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A proteção do meio ambiente na Declaração Universal sobre ...

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22Revista Brasileira de BioéticaThe Declaration about Bioethics takes, as a reference, the ethical issues bythe biotechnologies advances and its perspective is the human rights. The<strong>do</strong>cument emphasizes the inter-relation between human beings and otherforms of life, the appropriate use of the <strong>na</strong>tural resources and the human rolein the protection of the environment, biosphere and biodiversity.Key w ords: Modernity. Ecology. Environment. Health. Bioethics.Os problemas ecológicos avolumam-se, ameaçan<strong>do</strong> o Sistema Terra.Buracos <strong>na</strong> camada de ozônio, aumento gradativo da temperatura,desgelamento das calotas polares, mutações climáticas, desertificaçãode imensas regiões, desaparecimento crescente de espécies vegetaise animais são alguns <strong>do</strong>s problemas que ameaçam a biosfera.Cresce em contrapartida a consciência e a sensibilidade ecológica.Florescem Organizações Não-G over<strong>na</strong>mentais (ONG ) que lutampela ecologia. Criam-se fun<strong>do</strong>s para a preservação de ecossistemas epara a proteção de espécies ameaçadas de extinção. Surgem parquesde preservação e proteção ambiental. A preocupação ecológicarecebe embasamento jurídico por <strong>meio</strong> de leis em defesa <strong>do</strong> <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong>.Os governos são pressio<strong>na</strong><strong>do</strong>s a assumir políticas ecológicasque englobem o fator <strong>na</strong>tureza em seus planejamentos. Por isso, aDeclaração <strong>Universal</strong> <strong>sobre</strong> Bioética e Direitos Humanos da UNESCOnão podia deixar de incluir uma clara referência <strong>sobre</strong> a proteção ao<strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong>, biosfera e biodiversidade.Os problemas ecológicos não dependem de uma simples soluçãotécnica, reclamam uma resposta ética. Requerem uma mudança deparadigma <strong>na</strong> vida pessoal, <strong>na</strong> convivência social, <strong>na</strong> produção debens de consumo e, principalmente, no relacio<strong>na</strong>mento com a <strong>na</strong>tureza.Exigem a necessidade de uma mudança de rota <strong>na</strong> organizaçãoeconômico-industrial e político-social da sociedade;de uma conversãodas atitudes de consumo e de relacio<strong>na</strong>mento com o <strong>ambiente</strong> <strong>na</strong>turale social. Trata-se, no fun<strong>do</strong>, de uma transformação de mentalidade ede visão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A preocupação ecológica não traz ape<strong>na</strong>s novosproblemas que exigem solução, ela introduz um novo paradigma civilizatório.A ecologia levanta críticas radicais à racio<strong>na</strong>lidade moder<strong>na</strong>e ao sistema econômico capitalista. Por isso, é necessário abrirum horizonte mais amplo de compreensão crítica das dinâmicas cul-22


23Volume 2 -número 1 -2006turais que movem a sociedade atual para entender a preocupaçãoecológica da Declaração e tentar situá-la <strong>na</strong> tradição <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentosinter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is que falam da proteção <strong>do</strong> <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong>.O paradigma sociocultural da modernidadeA modernidade caracteriza-se, antes de tu<strong>do</strong>, pelo enfraquecimento<strong>do</strong>s laços comunitários e pelo surgimento <strong>do</strong> indivíduo. Nas sociedadestradicio<strong>na</strong>is, a identidade <strong>do</strong> ser humano era dada pela comunidade.Ele não tinha representação fora <strong>do</strong> seu grupo;os laçoscomunitários é que o constituíam como sujeito. O enfraquecimentodessa dependência, facilitada pelos poderes que a modernidade foicolocan<strong>do</strong> <strong>na</strong>s mãos <strong>do</strong> sujeito, possibilitou a emergência <strong>do</strong> indivíduoautônomo. O indivíduo moderno caracteriza-se por aquilo que o diferencia<strong>do</strong>s demais e não por aquilo que o identifica com o seu grupo.O individualismo, como di<strong>na</strong>mismo cultural de independência eautonomia, incentivou a busca da origi<strong>na</strong>lidade <strong>do</strong> sujeito e valorizouo ideal da autenticidade de cada um. Cada indivíduo é convida<strong>do</strong> aser origi<strong>na</strong>l e autêntico <strong>na</strong> sua expressão. Ser indivíduo identifica-secom ser autônomo.A autonomia é a força propulsora <strong>do</strong> individualismo cultural. Aconsciência de ser indivíduo autônomo possibilitou a emergência daconsciência <strong>do</strong>s direitos humanos e da dignidade de cada ser humano.Cada indivíduo é digno em sua origi<strong>na</strong>lidade, porque tem a tarefa dese autoconstituir como sujeito pelo exercício da sua existência. Assim,o individualismo cultural moderno está basea<strong>do</strong> em três categoriasfundamentais: a autonomia da consciência, a origi<strong>na</strong>lidade singular<strong>do</strong> indivíduo e a dignidade huma<strong>na</strong> de cada pessoa.A segunda característica da modernidade é o crescente desencantamento<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> pelo esvaziamento da <strong>na</strong>tureza de to<strong>do</strong> animismoe a sua <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ção em benefício <strong>do</strong>s seres humanos, possibilita<strong>do</strong>pelo surgimento da razão instrumental, matriz da ciência moder<strong>na</strong>e da sua aplicação técnica. Essa razão desconsidera a esfera teleológica,preocupada com fins que transcendem o imediato, típica davisão tradicio<strong>na</strong>l, e reduz tu<strong>do</strong> a <strong>meio</strong> e instrumento para satisfazero bem-estar humano. Esse desenvolvimento da ciência e da técnicapossibilitou a superação <strong>do</strong>s determinismos da <strong>na</strong>tureza e da socie-23


