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o ser humano diante de deus em confronto com a dor, o sofrimento ...

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Rogério Félix MachadoO SER HUMANO DIANTE DE DEUSEM CONFRONTO COM A DOR,O SOFRIMENTO E A MORTE.ABORGAGEM ANTROPOLÓGICO-PASTORAL A PARTIR DE HUBERTLEPARGNEURDis<strong>ser</strong>tação <strong>de</strong> mestrado apresentada ao Programa<strong>de</strong> Pós-Graduação <strong>em</strong> Teologia da Faculda<strong>de</strong> Jesuíta<strong>de</strong> Filosofia e Teologia <strong>com</strong>o requisito parcial àobtenção do título <strong>de</strong> Mestre.Área: Teologia Sist<strong>em</strong>ática.Orienta<strong>dor</strong>: Prof. Dr. Geraldo Luiz De MoriFaculda<strong>de</strong> Jesuíta <strong>de</strong> Filosofia e TeologiaBelo Horizonte2008


DedicatóriaÀ minha mãe, Dona Rosa, que meensinou a enfrentar e a superar o<strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong> a ferramenta da fé.


Agra<strong>de</strong>cimentoA Deus, Pai e Amigo <strong>de</strong> todas as horas.À minha Diocese <strong>de</strong> São José dos Campos.À Faculda<strong>de</strong> Jesuíta <strong>de</strong> Filosofia e Teologia.Ao Pe. Geraldo De Mori.Ao Pe. Jal<strong>de</strong>mir Vitório.À Fraternida<strong>de</strong> Dom Hél<strong>de</strong>r Câmara.


RESUMONossa pesquisa é uma reflexão antropológico-pastoral, a partir da fé cristã, sobre o sentidocristão do <strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong>. Nossa experiência pastoral no “mundo do <strong>sofrimento</strong>” e anecessida<strong>de</strong> da reflexão que a socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna reclama sobre a questão Deus e o<strong>sofrimento</strong> são cruciais para a abordag<strong>em</strong> do t<strong>em</strong>a. Buscamos estabelecer uma harmonia entrea imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus Bom e Po<strong>de</strong>roso e a presença do mal no mundo e, sincronicamente,salvaguardar a autonomia do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> <strong>diante</strong> <strong>de</strong> si mesmo, dos outros e da criação.Primeiro <strong>de</strong>sconstruímos as respostas superficiais sobre o <strong>sofrimento</strong> que já não maisconvenc<strong>em</strong> o pensamento crítico do hom<strong>em</strong> mo<strong>de</strong>rno, a saber: o <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o vonta<strong>de</strong> oupermissão <strong>de</strong> Deus. Esta <strong>de</strong>sconstrução nos levou à reflexão sobre qu<strong>em</strong> é Deus, qu<strong>em</strong> é o <strong>ser</strong><strong>humano</strong> e sua autonomia na história, especificando-a no campo da saú<strong>de</strong> <strong>com</strong> a reflexãoantropológico-pastoral <strong>de</strong> Hubert Lepargneur. Chegamos assim à noção da pessoa humanachamada à responsabilida<strong>de</strong> por si mesma, dando razões do que lhe ocorre quando sofre. Emdiálogo <strong>com</strong> outros teólogos, recorr<strong>em</strong>os à reflexão cristológica, apresentando Jesus <strong>de</strong>Nazaré, encarnado, morto e ressuscitado, <strong>com</strong>o aquele que se solidariza <strong>com</strong> os sofre<strong>dor</strong>es,revelando uma imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus-Amor, que é afetado pelas <strong>dor</strong>es humanas. Concluímos que o<strong>sofrimento</strong> é uma possibilida<strong>de</strong> para o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> enquanto criatura, que a respostaconvincente ao mal é a luta para eliminá-lo e que a Ressurreição <strong>de</strong> Cristo nos garante que omal e o <strong>sofrimento</strong> não têm a última palavra.Palavras-chave: Sofrimento, Probl<strong>em</strong>a do Mal, Doutrina da Criação, Lepargneur,Cristologia, Crucificado


ABSTRACTOur investigation is an anthropological-pastoral reflection on the Christian sense of humansuffering in the perspective of the Christian faith. Our pastoral experience in the “world ofsuffering” and the necessity of reflection which a mo<strong>de</strong>rn society reclaims from the questionof God and of the suffering are crucial for the approach of the subject. We search forestablishing harmony between the image of a kindly and powerful God and the presence ofthe evil in the world and simultaneously safeguard the autonomy of man in front of himself,others and creation. First we <strong>de</strong>construct the superficial answers about suffering as God’swillingness or permission. This <strong>de</strong>construction leaves us to the reflection on who is God, whois man and his autonomy in history, specifying it in the field of health by the anthropologicalpastoralreflection of Hubert Lepargneur. That way we <strong>com</strong>e to the i<strong>de</strong>a of person called to beresponsible for himself, giving reasons over what happens to him when he’s suffering. Indialogue with other theologians we evoke Christological reflection, presenting Jesus ofNazareth, incarnated, killed and resurrected as one that practices solidarity with sufferingpeople, revealing an image of a God as Love who is affected by human pain. We conclu<strong>de</strong>that suffering is a possibility for human being as creature, that the convincing response to evilis the battle for eliminating it and that the resurrection of Christ guarantees to us that evil andsuffering don’t take the final <strong>de</strong>cision.Key-words: suffering, probl<strong>em</strong> of evil, doctrine of creation, Lepargneur, Christology,Crucified.


SUMÁRIOINTRODUÇÃO GERAL ........................................................................................................ 10CAPÍTULO IA DOR, O SOFRIMENTO E A MORTECOMO QUESTÕES CRUCIAIS À FÉ CRISTÃINTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 12PRIMEIRA PARTE1 EM BUSCA DE COMPREENSÃO DO SOFRIMENTO, DA DOR E DA MORTEPRESENTES NO MUNDO ............................................................................................... 131.1 O <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o <strong>de</strong>safio à fé cristã .............................................................................. 131.2 O <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o fato inevitável ................................................................................... 151.3 O <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o “vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus” ............................................................................ 171.4 O <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o um “b<strong>em</strong> e provação” ....................................................................... 191.5 O <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o “<strong>de</strong>stino e fatalida<strong>de</strong>” ....................................................................... 201.6 O <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o conseqüência do pecado original ..................................................... 211.7 O <strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong> Jesus <strong>com</strong>o justificativa do <strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong> ................................... 23SEGUNDA PARTE1 A PERGUNTA SOBRE O SOFRIMENTO VINCULADA À RELAÇÃO DO SERHUMANO COM DEUS ..................................................................................................... 241.1 O sentido da vida humana na busca da felicida<strong>de</strong> ............................................................ 251.2 Deus cria o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> livre e co-cria<strong>dor</strong> ........................................................................ 281.3 O envelhecimento do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> na dinâmica do sentido da vida<strong>diante</strong> do <strong>sofrimento</strong> ......................................................................................................... 312 O SOFRIMENTO NA PERSPECTIVA DOS INOCENTES ............................................ 332.1 O <strong>sofrimento</strong> do inocente <strong>com</strong>o enigma da vida humana ................................................ 332.2 Jó e Deus: o inocente <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> respostas ................................................................... 343 A REPERCUSSÃO DA CRISE ECOLÓGICA COMO SOFRIMENTO HUMANOEM SUA DIMENSÃO CÓSMICA .................................................................................... 38CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 40


CAPÍTULO IIA ANTROPOLOGIA DO SOFRIMENTO DE HUBERT LEPARGNEURINTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 421 O MAL: O INEVITÁVEL QUESTIONAMENTO SOBRE DEUS .................................. 431.1 Simbólica bíblica do mal .................................................................................................. 451.2 Que figura <strong>de</strong> Deus é <strong>com</strong>patível <strong>com</strong> o mal no mundo? ................................................ 461.3 O mal e a liberda<strong>de</strong> humana ............................................................................................. 471.4 Em que o mal diz respeito à liberda<strong>de</strong> humana? .............................................................. 482 A DOR ................................................................................................................................ 502.1 Sentido antropológico da <strong>dor</strong> ........................................................................................... 522.2 Sentido ético da <strong>dor</strong> e da liberda<strong>de</strong> humana ..................................................................... 533 A DOR NA DOENÇA ....................................................................................................... 543.1 O sentido biológico da doença ......................................................................................... 553.2 Doença e <strong>sofrimento</strong> ........................................................................................................ 564 A TEOLOGIA CRISTÃ DIANTE DO SOFRIMENTO HUMANO ................................. 574.1 Sofrimento e Mistério Pascal ........................................................................................... 594.2 Sofrimento e mi<strong>ser</strong>icórdia <strong>em</strong> Cristo: a resposta da <strong>com</strong>paixão ...................................... 624.3 Humanização da saú<strong>de</strong> <strong>com</strong>o uma resposta concretaà pessoa que sofre ...................................................................................................... 645 EUTANÁSIA E SUICÍDIO: DUAS QUESTÕES DE BIOÉTICA ................................... 665.1 Conceito diferenciado da eutanásia .................................................................................. 665.2 O suicídio <strong>com</strong>o resposta à falta <strong>de</strong> sentido ..................................................................... 686 A MORTE: O ÚLTIMO SOFRIMENTO .......................................................................... 716.1 A morte e o morrer ........................................................................................................... 716.2 A <strong>de</strong>ssacralização da <strong>dor</strong> e da morte ................................................................................ 726.3 Secularização e luta mo<strong>de</strong>rna contra o morrer ................................................................. 736.4 O que enfim é a morte? .................................................................................................... 746.5 Morte e salvação ............................................................................................................... 76CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 77


CAPÍTULO IIIJESUS CRISTO E O SENTIDO DO SOFRIMENTOINTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 791 ENCARNAÇÃO E SOFRIMENTO .................................................................................. 791.1 O Mistério da Encarnação: Deus na história humana por meio <strong>de</strong> Jesus Cristo .............. 801.2 Dinâmica kenótica da encarnação a <strong>ser</strong>viço da humanida<strong>de</strong> ........................................... 821.3 A humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo <strong>com</strong>o ponto <strong>de</strong> partida para a solidarieda<strong>de</strong><strong>com</strong> os que sofr<strong>em</strong> ............................................................................................................ 842 JESUS DIANTE DOS SOFRIMENTOS HUMANOS ...................................................... 862.1 Jesus <strong>diante</strong> da multidão <strong>de</strong> pobres e marginalizados ...................................................... 872.2 Jesus acolhe e perdoa os peca<strong>dor</strong>es .................................................................................. 882.3 Jesus e os doentes ............................................................................................................. 882.4 Jesus: o “hom<strong>em</strong> das <strong>dor</strong>es” ............................................................................................. 912.5 O princípio mi<strong>ser</strong>icórdia nas ações <strong>de</strong> Jesus .................................................................... 933 A CAUSA E O SENTIDO DA MORTE DE JESUSEM VISTA DA DOR E DO SOFRIMENTO .................................................................... 943.1 A con<strong>de</strong>nação à morte e seus motivos: conseqüência <strong>de</strong> sua solidarieda<strong>de</strong><strong>com</strong> os que sofr<strong>em</strong> ............................................................................................................ 963.2 Jesus no Getsêmani ........................................................................................................ ..993.3 O Deus crucificado ........................................................................................................ 1013.4 Cruz e encarnação .......................................................................................................... 1053.5 Em seu silêncio <strong>diante</strong> do <strong>sofrimento</strong> Deus é Palavra ................................................... 1084 RESSURREIÇÃO DE CRISTO:SUPERAÇÃO DEFINITIVA DO MAL E DO SOFRIMENTO ..................................... 1104.1 A Ressurreição <strong>de</strong> Jesus: esperança para as vítimas ...................................................... 1114.2 A prática solidária <strong>em</strong> face ao <strong>sofrimento</strong>: <strong>de</strong>scer da cruz os “crucificados” ................ 113CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 116CONCLUSÃO GERAL ........................................................................................................ 118BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 122


INTRODUÇÃO GERALO <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, <strong>diante</strong> <strong>de</strong> Deus, <strong>em</strong> <strong>confronto</strong> <strong>com</strong> a <strong>dor</strong>, o <strong>sofrimento</strong> e a morte,pergunta: por que sofro? Por que Deus permite isso? Qual o sentido <strong>de</strong>ste mal? Questões que<strong>de</strong>safiam a fé <strong>em</strong> Deus, sobretudo a fé no Deus-Ágape, bom e mi<strong>ser</strong>icordioso esimultaneamente po<strong>de</strong>roso. Por que Ele não intervém, principalmente quando qu<strong>em</strong> sofre éinocente?São estas as questões suscitadas por doentes, pacientes <strong>em</strong> fase terminal, presos eidosos, que nos levaram a sair <strong>de</strong> nossa prática pastoral para <strong>de</strong>senvolver esta pesquisa.Procurar<strong>em</strong>os ter s<strong>em</strong>pre no pensamento uma dupla idéia: Deus e o Sofrimento. Quer<strong>em</strong>osnos aproximar, da maneira mais inequívoca possível, do posicionamento do Deus que <strong>ser</strong>evelou <strong>em</strong> Jesus Cristo, <strong>diante</strong> do mal que se manifesta pelos <strong>sofrimento</strong>s <strong>humano</strong>s, <strong>em</strong>busca <strong>de</strong> seu sentido a partir da fé cristã. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, preten<strong>de</strong>mos refletir sobre aresponsabilida<strong>de</strong> que t<strong>em</strong> o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> <strong>diante</strong> dos males presentes no mundo, b<strong>em</strong> <strong>com</strong>osobre sua finitu<strong>de</strong> e criaturida<strong>de</strong>, enquanto possibilida<strong>de</strong>s para o <strong>sofrimento</strong>. O <strong>sofrimento</strong> daspessoas é “espinhoso” e “enigmático”, difícil <strong>de</strong> se “teorizar” <strong>em</strong> ambiente acadêmico, sendopor isso muitas vezes “inexplicável”. Enquanto in<strong>ser</strong>ido <strong>em</strong> meio a esse “mundo do<strong>sofrimento</strong>” perceb<strong>em</strong>os que os questionamentos sobre o <strong>sofrimento</strong> estão cada vez maisaguçados no pensamento mo<strong>de</strong>rno. O <strong>de</strong>masiado valor que hoje se dá à subjetivida<strong>de</strong>, àliberda<strong>de</strong> humana e à sua autonomia, torna ainda mais <strong>de</strong>safia<strong>dor</strong> para a fé cristã e para areflexão teológica o t<strong>em</strong>a do <strong>sofrimento</strong>. Nesse sentido, a busca <strong>de</strong> maior clarividênciaintelectual se põe a <strong>ser</strong>viço e apoio daquele que sofre.O objetivo geral <strong>de</strong> nosso trabalho, portanto, é o <strong>de</strong> refletir sobre o <strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong><strong>de</strong>s<strong>de</strong> a perspectiva da fé cristã, buscando uma purificação da imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus que se revelou<strong>em</strong> Jesus Cristo, salvaguardando a autonomia do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Estruturamos o resultado <strong>de</strong>nossa investigação <strong>em</strong> três capítulos:No primeiro, buscar<strong>em</strong>os a <strong>com</strong>preensão do mal presente no mundo e <strong>de</strong> <strong>com</strong>o s<strong>em</strong>anifesta na vida concreta dos <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s através dos <strong>sofrimento</strong>s. Abordar<strong>em</strong>os algumasrespostas fáceis e típicas que são dadas sobre as <strong>dor</strong>es humanas: vistas <strong>com</strong>o uma ação davonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus para o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>; consi<strong>de</strong>radas um b<strong>em</strong> e uma provação para suasantificação; vistas <strong>com</strong>o uma obra do <strong>de</strong>stino, estabelecido por Deus. Diante <strong>de</strong>ssas atitu<strong>de</strong>s,10


que ten<strong>de</strong>m à resignação fatalista <strong>diante</strong> do <strong>sofrimento</strong> e ao <strong>de</strong>s<strong>com</strong>prometimento na lutacontra o mal, apontar<strong>em</strong>os algumas respostas e nos aprofundar<strong>em</strong>os na reflexão cristã sobre anatureza do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, sua finitu<strong>de</strong>, criaturida<strong>de</strong>, liberda<strong>de</strong> e autonomia, b<strong>em</strong> <strong>com</strong>o seuprotagonismo <strong>com</strong> relação a si mesmo e ao mundo, do qual é senhor, e <strong>de</strong> suaresponsabilida<strong>de</strong> perante o mal. Nossa reflexão, a partir <strong>de</strong> uma teologia da criação, mostra daparte <strong>de</strong> Deus um radical respeito pela liberda<strong>de</strong> do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, o que possibilita o convite auma sã relação <strong>com</strong> o Cria<strong>dor</strong> e uma “parceria” <strong>de</strong> ambos no <strong>com</strong>bate contra os males.No segundo capítulo, abordar<strong>em</strong>os a contribuição <strong>de</strong> Hubert Lepargneur à reflexãosobre o <strong>sofrimento</strong>, a <strong>dor</strong> e a morte, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a perspectiva <strong>de</strong> sua concepção antropológicoteológica.Em sua reflexão ele prioriza o setor da saú<strong>de</strong> <strong>com</strong>o campo <strong>de</strong>safia<strong>dor</strong> para a açãopastoral que também representa o horizonte <strong>de</strong> nossa reflexão. Trata-se <strong>de</strong> um mundoespecífico que nos põe <strong>em</strong> contato direto <strong>com</strong> os <strong>sofrimento</strong>s <strong>humano</strong>s, suas angústias e<strong>de</strong>cepções. Sofrimentos que conduz<strong>em</strong> o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> ao enfrentamento <strong>de</strong> si mesmo <strong>em</strong> busca<strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Isto faz <strong>em</strong>ergir os questionamentos sobre o sentido da vida e da morte esobre outra vida no além (dos <strong>sofrimento</strong>s). Lepargneur chama a atenção para a necessida<strong>de</strong>da liberda<strong>de</strong> humana <strong>em</strong> se posicionar frente ao <strong>sofrimento</strong>, elaborando uma <strong>com</strong>preensão doque lhe ocorre, conferindo-lhe um sentido. Sua reflexão teológica convida a umaprofundamento cristológico <strong>com</strong>o caminho <strong>de</strong>finitivo para uma posição liberta<strong>dor</strong>a eesperançosa <strong>diante</strong> dos <strong>sofrimento</strong>s <strong>humano</strong>s.Um tal aprofundamento sobre a pessoa <strong>de</strong> Jesus Cristo <strong>com</strong>o paradigma fundamentalpara uma antropologia cristã <strong>ser</strong>á apresentado no terceiro capítulo <strong>com</strong> o auxílio da reflexãocristológica <strong>de</strong> outros teólogos. À luz da fé pascal, nosso propósito é re-visitar a humanida<strong>de</strong><strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré trazendo-a ao mundo dos <strong>sofrimento</strong>s <strong>humano</strong>s <strong>com</strong>o caminhoinsubstituível <strong>de</strong> purificação da imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus. Acreditamos que a vida humana <strong>de</strong> Jesus,livr<strong>em</strong>ente posta por ele ao <strong>ser</strong>viço <strong>de</strong> todos os que pa<strong>de</strong>ciam os mais diversos tipos <strong>de</strong><strong>sofrimento</strong>s, clareia muitas questões sobre o posicionamento <strong>de</strong> Deus <strong>em</strong> relação aos malesque enfrentamos. Sua pregação sobre o Reino <strong>de</strong> Deus, inseparavelmente conjugada <strong>com</strong> asatitu<strong>de</strong>s concretas que realizou <strong>em</strong> favor dos pobres, dos doentes e marginalizados, convidanosa conferir um sentido salvífico ao <strong>sofrimento</strong>: sua morte na cruz prova, <strong>de</strong>finitivamente,que Deus nos arranca as raízes do mal por sua re-ação ao <strong>sofrimento</strong> me<strong>diante</strong> a ressurreição<strong>de</strong> Jesus. Enquanto cristãos, no enfrentamento dos males cotidianos, quer<strong>em</strong>os refletir sobre oque nos diz o Mistério Pascal <strong>de</strong> Cristo, particularmente quando sofr<strong>em</strong>os e, que esperança eque <strong>com</strong>promisso <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> suscita <strong>em</strong> nós <strong>em</strong> face do mal que a todos atinge.11


CAPÍTULO IA DOR, O SOFRIMENTO E A MORTECOMO QUESTÕES CRUCIANTES À FÉ CRISTÃINTRODUÇÃONeste primeiro capítulo nos aproximar<strong>em</strong>os do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> que sofre e que busca uma<strong>com</strong>preensão do que lhe ocorre à luz da fé cristã. No <strong>sofrimento</strong>, o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> tudoquestiona: a si mesmo, à Igreja, aos teólogos, aos pastores e, enfim, ao próprio Deus. Asrespostas evasivas e superficiais são muito <strong>com</strong>uns neste “mundo do <strong>sofrimento</strong>”. Elas po<strong>de</strong>mlevar a pessoa à resignação espontânea (não refletida) <strong>diante</strong> do <strong>sofrimento</strong>, b<strong>em</strong> <strong>com</strong>o po<strong>de</strong>mlevar a uma visão distorcida <strong>de</strong> Deus, que <strong>de</strong> alguma forma é “envolvido” ou até“responsável” por suas <strong>dor</strong>es. Trata-se, portanto, <strong>de</strong> um <strong>de</strong>safio existencial e pastoralconstatado <strong>em</strong> nossa experiência junto àqueles que pa<strong>de</strong>c<strong>em</strong>. Por isso, abordar<strong>em</strong>os primeiroalgumas <strong>de</strong>ssas respostas “teológicas” que, neste contexto, freqüent<strong>em</strong>ente se encontram e seapresentam <strong>com</strong>o justificativas da <strong>dor</strong>. Ao mesmo t<strong>em</strong>po procuramos captar as imagens <strong>de</strong>Deus subjacentes a tais “explicações”.Com a contribuição <strong>de</strong> alguns teólogos cont<strong>em</strong>porâneos <strong>com</strong>o Andrés TorresQueiruga, Afonso Garcia Rubio, Dorothee Sölle e outros que pesquisam a fundo o probl<strong>em</strong>ado mal <strong>com</strong>o causa das <strong>dor</strong>es humanas, abordar<strong>em</strong>os algumas reações equivocadas <strong>diante</strong> do<strong>sofrimento</strong> que <strong>com</strong>promet<strong>em</strong> a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus e que também conduz<strong>em</strong> ao<strong>de</strong>s<strong>com</strong>prometimento na luta do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> contra os <strong>sofrimento</strong>s. Pois não se po<strong>de</strong> ignorarque muitos <strong>sofrimento</strong>s que aflig<strong>em</strong> o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> são causados por ele mesmo, o que logor<strong>em</strong>ete à liberda<strong>de</strong> que Deus lhe <strong>de</strong>u no ato <strong>de</strong> sua criação. Por essa razão julgamosnecessário, ainda neste capítulo, explicitar alguns aspectos da teologia cristã sobre ai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, sua criaturida<strong>de</strong>, sua autonomia e liberda<strong>de</strong>. Desta formapreten<strong>de</strong>mos indicar algumas luzes que repercut<strong>em</strong> sobre a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus, purificando-aperante a <strong>dor</strong> e o <strong>sofrimento</strong>, <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra, presentes na vida <strong>de</strong> cada <strong>ser</strong><strong>humano</strong>.12


PRIMEIRA PARTE1 EM BUSCA DE UMA COMPREENSÃO DO SOFRIMENTO, DA DOR E DAMORTE PRESENTES NO MUNDOCada <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> experimenta <strong>de</strong> alguma forma o <strong>sofrimento</strong> ou a <strong>dor</strong> <strong>em</strong> sua vida e,<strong>com</strong>o dado final, a sua própria morte. Muitas vezes os <strong>com</strong>preen<strong>de</strong> vinculados ao probl<strong>em</strong>ado mal. Contudo, não conhece plenamente suas causas, n<strong>em</strong> <strong>com</strong>o livrar-se totalmentedaquilo que o faz sofrer. Traçamos aqui uma fenomenologia <strong>de</strong>ssas experiências vividas nocotidiano, s<strong>em</strong> a pretensão <strong>de</strong> <strong>ser</strong> exaustivo. Mais que conceituá-las, quer<strong>em</strong>os refletir sobre omal <strong>com</strong>o sua suposta causa que nos afeta existencialmente.A partir <strong>de</strong>ssa reflexão preten<strong>de</strong>mos apontar a a<strong>de</strong>quada postura cristã <strong>diante</strong> do mal,porque cr<strong>em</strong>os que <strong>de</strong>ste modo o cristianismo colabora <strong>de</strong> maneira preciosa na construção <strong>de</strong>um mundo mais <strong>humano</strong>, <strong>com</strong> menos males. Portanto, nossa análise é <strong>de</strong> cunho existencial,visando uma postura liberta<strong>dor</strong>a no <strong>com</strong>bate contra o que <strong>de</strong>sumaniza o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Nessesentido, tentar<strong>em</strong>os <strong>de</strong>linear uma espécie <strong>de</strong> tipologia, que nos mostrará as distintas posturasque as perguntas e as respostas às diferentes manifestações do mal suscitam. Indicar<strong>em</strong>ostambém as insuficiências <strong>de</strong> muitas <strong>de</strong>ssas posturas e os possíveis caminhos para uma reta<strong>com</strong>preensão cristã que se traduza <strong>em</strong> apoio na luta contra os males. Isto nos levará àconsi<strong>de</strong>ração da relação do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> <strong>com</strong> Deus <strong>diante</strong> do <strong>sofrimento</strong>. Na reflexão sobre aliberda<strong>de</strong> humana, indicar<strong>em</strong>os pistas que clareiam nossa reflexão sobre as causas <strong>de</strong> muitos<strong>sofrimento</strong>s.1.1 O <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o <strong>de</strong>safio à fé cristãDa existência do mal, da <strong>dor</strong> e do <strong>sofrimento</strong> na trama da nossa existência <strong>em</strong>erge ainevitável questão da relação <strong>de</strong>sta experiência <strong>com</strong> Deus. O <strong>sofrimento</strong> se mostra ao <strong>ser</strong><strong>humano</strong> <strong>com</strong>o inimigo cruel que atenta contra seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida. Com efeito,quando o <strong>sofrimento</strong> nos atinge, interrogamo-nos a nós mesmos e a Deus <strong>em</strong> busca <strong>de</strong>respostas sobre sua causa e finalida<strong>de</strong>. 1 Deus <strong>com</strong>o cria<strong>dor</strong> e senhor do mundo espera nossa1“No fundo <strong>de</strong> cada <strong>sofrimento</strong> experimentado pelo hom<strong>em</strong>, <strong>com</strong>o também na base <strong>de</strong> todo o mundo dos<strong>sofrimento</strong>s, aparece inevitavelmente a pergunta pelo seu sentido: por que? É uma pergunta acerca da causa,da razão e também acerca da finalida<strong>de</strong> (para que?), trata-se s<strong>em</strong>pre, afinal, <strong>de</strong> uma pergunta acerca dosentido. Esta não só a<strong>com</strong>panha o <strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong>, mas parece até <strong>de</strong>terminar o seu conteúdo <strong>humano</strong>, oque faz <strong>com</strong> que o <strong>sofrimento</strong> seja propriamente <strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong>” JOÃO PAULO II. Salvifici Doloris. Osentido cristão do <strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong>. São Paulo: Paulinas, 1988, n. 9 (documento citado <strong>em</strong> seguida por“SD”).13


“pergunta sobre o sentido do <strong>sofrimento</strong>” (SD 9-10): por que sofr<strong>em</strong>os? Por que Deus permiteo <strong>sofrimento</strong> e a <strong>dor</strong>? Por que ele não intervém para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o inocente sofre<strong>dor</strong>? Se ele é tãobom e amoroso, por que não elimina a malda<strong>de</strong> que gera tantas vítimas in<strong>de</strong>fesas?A realida<strong>de</strong> do <strong>sofrimento</strong> aguça <strong>em</strong> nós a pergunta sobre a existência e a presença <strong>de</strong>Deus no mundo e na vida <strong>de</strong> cada pessoa. Aqui, enquanto cristãos, nos <strong>de</strong>frontamos <strong>com</strong> ummisterioso e enigmático <strong>de</strong>safio para nossa fé: pre<strong>ser</strong>var a crença no Deus-Amor e, ao mesmot<strong>em</strong>po, “explicar” a presença do mal no mundo, que se manifesta pelo <strong>sofrimento</strong>, físico oumoral, que enfrentamos. Neste contexto, o famoso dil<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Epicuro é provoca<strong>dor</strong>:Ou Deus não quer eliminar o mal ou não po<strong>de</strong>; ou po<strong>de</strong>, mas não quer; ou não po<strong>de</strong>e não quer; ou quer e po<strong>de</strong>. Se po<strong>de</strong> e não quer, ele é mau, o que naturalmente<strong>de</strong>veria <strong>ser</strong> in<strong>com</strong>patível <strong>com</strong> Deus. Se não quer n<strong>em</strong> po<strong>de</strong>, ele é mau e fraco e,portanto, não é Deus algum. Se po<strong>de</strong> e quer, o que só se aplica a Deus, <strong>de</strong> on<strong>de</strong>então provém o mal ou por que ele não o elimina? 2V<strong>em</strong>os que os pressupostos <strong>de</strong> Epicuro apontam para uma terrível cilada para ateologia e a práxis cristãs no “mundo do <strong>sofrimento</strong>”: “Se po<strong>de</strong> e não quer”, <strong>com</strong>o se sustentasua bonda<strong>de</strong> infinita? O mal e o <strong>sofrimento</strong> não evitados manifestam um Deus sádico. É aíque se enraíza o ateísmo <strong>de</strong> muitos cont<strong>em</strong>porâneos hoje. 3 Segundo o teólogo Andrés TorresQueiruga, o pressuposto contamina o imaginário cristão e <strong>de</strong>s<strong>em</strong>boca nas mais variadasjustificações “teológicas” <strong>com</strong> o intuito <strong>de</strong> “<strong>de</strong>sculpar” Deus <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo-o das acusações.A força <strong>de</strong>ste enfoque enraíza-se na naturalida<strong>de</strong> <strong>com</strong> que se dá por pressuposta asolução. Na realida<strong>de</strong> funciona <strong>com</strong>o uma espécie <strong>de</strong> ‘crença’ que já não se põe mais<strong>em</strong> dúvida – n<strong>em</strong> talvez se formula – e sobre a qual atua-se imediatamente <strong>com</strong> osconceitos. Por isso, ela costuma formar o fundo <strong>com</strong>um do diálogo ou da discussão:é <strong>de</strong>la que parte o fiel que enfrenta o probl<strong>em</strong>a, e <strong>de</strong>la parte o ateu que crê tê-losuperado. 4O dil<strong>em</strong>a teológico <strong>de</strong> Epicuro representa para nós a mais distorcida <strong>de</strong> todas asimagens <strong>de</strong> Deus. Se ele po<strong>de</strong> e não quer evitar o mal, então ele não é bom. Se quer e nãopo<strong>de</strong> então ele não é onipotente. Na realida<strong>de</strong>, a finitu<strong>de</strong> do mundo ou a malícia dos homensamiú<strong>de</strong> tornam impossível que aconteça o que Deus quer e por on<strong>de</strong> está tentando conduzir a234LACTÂNCIO. De ira Dei, 13,20-21 (Sources chrétiennes 289,158-160). Texto que teve importanterepercussão na tradição cristã. Citado por ESTRADA, J. A. A impossível teodicéia. São Paulo: Paulinas,2004, p. 113.Cf. MORIN, D. Para falar <strong>de</strong> Deus. São Paulo: Loyola, 1993, p. 124.QUEIRUGA, A. T. Recuperar a Salvação. Por uma interpretação liberta<strong>dor</strong>a da experiência cristã. 2. ed.São Paulo: Paulus, 2005. O autor cita <strong>com</strong>o ex<strong>em</strong>plo o pertinente protesto <strong>de</strong> Albert CAMUS <strong>em</strong> La Peste.Paris, 1974, p. 179. Cf. ibid. p. 87, “Rieux ergueu-se num salto. Fitou Paneloux <strong>com</strong> toda força e paixão <strong>de</strong>que era capaz, e sacudiu a cabeça... Não, Padre, eu o <strong>de</strong>ixo. Tenho outra idéia do amor. E rejeitaria até amorte amar uma criação na qual as crianças são torturadas”.14


ealida<strong>de</strong>. Por isso, quando alcançamos algo <strong>de</strong> bom, é verda<strong>de</strong> que Deus o quer e, <strong>em</strong> últimainstância, acontece graças a ele (s<strong>em</strong> sua criação n<strong>em</strong> sequer existiriam os protagonistas, es<strong>em</strong> seu influxo nada teria sequer ocasião <strong>de</strong> acontecer). E quando não alcançamos, é <strong>de</strong>verda<strong>de</strong> contra ele e apesar <strong>de</strong>le: porque algo ou alguém se interpôs no caminho benéfico(s<strong>em</strong>pre exclusivamente benéfico) <strong>de</strong> seu influxo. 5 Deste modo se t<strong>em</strong>, <strong>com</strong>o a saída para odil<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Epicuro, a opção “Deus quer, mas não po<strong>de</strong>”, o que elimina a idéia <strong>de</strong> um Deusinacessivelmente soberano e arbitrariamente onipotente <strong>com</strong>o pressuposto:Afirmamos que Deus ‘não po<strong>de</strong>’ suprimir o mal do mundo, mas s<strong>em</strong> cair naconseqüência inaceitável <strong>de</strong> um Deus limitado: ‘não po<strong>de</strong>’ indica simplesmente quea suposição é absurda, pois um mundo s<strong>em</strong> mal é palavreado s<strong>em</strong> sentido, círculoquadrado. Ainda que à primeira vista pareça in<strong>com</strong>preensível, <strong>de</strong>ste modo tudo s<strong>em</strong>antém: 1) Deus quer, <strong>com</strong>o aparece no relato bíblico, unicamente a felicida<strong>de</strong> dohom<strong>em</strong>, porque Deus é bom; 2) não causa n<strong>em</strong> quer o mal; 3) a existência nãoquerida, não causada e não evitável do mal não prejudica a onipotência <strong>de</strong> Deus. 6Elaborar respostas fáceis sobre o <strong>sofrimento</strong> a partir <strong>de</strong> fundamentalismos bíblicos oucríticas religiosas simplistas causa danos irreparáveis à integrida<strong>de</strong> das pessoas. Urge elaboraruma sã reflexão e <strong>de</strong>linear um sentido para o <strong>sofrimento</strong> que pre<strong>ser</strong>ve a imag<strong>em</strong> do Deus-Bonda<strong>de</strong> e garanta a realização plena do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, levando-o a sério <strong>em</strong> seu <strong>sofrimento</strong>. Afé cristã concebe um Deus que não está do outro lado, po<strong>de</strong>ndo fazer e não fazendo, mas donosso lado, unido a nós na frustração ou na impotência, assim <strong>com</strong>o no <strong>de</strong>sejo e no esforçopara superá-lo.Como é el<strong>em</strong>entar essa evidência e <strong>com</strong>o nos é difícil realizá-la vitalmente,espontaneamente, colonizados <strong>com</strong>o estamos por uma visão dualista da relaçãoCria<strong>dor</strong>-criatura e por uma concepção abstrata e absolutista da onipotência divina! 71.2 O <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o fato inevitávelO Papa João Paulo II afirma que o <strong>sofrimento</strong> “a<strong>com</strong>panha o hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> todos osquadrantes da longitu<strong>de</strong> e da latitu<strong>de</strong> terrestre; num certo sentido, coexiste <strong>com</strong> ele nomundo” (SD 2). Isso significa que ninguém está isento <strong>de</strong> algum tipo <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong>. Na567Cf. QUEIRUGA, A. T. Recuperar a Criação. Por uma religião humaniza<strong>dor</strong>a. 2. ed. São Paulo: Paulus,2003, p. 120.QUEIRUGA, A. T. Creio <strong>em</strong> Deus Pai. O Deus <strong>de</strong> Jesus <strong>com</strong>o afirmação plena do <strong>humano</strong>. São Paulo:Paulus, 1993, p. 128.Cf. ibid., p. 176. Compete aqui reforçar que nosso interesse não consiste <strong>em</strong> dar uma resposta teórica,especulativa, enfim, metafísica à pergunta provocativa <strong>de</strong> Epicuro e sim <strong>em</strong> procurar uma resposta a partir daimag<strong>em</strong> cristã <strong>de</strong> Deus orientada para um a<strong>com</strong>panhamento solidário-pastoral dos que sofr<strong>em</strong>.15


ealida<strong>de</strong>, o <strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong> constitui <strong>em</strong> si próprio <strong>com</strong>o que um mundo específico queexiste juntamente <strong>com</strong> o hom<strong>em</strong>. Cada um dos homens, me<strong>diante</strong> o seu <strong>sofrimento</strong> pessoal,participa <strong>de</strong>sse mundo. Além disso, existe também a dimensão inter-humana e social do<strong>sofrimento</strong>. Este po<strong>de</strong> vir a <strong>ser</strong> mais intenso no caso <strong>de</strong> calamida<strong>de</strong>s naturais, <strong>de</strong> epi<strong>de</strong>mias,catástrofes e cataclismos, ou <strong>de</strong> diversos flagelos sociais, período <strong>de</strong> má colheita e o flageloda fome, e especialmente a guerra (SD 8). Ao “<strong>ser</strong> <strong>humano</strong>” necessariamente se relaciona“limitação” e, conseqüent<strong>em</strong>ente, o “<strong>sofrimento</strong>”.O Papa evoca as inúmeras experiências <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong> na Sagrada Escritura 8 , vividaspor indivíduos e pelo povo hebreu, e que continuam nos dias <strong>de</strong> hoje: das doenças incuráveisque levam à amargura existencial e dos <strong>de</strong>sequilíbrios <strong>em</strong>ocionais e psíquicos até àperseguição daqueles que lutam por um mundo melhor e dos <strong>sofrimento</strong>s dos inocentes eimpunida<strong>de</strong> dos culpados. Tudo isso evi<strong>de</strong>ncia o lado obscuro da história da humanida<strong>de</strong>,po<strong>de</strong>ndo chegar ao nível do insuportável. Diante <strong>de</strong>sta realida<strong>de</strong> surg<strong>em</strong>, inevitavelmente, asquestões: Por quê? Se a vida é um dom, por que é s<strong>em</strong>pre agredida pelo mal? Por que ohom<strong>em</strong> é tão mal assim? E Deus, não vê tudo isso? (SD 9).Na busca <strong>de</strong> respostas do sentido e das causas <strong>de</strong>sses <strong>sofrimento</strong>s, chega-se não só amúltiplas frustrações e conflitos nas relações do hom<strong>em</strong> <strong>com</strong> Deus, mas suce<strong>de</strong> até chegar-seà própria negação <strong>de</strong> Deus. 9Constatamos, <strong>de</strong>sta forma, que a idéia que se faz <strong>de</strong> Deus influencia a visão que ohom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> <strong>de</strong> si, do outro, do mundo e, particularmente, do <strong>sofrimento</strong>. Também a idéia quese faz do mundo e sobre o <strong>sofrimento</strong> influencia profundamente o pensamento sobre Deus.Uma noção <strong>de</strong> Deus que se agrada no <strong>sofrimento</strong> ou que interfere nas realida<strong>de</strong>s históricas,89Cf. SD 6-7: “... <strong>sofrimento</strong> moral: o perigo <strong>de</strong> morte (cf. Is 38,1-3); a morte dos próprios filhos, <strong>com</strong>o t<strong>em</strong>iaAgar (cf. Gn 15-16) e, especialmente, a morte do filho primogênito e único, <strong>com</strong>o t<strong>em</strong>ia Ana, a mãe <strong>de</strong>Tobias (cf. Tb 10, 1-7; cf. também Jr 6,26; Am 8,10; Zc 12,10); e <strong>de</strong>pois também: falta <strong>de</strong> <strong>de</strong>scendência, talfoi a prova <strong>de</strong> Abraão (cf. Gn 15,2), <strong>de</strong> Raquel (cf. Gn 30,1) ou <strong>de</strong> Ana, a mãe <strong>de</strong> Samuel (cf. 1Sm 1,6-10); asauda<strong>de</strong> da pátria, <strong>com</strong>o exprim<strong>em</strong> as lamentações dos exilados na Babilônia (cf. Sl 137); a perseguição e ahostilida<strong>de</strong> do meio ambiente, suportados, por ex<strong>em</strong>plo, pelo salmista (cf. Sl 22, 17-21) ou por Jer<strong>em</strong>ias (Jr18,18); o escárnio e a zombaria <strong>em</strong> relação a qu<strong>em</strong> sofre, que constitui uma provação para Jó (Jó 19,18; 30,1-9) e para alguns Salmistas (Sl 22, 7-9; 42,11; 44,16-17), para Jer<strong>em</strong>ias (Jr 20,7) e para o <strong>ser</strong>vo sofre<strong>dor</strong> (Is53, 3); a solidão e o abandono (Sl 88,9.19) e ainda outros <strong>com</strong>o os r<strong>em</strong>orsos <strong>de</strong> consciência (Is 53,3-6; Zc12,10), a dificulda<strong>de</strong> <strong>em</strong> <strong>com</strong>preen<strong>de</strong>r porque os maus prosperam e os justos sofr<strong>em</strong> (Sl 73, 3-14), ainfi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e ingratidão da parte dos amigos e vizinhos (Jó 19,19; Sl 41,10; 55, 13-15; Jr 20,10; Eclo 37,1-6)e as <strong>de</strong>sventuras da própria nação (Sl 44, 10-17; Is 22,4; Dn 9,16-19); a associação dos <strong>sofrimento</strong>s “morais”à <strong>dor</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas partes do corpo: (Jr 23,9; Jó 16,13; Sl 73,21; Lm 2,21; Is 16,11; 1Sm l 1,8). No ATtodo <strong>sofrimento</strong> era <strong>de</strong>finido <strong>com</strong>o um “mal”.Cf. SD 9: “As perguntas do por quê e para que são difíceis quando o hom<strong>em</strong> as faz ao hom<strong>em</strong>, os homens aoshomens, <strong>com</strong>o também quando o hom<strong>em</strong> as apresenta a Deus. Com efeito, o hom<strong>em</strong> não põe esta questão aomundo, ainda que muitas vezes o <strong>sofrimento</strong> lhe provenha do mundo; mas põe-na a Deus, <strong>com</strong>o Cria<strong>dor</strong> eSenhor do mundo”.16


fatalmente justificará as <strong>dor</strong>es humanas e conduzirá à alienação do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> que se furtarána luta contra os males. É o que muitas vezes se constata neste universo quando a noção <strong>de</strong>aceitação é associada à resignação não-refletida, caracterizando assim um tipo <strong>de</strong>“masoquismo cristão”. Neste caso, a pessoa é motivada a se relacionar <strong>com</strong> um Deus que é acausa dos seus <strong>sofrimento</strong>s, que <strong>de</strong>seja e permite suas <strong>dor</strong>es <strong>com</strong> o intuito pedagógico outerapêutico <strong>de</strong> ensinar alguma coisa. Deus usa esse método para o crescimento espiritual dosseus filhos. Assim convicta, a pessoa que sofre não só “acolhe” resignadamente o <strong>sofrimento</strong>,<strong>com</strong>o também o busca e nele sente prazer, crendo que tudo está <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um plano divino,que resultará na sua salvação eterna. O que se t<strong>em</strong> que fazer é submeter-se passivamente<strong>diante</strong> das adversida<strong>de</strong>s para uma maior santificação.Em contrapartida, a teóloga al<strong>em</strong>ã, Dorothee Sölle, chama a atenção para uma noçãoequilibrada da aceitação do <strong>sofrimento</strong> quando inevitável ou <strong>com</strong>o <strong>com</strong>ponente natural davida humana:Cada aceitação do <strong>sofrimento</strong> é a aceitação daquilo que é... A recusa <strong>de</strong> qualquerforma <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong> po<strong>de</strong>rá ter <strong>com</strong>o conseqüência uma “irrealização”, na qual ocontato <strong>com</strong> a realida<strong>de</strong> se torna gradativamente mais tênue e fragmentário. Éimpraticável subtrair-se por <strong>com</strong>pleto ao <strong>sofrimento</strong>. Seria o mesmo que negar aprópria vida, recusar todo e qualquer relacionamento, transformar-se num <strong>ser</strong>imutável. Dores, perdas, amputações acontec<strong>em</strong> mesmo na vida mais normal que sepossa imaginar, <strong>em</strong>bora não correspon<strong>de</strong>nte ao <strong>de</strong>sejável. O <strong>de</strong>sligamento dos pais,o esmorecer das amiza<strong>de</strong>s juvenis, o <strong>em</strong>botamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas configuraçõesda vida <strong>com</strong> que nos havíamos i<strong>de</strong>ntificado, o envelhecimento, a perda <strong>de</strong>finitiva <strong>de</strong>famílias e amigos e, finalmente, a morte. Quanto mais vigorosamente afirmamos arealida<strong>de</strong>, quanto mais mergulhamos nela, tanto mais profundamente afetados<strong>ser</strong><strong>em</strong>os por tais processos <strong>de</strong> direcionamento para a morte que nos cercam epenetram nosso viver. 10Ignorar o <strong>sofrimento</strong> presente <strong>em</strong> toda e qualquer experiência humana leva a umconformismo frente à espoliação, à opressão e à injustiça e aponta para uma atitu<strong>de</strong> socialgeneralizada <strong>de</strong> apatia, que se manifesta na incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enfrentar o <strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong> formasolidária e participativa. 111.3 O <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o “vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus”Perceb<strong>em</strong>os que o <strong>sofrimento</strong> é também muitas vezes utilizado para fins pseu<strong>dor</strong>eligiosos,alienantes. Deus aparece então <strong>com</strong>o o autor dos infortúnios <strong>humano</strong>s, das<strong>de</strong>sgraças e tentações. Submete seus amados filhos a todas as espécies <strong>de</strong> provas e1011SÖLLE, D. Sofrimento. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996, p. 97.Cf. ibid., p. 45.17


