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VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALafastamento (que não significava necessariamente desconhecimento) terálevado a que cada comunidade fosse inventando (copiando entre si osmodos que melhor pareciam resultar) linguagens próprias que apenas a presençade um determinado ambiente «natural» não explica. Até porquemuitas delas vinham carregadas de «inutilidade» e pertenciam à zona do«pen samento desinteressado», aquela zona que, precisamente, o «pensamentocientífico» não consegue nunca penetrar.No entanto, Lévi-Strauss, a despeito da sua simpática tentativa de resoluçãoda contradição funcionalista, continua a situar a problemática da invençãodo habitat num território ainda muito eivado de relações «mecanicistas».Seria como se a distância, ou melhor, a não comunicação, ao diminuírem ouao deixarem de existir, aproximassem de tal modo os modelos e as culturas,que nada mais restasse ao homem que a progressiva aceleração para ummundo homogéneo e pouco inventivo, deliberadamente não diferenciado.Frederik Barth (1969), no entanto, dá-nos uma chave para lermos a questãoao contrário:«Apesar de já não ser considerada, há muito, a suposição naïf de que cada tribo ecada povo tivesse mantido a sua cultura através de uma belicosa ignorância dos seusvizinhos, persiste o ponto de vista simplista de que o isolamento social e geográficotenham sido os factores críticos na sustentação da diversidade cultural» 4 .Porque, para Barth, se na definição de um grupo étnico é dada, geralmente,uma grande importância à partilha de uma cultura comum, «[...] muito haveriaa ganhar, se observássemos este factor tão importante, mais como umaim plicação ou um resultado, do que como uma característica primária e definidorada organização de um grupo étnico» 5 .«Uma vez que, pertencer a uma categoria étnica implica ser um determinado tipode pessoa, ter essa identidade básica implica também um direito a ser jul gado, e ajulgar-se a si próprio, pelos padrões que são relevantes para essa identidade. Ne -nhum destes “conteúdos” culturais sai de uma lista descritiva de acontecimentosculturais ou de diferenças culturais; não se pode prever, a partir de princípios inaugurais,que acontecimentos virão a ser enfatizados e tornados, em termos de organização,relevantes pelos actores» 6 .Alexandre Alves Costa (2004) explica-nos porque não podemos confiar anossa «tranquilidade» a uma arrumação causa-efeito nos fenómenos da ar-316


Manuel Graça Diasquitectura. A arquitectura, o «habitat», segue sempre novas linhas e mostraformas novas ou surpreendentes, porque não é a solução de um «problema»mensurável o que é posto em causa cada vez que o homem constrói,reconstrói ou apenas melhora e «alinda» a casa, a cidade ou o espaço ondeirá viver.«Todos dizem, menos eu, que a arquitectura nasceu com o abrigo. Tudo menos isso.O abrigo é defensivo: o homem, temendo a natureza, procura refúgio.A arquitectura nasce quando o homem luta, avança no pensamento e no conhecimento,inicia o seu processo de domínio da Terra. E a ambição dele é tão justamentedesmedida que não aspira apenas ao domínio da Terra, mas ao do Uni -verso e, para isso, usará todos os meios: os materiais, recorrendo aos que existemà mão; os espirituais, inventando aqueles que não existem ainda. O fogo foi umdos primeiros inesperados milagres a confirmar a possibilidade de transformar odesígnio em verdade e, por isso, reforçou a vantagem da poesia e do desenho,da arte em geral sobre o pragmatismo: da ar quitectura, evidentemente, para organizaro espaço da Terra à sua medida e de acordo com o seu desejo, quasesempre interpretado, pela má consciência funcionalista, como necessidade premente»7 .A nossa confusão provém de não querermos, ou de nos custar bastante, re -conhecer competências a quem não «saiba escrever». Pensámos que a instruçãose pudesse sobrepor aos impulsos mais fortes e espontâneos que atravessama alma humana. Grande erro este, a que o imprescindível positivismo nosatou: com a razão explicamos e avançamos no terreno do que é aprisionávelpor esse(s) modo(s), mas escapará sempre tanto de imenso intuitivo, ou emocional,ou erótico, ou poético, tanto do que não poderá nunca caber dentrodos limites da ciência!«Liberdade e causualidade não constituem termos logicamente contraditórios.Contudo, pertencem a quadros de referência díspares. Por isso, é ocioso esperarque métodos científicos sejam capazes de revelar liberdade mediante algum métodode eliminação, acumulando causas sobre causas, até se chegar a um fenómenoresidual (que não pareça ter causa). Do mesmo modo, não se pode chegar à liberdadeatravés do exame de casos em que a previsão científica falhe. Liberdade não éimprevisibilidade, como demonstrou Weber, se fosse assim, o louco seria o serhumano mais livre que existiria. O indivíduo, consciente da sua própria liberdade,não se situa fora do mundo da causalidade: antes, percebe a sua própria voliçãocomo uma categoria especialíssima de causa, diferente das outras causas que temde levar em conta. Essa di ferença, entretanto, não é susceptível de demonstraçãocientífica» 8 .317


VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALIndividualismo ou história?É comum referir-se que a ocupação neolítica da Península Ibérica se reconhe -ce na especificidade dos «castros» ou das «citânias», alcandoradas nas alturasde algumas serras. As casas que constituíam esses primeiros aglomerados, osseus vestígios, não nos deixam dúvidas quanto ao terem sido, na maior partedos casos, de planta circular.Casas de pedra, duráveis, então: casas de pedra, cuja pedra só não chegouinteira até nós porque, na maior parte dos casos, as aldeias dos repovoamen -tos modernos da mesma região, erigidas durante os séc. XVII e XVIII, ascobiçaram já talhadas e transportaram-nas (a muito rodado de bois) algunsquilómetros para baixo, para zonas mais perto dos vales e da água.Os castros sempre alteados, longe, foram ficando memórias improváveis ligadasà toponímia, nesse tempo subsequente que, embora lento, já há muitocruzava os blocos de pedra nos cantos, solidificando os cunhais de modo atravar as paredes, os planos que reenquadravam o espaço. Às casas de plantaredonda foram sucedendo as rectangulares e, depois, duas casas juntas, três,quatro, perfazendo diferentes compartimentos ligados por dentro ou porfora; saltos epistemológicos...Mas, o modo primitivo de fazer as coberturas dessas casas, com ramos aparadose juntos em «chapéu de chuva», apoiados numa forquilha central «fundada»ao centro, numa pedra cilíndrica cravada no chão, como os vemos nosvestígios de Briteiros ou em levantamentos mais nossos contemporâneos,porque não se foram também modificando, alterando?«Para George Montandon [1934, L’Ologenèse culturelle, Paris, Payot, 291], do mesmomodo, as relações entre as formas de construção e o solo – que, aliás, é puramente“um pro blema discursivo da geografia humana” –, manifesta-se acima de tudo nosma teriais. O mesmo autor, curiosamente, nota que, de resto, casos há em que, semse saber bem porquê, uma certa forma é rara num certo meio, sem tal ser imputávelà consideração dos materiais: assim, a cabana circular com cobertura cónica é raraem regiões de floresta» 9 .Por outro lado, não são esses cones de colmo, essas coberturas de «choupanas»,extremamente parecidas com as dos povos sem escrita, em «caniço»,que os navegadores europeus foram encontrar na África tropical ou nasAméricas?318