24Revista Brasileira de Bioéticadade, trazen<strong>do</strong> benefícios e independência para a humanidade, basepara o desenvolvimento da autonomia.A dinâmica cultural <strong>do</strong> individualismo, inspira<strong>do</strong>r da autonomia <strong>do</strong>sujeito, e o progresso científico e tecnológico, produtor de benefícios ebem-estar para a humanidade, colocaram as bases para o surgimentode uma sociedade democrática fundamentada no Esta<strong>do</strong> e no Merca<strong>do</strong>.Esta é a terceira característica da modernidade, possibilitada pelagradativa superação <strong>do</strong> sistema da dádiva que movia a sociabilidadedas culturas pré-moder<strong>na</strong>s. As relações sociais baseadas <strong>na</strong> confiançae no compromisso comunitário foram substituídas pelas relaçõesformais atravessadas pela moeda (merca<strong>do</strong>) ou pelo sistema jurídico(Esta<strong>do</strong>). Essa substituição tornou possível o surgimento <strong>do</strong> regimedemocrático. A democracia manifesta-se <strong>na</strong> tolerância a opiniõesmorais e religiosas, <strong>na</strong> aceitação de posicio<strong>na</strong>mentos políticos diferentes,no respeito pela diversidade cultural, <strong>na</strong> defesa <strong>do</strong> estatutodas minorias. A criação <strong>do</strong>s mecanismos políticos que facilitam oexercício da democracia é uma das grandes conquistas <strong>do</strong>s temposmodernos.Os três valores da modernidade – o individualismo impulsio<strong>na</strong><strong>do</strong>pela autonomia, o progresso científico-técnico possibilita<strong>do</strong> pelaracio<strong>na</strong>lidade instrumental e a sociedade democrática baseada noMerca<strong>do</strong> e no Esta<strong>do</strong> - provocam maior mal-estar, causa<strong>do</strong> pelas patologiassocioculturais que engendram (1). A crítica de pensa<strong>do</strong>res pósmodernosao paradigma da modernidade é um si<strong>na</strong>l desse mal-estar.O individualismo desembocou numa cultura <strong>na</strong>rcisista queesvazia a própria autonomia, transforman<strong>do</strong> a busca de origi<strong>na</strong>lidadee de autenticidade em autocomplacência. Narcisista não é o egoísta,mas aquele que perdeu sua identidade. Essa fragmentação <strong>do</strong> “eu”acontece pela falta de um princípio interior de unificação que produzum vazio de senti<strong>do</strong>, impossibilitan<strong>do</strong> a autonomia da consciência. Oindividualismo, incentiva<strong>do</strong>r <strong>do</strong> surgimento de um sujeito autônomo,termi<strong>na</strong> produzin<strong>do</strong> um sujeito <strong>na</strong>rcisista, sem identidade, à mercêdas emoções <strong>do</strong> momento e, portanto, manipulável. Esse é o preço deuma compreensão não relacio<strong>na</strong>l da autonomia que reduz a liberdadeà pura independência.A racio<strong>na</strong>lidade instrumental fragmentou a realidade para poder<strong>do</strong>miná-la. Perdeu a visão sistêmica <strong>do</strong> to<strong>do</strong>, produzin<strong>do</strong> desastres24


25Volume 2 -número 1 -2006ambientais e sociais. O desenvolvimento da ciência e da técnicafoi motiva<strong>do</strong> pelos benefícios que traria para a humanidade, masseus resulta<strong>do</strong>s tor<strong>na</strong>ram-se também uma ameaça para ela. Essedesvirtuamento provém <strong>do</strong> paradigma de ciência que se impôs,caracteriza<strong>do</strong> por uma razão fragmentada que perdeu a visão holística<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. O paradigma científico não consegue captar acomplexidade da realidade e a interdependência <strong>do</strong>s seus elementosconstitutivos, crian<strong>do</strong> uma compreensão distorcida que leva à tomadade decisões e a práticas desestrutura<strong>do</strong>ras e nocivas. O paradigmada ecologia surgiu como crítica e, ao mesmo tempo, alter<strong>na</strong>tiva paraessa visão redutora <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>;procura entender a realidade comouma rede interdependente de relações que se realimentam e retroagem.Compreende o mun<strong>do</strong> como processos auto-organiza<strong>do</strong>s einterconexos caracteriza<strong>do</strong>s pela parceria, flexibilidade, reciclagem ediversidade (2).O anseio por democracia ficou reduzi<strong>do</strong> à sua versão formal. Aparticipação democrática limita-se, praticamente, aos momentos daseleições. A sociedade técnico-industrial exerce um despotismo sutil einvisível por <strong>meio</strong> <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> onipresente que coisifica as relaçõese reduz tu<strong>do</strong> à merca<strong>do</strong>ria e ao esta<strong>do</strong> tutelar que se expressa noaparato burocrático de poder. Os indivíduos acham que vivem numademocracia porque têm liberdade de consumir produtos e participarde atos de protesto, ter iniciativas livres e expressar suas opiniões.Mas, se formos a<strong>na</strong>lisar em maior profundidade essa sensação, ela éuma ficção de democracia, porque a sociedade está mais fragmentada,levan<strong>do</strong> a uma crescente incapacidade de formular e levar a caboobjetivos comuns. A fragmentação aparece quan<strong>do</strong> as pessoas seconsideram mais atomizadas e menos ligadas aos seus concidadãosem projetos e lealdades comuns. Podem até sentir-se ligadas a projetoscomuns, mas estes são sempre agrupamentos parciais corporativos,reuni<strong>do</strong>s por interesses; não à sociedade em seu conjunto. Nessasituação de atomização e fragmentação, a democracia social tor<strong>na</strong>-seuma ficção, porque ela se reduz às batalhas judiciais para defenderdireitos e interesses de grupos determi<strong>na</strong><strong>do</strong>s, mas não os interessesde toda a sociedade.A<strong>na</strong>lisan<strong>do</strong> o mal-estar em relação às três características <strong>do</strong> paradigmada modernidade - individualismo/autonomia, razão instrumen-25


