter laico, a organização cívica e civil, aa<strong>do</strong>ção ulterior <strong>do</strong> protestantismo e <strong>do</strong> jacobismo etc.530) O espaço que se instaura por diversos meios, violentos ou não, ao longo da Ida<strong>de</strong> Média, se<strong>de</strong>fine como um espaço <strong>de</strong> trocas e <strong>de</strong> comunicações, portanto <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s. Quais re<strong>de</strong>s? De início, asestradas terrestres, as <strong>do</strong> comércio e as das procissões [peregrinações] e cruzadas. O traço dasestradas imperiais (romanas) subsiste e em muitos casos sua materialida<strong>de</strong>. Da re<strong>de</strong> que se instala,po<strong>de</strong>-se dizer que foi especificamente hidráulica. O papel <strong>do</strong>s portos e das cida<strong>de</strong>s marítimas nãodiminui, ao contrário, se bem que a “talassocracia” não o conduza por to<strong>do</strong>s os lugares e que umlento <strong>de</strong>slocamento se efetue em benefício <strong>do</strong>s portos <strong>do</strong> mar <strong>do</strong> Norte e <strong>do</strong> Atlântico, em <strong>de</strong>trimento<strong>do</strong>s portos mediterrâneos. Os rios e mais tar<strong>de</strong> os canais, conjuntamente com as estradas,estabelecem esta re<strong>de</strong> hidráulica. O papel da indústria <strong>de</strong> transporte fluvial e da navegação sobre asvias fluviais é bem conheci<strong>do</strong>. Elas conectam os merca<strong>do</strong>s locais, regionais, nacionais, já instala<strong>do</strong>sou em via <strong>de</strong> constituição (Itália, França, Flandres, Alemanha). Esta re<strong>de</strong> é apenas o duplo físico e oespelho na natureza da re<strong>de</strong> abstrata e contratual que religa os “troca<strong>do</strong>res” <strong>de</strong> produtos e <strong>de</strong>dinheiro.531) Isso seria um erro <strong>de</strong>finir o espaço só por estas re<strong>de</strong>s; isso seria recair ao nível das<strong>de</strong>terminações unilaterais e <strong>de</strong> uma ciência especializada, geografia ou geopolítica. O espaço social émúltiplo: abstrato e prático, imediato e mediato. O espaço religioso não <strong>de</strong>saparece diante <strong>do</strong> espaço<strong>do</strong> comércio; ele permanece, e por muito tempo, o espaço da palavra e o <strong>do</strong> saber. Ao seu la<strong>do</strong>, emesmo nele, existem sítios e lugares para outros espaços, o das trocas, o <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r. As representações<strong>do</strong> espaço e os espaços <strong>de</strong> representação divergem, sem dissolver a unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> conjunto.532) O espaço social <strong>de</strong>sse perío<strong>do</strong> medieval tem qualquer coisa <strong>de</strong> maravilhoso. Não é precisopraticar, pelo pensamento, cortes (longitudinais, transversais, verticais) para nele discernir as or<strong>de</strong>nse os esta<strong>do</strong>s, as séries e as hierarquias. O edifício social, ele também, se assemelha a uma catedral epo<strong>de</strong>ria passar precisamente pelo homólogo da Summa. O alto da pirâmi<strong>de</strong> não alcança o céu, dir-seá,e é uma <strong>de</strong>ssemelhança. Mas não: a mesma ilusão faz crer que o alto das torres se aproxima daabóbada e das virtu<strong>de</strong>s celestes; que o alto da pirâmi<strong>de</strong> social avizinha-se <strong>do</strong> divino; que a razão notopo da construção especulativa esten<strong>de</strong> a mão à fé que vem diretamente da graça divina; que apoesia <strong>de</strong>sce aos infernos e remonta até o paraíso.210


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006533) Socieda<strong>de</strong> límpida senão transparente. Nela as relações <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência pessoal <strong>do</strong>minam oeconômico; a própria violência tem uma clareza soberana; cada um sabe como e porque ele morre,como e porque ele sofre, porque ele tem algumas alegrias (boas horas). A socieda<strong>de</strong> inteira emergena luz. Por azar, o dinheiro que contribuiu para exorcizar as trevas logo introduzirá as mais opacas,as mais impenetráveis relações.534) O espaço medieval se eleva acima da terra; <strong>de</strong> longe, ele ainda não é abstrato. Uma gran<strong>de</strong> parte(que irá diminuin<strong>do</strong>, mas persiste) da “cultura”, das impressões e representações, permanececríptica. Ela se vincula ainda aos lugares sagra<strong>do</strong>s-malditos, lugares fantasmas, profun<strong>do</strong>s, grotas,vales sombrios, tumbas e santuários, subterrâneos. O movimento eleva o que se mostra à clarida<strong>de</strong>.A <strong>de</strong>cifração não se lê, não se diz; ela vive e suscita terror ou gozo, persuasão mais <strong>do</strong> que violência.Quan<strong>do</strong> a pintura retoma o primeiro lugar, no Quatrocentos 174 , os pintores <strong>de</strong>claram esta passagemgeral <strong>do</strong> críptico ao <strong>de</strong>codifica<strong>do</strong>. Não é a arte <strong>do</strong> visível como tal! O conhecimento permanececonhecimento. Esta <strong>de</strong>cifração tem somente poucas relações com a <strong>de</strong>cifração <strong>de</strong> um texto. Atoperpétuo, o que ascen<strong>de</strong> <strong>do</strong> obscuro vem “em pessoa” e não como signo.535) Portanto, o tempo não se separa <strong>do</strong> espaço; ele o orienta, ainda que uma inversão se esboça<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a cida<strong>de</strong> medieval, on<strong>de</strong> o espaço ten<strong>de</strong> a reger os ritmos que escapam à natureza (ao espaçonatureza).On<strong>de</strong> se encontra o laço, o nó entre o espaço e o tempo? Para além <strong>do</strong> saber adquiri<strong>do</strong>nessas épocas, aquém <strong>de</strong> sua teoria <strong>do</strong> conhecer: numa práxis (“inconsciente”, regula<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> acor<strong>do</strong>entre o tempo e o espaço, limitan<strong>do</strong> os <strong>de</strong>sacor<strong>do</strong>s das representações e as distorções na realida<strong>de</strong>).As festas balizam [<strong>de</strong>marcam] o tempo se completan<strong>do</strong> [se realizan<strong>do</strong>] no espaço. Elas têm seus“objetos” fictícios (místicos) e reais (práticos) que aparecem, sobem [ascen<strong>de</strong>m], <strong>de</strong>clinam, seocultam para reaparecer: o Sol, o Cristo, os Santos e as Santas, a Gran<strong>de</strong> Mãe Virgem. Com oslugares, os tempos sociais se diversificam. O tempo <strong>do</strong> comércio (liga<strong>do</strong> aos merca<strong>do</strong>s abertos) nãocoinci<strong>de</strong> com o da igreja; ele se laiciza como o espaço ao qual ele tem. O tempo <strong>do</strong>scongrega<strong>do</strong>s/membros comunais não coinci<strong>de</strong> com o da vida privada.536) IV.10 No século XVI, na Europa oci<strong>de</strong>ntal, se passa “alguma coisa” <strong>de</strong> importância <strong>de</strong>cisiva;contu<strong>do</strong>, não é um evento conten<strong>do</strong> sua data, nem uma mudança institucional, nem mesmo umprocesso claramente <strong>de</strong>terminável por uma “medida” econômica: crescimento <strong>de</strong> tal produção,aparição <strong>de</strong> tal merca<strong>do</strong>. O Oci<strong>de</strong>nte bascula: a Cida<strong>de</strong> prevalece sobre [vence] o campo, em pesoeconômico e prático, em importância social. O que significa que o dinheiro <strong>do</strong>mina a terra; a174O século XV, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> principalmente a partir <strong>do</strong>s acontecimentos artísticos, literários, filosóficos que nele ocorreram(N.T.).211


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006proprieda<strong>de</strong> fundiária per<strong>de</strong> sua importância primordial. A socieda<strong>de</strong> muda globalmente, mas<strong>de</strong>sigualmente se consi<strong>de</strong>rarmos os setores, os elementos e momentos, as instituições.537) Não há em parte alguma <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> absoluta. Segun<strong>do</strong> a perspectiva [Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> aperspectiva/Levan<strong>do</strong> em conta o panorama], em algumas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> anos, tu<strong>do</strong> mu<strong>do</strong>u - ou tu<strong>do</strong>continua como antes.538) O exame <strong>do</strong> espaço permite, talvez, resolver este problema meto<strong>do</strong>lógico e teórico: “O quemu<strong>do</strong>u durante este perío<strong>do</strong> crucial?” Quem diz transição diz mediação. A mediação histórica entre oespaço medieval (feudal) e o espaço <strong>do</strong> capitalismo que, resultará da acumulação, essa mediação sesitua no espaço urbano, aquele <strong>do</strong>s “sistemas <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s” que se instauram durante a transição. Acida<strong>de</strong> se separa <strong>do</strong> campo que ela <strong>do</strong>mina e administra, explora e protege. Nada <strong>de</strong> corte absoluto: aunida<strong>de</strong>, fortemente conflitual, persiste. A cida<strong>de</strong>, na pessoa <strong>de</strong> [personificada por] sua oligarquia,controla seu território. Do alto <strong>de</strong> suas torres, os “urbanos” percebem [avistam] seus campos, suasflorestas, suas al<strong>de</strong>ias. O que “são” os camponeses, esses pagãos apenas converti<strong>do</strong>s, as pessoas dacida<strong>de</strong> os percebem como fantasmas ou como objeções, com familiarida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong>sdém: contos <strong>de</strong>fadas ou <strong>de</strong> horror. Os urbanos se situam em relação aos camponeses distancian<strong>do</strong>-os: dualida<strong>de</strong> naunida<strong>de</strong>, distância percebida, unida<strong>de</strong> concebida. A cida<strong>de</strong> apresenta [propicia] sua racionalida<strong>de</strong>,aquela das suputações [<strong>do</strong>s cálculos/cômputos] e das trocas, o Logos <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>res [negociantes].A cida<strong>de</strong> substitui os feudais arrancan<strong>do</strong>-lhes seu monopólio: proteger os camponeses, extorquir-lhesseu sobretrabalho. O espaço urbano oferece, pois, o lugar bendito <strong>de</strong> um compromisso entre afeudalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>clinante, a burguesia comerciante, as oligarquias, as comunida<strong>de</strong>s artesanais. É aabstração em ato (ativa) em relação ao espaço-natureza, a generalida<strong>de</strong> face às singularida<strong>de</strong>s, ouniversal “in statu nascendi” engloban<strong>do</strong> as particularida<strong>de</strong>s e revelan<strong>do</strong>-as. Terrível meio, o espaçourbano não <strong>de</strong>strói ainda a natureza; ele a envolve e a confisca. Mais tar<strong>de</strong> somente, no segun<strong>do</strong> grauda abstração espacial, será a vez <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> [o Esta<strong>do</strong> dará continuida<strong>de</strong>]. As cida<strong>de</strong>s e seusburgueses per<strong>de</strong>rão o controle <strong>do</strong> espaço ao mesmo tempo que a <strong>do</strong>minação sobre as forçasprodutivas que se libertam <strong>de</strong>sses limites passan<strong>do</strong> <strong>do</strong> capital comercial e bancário ao capitalismoindustrial. Agora a mais-valia não será <strong>de</strong>spendida mais no lugar, realizar-se-á e repartir-se-á aolonge, cada vez mais, transpon<strong>do</strong> os limites <strong>do</strong>s arre<strong>do</strong>res [das imediações/<strong>do</strong>s subúrbios]. Oeconômico ultrapassará este quadro urbano e mesmo o fará explodir, mas conservan<strong>do</strong> a cida<strong>de</strong>como centro, como lugar <strong>de</strong> compromissos diversos.539) Num momento privilegia<strong>do</strong>, aquele <strong>do</strong> equilíbrio relativo entre o peso <strong>do</strong> campo quediminui (isto é, da proprieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> solo, da produção agrícola) e o peso da cida<strong>de</strong> que aumenta (isto é,<strong>do</strong> comércio, da proprieda<strong>de</strong> mobiliária, <strong>do</strong> artesanato urbano), introduz-se o novo no Oci<strong>de</strong>nte. Acida<strong>de</strong> se concebe; as representações <strong>do</strong> espaço, elaboradas em função <strong>de</strong> viagens sobre os rios e os212


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006mares, aplican<strong>do</strong>-se à realida<strong>de</strong> urbana. Ela se escreve. Os planos e as vistas cavaleiras semultiplicam. Então se constitui uma linguagem para falar ao mesmo tempo <strong>do</strong> campo e da cida<strong>de</strong> (dacida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> seu contexto agrário), da casa e da cida<strong>de</strong>: o código <strong>do</strong> espaço 175 .540) Para dizer a verda<strong>de</strong>, a expressão <strong>de</strong>ste código unitário data da Antigüida<strong>de</strong>: <strong>do</strong>s trabalhos <strong>de</strong>Vitrúvio.Os livros <strong>do</strong> arquiteto romano contêm uma tentativa muito avançada <strong>de</strong> fazer correspon<strong>de</strong>rtermo a termo os elementos da vida social toman<strong>do</strong> por referência a prática espacial, aquela <strong>do</strong>construtor operan<strong>do</strong> na cida<strong>de</strong> que ele conhece <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro. Os livros <strong>de</strong> Vitrúvio começam por uma<strong>de</strong>claração explícita que ridiculariza antecipadamente a ingenuida<strong>de</strong> daqueles que pensam na relação“significante-significa<strong>do</strong>” <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Saussure e o colocam no centro <strong>do</strong> seu saber. “Cum in omnibusrebus, tum maxime etiam in architectura haec duo insunt: quod significatur et quod significat” (I, 7).O significa<strong>do</strong>, precisa Vitrúvio, é o que se enuncia da coisa da qual se fala, enquanto que osignificante, é a razão <strong>de</strong>monstrada pelo saber daquilo que há na coisa 176 .541) Os livros vitruvianos contêm implicitamente to<strong>do</strong>s os elementos <strong>de</strong> um código, a saber:542) 1) um alfabeto e um léxico completos <strong>do</strong>s elementos <strong>do</strong> espaço: a água, o ar, a luz, a areia, ostijolos, as pedras, os aglomera<strong>do</strong>s e os enchimentos com cascalho [blocages], as matérias colorantes,as aberturas e fechaduras — portas, janelas etc. Com um inventário <strong>do</strong>s materiais [matériaux] aempregar e <strong>do</strong> material [matériel] (ferramentas);543) 2) uma gramática e uma sintaxe: as disposições <strong>de</strong>sses elementos, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a compor unida<strong>de</strong>s:casas, basílicas, teatros, templos, termas, com as regras <strong>de</strong> reunião;544) 3) uma estilística: prescrições <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m artística (estética) concernin<strong>do</strong> às proporções, às“or<strong>de</strong>ns”, aos efeitos a produzir.545) Que falta ao código vitruviano <strong>do</strong> espaço? Nada, parece, à primeira leitura. Tu<strong>do</strong> se encontranesse dicionário <strong>do</strong> valor <strong>do</strong> uso, on<strong>de</strong> nada lembra a troca. A partir <strong>de</strong> Vitrúvio po<strong>de</strong>-se analisar aprática espacial da cida<strong>de</strong> antiga, grega e romana, — as representações elaboradas <strong>do</strong> espaço(astronomia e geonomia), — os espaços <strong>de</strong> representação mágico-religiosa (astrológicos) 177 . Aelaboração vai muito longe: a propósito <strong>do</strong>s módulos e da mo<strong>de</strong>natura [moldura <strong>de</strong> cornija], quer175 A ilusão e o erro <strong>de</strong> Umberto Ecco, em suas pesquisas sobre “a obra aberta” e a “estrutura ausente”, é admitir que emvirtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma evolução historicamente favorável e <strong>de</strong> uma racionalida<strong>de</strong> crescente da socieda<strong>de</strong>, da arte, da cultura, darealida<strong>de</strong> material, esse conjunto se oferece à codificação-<strong>de</strong>codificação na segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XX. Sem outra forma <strong>de</strong>processo. A racionalida<strong>de</strong> superior tomaria a forma da comunicação. O comunicável se <strong>de</strong>cifra e “tu<strong>do</strong>” na cultura torna-secomunicável, cada aspecto, cada elemento constitui um sistema semiológico. Esse racionalismo evolucionista e esse otimismoda comunicação (leitura-escrita) contém uma fascinante ingenuida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ológica.176 Ed. A. Choisy, Texte, p.6.177 O diagrama que a imagem <strong>do</strong> lugar teatral fornece exprime as relações que unem as harmonias celestes aos sons <strong>de</strong>instrumentos, assim como aos <strong>de</strong>stinos. Os sons <strong>de</strong> uma harpa celeste são os regula<strong>do</strong>res <strong>de</strong> uma voz humana. Cf. em V, VI, 2e en VI, I, 6-12.213


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006dizer das or<strong>de</strong>ns e <strong>do</strong> or<strong>de</strong>namento, Vitrúvio proce<strong>de</strong> a um estu<strong>do</strong> metódico, a uma sistematização <strong>do</strong>vocabulário e <strong>do</strong>s objetos (significa<strong>do</strong>s).546) E, todavia, alguma coisa <strong>de</strong> essencial faltará durante séculos a esse trata<strong>do</strong> <strong>de</strong> semiologiaespacial que se quer integral: a análise e a exposição <strong>do</strong> efeito urbano. A Cida<strong>de</strong>? Em Vitrúvio elabrilha por sua ausência-presença; ele não fala a não ser <strong>de</strong>la e jamais fala <strong>de</strong>la. A Cida<strong>de</strong> se resolvenuma coleção <strong>de</strong> monumentos “públicos” e <strong>de</strong> casas “privadas”, proprieda<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s notáveis. Oparadigma <strong>do</strong> espaço cívico quase não aparece mas muito a ligação <strong>do</strong>s elementos, a sintagmática.Com a técnica e o empirismo, o operacional já a arrasta [suplanta].547) Somente no século XVI, <strong>de</strong>pois da ascenção da Cida<strong>de</strong> medieval (<strong>de</strong> base comercial e não maisagrária), com os sistemas urbanos (na Itália, em Flandres, na Inglaterra, na França, na Américaespanhola etc.) a cida<strong>de</strong> se manifesta como unida<strong>de</strong>: como sujeito. No momento <strong>do</strong> próximo <strong>de</strong>clíniodiante <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, a cida<strong>de</strong> se afirma. Ela torna-se o princípio <strong>de</strong> um discurso <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> entrever aharmoniosa superação <strong>de</strong> um conflito entre a natureza, o mun<strong>do</strong>, o “animal rural” (Marx) e oartificial, o adquiri<strong>do</strong>, o “animal urbano” <strong>de</strong> origem antiga. Nesse momento privilegia<strong>do</strong>, a cida<strong>de</strong>parece o suporte <strong>de</strong> uma história ten<strong>do</strong> nela mesma seu senti<strong>do</strong> e seu fim (sua “finalida<strong>de</strong>” ao mesmotempo imanente e transcen<strong>de</strong>nte: terrestre, pois a cida<strong>de</strong> faz viver os citadinos — celeste, visto que aCida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus tem por imagem a cida<strong>de</strong> entre as cida<strong>de</strong>s: Roma). Com seu território, a cida<strong>de</strong> daRenascença se percebe como um to<strong>do</strong> harmonioso, um organismo media<strong>do</strong>r entre a terra e o céu.548) O efeito urbano liga-se ao efeito arquitetural, numa unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> composição e <strong>de</strong> estilo. Se éverda<strong>de</strong> que nos séculos XVI e XVII, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Galileu, o “ser humano” per<strong>de</strong> seu lugar no “mun<strong>do</strong>” eno “cosmos”, enquanto se esboroa a unida<strong>de</strong> grega “ação-tempo-espaço” 178 , este ser “renascente”, noentanto, continua a se situar na sua cida<strong>de</strong>. A prática espacial e a arquitetura como prática se religame se dizem: O arquiteto, então, é eficaz e a arquitetura “instrumental”. Essa cida<strong>de</strong> renascente <strong>de</strong>ixa<strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolver “à maneira <strong>de</strong> uma narração contínua”, acrescentan<strong>do</strong> um edifício a um outro, umfaubourg 179 a uma rua, um lugar a um outro lugar. Cada edifício, cada acréscimo se concebempoliticamente; a inovação modifica o conjunto e cada “objeto” como se ele fôsse, <strong>de</strong> início, externo,intervém sobre o teci<strong>do</strong> inteiro 180 . A oposição “centro-periferia”, que acompanhará a explosãoulterior da cida<strong>de</strong> com a industrialização e a estatização, não aparece ainda. O que <strong>do</strong>mina, é a178 Cf.A. Koyré, Du mon<strong>de</strong> clos à l’espace infini, Paris, 1962, p.2.179 O termo arrabal<strong>de</strong>, que em alguns dicionários correspon<strong>de</strong> a faubourg, não parece apropria<strong>do</strong> para <strong>de</strong>signar as extensões(em geral centros artesanais e <strong>de</strong> comércio) <strong>de</strong> certas cida<strong>de</strong>s (medievais) para além <strong>de</strong> suas muralhas. Na França foram<strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s faubourgs (<strong>de</strong> faux bourg, falso burgo), em razão <strong>de</strong> sua localização exterior aos limites da cida<strong>de</strong>. Com o passar<strong>do</strong> tempo, integraram-se a esta última e em alguns casos conservam até hoje as antigas <strong>de</strong>nominações. Em Paris, por exemplo,é o caso <strong>do</strong> Faubourg Saint-Antoine, entre outros menciona<strong>do</strong>s pelo autor na seqüência <strong>de</strong>sta obra. (N.T.) [Nota feita para Arevolução urbana]180 Cf. M. Tafuri, Teoria et Storia <strong>de</strong>ll’architettura, Bari, 1968, p.25-26.214


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006oposição “<strong>de</strong>ntro-fora” na unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> efeito arquitetural e <strong>do</strong> efeito urbano 181 , da vila camponesa[campagnar<strong>de</strong>] e da casa citadina. É a época <strong>do</strong> Palladio. Por ilusão substancialista ou naturalista,nomeia-se por vezes “orgânico” este espaço da cida<strong>de</strong> renascente. Ela <strong>de</strong>teria uma (unida<strong>de</strong>?)análoga àquela <strong>de</strong> um organismo, <strong>de</strong>finida por uma finalida<strong>de</strong> natural, o conjunto subordinan<strong>do</strong> os<strong>de</strong>talhes.549) Ora, essa unida<strong>de</strong>, por mais que ela pareça com a “finalida<strong>de</strong> sem fim” num espaço urbano,convém à cida<strong>de</strong> antiga. O orgânico? Este conceito <strong>de</strong>nota e conota um crescimento espontâneo, um<strong>de</strong>senvolvimento cego que vai <strong>do</strong> nascimento ao <strong>de</strong>clínio. A cida<strong>de</strong> medieval, com seus burgueses,<strong>de</strong>senvolve-se ”organicamente”, portanto cegamente? Talvez, mas somente até o dia em que o po<strong>de</strong>rpolítico, aquele da oligarquia, <strong>do</strong> príncipe, <strong>do</strong> rei, intervém. Então o espaço se transforma. Se o po<strong>de</strong>rpolítico controla o “to<strong>do</strong>”, é porque ele sabe que um <strong>de</strong>talhe o modifica; o orgânico cessa emproveito <strong>do</strong> político; não se trata ainda, entretanto, <strong>do</strong> “funcional” abstratamente <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>[separa<strong>do</strong>].550) Para muitos espíritos “positivos”, nada <strong>de</strong> mais claro e <strong>de</strong> mais empiricamente constatável queas “necessida<strong>de</strong>s” e as “funções” <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> social concebida organicamente. Ora, nada <strong>de</strong>mais obscuro! Necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> quem? Formuladas por quem? Satisfeitas ou saturadas pelo quê? AsTermas <strong>de</strong> Diocleciano correspon<strong>de</strong>m aparentemente às “necessida<strong>de</strong>s” e “funções” da sala <strong>de</strong>banho. Ora, nada <strong>de</strong> mais diferente. As Termas, polifuncionais a um alto grau, respon<strong>de</strong>m a“necessida<strong>de</strong>s sociais” mais que a necessida<strong>de</strong>s “privadas”, portanto a uma outra vida urbana.551) A fachada e a perspectiva seguem em conjunto. A perspectiva alinha fachadas e or<strong>de</strong>na sobre assuperfícies das fachadas [faceadas] as <strong>de</strong>corações, os <strong>de</strong>senhos e as molduras; ela compõehorizontes, “fugas”, com as linhas das fachadas.552) A fachada reserva surpresas. Não seria ela, todavia, tão factícia e tão <strong>de</strong>liberada, que <strong>de</strong>termine aimpressão <strong>de</strong> organismo? Quem diz fachada diz “direita” e “esquerda” (simetria) e “alto-baixo”, mastambém “dianteiro-traseiro”, o que se mostra e o que não se mostra, com extensão no espaço social<strong>de</strong>sta assimetria tardia nos organismos vivos, necessitada pelo ataque e pela <strong>de</strong>fesa. Como não julgarpejorativamente a fachada, superfície <strong>de</strong> prestígio <strong>de</strong>corativa e <strong>de</strong>corada, portanto trapaceira?Consi<strong>de</strong>rou-se-a freqüentemente <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>: face, rosto, percebi<strong>do</strong>s como expressivos, volta<strong>do</strong>snão a um especta<strong>do</strong>r i<strong>de</strong>al, mas a um interlocutor presente. Então, por analogia com a face e o rosto,a fachada se torna falante e <strong>do</strong>minante. Quer-se que ela engendre o conjunto, que ela coman<strong>de</strong> adisposição (estruturada) interna <strong>do</strong> espaço, ao mesmo tempo que a função que ela contém edissimula. Nesta “perspectiva”, tu<strong>do</strong> é fachada. Com efeito, a perspectiva comanda o or<strong>de</strong>namento181 Cf. La Città di Pa<strong>do</strong>va, Rome, 1970. P. 218 e seg. (notável coletânea <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s sobre Pádua).215


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006<strong>do</strong>s elementos, as casas, os edifícios. Inversamente, estes se alinham, se agrupam, <strong>de</strong> maneira aformar uma perspectiva. Uma analogia entre formas <strong>de</strong> arte diversas, a pintura e a arquitetura, parecenatural. Porque superfície pintada, o quadro oferece uma dimensão privilegiada; ele se apresenta nadireção daquele que o olha; ele agrupa seus objetos, seus personagens. É uma face e uma fachada. Oquadro se vira na direção daquele que vem, na direção <strong>do</strong> público. O retrato olha antes que oolhemos, durante e <strong>de</strong>pois. A tela, a pare<strong>de</strong> pintada, tem um rosto. O rosto se dá a ver. A face e afachada passam por <strong>do</strong>m, favor e fervor. O efeito <strong>de</strong> fachada po<strong>de</strong> se tornar <strong>do</strong>minante? Certamente.A expressivida<strong>de</strong> se liga ao rosto. Logo, a dissimulação. Disso <strong>de</strong>rivam virtu<strong>de</strong>s, e máximas.“Manter as aparências!”. Não são somente os edifícios, mas as maneiras, a vida cotidiana com osritos e as festas, que po<strong>de</strong>m se <strong>de</strong>ixar <strong>do</strong>minar por um tal prestígio.553) A Roma papal representa bastante bem um espaço on<strong>de</strong> comandava a fachada: on<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> eraface e fachada. Por uma reciprocida<strong>de</strong> facilmente inteligível, ao mesmo tempo que efeito, a fachadaé causa: cada edifício, cada palácio, cada igreja, impõem a supremacia da fachada. Cada monumentodisso resulta. A composição <strong>do</strong> espaço se esten<strong>de</strong> ao conjunto e engendra cada <strong>de</strong>talhe. Osimbolismo não carrega <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> um objeto mas um conjunto <strong>de</strong> objetos, apresenta<strong>do</strong>s como umto<strong>do</strong> orgânico. São Pedro <strong>de</strong> Roma, é a própria igreja: a Igreja inteiramente ligada à sua presa,enquanto corpo e rosto. O prestigioso <strong>do</strong>mo representa a cabeça da igreja; a colunata são os braços<strong>de</strong>sse corpo gigante, que apertam contra o tórax [peito] o lugar e os fiéis reuni<strong>do</strong>s. A cabeça pensa,os braços seguram e contêm. Po<strong>de</strong>r-se-ia, sem generalização abusiva, parece, falar <strong>de</strong> uma cultura dafachada e da face. Princípio mais concreto que o “sujeito” <strong>do</strong>s filósofos, o rosto com seuscomplementos e suplementos, a máscara e o hábito, comanda uma maneira <strong>de</strong> viver.554) Esta hipótese não carece <strong>de</strong> sedução. Ela arrisca colocar uma <strong>de</strong>rivação i<strong>de</strong>ológica no lugar <strong>do</strong>conceito central, aquele <strong>de</strong> produção. Quan<strong>do</strong> uma instituição per<strong>de</strong> seu lugar natal, seu espaçooriginal e se sente ameaçada, ela se diz “orgânica”. Ela se naturaliza: vê-se e se apresenta como umcorpo. Enquanto a cida<strong>de</strong>, o Esta<strong>do</strong>, a natureza, a própria socieda<strong>de</strong>, não sabem mais qual imagemoferecer, seus representantes recorrem a esta representação fácil, o corpo, a cabeça, os membros, osangue, os nervos. A analogia física, o espaço orgânico servem <strong>de</strong> recurso ao saber e ao po<strong>de</strong>renfraqueci<strong>do</strong>s. O organismo, como i<strong>de</strong>ologia, reenvia à unida<strong>de</strong> e para além <strong>de</strong>sta unida<strong>de</strong>, ouaquém, à origem, consi<strong>de</strong>rada como irrefutavelmente conhecida, indubitavelmente reconhecida,legitimante e justificante. O espaço orgânico implica um mito das origens. Ele substitui a gênese e oestu<strong>do</strong> das transformações por uma imagem da continuida<strong>de</strong>, por um evolucionismo pru<strong>de</strong>nte.555) A fachada e os efeitos <strong>de</strong> fachada têm uma história aci<strong>de</strong>ntada. Ela atravessa os episódios <strong>do</strong>barroco, <strong>do</strong> exotismo, <strong>do</strong>s maneirismos. É somente com a burguesia e o capitalismo que esteprincípio tem si<strong>do</strong> completamente <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>. E <strong>de</strong> maneira contraditória. O fascismo tentou216


