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Cada um com a sua língua

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Aquelassemelhanças queJones apontou acabaram no indoeuropeu,<strong>um</strong>a língua que jamais foi ouvida,mas que pôde ser reconstruída a partir dascoincidências entre idiomas aparentementetão díspares <strong>com</strong>o o sânscrito, o grego e o latim.Seus ramos são os responsáveis pelo nosso português,mas também por muitas outras línguas,entre elas o romeno (também do braço latino), oinglês e o alemão (do grupo germânico) e o russo(do grupo balto-eslavo). Atualmente, os pesquisadoresacreditam que haja no mínimo duas dezenasde famílias <strong>com</strong>o o indo-europeu que, remontadas amais de 10 mil anos a.C., poderiam acabar em <strong>um</strong>a únicalíngua, ainda muito mais antiga, chamada scan. Ou não!Porque, <strong>com</strong>o não existem registros, poderiam existir várias línguasdos vários primeiros homens que deram origem a essa colcha deretalhos dos quase 7 mil idiomas falados em todo o mundo.Prática e fortalecimentoMas, se não é possível saber <strong>com</strong>o as línguas surgiram, pelo menossabemos que elas morrem, certo? Nem sempre. “Essa históriade pensar que a língua nasce, evolui e morre é coisa doséculo XIX, quando se tentava enquadrar tudo nosesquemas biológicos e evolucionistas”, explicao professor de linguística Carlos Faraco, daUniversidade Federal do Paraná. Bastapensar, por exemplo, no hebraico,que deixou de ser falado por causa dadispersão dos judeus pelo mundo.Ou seja, estava morto. Só que, <strong>com</strong>a criação de Israel, em 1948, ele foiresgatado, adaptado e virou a línguaoficial da nação. No Norte daItália também há dialetos desaparecidos,mas registrados em doc<strong>um</strong>entose livros, que voltarama ser estudados e, <strong>com</strong>o o hebraico,“reviveram” no país <strong>com</strong>os novos falantes. “As únicas línguasque morrem são aquelastotalmente orais e que acabam enterradas<strong>com</strong> o último conhecedor”, explica Faraco. Foi assim<strong>com</strong> o dalmático, antigamente falado nas margensdo Mar Adriático, e <strong>com</strong> dezenas de línguas indígenasbrasileiras, que s<strong>um</strong>iram ao mesmo tempo que<strong>sua</strong>s tribos.Melhor que falar de morte, então, seria falar de faltade uso. “Quanto mais a língua é praticada, mais elase fortalece”, explica a professora de linguística históricaEnilde Faulstich, da Universidade de Brasília.“Falar de morte é <strong>um</strong>a metáfora, porque língua éalgo abstrato. E ninguém mata algo abstrato. Línguae mente caminham juntas e é por isso que, paramatá-la, é preciso, antes, matar as pessoas”, diz.Fazer a mágica de “reviver” <strong>um</strong>a língua só é possívelse houver registros de seu uso. E, <strong>com</strong>o a escrita é omodo mais antigo de “guardar” a fala, é a partir dessesdoc<strong>um</strong>entos que se pode sair por aí “desenterrando”idiomas. Só que, mesmo <strong>com</strong> eles, descobrir <strong>com</strong>o osseres h<strong>um</strong>anos se expressavam antigamente é tarefaquase impossível. Porque escrita e oralidade são duasmodalidades distintas da linguagem, e não o espelho<strong>um</strong>a da outra. É só pensar que, se alguém <strong>com</strong>eçar afalar <strong>com</strong>o escreve, o resultado sairá <strong>um</strong> tanto esquisito.“É <strong>com</strong>o se imaginássemos <strong>um</strong>a linha contínua quevai de algo mais escrito a algo mais oral. De <strong>um</strong>a pontaa outra existem várias nuances, vários gêneros quemisturam características dos dois”, explica Fiorin. O diálogoem casa, por exemplo, estaria n<strong>um</strong>a extremidadeoral, enquanto <strong>um</strong> artigo científico, cheio de burocracias,estaria em outra. Mas a fala de <strong>um</strong> apresentadorde telejornal fica entre as duas porque, apesar de falado,tem marcas claras da caneta de quem construiu otexto. ”Fala e escrita são coisas muito diferentes, masnão opostas”, diz o professor. Juntas, no entanto, essasduas modalidades <strong>com</strong>põem o todo que, além de serdito ou grafado, é capaz de definir o homem e seu lugarno mundo.Construção de sentidos“A sociedade só é possível pela língua; e por ela tambémo indivíduo”, escreveu Émile Benveniste, emProblemas de Linguística Geral, de 1966 (Pontes Editores,2008). Mas será que a língua é mesmo capaz deconstruir tudo isso, <strong>com</strong>o acredita o teórico francês?“É por meio dela que o ser h<strong>um</strong>ano se revela”, esclareceLuiz Francisco Dias, professor de linguística esemântica da Universidade Federal de Minas Gerais.“Falando para o outro, falamos para nós mesmos e,assim, construímos os sentidos e nos descobrimos.”Afinal, basta alguém <strong>com</strong>eçar a dizer algo para, imediatamente,denunciar de onde veio, qual a “turma” aque pertence e, nas entrelinhas e entonações, declararaté os sentimentos e medos que o cercam. Ou, aomenos, foi nisso que o neurologista alemão SigmundFreud pensou quando concebeu a psicanálise, em1890. Grosseiramente, seu método nada mais é que<strong>um</strong>a forma de desbravar o inconsciente por meiodas artimanhas da linguagem.As palavras usadas, no entanto, fazem parte de outrosistema, definido política e socialmente. A língua,afinal, é o meio de <strong>com</strong>unicação de <strong>um</strong> determinadoterritório, usado por seus indivíduos, “<strong>um</strong> dialeto<strong>com</strong> exército e marinha”, nas palavras do linguistaalemão Max Weinreich. A primeira coisa que <strong>um</strong>anova nação precisa, além de definir <strong>sua</strong>s fronteiras,é de <strong>um</strong>a língua nacional. “Nosso idioma está inscritona Constituição, e ele é <strong>um</strong> dos elementos quenos definem <strong>com</strong>o brasileiros”, diz a especialista emlinguística histórica Rosa Mattos e Silva, da UniversidadeFederal da Bahia. “A construção da identidadepessoal passa pela língua, porque é por meio delaque os seres veem a realidade e é <strong>com</strong> ela que elesse expressam”, diz. Tanto é que não existe gente semlíngua, qualquer que seja. E talvez seja por isso quetantas mitologias, tentando explicar o <strong>com</strong>eço domundo a partir do nada, foram parar na palavra.Leia na Continu<strong>um</strong> On-Line entrevista <strong>com</strong> a linguistaMarta Scherre, da Universidade Federal do EspíritoSanto, sobre preconceito linguístico.14 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 15


Você ficou contente <strong>com</strong> a vitória do Salgueiro noúltimo Carnaval?Esta é <strong>um</strong>a longa história. Estou afastado do Salgueirodesde 1989. Quando saí da escola, devido a <strong>um</strong>ain<strong>com</strong>patibilidade <strong>com</strong> a direção, fui para a Vila Isabel.Sempre morei naquela região, da Grande Tijuca.Eu era <strong>um</strong> simples <strong>com</strong>ponente do Salgueiro e na VilaIsabel virei dirigente.Você era da ala dos <strong>com</strong>positores do Salgueiro?Fui da ala dos <strong>com</strong>positores, mas quando saí estavana velha-guarda. Eu me desentendi <strong>com</strong> eles porqueconcorri <strong>com</strong> <strong>um</strong> samba-enredo para o Carnaval de1989 e houve alg<strong>um</strong>as confusões, que são típicas deescolas de samba. Mas meu coração é salgueirense.Fiquei muito feliz <strong>com</strong> a vitória da escola nesse Carnaval.Eu vi o desfile pela televisão, mas não se tem anoção exata do que seja, pois, apesar de toda a tecnologia,ela não aprendeu ainda a transmitir desfiles deescolas de samba. É algo tão rico... Um cortejo no qualse encena <strong>um</strong> espetáculo, <strong>com</strong>o se fosse <strong>um</strong>a ópera.Neste ano, eu me emocionei profundamente porqueo desfile estava muito bom, muito bem acabado doinício ao fim. A Vila Isabel eu não vi, lá tenho grandesamigos, mas ela não mexe <strong>com</strong> minha sensibilidade<strong>com</strong>o o Salgueiro, para o qual entrei no final da adolescência.Foi <strong>um</strong> convívio muito intenso.O Salgueiro foi <strong>um</strong>a das primeiras escolas a trabalhar<strong>com</strong> temas ligados a questões dos negros...Sim, isso foi o que me chamou a atenção na adolescência.A primeira vez que vi o Salgueiro foi em 1958.A escola tem <strong>um</strong>a história social <strong>com</strong>pleta, muito coerenteem toda a <strong>sua</strong> existência. Foi a primeira agremiaçãona qual se exercitou a possibilidade de o meioconduzir a mensagem. Normalmente, o que se via nasescolas de samba era a <strong>com</strong>unidade majoritariamentenegra transmitir os conteúdos da história convencional,oficial, eurocêntrica. Colocar <strong>um</strong> negro vestidode escravo foi <strong>um</strong>a mudança difícil. Negro queria erasair fantasiado de senhor. É até ilógica minha participaçãono Salgueiro pelo fato de eu ter nascido e sidocriado no Irajá, subúrbio carioca, <strong>com</strong>pletamente distantedo núcleo salgueirense. O Irajá tem forte tradiçãode samba, pois está cercado pelo Império Serrano,pela Portela. O lógico seria eu ir para <strong>um</strong>a dessas.Inclusive, quando menino, tinha <strong>um</strong>a tia que foi <strong>um</strong>agrande figura da Portela, foi <strong>com</strong>positora, cozinheira.Recentemente tive acesso a <strong>um</strong>a carteirinha dela e aliestão seu nome e número da matrícula. Imagina <strong>um</strong><strong>com</strong>ponente da Portela <strong>com</strong> a carteirinha de número5, então é da fundação mesmo. Alguns membros da“O samba fixou muita coisa, principalmente na contribuiçãovocabular, que andava solta pelos morros.”velha-guarda, <strong>com</strong>o Monarco e Casquinha, a conhecerambem e, de vez em quando, me questionam por eunão pegar os sambas dela, que só tinham a primeiraparte – u<strong>sua</strong>l naquele tempo –, e não os <strong>com</strong>pletar.Conheço uns dois, que estão na memória, só. Ela foi<strong>um</strong>a pessoa que me influenciou muito. Seria coerente,então, que eu fosse da Portela ou do Império Serrano,onde tenho amigos, mas nunca estive lá. A razão, noentanto, é muito simples: tenho <strong>um</strong> amigo de infânciaque atualmente mora no Recife e sai todo ano navelha-guarda do Salgueiro. Ele pertencia à <strong>com</strong>unidadedessa escola, era <strong>um</strong> salgueirense convicto. A gentese criou junto. Quando atingimos a maioridade, eleme convidou para sair no Salgueiro, eu disse que nãodava, não tinha dinheiro, não estava trabalhando, e eleme falou que a escola iria dar a roupa a pessoas quetivessem facilidade <strong>com</strong> dança, para integrar <strong>um</strong> quadroque não era exatamente de samba, era <strong>um</strong> balé.Isso foi em 1963, o primeiro ano em que a escola foicampeã, <strong>com</strong> o enredo sobre Xica da Silva. No anoseguinte, eu me tornei <strong>com</strong>ponente. Depois, meufilho, aos 10 anos, deu continuidade a essa tradição,saiu na bateria, ficou ligado à escola por muitotempo. É algo natural. Um dia perguntaramaos meus netos, que são gêmeos, <strong>com</strong> 9para 10 anos, de que escola eram, responderam“do Salgueiro”.O senhor é<strong>um</strong> dos criadores e mestresdo samba de partido alto. Essegênero é marcado por narrações de casosdo cotidiano. Quais artifícios ou ferramentasa língua oferece para criá-los?É <strong>um</strong> estilo de samba que me encanta muito pelaproximidade <strong>com</strong> a tradição africana. É a forma menosdesafricanizada do samba. Eu me tornei <strong>um</strong> praticantedele. Hoje já não tenho tanta agilidade <strong>com</strong>oantigamente, é algo que vai se perdendo <strong>com</strong> a faltade exercício. Partido alto é <strong>um</strong>a cantoria na basedo improviso. Então, quando se escreve, quando segrava esse samba, ele já deixou de ser partido alto.Daí se tem <strong>um</strong> samba em estilo partido alto, mas emessência não é. Ao gravar, já se escreveu, se memorizou,então não há improviso. O improviso sempreacontece no ambiente da informalidade. Quando éapresentado n<strong>um</strong> teatro, perde a espontaneidade.Todas as cantorias ocorrem ao sabor do momento.Tem de haver <strong>um</strong>a base, <strong>um</strong>a poesia previamentepreparada, mas o que vai surgir dali não se sabe. Hádeterminados motivos, dentro de refrões, e tem dese versar <strong>com</strong> esses temas. A cantoria nordestina, porexemplo, tem vários estilos, cada <strong>um</strong> <strong>com</strong> muita rigidezformal. O partido alto tem alg<strong>um</strong>as regras, masnão essa rigidez, essa formalidade em que não sepode sair do estabelecido. O partido alto tem mais ocaráter de brincadeira, de algo mais lúdico do que a<strong>com</strong>petição de saber quem é o melhor, <strong>com</strong>o os trovadoresna cantoria nordestina. Nele, quanto mais serimar dentro de <strong>um</strong>a métrica, melhor. Por exemplo,quando se faz <strong>um</strong>a quadrinha: “Lá em cima daquelemorro tem <strong>um</strong> pé de manacá”. Pode-se brincar assim:“Lá em cima daquele morro eu peço socorro”, entende?Inclui-se outra qualidade de rima, transforma-sea quadra n<strong>um</strong>a sextilha, fica algo mais encorpado,balançado, gostoso. Aí é que se vê a habilidade dopartideiro. Há grandes partideiros atualmente, <strong>com</strong>oo Tantinho da Mangueira. Dos que estão em atuaçãono momento, ele é o melhor. O Arlindo Cruz tambémé excelente.O samba é <strong>com</strong><strong>um</strong>ente associado à preservaçãoda cultura nacional. Nisso se inclui a língua portuguesa.Qual a contribuição efetiva que o sambadeu à nossa língua?O samba fixou muita coisa, principalmente na contribuiçãovocabular. Ele consagrou muita criação lexicalque andava solta pelos morros. Na construção de <strong>um</strong>dicionário, por exemplo, se determinada palavra temimportância histórica, para registrá-la é preciso fazer<strong>um</strong>a abonação. Onde está essa palavra, em que localfoi usada. Muitas vezes, essa abonação só vai serencontrada em letra de samba. São palavras de usomuito localizado, <strong>com</strong>o qualquer gíria. A gíria é <strong>um</strong>aforma verbal sempre restrita a determinado ambiente,contexto e grupo. O samba é fonte de referência, apesardo esvaziamento cultural, para o qual a indústriacultural contribuiu decisivamente.É o fenômeno do samba axé...Exato, e também o chamado neopagode, que é sexualizaçãopura e de <strong>um</strong>a ingenuidade... O samba não éisso, em <strong>sua</strong> essência é crítico, é cronista da vida. Ultimamente,está nas mãos de muito poucos <strong>com</strong>positores.Vemos isso no repertório do Zeca Pagodinho. Suagrande importância é essa, ele é o guardião, vamos dizerassim, o bastião da resistência do modo de vida, dacultura, da expressão oral do mundo do samba. Outros<strong>com</strong>positores, <strong>com</strong>o Luís Grande, Zé Roberto e Barbeirinhodo Jacarezinho, também são muito bons.Foi do samba que surgiu seu interesse por estudar aslínguas africanas e <strong>sua</strong> influência no português?Tudo <strong>com</strong>eçou <strong>com</strong> a necessidade que eu sentia desdemuito cedo de denunciar essa forma de as pessoasencararem tudo que é africano <strong>com</strong>o negativo, desinteressante,desimportante. Quando descobri que oportuguês que se fala no Brasil tem forte influênciaafricana, não só na <strong>sua</strong> estrutura, mas no modo defalar, no vocabulário, não parei mais. Há palavras quea gente nem supõe que sejam de origem africana.Nesta semana, por exemplo, me ocorreu que “maluco”poderia ser africana. E é. “Maluco” vem do Congo. Outroexemplo, <strong>um</strong>a palavra que é do campo semânticoda tecnologia, “carimbo”. Ela é de origem africana. Mais<strong>um</strong>a: “sunga”, do campo da vestimenta, dá a impressãode ser extremamente moderna. Mas não é. Vem dasorigens africanas, quando se usava o termo “assungar”,que significa diminuir, encurtar. Então, <strong>um</strong>a roupa assungadaé <strong>um</strong>a roupa encurtada, daí vem “sunga”.Há <strong>um</strong>a infinidade de palavras africanas sendo pes-18 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 19