26Revista Brasileira de Bioéticatal/ciência-técnica e sociedade técnico-industrial/democracia - ficaclaro que as patologias são frutos de um esquecimento da interdependênciaou interconexão <strong>do</strong>s elementos que formam a realidade,isto é, falta interpretar a <strong>na</strong>tureza e a sociedade como uma rede derelações que se realimentam e se exigem mutuamente. Portanto, atendência de atomizar e fragmentar, presente <strong>na</strong> expressão cultural<strong>do</strong> individualismo atual, no modelo <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>nte de ciência e técnicae <strong>na</strong> organização política da sociedade técnico-industrial, é a causada crise e <strong>do</strong>s impasses que vivemos nos dias atuais. O paradigmaecológico é uma resposta a essa crise, porque tenta repen-sar arealidade, especificamente a <strong>na</strong>tureza, como um sistema de rela-çõese dependências mútuas.O paradigma ecológicoA crise ecológica não significa ape<strong>na</strong>s o surgimento de problemasambientais exigin<strong>do</strong> resposta, mas a emergência da necessidadede um novo paradigma de percepção <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e, em especial, da<strong>na</strong>tureza. A solução não está em mudanças que ape<strong>na</strong>s procuramobviar as conseqüências funestas <strong>do</strong> uso de uma técnica invasora<strong>do</strong>s equilíbrios homeostáticos da <strong>na</strong>tureza. Impõe-se uma mutaçãocultural que supere a visão redutiva e alcance um enfoque mais globalda <strong>na</strong>tureza. Trata-se da passagem de um reducionismo científicometo<strong>do</strong>lógicoa uma cultura sistêmica <strong>do</strong> <strong>ambiente</strong>.De uma época de total equilíbrio e dependência <strong>do</strong> ser humanoda <strong>na</strong>tureza no Paleolítico, passa-se a um gradativo distanciamentoinicia<strong>do</strong> com a revolução agrícola <strong>do</strong> Neolítico e chega-se ao seuauge <strong>na</strong> Revolução Industrial i<strong>na</strong>ugurada no século X VIII. Do gerenciamentoe <strong>do</strong>mesticação <strong>do</strong>s processos <strong>na</strong>turais para defender-seda inclemência da <strong>na</strong>tureza e construir um habitat humano em totalharmonia com o sistema <strong>na</strong>tural, passou-se ao total controle e <strong>do</strong>mínio<strong>sobre</strong> os recursos <strong>na</strong>turais, pelo desenvolvimento <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> científicoe difusão das tecnologias, dan<strong>do</strong> origem à civilização industrialpovoada de luzes e de sombras.É inegável que a industrialização melhorou significativamente avida <strong>do</strong>s seres humanos, mas provocou, igualmente, efeitos desastrososque agora ameaçam aqueles que ela própria procurou beneficiar. As26


27Volume 2 -número 1 -2006conseqüências negativas não são frutos da própria ciência e técnica,mas da falta de uma cultura mais sistêmica <strong>do</strong> <strong>ambiente</strong> e de umigualitarismo com relação aos seres viventes presentes <strong>na</strong>s civilizaçõesrurais. A civilização industrial provocou a acentuação <strong>do</strong> dualismoentre o ser humano e a <strong>na</strong>tureza;a exploração <strong>do</strong>s recursos <strong>na</strong>turaisa serviço das crescentes necessidades huma<strong>na</strong>s;o desenvolvimentode tecnologias com impacto <strong>sobre</strong> o <strong>ambiente</strong>;o uso e a exploraçãode novas fontes de energia;o aumento exponencial da população;acomplexificação <strong>do</strong>s sistemas sociais pelo surgimento de classes;eo desaparecimento de mo<strong>do</strong>s alter<strong>na</strong>tivos de vida pela massificaçãocultural. Tu<strong>do</strong> isso levou a um dissídio crescente entre a sociedadehuma<strong>na</strong> e o <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong>, a divisões e discrimi<strong>na</strong>ções <strong>na</strong>s sociedadeshuma<strong>na</strong>s.Podem-se apontar vários indícios de reducionismo no mo<strong>do</strong> derelacio<strong>na</strong>r-se com a <strong>na</strong>tureza. Os méto<strong>do</strong>s de análise e de intervençãono <strong>ambiente</strong> processa<strong>do</strong>s pela ciência e pela técnica são i<strong>na</strong>dequa<strong>do</strong>s,porque o conhecimento foi dividi<strong>do</strong> em especialidades, faltan<strong>do</strong> umsaber sistêmico <strong>do</strong> conjunto. A ecologia surgiu para responder a essanecessidade. Operou-se uma fragmentação da realidade correspondenteà sociedade dividida em classes e em especialidades e trabalhose orientada à produção econômica.A tecnologia teve desenvolvimento crescente sem atentar <strong>sobre</strong> asconseqüências <strong>sobre</strong> o <strong>ambiente</strong>. As repercussões são preocupantes ea opinião pública está ape<strong>na</strong>s acordan<strong>do</strong> para elas. Aconteceu igualmenteuma nítida separação entre ciências <strong>na</strong>turais e huma<strong>na</strong>s, entrematéria e espírito, entre ciência e fé, entre economia e ética, entreindivíduo e sociedade. Essa separação corresponde ao processo deespecialização e positivação <strong>do</strong> conhecimento científico.O aumento gradativo da população levou a uma maior procurade bens extraí<strong>do</strong>s da <strong>na</strong>tureza e a um incremento conseqüente datecnologia. Assim, as potencialidades <strong>do</strong>s mecanismos <strong>na</strong>turais deadaptação e equilíbrio foram superadas e a própria adaptação culturalfoi quebrada, provocan<strong>do</strong> resulta<strong>do</strong>s desastrosos.O mo<strong>do</strong> como os humanos percebem a <strong>na</strong>tureza, o <strong>ambiente</strong> e asociedade, passou substancialmente por <strong>do</strong>is momentos. A revoluçãocientífica devi<strong>do</strong> ao seu reducionismo destruiu o caráter orgânicoda percepção pré-científica das sociedades tradicio<strong>na</strong>is. Sob o estí-27