dificulda<strong>de</strong>s. Quando o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> é vítima <strong>de</strong> doença incurável, <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes <strong>com</strong> seqüelasirreversíveis, quando alguém da família é assassinado, quando é injustiçado, quando é traídopelas pessoas mais próximas e tantas outras situações dolorosas, surg<strong>em</strong> então as seguintesjustificações: “É a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus”; “Deus quis assim”; “São os misteriosos <strong>de</strong>sígnios <strong>de</strong>Deus”; “Deus <strong>de</strong>u, Deus tirou, louvado seja Deus!”; “Deus precisava <strong>de</strong> mais um anjo nocéu”; “O que Deus faz é s<strong>em</strong>pre o melhor e, mesmo s<strong>em</strong> enten<strong>de</strong>r é preciso aceitar”. Dest<strong>em</strong>odo se <strong>de</strong>svirtua a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma <strong>com</strong>preensão cristã do <strong>sofrimento</strong>. De um lado, aosofre<strong>dor</strong> resta, resignadamente, aceitar o <strong>sofrimento</strong>, crendo que lhe foi dado para o seu b<strong>em</strong>e, do outro, cont<strong>em</strong>plar um Deus que <strong>de</strong>seja e t<strong>em</strong> prazer no <strong>sofrimento</strong> dos seus filhos.O uso <strong>de</strong> frases bíblicas <strong>de</strong> suporte fundamentalista, que atribu<strong>em</strong> a Deus aresponsabilida<strong>de</strong> pelos infortúnios <strong>humano</strong>s 12 , incita qu<strong>em</strong> sofre ao conformismo infantil.Dorothee Sölle critica a concepção dada ao <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o fraqueza humana e<strong>de</strong>monstração da vonta<strong>de</strong> e força divinas. Aceitar o <strong>sofrimento</strong> <strong>em</strong> sua inevitabilida<strong>de</strong> é aúnica solução para reconciliar-se <strong>com</strong> ele e <strong>com</strong> Deus, s<strong>em</strong> <strong>com</strong>prometer a imag<strong>em</strong> do Deus-Amor-Bonda<strong>de</strong>.Tratados religiosos sobre o t<strong>em</strong>a do <strong>sofrimento</strong> part<strong>em</strong> <strong>de</strong> concepções fundamentais<strong>com</strong>uns. “O <strong>sofrimento</strong> proce<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Há uma relação entre pecado e doença,ainda não suficient<strong>em</strong>ente conhecida. A raiz mais profunda e verda<strong>de</strong>ira da doença éo pecado. O doente ignora esta causa essencial da doença e atribui o seu <strong>sofrimento</strong>a circunstâncias externas e naturais. Saú<strong>de</strong> plena somente haverá quando o reinovier. A doença é magnífica oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> crescimento e maturação interior. Não éprecisamente durante a doença que você percebe a ação <strong>de</strong> Deus <strong>em</strong> sua vida? Agraça do <strong>sofrimento</strong> é mais valiosa que a saú<strong>de</strong> corporal. Sofrimento educa e é sinaldo amor salvífico <strong>de</strong> Deus”.... 13A postura <strong>de</strong> indiferença e impassibilida<strong>de</strong> perante o <strong>sofrimento</strong> na socieda<strong>de</strong> crescesignificativamente. Na medida <strong>em</strong> que uma experiência <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong>, as “pathai” da vida, érepresada, <strong>de</strong>saparec<strong>em</strong> também o “pathos” da vida e a força e intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus momentos<strong>de</strong> alegria. Assim, <strong>de</strong>sejar para si mesmo uma vida s<strong>em</strong> <strong>dor</strong> significa <strong>de</strong>sejar morrer. 14 É121314“E agora, ve<strong>de</strong> b<strong>em</strong>: eu, sou eu, e fora <strong>de</strong> mim não há outro Deus! Sou eu que mato e faço viver, sou eu quefiro e torno a curar (e da minha mão ninguém se livra)” (Dt 32,39); “É Javé qu<strong>em</strong> faz morrer e viver, faz<strong>de</strong>scer ao xeol e <strong>de</strong>le subir” (lSm 2,6); “Vin<strong>de</strong>, retorn<strong>em</strong>os a Javé. Porque ele <strong>de</strong>spedaçou, ele nos curará; eleferiu, ele nos ligará a ferida. Depois <strong>de</strong> dois dias nos fará reviver, no terceiro dia nos levantará, e nósviver<strong>em</strong>os <strong>em</strong> sua presença” (Os 6,1-2); “Eu formo a luz e crio as trevas, asseguro o b<strong>em</strong> estar e crio a<strong>de</strong>sgraça: sim eu, Javé, faço tudo isso” (Is 45,7); “É louvável que alguém suporte aflições, sofrendoinjustamente por amor <strong>de</strong> Deus” (1Pd 2,19).BONHOEFFER, D. citado por SÖLLE, D. Sofrimento. op. cit., p. 25.Cf. ibid., p. 47: “As pessoas apáticas experimentam a <strong>dor</strong>, porém estão satisfeitas. Ela não as <strong>com</strong>ove. Nãopossu<strong>em</strong> linguag<strong>em</strong> e carec<strong>em</strong> <strong>de</strong> gestos para haver-se <strong>com</strong> o <strong>sofrimento</strong>. Nenhuma mudança nelas produz.Nada <strong>com</strong> ela apren<strong>de</strong>m. Conflitos e <strong>sofrimento</strong>s relacionados <strong>com</strong> trabalha<strong>dor</strong>es po<strong>de</strong>m atingir o paroxismo.18


preciso distinguir um <strong>sofrimento</strong> que nos torna cegos e surdos, e nos <strong>de</strong>ixa mutilados, <strong>de</strong> um<strong>sofrimento</strong> que para nós se faz produtivo.Trata-se <strong>de</strong> indignar-se quanto àqueles <strong>sofrimento</strong>s impostos por estruturas injustas,que <strong>de</strong>sumanizam e impe<strong>de</strong>m a realização do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Sölle afirma que a mudança <strong>de</strong>situações <strong>em</strong> que pessoas se encontram expostas ao <strong>sofrimento</strong> por razões <strong>de</strong> carência edominação constitui uma meta humanamente pensável. 15 O <strong>com</strong>bate a esse tipo <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong><strong>ser</strong>á feito pelos sofre<strong>dor</strong>es, por iniciativa própria, na eliminação <strong>de</strong> situações <strong>em</strong> que <strong>ser</strong>es<strong>humano</strong>s ficam expostos a <strong>sofrimento</strong>s evitáveis e <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> sentido, <strong>com</strong>o osrelacionados <strong>com</strong> a fome, a opressão, a tortura. 161.4 O <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o um “b<strong>em</strong> e provação”Outro tipo <strong>de</strong> justificação para o <strong>sofrimento</strong> é o <strong>de</strong> seu lugar <strong>em</strong> nosso processo <strong>de</strong>conversão. Ele <strong>ser</strong>ia então enviado ou permitido por Deus para o nosso b<strong>em</strong>. Para explicá-lo épreciso <strong>de</strong>sculpar a Deus, <strong>com</strong>o se percebe nas expressões: “Deus escreve certo por linhastortas”; “Deus sabe o que faz e a gente não sabe o que fala”. Esta perspectiva mostra a fé nopo<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus que po<strong>de</strong> evitar o mal e o <strong>sofrimento</strong> (e não o faz), b<strong>em</strong> <strong>com</strong>o acredita na suaonisciência (ele sabe o que faz). Seus in<strong>com</strong>preensíveis “<strong>de</strong>sígnios divinos” permit<strong>em</strong> o<strong>sofrimento</strong>. Existe um plano bom para a vida do hom<strong>em</strong> pensado por Deus ao enviar-lhe osmales. Ele vai suscitar um gran<strong>de</strong> b<strong>em</strong> do mal que envia ao <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Nesse imagináriofalsificado <strong>de</strong> Deus, causa do b<strong>em</strong> e do mal, o <strong>sofrimento</strong> é visto e acolhido <strong>com</strong>o algo bom,<strong>com</strong>o uma graça divina. Desta forma Deus é <strong>de</strong>sculpado. O <strong>sofrimento</strong> <strong>ser</strong>virá para apurificação e a santificação do hom<strong>em</strong> peca<strong>dor</strong>: “esta doença é para sua conversão”; “o<strong>sofrimento</strong> converterá sua família”; “qu<strong>em</strong> não vai a Deus pelo amor, vai pela <strong>dor</strong>”,<strong>com</strong>entários <strong>com</strong>uns que ouvimos no mundo do <strong>sofrimento</strong>. Os <strong>sofrimento</strong>s proporcionam àsubjetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> sofre e <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> vê sofrer a idéia <strong>de</strong> que os pecados <strong>ser</strong>ão reparados eque, <strong>de</strong>sta forma, se po<strong>de</strong> esperar o prêmio da vida eterna. 17 Assim, o <strong>sofrimento</strong> reveste paraDeus um valor <strong>de</strong> <strong>com</strong>pensação e <strong>de</strong> reparação.151617O <strong>sofrimento</strong> po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> clamoroso e, no entanto, os afetados mantêm-se <strong>com</strong>o que à distância, mudos einertes”.Cf. ibid., p. 9-10: A autora critica a atitu<strong>de</strong> resignada do <strong>sofrimento</strong> que resulta no masoquismo cristão,objetivando uma autolibertação <strong>de</strong> uma teologia crítica, que não raro, mesmo ali on<strong>de</strong> já não articula o seusadomasoquismo, permanece prisioneira <strong>de</strong> esqu<strong>em</strong>as mentais preestabelecidos. Também o silêncio sobre o<strong>sofrimento</strong> po<strong>de</strong> ter raízes na tradição do <strong>de</strong>sprezo pelo hom<strong>em</strong>, fruto do sadismo teológico.Cf. ibid., p. 10.Cf. QUEIRUGA, A. T. Creio <strong>em</strong> Deus Pai. op. cit., p. 119-121.19


Nesta imag<strong>em</strong> falsificada <strong>de</strong> Deus, que se <strong>com</strong>praz na <strong>dor</strong> <strong>de</strong> suas criaturas, sefortalece a apatia e a alienação <strong>diante</strong> do mal e do <strong>sofrimento</strong>. Mas, se na sua essência Deus éAmor e Bonda<strong>de</strong> ele não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> a causa da nossa <strong>dor</strong>:Será que um Deus apaixonado pelo <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, conhece<strong>dor</strong> <strong>de</strong> tudo e que seconstitui e se revela <strong>com</strong>o só salvação, infligiria o mal e o <strong>sofrimento</strong> sobre os seus,po<strong>de</strong>ndo ajudá-los a crescer e aproximar-se mais <strong>de</strong> si e dos outros <strong>de</strong> outramaneira? Dev<strong>em</strong>os, portanto, ter cautela ao atribuir a Deus certas realida<strong>de</strong>s quepo<strong>de</strong>m i<strong>de</strong>ologizar o <strong>sofrimento</strong> e manter as pessoas na alienação, ou cultivar certasimagens <strong>de</strong> Deus ou mo<strong>de</strong>los cristológicos que impe<strong>de</strong>m a auto<strong>de</strong>terminação do <strong>ser</strong><strong>humano</strong>. Não t<strong>em</strong>os visto que o gosto pela <strong>dor</strong> <strong>em</strong> pessoas e instituições, vendo-a<strong>com</strong>o um b<strong>em</strong> querido por Deus, retira o gosto da luta pela ressurreição,convertendo-se <strong>em</strong> dolorismo e culpabilização exagerada, pouco útil nas mudançasconcretas? 18O cristianismo não po<strong>de</strong> subtrair-se <strong>de</strong> afirmar <strong>com</strong> clareza que Deus é Amor-Bonda<strong>de</strong>. Portanto, esse Deus não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> responsabilizado pelos males que aflig<strong>em</strong> o <strong>ser</strong><strong>humano</strong>. Antes há <strong>de</strong> <strong>ser</strong> concebido <strong>com</strong>o seu parceiro na luta para eliminá-los. O <strong>sofrimento</strong>afronta a realização plena do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> e precisa <strong>ser</strong> <strong>com</strong>batido s<strong>em</strong>pre. Para o cristão quesofre, é profundamente danosa uma reflexão sobre o <strong>sofrimento</strong> que não pre<strong>ser</strong>ve suaautonomia e sua finitu<strong>de</strong>, b<strong>em</strong> <strong>com</strong>o a imag<strong>em</strong> do Deus-Bonda<strong>de</strong>:Tudo que se oponha à plenitu<strong>de</strong> humana, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a falta <strong>de</strong> pão até a liberda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>a ausência <strong>de</strong> esperança até a escassez <strong>de</strong> moradia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o <strong>de</strong>sconhecimento doevangelho até a falta <strong>de</strong> trabalho..., tudo <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> <strong>com</strong>batido, porque está no lugaroposto ao <strong>de</strong> Deus: contra Deus e contra o hom<strong>em</strong>. Que Deus não quer o mal, aatitu<strong>de</strong> dos cristãos t<strong>em</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar. Que Deus po<strong>de</strong> vencê-lo, é algo que cabe ànossa práxis antecipá-lo nos sinais concretos <strong>de</strong> libertação. 191.5 O <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o “<strong>de</strong>stino e fatalida<strong>de</strong>”Outra forma <strong>de</strong> pensar o <strong>sofrimento</strong> é o <strong>de</strong> associá-lo a uma fatalida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong>stinopre<strong>de</strong>terminado por Deus: “todos têm sua hora marcada por Deus e ninguém escapa”. Aqui, apassivida<strong>de</strong> e a resignação <strong>diante</strong> da <strong>dor</strong> é o “antídoto” <strong>diante</strong> do inevitável e triste <strong>de</strong>stinotraçado. Tal atitu<strong>de</strong> <strong>com</strong>promete uma postura genuinamente cristã <strong>diante</strong> do <strong>sofrimento</strong>. Dest<strong>em</strong>odo não se propõe a questão do “por quê?” A incapacida<strong>de</strong> para a <strong>com</strong>preensão da <strong>dor</strong> é<strong>de</strong>senvolvida nesta concepção. A apatia se instala nos indivíduos. Cresc<strong>em</strong> <strong>de</strong>sta forma afrieza e a insensibilida<strong>de</strong> perante o <strong>sofrimento</strong>.1819GOMES, P. R. O Deus im-potente. op. cit., p. 41.QUEIRUGA, A. T. Creio <strong>em</strong> Deus Pai. op. cit., p. 153.20


Sab<strong>em</strong>os que uma vida s<strong>em</strong> <strong>sofrimento</strong>s é ilusão. E o mal inevitável é real. Entretanto,resignação e passivida<strong>de</strong> conduz<strong>em</strong> a uma justificação infantil da <strong>dor</strong>:... o significado <strong>de</strong> toda concepção cristã do <strong>sofrimento</strong> é precisamente a recusa <strong>de</strong>qualquer representação fatalista, pela qual o hom<strong>em</strong> é reduzido a joguete <strong>de</strong> um<strong>de</strong>stino inarredável. Se consi<strong>de</strong>rarmos a <strong>dor</strong> <strong>com</strong>o um mal partindo <strong>de</strong> fora, que nosatinge <strong>de</strong> modo inexorável, sucumbimos a sua investida e passamos a t<strong>em</strong>ê-la 20 .Fundamental é <strong>de</strong>scobrir <strong>com</strong>o o <strong>sofrimento</strong> po<strong>de</strong> levar as pessoas e os grupos nasocieda<strong>de</strong> à humanização, b<strong>em</strong> <strong>com</strong>o à <strong>de</strong>scoberta dos fatores que o geraram para <strong>com</strong>batêlos:Durante séculos o culto do <strong>sofrimento</strong> foi utilizado i<strong>de</strong>ologicamente <strong>com</strong>ojustificação das injustiças e opressões, encobrindo estruturas e culpados oumantendo pobres, excluídos, mulheres, etnias e povos na submissão. Pensar o<strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o <strong>de</strong>stino, fatalida<strong>de</strong>, algo natural, não nos tira a práxis da vida,impossibilitando qualquer mudança? 21Não existe, portanto, um <strong>de</strong>stino previamente estabelecido para o hom<strong>em</strong> e paramundo. Mesmo que o hom<strong>em</strong> queira, sobretudo para evitar o <strong>sofrimento</strong>, uma intervençãodivina não está nos planos <strong>de</strong> Deus. Ele não age a seu bel prazer. Ele não “dirige” o hom<strong>em</strong> eo mundo, mas respeita da maneira mais radical possível a liberda<strong>de</strong> do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>:Não nos damos conta <strong>de</strong> que por sua parte limites não exist<strong>em</strong>, evi<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente: <strong>em</strong> simesma e <strong>em</strong> abstrato, sua onipotência po<strong>de</strong> tudo; mas, <strong>em</strong> seu funcionamentoconcreto, a onipotência diz relação ao outro, e o outro necessariamente t<strong>em</strong> limites:o círculo não po<strong>de</strong>, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>saparecer, fazer-se quadrado, e a liberda<strong>de</strong> finita nãopo<strong>de</strong>, s<strong>em</strong> anular-se, <strong>ser</strong> forçada a fazer s<strong>em</strong>pre o b<strong>em</strong>. Deus, pelo que lhe dizrespeito, “po<strong>de</strong>” tudo e quer o melhor para nós; mas n<strong>em</strong> tudo “é possível” <strong>em</strong> simesmo. O amor <strong>de</strong> Deus consiste <strong>em</strong> “estar s<strong>em</strong>pre trabalhando” (cf. Jo 5,17),contra toda inércia e resistência, por nós e por nossa salvação. 221.6 O <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o conseqüência do pecado originalReferimo-nos à doutrina do pecado original <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua referência clássica ao texto <strong>de</strong>Gn 2-3, não para discutir sobre sua pertinência e teor teológicos, n<strong>em</strong> para fazer uma exegesedo referente texto bíblico. Apresentamos aqui a relação <strong>de</strong>ssa doutrina <strong>com</strong> o <strong>sofrimento</strong>202122SÖLLE, D. Sofrimento. op. cit., p. 53. E a autora continua: “... Por tal razão, se e enquanto qui<strong>ser</strong>mos livrarnosda <strong>dor</strong>, não <strong>ser</strong><strong>em</strong>os <strong>de</strong> modo algum capazes <strong>de</strong> superá-la. Somente quando apren<strong>de</strong>rmos a procurar e<strong>de</strong>sejar a <strong>dor</strong> <strong>com</strong>o algo inerente ao viver e <strong>com</strong> amor po<strong>de</strong> ela tornar-nos mais fortes. A transformação da<strong>dor</strong> que permita ao hom<strong>em</strong> sair da passivida<strong>de</strong> e da atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> fuga através da aceitação po<strong>de</strong>ria significarpara o hom<strong>em</strong> sofre<strong>dor</strong> a “fortaleza” encontrada no <strong>sofrimento</strong>. Todavia, um pensamento teológico <strong>de</strong> talenvergadura somente se po<strong>de</strong>rá transformar <strong>em</strong> realida<strong>de</strong> se assumir uma forma política” (ibid.).GOMES, P. R. O Deus im-potente. op. cit., p. 45.QUEIRUGA, A. T. Recuperar a Criação. op. cit., p. 117.21


porque ele <strong>em</strong>erge no âmbito cristão <strong>com</strong>o mais uma explicação tipológica do mesmo: paramuitos, a causa dos <strong>sofrimento</strong>s <strong>humano</strong>s é o pecado original, <strong>com</strong>preendido <strong>com</strong>o rejeição,da parte do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, da or<strong>de</strong>m da criação à qual está vinculado o juízo ético, ou seja,discernimento entre b<strong>em</strong> e mal (Gn 2,16-17). Isto significa que a prerrogativa <strong>de</strong>steconhecimento pertence a Deus. Não ob<strong>ser</strong>vá-lo significa, da parte do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, pleitearesse privilégio para si e, <strong>em</strong> conseqüência disso, arcar <strong>com</strong> as conseqüências (Gn 3,4-5). 23Na figura simbólica <strong>de</strong> Adão, que representa o gênero <strong>humano</strong>, se estabelece oprincípio <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> universal no pecado: a reivindicação orgulhosa daauto<strong>de</strong>terminação moral, a prerrogativa <strong>de</strong> dispor arbitrariamente sobre os critérios do b<strong>em</strong> edo mal. Ele se recusa a r<strong>em</strong>eter sua liberda<strong>de</strong> e autonomia unicamente a Deus, optando pelaauto-suficiência. 24 Numa concepção fixista, consi<strong>de</strong>ra-se a hipótese <strong>de</strong> um transtorno originalda natureza humana atribuída à figura <strong>de</strong> “Adão”, que se rebelou contra o Cria<strong>dor</strong> tornando-seseu concorrente, o que explica a presença dos <strong>sofrimento</strong>s <strong>humano</strong>s. Busca-se, então, numpassado hipotético a causa do mal e não na <strong>com</strong>preensão do pecado do mundo <strong>em</strong> seupresente e <strong>em</strong> função do seu futuro.Pois se o mundo sofre, certamente não é porque seu longínquo ancestral não soubelegar-lhe a maravilhosa invulnerabilida<strong>de</strong> primitiva, ‘contaminando’ a todos. E o que dizer,nesse contexto, do <strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong> tantos inocentes? Nesta concepção, o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> éconsi<strong>de</strong>rado o responsável por todo tipo <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong> que se vê no mundo, noção religiosaque não se po<strong>de</strong> aceitar:A <strong>ser</strong>pente indica a presença <strong>de</strong> um mal do qual nós, homens, não t<strong>em</strong>os <strong>de</strong> suportartoda a responsabilida<strong>de</strong>: o hom<strong>em</strong> não é culpado do início ao fim. O figurativo da<strong>ser</strong>pente culpada significa que um mal nos prece<strong>de</strong>, mal inegável, mas que o hom<strong>em</strong>não quis <strong>de</strong> todo. Isso é fundamental para livrá-lo <strong>de</strong> um peso do qual ele <strong>ser</strong>iainvestido <strong>de</strong> tal maneira que não po<strong>de</strong>ria sair senão aniquilado e esmagado, pois<strong>ser</strong>ia inteiramente culpado. 25Entretanto, ainda que se <strong>de</strong>va ter muita cautela <strong>em</strong> consi<strong>de</strong>rar o <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>oconseqüência <strong>de</strong> pecados concretos, ele não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> separado do pecado das origens, daquiloque <strong>em</strong> São João é chamado “pecado do mundo”, n<strong>em</strong> do pano <strong>de</strong> fundo pecaminoso dasações pessoais e dos processos sociais na história do hom<strong>em</strong>. Não se po<strong>de</strong> pôr <strong>de</strong> lado o232425Cf. RUBIO, A., G. Unida<strong>de</strong> na Pluralida<strong>de</strong>. O <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> à luz da fé e da reflexão cristãs. op. cit., p. 623-624.Cf. LAFRANCONI, D. Pecado. in: Dicionário <strong>de</strong> Teologia Moral. São Paulo: Paulus, 1997, p. 929.Ibid.22


critério segundo o qual na base dos <strong>sofrimento</strong>s <strong>humano</strong>s, há uma multíplice implicação <strong>com</strong>o pecado (SD 15).1.7 O <strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong> Jesus <strong>com</strong>o justificativa do <strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong>Outra atitu<strong>de</strong> <strong>diante</strong> do <strong>sofrimento</strong> é a que resulta da teologia da satisfação, que faz dacruz e da <strong>dor</strong> <strong>de</strong> Jesus condição e medida <strong>de</strong> nossa salvação. Esta teologia diz que pelo pecadodo hom<strong>em</strong> Deus tivera sua dignida<strong>de</strong> ofendida <strong>de</strong> forma infinita. E somente enviando seuFilho que, por não ter pecado, oferece a si mesmo <strong>em</strong> sacrifício vicário infinito ao Pai, é que o<strong>de</strong>sagravo ao Pai po<strong>de</strong>ria <strong>ser</strong> feito. O Filho oferece ao Pai algo que não tinha <strong>de</strong> dar-lhe porobrigação. Deu sua própria vida no Calvário. Com isso ele adquire o direito <strong>de</strong> umare<strong>com</strong>pensa e, <strong>com</strong>o não precisa <strong>de</strong> coisa alguma, pe<strong>de</strong> que seu mérito seja transferido aoshomens: “Mas ele foi trespassado por causa das nossas transgressões, esmagado por causadas nossas iniqüida<strong>de</strong>s. O castigo que havia <strong>de</strong> trazer-nos a paz, caiu sobre ele, sim, por suasferidas fomos curados” (Is 53,5). Assim a “satisfação” é a síntese feita pela religião entresangue e salvação:... sofrendo e morrendo na cruz, Jesus, substituindo-se aos homens peca<strong>dor</strong>es,<strong>com</strong>pensou por eles a ofensa infinita feita a Deus por seus pecados. Ele então, ossalvou satisfazendo <strong>em</strong> seu lugar às exigências absolutas da justiça divina... Aohom<strong>em</strong> resta <strong>de</strong>ixar-se imputar os méritos <strong>de</strong> Cristo... A satisfação constitui todo umconjunto jurídico, cujos el<strong>em</strong>entos são: substituição, <strong>com</strong>pensação e imputação. A“satisfação” <strong>de</strong>forma o rosto <strong>de</strong> Deus fazendo <strong>de</strong>le um monstro ou uma máquinajurídica... A ‘satisfação’ reduz Jesus a uma função formal <strong>de</strong> vítima expiatória,privando-o <strong>de</strong> toda <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> histórica que, só ela, dá sentido e força salvífica à suamorte. Sua ação, seu ensinamento não <strong>ser</strong>v<strong>em</strong>, no fundo, senão para excitar ocarrasco. 26Emerge <strong>de</strong>sta interpretação teológica da Paixão <strong>de</strong> Cristo uma espécie <strong>de</strong> “mercadosangrento” querido por Deus para aplacá-lo. A re<strong>de</strong>nção acontece graças à intensida<strong>de</strong> do<strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong> Jesus, que entra no mundo para, e tão somente, restaurar o que o pecado havia<strong>de</strong>struído. 272627VARONE, F. Esse Deus que diz<strong>em</strong> amar o <strong>sofrimento</strong>. Aparecida-SP: Santuário, 8. ed. 2003, p. 11-12.Cf. GOMES, P. R. O Deus im-potente. op. cit., p. 46: “Deus pareceu suscitar carrascos para Jesus nossubstituir no alto preço da satisfação; <strong>de</strong>u-se valor ao <strong>sofrimento</strong> <strong>em</strong> si, chegando-se à aberração daafirmação da insuficiência do sacrifício <strong>de</strong> Cristo, o valor <strong>com</strong>pensatório dos <strong>sofrimento</strong>s dos crentes <strong>diante</strong><strong>de</strong> um Deus sádico e insaciável”.23


Surge <strong>de</strong>sta forma a religião do útil, atrelada ao valor mágico dos ritos. 28 Por conta daexperiência do <strong>sofrimento</strong> busca-se a religião. Nesta, Deus é o todo po<strong>de</strong>roso a qu<strong>em</strong> se <strong>de</strong>veagradar para que seja parceiro do hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> suas lutas e possa “ajeitar” sua vidare<strong>com</strong>pensando-o por suas atitu<strong>de</strong>s moralistas e perfeccionistas. O culto à <strong>dor</strong> <strong>de</strong> Cristo nacruz acaba legitimando os <strong>sofrimento</strong>s e sacrifícios <strong>humano</strong>s, evitáveis e inevitáveis,fortalecendo a noção <strong>de</strong> culpa. 29Evi<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente que esta “teologia” é contrária à imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus e às atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Jesus<strong>diante</strong> do <strong>sofrimento</strong>. Ele não <strong>de</strong>sejou o <strong>sofrimento</strong> para si n<strong>em</strong> para os outros, antes procuroueliminá-lo até o extr<strong>em</strong>o <strong>de</strong> dar sua própria vida gratuitamente. É neste signo da fé que ocristianismo <strong>de</strong>ve se apoiar e assim libertar Seu sacrifício da máscara <strong>com</strong> que a religião ocobriu. Em termos técnicos: sangue e sacrifício <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong>v<strong>em</strong> <strong>ser</strong> tirados do contexto <strong>de</strong>“satisfação” para <strong>de</strong>volvê-los ao <strong>de</strong> revelação 30 .SEGUNDA PARTE1 A PERGUNTA SOBRE O SOFRIMENTO VINCULADA À RELAÇÃO DO SERHUMANO COM DEUSApós termos abordado <strong>de</strong> maneira genérica e resumida alguns tipos <strong>de</strong> respostas fáceisao <strong>sofrimento</strong>, faz-se necessário percorrer um caminho teológico mais profundo, que leve <strong>em</strong>conta os questionamentos <strong>de</strong> nossos cont<strong>em</strong>porâneos e re<strong>de</strong>scubra aspectos olvidados dasEscrituras. O cristão que sofre impele a reflexão teológica a dar “explicações”, até on<strong>de</strong> épossível, sobre o mal que o atinge.282930Cf. VARONE, F. Esse Deus que diz<strong>em</strong> amar o <strong>sofrimento</strong>. op. cit., p. 12: “A ‘satisfação’ <strong>de</strong>forma o sentidoda Igreja, <strong>em</strong> seu ministério e <strong>em</strong> sua Eucaristia. Faz <strong>de</strong>la um po<strong>de</strong>r religioso, uma mediação eficaz e umbaluarte protetor entre o hom<strong>em</strong> peca<strong>dor</strong> e o Po<strong>de</strong>roso ameaça<strong>dor</strong>. Imaginada a <strong>de</strong>cidir a salvação do hom<strong>em</strong>,ela o submerge <strong>de</strong> fato <strong>em</strong> seu medo, portanto, <strong>em</strong> sua irreconciliação <strong>com</strong> Deus e o aliena <strong>em</strong> ritos e <strong>em</strong>po<strong>de</strong>res protetores”.“Tu <strong>de</strong>verias sofrer ao menos um pouco por Cristo: <strong>ser</strong>ia questão <strong>de</strong> justiça, já que v<strong>em</strong>os tantas pessoassofrendo mais pelo mundo. Consi<strong>de</strong>ra <strong>com</strong>o certo que a vida que tens que levar é uma morte... Nada é maisagradável a Deus, nada é mais salutar para ti neste mundo do que aceitar sofrer por Cristo. Nosso mérito e oprogresso <strong>em</strong> nosso estado <strong>de</strong> vida não consist<strong>em</strong> <strong>em</strong> numerosas doçuras e consolações, mas antes nasgran<strong>de</strong>s dificulda<strong>de</strong>s e provações a suportar. Se houvesse algo melhor e mais útil para a salvação dos homensdo que o <strong>sofrimento</strong>, Cristo, <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra, o teria mostrado por sua palavra e pelo ex<strong>em</strong>plo. Paratodos que leram e analisaram <strong>com</strong> atenção, eis a palavra final: “Precisamos passar por muitos <strong>sofrimento</strong>spara po<strong>de</strong>r entrar no Reino <strong>de</strong> Deus” (At 14, 22). KEMPIS, Tomás <strong>de</strong>. A imitação <strong>de</strong> Cristo. São Paulo:Loyola, 1992, p. 92-93.VARONE, F. Esse Deus que diz<strong>em</strong> amar o <strong>sofrimento</strong>. op. cit., p. 10.24


Enten<strong>de</strong>mos que tais explicações, inevitavelmente, conduz<strong>em</strong> à reflexão sobre algunsaspectos da natureza do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, ou seja, da sua autonomia e da sua liberda<strong>de</strong> e, por contadisso, do <strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong>vido à sua responsabilida<strong>de</strong>. Trata-se também <strong>de</strong> recuperar algunsaspectos que convidam o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> a uma sã relação <strong>de</strong> parceria <strong>com</strong> Deus Cria<strong>dor</strong> contra o<strong>sofrimento</strong>. Porque o Cria<strong>dor</strong> não intervém sobre a liberda<strong>de</strong> que lhe foi dada, muito menospara lhe causar <strong>dor</strong>es. Cr<strong>em</strong>os que a apropriação que o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> <strong>de</strong>ve fazer <strong>de</strong> si mesmo e<strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> enquanto criatura são fundamentais para captar e interpretar as mensagensque as situações <strong>de</strong> <strong>dor</strong> e <strong>sofrimento</strong> traz<strong>em</strong> sob diversas perspectivas. Uma <strong>de</strong>las, <strong>com</strong>over<strong>em</strong>os no final <strong>de</strong>ste subcapítulo, ao evocar o envelhecimento, é que o <strong>sofrimento</strong>inevitável, contrariamente à mentalida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, não necessariamente põe fim ao sentido davida e à felicida<strong>de</strong>. Percorr<strong>em</strong>os este caminho acolhendo a reflexão <strong>de</strong> vários teólogoscont<strong>em</strong>porâneos que trabalham a doutrina da criação nesse sentido.1.1 O sentido da vida humana na busca da felicida<strong>de</strong>Enten<strong>de</strong>mos que felicida<strong>de</strong> se relaciona <strong>com</strong> o sentido que conferimos à nossa vida.Conseqüent<strong>em</strong>ente este sentido ‘ilumina’ a <strong>com</strong>preensão do mal que sofr<strong>em</strong>os. Contudo,constatamos que <strong>sofrimento</strong> e felicida<strong>de</strong> se contrapõ<strong>em</strong>. O <strong>com</strong>bate que se trava contra o male o <strong>sofrimento</strong> revela o <strong>de</strong>sejo primordial no <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> <strong>de</strong> <strong>ser</strong> feliz. Esta “herança” nosa<strong>com</strong>panha <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a criação. É uma esperança que nos anima na luta contra o mal: “Qual ohom<strong>em</strong> que <strong>de</strong>seja a vida e quer longevida<strong>de</strong> para ver a felicida<strong>de</strong>?” (Sl 34,13).A teologia, atenta aos sinais dos t<strong>em</strong>pos, precisa respon<strong>de</strong>r também a essa aspiraçãopor felicida<strong>de</strong> enraizada no <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. 31 Como mensag<strong>em</strong> <strong>de</strong> salvação, a fé cristã, portanto,proporciona a superação do <strong>sofrimento</strong> enfrentado no hoje da sua história por nos transmitir acerteza que <strong>sofrimento</strong>, <strong>dor</strong> e morte não são palavra última sobre a nossa existência. Mas esta“boa notícia” não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> uma realida<strong>de</strong> lançada para o ‘futuro’, para a ‘eternida<strong>de</strong>’ somente.É uma experiência para se viver no aqui e agora 32 <strong>com</strong> esperança escatológica. O <strong>de</strong>safio,3132Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” sobre a Igreja no mundo <strong>de</strong> hoje.n. 4 (documento citado <strong>em</strong> seguida por “GS”). in:. IDEM. Compêndio do Vaticano II. Constituições,Decretos e <strong>de</strong>clarações. 29. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000: “... a Igreja, a todo o momento, t<strong>em</strong> o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong>perscrutar os sinais dos t<strong>em</strong>pos e interpretá-los à luz do Evangelho, <strong>de</strong> tal modo que possa respon<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas sobre o significado da vida presente e futura e <strong>de</strong>suas relações mútuas. É necessário, por conseguinte, conhecer e enten<strong>de</strong>r o mundo no qual viv<strong>em</strong>os, suasesperanças, suas aspirações e sua índole freqüent<strong>em</strong>ente dramática”.Cf. QUEIRUGA, A., T. Do terror <strong>de</strong> Isaac ao Abbá <strong>de</strong> Jesus. São Paulo: Paulinas, 2001, p. 163-164: “Avisão cristã, ao mostar-nos a nós mesmos <strong>com</strong>o um dom do amor -idênticas ao movimento pelo qual Deusnos ama e se ama a si mesmo- mostra a glória e a bonda<strong>de</strong> radical do nosso <strong>ser</strong>, sua profunda amabilida<strong>de</strong>, o25


portanto, é <strong>de</strong> ajudar o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> a integrar as contradições na sua vida, o <strong>sofrimento</strong> nabusca da felicida<strong>de</strong>.Verificamos hoje que a socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna praticamente “con<strong>de</strong>na” o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> a<strong>ser</strong> feliz, excluindo todo tipo <strong>de</strong> <strong>dor</strong> e <strong>sofrimento</strong>, inclusive a morte. São estes os “atuais”inimigos a <strong>ser</strong><strong>em</strong> <strong>de</strong>rrotados na busca da felicida<strong>de</strong>. O processo crescente <strong>de</strong> secularização,b<strong>em</strong> <strong>com</strong>o a “religião da prosperida<strong>de</strong>” impõ<strong>em</strong>, cada vez mais, o pensamento hedonista<strong>com</strong>o uma porta que se abre à felicida<strong>de</strong>. “Ser feliz” i<strong>de</strong>ntifica-se <strong>com</strong> o “b<strong>em</strong>-estar”, o queequivale a uma vida <strong>com</strong> saú<strong>de</strong>, prosperida<strong>de</strong> e tranqüilida<strong>de</strong> <strong>em</strong>ocional.É evi<strong>de</strong>nte que necessitamos <strong>de</strong> recursos materiais e <strong>humano</strong>s que salvaguar<strong>de</strong>m nossadignida<strong>de</strong> e cri<strong>em</strong> pressupostos para <strong>ser</strong>mos felizes. 33 Porém, este anseio por felicida<strong>de</strong> nãot<strong>em</strong> sua medida nos prazeres aqui alcançáveis e só é plenamente satisfeito quandoencontramos o sentido último da vida que, para nós cristãos, está na <strong>com</strong>unhão <strong>com</strong> o Deusque nos criou. 34 A partir disso é que se po<strong>de</strong> conferir um sentido para o <strong>sofrimento</strong> e integrálona trama da vida. A relação <strong>com</strong> Deus é vital para nossa felicida<strong>de</strong>.Assim <strong>com</strong>preen<strong>de</strong>mos que não é possível falar do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> e <strong>de</strong> sua vocação paraa felicida<strong>de</strong> s<strong>em</strong> falar Deus e <strong>de</strong> Deus por nós, o que, por sua vez repercute sobre o discursoacerca do hom<strong>em</strong>, pois o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> <strong>ser</strong> feliz lhe foi dado por Deus-Pai-Cria<strong>dor</strong>:Na intimida<strong>de</strong> da consciência, o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>scobre uma lei. Ele não a dá a si mesmo.Mas a ela <strong>de</strong>ve obe<strong>de</strong>cer. Chamando-o s<strong>em</strong>pre a amar e fazer o b<strong>em</strong> e a evitar o mal,no momento oportuno a voz <strong>de</strong>sta lei lhe soa nos ouvidos do coração: faze isto, evitaaquilo. De fato o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> uma lei escrita por Deus <strong>em</strong> seu coração... lei que secumpre no amor a Deus e ao próximo. 35333435otimismo radical <strong>com</strong> o qual <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os olhar-nos, cuidar-nos e amar-nos. Nada mais distante da verda<strong>de</strong> doque esta interpretação do cristianismo <strong>com</strong>o inimigo do corpo e do gozo <strong>de</strong> viver, que o<strong>de</strong>ia e <strong>de</strong>prime ohom<strong>em</strong> e a mulher, envenenando a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> à terra”.Cf. GS 26: “Seus direitos e <strong>de</strong>veres são universais e invioláveis. É preciso, portanto que se torn<strong>em</strong> acessíveisao hom<strong>em</strong> todas aquelas coisas que lhe são necessárias para levar uma vida verda<strong>de</strong>iramente humana. Taissão: alimento, roupa, habitação, direito <strong>de</strong> escolher livr<strong>em</strong>ente o estado <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong> constituir família, direitoà educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, direito <strong>de</strong> agir segundo a normareta <strong>de</strong> sua consciência, direito à proteção da vida particular e à justa liberda<strong>de</strong>, também <strong>em</strong> matéria religiosa.A or<strong>de</strong>m social e o seu progresso <strong>de</strong>v<strong>em</strong> or<strong>de</strong>nar-se ao b<strong>em</strong> das pessoas”.Cf. GS 21: “... o reconhecimento <strong>de</strong> Deus não se opõe <strong>de</strong> modo algum à dignida<strong>de</strong> do hom<strong>em</strong>, já que estadignida<strong>de</strong> se fundamenta e aperfeiçoa no próprio Deus. Pois o hom<strong>em</strong>, inteligente e livre, é estabelecido porDeus Cria<strong>dor</strong>..., mas <strong>com</strong>o filho, é chamado principalmente à própria <strong>com</strong>unhão <strong>com</strong> Deus e à participação<strong>de</strong> sua felicida<strong>de</strong>... a esperança escatológica não diminui a importância das tarefas terrestres, mas antes apóiao seu cumprimento <strong>com</strong> motivos novos. Faltando, ao contrário, o fundamento divino e a esperança da vidaeterna, a dignida<strong>de</strong> do hom<strong>em</strong> é prejudicada <strong>de</strong> modo gravíssimo, <strong>com</strong>o se vê hoje <strong>com</strong> freqüência; e osenigmas da vida e da morte, da culpa e da <strong>dor</strong>, continuam s<strong>em</strong> solução: assim os homens muitas vezes sãolançados ao <strong>de</strong>sespero”.GS 16.26


Cr<strong>em</strong>os, portanto, que é na sua relação <strong>com</strong> Deus que o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> se <strong>de</strong>fine,encontra o sentido <strong>de</strong> sua existência e, conseqüent<strong>em</strong>ente, <strong>de</strong> sua felicida<strong>de</strong>, superando o<strong>sofrimento</strong> que o aflige. Este reconhecimento <strong>de</strong> Deus, longe <strong>de</strong> diminuir o hom<strong>em</strong>,engran<strong>de</strong>ce seu próprio <strong>ser</strong>. Sendo radicalmente livre, o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> recebe <strong>de</strong> Deus aproposta <strong>de</strong> encontrar, nesta relação <strong>de</strong> amor e diálogo, o sentido que procura. Deus lhe pe<strong>de</strong>um voto <strong>de</strong> confiança: “Confie <strong>em</strong> Javé e pratique o b<strong>em</strong>, habite na terra e viva tranqüilo,coloque <strong>em</strong> Javé o seu prazer, e ele dará o que seu coração <strong>de</strong>seja” (Sl 37,3-4).Ao conferir um sentido para a vida, consi<strong>de</strong>ramos que o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> conferirá tambémum sentido para o <strong>sofrimento</strong> que o aflige. Dorothee Sölle nos ajuda nesta <strong>com</strong>preensão <strong>com</strong>sua reflexão sobre a possibilida<strong>de</strong> que o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> possui <strong>de</strong> posicionar-se positivamente<strong>diante</strong> do <strong>sofrimento</strong> quando iluminado pelo sentido que se confere à vida. Ela cita uma cartaescrita <strong>em</strong> uma situação limite por um prisioneiro inocente con<strong>de</strong>nado à morte:Shura! O que po<strong>de</strong> fazer um hom<strong>em</strong> sentado numa prisão, à espera da morte certa?Apesar da situação <strong>em</strong> que me encontro, eles têm medo <strong>de</strong> mim. Dize isso aosoutros. Eu sei que tenho os dias contados e quanto antes chegar o momento maisfácil <strong>ser</strong>á suportá-lo. Passe b<strong>em</strong>! Peço que digas a todos que nada acabou. Eumorrerei, mas vocês viverão. Contudo não fiqueis tristes. Outros, após a minhamorte, irão florescer. Milhares. Cre<strong>de</strong>-me que nada, absolutamente nada do queaconteceu pô<strong>de</strong> afetar a alegria que está <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim e se faz presente todos osdias numa proclamação t<strong>em</strong>atizada <strong>de</strong> Bethoven. O hom<strong>em</strong> não fica menor, mesmoquando lhe encurtam a vida. Peço-vos <strong>de</strong> todo coração que, quando tudo tiverpassado, não penseis <strong>em</strong> mim <strong>com</strong> tristeza e sim <strong>com</strong> a alegria que s<strong>em</strong>pre tenhoexperimentado nesta vida. Não quero que lamentes a minha morte. Quero que reúnasos teus amigos <strong>em</strong> re<strong>dor</strong> <strong>de</strong> uma mesa e lhes leia a minha carta e que todos bebam àsaú<strong>de</strong> da minha tranqüilida<strong>de</strong>. Não quero ninguém chorando”. 36Esta “alegria” do coração evi<strong>de</strong>ncia a felicida<strong>de</strong> encontrada, contra a “máxima” daprosperida<strong>de</strong>. A fé cristã é porta<strong>dor</strong>a <strong>de</strong>ssa alegria e anuncia que a vida é mais forte que amorte, que o <strong>sofrimento</strong> não rouba a realização última do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>; que é possível <strong>ser</strong> felizmesmo quando se sofre, porque o sentido da vida “abraça” o <strong>sofrimento</strong>. A socieda<strong>de</strong> atualreclama isso do cristianismo, ou seja, que supere sua mentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reduzir a experiência <strong>de</strong>Deus ou somente aos momentos <strong>de</strong> <strong>dor</strong> e <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong>, ou somente aos momentos prósperos.Deus se faz presente o t<strong>em</strong>po todo, <strong>em</strong> todas as dimensões da vida dos seus filhos.36SÖLLE, D. Sofrimento. op. cit., p. 142-143 (Últimas cartas <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nados à morte da resistência européia,1962).27