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006impor um fantasma orgânico da vida social: o sangue, a raça, a nação e o Esta<strong>do</strong> nacional absoluto.De on<strong>de</strong> sua utilização da fachada, à qual se opõe a paródia <strong>de</strong>mocrática, o pavilhão <strong>de</strong> subúrbio, quetem uma dianteira e uma traseira, um rosto e partes obscenas.556) IV.11 Do século XII ao XIX, as guerras girarão em torno da acumulação. Elas consumirão asriquezas; elas contribuirão para o seu crescimento, pois a guerra sempre incrementou as forçasprodutivas e aperfeiçoou as técnicas, sempre as utilizan<strong>do</strong> para a <strong>de</strong>struição. Visan<strong>do</strong> os territórios <strong>de</strong>investimento, estas guerras serão os maiores investimentos e os mais lucrativos: guerra <strong>do</strong>s CemAnos, guerras da Itália, guerras <strong>de</strong> religião, guerra <strong>do</strong>s Trinta Anos, guerras <strong>de</strong> Luís XIV contra aHolanda, contra os Imperiais, guerras da Revolução e <strong>do</strong> Império. O espaço da acumulaçãocapitalista se anima, mobilia-se [se preenche]. Esta animação, nomeamo-la admirativamente: ahistória. Explicamo-la por toda sorte <strong>de</strong> motivações: os interesses dinásticos, as i<strong>de</strong>ologias, asambições <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s, a formação <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s nacionais, as pressões <strong>de</strong>mográficas etc. Entramosassim na análise infinita, na pesquisa das datas ou <strong>do</strong>s enca<strong>de</strong>amentos. O espaço, lugar <strong>de</strong>ssesenca<strong>de</strong>amentos múltiplos, não forneceria um princípio e uma explicação tão aceitáveis quantoqualquer outra?557) A indústria estabelecer-se-á no espaço on<strong>de</strong> as tradições comunitárias <strong>do</strong>s campos terão si<strong>do</strong>varridas, on<strong>de</strong> as instituições urbanas terão si<strong>do</strong> arruinadas pelas guerras (sem que por isso asligações entre cida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> “sistema urbano” tenham <strong>de</strong>sapareci<strong>do</strong>). Neste espaço se amontoam asriquezas das rapinas e pilhagens. Tal é o espaço industrial estatista.558) Resumamos: antes <strong>do</strong> capitalismo, a violência tem um papel extra-econômico. Com ocapitalismo e o merca<strong>do</strong> mundial, a violência assume um papel econômico na acumulação. E é assimque o econômico torna-se <strong>do</strong>minante. Não que as relações econômicas coincidam com as relações <strong>de</strong>força, mas elas não se separam. E se tem este para<strong>do</strong>xo: o espaço das guerras, durante séculos, aoinvés <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecer no nada social, torna-se o espaço rico e povoa<strong>do</strong>, o berço <strong>do</strong> capitalismo. O quemerece atenção. Segue-se a constituição <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> mundial, a conquista <strong>de</strong> oceanos e continentes,sua pilhagem pelos países europeus: Espanha, Inglaterra, Holanda, França. Estas expediçõeslongínqüas exigem recursos tanto quanto objetivos e fantasmas, um certamente não impedin<strong>do</strong> ooutro! O centro <strong>do</strong> processo histórico, on<strong>de</strong> se situa? O núcleo ar<strong>de</strong>nte, o crisol <strong>de</strong> on<strong>de</strong> irradiamessas forças criativas e catastróficas, é a região que permanece até hoje a mais industrializada daEuropa, a mais submetida aos imperativos <strong>do</strong> crescimento: Inglaterra, França <strong>do</strong> norte, PaísesBaixos, região entre Loire e Reno. O negativo e a negativida<strong>de</strong>, estas abstrações filosóficas, tomamuma forma concreta quan<strong>do</strong> se as pensa no espaço social e político.559) Inspiran<strong>do</strong>-se em Marx, muitos historia<strong>do</strong>res procuraram uma explicação econômica <strong>de</strong>ssasviolências; eles projetaram sobre o passa<strong>do</strong> um esquema posterior, aceitável para o perío<strong>do</strong>217


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006imperialista. Eles não procuraram [perguntaram] como o econômico se tornou pre<strong>do</strong>minante, o que<strong>de</strong>finiu (conjuntamente com outras <strong>de</strong>terminações: a mais-valia, a burguesia e seu Esta<strong>do</strong>) ocapitalismo. Eles não compreen<strong>de</strong>ram bem o pensamento <strong>de</strong> Marx, a saber, que o histórico <strong>do</strong>minacom suas categorias durante um certo perío<strong>do</strong>, <strong>de</strong>pois se subordina ao econômico no século XIX.560) Quer-se substituir a explicação “economista” da história por um esquema “polemológico”? Nãoexatamente. A guerra tem si<strong>do</strong> injustamente classificada entre os princípios <strong>de</strong>strui<strong>do</strong>res e maus,opostos aos bons princípios cria<strong>do</strong>res; enquanto o econômico se colocava, pela voz <strong>do</strong>s economistas,como “produtivo” positiva e pacificamente, os historia<strong>do</strong>res julgavam as guerras: ações más,resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> paixões nefastas, o orgulho, a ambição, a <strong>de</strong>smedida. Esse pensamento apologético,ainda difundi<strong>do</strong>, tem coloca<strong>do</strong> entre parênteses o papel da violência na acumulação capitalista, aguerra e os exércitos como forças produtivas. O que todavia Marx tinha indica<strong>do</strong> e mesmosublinha<strong>do</strong> com um traço breve, mas enérgico. O que a guerra produz? A Europa oci<strong>de</strong>ntal, espaçoda história, da acumulação, <strong>do</strong> investimento, base <strong>do</strong> imperialismo no qual o econômico triunfa.561) A vida <strong>de</strong>sse espaço, <strong>de</strong>sse corpo estranho, é a violência, ora latente ou preparan<strong>do</strong>-se, ora<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada [<strong>de</strong>satada], ora entregue a si mesma, ora <strong>de</strong>sfraldan<strong>do</strong> as velas sobre o mun<strong>do</strong>,celebran<strong>do</strong>-se nos arcos (romanos <strong>de</strong> origem), nas portas, nas praças, nas vias triunfais.562) Neste espaço <strong>de</strong> terra e <strong>de</strong> água, que ela produziu e que a manteve, a guerra, na Europaoci<strong>de</strong>ntal, <strong>de</strong>senvolveu suas potências contraditórias, <strong>de</strong>strutivas e criativas. O Reno, o mar <strong>do</strong> Norte,os canais <strong>de</strong> Flandres, tiveram tanta importância estratégica quanto os Alpes, os Pireneus, asplanícies e a montanha. Uma mesma racionalida<strong>de</strong> se observa nas ações <strong>de</strong> Turenne, <strong>de</strong> Vauban, <strong>de</strong>Riquet — o guerreiro, o estrategista, o engenheiro — na França no século XVII. Esta racionalida<strong>de</strong>francesa, relacionamo-la à filosofia cartesiana; <strong>de</strong>la se distingue como uma prática social se distingue<strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ologia, com uma correspondência um pouco flutuante e incerta.563) Os homens que fizeram a história, <strong>do</strong>s simples solda<strong>do</strong>s aos marechais, <strong>do</strong>s camponeses aosimpera<strong>do</strong>res, queriam a acumulação? Certamente não. Mais finamente que no momento em que seconstituía a análise <strong>do</strong> tempo histórico, hoje que ele se <strong>de</strong>sagrega, não convém distinguir asmotivações, as razões e as causas, os objetivos, os resulta<strong>do</strong>s? O orgulho e a ambição fornecerammais <strong>de</strong> um motivo; as lutas foram freqüentemente dinásticas; quanto aos resulta<strong>do</strong>s, eles seconstatam “mais tar<strong>de</strong>”. E se retorna a uma formulação dialética mais aceitável que as verda<strong>de</strong>shistóricas assentadas <strong>do</strong>gmaticamente, ao pensamento célebre <strong>de</strong> Marx: os homens fazem suahistória e não sabem que a fazem.564) A concepção <strong>de</strong> conjunto, aquela <strong>de</strong> um espaço especifica<strong>do</strong>, não dispensa o exame <strong>do</strong>s<strong>de</strong>talhes. Esse perío<strong>do</strong> viu o esplen<strong>do</strong>r e o <strong>de</strong>clínio da cida<strong>de</strong>. Sabe-se que no século XVI, asocieda<strong>de</strong> oscila. O espaço e o tempo se urbanizam, dito <strong>de</strong> outra maneira, o tempo e o espaço da218


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006merca<strong>do</strong>ria e <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>res os arrastam: medidas, contas, contratos e contratantes. O tempo, aqueleda produção <strong>de</strong> bens trocáveis, <strong>de</strong> seu transporte, <strong>de</strong> sua entrega, <strong>de</strong> sua venda e <strong>do</strong> pagamento, dasituação <strong>do</strong> capital, me<strong>de</strong> o espaço; mas é o espaço que rege o tempo, pois o movimento dasmerca<strong>do</strong>rias, <strong>do</strong> dinheiro e <strong>do</strong> capital nascente, supõe lugares <strong>de</strong> produção, navios e carroças para ostransportes, portos, entrepostos, bancos, escritórios <strong>de</strong> câmbio. Então a cida<strong>de</strong> se reconhece eencontra sua imagem. Ela não se atribui mais um caráter metafísico: “imago mundi”, centro econ<strong>de</strong>nsação <strong>do</strong> cosmos. Tornada ela mesma, ela se escreve; os planos se multiplicam, que não têmainda um papel redutor, que visualizam a realida<strong>de</strong> urbana, sem suprimir a terceira dimensão, adivina, pois são quadros, vistas cavaleiras; a cida<strong>de</strong> se coloca em perspectiva como um campo <strong>de</strong>batalha, e é freqüentemente a vista <strong>de</strong> um assento [uma se<strong>de</strong>], pois a guerra gira em torno dascida<strong>de</strong>s; toma-se-as, viola-se-as, saqueia-se-as; são os lugares da riqueza, ao mesmo tempo “objetos”ameaça<strong>do</strong>res e ameaça<strong>do</strong>s, e “sujeitos” da acumulação, portanto da história.565) Através <strong>do</strong>s conflitos, por causa <strong>de</strong>les, malgra<strong>do</strong> eles, as cida<strong>de</strong>s resplan<strong>de</strong>cem. No reinoiniciante <strong>do</strong> produto, a obra atinge sua suprema magnificência, obra <strong>de</strong> arte engloban<strong>do</strong> mil e umaobras <strong>de</strong> arte, pinturas, esculturas, tapeçarias, e também ruas, praças, palácios e monumentos,portanto, arquitetura.566) IV.12 As teorias <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> o consi<strong>de</strong>ram ora como obra <strong>de</strong> gênios políticos, ora como resulta<strong>do</strong>da história. Quan<strong>do</strong> esta última tese não se apoia sobre os trabalhos <strong>de</strong> especialistas que extrapolam apartir <strong>de</strong> disciplinas particulares (o direito, a economia política, as organizações políticas elasmesmas), logo que ela atinge um certo nível <strong>de</strong> generalida<strong>de</strong>, ela reencontra o hegelianismo.567) Po<strong>de</strong>-se perguntar se Marx traz fornece uma teoria <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Ele não pô<strong>de</strong> manter a promessafeita a Lassalle (carta <strong>de</strong> 22/02/48), a Engels (carta <strong>de</strong> 05/04/48). Não mais que uma teoria <strong>do</strong>pensamento dialético, ele não <strong>de</strong>ixou esta teoria <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Nele, ela permanece no esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>fragmentos, <strong>de</strong> indicações (importantes). Durante sua vida inteira, Marx combateu a teoria <strong>de</strong> Hegel;ele a <strong>de</strong>smantelou; ele arrancou <strong>de</strong>la fragmentos, ele propôs substituições: a racionalida<strong>de</strong> industriale social no lugar da racionalida<strong>de</strong> estatista e política erigida em absoluto; — o Esta<strong>do</strong> comosuperestrutura e não como essência e coroamento da socieda<strong>de</strong>; — a classe trabalha<strong>do</strong>ra comosuporte <strong>de</strong> uma transformação ten<strong>do</strong> como resulta<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sfalecimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.568) A fraqueza <strong>do</strong> pensamento hegeliano como da crítica <strong>do</strong> hegelianismo, não seria ter ignora<strong>do</strong> opapel <strong>do</strong> espaço e conjuntamente aquele da violência? O espaço, para Hegel, termina o tempohistórico; ele tem por mestre o Esta<strong>do</strong>. Ele acaba o racional e o real, simultaneamente. Quanto àviolência, Hegel a fêz entrar em suas categorias especulativas: a luta, a negativida<strong>de</strong> ativa, a guerra,expressão <strong>de</strong> contradições. Marx e Engels mostraram, por seu la<strong>do</strong>, que não podia haver violência“pura” e absoluta, sem base econômica, sem luta <strong>de</strong> classes, sem “expressão” da classe <strong>do</strong>minante219


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006economicamente, pois o Esta<strong>do</strong> não po<strong>de</strong> se estabelecer sem apelo a recursos materiais, sem objetivose repercutin<strong>do</strong> nas forças produtivas e nas relações <strong>de</strong> produção. Parteira, sim, a violência, mas <strong>de</strong>uma progenitura historicamente engendrada sem ela. Uns como o outro viram mal a violência noseio da acumulação (ainda que Marx tenha ti<strong>do</strong> em conta os piratas e corsários, o tráfico <strong>do</strong> ouro noséculo XVI, etc) enquanto produtora <strong>de</strong> um espaço político-econômico. Este espaço, foi o berço <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno, seu lugar <strong>de</strong> nascimento. Neste espaço, aquele da acumulação, se <strong>de</strong>senha a“vocação totalitária” <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, sua tendência a proclamar a vida e a existência políticas acima dasoutras formas (ditas “sociais” ou “culturais”) da prática, concentran<strong>do</strong> nele esta existência política,utilizan<strong>do</strong>-a para proclamar a soberania, a sua. Neste espaço se constitui pois este “ser” fictício ereal, abstrato-concreto, o Esta<strong>do</strong>, que não se reconhece outros limites que aqueles que provêm dasrelações <strong>de</strong> força (com seus componentes internos — com seus congêneres, sempre rivais,virtualmente adversários). O conceito <strong>de</strong> Soberania permite, sabe-se, ao Esta<strong>do</strong> monárquico afirmarsecontra a Igreja e o papa<strong>do</strong>, contra os feudais. Este conceito faz <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s homens <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>a “socieda<strong>de</strong> política” <strong>do</strong>minan<strong>do</strong> e transcen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a socieda<strong>de</strong> civil, os grupos, as classes. Mesmo sese prova, como Marx, que o Esta<strong>do</strong> e sua constituição não são exteriores às relações <strong>de</strong> produção, àsclasses e às suas contradições, o Esta<strong>do</strong> se erige com a Soberania acima <strong>de</strong>las e se reserva o direito<strong>de</strong> resolver as contradições pelo constrangimento. Ele legitima o recurso à força e preten<strong>de</strong> omonopólio da violência.569) Ora, Soberania quer dizer “espaço” e além disso espaço sore o qual se exerce uma violência(latente ou <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada), pois estabeleci<strong>do</strong> e constituí<strong>do</strong> pela violência. A partir <strong>do</strong> século XVI aacumulação quebrou os quadros das pequenas coletivida<strong>de</strong>s medievais, os burgos e cida<strong>de</strong>s, osfeu<strong>do</strong>s e principa<strong>do</strong>s. Apenas a violência atualiza as possibilida<strong>de</strong>s técnicas, <strong>de</strong>mográficas,econômicas, sociais. O po<strong>de</strong>r soberano esten<strong>de</strong>-se sobre um espaço que ele <strong>do</strong>mina militarmente, omais freqüentemente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tê-lo <strong>de</strong>vasta<strong>do</strong>. Os Esta<strong>do</strong>s mudam-se em Impérios, aquele <strong>de</strong> CarlosV e <strong>do</strong>s Habsburgos, aquele <strong>do</strong>s Czares, <strong>de</strong>pois aquele <strong>de</strong> Napoleão, e aquele <strong>do</strong> qual Bismarck foi oestrategista. Ora, esses impérios, anteriores ao imperialismo, explo<strong>de</strong>m ce<strong>do</strong> ou tar<strong>de</strong>, vítimas <strong>de</strong> seuespaço que lhes escapa. O Esta<strong>do</strong>-nação, basea<strong>do</strong> sobre um território <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>, triunfa ao mesmotempo sobre a Cida<strong>de</strong>-Esta<strong>do</strong> (que entretanto dura até o século XIX: Veneza, Florença) e sobre oEsta<strong>do</strong>-Império, cujas capacida<strong>de</strong>s militares são ce<strong>do</strong> ou tar<strong>de</strong> excedidas. A relação “centralida<strong>de</strong>periferia”,a uma escala que não é ainda planetária, já revela os limites da centralida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> po<strong>de</strong>restatista, a vulnerabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s centros “soberanos”.570) Resta que to<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nasce da violência e que o po<strong>de</strong>r estatista não persiste a não ser pelaviolência exercida sobre um espaço. Esta violência provém da natureza, tanto pelos recursoscoloca<strong>do</strong>s em jogo quanto pelo que está em jogo: riquezas, territórios. Ela faz ao mesmo tempo220


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006violência à toda a natureza, pois ela lhe impõe leis, recortes administrativos, princípios políticosestranhos às qualida<strong>de</strong>s iniciais <strong>do</strong>s territórios e das gentes. Ainda ao mesmo tempo, ela estabeleceuma racionalida<strong>de</strong>, aquela da acumulação, aquela da burocracia e <strong>do</strong> exército; uma unida<strong>de</strong>, umalogística, um operacionalismo, um quantitativismo tornam possível o crescimento econômico e serãoveicula<strong>do</strong>s por ela, até tomar posse <strong>do</strong> planeta. A violência original, a criação contínua pela violência(pelo fogo e pelo sangue, dizia Bismarck), eis a marca distintiva <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>; mas sua violência nãopo<strong>de</strong> se isolar. Ela não se separa nem da acumulação <strong>do</strong> capital nem <strong>do</strong> princípio racional e político<strong>de</strong> unificação, subordinan<strong>do</strong> e totalizan<strong>do</strong> os aspectos da prática social, a legislação, a cultura, oconhecimento e a educação num espaço <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>, aquele da hegemonia da classe <strong>do</strong>minantesobre seu povo e sua nacionalida<strong>de</strong> da qual ela se apropria. Cada Esta<strong>do</strong> preten<strong>de</strong> produzir o espaço<strong>de</strong> uma realização, às vezes <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sabrochar, aquele <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> unificada, portantohomogênea. Enquanto <strong>de</strong> fato e na prática, a ação estatista e política institui consolidan<strong>do</strong>-a porto<strong>do</strong>s os meios uma relação <strong>de</strong> forças entre as classes e frações <strong>de</strong> classes, entre os espaços que elasocupam. O que é portanto o Esta<strong>do</strong>? Um quadro, dizem os especialistas “politicólogos”, o quadro <strong>de</strong>um po<strong>de</strong>r que toma <strong>de</strong>cisões, <strong>de</strong> sorte que interesses (aqueles <strong>de</strong> minorias: classes, frações <strong>de</strong>classes) se impõem, a tal ponto que eles passam por interesses gerais. De acor<strong>do</strong>, mas é precisoajuntar: quadro espacial. Se não se tem em conta este quadro espacial, e sua potência, não se retém<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> senão a unida<strong>de</strong> racional, volta-se ao hegelianismo. Somente os conceitos <strong>do</strong> espaço e <strong>de</strong>sua produção permitem ao quadro <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r (realida<strong>de</strong> e conceito) atingir o concreto. É neste espaçoque o po<strong>de</strong>r central se erige acima <strong>de</strong> to<strong>do</strong> outro po<strong>de</strong>r e o elimina. É neste espaço também que umanação proclamada “soberana” afasta toda outra nacionalida<strong>de</strong> e freqüentemente a esmaga, que umareligião <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> interdita toda outra religião, que uma classe no po<strong>de</strong>r preten<strong>de</strong> suprimir asdiferenças entre as classes. A relação à sua própria eficácia <strong>de</strong> uma instituição outra que não oEsta<strong>do</strong> — a Universida<strong>de</strong>, o fisco, a justiça — não tem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> passar pela mediação <strong>do</strong>conceito <strong>de</strong> espaço para se representar; o espaço on<strong>de</strong> se exerce uma tal instituição se <strong>de</strong>fine por<strong>de</strong>cretos e regulamentos <strong>de</strong> aplicação no espaço estatista e político. Ao contrário, este quadroestatista e o Esta<strong>do</strong> como quadro não se concebem sem o espaço instrumental <strong>do</strong> qual eles seservem. É tão verda<strong>de</strong>iro que cada nova forma <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r político traz seu recorte <strong>do</strong>espaço e sua classificação administrativa <strong>do</strong>s discursos sobre o espaço, sobre coisas e gentes noespaço. Ela or<strong>de</strong>na assim ao espaço servi-la; o espaço tornan<strong>do</strong>-se classificatório, um certo saber nãocrítico constata esta “realida<strong>de</strong>” e o ratifica sem forçar mais longe a interrogação.571) O exame <strong>do</strong> espaço (<strong>do</strong> espaço político e da política <strong>do</strong> espaço) <strong>de</strong>veria permitir superar aoposição entre as teorias “liberais” <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> (<strong>de</strong>fini<strong>do</strong> como porta<strong>do</strong>r <strong>do</strong> “bem comum” <strong>do</strong>scidadãos, como árbitro imparcial <strong>de</strong> seus conflitos), e as teorias “autoritárias” (que justificam pela221


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006“vonta<strong>de</strong> geral” e a racionalida<strong>de</strong> unifica<strong>do</strong>ra a centralização <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, a sistematização burocráticopolítica,a existência e a importância <strong>do</strong>s aparelhos).572) A esses componentes da produção <strong>do</strong> espaço abstrato, po<strong>de</strong>-se acrescentar: a metaforizaçãogeral que, aplican<strong>do</strong>-se ao histórico e ao cumulativo, transfere-os neste espaço on<strong>de</strong> a violênciacobre-se <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> e on<strong>de</strong> a racionalida<strong>de</strong> unifica<strong>do</strong>ra justifica a violência. De sorte que ahomogenização não aparece como tal mas através <strong>de</strong> metáforas tais como: o “consenso”, a<strong>de</strong>mocracia parlamentar, a hegemonia, a razão <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>. Ou ainda o espírito <strong>de</strong> empresa. Entre osaber e o po<strong>de</strong>r, entre o espaço e o discurso <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, as trocas multiplicam-se e se regularizam,“feed-back” muito especial.573) Assim se estabelece no espaço a trinda<strong>de</strong> capitalista, esta trinda<strong>de</strong> “terra-capital-trabalho” quenão po<strong>de</strong> permanecer abstrata e não se concentra a não ser num espaço institucional triplo: global emanti<strong>do</strong> como tal, aquele da soberania, on<strong>de</strong> se manifestam os constrangimentos, portantofetichiza<strong>do</strong>, redutor <strong>de</strong> diferenças — fragmenta<strong>do</strong>, separan<strong>do</strong>, disjuntan<strong>do</strong>, localizan<strong>do</strong> asparticularida<strong>de</strong>s, os lugares e localizações, ao mesmo tempo para controlá-los e negociá-los —hierarquiza<strong>do</strong> enfim, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> lugares abjetos a nobres, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> lugares in<strong>de</strong>rditos a lugares soberanos.574) Mas o exposto, in<strong>do</strong> muito <strong>de</strong>pressa em direção ao seu objetivo, antecipou-se ao projeto e saltoualgumas malhas.575) IV. 13 Os textos <strong>de</strong> Rabelais mostram uma relação surpreen<strong>de</strong>nte entre o legível e o ilegível,entre o aparecimento e aquilo que se escon<strong>de</strong>. O que se diz se apo<strong>de</strong>ra <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>do</strong> aparecer, <strong>do</strong>surgimento. O “visto” (contrário da aparência) não se refere àquele que vê ou ao visível mas aoinvisível noturno ao ponto <strong>de</strong> vir ao dia. A palavra, dificilmente escrita, anuncia este nascimento <strong>de</strong>cada coisa e a presi<strong>de</strong>. “Abrin<strong>do</strong> esta caixa; teríeis <strong>de</strong>ntro encontra<strong>do</strong> uma celeste e inapreciáveldroga” 182 . O conteú<strong>do</strong>, o que vem ao dia? É o passa<strong>do</strong> inteiro, enterra<strong>do</strong> na memória e no esqueci<strong>do</strong>;mas é também a realida<strong>de</strong> da carne que se atualiza. O corpo vivo está presente, como lugar <strong>de</strong>passagem das profundida<strong>de</strong>s à superfície, <strong>do</strong> escon<strong>de</strong>rijo à <strong>de</strong>scoberta, e o escritor “com o gran<strong>de</strong>reforço <strong>de</strong> bezicles pratican<strong>do</strong> a arte na qual po<strong>de</strong>mos ler letras que não aparecem” faz emergiratravés <strong>de</strong> suas palavras mágicas os segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> sombrio reino dionisíaco ao reina<strong>do</strong> <strong>de</strong> Apollo, dascriptas e cavernas <strong>do</strong> corpo à clarida<strong>de</strong> <strong>do</strong> sonho e da razão. A experiência mais imediata e a prova“física” servem <strong>de</strong> lições ao conhecimento mais eleva<strong>do</strong>. A emergência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> prossegue, com arealização concreta <strong>do</strong> Logos. O texto não se refere nem a outros textos nem aos contextos, mas aosnão-textos. De mo<strong>do</strong> que este prodigioso inventor <strong>do</strong> verbo nos vem a atacar os “transporta<strong>do</strong>res <strong>de</strong>nomes”: estes que substituem o pensamento por jogos <strong>de</strong> palavras ou <strong>de</strong> cores. A tal ponto que182 Cf. A edição <strong>do</strong> Livro 1 em fac-símile por Clau<strong>de</strong> Gaignebet, Quatre-Feuilles, editor, 1971, fol. 3.222