28Revista Brasileira de Bioéticamulo da pesquisa em ecologia, a ciência <strong>do</strong>s sistemas e o enfoqueestruturalista recompuseram a visão integral da realidade <strong>na</strong>tural esocial. Assim, estamos diante da emergência de um novo paradigmade percepção e compreensão da realidade, inspira<strong>do</strong> pela ecologiaque pretende superar a visão limitada e estreita da racio<strong>na</strong>lidadeinstrumental moder<strong>na</strong>. É necessário assumir uma racio<strong>na</strong>lidade dialógica,bioempática e holística para acercar-se da realidade <strong>na</strong>tural esocial, para enfrentar os desafios ambientais.O paradigma ecológico significa uma crítica radical à autonomiasolipsista da modernidade e uma proposta de percepção da realidadeem suas inter-relações e não como pura soma de entidades individuais.Amplia a pura perspectiva intersubjetiva <strong>do</strong>s humanos e tenta incluirtambém a consideração das interdependências e interligações comos seres vivos e com os ecossistemas e a biosfera. Um sistema vivente(ecossistema) não é a pura justaposição de seres vivos e fatores quepossibilitam a vida, mas um complexo de interações de di<strong>na</strong>mismosvitais (3).A relação entre saúde e <strong>ambiente</strong>O paradigma ecológico como crítica <strong>do</strong> reducionismo científico,que fragmenta a percepção e impede uma visão sistêmica da realidade,também tem sua história de efeitos <strong>sobre</strong> a compreensãoda saúde huma<strong>na</strong>. A relação da saúde com o <strong>ambiente</strong> sempre foiuma preocupação huma<strong>na</strong> e respondeu muito tempo pela causadas <strong>do</strong>enças <strong>na</strong> compreensão miasmática. Compreendida como umreflexo <strong>do</strong>s miasmas presentes no <strong>ambiente</strong>, a <strong>do</strong>ença era explicadacomo essencialmente ambiental.O progresso da biologia microbia<strong>na</strong> mu<strong>do</strong>u substancialmente essaconcepção. A partir de tais descobertas, a causa da <strong>do</strong>ença nãose restringe mais aos ares féti<strong>do</strong>s, passan<strong>do</strong> a ser atribuída aos micróbios,que invadem o corpo <strong>do</strong> enfermo. O <strong>ambiente</strong> continua a terimportância, mas ape<strong>na</strong>s como reservatório de hospedeiros e vetoresdas patologias. A causa <strong>do</strong> a<strong>do</strong>ecimento deixa de ser algo vago, comoo miasma, sen<strong>do</strong> identificada com o contágio por um micróbio quehabita certo <strong>ambiente</strong>. Assim, surge a ecologia médica, que estuda asrelações <strong>do</strong>s fatores físicos e biológicos com a <strong>do</strong>ença, a inter-relação28


29Volume 2 -número 1 -2006entre o <strong>ambiente</strong> e os vetores das patologias.As implicações da globalização das comunicações e <strong>do</strong>s transportese da circulação de pessoas, alimentos, animais, plantas emicroorganismos são claras e resultam <strong>na</strong> alteração <strong>do</strong>s padrõesclássicos da geografia da saúde e da <strong>do</strong>ença. A queda das barreiraspolíticas e o livre trânsito de pessoas e de produtos são responsáveis,em grande parte, pelas chamadas <strong>do</strong>enças emergentes, que atualmenteconstituem a maior preocupação da ecologia médica. Essaé a concepção de Ávila-Pires (4) em seu clássico livro Princípios deecologia médica.A revolução bacteria<strong>na</strong> trouxe grandes benefícios para a humanidade,mas teve um efeito colateral negativo, o retrocesso nopensamento da medici<strong>na</strong> social, efeito que contami<strong>na</strong> até hoje abiomedici<strong>na</strong>. As novas <strong>do</strong>enças da civilização não têm origem microbia<strong>na</strong>,adquirin<strong>do</strong> o <strong>ambiente</strong> uma nova importância não ape<strong>na</strong>scomo reservatório, mas como um ecossistema de interdependências<strong>na</strong>turais, sociais, políticas e culturais que influenciam a saúde e a<strong>do</strong>ença. Desse mo<strong>do</strong>, surge a compreensão ecossistêmica da saúde,veiculada, por exemplo, pela obra Saúde e <strong>ambiente</strong> sustentável:estreitan<strong>do</strong>os nós (5).A novidade dessa concepção é que o foco da preocupação com o<strong>ambiente</strong> não é mais tanto a <strong>do</strong>ença, mas a saúde;e agregam-se aobinômio saúde-<strong>ambiente</strong> os conceitos de sustentabilidade ecológica,qualidade de vida, justiça social, democracia e direitos humanos. Mudao foco porque o <strong>ambiente</strong> em seu senti<strong>do</strong> amplo é integra<strong>do</strong> <strong>na</strong>própria compreensão da saúde. Antes o <strong>ambiente</strong> era algo externo,condicio<strong>na</strong><strong>do</strong>r da <strong>do</strong>ença e se reduzia ao aspecto físico. É difícil atribuira causa de qualquer <strong>do</strong>ença a ape<strong>na</strong>s um elemento, pois a saúdehuma<strong>na</strong> é influenciada não ape<strong>na</strong>s por fatores específicos, mas pelainteração entre eles. Essa concepção muda a compreensão <strong>sobre</strong> apresença de riscos no <strong>ambiente</strong>, necessitan<strong>do</strong> uma abordagem maiscomplexa.O modelo ecossistêmico une reflexões simultâneas: a de saúdee a de <strong>ambiente</strong>, ten<strong>do</strong>, como processo media<strong>do</strong>r, as análises dascondições, situações e estilos de vida de grupos populacio<strong>na</strong>is específicos.Isso significa conjugar saúde e <strong>ambiente</strong> entrelaçan<strong>do</strong> a sustentabilidadeecológica <strong>do</strong> <strong>ambiente</strong> <strong>na</strong>tural com o desenvolvimento29


