Ritual da Iimagem: Arte Asurini do Xingu

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216 - Revista Poiésis, n 16, p. 215-219, Dez. de 2010a partir de padrões geométricos.” 2 A autora nos conta ain<strong>da</strong> que existe uma correspondênciaentre as tendências de estilo <strong>do</strong>s desenhos e um princípio estruturante <strong>da</strong> cosmologia <strong>Asurini</strong>,em que os <strong>do</strong>mínios cósmicos se misturam através de abstrações visuais, “como se, porexemplo, a mata e seus seres fossem vistos através de formas liga<strong>da</strong>s ao sobrenatural” 3 .A segun<strong>da</strong> parte <strong>do</strong> livro (sala 2), “pintura corporal”, em fotos e um vídeo feitos na própriaaldeia, vemos o “ilimita<strong>do</strong> número de grafismo <strong>da</strong> cultura <strong>Asurini</strong>” se des<strong>do</strong>brar tambémem corpos. O processo de pintura no corpo e nas cerâmicas também é retrata<strong>do</strong>, revelan<strong>do</strong>a direta relação entre essas duas manifestações <strong>da</strong> cultura <strong>Asurini</strong>. Nas palavras de ReginaMüller, “distinguin<strong>do</strong> gênero e reafirman<strong>do</strong> a natureza humana <strong>do</strong> suporte, a pintura corporalrealiza a existência <strong>do</strong> corpo, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> como a decoração <strong>da</strong> cerâmica realiza a existência<strong>do</strong> objeto, reunin<strong>do</strong> ornato e função utilitária” 4 .Por fim, na terceira parte <strong>do</strong> livro (sala 3) intitula<strong>da</strong> “ritual”, uma grande panela confecciona<strong>da</strong>especialmente para a exposição ganhou uma cenografia, que de mo<strong>do</strong> estiliza<strong>do</strong> ambientavaseu lugar na casa comunal. O Tauva e o Turé, os rituais representa<strong>do</strong>s nesta sala, fazem parte<strong>do</strong> conjunto cerimonial que se desenrola ao longo de um perío<strong>do</strong> que pode durar quatromeses, entre a estação <strong>da</strong> chuva e a estação <strong>da</strong> seca. Várias são as instituições sociais quese relacionam neste conjunto, nos conta Regina Müller, “tais como a iniciação de jovens, aguerra e a celebração <strong>do</strong>s mortos” 5 . As ações finais <strong>do</strong> conjunto ritual remetem mais uma vezà arte gráfica <strong>Asurini</strong>, pois se constituem <strong>do</strong>s “ritos <strong>da</strong> tatuagem <strong>do</strong> guerreiro e <strong>do</strong> choro sobrea sepultura <strong>do</strong>s mortos, no interior <strong>da</strong> casa comunal[...]” 6 .Em ca<strong>da</strong> uma dessas partes/salas, o movimento de fragmentação e justaposição a que mereferi acima é explicita<strong>do</strong>, seja através <strong>do</strong> próprio modelo de exposição – vasilhas que servema diferentes funções expostas conjuntamente em vitrines –, seja por meio <strong>da</strong> mídia utiliza<strong>da</strong>– fotos e vídeo –, ou por fim através <strong>da</strong> participação direta de ceramistas <strong>Asurini</strong> na criação2 Müller, Regina Polo. <strong>Ritual</strong> <strong>da</strong> Imagem: <strong>Arte</strong> <strong>Asurini</strong> <strong>do</strong> <strong>Xingu</strong>. Rio de Janeiro: Museu <strong>do</strong> Índio, 2009.3 Idem.4 Idem.5 Idem.6 Idem.