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006Rabelais se reivindica a sabe<strong>do</strong>ria egípcia e as letras hieroglíficas, “as quais nada entendia aqueleque não enten<strong>de</strong>u” 183 , verda<strong>de</strong>ira chamada à escuta e ao entendimento contra o visual.576) Para Descartes e os cartesianos, Deus não <strong>de</strong>scansa. A criação continua. O que quer dizer estatese tomada a Descartes por Spinoza e Leibniz e levada até o absur<strong>do</strong> por Malebranche?577) a) O mun<strong>do</strong> material, ou seja, o espaço, somente persiste na existência por ser sustenta<strong>do</strong> pelopensamento divino e conti<strong>do</strong> neste pensamento: produzi<strong>do</strong> por ele, contínua e literalmente secreta<strong>do</strong>– espelho orgânico <strong>do</strong> infinito.578) b) As leis <strong>do</strong> espaço, leis matemáticas, são <strong>de</strong>cretadas por Deus e mantidas por Ele; nada lhesescapa e o cálculo matemático reina na natureza por ser coextensivo ao espaço produzi<strong>do</strong> por Deus.579) c) Há constantemente o novo na natureza, se bem que seus elementos (naturezas) aí sejamtotalmente simples, a tal ponto que não exista senão um: o espaço geométrico. A ação divina, como aação humana, proce<strong>de</strong> à maneira da ren<strong>de</strong>ira que extrai <strong>de</strong> um simples fio figurasextraordinariamente complexas. Esta metáfora levada a sério se encontra no próprio Descartes(Méditations). Quan<strong>do</strong> Descartes diz que tu<strong>do</strong> na natureza não passa <strong>de</strong> figura e movimento, não se<strong>de</strong>ve tomar estes termos como metafóricos, mas sim ao pé da letra. Deus produz, opera, obra, aindaque não se exauste, à maneira <strong>do</strong>s seres finitos.580) O trabalho produtivo é transporta<strong>do</strong> na essência da divinda<strong>de</strong> a propósito <strong>do</strong> espaço. Deus figurapara o pensamento uma espécie <strong>de</strong> unida<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> trabalho e da natureza. A ativida<strong>de</strong>humana imita a ativida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra divina. Por um la<strong>do</strong>, há o trabalho <strong>de</strong> artesãos, que se tornammestres da natureza; por outro, há o conhecimento, aquele <strong>do</strong> processo cria<strong>do</strong>r (produtivo) que não é183 Gargantua, I, X. [No original, “lesqueles nul n’enten<strong>do</strong>it qui n’entendist”. Lefebvre ilumina <strong>do</strong>is significa<strong>do</strong>s abriga<strong>do</strong>s peloverbo entendre, enten<strong>de</strong>r e escutar. Ainda que o verbo português enten<strong>de</strong>r encerre também os mesmos significa<strong>do</strong>s, areferência ao segun<strong>do</strong> <strong>de</strong>les não é tão explícita quanto no francês. A passagem a que Lefebvre se reporta nesse parágrafo é aseguinte: “Bien aultrement faisoient en temps jadis les saiges <strong>de</strong> égypte, quand ilz escripvoient par lettres qu’ilz appeloienthieroglyphiques, lesquels nul n’enten<strong>do</strong>it qui n’entendist et un chascun enten<strong>do</strong>it qui entendist la vertu, propriété et nature <strong>de</strong>schoses par icelles figurées (...)”. Cf. RABELAIS, François. Oeuvres Completes. Paris: Pléia<strong>de</strong>, 1938. Vertida para o francêsmo<strong>de</strong>rno, a mesma passagem é assim apresentada: “Les anciens egyptiens étaient bien plus sages quand ils écrivaient leurshieroglyphes; ce qu’ils figuraient <strong>de</strong>meurait vague pour ceux qui ignorait la vertu, la propriété et la nature <strong>de</strong>s choses qu’ilsrepresentait.”. Cf. RABELAIS, François. Tout Rabelais. Paris: Nilsson, 19--. A tradução intralinguística <strong>de</strong>ixa escapar areferência ao ouvi<strong>do</strong>. O caminho toma<strong>do</strong> pelas traduções interlinguísticas parece ser o mesmo. Tanto no caso <strong>do</strong> espanhol,quanto no <strong>do</strong> inglês, os verbos utiliza<strong>do</strong>s (enten<strong>de</strong>r, un<strong>de</strong>rstand) avolumam a centralida<strong>de</strong> <strong>do</strong> entendimento, relegan<strong>do</strong> a escutaao olvi<strong>do</strong>. “De manera bien distinta procedían antiguamente los sabios <strong>de</strong> egipto cuan<strong>do</strong> escribían aquellas letras llamadasjeroglíficas, las que no éran entendidas sino por aquellos que comprendían la virtud, propriedad y naturaleza <strong>de</strong> las cosas porellas representadas.”. Cf. RABELAIS, François. Gargantúa y Pantagruel. Buenos Aires: El Ateneo, 1956. “For otherwise didtherefore the sages of Egypt, when they wrote by letters, wich they called hieroglyphics, which none un<strong>de</strong>rstood who wherenot skilled in the virtue, property and nature of the things represented by them.”. Cf. RABELAIS, François. Gargantua andPantagruel. Lon<strong>do</strong>n: Britannica, 1952. Lê-se em português: “letras que não eram entendidas senão por aqueles quecompreen<strong>de</strong>ram a virtu<strong>de</strong>, a proprieda<strong>de</strong> e a natureza das coisas que elas representavam.”. Cf. RABELAIS, François.Gargântua e Pantagruel. Belo Horizonte: Itatiaia, 2003. Ou seja, o acúmulo <strong>do</strong>s signos acentua o visual, soterran<strong>do</strong> a escuta.Traduzir “lesqueles nul n’enten<strong>do</strong>it qui n’entendist” por “as quais nada entendia aquele que não enten<strong>de</strong>u” balizou-se pelanecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> não permitir que qualquer <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is significa<strong>do</strong>s ressalta<strong>do</strong>s por Lefebvre no verbo entendre <strong>de</strong>sapareça novazio frente à hipertrofia e ao enrijecimento <strong>do</strong> outro (ainda que o verbo português utiliza<strong>do</strong> não ofereça essa dupla referência<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> tão explícito). N. T.].223


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006mais a contemplação antiga e medieval mas a forma cartesiana <strong>do</strong> pensamento teórico que se<strong>de</strong>senvolveu se transforman<strong>do</strong> em Hegel e Marx. O tempo <strong>do</strong> conhecimento <strong>do</strong>mina a or<strong>de</strong>mespacial que se constitui <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as leis lógicas da homogeneida<strong>de</strong>, sob o olhar <strong>do</strong> Senhor, sobo olhar <strong>do</strong> “ sujeito “ pensante.581) A priorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> visual (<strong>do</strong> geométrico-ví<strong>de</strong>o-espacial) não se impôs sem lutas.582) No século XVIII, a música tem priorida<strong>de</strong>. Arte piloto, ela parte <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobertas físicas ematemáticas. Ela se <strong>de</strong>senvolve da fuga à sonata, à gran<strong>de</strong> ópera, à sinfonia. Ela gera uma idéia <strong>de</strong>repercussões in<strong>de</strong>finidas: a harmonia. As controvérsias musicais inquietam multidões; elas têmrepercussões filosóficas, portanto universais. Os filósofos se ocupam da música, escutam a música,escrevem sobre a música.583) No século XVIII, o espaço, já politiza<strong>do</strong>, já visual-geométrico, apoian<strong>do</strong>-se sobre a pintura e aarquitetura monumental (Versailles), sofre o ataque <strong>do</strong> musical. Com uma vingança <strong>do</strong> corpo e <strong>do</strong>ssinais <strong>do</strong> corpo sobre o não corpo e seus sinais; vingança vulgarmente chamada “materialismo <strong>do</strong>século XVIII”. A superiorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> visual sobre os outros senti<strong>do</strong>s e órgãos <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s parececomprometida quan<strong>do</strong> Di<strong>de</strong>rot prova que um cego conhece tantas coisas, possui tantas idéias, vivetão “normalmente” quanto uma pessoa com boa visão. De mo<strong>do</strong> que o filósofo po<strong>de</strong> se permitirperguntar para que serve a visão, se não é uma espécie <strong>de</strong> luxo mais agradável que útil. Esta críticafilosófica não atinge sua importância se não a abordarmos a partir <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>bates <strong>do</strong> XVIII apropósito da música e da emergência <strong>de</strong>ste po<strong>de</strong>roso conceito unin<strong>do</strong> o Cosmos e o Mun<strong>do</strong>: aHarmonia.584) IV. 14 Do espaço abstrato já sabemos várias coisas. Produto da violência e da guerra, ele épolítico, e instituí<strong>do</strong> por um Esta<strong>do</strong>, portanto institucional. Numa primeira abordagem, ele parecehomogêneo; e realmente, ele serve <strong>de</strong> instrumento àqueles po<strong>de</strong>res que fazem tabula rasa daquiloque lhes resiste e os ameaça, - brevemente, as diferenças. Estes po<strong>de</strong>res esmagam o que estiver emseu caminho, eles apagam; o espaço homogêneo lhes serve à maneira <strong>de</strong> um cepilho, <strong>de</strong> umaescava<strong>de</strong>ira, <strong>de</strong> um tanque <strong>de</strong> guerra. Esta homogeneida<strong>de</strong> instrumental provoca ilusões, e a<strong>de</strong>scrição empírica <strong>do</strong> espaço a consagra, aceitan<strong>do</strong> o instrumental como tal.585) Des<strong>de</strong> seu primeiro ataque, a análise crítica discerne três aspectos ou elementos (estes termos<strong>de</strong>signam o que se <strong>de</strong>nominaria melhor os “formantes”, termo empresta<strong>do</strong> da análise <strong>de</strong> sonsmusicais). Estes formantes têm o seguinte <strong>de</strong> particular (mas que se po<strong>de</strong> encontrar em outroslugares): eles se implicam e se dissimulam uns aos outros. O que não ocorre no caso das oposições<strong>de</strong> <strong>do</strong>is termos, pois os termos ao se oporem e se refletirem um no outro num simples jogo <strong>de</strong>espelhos, se fazem brilhar, por assim dizer, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então se tornam significantes ao invés <strong>de</strong> seocultar. Quais são estes três elementos?224


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006586) a) O geométrico. É o espaço euclidiano consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como “absoluto” pelo pensamentofilosófico, portanto por muito tempo espaço <strong>de</strong> referência (representação <strong>do</strong> espaço). Este espaçoeuclidiano se <strong>de</strong>fine por sua isotopia (sua homogeneida<strong>de</strong>), proprieda<strong>de</strong> que garante seu uso social epolítico. A redução ao espaço euclidiano homogêneo, em primeira instância <strong>do</strong> espaço-natureza e emseguida <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o espaço social, lhe confere um po<strong>de</strong>r temível. Tanto mais que esta primeira reduçãoconduz facilmente a uma outra: a redução <strong>do</strong> tridimensional a duas dimensões: o “plano”, a folha <strong>de</strong>papel em branco, o <strong>de</strong>senho sobre esta folha, os mapas, os grafismos e projeções.587) b) O ótico (visual). A “lógica da visualização”, esta estratégia i<strong>de</strong>ntificada por Erwin Panofsky apropósito das catedrais góticas, ganhou o conjunto da prática social. A transformação em escrita(Marshall McLuhan) e a transformação em espetáculo (Guy Debord) se submetem a esta lógica, aseus <strong>do</strong>is momentos ou aspectos, um metafórico (o escrever e o escrito, ativida<strong>de</strong>s subsidiáriastornadas essenciais, mo<strong>de</strong>los e centros da prática), e outro metonímico (o olho, o olhar, a coisa vista,cessam <strong>de</strong> passar por <strong>de</strong>talhes ou partes, e se transformam em sua totalida<strong>de</strong>). Ao longo <strong>do</strong> processopelo qual o visual passa a <strong>do</strong>minar e toma a primazia em relação aos outros senti<strong>do</strong>s, o que vem <strong>do</strong>paladar, <strong>do</strong> olfato, <strong>do</strong> tato e até da audição, em primeiro lugar se esfuma, apaga-se em seguidaperante a linha, a cor, a luz; uma parte <strong>do</strong> objeto e <strong>do</strong> que ele proporciona se percebe então pelo to<strong>do</strong>:este abuso normal (normaliza<strong>do</strong>) se justifica em razão da importância social da escrita. Porassimilação, por simulação, tu<strong>do</strong> na vida social se torna <strong>de</strong>cifração <strong>de</strong> uma mensagem através <strong>do</strong>solhos, leitura <strong>de</strong> um texto; uma impressão diferente da ótica, tátil, por exemplo, ou muscular(ritmos), nada mais é que simbólica e transitória na direção <strong>do</strong> visual; o objeto palpa<strong>do</strong>, prova<strong>do</strong>pelas mãos, serve somente <strong>de</strong> “análogon” ao objeto percebi<strong>do</strong> pela visão. A Harmonia, nascida pelae para a escuta, se transfere ao visual com a priorida<strong>de</strong> quase absoluta das artes da imagem: cinema,pintura.588) Ora, o olhar exila os “objetos” na distância, no passivo. O que é somente visto se reduz a umaimagem, a uma frieza congelada. O jogo <strong>do</strong> espelho se generaliza. O “ver” e o “visto” se misturan<strong>do</strong>caem juntos na impotência. O espaço, no início <strong>de</strong>ste processo só tem existência social através <strong>de</strong>uma visualização intensa, agressiva e repressiva. Trata-se portanto <strong>de</strong> um espaço visual, nãosimbolicamente, mas efetivamente. A pre<strong>do</strong>minância <strong>do</strong> visível envolve um conjunto <strong>de</strong>substituições e <strong>de</strong>slocamentos através <strong>do</strong>s quais o visual suplanta e substitui o corpo inteiro. Vê-semal o que é apenas visto (e visível) mas se discursa cada vez melhor e se escreve cada vez mais arespeito.589) c) O fálico. Este espaço não po<strong>de</strong> se esvaziar <strong>de</strong> pessoas completamente, se preencher somente<strong>de</strong> imagens, <strong>de</strong> objetos transitórios. Ele reivindica um objeto verda<strong>de</strong>iramente cheio, um “absoluto”objetal. O fálico presta este serviço. Metaforicamente, ele simboliza a força, a fecundida<strong>de</strong> macha, a225


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006violência masculina. A parte se toma ainda aqui pelo to<strong>do</strong>; a brutalida<strong>de</strong> fálica não permaneceabstrata, pois ela é a <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r político, <strong>do</strong>s meios <strong>de</strong> repressão: polícia, exército, burocracia. O fálicose ergue, privilegian<strong>do</strong> a verticalida<strong>de</strong>. Ele proclama a falocracia, senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> espaço, termo <strong>do</strong>processo (duplo: metafórico e metonímico) que fez nascer essa prática espacial.590) O espaço abstrato não é homogêneo; ele tem a homogeneida<strong>de</strong> como fim, como senti<strong>do</strong>, como“objetivo”. Ele a impõe. Por si mesmo, ele é plural. O geométrico e o visual se completam e seopõem, visan<strong>do</strong> diferentemente o mesmo efeito: a redução <strong>do</strong> “real” por um la<strong>do</strong> ao “plano”, novazio, sem outra qualida<strong>de</strong>, por outro ao aplainamento <strong>do</strong> espelho, da imagem e <strong>do</strong> puro espetáculosob o puro olhar congela<strong>do</strong>. Quanto ao fálico, ele se torna suplemento para que haja “algo” nesteespaço, significante que não tenha o vazio como significa<strong>do</strong> mas a plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua força<strong>de</strong>strui<strong>do</strong>ra, a ilusão portanto da plenitu<strong>de</strong>, o repreenchimento por um “objeto” porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> mitos. Ovalor <strong>de</strong> uso <strong>de</strong> um tal espaço é político, exclusivamente. Se falamos <strong>de</strong>le como <strong>de</strong> um “sujeito” quetem tal finalida<strong>de</strong> e tal meio <strong>de</strong> ação, é que existe efetivamente um sujeito político, o po<strong>de</strong>r enquantotal, o Esta<strong>do</strong> enquanto tal.591) Conceber o espaço abstrato como homogêneo, é portanto uma representação que toma o efeitopela causa e a finalida<strong>de</strong> pela razão. Ela dá a ilusão <strong>de</strong> um conceito enquanto ela é apenas umaimagem, um espelho e uma miragem. Ela reflete ao invés <strong>de</strong> recusar refutan<strong>do</strong>. O que reflete talrepresentação especular? O resulta<strong>do</strong> visa<strong>do</strong>. “Por trás da cortina não existe nada para se ver” dizHegel em algum lugar com ironia, a menos que “nós” penetremos por trás da cortina nós mesmos,pois é necessário que exista alguém para ver para que haja algo a ver visto. No espaço, por trás <strong>de</strong>le,não há nenhuma substância <strong>de</strong>sconhecida, nenhum mistério. E todavia a transparência engana, tu<strong>do</strong>se fecha: o espaço se torna armadilha. Sua armadilha consiste precisamente na sua transparência. Porconseqüência, há outra coisa além <strong>do</strong> jogo <strong>de</strong> reflexos e espelhos: um jogo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> saber, quepercebemos entran<strong>do</strong> neste espaço <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter levanta<strong>do</strong> a cortina.592) Homogêneo na aparência, (sua aparência faz sua força) o espaço abstrato não tem nada <strong>de</strong>simples. Revelamos, em primeiro lugar, as dualida<strong>de</strong>s constitutivas. Ele se duplica: resulta<strong>do</strong> econtinente, produto e produtivo, - por um la<strong>do</strong> representação <strong>do</strong> espaço (a homogeneida<strong>de</strong>geométrica), por outro, espaço <strong>de</strong> representação (o fálico). Desta dualida<strong>de</strong>, a coincidência suposta<strong>do</strong>s formantes mascara a duplicida<strong>de</strong>. Por um la<strong>do</strong> ele ainda é campo <strong>de</strong> ação prática, e por outroconjunto <strong>de</strong> imagens, signos, símbolos. Por um la<strong>do</strong>, ilimita<strong>do</strong> por ser vazio e por outro povoa<strong>do</strong> <strong>de</strong>vizinhanças, <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong>s (proxemias), <strong>de</strong> distâncias afetivas e <strong>de</strong> limites. Portanto ele é aomesmo tempo vivi<strong>do</strong> e representa<strong>do</strong> – expressão e suporte <strong>de</strong> uma prática – estimulante e restritivo,um pelo outro (estes “aspectos” não coincidin<strong>do</strong>), etc. Mas três termos aparecem imediatamente: opercebi<strong>do</strong>, o concebi<strong>do</strong>, o vivi<strong>do</strong> – a prática, as representações (duplicadas).226


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006593) As referências individuais se realizam socialmente. A localização, para os indivíduos, <strong>de</strong>instrumentos e lugares <strong>de</strong> trabalho (aí incluí<strong>do</strong> naturalmente os percursos) não exclui a representaçãopor símbolos e signos da hierarquia das funções. Ao contrário: um inclui o outro. A base <strong>de</strong> ummo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida contém e dá forma a este mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida. A posição (localização) em relação à produção(ao trabalho) compreen<strong>de</strong> as posições e funções no mun<strong>do</strong> da produção (a divisão <strong>do</strong> trabalho) mastambém a hierarquia das funções e trabalhos. O mesmo espaço abstrato po<strong>de</strong> servir ao lucro,privilegiar certos lugares organizan<strong>do</strong> sua hierarquia, estipular a segregação (para uns) e a integração(para outros). As estratégias têm diversos “alvos”, visan<strong>do</strong> este ou aquele objeto, com esta ou aquelaaposta, estes recursos ou aqueles. O espaço <strong>de</strong> trabalho tem seus aspectos complementares: ativida<strong>de</strong>produtora, lugar no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção. A relação com as coisas no espaço implica a relação aoespaço (as coisas no espaço dissimulam as “proprieda<strong>de</strong>s” <strong>do</strong> espaço como tal; o espaço valoriza<strong>do</strong>por este símbolo é também o espaço reduzi<strong>do</strong> (homogeneiza<strong>do</strong>).594) Deste mo<strong>do</strong> a prática espacial <strong>de</strong>fine simultaneamente os lugares, a relação <strong>do</strong> local ao global –uma representação <strong>de</strong>stas relações – ações e signos – espaços cotidianamente banaliza<strong>do</strong>s e espaçosprivilegia<strong>do</strong>s, afeta<strong>do</strong>s por símbolos (favoráveis ou <strong>de</strong>sfavoráveis, benéficos ou maléficos,autoriza<strong>do</strong>s ou <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong>s a tal grupo). Não se trata <strong>de</strong> lugares psíquicos ou literários, <strong>de</strong> “topoi”filosóficos, mas <strong>de</strong> lugares políticos e sociais.595) De on<strong>de</strong> certos fenômenos globais, interessan<strong>do</strong> o espaço inteiro (as trocas e as comunicações, aurbanização, a “valorização” <strong>do</strong> espaço), ao mesmo tempo que as compartimentalizações,fragmentações, reduções, interdições. O espaço <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m se escon<strong>de</strong> na or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> espaço.Procedimentos operacionais, ação <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r localiza<strong>do</strong> em si mesmo, resultam aparentemente <strong>de</strong>uma simples lógica <strong>do</strong> espaço. Existem beneficiários <strong>do</strong> espaço, e – excluí<strong>do</strong>s “priva<strong>do</strong>s <strong>de</strong> espaço”;esta situação se atribui às “proprieda<strong>de</strong>s” <strong>de</strong> um espaço, a suas “normas”, enquanto se trata <strong>de</strong> algobem diferente.596) Como isso é possível? Como po<strong>de</strong> a abstração escon<strong>de</strong>r tantas capacida<strong>de</strong>s, tanta eficácia, tantarealida<strong>de</strong>? A esta urgente questão, eis a resposta em fase <strong>de</strong> formulação e <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração: há umaviolência inerente à abstração, a seu uso prático (social).597) A abstração passa por uma “ausência” oposta à “presença” concreta <strong>do</strong>s objetos, das coisas.Nada <strong>de</strong> mais falso. A abstração atua através da <strong>de</strong>molição, da <strong>de</strong>struição (que ocasionalmente ensaiaa criação). Os sinais têm algo <strong>de</strong> mortal, não <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às “latências” e às forças ditas inconscientes,mas ao contrário <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à introdução forçada da abstração na natureza. A violência não vem <strong>de</strong> umaforça que interviria ao la<strong>do</strong> da racionalida<strong>de</strong>, por fora <strong>de</strong>la ou além. Ela se manifesta a partir <strong>do</strong>momento em que a ação introduz o racional no real, <strong>do</strong> exterior, através <strong>do</strong> instrumento, que semprebate, parte, corta, repete a agressão até que seu propósito seja atingi<strong>do</strong>. Pois o espaço é instrumental:227


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006o mais geral <strong>do</strong>s instrumentos. O espaço agrário, que o viajante contempla <strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong> o natural,resulta <strong>de</strong> uma primeira violação da natureza. A violência se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra ao longo <strong>do</strong> que se <strong>de</strong>nomina“história”, prece<strong>de</strong>ntemente resumida com ênfase no la<strong>do</strong> frequentemente omiti<strong>do</strong>.598) Ao longo da transição aqui brevemente <strong>de</strong>scrita e con<strong>de</strong>nsada, haveria aí uma soleira? Teria oespaço fálico-ví<strong>de</strong>o-geométrico venci<strong>do</strong> as outras percepções e formas <strong>de</strong> percepção, num certomomento?599) Mesmo se se admite uma visão revolucionária, já não é mais fácil <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar os resulta<strong>do</strong>sdas gran<strong>de</strong>s revoluções como “benéficos”. Da revolução francesa nasceu contraditoriamente a nação,o Esta<strong>do</strong>, o individualismo, o direito (mo<strong>de</strong>rno, ou seja, o direito romano revisa<strong>do</strong> e “apropria<strong>do</strong>”), aracionalida<strong>de</strong>, o serviço militar obrigatório, o solda<strong>do</strong> não pago, a guerra permanente. Sem seesquecer <strong>do</strong> <strong>de</strong>saparecimento <strong>do</strong> que subsistia <strong>do</strong> antigo controle comunitário sobre as autorida<strong>de</strong>spolíticas. Sem se omitir a burguesia, o capitalismo. Em breve, a violência generalizada.600) Dentre estes efeitos da revolução, diretos e indiretos, po<strong>de</strong>-se acrescentar a constituição<strong>de</strong>finitiva <strong>do</strong> espaço abstrato, fálico-ví<strong>de</strong>o-geométrico. Desnecessário dizer que tal resulta<strong>do</strong> nãoaparece como tal. Nenhum artigo <strong>do</strong> Código Napoleônico o estipula. Mas, como o diz Hegel, osperío<strong>do</strong>s mais cria<strong>do</strong>res da história foram e são os mais atormenta<strong>do</strong>s. Depois da produção vem oinventário, a formatação. E mesmo às vezes a felicida<strong>de</strong>, que não se escreve senão nas “páginas embranco” da história. A aparição e a formatação <strong>do</strong> espaço abstrato não contêm uma data. Não setratam <strong>de</strong> eventos ou <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong>finidas, e todavia, no final <strong>do</strong> século XX, eles estão aí. Estaformação não po<strong>de</strong> ser compreendida senão ao se transcen<strong>de</strong>r as categorias correntes <strong>do</strong>“inconsciente” e <strong>do</strong> “consciente”, assim como as imputações baseadas nestes conceitos. Nada <strong>de</strong>mais “consciente” que o emprego das metáforas, pois elas são inerentes ao discurso, portanto àconsciência; nada mais “inconsciente” se a análise leva em conta o conteú<strong>do</strong> que se manifesta pelaseqüência, ao longo <strong>do</strong> uso (palavras e conceitos). Aqui, a crítica textual, a atenta e lenta constituição<strong>de</strong> um “corpus”, po<strong>de</strong>ria representar um importante papel. O romantismo não viveu, conhecen<strong>do</strong>mal, o momento transitório entre a espacialida<strong>de</strong> abstrata e a percepção mais imediata? Este conflito,ignora<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntre outros mais explosivos, não teria ele atravessa<strong>do</strong>, e portanto anima<strong>do</strong> o romantismo?Breves indicações: uma certa poesia romântica não marcaria a soleira? Não seria esta a porta ou oornamento <strong>de</strong>sta porta monumental? Por exemplo, a poesia <strong>de</strong> Vitor Hugo não teria ela induzi<strong>do</strong> otriunfo <strong>do</strong> visual, <strong>do</strong> fálico, da geometria divinizada? O “visionário” evoca os abismos, asprofundida<strong>de</strong>s, “a boca da escuridão”. Ele profere (palavras). Ele quer que a clarida<strong>de</strong> o leve sobre assombras. Ele pensa na vitória <strong>do</strong> Logos. Todas as metáforas visuais se tornam gran<strong>de</strong>s ruí<strong>do</strong>s. O olho(<strong>de</strong> Deus, <strong>do</strong> Pai eterno) se instala no túmulo. Os sons <strong>do</strong> pífano recortam uma renda. O porcoensanguenta<strong>do</strong> se levanta da poeira on<strong>de</strong> ele agoniza, e se encontra pesan<strong>do</strong> na balança eterna. “O228


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006porco ensanguenta<strong>do</strong> e Deus se observaram”. Triunfo <strong>do</strong> olhar. Idiotice ou genialida<strong>de</strong>? Que falsodilema. O tom épico! A Visão e a Vista, a Clarida<strong>de</strong> e o Céu proclamam a vitória, e o que eles fazem<strong>do</strong> inimigo? Eles o dissipam. Os povos <strong>do</strong> crepúsculo, que habitam a noite, gênios, ancestrais,<strong>de</strong>mônios, se dispersam com a chegada <strong>do</strong> dia. Diante <strong>de</strong> que dia? Qual sombra? Qual ciência?Diante <strong>de</strong> Deus, o senhor <strong>do</strong> verão eterno.601) A soleira já não foi cruzada?229


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006V. O ESPAÇOESPAÇO CONTRADITÓRIO602) V.1 Se há ciência <strong>do</strong> espaço (geometria, topologia), não po<strong>de</strong> haver aí [il ne peut y avoir]contradições <strong>do</strong> espaço. Se há dualida<strong>de</strong>s (proprieda<strong>de</strong>s duais) constitutivas <strong>do</strong> próprio espaço social[lui-même], não po<strong>de</strong> haver aí contradição <strong>do</strong> espaço: dualida<strong>de</strong> não é conflito, ao contrário. Se éverda<strong>de</strong> que o espaço é o lugar ou o conjunto <strong>do</strong>s lugares da coerência, se é exato que há umarealida<strong>de</strong> mental , não po<strong>de</strong> haver aí contradição <strong>do</strong> espaço. De Heráclito a Hegel e Marx, opensamento dialético se liga [rattache] ao tempo; as contradições dizem (exprimem) as forças e asrelações <strong>de</strong> forças que se enfrentam/se <strong>de</strong>frontam [s’affrontent] numa história (na história em geral).603) A ilusão (filosófica <strong>de</strong> origem, mas difundida na cultura oci<strong>de</strong>ntal) <strong>do</strong> espaço transparente,“puro” e neutro, não se dissipa a não ser lentamente. Consi<strong>de</strong>rações diversas (históricas, físicas,fisiológicas, linguísticas, etc.) já mostraram sua complexida<strong>de</strong>. O espaço social contém “traços”distintos e distintivos se juntan<strong>do</strong> à forma mental “pura”, sem por essa razão/no entanto [pour autant]separar-se como um conteú<strong>do</strong> exterior e acrescenta<strong>do</strong> [surajouté]. Sua análise [Leur analyse] diz oque confere ao espaço uma existência concreta (prática) no lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixá-lo na abstração (mental).604) V.2 Seria preciso contentar-se em introduzir a idéia <strong>de</strong> um espaço “plural”, “poliscópico”,“polivalente”? Não. A análise <strong>de</strong>ve ir mais longe. Convém primeiro colocar <strong>de</strong> novo, em termoselucida<strong>do</strong>s, a questão: “Há uma lógica <strong>do</strong> espaço? Se sim, como <strong>de</strong>fini-la, qual é seu alcance/impacto[portée]? Tem ela limites, quais [lesquelles]? Se não, on<strong>de</strong> começa exatamente o irredutível à formalógica? On<strong>de</strong> o pensamento, que parte da forma “pura”, reencontra o obstáculo, e qual? Opacida<strong>de</strong> ecompacticida<strong>de</strong> [compacité]? Complexida<strong>de</strong>? Conteú<strong>do</strong> sensorial e prático irredutível? Residualresistin<strong>do</strong> a to<strong>do</strong> ataque da análise?…”605) A crítica da concepção cartesiana <strong>do</strong> espaço, aquela <strong>de</strong> seus prolongamentos na filosofiamo<strong>de</strong>rna, não <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia/ocasiona [entraîne] ipso facto a crítica da lógica espacial. Com efeito, oespaço cartesiano se oferece a um “intuitus”. O sujeito, perfeitamente <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>, nasci<strong>do</strong> adulto emaduro como consciência <strong>de</strong> si, portanto [<strong>do</strong>nc] um tanto/até certo ponto [quelque peu] separa<strong>do</strong> <strong>do</strong>“real” e <strong>do</strong> “mun<strong>do</strong>”, não compreen<strong>de</strong>/percebe/apreen<strong>de</strong> [n’en saisit] menos, por milagre eintervenção divina, o “objeto”, o espaço, que não resulta <strong>de</strong> uma construção intelectual ou <strong>de</strong> umaelaboração <strong>do</strong> sensível, mas se dá em bloco [mais se <strong>do</strong>nne d’un bloc], pureza supra-sensível,infinitu<strong>de</strong>. Ao contrário da intuição cartesiana, uma lógica não <strong>de</strong>termina senão uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong>relações, constitutivas <strong>do</strong> “objeto”.606) No pensamento contemporâneo, encontramos muitos esforços para juntar à lógica setoresinteiros <strong>do</strong> real, ou se se quer, para <strong>de</strong>terminar (<strong>de</strong>finir) <strong>do</strong>mínios a partir <strong>de</strong> uma tese lógica sobre acoerência e a coesão, o equilíbrio e a regulação; discorre-se [on discourt] assim sobre a lógica <strong>do</strong>230


