entífica e revoltante a exploração que desta raça fizeram os interessesescravistas.Estava em questão para Nina Rodrigues, o futuro e a definição <strong>do</strong><strong>brasileiro</strong> como povo, a proteção de imagens ideais de uma nação brasileira,a assegurar seu lugar <strong>no</strong> concerto das nações modernas, promissoras,pujantes. Logo, a presença massiva de <strong>negro</strong>s livres <strong>no</strong>s centros urba<strong>no</strong>s,especialmente na Bahia, “onde todas as classes estão aptas a se tornaremnegras”, era um tema de magnitude. Acompanhan<strong>do</strong> Silvio Romero, Ninaacreditava que, mais <strong>do</strong> que “peça econômica”, se tornava dever da <strong>intelectual</strong>idade<strong>no</strong> Brasil atentar para o valor <strong>do</strong> <strong>negro</strong> como “objeto de ciência”.Conhecê-lo cientificamente, e de imediato moral e mentalmente, erareconhecer “<strong>no</strong>ssos limites inferiores mais baixos”, <strong>do</strong>minar a possibilidadede compensação diante das nações e povos brancos.Os <strong>negro</strong>s que de certa forma entraram na sociedade civil com aabolição, se tornam o grande horror que Nina Rodrigues denunciariasem tréguas: a possibilidade da alteração, da transformação<strong>do</strong> branco em outro. As pesquisas de Nina são empreendidasentão na tentativa de demonstrar essa alteração, já realizada,fosse <strong>no</strong> catolicismo pelas religiões negras, fosse nas descendênciasmestiças, ‘degeneradas’ pela presença <strong>do</strong> sangue <strong>negro</strong>.Ele concentrou então na figura <strong>do</strong> mestiço todas as possibilidadesnegativas desta invasão interior. Essa preocupação, não seesgotou na enumeração de falhas biológicas vistas como o resulta<strong>do</strong>inevitável de cruzamentos desiguais, mas se expressoutambém na denúncia <strong>do</strong> perigo virtual <strong>do</strong> sangue <strong>negro</strong> contaminarculturalmente as outras categorias sociais. 13Indiretamente, ao estabelecer <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s incompatíveis, um africa<strong>no</strong>bárbaro, outro branco europeu civiliza<strong>do</strong> e um terceiro mestiçomanipulável e degenera<strong>do</strong>, Nina Rodrigues ofereceu a pista para a <strong>legitimação</strong>ideológica <strong>do</strong> Brasil culturalmente sincrético, racialmentemiscigena<strong>do</strong> e segregacionista. Em Africa<strong>no</strong>s <strong>no</strong> Brasil, por exemplo,o <strong>negro</strong> não existe em si mesmo, ele é um objeto de transparência supostamentecientífica cujos valores, moral e visão de mun<strong>do</strong>, estão lá13Corrêa, As Ilusões da Liberdade, pp. 168-169.288 Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312
porque o próprio pesquisa<strong>do</strong>r os colocou. Negros específicos, eram, emseu gabinete de trabalho, fontes cooptadas, anônimas e passivas.Um outro caso <strong>no</strong>tável da presença negra ainda como objeto, é olivro A Cidade das mulheres, de Ruth Landes, antropóloga <strong>no</strong>rte-americanaque chegou à Bahia em 1938, enviada pelo Departamento deAntropologia da Universidade de Columbia para estudar “a gente <strong>do</strong>can<strong>do</strong>mblé” e o modelo racial <strong>brasileiro</strong>. Normalmente, os autores usamo trabalho de Ruth Landes para referendar suas críticas contra “o idealismode África”, “a pureza nagô” ou o tabu “da presença destacada <strong>do</strong>homossexualismo <strong>no</strong> Can<strong>do</strong>mblé”. 14 Assim é que Peter Fry, ao mesmotempo em que enfatiza o desgosto da autora pela presença <strong>do</strong>s homossexuaismasculi<strong>no</strong>s, ou a sua corroboração da opinião de que os homossexuaismasculi<strong>no</strong>s traem a “tradição” e a seriedade <strong>do</strong> culto das grandesmães de santo, destaca a ousadia de Landes em tocar num tematabu, levantar uma polêmica sobre a regularidade da presença de homossexuais<strong>no</strong>s cultos afro-<strong>brasileiro</strong>s e suscitar um debate sobre osrecortes e contradições da “pureza nagô”. 15 Patrícia Birman, por suavez, afirma que, na polêmica levantada por Landes, chamava a atençãoo fato de que a crítica à autora ter se apresenta<strong>do</strong> como uma “defesa”<strong>do</strong> culto, como se o mesmo sofresse um ataque à sua legitimidade pelapresença de homossexuais ou como se houvesse uma tentativa deestigmatização <strong>do</strong>s já tão sofri<strong>do</strong>s <strong>negro</strong>s. Afirma Patrícia Birman queArthur Ramos, Roger Bastide ou Melville Herskovits reagiram, certosde que Landes pecava ao questionar a correspondência entre gênero esexo biológico. Isto porque Ruth Landes afirmava a presença <strong>no</strong> Can<strong>do</strong>mbléde um papel femini<strong>no</strong> disponível, que poderia ser assumi<strong>do</strong> porhomens desde que estes, homens <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> biológico, socialmente, fossemidentifica<strong>do</strong>s como mulheres. 16 Deste mo<strong>do</strong>, Ruth Landes não só14Peter Fry, “Homossexualidade e Cultos Afro-Brasileiros”, in Peter Fry, Para Inglês Ver. Identidadee Política na Cultura Brasileira (Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982), pp. 54-85; BeatrizGóis Dantas, Vovó Nagô e Papai Branco. Usos e Abusos da África <strong>no</strong> Brasil, Rio de Janeiro,Graal, 1982; Patrícia Birman, Fazer Estilo Crian<strong>do</strong> Gêneros. Possessão e Diferenças de Gêneroem Terreiros de Umbanda e Can<strong>do</strong>mblé <strong>no</strong> Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Relume-Dumará/EdUERJ, 1995; Jocélio Teles <strong>do</strong>s Santos, O Do<strong>no</strong> da Terra. O Caboclo <strong>no</strong>s Can<strong>do</strong>mblésda Bahia, Salva<strong>do</strong>r, Sarah Letras, 1995.15Fry, “Homossexualidade e Cultos Afro-Brasileiros”, p. 61.16Birman, Fazer Estilo Crian<strong>do</strong> Gêneros, pp. 65-66.Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 289
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