quisadas,inclusive os falares dosquilombos remanescentes, <strong>com</strong>oo Cafundó, no interior de São Paulo. Sãopalavras que têm uso restrito nessas <strong>com</strong>unidades,que não chegaram ao domínio geral,mas têm <strong>um</strong>a filiação africana muito clara. Muitasdelas, já observei, são permanentes. Elas “hibernam”durante <strong>um</strong> tempo e, por alg<strong>um</strong>a razão, voltam.Quer saber outro termo? Por causa da televisão,todos sabem o que é <strong>um</strong>a “quenga”. É <strong>um</strong>a palavraafricana muito usada no interior e que ficou restritaa essas localidades por <strong>um</strong> bom tempo. Hoje, temcirculação nacional. Há outras ainda: “tamanco”, “camundongo”,“marimbondo”, palavras extremamentesonoras, do grupo banto.O senhor é ligado a alg<strong>um</strong> grupo acadêmico deestudo da língua?Não. Minha formação é in<strong>com</strong>pleta, sou bacharel emdireito e ciências sociais. O tempo da faculdade foi demuita turbulência política e o ensino não me agradavamuito. Apesar disso, eu me formei e advoguei durante<strong>um</strong> período, mas o que ficou foi só <strong>um</strong>a base.Acho que tinha vocação de antropólogo mesmo.Na época era o tipo de conhecimento que não eravulgarizado. Sou autodidata. Tenho <strong>um</strong>a base formal,mas não sou ligado a nenh<strong>um</strong> grupo acadêmico.Mesmo porque tenho críticas à academia. O trabalhoacadêmico é muito em torno do próprio <strong>um</strong>bigo. Aspessoas, em geral, não têm <strong>um</strong>a preocupação maisadiante, mais social, de transformação. Querem é defender<strong>sua</strong> tese, ganhar <strong>sua</strong> promoção, fazer grana. Ea vaidade é muito grande.Seus estudos linguísticos <strong>com</strong>eçaram a despontarquando a carreira musical já estava consolidada.Hoje, <strong>com</strong>o <strong>um</strong> assunto visita o outro: oestudo abastece a <strong>com</strong>posição e a <strong>com</strong>posiçãoexemplifica o estudo?Em 2006, por exemplo, publiquei <strong>um</strong> livro de ficção,Vinte Contos e uns Trocados, pela editora Record. Outrodia, <strong>com</strong>ecei a relê-lo e me surpreendi. Eu escreviesses contos no intervalo de outro trabalho, que nãofoi publicado ainda, o Dicionário da Antiguidade Africana.Ele vai sair pela Civilização Brasileira, que é dogrupo Record também. É <strong>um</strong> estudo que está sendomuito bem elaborado, porque é pioneiro, ninguémtinha analisado a África antes da chegada dos portugueses.Pois bem, eu percebi, ao reler as histórias deVinte Contos que nelas, em vários momentos, aparecemreferências à música. Todos os contos se passamno ambiente das escolas de samba. A todo momentoesse ritmo está nas histórias; e, em várias passagens,a antiguidade africana também. Então tudovai se ligando, não há dúvida. Reparei também que,atualmente, quando faço <strong>um</strong> samba, muita coisa daminha formação jurídica tem entrado nas <strong>com</strong>posições.Quero reunir as músicas em que essa influênciaé recorrente. Esse recurso é usado mais <strong>com</strong>o <strong>um</strong>abrincadeira, <strong>com</strong>o <strong>um</strong> deboche, mas é interessante,de qualquer forma. As coisas se entrecruzam sempreconceito nenh<strong>um</strong>.Na introdução do Novo Dicionário Banto do Brasil(Pallas, 2003), o senhor faz <strong>um</strong>a observação sobre ainfluência das línguas africanas no português aodizer que <strong>um</strong>a das formas de racismo mais arraigadasna alma brasileira é reduzir essas línguas àcondição de “dialetos”. Outro aspecto pontuadonesse texto é a definição do português brasileiro<strong>com</strong>o <strong>um</strong> dialeto do idioma falado em Portugal...Teoricamente seria, porque <strong>um</strong> dialeto é <strong>um</strong>a formalinguística resultante da transmutação, da transposiçãode <strong>um</strong>a língua para outro ambiente. O que aconteceu<strong>com</strong> o português de Portugal e do Brasil? A línguade Portugal, ao vir para o Brasil e ter contato <strong>com</strong>outras realidades linguísticas, transformou-se bastante.Minha crítica nesse texto é ao preconceitode que toda língua africana é <strong>um</strong> dialeto. A existênciade <strong>um</strong> dialeto pressupõe a existência de<strong>um</strong>a língua. É evidente que na África há dialetos,mas há línguas também. O quicongoé <strong>um</strong>a língua falada por milhõesde pessoas, o hauçá, om a n -dinga são línguasque têm subdivisões dialetais,de acordo <strong>com</strong> as regiões. Chamartoda língua africana de dialeto é racista,inferiorizante. Em outro livro meu, DicionárioLiterário Afro-Brasileiro (Pallas, 2007), discuto aquestão do racismo na literatura. Por exemplo, há<strong>um</strong> grupo de literatos negros em São Paulo, chamadoQuilombhoje, que se reúne em torno dos CadernosNegros, publicação editada há cerca de 30 anos.Eles publicam às próprias custas antologias de ficçãoe de poesia. É <strong>um</strong> grupo reconhecido internacionalmente,mas o Brasil não o reconhece. Em nosso paíssó alcançam reconhecimento as pessoas que estãoligadas aos círculos literários influentes, que vendemmuitos livros, estão em grandes editoras.O senhor postou recentemente em seu blog[www.neilopes.blogger.<strong>com</strong>.br] <strong>um</strong> texto sobre<strong>um</strong>a recente pesquisa da situação social do negrobrasileiro no último ano. Nele, faz <strong>um</strong>a críticaao debate atual sobre a existência ou não de raças.Por que surgem essas proposições, e por queelas ganham força?Meu pai e minha mãe são do século XIX; meu painasceu em 1888, poucos meses antes da Abolição.Para mim, o grande acontecimento de 2008 foi a descobertade minha ancestralidade <strong>um</strong> pouco além demeu pai. O historiador Flávio Santos Gomes está trabalhando<strong>com</strong> registros de batismos de pessoas nascidasnos séculos XVIII, XIX, pertencentes a igrejas. Eleme auxiliou. Meu pai dizia que tinha sido batizado naIgreja da Lampadosa, no centro do Rio, que concentrougrande irmandade de pardos. Então, pressupõeseque minha ancestralidade mais próxima não sejatotalmente africana, tenha <strong>um</strong> grau de mestiçagem.Em casa, desde cedo fui o primeiro a pensar nas questõesque envolvem os negros, por ter sido o primeiroa ter acesso a esse tipo de informação – meu paie minha mãe não gostavam de tocar nesse assunto.Diziam: “Deixa para lá que a gente tem que melhorar”.Era aquele conceito de melhorar no sentido doembranquecimento mesmo, de deixar a condição denegro para trás. Minha mãe não queria que eu me envolvesse<strong>com</strong> gente do samba, e eu me envolvi, contrariandotodas as expectativas. Além do samba, haviaa questão da religião, quanto menos africanizada“Há <strong>um</strong>a infinidade de palavras africanas sendo pesquisadas,inclusive os falares dos quilombos remanescentes.São de uso restrito nessas <strong>com</strong>unidades, que não chegaramao domínio geral.”fosse, melhor, apesar de minha mãe ser médi<strong>um</strong>. Elarecebia preta-velha, e meus tios recebiam caboclos.Mas, quanto menos africano a gente fosse, melhor. Élógico, <strong>um</strong> pai que nasceu em 1888 e <strong>um</strong>a mãe quenasceu em 1900 não vão querer nunca que a formaçãodo filho remeta àquele passado aviltante do qual,embora distantes, sentiram as consequências. Não erabom ser negro, não era confortável. O que eles queriam?Que o filho estudasse, subisse na vida. Comecei,então, a ver que enquanto o negro permanecesse nolugar reservado a ele, ocuparia, sem demérito, funções<strong>com</strong>o mecânico ou operário qualificado, <strong>com</strong>o se diziaantigamente. Se, no entanto, o negro pensasse emser doutor, <strong>um</strong> ser pensante, <strong>com</strong>eçaria a entrar n<strong>um</strong>aárea de conflito <strong>com</strong> o branco. E é exatamente isso oque está acontecendo. Mas também é <strong>um</strong> momentomuito saudável, pois se trata de <strong>um</strong> assunto quenunca se discutiu e agora está na pauta do Congresso,<strong>com</strong> o Estatuto da Igualdade Racial. Se raça não existe,existe o racismo! Essa é a grande questão. Se não tenhoa possibilidade de avançar, tenho no mínimo deme preocupar.Assista na Continu<strong>um</strong> On-Line a trecho do DVD TocaBrasil – Nei Lopes.20 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 21


on-lineconvocaçãoEm outras palavras...Escrever “é viajar entre mundos e ter morada apenas na zona de fronteira”. As palavras são do escritor moçambicanoMia Couto, <strong>um</strong> dos mais conhecidos do continente africano e da literatura em língua portuguesa.Biólogo e jornalista de formação, tem mais de 20 livros publicados, em países <strong>com</strong>o Alemanha eDinamarca. Em entrevista, Couto fala de seu trabalho e de questões <strong>com</strong>o a lusofonia e o acordo ortográfico.***O que pode acontecer <strong>com</strong> <strong>um</strong>a língua quando retirada de seu contexto? Se os cost<strong>um</strong>es estão intimamenteligados ao idioma e à evolução deste, o que significa retirá-lo de seu local de origem? Muitos afirmam que elese estagnaria. Em artigo, o professor de teoria literária da Unicamp Alcir Pécora discorda: “A matriz da língua nãoanula o seu exercício, seja ele partilhado pelos membros da <strong>com</strong>unidade original de falantes, seja pelos de <strong>um</strong>grupo mais reduzido, por vezes interessado n<strong>um</strong> registro exclusivamente literário dessa língua”.***A relação entre língua e música também tem espaço na versão on-line da Continu<strong>um</strong>. Ouça o programaMapa – Em Busca do Brasil Sonoro <strong>com</strong> Luiz Tatit, <strong>um</strong> dos participantes do grupo R<strong>um</strong>o, que reuniu tambémNá Ozzetti e Gal Oppido, entre outros. Com 30 anos de formação e discos <strong>com</strong>o R<strong>um</strong>o aos Antigos e Diletantismo,o grupo inovou a forma de utilizar os recursos da língua em <strong>sua</strong>s letras.***Confira, em maio e junho, atualizações exclusivas no site da Continu<strong>um</strong> (www.itaucultural.org.br/continu<strong>um</strong>).Ouça o audiobook produzido <strong>com</strong> curadoria de Cacá Machado, responsável pela exposição sobreMachado de Assis do Museu da Língua Portuguesa; leia o glossário sobre linguagem escrito pela professoraMayra Rodrigues Gomes; conheça a poesia verbovocovi<strong>sua</strong>l em criação de Ricardo Aleixo; saiba qual a relaçãoentre som e significado no artigo do professor Welington Andrade, entre muitos outras. No site, vocêtambém pode se cadastrar para receber nossa newsletter e acessar as edições anteriores da revista.O escritor moçambicano Mia Couto: “A língua é <strong>um</strong>a moradia, <strong>um</strong>a casa para o pensamento”Abra a gaveta e participe!Cansado de guardar <strong>sua</strong> produção na gaveta? Mande contos, poemas, ilustrações, fotografias, vídeose demais trabalhos artísticos para a Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural! Eles podem ser publicados nas páginas –impressas e virtuais – da revista.Basta ficar de olho no tema do mês e enviar <strong>sua</strong> obra pelo e-mail participecontinu<strong>um</strong>@itaucultural.org.br.Maio-junho: LínguaJulho-agosto: ConectividadeAs portas da Continu<strong>um</strong> não estão abertas apenas para obras de arte. Você também pode participar <strong>com</strong>matérias jornalísticas, reflexões, <strong>com</strong>entários, críticas, sugestões etc. A cada edição <strong>um</strong>a enquete convida osleitores a dar <strong>sua</strong> opinião. Para o tema corrente entre maio e junho, a enquete é: Qual o futuro das línguas?.Acesse e diga o que pensa!***As relações sociais estabelecidas por intermédio da internet – tema cada vez mais presente em tempos deOrkut, MySpace, Twitter e outros programas que vêm tornando o mundo mais integrado e em conexão– são o mote da entrevista especial, <strong>com</strong> o jornalista Marcelo Tas, que será publicada na edição sobreConectividade (julho-agosto).E quem vai fazer essa entrevista é você: envie perguntas, exclusivamente relacionadas ao universo dainternet, para ser respondidas por Tas. O fim do mês de maio é o prazo para mandar quantas perguntasquiser, usando o e-mail da redação: participecontinu<strong>um</strong>@itaucultural.org.br.Para conhecer mais sobre o <strong>com</strong>unicador, visite seu blog (marcelotas.uol.<strong>com</strong>.br), <strong>um</strong>a das páginas virtuaismais visitadas do país. É lá que ele <strong>com</strong>enta e analisa as novidades da rede não só brasileira, mas a de todoo mundo. Tas também é <strong>um</strong> dos mais seguidos no Twitter, em que dá dicas sobre o que é bom ficar de olhona internet.Para saber mais, acesse www.itaucultural.org.br/continu<strong>um</strong>.22 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 23