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006vivo [vivant], a lógica <strong>do</strong> social, a lógica <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> e da merca<strong>do</strong>ria, a lógica <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, etc., semter previamente <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> a lógica e seus limites. Para iludir/enganar [élu<strong>de</strong>r] a dialética, multiplica-sesem termo as lógicas. Isto/o que abala/compromete/enfraquece [ébranle] a própria lógica.607) V.3 As relações lógicas são relações <strong>de</strong> inclusão-exclusão, <strong>de</strong> conjunção-disjunção, <strong>de</strong>implicação-explicação, <strong>de</strong> iteração-reiteração, <strong>de</strong> recorrência-repetição, etc. As proposições,julgamentos, conceitos, enca<strong>de</strong>amentos <strong>de</strong> conceitos ou bem se incluem e resultam <strong>de</strong> inclusões; - oubem se excluem reciprocamente. Estas relações lógicas não supõem nem uma “realida<strong>de</strong>” nem uma“verda<strong>de</strong>” estabelecidas/afirmadas[posées] anteriormente a elas. Po<strong>de</strong>-se representá-las/asrepresentar por figuras geométricas: círculos, <strong>do</strong>s quais os maiores envolvem os menores,simbolizam os conceitos. Esta representação não fornece [n’apporte] senão uma ilustração [qu’uneillustration] <strong>de</strong> relações que po<strong>de</strong>m ocorrer/se passar [s’en passer], sen<strong>do</strong> estritamente formais. Asrelações lógicas contêm a razão (necessária e suficiente) das relações matemáticas, aquelas dasfiguras, aquelas <strong>do</strong>s conjuntos, aquelas <strong>do</strong>s grupos (associativida<strong>de</strong>, comutabilida<strong>de</strong>, etc.).608) Que haja [Qu’il y ait] no espaço prático e na prática espacial relações <strong>de</strong> inclusão-exclusão, <strong>de</strong>implicações e <strong>de</strong> explicações, disto não há qualquer dúvida [cela ne fait aucun <strong>do</strong>ute]. Um “serhumano” não tem diante <strong>de</strong>le, em torno <strong>de</strong>le, o espaço social – aquele <strong>de</strong> sua socieda<strong>de</strong> – como umquadro, como um espetáculo ou um espelho. Ele sabe que há um espaço e que ele está neste espaço.Não há somente uma visão, uma contemplação, um espetáculo; ele age, ele se situa no espaço, parterecebe<strong>do</strong>ra [partie prenante]. A este título, ele se situa numa série <strong>de</strong> invólucros que se implicam unsos outros [qui s’impliquent les unes les autres]; sua seqüência [leur suite] explica a prática social.Antropologicamente, quer dizer numa socieda<strong>de</strong> dita arcaica ou camponesa [paysanne], há corpos (aproxemia); - a habitação e as “peças da habitação”; - a vizinhança, a comunida<strong>de</strong> (lugarejo, al<strong>de</strong>ia),as <strong>de</strong>pendências, (culturas, pra<strong>do</strong>s/campos [prairies] e pastagens, bosques, florestas,terrenos/territórios [terrains] <strong>de</strong> caça). Do la<strong>do</strong> <strong>de</strong> lá [Au <strong>de</strong>la], o estranho e o estrangeiro, o hostil.De cá [En <strong>de</strong>çà], os órgãos <strong>do</strong> corpo e <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s. Como o “primitivo” (ou pretendi<strong>do</strong> como tal), acriança, que se consi<strong>de</strong>ra erradamente/injustamente [à tort] como um ser elementar, sem dúvidaporque improdutivo e subjuga<strong>do</strong> [asservi], esta criança <strong>de</strong>ve passar <strong>do</strong> espaço <strong>do</strong> seu corpo a seucorpo no espaço. E <strong>de</strong>sta operação à percepção e à concepção <strong>do</strong> espaço. Depois da análise aquitentada, estes atos sucessivos têm como ponto <strong>de</strong> partida [pour départ] e <strong>de</strong> chegada [pour arrivée]“proprieda<strong>de</strong>s” objetivas, as simetrias e duplicações materiais [matérielles] às quais se superpõem asinclusões-exclusões. As inclusões comportam exclusões: há lugares interditos (sagra<strong>do</strong>s-malditos,heterotopias) por diversas razões, e outros lugares permiti<strong>do</strong>s ou recomenda<strong>do</strong>s, o que qualificadramaticamente as partes e partições <strong>do</strong> espaço opon<strong>do</strong> o benéfico e o maléfico, distinguin<strong>do</strong>-os <strong>do</strong>neutro.231


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006609) Essas relações po<strong>de</strong>m se representar/ser representadas em figuras, retângulos ou quadra<strong>do</strong>sincluí<strong>do</strong>s uns nos outros, mas <strong>do</strong>s quais [mais <strong>do</strong>nt] uns são exteriores a outros [à d’autres],excluin<strong>do</strong>-os. Círculos permitiriam uma representação análoga. Isto [Ce qui] permite compreen<strong>de</strong>r aimportância <strong>do</strong> quadricula<strong>do</strong> [quadrillage] (re<strong>de</strong>) [(maillage)] e da forma dita rádio-concêntrica, epor conseqüência, a um outro grau <strong>de</strong> elaboração, a importância <strong>do</strong> cilindro e <strong>do</strong> cubo. Compreen<strong>de</strong>rsua importância quer dizer: limitá-la. Isto [Ce qui] foi feito anteriormente/prece<strong>de</strong>ntementemostran<strong>do</strong> as transformações da forma pelo que se percebe/compreen<strong>de</strong>/apreen<strong>de</strong> [se saisit] <strong>de</strong>la nocurso <strong>do</strong> processo dito “histórico”.610) O tema da iteração (repetição) e <strong>de</strong> seu resulta<strong>do</strong> (combinação <strong>de</strong> elementos, diferençasinduzidas/levadas [induites] ao interior <strong>de</strong> um conjunto) se reencontra/reaparece [se retrouve] emmuitas pesquisas. Estaríamos nós na presença <strong>de</strong> uma estrutura lógica tal que se possa [qu’on puisse]<strong>de</strong>screvê-la e apreendê-la <strong>de</strong> duas maneiras que se recortam [se recoupent]: partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> implica<strong>do</strong> epartin<strong>do</strong> <strong>do</strong> implicante [en partant <strong>de</strong> l’impliqué et en partant <strong>de</strong> l’impliquant] – partin<strong>do</strong> <strong>do</strong>smenores conjuntos compreendi<strong>do</strong>s, partin<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mais vastos e mais compreensivos/abrangentes[compréhensifs]. Isto [Ce qui] daria uma inteligibilida<strong>de</strong> sem resíduo [résidu]. Um <strong>do</strong>sprocedimentos enumeraria as partes, portanto [<strong>do</strong>nc] os objetos (os instrumentos da vida quotidiana,<strong>do</strong>méstica [ménage] e trabalho, mas também seus continentes [contenants]: choça[hutte], cabana,casa, imóvel, ruas e praças, marcadas para e pela vida prática, etc.) no espaço. Ela permitiria oinventário numa or<strong>de</strong>m concreta. A outra <strong>de</strong>scrição ao contrário mostraria o conjunto <strong>do</strong> espaço, asrelações constitutivas da socieda<strong>de</strong> global. A correspondência exata entre as duas apreensões <strong>do</strong>espaço implica<strong>do</strong>-explica<strong>do</strong> permitiria compreen<strong>de</strong>r ao mesmo tempo [à la fois] as transformaçõesoperadas pelas partes recebe<strong>do</strong>ras [parties prenantes] no interior <strong>do</strong> espaço e sua gênese comoconjunto [en tant qu’ensemble] (social e mental ao mesmo tempo, abstrato e concreto).611) Que esta hipótese não se confina à [ne se confine dans] “pura” abstração, a antropologia pareceu[a semblé] confirmar. O que sabemos <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> al<strong>de</strong>ã/rústica [villageoise] (<strong>do</strong>gon, bororoou basca), <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> (grega ou mo<strong>de</strong>rna) mostra bem superfícies e volumes se implican<strong>do</strong>,encaixes/encaixamentos [dês emboîtements], geometrias mais ou menos complexas, representáveispor figuras. Há muitos objetos [Il y a bien <strong>de</strong>s objets] e móveis <strong>de</strong>pois [puis] “peças”, abrigos [<strong>de</strong>sabris], casas familiais [familiales], <strong>de</strong>pois [puis] lugares mais amplos, nomea<strong>do</strong>s [nommés],<strong>de</strong>signa<strong>do</strong>s (nomes comuns ou nomes próprios) como topias [en tant que topies]. Com a dualida<strong>de</strong>que remete [renvoie] às proprieda<strong>de</strong>s gerais <strong>do</strong>s conjuntos lógico-matemáticos e que, na prática,permite a multiplicida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s percursos: <strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro para fora, etc.612) De on<strong>de</strong> a tendência, legível na antropologia contemporânea, <strong>de</strong> tratar o espaço como um meio<strong>de</strong> operações classificatórias [classificatrices], como uma nomenclatura (taxonomia) <strong>de</strong> coisas a232


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006partir <strong>de</strong> operações in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>, quer dizer, das próprias coisas. Esta tendênciarecorta [recoupe] as tentativas que aplicam tais procedimentos (com i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong> mental e <strong>do</strong>social) à família (1), ao comércio/à troca [à l’échange] e às comunicações, aos instrumentos e aospróprios objetos. O “puro” saber bastan<strong>do</strong>-se a si mesmo recebe aqui uma <strong>de</strong>terminação precisa: eleconsiste em classificações implicadas no objeto. Esta hipótese não se dá somente por um códigocapaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifrar tal mensagem obscura (aqui o espaço social) mas por uma exaustão <strong>do</strong> “objeto”.613) V.4 Esta redução <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> ao continente [contenant] (formal) suscita imediatamente [soulèveaussitôt] uma objeção. Queren<strong>do</strong>-se [Se voulant] [procécription] ela suprime <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início [d’entrée<strong>de</strong> jeu] as diferenças. Enquanto [Alors que] as <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong>ixam as diferenças exteriores umas àsoutras, cain<strong>do</strong> logo [dès lors] nas particularida<strong>de</strong>s mal conhecidas.614) O reducionismo leva<strong>do</strong> [poussé] ao extremo provoca [entraîne] a redução <strong>do</strong> tempo ao espaço, aredução <strong>do</strong> valor <strong>de</strong> uso ao valor <strong>de</strong> troca, a redução <strong>do</strong>s objetos aos signos e <strong>do</strong> “real” à semiosfera;o que acompanha [ce qui accompagne] uma outra redução: aquela <strong>do</strong> movimento dialético a umalógica e <strong>do</strong> espaço social ao espaço mental (puramente formal).615) Com que direito [De quel droit] entretanto [pourtant] confundir um espaço euclidiano(geométrico) vazio, indiferente ao que o preenche, com um espaço visual, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>sópticas bem <strong>de</strong>finidas, esses <strong>do</strong>is espaços i<strong>de</strong>ntifican<strong>do</strong>-se com o espaço <strong>de</strong> uma práticacomportan<strong>do</strong> lugares morfologicamente privilegia<strong>do</strong>s, hierarquiza<strong>do</strong>s, on<strong>de</strong> se realizam[s’accomplissent] atos, on<strong>de</strong> objetos encontram lugar. A tese <strong>de</strong> um meio espacial inerte, on<strong>de</strong>pessoas e coisas, atos e situações, não teriam senão que alojar-se/fixar-se [n’auraient qu’à se loger],correspon<strong>de</strong> a um esquema cartesiano (a coisa estendida [étendue] como “objeto” <strong>de</strong> pensamento)torna<strong>do</strong> com o passar <strong>do</strong> tempo [au cours <strong>de</strong>s âges] “senso comum” e “cultura”. O espaço mentalelabora<strong>do</strong> (pelos filósofos e epistemólogos) se constitui em lugar transparente – em meio lógico. Areflexão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo crê atingir o espaço social; mas este é a se<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma prática que não consistesomente na aplicação <strong>de</strong> conceitos. Ela é também <strong>de</strong>sconhecimento, cegueira, experiência vivida[épreuve vécue].616) Quanto à lógica <strong>do</strong> espaço, ela existe? Sim e não. Numa certa medida a matemática inteiraconstitui uma lógica <strong>do</strong> espaço. Entretanto, o espaço “puramente” concebi<strong>do</strong>, como evi<strong>de</strong>nciou [l’amis em lumière] Leibniz, não tem nem elementos nem forma. Suas partes são indiscerníveis, <strong>de</strong> talsorte que ele se aproxima da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> “pura”, ela mesma vazia porque “puramente” formal. Paraintroduzir aí [Pour y introduire] uma <strong>de</strong>terminação, é preciso introduzir aí um conteú<strong>do</strong>. Qual? O atoque discerne partes e, nas partes discernidas, uma or<strong>de</strong>m, portanto um tempo. Sem o que [Sans quoi]nada <strong>de</strong> diferença pensada, mas somente um pensamento da diferença. A lógica simbólica po<strong>de</strong> seformular/ser formulada sem fazer apelo a um antes e um <strong>de</strong>pois, a uma esquerda e uma direita, a233


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006simetrias e dissimetrias? Não, como o mostra Lewis Carrol (1). Este lógico genial baliza [jalonne] ocaminho que vai da pura forma aos diversos conteú<strong>do</strong>s escalona<strong>do</strong>s, introduzi<strong>do</strong>s sucessivamente aolongo <strong>do</strong> trajeto, em pleno conhecimento <strong>de</strong> causa e razão. Ele liga [relie] o mental ao social atravésdas mediações: as palavras, os signos, os duplos [les <strong>do</strong>ubles] e as sombras, os jogos (Alice, oespelho, etc.). A distância que elas ocupam é gran<strong>de</strong>, irredutível mas concebível (representável).Longe <strong>de</strong> presidir à confusão das or<strong>de</strong>ns, dimensões, níveis, a lógica não se concretiza senãodiscernin<strong>do</strong>-as [qu’en les discernant]. Ela dificulta/incomoda [gêne], assinalan<strong>do</strong>-o/colocan<strong>do</strong>-o emevidência [en le signalant] (sinalizan<strong>do</strong>) o trabalho e a metáfora. A pior e mais perigosa dasmetáforas, é aquela [c’est celle] que compara o espaço mental a uma folha branca sobre a qual opsíquico e o sociológico viriam em seguida escrever (inscrever) suas variações e variáveis.Reconhece-se esta metáfora em numerosos autores, entretanto altamente qualifica<strong>do</strong>s (2) e isto sob aproteção <strong>de</strong>/encoberto por [et cela sous couvert] consi<strong>de</strong>rações emprestadas/tomadas <strong>de</strong> empréstimoda filosofia e <strong>do</strong>s filósofos (3). Vê-se nesses autores como o tecnicismo, o psicologismo ou ofenomenológico <strong>de</strong>slocam a análise <strong>do</strong> espaço social, começan<strong>do</strong> por substituí-lo [par lui substituer]por um espaço mental geométrico (neutro, vazio, branco). Como Norberg-Schulz, teórico <strong>do</strong> espaço,<strong>de</strong>fine um centro? É o ponto que o lápis coloca [pose] sobre a folha branca. O balizamento[jalonnement] <strong>do</strong> espaço não tem por objetivo [pour but] e senti<strong>do</strong> senão a memorização, oreconhecimento (subjetivo) <strong>do</strong>s lugares; este autor constitui um Eigenraum próximo, se se po<strong>de</strong>/sepo<strong>de</strong>mos dizer, da proxemia <strong>do</strong> antropólogo Hall (1). De maneira que o espaço objetivo e a imagemsubjetiva <strong>do</strong> espaço coinci<strong>de</strong>m, portanto o mental e o social.617) Se seguimos/se se seguem tais [Se l’on suit <strong>de</strong> telles] <strong>de</strong>scrições, ou bem tu<strong>do</strong> semistura/confun<strong>de</strong> [ou bien tout se mêle], ou bem o afastamento/a distância [le décalage] se aprofunda[se creuse] entre o concebi<strong>do</strong>, o percebi<strong>do</strong>, o vivi<strong>do</strong>; - entre as representações <strong>do</strong> espaço e os espaços<strong>de</strong> representação. Enquanto [Alors que] o problema teórico, é justamente juntá-las [<strong>de</strong> les raccor<strong>de</strong>r]revelan<strong>do</strong>/<strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong> [en décelant] as mediações.618) Somos assim leva<strong>do</strong>s a sublinhar a importância da ilusão espacial que não provém nem <strong>do</strong>espaço geométrico como tal, nem <strong>do</strong> espaço visual (aquele das imagens e fotos, mas também <strong>do</strong>splanos e <strong>de</strong>senhos) como tal, nem <strong>do</strong> espaço social como tal (prático e vivi<strong>do</strong>), mas <strong>de</strong> suatelescopagem [leur télescopage]: oscilação <strong>de</strong> um a outro ou substituição. De sorte que a visualida<strong>de</strong>passa pelo geométrico e que a transparência óptica (legibilida<strong>de</strong>) <strong>do</strong> visual se confun<strong>de</strong> com ainteligibilida<strong>de</strong> lógico-matemática. E reciprocamente.619) O que volta [revient] a incriminar ao mesmo tempo uma falsa consciência <strong>do</strong> espaço abstrato euma falsida<strong>de</strong> (objetiva) <strong>de</strong>ste espaço. Por um “senso comum”, o visual que reduz os objetos àabstração especular e espetacular se confun<strong>de</strong> com a abstração científica e suas abordagens/seus234


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006procedimentos [démarches] analíticas/analíticos, portanto redutoras/redutores. A reduçãoextrapolaçãose opera sobre o quadro negro como sobre a prancheta, com a folha branca assim comocom esquemas, com a escrita como com a abstração sem conteú<strong>do</strong>. Esta operação tem conseqüênciastanto mais graves quanto o espaço <strong>do</strong>s matemáticos, como toda abstração, é um possante meio <strong>de</strong>ação: <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação sobre a matéria; portanto <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição. Enquanto [Alors que] o visual toma<strong>do</strong> àparte se contenta em sublimar e dissolver o corpo e a energia natural como tais. Sua junção[jonction] lhes confere uma potência inquietante: ela compensa a impotência <strong>do</strong> olhar puro [duregard pur] pela/com a [par la] potência <strong>do</strong>s opera<strong>do</strong>res técnicos e da abstração científica.620) Esta análise não tomará/adquirirá [ne prendra] seu senti<strong>do</strong> a não ser com uma restituição daeconomia política como conhecimento da ativida<strong>de</strong> produtiva. Mas não se tratará mais da economiapolítica das coisas no espaço; uma economia política <strong>do</strong> espaço (<strong>de</strong> sua produção) <strong>de</strong>verá substituiresta ciência caída em <strong>de</strong>suso.621) Deixemos aqui <strong>de</strong> la<strong>do</strong> a tecnologia galopante, a <strong>de</strong>mografia <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada [déchainée], aecologia ameaçada, que trariam [apporteraient] outros argumentos a esta colocação em primeiroplano <strong>do</strong> espaço. Como evocar o formigamento/a agitação [le fourmillement] futuro (inaugura<strong>do</strong> emcertas partes <strong>de</strong> nosso mun<strong>do</strong>) das multidões humanas, sem evocar ao mesmo tempo [du même coup]a problemática <strong>do</strong> espaço? Sublinhemos <strong>de</strong> passagem que esta abordagem [démarche] se distinguefortemente <strong>de</strong> uma filosofia ou <strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> filosófica em que/porque ela se baseia sobre a prática,base que não se limita à arquitetura ou a isto que chamamos “o urbanismo”, mas se esten<strong>de</strong>[s’élargit] à prática social tomada globalmente, já que a reflexão leva em conta [dês que la réflexiontient compte <strong>de</strong>] o econômico e o político.622) V.5 Lá por 1910 [Vers 1910] os pintores acadêmicos continuam a pintar <strong>de</strong> uma maneira“expressiva” figuras “belas/bonitas” [belles]: rostos comoventes/enternece<strong>do</strong>res [visages émouvants](que dizem sua emoção, aquela <strong>do</strong> pintor), nus <strong>de</strong>sejáveis (que dizem os <strong>de</strong>sejos <strong>do</strong> especta<strong>do</strong>r e <strong>do</strong>pintor). A vanguarda pictórica, ao contrário [par contre], dissocia o significativo <strong>do</strong> expressivo semmuito se dar conta disso [sans trop s’en rendre compte]. (Os conceitos lhes são estranhos). Essespintores percebem com acuida<strong>de</strong>, experimentalmente, os começos da “crise <strong>do</strong> sujeito” no mun<strong>do</strong>mo<strong>de</strong>rno. Em sua prática pictórica, eles percebem/apanham/surpreen<strong>de</strong>m [saisissent] um fato novo(liga<strong>do</strong> à <strong>de</strong>saparição <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os referenciais), a saber que só o significativo se comunica, porque elese <strong>de</strong>staca <strong>do</strong> “sujeito”: o autor, o artista e mesmo o especta<strong>do</strong>r particulariza<strong>do</strong>. O que leva a/conduza/ocasiona [entraîne] que o objeto pictórico, o quadro, não consiste nem na imitação <strong>de</strong> umarealida<strong>de</strong> objetiva (cujas referências: espaço e tempo tradicionais, senso comum, percepção <strong>do</strong> “real”<strong>de</strong>fini<strong>do</strong> por analogia com a natureza, <strong>de</strong>saparecem), nem em uma “expressivida<strong>de</strong>” relacionan<strong>do</strong>se/relacionadaa [se rapportant à] emoções e sentimentos subjetivos. Os pintores submetem o235


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006“objeto” [font subir à l’ “objet”] sobre o/no quadro os piores e logo/<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> pouco tempo [bientôt]os últimos ultrajes. Alegremente, eles o quebram/ fragmentam [brisent], o <strong>de</strong>smontam/separam[disloquent]. A dissociação uma vez começada entre o “sujeito” e o “objeto” não tem mais limites.Ela <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> fato aparecer outra coisa.623) A acreditar/Se se acredita [Si l’on en croit] nos comenta<strong>do</strong>res mais autoriza<strong>do</strong>s (1), a inovaçãodataria <strong>de</strong> 1907. Picasso <strong>de</strong>scobre uma nova maneira <strong>de</strong> pintar, ocupan<strong>do</strong> a superfície inteira <strong>do</strong>quadro, sem horizonte, sem último plano [arrière-plan], mas rompen<strong>do</strong> esta superfície, o espaço <strong>de</strong>figuras pintadas e aquele que as contorna (2). Enquanto à (Alors qu’à] mesma época Matisseapresenta/produz [apporte] a perfeição no tratamento rítmico da superfície, Picasso a estrutura comforça; in<strong>do</strong> mais longe que a estruturação, como se dirá mais tar<strong>de</strong>, ele a “dialetiza” segun<strong>do</strong>oposições muito forçadas [poussées] que vêm <strong>de</strong> linhas e planos mais [plutôt] que <strong>de</strong> cores, ritmos,últimos-planos [arrière-plans]. Ele não <strong>de</strong>sarticula somente as superfícies <strong>de</strong> tela, mas os objetos,inician<strong>do</strong> [engageant] assim o processo para<strong>do</strong>xal que simultaneamente reduz à superfície pintada aterceira dimensão (a profundida<strong>de</strong>) e restitui esta/a restitui pela simultaneida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s aspectosmúltiplos da coisa pintada (cubismo analítico). É portanto, ao mesmo tempo: o fim objetiva<strong>do</strong> <strong>do</strong>sreferenciais (o espaço euclidiano, a perspectiva e a linha <strong>do</strong> horizonte, etc.) – o espaçosimultaneamente homogêneo e quebra<strong>do</strong>/fragmenta<strong>do</strong> [brisé] - o espaço fascinante por sua estrutura- a dialetização que se <strong>de</strong>lineia/se esboça [s´ébauche] a partir das oposições (paradigmas) sem iraté/sem chegar a [sans aller jusqu´à] quebrar/partir/<strong>de</strong>struir [briser] o quadro - uma visualizaçãoabsoluta das coisas que substitui a dialetização esboçada/<strong>de</strong>lineada [esquissée].624) A dissociação entre o expressivo e o significativo, a liberação <strong>do</strong> significante levam a/ocasionam[entraînent] gran<strong>de</strong>s conseqüências. Visto que [D’autant que] elas não têm lugar apenas na pintura. Aanálise aqui privilegia a pintura em razão <strong>de</strong> sua relação privilegiada com o espaço neste momento. Eantes <strong>de</strong> mais nada a liberação se esten<strong>de</strong> ao próprio significativo; nele se separam o signo (osignificante) e o que ele <strong>de</strong>signa (o significa<strong>do</strong>). O signo, ele não é mais [ce n’est plus] o “objeto”,mas o objeto sobre a tela, portanto/daí [<strong>do</strong>nc] o tratamento a que se submete o objetivo: rompi<strong>do</strong>,<strong>de</strong>sarticula<strong>do</strong>, “simultaneiza<strong>do</strong>” ao mesmo tempo e <strong>do</strong> mesmo golpe. Quanto ao “significa<strong>do</strong>”, estálá, escondi<strong>do</strong>. Inquietante portanto, e sobretu<strong>do</strong>: não trazen<strong>do</strong> nem prazer, nem alegria, nemapaziguamento, mas interesse intelectual e talvez angústia. Diante <strong>de</strong> que? Diante das figurasquebradas/fragmentadas <strong>de</strong>ste mun<strong>do</strong> em migalhas, diante <strong>de</strong>ste espaço <strong>de</strong>sarticula<strong>do</strong>, diante <strong>de</strong>sta“realida<strong>de</strong>” impie<strong>do</strong>sa que se confun<strong>de</strong> com sua própria abstração, com sua própria análise, porqueela “é” já abstração, analítica efetiva. Isto substitui o subjetivo, o expressivo? É a violência que se<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia no mun<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno e <strong>de</strong>vasta/<strong>de</strong>strói [ravage] o existente.236


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006625) O caso Picasso? Não há nada <strong>de</strong> simples e antes <strong>de</strong> mais nada é preciso percebê-lo como um“caso”, no lugar <strong>de</strong>/ao invés <strong>de</strong> juntar-se ao coro merece<strong>do</strong>r <strong>de</strong> ridículo/poucoimportante/insignificante <strong>do</strong>s admira<strong>do</strong>res. A tese <strong>de</strong> um artista revolucionário (visto que e porque“comunista”), impon<strong>do</strong>-se ao mun<strong>do</strong> burguês (se bem que “comunista”), atingin<strong>do</strong> assim a glóriauniversal, [relève] <strong>de</strong> uma ingenuida<strong>de</strong> grosseira, se não por outro motivo [ne serait-ce que], porqueo “mun<strong>do</strong> comunista” jamais o reconheceu. Picasso não conquistou o mun<strong>do</strong> [et n’a pas davantageété récupéré]. Inicialmente, ele trazia a “visão” que o mun<strong>do</strong> existente implicava e esperava, e isto<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a crise iniciante, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o <strong>de</strong>smoronamento/<strong>de</strong>rrocada [effondrement] das referências, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> airrupção da violência. Com o imperialismo, com a guerra mundial, manifestação primeira <strong>do</strong>merca<strong>do</strong> mundial, enfim estabelecen<strong>do</strong>-se, primeira figura <strong>do</strong> “mun<strong>do</strong>”. Com e ao mesmo tempo quea Bauhaus: com o espaço abstrato. Não que ele tenha si<strong>do</strong> a causa, ainda uma vez, mas porque ele asignificou.626) O espaço <strong>de</strong> Picasso anunciou o espaço da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Isto não quer dizer que ele o produziu.Ei-lo [Le voilà]: espaço visualiza<strong>do</strong> sem reservas, ditadura <strong>do</strong> olho e <strong>do</strong> falo: a virilida<strong>de</strong> agressiva, otouro, o macho mediterrâneo, o [macismo], que se eleva (incontestável genialida<strong>de</strong> na genitalida<strong>de</strong>)até sua paródia e por vezes sua auto-crítica. A cruelda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Picasso para o corpo, em particular ocorpo feminino, tortura<strong>do</strong> <strong>de</strong> mil maneiras, caricatura<strong>do</strong>, é a ditadura <strong>do</strong> espaço <strong>do</strong>minante, olho efalo, violência. Ele não po<strong>de</strong> dizer-se/ser dito (reconhecer-se, revelar-se [s’avouer, s’avérer]) senão<strong>de</strong>nuncian<strong>do</strong>-se. Porque gran<strong>de</strong> e verídico artista, consuman<strong>do</strong> a arte, ativan<strong>do</strong>-a (tu<strong>do</strong> éconsuma<strong>do</strong>), Picasso entrevê e prepara a dialetização <strong>do</strong> espaço: a emergência <strong>de</strong> um outro espaço(diferencial) a partir <strong>do</strong> espaço dividi<strong>do</strong>/fraciona<strong>do</strong>/fragmenta<strong>do</strong> [morcelé], <strong>do</strong> qual o pintor revela e<strong>de</strong>scobre [révèle et décèle] as contradições; estas resi<strong>de</strong>m nele, em suas obras, ditas e não ditas.627) V.6 Des<strong>de</strong> esta mesma época, Franck Lloyd Wright começa a suprimir a pare<strong>de</strong> [le mur] quefecha um espaço e separa o la<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>de</strong> fora [le <strong>de</strong>dans du <strong>de</strong>hors], o interior <strong>do</strong>exterior. A pare<strong>de</strong> se reduz a uma superfície e esta a uma membrana transparente. A luz entre emtorrentes/abundantemente [à flots] na casa; <strong>de</strong> cada “peça” se contempla a natureza [la nature secontemple]. A materialida<strong>de</strong> a partir <strong>de</strong> agora [dès lors], aquela da espessura e <strong>do</strong> peso das pare<strong>de</strong>s,cessa <strong>de</strong> representar o primeiro papel na arquitetura. A matéria não será mais que um invólucro[enveloppe] <strong>do</strong> espaço, ela ce<strong>de</strong> o <strong>do</strong>mínio à luz que enche [peuple] este espaço. “A arquitetura ten<strong>de</strong>à imaterialida<strong>de</strong>” (1) <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada/ocasionada [entrâinée] pelo movimento da filosofia, da arte e daliteratura, da socieda<strong>de</strong> inteira, em direção à abstração, à visualização, à espacialida<strong>de</strong> formal.628) Mas logo intervém o <strong>de</strong>slocamento, ainda não [non encore] efetua<strong>do</strong> nos inícios [aux débuts]. Apare<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> conter [cessant <strong>de</strong> porter] (pare<strong>de</strong>-cortina [mur-ri<strong>de</strong>au]), o espaço interior seliberta [se libère]. A fachada <strong>de</strong>saparece (com o risco <strong>de</strong> [quitte à] reaparecer com uma pompa e uma237