Manuel Graça DiasNão recorriam (e recorrem ainda – pelo menos em África, convivem aindahoje, lado a lado, resistentes, com modos mais «modernos», em zinco, tijoloou betão), esses outros povos, com outros climas tropicais (húmidos, quentes,o contrário do que envolvia a montanha em Trás-os-Montes ou nosMontes Can tá bricos), ao mesmíssimo tipo de forma e modo de montar apalha?E porque são tão diferentes as mais volumosas, fantásticas e «penteadas»coberturas que nos habituámos a ver fotografadas em Timor?319


VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALÁlvaro Siza Vieira teve grandes dificuldades em fazer aceitar na «CidadeVelha», na Ilha de Santiago (Cabo Verde), cuja recuperação liderou, a ideiade que as coberturas tradicionais em palha deveriam ser retomadas.Num discurso estimulante, captado pelo olhar da cineasta antropóloga Ca ta -rina Alves Costa 10 , uma habitante local explica-nos em poucas palavras o«absurdo» da exigência: a palha, tradicionalmente, provinha das grandes ex -plo rações de cana sacarina que, entretanto, tinham acabado; a pouca palhaexistente era consumida na criação de gado (cara, portanto, para aplicar emcoberturas e, por outro lado, muito exposta ao risco de incêndio); a telha,segunda opção do arquitecto, era também cara e o Governo, ainda que empenhadona candidatura da Cidade Velha a Património Mundial, não pareciadisposto a colaborar nas despesas; o que a população desejava que o arquitectoSiza Vieira viesse a autorizar, era que se pudesse fazer coberturas planas,em laje de betão, sistema cuja tecnologia achavam dominar e lhes pareciamuito mais durável e infalível, em termos de impermeabilização e incêndio.São grandes as contradições que encontraremos ao pretender abarcar toda aextraordinária riqueza dos modos humanos na produção do seu habitat.A leitura de Frederik Barth acompanha-nos mais quando nos aproximamosdas cidades. É aí que os homens são em maior número e estão mais juntos.É aí que se influenciam mais. Mas é também aí que os constrangimentos respeitantesa padrões, mais ou menos aceites socialmente, serão menores;maior liberdade, então, no modo de cada um se expressar e mostrar a suaidentidade: através da roupa, dos objectos, dos adornos, dos automóveis, dalinguagem, do modo de fazer as casas. A urbanidade, sendo o corpo de regrasque convencionamos para podermos viver em conjunto, para ultrapassarmoso excessivo individualismo que, a ser verdadeiro, desprezaria a História,é também a soma das negociações da nossa identidade com o exterior e,então, a soma de todos os actos mais ou menos individuais que, conscienteou inconscientemente, reencontramos plasmados na cidade. Cidade quegostaríamos que fosse de todos, modelada por todos, para todos.«Nós somos a natureza, somos responsáveis pela nossa existência. Nós, os vi vos,somos, ao mesmo tempo, a totalidade da história e do conhecimento» 11 .A imitação faz crescer a cidade, mas o modo de imitar não é igual em todos,ao longo dos tempos; o modo de ler, o modo de interpretar.320


Manuel Graça DiasConseguimos, aos poucos, distanciar-nos tanto dos modelos, que criamosmo delos novos; outros modelos, novas simulações, novas articulações, sobremo delos distantes. Dir-se-ia que quem lidera, quem segue à frente (o mito davanguarda), abriria mais depressa outros caminhos, pistas, inauguraria rápidosexemplos. Mas quem seguir desconhecedor das imensas regras onde semexe a «instrução» pode, também, na ignorância do discurso suposto ou correcto,eleger para reprodução partes omissas que nos retribuem em poética,que nos restituem em ingenuidade, a alegria que falta às já cansadas rotinasou à cínica erudição.A arquitectura e a cidade são, desde há muito, «artes globalizadas»; longínquovai o tempo das experiências «fechadas» que o olhar etnográfico iriadepois descobrir.O que mudou, desde os monges cistercienses, desde a lenta experiência novaem Alcobaça, foi a velocidade da circulação da informação.Se a Basílica da Estrela (1779-1790), feita por arquitectos da Escola de Mafra,re presenta, no final do século XVIII, o triunfo de um estilo já ultrapassado,para agradar a uma rainha louca e beata, já a Feitoria Inglesa, construída noPorto, quase ao mesmo tempo (1785 e 1790), segundo projecto do cônsulinglês John Whitehead, numa mais contemporânea inquietação neopalladiana,cumpria, com maior fidelidade, o «espírito do tempo», encontrandona burguesia portuense um forte aliado, quer na busca de uma certa austeridadee serenidade compositivas, introduzindo em Portugal o neoclassicismo,quer na procura de uma linguagem própria de um específico gruposocial que, só mais tarde, o liberalismo poderia vir a abraçar convictamente.321


VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALNo século XIX, já o progresso dos novos boulevards chegava a Lisboa, poucosanos depois de Haussmann renovar Paris (1850-1870) – o tempo, tão só, deRessano Garcia acabar os seus estudos na École Imperial des Ponts etChaussées (1869), ingressar na Câmara da capital como engenheiro (1874) ecomeçar a pensar em prolongar Lisboa, derrubando o «Passeio Público» econtinuando, pelo vale acima, uma nova e inesperada estrutura para a ci -dade moderna.Os exemplos seriam muitos, eruditos e também populares (uma enor meforça anónima produz e regenera, ao longo dos tempos – cada vez mais velozes–, a transfor mação da cidade, a transformação da paisagem).Nunca, como no século XX (e agora também no arranque do XXI), se construiutanto, se transformou tanto, se tentou garantir tanta habitabilidadepara tantos. Claro que a especulação tem sido o motor da transformação;claro que nos podemos interrogar sobre as verdadeiras razõesde algumas das «necessidades» artificialmente criadas; mas a realidade ur -bana contemporânea, nas suas contradições e desequilíbrios, será, apesarde tudo, a situação, dir-se-ia, mais «justa» (apesar de todas as «injustiças»),a que se terá chegado, ao longo destes longos três séculos de crescimento dascidades.Ainda que muito haja a fazer para suprir as necessidades de todos, com avontade de todos e com o desejo de todos, com o trabalho de todos.322


Manuel Graça DiasIntervalo (49 legendas)Na dificuldade de caracterizar um «vernáculo» moderno, que nos pudesse(à maneira do século XX) sossegar quanto aos percursos estilísticos seguidospelo «bom povo português» nesta caminhada, ao lado – em paralelo –, comos «bons povos» de todo o mundo, escolhemos um número arbitrário (49)de ima gens díspares e contemporâneas que legendámos. Tentámos fazerpassar, nas fotos, um espelho e, nas legendas, uma hipótese de descodificação,do que fosse um corte (incompleto e sincrónico) de um levantamento (denovo popular) de alguns dos variados modos de expressão que atravessam oPortugal de hoje. É uma amostragem e, ainda por cima, muito incompleta.Mas é um es bo ço feito com gosto, vontade e amor pela coisa construída,pelo trabalho do homem, pela busca dos seus nexos, por vezes escondidos,quase sempre des prezados; como é costume com o vernáculo.Chaves:Av. 5 de Outubro, 20051 – O móvel dentro do móvel, pesem os re flexos, representa o encaixotarpúblico de uma realidade objectual que o dono da loja de mobílias promovee que todos aceitam. O móvel é exibido dentro da já em si «valorizada» caixamontra (repare-se no almofadado neo-renascença do plano de chapa em alumíniotermolacado, que passa atrás ou nos «caracóis» em ferro forjado queilustram uma vontade barroca de preenchimento em «franja de avental» oencontro com o chão). A «montra» mó vel, à medida para móveis magros,valoriza a credência vagamente depurada, e a flecha da prateleira inferior vai323


VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALpassando despercebida. A meio do reflexo de luz destaca-se outro símbolode status contemporâneo, vindo do edifício em frente: um aparelho de arcondicionado.Lisboa:Rua de Santo Amaro à Estrela, 20062 – Sport Lisboa e Benfica e Por tugal, estendem-se coloridos – os símbolos –,por sobre as cor das da roupa de um edifício anó nimo oitocentista cinzento esujo. Lê-se (vê-se) que é casa de gente pobre: atestam-no as janelas antiquadas,de guilhotina, em madeira e vidraça simples, ainda não passadas a pvc e vi droduplo; o vento dos tempos continua adverso, apenas secando bandeiras.Sintra:Queluz (I), 20073 – Não há + barato; tudo para o seu lar a preços de armazém. As formas decomunicação comercial mais ou menos agressivas dão vida aos centros urbanos.Quando os passeios são largos (ainda que seja raro serem lar gos nascidades portuguesas), o comércio ocupa-os com várias propostas coloridas,esplanadas ou pequenas galerias onde se ex põem «fazendas» (batas la ran ja ou324


Manuel Graça Diasminicamisolas com números para mostrar o umbigo). Há muito que asflores largas não são padrões exclusivos dos imigrantes africanos, que tam -bém podem preferir azuis mais «sóbrios».Almada:Charneca da Caparica (I), 20064 – Chama: todas as lareiras, chur rasqueiras e acessórios. Uma casa de subúrbiode classe mé dia ou média baixa que se preze, já não pode dispensar aslareiras, para os nórdicos frios da Grande Lisboa, ou as churrasqueiras, paraos sempre tradicionais barbecues de sardinha assa da ou febras de Verão.Chaves:Café Rocha, 20025 – As artes do alumínio! A quantidade de registos rectangulares que umaparede de vidro pode suportar! Seguem simetrias ocultas, atraiçoadas apenaspelas variadas larguras diferentes das diferentes peças. Mon drian não desdenharia,acrescentando apenas, talvez, toldos de cores diferentes ao contra--luz. Sente-se que é Natal nas abstracções cónicas pousadas no quadrado lateraldireito, que são árvores «estilizadas» em vime leve: gravitam. As luzes fluorescentesgémeas espelham-se no balcão de inox polido e o sol chega frio de fora.325


VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALAmadora:Damaia (I), 20086 – Na verga metálica acrescentada da porta, encostado ao be tão azul quecinta por cima a pe quena barraca, uma série de informações correctamentees cri tas e bem desenhadas num in vejável lettering sem tiques: manicure/cabeleireirounissexo/pedicure.Parte dos signos trespassados por balas (ou serão pregos ferrugentos?), dizemnosda maneira amorosa de os manusear e enfeitadamente no-los devolver,na sobriedade do preto e branco, arremate de testa de porta ou tão só lintelde sombra que alivia a vontade firme de azul.Almada:Charneca da Caparica (II), 20067 – A casinha «portuguesa» es pre i ta-nos pela janela da camioneta. Em casode emergência po deremos quebrar o vidro; o da camioneta, que a casa resplandecede vidro inquebrável ou in quebrantável, como a fé dos sete anõezinhos.Lajes gordas revestidas a telha, janelas profusamen te quadriculadasà custa de ba guettes de pvc branco, recatadamente encerráveis com «ta bui -nhas» do mesmo plástico. Cor indefinida: salmão? Rosa? Creme? «Brutavivenda»! Sem dúvida.326