Parece evi<strong>de</strong>nte que, se estamos sofrendo ou se as coisas vão mal ou passamosdificulda<strong>de</strong>, aí está Deus; <strong>em</strong> contrapartida, existe uma tendência a excluí-lo daalegria e da felicida<strong>de</strong>, e inclusive não raras vezes aparece o medo <strong>de</strong> que sual<strong>em</strong>brança venha atrapalhá-los. No entanto, <strong>em</strong> si, é o contrário: posto que Deus criao <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> para que seja pleno e feliz –e só para isso-, é evi<strong>de</strong>nte que se alegra<strong>com</strong> cada uma <strong>de</strong> nossas alegrias e que se <strong>de</strong>leita vendo nossa felicida<strong>de</strong>. 371.2 Deus cria o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> livre e co-cria<strong>dor</strong>A socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, que reclama a autonomia e a in<strong>de</strong>pendência do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, <strong>em</strong><strong>de</strong>trimento da noção cristã <strong>de</strong> sua criaturida<strong>de</strong>, b<strong>em</strong> <strong>com</strong>o ao sentido <strong>de</strong> sua existência <strong>em</strong>Deus, leva a teologia a re-visitar constant<strong>em</strong>ente a doutrina da criação 38 para uma<strong>com</strong>preensão cristã do <strong>sofrimento</strong>, mostrando assim a parceria entre Deus e o hom<strong>em</strong> na lutacontra o mal. Já afirmamos acima que referir-se a Deus <strong>com</strong>o cria<strong>dor</strong> não significa ameaçar aautonomia e a realização do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Pelo contrário, a liberda<strong>de</strong> humana r<strong>em</strong>ete aoCria<strong>dor</strong>, pois na relação <strong>com</strong> Deus, o seu “<strong>ser</strong>” é afirmado na fundação <strong>de</strong> sua autonomia eforça e na promoção <strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong>. 39É o mau uso, o abuso <strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong> que causa <strong>sofrimento</strong>s. Na busca <strong>de</strong> uma<strong>com</strong>preensão cristã dos males presentes no mundo, esta consi<strong>de</strong>ração aponta luzesimportantes.O <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, por <strong>ser</strong> criatura, se <strong>de</strong>ve inteiramente ao Deus-Cria<strong>dor</strong>. É uma relação<strong>de</strong> implicação que <strong>de</strong>sfaz a noção da ação cria<strong>dor</strong>a <strong>com</strong>o um po<strong>de</strong>r que domina e nega aliberda<strong>de</strong> e a criativida<strong>de</strong> do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>.Deus funda e sustenta, mas não substitui a liberda<strong>de</strong>: cria, mas para que a criaturalivre se realize a si mesma. Como já disse, Deus cria cria<strong>dor</strong>es. Por isso, a realizaçãodo próprio <strong>ser</strong>, que <strong>de</strong> entrada po<strong>de</strong> parecer imposição (heteronomia), surge <strong>com</strong>otarefa insubstituível da própria pessoa, pois é ela que t<strong>em</strong> que optar e <strong>de</strong>cidir-se(autonomia) para terminar reconhecendo-se <strong>com</strong>o idêntica ao impulso cria<strong>dor</strong> <strong>de</strong>Deus (teonomia). 40Criado à imag<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>elhança <strong>de</strong> Deus (Gn 1,26), isto é, “criado <strong>em</strong> Cristo” (Jo 1,3,Ef 2,10 e Cl 1,16) o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> é chamado a participar do seu amor, sendo, na sua essência,relacional. Deus <strong>de</strong>seja que ele atenda livr<strong>em</strong>ente a esse chamado, pois sabe que esta resposta37383940QUEIRUGA, A. T. Creio <strong>em</strong> Deus Pai. op. cit., p. 186.Cf. JOÃO PAULO II. Catecismo da Igreja Católica. 9. ed. São Paulo: Loyola, 2002, n. 282: “Diz respeitoaos próprios fundamentos da vida humana e cristã, pois explicita a resposta da fé cristã à pergunta el<strong>em</strong>entarfeita pelos homens <strong>de</strong> todas as épocas: ‘De on<strong>de</strong> vi<strong>em</strong>os?’ ‘Para on<strong>de</strong> vamos?’ ‘Qual é a nossa orig<strong>em</strong>?’‘Qual é o nosso fim?’ ‘De on<strong>de</strong> v<strong>em</strong> e para on<strong>de</strong> vai tudo o que existe?’ Questões <strong>de</strong>cisivas para o sentido e aorientação <strong>de</strong> nossa vida e <strong>de</strong> nosso agir”.Cf. QUEIRUGA, A. T. Recuperar a Criação. op. cit., p. 39.Ibid., p. 209.28


coinci<strong>de</strong> <strong>com</strong> sua realização plena. Esta a<strong>de</strong>são implica uma relação dialógica <strong>de</strong> “liberda<strong>de</strong>s”baseada no amor: daí a razão porque a criação <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> s<strong>em</strong>pre colocada na perspectiva dasalvação, o que garante a noção do Deus-Ágape, disposto a se relacionar livre eamorosamente <strong>com</strong> o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>.Na perspectiva do amor <strong>de</strong> Deus e do seu <strong>de</strong>sígnio <strong>de</strong> estabelecer uma relaçãodialógica <strong>com</strong> o hom<strong>em</strong>, superam-se as antinomias entre <strong>de</strong>pendência e autonomiada criatura <strong>em</strong> relação ao Cria<strong>dor</strong>. Na orig<strong>em</strong>, continuação e finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tudoquanto é criado está presente e atuante a força cria<strong>dor</strong>a do amor divino. O <strong>ser</strong><strong>humano</strong> não <strong>de</strong>ve recear a perda da sua liberda<strong>de</strong> quando aceita, na fé, este Deuscria<strong>dor</strong>. Pelo contrário, é a ação amorosa cria<strong>dor</strong>a <strong>de</strong> Deus que fundamenta,enquanto relação dialógica, a liberda<strong>de</strong> do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Supera-se, <strong>de</strong>starte, o falsodil<strong>em</strong>a ou Deus ou o hom<strong>em</strong>. 41Como <strong>ser</strong> criado, finito, distinto <strong>de</strong> Deus, <strong>com</strong> própria alterida<strong>de</strong> e <strong>com</strong> autorida<strong>de</strong>peculiar e autônoma, o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> po<strong>de</strong> e t<strong>em</strong> que fazer escolhas. 42 E o Cria<strong>dor</strong> não interferenaquilo que é <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Nas mãos do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> está sua vida, seu<strong>de</strong>stino e todo mundo criado. Significa que n<strong>em</strong> tudo está pronto. 43 Criado ‘capaz <strong>de</strong> Deus’, o<strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, no pleno uso <strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong> po<strong>de</strong>, infelizmente, rejeitar a Deus, <strong>de</strong>struir-se a simesmo e fazer sofrer seu s<strong>em</strong>elhante, b<strong>em</strong> <strong>com</strong>o agredir a natureza, o que infelizmente é fato.É criado para criar. É co-cria<strong>dor</strong>, <strong>em</strong> relação ao mundo e a si mesmo. Exatamenteporque Deus é cria<strong>dor</strong>, aquilo que ele criou “à sua imag<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>elhança” torna-se um <strong>ser</strong>cria<strong>dor</strong> e, isso, portanto, faz parte do seu próprio <strong>ser</strong>. O t<strong>em</strong>a inesgotável da imag<strong>em</strong> es<strong>em</strong>elhança chega a esse ponto. 44O Cria<strong>dor</strong> <strong>de</strong>seja que o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> confie <strong>em</strong> si mesmo no exercício <strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong>,o que não significa fazer o que b<strong>em</strong> enten<strong>de</strong>r. Ao mobilizar essas potencialida<strong>de</strong>s, o <strong>ser</strong><strong>humano</strong> torna-se senhor <strong>de</strong> sua vida e do planeta, fazendo-se protagonista <strong>de</strong> sua história na41424344RUBIO, A. G. Unida<strong>de</strong> na Pluralida<strong>de</strong>. op. cit., p. 296.Cf. GS 14: “Com efeito, por sua vida interior, o hom<strong>em</strong> exce<strong>de</strong> a universalida<strong>de</strong> das coisas. Ele penetra nestaintimida<strong>de</strong> profunda quando se volta ao seu coração, on<strong>de</strong> o espera Deus, que perscruta os corações (1Rs16,7; Jr 17,10), e on<strong>de</strong> ele pessoalmente, sob os olhares <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> sua própria sorte. Deste modo ...longe <strong>de</strong> se tornar joguete <strong>de</strong> uma criação imaginária que se aplicaria somente pelas condições físicas esociais, o hom<strong>em</strong>, ao contrário, atinge a própria profun<strong>de</strong>za da realida<strong>de</strong>”.Cf. RUBIO, A. G. Unida<strong>de</strong> na Pluralida<strong>de</strong>. op. cit., p. 285 “É na resposta assumida pessoalmente pelo <strong>ser</strong><strong>humano</strong> que a criação toda, me<strong>diante</strong> este, vai realizando a sua finalida<strong>de</strong>. E mais profundamente ainda: éme<strong>diante</strong> Jesus Cristo que a Criação toda respon<strong>de</strong> da maneira mais plena possível ao dom do Deus cria<strong>dor</strong>.A máxima resposta possível da criatura é dada por Jesus Cristo”.Cf. GESCHÉ, A. O <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 76.29


transformação do mundo. Sua vida e a do planeta estão colocadas <strong>em</strong> suas mãos. O presente eo futuro é o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>. 45O Cria<strong>dor</strong> não é “concorrente” da autonomia humana, antes coloca a criação <strong>diante</strong> do<strong>ser</strong> <strong>humano</strong> <strong>com</strong>o um canteiro <strong>de</strong> obras, para que ele a torne uma ‘casa’ on<strong>de</strong> todos vivamfelizes, <strong>em</strong> justiça, paz e fraternida<strong>de</strong>. Ele espera a realização do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> na liberda<strong>de</strong> quelhe é própria. Está atento a tudo, sua onipresença é real na vida cotidiana do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, nãopara fiscalizar, mas porque o ama. Sua ‘providência’ é radicalmente contrária à idéia <strong>de</strong> umDeus intervencionista. Não se po<strong>de</strong> ‘acioná-lo’ para que interfira na liberda<strong>de</strong> humana e nasleis da natureza. Em função <strong>de</strong> seu <strong>ser</strong> divino, ele “não po<strong>de</strong>” agir assim. 46O teólogo espanhol Queiruga evi<strong>de</strong>ncia essa idéia recorrendo à Parábola do BomSamaritano (Lc 10,29-38): por causa da injustiça <strong>de</strong> certos homens há alguém caído que correperigo <strong>de</strong> morte. Deus é o protagonista da narração. O que está ferido é filho seu que ele amae faria tudo para salvá-lo. Portanto, Deus está no ferido, apoiando-o interiormente paraenfrentar a situação, tanto através do instinto e dos recursos biológicos <strong>de</strong> sobrevivência,<strong>com</strong>o da ânsia espiritual <strong>de</strong> dar sentido à situação. A presença <strong>de</strong> Deus é ativa, <strong>em</strong> primeirolugar mantendo o funcionamento da natureza, sustentando a organização fundamental <strong>de</strong> suasleis, que <strong>em</strong> princípio busca o b<strong>em</strong> <strong>de</strong> tudo e <strong>de</strong> todos. Mas Deus t<strong>em</strong>, por isso mesmo, querespeitá-la nas resistências e incapacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua finitu<strong>de</strong>: <strong>de</strong>finitivamente, são essas leisprecisamente tudo o que nessa or<strong>de</strong>m Deus po<strong>de</strong> fazer para salvar o ferido. Felizmente Deuspo<strong>de</strong> contar <strong>com</strong> o recurso da liberda<strong>de</strong> humana e não romper assim <strong>com</strong> a legalida<strong>de</strong> domundo. Passa o sacerdote e o escriba, e Deus, me<strong>diante</strong> sentimentos <strong>de</strong> <strong>com</strong>paixão esolidarieda<strong>de</strong>, a partir da voz da consciência, convoca-os a vir<strong>em</strong> <strong>em</strong> socorro do ferido, o quenão acontece. O samaritano passa, sente o apelo e ajuda o ferido. Nesse momento Deus pô<strong>de</strong>finalmente salvar aquele hom<strong>em</strong>. O samaritano é sua mão. S<strong>em</strong> ela, Deus nada po<strong>de</strong>ria fazer.A ação humana nasceu do apelo divino e <strong>de</strong>le recebeu seu <strong>ser</strong>, força e inspiração. O queestava ferido, se tiver fé, agra<strong>de</strong>cerá o Deus que, através do samaritano o salvou. Agra<strong>de</strong>cerátambém ao samaritano que, ao acolher a solicitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, curou-o e protegeu-o.4546Cf. GS 57: “Quando cultiva a terra <strong>com</strong> o trabalho <strong>de</strong> suas mãos ou por meio da técnica, para que ela produzafrutos e se torne uma habitação digna da família humana inteira, e quando participa conscient<strong>em</strong>ente da vidados grupos sociais, o hom<strong>em</strong> realiza o plano <strong>de</strong> Deus, manifestado no início dos t<strong>em</strong>pos, que é o <strong>de</strong> dominara terra e <strong>com</strong>pletar a criação, e se aperfeiçoar a si mesmo. Ob<strong>ser</strong>va ao mesmo o gran<strong>de</strong> mandamento <strong>de</strong>Cristo, que é o <strong>de</strong> <strong>de</strong>spen<strong>de</strong>r-se no <strong>ser</strong>viço dos irmãos”.MORIN, D. Para Falar <strong>de</strong> Deus. São Paulo: Loyola, 1993, p. 89.30


Conclusão <strong>em</strong> dois pontos: 1) a ajuda divina, enquanto realização efetiva do amor <strong>de</strong>Deus às suas criaturas, precisa <strong>de</strong> mediação indispensável da ação humana; algo que marcaao mesmo t<strong>em</strong>po a responsabilida<strong>de</strong> e a gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> nossas opções; 2) Deus aventura-severda<strong>de</strong>iramente na criação, expõe-se <strong>em</strong> seu amor e po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> ferido pela recusa dacolaboração humana, sofrendo assim pelas injustiças que se <strong>com</strong>et<strong>em</strong> contra muitos <strong>de</strong> seusfilhos e suportando o fracasso <strong>de</strong> muitos projetos. 471.3 O envelhecimento na dinâmica do sentido da vida <strong>diante</strong> do <strong>sofrimento</strong>Nossa práxis pastoral “no mundo do <strong>sofrimento</strong>” nos põe <strong>em</strong> contato permanente <strong>com</strong>as pessoas idosas que enfrentam algum tipo <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong>. Este assunto v<strong>em</strong> se constituindonuma preocupação <strong>em</strong>ergente e urgente porque representa ao hom<strong>em</strong> mo<strong>de</strong>rno uma ameaça àsua busca <strong>de</strong> sentido e felicida<strong>de</strong> <strong>em</strong> ignorância a este processo biologicamente <strong>de</strong>generativo<strong>de</strong> cada <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Por isso julgamos necessário abordar o t<strong>em</strong>a <strong>em</strong> nosso trabalho.A socieda<strong>de</strong>, hoje mais do que nunca, <strong>de</strong>svaloriza o idoso quando relaciona dignida<strong>de</strong>e felicida<strong>de</strong> <strong>com</strong> eterna juventu<strong>de</strong>, sucesso, força e beleza física e capacida<strong>de</strong>s mentais.Parece mais oportuno relacionar doença, inutilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sgasto e <strong>de</strong>spesa à pessoa idosa.O envelhecimento populacional é um fenômeno mundial que se processa <strong>de</strong> modoheterogêneo nos diferentes países. 48 O <strong>de</strong>clínio da fecundida<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penha um dos maisrelevantes papéis na <strong>de</strong>terminação do t<strong>em</strong>po e da velocida<strong>de</strong> do envelhecimento. Fenômenoque provoca conseqüências <strong>em</strong> todos os setores da socieda<strong>de</strong>. Na área da saú<strong>de</strong> a situação édramática. A população envelhecida <strong>com</strong> baixa mortalida<strong>de</strong> causa profunda alteração noperfil da morbida<strong>de</strong> e causas <strong>de</strong> morte. 49 A longevida<strong>de</strong> da vida humana conquistada pelosavanços tecnológicos na medicina e por uma melhora na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida exige dosgovernos prestações <strong>de</strong> <strong>ser</strong>viços, benefícios e atenções próprias <strong>de</strong>sta etapa da vida. Noentanto isso está longe <strong>de</strong> <strong>ser</strong> uma realida<strong>de</strong>, pelo menos para a gran<strong>de</strong> maioria, que é pobre.Situação que intensifica o <strong>sofrimento</strong>.474849QUEIRUGA, A. T. Recuperar a Criação. Op. cit., p. 152-154.Cf. ibid., p. 390: “Segundo a Organização Pan-Americana da Saú<strong>de</strong>, até o ano 2000 os Estados Unidos e oCanadá terão mais <strong>de</strong> 50 milhões <strong>de</strong> habitantes <strong>com</strong> mais <strong>de</strong> 60 anos, e a América Latina e o Caribe terão 82milhões <strong>de</strong> pessoas acima da faixa <strong>de</strong> 60 anos. No Brasil, até o ano 2025 esta população somará 32 milhões”.Cf. ibid.: “Basicamente há a substituição das doenças infecto-contagiosas pelas chamadas ‘doenças dacivilização’ ou doenças crônicas, <strong>com</strong>o principal causa <strong>de</strong> morte <strong>em</strong> uma população. A postergação da morteé hoje uma realida<strong>de</strong>. Destinados a viver vinte anos mais, os idosos encontram-se funcionalmenteincapacitados e <strong>com</strong> saú<strong>de</strong> precária”.31


O processo <strong>de</strong> envelhecimento não está necessariamente relacionado ao <strong>sofrimento</strong>.Velhice não é sinônimo <strong>de</strong> <strong>dor</strong> ou enfraquecimento da vida. Des<strong>de</strong> a concepção e nascimento,passando pela infância e juventu<strong>de</strong> e ida<strong>de</strong> adulta, o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> experimenta um “<strong>de</strong>sgastenatural” culminando na velhice, até o momento da morte.Ocorre que na velhice o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> se encontra mais vulnerável às doenças físicas e<strong>em</strong>ocionais. A velhice está relacionada ao fenômeno biológico: o organismo do idosoapresenta certas singularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sta etapa da vida e que provocam conseqüênciaspsicológicas positivas e ou negativas segundo a subjetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada pessoa.A pessoa idosa traz consigo a sensação <strong>de</strong> perda, principalmente <strong>com</strong> relação à saú<strong>de</strong>,quando recorda a importância <strong>de</strong>spreocupada que <strong>de</strong>u aos anos juvenis. O envelhecimentopassa a gerar um <strong>de</strong>sencanto pela vida, po<strong>de</strong>ndo vir a <strong>ser</strong> uma ameaça ao seu sentido. A idéia<strong>de</strong> que o fim se aproxima, então, at<strong>em</strong>oriza o idoso e o leva a questionar sobre a morte e aesperança <strong>de</strong> uma vida futura. Muitos idosos sofr<strong>em</strong> <strong>de</strong>masiadamente quando são afetadospela perda da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalho. Sent<strong>em</strong>-se inúteis. Per<strong>de</strong>m o gosto pela vida, <strong>de</strong>scuidamda saú<strong>de</strong>, tornando o <strong>sofrimento</strong> mais intenso.Cr<strong>em</strong>os que a velhice, <strong>com</strong>o as outras etapas da vida, t<strong>em</strong> uma dimensão existencial epor ela é iluminada. A relação positiva do idoso consigo mesmo, <strong>com</strong> Deus e <strong>com</strong> o mundo,<strong>de</strong>termina um envelhecimento sadio. É processo pessoal, relacionado ao sentido que se <strong>de</strong>upara a vida toda e que agora é acolhido e vivido <strong>de</strong> modo diferente, porém <strong>com</strong> a mesmaesperança: a realização humana. A velhice, portanto, não está condicionada simplesmentepela cronologia. 50Cada etapa da vida possui sua beleza própria. Não é o número <strong>de</strong> anos que <strong>de</strong>terminasua velhice: “Velhice venerável não é longevida<strong>de</strong>, n<strong>em</strong> é medida pelo número <strong>de</strong> anos; ascãs do hom<strong>em</strong> são a inteligência e a velhice, uma vida imaculada” (Sb 4,8-9).A “melhor ida<strong>de</strong>” é vista <strong>com</strong>o cheia <strong>de</strong> potencialida<strong>de</strong>s e possui sua beleza própria. Oidoso não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> visto, a priori, <strong>com</strong>o objeto <strong>de</strong> ações caritativas. O Papa João Paulo II naaudiência geral <strong>de</strong> 8 <strong>de</strong> set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1994 afirmou:50Cf. FERRARI, M. A. C. Envelhecer no Brasil. in: Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saú<strong>de</strong>. op. cit.,p. 388.32


Em uma socieda<strong>de</strong> <strong>com</strong>o a atual, que cultua a produtivida<strong>de</strong>, as pessoas anciãsarriscam <strong>ser</strong> consi<strong>de</strong>radas inúteis, ou até <strong>ser</strong> julgadas um peso para os outros. Opróprio prolongamento da vida agrava o probl<strong>em</strong>a da assistência aos idososnecessitados <strong>de</strong> cuidados e, talvez ainda mais, <strong>de</strong> presenças <strong>de</strong>sveladas e afetuosasque encham sua solidão. Os anciãos... permanec<strong>em</strong> plenamente m<strong>em</strong>bros da<strong>com</strong>unida<strong>de</strong> e são chamados a contribuir para o seu <strong>de</strong>senvolvimento, <strong>com</strong> otest<strong>em</strong>unho, a oração e também <strong>com</strong> a ativida<strong>de</strong> na medida do possível 51 .A angústia profunda sentida pelo idoso <strong>diante</strong> da proximida<strong>de</strong> da morte não é somente<strong>em</strong> razão <strong>de</strong> sua fragilida<strong>de</strong> física. Seu <strong>sofrimento</strong> se intensifica quando pensa no enigma damorte <strong>com</strong>o a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um fim abismal. O <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> ama a vida e quer viver s<strong>em</strong>pr<strong>em</strong>ais, porém a morte ameaça este <strong>de</strong>sejo e exige uma resposta, um sentido. O cristão idoso éconvidado nesta terrível hora a acreditar que Deus sofre <strong>com</strong> ele e é seu <strong>com</strong>panheiro nestapassag<strong>em</strong>. A s<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> eternida<strong>de</strong> que leva <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si, a esperança da vida que vence amorte, é sua resposta para a morte. Deus, que o criou para um fim feliz, além dos limites damiséria terrestre, se põe ao seu lado na hora <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira. É a hora da a<strong>de</strong>são <strong>de</strong>finitiva, <strong>de</strong>refugiar-se confiant<strong>em</strong>ente <strong>em</strong> Deus, apoiando-se no cumprimento <strong>de</strong> sua promessa <strong>de</strong> umavida que jamais se acaba, <strong>de</strong> uma vida incorruptível (GS 18).2 O SOFRIMENTO NA PERSPECTIVA DOS INOCENTESMesmo frente ao esclarecimento explicitado sobre a relação analógica e dialógicaentre Cria<strong>dor</strong> e criatura humana, permanece um <strong>de</strong>safio para o cristão e para a reflexãoteológica falar <strong>de</strong> um Deus que se revela <strong>com</strong>o Amor-Bonda<strong>de</strong> numa situação <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong><strong>de</strong> inocentes, <strong>de</strong> vítimas. Constatamos que as “explicações” cristãs mais corriqueiras para aexistência do mal e do <strong>sofrimento</strong> não são plenamente satisfatórias. No entanto, esse mistérioabsurdo não leva o cristão à perda da fé no Deus que se mantém próximo e que respeitaradicalmente sua liberda<strong>de</strong>. Jó é um ex<strong>em</strong>plo disso.2.1 O <strong>sofrimento</strong> do inocente <strong>com</strong>o enigma da vida humanaDes<strong>de</strong> o início da humanida<strong>de</strong>, o <strong>sofrimento</strong> consi<strong>de</strong>rado “não-merecido” representaum probl<strong>em</strong>a enigmático para o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Esta sua “incapacida<strong>de</strong>” <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>rplenamente o probl<strong>em</strong>a, longe <strong>de</strong> criar na reflexão cristã uma ‘letargia teológica’, impulsiona51 PETRINI, M. Idoso. in: Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saú<strong>de</strong>. op. cit., p. 620.33


o discurso a um aprofundamento. Diante do mal que <strong>de</strong>safia os raciocínios <strong>humano</strong>s, o cristãoé convocado a “dar razão <strong>de</strong> sua esperança a todo aquele que pe<strong>de</strong>” (1Pd 3,15).O incontável número <strong>de</strong> vítimas inocentes espalhadas pelo mundo, o que caracterizaum <strong>sofrimento</strong> inaceitável, exige do cristão um posicionamento. Presenciamos <strong>em</strong> nossaprópria socieda<strong>de</strong> a instrumentalização da pessoa <strong>em</strong> sua integrida<strong>de</strong>, a exploração econômicae a exclusão social <strong>de</strong> amplos setores populacionais, a discriminação sexual da mulher e dacriança, a discriminação étnica dos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes afro e indígenas e tantas outras situações <strong>de</strong><strong>sofrimento</strong>s terríveis e injustos que exig<strong>em</strong> uma explicação, um sentido. Em busca <strong>de</strong> um“culpado”, <strong>de</strong> alguém que esteja ‘por trás’ <strong>de</strong> tudo isso, o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> suplica a Deus: atéquando meu Deus? Por que t<strong>em</strong>os que passar por tudo isso? O que fiz<strong>em</strong>os <strong>de</strong> errado? São<strong>sofrimento</strong>s que não têm explicação satisfatória. De on<strong>de</strong> v<strong>em</strong> então este mal e por que atingeo inocente? Se Deus é responsável, sua negação parece lógica. Se o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> é o culpado,<strong>com</strong>o consi<strong>de</strong>rar a bonda<strong>de</strong> primordial dada a ele pelo Cria<strong>dor</strong>?A fé cristã se apóia na certeza <strong>de</strong> que Deus é bom. De que ele é o primeiro interessado<strong>em</strong> <strong>com</strong>bater o mal. Se, <strong>diante</strong> <strong>de</strong>sse “absurdo <strong>sofrimento</strong>”, o cristão ainda encontra razõespara continuar crendo <strong>em</strong> Deus e no seu amor (o que é fato), evi<strong>de</strong>ncia-se uma via <strong>de</strong><strong>com</strong>preensão dos males <strong>humano</strong>s, que só po<strong>de</strong> vir da fé <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> se confia a Ele, assumindosua condição <strong>de</strong> efêmero, vulnerável e impotente: “Eu te louvo ó Pai, Senhor do céu e daterra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e doutores e as revelaste aos pequeninos” (Mt11,25). Deus fortalece a fé do inocente e infun<strong>de</strong> esperança <strong>em</strong> seu peito. A fé que t<strong>em</strong> <strong>em</strong>Deus o leva a crer que esse mundo “po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> diferente”. É esse o motivo que anima umamultidão na luta contra o mal, <strong>em</strong> vista <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> mais justa e fraterna, que acolha ecui<strong>de</strong> dos que sofr<strong>em</strong>, sendo “mão <strong>de</strong> Deus” estendida para eles.Por outro lado, v<strong>em</strong>os uma indiferença da socieda<strong>de</strong> <strong>diante</strong> <strong>de</strong> muitos <strong>sofrimento</strong>sevitáveis, caracterizando uma aceitação resignada, um fatalismo. Gran<strong>de</strong> parte da populaçãot<strong>em</strong> contato <strong>com</strong> o “mundo do <strong>sofrimento</strong>” apenas pela mídia, que minimiza o probl<strong>em</strong>a efomenta a insensibilida<strong>de</strong>. Com efeito, o “envolver-se” <strong>com</strong> este povo e <strong>com</strong>prometer-se no<strong>com</strong>bate pela eliminação dos seus <strong>sofrimento</strong>s aponta para o essencial do “<strong>ser</strong> cristão”.2.2 Jó e Deus: o inocente <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> respostasA reflexão sobre o livro <strong>de</strong> Jó chama a atenção para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umaaproximação do inocente que sofre e que não per<strong>de</strong> a sua fé, <strong>com</strong>o possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umamaior <strong>com</strong>preensão dos <strong>sofrimento</strong>s <strong>humano</strong>s. Constata-se nesta história uma relação marcada34


pelo diálogo <strong>com</strong> Deus no meio dos infortúnios e, quando não há mais o que dizer sobre o<strong>sofrimento</strong>, o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> se confia a Deus.O livro relata a saga <strong>de</strong> um personag<strong>em</strong> justo e t<strong>em</strong>ente a Deus, que procura integrar o<strong>sofrimento</strong> na sua existência. 52Jó era um hom<strong>em</strong> íntegro que t<strong>em</strong>ia a Deus e se afastava do mal (1,1). Mas per<strong>de</strong>utodos os seus bens (1,13-17). Depois lhe morreram os filhos (1,18-19). Por fim per<strong>de</strong> tambémsua saú<strong>de</strong> (2,4-8). Jó, porém, persevera na fé e permanece <strong>com</strong> Deus (1,21-22; 2,10) e Deus otrata <strong>com</strong>o seu <strong>ser</strong>vo (2,3). A calma <strong>de</strong> Jó, que se sabe inocente e é cumulado <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong>s,impressiona. Ele não encontra todas as respostas que <strong>de</strong>seja, mas seu crescimento espiritual éevi<strong>de</strong>nte (42,1-6) e, no final, Deus restitui <strong>em</strong> dobro o que possuía, <strong>de</strong>volvendo-lhe sua saú<strong>de</strong>e sua família. 53Po<strong>de</strong>-se fazer um paralelismo entre Jó e a massa dos pobres <strong>de</strong> hoje, tambéminocentes, que experimentam o <strong>sofrimento</strong> e procuram na fé as razões <strong>de</strong> sua esperança.Trata-se, sobretudo, <strong>de</strong> uma linguag<strong>em</strong> sobre Deus. 54O autor do livro escolhe a situação mais difícil para tratar do assunto: a <strong>dor</strong> física <strong>em</strong>oral. Situação marcada pela tentação do interesse pessoal e <strong>de</strong> tudo medir <strong>em</strong> categorias <strong>de</strong>prêmio e castigo. Qu<strong>em</strong> sofre <strong>de</strong>seja que tudo gire <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> si, inclusive Deus, que équestionado sobre o castigo imerecido. 55 De fato, a ‘<strong>dor</strong> humana’ in<strong>com</strong>oda e <strong>de</strong>safia o ‘falar<strong>de</strong> Deus’.52535455Cf. Jó. Introdução. in: BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002, p. 800-802: “O livro é posteriora Jer<strong>em</strong>ias e a Ezequiel, <strong>com</strong> os quais t<strong>em</strong> contatos quanto à expressão e ao pensamento, e sua linguag<strong>em</strong>está fort<strong>em</strong>ente mesclada <strong>de</strong> aramaísmos. Isto nos situa na época posterior ao Exílio, num momento <strong>em</strong> que aobsessão pela sorte da nação é substituída pela preocupação <strong>com</strong> o <strong>de</strong>stino dos indivíduos. O autor consi<strong>de</strong>rao caso <strong>de</strong> um justo sofre<strong>dor</strong>. Para a doutrina corrente das retribuições terrestres, tal caso <strong>ser</strong>ia paradoxo irreal:o hom<strong>em</strong> recebe aqui na terra a re<strong>com</strong>pensa ou o castigo <strong>de</strong> suas obras. Jó se levanta <strong>com</strong> toda força <strong>de</strong> suainocência e busca <strong>em</strong> vão o sentido <strong>de</strong> sua provação. E quando Deus intervém, é para revelar atranscendência <strong>de</strong> seu <strong>ser</strong> e <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>sígnios e reduzir Jó ao silêncio e à confiança nele”.Cf. GIOVANNI, H. Sofrimento (abordag<strong>em</strong> bíblica – AT). in: Dicionário Interdisciplinar da Pastoral daSaú<strong>de</strong>. São Paulo, Paulus, 1999, p. 1237.Cf. GUTIÉRREZ. G. Falar <strong>de</strong> Deus a partir do <strong>sofrimento</strong> do inocente. Uma reflexão sobre o livro <strong>de</strong> Jó.Petrópolis-RJ: Vozes, 1987, p. 14: “De que maneira falar <strong>de</strong> um Deus que se revela <strong>com</strong>o amor, numarealida<strong>de</strong> marcada pela pobreza e pela opressão? Como anunciar o Deus da vida a pessoas que sofr<strong>em</strong> umamorte pr<strong>em</strong>atura e injusta? Como reconhecer o dom gratuito <strong>de</strong> seu amor e <strong>de</strong> sua justiça a partir do<strong>sofrimento</strong> do inocente? Com que palavras dizer aos que não são consi<strong>de</strong>rados pessoas que são filhas e filhos<strong>de</strong> Deus? Eis as interrogações principais da teologia que surge na América Latina...”.Cf. ibid, p. 42.35


Boa parte do livro mostra os questionamentos à doutrina da retribuição (4,7-8). Saú<strong>de</strong>e riqueza <strong>de</strong> um lado, e pobreza e enfermida<strong>de</strong> do outro, são retribuições aos que praticam ob<strong>em</strong> e aos que ag<strong>em</strong> <strong>com</strong> injustiça, respectivamente. O caso <strong>de</strong> Jó, porém, contradiz essalógica. Instigado pelos amigos, para que aceite esta tese, Jó a recusa (4,17).Certas tendências <strong>de</strong>ntro do cristianismo <strong>de</strong>ram nova vida, ao longo da história, a estaconcepção ético-religiosa que vê na riqueza um prêmio <strong>de</strong> Deus ao hom<strong>em</strong> honesto etrabalha<strong>dor</strong>, e na pobreza um castigo ao peca<strong>dor</strong> e ao <strong>de</strong>socupado. 56Mesmo questionado sobre sua inocência e que não há ninguém puro <strong>diante</strong> <strong>de</strong> Deus,que corrige qu<strong>em</strong> quer que seja (4,17-19; 5,17), Jó não abre mão <strong>de</strong> crer que Deus está“envolvido” <strong>em</strong> seu <strong>sofrimento</strong> (19,6). Escutar <strong>com</strong> paciência (13,5-6) o que t<strong>em</strong> a dizer apessoa que sofre é o primeiro passo para a solidarieda<strong>de</strong>. De fato, o contato <strong>com</strong> os enfermose pobres, <strong>com</strong> <strong>de</strong>sesperados e tristes faz <strong>com</strong> que se entenda a posição <strong>de</strong> Jó. Essas pessoasafirmam, não poucas vezes, que poucos se interessam por sua vida, situação b<strong>em</strong> diferentequando uma <strong>com</strong>unida<strong>de</strong> mobilizada cria canais <strong>de</strong> acolhimento e partilha. 57Jó t<strong>em</strong> consciência <strong>de</strong> que não está isento <strong>de</strong> faltas (7,21). Mas também sabe que nãomerece tal castigo e, assim, coloca <strong>em</strong> cheque a teologia da retribuição <strong>de</strong> sua época. O qu<strong>em</strong>otiva sua rebelião crescente não é tanto o seu <strong>sofrimento</strong>, mas as justificações que <strong>de</strong>leapresentam seus interlocutores (6,24-29). Este é o “lugar” teológico, o momento <strong>de</strong> recuperara solidarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus <strong>com</strong> qu<strong>em</strong> está fragilizado. 58Jó interpela, no seu <strong>sofrimento</strong>, a interpretação da relação do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> <strong>com</strong> Deus.Existe a real possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> crescimento na fé quando se sofre. Apresentar as queixas a Deus(13,3) é necessário na relação dialógica para <strong>de</strong>smascarar falsas imagens divinas. Os amigos<strong>de</strong> Jó insist<strong>em</strong> para que aceite seus argumentos e se agra<strong>de</strong> dos <strong>sofrimento</strong>s. Eles não se põ<strong>em</strong>no lugar <strong>de</strong> Jó, <strong>de</strong>sconhec<strong>em</strong> sua realida<strong>de</strong>.De fato, nosso falar é tributário da situação <strong>em</strong> que nos encontramos. As palavras <strong>de</strong>Jó são uma crítica a toda teologia órfã <strong>de</strong> contato <strong>com</strong> a realida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> <strong>com</strong>paixãohumana. 5956575859Cf. ibid., p. 53.Cf. ibid., 55: “Por isso, nas Comunida<strong>de</strong>s Eclesiais <strong>de</strong> Base latino americanas, por ex<strong>em</strong>plo, muitosencontram, <strong>com</strong> surpresa, <strong>com</strong>preensão por suas dificulda<strong>de</strong>s, principalmente daqueles <strong>de</strong> que não se fala.Cria-se assim, para eles, um novo espaço <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> <strong>com</strong>unicação que adube o terreno para acolher aPalavra do Senhor e também para converter-se <strong>em</strong> agente <strong>de</strong> sua própria história”.Cf. GIOVANNI, H. Sofrimento (abordag<strong>em</strong> bíblica – AT). in: Dicionário Interdisciplinar da Pastoral daSaú<strong>de</strong>. op. cit., p. 1238.GUTIÉRREZ. G. Falar <strong>de</strong> Deus a partir do <strong>sofrimento</strong> do inocente. op. cit., p. 63.36


No seu diálogo <strong>com</strong> Deus, quando recorda sua vida (29,2), Jó <strong>de</strong>scobre que o<strong>com</strong>portamento que se t<strong>em</strong> <strong>em</strong> relação aos pobres e a todos os que sofr<strong>em</strong> é <strong>de</strong>terminante parasua fé (29,12-17). Isso mostra que o “falar <strong>de</strong> Deus” ao povo sofrido implica colocar-se ao seulado e assumir suas <strong>dor</strong>es <strong>com</strong>o próprias. 60 S<strong>em</strong> opção afetiva e efetiva pelos pobres e todosos que sofr<strong>em</strong> não se fala do Deus-Amor-Bonda<strong>de</strong> a eles. 61Jó reconhece que a resposta à teologia da retribuição é “crer por nada”, ou seja, que‘no princípio <strong>de</strong> tudo está a gratuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Ela, e não a retribuição, é o eixo domundo’. 62O falar <strong>de</strong> Deus aos que sofr<strong>em</strong> diz respeito ao mistério <strong>de</strong> Deus mesmo, à gratuida<strong>de</strong>do seu amor. Amor que chega preferencialmente aos pobres, não porque são pobres, masporque se encontram <strong>em</strong> situação <strong>de</strong>sumana. Quanto aos maus, culpados pelos <strong>sofrimento</strong>s,Javé convida Jó a reconhecer, mesmo s<strong>em</strong> enten<strong>de</strong>r, sua mi<strong>ser</strong>icórdia.Assim ele atinge a maturida<strong>de</strong> na sua relação dialógica <strong>com</strong> Javé e o cont<strong>em</strong>pla: “Eute conhecia só <strong>de</strong> ouvir, mas agora meus olhos te vê<strong>em</strong>: por isso, retrato-me e faço penitênciano pó e na cinza” (42,5-6). Ele percebe que Deus não está condicionado ao mundo da causaefeitodos <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s.Compreen<strong>de</strong> que a justiça sozinha não t<strong>em</strong> a última palavra no falar sobre Deus.Estamos total e <strong>de</strong>finitivamente <strong>diante</strong> do Deus da fé somente quando reconhec<strong>em</strong>osa gratuida<strong>de</strong> do seu amor. A graça não se opõe n<strong>em</strong> <strong>de</strong>smerece a busca da justiça.Pelo contrário, dá-lhe seu pleno sentido. 63A experiência <strong>de</strong> Deus feita por Jó ilumina o caminho do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> que luta no<strong>sofrimento</strong> e <strong>de</strong>scobre que Deus é seu parceiro nesta batalha. 646061626364Cf. CELAM. Conclusões da Conferência <strong>de</strong> Puebla. 8. ed. São Paulo: Paulinas, 1987, n. 1094 (documento citado<strong>em</strong> seguida por “Puebla”): “Conhecida a situação <strong>de</strong> pobreza, marginalização e injustiça <strong>em</strong> que estão imersasgran<strong>de</strong>s massas latino-americanas e <strong>de</strong> violação dos direitos <strong>humano</strong>s, a Igreja, no uso dos seus meios próprios,<strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> cada dia mais a voz dos <strong>de</strong>samparados, apesar dos riscos que isso implica”.Cf. Puebla 1134: “A conferência <strong>de</strong> Puebla volta a assumir, <strong>com</strong> renovada esperança na força vivifica<strong>dor</strong>a doEspírito a posição da II Conferencia Geral que fez uma clara e profética opção preferencial e solidária pelospobres, no intuito <strong>de</strong> sua integral libertação”.Cf. GUTIÉRREZ, G., Falar <strong>de</strong> Deus a partir do <strong>sofrimento</strong> do inocente. op. cit., p. 119.Ibid., p. 142.Cf. SOBRINO, J. A fé <strong>em</strong> Jesus Cristo. Ensaio a partir das vítimas. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000, p. 493.37


3 A REPERCUSSÃO DA CRISE ECOLÓGICA COMO SOFRIMENTO HUMANOEM SUA DIMENSÃO CÓSMICAA progressiva <strong>de</strong>gradação das condições ambientais, <strong>com</strong>o a poluição atmosférica, oaquecimento global, o efeito estufa, o buraco na camada <strong>de</strong> ozônio, os <strong>de</strong>smatamentosflorestais, a poluição dos rios, acentua cada vez mais uma “crise ecológica” <strong>em</strong> dimensõescósmicas. A esta terrível realida<strong>de</strong> somam-se as ‘catástrofes naturais’ <strong>com</strong>o terr<strong>em</strong>otos,tsunamis, mar<strong>em</strong>otos, t<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong>s e enchentes, ciclones e furacões, entre outras tragédias.Acontecimentos que afetam a vida do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> causando mortes, <strong>de</strong>struição e doenças, oque mostra que ecologia 65 e <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m um do outro. A crise ecológica 66 passou a<strong>ser</strong> crise do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> causada por ele mesmo e por isso pondo <strong>em</strong> cheque a suaresponsabilida<strong>de</strong> <strong>com</strong>o “co-cria<strong>dor</strong>”.A agressão à natureza, principalmente na exploração dos seus recursos naturais, <strong>em</strong>vista do <strong>de</strong>senvolvimento econômico, torna o meio ambiente cada vez mais “doente”. Estaexploração, além <strong>de</strong> irracional, é injusta. A poluição e a <strong>de</strong>struição do planeta afetam ascamadas mais pobres da população, sobretudo enfermos, mulheres e crianças.O mundo <strong>de</strong>senvolvido é responsável pelos 90% da poluição do planeta, pela qualsão prejudicadas também e, sobretudo, as populações do Sul do mundo. Em 1991, ainundação nas Filipinas, que matou três mil pessoas e que dispersou diversosmilhões, foi causada pelo <strong>de</strong>smatamento e pelas roçadas ilegais, que <strong>de</strong>ixaram asinclinações do terreno s<strong>em</strong>pre mais s<strong>em</strong> vegetação. Deve-se ter presente ainda osdanos produzidos pela extinção das espécies viventes. O uso instrumental das novastecnologias continua a produzir as armas nucleares, a guerra química, a <strong>de</strong><strong>ser</strong>tização<strong>de</strong> terrenos férteis, o envenenamento da água e da terra, o estrago das florestas. 67O <strong>de</strong>safio que <strong>em</strong>erge <strong>de</strong>sta crise é o <strong>de</strong> efetivar um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento quepossibilite melhor condição <strong>de</strong> vida para todos s<strong>em</strong> agressão e <strong>de</strong>struição dos recursosnaturais. A qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida das pessoas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do meio ambiente saudável.656667Cf. PAOLA, D. N. G. Ecologia e saú<strong>de</strong>. in: Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saú<strong>de</strong>. op. cit., p. 37:“O termo ‘ecologia’ assumiu hoje um significado muito amplo, que abraça o discurso sobre o habitatenquanto ambiente natural, enquanto corpo <strong>humano</strong> e enquanto ambiente social”.Cf. ibid., p. 370: “A crise ecológica evi<strong>de</strong>nciou que <strong>em</strong> nome <strong>de</strong> uma visão qualitativa do <strong>de</strong>senvolvimento énecessário repensar o objetivo otimista do progresso baseado na máxima produção e renúncias à manipulaçãodos bens naturais quando é indiscriminada e nociva. O probl<strong>em</strong>a ambiental tornou-se assim uma das gran<strong>de</strong>spriorida<strong>de</strong>s econômicas e sociais, exigindo dos agentes públicos e privados assunção <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>específica, <strong>com</strong> vistas à conciliação entre o crescimento econômico e a qualida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>senvolvimentoeconômico”.Ibid., p. 371.38


A dimensão global da <strong>de</strong>struição do meio ambiente mostra que pelo entrelaçamento darelação do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> <strong>com</strong> a natureza, toda a criação foi atingida pelo <strong>sofrimento</strong>. Em todosos níveis, cada criatura sofre a sua <strong>dor</strong>: “Pois sab<strong>em</strong>os que a criação inteira g<strong>em</strong>e e sofre as<strong>dor</strong>es <strong>de</strong> parto até o presente. E não somente ela. Mas também nós, que t<strong>em</strong>os as primícias doEspírito, g<strong>em</strong><strong>em</strong>os interiormente, suspirando pela re<strong>de</strong>nção do nosso corpo” (Rm 8,22).A fé cristã aponta as razões teológicas para a pre<strong>ser</strong>vação da vida do planeta e,conseqüent<strong>em</strong>ente, do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Sob a luz <strong>de</strong> Deus é que <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> consi<strong>de</strong>rada a relação do<strong>ser</strong> <strong>humano</strong> <strong>com</strong> a criação, <strong>em</strong> última análise. O teólogo Adolphe Gesché propõe três razõespertinentes porque se <strong>de</strong>ve pre<strong>ser</strong>vá-la:1) A terra é <strong>com</strong>o a casa do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>: “O céu é o céu <strong>de</strong> Javé, mas a terra, ele a <strong>de</strong>upara os filhos <strong>de</strong> Adão” (Sl 115,16). E ainda “Com efeito, assim diz Javé, o cria<strong>dor</strong> dos céus,ele é Deus, o que mo<strong>de</strong>lou a terra e a fez, ele a estabeleceu; não a criou <strong>com</strong>o <strong>de</strong><strong>ser</strong>to, antesmo<strong>de</strong>lou-a para <strong>ser</strong> habitada” (Is 45,18). O mundo dado ao <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> <strong>com</strong>o sua morada oconvida para a relação <strong>com</strong> o doa<strong>dor</strong>, que é Deus. Desta relação <strong>em</strong>erge a relação respeitosaque <strong>de</strong>ve existir entre o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> e o mundo.2) O sentido do “domínio” e do “submetei-a” (Gn 1,26-27). Criado à imag<strong>em</strong> es<strong>em</strong>elhança <strong>de</strong> Deus, por or<strong>de</strong>m hierárquica, o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> é constituído senhor da criação.Deve governar o mundo or<strong>de</strong>nadamente. A criação é um b<strong>em</strong> que lhe é próprio, mas que nãolhe pertence, um b<strong>em</strong> para guardar responsavelmente, valorizando cada uma <strong>de</strong> suaspotencialida<strong>de</strong>s intrínsecas, superando uma visão puramente utilitarista. 68 Ela <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong>pre<strong>ser</strong>vada <strong>com</strong>o terra <strong>de</strong> salvação dada ao hom<strong>em</strong>. 693) Porque a terra é morada do Logos divino: A título <strong>de</strong> eternida<strong>de</strong>: Des<strong>de</strong> antes dafundação do mundo a Sabe<strong>dor</strong>ia <strong>de</strong> Deus (seu logos) já estava ‘interessada’ neste mundo doshomens, on<strong>de</strong> se achará <strong>em</strong> sua casa assim <strong>com</strong>o ele se acha junto <strong>de</strong> Deus: “Eu estava junto<strong>com</strong> ele <strong>com</strong>o mestre-<strong>de</strong>-obras, eu era o seu encanto todos os dias, todo o t<strong>em</strong>po brincava <strong>em</strong>sua presença: brincava na superfície da terra, encontrando minhas <strong>de</strong>lícias entre os homens”(Pr 8, 30-31). A título <strong>de</strong> criação: “Porque nele foram criadas todas as coisas” (Cl 1,16),marca <strong>com</strong> seu selo toda teologia cristã. O Pai criou segundo o Ex<strong>em</strong>plar que o Verbo erapara ele. A título <strong>de</strong> encarnação: O prólogo Joanino diz que o Verbo veio para sua casa; dizque ele “se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). Deus criou o hom<strong>em</strong> para tornar possívela encarnação <strong>de</strong> seu Filho. É <strong>com</strong>o expressar o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> Deus ter a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> residir um6869Cf. LEONE. S. Ecologia. in: Dicionário <strong>de</strong> Bioética. São Paulo: Santuário; Aparecida-SP: Perpétuo Socorro,2001, p. 353.Cf. GESCHÉ, A. O Cosmo. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 79.39


dia nesta terra que é sua tanto quanto é nossa. A título <strong>de</strong> parusia: “Ele virá <strong>em</strong> sua glória”.No t<strong>em</strong>po que prece<strong>de</strong> o fim dos t<strong>em</strong>pos, antes, portanto, da plenitu<strong>de</strong> do Espírito, o Paiconfia ‘por um instante’ o julgamento do mundo ao seu Verbo, antes que este lho entregue: “Aseguir haverá o fim, quando ele entregar o Reino a Deus Pai, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>struído todoprincipado, toda autorida<strong>de</strong>, todo po<strong>de</strong>r” (1Cor 15,24). No espaço <strong>de</strong>sse t<strong>em</strong>po, o Verbo‘v<strong>em</strong> <strong>de</strong> novo’ para esta terra que é sua. É nesta terra, e não outro lugar, que o Pai lheentregará todas as coisas. É nesta terra, lugar <strong>de</strong> suas primeiras núpcias <strong>com</strong> a humanida<strong>de</strong>,que se prepara a mesa das núpcias eternas: “Eles virão do oriente e do oci<strong>de</strong>nte, do norte e dosul, e tomarão lugar à mesa no Reino <strong>de</strong> Deus” (Lc 13,29). A terra é, até o fim, lugar <strong>de</strong>Deus, morada on<strong>de</strong> seu Logos age, ‘Cujo Reino não terá fim’. 70CONCLUSÃOVimos neste capítulo que o probl<strong>em</strong>a do <strong>sofrimento</strong> s<strong>em</strong>pre esteve presente na vidados <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s, especialmente nas religiões. Muitas vezes as respostas para este enigmaconduz<strong>em</strong> à resignação fácil e à apatia. A imag<strong>em</strong> divina que daí <strong>em</strong>erge é a <strong>de</strong> um Deus queenvia e se agrada do <strong>sofrimento</strong> dos seus filhos. “Recuperamos” alguns aspectos constitutivosdo <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> <strong>em</strong> sua relação criatural <strong>com</strong> Deus: sua plena autonomia e liberda<strong>de</strong> <strong>diante</strong> <strong>de</strong>si mesmo, <strong>de</strong> Deus, dos outros e da criação. Isto nos levou à consi<strong>de</strong>ração da responsabilida<strong>de</strong>humana <strong>em</strong> muitos <strong>sofrimento</strong>s, mas não <strong>em</strong> todos. Perceb<strong>em</strong>os também que não está <strong>em</strong>Deus a causa dos males <strong>humano</strong>s. Pelo contrário, na perspectiva da revelação cristã, o Cria<strong>dor</strong>se coloca ao lado <strong>de</strong> suas criaturas e contra os <strong>sofrimento</strong>s que as afetam, se apresentando<strong>com</strong>o seu parceiro no <strong>com</strong>bate contra o mal. Isso vale dizer particularmente da velhice quenão se i<strong>de</strong>ntifica simplesmente <strong>com</strong> <strong>sofrimento</strong>, porque o sentido da vida “abraça” tambémesta linda etapa da vida.Portanto, não estando no <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> n<strong>em</strong> <strong>em</strong> Deus a causa <strong>de</strong> todo o mal presente nomundo, nos <strong>de</strong>paramos <strong>com</strong> aqueles <strong>sofrimento</strong>s inexplicáveis, principalmente os que afetampessoas inocentes. Com a reflexão sobre o livro <strong>de</strong> Jó, vimos que “aproximar-se” da pessoaque sofre <strong>em</strong> solidarieda<strong>de</strong> <strong>com</strong> ela é o primeiro passo para uma superação efetiva do<strong>sofrimento</strong>. Na consi<strong>de</strong>ração sobre o inocente atingido pelos males <strong>de</strong> toda espécie e que nãose <strong>de</strong>sespera, perceb<strong>em</strong>os que o mal não é tão po<strong>de</strong>roso e que a presença <strong>de</strong> Deus é real <strong>em</strong>sua vida, fato que suscita esperança <strong>diante</strong> dos <strong>sofrimento</strong>s.70Cf. ibid., p. 77-79.40