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006brutalida<strong>de</strong> aumentada, mais monumental que nunca, à época fascista) o que ocasiona [entraîne] o<strong>de</strong>slocamento da rua. A <strong>de</strong>sarticulação <strong>do</strong> espaço externo (fachada, exterior <strong>do</strong> prédio/da construção)se opera na obra escrita e construída <strong>de</strong> Le Corbusier. “Liberda<strong>de</strong>” preten<strong>de</strong> o autor: liberda<strong>de</strong> dafachada em relação ao plano interior, liberda<strong>de</strong> da estrutura <strong>de</strong> sustentação [portante] em relação aoexterior, liberda<strong>de</strong> da disposição <strong>do</strong>s andares e apartamentos em relação à ossatura. Em verda<strong>de</strong>:fratura <strong>do</strong> espaço, homogeneida<strong>de</strong> <strong>do</strong> conjunto arquitetural concebi<strong>do</strong> como “máquina <strong>de</strong> morar”[“machine à habiter”] e habitat <strong>do</strong> homem-máquina, <strong>de</strong>sarticulação <strong>do</strong>s elementos dissocia<strong>do</strong>s uns<strong>do</strong>s outros e dissocian<strong>do</strong> o conjunto urbanístico, a rua, a cida<strong>de</strong> [la ville]. Le Corbusier i<strong>de</strong>ologizaracionalizan<strong>do</strong>, a menos que seja o inverso [à moins que ce ne soit l’inverse]. A i<strong>de</strong>ologia (odiscurso) sobre a natureza, o sol, e o ver<strong>de</strong>, mascara para todas as pessoas <strong>de</strong>sta época, massobretu<strong>do</strong> para Le Corbusier, o senti<strong>do</strong> e o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong>s projetos. A natureza já se distancia/se afasta; ela não serve mais <strong>de</strong> referencial, sua imagem portanto torna-se exaltante/louvável.629) V.7 Que os artistas da arte passem por causas ou razões <strong>do</strong> espaço (arquitetural, urbanístico,global), é uma ingenuida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res da arte. Eles colocam entre parênteses o social e aprática social, para não consi<strong>de</strong>rar senão as obras. Insistamos sobre este/neste ponto, pois trata-se <strong>de</strong>um ponto <strong>de</strong> inflexão, não somente na história da arte mas naquela da socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna e naquela<strong>de</strong> seu espaço. Que os pintores tenham prepara<strong>do</strong> o espaço arquitetural <strong>do</strong> Bauhaus, [c’est acquis].Mas como? Quase/aproximadamente[À peu près] ao mesmo tempo que Picasso, outros gran<strong>de</strong>sartistas, Klee, Kandinsky, inventavam não somente uma outra maneira <strong>de</strong> pintar mas uma outra“espacialida<strong>de</strong>”. Talvez mesmo tenham eles nesse senti<strong>do</strong> [Peut-être même allèrent-ils en ce sens]i<strong>do</strong> mais longe que Picasso, sobretu<strong>do</strong> Klee. O objeto (pinta<strong>do</strong> sobre o quadro) se percebe numarelação sensível, portanto legível e visível, com o que o cerca/envolve/circunda, com o espaço inteiro<strong>do</strong> quadro. Com Klee, como em Picasso, o espaço se <strong>de</strong>staca <strong>do</strong> “sujeito”, <strong>do</strong> emotivo e <strong>do</strong>expressivo; ele se propõe como significativo; mas Picasso projeta simultaneamente sobre a tela osdiversos aspectos <strong>do</strong> objeto, analisa<strong>do</strong>s pelo olho e o pincel, enquanto para Klee o pensamentoguia<strong>do</strong> pelo olho e se projetan<strong>do</strong> sobre a superfície pintada gira verda<strong>de</strong>iramente em torno <strong>do</strong> objetosituan<strong>do</strong>-o Os arre<strong>do</strong>res [alentours] <strong>do</strong> objeto tornam-se assim visíveis. O objeto no espaço liga-seportanto a uma apresentação <strong>do</strong> espaço.630) Os pintores terão revela<strong>do</strong> a transformação social e política <strong>do</strong> espaço. A arquitetura se revelaráa serviço <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, portanto reformista e conformista em escala mundial. Enquanto seuadvento se fez saudar como uma revolução – bem mais, como a revolução anti-burguesa arquitetural!O Bauhaus, da mesma maneira que Le Corbusier, exprimiu (quer dizer formulou e realizou asexigências arquiteturais <strong>do</strong> capitalismo <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> bastante pouco diferentes das exigências <strong>do</strong>socialismo <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, mostradas/reveladas [dégagées] no mesmo perío<strong>do</strong> pelos construtivista russos.238


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006Estes mostravam mais imaginação (<strong>de</strong> caráter utópico) que seus confra<strong>de</strong>s oci<strong>de</strong>ntais; eles passarãopor reacionários em seu país enquanto seus contemporâneos <strong>do</strong> Bauhaus passavam por subversivos.O mal entendi<strong>do</strong>, que tem perdura<strong>do</strong> por meio século [qui a duré un <strong>de</strong>mi-siècle], está longe <strong>de</strong> serdissipa<strong>do</strong>: a i<strong>de</strong>ologia e a utopia, indiscernivelmente misturadas ao saber e à vonta<strong>de</strong>, [tiennent]ainda. Na natureza reencontrada, sol, luz, sob o signo da vida, se elevam o metal e o cristal. Acimada rua, da realida<strong>de</strong> urbana. Com a exaltação da retidão (ângulos, linhas). A or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, aquela<strong>do</strong> macho, numa palavra a or<strong>de</strong>m moral se faz naturalizar.631) Não resta menos que a efervescência cria<strong>do</strong>ra/criativa <strong>de</strong>ste perío<strong>do</strong>, aquela que prece<strong>de</strong>u eseguiu a primeira guerra mundial, contrasta estranhamente com a esterilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> pós-guerra.632) V,8 – No mesmo perío<strong>do</strong>, e nos países ditos “avança<strong>do</strong>s” (industriais) a reflexão sobre oespaço que se formula fora e para lá/ para além [au <strong>de</strong>là] das filosofias clássicas, fora das obraspropriamente estéticas (e que procura se ligar [à se raccor<strong>de</strong>r] com uma “realida<strong>de</strong>”) começa a sefragmentar. Resumin<strong>do</strong> grosseiramente, vê-se aparecer/<strong>de</strong>spontar [poindre] teses sobre o espaço“cultural”, às quais se opõem, pelo menos na aparência, teses sobre o espaço <strong>do</strong> comportamento. Obehaviorismo (e não o humanismo liberal herda<strong>do</strong> <strong>do</strong> século XIX) combate a antropologiaculturalista, as duas <strong>do</strong>utrinas unin<strong>do</strong>-se [se unissant] nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.633) Os etnólogos e os antropólogos (entre eles é preciso citar <strong>de</strong> novo Mauss, F. Pritchard,Rappoport cita<strong>do</strong>s mais acima) projetam no presente e no futuro análises freqüentemente finas,estendidas/<strong>de</strong>rivadas [tirées] <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s tão [aussi] longínquas e recuadas [reculées] quantopossível, em relação à história, às cida<strong>de</strong>s, às técnicas industriais. No lugar <strong>de</strong> atribuir/relegar[rejeter] ao folclore as <strong>de</strong>scrições das moradas [<strong>de</strong>meures] camponesas e tribais, eles se inspiramnelas. O sucesso <strong>de</strong> uma tal proposição vem <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> que ela contorna a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> (capitalista) elisonjeia/favorece [flatte] a mimese, propensão a raciocinar por analogia e a reproduzir imitan<strong>do</strong>. Ateoria <strong>do</strong> espaço cultural se muda/se transforma em mo<strong>de</strong>lo cultural <strong>do</strong> espaço.634) A esta concepção estática se opõe uma outra concepção estática: o espaço vivi<strong>do</strong> i<strong>de</strong>ntificar-seiaa uma soma <strong>de</strong> condicionamentos e <strong>de</strong>finir-se-ia por reflexos. Esta teoria tem a vantagem <strong>de</strong> nãoempurrar [pousser] para o primeiro plano uma abstração <strong>de</strong>ssecada/ressecada [<strong>de</strong>sséchée], a cultura.E mesmo ela relega/relança [rejette] o cultural aos “espaços <strong>de</strong> representação” colocan<strong>do</strong> assimindiretamente a questão da relação entre o i<strong>de</strong>ológico e o metafísico. Ela sofre em contrapartida <strong>de</strong>to<strong>do</strong>s os <strong>de</strong>feitos [défauts] comuns ao behaviorismo capitalista e a seu concorrente “socialista” (ateoria pavloviana). Redutora em essência, ela faz <strong>de</strong>saparecer a invenção escamotean<strong>do</strong> anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar um espaço novo para uma vida nova (isto não quer dizer que sejasuficiente/baste para criar esta vida <strong>de</strong> inventar um espaço!).239


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006635) V,9 – Do que prece<strong>de</strong> resulta o inverso <strong>de</strong> uma evidência cartesiana: o espaço abstrato não po<strong>de</strong>se conceber abstratamente. Ele tem um “conteú<strong>do</strong>”, mas este conteú<strong>do</strong> é tal que a abstração o“compreen<strong>de</strong>” em uma prática que o trata. O conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> espaço abstrato consiste em contradiçõesque a forma abstrata parece reduzir mas que em verda<strong>de</strong> sua análise torna manifestas. Como isto épossível? Como um espaço po<strong>de</strong> se dizer ao mesmo tempo homogêneo e fratura<strong>do</strong>? Unifica<strong>do</strong> efragmenta<strong>do</strong>? Primeiro (o que não tem nada <strong>de</strong> comum com uma relação “significante-significa<strong>do</strong>”imanente ao espaço) primeiro porque a “lógica <strong>do</strong> espaço”, sua coerência e suas significaçõesaparentes, recobrem uma violência inerente à abstração. Como ela é inerente ao instrumento emgeral (que corta, fragmenta, violenta, brutaliza a matéria natural), aos signos em geral, a violência éimanente ao espaço instrumental, enquanto ele parece racional, evi<strong>de</strong>nte. Mas é preciso levar maislonge a análise.636) É fácil hoje compreen<strong>de</strong>r, essas noções ten<strong>do</strong> penetra<strong>do</strong> na “cultura”, que o valor <strong>de</strong> troca, amerca<strong>do</strong>ria, o dinheiro, o capital são abstrações concretas, formas existentes socialmente (como alinguagem, sobre a qual tanto se discorreu - e como o espaço) mas que essas formas para existirsocialmente, têm necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um conteú<strong>do</strong>. O capital se fraciona inevitavelmente, se dispersa emcapitais, não sem guardar ou constituir uma unida<strong>de</strong>, condição <strong>de</strong> seu funcionamento (o merca<strong>do</strong> <strong>do</strong>scapitais). As frações <strong>do</strong> capital entram em conflito umas com as outras: capital comercial, industrial,bancário, financeiro. E no entanto a unida<strong>de</strong> formal <strong>do</strong> capital subsiste nesta fragmentação. A formapersiste, conten<strong>do</strong> “frações”. Precisamente ela oferece <strong>de</strong> si esta aparência socialmente “real”: aunida<strong>de</strong>, o capital. Heterogeneida<strong>de</strong>, conflitos, contradições, não aparecem como tais. Do mesmomo<strong>do</strong> a proprieda<strong>de</strong>: dividida em imobiliária e mobiliária, em proprieda<strong>de</strong> da terra e <strong>do</strong> dinheiro.Quanto ao merca<strong>do</strong>, sua fragmentação – que se conhece bem – faz parte <strong>de</strong> seu conceito mesmo:merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>rias (aquele que privilegia uma interpretação unilateral <strong>do</strong> marxismo), merca<strong>do</strong><strong>de</strong> capitais, merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho, merca<strong>do</strong> <strong>do</strong> solo (da construção, <strong>do</strong> alojamento, <strong>do</strong> espaçoportanto), merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> obras (objetos <strong>de</strong> arte), <strong>de</strong> signos e símbolos, <strong>de</strong> conhecimentos, etc.637) O espaço abstrato não se compreen<strong>de</strong> abstratamente a não ser por um pensamento que separa(que disjunta a lógica e a dialética), que reduz (as contradições à coerência), que mistura os resíduosda redução (a lógica e a prática social, por exemplo). O espaço abstrato, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> comoinstrumento (e não mais somente como aparência social) é primeiro o lugar da natureza, a ferramentaque quer submetê-la, que visa com este golpe <strong>de</strong>struí-la (no limite). Este mesmo espaço correspon<strong>de</strong>à amplificação da prática (social) que engendra re<strong>de</strong>s cada vez mais vastas e <strong>de</strong>nsas, à superfície daterra, abaixo e acima <strong>de</strong>sta superfície. Mas ele correspon<strong>de</strong> também ao trabalho abstrato (Marx<strong>de</strong>signa assim o trabalho em geral, - o trabalho social médio, produtor <strong>do</strong> valor <strong>de</strong> troca, em geral, daforma geral da merca<strong>do</strong>ria); este trabalho abstrato não tem nada <strong>de</strong> uma abstração mental, nem <strong>de</strong>240


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006uma abstração científica no senti<strong>do</strong> da epistemologia (que separa os conceitos da prática parainventariá-los e estabelecê-los em saber absoluto); ele tem uma existência social, como o valor <strong>de</strong>troca e a forma valor elas mesmas. Se se tenta enumerar as “proprieda<strong>de</strong>s” <strong>de</strong>ste espaço, é precisoprimeiro consi<strong>de</strong>rá-lo como meio <strong>de</strong> troca (com suas implicações: a intercambiabilida<strong>de</strong>) ten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> aabsorver o uso. Isto não exclui em nada, ao contrário, o uso político; o espaço da <strong>do</strong>minaçãoestatista, da violência (militar) é também aquele on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bram as estratégias. Mas suaracionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>marcada tem qualquer coisa <strong>de</strong> comum com a racionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> empresa (sem que sepossa por isto ajustar a divisão técnica <strong>do</strong> trabalho à divisão social). Neste espaço se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra omun<strong>do</strong> da merca<strong>do</strong>ria, com suas implicações: acumulação e crescimento, cálculo, previsão,programação. É dizer que este espaço é aquele on<strong>de</strong> age, por pressão e repressão, a tendência aohomogêneo, com seus meios: o vazio semântico abolin<strong>do</strong> as significações anteriores (o que não po<strong>de</strong>impedir a complexificação <strong>do</strong> mundial, a multiplicida<strong>de</strong> das mensagens, <strong>do</strong>s códigos, das operações).A vasta metaforização que se opera através da história, a metonimização que se opera através <strong>do</strong>processo cumulativo e <strong>de</strong>portam o corpo para fora <strong>de</strong> si mesmo (forma para<strong>do</strong>xal da alienação)<strong>de</strong>sembocam neste mesmo espaço abstrato. Este vasto processo vai da verda<strong>de</strong> física (a presença <strong>do</strong>corpo) à primazia <strong>do</strong> escrito, <strong>do</strong> “plano”, <strong>do</strong> visual e <strong>do</strong> achatamento no visual. O espaço abstratocontém portanto ao mesmo tempo o intelecto analítico hipertrofia<strong>do</strong>, o Esta<strong>do</strong> e a razão <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>burocrática, o saber “puro”, o discurso <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r. Implican<strong>do</strong> uma “lógica” que o dissimulamascaran<strong>do</strong> suas contradições, este espaço abstrato, aquele da burocracia, reúne em si o espetáculo ea violência (em oposição ao “puro” espetáculo). Descobre-se enfim que este espaço se discerne maldaquele que elaboraram os filósofos, <strong>de</strong> Descartes a Hegel, fusionan<strong>do</strong> o inteligível (a “res extensa”)com o político, o saber com o po<strong>de</strong>r. O que <strong>de</strong>semboca numa prática espacial autoritária e brutal:aquela <strong>de</strong> Haussmann, <strong>de</strong>pois aquela codificada pela Bauhaus e Le Corbusier, a saber a eficácia <strong>do</strong>espírito analítico na e pela dispersão, separação, segregação.638) O espaço da homogeneização não tem portanto nada <strong>de</strong> homogêneo. À sua maneira, poliscópicoe plural, ele contém e unifica <strong>de</strong> maneira constrange<strong>do</strong>rafragmentos ou elementos dispersos. Se eleaparece historicamente como meio <strong>do</strong> compromisso sócio-político entre a aristocracia e a burguesia(entre a proprieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> solo e aquela <strong>do</strong> dinheiro) ele se mantém com o conflito entre o capitalfinanceiro, abstração suprema, e a ação em nome <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>.639) V,10 – Nesta textura (este teci<strong>do</strong>) intervém, como uma i<strong>de</strong>ologia em ato, que justifica e motiva,o espaço elabora<strong>do</strong> pelos artistas da vanguarda, estes que têm conta da <strong>de</strong>rrocada<strong>do</strong>s referenciais.Estes artistas apresentam o objeto no espaço da prática social <strong>do</strong>minante. Ao mesmo tempo, osarquitetos e urbanistas trazem também, como uma i<strong>de</strong>ologia em ação, um espaço vazio, primordial,continente que recebe conteú<strong>do</strong>s fragmentários, meio neutro receben<strong>do</strong> coisas separadas, pessoas,241


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006habitat. Numa palavra: a incoerência sob o signo da coerência, - a separação e a disjunção na coesão,- os fluxos e o efêmero no estável, - as relações conflituais no seio da lógica aparente e <strong>do</strong>combinatório efetivo.640) Este espaço abstrato contém ainda muitos outros traços. É aquele on<strong>de</strong> se dissociam, para se seunir em seguida antes mal que bem, o <strong>de</strong>sejo e as necessida<strong>de</strong>s. É aquele on<strong>de</strong> se instalam e seexpõem as classes médias, neutras (em aparência) porque situadas socialmente e politicamente entreos pólos, burguesia e classe operária. Este espaço não é sua “expressão”, mas ao contrário aquele queas gran<strong>de</strong>s estratégias lhes <strong>de</strong>signam: estas classes encontram o que elas procuram: um espelho <strong>de</strong>sua “realida<strong>de</strong>”, representações tranqüilizantes, a imagem <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> social on<strong>de</strong> elas têm seulugar, etiqueta<strong>do</strong>, assegura<strong>do</strong>. Enquanto em verda<strong>de</strong> neste espaço elas são manipuladas, com suasaspirações incertas e suas necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> certas.641) No espaço abstrato, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bram as estratégias, se <strong>de</strong>senrolam também os divertimentose os <strong>de</strong>bates da Mimese: a moda, o esporte, a arte, a publicida<strong>de</strong>, a sexualida<strong>de</strong> transposta emi<strong>de</strong>ologia.642) V, 11 – Este espaço abstrato, aquele <strong>de</strong> uma anaforização (que metamorfoseia o corpotransferin<strong>do</strong>-o fora <strong>de</strong> si, no i<strong>de</strong>al-visual) é também aquele <strong>de</strong> uma estranha substituição, queconcerne ao sexo. A relação sexual, como natural, implica uma reciprocida<strong>de</strong>; este laço po<strong>de</strong>receber em seguida uma justificação e uma legitimação abstratas, que a mudam em realida<strong>de</strong> social(chamada erradamente “cultural”). A reciprocida<strong>de</strong> física se legaliza em reciprocida<strong>de</strong> contratual,em um “compromisso” que tem por testemunha e fia<strong>do</strong>r a autorida<strong>de</strong>. Mas no curso <strong>de</strong>ste processo olaço inicial sofre uma modificação grave.643) O espaço da substituição, que substitui a natureza pela abstração fria, pela ausência <strong>de</strong> prazer, éo espaço mental da castração (ao mesmo tempo fictício e real, simbólico e concreto). É aquele dametaforização em que a imagem da mulher suplanta a mulher, em que seu corpo se fragmenta emque o <strong>de</strong>sejo se quebra, em que a vida se esmigalha. No espaço abstrato reinam a solidão fálica e aauto-<strong>de</strong>struição <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo. A representação <strong>do</strong> sexo substituiu o sexo sob o vocábulo “sexualida<strong>de</strong>”e sua apologia cobre sua <strong>de</strong>preciação.644) O sexo, ten<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong> o estatuto <strong>de</strong> naturalida<strong>de</strong>, apelan<strong>do</strong> em vão para uma “cultura” <strong>do</strong> corpo,torna-se ele também uma localização, uma especificação, uma especialização, com seus lugares eórgãos: as zonas “erógenas” assinaladas pelos sexólogos, os “órgãos” da reprodução. A sexualida<strong>de</strong>(nem cultura nem natureza) parece <strong>do</strong>minada como subsistema codifica<strong>do</strong> e <strong>de</strong>codifica<strong>do</strong>: mediaçãoespecificada entre o “real” e o imaginário, entre o <strong>de</strong>sejo e a angústia, entre as necessida<strong>de</strong>s e afrustração. Na abstração <strong>do</strong> espaço fragmenta<strong>do</strong> em lugares especializa<strong>do</strong>s, o corpo ele mesmo sefragmenta, se pulveriza. O corpo representa<strong>do</strong> pelas imagens, pela publicida<strong>de</strong> (as pernas pelas242


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006meias, os seios pelos sutiãs, o rosto pela maquiagem, etc.) <strong>de</strong>compõe o <strong>de</strong>sejo, votan<strong>do</strong>-o àfrustração ansiosa e à satisfação insatisfeita <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s locais. No espaço abstrato e em quepese a sua ação, a morte <strong>do</strong> corpo aí se realiza <strong>de</strong> uma maneira dupla: simbólica e concreta.Concretamente por efeito das violências. Simbolicamente: pela fragmentação <strong>do</strong> vivo. Do corpofeminino em particular, muda<strong>do</strong> em valor <strong>de</strong> troca, signo <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>rias e merca<strong>do</strong>ria ele próprio.645) O sexo e a sexualida<strong>de</strong>, o prazer e o gozo se i<strong>de</strong>ntificam aos “lazeres” nos lugaresespecializa<strong>do</strong>s para os lazeres: cida<strong>de</strong>s, al<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> férias, neves, praias ao sol. Estes espaços <strong>de</strong> lazerse erotizam: espaços noturnos <strong>do</strong>s bairros vota<strong>do</strong>s à festa ilusória. Como o jogo, o Eros torna-seconsumi<strong>do</strong>r e consumi<strong>do</strong>. Através <strong>do</strong>s signos? Sim. Através <strong>do</strong>s espetáculos? Sim. O espaçoabstrato é duplamente castra<strong>do</strong>r: isolan<strong>do</strong> o falo, projetan<strong>do</strong>-o fora <strong>do</strong> corpo, fixan<strong>do</strong>-o no espaço(verticalida<strong>de</strong>), colocan<strong>do</strong>-o sob a supervisão <strong>do</strong> olho. O visual e o discursivo se reforçam (secontextualizam) no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s signos. Sob a “palmatória <strong>do</strong> terrorismo comercial”, como dizSchelsky? Sim. Mas também e sobretu<strong>do</strong> pela localização, pelos espaços fragmenta<strong>do</strong>s eespecializa<strong>do</strong>s numa forma globalmente homogênea. A abstração <strong>do</strong> corpo se completa pelafragmentação e a localização (funcionais).646) Curioso espaço: homogêneo e composto <strong>de</strong> guetos. Transparente e falso: apanha<strong>do</strong>.Falsamente verda<strong>de</strong>iro, “sincero”: não objeto <strong>de</strong> uma falsa consciência, mas ao contrário lugar emeio engendran<strong>do</strong> (produzin<strong>do</strong>) a falsa consciência. A apropriação, que <strong>de</strong> todas as maneiras,mesmo concreta e alcançada, <strong>de</strong>veria se simbolizar (dar lugar a símbolos apresentan<strong>do</strong>-a, tornan<strong>do</strong>-apresente) aí se vê significada e tornada ilusória. Uma vez admiti<strong>do</strong> este dilema, as implicações econseqüências se <strong>de</strong>scobrem quase inesgotáveis. Este espaço contém muito mascaran<strong>do</strong>(<strong>de</strong>negan<strong>do</strong>) o conteú<strong>do</strong> em lugar <strong>de</strong> indicá-lo. Ele contém o imaginário especifica<strong>do</strong>: imagensfantasmáticas, símbolos, que parecem realçar “outra coisa” mas constituem seu conteú<strong>do</strong>. Elecontém representações <strong>de</strong>rivadas da or<strong>de</strong>m estabelecida: estatutos e normas, hierarquias localizadas elugares hierarquiza<strong>do</strong>s, papéis e valores liga<strong>do</strong>s aos lugares. Estas “representações” impõem,prescrevem, no e pelo espaço que as suporta e que faz sua eficácia. Nele se opera incessantemente asubstituição às coisas, aos atos, às situações, representações (que não têm, como i<strong>de</strong>ologias,nenhuma eficiência). O “mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s signos” não é somente o espaço ocupa<strong>do</strong> pelos signos eimagens (por objetos-signos e signos-objetos). É o espaço on<strong>de</strong> o Ego não está mais em relação comsua natureza, com uma matéria, nem mesmo com a “coisida<strong>de</strong>” das coisas (merca<strong>do</strong>rias) mas com ascoisas duplicadas <strong>de</strong> seus signos e suplantadas (substituídas) por estes. O “eu” porta-signos não temmais senti<strong>do</strong> a não ser em relaçõ a outros porta-signos.647) O espaço homogeneizante e fratura<strong>do</strong> se fragmenta <strong>de</strong> uma maneira muito elaborada emmo<strong>de</strong>los setoriais. Estes setores parecem provir <strong>de</strong> análises objetivas, ditas sistêmicas, que243


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006constatam (em aparência empiricamente) conjuntos ou sub-conjuntos, “lógicas” parciais. Citemos aoacaso: o sistema <strong>do</strong>s transportes, o sistema urbano, o setor terciário, o setor escolar, o espaço <strong>do</strong>trabalho e o merca<strong>do</strong> correspon<strong>de</strong>nte – aquele da mão-<strong>de</strong>-obra – com suas organizações einstituições, o merca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s capitais com o sistema bancário, etc. Pouco a pouco, a socieda<strong>de</strong> se<strong>de</strong>compõe em sistemas e subsistemas sem fim, não importa qual objeto social aparecen<strong>do</strong> como umacoesão, como um sistema. Acredita-se (os i<strong>de</strong>ólogos que se acreditam sem i<strong>de</strong>ologia, tecnocratas ouespecialistas) constatar, e se os constrói isolan<strong>do</strong> tal ou tal parâmetro, tal ou tal grupo <strong>de</strong> variáveis.Postula-se a coerência lógica e a coesão prática <strong>de</strong> tal ou tal sistema, sem outro exame; a menoranálise dissolveria o postula<strong>do</strong> (por exemplo: o “sistema urbano” encarna-se em tal ou tal cida<strong>de</strong>?Representa ele a cida<strong>de</strong> em geral?). Preten<strong>de</strong>-se assim compreen<strong>de</strong>r mecanismos específicos,aqueles <strong>de</strong> um aspecto “real” da realida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>scobre-se estes mecanismos isolan<strong>do</strong>-os e pelo fato <strong>de</strong>isolar tal aspecto <strong>do</strong> “real”. Uma tautologia se disfarça em ciência e uma i<strong>de</strong>ologia emespecialização. Ora, a “mo<strong>de</strong>lização”, a “simulação”, a análise “sistêmica” têm êxito em razão <strong>de</strong> seupostula<strong>do</strong> implícito: o espaço subjacente ao isolamento das variáveis assim como à construção <strong>do</strong>sconjuntos. Este espaço subten<strong>de</strong> a verificação <strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>los porque os mo<strong>de</strong>los servem para efetuareste espaço. Isto que se consegue até um certo ponto: até o caos resultante.648) V, 12. — O ví<strong>de</strong>o-espacial, (<strong>do</strong> qual foi mostra<strong>do</strong> que não se po<strong>de</strong> confundi-lo nem com oespaço geométrico, nem com o espaço óptico, nem com o espaço da imediaticida<strong>de</strong> natural) dispõepraticamente <strong>de</strong> uma potência redutora enorme. Se bem que her<strong>de</strong>iro da história e da violênciahistórica, ele comporta a redução <strong>do</strong> espaço anterior, aquele da natureza e aquele da história. Istoquer dizer a <strong>de</strong>struição da paisagem “natural” e aquela da paisagem urbana. Estas afirmaçõesremetem a eventos, a <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong>strutivas, ou bem a <strong>de</strong>slocamentos e substituições mais escondi<strong>do</strong>sque os eventos e <strong>de</strong>cisões tanto mais importantes. Quan<strong>do</strong> a praça na cida<strong>de</strong>, lugar <strong>de</strong> encontroafasta<strong>do</strong> da circulação (exemplo: a Praça <strong>de</strong>s Vosges) transforma-se em cruzamento (exemplo: aConcórdia) e como lugar <strong>de</strong> encontro ela é aban<strong>do</strong>nada (exemplo: o Palais-Royal), a vida urbana se<strong>de</strong>grada insensivelmente e profundamente, em benefício <strong>do</strong> espaço abstrato, aquele que percorrem osátomos <strong>de</strong> circulação (os automóveis). Foi dito e redito como Haussmann quebrou o espaço histórico<strong>de</strong> Paris em proveito <strong>de</strong> um espaço estratégico, portanto previsto e recorta<strong>do</strong> como tal; os críticos nãotêm talvez insisti<strong>do</strong> bastante sobre a qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> espaço assim abençoa<strong>do</strong> à morte; ele comportava adupla re<strong>de</strong> das passagens e das ruas, alta e rara complexida<strong>de</strong> qualitativa. Po<strong>de</strong> advir que ele aencontre entre uma visualização quase total (a “lógica visual” levada ao extremo) e uma “lógica dasocieda<strong>de</strong>”, quer dizer uma estratégia da burocracia estatal? Um tal encontro parece improvável:muito bonito para ser verda<strong>de</strong>. Ora este encontro é Brasília, obra <strong>de</strong> O. Niemeyer. E o encontro foi244