Manuel Graça DiasChaves:Praça do Brasil, 20058 – O aluguer de limousines chei ra a Verão e é destinado aos emi grantes quevêm casar à ter ra, em Agosto. Em Agosto, Cha ves não pára, as águas doImpe ra dor Fla viano sempre agitadas com o vai vém cosmopolita de quemusa, agora, termos franceses.Um casamento de Verão, uma boda assim, uma noiva assim, na ostentaçãoda limousine. Tam bém se vende(m); quem quer comprar? É simples:www.limousine.pt.Oeiras:São Marcos, 20089 – Compro todo o tipo de carros. (Comprará limousines? Interessar-lhe-á oanún cio anterior?) Pequenas notas publicitárias de largar em montras, telefonespúblicos, portas de edifícios, paredes de comboios suburbanos; sítiosonde o olhar se encosta sem alternativa, não deixando de notar a mensagemcurta, rápida, graficamente eficaz.327


VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALAqui, num gesto rápido, apressado (te me rá rio?), o rótulo autocolante adereum pouco torto ao círculo do símbolo cívico e, momentaneamente, a mensagem«cres ce»: compro todo o tipo de carros, mesmo aqueles destinados ao lixo.Abusivo? Não, rodagens semânticas que a ci da de propõe e os cidadãos interpretamenquanto dei tam fora plásticos embrulhados.Faial:Horta, 200410 – Esta montra é rasgada com determinação, raiva, vontade de abrir a pa -rede velha. Entalado entre os dois vãos existentes, salta o nembo com adeterminação do pedreiro encarregue de facilitar a venda de artesanatos elouças. A pardieira estende-se agora enorme, em betão, provavelmente,unindo os maciços la terais sobreviventes. Decora-se de ondulado azul parare ceber a sombra destas pedras patrimoniais com que foi debruado oquadro. Em baixo, o soco de pe dra porosa é retomado dentro, pelo alegreazul como uma im pro vável cortina pregueada.S. Roque do Pico (I), 200411 – A casa está sobreposta a um plateau vulcânico, igual à pedra preta irregularespalhada pelo chão à volta (materiais da região...). Depois, eleva-se a328


Manuel Graça Diaspa rede igual, mas caiada, para que não se distinga deste céu sempre brancoesfiapado, aberto e atlân tico, que cerca e envolve a casa. Num primeiro piso,marcas roladas de pequenos seixos pretos em tapete vertical ou massa grossaenvazando a casa de bazalto. Os pilares atravessarão, caiados, por fora, o totalda estrutura, enfeitados de pedras mais circulares: são tachas, repetições,rimas que retomam a vontade de ver através de um céu tão hú mi do. Ver me -lho, nas cruzes prin cipais dos caixilhos, aumentarão o destaque. A casarematada.Almada:Costa de Caparica (I), 200112 – Na praia, no meio da praia, nas dunas, no meio das dunas, a casa quePolis há-de remover. Tem janelas pequenas, mas o seu jogo de cores e equilíbrio,de distribuição nos dois planos complanares e distintos de rosa forte eazul, são achados de significado que nunca a demasiada erudição conseguiriaantever.Tábuas, por dentro, rudimentares portadas que isolam do vento, expressamna cor escolhida (ou no debruar branco das molduras), o nome do vão, a cordo vão, a espessura do vão. À frente, descomunais pilares em betão sustentama frágil amarração de uma varandinha riscada. Haverá composição maissubtil?13 – Em Janeiro de 1989, al guém, de apelido (?) Rosa, pin tou este elogio aogin tónico. Há muito rigor no registo da refracção da luz (a palhinha «partida»ao chegar à superfície), mas a pro porção das garrafas não nos é familiar.Daí a atenção, o to que de novo, a força do sinal. Agrada-nos a moldura329


VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALPico:R. Roque do Pico (II), 2004negra afei çoada ao tema, o enchimen to de reboco para montar o quadro. Asluzes serão outro layer posterior que se sobrepôs, ga rantindo ao gin umdesejo nocturno. Um litro de gin gordo, em vez de Gordon's.Almada:Costa de Caparica, 200314 – Poderia ser esta a casa de Hän sel e Gretal, na história dos Grimm, combeirais de chocolate e alvenaria de caramelo. O gosto pelo arco quebrado nocoberto do carro e mais o quadrado rodado de vidro de luz atrás atestam oneo-romantismo que envolve obsessivamente a construção: do anexo aomuro, do pórtico de entrada às chaminés; dos planos, como livros de contosde fadas desdobrados, que avançam para nós.15 – O jogo de rectas que irradiam são os topos das lajes rosa que fazemavançar os telhados. Em baixo, os raios duplicam, desse Sol invisível, e a330


Manuel Graça DiasAlmada:Charneca da Caparica (II), 2006grelha é em leque porque a terceira água não quis acompanhar a inclinaçãoda escada. Tremidas, ou he si tantes, depois, as verticais. Em baixo, em redede ferro, fechada a varanda demasiado exposta. Há duas falsas simétricasjanelas com os estores plásticos sujos, cercados por uma moldura de granitoamaciado ou azulino: rectângulos que fogem ao eixo da cumieira. As grelhas,as grades, as redes, dão segurança.Almada:Costa de Caparica (II), 200116 – A porta 53, na sua irradiante luz vermelha e amarela é recortada nane ces sidade de branco que segura aquilo tudo (todo aquele desenho forte,feito de paus, de bocados de madeira plana, de pregos e réguas de re matee suporte). A porta é, provavelmente, mais antiga, talvez reciclada deum qualquer lixo ou de molição. A tinta pe ga-se às suas três tábuas largasde um modo mais irregular, pega-se à história que está agarrada às tá buas,às mar cas, talhas, mossas que a porta transportou de ou tras vantagens.No resto, a tinta é quietude por so bre as pranchas que ainda nãoviajaram.331


VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALVila Real de Santo António:Manta Rota, 200417 – Estamos no Algarve. Sa bê mo-lo pelo céu, pela luz, pelos ares condicionados,pelo ex ces so de carros, pelos alumínios de bolhas que irradiam ocalor den tro dos vidros dos carros, pela parabólica virada para a Es panha. Avivenda Maria Teresa (que é, afinal, uma correnteza de casa para alugar ouvender a vários veraneantes), tem tam bém o reconhecível perfil das casas deférias: branca, profusão de telhados, telha lusa em gordos beirais, portas empvc, «almofadadas», com suplemento de rede mosquiteira. Para resolver aem pena, preguiçosamente cega, duas janelas em azulejo, mais largas quealtas, tentam garantir sabor «regional», com a falsa cantaria pintada a amarelode óleo, como aliás o soco «verdadeiro».São Miguel:Bretanha, 200518 – Vir dos Estados Unidos para poder construir (ou reconstruir) a Vi ven -da Ferreira, nú me ro 13 desta rua: número entalado entre cisnes. Toda aporta se reclama baixa dessa origem que Thomas Jefferson dei xou impressano enorme continente distante.332


Manuel Graça DiasAqui, «carapinha» verde estreita as golas das janelas e no soco, em bai xo,com pedrinhas, bandeiras plasmadas; as suas bandeiras. Por cima, Fátimafala aos pastorinhos. Toda a casa fala da viagem para trabalhar.Sintra:Queluz (II), 200719 – Piu-piu de Verão, com a sua prancha de surf, desdobran do-se protegendoo volante. O conforto e a velocidade: entrar num carro quente nãonos po de rá fazer perder tempo; imedia tamente (dobrado o Piu-piu), po deremosseguir viagem, apanhando o fresco de ar deslocado se, previamente, ocuidado do cartão nos mediar o sol.O mais difícil será sair daqueles passeios de plátanos e de carros em todas asdirecções. Não deveria ha ver «sítios», só «parques»!Moita:Café (I), 200320 – O balcão é um barco, um bote já inútil do Tejo, de onde foram expulsos.As amarras prendem o tirador de cer veja, a bóia salva-vidas saú da a bor doaqueles que pouco sabem de inglês; o leme (frágil) é um relógio e os remos333


VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALenfeitam coloridos, entre os espelhos dos fornecedores de be bidas, a vigarebocada em tirolês e debruada a seixos do rio. Podem apoiar-se na pedra decais, onde fica en cai xada a quilha da em barcação parada, e encomendarimperiais ou bifanas.Moita:Café (II), 200321 – Os capitéis em coroa de flo res ocultam lanternins piramidais, rematan -do colunas mascaradas de tijolo branco, onde se colam os anúncios de touradas.O tecto armstrong, branco flou, foi o melhor que se pode arranjar naslojas de materiais da região. Às vezes, salpicam-se de luz fluorescente difusaou com ventoinhas de pás. Mas o ar frio das ventoinhas é acelerado pelossplits e as luzes «frias» amenizadas pelas três lanternas antigas forjadas, trianguladasà entrada do balcão.Almada:Charneca da Caparica (IV), 200622 – Aqui está a autoconstrução! Como se constroem novas cidades. Os mu -ros já estão ca pea dos de pedra pequena, as jun tas refechadas, e já se fazemmais ao lado: tijolo furado, assen te com massa de pedreiro, mais tarde virão334


Manuel Graça Diasas forras. Os azu lejos já debruam os pilares e o fundo da varanda, o caixilhodourado de alumínio que ta pa va o vento será removido, por que os novospilares já seguem, cofrados, agarrados provisoriamente ao muro da frente.«Prolongaremos a varanda como quer a tua mãe! Afasta os vasos, cuidadocom as plantas dela! Não toques na trepadeira que há-de crescer em arco.»Castro Marim:Altura (I), 200423 – Oito apartamentos de férias (a acreditar nas caixas de correio), urbanamenteciosos de uma imagem de cidade. O Edifício Palmeirinha já não sabecomo se enfeitar: bow-window na escada, arcada estreita nas lojas, varandasem arcos planimétricos, frontões de chamada aos alçados, vontade de gaveto,ténues vestígios de frisos ou lintéis esculpidos, envazamento de mosaicolargo vidrado, remanescente cor nija cinzenta a que as laterais cenográficassubvertem a cor e a continuação. Por sobre tudo, vela a chaminé herdada doEs ta do Novo, garantindo-nos o Al gar ve.Lisboa:Calçada da Estrela, 200524 – Por baixo da caixa de es to re, passa preso por camarões o esticador decortinas que se costumava usar dentro. Os dois alvos brancos recortados em335


VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALtransparência vieram do banho para proteger a roupa neste dia de chuva? Separecem seios ou olhos é porque respeitaram a si me tria do eixo da varanda,co sendo com uma costura funda o novo meio das duas cortinas gémeas.Castro Marim:Altura (II), 200425 – São apartamentos duplos, com escadas exageradas e varandas pequenasvoltadas para o beco sem saída. Na platibanda do terraço há um rasto demétopas e tríglifos, cujas cornijas de remate os tubos de queda não dei xamsossegar.Há chaminés pontiagudas, grandes barbecues nos terracinhos, um painel deazulejos singelo, uma ideia qualquer ou lembrança magra de cantarias a de -bruar os vãos. Mas são as escadas que nos prendem a atenção. Convergem,descendo, para o carro, estratégico, à porta. Portugal fácil.Oeiras:Santo Amaro, 200426 – O pórtico de Eduardo (34) é igual ao pórtico de Fernando (32). Doisirmãos? Dois amigos? O desejo de barroco «anos quarenta» portugueses336


Manuel Graça Diasenfeitou-lhes as entradas: arcos festivos que o desenho dos portões atraiçoa eo colocar das mais recentes campainhas. Foi um desejo de quintas para cadaum dos lados do pe queno terreno que já só os limoeiros assinalam.Porto:Largo dos Lóios, 200527 – Desce a rua, outrora medieval, aberto o comércio à modernidade. NaCasa Ne ves, a enorme torneira é um signo POP, avant la lettre, a que a im -pla cável exactidão dos quadrados dos caixilhos montam a guarda. Desce-sepela rua estreita a caminho do rio, as lojas atraem-nos nas cores, nos esmaltesintencionais, mas a memória fica presa na torneira da infância, no dia dalimpeza dos amarelos.Sintra:Queluz [III], 200728 – O pequeno edifício de apar tamentos de periferia é en vol vido em azulejos.O castanho é a cor dos construtores, que fo gem aos gostos «berrantes».337


VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALDiscretos motivos florais, de bruados a pastilha mel escuro. Discretos vidrosmartelados fos cos, cortinas que fecham marqui ses que conquistam espaço.A sombra no mármore barato, ao cutelo a segurar o vão, perfaz a proporçãodo novo vernacular moderno. Nas sombras caligráficas sobre verde fortesobressai o nome das galerias.Lisboa:Estrada da Luz, 200529 – Marquises, fantasma da má consciência do gosto dominan te. Alteram oequi líbrio criado pelos arquitectos, intromissão inadmis sível dos moradores naima gem da cidade. Mas as marquises «se di mentaram» a massa fornecida. Sal pi -caram com a alea toridade temporal, imprevisibilidade, nas burocráticas iniciais.(Cortaram também o ruído por vezes intenso nos interiores, embora ostenham aquecido ao aproximarem o sol).Vila Pouca de Aguiar:Pedras Salgadas, 200430 – O café tem cadeiras Thonet, de «ma deira» metálica, parecidas com asaus tríacas ou francesas.338


Manuel Graça DiasNa pacatez da vila transmontana, um am biente que recorde esses confortos ur -ba nos de cidades centro-europeias (o lambril a «aquecer» tudo e a miniestan tecom jornais e revistas para partilhar, à entrada, embora baixa). A in vençãomaior está no tronco de eucalipto voltado ao contrário para receber a televisão,com um rasgo preciso, prateleira entalhe para o leitor de DVD. Conforto mo -der no, embora o «es ca no» – ou uma sua leitura –, mesclado, debaixo da mon tra.Lisboa:Rua Augusta, 200631 – A rua de peões aloja oportunidades turísticas como subproduto da solidãoque irradia. Junto às janelas sempre mudas do Banco, estaciona o pintorretratista; o carvão esfregado apro xima trabalhosamente as caras das estrelasde cinema. São mo delos que não se vendem, embrulhados em plástico transparente e anun ciam as capacidades do autor. A retratada receberá, ao fim datarde, a sua gra ve expressão. O artista po de rá pen sar em partir para Maior ca,onde os turistas param mais tempo.Sintra:Queluz (IV), 200732 – Um doutorado em Qui ro prática vende o seu consultório. Problemasde coluna e sistema nervoso, a especialidade é a coluna vertebral numa vista339


VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALde perfil, da cervical ao cóccix, que ondula no I de prática. Algo terá levadoo Dr. Vieira a desistir de continuar a corrigir subluxações, ou tratar-se-áapenas de uma mudança de instalações?Sintra:Queluz (V), 200733 – Edifício plurifamilair «clássico». O novo vernáculo procura um acerto euma aceitação do «gosto». Panos de parede de cores oirenses pombalinas,cantarias como fatias de granito, a es pessura das lajes de varanda são cornijaspré-fabricadas e cor rem duas folhas de vidro duplo, enfeitadas com «quadradinhos»em todas as varandas. Outra cornija à largura da fachada, emcima, cofrada com moldes de esferovite, tudo rematado com uma pla ti -banda/cimalha/curva resguardada por um beiral «português». Um qualquerdesacerto de desenho espalhou nembos, grandes demais, entre os vãos, e fezperder autoridade simétrica ao óculo que centralizava o tímido frontão.Chaves:Feira dos Santos (I), 200534 – Quatro cadeirões para três clubes. As barricas já não são recicladas,porque a saída será muita: barricas novas, então, com põem as bases. As340


Manuel Graça Diascores-sig no associadas e o emblema no encosto mostrarão nas diversas casaso clube favorito.Há um toque Joseph Hoffmann no modo como os cordões de seda rematamas costuras necessárias; qualquer coisa de involuntária secessão vienense,no meio dos símbolos do futebol. «A cada idade a sua arte, a cada arte a sualiberdade.» Também há bancos tripés para a caça, com alces impressos, ebengalas esculpidas para adornar a casa.Chaves:Feira dos Santos (II), 200535 – Chove sempre em Novem bro, durante a feira. Atrás da tela de fi braplástica iluminada, ao fim da tarde escura, sobressaem máscaras negras,expressões em série de um outro continente: velhos de barbicha e per fil,mães amamentando, curan deiros e feiticeiros, crocodi los, guerreiros altos.Imagi ná rios étnicos ou retornados, passarão ali, até de pois do jantar, a apreçaras sombras. Vêm do Congo estes artesãos e espalham pela Europa periféricauma ilusão de exótico, simulacros de viagem.36 – Três degraus, quatro alturas que diminuem, que rodam.O linóleo esticado e preso por L (eles) de latão nas arestas, como baús de viajantes,imita tacos de jatobá ou tola. São uma textura, um conjunto de sombras,já não a sua inicial ilusão; ade rem aos cobertores e aos espelhos com anaturalidade de um padrão que sobrevivesse por sobre os volumes. Sobressaia madeira (real) do rodapé ou do canapé ao fundo, e os amarelos do pote deguarda-chuvas com leões e argolas. Mas há outros amarelos: um biombo de341


VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALPorto:Hotel Paris, 2006lareira (?) de ressonâncias arte-nova, atrás, e o alumínio no topo da laje, ondese vão prender os encamisados varões de ferro-preto que guardam o pequenodesnível entre os espaços.Oeiras:Praia de Santo Amaro, 200437 – O túnel, feito na Marginal, para facilitar difíceis travessias antevistas porDuarte Pacheco, era forrado a lioz; só o tecto mostrava o betão descofrado,sem acabamento.Entraram os writers e começaram a mandar graffs para a parede, como emBudapeste. Cenas tags. Kings que pegam nas latas e fazem Hall of fame de umdia para o outro. Sacam pormenores para tornar o túnel mais positivo.Vieram, depois, bombings anónimos assinar por cima. Ainda se sente o lioza fragmentar a luz lateral.38 – Chega de Espanha a barraca de jogos com tradução simultânea. Cadabaloè dura um dia; de pois, será necessário voltar a enchê-los, variar as cores342