Por fim <strong>de</strong>monstramos que a questão ecológica não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> ignorada na consi<strong>de</strong>raçãodas causas do mal <strong>diante</strong> da bonda<strong>de</strong> da criação e da culpabilida<strong>de</strong> humana por que estádialeticamente envolvida <strong>em</strong> sua extensão cósmica atual não somente <strong>em</strong> sua função <strong>de</strong>condição para uma vida humana mais saudável, <strong>com</strong> menos <strong>sofrimento</strong>s, mas por participar<strong>de</strong> todo projeto re<strong>de</strong>ntor <strong>de</strong> Deus.41


CAPÍTULO IIA ANTROPOLOGIA DO SOFRIMENTODE HUBERT LEPARGNEURINTRODUÇÃOA pergunta pelo por que da presença do mal que se manifesta nas <strong>dor</strong>es, nos<strong>sofrimento</strong>s e, principalmente, na morte <strong>de</strong> todos os <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s é a angustiante questãopelo seu sentido. Ela move i<strong>de</strong>ologias, religiões e cada pessoa <strong>em</strong> particular. Muitas dasrespostas dadas continuam lancinantes e s<strong>em</strong>pre atuais, a<strong>com</strong>panhando o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> <strong>com</strong>osua sombra.Nesse contexto, a fé cristã <strong>em</strong>erge radicalizando a questão <strong>diante</strong> da fé num Deusinteiramente bondoso e amoroso procurando e propondo uma resposta <strong>de</strong>finitiva. A Escriturae a Tradição teológica provam isso. Na socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna esgotou-se a força <strong>de</strong> convicçãodos tipos <strong>de</strong> respostas fáceis <strong>de</strong> uma catequese pré-mo<strong>de</strong>rna. É o que refletimos no primeirocapítulo. Sublinhamos, por isso, alguns aspectos da doutrina da criação que nos mostram queDeus não quer e n<strong>em</strong> é a causa do mal e do <strong>sofrimento</strong>: tudo o que ele fez é bom. O pecadooriginal não é resposta suficient<strong>em</strong>ente satisfatória ao probl<strong>em</strong>a do <strong>sofrimento</strong>; o mal que aíestá nos prece<strong>de</strong>, porém, <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte ele é conseqüência <strong>de</strong> nossas ações, livres eautônomas, marcadas por egoísmo e agressão à natureza; vimos que nossa finitu<strong>de</strong> (maisexplícita quando se trata do envelhecimento) naturalmente po<strong>de</strong> nos impor <strong>sofrimento</strong>s. Areflexão sobre o livro <strong>de</strong> Jó nos colocou <strong>em</strong> cheque <strong>diante</strong> do <strong>sofrimento</strong> do justo e, <strong>em</strong> últimaanálise, perceb<strong>em</strong>os que o <strong>sofrimento</strong>, tanto <strong>em</strong> sua percepção existencial quanto racional, éenigma para nós.Enten<strong>de</strong>mos que a reflexão teológica t<strong>em</strong> que apoiar o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> no <strong>com</strong>bate quetrava hoje contra o <strong>sofrimento</strong>, oferecendo el<strong>em</strong>entos que suscit<strong>em</strong> perspectivas <strong>de</strong> superaçãoe esperança nesta luta. Por isso, ela precisa se “renovar” constant<strong>em</strong>ente. Certa <strong>de</strong> que oprobl<strong>em</strong>a do mal e do <strong>sofrimento</strong> continuam atual, ela oferece várias pistas <strong>com</strong>o um <strong>ser</strong>viçoao <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> atingido pela <strong>dor</strong>. Uma <strong>de</strong>las é a que tenta pensar o <strong>sofrimento</strong> a partir domundo da saú<strong>de</strong>. No Brasil, um dos teólogos que pesquisou essa realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma profundafoi Hubert Lepargneur:42


Natural <strong>de</strong> Paris, o Padre Hubert Lepargneur está radicado no Brasil há cinqüentaanos. Antes <strong>de</strong> entrar na or<strong>de</strong>m dominicana e se or<strong>de</strong>nar sacerdote <strong>em</strong> 1949, doutorou-se <strong>em</strong>Direito <strong>em</strong> Cornell University, New York, além <strong>de</strong> estudos posteriores <strong>em</strong> Psicologia,Filosofia (<strong>com</strong> especialização <strong>em</strong> Filosofia Tomista) e Ecologia. Veio ao Brasil para ajudar o“Studium” dos fra<strong>de</strong>s prega<strong>dor</strong>es que se montava <strong>em</strong> São Paulo (Perdizes). Aí mesmo chegoua dirigir os Institutos Mater Christi <strong>de</strong> Formação Superior Religiosa e o <strong>de</strong> Pastoral daConferência dos Religiosos do Brasil nos anos 60. Depois <strong>de</strong> aprofundar seus estudos <strong>de</strong>filosofia <strong>em</strong> Montreal, Canadá (1967) voltou para lecionar <strong>em</strong> 1968 na Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<strong>de</strong> Minas Gerais (1968) e, <strong>em</strong> seguida, <strong>em</strong> diversos centros <strong>de</strong> ensino <strong>em</strong> São Paulo (entreoutros na Faculda<strong>de</strong> Nossa Senhora da Assunção). Em 1977 se transferiu da Or<strong>de</strong>m dosPrega<strong>dor</strong>es para a dos Ministros dos Enfermos, estabelecendo um contato permanente <strong>com</strong> o“mundo do <strong>sofrimento</strong>”, tornando-se um pesquisa<strong>dor</strong> do Núcleo <strong>de</strong> estudos e Pesquisas <strong>em</strong>Bioética do Centro Universitário São Camilo. A partir <strong>de</strong> então, <strong>com</strong>o teólogo moralista daOr<strong>de</strong>m Camiliana, Lepargneur publicou muitos artigos e uma série <strong>de</strong> livros, dos quaiscitamos aqui os mais importantes na área do <strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong>, <strong>com</strong> enfoque na área dasaú<strong>de</strong>: Evangelho da <strong>dor</strong> (1970); Esperança e Escatologia (1974); Antropologia doSofrimento (1985); Lugar atual da morte (1986); O <strong>de</strong>spertar dos doentes (1986); O doente,a doença e a morte (1987); Consciência, corpo e mente (1994); Bioética, novo conceito(1996); Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saú<strong>de</strong>, Verbetes: suicídio; <strong>sofrimento</strong> forado cristianismo; sacrifício <strong>em</strong> teologia; saú<strong>de</strong>: políticas do mundo; saú<strong>de</strong> e pluralismo;Revista: O Mundo da Saú<strong>de</strong>: Procurando fundamentação para a humanização hospitalar; Aliberda<strong>de</strong> da pessoa enfrenta <strong>sofrimento</strong> (2003).Quer<strong>em</strong>os aprofundar nossa pesquisa apresentando os vários eixos <strong>de</strong> sua reflexão enos perguntarmos, no final da exposição, se os el<strong>em</strong>entos que ele apresenta são suficientes, ouse é necessário que acrescent<strong>em</strong>os outros. Abordar<strong>em</strong>os, <strong>de</strong> maneira sintética, sua reflexãosobre o mal e a liberda<strong>de</strong> humana, Deus <strong>diante</strong> do mal, a <strong>dor</strong> e a doença, o <strong>sofrimento</strong> e amorte, segundo o título do nosso trabalho.1 O MAL: INEVITÁVEL QUESTIONAMENTO SOBRE DEUSRetomando a pergunta, já levantada no primeiro capítulo, <strong>de</strong> <strong>com</strong>o conciliar o mal quese experimenta <strong>com</strong> um Deus todo-po<strong>de</strong>roso e todo-bondoso, Lepargneur especifica: por queDeus criou o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> se a sua existência se torna uma <strong>de</strong>sgraça suportada por gran<strong>de</strong> parte43


da população? Isso quer dizer que o t<strong>em</strong>a do mal diz respeito também a Deus, a ponto que,existencial e teoricamente, para o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, Deus e o mal formam um só conjuntoprobl<strong>em</strong>ático. 1 E logo nosso autor afirma que a resposta teórica ao probl<strong>em</strong>a do mal ésegredo. Porém, sublinha:Se Deus criou o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> e tudo o que existe é porque valia a pena, mesmoquando se consi<strong>de</strong>ra tantos <strong>sofrimento</strong>s. Ter fé <strong>em</strong> Deus talvez seja isto: acreditar,aceitar, s<strong>em</strong> nenhuma evidência cabal que, no final, este mundo valia a pena, apesardo lixo da história. Afinal, Deus é um Ser responsável e livre. 2Já foi esclarecido no primeiro capítulo que não está <strong>em</strong> Deus a orig<strong>em</strong> do mal e do<strong>sofrimento</strong>, mas <strong>em</strong> parte se <strong>de</strong>ve à responsabilida<strong>de</strong> humana. Lepargneur, retomandotambém esta reflexão, afirma que o próprio livro do Gênesis quis isentar Deus do mal. Oreconhecimento <strong>de</strong> que a criação do mundo todo é boa (Gn 1,10.12.18.21.25), e <strong>em</strong> <strong>de</strong>staqueo <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> nele (Gn 1,31), r<strong>em</strong>ete à bonda<strong>de</strong> absoluta <strong>de</strong> Deus. Por essa razão, o malexistente nele é introduzido a partir do hom<strong>em</strong>, porém, ao r<strong>em</strong>ontá-lo à <strong>ser</strong>pente <strong>com</strong>osímbolo da idolatria, parece, ao mesmo t<strong>em</strong>po, situar o princípio do mal fora do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>.Afinal <strong>de</strong> contas, qual é mesmo a orig<strong>em</strong> do mal? Nessa perspectiva parece <strong>ser</strong> uma situaçãoinsolúvel que se agrava <strong>com</strong> a questão do dilúvio (Gn 6,5-6) 3 mesmo se o Gênesis resgate abonda<strong>de</strong> última <strong>de</strong> Deus (Gn 8,21-22).Mas nosso autor vai mais longe ainda afirmando que na linha do mal moral o Gênesis<strong>de</strong>ixa outro enigma quando Javé proíbe o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> se aproximar da “árvore doconhecimento do b<strong>em</strong> e do mal” (Gn 2,9.17;3,5.22). Por que a proibição? O discernimentomoral, na mo<strong>de</strong>rna antropologia teológica, não é constitutivo da pessoa humana?Discernimento que, na carta aos Hebreus, caracteriza o “hom<strong>em</strong> adulto” (Hb 5,14). Ou <strong>ser</strong>á atransgressão el<strong>em</strong>ento constitutivo do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>? 4A questão da culpabilização do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> continua no Novo Testamento. O termogrego “ponerós”, significando o mal, é usado 70 vezes. Contun<strong>de</strong>nte é 1Jo 5,19 “o mundointeiro está sob o po<strong>de</strong>r do Maligno”. Na perspectiva judaico-cristã, o pecado é o mal porexcelência. Mas se o pecado existe por conta da tentação, don<strong>de</strong> v<strong>em</strong> a tentação? Gênesisrespon<strong>de</strong> <strong>com</strong> a imag<strong>em</strong> enigmática da <strong>ser</strong>pente. No entanto, há outras respostas bíblicas:“Deus não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> provado pelo mal e a ninguém prova” (Tg 1,13); a tentação v<strong>em</strong> da1234LEPARGNEUR, H. Antropologia do Sofrimento. Aparecida-SP: Santuário, 1985, p. 125.LEPARGNEUR, H. Antropologia do Sofrimento. op. cit., p. 115-126.Cf. ibid., p. 127.Cf. ibid.44


própria cobiça (Tg 1,14); da própria língua (Tg 3,8); a tríplice tentação: “a concupiscência dacarne, a concupiscência dos olhos e o orgulho da riqueza, não v<strong>em</strong> do Pai, mas do mundo”(1Jo 2,16); do amor ao dinheiro, raiz <strong>de</strong> todos os males (1Tm 6,10); “o mal está <strong>em</strong> mim”(Rm 7,21). Contudo, <strong>em</strong> Rm 1,26-28 Paulo r<strong>em</strong>onta as tentações a Deus, <strong>com</strong>o vêm <strong>de</strong>le asdoenças e outros males (Ex 9; 15,26; Lv 26,16; Nm 12,10). 51.1 Simbólica bíblica do malPara Lepargneur, <strong>em</strong> perspectiva bíblica, o mal “aprisiona” o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> e a qu<strong>em</strong>Deus salva “libertando”. Mal, morte, prisão são quase sinônimos, opondo-se ao b<strong>em</strong> que é aliberda<strong>de</strong>. O mal é <strong>com</strong>o uma goela que engole e Deus é qu<strong>em</strong> arranca da goela da fera (Mq5,7; Am 3; Sl 7,3), ou das águas (Sl 69,15; 144,7), ou das re<strong>de</strong>s (Sl 91,3), ou da morte (Sl33,19), ou ainda do abismo (Sl 18,17). O mal é mais forte que o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, mas Deus maisforte que o mal. Javé faz Israel sair do Egito e atravessar o mar vermelho, faz seu profetaevadir-se da prisão, etc. e é qu<strong>em</strong> salva Jonas do ventre da baleia (Jn 2,10). Freqüent<strong>em</strong>ente omal aparece quando o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> carece <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, con<strong>de</strong>nando-o até a morte (Sl 3,22).Somente Javé po<strong>de</strong> salvá-lo. 6Na Bíblia, b<strong>em</strong> e mal são valores opostos que afetam o mundo. Supõ<strong>em</strong> um universo<strong>em</strong> <strong>de</strong>vir; no <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> supõe a t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> <strong>com</strong>o mediação da auto-realização. Mundo<strong>em</strong> <strong>de</strong>vir, o universo do b<strong>em</strong> e do mal é também mundo <strong>em</strong> sua <strong>com</strong>plexida<strong>de</strong>. No próprio <strong>ser</strong><strong>humano</strong> está a morte e a vida (2Cor 4,12). Paulo, por ex<strong>em</strong>plo, reflete sobre o mal que faz,mas não quer fazer e o b<strong>em</strong> que <strong>de</strong>seja fazer, mas não consegue (Rm 7,19). Essa dicotomiaafeta todo o universo das representações humanas: a liberda<strong>de</strong> milita contra o mal, a luzcontra as trevas, a transparência contra a opacida<strong>de</strong>, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> contra a alterida<strong>de</strong>, afi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> contra a infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, a alegria contra o <strong>sofrimento</strong>, o amor contra o ódio ou aindiferença. 7 T<strong>em</strong>-se experiência do mal porque se rechaça um universo que <strong>ser</strong>ia totalmenteabsurdo. Assim, ativo (mal <strong>de</strong> culpa) ou passivo (mal <strong>de</strong> pena), o mal não é apenas categoriado real, mas informa os modos bíblicos e <strong>humano</strong>s <strong>de</strong> pensar, julgar e falar.567Cf. ibid., p. 128.Cf. ibid., p. 120.Cf. ibid., p. 122. Aqui Lepargneur faz referência ao terrorismo <strong>com</strong>o manifestação profunda do mal. Se o malabsoluto não existe, <strong>de</strong>le a prática terrorista proporciona uma aproximação sintética bastante avançada,porque repousa sobre a negação total <strong>de</strong> valores tradicionais, dos imperativos milenares da sobrevivência dassocieda<strong>de</strong>s. Expressão mais cabal da barbárie. Somam-se ao terrorismo, os Campos <strong>de</strong> concentração doestanilismo, os hospitais psiquiátrico-repressivos da União Soviética, as torturas sist<strong>em</strong>aticamente praticadasnum terço dos estados.45


1.2 Que figura <strong>de</strong> Deus é <strong>com</strong>patível <strong>com</strong> o mal no mundo?Lepargneur sublinha que, <strong>diante</strong> dos <strong>sofrimento</strong>s <strong>humano</strong>s Deus parece se calar,parece que não existe, ou, pior, que é mal. Seguramente <strong>de</strong>terminante nesta reflexão é aimag<strong>em</strong> que se t<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong> <strong>com</strong>o ele se “relaciona” <strong>com</strong> o mal. Nisso, trata-se <strong>de</strong>ob<strong>ser</strong>var a relação existente entre o mal e a liberda<strong>de</strong> divina. 8O Deus judaico-cristão é o Cria<strong>dor</strong> personalizado, não apenas imanente ao cosmos,que participa <strong>de</strong> seu <strong>ser</strong>, mas transcen<strong>de</strong>nte, inefável, distinto <strong>de</strong> toda realida<strong>de</strong> visível ouinvisível. A ele se atribui as qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Bonda<strong>de</strong>, Liberda<strong>de</strong> e Soberano Po<strong>de</strong>r. O mistério<strong>em</strong>erge na consi<strong>de</strong>ração da existência do mal. De on<strong>de</strong> ele surge? Impossível conciliá-lo <strong>com</strong>as qualida<strong>de</strong>s atribuídas a Deus:Esse é o segredo da esfinge que nenhum hom<strong>em</strong> vivo resolve. Resolvê-lo <strong>ser</strong>ia ver aDeus, conhecer seu segredo; apesar das Revelações e das pretensões <strong>de</strong> muitasteologias, ou neo-religiões, esse segredo permanece b<strong>em</strong> guardado. Resta-nos girar<strong>em</strong> torno <strong>de</strong>ssa antinomia fundamental. 9O mal possui evidências. Ele se manifesta física e mentalmente, numa perseguiçãoimplacável ao <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Nesta trama, o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> busca a Deus espiritualmente, a muitocusto, s<strong>em</strong> evidências. O mal “aprisiona” a liberda<strong>de</strong> humana que é orientada para o encontro<strong>com</strong> aquele que, perfeitamente livre, está acima da or<strong>de</strong>m do mal <strong>de</strong> forma invulnerável.Porém:A história do cristianismo, religião do Logos Encarnado questiona <strong>em</strong> nossos diasessa invulnerabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus; e se o Ser Supr<strong>em</strong>o é vulnerável, <strong>com</strong>o po<strong>de</strong>ria <strong>ser</strong>totalmente livre? A liberda<strong>de</strong> é para a felicida<strong>de</strong> ou é precária, limitada,condicionada, meio frustrada. 10Lepargneur diz que Deus, ao criar o mundo, entrou na história humana. Esta históriasofre a presença do mal e, o hom<strong>em</strong>, ao esquivar-se <strong>de</strong> sua responsabilida<strong>de</strong>, provoca sombrassobre a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> sua infinita felicida<strong>de</strong> e do seu Po<strong>de</strong>r. Se Deus existe, por que existe algoque não seja Deus? Se Deus é plena Luz, por que tantas trevas ofuscando sua imag<strong>em</strong>? Porque Deus não é mais evi<strong>de</strong>nte para que se creia mais no seu nome? Mesmo o crente não t<strong>em</strong>resposta sobre esse Deus “enigmático”. 11891011Cf. ibid., p. 129.Ibid.Ibid., p. 130.Cf. ibid., p. 131.46


O mal, diz nosso autor, é a ausência <strong>de</strong> finalida<strong>de</strong> que po<strong>de</strong> levar ao suicídio. Noentanto, a imensa maioria dos <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s, motivada pela fé e pela esperança, agüenta as<strong>dor</strong>es e <strong>sofrimento</strong>s, <strong>com</strong>o foi visto no capítulo anterior à luz da figura <strong>de</strong> Jó.A <strong>com</strong>patibilida<strong>de</strong> entre o Deus Bom e o mal que se enfrenta encontra-se <strong>em</strong> duasrestrições: o Po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus não é tal <strong>com</strong>o imaginamos, numa projeção do po<strong>de</strong>r aoinfinito; o mal que enfrentamos, por pior que seja, não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> tão intolerável n<strong>em</strong>tão importante <strong>com</strong>o o pensamos quando golpeados. 121.3 O mal e a liberda<strong>de</strong> humanaPara nosso autor, a experiência do <strong>sofrimento</strong> levanta a pergunta sobre o malrelacionado à liberda<strong>de</strong> do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, também já inicialmente refletida no primeiro capítulo.Mal absoluto não t<strong>em</strong> existência porque carece <strong>de</strong> substância. Ele existe <strong>em</strong> relação ao nosso<strong>ser</strong> <strong>com</strong>o a alienação <strong>em</strong> relação à pessoa, que possui necessida<strong>de</strong>s e aspira à própriarealização. O mal é aquilo contra o qual se chocam essas aspirações. 13 Contudo, o mal não éapenas doença da liberda<strong>de</strong> humana e do <strong>ser</strong>, mas também da <strong>com</strong>preensão e intelecção.Assim, jamais se encontrarão respostas satisfatórias para a questão. Mas o mal existe <strong>com</strong>orealida<strong>de</strong> cruel a atingir o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, sua família e o mundo inteiro e não há outra saída anão <strong>ser</strong> assumi-lo numa perspectiva espiritual, po<strong>de</strong>ndo <strong>ser</strong> uma experiência negativa oupositiva. 14O teólogo francês reflete sobre e experiência do mal que se apresenta <strong>de</strong> duas formas:o mal <strong>de</strong> pena (<strong>dor</strong>, <strong>sofrimento</strong>) e o mal <strong>de</strong> culpa (pecado, responsabilida<strong>de</strong> pessoal). Oprimeiro é uma <strong>de</strong>sgraça, um aci<strong>de</strong>nte, uma doença. O segundo é a experiência do mal <strong>com</strong>opecado, a <strong>de</strong>cisão errada da própria pessoa ou <strong>de</strong> outros, a corrupção, a mentira. Asubjetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> sofre é <strong>de</strong>terminante na “leitura” <strong>de</strong>ssas experiências. E aqui aliberda<strong>de</strong> humana é posta <strong>em</strong> questão. O pensamento religioso ten<strong>de</strong> a subordinar o mal <strong>de</strong>pena ao mal <strong>de</strong> culpa, ao passo que a secularização ten<strong>de</strong> a dissolver o mal <strong>de</strong> culpa e areduzir o mal <strong>de</strong> pena por processos tecnológicos. 15 A tendência técnica atual, abusiva ou não,é a <strong>de</strong> inverter a assimilação: o mal <strong>de</strong> culpa <strong>ser</strong>ia uma espécie <strong>de</strong> mal psicossomático,perturbação doentia <strong>com</strong>o outras, reparável através <strong>de</strong> curas psicanalíticas ou afins. Essa<strong>de</strong>svinculação não significa o <strong>de</strong>sconhecimento da importância fundamental do probl<strong>em</strong>a12131415Ibid., p. 132.Cf. ibid., p. 115-116.Cf. ibid., p. 117.Cf. ibid., p. 118.47


moral <strong>com</strong> ou s<strong>em</strong> contextualização religiosa. Não se nega o íntimo envolvimento do conceito<strong>de</strong> Deus e da experiência do mal na mente e na experiência humana. A resposta que se adota arespeito <strong>de</strong> Deus altera a <strong>ser</strong>enida<strong>de</strong> <strong>com</strong> a qual convém equacionar o probl<strong>em</strong>a do<strong>sofrimento</strong>. O mal permanecerá para muitos a maior hipoteca, tanto sobre a existência quantosobre a bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus ou seu po<strong>de</strong>r soberano na criação inteira. 16O teólogo indica dois pontos preliminares na reflexão sobre o <strong>sofrimento</strong>: 1) a <strong>dor</strong> nãoestá, hoje, tecnicamente vencida; 2) a <strong>dor</strong> e o <strong>sofrimento</strong> tão longe estão <strong>de</strong> constituir o malabsoluto, que t<strong>em</strong>os sérias razões para pensar que são indispensáveis no dinamismo individuale coletivo do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> na história. Diante <strong>de</strong> alguém que está doente ou é vítima <strong>de</strong>qualquer outro tipo <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong>, cumpre uma preocupação para <strong>com</strong> a esperança que fazviver. Este lado objetivo traduz a importância da consciência na percepção da <strong>dor</strong> e naelaboração do <strong>sofrimento</strong>. Este t<strong>em</strong> algo <strong>de</strong> intransferível, por <strong>ser</strong> indizível. O sofre<strong>dor</strong> t<strong>em</strong>que se explicar a si mesmo o porquê do que lhe ocorre: essa é a raiz da Antropologia doSofrimento.No discurso atual, sublinha Lepargneur, a principal revolução ocorrida <strong>com</strong> o<strong>sofrimento</strong> é que sua referência causal e finalizante, que referia o <strong>sofrimento</strong> à culpa ou àprovação divina (para armazenarmos méritos, por ex<strong>em</strong>plo), <strong>de</strong>ixou lugar à referencia secular,prática ou projetiva, <strong>de</strong> <strong>com</strong>o fazê-lo <strong>de</strong>saparecer. O sujeito e a socieda<strong>de</strong> un<strong>em</strong>-se para tirar a<strong>dor</strong> da consciência ou, <strong>com</strong>o último recurso, a consciência da <strong>dor</strong>. O passo seguinte <strong>ser</strong>á ainvenção <strong>de</strong> um direito à ausência da <strong>dor</strong>, que o cidadão vai impor à socieda<strong>de</strong>, exigindo<strong>com</strong>pensação <strong>em</strong> caso <strong>de</strong> falha? 171.4 Em que o mal diz respeito à liberda<strong>de</strong> humana?Lepargneur ressalta que o mal <strong>de</strong>corre radicalmente do caráter inevitavelmentelimitado da criação. No entanto, <strong>com</strong>o já vimos <strong>em</strong> nossa pesquisa, o teólogo enfatiza que osprincipais males que afetam a humanida<strong>de</strong> vêm do pecado, da culpa, da falta, do erro <strong>humano</strong>.A culpa é o mal especificamente <strong>humano</strong>, mal da vonta<strong>de</strong> livre, porque a vonta<strong>de</strong> qualifica apessoa. Isso implica a conversão do querer e a correção das maléficas conseqüências dos atosirreversíveis. 18161718Cf. ibid., p. 222-223.Cf. ibid., p. 245.Cf. ibid., p. 136.48


Nosso autor critica o abuso do conceito <strong>de</strong> “pecado coletivo” <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento dasresponsabilida<strong>de</strong>s individuais. Um pecado coletivo é dividido <strong>em</strong> <strong>com</strong>ponentes individuais,senão é puro mito para exonerar uma coletivida<strong>de</strong>. A liberda<strong>de</strong> individual exercida na práticada vida é a condição da salvação e não a totalida<strong>de</strong> da salvação. S<strong>em</strong> liberda<strong>de</strong> não háculpabilida<strong>de</strong>, portanto não há salvação da culpabilida<strong>de</strong>. O mal está aí e aí <strong>de</strong>ve estar tambéma liberda<strong>de</strong>, para que o mundo não seja totalmente um absurdo. 19A socieda<strong>de</strong> é um reflexo dos grupos que a dominam. O que cada pessoa julga <strong>ser</strong>“mal” t<strong>em</strong> <strong>com</strong>o pano <strong>de</strong> fundo o ethos coletivo. Emerge daí o probl<strong>em</strong>a ético das estruturascoletivas. Estruturas injustas são produtos da liberda<strong>de</strong> humana que caracterizam uma formado mal. Uma estrutura social <strong>de</strong>veria possibilitar a convivência pacífica entre todos noexercício pleno da liberda<strong>de</strong>. Porém, a iniqüida<strong>de</strong> das estruturas dá vazão à prepotência <strong>de</strong>alguns <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento do legítimo exercício da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> outros, <strong>em</strong> geral das massas.O mal é inimigo do b<strong>em</strong> <strong>com</strong>um e, na sua raiz, está a culpabilização exagerada e malorientada por parte da civilização e <strong>de</strong> suas religiões tradicionais. Exagerando o alcance daliberda<strong>de</strong> humana por i<strong>de</strong>alismo, supondo a plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa liberda<strong>de</strong> <strong>com</strong>o hipótese normal,acarretaram uma culpabilização que transformou o passado <strong>em</strong> prisão interior. 20Nesse contexto Lepargneur afirma que a maior e pior parte do mal que atinge os <strong>ser</strong>es<strong>humano</strong>s neste século é o mau uso da fraca liberda<strong>de</strong>. E questiona: podia o hom<strong>em</strong>, frouxo<strong>com</strong>o o conhec<strong>em</strong>os, ter evitado essa fraqueza da culpa que trouxe outras fraquezas <strong>em</strong>ultiplicou os males? 21 Mais uma vez: a questão é insolúvel. Não somos opostos à liberda<strong>de</strong>,tanto assim que ela integra <strong>de</strong> fato a <strong>de</strong>finição e a natureza do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Lepargneurconclui: “Sejamos livres mo<strong>de</strong>stamente, corajosamente, <strong>de</strong> maneira responsável e discreta:talvez essa maneira e norma seja melhor que <strong>ser</strong> livre retoricamente”. 2219202122Cf. ibid.Cf. ibid., p. 138: “Daí a teoria da culpa, cujos t<strong>em</strong>as se mantêm <strong>de</strong> Platão a Kant, passando pelo pensamentocristão. A atribuição da liberda<strong>de</strong> ao hom<strong>em</strong> chega a carregá-lo duma responsabilida<strong>de</strong> e duma culpabilida<strong>de</strong>que são apenas a sombra da própria liberda<strong>de</strong>” (GUSDORF, G. Signification humaine <strong>de</strong> la liberté. Payot,1962, p. 256. citado por LEPARGNEUR, H. Antropologia do Sofrimento. op. cit., 138).Cf. ibid., p. 139: “Qu<strong>em</strong> vai respon<strong>de</strong>r, senão por um a priori que nada prova? L<strong>em</strong>br<strong>em</strong>os as palavras doGran<strong>de</strong> Inquisi<strong>dor</strong>, <strong>de</strong> Dostoievski, a Cristo-Cria<strong>dor</strong>: “Tu te fizeste um conceito muito alto do hom<strong>em</strong>. Podiaele realizar o que realizaste? A estima que tens por ele prejudicou tua <strong>com</strong>i<strong>ser</strong>ação. Exigiste <strong>de</strong>mais, apesar<strong>de</strong> tê-lo amado mais do que a ti mesmo. Estimando-o menos, tu lhe terias imposto uma carga mais leve, mais<strong>em</strong> harmonia <strong>com</strong> teu amor”. Esta carga, s<strong>em</strong> dúvida, é a liberda<strong>de</strong>. Transferir a culpa <strong>de</strong> Adão para Eva nãoresolve; Eva falhou por causa da Serpente, e a Serpente por falta <strong>de</strong> qu<strong>em</strong>? Qu<strong>em</strong> assumirá, s<strong>em</strong> tr<strong>em</strong>er, aresponsabilida<strong>de</strong> não do primeiro <strong>de</strong>slize, mas da primeira fissura que permitiu o primeiro <strong>de</strong>slize? Qu<strong>em</strong>assumirá a responsabilida<strong>de</strong> da própria liberda<strong>de</strong>? Questões indiscretas, s<strong>em</strong> dúvida, irrespondíveis.Cf. ibid., p. 139.49


Dessa maneira o autor enriquece nossa reflexão ao dizer que <strong>em</strong> dois níveis o mal nãose i<strong>de</strong>ntifica <strong>com</strong> a liberda<strong>de</strong> humana: no nível da natureza e no nível da história. No nível danatureza, sua beleza e harmonia contrastam <strong>com</strong> sua cruelda<strong>de</strong>: chuva <strong>em</strong> excesso numaregião e seca noutra; erupções vulcânicas e terr<strong>em</strong>otos, epi<strong>de</strong>mias; t<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong>s e raios. Elarealiza seus fins <strong>em</strong> longo prazo, manejando cegamente massas <strong>de</strong> indivíduos <strong>com</strong> <strong>de</strong>sprezo <strong>em</strong>assacre, ignorando o b<strong>em</strong> e o mal. A natureza é fato, fenômeno, <strong>de</strong>terminismo e acaso, éirresponsável e o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> é sua vítima. O que não é “mal” para a natureza, freqüent<strong>em</strong>enteé um “mal” na escala humana e do nosso ponto <strong>de</strong> vista. Mesmo quando se vislumbra umafinalida<strong>de</strong> natural, esta não está sendo s<strong>em</strong>pre atingida: inúmeras espécies <strong>de</strong> <strong>ser</strong>es vivos já<strong>de</strong>sapareceram da crosta terrestre, s<strong>em</strong> colaboração humana, fenômeno puramente cósmico. 23No nível da história, numa solidarieda<strong>de</strong> cósmica, os erros <strong>humano</strong>s conquistam certaautonomia <strong>com</strong>o agentes causais que escapam ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> seus autores para adquirir forçacumulativa. 24 O mal que atinge a história humana po<strong>de</strong> não proce<strong>de</strong>r imediatamente das leisnaturais n<strong>em</strong> <strong>de</strong> algum erro do <strong>com</strong>portamento dos m<strong>em</strong>bros da socieda<strong>de</strong>. Muito <strong>sofrimento</strong>,muita crise individual ou <strong>de</strong> sub-grupos ocorr<strong>em</strong> <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> da dinâmica das civilizações,pelo jogo meio espontâneo das transformações culturais, brutalmente rápidas <strong>em</strong> nossaépoca. 252 A DORSegundo o teólogo francês, a <strong>dor</strong> é essencialmente um sinal <strong>de</strong> alerta para <strong>de</strong>nunciaruma disfunção, um traumatismo, um mal físico, localizado, pontual. A <strong>dor</strong> encontra sua razão<strong>de</strong> <strong>ser</strong> <strong>em</strong> perspectiva biológica. Ele <strong>ser</strong>ve-se do termo <strong>dor</strong> no seu sentido físico, <strong>de</strong> orig<strong>em</strong>corporal (s<strong>em</strong> exclusivismo), <strong>com</strong> os equivalentes estrangeiros: peine (francês; ou douleur),pain (inglês), Schmerz (al<strong>em</strong>ão), pathos ou pathé (<strong>em</strong> grego), dolor (tanto latim quanto <strong>em</strong>espanhol; <strong>em</strong> grego é doulos = escravo). A <strong>dor</strong> é que faz o paciente, que a experimenta <strong>em</strong>232425Cf. ibid., p. 141-142. E é nesse sentido que enten<strong>de</strong>mos nossa referência à questão ecológica no capítulo I (cf.p. 39-41 <strong>de</strong>ste trabalho).Cf. ibid., p. 143: “O juízo sobre o mal é tributário das flutuações do ethos, se não da política, <strong>de</strong>ste meio. Acausa do mal social é tarefa interpretativa que levanta as tradicionais disputas nos meios da economia e dapolítica. Estudos mo<strong>de</strong>rnos apontam que, a crise das instituições é, antes do mais, crise das liberda<strong>de</strong>s, e nãoo contrário”.Cf. ibid., p. 142-143 “Por ex<strong>em</strong>plo, tudo que po<strong>de</strong>mos agrupar <strong>em</strong> torno do probl<strong>em</strong>a da secularização: sãocrises <strong>de</strong> adaptação, <strong>de</strong>sajustes entre ecossist<strong>em</strong>as, rachas nas continuida<strong>de</strong>s, inovações misturando<strong>com</strong>ponentes objetivos e el<strong>em</strong>entos subjetivos” (ibid., p. 144).50


da <strong>dor</strong>. 29 Ao tratar da <strong>dor</strong> do outro, nosso autor afirma que o <strong>de</strong>spertar para sua existência<strong>de</strong>terminada parte do corpo. Ela revela <strong>em</strong> negativo as necessida<strong>de</strong>s do organismo. 26 A <strong>dor</strong>não precisa <strong>de</strong> finalida<strong>de</strong>, basta que haja função natural. Em perspectiva da bio-evolução, osentido da <strong>dor</strong> é o da auto<strong>de</strong>fesa e autopre<strong>ser</strong>vação. 27A atitu<strong>de</strong> humana <strong>diante</strong> da <strong>dor</strong> é <strong>de</strong> fundo religioso, tanto <strong>com</strong>o reação <strong>em</strong>otivaquanto <strong>com</strong>o tentativa <strong>de</strong> explicação. A partir daí se po<strong>de</strong> falar <strong>em</strong> sentido teológico da <strong>dor</strong>.No cristianismo, a reflexão sobre a <strong>dor</strong> propõe, ao crente que a experimenta, uma participaçãona salvação <strong>em</strong> Cristo. Participação pela qual a <strong>dor</strong> pessoal, unida à <strong>dor</strong> <strong>de</strong> Cristo, produz aRe<strong>de</strong>nção. A fé religiosa visa a atacar a <strong>dor</strong> na raiz para dissolvê-la ou conferir-lhe sentidoliberta<strong>dor</strong>. No entanto, quando se busca um sentido para a <strong>dor</strong>, beira-se o Mistério, isto é, oSagrado, para não evocar a Mística, afirma Lepargneur. 28A <strong>dor</strong> <strong>de</strong>sperta o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> para a dimensão <strong>de</strong> sua corporeida<strong>de</strong>, e, através <strong>de</strong>la,para o mundo dos valores. O <strong>sofrimento</strong> moral prolonga e orquestra a <strong>dor</strong> física quandoirradia na dimensão imaterial <strong>de</strong> nosso <strong>ser</strong>. A <strong>dor</strong> representa também a dimensão dahistoricida<strong>de</strong> e t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> humanas. Mais concretamente, a <strong>dor</strong> não é simplesmentet<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong>, mas luta contra o t<strong>em</strong>po. O probl<strong>em</strong>a é subsistir apesar da <strong>dor</strong> que corrompe,dissolve, e, por vezes, impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar. Essa é a essência filosófica da <strong>dor</strong>. Sua função é<strong>de</strong>spertar o self (”si próprio”) <strong>com</strong>o algo ameaçado na sua continuida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>spertar para osoutros <strong>com</strong>o rivais, <strong>de</strong>spertar para o mundo <strong>com</strong>o meio hostil e <strong>de</strong> difícil conquista, <strong>de</strong>spertarpara a lei <strong>com</strong>o castrada, <strong>de</strong>spertar para a divinda<strong>de</strong> <strong>com</strong>o supr<strong>em</strong>o recurso ou supr<strong>em</strong>orefúgio. Só <strong>com</strong> este <strong>em</strong>basamento filosófico e antropológico, é possível uma espiritualida<strong>de</strong>acontece quando é consi<strong>de</strong>rada <strong>com</strong>o apelo personalizado. A <strong>dor</strong> alheia contesta nossa<strong>ser</strong>enida<strong>de</strong> e reclama nossa abertura a ela <strong>com</strong>o condição da construção <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>mais humana. A <strong>dor</strong> do outro contesta o mundo que os outros construíram. Desse modo, a <strong>dor</strong><strong>de</strong>sperta para o amor e, a intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste se me<strong>de</strong> quando o agente é capaz <strong>de</strong> livr<strong>em</strong>entesofrer por ele. Aqui o sentido da <strong>dor</strong> é testar e test<strong>em</strong>unhar a realida<strong>de</strong> dos sentimentos. Há,26272829Cf. LEPARGNEUR, H. Lugar atual da Morte. Antropologia, medicina e religião. São Paulo: Paulinas, 1986,p. 9-10.Segundo Lepargneur, a questão da <strong>dor</strong> estaria ligada essencialmente à questão biológica. A <strong>dor</strong> existein<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> qualquer culpa original, na dinâmica da evolução animal; isto não significa que nossa<strong>dor</strong> seja puramente animal e menos ainda que o pecado não tenha aumentado a <strong>dor</strong> da humanida<strong>de</strong> (cf. ibid.,p. 9).Cf. ibid., p. 11-12.Cf. ibid., p. 17.51


<strong>com</strong> efeito, dois tipos <strong>de</strong> “<strong>de</strong>spertar”: o <strong>de</strong>spertar dos olhos que se abr<strong>em</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, por<strong>de</strong>sabrochar imanente; e a sacudida que nos ocorre vinda <strong>de</strong> fora. Ambos constitu<strong>em</strong> seusentido. 30Na consciência biológica e psicológica, a <strong>dor</strong> <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penha a função do “anti-<strong>ser</strong>”.Desperta porque provoca; ameaça <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição, visto que a saú<strong>de</strong> do <strong>ser</strong> é continuida<strong>de</strong>, paze harmonia. 31 Em geral, a <strong>dor</strong> fecha o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> sobre si e sua cruel vivência e o impe<strong>de</strong> <strong>de</strong>ver o outro. Falta aqui a <strong>em</strong>patia que se relaciona <strong>com</strong> o amor a si próprio <strong>com</strong>o condiçãopara amar o outro. 322.1 Sentido antropológico da <strong>dor</strong>Nosso autor reflete sobre a <strong>dor</strong> <strong>em</strong> nível <strong>de</strong> uma filosofia da natureza e <strong>de</strong> umafenomenologia biológica. Nesse sentido, é preciso distinguir “<strong>dor</strong> suportável” e “<strong>dor</strong>alienante”. A <strong>dor</strong> é um mal e <strong>com</strong>o tal <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> <strong>com</strong>batida. A <strong>dor</strong> <strong>com</strong>o alienação apela para asolução técnica, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre justificável, dos analgésicos, mas também s<strong>em</strong> fugir <strong>de</strong>les,<strong>com</strong>o, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> matéria <strong>de</strong> operações cirúrgicas ou <strong>de</strong> agonia. A técnica não dispensaa ética no <strong>com</strong>bate à <strong>dor</strong>, antes a ela <strong>de</strong>ve submeter-se.Para Lepargneur, o <strong>de</strong>sejo natural <strong>de</strong> fugir da <strong>dor</strong> se expressa na cultura <strong>com</strong>o umconjunto <strong>de</strong> práticas elaboradas para esse fim: a arte <strong>de</strong> vestir-se e construir para fugir do frio;a arte <strong>de</strong> caçar e cultivar para fugir da fome; as práticas religiosas para que entida<strong>de</strong>ssuperiores nos libert<strong>em</strong> das <strong>dor</strong>es que não sab<strong>em</strong>os <strong>com</strong>o extirpar <strong>de</strong> nossas vidas. A <strong>dor</strong> setransforma <strong>em</strong> <strong>sofrimento</strong> quando integrada numa cultura, quando vivida por umapersonalida<strong>de</strong> culturalizada:A função da cultura frente à <strong>dor</strong> é dupla: 1) Ela é responsável, ora através dapsicologia individual, ora através das relações sociais, pelo maior volume <strong>de</strong> <strong>dor</strong>que, <strong>em</strong> qualquer momento e <strong>em</strong> qualquer <strong>com</strong>unida<strong>de</strong>, pesa nos ombros dos <strong>ser</strong>es<strong>humano</strong>s (inferno é <strong>dor</strong>, diz a Igreja; inferno são os outros, diz Sartre); 2) Ela éresponsável pela assunção da <strong>dor</strong> <strong>com</strong>o ingrediente que amadurece o indivíduo e fazprogredir a <strong>com</strong>unida<strong>de</strong>. Cultura é troca, disse Lévi-Strauss; sim, inclusive <strong>de</strong><strong>sofrimento</strong>s. 3330313233Cf. ibid., p. 17-18.Cf. ibid., p. 18: “A <strong>dor</strong> é este fenômeno material e imaterial que contesta a continuida<strong>de</strong>, paz e harmonia.Não é por acaso que as contestações, revoluções e agressões são dolorosas: t<strong>em</strong> precisamente por função<strong>de</strong>spertar o corpo social, já que é difícil melhorá-lo s<strong>em</strong> assustá-lo, ameaçá-lo, sacudí-lo”.Cf. ibid. “A função da <strong>dor</strong> não é apenas s<strong>em</strong>ear a guerra e espalhar o medo. É Kierkegaard qu<strong>em</strong> nos adverteno seu Diário: Deve-se ter sofrido muito, antes que seja possível amar o próximo. É na morte e na renúncia asi que nasce o próximo” (ibid., p. 19).Ibid., p. 13.52