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006nota<strong>do</strong> 184 . A socieda<strong>de</strong> tecnocrático-estatal-burocrática se projeta tão fielmente neste espaço, que eleatinge uma comicida<strong>de</strong> na aprovação.649) A redução se ataca às dimensões já reduzidas <strong>do</strong> espaço euclidiano; já o sabemos: o achataliteralmente restringin<strong>do</strong>-o à superfície, ao plano. As abordagens <strong>do</strong> achatamento, conjuntas edisjuntas, merecem uma advertência: aquele que vê e não sabe o que ver, aquele que <strong>de</strong>senha e nãosabe senão traçar traços sobre sua folha branca, aquele que circula e não po<strong>de</strong> senão circular emcarro, contribuem para a mutilação <strong>do</strong> espaço recorta<strong>do</strong> em fatias. Eles se completam: aquele quecircula olha para dirigir-se (no automóvel) e não vê mais que aquilo que lhe serve; ele não percebeportanto mais que seu percurso (materializa<strong>do</strong>, maquiniza<strong>do</strong>, tecniciza<strong>do</strong>) e sob um único ângulo,aquele da utilida<strong>de</strong> funcional: rapi<strong>de</strong>z, legibilida<strong>de</strong>, facilida<strong>de</strong>. Além disso, aquele que não sabe oque ver acaba por ver mal. A leitura <strong>de</strong> um espaço fabrica<strong>do</strong> em vista <strong>do</strong> legível se aproxima <strong>de</strong> umaespécie <strong>de</strong> pleonasmo: a transparência “pura” e ilusória; não é espantoso que em seguidaencontremos aí a obra <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> coerente e mais ainda a ocasião <strong>de</strong> um discurso persuasivoporque coerente. Este efeito <strong>de</strong> transparência, tão agradável para os ama<strong>do</strong>res <strong>de</strong> boa lógica, nãoseria ele por excelência apanha<strong>do</strong>r-apanha<strong>do</strong>? Tentamos mostrá-lo. O espaço se <strong>de</strong>fine então pelapercepção <strong>de</strong> um sujeito abstrato, tal como o condutor <strong>de</strong> veículos a motor, equipa<strong>do</strong> <strong>de</strong> um sensocomum coletivo, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ler os sinais <strong>do</strong> código ro<strong>do</strong>viário, e <strong>de</strong> um só órgão, o olho, aserviço <strong>do</strong> <strong>de</strong>slocamento no campo visual. Des<strong>de</strong> então, o espaço não aparece senão em suasreduções. O volume se <strong>de</strong>smancha diante da superfície, e o conjunto diante <strong>do</strong>s sinais visuaissitua<strong>do</strong>s ao longo <strong>do</strong>s trajetos fixa<strong>do</strong>s, já projeta<strong>do</strong>s sobre o “plano”. Uma confusão singular e alémdisso impensável, impossível, se opera em esta<strong>do</strong> nascente entre o espaço e a superfície, esta<strong>de</strong>finin<strong>do</strong> a abstração espacial e lhe conferin<strong>do</strong> uma existência física, meio-fictícia meio real. Esteespaço abstrato torna-se então o simulacro <strong>do</strong> espaço pleno (daquele que foi pleno na natureza e nahistória). O percurso torna-se simulação vivida, gestual – o passeio, a errância – disto que foiativida<strong>de</strong> urbana, encontro, <strong>de</strong>slocamento entre existências concretas.650) Como escapar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então à pulverização <strong>do</strong> espaço em imagens, em signos, em informaçõesconjuntas-disjuntas para o “sujeito” vota<strong>do</strong> ele mesmo à abstração? O espaço se oferece como umespelho ao “sujeito” refletin<strong>do</strong>, mas à imitação <strong>de</strong> Lewis Caroll, o “sujeito” passa <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong>espelho e torna-se abstração vivida.651) 5.13 Nesse mesmo espaço abstrato, no curso <strong>de</strong> seu estabelecimento, opera-se uma substituiçãonão menos importante que aquelas mencionadas prece<strong>de</strong>ntemente: a substituição <strong>do</strong> habitat aohabitar; o habitat se caracterizan<strong>do</strong> pela abstração funcional. As classes <strong>do</strong>minantes se apo<strong>de</strong>ram <strong>do</strong>184 Cf. Ch. Jenks, Archi-2000.245


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006espaço abstrato à medida <strong>de</strong> sua constituição (que resulta <strong>de</strong> sua ação política mas não se confun<strong>de</strong>com esta ação); <strong>de</strong>le elas se servem como <strong>de</strong> um instrumento <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, sem omitir todavia os outrosusos: a organização da produção e <strong>do</strong>s meios <strong>de</strong> produção, o lucro.652) O habitar, termo poético (“O homem habita enquanto poeta”, diz Höl<strong>de</strong>rlin) não po<strong>de</strong>ria fazeresquecer que não teve senti<strong>do</strong> durante séculos e séculos senão para a aristocracia. O arquiteto, aserviço <strong>do</strong>s “gran<strong>de</strong>s”, nobres e padres, construía edifícios religiosos, palácios, fortalezas. O hotelparticular da aristocracia já <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte, e logo imita<strong>do</strong> pela burguesia (alta) requer peças <strong>de</strong> aparato,suntuosas, mas retraídas em relação às passagens: a rua, a praça, a avenida. Essas peças surgem emuma corte <strong>de</strong> honra. O aristocrata não se compraz nem em ver nem em ser visto, salvo no curso <strong>de</strong>um cerimonial. Ele “é” si mesmo. O essencial <strong>do</strong> palácio ou <strong>do</strong> hotel consiste então numa disposiçãointerna. Ele guarda no seu fasto alguma coisa <strong>de</strong> orgânico, <strong>de</strong> natural, que faz o seu charme. Afachada não tem senão uma importância secundária e <strong>de</strong>rivada. Frequentemente ela falta. Aseverida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um pórtico monumental, <strong>de</strong> uma entrada solene se abrin<strong>do</strong> sobre uma corte substitui afachada. No espaço interno se agita a casa, o senhor no meio <strong>do</strong>s seus – mulher, crianças, parentes adiversos graus – os seus <strong>de</strong>ntre suas gentes. Nada <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>; ela não tem senti<strong>do</strong>. A burguesia e oaburguesamento da nobreza inventou o íntimo ao mesmo tempo que a fachada. Todavia, os“comuns”, os estábulos, as cozinhas, são limpidamente distintos <strong>do</strong>s lugares habita<strong>do</strong>s pelos mestres,cujos orgulho, arrogância, necessida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>sejos se esparramam em lugares apropria<strong>do</strong>s.653) O apartamento burguês parodia o hotel, mas através da imitação transparece imediatamente umaocupação toda outra <strong>do</strong> espaço. As peças <strong>do</strong> aparato – o salão, a sala <strong>de</strong> refeições, o fuma<strong>do</strong>uro, asala <strong>de</strong> jogos – são o objeto <strong>de</strong> todas as atenções: amplitu<strong>de</strong>, <strong>de</strong>coração, mobiliário. Elas se dispõem<strong>de</strong> uma maneira toda outra em comparação ao <strong>do</strong>micílio aristocrático; elas se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bram sobre a rua,portas, janelas e balcões. Já o visível e o visual o <strong>do</strong>minam. A fachada, feita para ser vista e para ver,ornada <strong>de</strong> esculturas, balaústres e molduras, se organiza ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> balcão. O alinhamento e acontigüida<strong>de</strong> das fachadas asseguram a continuida<strong>de</strong> da rua. Esta se vê já reduzida a uma função <strong>de</strong>passagem. Todavia, ela conserva uma gran<strong>de</strong> importância. O arquiteto, <strong>de</strong>senhan<strong>do</strong> uma fachada,esmeran<strong>do</strong>-se na ornamentação, contribui para animar a rua e criar o espaço urbano. A racionalida<strong>de</strong>perspectivista comanda ainda a or<strong>de</strong>nação das ruas e avenidas, das praças e <strong>do</strong>s parques. Já poucoorgânico, o espaço conserva uma certa unida<strong>de</strong>. O imóvel burguês não é ainda uma caixa. Quanto às“funções” (comer e beber, <strong>do</strong>rmir e fazer amor), elas se ocultam. Julgadas severamente, grosseiras,vulgares, elas são relegadas às partes posteriores da casa: cozinhas, salas <strong>de</strong> banho, “waters” 185 ,quartos <strong>de</strong> <strong>do</strong>rmir, frequentemente ao longo ou ao fim <strong>de</strong> um corre<strong>do</strong>r obscuro, ou sobre uma corte185 Water-Closet, abrevia<strong>do</strong> W-C. [N. T.]246


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006pequena e sombria. Breve, na relação <strong>do</strong>minante, “fora-<strong>de</strong>ntro”, o fora tem a primazia. O Eros<strong>de</strong>saparece e isso para<strong>do</strong>xalmente: na intimida<strong>de</strong> a duplo fun<strong>do</strong> das peças <strong>de</strong> recepção e nas peçasreservadas. A psicanálise <strong>do</strong> espaço mostra à obra no espaço burguês uma filtragem <strong>do</strong> erótico, umrecalcamento das libidinagens, uma cesura e uma censura. Quanto às gentes <strong>de</strong> serviço, as<strong>do</strong>mésticas, elas habitam sob os entulhos. No espaço habita<strong>do</strong> reinam uma solenida<strong>de</strong> moralizante (oque ignorava a aristocracia), a familiarida<strong>de</strong> e a conjugalida<strong>de</strong>, - a genitalida<strong>de</strong> – que recebem o belonome <strong>de</strong> “intimida<strong>de</strong>”. Na relação “<strong>de</strong>ntro-fora”, o fora <strong>do</strong>mina porque só ele importa: o que vemose o que se vê. Todavia o <strong>de</strong>ntro, on<strong>de</strong> morre o Eros, se valoriza <strong>de</strong> maneira mistificante e mistificada.Espessas cortinas permitem isolar o <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> fora, separar o balcão <strong>do</strong> salão, e preservar e significaro íntimo. Às vezes uma cortina se abre, e a fachada se ilumina: há festa. De outra parte e para outraparte, algumas coisas batizadas “objetos <strong>de</strong> arte”, às vezes nus pinta<strong>do</strong>s ou escultura<strong>do</strong>s, completamesse conjunto, nele imprimin<strong>do</strong> um “distintivo” <strong>de</strong> natureza ou <strong>de</strong> libertinagem, para melhor rejeitarao longe um e outro.654) O vivi<strong>do</strong> <strong>do</strong> espaço não permanece fora da teoria. Certamente, seria bastante banal insistir sobreo vivi<strong>do</strong> cotidiano para erigi-lo imediatamente em teoria. Descrever os “<strong>de</strong>feitos” <strong>do</strong> eleva<strong>do</strong>r quepermitiu às pessoas abastadas conquistar os estágios superiores <strong>do</strong>s imóveis, quebran<strong>do</strong>completamente os contatos garanti<strong>do</strong>s pela escada e pelo seu andar, isso não leva longe. Todavia ateoria não <strong>de</strong>ve colocar o vivi<strong>do</strong> entre parênteses para promulgar conceitos. Ao contrário: o vivi<strong>do</strong>faz parte <strong>do</strong> teórico e a separação cai (mas não a distinção e o discernimento) entre conceber e viver.A análise <strong>do</strong> espaço aburguesa<strong>do</strong> verifica a teoria <strong>do</strong> espaço abstrato. Mais ainda: unin<strong>do</strong> o vivi<strong>do</strong> eo concebi<strong>do</strong>, ela mostra o conteú<strong>do</strong> da abstração e reúne por isso mesmo o sensível e o teórico. Ossenti<strong>do</strong>s se tornam teóricos, a teoria revela o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sensível.655) Para a classe operária, o capitalismo “ascen<strong>de</strong>nte”, aquele da “belle époque” (concorrencial, comtaxas <strong>de</strong> lucro soberbas, e uma acumulação cega, mas rápida) produziu <strong>de</strong> início e largamente,qualquer um o sabe, casebres periféricos. Ele rapidamente <strong>de</strong>struiu o espaço <strong>do</strong> imóvel <strong>de</strong> relaçãotradicional: a burguesia em baixo, os operários e os <strong>do</strong>mésticos nas águas furtadas. O casebre, peçaúnica, <strong>de</strong> início ao fun<strong>do</strong> <strong>de</strong> um corre<strong>do</strong>r obscuro, <strong>de</strong> uma corte posterior, às vezes <strong>de</strong> umsubterrâneo, <strong>de</strong>portava-se em direção às periferias, os subúrbios. É a “belle époque” da burguesia.656) É então que se <strong>de</strong>fine o habitat, com seus corolários: o mínimo volume habitável, que sequantifica com os módulos e percursos – o equipamento igualmente mínimo e o ambienteprograma<strong>do</strong>. Na verda<strong>de</strong>, o que se <strong>de</strong>fine assim, por aproximações sucessivas, é o limite inferior <strong>de</strong>tolerabilida<strong>de</strong>. Em seguida, no século XX, os casebres ten<strong>de</strong>m a <strong>de</strong>saparecer. No espaço <strong>do</strong>ssubúrbios, os pavilhões contrastam com os “conjuntos” tão fortemente quanto os ricos <strong>do</strong>micílioscom os casebres <strong>do</strong>s pobres. A experiência <strong>do</strong> “mínimo vital” disso não se serviu menos. Pavilhões e247


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006cida<strong>de</strong>s novas se aproximam <strong>do</strong> limite inferior <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>: além <strong>do</strong> qual a sobrevivência seriaimpossível porque toda vida social teria <strong>de</strong>sapareci<strong>do</strong>. Fronteiras interiores e invisíveis começam aclassificar o espaço, todavia <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> por uma estratégia global e por um po<strong>de</strong>r único. Essasfronteiras não separam somente os níveis: o local, o regional, o nacional, o mundial. Elas distinguemas zonas on<strong>de</strong> as pessoas <strong>de</strong>vem se reduzir “à sua mais simples expressão”, ao seu “<strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>rcomum”, para sobreviver – e as zonas on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m se esparramar confortavelmente as pessoas, on<strong>de</strong>elas têm tempo e espaço, esses luxos essenciais. Fronteiras? Essa palavra frágil oculta o essencial.Linhas <strong>de</strong> fratura na homogeneida<strong>de</strong>, diremos nós, que <strong>de</strong>senham as verda<strong>de</strong>iras configurações,muito aci<strong>de</strong>ntadas ainda que invisíveis aos olhares, <strong>do</strong> espaço social “real”.657) A imagem propagada, aquela <strong>de</strong> uma hierarquia <strong>de</strong> níveis, <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> variáveis e <strong>de</strong>dimensões dissimula essa realida<strong>de</strong>. Ela substitui uma implicação lógica, uma conjunção-disjunçãoformal, à relação concreta: homogênea-fragmentada. Discute-se sobre o espaço como se ele“organizasse” <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> mais ou menos harmonioso seus elementos: os módulos e planos, acomposição e as <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ocupação, o morfológico (formal) e o funcional, o urbanístico e oarquitetural. O discurso sobre o espaço, que <strong>de</strong>screve o que vêem olhos afeta<strong>do</strong>s por <strong>de</strong>feitoscongênitos mais graves que a miopia e o astigmatismo, esse discurso encobre o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> real. Ele orecobre <strong>de</strong> travestismos i<strong>de</strong>ológicos que não aparecem como tais mas parecem ao contrário nãoi<strong>de</strong>ológicos(além da i<strong>de</strong>ologia). Quais? O estético e o estetismo, a racionalida<strong>de</strong> e o racionalismo.658) Uma racionalida<strong>de</strong> clássica (cartesiana) se liga aparentemente às distinções e cortesadministrativos <strong>do</strong> espaço. O zoning que precisamente fragmenta, quebra e separa numa unida<strong>de</strong>burocraticamente estipulada, confun<strong>de</strong>-se com a capacida<strong>de</strong> racional <strong>de</strong> discernir. A repartição dasfunções, acompanhada <strong>de</strong> sua projeção dispersa “sobre o terreno”, confun<strong>de</strong>-se com a ativida<strong>de</strong>analítica que tem em conta as diferenças. O que recobre <strong>de</strong> fato uma or<strong>de</strong>m moral e política; umapotência agencian<strong>do</strong> essas condições, um pertencimento sócio-econômico, parece provir em linhadireta <strong>do</strong> Logos, quer dizer <strong>de</strong> um “consenso” ao racional. A racionalida<strong>de</strong> clássica parece seexacerbar em racionalida<strong>de</strong> tecnológica e tecnocrática. É o momento on<strong>de</strong> ela se transforma em seucontrário: a absurdida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um real em migalhas. A or<strong>de</strong>m estatista-burocrática, cobertura <strong>do</strong>capitalismo <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> (quan<strong>do</strong> não <strong>do</strong> socialismo <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>) se realiza e se dissimulasimultaneamente “sobre o terreno”. Ela obscurece sua imagem no ar transparente <strong>de</strong> legibilida<strong>de</strong>funcional e estrutural. A unida<strong>de</strong> da razão (<strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>) cobre e dissimula os múltiplos cortesadministrativos, justapostos, superpostos, tipo <strong>de</strong> quebra-cabeça em que cada fragmento correspon<strong>de</strong>a uma “operação” (citemos para recordar os ZAD, os ZAC, os ZUP, etc.).659) O espaço abstrato é então repressivo por essência e por excelência, mas <strong>de</strong> uma maneiraparticularmente hábil porque múltipla, a repressão imanente se manifestan<strong>do</strong> seja pela redução, seja248


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006pela localização (funcional), seja pela hierarquização e pela segregação, seja pela arte. Ver (<strong>de</strong>longe), contemplar (o que se separou), or<strong>de</strong>nar os “pontos <strong>de</strong> vista” e as “perspectivas” (nosmelhores casos) muda os efeitos <strong>de</strong> uma estratégia em objetos estéticos. Esses objetos <strong>de</strong> arte, emgeral abstratos, então não-figurativos, têm um papel <strong>de</strong> figurantes: eles figuram admiravelmente oespaço “ambiente” que mata o ambiente. O que não correspon<strong>de</strong> senão muito bem ao urbanismo <strong>de</strong>maquete e <strong>de</strong> plano-massa, complemento <strong>do</strong> urbanismo <strong>do</strong>s esgotos e vias sanitárias, on<strong>de</strong> o olhar <strong>do</strong>cria<strong>do</strong>r se fixa a seu capricho e à sua vonta<strong>de</strong> sobre “volumes”, olho falsamente lúci<strong>do</strong> que<strong>de</strong>sconhece ao mesmo tempo a prática social <strong>do</strong>s “usuários’ e a i<strong>de</strong>ologia que em si mesmo contém.O que não o impe<strong>de</strong> em nada, ao contrário, <strong>de</strong> presidir o espetáculo e formar a unida<strong>de</strong> na qualentram custe o que custar os fragmentos programa<strong>do</strong>s.660) 5.14 A fragmentação <strong>do</strong> espaço engendra um conflito quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>is conteú<strong>do</strong>s disjuntos ten<strong>de</strong>mem direção a uma forma (organização), cada um <strong>de</strong> seu la<strong>do</strong>. Consi<strong>de</strong>remos a empresa e seu espaço.Em muitos casos, ela se cerca <strong>de</strong> uma aglomeração a seu serviço, secretada por ela: o cantão, a vilaao re<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma usina, às vezes uma cida<strong>de</strong>. A aglomeração cai então sob o controle absoluto daempresa, quer dizer <strong>de</strong> seus dirigentes (capitalistas). Os trabalha<strong>do</strong>res ten<strong>de</strong>m então a per<strong>de</strong>r oestatuto que faz <strong>de</strong>les trabalha<strong>do</strong>res livres, operários, “proletários” no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> Marx: dispon<strong>do</strong> <strong>de</strong>seu tempo fora <strong>do</strong> tempo <strong>de</strong> trabalho cedi<strong>do</strong> ao capitalista que compra a força <strong>de</strong> trabalho (e não otrabalha<strong>do</strong>r enquanto ser físico e pessoa humana). Na medida em que as empresas capitalistasinstalam ilhotas <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência completa e <strong>de</strong> assujeitamento <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res, essas ilhotas sãodisjuntas no seio <strong>do</strong> espaço on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra a “liberda<strong>de</strong>”, aquela <strong>do</strong>s indivíduos, aquela <strong>do</strong> capitalele mesmo (comercial e industrial). Mas na medida em que essas ilhotas ten<strong>de</strong>m a se reunir, elasestabelecem o teci<strong>do</strong> no qual reinaria um capitalismo totalitário (o econômico e o político sefundin<strong>do</strong>).661) O espaço da gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> se conceber a partir da empresa; (e é esse o porquê dacida<strong>de</strong> não se gerir segun<strong>do</strong> este mo<strong>de</strong>lo, mesmo se conceben<strong>do</strong> uma gran<strong>de</strong> empresa). O estatuto <strong>do</strong>trabalha<strong>do</strong>r “livre” (todas reservas feitas, todas limitações aportadas à acepção abstratamentefilosófica <strong>do</strong> termo) é ali <strong>de</strong> regra; o que permite aos operários ali coabitar com as outras classes. Adivisão social <strong>do</strong> trabalho ali <strong>do</strong>mina a divisão técnica. E é somente assim que a cida<strong>de</strong> permite areprodução da força <strong>de</strong> trabalho e a reprodução das relações <strong>de</strong> produção, assim como o acesso <strong>de</strong>to<strong>do</strong>s aos diversos merca<strong>do</strong>s (e <strong>de</strong> início ao merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> consumo). O que faz parte <strong>de</strong> suasfunções. Dito <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, a liberda<strong>de</strong> engendra contradições que são também contradições <strong>do</strong>espaço. A empresa ten<strong>de</strong> em direção a uma socieda<strong>de</strong> totalitária (autoritária, <strong>de</strong> bom gra<strong>do</strong> fascista).Ao passo que o urbano mantém, malgra<strong>do</strong> ou através da violência, uma <strong>de</strong>mocracia (limitada, bementendi<strong>do</strong>).249


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006662) 5.15 As significações <strong>do</strong> espaço abstrato consistem em interditos, bem como solicitações eestimulantes (sob a condição <strong>de</strong> consumo). O interdito, enquanto base negativa, se se po<strong>de</strong> dizer, <strong>de</strong>or<strong>de</strong>m social, ali triunfa. Símbolos <strong>de</strong>ssa repressão constitutiva: o objeto se esten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ao olhar erecusa<strong>do</strong> ao uso, tanto em um museu quanto nas vitrines <strong>de</strong> uma boutique. Quantos percursoscomeçam pela aceitação passiva e geralmente “inconsciente” <strong>de</strong> um interdito, com um momento <strong>de</strong>mal-estar (a entrada em uma igreja, em um escritório, em um edifício “público”, em um lugar“estranho”, etc.). A maior parte <strong>do</strong>s interditos é invisível. Os muros e as gra<strong>de</strong>s, as barreirasmateriais e as fossas não são senão o caso limite da separação. Signos e significantes mais abstratosprotegem contra intrusos os espaços elitistas, os belos bairros, os lugares “seletos”.663) O espaço se fragmenta em lugares <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s (significa<strong>do</strong>s, especializa<strong>do</strong>s) e lugaresinterditos (a tal ou tal grupo da população). Ele se separa em espaços para o trabalho e para o lazer,em espaços diurnos e noturnos. O corpo, o sexo, o prazer não recebem uma existência (mental esocial) senão com o fim <strong>do</strong> dia, senão uma vez suspensos os interditos que reinam durante a jornada,no curso das ativida<strong>de</strong>s “normais”. Essa existência subsidiária e <strong>de</strong>rivada eles a recebem à noite, emlugares especializa<strong>do</strong>s (em Paris: próximo <strong>de</strong> Pigale e Montmarte outrora, próximo <strong>de</strong> Montparnassee Champs-Élysées em seguida), mas reduzi<strong>do</strong>s ao espetáculo e materiais <strong>de</strong> uma exploração refinada.Nesses lugares e durante esses tempos, o sexo parece ter to<strong>do</strong>s os direitos. Ele não tem senão aquele<strong>de</strong> se exibir à vista. A ruptura <strong>do</strong> espaço se acentua: os bairros <strong>de</strong> “festa” se iluminam à noite aopasso que os bairros “<strong>de</strong> negócios” retornam ao vazio e à morte. Na noite, bem esclareci<strong>do</strong>s, osinterditos dão lugar às pseu<strong>do</strong> transgressões rentabilizadas.664) 5.16 Esse espaço “homogêneo e fragmenta<strong>do</strong>”, como compreendê-lo? Como ele se mantém secontém simultaneamente duas características, formalmente incompatíveis? Como esses <strong>do</strong>isatributos, não compatíveis <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista lógico po<strong>de</strong>m se associar e constituir um “to<strong>do</strong>” que nãose <strong>de</strong>sintegre e possa mesmo servir ao <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramento <strong>de</strong> estratégias?665) A questão, já colocada em termos um pouco diferentes, já recebeu resposta, mas é preciso a elaretornar. A resposta não se acha no espaço como tal, enquanto coisa ou conjunto <strong>de</strong> coisas, fatos ouenca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> fatos, “meio” ou “ambiente”. Procurar nesse senti<strong>do</strong>, é retornar à tese <strong>do</strong> espaçoneutro, anterior ou exterior à prática social, então mental e fetichiza<strong>do</strong> (objetivo) por essa razão.Somente um ato po<strong>de</strong> ter e manter reuni<strong>do</strong>s fragmentos numa totalida<strong>de</strong> homogênea. Somente umaação po<strong>de</strong> reter o que se dispersa: como a mão fechada segura a areia.666) O po<strong>de</strong>r político e a ação política <strong>de</strong> seus aparelhos administrativos não po<strong>de</strong>m se conceber nemcomo “substâncias” nem “formas puras”. Eles sabem utilizar as realida<strong>de</strong>s e as formas. Atransparência ilusória <strong>do</strong> espaço, é no fim das contas aquela <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r que transparece no que ele<strong>do</strong>mina, mas se dissimula por trás daquilo que ele <strong>do</strong>mina. É o ato <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r político; pois é ele que250