30Revista Brasileira de Bioéticasocial e não ape<strong>na</strong>s econômico <strong>do</strong> entorno e com a qualidade de vida.A sustentabilidade e o desenvolvimento são a base da qualidade devida, que, no entender de Mi<strong>na</strong>yo, é descrita como:“... um processo de construção de novas subjetividades pelaparticipação em projetos de mudanças em uma ótica de desenvolvimentosustentável e de cumplicidade com as gerações futuras.Embora existam tentativas de quantificar indica<strong>do</strong>res... a definiçãode qualidade de vida é eminentemente qualitativa... ao mesmotempo, o sentimento de bem-estar, a visão de finitude <strong>do</strong>s <strong>meio</strong>spara alcançá-lo e a disposição para a solidariedade, ampliar aspossibilidades presentes e futuras” (6).Dessa maneira, o enfoque ecossistêmico de saúde como qualidadede vida “é como um guarda-chuva onde estão ao abrigo nossos desejosde felicidade, nossos parâmetros de direitos humanos;nosso empenhoem ampliar as fronteiras <strong>do</strong>s direitos sociais e das condições deser saudável e de promover saúde” (7).Outra forma de pensar a relação entre <strong>ambiente</strong> e saúde é ateoria <strong>sobre</strong> a reprodução social da saúde proposta pelo sanitaristaargentino Juan Samaja (8,9) que tenta pensar as relações entre asaúde e as condições de vida. Para ele, as ciências da saúde têm porobjeto “os encontros e transações entre diversos espaços de valoraçõese regulações <strong>do</strong>s problemas que a reprodução social apresenta emtodas as esferas da sociabilidade huma<strong>na</strong>: biossocial, sociocultural,econômico-societal e a ecológica-política” (10).Seguin<strong>do</strong> essa perspectiva, o objeto saúde compreende tanto asconcepções e práticas sanitaristas das esferas biocomu<strong>na</strong>l (reproduçãobiológica e ambiental), comu<strong>na</strong>l-cultural (reprodução da consciência eda conduta), societária (reprodução associativa e econômica) e estatal(reprodução ecológico-política). Esse foco da saúde <strong>na</strong> reproduçãosocial das condições de vida ultrapassa o puro espaço discipli<strong>na</strong>r damedici<strong>na</strong>, obrigan<strong>do</strong> a englobar uma epidemiologia ecológica, antropológica,sociológica, jurídica, econômica e ambientalista. ParaSamaja, as condições de vida determi<strong>na</strong>m as situações de saúde.Portanto, as situações de saúde devem ser estudadas <strong>na</strong> perspectivadas condições de vida. Isso significa dizer que se a saúde <strong>na</strong> definição30


31Volume 2 -número 1 -2006da OMS é o completo esta<strong>do</strong> de bem-estar, então “ela é inseparáveldas condições de vida, e só se pode defini-la como controle <strong>sobre</strong> osprocessos de reprodução da vida social. Ou seja, a saúde constituia própria ordem regular desse movimento reprodutivo” (11). Aquisaúde e <strong>ambiente</strong> estão intimamente entrelaça<strong>do</strong>s, pois o <strong>ambiente</strong>identifica-se com as condições de vida que possibilitam a reproduçãosocial da saúde.O conceito amplo e integral de promoção da saúde, que ultrapassa asimples compreensão de prevenção, foi explicita<strong>do</strong> pela célebre Cartade O ttaw a de 1996 que define a promoção da saúde como proporcio<strong>na</strong>raos povos os <strong>meio</strong>s para melhorarem sua situação sanitária e exercermaior controle <strong>sobre</strong> ela. As condições e requisitos para a saúde são:a paz, a educação, a moradia, a alimentação, a renda, o ecossistemaestável, a justiça social e a eqüidade. As estratégias-chave para promovera saúde incluem, segun<strong>do</strong> a Carta, o estabelecimento de políticaspúblicas saudáveis, a criação de <strong>ambiente</strong>s favoráveis, o fortalecimentode ações comunitárias, o desenvolvimento de habilidades pessoais e areorientação <strong>do</strong>s serviços de saúde.Essa compreensão mais ampla e integral é um resulta<strong>do</strong> dasdiversas conferências mundiais <strong>sobre</strong> promoção da saúde iniciadasem Ottawa. As formulações desse movimento são frutos da análise dascontradições que aparecem <strong>na</strong>s cidades. As condições sanitárias <strong>do</strong>sgrandes aglomera<strong>do</strong>s urbanos atuais são os maiores desafios para apromoção da saúde. Por isso, surgiu a idéia das cidades saudáveis queprocuram conjugar saúde e <strong>ambiente</strong>, comprometen<strong>do</strong> politicamenteos municípios <strong>na</strong> criação das condições estruturais e comunitáriaspara um <strong>ambiente</strong> urbano saudável (12).O <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong> <strong>na</strong>s Declarações das Conferências das NaçõesUnidas <strong>sobre</strong> o M eio Ambiente e Desenvolvimento (CNUM AD)A crise ecológica é o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> drástico desajuste entre osprocessos cíclicos, conserva<strong>do</strong>res e autocoerentes da ecosfera e osprocessos lineares e inova<strong>do</strong>res da tecnosfera que buscam, ao curtoprazo, a maximização <strong>do</strong> benefício priva<strong>do</strong> humano. Existem processostecnológicos compatíveis com a ecosfera. É um problema devontade huma<strong>na</strong> que suporá mudanças <strong>na</strong> maneira de ver e agir com31