Através da cultura, a <strong>dor</strong> esten<strong>de</strong> seu domínio à quase totalida<strong>de</strong> das experiências eativida<strong>de</strong>s humanas, <strong>com</strong>o se <strong>de</strong>las fosse estímulo ou <strong>de</strong>safio.Em perspectiva <strong>de</strong> uma filosofia personalista, a <strong>dor</strong> é essencialmente a própria <strong>dor</strong>.Porém, ela mostra que a <strong>dor</strong> mais personalizada é a <strong>com</strong>unhão na <strong>dor</strong> da humanida<strong>de</strong> e esta,participação na <strong>dor</strong> cósmica, universal. Amor é <strong>com</strong>unhão, <strong>em</strong>bora possa separar; <strong>dor</strong> éseparação, <strong>em</strong>bora possa unir. Uma <strong>dor</strong> <strong>com</strong>um ou um <strong>com</strong>um medo da <strong>dor</strong> une a <strong>com</strong>unida<strong>de</strong>humana. Constata-se que o que o amor não consegue, o medo da <strong>dor</strong> po<strong>de</strong>. Deste modo, “osentido da <strong>dor</strong>” recebe mais um ingrediente: a <strong>dor</strong> que, por natureza dissolve, na históriacongrega e estimula a esperança. 34Filosofia personalista da <strong>dor</strong> significa também que meu corpo e meu espírito sãominha pessoa; então, igualmente, que minha alegria e minha <strong>dor</strong> são minha vida. A <strong>dor</strong>irrompe <strong>em</strong> nós pela violência, mas ao não po<strong>de</strong>r expulsá-la, ao acolhê-la, nós apersonalizamos. A cada um sua <strong>dor</strong>. A <strong>dor</strong> não é a rainha dos males (senão que sentidoteria?), mas seu firme acento ganha personalização ao se transformar <strong>em</strong> <strong>sofrimento</strong>, ganha,portanto, po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> irradiação através da psique e da cultura. A unida<strong>de</strong> personalista do espíritoe do corpo, da <strong>dor</strong> na própria vida exige que se assuma o que não se po<strong>de</strong> rechaçar, isto é, aprópria sabe<strong>dor</strong>ia. 35Se a <strong>dor</strong> fundamental origina-se na parte corporal e sensível do nosso <strong>ser</strong>, ganhandoinstantaneamente ou aos poucos dimensão e irradiação psíquicas, é inegável que o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>se inventa cada vez mais, à medida que se <strong>com</strong>plexificam sua cultura e socieda<strong>de</strong> <strong>com</strong>o a vidaindividual, <strong>dor</strong>es e <strong>sofrimento</strong>s <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> puramente psíquica, <strong>com</strong> repercussões afetivas efisiológicas, por vezes revestidas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> sofisticação. 362.2 Sentido ético da <strong>dor</strong> e liberda<strong>de</strong> humanaPara nosso teólogo, a <strong>dor</strong> extr<strong>em</strong>a, aquela que aliena, <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> <strong>com</strong>batida, o que nãosignifica po<strong>de</strong>r existir uma vida s<strong>em</strong> <strong>dor</strong>, <strong>com</strong>o já ressaltamos acima. A <strong>dor</strong> t<strong>em</strong> umasignificação íntima e pessoal <strong>de</strong> que cada pessoa é juiz, <strong>em</strong>bora só <strong>com</strong> o recuo do t<strong>em</strong>popossa avaliar o alcance real daquilo que foi sofrido. Importante é saber que a <strong>dor</strong> não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong>sist<strong>em</strong>aticamente rechaçada. A aversão a toda <strong>dor</strong> leva à sua medicalização e isto reduz acapacida<strong>de</strong> que possui todo hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> se afirmar <strong>em</strong> face do meio ou <strong>de</strong> tomar a343536Cf. ibid., p. 15. Como um ex<strong>em</strong>plo Lepargneur menciona a sindicalização dos operários.Cf. ibid., p. 15-16.Cf. ibid., p. 25-26.53


esponsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua transformação, capacida<strong>de</strong> <strong>em</strong> que consiste precisamente a saú<strong>de</strong>. A<strong>dor</strong> é assumida quando funciona <strong>com</strong>o estimulante mo<strong>de</strong>rada, tendo presente que saú<strong>de</strong> é umconjunto dinâmico <strong>de</strong> relações mútuas vividas no seio <strong>de</strong> grupos on<strong>de</strong> a <strong>de</strong>sgraça estáefetivamente transformada porque uns a <strong>com</strong>partilham <strong>com</strong> os outros. A ameaça da <strong>dor</strong>funciona <strong>com</strong>o estímulo para o progresso individual e coletivo, <strong>em</strong> prol da responsabilida<strong>de</strong> eautonomia. A gran<strong>de</strong>za do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> é <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r refletir sobre sua morte e sua <strong>dor</strong>. A buscado domínio da <strong>dor</strong> visa a saú<strong>de</strong> e a felicida<strong>de</strong> para nós e para os outros. 37A <strong>dor</strong> <strong>de</strong>sperta e po<strong>de</strong> construir, afirma Lepargneur. Se ela ajuda a <strong>de</strong>scobrir o sentidodo mundo, não se preten<strong>de</strong> que ela seja o nosso sentido. Ela é nosso parasito. Não é possíveleliminá-la totalmente, mas é possível amansá-la. A liberda<strong>de</strong> humana é robustecida porque<strong>de</strong>safia a <strong>dor</strong> e lhe outorga sentido. Seu sentido cultural é o sentido que nossa civilizaçãoconsegue lhe atribuir ou reconhecer s<strong>em</strong> trapacear; seu sentido pessoal <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do lugar quelhe re<strong>ser</strong>va nossa visão pessoal do mundo, nossa fé, nossa pobre experiência, nossa corag<strong>em</strong>ou nosso medo. Dar sentido à <strong>dor</strong> é <strong>de</strong>volver-lhe o troco ou agra<strong>de</strong>cer o favor, <strong>com</strong>o convier acada um; não é antes <strong>de</strong> tudo <strong>de</strong> endurecer a vonta<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong> acolhimento da <strong>com</strong>preensão.“Dor, dai-nos a mão, mas s<strong>em</strong> apertar”. 383 A DOR NA DOENÇANesse contexto, Lepargneur chama nossa atenção para o surpreen<strong>de</strong>nte progresso dasciências médicas e o enfraquecimento das referências religiosas que provocaram umacrescente valorização da vida biológica e do b<strong>em</strong>-estar saudável, chegando ao nível <strong>de</strong> umpaganismo da absolutização da vida física. Saú<strong>de</strong> orgânica e mental, conjugada <strong>com</strong>juventu<strong>de</strong> e força, significa uma vida física plenificada. Este domínio do corpo <strong>de</strong>monstra acentralização do eu no <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Na medida <strong>em</strong> que a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>scarta a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>vida após a morte, confere à vida humana um valor absoluto, isto é, que não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong><strong>com</strong>parada ou referenciada por ou <strong>com</strong> algo equivalente e superior.Neste contexto, a doença surge <strong>com</strong>o uma ameaça à plenificação da vida; <strong>com</strong>orealida<strong>de</strong> que con<strong>de</strong>na o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> à inutilida<strong>de</strong>; <strong>com</strong>o negação do eu; <strong>com</strong>o inimiga a <strong>ser</strong><strong>de</strong>rrotada a todo custo, pois não se concebe felicida<strong>de</strong> s<strong>em</strong> saú<strong>de</strong>. Quando não existe mais3738Cf. ibid., p. 22-23.Cf. ibid., p. 23.54


nada a fazer <strong>diante</strong> do seu po<strong>de</strong>r mortal, a doença recebe um anestesiamento religioso quenada acrescenta ao pensamento secularizado. Religião funciona <strong>com</strong>o ópio necessário nestahora. 393.1 O sentido biológico da doençaDo ponto <strong>de</strong> vista biológico, Lepargneur diz que a doença constitui uma ameaça ao <strong>ser</strong><strong>humano</strong>, mas não se po<strong>de</strong> dizer que o estado <strong>de</strong> sítio que estabelece não tenha por finalida<strong>de</strong> eefeito normal proporcionar estímulo às forças vitais <strong>em</strong> proveito do próprio indivíduosofre<strong>dor</strong>. A doença grave provoca a questão: <strong>ser</strong> ou não <strong>ser</strong>? Repentinamente a luta contra adoença se torna priorida<strong>de</strong>. O <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, neste estado, percebe-se dispensável <strong>de</strong> suasativida<strong>de</strong>s profissionais e outras ocupações. Isto proporcionará questionamentos cruciaissobre si mesmo. 40 Fará <strong>de</strong>scobrir que a pessoa <strong>em</strong> sua corporeida<strong>de</strong>, à qual se está ligado, quefunda o eu <strong>de</strong> cada um, que é para cada um o sustentáculo da existência do mundo (e nãoapenas no mundo), não escapa à lei da morte. A regra abstrata jamais oprimiu alguém; a suaaplicação é que custa. 41A doença <strong>de</strong>svela os limites do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Força à humilda<strong>de</strong>; <strong>de</strong>ita o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>altivo e o faz mudar as perspectivas:Coloca-o à mercê <strong>de</strong> seu ambiente, da pieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste, <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, <strong>de</strong> seuscuidados, <strong>de</strong> seus esquecimentos, <strong>de</strong> sua pouca paciência, <strong>de</strong> sua brutalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> suairrecusável atenção também; <strong>de</strong>sse meio que não foi feito para os doentes que,entretanto, não po<strong>de</strong>m dispensar. 42A doença proporciona condições privilegiadas para uma experiência da <strong>de</strong>sapropriação<strong>de</strong> si mesmo. A pessoa ferida pela doença não se possui integralmente. O corpo se lhe escapae sofre as influências que não são suas. Para o racionalista, a doença po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> a hora daabertura ao irracional. No estado <strong>de</strong> doença se vive estranhos paradoxos: <strong>de</strong> um horizontein<strong>de</strong>finidamente monótono se faz o caminho <strong>de</strong> uma nova evolução interior. Doença é39404142Cf. LEPARGNEUR, H. O doente, a doença e a morte. Implicações sócio-culturais <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>.Campinas-SP: Papirus, 1987, p. 187-188.Cf. LEPARGNEUR, H. Evangelho da <strong>dor</strong>. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 32. “A doença proporciona a dilaçãoinesperada para forçar um espírito que se <strong>em</strong>botava a dar atenção às verda<strong>de</strong>iras questões. T<strong>em</strong>po <strong>de</strong> doença,t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> <strong>de</strong>cantação. Faça-se <strong>de</strong>le o uso que qui<strong>ser</strong>, no final da revolta ou da purificação, a doençaproporciona <strong>com</strong> a provação o sinistro lazer <strong>de</strong>stinado à sua ruminação: o instrumento e seu modo <strong>de</strong><strong>em</strong>prego. É a partir <strong>de</strong>ssa conjunção da provação e das condições <strong>de</strong> imobilida<strong>de</strong> próprias à sua <strong>de</strong>stilação naconsciência que se elaboram os caracteres originais <strong>de</strong> uma psicologia <strong>de</strong> doente” (ibid., p. 33).Cf. ibid., p. 32-33.Ibid., p. 33.55


carência. Enriquece o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> pelo <strong>de</strong>spojamento das máscaras e dos valores quesustentavam sua in<strong>de</strong>pendência e que o alienavam. Com efeito, a doença não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> oirredutível inimigo <strong>de</strong>frontado no início. É preciso haver-se <strong>com</strong> ela quando se aproxima. 433.2 Doença e <strong>sofrimento</strong>A <strong>dor</strong> aponta para um incômodo físico, fisiológico até, que po<strong>de</strong> inexistir num<strong>sofrimento</strong> que, por sua vez, molesta a mente e perturba a <strong>em</strong>otivida<strong>de</strong>, <strong>em</strong>bora não hajaseparação absoluta no <strong>com</strong>posto <strong>humano</strong>. Para Lepargneur, o <strong>sofrimento</strong> diz respeito àconsciência reflexa da <strong>dor</strong>. É um incômodo que atormenta o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> consciente e queprojeta na imaginação seu próximo futuro. No <strong>sofrimento</strong> existe um substrato que escapa àciência e à técnica. N<strong>em</strong> tudo o que diz o doente po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> medido, verificado e medicado.Toda <strong>dor</strong> ou angústia confun<strong>de</strong>-se <strong>com</strong> solidão. Dor física não se <strong>com</strong>partilha, <strong>sofrimento</strong> sim.Entretanto, o que diz a pessoa <strong>em</strong> estado <strong>de</strong> <strong>dor</strong> ou <strong>de</strong> doença constitui o discurso maisrelevante sobre o <strong>sofrimento</strong>. A pessoa <strong>em</strong> estado <strong>de</strong> doença e que sofre por isso, revela umquadro <strong>de</strong> maior gravida<strong>de</strong>. 44O <strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong>safia a liberda<strong>de</strong> à procura <strong>de</strong> sentido. A perturbação po<strong>de</strong> vir <strong>de</strong> fora,mas qu<strong>em</strong> sofre é s<strong>em</strong>pre a pessoa. A atitu<strong>de</strong> reflexiva da autoconsciência do sofrer norteará o<strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong>. É imperativa aqui a noção <strong>de</strong> pessoa, que é atingida na sua liberda<strong>de</strong>.Como <strong>ser</strong> capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>safiar, <strong>de</strong> se expor, <strong>de</strong> arriscar, <strong>de</strong> inovar, <strong>de</strong> <strong>com</strong>prometer-se no t<strong>em</strong>poe no espaço, significa que a pessoa é dotada <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e não apenas <strong>de</strong> autoconsciência. Éliberda<strong>de</strong> condicionada, porém, reflexiva e <strong>ser</strong>ve <strong>de</strong> pré-requisito para o agir ético. A pessoase apresenta, portanto, <strong>com</strong>o capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> opção refletida, motivada <strong>em</strong>ocionalmente, mastambém, i<strong>de</strong>almente, direcionada pela razão:4344Cf. ibid., p. 34: “Algumas palavras <strong>de</strong> Léon Bloy encontram <strong>em</strong> nossa m<strong>em</strong>ória uma nova profundida<strong>de</strong>:‘Oh! Ela (doença) não mudou... Mas ela se ass<strong>em</strong>elha ainda mais. À força <strong>de</strong> sofrer <strong>de</strong> tal forma conquistou asua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>...’ O coração do hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> recantos que ainda não exist<strong>em</strong>, e on<strong>de</strong> a <strong>dor</strong> penetra a fim <strong>de</strong>que sejam”.Cf. LEPARGNEUR, H. A liberda<strong>de</strong> da pessoa enfrenta o <strong>sofrimento</strong>. in: O mundo da saú<strong>de</strong> 29 (3/2005), p.387. Acolhendo esta reflexão <strong>de</strong> Lepargneur, Edson Fernando <strong>de</strong> Almeida sublinha que a <strong>dor</strong>, <strong>de</strong> naturezaabsolutamente orgânica, estará <strong>de</strong>stinada a fazer-se <strong>sofrimento</strong> na medida <strong>em</strong> que o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> a refere aoutras experiências dolorosas passadas, presentes ou futuras. Neste sentido, a <strong>dor</strong> adquire uma dimensãopsíquica, repercutindo ou aumentando <strong>em</strong> proporções diversas o universo <strong>de</strong> outras <strong>dor</strong>es. Ver ALMEIDA, E.F. Do Viver apático ao Viver simpático. Sofrimento e morte. São Paulo: Loyola, 2006, p. 125.56


No <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, a reação <strong>em</strong>ocional, que brota dos sentidos e atinge o córtexcerebral via o tálamo, está potencialmente perpassada por uma motivação queultrapassa a corporeida<strong>de</strong> e <strong>em</strong>bréia sobre a misteriosa liberda<strong>de</strong> que aciona avonta<strong>de</strong>. 45Nosso autor consi<strong>de</strong>ra que só o amor transcen<strong>de</strong> o <strong>sofrimento</strong>. Há distinção entretranscen<strong>de</strong>r e suprimir um <strong>sofrimento</strong> pela erradicação <strong>de</strong> suas causas fisiológicas, ora pormedicação interna, ora por resolver os <strong>de</strong>safios externos que o suscitaram. A <strong>dor</strong> que causaimpacto interno na pessoa <strong>em</strong> estado <strong>de</strong> doença e a impulsiona para o <strong>sofrimento</strong> suscitadiversas reações: o sujeito ten<strong>de</strong> a se fechar na <strong>de</strong>fensiva, recolhe suas antenas externas, po<strong>de</strong>chegar a <strong>de</strong>sconfiar <strong>de</strong> um mundo do qual espera apenas ajuda, conforto, alívio, consolo, masreceia alguma piora; o interesse para o resto ten<strong>de</strong> a se diluir, ainda que as preocupações pelaspróprias responsabilida<strong>de</strong>s familiares ou profissionais contribuam pesadamente ao<strong>de</strong>sconforto interno.À resposta já expressa do sentido procurado e cultivado t<strong>em</strong>os que acrescentar ocoroamento do amor, do amor do outro pelo outro (disponibilida<strong>de</strong> e atenção, mais do que<strong>de</strong>sejo e <strong>de</strong>sfrute), <strong>com</strong>o a radical força centrifugada da saída <strong>de</strong> si, mesmo se não fazesquecer as próprias <strong>de</strong>sventuras e pa<strong>de</strong>cimentos. Não se po<strong>de</strong> ignorar a potencial forçaterapêutica <strong>de</strong>sta inervação. A experiência da vida, notadamente <strong>em</strong> seus momentosdolorosos, ajuda a formar a pessoa, a aprofundar a personalida<strong>de</strong> e seu auto-conhecimento.Isso nos é test<strong>em</strong>unhado até referente a Cristo: “Embora fosse filho, apren<strong>de</strong>u, contudo, aobediência pelo <strong>sofrimento</strong>” (Hb 5,8). 464 A TEOLOGIA CRISTÃ DIANTE DO SOFRIMENTO HUMANONo plano <strong>de</strong> Deus, sublinha o teólogo francês, a <strong>dor</strong> e a doença constitu<strong>em</strong> umprobl<strong>em</strong>a pessoal, (ex<strong>em</strong>plificado na pergunta dos discípulos <strong>de</strong> Jesus sobre a razão dacegueira do cego <strong>de</strong> nascença <strong>em</strong> Jo 9,2s), porém, permanece no âmbito do mistério e noconvite a unir o <strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong> ao <strong>sofrimento</strong> do Verbo <strong>de</strong> Deus. Isso significa dizer <strong>com</strong>4546Ibid., p. 389. “A sensibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>senrola-se num imediatismo potencialmente submetido à motivaçãovoluntária que chega a afetar o valor do fenômeno vivenciado pela pessoa. A <strong>dor</strong> do parto, no ex<strong>em</strong>ploclássico, qualquer <strong>dor</strong> <strong>de</strong> fato, po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> ou <strong>de</strong>veria <strong>ser</strong> dominada por uma finalização mental não imediatista,<strong>de</strong> amplo alcance, que po<strong>de</strong> tornar sua vivência menos trágica ou mais jubilosa. Quantos mártires se lançaramar<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente para as chamas ou os <strong>de</strong>ntes dos leões, no entusiasmo <strong>de</strong> uma fé viva brotando <strong>de</strong> livre eamorosa <strong>de</strong>cisão” (ibid.).Cf. ibid., p. 391.57


Paulo revestir-se da fraqueza e vulnerabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo que consiste no <strong>com</strong>partilhamentodo <strong>sofrimento</strong> pelo amor (2Cor 4,10; 11,29s e 12,5.9; Gl 2,19s).Uma vez fixado o lugar da doença na or<strong>de</strong>m da criação, a teologia coloca a questão naor<strong>de</strong>m da re<strong>de</strong>nção. A doença constitui um caso particular <strong>de</strong>sse <strong>sofrimento</strong> promovido ainstrumento <strong>de</strong> resgate enquanto test<strong>em</strong>unho <strong>de</strong> amor: “Então disse Jesus a seus discípulos:Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mt 16,24). Adoença é uma cruz não escolhida e aqui resi<strong>de</strong> uma das dificulda<strong>de</strong>s que parece interditar-lheo caminho da gran<strong>de</strong>za. Porém, a gran<strong>de</strong>za não está ligada à gratuida<strong>de</strong>: a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umasituação não se opõe à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu oferecimento, feito <strong>de</strong> espontaneida<strong>de</strong> conquistadainteriormente. 47Lepargneur rejeita a ligação <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong> direta e imediata entre pecado e doença.Reconhece a existência <strong>de</strong> uma fraqueza congênita, parte dos limites ou das hipotecas danatureza. O pecado, porém, aumentou o número <strong>de</strong>las. Criou novas doenças, ampliou ocampo <strong>de</strong> outros estados mórbidos. De sorte que o mundo tornado ‘maldito’ por João (1Jo5,19) é o que alimenta crimes, vícios, orgulhos e rebeliões, e cujo mal supura <strong>em</strong> algum pontodo corpo da humanida<strong>de</strong>; o efeito <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m na qual o hom<strong>em</strong> mergulhouinteriormente, não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> se esten<strong>de</strong>r ao reino dos corpos <strong>com</strong>o ao dos espíritos.Nesse sentido, o doente exprime a doença do mundo <strong>com</strong>o um escoamento do mal, dosabsessos, s<strong>em</strong> localizar a sua fonte: “O hom<strong>em</strong> consome-se <strong>com</strong>o a ma<strong>de</strong>ira apodrecida, <strong>com</strong>oveste roída pela traça” (Jó 13,28).Nosso autor diz que Deus utilizou a conseqüência do pecado <strong>com</strong>o instrumento <strong>de</strong>re<strong>de</strong>nção. A doença adquiriu nova dimensão. Seu mistério já não é apenas o <strong>de</strong> existir, mas o<strong>de</strong> existir ainda, mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>rramado o sangue re<strong>de</strong>ntor. A resposta é que o corpo doscristãos continua coletivamente a obra do Calvário. A cura, então, não é apenas a restituição<strong>de</strong> um equilíbrio da natureza, mas, ainda, antecipação da re<strong>de</strong>nção merecida no Calvário: istoé ao mesmo t<strong>em</strong>po fruto <strong>de</strong> um perdão conquistado e antecipação <strong>de</strong> uma herança para oaniquilamento das perturbações cósmicas que só se extinguirão no fim dos t<strong>em</strong>pos, sintoma<strong>de</strong> uma reconciliação <strong>com</strong> a or<strong>de</strong>m divina e profecia <strong>de</strong> um mundo futuro. Àquele querecupera a saú<strong>de</strong>, Cristo se dirige <strong>com</strong>o ao paralítico <strong>de</strong> Betsaida: “Eis que estás curado; nãopeques mais, para que não te suceda algo ainda pior” (Jó 5,14); ao que não t<strong>em</strong> cura, Deusfala <strong>com</strong>o Baldad a Jó: “Teu passado parecerá pouca coisa <strong>diante</strong> da gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> teu futuro”47Cf. LEPARGNEUR, H. Evangelho da <strong>dor</strong>. op. cit., 36.58


(Jó 8,7); a todos: “Em sua mão está a alma <strong>de</strong> todo <strong>ser</strong> vivo e o espírito <strong>de</strong> todo hom<strong>em</strong>carnal” (Jó 12,10). 484.1 Sofrimento e Mistério PascalAo <strong>sofrimento</strong> é conferido o sentido último, sobrenatural, quando colocado <strong>diante</strong> dapessoa <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré, diz nosso teólogo. Todo <strong>sofrimento</strong>, qualquer que seja suaetiologia, quando unido à Cruz <strong>de</strong> Cristo pela fé e carida<strong>de</strong> do paciente, participa (conscienteou inconscient<strong>em</strong>ente) da re<strong>de</strong>nção da humanida<strong>de</strong> e alcança, por isso, a salvação pessoal. Empoucas palavras, eis o sentido cristão da <strong>dor</strong>. O Corpo Místico, na terra, isto é, os crentesunidos pela fé e amor a Cristo constitu<strong>em</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> parto até o fim do mundo, <strong>em</strong><strong>dor</strong> no t<strong>em</strong>po (“Completo <strong>em</strong> meu corpo o que falta à paixão <strong>de</strong> Cristo”, Cl 1,24), <strong>em</strong> esperada b<strong>em</strong> aventurada eternida<strong>de</strong>. Todo <strong>sofrimento</strong> é convertível, cristianizável, recuperável parao sentido global da aventura humana. 49 Contudo, o teólogo <strong>de</strong>ixa claro que nada dispensa aluta contra o mal sob todas as suas formas (a libertação integral). Entretanto, exist<strong>em</strong> conflitos<strong>de</strong> valores, hierarquias <strong>de</strong> urgências, preços a pagar no caminho das metas que escolh<strong>em</strong>os. 50A respeito disso, o nosso autor afirma que Deus, para qu<strong>em</strong> justiça e mi<strong>ser</strong>icórdia seconfun<strong>de</strong>m, não se rejubila <strong>com</strong> o mal do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Esmagado pelo <strong>sofrimento</strong>, o <strong>ser</strong><strong>humano</strong> encontra no seu íntimo, <strong>em</strong> sua fé, este ponto <strong>de</strong> apoio: sabe que Deus dominaséculos e nações, não <strong>com</strong> seu <strong>de</strong>sprezo ou total ignorância, mas <strong>com</strong> sua sabe<strong>dor</strong>ia e suabenevolência. Esta certeza que ultrapassa as ciências humanas e todo verificável <strong>de</strong> que Deuschama o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> através do seu Verbo Eterno à <strong>com</strong>unhão <strong>de</strong> vida <strong>com</strong> ele, aponta para arazão última <strong>de</strong> sua fé e esperança. 51Em Cristo, Deus assumiu <strong>de</strong> certo modo o <strong>sofrimento</strong> dos <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s. AEncarnação é toda para a Re<strong>de</strong>nção e, esta é toda para o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, tal <strong>com</strong>o ele é. Tudo queé próprio do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, Cristo assume para levar até Deus, no fim da estrada do belo, no fim48495051Cf. ibid., p. 37.Cf. LEPARGNEUR, H. Lugar atual da morte. op. cit., p. 36. “Escrevendo isso não aceitamos diminuir <strong>em</strong>nada <strong>com</strong> estas palavras fáceis que enganam os incautos, o drama do mal, o mistério do <strong>sofrimento</strong>, aatrocida<strong>de</strong> indiluível <strong>de</strong> muitas <strong>dor</strong>es. Não preten<strong>de</strong>mos justificar nada. Qu<strong>em</strong> somos nós para arvorar-nos <strong>em</strong>advogado <strong>de</strong> Deus e <strong>de</strong> sua obra? Tentamos clarificar o pouco que está <strong>em</strong> nosso alcance. ‘Qu<strong>em</strong> me libertará<strong>de</strong>ste corpo <strong>de</strong> morte? ’ exclamava São Paulo (Rm 7,24). De que adianta negar o óbvio, escon<strong>de</strong>r as chagas,fugir dos limites?”.Cf. ibid.Cf. ibid., p. 177.59


da estrada do horror. Em Cristo, amor e <strong>com</strong>paixão não se limitam a unir <strong>ser</strong>es mortais efinitos; promove, isto sim, um <strong>com</strong>um <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> graça e glória. 52A mi<strong>ser</strong>icórdia <strong>de</strong> Deus se manifesta antes da vinda do Verbo. Javé se revelou <strong>com</strong>o o“Deus das mi<strong>ser</strong>icórdias”, segundo a expressão paulina. A escolha <strong>de</strong> Israel pelo Cria<strong>dor</strong> égesto <strong>de</strong> mi<strong>ser</strong>icórdia que culmina <strong>com</strong> o perdão oferecido ao povo tantas vezes. 53De uma a outra extr<strong>em</strong>ida<strong>de</strong> da história da salvação, da salvação <strong>de</strong> Israel, do mundo,<strong>de</strong> cada <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> particularmente, Javé-Deus repete: “Se ele me invocar, eu o ouvirei,porque sou <strong>com</strong>passivo” (Ex 22,26). Diz nosso teólogo:Ninguém t<strong>em</strong> razão nesta vida <strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperar da onipotência e da mi<strong>ser</strong>icórdiadivinas. Estamos longe <strong>de</strong> um Deus que não tivesse nada a manifestar-nos além daexigência <strong>de</strong> um <strong>de</strong>ver. Nossa salvação é primeiramente iniciativa e dom <strong>de</strong> Deus.Ele se interessa pela nossa salvação mais que nós mesmos. O sentido da <strong>de</strong>scobertadas mi<strong>ser</strong>icordiosas iniciativas divinas –s<strong>em</strong> milagres – é o sentido espiritual que<strong>de</strong>ve <strong>de</strong>senvolver-se <strong>em</strong> todos os cristãos. 54Para Lepargneur, o <strong>sofrimento</strong> plantou na mente humana uma interrogaçãofundamental e primordial. Basta lançar um olhar sobre as literaturas místicas, profanas ereligiosas para se perceber o papel cultural do <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o incentivo da procura queconstrói o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. 55 O teólogo pergunta: Será que nada há para se <strong>de</strong>scobrir na trama esabe<strong>dor</strong>ia do <strong>sofrimento</strong>, <strong>com</strong>o <strong>de</strong>scobriu Jó? A inteligibilida<strong>de</strong> do <strong>sofrimento</strong> ou do mal não<strong>ser</strong>á o sinal mais autêntico da transcendência <strong>de</strong> Deus? Sofrer é não enten<strong>de</strong>r, surpreen<strong>de</strong>r-se<strong>com</strong> uma contingência tão absurda que choca o espírito, tanto quanto o corpo. O <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>,ao ajuizar o assunto, ten<strong>de</strong> a apontar um culpado, <strong>com</strong>o uma espécie <strong>de</strong> meia-salvação da <strong>dor</strong>e do perigo. 565253545556Cf. ibid., p. 178.Cf. ibid., p.179: “Essa mi<strong>ser</strong>icórdia está presente mesmo on<strong>de</strong> a Justiça parece escondê-la aos nossos olhos,<strong>com</strong>o quando l<strong>em</strong>os <strong>em</strong> Ezequiel que “o olho divino não terá pieda<strong>de</strong>”. Mas Javé que teve pieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jó, t<strong>em</strong>ainda pieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jonas tragado pelo oceano: ele faz reerguer-se da fossa a sua vida; t<strong>em</strong> também pieda<strong>de</strong> dosninivitas que faz<strong>em</strong> penitência, <strong>com</strong>o o Pai do filho pródigo terá pieda<strong>de</strong> daquele que retorna”.Ibid.Cf. LEPARGNEUR, H. Antropologia do Sofrimento. op. cit., p. 214. Dois mil anos antes <strong>de</strong> nossa era, noescrito Egípcio ‘Diálogo do <strong>de</strong>sespero <strong>com</strong> sua alma’ po<strong>de</strong>mos ler: “A qu<strong>em</strong> falar hoje? Estou esmagadopela miséria na ausência <strong>de</strong> todo confi<strong>de</strong>nte. A morte está <strong>diante</strong> <strong>de</strong> mim, <strong>com</strong>o quando o céu se <strong>de</strong>scobre,<strong>com</strong>o quando um hom<strong>em</strong> passa pela iniciação...’ Na mesma época, outro po<strong>em</strong>a similar nascia na Babilônia,Louvarei o Senhor da sabe<strong>dor</strong>ia, on<strong>de</strong> l<strong>em</strong>os: ‘Andava <strong>com</strong>o príncipe e agora tornei-me <strong>com</strong>o escravo. Acólera <strong>de</strong> meus <strong>com</strong>panheiros me <strong>de</strong>struiu. O dia é suspiro e a noite lágrimas. O mês é silêncio e o ano luto’.De redação mais tardia, os ju<strong>de</strong>u-cristãos conhec<strong>em</strong> no mesmo estilo as Lamentações Bíblicas <strong>de</strong> Isaías, olivro <strong>de</strong> Jó, os salmos <strong>de</strong> g<strong>em</strong>idos e outros trechos proféticos. Quase cont<strong>em</strong>porâneas, as tragédias gregasgiram <strong>em</strong> torno do Destino que esmaga impiedosamente: ‘Clamarei alto meus <strong>sofrimento</strong>s infinitos’, conta ocoro dos persas (Ésquilo)” (Ibid., p. 214-215).Cf. ibid., p. 215.60


O <strong>sofrimento</strong> é a presença do mal no corpo e na mente do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, o que levantatoda a probl<strong>em</strong>ática da simbólica do mal, expressa na linguag<strong>em</strong>, nos rituais, na arte,especialmente na arte cristã. 57Durante longos séculos, <strong>em</strong> contexto cristão, a resposta essencial à <strong>dor</strong> era a fé <strong>em</strong>Deus, ora por parte do sofre<strong>dor</strong> para agüentá-la, ora por parte daquele que ajudava qu<strong>em</strong>sofria. Na difundida obra do século passado Cristianismo e os T<strong>em</strong>pos Presentes, <strong>de</strong> Mgr.Dougaud se lê:Quanto mais reflito, mais me surpreen<strong>de</strong> o pouco que pu<strong>de</strong>ram os homens arespeito do probl<strong>em</strong>a da <strong>dor</strong>. Há seis mil anos (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a criação do mundo, nocálculo da época) que a <strong>dor</strong>, feita abutre <strong>de</strong> Prometeu, abre sulcos <strong>em</strong> nosso peito,esmaga o nosso coração. E o que faz<strong>em</strong>os face à <strong>dor</strong>? Ou negamo-la, o que éloucura; ou tentamos suprimi-la, o que não passa <strong>de</strong> sonho; odiamo-la, o que sópo<strong>de</strong> aumentá-la; ou tentamos distrair-nos e esquecê-la, o que acrescenta uma nova<strong>dor</strong> à outra. 58Por outro lado, Lepargneur consi<strong>de</strong>ra que a religião ensinou a amar a <strong>dor</strong>. A <strong>dor</strong> tornaseobjeto <strong>de</strong>sta paixão chamada amor. Talvez seja isto que a Religião tentou <strong>de</strong> mais sublimesobre a terra. T<strong>em</strong>os <strong>de</strong> reconhecer que se isso não é sonho, é solução <strong>com</strong>pleta, radical e,evi<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente divina do probl<strong>em</strong>a da <strong>dor</strong>. Muitas outras pessoas que não po<strong>de</strong>m negar a <strong>dor</strong> et<strong>em</strong> sabe<strong>dor</strong>ia para suprimi-la, s<strong>em</strong> influência da religião, curvam a cabeça sob seus golpes esegu<strong>em</strong> <strong>em</strong> frente, mudas, silenciosas, <strong>de</strong>sesperadas. Os livros que enaltec<strong>em</strong> a <strong>dor</strong> quase nãopenetram mais a cultura secularizada do nosso t<strong>em</strong>po. O núcleo do pensamento neste âmbito éque somente <strong>com</strong> a religião cristã é possível suportar a condição humana. O probl<strong>em</strong>a é que amaioria não está interessada <strong>em</strong> vivência cristã ou fé católica. 59Um olhar sobre os progressos e as limitações da medicina atual ilustra o que se po<strong>de</strong>esperar na luta para eliminar a <strong>dor</strong> e o <strong>sofrimento</strong>. Simultaneamente os crentes <strong>de</strong>scobr<strong>em</strong> alimitação do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus e os doentes a limitação do po<strong>de</strong>r da medicina. 6057585960Cf. ibid., p. 216: “Nesta, há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> representar as forças hostis que espreitam o hom<strong>em</strong> e armam-lheciladas, barram-lhe o caminho, esforçam-se por <strong>de</strong>sviá-lo da salvação. As figuras do mal <strong>de</strong>v<strong>em</strong> aguçar suavigilância”.Ibid., p. 217.Cf. ibid., p. 218: “Não <strong>ser</strong>á mais fácil chegar a acordos pragmáticos na base <strong>de</strong> um humanismo ateu, do queesperar a conversão do mundo ao Vaticano e às suas doutrinas antes <strong>de</strong> conseguir condições mínimas <strong>de</strong>coexistência humana?”.Cf. ibid., p. 219: “Trata-se amiú<strong>de</strong> da mesma <strong>dor</strong>, do mesmo <strong>sofrimento</strong>. Haverá um terceiro responsável?Depois do Destino, o Pecado; <strong>de</strong>pois do Pecado, a Doença; e <strong>de</strong>pois?”.61


4.2 Sofrimento e mi<strong>ser</strong>icórdia <strong>em</strong> Cristo: a resposta da <strong>com</strong>paixãoA encarnação re<strong>de</strong>ntora <strong>de</strong> Cristo constitui o gran<strong>de</strong> gesto <strong>de</strong> mi<strong>ser</strong>icórdia divina,afirma nosso autor. Cristo é a palavra <strong>de</strong> mi<strong>ser</strong>icórdia do Pai: “Pois Deus amou tanto omundo, que entregou o seu Filho único” (Jo 3,16). Esse dom v<strong>em</strong> do Pai, é feito aos homens<strong>de</strong> boa vonta<strong>de</strong> e retorna ao Pai, <strong>com</strong> os homens, no “Corpo Místico” do Filho. A encarnação<strong>de</strong>u-nos um Deus sofre<strong>dor</strong> <strong>em</strong> uma natureza humana s<strong>em</strong>elhante à nossa:A pieda<strong>de</strong> divina para <strong>com</strong> a nossa miséria fê-lo participar, integralmente, <strong>de</strong>ssamiséria, fora o pecado. O Media<strong>dor</strong> fez-se solidário <strong>com</strong> aqueles que ele veio salvar(cf. Lc 24,46). ‘Era preciso que o Cristo sofresse para entrar <strong>em</strong> sua glória’,ensinam as escrituras, num texto praticamente esquecido da reflexão teológicacont<strong>em</strong>porânea, mas que, talvez, alguns doentes mais avançados <strong>em</strong> espiritualida<strong>de</strong>possam enten<strong>de</strong>r. 61No <strong>sofrimento</strong> do Cristo, Verbo encarnado, o Deus antes consi<strong>de</strong>rado impassíveltornou-se o mo<strong>de</strong>lo dos pacientes, <strong>com</strong>o se não bastasse aliviar a miséria, mas fossenecessário ainda tomá-la sobre si. A Encarnação, que culmina no Calvário, nos traz a vidanova <strong>de</strong> que fala a Epístola aos Efésios: “Mas Deus, que é rico <strong>em</strong> mi<strong>ser</strong>icórdia, pelo gran<strong>de</strong>amor <strong>com</strong> que nos amou, quando estávamos mortos <strong>em</strong> nossos <strong>de</strong>litos, nos vivificoujuntamente <strong>com</strong> Cristo...” (Ef 2,4-5). E o autor da Epístola aos Hebreus acrescenta:“Convinha, por isso, que <strong>em</strong> tudo se tornasse s<strong>em</strong>elhante aos irmãos, para <strong>ser</strong>, <strong>em</strong> relação aDeus, sumo sacerdote mi<strong>ser</strong>icordioso e fiel, para expiar assim os pecados do povo. Pois,tendo ele mesmo sofrido pela provação, é capaz <strong>de</strong> socorrer os que são provados” (Hb 2,17-18). A lógica da mi<strong>ser</strong>icórdia encarnada levou o Cristo a conhecer por experiência a <strong>dor</strong>, o<strong>de</strong>sprezo dos homens e a morte, sublinha Lepargneur. 62Ao longo <strong>de</strong> sua vida, Cristo <strong>de</strong>monstrou na terra <strong>com</strong>paixão pelos sofre<strong>dor</strong>es. Emface das multidões que <strong>de</strong>le se aproximavam, “foi tomado <strong>de</strong> <strong>com</strong>paixão por elas, porqueestavam fatigadas e abatidas, <strong>com</strong>o ovelhas s<strong>em</strong> pastor” (Mc 6,34). Jesus se diz “enviadopara evangelizar os pobres, curar os que têm o coração <strong>de</strong>spedaçado, anunciar aos cativos alibertação, e aos cegos a luz, livrar os oprimidos...” (Lc 4,18-19). Aplica a si próprio a figurado Bom Samaritano e do Bom Pastor, “que dá a vida pelas suas ovelhas” (Jo 10,15).Compaixão que se manifestou tanto para <strong>com</strong> a miséria espiritual quanto <strong>em</strong> relação àscarências materiais, s<strong>em</strong> pretensão <strong>de</strong> resolver todos os probl<strong>em</strong>as. Desaprova a falta <strong>de</strong>6162Ibid., p. 180.Cf. ibid., p. 181.62


pieda<strong>de</strong> dos discípulos <strong>diante</strong> dos <strong>sofrimento</strong>s <strong>humano</strong>s, on<strong>de</strong> passam s<strong>em</strong> um olhar <strong>de</strong>pieda<strong>de</strong> (“fazei calar aquele cego, por favor”, Mc 10,48), aí mesmo <strong>de</strong>tém os passos dosalva<strong>dor</strong>. Diante do cego <strong>de</strong> Jericó, apesar das pressões dos mais próximos, é “tomado <strong>de</strong><strong>com</strong>paixão” e cura-o (Mc 10, 46-52). O mesmo se dá <strong>com</strong> o leproso (Mt 8,2-3), o filho daviúva <strong>de</strong> Naim (Lc 7,11-17), na ressurreição <strong>de</strong> Lázaro (Jo 11, 1-44), o filho do centurião (Jo4,46-54), o enfermo na piscina Betesda (Jo 5,1-9), e a cura do surdo-mudo (Mc 7,31-37).Quando realiza os milagres, estes não são para a solução do probl<strong>em</strong>a do mal, mas para<strong>de</strong>clarar a intenção, a perspectiva, o sentido da luta: são “sinais” <strong>com</strong>o perfeitamente o viuJoão, isto é, dicas para outros colaborar<strong>em</strong> na elaboração <strong>com</strong>um do sentido e dahumanização <strong>de</strong>sta vida, afirma nosso teólogo. 63Os discípulos <strong>de</strong> Cristo, <strong>de</strong> todos os t<strong>em</strong>pos, unidos no mesmo espírito <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>prolongam a <strong>com</strong>paixão no mundo. 64 Os pobres, os pequenos, os injustiçados e os doentestêm maior direito à ação dos cristãos <strong>em</strong> favor <strong>de</strong>les. Esta <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> a tarefa escolhida noamplo campo das necessida<strong>de</strong>s do mundo, pois é a mais urgente. A <strong>com</strong>paixão exercida peloscristãos transcen<strong>de</strong> todo sentimento <strong>de</strong> simples solidarieda<strong>de</strong> na <strong>de</strong>sgraça e toda a esperahumana, simplesmente terrestre <strong>de</strong> libertação. 65 Esta ação <strong>com</strong>porta, no seu núcleo, umaresposta convincente ao <strong>sofrimento</strong>: o <strong>com</strong>bate a ele, diz Lepargneur. 66Deus conta <strong>com</strong> cada um dos crentes para dar aos <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s que sofr<strong>em</strong> otest<strong>em</strong>unho tangível e incansável <strong>de</strong> sua ternura divina. O <strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong>, mais queexplicação, pe<strong>de</strong> <strong>com</strong>paixão por presença, o que implica “sair <strong>de</strong> si mesmo”. O <strong>ser</strong> esvazia-se<strong>de</strong> sua suficiência para unir-se a Deus; a pessoa abre-se <strong>de</strong> toda forma ao próximo que elasabe <strong>ser</strong> seu irmão <strong>em</strong> pobreza. O duplo movimento da <strong>com</strong>paixão não faz mais que refletir oduplo movimento da carida<strong>de</strong>. O valor do primeiro movimento <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do valor do segundo:a <strong>com</strong>paixão, <strong>em</strong> outras palavras, vale o que vale o amor que anima, conclui o teólogofrancês. 676364656667Cf. ibid., p. 181-182.Cf. ibid., p. 184. “A contribuição insubstituível da Encarnação Re<strong>de</strong>ntora não consistiu somente numa<strong>com</strong>unicação aos homens da <strong>com</strong>paixão <strong>de</strong> Deus por eles; ela permitiu e ainda permite s<strong>em</strong>pre aos homens<strong>com</strong>pa<strong>de</strong>cer-se do próprio Deus encarnado (...). Desta forma dá-se a nossa participação na vida <strong>de</strong> Cristo, nastribulações <strong>de</strong> Cristo, na obra do Salva<strong>dor</strong> (...). A re<strong>de</strong>nção é cont<strong>em</strong>porânea a nós (...), o Cristo invisível agena socieda<strong>de</strong> através da palavra que nos <strong>de</strong>ixou, através dos sacramentos que <strong>de</strong>ixou à Igreja visível, pelaação dos cristãos responsáveis que aliam obediência e iniciativa s<strong>em</strong> esperar que se <strong>com</strong>plete a teologia daprópria ação” (ibid., p. 184-185)Cf. ibid., p. 186.Cf. LEPARGNEUR, H. Antropologia do Sofrimento. op. cit., p. 175.Cf. ibid., p. 189.63


4.3 Humanização da saú<strong>de</strong> <strong>com</strong>o uma resposta concreta à pessoa que sofreTendo apresentado a esta altura a reflexão antropológica <strong>de</strong> Lepargneur sobre a <strong>dor</strong> e adoença e agora sua concepção teológico-cristológica ao respeito, é mister ex<strong>em</strong>plificar umapreocupação subjacente a todo seu pensamento relacionado ao sentido da <strong>dor</strong> e do <strong>sofrimento</strong>na doença pela referência especial que ele faz à Instituição Hospitalar e aos profissionais dasaú<strong>de</strong>, tendo <strong>em</strong> vista que os principais momentos <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong> das pessoas quase s<strong>em</strong>presão enfrentados neste “mundo”. Para nós, <strong>em</strong> nosso ministério, este ambiente tornou-se<strong>com</strong>um, colocando-nos <strong>em</strong> contato <strong>com</strong> a pessoa que sofre e espera encontrar, pela nossapresença, um alívio a seu <strong>sofrimento</strong>.Lepargneur sublinha que o espírito que <strong>de</strong>ve permear a mentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos osparticipantes da instituição hospitalar é essencialmente humanizante, <strong>de</strong> respeito ao <strong>ser</strong><strong>humano</strong>, <strong>de</strong> sensibilização ao <strong>sofrimento</strong> do próximo. Inspiração que passa do domínioreligioso para a esfera da conscientização reivindicativa dos chamados direitos <strong>humano</strong>s. 68 Apriorida<strong>de</strong> é o b<strong>em</strong> do doente. 69O médico exerce sua gran<strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> <strong>em</strong> todos os níveis da estrutura hospitalar eclínica. 70 A humanização surge da <strong>com</strong>petência do profissional e da confiança nele <strong>de</strong>positadapelo doente. O próprio do médico é contribuir para homens sadios. Apesar <strong>de</strong> condicionado elimitado pela doença, o enfermo permanece livre e <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> tratado <strong>com</strong>o responsável pelaprópria saú<strong>de</strong>; a submissão à terapia, porém, faz convergir as boas vonta<strong>de</strong>s. Humanizar érespon<strong>de</strong>r à circunstância do outro. 71Ob<strong>ser</strong>var e ouvir <strong>com</strong> paciência as palavras e os silêncios do paciente é tarefa paternaainda fundamental para saber, <strong>com</strong>preen<strong>de</strong>r e curar. 72 Confiar no acerto das máquinas nãoproduz o calor <strong>humano</strong> que irradia da confiança numa pessoa que sabe mais do que nós os6869707172Cf. LEPARGNEUR, H. Procurando Fundamentação para a Humanização Hospitalar. in: PESSINI, L;BERTACHINI, L. (Orgs.). Humanização e Cuidados Paliativos. São Paulo: Loyola, São Camilo, 2004, p.53. “São as crescentes exigências <strong>de</strong> um público mais b<strong>em</strong> informado e interessado <strong>em</strong> questões relativas àbiomedicina, exigências que inci<strong>de</strong>m ora nas pressões das forças sociais sobre os aparelhos públicos que<strong>de</strong>tém algum po<strong>de</strong>r sanitário (através <strong>de</strong> regulamentação e orçamento), ora no melhoramento das ofertas aopúblico, quando uma instituição trabalha livr<strong>em</strong>ente no mercado concorrencial. Do enorme investimentoantigo para o <strong>de</strong>stino eterno da alma, parte se transferiu para os progressos mentais, científicos etecnológicos, e parte para o culto do corpo e <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>sfrutes” (ibid., p. 54).Cf. ibid., p. 56.Cf. ibid., p. 58.Cf. LEPARGNEUR, H. O Despertar dos Doentes. Auto-responsabilida<strong>de</strong> e participação na gestão da saú<strong>de</strong>.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Achiame, 1986, p. 92.Cf. ibid., p. 93.64


caminhos da saú<strong>de</strong>. 73 Fundamental para a humanização é o setor <strong>de</strong> enfermag<strong>em</strong>, que reclama<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, sorriso sincero, disponibilida<strong>de</strong> e paciência <strong>com</strong>o fatores humanizantes. 74Para Lepargneur, o fundamento último da humanização da saú<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> na percepçãoda dignida<strong>de</strong> da pessoa humana, que ultrapassa os discursos religiosos e atinge umaconceituação politicamente correta entre nações civilizadas; resta procurar seu impacto naprática. Como suporte do discurso sobre a dignida<strong>de</strong> da pessoa, floresceu no século XX, apromoção dos Direitos Humanos não atrelados a t<strong>em</strong>as religiosos. O sonhado direito à saú<strong>de</strong>exige que toda socieda<strong>de</strong> dê à pessoa o mínimo <strong>de</strong> sustento que lhe permitiria continuar aviver, na ausência <strong>de</strong> um mal incurável. 75Pôr-se no lugar do outro que está doente torna a relação humanizante, a partir dasmínimas necessida<strong>de</strong>s: rapi<strong>de</strong>z no atendimento, um leito, uma palavra <strong>de</strong> incentivo e <strong>de</strong>preocupação, um sorriso, etc. A hospitalida<strong>de</strong> do pessoal do hospital é que humaniza oambiente. O doente não é a sua doença. É pessoa fragilizada à espera <strong>de</strong> ajuda. A místicacristã vê no doente a figura do próprio Cristo, e o profissional reconhece uma pessoa <strong>em</strong>dificulda<strong>de</strong>, que ele quer ajudar, no lugar do qual não se sentiria b<strong>em</strong>. 76No hospital, o t<strong>em</strong>po para o médico e a enfermeira é s<strong>em</strong>pre curto. Para o doente, ot<strong>em</strong>po é <strong>sofrimento</strong> e o <strong>sofrimento</strong> é t<strong>em</strong>po que não passa, seja ele t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> espera ou t<strong>em</strong>po<strong>de</strong> <strong>dor</strong>. Maior a <strong>dor</strong>, mais lenta a passag<strong>em</strong> da duração. Quando entra na fila para oatendimento, o doente ansioso entra <strong>em</strong> agonia, quando não morre. 77 O hospital, ao receber aspessoas <strong>em</strong> razão do mal que as espreita e <strong>de</strong>volvê-las sadias à socieda<strong>de</strong> e à família, se revela“T<strong>em</strong>plo da Humanização”. 78737475767778Cf. LEPARGNEUR, H. Médico no Brasil. in: Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saú<strong>de</strong>. op. cit., p.772.Cf. LEPARGNEUR, H. Procurando Fundamentação para a Humanização Hospitalar. op. cit., p. 58. Ocapelão Jean Laborriu ob<strong>ser</strong>vou: “Uma enfermeira me disse que precisou estar internada para enten<strong>de</strong>rrealmente isso. É muito diferente ver as coisas na posição horizontal e não mais na vertical”. Nos hospitaissabe-se cada vez melhor o que é doença, mas conhece-se o doente? Do abbé Pierre, apóstolo francês maisfamoso dos marginais: ‘Um sorriso custa menos que a força elétrica e ren<strong>de</strong> maior luz’. ‘É o t<strong>em</strong>po que vocêper<strong>de</strong>u para tua rosa que fez tua rosa tão importante para ti’ (Saint-Exupéry)” (ibid.).Ibid., p. 60.Cf. ibid., p. 63: “Uma doente porta<strong>dor</strong>a <strong>de</strong> câncer generalizado recebia às 11h <strong>de</strong> cada manhã uma injeçãoque lhe suscitava dolorosas perturbações. Às 11h 30 vinha o almoço, mas ela estava incapaz <strong>de</strong> absorverqualquer <strong>com</strong>ida nas duas horas seguintes à injeção. Às 12h 30, o almoço era retirado, intacto. A partir das13h vinha a fome, mas s<strong>em</strong> nada para <strong>com</strong>er. Pediu para adiantar a hora da injeção, ou atrasar sua refeição;pedido recusado”.Cf. ibid., p. 64.Cf. ibid., p. 69.65