O homem que abdicou das palavrasPor Diogo Sponchiato | Ilustração Hare Lanzárea livreAbdicou das palavras <strong>com</strong>o quem para de beber cerveja. Talvez estivesse bêbado quando ditou a aposta. Os<strong>com</strong>panheiros de bar nunca acreditaram na proposta de Jorge. Mas ele a fez. Fez para si, porque sabia quede <strong>sua</strong>s entranhas não brotariam revoluções. Usou os amigos e os quatro ou cinco copos de cerveja <strong>com</strong>oálibi para dar força ao seu plano egoísta. Sabia que não era o primeiro nem o último a fazê-lo. E ninguématentou às <strong>sua</strong>s últimas palavras.Jorge se achava mais <strong>um</strong> lobo da estepe. Não tinha nem 50 anos, mas se portava feito <strong>um</strong> velho car<strong>com</strong>idopor <strong>um</strong> tempo sem alterações. Considerava-se o melhor entre os alunos e o pior entre os professores. Nuncapublicou <strong>um</strong> livro, ele que se via intelectual, <strong>com</strong> os óculos na ponta do nariz adunco, o cigarro no cantodireito da boca, <strong>um</strong> ou dois livros presos à axila. Tantas poesias confinadas no armário, prisioneiras do pó. E<strong>um</strong> romance que o fogo da lareira dilacerou, após <strong>um</strong>a noite regada a puro malte escocês. Não que fossepusilânime, mas ciente de que o mundo não se importaria <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s insossas palavras e débeis ideias. Seustextos não refletiam a originalidade que, <strong>um</strong> dia assegurou ele, habitava <strong>sua</strong> mente. Jorge era o intelectualque estaria sempre prestes a nascer, mas nunca nasceria.Nesse impasse, decidiu-se pelo aborto. Cansou-se da prosa, esse mar artificial; enfastiou-se da poesia, esseriacho de extremos, antíteses e falsidades. Rasgou os jornais, a interpretação barata da realidade estúpidaque vivia. Cobriu <strong>com</strong> <strong>um</strong>a lona <strong>sua</strong> exígua biblioteca, repleta de exemplares emprestados e nunca lidos,afinal, ele sempre preferiu os livros <strong>com</strong>prados pelo próprio bolso. Ao espreitar <strong>um</strong> vol<strong>um</strong>e de contos deMachado de Assis, colocou-se no lugar do alienista, mas logo cuspiu a lembrança. Árduo trabalho o de mandarao inferno, ao vazio, ao nada, tudo o que havia lido. Adeus a personagens e mundos. Adeus ao tempoconstruído por frases. Sua meta era se desvencilhar das palavras.Aposentou-se da leitura. E maior esforço despendeu para renunciar aos diálogos do cotidiano, essas coisasaparentemente insignificantes, mas que são os verdadeiros tijolos do conhecimento h<strong>um</strong>ano. Suou paratransformar os pedidos de café na padaria em singelos gestos e interpretações. Tornou-se <strong>um</strong> ator de filmemudo. Logo se viu posicionando os dedos em “v” e levando-os à boca. Minutos depois, estaria <strong>com</strong> <strong>um</strong> novomaço de cigarros. Preteriu todos os bons-dias, obrigados e rituais de reciprocidade que, há alg<strong>um</strong> tempo,saíram de moda na urbe. Abnegou o céu, evitando os outdoors e as fantasias sugeridas pelas nuvens.Extinguiram-se as poucas amizades. O telefone antigofora arrancado, a caixa de correio lacrada, o rádio depilha chutado e a televisão relegada à calçada. Deixoun<strong>um</strong> ferro velho o fusca, herança da esquecida família;evitaria assim os xingamentos que tanto praticavano trânsito. Sobretudo, sofreu para abster-se dos filhosda puta, cacetes e putas que o pariu. As topadas no péda cama não eram respondidas. Ao esbarrar <strong>com</strong> <strong>um</strong>jovem desatento na rua, retribuía apenas <strong>um</strong> olhar. Osolhos tornaram-se delatores; deles, saíam calados todosos impropérios. As relações h<strong>um</strong>anas se apagavam, masele sobrevivia. Tentou se acost<strong>um</strong>ar, simplesmente.O primeiro ano calado e fechado aos discursos alheiosfora <strong>um</strong>a sucessão de crises. Como desde o princípiotemeu, embora não proferisse as palavras, elas continuavamvivendo em seu pensar. As reflexões, as lembranças,os anseios e os sonhos sempre negados estavamlá, dentro daquela cabeça careca, construídose consolidados por meio de substantivos, adjetivos everbos, <strong>um</strong> infinito de verbos.Contorcia-se, espancava as têmporas tentando expulsaras palavras. Pensou em desistir, mas resistia.De repente, <strong>sua</strong> mente entrava em transe e observavaa tênue diferença que residia entre essesdois verbos: desistir e resistir. Lágrimas vertiamdaqueles olhos esbugalhados, enquanto<strong>um</strong> “d” se transformava em “r” e, <strong>com</strong>o<strong>um</strong> relâmpago, ocorria o movimentoinverso.Certa noite, para obliterar as letras e mergulhar no riodo sono, sorveu, ansioso, duas garrafas de pinga. Caiue adormeceu. Acordou no meio da madrugada devolvendoao mundo aquilo que só os canaviais poderiamconceber. Jorge, esse nome que, todos os dias, se desenhavaem <strong>sua</strong> mente, quis se valer do vômito paraexpurgar as palavras que pulsavam em <strong>sua</strong> cabeça.Tomou banho, para lavar-se das sílabas e do cheiro deálcool. Sentou-se na cama e persignou-se, <strong>um</strong> velhohábito que era menos fé do que mania. Dessa vez, ao<strong>com</strong>pletar o sinal da cruz, Deus invadiu-lhe o cérebro.Antes tivesse se endereçado ao coração. “D”, “E”, “U”,“S”. Essas letras pululavam, emergiam e submergiam,metamorfoseavam-se, apagavam-se <strong>com</strong>o <strong>um</strong> vagal<strong>um</strong>eque some na imensidão da noite e estouravamfeito <strong>um</strong> rojão. Ele pensou estar diante de <strong>um</strong>a revelação.Decerto era <strong>um</strong> castigo. Estava a ponto de gritar,de urrar, mas manteve o silêncio e pensou que Deus,tão menosprezado em <strong>sua</strong>s antigas conversas filosóficas,havia sentido pena. Três anos tentando fazer de se<strong>um</strong>undo a negação do verbo. Três anos seculares. Umaguerra cujas trincheiras estavam dispostas dentro de si.Desarmado, desalmado, Jorge já avistava a derrota.Enxergou a morte travestida de abecedário e deixoude sair de casa. Uma semana esgotando as cervejas. Aúnica semana em que as palavras não o perturbaram.Talvez profetizasse o início de <strong>um</strong> fim. Se no princípioera o Verbo, ao fim somente caberia o silêncio. Um silêncioantecipado. Um silêncio ambíguo. Vencedor evencido; necessário e egocêntrico.No último dia daquela última semana, percebeu que as palavrasjá re<strong>com</strong>eçavam a borbulhar. Sentiu a morte tocar-lhe ascostas. Olhou-se no espelho e viu-se no meio de <strong>um</strong>a ponteem cujas extremidades se opunham a palavra e a morte.Subitamente, sentiu <strong>um</strong>a intensa dor no peito. E, n<strong>um</strong>rodamoinho de imagens e nomes que assaltou seupensar, pegou <strong>um</strong> papel escondido debaixo da cama.Ele previa o momento.Gritou, gemeu,pediu perdão aoshomens, aos verbos e a Deus. Praguejou,recitou <strong>um</strong> soneto. Suc<strong>um</strong>biu<strong>com</strong> <strong>um</strong> dicionário explodindo na mente. ParaJorge, a morte não era a maior derrota.Em seu túmulo não havia seu nome, tampouco <strong>um</strong> epitáfio.Uma lápide lisa. Poucos <strong>com</strong>pareceram ao enterro.Um funcionário da funerária dirigiu-se a <strong>um</strong> dos antigosamigos e entregou-lhe <strong>um</strong> papel. O amigo abriu <strong>um</strong>a folhade caderno já amarelada pelos anos e reconheceu a caligrafiade Jorge, tão perfeita <strong>com</strong>o nos tempos em que escreviapoemas no colégio. O verbo derradeiro c<strong>um</strong>pria <strong>sua</strong> ação.Talvez as palavras não o rodeariam mais. Talvez seu livro sefecharia sob o som do silêncio e à luz da escuridão.Diogo Sponchiato é jornalista.24 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 25


Série Paisagens Descritas-SP, 2009, de Rebeca RaselSem Título, de Alexandre Hypolito26 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 27


A unificação da língua portuguesa aproximará o Brasil dos outros países lusófonos? O Acordo Ortográfico daLíngua Portuguesa, em vigor desde janeiro último, além de normatizar o uso escrito do idioma, traz em seu bojoimplicações históricas e antropológicas. Seria esse doc<strong>um</strong>ento capaz de promover <strong>um</strong>a união mais coesa entreoito povos dispersos em três continentes? Nações irmãs, mas em muito estranhas entre si, seus laços por vezescircunscrevem-se aos limites da diplomacia. Seria a língua capaz de superar essa barreira?Esforço de “universalização”Por Roberto DaMattaarenaOs elos entre visões de mundo e seu modo de expressão mais potente, fluido, permanente e fundamental –a linguagem articulada, falada ou escrita – são problemáticos. Sem <strong>um</strong> suporte material – <strong>um</strong>a escrita e <strong>um</strong>aliteratura – as línguas desaparecem <strong>com</strong> os seus falantes. A expressão “língua morta”, usada para designarlinguagens cifradas, utilizadas em campos específicos, <strong>com</strong>o o do direito e da filosofia, é <strong>um</strong>a contradiçãoem termos. Pois essas línguas estão mais vivas do que muitos idiomas que, devido ao contato cultural, têmseesvanecido sistemática e tragicamente do mapa da h<strong>um</strong>anidade. Isso nos dá, talvez, <strong>um</strong>a noção maisprecisa da importância de <strong>um</strong>a padronização da língua na <strong>sua</strong> dimensão escrita, <strong>com</strong> todas as dificuldadese limitações que ela apresenta aos seus usuários, sejam eles nativos, sejam estrangeiros, analfabetos ouinstruídos. Pois <strong>um</strong>a língua escrita unifica-se revelando – <strong>com</strong>o tem ocorrido <strong>com</strong> a reforma do português– os seus arbítrios. Estes nada mais são do que as escolhas de sons e sentidos que todos os códigos de<strong>com</strong>unicação h<strong>um</strong>anos, <strong>com</strong>o meios de contato projetados para fora e independentes do organismo edos códigos genéticos que regem o mundo da biologia, expõem. Pois todas as línguas h<strong>um</strong>anas escolhem,distinguem e excluem sons e modos de <strong>com</strong>binar cadeias sintáticas e semânticas que formam seu léxico e<strong>sua</strong> gramática.Por esse motivo, entendo que o acordo de reunir, n<strong>um</strong> único protocolo, a dimensão escrita de <strong>um</strong>a mesmalíngua falada por oito nações localizadas em continentes diversos é algo muito importante. Trata-se de <strong>um</strong>esforço de “universalização” do português. O acordo ortográfico – ainda que remeta às nossas dificuldadesmais elementares de reaprender a escrever o português, daí alg<strong>um</strong>as das reações à novidade – traz no seueixo <strong>um</strong>a padronização da forma ou do material que carrega o pensamento, os valores e os hábitos, n<strong>um</strong>sistema capaz de juntar n<strong>um</strong> mesmo código as inevitáveis e mais do que importantes variações culturaise sociais, bem <strong>com</strong>o históricas, que separam os países falantes do idioma. Penso que isso o redime de <strong>um</strong>paulificante reaprendizado da língua.Roberto DaMatta é professor de antropologia da PUC/Rio e professor emérito da Universidade de NotreDame, Indiana, Estados Unidos. Autor de livros sobre sociedades indígenas do Brasil e a sociedade brasileirae colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.ilustração Liane IwahashiO desacordo ortográficoPor João Pereira CoutinhoNão é preciso ter lido os românticos para saber que a língua é o produto de <strong>um</strong> povo, e não dealguns sábios que resolvem decidir que existe apenas <strong>um</strong>a forma correcta de falar, escrever epensar em português.O primeiro problema <strong>com</strong> o Acordo Ortográfico <strong>com</strong>eça aqui: tomando <strong>com</strong>o base duas pronúnciaspadrão– a brasileira e a portuguesa –, os sábios de ambos os países chamaram a si a tarefa hercúleade “unificar” a língua, <strong>com</strong>o se isso fosse desejável. Não é. Ao ignorar os outros falantes do português,a atitude revela prepotência perante povos terceiros e alegadamente “inferiores”.Não existem donos de <strong>um</strong>a língua. Ela pertence a quem a fala, <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s variações fonéticas eortográficas. O caso não é singular: o inglês, o francês ou o espanhol possuem variações linguísticase geográficas que nunca puseram em causa <strong>sua</strong> importância no mundo. A diversidade é <strong>um</strong>aforça, não <strong>um</strong>a fraqueza.Mas a natureza aberrante do acordo não está apenas na forma desrespeitosa <strong>com</strong>o se tratamtradições linguísticas que devem e merecem ser protegidas. Como cidadão português, existe <strong>um</strong>arazão suplementar para me opôr a ele. E essa é estritamente linguística.De acordo <strong>com</strong> os pais do acordo, a “unidade da língua” só se consegue quando a ortografia debase alfabética for <strong>um</strong>a transcrição fonética o mais fidedigna possível. Assim se entende a obsessãode eliminar certas consoantes mudas, <strong>com</strong>o o “p” de “adopção” ou o “c” de “actor”.Essa obsessão assenta em novo erro. O facto de existirem certas consoantes mudas nas palavrasdo português de Portugal <strong>com</strong>eça por representar <strong>um</strong>a pegada etimológica de inegável riquezapara o estudo de <strong>um</strong>a língua. O “p” de “adopção” não é <strong>um</strong> mero arcaísmo: é <strong>um</strong>a expressão dehistória e de identidade. Mas não só: o “p” permite aos portugueses abrir a vogal que antecede aconsoante, funcionando assim <strong>com</strong>o importante indicador fonético.A discussão ignora alg<strong>um</strong>as dessas idéias. E até os opositores do acordo, pelo menos em Portugal,parecem ter preferido considerações nacionalistas (e economicistas) que passam ao largo doreal problema: persistem em dizer que ele apenas serve os interesses económicos do Brasil, queacabará por ter posição dominante no mercado livreiro em todo o mundo de língua portuguesa.Ainda que isso seja verdade, o problema principal não está na economia; está no reduto histórico,filosófico e cultural. Aceitar o acordo será aceitar <strong>um</strong>a imposição artificial sobre a mais singular construçãoh<strong>um</strong>ana. Será <strong>com</strong>pactuar <strong>com</strong> <strong>um</strong>a intromissão arbitrária na nossa mais profunda h<strong>um</strong>anidade.João Pereira Coutinho é jornalista português, escritor e autor de Avenida Paulista (Editora Record,2009). Escreve semanalmente para a Folha de S.Paulo.Este artigo foi escrito <strong>com</strong> as regras ortográficas utilizadas em Portugal antes do atual Boom, acordo. de Lúcio Carvalho28 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 29