32Revista Brasileira de Bioéticarelação à <strong>na</strong>tureza. Num mun<strong>do</strong> limita<strong>do</strong>, não se pode dar um crescimentoilimita<strong>do</strong>. Nossas pretensões “prometeícas” são impos-síveise incompatíveis com a contingência da realidade.É necessário conceber o mun<strong>do</strong> como um to<strong>do</strong> integra<strong>do</strong> por umarede complexa de interdependências e não como simples agrega<strong>do</strong>de partes: assumir o mun<strong>do</strong> como uma aldeia. Nosso compromissoé aprender a cuidar <strong>do</strong> planeta. James Lovelock (13) chega a proporuma prática científica de medici<strong>na</strong> planetária. Esse cuida<strong>do</strong> necessitamobilização e responsabilidade, pensan<strong>do</strong> globalmente e atuan<strong>do</strong> localmente,ven<strong>do</strong> o valor e o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> pequeno.As sociedades huma<strong>na</strong>s desenvolveram a capacidade de intervirnesse sistema de interações e de interdependências vitais segun<strong>do</strong>objetivos e modelos próprios. Por isso, elas têm a responsabilidade denão destruir o ecossistema e a qualidade <strong>do</strong> <strong>ambiente</strong> em que viveme agem no uso dessa capacidade. Essa responsabilidade é base paraqualquer ética e direito ambiental.Para entender o artigo 17 da Declaração <strong>Universal</strong> <strong>sobre</strong> Bioéticae Direitos Humanos, que fala <strong>sobre</strong> a Proteção <strong>do</strong> Meio Ambiente,da Biosfera e da Biodiversidade, precisamos remontar a outras declaraçõese convenções inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is de cunho ecológico.Conscientes da gravidade <strong>do</strong> problema ecológico, os organismosinter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is tentaram respostas à crise ambiental. Elas têm o seuinício no relatório <strong>sobre</strong> os limites <strong>do</strong> crescimento, elabora<strong>do</strong> porDennis Mea<strong>do</strong>ws <strong>do</strong> Massachusetts Institute of Technology encomenda<strong>do</strong>pelo chama<strong>do</strong> Clube de Roma, publica<strong>do</strong> em 1972 e reconfirma<strong>do</strong>em publicação 20 anos depois.A primeira conferência inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l <strong>sobre</strong> <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong> foi convocadapelas Nações Unidas, em Estocolmo, no ano 1972, <strong>na</strong> qual foipromulgada uma declaração de proteção ao <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong>. Em 1982a Assembléia G eral das Nações Unidas pediu à Comissão Mundial <strong>do</strong>Meio Ambiente e Desenvolvimento que elaborasse um programa global.Este informe, N osso Futuro Comum, foi apresenta-<strong>do</strong> <strong>na</strong> AssembléiaG eral de 1987. O <strong>do</strong>cumento, conheci<strong>do</strong> como Rela-tório Brundtland,<strong>sobre</strong>nome da ministra norueguesa que presidiu a Comissão, insisteem soluções políticas e jurídicas.Em 1991 foi publica<strong>do</strong> <strong>na</strong> Suíça o <strong>do</strong>cumento Cuidar da Terra:estratégiaspara o futuro da vida, promovi<strong>do</strong> por organismos inter<strong>na</strong>cio-32


33Volume 2 -número 1 -2006<strong>na</strong>is e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Em1992, aconteceu a grande Conferência das Nações Unidas para o MeioAmbiente e o Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, aprovan<strong>do</strong> vários<strong>do</strong>cumentos: a Declaração <strong>do</strong> Rio de Janeiro <strong>sobre</strong> o M eio Ambiente eDesenvolvimento;a Convenção <strong>sobre</strong> M udanças Climáticas (Protocolode Kyoto);a Declaração de Princípios <strong>sobre</strong> Florestas;a Convenção<strong>sobre</strong> Biodiversidade;e o <strong>do</strong>cumento mais importante a Agenda 21,depois transformada em Programa 21 ou Programa de Ação paraAlcançar o Desenvolvimento Sustentável (14).A Declaração <strong>do</strong> Rio <strong>sobre</strong> o M eio Ambiente e Desenvolvimentoreafirma e amplia a declaração de Estocolmo, conten<strong>do</strong> 27 princípiosou propostas programáticas que objetivam orientar a formulaçãode políticas e acor<strong>do</strong>s inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is que respeitem o interesse deto<strong>do</strong>s os envolvi<strong>do</strong>s, o desenvolvimento global e a integridade <strong>do</strong><strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong>. O primeiro princípio dá o tom da Declaração: “Osseres humanos são o centro das preocupações relacio<strong>na</strong>das com odesenvolvimento sustentável. Eles têm direito a uma vida saudávele produtiva em harmonia com o <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong>”. A perspectiva daDeclaração é o desenvolvimento sustentável capaz de conjugar proteção<strong>do</strong> <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong> e qualidade de vida para os humanos.O Programa 21 procura apresentar um plano de ação para alcançaros objetivos <strong>do</strong> desenvolvimento sustentável preconiza<strong>do</strong> pelaDeclaração, apresentan<strong>do</strong> 38 áreas ou programas de ação subdividi<strong>do</strong>sem quatro seções: a) dimensões sociais e econômicas <strong>do</strong> desenvolvimentosustentável (7 programas); b) dimensões ambientais <strong>do</strong>desenvolvimento sustentável (14 programas); c) fortalecimento <strong>do</strong>papel <strong>do</strong>s grupos sociais implica<strong>do</strong>s no desenvolvimento sustentável(9 programas);d) <strong>meio</strong>s de implementação <strong>do</strong> desenvolvimento sustentável(8 programas).É interessante notar que o maior número de ações trata das dimensõesambientais: proteção da atmosfera;gerenciamento <strong>do</strong>s recursosterrestres; combate ao desflorestamento; ecossistemas frágeis:luta contra a desertificação e seca;ecossistemas frágeis: montanhas;desenvolvimento rural e agrícola sustentáveis;conservação da biodiversidade;manejosaudável da biotecnologia;oceanos, mares e zo<strong>na</strong>scosteiras;proteção da qualidade <strong>do</strong>s recursos hídricos (água <strong>do</strong>ce)e <strong>do</strong> seu abastecimento;manejo ecológico das substâncias tóxicas;33