5 EUTANÁSIA E SUICÍDIO: DUAS QUESTÕES DE BIOÉTICANão raras vezes, nos <strong>de</strong>paramos no “mundo do <strong>sofrimento</strong>” <strong>com</strong> essas situaçõeslimites e, por elas somos particularmente <strong>de</strong>safiados. Em relação à eutanásia, por um lado,perceb<strong>em</strong>os que a socieda<strong>de</strong> ten<strong>de</strong> à marginalização do fenômeno da morte e do <strong>sofrimento</strong> e,por outro, a argumentação <strong>de</strong> que é preciso pôr um fim ao <strong>sofrimento</strong> da pessoa grav<strong>em</strong>enteenferma e s<strong>em</strong> esperança <strong>de</strong> vida. Já o suicídio, cujo número cresce a cada dia, ou a tentativa<strong>de</strong> suicídio, provoca reações diversas, principalmente gran<strong>de</strong> tristeza para a família <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> o<strong>com</strong>ete e, o julgamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo e con<strong>de</strong>nação por parte <strong>de</strong> muitos da socieda<strong>de</strong>.Enten<strong>de</strong>mos que nosso autor po<strong>de</strong> ajudar na reflexão e indicar pistas para um posicionamentocristão <strong>diante</strong> <strong>de</strong>sses dolorosos fatos.5.1 Conceito diferenciado da eutanásiaA progressiva secularização do pensamento e da vida, b<strong>em</strong> <strong>com</strong>o a absolutização doconceito <strong>de</strong> autonomia do indivíduo induziram a difusão da mentalida<strong>de</strong> pró-eutanásia nomundo mo<strong>de</strong>rno.Lepargneur trata do <strong>de</strong>licado assunto alertando sobre a confusão que o termoeutanásia suscita na opinião pública, inclusive na imprensa, apesar das precauções tomadaspelos moralistas. Dúvidas surg<strong>em</strong> entre a eutanásia positiva, que provoca ou antecipa a morte,e a eutanásia passiva que consiste <strong>em</strong> não intervir no processo natural <strong>de</strong> agonia (quando pelomenos teoricamente, a morte po<strong>de</strong>ria <strong>ser</strong> adiada); ou entre eutanásia direta, segundo a qualuma intervenção visa a provocar a morte, e a eutanásia indireta cuja motivação é o b<strong>em</strong> dopaciente, especialmente o corte <strong>de</strong> seu <strong>sofrimento</strong> doloroso. A Igreja esclarece que é precisosocorrer o moribundo, mas não existe estrita obrigação <strong>de</strong> usar os métodos que, nascircunstâncias, po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> qualificados <strong>de</strong> extraordinários. 79Na avaliação dos recursos (ordinários ou extraordinários) leva-se <strong>ser</strong>iamente <strong>em</strong> contao juízo dos parentes (ou do próprio doente, caso esteja <strong>em</strong> condições <strong>de</strong> opinar lucidamente)que, presume-se, reflete a opinião <strong>com</strong>um do meio e não fica à mercê da posição <strong>de</strong> técnicosque, logicamente, ten<strong>de</strong>m a achar ordinário o uso <strong>de</strong> meios extraordinários, feitos por eles. Osmeios ordinários <strong>de</strong> prolongamento artificial da vida vegetativa po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> interrompidosquando a razão e o bom senso o aconselham, não havendo vantag<strong>em</strong> para o doente79Cf. Acta Apostolicae Sedis. n. 49. Referido por LEPARGNEUR, H. Lugar atual da Morte. op. cit., p. 149.66


permanecer no território in<strong>de</strong>finido que separa a vida e a morte. Como disse B. Häring: “Umacoisa é cuidar da vida e prolongá-la, outra é prolongar apenas o processo inelutável damorte, <strong>de</strong>pois que o médico souber claramente <strong>ser</strong> inútil qualquer tratamento”. 80 Essa noção<strong>de</strong> “eutanásia negativa” ou “passiva” se dá conforme a moral, pondo <strong>em</strong> cheque certascon<strong>de</strong>nações simplistas vinculadas à palavra “eutanásia”. No entanto, n<strong>em</strong> toda eutanásianegativa está justificada. Não existe uma receita moral que dispense o exame da realida<strong>de</strong>particular do caso, ou seja, nunca se po<strong>de</strong> dizer o “NÃO” absoluto que é re<strong>ser</strong>vado à“eutanásia ativa”. 81Para nosso autor, a eutanásia convida à distinção entre o medo da morte <strong>com</strong>ocessação da vida e o medo das circunstâncias penosas que a envolv<strong>em</strong>. Não <strong>ser</strong>á a eutanásia aforma civilizada e humanizada do suicídio? A liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> marcar o fim da vida, para qu<strong>em</strong>não teve oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fixar seu início? 82A evolução da civilização tornou a morte um momento mais difícil <strong>de</strong> preparar e maissolidário para se sofrer. Portanto, é lógico que essa cultura que valoriza unilateralmente ajuventu<strong>de</strong> e a eficácia, a rentabilida<strong>de</strong> e a “curtição” do momento, favoreça o movimento <strong>de</strong>liberalização da eutanásia <strong>com</strong>o término voluntário das últimas aflições. O que parece opinião<strong>com</strong>um entre os médicos e moralistas é a humanização da morte, que pe<strong>de</strong> atenuação ousupressão das <strong>dor</strong>es terminais <strong>de</strong> uma doença penosa, ainda que a medicação possa atenuar aconsciência e possivelmente abreviar indiretamente o t<strong>em</strong>po do <strong>sofrimento</strong> neste planeta. 83Lepargneur insiste que não <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os acostumar-nos à <strong>dor</strong> humana e que é preciso<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os direitos da moral, não nos <strong>de</strong>ixando levar pelo sentimento. Sobre <strong>com</strong>o <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> oprocedimento moralmente aceito ao paciente grave, o teólogo cita PIO XII, que <strong>de</strong>clara:80HÄRING, B. Medicina e Manipulação. São Paulo: Paulinas, 1977, p. 175. citado por LEPARGNEUR, H.Lugar atual da Morte. op. cit., p. 150.81 Cf. ibid. “De maneira paradoxal encontramos nos meios puritanos <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nação radical à eutanásia algunscasos <strong>de</strong> eutanásia negativa, que é a omissão <strong>de</strong>liberada <strong>de</strong> tratamentos a<strong>de</strong>quados que provavelmenteprolongariam a vida do paciente. Portanto, os Cristian Scientists, que impe<strong>de</strong>m a intervenção do médico <strong>em</strong>qualquer doença, as test<strong>em</strong>unhas <strong>de</strong> Jeová, que recusam a transfusão <strong>de</strong> sangue que salvaria o aci<strong>de</strong>ntado, omédico católico, que <strong>de</strong>ixa morrer a mãe grávida que po<strong>de</strong>ria <strong>ser</strong> salva graças ao aborto terapêutico, sãoa<strong>de</strong>ptos <strong>de</strong> certa eutanásia e não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>fensores da moral. Invocam ora a lei <strong>de</strong>Deus ora a lei natural, s<strong>em</strong>pre s<strong>em</strong> perceber que a imitação pelo hom<strong>em</strong> da cruelda<strong>de</strong> da natureza n<strong>em</strong>s<strong>em</strong>pre é aquilo que o hom<strong>em</strong> po<strong>de</strong> fazer melhor” (ibid., p. 151).8283Cf. ibid., p. 155.Cf. ibid., p.157.67


Se a administração <strong>de</strong> narcóticos suscita por si dois efeitos distintos: o alívio na <strong>dor</strong>e o abreviamento da vida, é lícita; pelo menos se existe entre os dois efeitosproporção razoável e se as vantagens <strong>de</strong> um <strong>com</strong>pensam os inconvenientes do outro.O i<strong>de</strong>al do heroísmo cristão não impõe, n<strong>em</strong> se quer <strong>de</strong> maneira geral, a obrigação<strong>de</strong> recusar o narcótico, aliás justificados por outros motivos, n<strong>em</strong> ao aproximar-se amorte. Tudo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> das circunstâncias concretas. Em lugar <strong>de</strong> contribuir para aexpiação e para o mérito, a <strong>dor</strong> po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> também ocasião <strong>de</strong> novas faltas. Os<strong>sofrimento</strong>s do paciente agravam o estado <strong>de</strong> fraqueza e esgotamento físico,<strong>em</strong>baraçam o ímpeto da alma e ameaçam as forças morais <strong>em</strong> lugar <strong>de</strong> as suster. 84As técnicas hoje <strong>de</strong>senvolvidas para prolongar a vida, po<strong>de</strong>m pecar contra a própriavida humana. Integrando a morte à vida, o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> não <strong>de</strong>ve se <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong>spojar <strong>de</strong> seu fims<strong>em</strong> reflexão sobre o valor do ganho. Prolongar o processo da morte, s<strong>em</strong> perspectivas, s<strong>em</strong>nenhum sentido <strong>em</strong> relação aos aspectos <strong>humano</strong>s <strong>de</strong>sta vida é moralmente inaceitável. Énecessário ajudar a pessoa a vencer humanamente essa situação. Esta <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> a natureza das<strong>de</strong>cisões. A consciência moral po<strong>de</strong> hesitar <strong>diante</strong> <strong>de</strong> certos casos particulares dolorosos eabster-se <strong>de</strong> julgar o próximo <strong>em</strong> terreno tão <strong>de</strong>licado, mas fazer propaganda a priori, fundaruma socieda<strong>de</strong> e incentivar a população <strong>em</strong> geral, <strong>em</strong> vista <strong>de</strong> matar os inúteis ou<strong>de</strong>senganados da vida, constitui uma autêntica antimoral, uma perversão sofisticada. Énecessário achar o caminho do diálogo entre a condição concreta do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> e asexigências fundamentais do verda<strong>de</strong>iro amor. 855.2 O suicídio <strong>com</strong>o resposta à falta <strong>de</strong> sentidoNosso autor aborda o t<strong>em</strong>a no contexto do mundo da saú<strong>de</strong>. O cerne do suicídioconsiste no reconhecimento, por parte do sujeito, <strong>de</strong> que ele não possui <strong>em</strong> si um sustentáculo<strong>de</strong> vida e sentido para enfrentar sua circunstância. 86 O contexto vital do sujeito lhe pareceimpossibilitar uma continuação <strong>com</strong> um mínimo <strong>de</strong> caráter <strong>humano</strong>. Nesta situação <strong>de</strong> assédioextr<strong>em</strong>o, o sujeito acaba renunciando a uma luta que lhe parece acima <strong>de</strong> suas forças. A vida éum prodígio instável <strong>de</strong> equilíbrio que, no <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, tenta ficar sob relativo controle damente. No suicida a mente abdicou por se sentir vencida por uma força superior a seu medoinstintivo da morte. No impasse, a morte aparece <strong>com</strong>o o mal menor e não uma alegre opção<strong>de</strong> ruptura, que a socieda<strong>de</strong> julga severamente. A razão pela qual um indivíduo prefere amorte à vida sofrida, intolerável, é s<strong>em</strong>pre um <strong>de</strong>safio existencial. Isto não impe<strong>de</strong> que esta848586“Discurso sobre a anestesia, <strong>de</strong> 24-2-1967. in: Mensag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Pio XII aos Médicos. p. 341. citado porLEPARGNEUR, H. Lugar atual da Morte. op. cit., p. 84-85.Cf. ibid., p. 89.Talvez seja errado o uso <strong>de</strong>sse termo, alguns falariam <strong>em</strong> abdicação; mas isso já significaria julgar e julgarnegativamente.68


saída errada <strong>de</strong> um <strong>de</strong>safio perturba<strong>dor</strong> seja s<strong>em</strong>pre condicionada, notadamente por fatoreshereditários, <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> individual ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>sajuste social, s<strong>em</strong> nunca <strong>ser</strong> totalmente explicadopor eles. 87Lepargneur reflete sobre o suicídio <strong>em</strong> perspectiva teológico-pastoral e criticaposições que <strong>com</strong>promet<strong>em</strong>, segundo ele, a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus. Ele pergunta que direito t<strong>em</strong> osfelizes <strong>de</strong> julgar os infelizes <strong>com</strong> a afirmação <strong>de</strong> que Deus é o Senhor da vida, aos olhos <strong>de</strong>um mundo ateu. Será que a <strong>com</strong>preensão cristã <strong>em</strong> assunto tão <strong>de</strong>licado test<strong>em</strong>unha a bonda<strong>de</strong>do Pai eterno e provi<strong>de</strong>ncial? 88Suicídio é gesto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero e a moral oci<strong>de</strong>ntal cristã n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre refletiu <strong>de</strong> acordo<strong>com</strong> o Evangelho esta chocante realida<strong>de</strong>:Em hora tão dolorosa, tudo se passa <strong>com</strong>o se a Igreja não fosse mãe, mas juizimpiedoso <strong>com</strong>o raramente o mundo viu, porque <strong>em</strong> nenhuma civilização se ouviuuma mãe falar <strong>de</strong> seu filho suicida <strong>com</strong>o o cristianismo fala <strong>de</strong>le pela voz <strong>de</strong> seusmoralistas oficiais. A maneira <strong>com</strong>o estes infelizes são julgados nos livros <strong>de</strong> moralnão clama <strong>em</strong> favor da <strong>com</strong>preensão fraterna ou do respeito cristão <strong>de</strong>vido aopróximo. 89A causa disto, <strong>em</strong> parte, é a abstração total que se operou ao conceituar um pecado que<strong>ser</strong>ia <strong>de</strong> soberbo orgulho e <strong>de</strong> rebelião insensata s<strong>em</strong> nenhum relacionamento <strong>com</strong> qualquerexperiência concreta. Hoje, investigado pelas ciências humanas, se vê que o suicídio não é umpassa-t<strong>em</strong>po. Por outro lado não se contesta o princípio dos direitos da divinda<strong>de</strong> sobre acriatura, ainda que esta nunca tivesse consentido <strong>em</strong> nascer. 90O teólogo fala da incontestável responsabilida<strong>de</strong> coletiva <strong>em</strong> face do suicídio <strong>de</strong>vidoao <strong>em</strong>pobrecimento da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida. O suicídio diz respeito muito mais à psiquiatria porum lado, e à moral social, por outro. O tratamento do suicídio ex<strong>em</strong>plifica as conseqüências<strong>de</strong> duplo vício <strong>de</strong> certa moral: seu caráter individual hipertrofiado e sua ignorância doscondicionamentos concretos da liberda<strong>de</strong>. A regra vale para todo o suicídio: o probl<strong>em</strong>a87888990Cf. LEPARGNEUR, H., Suicídio. in: Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saú<strong>de</strong>. São Paulo: Paulus,Centro Universitário São Camilo, 1999, p. 1294-1295. “Não vale dizer que X se matou porque per<strong>de</strong>u umapessoa cara, mas para resolver um probl<strong>em</strong>a pessoal suscitado por esse óbito” (ibid., p. 1295). A natureza<strong>de</strong>sse impasse é muito diversa, <strong>em</strong> geral <strong>com</strong>plexa e íntima. É possível que um dos muitos condicionamentosseja genético. A vida é um <strong>com</strong>bate e, para o cristão, uma provação, um teste para a vida eterna. A provaçãonão t<strong>em</strong> o mesmo peso, objetivo ou subjetivo para todos; Deus é qu<strong>em</strong> sabe, diz o autor.Cf. LEPARGNEUR, H., Lugar atual da morte. op. cit., 1986, p. 89.Ibid., p. 90.Cf. ibid.69


fundamental é o da integração do individuo numa <strong>com</strong>unida<strong>de</strong> que o aceita e <strong>de</strong> que se tornasolidário. 91O suicídio é a tentativa <strong>de</strong> conferir um último sentido a uma vida que per<strong>de</strong>u seusignificado. A perplexida<strong>de</strong> involuntária que se sente <strong>diante</strong> <strong>de</strong>le não provém do fato <strong>de</strong> <strong>ser</strong>con<strong>de</strong>nável, mas da solidão e da liberda<strong>de</strong> terríveis <strong>de</strong>sse ato, no qual a afirmação da vidaacaba consistindo na sua aniquilação. A con<strong>de</strong>nação do suicídio não é artigo <strong>de</strong> direitonatural, mas fruto <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong> cristã, que po<strong>de</strong> chegar ao heroísmo. Por isso, é difícil julgar umcaso isolado do que resolver uma questão <strong>de</strong> princípio. Os motivos últimos, <strong>de</strong>cisivos,permanec<strong>em</strong> quase s<strong>em</strong>pre ocultos, porque o suicídio é ato solitário. Por isso não nos cabejulgar o suicídio <strong>de</strong> ninguém, ressalta nosso teólogo. 92Lepargneur l<strong>em</strong>bra que o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> se livrar <strong>de</strong>sta vida está vivenciado <strong>de</strong> diversasmaneiras. São Paulo e vários outros santos expressaram o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> morrer para <strong>de</strong>sfrutar das<strong>de</strong>lícias paradisíacas prometidas: “O que são os <strong>sofrimento</strong>s <strong>de</strong>ste mundo <strong>em</strong> <strong>com</strong>paração<strong>com</strong> a felicida<strong>de</strong> que nos espera” (Rm 8,18)? Após esta vida <strong>de</strong> provação <strong>de</strong>v<strong>em</strong> vir aressurreição e a visão da divinda<strong>de</strong>. S<strong>em</strong> fé religiosa que dê sentido ao <strong>sofrimento</strong> intenso, apessoa po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> atraída pelo suicídio. Uma pessoa não insana suicida-se quando não encontramotivo para continuar <strong>com</strong> sua cruz. Não sabe <strong>com</strong>o aliviá-la na sua situação concreta, a não<strong>ser</strong> me<strong>diante</strong> a supressão da vivência orgânica que permite e suporta. A pessoa é capaz <strong>de</strong>avaliar a própria situação, ainda que essa capacida<strong>de</strong> esteja s<strong>em</strong>pre limitada e condicionada.Po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> um engano da pessoa ferida achar que seu futuro esteja obstruído por <strong>de</strong>masiada falta<strong>de</strong> humanida<strong>de</strong>, por provações julgadas insuportáveis por ela. A ação <strong>de</strong>cisiva está aí. Não hápessoa sensata que não queira uma morte <strong>com</strong> o mínimo <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong>. A reflexão é<strong>com</strong>plexa, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> ambigüida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>vido à noção <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> da pessoa,que está vinculada ao conjunto <strong>de</strong> convicções <strong>de</strong> cada pessoa, diz Lepargneur. 93Se há um pecado que só Deus po<strong>de</strong> julgar, o suicídio é forte candidato. Se cada caso éum caso, é b<strong>em</strong> no espaço do suicídio. Situação que não se experimenta solicita discrição. O<strong>de</strong>ver é <strong>de</strong> propiciar ajuda solidária a qu<strong>em</strong> vive situações limites <strong>de</strong> <strong>dor</strong> e <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>oreação humanitária para evitar o suicídio, conclui o teólogo francês. 9491929394Cf. ibid., p. 91.Cf. ibid., p. 92.Cf. LEPARGNEUR, H., A liberda<strong>de</strong> da pessoa enfrenta o <strong>sofrimento</strong>. op. cit., p. 389-390.Cf. LEPARGNEUR, H., Suicídio. in: Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saú<strong>de</strong>. op. cit., p. 1297.70


6 A MORTE: O ÚLTIMO SOFRIMENTONosso autor sublinha, <strong>em</strong> linhas gerais, algumas reações da socieda<strong>de</strong> secularizada<strong>diante</strong> do fenômeno da morte. Enfatiza, sobretudo, os diversos <strong>com</strong>portamentos que po<strong>de</strong> ter apessoa que faz a sua passag<strong>em</strong>, b<strong>em</strong> <strong>com</strong>o as diversas atitu<strong>de</strong>s que po<strong>de</strong>m ter aqueles quea<strong>com</strong>panham os doentes <strong>em</strong> estado grave. O discurso cristão que se faz, neste momento<strong>de</strong>safia<strong>dor</strong> e triste, é fundamental para a subjetivida<strong>de</strong> da pessoa que sofre e para a suafamília, po<strong>de</strong>ndo tornar o momento <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro o mais <strong>humano</strong> possível. Exerc<strong>em</strong>os nossotrabalho pastoral especialmente nesta situação-limite, e perceb<strong>em</strong>os nela a necessida<strong>de</strong>urgente <strong>de</strong> uma maior humanização. Julgamos pertinente, portanto, abordar o t<strong>em</strong>a maisprofundamente <strong>em</strong> nosso trabalho.6.1 A morte e o morrerDiante da morte, <strong>com</strong> o t<strong>em</strong>or da <strong>de</strong>struição perpétua, o enigma da condição humanaatinge seu ponto alto. Nosso autor que a reflexão sobre a <strong>dor</strong>, o <strong>sofrimento</strong> e, sobretudo amorte, que põe fim aos sonhos terrestres e que marca radicalmente a vulnerabilida<strong>de</strong> do <strong>ser</strong><strong>humano</strong>, ainda permanece na esfera do tabu <strong>em</strong> nossa socieda<strong>de</strong> atual. As tentativas <strong>de</strong>explicações se revelam prisioneiras da cultura vigente do mundo mo<strong>de</strong>rno, marcadas pelasecularização. A esperança cristã tornou-se sinônimo <strong>de</strong> vida terrestre feliz, <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, justiça eb<strong>em</strong>-estar, o que convida ao discurso contra a socieda<strong>de</strong>, o governo, o sist<strong>em</strong>a, osresponsáveis das injustiças e contra a própria natureza. Pouca coisa consistente se fala hojesobre a morte e a vida futura no além. A liturgia fúnebre, <strong>com</strong> toda razão, fala aos presentesmais <strong>em</strong> vida do que <strong>em</strong> morte. Cada vez mais interessados <strong>em</strong> ciências humanas, clérigos eteólogos voltam, portanto, sua atenção ao fenômeno cultural da morte. O probl<strong>em</strong>a para eles éultrapassar a fase <strong>de</strong>scritiva para encontrar uma orientação positiva da ação pastoral. 95Nesse contexto Lepargneur afirma que a se<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e dinheiro faz o hom<strong>em</strong>esquecer que a <strong>dor</strong> e a morte estão no cerne <strong>humano</strong>. Pois a morte pensada é s<strong>em</strong>pre, <strong>em</strong>primeiro lugar, a morte do outro; a projeção para si v<strong>em</strong> apenas num segundo momento. Já a<strong>dor</strong> experimenta-se, <strong>em</strong> primeiro lugar, <strong>com</strong>o provação pessoal, só <strong>em</strong> seguida é que seprojeta sobre os outros. 969596Cf. LEPARGNEUR, H., Lugar atual da morte. op. cit., p. 68-69.Cf. ibid., p. 24-25.71


aqui. 97 Lepargneur diz que é preciso distinguir entre a morte <strong>com</strong>o estado do além e o morrerA morte é muito mais do que um último instante <strong>de</strong> um <strong>ser</strong> vivo. Ela se prepara eantecipa na doença, no medo, na velhice, na guerra, <strong>em</strong> todas as feridas impostas pela vida. Amorte é <strong>com</strong>panheira necessária do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Em face da morte outros males sãoparadoxalmente toleráveis. Como um mal, ela é ambígua, para um não crente, ela ésimplesmente o fim <strong>de</strong> uma aventura pessoal; o “nada” não se <strong>com</strong>enta. Para o crente, queconfia num além, a morte é passag<strong>em</strong> para melhor, o prêmio por um bom <strong>com</strong>portamento<strong>com</strong>o passag<strong>em</strong>. O que a maioria dos <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s ressente <strong>com</strong>o mal é muito mais omorrer do que a morte, <strong>com</strong>o o lado <strong>de</strong> lá. O medo <strong>de</strong> morrer protege a muitos <strong>de</strong> antecipar amorte. A <strong>dor</strong> e o <strong>sofrimento</strong> não se provam, vivenciam-se. A morte se constata. Pascal disse:“Vive-se só, morre-se só, os outros não po<strong>de</strong>m acudir”. Não é raro encontrar adultos poucosensíveis a um tipo <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong> que nunca experimentaram. A aceitação da vida éfrequent<strong>em</strong>ente nada mais do que o recuo <strong>diante</strong> da morte, já que o morrer <strong>com</strong>o transitusat<strong>em</strong>oriza mais do que a morte <strong>com</strong>o estado <strong>de</strong>finitivo. Na passag<strong>em</strong>, o <strong>sofrimento</strong> e a mortese un<strong>em</strong> paradoxalmente. O que é doloroso é a mistura da vida test<strong>em</strong>unhada pela própria <strong>dor</strong>e da morte <strong>com</strong>o processo. Toda <strong>dor</strong> é l<strong>em</strong>brança, antecipação, participação do processo damorte, por pouco que seja, por discreta e longínqua que seja. Essa presença real e oculta damorte na vida suscitou o dil<strong>em</strong>a do suicídio <strong>com</strong>o probl<strong>em</strong>a existencial fundamental. 986.2 A <strong>de</strong>ssacralização da <strong>dor</strong> e da morteA conscientização da morte <strong>com</strong>o <strong>de</strong>stino individual e coletivo esteve vinculada, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>os primórdios da humanida<strong>de</strong>, à sacralização. Hoje está <strong>em</strong> processo cultural <strong>de</strong><strong>de</strong>ssacralização. A morte <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> <strong>ser</strong> mistério intocável. Ela po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> adiada paraoutra hora, outro dia. Vinculada ao processo terapêutico, a <strong>de</strong>ssacralização da <strong>dor</strong> e da mortenão caracteriza ausência do medo <strong>diante</strong> do fenômeno, n<strong>em</strong> que as religiões não tenham maisrelação substancial <strong>com</strong> ela. A pregação cristã não mais focaliza o <strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong>ste vale <strong>de</strong>lágrimas n<strong>em</strong> a resignação ao mal <strong>de</strong>ste mundo <strong>com</strong>o condições para <strong>de</strong>sfrutar outra vida, noalém-morte: teologia e pastoral também integram o conjunto cultural <strong>em</strong> andamento:9798Cf. ibid., p. 30.Cf. ibid., p. 30-31.72


Qu<strong>em</strong> se interessa hoje <strong>em</strong> dia <strong>em</strong> ler as apologias da nobreza da <strong>dor</strong>? Qu<strong>em</strong> po<strong>de</strong>riaainda ler a Imitação <strong>de</strong> Cristo senão um tradicionalista na hora <strong>de</strong> morrer? Omasoquismo ainda existe, é doença <strong>de</strong> todos os t<strong>em</strong>pos, mas aqui o probl<strong>em</strong>a éoutro. O próprio Cristianismo adapta-se convertendo a “extr<strong>em</strong>a unção” <strong>em</strong> “unçãodos enfermos”, a pregação da morte <strong>em</strong> pregação da libertação da vida. O povoainda celebra a sexta-feira quando, mais apressado, o clero já iniciou a celebração daRessurreição. 99A morte, diz nosso teólogo, está ligada também ao conjunto da filosofia e dasi<strong>de</strong>ologias. É evocada <strong>com</strong>o volta ao seio materno (mitologias <strong>de</strong> diversos países, exploradaspor C.G. Jung). O estoicismo <strong>de</strong>monstrou ilusória corag<strong>em</strong> <strong>diante</strong> da morte. Este teve,contudo, o duplo mérito <strong>de</strong> salientar a relação que entretém a filosofia <strong>de</strong> sabor existencial oupré-existencialista <strong>com</strong> a morte e <strong>de</strong> levantar o probl<strong>em</strong>a do suicídio <strong>com</strong>o <strong>de</strong>sforra dohom<strong>em</strong> <strong>diante</strong> dos caprichos e do <strong>de</strong>spotismo da morte. K. Marx concebeu a morte <strong>com</strong>o avitória da espécie sobre o indivíduo, concluindo que o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> é um <strong>ser</strong> genérico e <strong>com</strong>otal mortal. Aí está o essencial da resposta do materialismo ateu: o tributo da vida é oferta quesó recebe eventual re<strong>com</strong>pensa na história, <strong>em</strong> benefício do grupo social sobrevivente. Olirismo utópico <strong>de</strong> E. Bloch não <strong>de</strong>u maior credibilida<strong>de</strong> ao valor da morte <strong>com</strong>o meio <strong>de</strong>promoção <strong>de</strong> uma vida melhor. O que significa sobreviver através da l<strong>em</strong>brança e da música?Muito mais palpável, o itinerário industrial da fabricação do morrer pelo próprio hom<strong>em</strong>:longe do individualismo pequeno-burguês da morte <strong>de</strong> Ivan Illich, contada por Tolstoi, Hitlere Stalin rivalizaram na organização sist<strong>em</strong>ática da morte. O Arquipélago Gulag <strong>de</strong>screve novoramo do gênio industrial do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, porque o puro sadismo é antigo. 1006.3 Secularização e luta mo<strong>de</strong>rna contra o morrerO teólogo francês sublinha que a tecnologia médica e cirúrgica, s<strong>em</strong> vencer a morte,marca ponto <strong>em</strong> várias batalhas contra ela ao adiar sua chegada e afastar a <strong>dor</strong>. Por outro lado,se vê simultaneamente a fuga da morte <strong>com</strong>o probl<strong>em</strong>a existencial e <strong>com</strong>o t<strong>em</strong>a <strong>de</strong> estudos epesquisas no campo das ciências humanas. Entre outros méritos, estes estudos <strong>de</strong>struíram omito da igualda<strong>de</strong> <strong>diante</strong> da morte. A real superiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um moribundo sobre o outro sópo<strong>de</strong> advir da fé íntima do sujeito. Os ritos do morrer, <strong>com</strong>o celebrações catárticas dasfamílias, pouco ating<strong>em</strong> a essência do drama que cada pessoa passa a viver na solidão. N<strong>em</strong>uma <strong>dor</strong> <strong>de</strong> cabeça ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>nte é <strong>com</strong>unicável. Cada um a vivencia <strong>com</strong> seus recursos <strong>de</strong>99Ibid., p. 32-33.100 Cf. ibid., p. 33-34.73


tolerância à frustração e ao <strong>de</strong>sconforto, usando as mensagens que seu t<strong>em</strong>peramento e suacultura lhe inspiram. 101A esperança que a farmacopéia eliminaria toda <strong>dor</strong> do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> não passou <strong>de</strong>ilusão. O alívio é precário e oneroso. Quanto ao morrer, a generalização dos cuidadoshospitalares o tornou outro ato muito oneroso, mesmo se a publicida<strong>de</strong> parece sugerir: “Viva e<strong>de</strong>ixe-nos tomar conta da sua morte”. A organização é que sabe o b<strong>em</strong> viver e o b<strong>em</strong> morrer.Há muitas palavras engana<strong>dor</strong>as nesta hora ditas aos moribundos. Mas por que falar o qu<strong>em</strong>uito poucos estão dispostos a ouvir? 1026.4 O que enfim é a morte?Lepargneur ressalta o interesse existente hoje pela significação humana da morte nosambientes médicos, pela antropologia e pelos teólogos. A reflexão sobre a morte po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>velevar à <strong>com</strong>preensão da condição humana e, <strong>em</strong> contrapartida, a um aprofundamento dapessoa vítima da doença. 103Nosso teólogo afirma que a morte possui duplo aspecto, correspon<strong>de</strong>nte à própria<strong>com</strong>plexida<strong>de</strong> do <strong>ser</strong> que somos neste mundo. Ela é paixão e ação, porque o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> ésubstancial, material, <strong>ser</strong> da natureza, e porque ele é espírito pessoal, <strong>ser</strong> transcen<strong>de</strong>nte. Ohom<strong>em</strong> é natureza e pessoa. Pessoa que se realiza, que existe, que vive na unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umanatureza. Quando a natureza corporal do hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>finha e não mais exist<strong>em</strong> as condiçõesfisiológicas necessárias à manutenção da vida, diz-se que a alma se separa do corpo. É oaspecto paixão da morte, isto é, seu aspecto violento, quase chocante. Aqui o <strong>ser</strong> vivo sofre amorte <strong>com</strong>o um fim, um termo, um ponto, além do qual não é mais capaz <strong>de</strong> ir. O <strong>com</strong>postoorgânico, material, se <strong>de</strong>sfaz: o corpo torna-se cadáver, volta ao não-<strong>ser</strong>, para tornar-se nãoimporta o que outra coisa, antes da ressurreição final. A morte é também ação, seconsi<strong>de</strong>rarmos o pólo espiritual, pessoal. Pela morte, a pessoa muda <strong>de</strong> condição, mascontinua a <strong>ser</strong>: passa da condição <strong>de</strong> peregrino para uma condição <strong>em</strong> princípio imutável. “Emprincípio”, não somente <strong>em</strong> razão da ressurreição futura, mas porque a doutrina da existênciado purgatório leva a pensar que a pessoa po<strong>de</strong> ainda continuar, terminar uma maturação que atorna finalmente apta à visão beatífica. 104101 Cf. ibid., p. 34.102 Cf. ibid.103 Cf. LEPARGNEUR, H. Evangelho da <strong>dor</strong>. op. cit., p. 47.104 Cf. ibid., p. 47-48.74


A morte é <strong>de</strong>missão para o corpo e assunção para a pessoa. D<strong>em</strong>issão para o hom<strong>em</strong>consi<strong>de</strong>rado <strong>com</strong>o <strong>ser</strong> da natureza: na morte a gente se vai, abandona-se o invólucro corporalque não se sustenta mais. Mas a alma então vai ela mesma se assumir, plenamente, ela queestava presa na trama das limitações do corpo, seu órgão. A morte é assunção plena doespírito por si mesmo. É o fim <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> vida e o início <strong>de</strong> uma outra maneira <strong>de</strong> viver.O primeiro aspecto faz o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> participar da história <strong>de</strong> todos os viventes do mundomaterial; o segundo é próprio do hom<strong>em</strong> e marca a diferença <strong>de</strong> natureza que existe entre amorte <strong>de</strong> um animal qualquer e a <strong>de</strong> um <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Este usou <strong>de</strong> sua materialida<strong>de</strong> para sepersonalizar. Com a morte chega o momento <strong>de</strong>cisivo da dialética do espiritual e do corporal:o espírito levanta vôo, <strong>em</strong>bora na espera <strong>de</strong> uma ressurreição que restituirá na integralida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sua natureza, então transfigurada. 105Na medida <strong>em</strong> que o ato da morte é consciente e assumido pela pessoa, ele é <strong>em</strong> todosos sentidos o ato supr<strong>em</strong>o do homo-viator. O <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> ten<strong>de</strong> a se realizar nele, mesmo àcusta do <strong>de</strong>spojamento corporal. Neste sentido, a morte já é passag<strong>em</strong>, páscoa, ressurreição. 106Passa-se do t<strong>em</strong>po à eternida<strong>de</strong>, do instável ao estável, do Reino que virá ao Reino <strong>em</strong> que seestá para s<strong>em</strong>pre. Pela fé, este ato supr<strong>em</strong>o é opção e julgamento. Tomada <strong>de</strong> posição<strong>de</strong>finitiva quanto ao valor e à significação da vida vivida. É, sobretudo, um ato último <strong>de</strong>a<strong>de</strong>são ou <strong>de</strong> recusa do Deus que cria e salva, do Deus que propõe seu amor <strong>com</strong>o caminhopara a felicida<strong>de</strong> eterna. É um aspecto que po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> chamado <strong>de</strong> autogeração da pessoa quechega a seu último acabamento numa morte que não é pura experiência passiva da vidabiológica, mas ação pessoal.Em resumo, a morte é a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um fim e <strong>de</strong> um acabamento. O hom<strong>em</strong>, <strong>com</strong>efeito, termina sua vida t<strong>em</strong>poral e corporal pela separação do corpo e da alma, que lhepermite também realizar-se do interior <strong>com</strong>o pessoa, levando a seu estado <strong>de</strong>finitivo oresultado global <strong>de</strong> sua conduta anterior. Compreen<strong>de</strong>-se a partir daí que a morte, <strong>com</strong>o ação,não é normalmente conversão, mas ratificação, acabamento do itinerário anterior. A morte éum mistério e o que ela representa, <strong>com</strong>o provação e graça, pertence exclusivamente a Deus.Por outro lado, <strong>em</strong> face da morte não se elimina a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma conversão, istoé, <strong>de</strong> um reconhecimento <strong>de</strong> um Deus que tivesse sido negado até então. Geralmente morre-se<strong>com</strong>o se viveu, no mais profundo <strong>de</strong> si mesmo, con<strong>ser</strong>vando a mesma escala existencial dos105 Cf. ibid., p. 48: “Des<strong>de</strong> antes da morte, a doença <strong>de</strong>ve situar-se <strong>com</strong>o um momento privilegiado, uma faseespecífica <strong>de</strong>sta dialética da matéria e do espírito, que se encontra <strong>em</strong> nós, da alma e do corpo cujo <strong>com</strong>postosubstancial nos especifica”.106 Cf. ibid., p. 49: “Pelo menos ela o é quando se realiza <strong>em</strong> Cristo, <strong>em</strong> união <strong>com</strong> a morte re<strong>de</strong>ntora <strong>de</strong> Cristo, aqual ten<strong>de</strong> a assumir <strong>em</strong> si a morte <strong>de</strong> todos os <strong>humano</strong>s, no caminho do Pai”.75


valores. Aqui os momentos <strong>de</strong> fraqueza são eliminados. Importante é a opção profunda dapessoa, carregada s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong> mistério, porque a vida humana é situação e liberda<strong>de</strong>. E aliberda<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong> a situação. 1076.5 Morte e salvaçãoA morte é sacramento <strong>de</strong> salvação na medida <strong>em</strong> que morr<strong>em</strong>os real e <strong>de</strong>finitivamenteao pecado, unidos a Cristo: “Ouvi então uma voz do céu, dizendo: escreve: felizes os mortos,os que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> agora morr<strong>em</strong> no Senhor. Sim, diz o Espírito, que <strong>de</strong>scans<strong>em</strong> <strong>de</strong> suas fadigas,pois suas obras os a<strong>com</strong>panham” (Ap 14,13). “Pois aquele que entrou no seu repouso<strong>de</strong>scansou das suas obras, assim <strong>com</strong>o Deus <strong>de</strong>scansa das suas” (Hb 4,10). A morte <strong>de</strong> Cristoé, <strong>com</strong> efeito, o sacramento por excelência, fonte <strong>de</strong> toda eficácia sacramental, fonte <strong>de</strong> todagraça porque todo sacramento é participação na morte e ressurreição <strong>de</strong> Cristo (Rm 8, 5.8-9).A morte do cristão realiza o que significa: uma morte ao mundo do pecado para uma entradana vida eterna <strong>com</strong> Deus. A morte é sacramento que receb<strong>em</strong>os da natureza. 108A reflexão sobre a morte oferece uma melhor <strong>com</strong>preensão sobre a doença, sobretudoas graves, diz Lepargneur. Estas indicam a precarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta vida. A doença <strong>de</strong>ve tambémconstituir um momento forte da construção <strong>de</strong> si mesmo, que se <strong>com</strong>pleta no momento damorte: “Pois quando sou fraco, então é que sou forte” (2Cor 12,10). No enfrentamento dadoença, o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> po<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a <strong>de</strong>sconfiar <strong>de</strong> suas forças físicas <strong>com</strong>o constituiçãoessencial <strong>de</strong> sua personalida<strong>de</strong>. No instante da morte, a transição atinge um cume e a pessoa échamada a <strong>de</strong>cidir sobre sua vida, a lhe dar um coroamento <strong>de</strong>finitivo, plenamente livre (pelomenos quando existe consciência). Contudo, o que é <strong>de</strong>cisivo na morte não é tanto que sejaeste o instante mais lúcido, mais <strong>de</strong>nso, o que aparent<strong>em</strong>ente ele é muitas vezes, mas n<strong>em</strong>s<strong>em</strong>pre o é seguramente; é que ele dá a chave <strong>de</strong> uma vida. Assim, se o último instante dá atoda uma vida seu sentido final, seu sentido total, a significação que resta é que ele mesmo foipreparado por todos os outros instantes, é porque tudo o que prece<strong>de</strong> dá sentido a este instanteúltimo do t<strong>em</strong>po <strong>humano</strong>. Nesta perspectiva, mesmo a última reviravolta foi preparada. 109107 Cf. ibid., p. 49. “De fora é difícil ou impossível avaliar o que é situação e o que é liberda<strong>de</strong>; <strong>em</strong> suma, nãopo<strong>de</strong>mos julgar n<strong>em</strong> o vivo n<strong>em</strong> o morto porque só Deus conhece as responsabilida<strong>de</strong>s exatas <strong>de</strong> cada um”(ibid., p. 50).108 Cf. ibid.109 Cf. ibid., p. 51.76


Como qualquer outro agonizante que experimenta o abandono e a separação, o cristãopermanece numa situação <strong>de</strong> fé e, na esperança do outro mundo, faz sua transição. Tanto parao crente quanto para o ateu, a vida está toda presente na hora da morte e, a morte já estavavirtualmente presente <strong>em</strong> todos os instantes da vida. Mesmo parecendo o contrário, a morte épara a vida e não a vida para a morte. A morte dá sentido à vida e a vida dá sentido à morte.Preparar-se para o momento da morte é preciso. O t<strong>em</strong>or <strong>de</strong> que seja um processo <strong>de</strong>moradopo<strong>de</strong> levar à fuga <strong>de</strong> sua realida<strong>de</strong>, ao sentimento <strong>de</strong> incapacida<strong>de</strong> para o seu enfrentamento.Na vida do cristão, isto po<strong>de</strong> levá-lo a saber-se mortal e fraco. Porém, o recuo <strong>diante</strong> da morteatinge a todos. O próprio Cristo experimentou repugnância. Uma vida vivida na <strong>de</strong>pendência<strong>de</strong> Deus <strong>com</strong>pleta-se pela morte cristã cuja realida<strong>de</strong> plena se exprime nessas palavras <strong>de</strong>Jesus: “Pai, <strong>em</strong> tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46). Quando o fiel assim morre,saiba ou não, morre a morte <strong>de</strong> Cristo. A fé, a esperança e o amor encontram na morte seusupr<strong>em</strong>o acabamento, nesta morte que parece <strong>ser</strong> treva absoluta, <strong>de</strong>sespero e frio mortal. Masentão a fé se extingue para ce<strong>de</strong>r lugar à visão, a esperança torna-se realização e a carida<strong>de</strong><strong>de</strong>sabrocha ante o infinito da <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> seu objeto, segundo Lepargneur. 110CONCLUSÃOO teólogo francês Hubert Lepargneur enriqueceu nossa pesquisa <strong>com</strong> os seguintesel<strong>em</strong>entos: a <strong>dor</strong> e o <strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong>spertam a pessoa para a noção <strong>de</strong> sua vulnerabilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sua finitu<strong>de</strong>; gran<strong>de</strong> parte dos males que ating<strong>em</strong> a humanida<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ve aos pecados daspessoas e ao mau uso <strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong>; a liberda<strong>de</strong> da pessoa que enfrenta os <strong>sofrimento</strong>s t<strong>em</strong>que conferir um sentido ao que lhe ocorre <strong>com</strong>o condição para sustentar o mal que a atinge,tornando os momentos dolorosos <strong>em</strong> ocasiões <strong>de</strong> aprendizag<strong>em</strong> e crescimento <strong>humano</strong> eespiritual; na morte e no processo doloroso que po<strong>de</strong> envolvê-la, a pessoa, mesmoamedrontada, po<strong>de</strong> coroar sua existência apoiada na sua fé religiosa, única forma <strong>de</strong> não<strong>de</strong>sesperar-se <strong>diante</strong> do seu último <strong>sofrimento</strong>; ao <strong>sofrimento</strong> é possível conferir um sentidoquando colocado <strong>diante</strong> da pessoa <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré que, ao encarnar-se, se solidariza e se<strong>com</strong>pa<strong>de</strong>ce <strong>de</strong> todos os sofre<strong>dor</strong>es, tornando, ele mesmo, mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> todos os pacientes. Pormeio <strong>de</strong> Jesus Cristo, Deus chama o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, esmagado pelo <strong>sofrimento</strong>, à <strong>com</strong>unhão <strong>de</strong>vida <strong>com</strong> ele, convite que aponta para a sua realização plena; o <strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong>, quandounido à cruz <strong>de</strong> Cristo, participa da re<strong>de</strong>nção da humanida<strong>de</strong> alcançando assim a salvação; a110 Cf. ibid., p. 52-53.77


esposta cristã da <strong>com</strong>paixão, que abarca a humanização, ou seja, <strong>de</strong> <strong>ser</strong>viço aos que sofr<strong>em</strong>, éuma resposta convincente ao <strong>sofrimento</strong>; <strong>diante</strong> do <strong>sofrimento</strong> constata-se que os avanços damedicina não resolv<strong>em</strong> tudo e que o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus é limitado; o mal é mistério, epermanecerá, para muitos, a maior hipoteca, tanto sobre a existência quanto sobre a bonda<strong>de</strong><strong>de</strong> Deus ou seu po<strong>de</strong>r soberano sobre a terra.Perguntamo-nos se esses el<strong>em</strong>entos são suficientes <strong>com</strong>o um apoio <strong>de</strong>cisivo dateologia cristã à pessoa que sofre. Lepargneur indicou-nos um el<strong>em</strong>ento que provocou <strong>em</strong> nósa necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um aprofundamento. Trata-se da sua convicção quando afirma que o<strong>sofrimento</strong> só t<strong>em</strong> sentido se colocado <strong>diante</strong> <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré. Concordamos <strong>com</strong> oteólogo francês que, <strong>em</strong> linhas gerais, abordou t<strong>em</strong>as da cristologia: Encarnação; asolidarieda<strong>de</strong> e <strong>com</strong>paixão <strong>de</strong> Cristo <strong>com</strong> os sofre<strong>dor</strong>es; a necessária <strong>com</strong>unhão <strong>com</strong> Jesus no<strong>sofrimento</strong> e a certeza da vida após a morte. Quer<strong>em</strong>os agora retomar esses el<strong>em</strong>entos eaprofundá-los, acrescentando outros <strong>com</strong>o o significado da Ressurreição e a práxis <strong>em</strong> favordos crucificados da história. Como vimos, o nosso teólogo <strong>com</strong>enta brev<strong>em</strong>ente a teologia quese <strong>de</strong>senvolve sobre a vulnerabilida<strong>de</strong> e impassibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus e, esse é outro el<strong>em</strong>entoimportante que quer<strong>em</strong>os aprofundar. Po<strong>de</strong>mos agora mudar o foco da questão do <strong>sofrimento</strong>perguntando: que experiência Jesus fez do <strong>sofrimento</strong> e que sentido conferiu a ele? Tentarrespon<strong>de</strong>r a esta pergunta <strong>ser</strong>á o nosso propósito no último capítulo do nosso trabalho.Far<strong>em</strong>os esse caminho à luz <strong>de</strong> vários teólogos atuais que reflet<strong>em</strong> sobre o sentido do<strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong> a partir da cristologia.78