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006suscita ao controlá-la e para controlá-la a fragmentação. Esta (dispersão, segregação, separação,localização) po<strong>de</strong> transbordar o po<strong>de</strong>r que não se sustenta senão ao se reforçar. Esse círculo (vicioso)explica o caráter cada vez mais duro da autorida<strong>de</strong> política, on<strong>de</strong> quer que ela se exerça, com ocírculo “pressão-repressão-opressão”. É assim que o po<strong>de</strong>r estatista-político se faz onipresente: eleestá em to<strong>do</strong> lugar, mas mais ou menos: aqui difuso, ali concentra<strong>do</strong>. Como o po<strong>de</strong>r divino nasreligiões e teologias. O espaço permite integrar o econômico ao político. As zonas “centradas”irradiam <strong>de</strong> todas as partes, exercen<strong>do</strong> influências “culturais”, i<strong>de</strong>ológicas e outras. O po<strong>de</strong>r políticonão é, enquanto po<strong>de</strong>r político produtor <strong>de</strong> espaço: mas ele o reproduz, enquanto lugar e meio dareprodução das relações sociais (que a ele são confiadas).667) No espaço <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, o po<strong>de</strong>r não aparece como tal; ele se dissimula sob “a organização <strong>do</strong>espaço”. Ele eli<strong>de</strong>, ele elu<strong>de</strong>, ele evacua. O que? Tu<strong>do</strong> o que se opõe. Pela violência inerente e seesta violência latente não é suficiente, pela violência aberta.668) 5.17 Chega a hora <strong>de</strong> precisar, em relação a Marx e seu pensamento, em relação igualmente àeconomia política como i<strong>de</strong>ologia, o plano aqui persegui<strong>do</strong>.669) Restituir o pensamento <strong>de</strong> Marx, retomá-lo em sua integralida<strong>de</strong>, é o que permite tomardistância em relação a ele, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-o como ponto <strong>de</strong> partida e não como ponto <strong>de</strong> chegada econclusão. O que leva a compreendê-lo como momento da teoria e não como teoria <strong>de</strong>finitiva,<strong>do</strong>gmaticamente. Daí dizer (e por que não o repetir hoje?) que há <strong>do</strong>is erros, duas ilusões a se evitarhoje. Uma encara o pensamento marxista como um sistema, procura fazê-lo entrar no saberestabeleci<strong>do</strong> e por conseqüência aplicar a ele critérios epistemológicos. A outra se esforça aocontrário por <strong>de</strong>struir o pensamento <strong>de</strong> Marx sob pretexto <strong>de</strong> crítica radical, <strong>de</strong> contestação estendidaaos princípios da contestação eles mesmos. Uma ce<strong>de</strong> então aos prestígios <strong>do</strong> saber absoluto,admitin<strong>do</strong> a tese (hegeliana historicamente) da existência <strong>de</strong> tal saber repousan<strong>do</strong> sobre uma“realida<strong>de</strong>” ela mesma estabelecida. A outra ce<strong>de</strong> à vertigem da <strong>de</strong>struição e da auto<strong>de</strong>struição,cren<strong>do</strong> <strong>de</strong>struir o “real” solapan<strong>do</strong> pela base o saber. Não é necessário consi<strong>de</strong>rar o marxismo, hoje,como a física da relativida<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ra a física newtoniana: momento <strong>do</strong> pensamento, não somentena sua gênese histórica, e na exposição pedagógica, mas necessária <strong>de</strong> maneira imanente, essencial,em <strong>de</strong>senvolvimento? O que <strong>de</strong>ixa aberta a questão da <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> (corte) política, separan<strong>do</strong> ateoria <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> (hegeliana) da crítica radical <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> (marxista).670) Po<strong>de</strong>-se hoje reconstituir o <strong>de</strong>stino da economia política, <strong>de</strong> seu nascimento a seu <strong>de</strong>clínio,incluin<strong>do</strong> o cume atingi<strong>do</strong> com a obra e Marx. Esta breve e dramática história não se separa da“realida<strong>de</strong>” dita econômica, quer dizer <strong>do</strong> crescimento das forças produtivas (acumulação primitiva<strong>do</strong> capital). O <strong>de</strong>clínio <strong>do</strong> pensamento econômico começa com as dificulda<strong>de</strong>s <strong>do</strong> crescimento e da251


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006i<strong>de</strong>ologia que o justifica e estimula: com o empirismo político e o pragmatismo das soluçõespropostas aos problemas <strong>do</strong> crescimento.671) Antes <strong>de</strong> experimentar essa história, seria indica<strong>do</strong> retomar alguns conceitos: por exemplo, oconceito <strong>de</strong> trabalho social <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os gran<strong>de</strong>s Ingleses, prosseguin<strong>do</strong> através daqueles quecontribuíram para a sua elaboração, <strong>de</strong> início Hegel e Marx. O trabalho social percorreu um trajetoaci<strong>de</strong>nta<strong>do</strong>. A realida<strong>de</strong> e o conceito emergiram com a indústria nascente; eles se afirmarammalgra<strong>do</strong> os esforços e os efeitos contrários, até se tornarem centrais na teoria e na prática, para aciência e para a socieda<strong>de</strong>. O trabalho produtivo (industrial) como realida<strong>de</strong>, e como conceito, comoi<strong>de</strong>ologia, engendrou “valores” morais, artísticos. A produção, a produtivida<strong>de</strong>, tornam-se então, aomesmo tempo que causas sociais, razões <strong>de</strong> uma concepção <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ligada à filosofia da história ea uma ciência ascen<strong>de</strong>nte: a economia política. Depois vem a obsolescência. Valores e conceitosprovenientes <strong>do</strong> trabalho se <strong>de</strong>terioraram. A economia política, como teoria <strong>do</strong> crescimento eproposição <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los, <strong>de</strong>sintegrou-se.672) Houve já alguma coisa <strong>de</strong> análogo próximo da meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XIX; mas então Marxrestabeleceu a economia política <strong>de</strong> uma maneira ao mesmo tempo imprevista e incompreensívelpara os economistas especializa<strong>do</strong>s: reunin<strong>do</strong> a ela sua própria crítica, em nome <strong>de</strong> uma concepçãoglobal (<strong>do</strong> tempo, da história, da prática social). Esse esquema é hoje conheci<strong>do</strong>, e mesmo um pouco<strong>de</strong>mais. Sua capacida<strong>de</strong> criativa (alguns dirão “produtiva”, e por que não?) se encontra afetada. Umatal capacida<strong>de</strong> se manifesta entre o momento em que os conceitos <strong>de</strong>sarranjam as tendências<strong>do</strong>minantes, e o momento em que são difundi<strong>do</strong>s, entran<strong>do</strong> no saber, o <strong>do</strong>mínio público, a cultura e apedagogia. Assim para Marx e o marxismo. Esse esquema já não encerra tanta força. Nada <strong>de</strong> sabersem crítica <strong>do</strong> saber e sem saber crítico. A economia política como ciência, não é e não po<strong>de</strong> ser umaciência “positiva” e somente positiva; a economia política, é também a crítica da economia política(enten<strong>de</strong>mos por isso: <strong>do</strong> econômico e <strong>do</strong> político, e <strong>de</strong> sua pretensa unida<strong>de</strong> ou síntese). Oconhecimento da produção implica a análise crítica da produção, o que faz sair da sombra o conceitodas relações <strong>de</strong> produção. Essas relações <strong>de</strong> produção, uma vez <strong>de</strong>stacadas, reagem sobre atotalida<strong>de</strong> confusa <strong>de</strong> on<strong>de</strong> emergiram, o trabalho social produtivo, a produção. A partir <strong>de</strong>ssemomento se constitui um novo conceito, que envolve aquele <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> produção mas nãocoinci<strong>de</strong> com ele: o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção. Entre as relações <strong>de</strong> produção e o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção, há umaconexão que Marx nem completamente <strong>de</strong>scobriu nem corretamente elaborou. Don<strong>de</strong> uma lacunaque ensaiaram completar seus sucessores. Chegaram a tal? É uma outra questão.673) Nessa questão, qual papel representou e representa ainda a terra, conceito e realida<strong>de</strong>?Determinante no início, nos fisiocratas, a terra parecia <strong>de</strong>stinada a per<strong>de</strong>r rapidamente todaimportância. A agricultura e o trabalho agrícola, <strong>de</strong>viam <strong>de</strong>saparecer rapidamente frente o trabalho252


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006industrial, tanto <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista quantitativo (riqueza produzida) como <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vistaqualitativo (necessida<strong>de</strong>s satisfeitas pelos produtos da terra); a agricultura ela mesma podia e <strong>de</strong>viase industrializar. Além disso a terra pertencia a uma classe (a aristocracia, os proprietários fundiários,os feudais). A burguesia <strong>de</strong>via, parece, exterminar essa classe ou a subordinar até retirar <strong>de</strong>la todaimportância. Enfim, último ponto, a cida<strong>de</strong> ia <strong>do</strong>minar o campo, preparan<strong>do</strong> o fim (oultrapassamento) da oposição.674) Sobre a questão da terra, <strong>do</strong> trabalho e <strong>do</strong>s produtos agrícolas, da proprieda<strong>de</strong> e das rendas <strong>do</strong>solo, da natureza ela mesma, po<strong>de</strong>-se reconstituir as flutuações <strong>do</strong>s economistas (incluin<strong>do</strong> entreeles, bem entendi<strong>do</strong>, Malthus com os mesmos direitos que Ricar<strong>do</strong> e Marx). Marx teve a intenção,n’O Capital, <strong>de</strong> analisar e <strong>de</strong> expor o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção capitalista e a socieda<strong>de</strong> burguesa segun<strong>do</strong>um esquema binário (dialetiza<strong>do</strong>), a oposição “capital-trabalho”, e “burguesia-proletaria<strong>do</strong>”. O queimplica a oposição: “lucro-salário”. Esta oposição polar, com o movimento conflitual que ela permiteconhecer formalmente e por conseqüência formular inteligivelmente supõe a <strong>de</strong>saparição <strong>do</strong> terceirotermo proveniente da história: a terra, a classe <strong>do</strong>s proprietários <strong>de</strong> terra, as rendas fundiárias, aagricultura como tal. De mo<strong>do</strong> geral, trazer ao primeiro plano uma oposição binária <strong>de</strong> caráterconflitual (dialético) pressupõe a subordinação da história ao econômico, realida<strong>de</strong> e conceito, e porconseqüência a dissolução ou a absorção pelo econômico como tal <strong>de</strong> múltiplas formaçõesprovenientes <strong>do</strong> tempo histórico (a cida<strong>de</strong>, entre outras), anteriores pois elas mesmas ao capitalismo.Num tal esquema, o espaço da prática social passa <strong>de</strong>spercebi<strong>do</strong>; o tempo não tem senão um papelmenor; o esquema ele mesmo se situa num espaço mental abstrato. O tempo se reduz à medida <strong>do</strong>trabalho social.675) Ora, Marx sentiu rápi<strong>do</strong> e não po<strong>de</strong> não sentir as resistências a esse esquema redutor (queretiveram, agravan<strong>do</strong>-o em lugar <strong>de</strong> compensá-lo, muitos “marxistas” e a totalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s<strong>do</strong>gmáticos) 186 . De on<strong>de</strong> vinha essa resistência ao esquema? De diversos la<strong>do</strong>s, e <strong>de</strong> início darealida<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rada, a terra ela mesma. À escala mundial não <strong>de</strong>saparecia nem a proprieda<strong>de</strong> <strong>do</strong>solo, nem a importância política <strong>do</strong>s proprietários <strong>do</strong> solo, nem as características específicas daprodução agrícola. Nem por conseqüência, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> lucro e <strong>do</strong> salário, as rendas <strong>do</strong> solo. Além <strong>do</strong>mais, as questões relativas ao subsolo a aos seus recursos, ao sobre-solo e ao espaço planetário, nãocessavam <strong>de</strong> tomar importância.186 O <strong>de</strong>stino <strong>do</strong> marxismo – quem hoje o ignora? – ainda impediu toda confrontação, toda discussão, e mesmo to<strong>do</strong> diálogoconcernin<strong>do</strong> os pontos nevrálgicos. Durante <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> anos, os esforços para retornar ao seu lugar (na França, na Europa e nomun<strong>do</strong>) a teoria da renda fundiária foram aniquila<strong>do</strong>s, em nome <strong>do</strong> marxismo torna<strong>do</strong> i<strong>de</strong>ologia, instrumento político nas mãos<strong>de</strong> aparelhos.253


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006676) Don<strong>de</strong> as singularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um “plano” difícil <strong>de</strong> reconstituir: aquele <strong>do</strong> Capital. Ao fimreaparecem, mas com mais força, as consi<strong>de</strong>rações relativas ao solo, a sua proprieda<strong>de</strong> – àproprieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> subsolo, das minas e minerais, das águas, das florestas – à elevação, à construção eao <strong>do</strong>mínio construí<strong>do</strong>. Ao mesmo tempo, a teoria das rendas retoma uma importânciasurpreen<strong>de</strong>nte, ainda que permaneça inacabada. Enfim e sobretu<strong>do</strong>, Marx propõe um esquematrinitário. Há no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção capitalista e na socieda<strong>de</strong> burguesa três elementos e não <strong>do</strong>is,três aspectos ou “fatores”: a terra (a Senhora Terra) – o Capital (o Senhor Capital) – e o trabalho (osTrabalha<strong>do</strong>res). Dito <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>: as rendas, o lucro, o salário. Três termos cujas relações resta<strong>de</strong>scobrir, expor 187 . Três termos; é preciso insistir bastante: três e não <strong>do</strong>is (o salário e o capital, aburguesia e a classe operária). A terra? Não é somente a agricultura, é o subsolo e seus recursos. Étambém o Esta<strong>do</strong>-nação liga<strong>do</strong> a um território. É pois também a política absoluta e a estratégiapolítica.677) É então que pára O Capital, obra inacabada. Por quê? Começa-se a extrair as razões <strong>de</strong>sseinacabamento, <strong>do</strong> qual as <strong>do</strong>enças <strong>de</strong> Marx não são senão parcialmente responsáveis.678) Como não se voltar hoje em direção à obra exemplar e incompleta, para interrogá-la em lugar <strong>de</strong>impô-la? Hoje, porque o capitalismo, e <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> mais geral o crescimento não pu<strong>de</strong>ram se mantersenão ao se esten<strong>de</strong>r ao espaço inteiro: o solo (absorven<strong>do</strong> como se podia prever <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XIXa cida<strong>de</strong> e a agricultura, - mas também crian<strong>do</strong> novos setores, os lazeres notadamente), - os subsolos,quer dizer os recursos manti<strong>do</strong>s encobertos até o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mares e das terras, em energia, emmatérias primas – e enfim o que se po<strong>de</strong>ria chamar o sobre-solo, quer dizer os volumes, asconstruções em altura, o espaço das montanhas e <strong>do</strong>s planetas. O espaço, a terra, o solo, não<strong>de</strong>sapareceram, absorvi<strong>do</strong>s pela produção industrial; ao contrário: integra<strong>do</strong>s ao capitalismo, eles seafirmam como elementos ou funções específicas, na sua extensão. Extensão ativa: salto adiante dasforças produtivas, modalida<strong>de</strong>s novas da produção, mas no quadro <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> e das relações <strong>de</strong>produção capitalistas; o que quer dizer que essa extensão (da produção, das forças produtivas) seacompanha ainda <strong>de</strong> uma reprodução das relações <strong>de</strong> produção à qual a ocupação inteira <strong>do</strong> espaçopré-existente e a produção <strong>de</strong> um novo espaço não po<strong>de</strong>m ser indiferentes. Não somente ocapitalismo se apo<strong>de</strong>rou <strong>do</strong> espaço pré-existente, da Terra, mas ele ten<strong>de</strong> a produzir o espaço, o seu.Como? Através e pela urbanização, sob a pressão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> mundial. Sob a lei <strong>do</strong> reprodutível e <strong>do</strong>repetitivo, anulan<strong>do</strong> as diferenças no espaço e no tempo, <strong>de</strong>struin<strong>do</strong> a natureza e os tempos naturais.O econômico fetichiza<strong>do</strong> no merca<strong>do</strong> mundial e o espaço que ele <strong>de</strong>termina, a política levada ao187Cf. também Espace et Politique , Éditions Anthropos, p. 42 e seg. e o texto <strong>de</strong> Marx, Cap. III , cap. 48, trad. fr. ÉditionsSociales, p. 193 e seg.254


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006absoluto não arriscam <strong>de</strong>struir seu próprio fundamento, a terra, o espaço, a cida<strong>de</strong> e o campo? E porconseqüência se auto<strong>de</strong>struir?679) Algumas das contradições novas, suscitadas por esta extensão <strong>do</strong> capitalismo ao espaço, <strong>de</strong>ramlugar a representações logo vulgarizadas. Essas representações <strong>de</strong>sviam e contornam os problemas(a problemática <strong>do</strong> espaço) mascaran<strong>do</strong> precisamente as contradições. A poluição? Ela sempreexistiu; os grupos humanos, vilas e cida<strong>de</strong>s, sempre <strong>de</strong>spejaram na natureza <strong>de</strong>jetos e resíduos; mas asimbiose (a troca <strong>de</strong> energias, <strong>de</strong> materiais) entre a natureza e a socieda<strong>de</strong> foi modificada, semdúvida rompida. O que diz e dissimula a palavra “poluição”, que metaforiza fenômenos familiares:os <strong>de</strong>tritos, as fumaças, etc. Quanto ao ambiente, é uma metonímia típica: passa-se da parte – ofragmento <strong>do</strong> espaço mais ou menos bem ocupa<strong>do</strong> por objetos e signos, funções e estruturas – aoto<strong>do</strong>, vazio e <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> como “meio” neutro e passivo. Ambiente <strong>de</strong> quem? De quê? Estas questõespertinentes permanecem sem resposta.680) Essas indicações já dadas alhures, pareceu útil retomá-las aqui. Por quê? Por que se continua poraqui e por ali a atribuir às i<strong>de</strong>ologias uma origem e uma potência mágicas. A i<strong>de</strong>ologia burguesa,simples reflexo “especular” da realida<strong>de</strong> teria a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reproduzir essa realida<strong>de</strong> e suasrelações <strong>de</strong> produção. Como? Velan<strong>do</strong> as contradições? Sim mas também fazen<strong>do</strong> surgir, contraespecular, a nação e o nacionalismo. A pseu<strong>do</strong> teoria mostra a sua absurdida<strong>de</strong> se se examina <strong>de</strong>perto o que ela preten<strong>de</strong> explicar, absten<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> histórico (da gênese <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s-Nações). Nateoria trinitária <strong>de</strong> Marx, a i<strong>de</strong>ologia e a prática não se separam. O po<strong>de</strong>r mantém reuni<strong>do</strong>s ereproduz separadamente (conjuntos e disjuntos) a Terra, o Trabalho e o Capital.681) A crítica da economia política, em Marx, tem um valor e um senti<strong>do</strong> que o produtivismo ulterior<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> la<strong>do</strong>. É o conceito mesmo <strong>de</strong> economia política, como saber, que visa Marx. Esta ciênciase dá por conhecimento da produção e das forças produtivas. Isso dizen<strong>do</strong>, isso fazen<strong>do</strong>, oseconomistas mistificam seus leitores e se auto-mistificam. O que <strong>de</strong>screvem? As condições dararida<strong>de</strong> e os paliativos. Eles ensinam diretamente ou indiretamente, cinicamente o hipocritamente, oascetismo. Bem antes <strong>do</strong> século XVI, po<strong>de</strong> ser nas profun<strong>de</strong>zas medievais, po<strong>de</strong> ser antes com o<strong>de</strong>clínio <strong>de</strong> Roma e o ju<strong>de</strong>o-cristianismo, a socieda<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal escolheu acumular e lugar <strong>de</strong> viver.Ela suscitou esse <strong>de</strong>spedaçamento, essa contradição cujo drama a tortura entre o gozar e oeconomizar. Muitos séculos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ssa opção fundamental, oculta nas profun<strong>de</strong>zas <strong>do</strong> tempo, aeconomia política a racionaliza. Ela nasce como ciência ao passo que na prática social o econômico aarrasta: a inquietação da acumulação pelo e para o lucro, por uma acumulação ampliada.682) Quem são então, segun<strong>do</strong> Marx, os economistas? Os homens da penúria (relativa), da transiçãoentre as rarida<strong>de</strong>s arcaicas e a abundância possível. Eles estudam essas rarida<strong>de</strong>s (relativas) econtribuem para a repartição injusta <strong>do</strong>s “bens”. Sua pseu<strong>do</strong>ciência, i<strong>de</strong>ológica enquanto tal, contém255


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006e recobre uma prática. Eles conhecem a rarida<strong>de</strong> como tal; <strong>de</strong>la não são a expressão mas aconsciência concreta, ainda que mal elaborada, aquela das insuficiências da produção. A economiapolítica segun<strong>do</strong> Marx tem seu senti<strong>do</strong>. Ou melhor: a economia é política nesse senti<strong>do</strong>. Ela permiteaos homens <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, ao po<strong>de</strong>r político, repartir essa penúria. As relações concretas <strong>de</strong> produçãoengendram assim a repartição, o consumo. Essa “distribuição” se cumpre sob as máscaras daliberda<strong>de</strong>, da igualda<strong>de</strong>, e mesmo da fraternida<strong>de</strong> e da justiça. O direito codifica as regras. “Summumjus, summa injuria” 188 . O direito e a justiça organizam a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, que não permanece menosflagrante, mas mais difícil <strong>de</strong> combater.683) Voluntariamente ou não, conscientemente ou não os economistas aperfeiçoam os efeitos(espontâneos, cegos) da lei <strong>do</strong> valor, a saber a repartição num quadro espacial (nacional) segun<strong>do</strong> osramos da indústria da força <strong>de</strong> trabalho e da capacida<strong>de</strong> produtiva <strong>de</strong> que dispõe tal socieda<strong>de</strong>particular (a inglesa, a francesa) no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção capitalista e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> que o controla. Sen<strong>do</strong>assim, os economistas constroem um espaço ou espaços abstratos, nos quais eles situam e propõemseus mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> crescimento “harmonioso”. O que fazia já, rudimentarmente, Bastiat nos tempos <strong>de</strong>Marx. Eles não chegam a passar <strong>do</strong> espaço mental, aquele <strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>los, ao espaço social. A gestãoda socieda<strong>de</strong>, à qual eles forneceram uma contribuição não negligenciável durante um longo tempo,tendia assim ao crescimento (à acumulação ampliada) mas sob o controle da burguesia, conservan<strong>do</strong>as relações <strong>de</strong> produção no essencial, e sobretu<strong>do</strong> fazen<strong>do</strong> aparecer como positivos e construtivos osla<strong>do</strong>s negativos da situação.684) Durante esse perío<strong>do</strong>, não é feita alusão aos “bens naturais”, aos “elementos” (a água, o ar, a luz,o espaço) senão para excluí-los da economia política; abundantes, eles não têm valor <strong>de</strong> troca; seu“uso” não comporta um valor; eles não resultam <strong>de</strong> um trabalho social; não se os produz.685) Ora, o que suce<strong>de</strong> <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sse perío<strong>do</strong>? O que acontece hoje? Certos bens outrora raros setornam abundantes (relativamente) e inversamente. O que <strong>de</strong>sloca mas revaloriza, se se ousa dizerassim, o valor <strong>de</strong> uso, longamente <strong>de</strong>precia<strong>do</strong> pelo valor troca. Símbolo outrora na Europa daalimentação, das coisas preciosas, <strong>do</strong> trabalho ele mesmo (Dai-nos hoje o pão <strong>de</strong> cada dia – Tuganharás teu pão ao suor <strong>de</strong> tua fronte), o pão per<strong>de</strong>u essa qualida<strong>de</strong> simbólica. Nos gran<strong>de</strong>s paíseson<strong>de</strong> a agricultura se industrializa, houve durante um longo tempo superprodução permanente, àsvezes oculta, às vezes <strong>de</strong>clarada: estoques <strong>de</strong> cereais, restrições subvencionadas ou não <strong>de</strong>superfícies produtivas, etc. O que não impedia em nada o sofrimento <strong>de</strong> milhões e <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong>milhões <strong>de</strong> seres humanos que nos países ditos sub<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s, sofrem <strong>de</strong> carência alimentares,quan<strong>do</strong> não <strong>de</strong> fome. Muitos objetos <strong>de</strong> uso corrente, nos países industriais, estão ao mesmo ponto.188 “Cúmulo <strong>de</strong> justiça, cúmulo <strong>de</strong> injustiça”. [N.T.].256


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006Ninguém ignora hoje que sua obsolescência se organiza, que o esbanjamento tem uma funçãoeconômica, que a moda representa um papel consi<strong>de</strong>rável assim como a “cultura” no consumofuncionaliza<strong>do</strong>, estrutura<strong>do</strong> como tal. O que ocasiona o crepúsculo da economia política. O que asubstitui? Os estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>s, o marketing, a publicida<strong>de</strong>, a manipulação <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s, asprevisões <strong>de</strong> investimentos pelos escritórios <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s, e assim em diante. A prática da manipulação(que se acorda muito bem com a propaganda política) po<strong>de</strong> dispensar a “ciência” como i<strong>de</strong>ologia. Amanipulação <strong>de</strong> pessoas tem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> informações mais que <strong>de</strong> conhecimento.686) Por um movimento dialético, a nova abundância (relativa) <strong>do</strong>s produtos industriais na socieda<strong>de</strong>dita <strong>de</strong> consumo se acompanha <strong>de</strong> um fenômeno inverso, as novas rarida<strong>de</strong>s. Esse movimentodialético não foi ainda analisa<strong>do</strong> nem exposto para ele mesmo, pois as entida<strong>de</strong>s postas à frente(danos, poluições, “ambiente”, ecossistemas, <strong>de</strong>struição da natureza, esgotamento <strong>do</strong>s recursos, etc.)o mascaram. Elas servem <strong>de</strong> álibi i<strong>de</strong>ológico. As “novas rarida<strong>de</strong>s” se esten<strong>de</strong>m e ameaçam provocaruma crise (ou crises) <strong>de</strong> um caráter original. Bens outrora abundantes porque naturais, que nãotinham valor porque não eram produtos, tornam-se raros. Eles se valorizam. É necessário osproduzir; eles adquirem então, com o valor <strong>de</strong> uso, um valor <strong>de</strong> troca. Esses bens são “elementares”pois eles consistem precisamente em “elementos”. Nos projetos urbanísticos os mais mo<strong>de</strong>rnos,utilizan<strong>do</strong> técnicas muito perfeccionadas, tu<strong>do</strong> é produto: o ar, a luz, a água, o solo ele mesmo. Tu<strong>do</strong>é artificial e “sofistica<strong>do</strong>”; a natureza aí <strong>de</strong>saparece, salvo alguns sinais e símbolos; através <strong>de</strong>ssessímbolos ela não é senão “reproduzida”. O espaço urbano se <strong>de</strong>staca <strong>do</strong> espaço natural mas recria umespaço a partir das capacida<strong>de</strong>s produtivas. O espaço natural se torna um bem raro, ao menos emcertas condições sócio-econômicas. Inversamente a rarida<strong>de</strong> se espacializa, se localiza. O que serarefaz tem uma relação estreita com a Terra: os recursos <strong>do</strong> solo, <strong>do</strong> subsolo (petróleo), <strong>do</strong> sobresolo(ar, luz, volumes, etc.) e o que disso <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, produções vegetais e animais, energias.687) Os “elementos” per<strong>de</strong>m suas <strong>de</strong>terminações naturais, incluin<strong>do</strong> o sítio e a situação, no seio “<strong>do</strong>sespaços envelopes” que se tornam os elementos sociais <strong>do</strong> espaço. Eles adquirem valor (<strong>de</strong> uso e <strong>de</strong>troca), pois não é mais possível os extrair diretamente numa reserva inesgotável, a natureza. Essaexigência, esses processos atuais não têm tanta importância quanto o esgotamento virtual, e aliásainda distante, das reservas industriais (minerais, etc.)? Para a produção industrial <strong>de</strong> tipo corrente, arelação com o espaço foi durante um longo tempo pontual: lugares <strong>de</strong> extração ou <strong>de</strong> proveniência <strong>de</strong>matérias primas, lugares das empresas, lugares da venda. Somente as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> circulação <strong>do</strong>sprodutos tinham uma realida<strong>de</strong> espacial mais ampla. Quan<strong>do</strong> os “elementos” são produzi<strong>do</strong>s oureproduzi<strong>do</strong>s, a relação das ativida<strong>de</strong>s produtivas com o espaço muda; ela o concerne <strong>de</strong> uma outramaneira, tanto a montante (a água e os recursos hídricos por exemplo) quanto a jusante, ao fim dasoperações produtivas (no espaço urbano). E nos intermediários.257


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006688) A finitu<strong>de</strong> da natureza e da terra modifica a crença cega (i<strong>de</strong>ológica) na potência infinita daabstração, <strong>do</strong> pensamento e da técnica, <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r político e <strong>do</strong> espaço que ele secreta – <strong>de</strong>creta.689) Os “elementos” entram nos circuitos (produção, repartição, distribuição). Eles fazem <strong>de</strong>s<strong>de</strong>então parte das riquezas e por conseqüência relevam da economia política. É ainda a economiapolítica clássica? As novas penúrias não são homologas às antigas rarida<strong>de</strong>s, notadamente porque arelação ao espaço mu<strong>do</strong>u. Elas se situam no espaço inteiro, cada vez mais fortemente; nesse espaço,on<strong>de</strong> <strong>de</strong> início se inseriu a produção industrial <strong>de</strong> caráter pontual, mas que em seguida ocuparaminteiramente a extensão <strong>do</strong> capitalismo e a reprodução das relações <strong>de</strong> produção, sobrevém umaexigência nova, aquela da produção ou reprodução <strong>do</strong>s materiais elementares (matérias primas,energias). Que vai se passar? A exigência nova terá um papel estimulante para o capitalismo, ou umpapel <strong>de</strong>sintegra<strong>do</strong>r a termo mais ou menos distante?690) O espaço, toma<strong>do</strong> como espaço geométrico ou geográfico, po<strong>de</strong>-se falar <strong>de</strong> sua rarida<strong>de</strong>? Não.As disponibilida<strong>de</strong>s, os espaços vacantes permanecem imensos; e se a falta relativa <strong>de</strong> espaçomarcou certas socieda<strong>de</strong>s (na Ásia, notadamente), outras socieda<strong>de</strong>s ao contrário portam as marcasinversas da imensidão entregue a sua expansão <strong>de</strong>mográfica e técnica (na América). O espaçonaturezase abre ainda <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s; as técnicas permitem “construir” on<strong>de</strong> se quiser e o que sequiser, no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mares como nos <strong>de</strong>sertos e sobre as montanhas, se preciso nos espaçosinterplanetários.691) A penúria <strong>de</strong> espaço tem um caráter sócio-econômico bem <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>; ela não se observa e não semanifesta senão em áreas <strong>de</strong>terminadas: na vizinhança <strong>do</strong>s centros. Estes se mantêm nascentralida<strong>de</strong>s constituídas, as cida<strong>de</strong>s antigas, ou se estabelecem fora <strong>de</strong>las, nas cida<strong>de</strong>s novas.692) A questão da centralida<strong>de</strong> em geral, da centralida<strong>de</strong> urbana em particular, não é das mais fáceis.Ela atravessa <strong>de</strong> parte em parte a problemática <strong>do</strong> espaço. Ela não concerne somente o espaço socialmas também o espaço mental; ela os religa <strong>de</strong> uma maneira que supera as antigas distinções, cisões eseparações filosóficas, entre o sujeito e o objeto, entre o intelectual e o material, (o inteligível e osensível). Não sem introduzir novas distinções e diferenças. A centralida<strong>de</strong> tem um fundamentomatemático, na análise <strong>do</strong> espaço abstrato. Não importa qual “ponto” é um ponto <strong>de</strong> acumulação: aore<strong>do</strong>r <strong>de</strong>le, há uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pontos. Sem o que a continuida<strong>de</strong> <strong>do</strong> espaço não seria assegurada.Simultaneamente, ao re<strong>do</strong>r <strong>de</strong> cada ponto po<strong>de</strong> se <strong>de</strong>screver e se analisar uma superfície (quadrada<strong>de</strong> preferência) assim como a variação <strong>de</strong>ssa superfície resultante <strong>de</strong> uma mudança infinitesimal <strong>de</strong>sua distância ao ponto central (o ds_). De mo<strong>do</strong> que cada centro po<strong>de</strong> se conceber duplamente: cheioe vazio, infinito e finito.693) Para colocar a questão e tentar resolvê-la, o recurso se impõe a um méto<strong>do</strong> dialético. Esseméto<strong>do</strong>, não é mais aquele <strong>de</strong> Hegel nem aquele <strong>de</strong> Marx, que se fundava sobre uma análise <strong>do</strong>258