34Revista Brasileira de Bioéticamanejo ambientalmente saudável <strong>do</strong>s resíduos perigosos; manejoambientalmente saudável <strong>do</strong>s resíduos sóli<strong>do</strong>s e questões relacio<strong>na</strong>dascom esgotos;manejo seguro <strong>do</strong>s resíduos radioativos.É importante ficar atento porque essas diferentes dimensões eações fazem parte <strong>do</strong> contexto <strong>do</strong> desenvolvimento sustentável. Operigo é que esse conceito seja esvazia<strong>do</strong>, uma vez que to<strong>do</strong>s estãode acor<strong>do</strong> com ele, tor<strong>na</strong>n<strong>do</strong>-se algo polissêmico e gradativamentesem conteú<strong>do</strong>. Os desafios ambientais tor<strong>na</strong>ram o fator “ecologia”um elemento de rentabilidade econômica e, dessa forma, a idéia <strong>do</strong>desenvolvimento sustentável pode transformar-se numa ideologia.O desenvolvimento sustentável não pode ser reduzi<strong>do</strong> a um simplesacor<strong>do</strong> entre progresso econômico e proteção ambiental, pois suaefetividade depende de uma mutação cultural introduzida pelo paradigmaecológico. Desse mo<strong>do</strong>, o desenvolvimento sustentável dependede uma mudança <strong>na</strong> percepção da nossa relação com a <strong>na</strong>tureza e,principalmente, nos comportamentos de consumo. Existe uma contradiçãoe um descompasso entre o desenvolvimento sustentável e amentalidade cultural que move a sociedade de consumo.A Declaração <strong>Universal</strong> <strong>sobre</strong> Bioética eDireitos Humanos da UNESCOA Declaração <strong>Universal</strong> <strong>sobre</strong> Bioética e Direitos Humanos (15)foi incentivada pela UNESCO e homologada pela sua AssembléiaAnual em outubro de 2005. A reunião geral que discutiu o esboço daDeclaração teve a participação de 90 países e caracterizou-se, desdeo início, por posições divergentes entre países ricos e pobres. Osprimeiros, encabeça<strong>do</strong>s pelos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, Alemanha, Ca<strong>na</strong>dá,Japão e Reino Uni<strong>do</strong>, defendiam a restrição <strong>do</strong> acor<strong>do</strong> aos tópicosbiomédicos e biotecnológicos da bioética. O Brasil, apoia<strong>do</strong> pelas delegações<strong>do</strong>s países latino-americanos e africanos, além da Índia eSíria, principalmente, sustentou a ampliação <strong>do</strong> texto da Declaraçãoe conseguiu a inclusão <strong>do</strong>s campos social e ambiental. A SociedadeBrasileira de Bioética teve um papel fundamental <strong>na</strong> condução da discussãoe da articulação dessa inclusão.O artigo 17 da referida Declaração que tem como título Proteção<strong>do</strong> Meio Ambiente, da Biosfera e da Biodiversidade explicita:34


35Volume 2 -número 1 -2006“Devida atenção deve ser dada à inter-relação de seres humanose outras formas de vida, à importância <strong>do</strong> acesso e utilizaçãoadequada de recursos biológicos e genéticos, ao respeito peloconhecimento tradicio<strong>na</strong>l e ao papel <strong>do</strong>s seres humanos <strong>na</strong> proteção<strong>do</strong> <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong>, da biosfera e da biodiversidade”.No texto <strong>do</strong> artigo, a proteção <strong>do</strong> <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong>, da biosfera eda biodiversidade está relacio<strong>na</strong>da a quatro elementos aos quais énecessário estar atento: a) a inter-relação entre os humanos e os outrosseres vivos;b) o uso adequa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s recursos biológicos e genéticos;c) o respeito ao conhecimento tradicio<strong>na</strong>l que conserva uma visãosistêmica da <strong>na</strong>tureza;d) o papel <strong>do</strong>s seres humanos <strong>na</strong> proteção <strong>do</strong><strong>ambiente</strong>.O artigo 17 precisa ser considera<strong>do</strong> à luz de pelo menosduas referências ecológicas presentes no Preâmbulo da própriaDeclaração:“Consciente da capacidade <strong>do</strong>s seres humanos de refletir <strong>sobre</strong>a sua existência e <strong>sobre</strong> o seu <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong>; de percebera injustiça; de evitar o perigo; de assumir responsabilidade;de buscar cooperação e de demonstrar o senti<strong>do</strong> moral que dáexpressão a princípios éticos”;e“Conscientes de que os seres humanos são parte integral dabiosfera com um papel importante <strong>na</strong> proteção um <strong>do</strong> outro e dasdemais formas de vida, em particular os animais”.Em ambos os casos as referências aparecem no contexto <strong>do</strong>s rápi<strong>do</strong>sdesenvolvimentos <strong>na</strong> ciência e <strong>na</strong> tecnologia e das conseqüentesquestões éticas suscitadas pelas aplicações tecnológicas <strong>do</strong>s avançosda ciência. Por isso, o artigo 1º das Disposições G erais apresentacomo escopo da Declaração tratar das “questões éticas relacio<strong>na</strong>das àmedici<strong>na</strong> e às ciência da vida e às tecnologias associadas quan<strong>do</strong> aplicadasaos seres humanos, levan<strong>do</strong> em conta suas dimensões sociais,legais e ambientais”. O artigo 2, ao tratar <strong>do</strong>s objetivos, propõe, entre35