CAPÍTULO IIIJESUS CRISTO E O SENTIDO DO SOFRIMENTOINTRODUÇÃOAs consi<strong>de</strong>rações antropológicas e teológicas <strong>de</strong> Hubert Lepargneur nos ajudaram a<strong>com</strong>preen<strong>de</strong>r que o <strong>sofrimento</strong> está aí e que precisamos conferir-lhe um sentido. Sua reflexãoteológica convida-nos, quando sofr<strong>em</strong>os, à participação dos <strong>sofrimento</strong>s <strong>de</strong> Cristo, pela fé.Neste capítulo quer<strong>em</strong>os enfatizar a experiência que Deus faz do <strong>sofrimento</strong> e <strong>com</strong>o orespon<strong>de</strong>. O caminho para essa aproximação é inevitavelmente cristológico. Lepargneur nosconduziu, <strong>com</strong> sua reflexão, até esse ponto. Desenvolver<strong>em</strong>os nossa reflexão <strong>em</strong> quatro eixos.No primeiro sublinhamos a humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus <strong>com</strong>o lugar on<strong>de</strong> ele faz sua a nossa históriahumana, <strong>de</strong>monstrando a radical solidarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus para conosco. No segundoconsi<strong>de</strong>ramos as atitu<strong>de</strong>s concretas <strong>de</strong> Jesus <strong>diante</strong> dos <strong>sofrimento</strong>s das pessoas, b<strong>em</strong> <strong>com</strong>oprocuramos uma aproximação do princípio que o motivava nessas ações. No terceirorefletimos sobre sua Paixão e morte, <strong>com</strong> o objetivo <strong>de</strong> nos aproximarmos do <strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong>Deus <strong>diante</strong> dos nossos. E no quarto, apresentar<strong>em</strong>os a Ressurreição <strong>de</strong> Jesus <strong>com</strong>o a resposta<strong>de</strong>finitiva para a superação do <strong>sofrimento</strong> e <strong>com</strong>o esperança aos crucificados da história.Far<strong>em</strong>os este caminho <strong>com</strong> o auxílio <strong>de</strong> diversos teólogos atuais, <strong>com</strong>o Jon Sobrino, JürgenMoltmann, Andrés Torres Queiruga, Afonso Garcia Rubio, entre outros que pesquisam aCristologia visando a dar apoio à pessoa que sofre.1 ENCARNAÇÃO E SOFRIMENTONossa proposição está alicerçada na certeza <strong>de</strong> que no hom<strong>em</strong> concreto Jesus <strong>de</strong>Nazaré se encontra a possibilida<strong>de</strong> insuperável para a <strong>com</strong>preensão <strong>de</strong> Deus e do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>,especialmente referido a <strong>com</strong>o lidar <strong>com</strong> o <strong>sofrimento</strong>. Assumindo a natureza humana, Cristoprimeiro se reveste <strong>de</strong> nossas fraquezas e vulnerabilida<strong>de</strong>s, sofrendo-as <strong>em</strong> sua própria pele atéo fim, e fim cruel, <strong>de</strong>sonroso, para, <strong>de</strong>ssa forma, elevar a vida do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> à sua mais altadignida<strong>de</strong>. Sua encarnação realiza seu encontro <strong>com</strong> cada <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Ele trabalhou, pensou,79


agiu e amou <strong>com</strong>o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, sendo verda<strong>de</strong>iramente um <strong>de</strong> nós, s<strong>em</strong>elhante a nós <strong>em</strong> tudo,exceto no pecado (Hb 4,5). Cristo manifesta plenamente o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> ao próprio <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>,mostrando seu fim último. Todas as aspirações profundas existentes no coração do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>encontram <strong>em</strong> Jesus Cristo sua fonte e ating<strong>em</strong> seu ápice. Em última análise, o mistério do <strong>ser</strong><strong>humano</strong> somente se torna claro e <strong>com</strong>preensível no mistério do Verbo encarnado (GS 22).Quer<strong>em</strong>os, nos tópicos que segu<strong>em</strong>, revisitar a teologia da encarnação, propondo-a<strong>com</strong>o gesto inequívoco da solidarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus para <strong>com</strong> os sofre<strong>dor</strong>es. Porque enten<strong>de</strong>mosque é pela aproximação <strong>de</strong> sua humanida<strong>de</strong> que po<strong>de</strong>mos perceber o posicionamento <strong>de</strong> Deusperante o <strong>sofrimento</strong>.1.1 O Mistério da Encarnação: Deus na história humana por meio <strong>de</strong> Jesus CristoA fé na encarnação verda<strong>de</strong>ira do Filho <strong>de</strong> Deus é o sinal distintivo da fé cristã: “Nistoreconheceis o espírito <strong>de</strong> Deus: todo espírito que confessa que Jesus veio na carne é <strong>de</strong>Deus” (1Jo 4,2 e também 1Tm 3,16).Nosso enfoque teológico é sobre a humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus e, inseparavelmente, sobre o<strong>sofrimento</strong> vivido por ele até sua morte na cruz, realida<strong>de</strong> revela<strong>dor</strong>a da imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um Deusfraco e impotente, mas solidário, o que leva a repensar, necessariamente, o conceito <strong>de</strong> po<strong>de</strong>re onipotência e seus atributos. Freqüent<strong>em</strong>ente, no âmbito eclesial, se insiste mais nadivinda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus Cristo que na sua humanida<strong>de</strong>. Enten<strong>de</strong>mos que sua humanida<strong>de</strong> e seu<strong>com</strong>portamento <strong>diante</strong> <strong>de</strong> suas <strong>dor</strong>es e <strong>diante</strong> das <strong>dor</strong>es dos outros <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s clarificam osentido que <strong>de</strong>u ao <strong>sofrimento</strong> referente ao conhecimento <strong>de</strong> Deus e <strong>de</strong> sua própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.É pela encarnação que melhor se <strong>com</strong>preen<strong>de</strong> o Deus <strong>de</strong> Jesus e, vinculado a ela, sua morte nacruz nos leva à <strong>com</strong>preensão <strong>de</strong> sua humanida<strong>de</strong>, entendida <strong>com</strong>o humanida<strong>de</strong> do próprioDeus.O Mistério da Encarnação introduz radical e pessoalmente a presença divina nahistória humana. Converte toda história <strong>de</strong> Jesus <strong>em</strong> caminho <strong>de</strong> salvação para nós e assimconverte cada um dos seus gestos, <strong>de</strong> suas palavras e <strong>de</strong> suas opções <strong>em</strong> manifestações daação salvífica do Pai. Longe <strong>de</strong> <strong>ser</strong> uma salvação puramente humana, realizada por um Jesuspuramente hom<strong>em</strong>, mesmo revestido <strong>de</strong> uma “vaga divinização <strong>de</strong> Cristo”, o que <strong>ser</strong>ia umaoferta <strong>de</strong> salvação mitológica camuflada numa atraente roupag<strong>em</strong> <strong>de</strong> humanismo, a80


encarnação, a carne real e autêntica assumida <strong>com</strong>o carne do Verbo, dá sentido a uma teologiareal, verda<strong>de</strong>ira e integralmente liberta<strong>dor</strong>a. 1 O dogma po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> assim resumido:Que se Jesus não é Deus, então não veio por ele nenhuma salvação. Nós estamosainda <strong>em</strong> nosso pecado e s<strong>em</strong> a certeza do futuro. Que se Jesus não é hom<strong>em</strong>, entãonão nos foi dada a nós a salvação. Que se a humanida<strong>de</strong> não é ‘<strong>de</strong> Deus’ (na mesmamedida <strong>em</strong> que meu próprio <strong>ser</strong> é meu e não por certa a<strong>com</strong>odação da linguag<strong>em</strong>),então a divinização do hom<strong>em</strong> não foi plenamente realizada e Jesus não éverda<strong>de</strong>iramente Deus. Que se a humanida<strong>de</strong> vinda ‘<strong>de</strong> Deus’ não é verda<strong>de</strong>irahumanida<strong>de</strong>, então não é salvo <strong>em</strong> Jesus o hom<strong>em</strong>, mas outro <strong>ser</strong>. 2Enten<strong>de</strong>mos que a verda<strong>de</strong>ira humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus é que possibilita uma experiênciaprofunda e verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Deus, o que implica uma recuperação da história <strong>de</strong> Jesus refletidanos evangelhos. Desta forma, se atesta um Deus que entra no mundo dos <strong>sofrimento</strong>s<strong>humano</strong>s, nas suas angústias e esperanças, na sua pobreza e fracassos. A <strong>de</strong>svalorização daencarnação do Filho eterno levou a uma acentuação <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> traços extraordinários(<strong>com</strong>o milagres por ele realizados) e à atribuição <strong>de</strong> títulos divinos, mais próprios dasdivinda<strong>de</strong>s pagãs (Rei, Altíssimo, Onipotente) ou <strong>de</strong> um Deus abstrato, racional, que do Deusdo evangelho (afirmado <strong>com</strong>o Pai por Jesus, no Espírito, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> uma singularida<strong>de</strong> trinitária).Próxima <strong>de</strong>sta mentalida<strong>de</strong> está a consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> Jesus <strong>com</strong>o <strong>ser</strong> híbrido (s<strong>em</strong>i-Deus ousuper-hom<strong>em</strong>), porém s<strong>em</strong> <strong>ser</strong> n<strong>em</strong> uma coisa n<strong>em</strong> outra, o que também o torna estranho edistante dos dramas <strong>humano</strong>s. Esquece-se assim que Jesus, “por qu<strong>em</strong> tudo foi feito”,alcançou <strong>ser</strong> “perfeito me<strong>diante</strong> os <strong>sofrimento</strong>s” e, “provado <strong>em</strong> tudo à nossa s<strong>em</strong>elhança”,“apren<strong>de</strong>u, sofrendo, a obe<strong>de</strong>cer” (Hb 2,10-14; 4,15; 5,8; 2.17). 3A encarnação <strong>de</strong> Jesus Cristo “posiciona” Deus <strong>em</strong> face do <strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong>. Aotomar a iniciativa e tornar-se um <strong>de</strong> nós, “provado <strong>em</strong> tudo <strong>com</strong>o nós <strong>com</strong> exceção dopecado” (Hb 4,15), Jesus Cristo eleva, engran<strong>de</strong>ce, realiza a assunção da vida humana,caracterizada por limitações e fragilida<strong>de</strong>s, impotente perante o mal. A encarnação é provacabal <strong>de</strong> que, apesar <strong>de</strong> tudo, vale a pena <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Esta solidarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus paraconosco, manifestada <strong>em</strong> Jesus Cristo, é prova do seu interesse e amor gratuito. Solidarieda<strong>de</strong>vivida num dinamismo que se <strong>de</strong>fine <strong>com</strong>o <strong>de</strong>sprendimento-encarnação-<strong>ser</strong>viço. Trata-se <strong>de</strong>um Deus <strong>de</strong>sconcertante que, não somente nos enviou profetas pra falar <strong>em</strong> seu nome, masEle mesmo veio até nós, tornou-se gente <strong>com</strong>o a gente, participando realmente <strong>de</strong> nossa123Cf. GONZÁLEZ, C. I. Ele é a nossa salvação. Cristologia e soteriologia. São Paulo: Loyola, 1992, p. 351.FAUS, G. citado por BOFF, L. Jesus Cristo Liberta<strong>dor</strong>. Ensaio <strong>de</strong> cristologia crítica para o nosso t<strong>em</strong>po.18. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2003, p. 140.Cf. GARZA, M. G.; BLANCO, J. C. C. Jesus Cristo. in: Dicionário <strong>de</strong> Catequética, PEDROSA, V. M;NAVARRA, M; LÁZARO, R; SASTRE, J. (Diretores) São Paulo: Paulus, 2004, p. 631.81


existência humana, falando a nossa linguag<strong>em</strong>. Este movimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprendimentoencarnaçãot<strong>em</strong> objetivo soteriológico: a humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus torna possível a nossalibertação-divinização. Porque Deus se fez nosso irmão <strong>em</strong> Jesus Cristo, nós po<strong>de</strong>mos nosrelacionar <strong>com</strong> Ele e invocá-lo <strong>com</strong>o Abba (Pai). É esta proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus conosco,radicalmente envolvido <strong>com</strong> nossa humanida<strong>de</strong>, que caracteriza o específico da fé cristã. 41.2 Dinâmica kenótica da encarnação a <strong>ser</strong>viço da humanida<strong>de</strong>O hino cristológico <strong>de</strong> Fl 2,6-11 diz que Jesus Cristo “não usou <strong>de</strong> seu direito <strong>de</strong> <strong>ser</strong>tratado <strong>com</strong>o um <strong>de</strong>us, mas se <strong>de</strong>spojou tomando a forma <strong>de</strong> escravo. Tornando-ses<strong>em</strong>elhante aos homens e reconhecido <strong>em</strong> seu aspecto <strong>com</strong>o um hom<strong>em</strong>” (vv. 6-7). O termo<strong>em</strong> questão, “kenosis” (<strong>de</strong>spojamento), não significa propriamente uma renúncia do Verbo àsua divinda<strong>de</strong>, <strong>com</strong>o interpretaram os teólogos da “morte <strong>de</strong> Deus”, para os quais este textosignificaria que Deus “se esvaziou” a tal ponto da sua transcendência que, a partir daencarnação, só po<strong>de</strong>mos encontrá-lo no hom<strong>em</strong>. Porém, não se aceita também interpretaçõesque “angelizam” a humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus, <strong>de</strong> tal sorte que <strong>de</strong>saparece o hom<strong>em</strong> real. O Verbo,ao encarnar-se, não assumiu uma “natureza pura” <strong>de</strong> “um hom<strong>em</strong> i<strong>de</strong>al”, mas tudo que anossa carne peca<strong>dor</strong>a significa (<strong>com</strong> exceção do pecado (Hb 4,15). Ele tornou-se um <strong>de</strong> nós,<strong>com</strong> todas as seqüelas <strong>de</strong> pecado (s<strong>em</strong> <strong>ser</strong> culpado, solidário conosco) e limitações próprias dohom<strong>em</strong> natural (por ex., injustiças, <strong>de</strong>senvolvimento da consciência humana, <strong>sofrimento</strong> etc.).Encarnação não significa um evento momentâneo (no seio <strong>de</strong> Maria), mas todo um processohistórico no <strong>de</strong>curso da vida <strong>de</strong> Jesus. Neste sentido, o hino cristológico forma um paralelo<strong>com</strong> Adão; hom<strong>em</strong> criado à imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus (Gn 1,26), que <strong>de</strong>cidiu <strong>ser</strong> igual a Deus(Gn 3,5). Jesus Cristo, pelo contrário, estando na forma <strong>de</strong> Deus, não usou <strong>de</strong> seu direito <strong>de</strong><strong>ser</strong> tratado <strong>com</strong>o um Deus (Fl 2,6), mas aceitou viver conforme o hom<strong>em</strong> peca<strong>dor</strong> “tomando aforma <strong>de</strong> escravo”, “na s<strong>em</strong>elhança da carne <strong>de</strong> pecado” (Rm 8,2), à s<strong>em</strong>elhança <strong>de</strong> todos oshomens. Isto já o constituía hom<strong>em</strong> para a morte, pois todo hom<strong>em</strong>, mesmo pessoalmente nãopeca<strong>dor</strong>, <strong>de</strong>ve passar por ela. Quando “abaixou-se, tornando-se obediente até a morte”,aceitou a condição <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> e, na plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta aceitação converteu-se <strong>em</strong> Servo porexcelência, protótipo do hom<strong>em</strong> (<strong>de</strong> on<strong>de</strong> a expressão <strong>de</strong> Rahner, “a cristologia é umaantropologia que transcen<strong>de</strong>-se a si mesma”). E, por isso mesmo é radicalmente pobre,4Cf. RÚBIO, A. G. Unida<strong>de</strong> na pluralida<strong>de</strong>. op. cit., p. 18-19.82


<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Ao “se <strong>de</strong>spojar”, o Filho <strong>de</strong> Deus rompeu, a partir do interior da históriahumana, <strong>com</strong> o esqu<strong>em</strong>a que se <strong>de</strong>senvolve <strong>com</strong>o signo do pecado. 5O <strong>de</strong>spojamento (autodoação) <strong>de</strong> Jesus abrange toda sua existência humana: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> onascimento-encarnação até a morte na cruz. A encarnação mostra que o Deus <strong>de</strong> Jesus Cristoé aquele que vai ao encontro do hom<strong>em</strong> e quer habitar no meio do seu povo, sendo capaz <strong>de</strong>renunciar ao que lhe pertence <strong>de</strong> mais próprio, o <strong>ser</strong>-Deus, para <strong>com</strong>unicá-lo aos homens(2Cor 8,3); e é assim exatamente <strong>com</strong>o revela a onipotência do seu Ser <strong>com</strong>o Amor.Esta “kenosis”, <strong>com</strong>o vimos, não significa abandonar ou anular a própria naturezadivina, mas sim assumir a condição humana, para <strong>com</strong>unicar, doar, através <strong>de</strong> si mesmo, suaprópria vida divina. Ao <strong>de</strong>spojar-se <strong>de</strong> si mesmo, porém, não se aliena, mas sim manifestaaquilo que ele é <strong>com</strong> maior proprieda<strong>de</strong>, <strong>com</strong>o Deus sob condição humana: amor, capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> doar-se, sendo assim plenamente ele mesmo o que se enten<strong>de</strong> somente por referência aomistério da Trinda<strong>de</strong>. O ponto mais alto <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>spojamento se manifesta no grito <strong>de</strong>abandono <strong>de</strong> Jesus na cruz (Mc 15,34; Mt 27,43) porque, aqui, não t<strong>em</strong> sequer a experiência<strong>de</strong> <strong>ser</strong> o que é, isto é, <strong>de</strong> receber do Pai aquela mesma divinda<strong>de</strong> que o Pai lhe <strong>de</strong>u. De fato, amorte na cruz revela o ponto alto da opção <strong>de</strong> Deus pela humanida<strong>de</strong> apenas por seu amorindizível. É aqui que, <strong>de</strong> forma paradoxal, porém real, Jesus é plenamente <strong>humano</strong> e solidário<strong>com</strong> a humanida<strong>de</strong> (até o ponto <strong>de</strong> não sentir a presença do Pai, a qu<strong>em</strong> já não invoca <strong>com</strong>oAbba, mas simplesmente <strong>com</strong>o Deus). 6Enten<strong>de</strong>mos, após essas consi<strong>de</strong>rações, que a cristologia da divinda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus Cristoe <strong>de</strong> sua unicida<strong>de</strong> <strong>com</strong>o salva<strong>dor</strong> escatológico é o ponto <strong>de</strong> chegada <strong>de</strong> um caminho que<strong>com</strong>eça pela sua humanida<strong>de</strong>. Impossível uma sã teologia da divinda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus s<strong>em</strong> que setenham os pés fincados no chão <strong>de</strong> sua humanida<strong>de</strong>. O projeto <strong>humano</strong> e o projeto divino <strong>em</strong>Jesus se interpenetram <strong>em</strong> estreita união, s<strong>em</strong> confusão e s<strong>em</strong> absorção <strong>de</strong> um no outro. Aencarnação não é uma realida<strong>de</strong> passiva. Deus vai assumindo a vida <strong>de</strong> Jesus, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a suaconcepção, na medida <strong>em</strong> que esta vida ia se <strong>de</strong>senvolvendo e assumindo suas opções<strong>de</strong>cisivas. Deste modo, contextualmente, se <strong>de</strong>senvolve o projeto histórico <strong>de</strong> Jesus, ou seja,sua opção fundamental, a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> fundo que marca a orientação da vida, das idéias e daspráticas, sua visão <strong>de</strong> Deus e do hom<strong>em</strong> orientada para o futuro. 7 Na humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus a567Cf. GONZÁLEZ, C. I. Ele é a nossa salvação. op. cit., p. 149-150.Cf. CODA, P. Encarnação. in: Dicionário Teológico o Deus Cristão. São Paulo: Paulus, 1998, p. 248-249.Cf. BOFF, L., Paixão <strong>de</strong> Cristo, Paixão do mundo. O fato, as interpretações e o significado ont<strong>em</strong> e hoje. 5.ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2003, p. 21-22: “Suas opções concretas <strong>em</strong> favor dos que sofriam não era s<strong>em</strong>perigos, tateamentos, preparações, crescimento e explicitação progressiva. Não é s<strong>em</strong> razão que S. Lucas diz:‘Jesus crescia <strong>em</strong> tamanho e <strong>em</strong> graça, <strong>diante</strong> <strong>de</strong> Deus e <strong>diante</strong> dos homens’ (Lc 2,52.40). Não diz apenas83


divinda<strong>de</strong> se revela. Na pobreza, na impotência, na cruz, aparece a riqueza, a força, asabe<strong>dor</strong>ia <strong>de</strong> Deus (1Cor 1,18-31). É <strong>com</strong> especial atenção às atitu<strong>de</strong>s e ações <strong>de</strong> Jesus <strong>diante</strong>dos <strong>sofrimento</strong>s <strong>humano</strong>s que vamos <strong>de</strong>scobrindo o <strong>ser</strong> mesmo <strong>de</strong> Deus, qu<strong>em</strong> ele é. Noutraspalavras, a encarnação do Filho <strong>em</strong> Jesus e sua humanida<strong>de</strong> mostram o agir <strong>de</strong> Deus e seus<strong>de</strong>sígnios para <strong>com</strong> toda humanida<strong>de</strong>: pelas ações e palavras <strong>de</strong> Jesus Deus nos conferiu<strong>com</strong>unhão consigo 8 (DV 2).1.3 A humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo <strong>com</strong>o ponto <strong>de</strong> partida para a solidarieda<strong>de</strong> <strong>com</strong> os quesofr<strong>em</strong>A fé <strong>em</strong> Jesus Cristo e toda reflexão cristológica estão alicerçadas no evento daRessurreição. A partir <strong>de</strong>sta experiência pascal, os discípulos encontram o sentido liberta<strong>dor</strong>último das atitu<strong>de</strong>s, das opções, do <strong>com</strong>portamento, da mensag<strong>em</strong> e da morte <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong>Nazaré. Portanto, a Páscoa <strong>de</strong> Jesus Cristo é o ponto <strong>de</strong> partida para a reflexão cristã sobre avida <strong>de</strong> Jesus, pelo fato que seus discípulos afirmam nos test<strong>em</strong>unhos mais antigos que oCrucificado é o ressuscitado (At 2,32-36; 5,30-32; 13,28-31; Rm 1,4; 1Cor 15,3-6).Na reflexão, porém, não <strong>de</strong>ve haver dicotomia entre o Cristo glorificado e o Jesusterrestre. Sua mediação salvífica é o fiel da balança para a relação hermenêutica entre suahumanida<strong>de</strong> e sua divinda<strong>de</strong>. 9 Enten<strong>de</strong>mos que esta relação norteia as atitu<strong>de</strong>s dos cristãos<strong>diante</strong> dos <strong>sofrimento</strong>s. Se Jesus nos revela toda a verda<strong>de</strong> sobre Deus e a salvação do hom<strong>em</strong>e, se é ao mesmo t<strong>em</strong>po media<strong>dor</strong> e plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta revelação (DV 2), é nele, no seurelacionamento <strong>com</strong> Deus e <strong>com</strong> as pessoas, especificamente <strong>com</strong> as que sofr<strong>em</strong>, que<strong>de</strong>scobrimos a imag<strong>em</strong> verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Deus. É a sua humanida<strong>de</strong> que nos traz esta revelação.Entretanto, v<strong>em</strong>os hoje que a valorização unilateral do Cristo glorificado t<strong>em</strong>justificado muitas <strong>dor</strong>es e <strong>de</strong>ixado <strong>em</strong> segundo plano o <strong>ser</strong>viço aos sofre<strong>dor</strong>es <strong>com</strong>o respostaao <strong>sofrimento</strong> (o que já refletimos no primeiro capítulo). Esta imag<strong>em</strong>, que <strong>de</strong>svaloriza ocaminho percorrido por Jesus <strong>de</strong> Nazaré, leva à sua exaltação religiosa, <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento dasopções que fez <strong>em</strong> favor <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> sofria e que o levou à crucificação. Cristo é visto <strong>com</strong>o algosublime, abstrato, distante. O eloqüente discurso sobre o “po<strong>de</strong>r” <strong>de</strong> Cristo t<strong>em</strong> “ratificado” os89<strong>diante</strong> dos homens, <strong>com</strong>o se fosse revelando, aos poucos, aos homens, aquilo que ele s<strong>em</strong>pre sabia porqueestava <strong>em</strong> Deus, mas igualmente <strong>diante</strong> <strong>de</strong> Deus. Ele ia conhecendo aos poucos e progressivamente o<strong>de</strong>sígnio <strong>de</strong> Deus e o assumia totalmente”.Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática “Dei Verbum” sobre a Revelação Divina. n. 2(documento citado <strong>em</strong> seguida por “DV”). in:. IDEM. Compêndio do Vaticano II. Constituições, Decretos e<strong>de</strong>clarações. op. cit.Cf. RÚBIO, A. G. O Encontro <strong>com</strong> Jesus Cristo Vivo. Um ensaio <strong>de</strong> cristologia para nossos dias. São Paulo:Paulinas, 1994, p. 16-17.84


po<strong>de</strong>res políticos, econômicos e também religiosos, estranhos ao caminho <strong>de</strong> <strong>ser</strong>viço aos <strong>ser</strong>es<strong>humano</strong>s ameaçados, feito por Jesus 10 . A referência exclusiva ao Cristo glorificado sepulta aprática <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré, que não foi neutro <strong>diante</strong> <strong>de</strong> tudo o que feria o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, mascolocou-se a <strong>ser</strong>viço <strong>de</strong>le, contra todo tipo <strong>de</strong> mal que o ameaçava. 11 Dentro <strong>de</strong> umaconcepção teística, cresce <strong>em</strong> nossos dias o Jesus “maravilhoso”, “po<strong>de</strong>roso” e “milagroso”,que fomenta a alienação, o <strong>de</strong>sconhecimento e o <strong>de</strong>s<strong>com</strong>prometimento <strong>com</strong> a realida<strong>de</strong> davida <strong>de</strong> pobreza e <strong>sofrimento</strong>s <strong>de</strong> milhões <strong>de</strong> pessoas. É um Cristo ‘pregado e a<strong>dor</strong>ado’ quenão exige uma práxis <strong>em</strong> favor dos crucificados da história, antes se <strong>com</strong>praz <strong>de</strong> cultos eorações, evi<strong>de</strong>nciando uma ruptura entre fé cristã e “mundo do <strong>sofrimento</strong>”. Cabe <strong>de</strong>spojá-lo<strong>de</strong>sta veste e <strong>de</strong>ixá-lo <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> experimentamos Deus pessoalmente. Jesus éaquele plenamente cheio <strong>de</strong> vida, que inaugurou uma nova humanida<strong>de</strong> e nos convida a seguirseus passos. Sua solidarieda<strong>de</strong> para <strong>com</strong> aqueles que sofriam nos mostra seu sonho <strong>de</strong> umasocieda<strong>de</strong> fraterna. 12Constatamos <strong>em</strong> nossos dias, na reflexão cristã sobre Jesus, que não se nega a suahumanida<strong>de</strong>, mas exalta-se tanto a sua divinda<strong>de</strong> <strong>com</strong> conceitos dogmáticos e títulos <strong>de</strong> “Rei”e <strong>de</strong> “Po<strong>de</strong>roso”, possui<strong>dor</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res sobrenaturais, <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> sua humanida<strong>de</strong>. Nãose consi<strong>de</strong>ra teologicamente o peso histórico <strong>de</strong> sua própria fé <strong>em</strong> Deus, <strong>de</strong> suas crises eangústias e, sobretudo, <strong>de</strong> suas atitu<strong>de</strong>s para <strong>com</strong> os que sofriam. Não se trata <strong>de</strong> negar suadivinda<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong> percebê-la precisamente na trama e nos conflitos <strong>de</strong> sua humanida<strong>de</strong>, odivino no <strong>humano</strong> e a partir do <strong>humano</strong> – e do <strong>humano</strong> Jesus. A pregação da pessoa <strong>de</strong> JesusCristo <strong>de</strong>ve ir diretamente ao encontro dos probl<strong>em</strong>as <strong>humano</strong>s hoje enfrentados. Daí anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resgatar essa dimensão humana <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré que o coloca <strong>diante</strong> <strong>de</strong>ssesprobl<strong>em</strong>as. Sua vida e sua mensag<strong>em</strong> é “Boa-Notícia” para o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> hoje:O significado <strong>de</strong> Jesus Cristo para as pessoas e povos, para as culturas e religiões <strong>de</strong>hoje, não <strong>ser</strong>á alcançado pela ênfase <strong>em</strong> sua divinda<strong>de</strong>, <strong>em</strong> seu distanciamento dosprobl<strong>em</strong>as <strong>humano</strong>s, mas pelo realce <strong>de</strong> sua humanida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> sua proximida<strong>de</strong> <strong>com</strong>os pobres e marginalizados, <strong>de</strong> sua ação liberta<strong>dor</strong>a, <strong>de</strong> seu anúncio profético <strong>em</strong>essiânico do Reino <strong>de</strong> Deus. 1310111213Cf. FERRARO, B. Cristologia. Petrópolis: Vozes, 2004, 17-31.Cf. RÚBIO, A. G. O Encontro <strong>com</strong> Jesus Cristo Vivo. op. cit., p. 21-22. Ver também GS 32 e 38.Cf. LIBÂNIO, J. B. Olhando para o Futuro. Prospectivas teológicas e pastorais do Cristianismo na AméricaLatina. São Paulo: Loyola, 2003, p. 90.FELLER, V. G. O sentido da salvação. Jesus e as religiões. São Paulo: Paulus, 2005, p. 50.85


2 JESUS DIANTE DOS SOFRIMENTOS HUMANOSOs evangelhos <strong>com</strong>provam as atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Jesus <strong>diante</strong> <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> sofria. Sua ativida<strong>de</strong>messiânica o tornou incessant<strong>em</strong>ente próximo do mundo do <strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong>. “Passoufazendo o b<strong>em</strong>” a qu<strong>em</strong> precisava <strong>de</strong> ajuda. Curava os doentes, consolava os aflitos, dava <strong>de</strong><strong>com</strong>er aos famintos, libertava os homens da sur<strong>de</strong>z, da cegueira, da lepra, do <strong>de</strong>mônio e <strong>de</strong>diversas <strong>de</strong>ficiências físicas (Mt 8,16; 14,34-36; Lc 4,19s;7,22-23). Era profundamentesensível a toda espécie <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong>, tanto do corpo quanto da alma (SD 16).A situação sócio-política-religiosa do t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Jesus era marcada pela opressão. Ainterpretação legalista da religião e da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus discriminava o povo simples,sofre<strong>dor</strong>. A Lei, <strong>com</strong> interpretações sofisticadas, longe do seu “espírito”, e as tradiçõesabsurdas impunham uma escravidão <strong>em</strong> nome <strong>de</strong> Deus (Mt 23,4; Lc 11,46). Jesus seposicionava contra esta visão: “Sabeis muito b<strong>em</strong> <strong>de</strong>sprezar o mandamento <strong>de</strong> Deus paraob<strong>ser</strong>var a vossa tradição” (Mc 7,9); e <strong>de</strong>smascarava uma malda<strong>de</strong> fundamental que era“omitir as coisas mais importantes da Lei: a justiça, a mi<strong>ser</strong>icórdia e a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>” (Mt23,23).Jesus não se apresenta <strong>com</strong>o um revolucionário social, n<strong>em</strong> se mostra interessadoapenas na conversão das consciências. Ele anuncia um sentido último que contesta osinteresses alienantes sociais, políticos ou religiosos dos grupos dominantes. Convoca a todospara uma dimensão absolutamente transcen<strong>de</strong>nte que supera este mundo <strong>em</strong> sua faticida<strong>de</strong>histórica <strong>com</strong>o o lugar do jogo dos po<strong>de</strong>res, dos interesses, da luta pela sobrevivência dosmais fortes. Jesus indica um sentido absoluto que tudo abarca e tudo supera. Dá um coloridob<strong>em</strong> próprio ao termo do “Reino <strong>de</strong> Deus”, que se enraíza no fundo mais utópico do hom<strong>em</strong>.Reino <strong>de</strong> Deus que significa a libertação escatológica do mundo e que já se instaura <strong>de</strong>ntro dahistória, adquirindo forma concreta nas modificações da vida (Mc 1,15). Para Jesus, a <strong>de</strong>fesada vida do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> é o critério <strong>de</strong> salvação, não o culto (Mc 2,23-26). O hom<strong>em</strong> vale maisdo que todas as coisas (Mt 6,26). A salvação é <strong>de</strong>cidida no amor ao próximo (Mt 25,31-36).De Deus não se fala abstratamente e prescindindo <strong>de</strong> seus filhos e do amor aos homens: “sealguém dis<strong>ser</strong> que ama a Deus, mas o<strong>de</strong>ia o seu irmão é um mentiroso, pois qu<strong>em</strong> não amaseu irmão a qu<strong>em</strong> vê, a Deus, a qu<strong>em</strong> não vê, não po<strong>de</strong>rá amar” (1Jo 4,20). A religião nãosubstitui o próximo, mas permanent<strong>em</strong>ente orienta o hom<strong>em</strong> ao verda<strong>de</strong>iro amor ao outro, noqual se faz presente, incógnito, Deus mesmo. (Mc 6,20-21; MT 25,40). 1414Cf. BOFF, L. Paixão <strong>de</strong> Cristo. op. cit., p. 23-29.86


2.1 Jesus <strong>diante</strong> da multidão dos pobres e marginalizadosEm seus sinais, Jesus mostra que o Reino <strong>de</strong> Deus já está presente (Lc 11,20). Ele ésímbolo que estabelece a relação entre a situação histórica e a plenitu<strong>de</strong> da salvação. Nosgestos e palavras <strong>de</strong> Jesus, Deus se revela e se afirma <strong>com</strong>o mi<strong>ser</strong>icórdia. A experiência doReinado <strong>de</strong> Deus no presente fundamenta, anima e faz <strong>de</strong>sejar a sua plenitu<strong>de</strong>. O Reino édirigido a todos, mas a soberania <strong>de</strong> Deus que se aproxima é boa notícia, sobretudo, para osque sofr<strong>em</strong>, são marginalizados, esmagados, porque supõe consolo, sacieda<strong>de</strong>, libertação,justiça, fraternida<strong>de</strong> e esperança. O Reino <strong>de</strong> Deus e as injustiças e <strong>sofrimento</strong>s <strong>humano</strong>s sãoantagônicos, pois, gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>sses males constitui uma expressão histórica do pecado. Aafirmação histórica da soberania <strong>de</strong> Deus implica e exige transformação, não só dos corações,mas daquelas situações e estruturas que <strong>de</strong>sumanizam e impe<strong>de</strong>m que se manifeste e cresçaesse Reinado divino. 15A presença solidária e liberta<strong>dor</strong>a <strong>de</strong> Jesus na história daqueles que sofriam é um dosfatos marcantes <strong>de</strong> sua trajetória humana. Sua vida situa-se no escalão mais baixo do espaçosocial, ali on<strong>de</strong> conflu<strong>em</strong> todos os afluentes da miséria humana: os pobres <strong>de</strong> pão e <strong>de</strong> cultura,os enfermos <strong>de</strong> corpo e <strong>de</strong> espírito, os <strong>de</strong>sprezados pela religião e pela socieda<strong>de</strong>. Contato quenada t<strong>em</strong> <strong>de</strong> casual, mas é procurado, consciente, reflexivo. Constitui uma tomada <strong>de</strong> posiçãonão dissimulada. Ele <strong>de</strong>ixa clara sua posição <strong>diante</strong> do mal: está ao lado das vítimas e contra omal que as oprime. Sua presença liberta o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> tanto da miséria radical que o oprime, opecado, <strong>com</strong>o <strong>de</strong> suas conseqüências, a doença, a fome, o <strong>de</strong>sprezo. 16 Nesse meio erachamado <strong>de</strong> “glutão e beberrão, amigo dos publicanos e peca<strong>dor</strong>es” (Mt 11,19). Para ele, apresença do Reino significava a presença salva<strong>dor</strong>a <strong>de</strong> Deus na vida <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> mais sofria, <strong>em</strong>primeiro lugar. Ele priorizava estar <strong>com</strong> os marginalizados do seu t<strong>em</strong>po, vítimas da rejeição,da segregação, da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, da injustiça, do pecado e do mal. Eram <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>sdiscriminados e excluídos porque estavam doentes, por causa da religião, por <strong>com</strong>portamentosconsi<strong>de</strong>rados imorais. Jesus olha diferente para este povo “cansado e esgotado”. O <strong>sofrimento</strong><strong>de</strong>ssas pessoas o toca e, ele se <strong>com</strong>pa<strong>de</strong>ce <strong>de</strong>las profundamente (Mt 9,36; 14,14) 17 e oferece151617Cf. BERNABÉ, C. Reino <strong>de</strong> Deus. in: Dicionário <strong>de</strong> conceitos fundamentais do cristianismo. São Paulo:Paulus, 1999, p. 679.Cf. QUEIRUGA, A. T. Recuperar a Salvação. op. cit., p. 124-126.O termo grego “splagchnidzomai” significa literalmente “revirar as entranhas” e é uma expressão judaicamuito forte que <strong>de</strong>signa a participação <strong>de</strong> uma pessoa no <strong>sofrimento</strong> da outra a ponto <strong>de</strong>le perpassar o lugarmais íntimo, o centro do afeto <strong>humano</strong>.87


acolhida, <strong>com</strong>preensão, amor e perdão. O Reino chegava antes para qu<strong>em</strong> mais necessitava <strong>de</strong>salvação, através <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré. 182.2 Jesus acolhe e perdoa os peca<strong>dor</strong>esPeca<strong>dor</strong>es no t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Jesus não eram somente as pessoas <strong>de</strong> má conduta (adúlteros,prostitutas, assaltantes etc.), mas também qu<strong>em</strong> exercia profissões “impuras” do ponto <strong>de</strong>vista da lei judaica (cobra<strong>dor</strong>es <strong>de</strong> impostos, açougueiros, pastores, pesca<strong>dor</strong>es etc.). Alémdisso, existiam alguns que se consi<strong>de</strong>ravam puros e justos, e <strong>de</strong>sprezavam os outros(Lc 18,9-14), atribuindo a si mesmos o direito <strong>de</strong> merece<strong>dor</strong>es do Reino. O gran<strong>de</strong> grupo <strong>de</strong>peca<strong>dor</strong>es era, portanto, <strong>de</strong>sprezado e marginalizado. Só restava para eles a mi<strong>ser</strong>icórdia <strong>de</strong>Deus. Foi o que experimentou o peca<strong>dor</strong> público, o publicano (cobra<strong>dor</strong> <strong>de</strong> impostos) eZaqueu. Este, <strong>de</strong>pois do encontro <strong>com</strong> Jesus, se converte e partilha os bens, <strong>com</strong>eçando umavida nova, na dinâmica do Reino (Lc 19,1-10). O perdão que Jesus oferece é sinal <strong>de</strong>gratuida<strong>de</strong> do Reino <strong>de</strong> Deus (Lc 7,41-43; Mt 18,23-25; Lc 15,11-32). O fariseu rejeita o dom<strong>de</strong> Deus porque está seguro <strong>de</strong> sua própria justiça. Consi<strong>de</strong>ra-se <strong>com</strong> “boa saú<strong>de</strong>”, s<strong>em</strong>necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “médico”. Despreza Jesus porque este procura os peca<strong>dor</strong>es (Mt 9,9-13). O<strong>com</strong>portamento <strong>de</strong> Jesus, <strong>em</strong> conexão <strong>com</strong> a reconciliação e o perdão, gratuitamenteoferecidos, é um dos sinais mais claros da presença do Reino na vida dos <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s. 192.3 Jesus e os doentesCristo taumaturgo e curan<strong>de</strong>iro dos corpos e das almas é título fundamentado narealida<strong>de</strong> do Jesus terreno. Obviamente, no t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Jesus não havia os mo<strong>de</strong>rnosconhecimentos científicos a respeito das doenças, n<strong>em</strong> a<strong>de</strong>quada teorização dos males <strong>de</strong>natureza psíquica e, as regras <strong>de</strong> higiene eram rudimentares. Neste contexto, se vê a ativida<strong>de</strong>curativa <strong>de</strong> Jesus entre as primeiras e mais b<strong>em</strong> atestadas páginas do Novo Testamento:“Jesus percorria toda a Galiléia... pregando a boa notícia e curando toda espécie <strong>de</strong> doençae enfermida<strong>de</strong> no povo. Sua fama se espalhou por toda Síria, e assim, levavam a ele todos osdoentes atormentados por várias doenças e <strong>dor</strong>es, en<strong>de</strong>moniados, epiléticos e paralíticos, eele os curava” (Mt 4,23-24; cf. tb. Mt 9,35; 14,34-36; 15,30-31). Cura da febre a sogra <strong>de</strong>1819Cf. ANGELO, A. Jesus e os marginalizados. in: Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saú<strong>de</strong>. op. cit., p.654.Cf. RÚBIO, A. G. O encontro <strong>com</strong> Jesus Cristo vivo. op. cit., p. 44-45.88