Comunicar é precisoA língua que se expressa pela artebalaioINTERNETEnciclopédia Itaú Cultural de Literatura Brasileira(www.itaucultural.org.br/literatura)Criada em 2007, a enciclopédia é <strong>um</strong>a das mais <strong>com</strong>pletasreferências sobre literatura brasileira disponibilizadagratuitamente. Além dos verbetes sobre obras,movimentos literários e biografias de romancistas, poetas,contistas e críticos, a publicação oferece históriasde bastidores, ensaios e textos reflexivos, trechos deobras e <strong>um</strong>a seção de vídeos. Nessa seção, é possívelencontrar pérolas, <strong>com</strong>o a recitação de poemasde Adélia Prado e Ferreira Gullar, feita pelos própriosautores; e os depoimentos de Lygia Fagundes Telles eMilton Hato<strong>um</strong>, entre outros.imagem: TVZero/divulgaçãoCINEMALíngua – Vidas em Português, de Victor Lopes (idem,Brasil e Portugal, 2002, TV Zero/Sambascope)Doc<strong>um</strong>entário, dirigido por <strong>um</strong> moçambicano de nacionalidadeportuguesa que vive no Brasil, traça <strong>um</strong>retrato poético sobre a língua portuguesa e a lusofoniamundo afora. Rodado em países <strong>com</strong>o Moçambique,Brasil, Índia, Portugal e Japão, a obra deixa evidenteo paradoxo língua/cultura: enquanto a primeiraune, a segunda separa.[este doc<strong>um</strong>entário faz parte da Midiateca do ItaúCultural e pode ser consultado gratuitamente]imagem: Ricardo Labastier/divulgaçãoMÚSICAViolas de Bronze, de Roberto Corrêa e Siba (independente,2009)Disco marca o encontro do violeiro mineiro RobertoCorrêa <strong>com</strong> o rabequeiro pernambucano Siba. Músicas<strong>com</strong>o Cara de Bronze (nome também de <strong>um</strong> contode Guimarães Rosa), Big Brother Mental, Boi Tristeza eL<strong>um</strong>e demonstram a harmonia entre a viola (caipira,de cocho, elétrica...) e a rabeca, e – por que não? – entreo sertão de Corrêa e a zona da mata de Siba. Destaquepara a faixa Nos Gerais, que narra <strong>um</strong> confronto<strong>com</strong> o diabo no sertão mineiro, a qual ficou curiosamentebela no sotaque de Siba.CINEMALITERATURAUm Filme Falado, de Manoel de Oliveira (idem, Portugal,2003, Paris Filmes)Rosa Maria (Leonor Silveira), professora de <strong>um</strong>a universidadeportuguesa, e <strong>sua</strong> pequena filha, Maria Joana(Filipa de Almeida), partem em <strong>um</strong> cruzeiro de Lisboar<strong>um</strong>o a Bombaim (Índia). No trajeto, visitam lugaresque marcaram a civilização ocidental, <strong>com</strong>o Pompeia(Itália), Ceuta (Espanha), Atenas (Grécia), Cairo (Egito),Istambul (Turquia). Preste atenção na cena em que<strong>um</strong> americano, <strong>um</strong>a francesa, <strong>um</strong>a grega e <strong>um</strong>a italianaconversam, cada qual falando seu idioma, e todosse entendem.imagem: Paris Filmes/divulgaçãoLa Divina Increnca, de Juó Bananére (Editora 34, 43páginas, 2001)Em paródia à língua falada pelos italianos que imigrarampara São Paulo no <strong>com</strong>eço do século passado,este livro reúne poemas publicados, em <strong>sua</strong> maioria,no periódico O Pirralho. Bananére, pseudônimo dopoeta paulista Alexandre Marcondes Machado, satirizanão só o falar, mas também os hábitos da n<strong>um</strong>erosacolônia, <strong>com</strong>o nos poemas O Studenti du BóRitiro e Círgolo Vizioso, este último dedicado a <strong>um</strong> talde Maxado di Assizi.[este livro faz parte da Midiateca do Itaú Cultural epode ser consultado gratuitamente]30 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 31


fotorreportagemLetras que não sãoPessoas, objetos, paisagens... Nos lugares menosesperados, elas ganham corpo. Fotógrafos de todoo país encontram formatos de letras onde poucosas percebem.imagem: Pedro David (pedrodavid.<strong>com</strong>)imagem: Gustavo Pellizzon (gustavopellizzon.<strong>com</strong>)32 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 33


imagem: Fernanda Preto (fernandapreto.<strong>com</strong>)imagem: Pedro David (pedrodavid.<strong>com</strong>)34 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 35


imagem: Formiga (flickr.<strong>com</strong>/-formiga-)imagem: Mirian Fichtner (mirianfichtner.<strong>com</strong>)36 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 37Veja mais imagens na Continu<strong>um</strong> On-Line


Los cibermonos de Lo<strong>com</strong>biaPor Ronaldo Bressane | Ilustração Projeto Dulcinéia CatadoraFragmento do relatório do Agente Zed Stein encontrado em <strong>um</strong> sebo de livros escolaresno mercado de Getsemaní, em Cartagena de Índias, maio de 2051. É o último doc<strong>um</strong>entodeixado por Stein antes de desligar-se da Divisão dos Não Lineares.De: Agente Zed SteinPara: Sub<strong>com</strong>andante Mark SandmanAsunto: El desaparecimiento del Agente Seymour GlassEn: Barichara, Colômbia, 12 de março de 2047ficçãoVoy te contar, papito. No es facil escrivir nesta lengua nueva. Ja no es facil cuentar esta historia. Ni mesmosei bien lo que se pasó. Estoy en una sinistra ciudadezita colonial que parece extraída de los montes deMinas Gerais, mas quedase en los Andes, aunque los sinos toquem con gusto de orapronobis y jo acabe dealmorzar <strong>um</strong> maravilloso bode, que acá ellos jamam de cabros. No es facil una lengua nueva, toda palabraparece un error. Voy te cuentar.Bueno, conforme la misión, estoy en Lo<strong>com</strong>bia em busca do Agente Glass: los ultimos sinales que envió perderanseentre las cordilleras Central y Oriental. Y de hecho aché uns parceros en Bogotá, pierto del MercadoSan Alejo, que terian visto en janero un gringo narigudo <strong>com</strong> una superchevere ropa de monge, pedindo infossobre cactus Sanpedro. Solo sería Glass: el siempre tuve essa quediña por mescalina. Ahora deveria estarahi por La Candelaria. Donde? No pára de llover, un frio y una neblina ducaray que envolven <strong>com</strong>o chantillyla enormisima ciudad, cuadriculada <strong>com</strong>o <strong>um</strong> jugo de xadrez donde los peones son enanos vestidos demariachis, los caballos burricos desembestados, los bispos ziguezagueantes táxis amarillentos subindo loscalzadones y continue tu mesmo la metafora (acá en Lo<strong>com</strong>bia todo quer dizer otra coisa, <strong>com</strong>o voy a explicarmás tarde): un lugar perfecto para s<strong>um</strong>ir.Despues de muchas r<strong>um</strong>bas y andanzas sin r<strong>um</strong>bo, descobri, en una galeria llamada Terraza Pasteur, dondeallá por las diez de la noche se encontra de tudo, un cierto bar Rayuela, decorado con motivos de Escher.Mostré la fueto de Glass a lo mesero, un punk cafeinómano:– Si, me acuerdo, he venido dos noches seguidas, pareciómeditabundo, <strong>com</strong>o un niño sin su brinquedo... Bebiamojitos encuanto facia palabras cruzadas. Recuerdoque cuando terminó su librito sonrió, una única vez. Ay,dejó acá su libro! Pega, ia mesmo atirar afuera.Guardé las cruzadas y fue de bar en bar hasta la Macarena,donde, en un tal de Ciudad Invisible, una guapisimadanzarina insinuó:– Lo vi <strong>com</strong>prar unos vestidos de <strong>um</strong> travesti.– Enserio?– Cual es lo problema?– Pareciam amigos, ele y lo travesti? Los viu antes deso?– No, fue la unica vez. Pareciam amigos, hablavam demoda... Ah! me acuerdo que el tiozito estaba tambiéinteresado en ropas de torero...Pagué y sali, zonzo con el perf<strong>um</strong>e opiáceo de la chica.Tuve una il<strong>um</strong>inación sin noción y domingo seguinte<strong>com</strong>pré un sombrero preto y fue a la Plaza de TorosSantamaria. Pagué los ojos de la cara, cien mijonesde dineros, por un lugar apretado entre los vinte milplayboys,no habia miserabiles.No tengo nada que ver con essastradiciones que gozan con el paloalleno: me cagué si el toro o si el torero oel público van a morir; aché el espetáculo unachatura sin fin... Un toro entrava, danzava y moria,otro toro entrava, danzava y moria, estava ame quedar de sueño, si!, de sueño, de dormirme,y no de sueño, de fantasiar encuanto se durme (johablo que esto portuñol oficial es más pobre queel muerto português), embora parecesse mesmo unsueño estúpido, toro após toro si jodiendo, de susalmofaditas los gomelos atirando sombreros y gritandoolé, olé, olé, cuando de repente sucedió unaputa cosa esquisita.El torero cayó muertito de la silva.Si! Y poco a poco los toreros assistentes <strong>com</strong>enzarana joderse en la arena, espajando pánico por la plazade cuernos. Pensé: algun puto francoatirador con unaarma phaser, una arma que solo nosotros, Agentes,podemos usar. Tenté quedarme parado encuanto losplays corrian y giré mis ojos para encuentrar la fuentede los disparos – y b<strong>um</strong>!, dez fileras abajo, una viejitano dejaba dúvidas.38 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 39


– Agente Glass, hijoeputa! –, grité, feliz.Luego en seguida la viejita mató el último torero, volteósu cabeza y me miró. En la muesca: era elle, el EscritorRecluso travestido. Desapareció en la multidón– perdón, papito...Las semanas siguientes otros atentados acontecieranformando un padrón, lo que, <strong>com</strong>o sabe el Sub<strong>com</strong>andante,é algo dificil en Lo<strong>com</strong>bia, donde ni mesmolas mijones de maneras de salsar facen lógica,donde cada cosa quer dizer otra cosa. Mas de gringosque perdieran las orejas en asaltos en Villa de Neyva,freiras molestadas en las busetas de Medellín (lo queparece jover en el mojado), buembas explodindo nasmansiones de narcocaudillos de Cartago y trafico decadáveres de cantores de pós-vallenato en maletasetc., los jornales estan llenos, hoy, mañana y siempre.Extrañísimo, sí, fueran los episodios de la Gallera SanMiguel, en Bogotá, y de la Finca Paraíso, en un pántanopierto de Mompós.En el clube gallístico moriran uns cien – todos enbenenados,losers. Solamente restaran los gallosy don Claudio Tovar, el dono, que estaba en elbañero haciendo titica cuando la f<strong>um</strong>azaasasinou sus sócios. La policía tartamudabade un veneno a que los supergallosson imunes.– Un silêncio extraño, povoado por cantos de gallos...Jo me senti acuerdando dentro de un pesadelo kafkiano–, el sobrevivente cacarejaba a la prensa, bañadoen lágrimas, su ton paradojalmente gallináceo alembrar un crítico literário.Ja en la Finca Paraíso facian otra pelea: telecatch de cachuerronesteleguiados. Nada se pasó con los canzitosmutantes, de mastins-sucuris a pitbulls de seis pernashasta akitas cocainómanos, todos sin lengua, para nollamar atención de la ley. Mas los apostadores, propietariosy visitantes y hasta las tiazitas que venden chicha,aquella cachaza de millo horrible, unos 50 adictos porla pelea de perros fueran snifar coca pela raiz.Si de un lado el goberno notava un padrón en el gásque matava solo h<strong>um</strong>anos y no afectava animales, jo,entre una r<strong>um</strong>ba y otra, imaginava el proximo pasodel ensandecido Agente Seymour Glass. Si estabaindo para el norte, mas cierto que se marchase para elParque Tayrona, território militarizado de las reservasde robonobos, la espécimen de cibermonos creadacon orgullo nacional – “Los Macacos Lo<strong>com</strong>bianosDo It Better” – para el marketing de porn snuff moviesaditivados por la triptoheroina plantada en los contrafortesde la Sierra Nevada de Santa Marta.Alugué una barca y subi elMagdalena hasta salir por el Caribe,y atraqué en el Cabo San Juan de Guia.Como siempre, no pensaba que el más fácilfuese mesmo tan fácil, me olvidava da esquisitaconexión entre los Agentes No-Lineares, aquejoiman que pulsa en nuestro sangue congelado quenos afasta y nos atrai y, claro, trai nuestra condiciónde pós-h<strong>um</strong>anos, nuestra maldición maçon de judeuserrantes que desenbocan en la puta y mesmaJerusalém. El cielo estaba azul y el espacio, lleno deluz – y vi el Escritor Recluso, J. D. Salinger, aquejo queparó de escribir en 1963, la lenda, la piel enferma, laboca rota por copas y copas de mojitos, desdibujado,desangrado, <strong>com</strong>pletamente solo en la pequeña angradel Cabo, sob las palmas de coqueros, nu sobreuna canga colorida en que se percebia el deseño deun caballo. En sus manos, una caneta, un cuaderno.Jo digo solo pues era el unico ser h<strong>um</strong>ano en la plajatomada por los cibermonos que hacian sexo <strong>com</strong>o seno havia mañana, a dos, a tres, cuatro, cinco, octaedros,trenziños, mandalas de macacos lúbricos dando duroen su lenguaje requintada y obsesiva, pero ahora sinun director ditador. El Agente Seymour Glass mirabaesto verdadero congreso politico y todo escribia ensu cuadernito, rindo, rindose todiño el loko terroristaen su solitário labor libertário, un diós que pregase laanarquia para atingir el zen en la literatura, devolviendosu propio senso al mundo – mesmo que un sensomico. Esto observé de mi barca, mirando las piedrasque pareciam gigantescas cobras, tortugas, peces, y elmar parecia el ciel, y el ciel parecia las montañas, y cadauna desas cosas parecian símbolos de la civilizaciónTayrona... acá cada cosa quer dizer otra cosa.– Hace tiempo, Agente Stein –, mandó con su voz detronco seco.– Hace tiempo, Agente Glass! Gran idea, jamás hépensado en la ecologia sexual <strong>com</strong>o terrorismo político–, y andé hasta la canga de caballo con mi mano enel culo, con miedo de ser violado por <strong>um</strong> robonobo,mi mamá nunca me perdonaria, papito.Abrazamonos y el Agente Glass me ofereció un cachimbito.– Te acuesta al sol un poco, hombre. Mira! El ópio lo<strong>com</strong>bianoés el mas relax del mundo –, y me estendióel fuego.Si de un lado el goberno notava un padrón en el gás quematava solo h<strong>um</strong>anos y no afectava animales, jo, entre unar<strong>um</strong>ba y otra, imaginava el proximo paso del ensandecidoAgente Seymour Glass.Poco antes de tragar pensé en mostrar, <strong>com</strong>o un alunoestudioso, el librito de palabras cruzadas dondetodo estava <strong>com</strong>pleto – minos la contesta para “Parquedonde se localiza Sierra Nevada de Santa Marta”:el Tayrona. Ni Jack Sparrow ni españoles imaginariansu Eldorado devastado por monos herosexômanosanestesiados en un toreo tántrico.Tragué el ópio y, tras olor de flores y amendoas y manosdel viento, me recuerdo del Agente fejar el cuadierno ysalir a pescar unas piedritas volcánicas; juntó sus cosas,guardó na canga y caminó lento sobre los lilases delCaribe. La trilha sonora en mi cabeza era mambo chocolatecuando empezé a cuentar el ritmo de las ondas.Series de tres, cinco, nove, cuatro. Tres, cinco, nove, cuatro.Un padrón. Todo quer dizer otra cosa. Mas fue nessahora, cuando ja estaba cuase achando buena una bonoba,que jo mesmo <strong>com</strong>enzé a levitar.Ronaldo Bressane é jornalista e escritor. Publicou, entreoutros, a trilogia de contos A Outra Comédia, entre 1999 e2003. Mantém o blog Impostor (impostor.wordpress.<strong>com</strong>).40 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 41