36Revista Brasileira de Bioéticaoutros, “promover o respeito pela dignidade huma<strong>na</strong> e proteger osdireitos humanos e ressaltar a importância da biodiversidade e suaconservação como uma preocupação comum da humanidade”.Existem diferenças e semelhanças entre as diferentes declarações<strong>do</strong>s Organismos das Nações Unidas <strong>sobre</strong> a proteção <strong>do</strong> <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong>e a própria Declaração da UNESCO, quan<strong>do</strong> fala <strong>do</strong> <strong>meio</strong><strong>ambiente</strong>. As primeiras têm como referência os desafios ecológicosque surgem <strong>do</strong> progresso econômico concebi<strong>do</strong> como exploração derecursos <strong>na</strong>turais ilimita<strong>do</strong>s, e sua perspectiva é o desenvolvimentosustentável. A segunda tem como referência as questões éticas queaparecem <strong>do</strong>s avanços das biotecnologias ten<strong>do</strong> como perspectiva adignidade huma<strong>na</strong> e os direitos humanos. Nos <strong>do</strong>is casos, a proteçãoao <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong> tem como foco a saúde e a qualidade de vida <strong>do</strong>ser humano. Daí a importância de relacio<strong>na</strong>r saúde e <strong>ambiente</strong>,engloban<strong>do</strong>, por um la<strong>do</strong>, a sustentabilidade e, por outro, os direitoshumanos. Essa relação aparece claramente <strong>na</strong> visão ecossistêmica dasaúde.A Declaração coloca-se <strong>na</strong> tradição <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos que se baseiam<strong>na</strong> <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> <strong>do</strong>s direitos humanos, e parte de uma concepçãode saúde que engloba condicio<strong>na</strong>mentos sociais e ambientais. Porisso, a proteção <strong>do</strong> <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong>, da biosfera e da biodiversidadeé entendida <strong>na</strong> relação entre saúde e <strong>ambiente</strong>, exigin<strong>do</strong> uma visãoecossistêmica da saúde para que se possa compreender o <strong>ambiente</strong>saudável em toda sua amplitude como um direito humano.Alguém poderia questio<strong>na</strong>r que a Declaração compreende a proteção<strong>do</strong> <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong> <strong>na</strong> perspectiva <strong>do</strong>s direitos humanos comouma posição antropocêntrica. Aqui é necessário introduzir a pertinentereflexão de Edgar Morin <strong>sobre</strong> como acontece a relação entre sociedadee <strong>na</strong>tureza. Hoje não é mais possível separá-las, pois a ecologia <strong>na</strong>turalinscreve-se <strong>na</strong> esfera antropossocial e a sociedade incide <strong>na</strong>ecosfera, crian<strong>do</strong> ecossistemas mistos eco e sócio-organiza<strong>do</strong>s. Averdadeira realidade, polarizada pela eco-organiza-ção e pela sócioorganização,é sempre mais mista e multidimensio<strong>na</strong>l, tor<strong>na</strong>n<strong>do</strong>-seeco-bio-socioorganizada. Assim, as sociedades são entidades geoeco-bioantropológicase os ecossistemas são antroposocioecológicos.Por isso, a ecologia geral deve englobar a dimensão antropossocial,como a antropossociologia precisa incluir a dimensão ecológica. A36


37Volume 2 -número 1 -2006sociedade deve aprender da <strong>na</strong>tureza, tor<strong>na</strong>n<strong>do</strong>-se mais ecológica,enquanto a <strong>na</strong>tureza deve ser inserida <strong>na</strong> sociedade como algo a serprotegi<strong>do</strong> como essencial para sua <strong>sobre</strong>vivência (16).ConclusãoNa Declaração da UNESCO, a proteção <strong>do</strong> <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong> aparececomo um direito humano, mas essa perspectiva antropocêntrica écorrigida pela sustentabilidade da biosfera e da biodiversidade. Emoutras palavras, o <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong> só é preserva<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> se temuma visão complexa que compreende o <strong>ambiente</strong> como um sistemaintegral de interdependências (biosfera) e, para que este sistema estejaem equilíbrio homeostático é necessário que haja biodiversidadepossibilita<strong>do</strong>ra das inter-relações. Essa visão sistêmica <strong>do</strong> <strong>ambiente</strong>retroage <strong>sobre</strong> o mo<strong>do</strong> de organizar a convivência social e <strong>sobre</strong> aprópria visão ecossistêmica da saúde, base para compreender a saúdecomo um direito humano e o <strong>ambiente</strong> como componente básico <strong>do</strong>campo da saúde.Referências1. Taylor, BC. The ethics ofauthenticity. 9 th Edition. Cambridge (Ms): Harvard UniversityPress, 2000.2. Capra, F. A teia da vida:uma nova compreensão científica <strong>do</strong>s sistemas vivos. S. Paulo:Cultrix, 1996.3. Junges, JR. Ética ambiental. São Leopol<strong>do</strong>: Ed. Unisinos, 2004.4. Ávila-Pires FD. Princípios de ecologia médica. Florianópolis: Ed. UFSC, 2000.5. Mi<strong>na</strong>yo, MCS, Miranda AC. (Org.). Saúde e <strong>ambiente</strong> sustentável:estreitan<strong>do</strong> osnós. Rio de Janeiro: Fiocruz, 20026. Mi<strong>na</strong>yo, MCS. Enfoque ecosistêmico de saúde e qualidade de vida. In: Mi<strong>na</strong>yoMCS & Miranda, AC (orgs.) O p.cit, 2002. p.1747. ________. O p.cit.8. Samaja, J. A reprodução social e a saúde.Salva<strong>do</strong>r, Casa da Q ualidade, 2000. pp.95-6.9. ________. Epistemologia de la salud:reproducción social,subjetividad y transdiscipli<strong>na</strong>.Buenos Aires, Lugar Editorial, 2004.10. ________. O p.cit. , 2000.11. ________. O p.cit. p. 100.12. Andrade, LOM. & Barreto, ICHC. Promoção da saúde e cidades/municípios saudáveis:propostas de articulação entre saúde e <strong>ambiente</strong>. In: Mi<strong>na</strong>yo MCS, & Miranda,AC. (Orgs.). O p.cit., 2002.13. Lovelock, J. G aia. A prática científica da medici<strong>na</strong> planetar. Lisboa, Instituto Piaget,1996.14. Barbieri, JC. Desenvolvimento e <strong>meio</strong> <strong>ambiente</strong>.As estratégias de mudanças da37


38Revista Brasileira de BioéticaAgenda 21. Petrópolis, Ed. Vozes, 1998.15. UNESCO. Declaração <strong>Universal</strong> <strong>sobre</strong> Bioética e Direitos Humanos. Cátedra Unescoda Universidade de Brasília /Sociedade Brasileira de Bioética. Brasília, 2005.16. Morin, E. O méto<strong>do</strong> 2:a vida da vida. Porto Alegre, Ed. Suli<strong>na</strong>, 2001. p. 94-95.Recebi<strong>do</strong> em 18/11/2005. Aprova<strong>do</strong> em 13/01/2006.38

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