cipada de si mesmo? Ele provém de um contexto sociocultural, defendeuma agenda político-cultural, observa os seus nativos, informa<strong>do</strong> porum background et<strong>no</strong>-racial. Sua consciência étnica lançada tantas vezesde fora para dentro, visibiliza, tanto quanto pode obscurecer, a realidade<strong>do</strong> seu campo de pesquisa e enunciação. 60O mito da democracia racial, que como mito funda<strong>do</strong>r da sociedadebrasileira não é verdade nem mentira, seduz também o <strong>intelectual</strong><strong>negro</strong> em sua vontade de comungar valores, construir solidariedade social,fazer ciência e se legitimar. 61 Entretanto, as verdades tácitas e ossilêncios desse mito, são um sintoma de sua fragilidade e risco de reversãoda realidade <strong>intelectual</strong> e empírica que inventa. Vivemos numa democraciaracial em que, segun<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> instituto de pesquisas Datafolha,89% <strong>do</strong>s <strong>brasileiro</strong>s concordam que a sociedade é racista, mas apenas10% se vêem como tal, e, “par<strong>do</strong>s” e “pretos”, experimentam a discriminaçãoe desigualdade racial. Lamentavelmente, da<strong>do</strong>s estatísticos dadécada de 1990 ainda são congruentes com as observações empíricasde Thales de Azeve<strong>do</strong>, da década de 50. O mito da democracia racial,ao tempo em que promete a anulação da cor/raça, <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> biológico ecultural, “dissimula a discriminação racial <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> sociológico. Comodiscriminar alguém que não existe? (...). Aqui se manifesta outra característica<strong>do</strong> mito da democracia racial brasileira: a invisibilidade da ‘massa<strong>do</strong>s <strong>negro</strong>-mestiços’. Essa invisibilidade nega a existência <strong>do</strong>s <strong>negro</strong>s, oque em última instância retira deles a humanidade e radicaliza a discriminaçãocontra os mesmos, porque é da essência <strong>do</strong> racismo adesumanização <strong>do</strong> oprimi<strong>do</strong> racialmente”. 62Mas, se o racismo desumaniza o oprimi<strong>do</strong> racialmente, por outrola<strong>do</strong>, o humaniza parcialmente, ao reconhecer sua dignidade circunstancial,ambígua, ao vê-lo como sujeito suspeito, inferior ao seu senhor,sempre fora de lugar. Lembro de uma passagem de A Cidade das mulheresquan<strong>do</strong> Ruth Landes alerta Édison Carneiro a evitar o sul <strong>do</strong>s61Jessé Souza, “Multiculturalismo, Racismo e Democracia. Por que Comparar Brasil e Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s”, in Jessé Souza (org.), Multiculturalismo e Racismo (Brasília, Ed. Paralelo XV, 1997),pp.23-35.62Dijaci Oliveira, Ricar<strong>do</strong> B. Lima e Sales A. <strong>do</strong>s Santos, “A cor <strong>do</strong> me<strong>do</strong>: o me<strong>do</strong> da cor”, inDijaci Oliveira, Ricar<strong>do</strong> B. Lima e Sales A. <strong>do</strong>s Santos (orgs.). A cor <strong>do</strong> me<strong>do</strong> (Brasília/Goiânia,Editora da UnB/Editora da UFG, 1998), pp. 37-60.63Landes, A Cidade das Mulheres, p. 18.306 Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312
Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s por causa de sua cor. Segun<strong>do</strong> Landes, o rosto de ÉdisonCarneiro se contorceu como se ela o tivesse chicotea<strong>do</strong> sobre os olhos.“Agoniada”, Ruth Landes pensou que um america<strong>no</strong> — branco, acrescento— não devia fazer tais coisas a um mulato aristocrata, erudito.63 Para mim, a contorção <strong>do</strong> rosto de Édison é o receio <strong>do</strong> <strong>intelectual</strong>fora de lugar de transformar uma “cicatriz (contorção) psicológica” emautovitimização. E por que evitamos a discussão sobre a “cicatriz psicológica”da identidade negra?Um <strong>intelectual</strong> deve evitar a vitimização, sob o risco de não sairde si mesmo e fragilizar sua argumentação científica. Para o <strong>intelectual</strong><strong>negro</strong>, evitar, o que é de fato um risco, torna-se muitas vezes esquecerque pertence a um segmento social que nunca foi alcança<strong>do</strong> por políticaspúblicas que atendessem e reparassem a histórica discriminaçãoque esse grupo racial sofre <strong>no</strong> Brasil. Esquecer que este segmento,expressivo na constituição <strong>do</strong> país, parece acreditar que só tem a perdercom o enfrentamento político e científico da questão racial, uma vez quea evocação da harmonia racial, <strong>do</strong> mínimo de tensão, o desprezo àproblematização coletiva de uma situação dramática, é uma solução queatende tanto aos interesses pessoais e imediatos <strong>do</strong>s brancos, racistas enão racistas, beneficia<strong>do</strong>s por uma determinada ordem racial, política,social e econômica que naturaliza, ou racializa, seus poderes e privilégios,quanto <strong>do</strong>s <strong>negro</strong>s, convenci<strong>do</strong>s de que o melhor é a busca por satisfaçãoindividual ou da pequena coletividade que pertence.No PPGAS da Universidade de Brasília, <strong>no</strong> a<strong>no</strong> de 1998, eu era oúnico <strong>do</strong>utoran<strong>do</strong> <strong>negro</strong> e, segun<strong>do</strong> informações extra-oficiais, o primeiroem toda a história <strong>do</strong> curso de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> e o primeiro também a ser reprova<strong>do</strong>numa disciplina obrigatória. Decidi ir para a UnB, apostan<strong>do</strong> napositividade <strong>do</strong> deslocamento espacial, temporal e de hierarquia social 64 ,<strong>no</strong> enriquecimento <strong>intelectual</strong> e huma<strong>no</strong> que um programa ti<strong>do</strong> como deexcelência, instala<strong>do</strong> numa cidade atípica e inóspita, poderia me oferecer.Negro, homossexual, baia<strong>no</strong>, egresso de outra área disciplinar, num<strong>meio</strong> conserva<strong>do</strong>r, tornei-me potencial vítima e agente desestabiliza<strong>do</strong>rde uma estrutura social cujo curso regular das <strong>no</strong>rmas, desconhecia.64Claude Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 307
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