de uma panela com o único objetivo de representar um conjunto cerimonial numa exposição.Além disso, a reapresentação de forma condensa<strong>da</strong> de várias manifestações de um mesmovalor cultural crítico para uma socie<strong>da</strong>de, no caso a arte gráfica, em uma espécie de colagemno contexto dessa exposição vem a reforçar a transparência desse movimento de fragmentaçãoe justaposição. De fato, a apreensão <strong>da</strong>s diversas aplicações <strong>da</strong> arte gráfica na socie<strong>da</strong>de<strong>Asurini</strong>, num certo senti<strong>do</strong> quase simultânea pelo público que visita a exposição ou lê o livro,representa uma oportuni<strong>da</strong>de de reflexão sobre os tipos de deslocamentos que necessariamenteacontecem no âmbito <strong>da</strong> apresentação <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> pesquisa antropológica.Ou ain<strong>da</strong> em outras palavras: os museus e exposições antropológicas (e por associação, oscatálogos de exposição), são “bons para pensar” 7 [em particular a respeito <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>deantropológica menciona<strong>da</strong> acima]. De fato, fragmentos exemplares <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana deum povo, de sua arte, de suas crenças e assim por diante, ao serem rearranja<strong>do</strong>s em outrocontexto que tenha ou não a pretensão de reproduzir ou mimetizar o contexto original <strong>do</strong>squais esses elementos foram retira<strong>do</strong>s 8 , acabam por deixar transparecer a “artificiali<strong>da</strong>de” ea “parciali<strong>da</strong>de” <strong>da</strong> tentativa de se retratar aspectos de outras culturas e também a inevitável“interferência” de nossa própria cultura nesse processo.217 - <strong>Ritual</strong> <strong>da</strong> Imagem: <strong>Arte</strong> <strong>Asurini</strong> <strong>do</strong> <strong>Xingu</strong>No caso específico <strong>do</strong> livro <strong>Ritual</strong> <strong>da</strong> Imagem, o movimento de deslocamento, e mais precisamentea ação de justaposição, acontece não apenas em termos espaciais, mas tambémem termos temporais, pois diferentes tempos <strong>do</strong> povo <strong>Asurini</strong> e <strong>da</strong> própria pesquisa<strong>do</strong>ra sãosobrepostos nas páginas <strong>do</strong> livro. Na ver<strong>da</strong>de, o passa<strong>do</strong> e o presente de ambos os la<strong>do</strong>sse confundem, revelan<strong>do</strong> ao mesmo tempo a história de contato e troca entre os <strong>Asurini</strong> e7 A referência aqui é ao famoso modelo de Claude Lévi-Strauss relativo ao fenômeno <strong>do</strong> totemismo. Lévi-Strauss, Claude. Totemismohoje. Lisboa: Edições 70, 1986.8 Barbara Kirshenblatt-Gimblett – professora <strong>do</strong> Departamento de Estu<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Performance <strong>da</strong> Tisch School of the Arts, New YorkUniversity – faz uma distinção entre <strong>do</strong>is estilos de exposição etnográfica, chama<strong>do</strong>s por ela de “in-situ” e “in context”. “In-situ” temum apelo mais realista, e o objeto etnográfico é nele contextualiza<strong>do</strong> em um ambiente que recria tanto perfeitamente quanto possívelo entorno original. O estilo de exposição “in-context”, por sua vez, deixa claro a natureza arbitraria de to<strong>da</strong>s as representações. Apesardessa divisão, a autora nos chama também a atenção para o fato de que instalações “in-situ”, por mais miméticas que sejam, nãosão neutras, também sen<strong>do</strong> a criação direta <strong>do</strong> próprio etnógrafo. Para mais detalhes ver Kirshenblatt-Gimblett, Barbara. “Objectsof Ethnography” in Karp, Ivan and Lavine, Steven D. Exhibiting Cultures: The Poetics and Politics of Museum Display. Washington eLondres: Smithsonian Institution Press, 1991.