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006tempo histórico e da temporalida<strong>de</strong>. Se é necessário aceitar a idéia <strong>de</strong> uma centralida<strong>de</strong> dialética ou<strong>de</strong> uma dialética da centralida<strong>de</strong>, é porque há uma conexão entre o espaço e a dialética; dito <strong>de</strong> outromo<strong>do</strong> há contradições <strong>do</strong> espaço que implicam-explicam contradições no tempo histórico, mas nãose reduzem a essas contradições. Inversamente, se a noção <strong>de</strong> contradição (<strong>de</strong> conflito atual) sedistingue da temporalida<strong>de</strong> e da historicida<strong>de</strong>, se ela se esten<strong>de</strong> ao espaço, po<strong>de</strong> haver aí movimentodialético da centralida<strong>de</strong>. Esse movimento <strong>de</strong>senvolve os traços lógicos <strong>do</strong>s centros (pontuais).694) Em que consiste esse movimento? Primeiramente, a centralida<strong>de</strong> (mental e social) se <strong>de</strong>fine pelai<strong>de</strong>ntificação e pelo encontro daquilo que coexiste em um espaço. Que é que coexiste então? Tu<strong>do</strong> oque po<strong>de</strong> se nomear e se numerar. A centralida<strong>de</strong> é então uma forma, nela mesma vazia, mas quechama um conteú<strong>do</strong>; objetos, seres naturais ou artificiais, coisas, produtos e obras, signos e símbolos,pessoas, atos, situações, relações práticas. O que a aproxima da forma lógica. De sorte que há umalógica da centralida<strong>de</strong>. A forma implica a simultaneida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>la resulta: simultaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “tu<strong>do</strong>”aquilo que po<strong>de</strong> se reunir – e por conseqüência se acumular – num ato <strong>de</strong> pensamento ou num atosocial, em um ponto ou nos arre<strong>do</strong>res <strong>de</strong>sse ponto. O conceito geral <strong>de</strong> centralida<strong>de</strong> religa o pontualao global. Na orientação <strong>do</strong> pensamento mo<strong>de</strong>rno tomada por Nietzsche e <strong>de</strong>pois retomada pordiversos teóricos (<strong>do</strong>s quais G. Bataille) o centro, o núcleo, é o lugar <strong>do</strong> sacrifício, da explosão dasenergias acumuladas e <strong>de</strong>sejan<strong>do</strong> sua <strong>de</strong>spesa. Cada época, cada mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção, cada socieda<strong>de</strong>particular engendrou (produziu) sua centralida<strong>de</strong>: centro religioso, político, comercial, cultural,industrial, etc. Em cada caso, a relação entre a centralida<strong>de</strong> mental e a centralida<strong>de</strong> social resta a<strong>de</strong>finir. E também as condições <strong>do</strong> fim: estilhaçamento, explosão, dilaceração.695) A centralida<strong>de</strong> se <strong>de</strong>sloca. Sabia-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito tempo e trabalhos recentes (J. P. Vernant) oconfirmaram e <strong>de</strong>senvolveram, que a centralida<strong>de</strong> nas cida<strong>de</strong>s gregas se <strong>de</strong>slocou constantemente: daárea em forma <strong>de</strong> semicírculo on<strong>de</strong> chefes e guerreiros discutiam suas expedições e repartiam obutim, no templo da cida<strong>de</strong> – <strong>do</strong> templo à agora, lugar <strong>de</strong> reunião política (<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> comércio, compórticos e galerias adjacentes). O que implicava uma relação complexa entre espaço urbano e ostempos (ritmos) da vida urbana. O mesmo numa gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, e se po<strong>de</strong>ria resumir emalgumas linhas os <strong>de</strong>slocamentos da centralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris, ao curso <strong>do</strong> século XIX e <strong>do</strong> século XX:os Bulevares, Montmartre, Montparnasse, os Champs-Élysées, etc.696) Que há <strong>de</strong> novo a este propósito na socieda<strong>de</strong> contemporânea? Isto: a centralida<strong>de</strong> se quer total.Por essa razão, ela preten<strong>de</strong> (implicitamente ou não) <strong>de</strong>finir uma racionalida<strong>de</strong> superior, política –estatista, “urbana”. O que tentam em seguida justificar as pessoas da tecnoestrutura, osplanifica<strong>do</strong>res. Eles <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nham da dialética; essa centralida<strong>de</strong> expulsa, com uma violência inerenteao espaço ele mesmo, elementos periféricos. A centralida<strong>de</strong>, ou melhor, a centralização, quer-se e sefaz “totalizante” sem outra filosofia que uma estratégia, consciente ou não. Malgra<strong>do</strong> as tendências259


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006adversas, umas subversivas, outras toleradas (sob nomes diversos: afrouxamento, flexibilização), ocentro con<strong>de</strong>nsa riquezas, meios <strong>de</strong> ações, conhecimentos informações, a “cultura”. Tu<strong>do</strong>. A essascapacida<strong>de</strong>s e po<strong>de</strong>res, ele superpõe o po<strong>de</strong>r supremo, a concentração <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res: a Decisão. Osistema <strong>de</strong>cisional se diz (abusivamente) racional.697) As centralida<strong>de</strong>s, ao longo da história, sempre <strong>de</strong>sapareceram: por <strong>de</strong>slocamento, porestilhaçamento, por subversão. Elas pereceram seja por seus excessos, saturadas – seja por seus<strong>de</strong>feitos, <strong>do</strong>s quais o principal, aquele <strong>de</strong> expulsar os refratários, que se voltam contra elas. Qualquer<strong>de</strong>sses processos não impe<strong>de</strong> o outro: a Roma antiga conheceu a saturação e o assalto das periferias.698) O movimento “centralida<strong>de</strong>-periferia” é então altamente complexo. Ele põe em jogo a lógica e adialética na sua dupla <strong>de</strong>terminação. Se se parte da lógica (formal ou aplicada) se ten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>scartar adialética. Todavia, não se consegue jamais eliminar as contradições. Se se parte da dialética, dateoria das contradições, subestima-se a lógica, a coerência e a coesão. Elas não se <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong>scartar.A centralida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> dar lugar a uma lógica aplicada (estratégia), mas ela po<strong>de</strong> também explodir comperda <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.699) A centralida<strong>de</strong> e seu movimento dialético têm lugar aqui <strong>de</strong> início no que concerne à rarida<strong>de</strong> <strong>do</strong>espaço. A tendência a constituir “centros <strong>de</strong>cisionais” que reúnem sobre um território restringin<strong>do</strong> oselementos constitutivos da socieda<strong>de</strong>, então utilizáveis pelo e para o po<strong>de</strong>r, essa tendência conserva ararida<strong>de</strong> <strong>do</strong> espaço sobre o território consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>, aos arre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> ponto central. A penúria <strong>do</strong>espaço tem traços originais e novos em relação a outras penúrias, antigas ou recentes.Espontaneida<strong>de</strong> enquanto resulta <strong>de</strong> um processo histórico, ela é conservada, frequentemente<strong>de</strong>liberada e organizada pelas <strong>de</strong>cisões centrais. Ela introduz uma contradição entre a abundânciapassada ou possível, e a rarida<strong>de</strong> efetiva. Esta contradição não é exterior às relações <strong>de</strong> produçãoincorporadas no espaço inteiro, ainda menos à sua reprodução, pois os centros <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão têm porfinalida<strong>de</strong> expressa as manter; ao mesmo tempo, é uma contradição <strong>do</strong> espaço (e não somente noespaço, como as contradições clássicas engendradas pela história e pelo tempo histórico).Contradições e conflitos no espaço (provenientes <strong>do</strong> tempo) <strong>de</strong>sapareceram? Certamente não. Elesestão sempre aí, com as implicações, com as estratégias e táticas que suscitam, notadamente osconflitos <strong>de</strong> classe. As contradições <strong>do</strong> espaço os envolvem, supõem-nos, superpõem-se a eles, oslevam a um <strong>de</strong>grau superior e os reproduzem amplifican<strong>do</strong>-os. Após esse <strong>de</strong>slocamento, aconteceque as contradições novas atraem sobre si a atenção, <strong>de</strong>sviam o interesse e parecem aniquilar asantigas contradições, e mesmo as absorver. Isso não é senão uma aparência. Somente uma análisedialética permite <strong>de</strong>scobrir as relações exatas entre as contradições no espaço e as contradições <strong>do</strong>espaço: aquelas se atenuam, aquelas se acentuam. Igualmente, a produção das coisas no espaço não<strong>de</strong>sapareceu, nem as questões que ela põe (possessão <strong>do</strong>s meios <strong>de</strong> produção, gestão e controle da260


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006produção) diante da produção <strong>do</strong> espaço. Ao mesmo tempo, esta última inclui a produção <strong>do</strong>s“elementos”, envolve os amplian<strong>do</strong> os problemas provenientes da produção das coisas. Acon<strong>de</strong>nsação e a centralida<strong>de</strong> concentram também as contradições anteriores as agravan<strong>do</strong>,modifican<strong>do</strong>-as.700) O espaço é baliza<strong>do</strong>, explora<strong>do</strong>, conheci<strong>do</strong> e reconheci<strong>do</strong> a escalas colossais. Aumentam aspossibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ocupá-lo, <strong>de</strong> preenchê-lo, <strong>de</strong> povoá-lo, <strong>de</strong> transformá-lo <strong>de</strong> cabo a rabo: <strong>de</strong> produzirum certo espaço no qual a natureza não seria mais que a matéria prima pouco a pouco <strong>de</strong>struída pelastécnicas <strong>de</strong> produção. Mais e melhor: os conhecimentos e informações provenientes <strong>de</strong> lugarespróximos ou afasta<strong>do</strong>s, sabe-se agora reuni-los em um ponto, tratá-los; as informações e ainformática anulam as distâncias, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nham da materialida<strong>de</strong> esparsa no espaço (e no tempo). Ateoria da centralida<strong>de</strong> implica essa capacida<strong>de</strong> toda nova <strong>de</strong> concentração que outrora só possuía océrebro, sobretu<strong>do</strong> aquele <strong>do</strong>s homens <strong>de</strong> gênio. A centralida<strong>de</strong> mental e a centralida<strong>de</strong> social têmessa mediação que as reúne e cuja função essencial é esta sem dúvida: a informação (que nessaperspectiva não po<strong>de</strong> penetrar o conhecimento sem realizar a conexão <strong>do</strong> mental e <strong>do</strong> social). Ora, énesse momento mesmo que o espaço se fragmenta. Ele é artificialmente rarefeito ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong>scentros para “valer” mais caro, para a venda no ataca<strong>do</strong> e no varejo; ele é literalmente pulveriza<strong>do</strong>;ven<strong>de</strong>-se-o em “lotes”, em “parcelas”. É a esse título que ele se torna praticamente o meio dassegregações, da dispersão <strong>do</strong>s elementos da socieda<strong>de</strong> impeli<strong>do</strong>s rumo às periferias. Enfim, asciências parcelares o fragmentam e <strong>de</strong> início a economia política corrente, cada disciplinaconstituin<strong>do</strong> seu espaço próprio: mental e abstrato, laboriosamente confronta<strong>do</strong> com a prática social.A fragmentação se torna uma “disciplina” e o instrumento <strong>do</strong> saber passa já por saber. A unida<strong>de</strong>?Busca-se-a no curso <strong>de</strong> laboriosas montagens interdisciplinares ou pluridisciplinares, que nãochegam jamais a tirar proveito <strong>do</strong>s <strong>de</strong>stroços. O espírito analítico excele a manusear os instrumentos<strong>de</strong> fragmentação, o material talhante. A unida<strong>de</strong> não se reencontra jamais, as ciências parcelares nãopo<strong>de</strong>n<strong>do</strong> se recuperar senão ao preço e em termos <strong>de</strong> modificações na sua meto<strong>do</strong>logia, <strong>de</strong> suaepistemologia, <strong>de</strong> seus programas, <strong>de</strong> suas i<strong>de</strong>ologias.701) Nessas condições se <strong>de</strong>senrola um processo “econômico” que não releva mais da economiapolítica clássica e perturba os cálculos <strong>do</strong>s economistas. O “imobiliário” (com a “construção”) cessa<strong>de</strong> ser um circuito secundário, um ramo anexo e durante um longo tempo atrasa<strong>do</strong> <strong>do</strong> capitalismoindustrial e financeiro, para passar ao primeiro plano. Desigualmente: <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os países, osmomentos, a conjuntura. A lei <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> (crescimento e <strong>de</strong>senvolvimento) se mundializa oumelhor presi<strong>de</strong> à mundialização (o merca<strong>do</strong> mundial), longe <strong>de</strong> se <strong>de</strong>svalorizar.702) O imobiliário, no capitalismo, não teve durante um longo tempo senão uma importância menor.Não somente a terra e o solo a edificar pertenciam aos <strong>de</strong>stroços <strong>de</strong> uma classe histórica, mas esse261


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006ramo <strong>de</strong> produção era ocupa<strong>do</strong> por empresas artesanais. Ora, a situação <strong>de</strong> ramo e <strong>de</strong>sse setor mu<strong>do</strong>uum pouco por to<strong>do</strong> parte mas sobretu<strong>do</strong> nos gran<strong>de</strong>s países industriais. O capitalismo tomou posse<strong>do</strong> solo. Ele o mobilizou e esse setor ten<strong>de</strong> a se tornar central. Por quê? Porque setor novo entãomenos submisso aos entraves, saturações, dificulda<strong>de</strong>s diversas que freiam as antigas indústrias. Oscapitais se precipitam na produção <strong>do</strong> espaço, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> a produção <strong>de</strong> tipo clássico, aquela <strong>do</strong>smeios <strong>de</strong> produção (máquinas) ou <strong>do</strong>s bens <strong>de</strong> consumo. Esse processo se acelera ao menor indício<strong>de</strong> arqueamento nos setores “clássicos”. A fuga <strong>do</strong>s capitais em direção ao setor favoreci<strong>do</strong> po<strong>de</strong>quebrar os frágeis mecanismos auto-regula<strong>do</strong>res <strong>do</strong> capitalismo. Então o Esta<strong>do</strong> intervém. O que nãofaz <strong>de</strong>saparecer a produção <strong>do</strong> espaço como setor supon<strong>do</strong> os outros circuitos mas ten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a<strong>de</strong>slocar as ativida<strong>de</strong>s centrais <strong>do</strong> capitalismo <strong>de</strong> organização. Pois o espaço, e ele somente, permitea essa capacida<strong>de</strong> organizacional (limitada mas real) <strong>de</strong> se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>brar.703) Ocorre então que o “imobiliário” seja bastante secamente chama<strong>do</strong> à or<strong>de</strong>m. O “imobiliário”,produção e especulação mal discernível da “promoção”, oscila entre um papel subordina<strong>do</strong> <strong>de</strong>relance, <strong>de</strong> volante, <strong>de</strong> complemento, enfim <strong>de</strong> regulação, e uma função <strong>do</strong>minante. Ele entra assimna <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> geral (<strong>de</strong> crescimento), na setorialização (da economia como realida<strong>de</strong> global). Masele guarda uma função essencial: a luta contra a tendência à baixa das taxas <strong>de</strong> lucro médio. Aconstrução (privada ou pública) relatou e relata ainda, salvo casos excepcionais, lucros superiores àmédia. O investimento no “imobiliário”, quer dizer na produção <strong>do</strong> espaço, comporta ainda umaproporção superior <strong>de</strong> capital variável em relação ao capital constante. A composição orgânica <strong>do</strong>capital é ali baixa, malgra<strong>do</strong> os investimentos consi<strong>de</strong>ráveis e os progressos técnicos. As pequenas eas médias empresas são ainda numerosas; aterramentos e trabalhos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> monta ocupam umanumerosa mão-<strong>de</strong>-obra (notadamente <strong>de</strong> estrangeiros). Don<strong>de</strong> a formação <strong>de</strong> uma massa <strong>de</strong> maisvaliaque aumenta a massa geral, mas da qual uma parte retorna às empresas <strong>de</strong> construção, aospromotores, aos especula<strong>do</strong>res. Quanto às dificulda<strong>de</strong>s provenientes da <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> lentaobsolescência <strong>do</strong>s produtos, o que ten<strong>de</strong> a acarretar um abrandamento da rotação <strong>do</strong> capital,combate-se-as por procedimentos bem diversos. A mobilização <strong>do</strong> espaço se torna frenética, ecompele até a auto<strong>de</strong>struição <strong>do</strong>s espaços, antigos e novos. O investimento e a especulação nãopo<strong>de</strong>m parar, mesmo abrandar: círculo, ciclo infernal.704) A estratégia <strong>do</strong> espaço, mesmo fora <strong>do</strong>s projetos militares e políticos, se revela cheia <strong>de</strong> riscos.Ela <strong>de</strong>strói o advir em benefício <strong>de</strong> interesses imediatos e o presente em nome <strong>de</strong> um advirprograma<strong>do</strong> e todavia incerto.705) A mobilização <strong>do</strong> espaço para permitir sua produção possui exigências severas. Ela começa,sabe-se, pelo solo, que é necessário <strong>de</strong> início arrebatar à proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> tipo tradicional, àestabilida<strong>de</strong>, à transmissão patrimonial. Não sem dificulda<strong>de</strong>s e concessões aos proprietários (as262


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006rendas fundiárias). A mobilização se esten<strong>de</strong> em seguida ao espaço, subsolo e volumes acima <strong>do</strong>solo. O espaço inteiro <strong>de</strong>ve receber valor <strong>de</strong> troca. Ora a troca implica a permutabilida<strong>de</strong>. Atrocabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um bem faz <strong>de</strong>le uma merca<strong>do</strong>ria, análoga a uma quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> açúcar ou <strong>de</strong>carvão. Ela exige que ele seja comparável a outros bens e mesmo a to<strong>do</strong>s os bens <strong>do</strong> mesmo gênero.O “mun<strong>do</strong> da merca<strong>do</strong>ria”, com seus traços, se esten<strong>de</strong> das coisas e bens produzi<strong>do</strong>s no espaço e <strong>de</strong>seus circulação e fluxo, ao espaço inteiro, que toma assim a realida<strong>de</strong> autônoma (na aparência) dacoisa, <strong>do</strong> dinheiro.706) O valor <strong>de</strong> troca – Marx, <strong>de</strong>pois <strong>do</strong>s “clássicos” o mostrou para os produtos-coisas – se exprimeem dinheiro. Outrora, vendia-se, alugava-se uma terra. Hoje se compra e ven<strong>de</strong> (mais que se aluga)um volume: apartamento, alojamento, peças, andares, terraços, equipamentos diversos (piscina,quadras <strong>de</strong> tênis, estacionamento). Cada lugar trocável figura assim no enca<strong>de</strong>amento das operaçõesmercantis – oferta e <strong>de</strong>manda, formação <strong>de</strong> um preço (os preços conservan<strong>do</strong> um laço aliás elásticocom os “custos <strong>de</strong> produção”, quer dizer com o tempo médio <strong>de</strong> trabalho social necessário para aprodução). Aqui como alhures, diversas causas perturbam e complicam essa relação, notadamente aespeculação. A “verda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s preços” se esfuma; os preços se <strong>de</strong>stacam <strong>do</strong>s valores e custos <strong>de</strong>produção; os jogos das leis (aquela <strong>do</strong> valor, aquela da oferta e da <strong>de</strong>manda, ou, se se prefere, emtermos não marxistas, aquelas da <strong>de</strong>sejabilida<strong>de</strong> e das margens) são altera<strong>do</strong>s. A trapaça se torna umlei, uma regra <strong>do</strong> jogo, uma tática.707) A comparabilida<strong>de</strong> indispensável foi atingida pela produção <strong>de</strong> “células” mais ou menosidênticas. Esse fato, quem não o conhece? Espanta-se cada vez menos frente a isso. Parece “natural”então que ele permaneça pouco e mal explica<strong>do</strong> ao passo que sua aparência <strong>de</strong> “naturalida<strong>de</strong>” temprecisamente necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma explicação. O homogêneo triunfa. Passan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um alojamento aooutro, <strong>de</strong> uma “célula” a uma outra, tem-se a impressão <strong>de</strong> “retornar ao si”(palavras <strong>de</strong> um“usuário”). A teoria e a prática <strong>do</strong>s “módulos” permitiram repetir in<strong>de</strong>finidamente a célula tomadacomo “mo<strong>de</strong>lo”. O espaço é produzi<strong>do</strong> e reproduzi<strong>do</strong> enquanto reprodutível. A verticalida<strong>de</strong>, ain<strong>de</strong>pendência <strong>do</strong>s volumes em relação ao solo original e a suas particularida<strong>de</strong>s foram literalmenteproduzidas (Le Corbusier erigiu o volume construí<strong>do</strong> no abstrato, com os pilotis e pilares, separan<strong>do</strong>osda terra sob o pretexto <strong>de</strong> situar no ar e no sol). Ao mesmo tempo, mais exatamente, o volume setrata como uma superfície, como um empilhamento <strong>de</strong> “planos”, sem ter conta <strong>do</strong> tempo. O tempo<strong>de</strong>saparece nessa abstração erigida, verticalizada, visualizada? Não completamente. Todavia, as“necessida<strong>de</strong>s” – das quais muito se fala – <strong>de</strong>vem passar sob esse jugo ou melhor por esse filtro, oespaço. De fato e para falar a verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>le elas são os resulta<strong>do</strong>s e não as razões: os produtos aosegun<strong>do</strong> grau. A trocabilida<strong>de</strong> e seus constrangimentos batiza<strong>do</strong>s normas não atingem somente assuperfícies e os volumes, mas os percursos. O to<strong>do</strong> se justifica sobre os planos e <strong>de</strong>senhos por uma263


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006pretensa “síntese gráfica” <strong>do</strong> corpo e <strong>do</strong> gesto nos projetos <strong>de</strong>senha<strong>do</strong>s 189 . Familiares aos arquitetos eurbanistas, esses grafismos (planos, cortes, elevações, quadros visuais anima<strong>do</strong>s por silhuetas efigurinos, etc.) intervêm como redutores da realida<strong>de</strong> que eles preten<strong>de</strong>m representar, realida<strong>de</strong> quenão é aliás senão uma modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um “mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida” admiti<strong>do</strong>, quer dizer imposto, num habitat(pavilhão ou “gran<strong>de</strong> conjunto”). Mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida normal, quer dizer normaliza<strong>do</strong>. Ao mesmo tempo, areferência ao corpo (o Modulor), as figuras, a retórica publicitária, literalmente “naturalizam” oespaço assim produzi<strong>do</strong>, o quão fictício ele seja.708) Malgra<strong>do</strong> a objetivida<strong>de</strong> aparente <strong>do</strong>s projetos, e às vezes a boa vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong>s produtores <strong>do</strong>espaço, os volumes se tratam objetivamente <strong>de</strong> uma maneira que reconduz o espaço ao solo, a essesolo possuí<strong>do</strong> privativamente, <strong>do</strong> qual o espaço construí<strong>do</strong> não se <strong>de</strong>staca senão aparentemente. Aomesmo tempo, esse espaço é trata<strong>do</strong> como abstração vazia, geométrica e visual ao mesmo tempo.Esse laço (conexão real e <strong>de</strong>stacamento aparente), verda<strong>de</strong>iro nó gordiano, é uma prática e umai<strong>de</strong>ologia: uma i<strong>de</strong>ologia a qual os práticos não se dão conta e que eles concretizam em cada gesto.As pretensas soluções <strong>de</strong> organização impõem então à vida cotidiana os constrangimentos datrocabilida<strong>de</strong>, apresenta<strong>do</strong>s como exigências ao mesmo tempo naturais (normais) e técnicas,frequentemente como necessida<strong>de</strong>s morais (exigências da moralida<strong>de</strong> pública). O econômico,<strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong> por Marx como organização <strong>do</strong> ascetismo, reúne ainda e sempre uma or<strong>de</strong>m moral.Proprieda<strong>de</strong> “privada” acarreta vida privada: privação. O que implica a i<strong>de</strong>ologia repressiva naprática social e inversamente, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que elas se dissimulam uma à outra. A permutabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>sespaços não ocorre sem uma severa quantificação que se esten<strong>de</strong> bem entendi<strong>do</strong> aos arre<strong>do</strong>res <strong>do</strong>“habitat”, ao que se nomeia: ambiente, espaços intermediários, percursos, equipamentos. Asparticularida<strong>de</strong>s ditas naturais <strong>de</strong>saparecem nessa homogeneização: os sítios, mas também os corpos,aqueles <strong>do</strong>s “usuários”. A quantificação é em aparência técnica, em realida<strong>de</strong> financeira, em verda<strong>de</strong>moral.709) O valor <strong>de</strong> uso <strong>de</strong>saparece? Essa homogeneização <strong>do</strong>s fragmentos dispersos <strong>do</strong> espaço, suapermutabilida<strong>de</strong> comercial, acarreta uma priorida<strong>de</strong> absoluta da troca e <strong>do</strong> valor <strong>de</strong> troca? Quanto aesta, Definir-se-ia pelos signos <strong>do</strong> prestígio e <strong>do</strong> “standing”, diferenças internas ao sistema,regulamentadas pela relação <strong>do</strong> lugar aos centros, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que a troca <strong>do</strong>s signos absorveria o valor<strong>de</strong> uso e sobreclassificaria as consi<strong>de</strong>rações práticas provenientes da produção, <strong>do</strong>s custos <strong>de</strong>produção?710) Não. O adquiri<strong>do</strong>r <strong>de</strong> espaço continua a comprar um valor <strong>de</strong> uso. Qual? Ele não comprasomente um volume habitável, comutável com outros, semiologicamente marca<strong>do</strong> pelo discurso189 Cf. A. <strong>de</strong> Villanova, in Espaces et Sociétés, nº 3, p. 238.264


LEFEBVRE, Henri. A produção <strong>do</strong> espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (<strong>do</strong> original: La production <strong>de</strong> l’espace. 4 e éd. Paris: ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira versão: início - fev.2006publicitário e pelos signos <strong>de</strong> uma certa “distinção”. O adquiri<strong>do</strong>r é toma<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma certa distinção,aquela que religa sua habitação a lugares, os centros <strong>de</strong> comércio, <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> lazeres, <strong>de</strong> cultura,<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão. Aqui, o tempo entra em cena; ainda que o espaço ao mesmo tempo programa<strong>do</strong> edividi<strong>do</strong> ten<strong>de</strong> a eliminá-lo como tal. Certamente, acontece que se (o arquiteto, o “promotor” oumesmo o usuário) compensa com signos, aqueles <strong>do</strong> prestígio, ou da felicida<strong>de</strong>, ou <strong>do</strong> “estilo <strong>de</strong>vida”, as <strong>de</strong>svantagens <strong>de</strong> um lugar. Esses signos se compram e se ven<strong>de</strong>m em que pese suaabstração, sua concreta insignificância e sua sobresignificância (pois eles clamam seu senti<strong>do</strong> acompensação). Seu preço não faz senão se reunir ao valor <strong>de</strong> troca real. Compra-se um emprego <strong>do</strong>tempo e esse emprego <strong>do</strong> tempo constitui o valor <strong>de</strong> uso <strong>de</strong> um espaço. O emprego <strong>do</strong> tempocomporta aprovações e <strong>de</strong>saprovações, perdas ou economias <strong>de</strong> tempo, então outra coisa que signos:uma prática. O consumo <strong>do</strong> espaço se dá <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>s específicos. Ele difere <strong>do</strong> consumo das coisas noespaço, mas não se trata <strong>de</strong> uma simples diferença <strong>de</strong> signos e significações. O espaço envolve otempo. Cin<strong>de</strong>-se-o: <strong>de</strong>scarta-se o tempo; este não se <strong>de</strong>ixa reduzir. Através <strong>do</strong> espaço, um temposocial se produz e reproduz; mas esse tempo social se reintroduz com seus traços e <strong>de</strong>terminações:repetições, ritmos, ciclos, ativida<strong>de</strong>s. A tentativa para conceber o espaço separadamente traduz umacontradição suplementar, o esforço para fazer entrar forçadamente o tempo no espaço e governar otempo a partir <strong>do</strong> espaço, esse tempo reduzi<strong>do</strong> a um emprego prescrito e a interditos265

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