Manuel Graça DiasChaves:Feira dos Santos (III), 2005repetidas sobre um fundo preto, procurando uma alegre distribuição, umaigualíssima distância, um ritmo de feira, um ritmo de festa, um brilho queatraia o estoiro que só o dardo poderá validar. Os prémios são todos à escolha,como à escolha o baloè a abater.Vila Pouca de Aguiar:EN2, 200539 – Bar amarelo solitário, lê-se numa tabuleta luminosa mais nor mativa,cedida pelos Cafés Meltino. Deste lado, o que se vê é a casa enorme, imensa,o carro sob o telheiro, o outro sobre o te lha do. Uma vedação metálica ordenada,um grande muro de suporte na direcção do vale. Ao longe, a serra doAlvão ou o mon te Mi nheu, mais as nuvens de Dezembro; à frente, voltadapara a estrada, a piscina, larga, grande, vistosa, geada.Três ciprestes envasados e uma palmeira com as palmas apertadas significamo jardim sobre o relvado. O bar é na cave, com direito a entrada lateral, num343


VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALtroço asfaltado que desce agarrado ao muro. O carro amarelo é só umgrande anúncio insólito, uma rima à cor que sublinha os telhados, um pretextode Feliz Natal.Chaves:Feira dos Santos (IV), 200540 – Nossa Senhora, Coração de Jesus e Santo António de Pá dua, e deLis boa. Há também pe queníssimos bustos de um homem com bigode: oDr. Sou sa Martins? An dará também de feira em feira, simbolizado na cerâmicaou no gesso colorido destes altares im provisados que a luz eléctrica dramatiza?Qual o tamanho de cada orçamento? Que tamanho de ima gem cadaum poderá transportar? Serão os olhos de vidro, que sobressaem, e a quantidadede folha de ouro que envolve a coroa e borda os mantos, proporcionaisem preço à dimensão de cada figura?Chaves:Feira dos Santos (V), 200541 – A família Teixeira, «à moda do Porto», inventou uma designação para oseu reboque transformado: churraria e farturas. A metade superior das trêsparedes eleva-se à custa de pistões laterais; revelam-se, então, tectos maravilhososde luz fluorescente, que fortemente ilumi na o atrelado de churros.344


Manuel Graça DiasHá ainda o néon rosa que de brua com gosto o alçado falso, que en cima atotal caixa de luz, decorada com letras e estrelas. Um plano chan frado, aoscantos, introduz um motivo floral; com as cortinas e folhos do interior, sãoa única concessão, neste objecto puro, branco.Chaves:Rua de Santo António, 200542 – Uma espécie de paranomásia transformou boutique em boitique, loja decarne de boi; eu femismo para talho, que já foi também açougue da carne.Mas há uma ideia de requinte no tí tu lo escolhido, no fino persiana do delâminas que corre atrás, contrailuminando o letreiro im presso na bandeiraem vidro da porta. A ilusão da escrita cursiva azul empresta uma nota expeditae o hu mor (e a capitular a vermelho enredada no pescoço do boi), nãodeixam passar a loja despercebida.Estremoz:Castelo, 200743 – Os dois degraus frontais ata cam-se de lado, a sua profundidade sendotambém a largura antes de chegar à soleira.345


VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALSão maciços ou capeados com mármore? Caiados, no volume da sua altura,apenas a curva do primeiro atraiçoa a ilusão da forra. O soco resolve, carapinhado,o rodapé com a rua; altera-se a meio, em textura e cor, para deixarpassar o espaço da escada que os dois degraus derivaram. O verdadeiro mármorepega o vão de lado em blocos e desenha os umbrais; na rua, uma hesitaçãocristalográfica vai designado o empedrado diverso que a modela.Estremoz:Rossio do Marquês de Pombal, 200744 – Eclético, diferenciado, pla no vermelho escuro, rematado aos lados porcor dões parama nuelinos de pedra lavrada, nesse ecrã ras gam-se seis vãos diferentes,catálo go de modos à ma neira do início do século e mais barras arte--nova, em frisos horizontais de azulejo ou em estuques e gradeamentos. 1964foi insensível à complexidade do todo e «limpou» o térreo para uma nova sig nificaçãodo restaurante. Hoje, o cenário «brasileiro» está classificado como imó -vel de interesse público; algum esforço de overacting, por vezes, compensado.Terceira:Angra do Heroísmo, 200645 – É um empório, um porto onde convergem estrangeiros para comerciar,ao preço do chi nês. O que se vende a 4,99€? A listagem de localidades, emol-346


Manuel Graça Diasdurando a ja nela, atesta o al can ce do negócio, e o barramen to cinzento datinta de óleo, marcan do a cantaria, o cuidado na conservação do edifício.Amadora:Damaia (II), 200846 – Tanta elegância urbana, um pouco torcida, tanta significação forte so -bremontada! Há, primeiro, uma escada aposta ao todo, encostada: a primei -ra guarda é dura, cheia, uma faixa amarela destacada de um embasamentoou soco que prossegue ao longo do conjunto. O lanço contrário, num planore cua do, leva um gradeamento leve e leva a um vão recuado, recortado,dentro de um recorte de fachada. Há ainda outros vãos di ferenciados e o umterraço a rematar o conjunto. Quem saberia produzir esta colagem?Chaves:Feira dos Santos (VI), 200547 – É a alegria em forma de triangulação estrutural. As lâmpadas tubularesrosa reproduzem o que poderia ser a alma do plano que rebate de um atreladode feira, perfazendo o tecto da banca provisória. A luz destaca-se nanoite, atraindo os visitantes. Há apenas uma fluorescente fundida.347


VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALAmadora:Damaia (III), 200848 – Casa cúbica ou paralelipipédica; in teira! A sua vontade reside nesseimprovável verde-água rematado superiormente com uma fiada de tijolo deitado.A grande janela quadrada irradia um sol, um mó du lo óptico no quasecentro da composição. A porta metálica está aberta no alto dos de graus protegidos,mostrando que será do mingo: está gente em casa.Amadora:Damaia (IV), 200849 – No final da Estrada Militar da Da maia, o esquerdo/direito de mar morite,de fins de 1950, foi recebendo várias vidas: marquises, vãos em paredados,por tas em alumínio dourado mais leve que as originais.De todas, a mais significativa foi a chegada dos Sons d'África, a discoteca daesquina. Já não são só moradores de cabaia e cofió, sentados à sombra das348