218 - Revista Poiésis, n 16, p. 215-219, Dez. de 2010a socie<strong>da</strong>de brasileira mais global. Apenas em 1971, aconteceria o primeiro contato <strong>do</strong> povo<strong>Asurini</strong>. Pouco tempo depois, em 1976, Regina faria sua primeira visita aos <strong>Asurini</strong> com o intuitode coletar <strong>da</strong><strong>do</strong>s para elaborar um projeto de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>. Nos anos seguintes até 1986,Regina faria outras visitas no contexto de sua pesquisa de campo, chegan<strong>do</strong> a ficar um ano emeio entre os <strong>Asurini</strong>, de 1978 a 1979 – perío<strong>do</strong> em que assumiu a direção <strong>do</strong> posto indígenajuntamente com um funcionário <strong>da</strong> FUNAI.Foi nesta época que 19 objetos cerâmicos que agora são “expostos” na parte/sala 1 <strong>do</strong> catálogo,intitula<strong>da</strong> “arte gráfica e cerâmica”, foram coleta<strong>do</strong>s para compor uma coleção <strong>do</strong> Museu<strong>do</strong> Índio. A aquisição destes objetos fazia parte “de ativi<strong>da</strong>des desenvolvi<strong>da</strong>s junto aos <strong>Asurini</strong>que visavam buscar alternativas de sustentabili<strong>da</strong>de econômica deman<strong>da</strong><strong>da</strong>s pela situação decontato crescente.” 9 Em <strong>Ritual</strong> <strong>da</strong> Imagem, Regina nos conta que, em 2007, retoman<strong>do</strong> osprincípios desta ação indigenista, houve um estímulo para que as ceramistas <strong>Asurini</strong> mantivessem“a quali<strong>da</strong>de técnica e artística tradicional para produção destina<strong>da</strong> ao comércio porrevende<strong>do</strong>res especializa<strong>do</strong>s.” 10 Seis destas peças produzi<strong>da</strong>s por uma nova geração tambémfiguram nas páginas <strong>do</strong> livro.Em uma foto dessas peças no contexto <strong>da</strong> exposição, lê-se a legen<strong>da</strong> “Peças confecciona<strong>da</strong>spara comercialização em 2007. A forma <strong>da</strong> peça confecciona<strong>da</strong> por MURUKAI [o nome de uma<strong>da</strong>s ceramistas <strong>Asurini</strong>] já se encontrava em desuso em 1976. Incentiva<strong>do</strong>s para a produçãovolta<strong>da</strong> à comercialização com grande varie<strong>da</strong>de de formas as artistas têm se inspira<strong>do</strong>, comoneste caso, em peças que reconhecem como ‘antigas’” 11 . Um detalhe desta legen<strong>da</strong>, o uso<strong>da</strong>s aspas na palavra “antigas”, revela uma referência implícita à noção de “comportamentorestaura<strong>do</strong>” 12 de Richard Schechner – um <strong>do</strong>s precursores <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> antropologia <strong>da</strong> performance– uma pista para a confluência de duas fases <strong>da</strong> carreira acadêmica de Regina PoloMüller que se dá no âmbito desta exposição.9 Müller, op. cit.10 Idem.11 Idem.12 Não caberia no espaço desta resenha discutir o intrica<strong>do</strong> conceito de “comportamento restaura<strong>do</strong>” de Shechner. Para mais detalhes,ver Schechner, Richard. “Restauration of Behavior” in Between Theater & Anthropology. Filadélfia: University of PennsylvaniaPress, 1985.


Na prática, em suas intervenções performáticas, ou através de sua contribuição para o desenvolvimentode noção “nativa” de performance no âmbito teórico, Regina se tornou aos poucos um <strong>do</strong>s nomes importantesno Brasil <strong>da</strong> subárea <strong>da</strong> antropologia <strong>da</strong> performance, depois de concluir sua pesquisa de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>sobre os <strong>Asurini</strong> 13 . Em um certo senti<strong>do</strong>, poderíamos pensar essa exposição sobre os <strong>Asurini</strong> como umato performático e autobiográfico em si mesmo, no qual a história de contato e pesquisa de Regina Mülleremerge em um segun<strong>do</strong> plano por trás <strong>da</strong> exposição acerca <strong>da</strong> arte gráfica <strong>Asurini</strong>.219 - <strong>Ritual</strong> <strong>da</strong> Imagem: <strong>Arte</strong> <strong>Asurini</strong> <strong>do</strong> <strong>Xingu</strong>13 Seria difícil descrever em poucas palavras a complexa tese de Regina Müller. Em linhas gerais, o tema central <strong>da</strong> tese se concentrou na discussão<strong>do</strong> xamanismo e <strong>da</strong> cosmologia <strong>Asurini</strong> a partir <strong>da</strong> descrição <strong>da</strong> arte gráfica aplica<strong>da</strong> na decoração <strong>do</strong> corpo e de objetos de cultura material. Para maisdetalhes, ver Müller, Regina Polo. Os Asuriní <strong>do</strong> <strong>Xingu</strong>: História e <strong>Arte</strong>. Campinas: Editora <strong>da</strong> Unicamp, 1990.

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