esenhaAmolando a língua no veludoA história da Aurélia, a “dicionária” sem preconceitos.Por Hilton Lacerda | Cartuns Allan SieberUma das diversões mais tolas que eu experimentava quando era adolescente consistia em abrir o dicionárioem <strong>um</strong>a página aleatória e ler n<strong>um</strong>a roda de amigos – invariavelmente em estado de <strong>um</strong> interessantetranstorno de h<strong>um</strong>or – o significado de alg<strong>um</strong> verbete, e eles tinham que descobrir qual a palavra a queme referia. Divertimento engraçado e pouco útil, diga-se de passagem. Agora me vejo aqui, <strong>com</strong> o nariztocando a tela do <strong>com</strong>putador, desmembrando meu raciocínio para falar sobre a Aurélia – A Dicionária daLíngua Afiada.Acredito que no ano 2000, n<strong>um</strong> sábado de sol, encontrei-me <strong>com</strong> Fred Libi – codinome de Wanderley Joaquim,que nem nome é – em torno da Praça Benedito Calixto, em São Paulo. Ele estava na <strong>com</strong>panhia deamigos e por essa época ainda não tinha ass<strong>um</strong>ido o pic<strong>um</strong>ã vasto e descolorido que passou a usar alg<strong>um</strong>tempo depois. Ainda morava em São Paulo – o destino e as convicções o empurraram para Ushuaia, no iníciodo fim do mundo, bem ali na Argentina. Eu estava a<strong>com</strong>panhado de duas mamíferas (Duda e Juliana) emais que rapidamente fui chamado de marsupiellen. Como é mais fácil perder amigos que piadas, fiquei felizao saber de onde vinha essa palavra. Até hoje fico em dúvida se eu era o motivo da criação ou <strong>um</strong> exemploprático que se aproximava no momento da descoberta. Libi, juntamente <strong>com</strong> Angelo Vip (Victor Ângelo,jornalista), <strong>um</strong>a espécie de diplomata do xoxo, estava, naquela altura, trabalhando n<strong>um</strong> site gay chamadoSupersite. Ambos, fazia certo tempo, traduziam alg<strong>um</strong>as expressões para tornar o site mais <strong>com</strong>preensível.Um glossário à Laranja Mecânica (A Clockwork Orange,de Anthony Burgess, escrito em 1962 e levado às telasem 1971 por Stanley Kubrick). Muitas outras pessoas,direta ou indiretamente, participaram dessa brigada.A questão é que, ao pescar o monge, o hábito veiojunto. O dialeto específico de grupos pesquisadosem alg<strong>um</strong>as capitais brasileiras trazia <strong>um</strong>a quantidadeimensa de termos afinados na língua e <strong>com</strong> aspectosregionais interessantíssimos. Sorte e sementeestavam lançadas. E a máquina da imaginação <strong>com</strong>eçoua funcionar junto.Da experiência passageira do Supersite, as expressõesganharam fôlego e ocuparam <strong>um</strong> degrau de eternidade<strong>com</strong> a realização da “dicionária” Aurélia. Assimmesmo, palavra desvirtuada em seu gênero, travestida,em homenagem que se tornou quase problema,quando a família do filólogo Aurélio Buarque de Holandae a editora do dicionário Aurélio, a Nova Fronteira,tentaram impedir o lançamento do <strong>com</strong>pêndio.Aurélio, que já estava adjetivado, agora era sublimadoa outro espaço de convivência dos modosda fala. Não foi possível o impedimento. Lucroua língua, que a partir daquele momento <strong>com</strong>eçoua ser afiada no veludo do bajubá(ou pajubá), que vinha logo dali, dasesquinas fervidas do Brasil.O bajubá é a língua utilizada nos terreiros de <strong>um</strong>bandae candomblé, adotada pelas amapoas de canudo,que a popularizaram, a recriaram e nela enxertaram<strong>um</strong> tanto de vivências e línguas que estão presentesna dicionária. Uma <strong>com</strong>binação de criação e adequaçãoda língua iorubá (nagô) <strong>com</strong> a velocidade da falamarginal desenvolvida para defesa e ataque. Essasexpressões tomaram o universo gay e finalmente desaguaramno mundo <strong>com</strong>o <strong>um</strong>a catarata criativa eabundante. Logo, o ofidã ficou popular, e o ofofi veiojunto. E a adé acorreu e aquendou na confusão. Pensen<strong>um</strong>a coisa viva e ativa (e passiva). Pensou? É ela, adicionária.Mundo-satéliteClaro que essa abertura tem seus padrinhos no passado.Um pequeno <strong>com</strong>pêndio havia sido realizado por JoséFabio Barbosa da Silva em <strong>sua</strong> dissertação de mestradoHomossexualismo em São Paulo: Estudo de <strong>um</strong> GrupoMinoritário, escrita em fins dos anos 1950 e publicadaem 2005 pela Editora Unesp, em conjunto <strong>com</strong> outrostextos organizados pelos pesquisadores James Green eRonaldo Trindade. N<strong>um</strong>a provinciana São Paulo do meiodo século passado, falar sobre néctar divino, salão de chá,quebrar a louça e divino ato é algo quase incrível. O orientadorda tese foi o sociólogo Florestan Fernandes e FernandoHenrique Cardoso fez parte da banca.42 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 43


Aurélia, lançada oficialmente no primeiro semestrede 2006, pela Editora do(a) Bispo(a), de São Paulo, nãoteve novas edições. Mas dezenas de sites estampam,senão integralmente, partes de seu conteúdo, basta“googlar” seu nome.Mas a dicionária não é apenas veículo de expressõesque nasceram do bajubá ou de <strong>sua</strong>s pequenas (ougrandes) corruptelas. Ela foi muito além disso, buscandono mundo lusófono palavras e expressões enriquecedoraspara o mundo gay (mais <strong>um</strong>a língua) e<strong>sua</strong>s adjacências (muitas e outras línguas). O mundosatéliteestá ali para marcar presença. Além das expressõesregionais brasileiras (Úrsula; trucosa; asilada etc.),a África portuguesa emprestou termos (andzáco; anuna;turra, entre outros); e Portugal bateu à porta (abafara palhinha; abébia etc.). É <strong>com</strong>o se, de repente,todo o mundo fosse unificado pela língua afiada.E assim Ronalda ganha vida além de seu quintal;Gustafa leva seu muxoxo para o mundo;e as Ornitorrincas saem do isolamentoque lhes foi imposto pelo meioe pela mensagem.Para Angelo Vip, a dicionária não é apenas instr<strong>um</strong>entode tradução e revelação. Tem <strong>um</strong>a função prática.Em matérias publicadas na época do lançamento dadicionária, ele afirmava que o livro tinha a função deaproximar pais e filhos, além de bofes e <strong>sua</strong>s namoradas.Acredito que ela é <strong>um</strong>a heroína ao desbravartodas as línguas que desaguam no aparentemente divertidoe no claramente utilitário (você pode se tornarpoliglota em muito pouco tempo!).Ao pescar o monge, o hábito veio junto. O dialeto específicode cada grupo pesquisado trazia <strong>um</strong>a quantidadeimensa de termos afinados na língua e <strong>com</strong> aspectos regionaisinteressantíssimos.A Aurélia vai de a a zuzo bem. Mas seu alcance é maior.Vai dar bem longe, onde o lugar para a imaginaçãofaz a língua ganhar vida. Devo concordar <strong>com</strong> A. Jaccourd,doutor em linguística, especialista na obra deFerdinand de Saussaure, Ph.D. em lexicografia, filólogo,<strong>com</strong> tese de doutorado na Sorbonne, Paris, sobrea linguagem chula e a linguagem erudita falada nostristes trópicos. Autor da “prefácia” da dicionária, ele refletenesse texto sobre a criação da in<strong>com</strong>unicabilidadea partir do evento da Torre de Babel. Mas a Auréliaé <strong>um</strong> sopro de vida, mantendo certa unidade entreos mundos, equilibrando balanças, fazendo algo paraque, por falta de <strong>com</strong>unicação, a vida não se torne ouó que por vezes achamos que ela é.De a a zuzo bemConheça alguns verbetes da Aurélia.A – art. def. f. No mundo gay, o artigo definido feminino é,em muitos casos, anteposto a substantivos próprios ou <strong>com</strong>unsdo gênero masculino. No caso dos <strong>com</strong>uns, o substantivo,ele próprio, também passa, se possível, para o feminino,criando-se <strong>um</strong> neologismo. Ex.: a Pedro, a Mário, aZezinho, a Robertão; a prédia, a fota, a relógia, a dicionária.Abafar a palhinha – (Portugal) expr. Ser passivo n<strong>um</strong>a relaçãohomossexual.Abébia – (Portugal) s. f. Mentira, truque, caô, tanga, couros.Adé – (do bajubá) s. m. Homossexual masculino.Amapoa de canudo – (do bajubá, Rio de Janeiro) s. f. Travesti.Andzáco – (do ronga, Moçambique) adv. O lado de trás.Anuna – (do changana, Moçambique) s. Marido.Aquendar – (do bajubá) v. t. d. e intr. 1. Chamar para prestaratenção; prestar atenção; 2. Pegar; roubar. Forma imperativae sincopada do verbo kuein!Asilada – (Ceará) adj. Louca.Bajubá – s. m. Baseado nas línguas africanas empregadaspela <strong>um</strong>banda e pelo candomblé. É a linguagem praticadainicialmente pelos travestis e posteriormente estendida atodo o universo gay. O bajubá falado emprega <strong>um</strong>a misturalexical (do próprio bajubá, do português e, em menor grau,do tupi) sobre a base gramatical e fonológica da língua portuguesa.[var.: pajubá].Bofe – s. m. Homem heterossexual ou homossexual ativo.Fervida – 1. s. f. Pessoa ou local agitado; adj. 2 Próprio doque ou de quem ferve; divertido.Gustafa – s. f. Gay cansativo.Mamíferas – s. f. pl. Grupo de mulheres que saem em bando.Marsupiellen – s. f. Gay que anda anexo às mamíferas.Ofidã – (do bajubá) s. m. 1. Zona erógena do bofe; 2. O própriobofe.Ofofi – (do bajubá) s. m. Fedor, catinga [var.: afofi].Ornitorrinca – s. f. Mulher híbrida, meio pata, antagônicada mamífera.Pic<strong>um</strong>ã – (do bajubá) s. m. Peruca, cabeleira; cabelo.Ronalda – s. f. Gay grandalhão, bigodudo e empertigado,<strong>com</strong> fala grossa e lenta. Podem-se ouvir as vibrações de <strong>sua</strong>scordas vocais quando diz: “Meu nome é Ronaaaaalda!“.Trucosa – (Pará) adj. Relativo ao gay mentiroso.Turra – (Moçambique) s. m. Bandido.Uó – (do bajubá) adj. Ruim, feio, desagradável, desprezível,errado, equivocado.Úrsula – (São Paulo) s. f. Gay que <strong>com</strong>pra em lugar barato,mas diz que foi em local caro.Xoxo – s. m. Deboche, sarro, onda, caçoada, grea, gozo, avacalhação,ironia.Zuzo bem – adv. “Tudo bem” de bêbado. Ex.: Ficou zuzobem pra zozo mundo, menos pra Gustafa!Hilton Lacerda é cineasta e roteirista. Realizou os roteiros de BailePerf<strong>um</strong>ado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997) e Amarelo Manga(Cláudio Assis, 2002).44 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 45


eportagemEntre dois temposUm pequeno lugarejo no interior gaúcho assiste à desaparição do dialetode seus antepassados.Por Fábio Prikladnicki | Fotos Cristiano SantanaNo sábado que antecede o feriado de Carnaval, os moradores de Vale Vêneto têm <strong>sua</strong> rotina consideravelmentealterada. O clube onde os idosos cost<strong>um</strong>am se reunir para jogar baralho e conversar, depois da missadas 20 horas, é fechado para <strong>um</strong>a festa pré-carnavalesca que reúne de 700 a 800 jovens da região. Até amadrugada que anuncia o dia seguinte, a população local, de 530 habitantes, a<strong>um</strong>enta temporariamenteem mais de 100%. Embora seja <strong>um</strong> lugar de colonização tipicamente italiana, o repertório que se ouve, emvol<strong>um</strong>e máximo, dos carros dos jovens estacionados na rua não é nada folclórico. Funk carioca e Macarenadão o tom. Vale Vêneto, hoje, vive desses paradoxos. Distrito do não menos desconhecido município deSão João do Polêsine, no coração da “quarta colônia”, região na qual se instalou <strong>um</strong>a das principais ondasde imigração italiana no Rio Grande do Sul, o pacato vilarejo está a 40 quilômetros de Santa Maria, <strong>um</strong>a dasmaiores cidades gaúchas, e a 250 quilômetros da capital. Se alguém colocar o dedo no centro do mapa doestado – desde que seja <strong>um</strong> mapa rico em detalhes –, lá estará Vale Vêneto.Pela posição geográfica distante dos centros urbanos, acredita-se que as coisas tenham mudado menos doque em outras localidades que datam aproximadamente da mesma época (os primeiros imigrantes chegaramem 1878). Os moradores ainda cultivam a lavoura <strong>com</strong> poucas máquinas e muito gado, fazem <strong>com</strong>idase bebidas caseiras e, principalmente, conservam <strong>um</strong>a maneira bastante particular de se <strong>com</strong>unicar. É <strong>um</strong>dos únicos lugares do mundo onde ainda se fala o dialeto vêneto. O nome é referência à região do Norteda Itália de onde levas de pessoas saíram para diversas partes do mundo em busca de <strong>um</strong>a vida melhor.Em cada lugar, o vêneto sofreu pequenas modificações e ganhou cores locais. Em <strong>um</strong>a definição simples,dialeto é <strong>um</strong>a variação linguística que se desenvolve em certo território. Já <strong>um</strong>a língua é a elevação de <strong>um</strong>adas variações existentes ao status de idioma oficial, em geral escolhida em função de prestígio (econômico,cultural etc.).Há <strong>um</strong> debate entre estudiosos que defendem o italiano dos descendentes de imigrantes <strong>com</strong>o dialeto e outrosque dizem se tratar de <strong>um</strong>a língua propriamente dita. Mas os moradores de Vale Vêneto estão mais preocupados<strong>com</strong> outra coisa: o lugar se tornou <strong>um</strong>a terra de idosos e, <strong>com</strong> isso, o “italiano gaúcho” é cada vez menos falado.Metade dos cerca de 100 alunos da única escola que resta vem das redondezas, e o ensino contempla apenas ociclo fundamental. Os jovens <strong>com</strong>pletam <strong>sua</strong> formação fora, entram na faculdade, <strong>com</strong>eçam a trabalhar e vol-A família Venturini, que fala o dialeto friulano46 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 47


Antônio e Amadeu, membros da família Cielo, durante ensaio musicaltam apenasnos fins de semanapara visitar os parentes. “Nãoé mais <strong>com</strong>o antes, que ficavam emcasa trabalhando na roça. Eram famíliastão n<strong>um</strong>erosas que, quando iam à missa, enchiama igreja. Se havia serão, jogava-se baralho,cantava-se, <strong>com</strong>ia-se batata-doce, amendoim, pipoca.Era bonita a nossa vida assim”, lembra AntôniaCarolina Bortoluzzi, 82 anos, que mora <strong>com</strong> o irmão,seu Ângelo, 75. Língua e religião, <strong>com</strong>o ela sugere,conviviam em paz: “A missa era em latim, mas o padrefazia o sermão em dialeto. Era difícil alguém falar português”.A portentosa igreja, <strong>com</strong> capacidade paracerca de 300 pessoas, foi reformada recentemente. Acasa de retiro das irmãs, que já foi <strong>um</strong> internato, agorarecebe turistas, e o seminário dos padres também jáviveu dias mais movimentados. A geração deles é aúltima a dominar o vêneto. Os filhos <strong>com</strong>preendem,mas, na maioria das vezes, não falam. Os netos, nosmelhores casos, sapecam apenas alg<strong>um</strong>as palavras.O dialeto também virou coisa de idosos.Outras falasOs Bortoluzzi foram a família mais n<strong>um</strong>erosa a desembarcarpor lá, e Paolo Bortoluzzi – primo do avôpaterno de dona Antônia e seu Ângelo –, a figuramais importante da história local. Espécie de líder<strong>com</strong>unitário, foi quem mandou trazer da Itália os primeirosdois padres. A influência era tão grande que olocal foi chamado inicialmente de Vale dos Bortoluzzi.Depois da chegada de outras famílias e de muitadiscussão, além da intervenção pacificadora de <strong>um</strong>sacerdote, decidiu-se rebatizá-lo <strong>com</strong> o nome atual.O vêneto, entretanto, não é o único dialeto de ValeVêneto. Há <strong>um</strong>a minoria de imigrantes que vieram daregião de Friuli-Venezia Giulia, no extremo Nordesteitaliano, a leste da região do Vêneto. O dialeto quetrouxeram de lá é outro, o friulano. Enquanto o vênetose assemelha mais ao italiano padrão, o friulanotem influência de localidades fronteiriças, <strong>com</strong>oo alemão e o esloveno. O tempo se encarregou deintegrar os imigrantes vindos das duas regiões. Houvecasamentos mistos e seus descendentes se orgulhamde dizer que falam vêneto, friulano e português.Nem sempre foi assim. Como os dois grupos, literalmente,nem sempre se entendiam, o senso de convivênciaobrigou os imigrantes friulanos a aprender odialeto da maioria de seus vizinhos. A recíproca, claro,não era verdadeira. Até hoje os moradores das duasprocedências chamam o dialeto vêneto de “italiano”,<strong>com</strong>o se o friulano fosse <strong>um</strong> idioma estrangeiro. Asprovocações <strong>com</strong>eçavam já na infância, <strong>com</strong>o contaArchilino Guido Venturini, 80, neto de imigrantes quevieram da <strong>com</strong>una de Gemona del Friuli: “Às vezesdava até rolo, aquelas briguinhas de gurizada. Jogavampedras uns nos outros, mas no dia seguinte estavatudo bem”. Sua esposa, Ana Maria Forsin Venturini,63, recorda-se de <strong>um</strong>a típica rixa familiar: “Quando avó falava <strong>com</strong> minha mãe sobre assuntos que nãoqueria que as crianças entendessem – por exemplo,se alg<strong>um</strong>a vizinha ganhava nenê –, falavam em friulano.E minha outra vó dizia: ‘É <strong>um</strong>a língua tão estúpidaque não existe nenh<strong>um</strong> livro sobre isso’ ”.Talvez por isso os Venturini exibam <strong>com</strong> tanto orgulhoo material que recebem de <strong>um</strong>a associação internacionaldedicada à divulgação da cultura friulana. É<strong>um</strong>a coleção de livros, todos escritos no dialeto, algunsdedicados a ensiná-lo. Mas não adiantou paraestimular os filhos a aprender. A maioria nem moramais por lá. Um deles trabalha em São Paulo, outrosdois se mudaram para Mato Grosso do Sul para cultivararroz. Restou José, 23, que cursa matemáticaem Santa Maria. E depois da faculdade? “Acho que omelhor é voltar para casa mesmo”, responde. Ele alegaque a profissão não tem futuro, diz que precisariafazer mestrado e doutorado, mas parece motivadomesmo por <strong>um</strong> sentimento de que alguém precisaficar para cuidar da família e da terra. É <strong>um</strong>a escolharara entre os jovens de Vale Vêneto. A volta não significa<strong>um</strong> retorno ao dialeto. “Eu entendo tudo,mas não falo. Meus irmãos também não falammuita coisa. Acho que não houve muitoincentivo por medo de que a gentenão fosse aprender o portuguêscorreto na escola”, diz.48 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 49