Manuel Graça Diasárvores com conversas em banquetas transportáveis, é também um ponto deencontro, os discos novos que chegam, novidades de kizomba, marcaçõesdas noites de sábado. Luanda aqui, Maputo ali.Cidade dos arquitectos ou cidade de todos?José Manuel Fernandes (1989) pretenderia, a propósito das arquitecturas«clandestinas» dos arredores de Lisboa – «arquitectura espontânea clandestina»,chama-lhes –, que esses espaços e formas (de «génese ilegal», dir-se-iahoje) teriam adquirido uma tal «diversidade», «poética, construtiva, funcional,plástica», que se tornaria «urgente e interessante inventariar, ou pelomenos listar, as suas díspares modalidades, e tentar explicá-las ou enquadrá--las à luz de conceitos mais frescos e operacionais do que a simples polémicados gostos renovados ou do espontaneísmo individualista e afirmativo,implícitos na criação arquitectural clandestina» 12 .Compreendemos a ansiedade, a vontade de urgência; no fundo, a procuraque todo este contributo «popular» pudesse vir a ser verdadeiramente «contaminador»,ao nível da renovação dos gostos e dos modos demasiado educadosde arquitectos e decisores, perturbando a produção mais «séria» de ummodo positivo e criativo que ultrapassasse a simples constatação do «exótico»mais ou menos deslumbrada.No entanto, não é tanto já o reaproveitamento taxinómico e coleccionista(sempre «integrador» e legitimador) o que nos parece fazer falta no panora -ma da produção da arquitectura popular ou vernácula contemporânea.Trata-se de um «fazer» que engloba sobretudo os espaços montados pelasclasses mais pobres, os «migrantes», uma forma de produção de espaço físicoconstruído, cujos agentes principais, como referia também José ManuelFernandes, em 1982, «[...] são, foram (os brasileiros) e provavelmente serão,durante muitos anos e bons, as pessoas em deambulação mais ou menos forçadapor este mundo (português) em busca de melhores condições de vidaou de trabalho, como queiram chamar-lhe» 13 .E são esses viajantes, esses espíritos que sempre transportaram consigo umaqualquer vontade mais afirmada de mudar de vida, de «arriscar», de alterar o«de terminismo» a que geralmente são votados, os que mais afirmativamente349


VI <strong>FORMAS</strong> ARQUITECTÓNICAS <strong>POPULARES</strong> E <strong>URBANAS</strong> (VERNÁCULAS?) EM PORTUGALconseguem, por vezes, fazer plasmar na cidade a expressão da sua vontade, aforça do seu querer.Cidadãos como todos os outros, cidadãos que tiveram de ir buscar «fora» apossibilidade (o dinheiro) para poderem reclamar, também, o direito àcidade, expressam-no agora, com a violência adquirida no confronto desiguala que a luta por melhores condições de vida sempre os obrigou, e recorrem,com todos os meios ao alcance, a uma série de montagens intuídas eime diatistas, onde o passado de miséria e todas as humilhações já experimentadassão seguramente ultrapassados por uma enérgica série de momentosque se querem novos e vibrantes.«Não podemos ter saudades de nada. A experiência não deixa saudades: dá umímpeto desgraçado para o futuro. Só podemos ter saudades do futuro; o que nãohá, feito por nós, é muito mais do que aquilo que já foi feito. Como tal, é precisoser-se muito tolo para se ter saudades daquilo que já se viu» 14 .O território da arquitectura e da cidade (não necessariamente um territórioto talmente justo) regista, depois, essas outras lutas, contradições e tentativasde calar e anular, através dos vários mecanismos de repressão, aculturação e«gosto», a expressão dos economicamente mais fracos.«É nas cidades que se defrontam as grandes ambições e se geram as maiores frustrações,necessariamente inscritas na própria estrutura física dos aglomerados. Daíque, aqueles, que ao longo do tempo, vão detendo o poder, se procurem apropriarda cidade, de molde a inscrever-lhe os seus desejos de perenidade, a manifestar, napedra ou no ferro-cimento, nas formas arquitectónicas ou urbanísticas, os valoresda ideologia que defenderam ou os abrigou» 15 .Como Jorge Gaspar (1989), reconhecemos na cidade actual um espaço deapropriação pelos poderes dominantes, de que estes 49 exemplos que chamámos– descontínuos e desligados –, são a ilustração da possível subversãoe recusa. É desta capacidade, desta energia, desta subversão, contra o ma -rasmo e a desistência, em nome de uma cidade de todos, para todos e portodos, que será necessário lutar. Com a mesma raiva e um pouco da mesmasel vajaria; com alegria, sobretudo, contra o conformismo.350


Manuel Graça DiasNotas1Lévi-Strauss, 1978, 31.2Malinowski, 1941, 37.3Domingues, 2006, 16.4Barth, 1969, 10.5Ibidem, 11.6Ibidem, 14.7Alves Costa, 2004, 8.8Berger, 1963, 138-139.9Veiga de Oliveira et al, 1969, 8.10O Arquitecto e a Cidade Velha [documentário], Lisboa, Laranja azul, 2004.11Mendes da Rocha, 2002, 3.12Fernandes, 1989, 131.13Fernandes, 1982, 141.14Mendes da Rocha, 2002, 6.15Gaspar, 1989, 124.BibliografiaALVES COSTA, Alexandre, «A arquitectura escreve a sua própria paisagem», JornalArquitectos, 217 (Outubro, Novembro, Dezembro), Lisboa, Ordem dos Ar qui -tectos, 2004.BARTH, Frederick (ed.), Ethnic Groups and Boundaries: The Social Organization ofCulture Difference, Prospect Heights, Illinois, Waveland Press, 1969.BERGER, Peter L., Perspectivas Sociológicas. Uma Visão Humanística, Petropólis,Vozes, 2000.DOMINGUES, Álvaro (coord.), Cidade e Democracia. 30 Anos de Transformação Urba -na em Portugal, Lisboa, Argumentum, 2006.DOMINGUES, Álvaro, «Contexto social e política urbana», in Álvaro DOMINGUES(coord.), Cidade e Democracia. 30 Anos de Transformação Urbana em Portugal,Lisboa, Argumentum, 2006, pp. 16-79.FERNANDES, José Manuel, «Notas sobre a casa do emigrante», Sema, 4, Cacém,Projecto Sema, 1982, pp. 139-141.FERNANDES, José Manuel, «Para uma introdução tipológica ao mundo clandestino»,in Jorge GASPAR (coord.), Clandestinos em Portugal. Leituras, Lisboa, LivrosHorizonte, 1989, pp. 131-139.351

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