Parreiral no quintalÉ possível que, por circunstâncias socioeconômicas,os dialetos viessem a perder espaço para o portuguêsentre os descendentes de imigrantes. Mas <strong>um</strong>fato, mencionado por todos <strong>com</strong> quem se conversaem Vale Vêneto, parece ter ficado <strong>com</strong>o <strong>um</strong> tra<strong>um</strong>a:a proibição de manifestações em dialeto durante oEstado Novo, na década de 1940, na esteira do projetode nacionalização de Getúlio Vargas. Ainda seconta, por lá, a história de <strong>um</strong> senhor que teria dadobom-dia, em italiano, a <strong>um</strong> conhecido na rua e que,por isso, teria sido levado preso por <strong>um</strong> encarregadodo governo de fiscalizar o lugarejo. O detalhemórbido é que, por motivos de saúde, ele teria logomorrido na prisão.De resto, as escolas intensificaram o ensino do português,e todos aprenderam a rezar na língua pátria.A lei alimentou, inclusive, intrigas entre famílias,<strong>com</strong>o relata Iracema Fátima Cielo, 64: “Famílias quenão se gostavam colocavam livros estrangeiros nasoutras casas e depois denunciavam. Aí eles prendiam.Muita literatura boa se perdeu dessa forma”.Os Cielo têm se esforçado para que outras coisasnão se percam. “O pai queria que nós tomássemosvinho e cantássemos. No <strong>com</strong>eço da família, ele tinha<strong>um</strong> conjunto. Foi <strong>um</strong> dos meus irmãos que incentivouos outros a fazer vinho e botar o conjuntode volta. Depois, faleceu”, conta. A família é <strong>um</strong>a dasúltimas que ainda realiza o tradicional “filó”, reunião<strong>com</strong> muita música (em italiano), bebida (vinho, claro)e conversa. A casa da matriarca, dona VirgíniaVaraschini Cielo, 88, tem inclusive <strong>um</strong> parreiral noquintal. “Naquele tempo, se fazia muito vinho. Então,chegava gente de todos os lados para tomar,e ficavam todos bêbados. Os ricos pensam maisem fazer dinheiro; os pobres, em se divertir ecantar”, diz ela. “Não somos apegados aos bensmateriais, então conservamos os cost<strong>um</strong>es”,<strong>com</strong>pleta o filho, Pio, 51, <strong>um</strong> dos músicosdo conjunto, que congrega cinco familiarese três amigos.O maior desejo do patriarca, no entanto, era conhecerTrissino, na província de Vicenza, na Itália, de onde tinhavindo seu pai. A filha Iracema tratou de fazer <strong>um</strong>aseconomias e marcou a viagem de ambos para certodia 24 de agosto. Em 31 de maio, o patriarca morreu.Decidiu ir sozinha mesmo assim e descobriu que acasa dos antepassados ainda existia. Fez contato <strong>com</strong>parentes que buscou no guia telefônico e ficou <strong>um</strong>mês em <strong>um</strong> tour genealógico. Iracema foi decidida apraticar não o dialeto, mas o italiano padrão, que haviaaprendido por iniciativa própria: “Gosto mais doitaliano gramatical. Acho mais bonito, mais sonoro.Mas quando me escapava <strong>um</strong>a palavra em dialetoeles vibravam, porque sentiam que eu estava falando<strong>com</strong>o eles. Lá o dialeto também está se perdendo, euouvia muito pouco. Os mais idosos falam. Mas no rádio,na TV, na escola é o gramatical”.Em 2002, a escola de Vale Vêneto iniciou <strong>um</strong> projetode resgate da história e da cultura <strong>com</strong> os alunos.Foram trabalhados temas <strong>com</strong>o o motivo da vindados imigrantes para o Brasil, o que encontraram poraqui e <strong>com</strong>o viviam. “As crianças pesquisaram muitoem casa <strong>com</strong> os avós e os pais”, diz Maria do CarmoPivetta Cielo, 41, professora da escola e esposa de Pio.“Elas tinham que escrever as palavras conforme ouviam,porque se escrevessem <strong>com</strong>o está na gramáticajá não seria dialeto.” O projeto durou seis anos, masnão incluiu o ensino da língua – nem do dialeto, nemdo italiano padrão. No currículo da escola, que é estadual,consta apenas o inglês <strong>com</strong>o idioma estrangeiro.Uma solução seria <strong>um</strong> projeto que funcionasse emturno inverso, mas que esbarraria na falta de pessoas<strong>com</strong> tempo ou disposição para o trabalho voluntário– problema que provocou a descontinuidade do projetode resgate. Os pais dos alunos tampouco manifestamvontade de que as novas gerações aprendamo dialeto que <strong>um</strong> dia foi moeda corrente nas ruas dosimpático lugarejo. Vale Vêneto vive, mesmo, de paradoxos:lamenta que as coisas tenham mudado, masnão quer estar na contramão da história.Confira, na Continu<strong>um</strong> On-Line, relato sobre a visita dorepórter ao Vale Vêneto.Vista do Vale Vêneto50 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 51


miradaUma cidade tomada por livrosÀs vezes, Buenos Aires parece <strong>um</strong>a livraria a céu aberto.Por Rodrigo Lara Serrano, de Buenos Aires, Argentina | Tradução Josely Vianna Baptista |Ilustração Davi CalilQue tipo de vinho seria o filósofo alemão Friedrich Nietzsche? E quanto ao pensador francês Michel Foucault?Na Eterna Cadencia, <strong>um</strong>a das livrarias mais originais de Buenos Aires, têm-se as respostas: o primeiroseria <strong>um</strong> syrah; e o segundo nada mais nada menos que <strong>um</strong> robusto malbec.Mensalmente, em <strong>um</strong>a terça-feira, ocorre no local o evento Cata de Ideas, <strong>com</strong>andado por Luis Diego Fernández,o alquimista que busca o prazer <strong>com</strong>binando filosofia e vinhos. Durante os encontros, ele e osdemais participantes degustam alg<strong>um</strong>as taças e travam polêmicas – no caso do filósofo alemão – acerca dosuper-homem e da ausência do divino.Falando dessa mistura de enologia e filosofia, Lucio Ramírez, diretor <strong>com</strong>ercial do espaço, sorri. Para ele,mais que <strong>um</strong>a livraria, Eterna Cadencia “é <strong>um</strong>a casa tomada por escritores”. Localizado na Rua Honduras,em <strong>um</strong>a área conhecida <strong>com</strong>o Palermo Hollywood, o local é <strong>um</strong> exemplo do fervor dos portenhos peloslivros. “Estamos preparando o que batizamos de ‘serviço aspiracional’ ”, conta. “O cliente estipula <strong>um</strong> valor e,<strong>com</strong> base nele, nós lhe montamos <strong>um</strong>a biblioteca ideal.” Os funcionários da Eterna Cadencia entrevistarão ointeressado, farão perguntas sobre seu cônjuge, seus filhos e amigos e, finalmente, estenderão <strong>um</strong>a ponte a<strong>um</strong> mundo onde os livros não são mais <strong>um</strong> castigo escolar. “Talvez fracassemos <strong>com</strong>pletamente”, desabafaRamírez, abrindo <strong>um</strong> sorriso bem-h<strong>um</strong>orado.Ecos de outro tempoMas, se há <strong>um</strong>a coisa que não fracassou em Buenos Aires, é a venda de livros. E a Ávila, localizada na Rua Bolívar,no microcentro da cidade, é <strong>um</strong> bom exemplo disso. “Que eu saiba, é a única livraria do mundo que se mantémno mesmo espaço físico desde o final do século XVIII”, <strong>com</strong>enta seu dono, Miguel Ávila. “Por isso muitos turistasvêm aqui. E, às vezes, até <strong>com</strong>pram alg<strong>um</strong> livro”, acrescenta, soltando <strong>um</strong>a gargalhada.Do edifício clássico de 1830, quando ainda se chamavaLa Librería del Colegio, passou-se ao atual, construídoem 1926. O estabelecimento, situado a duas quadrasda sede do governo (a Casa Rosada), foi visitado assiduamentepor quase todos os presidentes argentinose por intelectuais. Ainda assim, para não ter de fecharas portas, a livraria se especializou em história local e docontinente americano. E, no silêncio de <strong>sua</strong>s estantes,ecoa <strong>um</strong> tempo “em que o que se dizia <strong>com</strong> a línguase sustentava <strong>com</strong> os colhões”, sublinha o livreiro, lembrando<strong>com</strong>o os duelos verbais de outrora terminavamem duelos <strong>com</strong> pistola ou sabre.É que − <strong>com</strong>o negar? − as palavras curam ou ferem.E as livrarias são verdadeiros Bancos Centrais de Palavras.A escritora Cecilia Szperling vê a coisa dessemodo: “No sábado passado, entrou na Caleidoscopio[<strong>um</strong>a pequena livraria no bairro Belgrano R] o intelectualEduardo Grunner, procurando por <strong>um</strong>a biografiade 1.500 páginas do escritor Osvaldo Lamborghini”.Um homem de leituras maratônicas? Não necessariamente:“Disse que gostaria de lê-la para ver o quedizia sobre ele, já que conhecia o biografado e lhe haviamdito que seu nome era mencionado no livro. Os<strong>com</strong>entários foram feitos por amigos nem <strong>um</strong> poucocontentes <strong>com</strong> o modo pelo qual foram retratadosna biografia, bem <strong>com</strong>pleta e exaustiva”.Palcos de amizades e rivalidadesAs livrarias portenhas são redutos de grandes amizades,grandes ciúmes e grandes despedidas. A AlbertoCasares – Libros Antiguos y Modernos foi testemunha,por exemplo, do adeus entre dois dos mais importantesescritores de expressão hispânica do século XX:Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. Isso ocorreuem 27 de novembro de 1985. No dia seguinte, Borgespartiu para a Europa, onde viria a morrer em Genebra.A livraria já não fica na Rua Arenales, onde se deu adespedida, e sim na Suipacha, e Alberto Casarestransformou-se n<strong>um</strong> dos organizadores da feirado livro antigo da cidade. Na edição 2008, porexemplo, Casares ofereceu <strong>um</strong> exemplarda primeira edição de Fervor de BuenosAires (1923), de Borges, por30 mil dólares.52 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 53


Mas Buenos Aires não ésomente o lugar de livrarias paragostos hipercaros e refinados. “Quandoeu era adolescente, morava no sul, nos arredoresda capital, e <strong>um</strong>a vez por mês, ou a cadamês e meio, ia ao centro <strong>com</strong> meus amigos para<strong>com</strong>prar livros na Avenida Corrientes”, relata o escritore revisor Fernando Mazzeo. “Naquela época, aCorrientes estava coalhada de livrarias; o que existehoje não é nem a sombra do que havia antes.” A “sombra”são as quase 30 lojas que sobrevivem na via, entrea Cerrito e a Riobamba, e herdaram a glória, masnão o público, daquele que era o local de maior concentraçãode livrarias do mundo hispânico na AméricaLatina: “Só nessa avenida há mais livrarias do queem todo o Chile”, cost<strong>um</strong>ava dizer o escritor chilenoDarío Oses ao visitá-la.A Libros Alberto Casares foi testemunhado adeus entre Borges e Bioy Casares.Nela sobrevivem alg<strong>um</strong>as “históricas”, <strong>com</strong>o a Gandhiou a Hernández. No porão desta última, Alberto Laisecalançou seu Los Soria, o mais longo de todos os romancesargentinos: 1.390 páginas e <strong>um</strong> protagonistachamado Personagem. Alejandro Seselovsky, autor deCristo, Llame Ya! Crónicas de la Avanzada Evangélica enla Argentina (Editorial Norma, 2005), lembra-se de ter<strong>com</strong>parecido ao evento, “que foi muito divertido: RodolfoFogwill, <strong>com</strong> seu brilhantismo delirante, estavaentre os palestrantes e, de repente, <strong>com</strong>eçou a atacarRicardo Piglia, o romancista mais respeitado dos anos1980 e 1990, resmungando em seu estilo sarcástico eincendiário alg<strong>um</strong>as barbaridades terríveis contra ele.E então, ao fundo, abriu-se <strong>um</strong>a clareira no público, elá estava Piglia, muito sorridente. De braços cruzados,assentindo em voz baixa: ‘Sim, Rodolfo, claro, Rodolfo...’ ”.Palácios fundados pela tentaçãoFormada em letras, Patricia Anselmo lembra que abriua pequena La Cautiva – situada quase na esquina daSalguero <strong>com</strong> a El Salvador, na região de Palermo quenão está na moda – em outubro de 2008, “em plena“Muitos não <strong>com</strong>pram livros,mas vêm para sentir-serodeados por eles.” (NéstorPascuozzo, da Crack Up)crise financeira mundial”, <strong>com</strong> seu <strong>com</strong>panheiro, opoeta Fernando Molle. Nada indica que seja <strong>um</strong> lugarapropriado para <strong>um</strong>a livraria: “Agora estamos <strong>com</strong>eçandoa vender pela internet, para não dependermosdas pessoas que passam”, explica.O fato é que instalar <strong>um</strong>a livraria em Buenos Aires nãoé <strong>um</strong> negócio, mas <strong>um</strong>a tentação. Néstor Horacio Pascuozzo,<strong>com</strong> Diego Singer, da Crack Up, vê a coisa doseguinte modo: “Em março de 2006, eu e seis amigos,que vínhamos de empregos em livrarias, pensamos: nósgostamos disso e, se vamos fracassar, que fracassemosmelhor, <strong>com</strong>o diria Beckett. Então fundamos a loja”.Situada na Rua Costa Rica, quase esquina <strong>com</strong> a J. L.Borges, representa, <strong>com</strong>o a Eterna Cadencia ou La InternacionalArgentina, <strong>um</strong> tipo de livraria que faz detudo para se manter – edita livros, vende café, sanduíchesou CDs de tango –, mas recupera <strong>um</strong>a tradição:tem funcionários à moda antiga, que entendem de livros.Em seu caso, norte-americanos ou colombianos.“Todos os livros têm <strong>um</strong>a aura: cada palavra que usamosjá percorreu a civilização inteira. É <strong>um</strong>a dívidaimpagável”, diz <strong>com</strong> entusiasmo. “Muitas vezes aspessoas não <strong>com</strong>pram nossos livros, mas vêm aquipara sentar e sentir-se rodeadas por eles.”Tal “abrigo” é particularmente impactante na livraria ElAteneo Grand Splendid, <strong>um</strong> velho teatro reformadona Avenida Santa Fe que se tornou <strong>um</strong>a das joias dacidade. Parece <strong>um</strong> palácio de ópera transformado emlivraria. Seu aspecto grandioso certamente espantamuitos bibliófilos, mas faz <strong>com</strong> que sintamos fortementeesse toque da civilização que é a tolerânciapara <strong>com</strong> o prazer e a leitura alheios. Sentada no caféconstruído sobre o que <strong>um</strong> dia foi o palco do teatro,Florencia Gutman, desenhista gráfica especializadaem capas (fez as de livros de Paulo Coelho editadosem espanhol e na Europa do Leste), <strong>com</strong>e<strong>um</strong>a minipizza de mussarela, observa a galáxialivresca repleta de luzes e leitores n<strong>um</strong> domingoà tarde e exclama: “Não é mesmofabuloso estar aqui!?”.54 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 55


eportagemRoçando a língua de Luís de CamõesOs desafios para a construção de <strong>um</strong>a <strong>com</strong>unidade lusófona internacionalPor Micheliny Verunschk | Fotos Cia de FotoUm avô contava histórias de Trancoso, na Bahia, e relatos maravilhosos de princesas e castelos fabulosos dealém-mar ou de além-sonho. O outro avô, por <strong>sua</strong> vez, falava de índios e, em particular, de <strong>um</strong>a moça quevirou pássaro e que até hoje canta nas noites do sertão, a “mãe da lua”. A mãe a colocava para dormir embaladana leitura de poetas românticos do século XIX. Os três, sem saber, exerciam <strong>um</strong>a língua viva, capaz dese reinventar e de se lançar r<strong>um</strong>o ao futuro. Fora de qualquer pauta política, exerciam lusofonia e criaramalguém absolutamente encantado pela palavra e pelo seu poder.Ao pé da letra a palavra lusofonia significa “o que tem som luso”, ou o que soa em língua portuguesa. Paraalém do significado estrito, é <strong>um</strong> conceito político-cultural que <strong>com</strong>preende o conjunto de identidades<strong>com</strong>uns existentes entre os falantes do português, o terceiro idioma de origem europeia mais falado nomundo, <strong>com</strong> cerca de 230 milhões de “usuários” atualmente.Biblioteca Nacional, no Rio de JaneiroDa própria língua e seus “produtos” mais evidentes,<strong>com</strong>o a música, a literatura e as artes em geral, passandopela gastronomia, até a preocupação <strong>com</strong> oensino e a difusão do português pelo mundo, a lusofoniaé presença política oficial desde 1996, ano decriação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa(CPLP), organismo internacional que reúne Angola,Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique,Portugal, São Tomé e Princípe e Timor Leste, além denações observadoras e outras interessadas, caso daVenezuela, por <strong>sua</strong> proximidade territorial e cultural<strong>com</strong> o Brasil.Segundo projeções estatísticas, até 2050 o portuguêsserá falado por mais de 300 milhões de pessoasem todo o mundo, daí a justificativa de <strong>um</strong>aintegração mais eficiente entre os países lusófonos,que possa inserir programas de desenvolvimento ecooperação mútua em níveis políticos, econômicosou culturais.Mas o que é lusofonia de fato?Horácio Costa, poeta eprofessor da Universidade de SãoPaulo (USP), dá conta da pluralidade dessaimersão da língua na contemporaneidade:“Como brasileiro, prefiro pensar a terra ao mar.Interessa-me a fala de língua portuguesa no mundoem <strong>sua</strong>s fronteiras: no caso das Américas, o confrontoentre o português brasileiro e o espanhol; no casoafricano, entre a voz que fala português e o inglês daÁfrica austral”.“Prefiro a associação de quem fala português no mundonão <strong>com</strong>o lusofonia, voz de luso, mas <strong>com</strong>o as vozes quefalam português pelo mundo. A língua portuguesa não éde luso, mas de todos os que a usam.” (Horácio Costa)Geralmente quando se pensa em lusofonia no sentidomais formal do termo, pensa-se também n<strong>um</strong>a supostaparticipação do escritor na propagação da <strong>sua</strong> língua e dacultura que ela abarca. O escritor moçambicano Mia Coutorechaça essa inc<strong>um</strong>bência: “Minha responsabilidade éescrever. E fazê-lo o melhor que posso. Não chamo paramim outras missões. Escrever é outra coisa e não podeser sujeita a esse sentido utilitário. A língua não pode serentendida <strong>com</strong>o o único veículo de identidade <strong>com</strong><strong>um</strong>.Existem <strong>com</strong>ponentes que por vezes esquecemos. E <strong>um</strong>deles é o factor religioso”.Fora das agendas políticas, a lusofonia viva deveria seraquela que superasse os desconhecimentos que temosacerca de nós mesmos <strong>com</strong>o falantes do português eda sociedade contemporânea que nos cerca. Essa seriaa lusofonia potente que reside na fala do povo nasruas do Rio de Janeiro, na contação de histórias sejan<strong>um</strong> grotão da Amazônia, seja em Catió, na Guiné-Bissau, no portunhol falado na região entre fronteirasda América do Sul, nas relações íntimasque oralidade e literatura mantêm naconstrução e reconstrução de<strong>um</strong>a língua pulsante.Língua não centralizadoraNascida em Portugal e radicada no Brasil, Cremilda Medina,também professora da USP e autora de Sonha MamanaÁfrica (Epopéia; Secretaria de Cultura do Estado de SãoPaulo, 1987), tem <strong>um</strong>a longa trajetória no que diz respeitoàs relações entre os países de língua portuguesa, trabalhoque se iniciou na década de 1970, quando os chamados“cinco da África” (Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe,Guiné-Bissau e Cabo Verde) se aprofundavam naslutas pela independência e o Brasil se municiava para oque ela chama de “período épico” de luta pela queda daditadura militar na década seguinte.56 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 57


Uma das funções do escritor lusófono é garantir a continuidade do portuguêsCremilda ressalta que lusofonia é muito mais <strong>um</strong>a questãode conhecer a si mesmo e ao outro. “O que facilita énos conhecermos e, principalmente, nos reconhecermosdentro da diferença e da diversidade da fértil diásporaque espalhou a língua portuguesa pelo mundo. Quandovemos as especificidades da literatura de Mia Couto,em Moçambique, de Nélida Piñon, no Brasil, e de TeolindaGersão, em Portugal, <strong>com</strong>preendemos que a línguaé o espelho das culturas, de <strong>sua</strong> diversidade. O fato dePortugal não ter tido, a exemplo de outros países, <strong>um</strong>aacademia real da língua fez do português <strong>um</strong>a língua nãocentralizadora, o que, à luz da história, é <strong>um</strong>a bênção.”O que nos une é o que nos separaCom <strong>um</strong> programa que pretende atuar em tantasfrentes, o projeto lusófono institucional de organizações<strong>com</strong>o a CPLP, <strong>com</strong>o não poderia deixar de ser,apresenta <strong>sua</strong>s fragilidades. Uma delas é o exageradofoco em Portugal e no Brasil. As críticas ao país sãotantas que se fala até n<strong>um</strong>a “brasilofonia”, que seria<strong>um</strong>a tentativa colonialista contemporânea de sobreporos interesses brasileiros aos dos demais paísesda <strong>com</strong>unidade no uso do português.Esse debate tem se intensificado <strong>com</strong> a recenteentrada em vigor do Acordo Ortográficoda Língua Portuguesa. A poetisa e artistaplástica portuguesa Ana Hatherlyafirma ter dúvidasquanto à eficácia imediata do acordo, mas acrescentaque “<strong>um</strong>a das funções relevantes do escritor – nestecaso, do escritor lusófono – é contribuir para a continuidadee a dignidade de <strong>um</strong>a língua tão antiga e tãoprestigiada <strong>com</strong>o é o português”.Para o escritor e crítico literário português ArnaldoSaraiva, a língua e <strong>sua</strong> difusão devem estar a serviçodo ser h<strong>um</strong>ano e não o contrário. “Se é natural o empenhona língua materna, também parece perigosa atentativa de sobrepô-la a línguas maternas de outros,sobretudo se <strong>com</strong> ela não vai a luta por <strong>um</strong>a sociedademais democrática, mais rica e mais justa.” Saraivalembra que o português já foi língua imperial e línguafranca no Oriente. “Não se trata de colocar [o idioma]de novo a serviço de alg<strong>um</strong> projecto imperial, mas deafirmar a dignidade e a cultura nunca devidamentereconhecida das nossas <strong>com</strong>unidades, e fazer <strong>com</strong>que [a língua] seja também <strong>um</strong> instr<strong>um</strong>ento valiosopara a melhoria do mundo.”Outra questão, <strong>com</strong>o coloca Costa, é a distância entrea teoria e a prática dessa suposta aproximação:“Quando se fala em lusofonia, pensa-se muito no marportuguês, no imaginário daquele país, nas <strong>sua</strong>s dores<strong>com</strong>o <strong>um</strong> ex-império e nos sentimentos belos ouconfusos que isso tudo causa. Prefiro a associação dequem fala português no mundo não <strong>com</strong>o lusofonia,voz de luso, mas <strong>com</strong>o as vozes que falam portuguêspelo mundo. A língua portuguesa não é de luso, masde todos os que a usam”.Essa opinião é <strong>com</strong>partilhadapor Mia Couto, críticoardoroso do projeto lusófono no âmbitoinstitucional. “Somos nós que falamose escrevemos em língua portuguesa todos osdias. E aqui reside <strong>um</strong>a das muitas inverdadesquando se fala de lusofonia. Boa parte dos 20 milhõesde moçambicanos não fala português. Nãosão lusófonos. Se a cidadania que buscamos passa exclusivamentepelo idioma, esses meus <strong>com</strong>patriotasestão excluídos. Precisamos de <strong>um</strong>a lusofonia suficientementeplural para poder ser falada nas línguas quesão as nossas. Como diz Eduardo Lourenço [ensaístaportuguês]: o que importa não é apenas a língua quefalamos mas <strong>com</strong>o somos falados por essa língua.”Relações de familiaridadeTalvez <strong>um</strong>a das respostas desse distanciamento das naçõesfalantes de língua portuguesa entre si e tambémde parte do mundo resida no fato de que nenh<strong>um</strong> dosmembros da CPLP está entre os índices desejáveis dedesenvolvimento h<strong>um</strong>ano, o que demonstra que asquestões de aproximação passam por agendas muitomais <strong>com</strong>plexas que simplesmente o encontro e asimplificação das diversidades linguísticas.Saraiva vê na internet e na universidade o <strong>com</strong>eço deações mais palpáveis de aproximação entre as múltiplasculturas lusófonas. “A internet está a fazer milagres,mas conviria aproveitar mais as instituições culturais ea televisão, os jornais e as revistas para que as classesmédias se familiarizassem <strong>com</strong> autores que só chegam,quando muito, a escassas elites. Urge criar em Portugal<strong>um</strong>a grande biblioteca brasileira. E convirá multiplicaros encontros de autores, até em festivais.”Certamente, falta para a desejada integração lusófonasentir a respiração ofegante, entremeada de sintaxesmuito próprias, de sotaques diversos, de modosmuito únicos de se falar a língua mais que plural quenasceu em Portugal. Falta ainda <strong>com</strong>preender o que opoeta Manuel Bandeira chamou de “língua errada dopovo/língua certa do povo”, o português gostoso docotidiano das gentes.A grafia dos depoimentos de participantes de outrasnacionalidades foi preservada.Leia na Continu<strong>um</strong> On-Line entrevista <strong>com</strong> o escritorMia Couto.58 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 59


eportagemUma operação nada matemáticaOs desafios de verter o sentido, o tom, a vida de palavras de <strong>um</strong> idioma para outro.Por Luciana Veras | Ilustração Rodrigo Silveira“Toda tradução é impossível se levada a sério. Substituir ooriginal pela tradução é impraticável.” (Modesto Carone)Diz a história que São Jerônimo deu à luz a primeira Bíblia em latim. A Vulgata, publicada por volta do ano400, é até hoje referendada pela Igreja Católica. Concebidos em aramaico e hebraico, antes os textos cristãoshaviam apenas sido passados para o grego. Ao imortalizar as Sagradas Escrituras na língua de Roma, ele setornou o patrono da tradução. Na acepção teórica, o ato de traduzir é <strong>um</strong>a transferência de palavras, frasese orações de <strong>um</strong> idioma “de partida” para <strong>um</strong> “de chegada”. Uma operação exata, quase matemática. Na prática,contudo, a tradução não se restringe à fidelidade, à matriz ou à transformation de, por exemplo, <strong>um</strong>aedição em inglês de Rei Lear, de William Shakespeare, para o português. Para especialistas, escritores, leitorese, acima de tudo, tradutores, ela é <strong>um</strong> renascimento. Uma criação. E <strong>um</strong>a homenagem.Writer and translator Modesto Carone – the main responsible for the translation of the oeuvre of Franz Kafkain Brazil – who for the past twenty-four years has been immersed in the universe that the Czech writer of TheMetamorphosis, The Trial, and Letter to His Father (all published in Brazil by Cia. das Letras publishing house in 1997)erected in German–, reminds us that “Goethe believed in the existence of two kinds of translation. One aimed atmaking the original work an integral part of the literature to which it was being translated. The second advocatedthat the target language should get as close as possible to the source language, thus creating a third language.”O argentino Jorge Luis Borges foi o primeiro tradutordos densos e atormentados escritos de Kafka naAmérica Latina. “Kafka possui beleza em qualquer lugar,mas na tradução de Borges havia a elegância de<strong>sua</strong> própria literatura. Aquilo não era Kafka, era Borges.Toda tradução é impossível se levada a sério. Substituiro original pela tradução é impraticável. O que sebusca é <strong>um</strong>a correspondência entre as duas línguas.As traduções de Borges são belíssimas”, <strong>com</strong>pleta Carone,ele mesmo author de vários livros.As várias vidas de <strong>um</strong> textoSe para Carone a tradução literal não existe diante daimpossibilidade de se reproduzir, letra a letra, <strong>um</strong>a impossibilidadede se reproduzir, letra a letra, <strong>um</strong>a construçãosemântica e <strong>um</strong> conjunto de significados, quese reinvente o desafio. “A questão é a maneira pelaqual o tradutor consegue – ou não – captar o h<strong>um</strong>or,a lástima, a sutileza, o que Walter Benjamin chamaria‘a vida’ do texto original”, <strong>com</strong>enta a acadêmica norteamericanaKaren Sotelino, Ph.D. em literatura pelaUniversidade da Califórnia <strong>com</strong> <strong>um</strong>a tese sobre a ambiguidadeda linguagem das memórias em Machadode Assis e tradutora para o inglês de Lavoura Arcaica(Cia. das Letras, 1989), do brasileiro Raduan Nassar(à espera de <strong>um</strong>a decisão editorial para ser publicado).“Acredito que Benjamin está certo: traduzir é fazerrenascer <strong>um</strong> texto. Se não acreditasse nisso, nãome dedicaria à arte de tradução. Traduzir é <strong>um</strong>a dasmaneiras mais sérias de homenagear <strong>um</strong> texto e seuautor”, continua.No intuito de c<strong>um</strong>prir <strong>sua</strong> missão, o profissional devese preparar. “Os requisitos básicos são o conhecimentomais amplo possível da língua a ser vertida,sensibilidade para o tom em que o texto foi escrito eboa capacidade de expressão na língua de chegada”,explica o journaliste e crítico de cinema José GeraldoCouto, tradutor de Uma Viagem Pessoal pelo CinemaAmericano (Cosac Naif, 2004), de Martin Scorsese, eFora do Lugar (Cia. das Letras, 2004), de Edward Said.No meio do caminho, alguns dilemas. “Além das dificuldadestécnicas pontuais de encontrar os termosexatos, há a dificuldade geral, agravada em certoscasos, de encontrar a ‘embocadura’, o tom, algoque vai além do mero sentido das palavras. Àsvezes, é preciso sacrificar a literalidade parabuscar <strong>um</strong>a aproximação <strong>com</strong> o estilo,<strong>com</strong> o ritmo, <strong>com</strong> o sabor do original”,pontua.60 Continu<strong>um</strong> Itaú CulturalParticipe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 61


A escritora, pensadora e crítica norte-americana SusanSontag discorreu sobre “os paradoxos ideológicosembutidos no exercício da tradução” em <strong>um</strong> dosensaios reunidos no livro Questão de Ênfase (Cia. dasLetras, 2005). O motivo: em Sarajevo, durante a guerrados Bálcãs, ela dirigiu <strong>um</strong>a montagem teatral de EsperandoGodot, pelo dramaturgo irlandês. peça escritaem francês e em inglês de Samuel Beckett, No palco,os atores falavam em servo-croata. No livro, a indagaçãode Sontag: “O tradutor é fiel à obra? Ao escritor? Àliteratura? À língua? Ao público?”.“Ele é <strong>um</strong> mediador necessário. Sem a tradução, nãoconheceríamos As 1001 Noites”, responde Carone –que destinou dois anos e meio a O Castelo, temposdespués de ter morado em Viena e lá estudado germanísticapara estrangeiros, o que o direcionou aKafka no original. “Sempre existe grau de perda emqualquer tradução. Talvez só <strong>um</strong> italiano do séculoXIV fosse capaz de fruir em <strong>sua</strong> plenitude de A DivinaComédia, de Dante, mas a h<strong>um</strong>anidade seria culturalmentemais pobre se não existissem as traduçõespara as mais diversas línguas”, acrescenta Couto.Acertos e desacertosPor <strong>um</strong> lado, os tradutores cultuam o trabalho de seuspares. “As traduções de Constance Garnett e RosemaryEdmunds da obra de Leon Tolstói são muito boas.Às vezes, ao ler o trabalho de Garnett (Anna Karenina)e de Edmunds (Guerra e Paz), tinha que me lembrarque era tradução. Ao mesmo tempo, elas criaram <strong>um</strong>ambiente suficientemente estranho para estimulara estética do desconhecido. Ou seja, <strong>um</strong> texto bemescrito no original carrega o tradutor”, observa KarenSotelino. “A primeira tradução francesa do difícil Ulissesfoi feita por Valery Larbaud <strong>com</strong> a colaboração do próprioJames Joyce”, cita Carone. “Na poesia, traduçõesmaravilhosas são as reunidas por Augusto de Camposem O Anticrítico (Cia. das Letras, 1986). Na prosa, astraduções do russo de Boris Schnaiderman e as traduçõesdo inglês de Paulo Henriques Britto são admiráveis”,en<strong>um</strong>era Couto.Por outro lado, admitem equívocos e desacertos.“Em Madame Bovary, de Flaubert, traduzia-se ‘l’amourfou’ por ‘amor louco’, quando <strong>um</strong>a tradução de maiorsensibilidade seria ‘<strong>um</strong>a paixão enlouquecedora’ o<strong>um</strong>esmo ‘<strong>um</strong>a paixão’ ”, pondera Carone. O cinemaé <strong>um</strong> campo no qual, para infelicidade geral, a mátranslation é recorrente. La Peau Douce (a pele doce)e Baisers Volés (beijos roubados), de François Truffaut,viraram, respectivamente, Um Só Pecado e Beijos Proibidos.Em 1992, <strong>um</strong> filme que nos Estados Unidos haviasido intitulado Leap of Faith (livremente, <strong>um</strong> saltode fé) chegou ao país <strong>com</strong>o Fé Demais Não Cheira Bem(Richard Pearce, 1992). Em março deste ano, quandoa adaptação do cineasta paulista Fernando Meirellespara Ensaio sobre a Cegueira (Cia. das Letras, 1995), romancede José Saramago, estreou na Espanha, o autorportuguês reclamou do título local – Às Cegas. Suaalegação: os personagens, cegos por <strong>um</strong>a condiçãofísica, não pertencem ao sentido implícito na expressãousada pelos espanhóis.Outro exemplo recente é dado pela tradutora DéboraBaldelli, <strong>com</strong> anos de experiência em traduçãocinematográfica, inclusive na coordenação do departamentode legendagem em duas edições do Festivaldo Rio. “O filme Sim Senhor (Peyton Reed, 2008) ébaseado no livro Yes Man. Na verdade, o significadoé O Homem do Sim, <strong>com</strong>o o personagem é chamadono livro. Portanto, Sim Senhor não faz o menor sentido”,situa. Para cinema, DVD e television, a traduçãoé mais econômica, dada a escassez de espaço. “Infelizmente,existe <strong>um</strong> limite de caracteres que deve serrespeitado. A quantidade na legenda eletrônica não éa mesma das cópias <strong>com</strong> legendas queimadas, nemda exibida em programas de TV. É sempre <strong>um</strong> grandeexercício de síntese”, contextualiza Débora.Síntese, escolha, estudos, dedicação... A rotina de <strong>um</strong>tradutor é repleta de palavras – <strong>com</strong>o não? – que determinamos r<strong>um</strong>os de seus trabalhos. Há confrontos,claro. Carone julga a profissão “importante e indispensável”e “mal paga”. Karen elege a pressa “a grande inimigada tradução, pois o tradutor, em muitos casos,tem <strong>um</strong>a carreira acadêmica e outros <strong>com</strong>promissose precisa ganhar a vida”. E Couto crê que <strong>sua</strong> experiência<strong>com</strong>o jornalista pode atrapalhar “justamente pelatendência ao texto objetivo e despojado, que nemsempre é o que a obra de origem pede”.“O tradutor é fiel à obra? Ao escritor? À literatura? À língua?Ao público?”(Susan Sontag)Entretanto, o que seria da literatura, da civilização, davida sem eles? Sem a tradução, os brasileiros não apreciariamHenri Stendhal, Ivan Turguêniev, Julio Cortázar,Umberto Eco, William Faulkner, Virginia Woolf, HermannHesse, Salman Rushdie e tantos outros. Sem a tradução,Machado de Assis não seria <strong>um</strong> genius universal eGuimarães Rosa não teria esboçado, em <strong>um</strong>a carta de1963 a seu tradutor italiano, <strong>um</strong>a lírica e simbólica definiçãopara dois ofícios-irmãos: “Eu, quando escrevo<strong>um</strong> livro, vou fazendo <strong>com</strong>o se o estivesse ‘traduzindo’de alg<strong>um</strong> alto original, existente alhures, no mundoastral ou no ‘plano das ideias’, dos arquétipos, porexemplo. Nunca sei se estou acertando ou falhandonessa ‘tradução’. Assim, quando me ‘re’-traduzem paraoutro idioma, nunca sei, também, em casos de divergência,se não foi o tradutor quem, de fato, acertou,restabelecendo a verdade do ‘original ideal’, que eudesvirtuara...”.Na Continu<strong>um</strong> On-Line leia entrevista <strong>com</strong> o tradutorModesto Carone.62 Continu<strong>um</strong> Itaú CulturalParticipe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 63


Os registros musicais mais antigos, datados da IdadeMédia, eram realizados em manuscritos que nãotinham o pentagrama <strong>com</strong>o base. Foi no século XIX,<strong>com</strong> a consolidação da indústria de edição musical,que surgiu a partitura no formato atual. A música eseu sistema de escrita evoluíram. Além das notas, surgiramas figuras musicais, os <strong>com</strong>passos, as claves, aspausas, as deslocações de tons e as especificações sobrea forma de execução (vol<strong>um</strong>e, tempo, articulaçãoe acentuação). Hoje, a linguagem da notação musicalé <strong>com</strong>preendida por músicos de qualquer nacionalidade;mas, apesar do progresso, essa linguagem nãofoi capaz de solucionar a contradição de a partituranão ter som.“A notação musical não dá conta de <strong>um</strong>a série de aspectosrelacionados à interpretação e, de forma alg<strong>um</strong>a,substitui a experiência concreta da audição”, dizEduardo Patrício, <strong>com</strong>positor, professor e mestrandoem música pela Universidade Federal do Paraná. “Masela é <strong>um</strong> imenso recurso, não só para registro, maspara o exercício da criatividade e a expansão de possibilidadesestruturais na música.”Língua e músicaContudo, a partitura não é a única forma de escritamusical. A cifra – sistema de representação deacordes – e a tablatura – sistema baseado na posiçãodos dedos do músico nos instr<strong>um</strong>entos– são outras maneiras de escrever música. E,além da escrita, há o registro auditivo, achamada “música de ouvido”.Para o Método Suzuki, é possível aplicar os princípios da linguagem ao aprendizado musicalreportagemAlunas da Escuela Cuatro Cuerdas, em MadriA, b, c, dó, ré, miAs relações entre a linguagem musical e a língua falada são muitas, <strong>com</strong>omostra o Método Suzuki de ensino de música a crianças.Por Carlos Costa | Fotos Luana FischerAntes de existir o alfabeto, existia o som. A música do vento, árias de ar e poeira, os estalos do fogo, as batucadasde trovões... A música talvez seja a primeira das línguas e, apesar de não ser propriamente <strong>um</strong> idioma, éconsiderada <strong>um</strong>a linguagem universal – que tem na partitura o padrão mundial de <strong>sua</strong> representação gráfica.Formada por conjuntos de cinco linhas, chamados de pauta ou pentagrama, a partitura dá suporte a <strong>um</strong>asérie de símbolos que definem <strong>com</strong>o <strong>um</strong>a peça musical será interpretada: as notas, os tons e a duraçãodos sons, das suspensões e dos silêncios. Trata-se de <strong>um</strong> sistema de escrita conhecido genericamente pornotação musical, cuja origem está ligada aos cantos da Igreja Católica Romana da Idade Média e à figura domonge italiano Guido D’Arezzo (992-1050) – que deu nome, a partir das frases iniciais do hino a São JoãoBatista Hymnus in Ioannem, às sete notas musicais (dó, ré, mi, fá, sol, lá e si).64 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 65


Patrício, por exemplo, conta que <strong>sua</strong> experiência <strong>com</strong>a música nasceu <strong>com</strong> a partitura, mas seguiu pelaaudição. “Passei anos sem utilizar partituras em meusestudos, tocando música ‘de ouvido’ ”, afirma. E, <strong>com</strong>oele, artistas populares e de culturas não eruditas vivenciamo fenômeno musical “de ouvido”, encarandoa arte <strong>com</strong>o <strong>um</strong> idioma, aprendido por meio da audiçãoe da repetição.Atento a essa relação da música <strong>com</strong> a língua falada,o instr<strong>um</strong>entista e pedagogo japonês Shinichi Suzuki(1898-1998) desenvolveu o Método Suzuki. Sistemafilosófico de ensino musical a crianças, visa aplicar osprincípios da aquisição da linguagem ao aprendizadode música.O método surgiu no Japão em 1945, após a SegundaGuerra Mundial, e reflete a experiência pessoal deSuzuki, que concebeu a relação entre língua maternae música depois de se mudar para a Alemanha, aos22 anos, e perceber <strong>com</strong>o as crianças aprendiam facilmenteo idioma que tanto lhe custou falar. É <strong>um</strong>atentativa de reduzir as consequências tra<strong>um</strong>atizantesdo conflito na vida de meninos e meninas, oferecendoa música <strong>com</strong>o <strong>um</strong> alento.Também conhecido <strong>com</strong>o Educação para o Talento,o sistema preconiza que qualquer pessoa podeaprender música, pois a habilidade não é inata e o talentose constrói, e que a relação <strong>com</strong> essa arte geracidadãos mais felizes e mais preparados para a vida.Outros preceitos norteiam a aprendizagem por meiodo método, <strong>com</strong>o a participação dos pais, o <strong>com</strong>eçoprecoce (a partir dos 3 anos) e o aprendizado junto<strong>com</strong> outras crianças.Brincadeiras e melodiasAtualmente, o Método Suzuki é aplicado em escolasde música de mais de 40 países, dos cinco continentes,seguindo os livros, as partituras e os registrosde áudio deixados por seu fundador.No Brasil, é pequeno o número de professorescapacitados oficialmente parao uso do sistema. Um delesé EmmanuelMarcelo, de Curitiba, que se dedica há quatro anos aoensino utilizando o processo desenvolvido por Suzuki.“Informalmente, diversos professores usam conhecimentosdo método, mas, seguindo à risca, há muitopoucos, apenas em alg<strong>um</strong>as cidades do Sul e em SãoPaulo”, conta.Há 15 anos no centro de Madri, Espanha, a EscuelaCuatro Cuerdas funciona <strong>com</strong>o centro exclusivo deensino por meio da Educação para o Talento. Visitara escola é <strong>um</strong>a experiência lúdica. Na entrada, <strong>um</strong> espaçopara deixar os calçados dá mostras de quem dominao ambiente: a quantidade de pares de sapatos<strong>com</strong> menos de 15 centímetros é bem superior à deadultos. E as crianças correm e brincam por todos osespaços <strong>com</strong>uns do local. Austeridade e <strong>com</strong>postura,apenas na hora e na sala de aula.O músico Carlos Albuisech dá aulas de violino e violana escola e é pai de Clara, de 4 anos, <strong>um</strong>a dos 120estudantes da instituição. “O aprendizado de músicana infância ajuda no desenvolvimento de funções cerebrais”,diz ele, que aponta <strong>com</strong>o <strong>um</strong>a das principaisfacetas do método o triângulo formado por pai, professore aluno. Os pais assistem às aulas <strong>com</strong> os filhose participam em casa do processo de aprendizagem.“Mesmo <strong>um</strong> leigo em música tem de ir aprendendojunto. É essencial que os pais se envolvam”, reforça.Os alunos têm duas aulas semanais. Uma, de 30 minutos,<strong>com</strong> <strong>um</strong> dos pais e o professor. Outra, de 45minutos, em grupos de cerca de dez crianças, <strong>com</strong><strong>um</strong> professor à frente. Em meio a brincadeiras e jogos,vão aprendendo melodias e técnicas para apreciar eproduzir sons.A partitura é introduzida quando os estudantes atingema puberdade. “Ela entra no processo de aprendizadono período em que o aluno <strong>com</strong>eça a se tornarindependente, maduro. Por volta dos 10, 12 anos”, <strong>com</strong>entaAlbuisech. A experiência marca o amadurecimentodo jovem, pronto para seguir, simultaneamente,pelos mundos da palavra e da música. Ao mesmotempo que, no colégio, podem tomar contato <strong>com</strong> ossímbolos e os segredos da literatura, da arte da palavra,aprendem, na escola de música, a extrair do papel– bem <strong>com</strong>o a inserir nele – a língua da música, <strong>com</strong>seus próprios símbolos e segredos.O contato <strong>com</strong> a partitura acontece quando o aluno atinge a puberdadePARA O INFOGRÁFICOComo se lê <strong>um</strong>a partitura? O que querem dizer as bolas,os traços e os caracteres em preto e branco inseridosno pentagrama? Com base em <strong>um</strong> trecho da cançãoBrejeiro, de Ernesto Nazareth, o músico BenjamimTaubkin <strong>com</strong>enta alguns deles:CLAVE (que define a posição das notas na pauta)UMA FRAÇÃO NUMÉRICA (que determina o tempoe o <strong>com</strong>passo, marcando a estrutura rítmica da músicae, consequentemente, seu estilo)AS FIGURAS MUSICAIS (semibreve, mínima, semínima,colcheia, semicolcheia, fusa e semifusa – querepresentam as notas)SUSTENIDOS E BEMÓISPAUSASINTENSIDADEANDAMENTOOUTROS...66 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 67


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