Pedro (Mt 8,15). Cura o paralítico, ao qual também perdoa os pecados (Mt 9,1-8). Restitui asaú<strong>de</strong> à mulher que havia doze anos sofria perdas <strong>de</strong> sangue (Mt 9,20-22). Restitui a visão aoscegos (Mt 9,27-31; 20,29-34; Mc 8,22-26; Jo 9,1-41). Restitui o ouvido e a palavra a umsurdo-mudo (Mc 7,31-37). Cura um hom<strong>em</strong> da mão atrofiada (Mt 12, 9-14). Cura umepilético (Mt 17,14-21), um hidrópico (Lc 14, 1-6) e uma mulher curvada, doente havia<strong>de</strong>zoito anos (Lc 13,10-17). 20A <strong>com</strong>paixão <strong>de</strong> Jesus para <strong>com</strong> essas pessoas o move à ação. S<strong>em</strong> <strong>de</strong>morar-se nadistinção entre o que é enfermida<strong>de</strong> natural ou possessão diabólica, ele “expulsa os espíritos ecura os que estão doentes” (Mt 8,16). Isso significa o triunfo <strong>de</strong> Jesus sobre satanás e ainstauração do Reino <strong>de</strong> Deus (Mt 11,5). Não ensina que a doença <strong>de</strong>va agora <strong>de</strong>saparecer domundo, mas a força divina que finalmente vencerá <strong>de</strong>s<strong>de</strong> agora age no mundo. Por isso, Jesusexige que eles creiam, pois tudo é possível à fé (Mt 9,28; Mc 5,36; 9,23). A fé <strong>em</strong> Jesusimplica a fé no Reino <strong>de</strong> Deus, e é esta fé que os salva (Mt 9,22; 15,28; Mc 10,52). Osmilagres antecipam o estado <strong>de</strong> perfeição que a humanida<strong>de</strong> reencontrará no Reino <strong>de</strong> Deus,conforme as profecias. Possu<strong>em</strong>, os milagres, um sentido simbólico referente ao t<strong>em</strong>po atual.A doença é o símbolo do estado <strong>em</strong> que se encontra o hom<strong>em</strong> peca<strong>dor</strong>: espiritualmente estácego, surdo, paralisado. A cura do enfermo é também um símbolo: representa a cura espiritualque Jesus v<strong>em</strong> realizar nos homens. Jesus perdoa os pecados do paralítico e, para mostrar quet<strong>em</strong> po<strong>de</strong>r para isso, cura-o (Mc 2,1-12).Os “milagres-sinais” têm realce, sobretudo no evangelho <strong>de</strong> João: a cura do paralítico<strong>de</strong> Betsaida significa a obra <strong>de</strong> vivificação realizada por Jesus (Jo 5,1-9.19-26) e a do cego <strong>de</strong>nascença mostra que Jesus é a luz do mundo (Jo 9). Como médico dos peca<strong>dor</strong>es, toma asdoenças sobre si (Mt 8,17; Is 53,4). Tal <strong>ser</strong>á, <strong>com</strong> efeito, o sentido da Paixão: Jesusparticipava da condição da humanida<strong>de</strong> sofre<strong>dor</strong>a, para po<strong>de</strong>r superar os seus males. 21Diante da doença, do <strong>sofrimento</strong> e da <strong>dor</strong>, a fé é provocada <strong>de</strong> modo profundo. Apessoa doente se vê no limite imposto a si mesma e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, mostra o <strong>de</strong>sejoincontrolável <strong>de</strong> ultrapassar esse limite. No fundo é o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> infinito presente <strong>em</strong> seu2021Cf. ANGELO, A. Jesus e os marginalizados. in: Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saú<strong>de</strong>. op. cit., p.655-656.Cf. GIBLET, J.; GRELOT, P. Doença-Cura. in: Vocabulário <strong>de</strong> Teologia Bíblica. 8. ed. Petrópolis-RJ:Vozes, 2005, p. 246-247. “Os milagres da vida <strong>de</strong> Jesus não se po<strong>de</strong>m consi<strong>de</strong>rar <strong>de</strong> início <strong>com</strong>o<strong>de</strong>monstrações prodigiosas inteiramente extrínsecas à realida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> test<strong>em</strong>unhar e legitimar. Omilagre do NT é sinal (s<strong>em</strong>eion), ou seja, a manifestação do agir salvífico <strong>de</strong> Deus <strong>em</strong> sua graça e revelação.Milagres que somente tivess<strong>em</strong> ocorrido s<strong>em</strong> nada querer dizer a alguém, no qual Deus <strong>de</strong> certa formaquisesse corrigir o curso objetivo do mundo, constitu<strong>em</strong> <strong>de</strong> ant<strong>em</strong>ão idéia absurda”. Cf. também RAHNERK. Curso Fundamental da Fé. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2004, p. 306.89


coração. Posta à prova, a fé conduz ao pedido do milagre. A fé cristã, contudo, ensina que omilagre não é “tábua <strong>de</strong> salvação” e que, sendo fruto da fé, está s<strong>em</strong>pre presente na vida cristã<strong>com</strong>o uma das tantas possibilida<strong>de</strong>s diferentes <strong>com</strong> as quais Deus revela a si mesmo e fazconhecer o seu amor. Como sinais, os milagres convidam para um significado mais profundopresente neles, que v<strong>em</strong> à luz através da palavra que os a<strong>com</strong>panha. Os milagres, entre tantosoutros sinais que Jesus realiza, são ações revela<strong>dor</strong>as <strong>de</strong> sua pessoa. Eles provocam areconhecer Nele o messias esperado, incitam à confiança <strong>em</strong> Jesus e convidam a a<strong>de</strong>rirplenamente à sua pessoa e ao seu Reino (Mc 2,1-2). 22Para Jesus, as curas realizadas significam que o Reino está presente (Mt 11,3). Isso é<strong>com</strong>preendido quando os <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s se transformam <strong>em</strong> crentes, pois <strong>com</strong> isso suarelação para <strong>com</strong> Deus e assim tudo se torna são. Po<strong>de</strong>mos questionar se a cura corporalnecessariamente t<strong>em</strong> que ter êxito (Mc 8,22-26), porém, não se po<strong>de</strong> negar que a doença e acura estão relacionadas <strong>com</strong> a fé.Não raras vezes v<strong>em</strong>os a experiência <strong>de</strong> pobreza e miséria que o hom<strong>em</strong> faz <strong>de</strong> simesmo quando sofre e o quanto <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do seu cria<strong>dor</strong>, e essa condição pessoal é o ponto <strong>de</strong>partida para fé. E se a fé significa salvação, a saú<strong>de</strong> corporal integra essa salvação.A fé não permite que se abandone a vida corporal às leis da natureza. A saú<strong>de</strong>corporal, contudo, é um sinal que escon<strong>de</strong> o novo, na ativida<strong>de</strong> terrena <strong>de</strong> Jesus; o novo, oReino <strong>de</strong> Deus, está presente nesta ativida<strong>de</strong> porque, por intermédio da fé, o essencial, arelação <strong>com</strong> Deus, se torna sã. Assim, o essencial nos milagres não é a diferençaexteriormente constatável <strong>de</strong>sses milagres frente ao que se vê no mundo, mas a quebra doesqu<strong>em</strong>a da re<strong>com</strong>pensa, isto é, o hom<strong>em</strong> recebe graça on<strong>de</strong> <strong>de</strong>veria contar <strong>com</strong> a <strong>de</strong>sgraça <strong>em</strong>erecê-la.Os milagres <strong>de</strong> Jesus apontam para o novo que surge na Páscoa, não mais <strong>com</strong>o sinal,mas <strong>com</strong>o a realida<strong>de</strong> da ressurreição. As curas e as narrativas <strong>de</strong> milagres (2Cor 12,12;At 3,1-8; 14,8-14) que acorr<strong>em</strong> na <strong>com</strong>unida<strong>de</strong> pós-páscal diz<strong>em</strong>, no contexto <strong>de</strong> todatradição <strong>de</strong> Jesus, qu<strong>em</strong> é o exaltado que atua <strong>com</strong> o seu Espírito na <strong>com</strong>unida<strong>de</strong>. Evi<strong>de</strong>nciama fé <strong>em</strong> sua dimensão histórica, corpórea (1Cor 6,13). 232223Cf. RINO, F. Milagre. in: Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saú<strong>de</strong>. op. cit., p. 786-788. “Osevangelhos não foram escritos para recordar Jesus ou para glorificar seus milagres, constituindo estes últimosapenas uma parte <strong>de</strong> seu conteúdo, que contém b<strong>em</strong> outras coisas; o interesse dominante neles é suscitar a fée fortalecê-la”; cf. KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2004, p. 35.Cf. GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento. op. cit., p. 174-175.90


45). 24 Apesar do contexto pascal <strong>em</strong> que foram escritos, os evangelhos narram Jesus <strong>com</strong>o2.4 Jesus: o “hom<strong>em</strong> das <strong>dor</strong>es”Com Jesus, a experiência da <strong>dor</strong> é única. Chamado “hom<strong>em</strong> das <strong>dor</strong>es” (Is 53,3) eliberta<strong>dor</strong> <strong>de</strong> todo o mal, Jesus, a partir <strong>de</strong> sua experiência interior, nos indica “<strong>com</strong>o” agir <strong>em</strong>face do <strong>sofrimento</strong>. Jesus não elaborou uma teoria para explicar o mal e o <strong>sofrimento</strong>. O quefez foi aproximar-se do mundo do <strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong> e, <strong>em</strong> seu seio, passou fazendo o b<strong>em</strong>(At 10,38). A resposta <strong>de</strong> Jesus surpreen<strong>de</strong> quando ele, além da proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste mundo da<strong>dor</strong>, assume sobre si este <strong>sofrimento</strong>. Faz, radicalmente, na sua carne a experiência do mal sobdiversas formas, <strong>com</strong>o qualquer <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Diante do mal que o espreita, não <strong>de</strong>siste <strong>de</strong>realizar sua missão, seu i<strong>de</strong>al. É por meio <strong>de</strong>ste seu <strong>sofrimento</strong> que ele t<strong>em</strong> que fazer <strong>com</strong> que“o hom<strong>em</strong> não pereça, mas tenha a vida eterna”. Pelo seu <strong>sofrimento</strong> e morte na cruz, elealcança as raízes do mal que nos atinge e realiza, <strong>de</strong>sta maneira, nossa salvação (SD 16).A vida <strong>de</strong> Jesus é vida humana. Nela acontec<strong>em</strong> as tramas e contradições próprias danatureza. Mas Jesus não é um lamuriento que se queixa do mal existente no mundo. Nãopergunta se Deus po<strong>de</strong>ria ter feito um mundo melhor. Não pergunta por que há tanta malda<strong>de</strong>no mundo e por que Deus nada faz. Ele simplesmente vive a vida do jeito que ela é. Não fogeao sacrifício que toda vida engajada inclui: perseguição, in<strong>com</strong>preensão, difamação, etc.Acolhe as limitações da vida. Tudo que é <strong>humano</strong> aparece nele: ira, alegria, bonda<strong>de</strong>, tristeza,tentação, pobreza, fome, se<strong>de</strong>, <strong>com</strong>paixão e sauda<strong>de</strong>. Não con<strong>ser</strong>va sua vida para si, mas a doatornando-se um <strong>ser</strong> para os outros: “eu estou no meio <strong>de</strong> vós <strong>com</strong>o qu<strong>em</strong> <strong>ser</strong>ve” (Mc 10,42-“o hom<strong>em</strong> das <strong>dor</strong>es” interpretando <strong>de</strong> forma messiânica o quarto canto do <strong>ser</strong>vo sofre<strong>dor</strong> doDêutero-Isaías, a ponto <strong>de</strong> ter que justificar teologicamente esta imag<strong>em</strong>, até o extr<strong>em</strong>o <strong>de</strong> vertoda a <strong>dor</strong> da história sob o seu signo (1Pd 2,21-25; 3,18; 4,1; Rm 15,3; Hb 12,2). 25 Noentanto, o Jesus dos evangelhos quase nada fala a respeito da <strong>dor</strong>, o que respon<strong>de</strong> à realida<strong>de</strong>dos fatos.Como verda<strong>de</strong>iro hom<strong>em</strong>, Jesus t<strong>em</strong> consciência <strong>de</strong> que há probl<strong>em</strong>as que se tornamobstáculo para ver Deus presente, agir salvificamente na história. Jamais consi<strong>de</strong>ra a <strong>dor</strong> dosoutros <strong>com</strong>o conseqüência <strong>de</strong> culpa (Lc 13,1-5). Sabe do <strong>de</strong>stino que aguarda os profetas (Mt13,57; 23,34-39). Fala sobre os níveis da <strong>dor</strong> que são próprios da relação humana e do2425Cf. BOFF, L. Paixão <strong>de</strong> Cristo. op. cit., p. 33-34.Cf. FAUS, J. I. G. Acesso a Jesus. Ensaio <strong>de</strong> teologia narrativa. São Paulo: Loyola, 1981, p. 86.91


cinismo endurecido da pessoa traumatizada e incapaz <strong>de</strong> integrar-se na convivência normal(Lc 17,17). Jesus admira a fé dos outros, o que implica sabe<strong>dor</strong>ia para aceitar que a <strong>dor</strong> estána vida para <strong>ser</strong> vencida, s<strong>em</strong> por ela se abater ou procurar um culpado. Por isso a fé cura e, afalta <strong>de</strong> fé é objeto <strong>de</strong> censura (Mt 7,7-10). Jesus ensina que a <strong>dor</strong> po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> o preço dafecundida<strong>de</strong> da vida e do seguimento seu e, quando este não é aceito, parece <strong>de</strong>monstraragressivida<strong>de</strong> e tristeza (Mc 8,33). Há, portanto, <strong>em</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré esta familiarida<strong>de</strong> <strong>com</strong> a<strong>dor</strong>, na base <strong>de</strong> sua <strong>com</strong>preensão e ternura (Mt 9,36), e <strong>de</strong> sua ação cura<strong>dor</strong>a e antifatalista(Mt 4,23-24). Ele <strong>de</strong>monstra familiarida<strong>de</strong> <strong>com</strong> a <strong>dor</strong>, mas também que não foi vencido porela. Revela sua concepção <strong>de</strong> amor que sensibiliza e dá resposta <strong>diante</strong> da <strong>dor</strong> e danecessida<strong>de</strong> do outro. A <strong>dor</strong> <strong>de</strong> Jesus é <strong>dor</strong> <strong>com</strong>o saída <strong>de</strong> si, ou seja, a <strong>dor</strong> dos outros causa asua <strong>dor</strong>. E a <strong>dor</strong> <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> quer que seja é, por Jesus, radicalmente intolerável (Mc 1,21-45),<strong>de</strong>monstrando alegria <strong>diante</strong> da vida. 26A <strong>dor</strong> <strong>de</strong> Jesus é uma <strong>dor</strong> não egoísta, não centrada <strong>em</strong> si mesmo, não doentia, mesmo<strong>em</strong> situação-limite. Aqui se vê que a “aceitação cristã da <strong>dor</strong>” significa aceitar que a própriasubjetivida<strong>de</strong> não é o centro e a chave <strong>de</strong> interpretação do mundo e, a partir daí se <strong>com</strong>eça a“existir para”. Ex<strong>em</strong>plo disso é o centurião e o ladrão que se convert<strong>em</strong> não ao ver que Jesusos salva, mas ao ver <strong>com</strong>o Jesus sofre (Lc 23, 39-42; Mc 15,39). Neste sentido é que se<strong>com</strong>preen<strong>de</strong> o “tomou sobre si as nossas <strong>dor</strong>es” (Mt 8,17) e o “vin<strong>de</strong> a mim todos os queestais cansados sob o peso do vosso fardo e eu vos darei <strong>de</strong>scanso”(Mt 11,28). Enten<strong>de</strong>-setambém o “sofreu por nós”, significando o sentido re<strong>de</strong>ntor e transcen<strong>de</strong>nte da <strong>dor</strong> <strong>de</strong> Jesus eda <strong>dor</strong> humana (1Pd 4,13; 2Cor 1,5; 4,10; Cl 1,24). 27O caminho percorrido por Jesus <strong>diante</strong> da <strong>dor</strong> é também <strong>de</strong>monstrado na carta aosHebreus: neste <strong>sofrimento</strong> apren<strong>de</strong>u a obe<strong>de</strong>cer (5,7-9), isto é, apren<strong>de</strong>u o <strong>de</strong>stino <strong>humano</strong>que só se realiza na aceitação cheia <strong>de</strong> esperança, que supera a aceitação estóica; “por tersofrido, po<strong>de</strong> socorrer” (2,18) porque está totalmente i<strong>de</strong>ntificado <strong>com</strong> a <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> humana(2,14), torna-se <strong>com</strong>passivo e digno <strong>de</strong> fé, traços que o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> precisa num sacerdote(2,17). Assim, conclui o autor: “Convinha, <strong>de</strong> fato, que aquele por qu<strong>em</strong> e para qu<strong>em</strong> todas ascoisas exist<strong>em</strong>, querendo conduzir muitos filhos à glória, levasse à perfeição (consagradosacerdote) por meio <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong>s” (2,10). 28262728Cf. FAUS, J. I. G. Acesso a Jesus. op. cit., p. 88-89.Cf. ibid., p. 91.Cf. ibid., p. 92-93.92


É nas atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Jesus <strong>diante</strong> dos <strong>sofrimento</strong>s <strong>humano</strong>s que ele se torna i<strong>de</strong>ntificável<strong>com</strong>o “hom<strong>em</strong> das <strong>dor</strong>es” e po<strong>de</strong>, por isso mesmo, aliviar nossas <strong>dor</strong>es, porque sabe o queenfrentamos. Esta aproximação <strong>de</strong> Jesus nos faz enten<strong>de</strong>r que, quando se recebe asolidarieda<strong>de</strong> dos outros no <strong>sofrimento</strong>, não se experimenta a ausência radical <strong>de</strong> Deus, ou, elaé menos sentida.2.5 O princípio mi<strong>ser</strong>icórdia nas ações <strong>de</strong> JesusNas ações <strong>de</strong> Jesus constata-se que Deus é bom e parcial. Sua bonda<strong>de</strong> se concretizaquando se coloca ao lado dos pobres, quando ama <strong>com</strong> ternura os privados <strong>de</strong> vida,i<strong>de</strong>ntificando-se <strong>com</strong> as vítimas <strong>de</strong>ste mundo, afirma Jon Sobrino. 29 O teólogo salva<strong>dor</strong>enhosublinha que o princípio mi<strong>ser</strong>icórdia é o princípio fundamental da atuação <strong>de</strong> Jesus, o que oanimava, e que <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> o sentimento <strong>de</strong> todos <strong>diante</strong> do <strong>sofrimento</strong> alheio. Significa um amorespecífico que está na orig<strong>em</strong> <strong>de</strong> um processo e permanece presente e ativo ao longo <strong>de</strong>le. Éuma re-ação <strong>diante</strong> do <strong>sofrimento</strong> alheio interiorizado, que chegou até às entranhas e aopróprio coração. E o <strong>sofrimento</strong> alheio é a causa <strong>de</strong>sta ação mi<strong>ser</strong>icordiosa. 30 Deve <strong>ser</strong>,portanto, historicizada <strong>com</strong> os feridos da humanida<strong>de</strong>. Reagir <strong>com</strong> mi<strong>ser</strong>icórdia e <strong>em</strong>penharse<strong>em</strong> <strong>de</strong>scê-los da cruz, trabalhando pela justiça, pois esse é o nome do amor que põe, paraeste fim, todas as capacida<strong>de</strong>s intelectuais, religiosas, científicas e tecnológicas. 31Esta mi<strong>ser</strong>icórdia primigênia <strong>de</strong> Deus aparece na vida <strong>de</strong> Jesus: na sua noção <strong>de</strong> Deuse do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, marca sua missão e provoca o seu <strong>de</strong>stino. Para Jesus, <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> significareagir <strong>com</strong> mi<strong>ser</strong>icórdia perante qu<strong>em</strong> sofre, <strong>com</strong>o b<strong>em</strong> expressa a parábola do BomSamaritano (Lc 10,29-37). O <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> cabal é, portanto, aquele que interioriza <strong>em</strong> suasentranhas o <strong>sofrimento</strong> alheio <strong>de</strong> tal modo que se torna parte <strong>de</strong>le e se converte <strong>em</strong> princípiointerno, primeiro e último <strong>de</strong> sua atuação, absolutamente necessária. Esta mi<strong>ser</strong>icórdia <strong>de</strong>finea Jesus que, freqüent<strong>em</strong>ente faz curas <strong>de</strong>pois do pedido “t<strong>em</strong> mi<strong>ser</strong>icórdia”. É uma resposta<strong>de</strong> <strong>com</strong>bate ao <strong>sofrimento</strong> e ao mal, <strong>de</strong> modo prático e que visa a erradicá-lo. 32A mi<strong>ser</strong>icórdia não é a única ativida<strong>de</strong> que Jesus exercita, mas é o que forma seufundamento, <strong>com</strong>o motivação radical que configura toda sua vida. O <strong>sofrimento</strong> das pessoas,29303132Cf. SOBRINO, J. O Princípio Mi<strong>ser</strong>icórdia. Descer da cruz os povos crucificados. Petrópolis-RJ: Vozes,1994, p. 23.Cf. ibid., p. 32-33.Cf. ibid., p. 26.Cf. ibid., p. 34-35.93


3,1-7). 35 Sab<strong>em</strong>os que o “final” <strong>de</strong> Jesus não é a <strong>de</strong>rrota, simbolizada na cruz, mas a vitória daseja qual for, s<strong>em</strong>pre aparece <strong>com</strong>o pano <strong>de</strong> fundo <strong>de</strong> sua atuação. O <strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong><strong>com</strong>ove suas entranhas e, essas entranhas <strong>com</strong>ovidas configuram tudo o que ele é: seu saber,seu esperar, seu agir e seu celebrar. Sua esperança é a dos pobres <strong>de</strong>sesperançados, quando secoloca a <strong>ser</strong>viço <strong>de</strong>les. 33O princípio mi<strong>ser</strong>icórdia leva também à <strong>de</strong>núncia daqueles que produz<strong>em</strong> vítimas,<strong>de</strong>smascarando a mentira <strong>com</strong> que cobr<strong>em</strong> a opressão e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, ao ânimo para queas vítimas <strong>de</strong>les se libert<strong>em</strong>. Quando este princípio é <strong>de</strong> fato assumido pela Igreja, aperseguição é inevitável, mas é “nota” da verda<strong>de</strong>ira Igreja <strong>de</strong> Jesus. 343 A CAUSA E O SENTIDO DA MORTE DE JESUS EM VISTA DA DOR E DOSOFRIMENTOO sonho <strong>de</strong> Jesus para os <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s fundamentado no seu Abbá-Reino <strong>de</strong> Deus,parece ter fracassado <strong>com</strong> sua morte vergonhosa. Envolvido radicalmente na história humana,foi pelos homens rejeitado. Razões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m religiosa-política marcam o processo <strong>de</strong> suapaixão e morte. Sua mensag<strong>em</strong> se chocou frontalmente <strong>com</strong> a doutrina e os interesses doscírculos dirigentes. Quando estes perceberam que Jesus antepunha o b<strong>em</strong> e a realização dohom<strong>em</strong> ao sist<strong>em</strong>a legal que lhes assegurava sua posição privilegiada, <strong>de</strong>cidiram matá-lo (Mcvida na ressurreição. É precisamente a ressurreição que ilumina e dá o sentido à morte <strong>de</strong>Jesus. Mas é vital que a reflexão pós-pascal sobre seu <strong>sofrimento</strong> e sua morte não se separe docontexto do seu caminho percorrido, das opções que fez, da sua mensag<strong>em</strong> e do seu modo <strong>de</strong>viver. Do contrário, o significado re<strong>de</strong>ntor da morte <strong>de</strong> Cristo vira mito, e muitas vezes mitosádico e cruel:Quando se abstrai da prédica e prática <strong>de</strong> Jesus, que o levaram à morte, obscurece-seo conteúdo cristão do sentido salvífico <strong>de</strong> sua morte. A morte <strong>de</strong> Jesus é a expressãohistórica da incondicionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua prédica e prática, perante a qual poucoimportavam as conseqüências fatais para sua vida. A morte <strong>de</strong> Jesus foi <strong>sofrimento</strong>causado pelos outros e <strong>em</strong> favor dos outros, para dar valida<strong>de</strong> incondicional à suaprática do b<strong>em</strong> e da resistência ao mal e ao <strong>sofrimento</strong>. 3633343536Cf. ibid., p. 37.Cf. ibid., p. 42-45.Cf. MATEOS, J.; CAMACHO, F. Jesus e a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2003, p. 111.SCHILLEBEECKX, E. História humana: Revelação <strong>de</strong> Deus. 3. ed. São Paulo, Paulus, 2003, p. 160-161.94


Olhamos a vida <strong>de</strong> Jesus <strong>com</strong>o um todo para <strong>de</strong>scobrir o sentido <strong>de</strong> sua morte.Insistimos que sua opção <strong>de</strong> colocar-se ao lado dos sofre<strong>dor</strong>es foi <strong>de</strong>terminante para suaexecução. Ele realmente esteve presente on<strong>de</strong> a miséria acontecia; on<strong>de</strong> os pobres <strong>de</strong> pão e <strong>de</strong>cultura se encontravam; on<strong>de</strong> os enfermos <strong>de</strong> corpo e <strong>de</strong> espírito sofriam e aguardavam ajuda;nos espaços on<strong>de</strong> a religião e a socieda<strong>de</strong> produziam marginalização e <strong>de</strong>sprezo.Quando, honestamente, se consi<strong>de</strong>ra o modo <strong>com</strong>o viveu Jesus, se vê um Deuspresente <strong>em</strong> todas as situações <strong>de</strong> <strong>dor</strong> e <strong>de</strong> miséria humana. Ter s<strong>em</strong>pre presente na reflexão avida <strong>de</strong> Jesus é fundamental para afastar teorias expiatórias que reduz<strong>em</strong> a re<strong>de</strong>nção ao final<strong>de</strong>sta vida, a seu <strong>sofrimento</strong> e morte, convertendo assim a re<strong>de</strong>nção numa reparação dohom<strong>em</strong> me<strong>diante</strong> um preço. Conseqüent<strong>em</strong>ente, se lança a salvação somente para a outravida, para o além. Esta teoria nasce da inversão sacrifical do sentido soteriológico dotr<strong>em</strong>endo escândalo da cruz e da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> explicá-lo. Assim se diz que Jesus “<strong>de</strong>via”morrer; que morreu “segundo as escrituras”; que esta morte era “o preço”. Desvirtuada, estateoria tornou <strong>com</strong>preensível a morte <strong>de</strong> Jesus: <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> dar um sentido, ou <strong>de</strong> ajudar a viver<strong>com</strong> sentido um s<strong>em</strong>-sentido, chegou-se a eliminar o s<strong>em</strong>-sentido que constituía o ponto <strong>de</strong>partida. 37Aconteceu que ao dar sentido a esta morte <strong>de</strong> Jesus se chegou a dar um sentido a toda<strong>dor</strong> e a toda morte, e a ver a morte <strong>de</strong> Jesus <strong>com</strong>o um caso particular <strong>de</strong>ssa lei geral pela quala <strong>dor</strong> expia, o sacrifício reconcilia e o preço resgata.A reflexão sobre a cruz não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> entendida apenas <strong>com</strong>o expressão <strong>de</strong> submissão,mas sinal <strong>de</strong> resistência e que, portanto, n<strong>em</strong> toda submissão é cristã n<strong>em</strong> somente asubmissão é cristã; ao contrário, cristã é a difícil dialética <strong>de</strong> resistência e submissão. 38Medula do cristianismo, a cruz <strong>de</strong> Jesus t<strong>em</strong> para nós uma dureza escandalosa difícil <strong>de</strong>aceitar (o que ver<strong>em</strong>os no tópico seguinte). Minimizá-la é dar a chancela <strong>de</strong> que é necessáriapara uma re<strong>de</strong>nção expiatória. Aqui Deus <strong>ser</strong>ia o responsável pela morte <strong>de</strong> Jesus, não oshomens. Ele a quis por seus <strong>de</strong>sígnios inescrutáveis. Conseqüent<strong>em</strong>ente, na cruz o hom<strong>em</strong> se<strong>de</strong>scarrega <strong>de</strong> sua responsabilida<strong>de</strong> e os inimigos venc<strong>em</strong>. 39É vital, para a nossa reflexão sobre o posicionamento <strong>de</strong> Deus no <strong>sofrimento</strong>, aconsi<strong>de</strong>ração da cruz e da morte <strong>de</strong> Jesus <strong>com</strong>o resultado <strong>de</strong> sua práxis <strong>em</strong> favor dos quesofriam. É o que quer<strong>em</strong>os sublinhar a seguir.373839Cf. FAUS, J. I. G. Acesso a Jesus. op. cit., p. 66.Cf. ibid., p. 67.Cf. ibid., p. 67-69.95


3.1 A con<strong>de</strong>nação à morte e seus motivos: conseqüência <strong>de</strong> sua solidarieda<strong>de</strong> <strong>com</strong> os quesofr<strong>em</strong>De ant<strong>em</strong>ão é preciso afirmar que a morte <strong>de</strong> Jesus é uma conseqüência histórica dotipo <strong>de</strong> vida que assumiu: um messianismo <strong>de</strong> <strong>ser</strong>viço, <strong>em</strong> conformida<strong>de</strong> <strong>com</strong> a vonta<strong>de</strong> doPai, <strong>em</strong> vista da salvação da humanida<strong>de</strong>. A rejeição à mensag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Jesus, ao Reino por eleanunciado, e que o levou à morte, é responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s concretos. Nessesentido, Jesus morre martirizado, morre a morte do profeta justo (Mt 23,31.37). É precisotambém ter ciência <strong>de</strong> que Jesus revela qu<strong>em</strong> é Deus, também e <strong>de</strong> maneira especial, nasolidarieda<strong>de</strong> <strong>com</strong> os que sofr<strong>em</strong> b<strong>em</strong> <strong>com</strong>o dos que sofr<strong>em</strong> <strong>em</strong> conseqüência <strong>de</strong> suasolidarieda<strong>de</strong>, no caso, o próprio Jesus. Deus é um Deus <strong>de</strong> amor gratuito, não violento. Nãorenuncia <strong>em</strong> momento algum seu <strong>com</strong>promisso <strong>de</strong> respeito às <strong>de</strong>cisões humanas. Jesus<strong>com</strong>prometeria a noção do Deus-Ágape se tivesse assumido um caminho do po<strong>de</strong>rdomina<strong>dor</strong>. 40Este dado é fundamental, ou seja, o resgate da historicida<strong>de</strong> que permeou o caminhopré-pascal <strong>de</strong> Jesus, para a <strong>com</strong>preensão do significado <strong>de</strong> sua morte. Ele, <strong>de</strong> fato, não morreuuma morte natural ou aci<strong>de</strong>ntal. Foi morto pelos seus cont<strong>em</strong>porâneos, porque não aceitavamseu modo <strong>de</strong> viver e suas opções <strong>em</strong> favor dos pequenos. Sua morte, portanto, foiconseqüência <strong>de</strong> suas ações. 41 Jesus, porque autenticamente <strong>humano</strong>, é o Revela<strong>dor</strong>, o quetorna possível organizar toda a cristologia a título <strong>de</strong> princípio. Isto <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> tomadoespecialmente a sério <strong>em</strong> relação à morte <strong>de</strong> Cristo e ao evento pascal. Morreu humanamente,<strong>com</strong> tudo que isso significa <strong>de</strong> incerteza, dúvida e angústia. Falar da morte <strong>de</strong> Jesus <strong>com</strong>ocategoria teológica s<strong>em</strong> relação a um evento histórico e singular é fechar-se à <strong>com</strong>preensão doprocesso da Re<strong>de</strong>nção. 42Jesus enfrentou a rejeição e oposição à sua atuação, o que caracteriza uma crise na suamissão, pois seu agir foi julgado pelas autorida<strong>de</strong>s judaicas <strong>com</strong>o transgressão. A novida<strong>de</strong> doReino, por ele pregada, não é aceita, a conversão não se realiza e o conflito <strong>com</strong> os chefes vaise aprofundando, por conta da sua atitu<strong>de</strong> perante a Lei e os marginalizados. Nestaconflitivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stacamos os seguintes pontos que “preparam” sua morte:404142Cf. RÚBIO, A. G. O encontro <strong>com</strong> Jesus Cristo vivo. op. cit., p. 93-94.Cf. MOLTMANN, J. El Dios Crucificado. Salamanca, Sígu<strong>em</strong>e, 1975, p. 179-180: “O dado do qualnecessariamente t<strong>em</strong>os que partir, e o mais garantido hoje pela crítica histórica, é, pois, a morte <strong>de</strong> Jesus<strong>com</strong>o conseqüência <strong>de</strong> sua vida, coisa que não acontece <strong>com</strong> a morte ‘natural’, n<strong>em</strong> <strong>com</strong> a morte poraci<strong>de</strong>nte, mas só <strong>com</strong> a morte do con<strong>de</strong>nado, daquele que é ‘lançado fora’ do sist<strong>em</strong>a <strong>humano</strong>. Comoconseqüência <strong>de</strong> sua vida, a morte <strong>de</strong> Jesus é expressão da conflitivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua vida”. Cf. também FAUS, J.I. G. Acesso a Jesus. op. cit., p. 69-70.Cf. DUQUOC, CH. Cristologia, O Messias. Ensaio dogmático II. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1980, p. 19.96


Jesus blasf<strong>em</strong>a. “Os ju<strong>de</strong>us lhe respon<strong>de</strong>ram: não te lapidamos por causa <strong>de</strong> uma boaobra, mas por blasfêmia, porque sendo apenas hom<strong>em</strong>, tu te fazes Deus” (Jo 10,33); “Qu<strong>em</strong>po<strong>de</strong> perdoar pecados a não <strong>ser</strong> Deus?” (Mc 2,7). Repetidas vezes essa acusação correspon<strong>de</strong>à conduta <strong>de</strong> Jesus que reclamava a consciência <strong>de</strong> atribuir-se atos cujo autor só podia <strong>ser</strong>Javé. Isto revela uma ‘situação-limite’ para Jesus, ou seja, saber que a con<strong>de</strong>nação porblasfêmia é imposta pelos representantes <strong>de</strong> Deus. Fato que suscita dúvidas nos discípulos eos <strong>de</strong>sanima no caminho. Mostra ainda sensação <strong>de</strong> abandono no próprio Jesus. 43Sócrates morreu <strong>com</strong>o um sábio. Bebeu, animado e <strong>ser</strong>eno, o cálice <strong>de</strong> cicuta que lheapresentavam. Com isso mostrou gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> ânimo, provando ao mesmo t<strong>em</strong>po aimortalida<strong>de</strong> da alma que ensinava, <strong>com</strong>o disse Platão. Os mártires zelotes,crucificados pelos romanos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> levantes fracassados, morriam conscientes <strong>de</strong>sua justiça <strong>diante</strong> <strong>de</strong> Deus esperando a sua ressurreição para a vida eterna e aressurreição dos seus inimigos s<strong>em</strong> lei para a eterna ignomínia. Morriam por umacausa justa, a da justiça <strong>de</strong> Deus, conscientes <strong>de</strong> que acabariam por triunfar <strong>diante</strong> <strong>de</strong>seus inimigos. Os sábios estóicos <strong>de</strong>monstraram aos tiranos na arena <strong>em</strong> que foram<strong>de</strong>vorados por feras, a sua íntima liberda<strong>de</strong> e superiorida<strong>de</strong>. Os cristãos mártirestambém marcharam <strong>ser</strong>enos e <strong>com</strong> fé para a morte. Não há dúvida <strong>de</strong> que Jesusmorreu <strong>de</strong> outra maneira. Sua morte não foi bela. Os sinóticos falam unânimes <strong>de</strong>tr<strong>em</strong>or e t<strong>em</strong>or e <strong>de</strong> uma tristeza mortal na alma. Jesus morreu indubitavelmente<strong>com</strong> todos os sintomas <strong>de</strong> um profundo espanto. A <strong>com</strong>paração <strong>com</strong> os mártiresestóicos e cristãos indica que aqui, na morte <strong>de</strong> Jesus, existe algo <strong>de</strong> especial. Porisso, os discípulos <strong>de</strong> Jesus o abandonaram, na hora da crucificação ‘fugindo todos’(Mc 15,40). O fato documenta não uma covardia, mas uma fé rejeitada pelarealida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma morte abjeta. A vergonhosa morte <strong>de</strong> Jesus foi para os discípulosnão o aperfeiçoamento <strong>de</strong> sua obediência <strong>diante</strong> <strong>de</strong> Deus, n<strong>em</strong> muito menos a provamartirial <strong>em</strong> favor <strong>de</strong> sua verda<strong>de</strong>, mas a refutação <strong>de</strong> sua pretensão. 44Acusado <strong>de</strong> falso profeta. Como os profetas do AT, Jesus <strong>com</strong>bateu as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>ssociais (Lc 16,19-31); i<strong>de</strong>ntificou-se e colocou-se ao lado dos fracos, dos famintos, dos nus,dos prisioneiros e dos doentes (Mt 25, 31-46); era reconhecido <strong>com</strong>o um profeta no meio dopovo (Lc 7,16); o próprio Jesus teve consciência <strong>de</strong> que agia <strong>com</strong>o um profeta e morria <strong>com</strong>oprofeta, afirmando que possuía o Espírito <strong>de</strong> Deus, o que o ratificava <strong>com</strong>o profeta (Lc 4, 18-21).Acusado <strong>de</strong> violar o sábado. S<strong>em</strong>pre a favor <strong>de</strong> alguém necessitado, Jesus infringiu alei sabática. Interpretava a lei a partir dos valores que pregava. Para ele, a lei do amor quesocorre o fraco prevalecia na interpretação da lei. (Lc 10,25ss). O que importava era a vonta<strong>de</strong>salvífica do Pai manifestada pela lei (Lc 11,27ss) e não uma interpretação casuística queescravizava o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>: “o sábado foi feito para o hom<strong>em</strong> e não o hom<strong>em</strong> para o sábado”(Mc 2,27). Por isso os chefes do povo buscavam modos <strong>de</strong> matá-lo (Mt 3,6).4344Cf. FAUS, J. I. G. Acesso a Jesus. op. cit., p. 72.MOLTMANN, J. El Dios Crucificado. op. cit., p. 207-208.97


A entrada messiânica <strong>de</strong> Jesus <strong>em</strong> Jerusalém (Mc 11, 1-9). Ao expulsar osven<strong>de</strong><strong>dor</strong>es do T<strong>em</strong>plo, assume uma ação profética que o colocava na linha da crítica ao culto,feita pelos gran<strong>de</strong>s profetas. Ao ensinar no t<strong>em</strong>plo (Lc 19,47) <strong>de</strong>clarava-se senhor do mesmoou um profeta que age <strong>em</strong> nome <strong>de</strong> Javé e era recriminado por isso: “<strong>com</strong> que autorida<strong>de</strong>fazes isto, ou qu<strong>em</strong> te <strong>de</strong>u autorida<strong>de</strong> para fazê-lo?” (Mc 11,28). Assim Jesus provocava “oschefes do povo que resolveram livrar-se <strong>de</strong>le” (Mt 26,4) e o sumo sacerdote: “não percebeisque é melhor que morra um só hom<strong>em</strong>, e não pereça todo o povo?” (Jo 11,50). 45Jesus é acusado <strong>de</strong> agita<strong>dor</strong> político (Lc 23,2-5.13-24). Esta acusação eraindispensável para obter-se a con<strong>de</strong>nação por parte do po<strong>de</strong>r romano. Esta foi a causa oficial<strong>de</strong> sua con<strong>de</strong>nação à morte. A inscrição no ato da cruz <strong>de</strong> Jesus dizia: “Este é Jesus, o rei dosju<strong>de</strong>us” (Mt 27,37). Suas atitu<strong>de</strong>s tinham forte conotação política, porém, estava longe <strong>de</strong> <strong>ser</strong>um revolucionário ou agita<strong>dor</strong> político, no sentido da <strong>de</strong>núncia apresentada a Pilatos. Seusinimigos, contudo, perceberam b<strong>em</strong> que a estabilida<strong>de</strong> do status quo perigava <strong>com</strong> a atuaçãodo hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> Nazaré. Então ele t<strong>em</strong> que morrer. Diante disso Jesus percebia que sua morte<strong>ser</strong>ia violenta. 46Por <strong>ser</strong> verda<strong>de</strong>iro hom<strong>em</strong>, Jesus tinha que morrer. Trazia a morte inscrita <strong>em</strong> suabiologia, do mesmo modo que trazia a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>com</strong>er ou a capacida<strong>de</strong> do <strong>sofrimento</strong>.Porém, o “ter que morrer” não equivale a “ter que morrer na cruz”. Jesus po<strong>de</strong>ria ter morrido“naturalmente” após realizar a sua missão. Mas ele foi, na plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua vida, assassinado.Foi traído, escarnecido e, isso é algo que não mais pertence à “necessida<strong>de</strong>” da encarnação. Omodo da morte exige uma explicação concreta que parta das condutas humanas e dascausalida<strong>de</strong>s da história. 47 Esta consi<strong>de</strong>ração nos aponta para a importância <strong>de</strong> buscar ascausas históricas dos <strong>sofrimento</strong>s <strong>humano</strong>s e <strong>com</strong>batê-los, excluindo assim, a noção <strong>de</strong>“<strong>de</strong>stino” ou “fatalida<strong>de</strong>” <strong>diante</strong> <strong>de</strong>les.Po<strong>de</strong>mos perguntar agora: e Jesus? Como ele enfrentou a proximida<strong>de</strong> do seu“morrer” (<strong>com</strong>o refletimos no segundo capítulo)? É o que ver<strong>em</strong>os a seguir.454647Cf. GONZÁLEZ, C. I. Ele é a nossa salvação. op. cit., p. 153-158.RÚBIO, A. G. O encontro <strong>com</strong> Jesus Cristo vivo. op. cit., p. 92.Cf. QUEIRUGA, A. T. Recuperar a Salvação. op. cit., p. 179-180.98


3.2 Jesus no GetsêmaniNão <strong>com</strong>preendido, mensag<strong>em</strong> rejeitada, Jesus vai ficando sozinho. O povo quer outrotipo <strong>de</strong> messianismo, quer fazê-lo rei. Jesus está radicalmente <strong>de</strong>cidido pelo Abbá-Reino.Muitos discípulos não andavam mais <strong>com</strong> ele (Jo 6,66). Chega a hora da gran<strong>de</strong> angústia etentação. Hora <strong>em</strong> que o Pai fica <strong>em</strong> silêncio, não respon<strong>de</strong> ao clamor do Filho:Ele saiu e, <strong>com</strong>o <strong>de</strong> costume, dirigiu-se ao monte das oliveiras. Os discípulos oa<strong>com</strong>panharam. Chegando ao lugar, disse-lhes: ‘Orai para não entrar<strong>de</strong>s <strong>em</strong>tentação’. E afastou-se <strong>de</strong>les mais ou menos a um tiro <strong>de</strong> pedra, e, dobrando osjoelhos, orava: ‘Pai, se queres, afasta <strong>de</strong> mim este cálice! Contudo, não a minhavonta<strong>de</strong>, mas a tua seja feita!’ Apareceu-lhe um anjo do céu, que o confortava. E,cheio <strong>de</strong> angústia, orava <strong>com</strong> mais insistência ainda, e o suor se lhe tornous<strong>em</strong>elhante a espessas gotas <strong>de</strong> sangue que caiam por terra. Erguendo-se após aoração, veio para junto dos seus discípulos e encontrou-os a<strong>dor</strong>mecidos <strong>de</strong> tristeza.E disse-lhes: ‘Porque estais <strong>dor</strong>mindo? Levantai-vos e orai, para que não entreis <strong>em</strong>tentação’ (Lc 22,39-46).A reflexão sobre este doloroso momento na vida <strong>de</strong> Jesus tornou-se um símbolo, umareferência para os nossos <strong>sofrimento</strong>s, especialmente para as situações-limites. De fato, cadaum <strong>de</strong> nós t<strong>em</strong> o seu Getsêmani, aquele terrível momento <strong>de</strong> <strong>dor</strong>, <strong>de</strong> tristeza, quando parecetudo <strong>de</strong>smoronar e não somos capazes <strong>de</strong> suportar. É fundamental que enxergu<strong>em</strong>o-nos Nele,porque nele estamos. Não focamos o anjo do episódio, pois o miraculoso ten<strong>de</strong> a criardistância entre Jesus e nós, sobretudo quando estamos no “jardim”. Também o Jesus“Po<strong>de</strong>roso” e “Glorioso” parece não dizer quase nada à pessoa vitimada por uma <strong>dor</strong>insuportável, pelo câncer <strong>em</strong> estado terminal ou para a mãe que enterra seu filho, vítima <strong>de</strong>uma bala perdida. Jesus não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> “blindado” face ao <strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o se fosse um superhom<strong>em</strong>,o que nunca foi. Como nós, ele pe<strong>de</strong> para <strong>ser</strong> poupado e, Deus se cala. Ele é um <strong>de</strong>nós, verda<strong>de</strong>iramente.Em Mateus Jesus diz: “Minha alma está triste até a morte. Permanecei aqui e vigiai<strong>com</strong>igo” (Mt 26,38). Ninguém aten<strong>de</strong> o seu pedido. Quando os amigos som<strong>em</strong> (<strong>dor</strong>m<strong>em</strong>), o<strong>sofrimento</strong> é mais selvag<strong>em</strong>, é dobrado, quase <strong>de</strong>sespera<strong>dor</strong>. A solidarieda<strong>de</strong> <strong>com</strong> qu<strong>em</strong> sofreé e s<strong>em</strong>pre <strong>ser</strong>á o gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio cristão, porque é a única resposta que atenua a <strong>dor</strong> dosoutros. Na tentativa <strong>de</strong> encontrar uma saída honrosa para Jesus no seu Getsêmani <strong>com</strong>eteu-sedois erros: o da apatia e o da exclusivida<strong>de</strong>. É duro admitir que Jesus chorou, tr<strong>em</strong>eu e seentristeceu, porque isso po<strong>de</strong> afetar sua dignida<strong>de</strong>. Mas é precisamente aqui que resi<strong>de</strong> adignida<strong>de</strong> humana <strong>de</strong> Jesus, porque um hom<strong>em</strong> s<strong>em</strong> t<strong>em</strong>or é um <strong>ser</strong> mutilado, que se <strong>de</strong>sprezaa si mesmo a ponto <strong>de</strong> não mais sentir angústia a seu respeito. O t<strong>em</strong>or é sinal <strong>de</strong>enraizamento na vida. Um hom<strong>em</strong> s<strong>em</strong> medo <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> t<strong>em</strong>ido, pois é capaz <strong>de</strong> tudo O99


interesse da apatia, <strong>em</strong> contrapartida, é que Jesus seja vitorioso. Mas aqui a pedra da apatiatornou-se pó. A “noite” <strong>de</strong> Jesus é <strong>com</strong>o todas as noites, <strong>de</strong> todos os <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s. Apática éa natureza. O <strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong> Jesus não é anestesiado. Rogou ao Pai que o poupasse e também apresença dos amigos. Vãs tentativas. Jesus está só e, isso é que o vincula a todos os <strong>ser</strong>es<strong>humano</strong>s e à indiferença <strong>de</strong> seus s<strong>em</strong>elhantes. 48Quanto ao erro da exclusivida<strong>de</strong>, se diz que o <strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong> Cristo é in<strong>com</strong>parávelporque, rejeitado e humilhado, Deus para ele se tornou in<strong>com</strong>preensível. Mas Jesus não t<strong>em</strong>interesse <strong>de</strong> sofrer mais que todos. Ao contrário, sab<strong>em</strong>os que esse <strong>sofrimento</strong> se repete nomundo, na vida dos pobres, na vida dos doentes, quando a <strong>dor</strong> e a morte <strong>de</strong>stro<strong>em</strong> as certezasque, até então, se tinha sobre Deus.Nesse contexto cabe colocar o ex<strong>em</strong>plo que Dorothee Sölle conta <strong>de</strong> um jov<strong>em</strong>dinamarquês, Kim Malthe Bruun, que enfrentou o <strong>sofrimento</strong> voltando-se para a pessoa <strong>de</strong>Jesus. Ele foi fuzilado pela Gestapo <strong>em</strong> 1945. Tinha 21 anos. Três meses antes escreveu:A doutrina <strong>de</strong> Jesus não <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> uma doutrina que se segue por assim ter sidoensinada... Neste momento apreendo algo <strong>de</strong> mais profundo, aprendido <strong>de</strong> Jesus:que única e exclusivamente se <strong>de</strong>ve viver segundo a convicção da própria alma.Tenho pensado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então sobre o singular acontecimento que se <strong>de</strong>u <strong>com</strong>igo.Logo <strong>de</strong>pois senti um in<strong>de</strong>scritível alívio, uma jubilosa <strong>em</strong>briaguês <strong>de</strong> vitória, umainsensata alegria, que me <strong>de</strong>ixava <strong>com</strong>o que paralisado. Era <strong>com</strong>o se a alma setivesse tornado <strong>com</strong>pletamente livre... Quando a alma retornou ao corpo era <strong>com</strong>o seo júbilo <strong>de</strong> todo o mundo se tivesse reunido aqui. Mas aconteceu <strong>com</strong>igo o queaconteceu <strong>com</strong> tantos outros que se encontram sob os efeitos <strong>de</strong> entorpecentes.Depois que a <strong>em</strong>briaguês passara, veio a reação. Dei-me conta <strong>de</strong> que me tr<strong>em</strong>iamas mãos... E, contudo estava eu tranqüilo e <strong>com</strong> a alma mais forte do que antes. Nãoobstante isso, s<strong>em</strong> que eu sinta medo, s<strong>em</strong> que eu queira recuar, aumentavam asbatidas do coração, quando alguém fica parado <strong>diante</strong> <strong>de</strong> minha porta... Passei aperceber <strong>em</strong> seguida <strong>com</strong>o agora tenho uma nova <strong>com</strong>preensão da pessoa <strong>de</strong> Jesus.No t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> espera é que está a provação. Asseguro-lhes que sofrer um par <strong>de</strong>pregos transfixando as mãos, morrer na cruz, não é mais do que algo purament<strong>em</strong>ecânico, que <strong>de</strong>sloca a alma numa <strong>em</strong>briaguês dos sentidos, que não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong><strong>com</strong>parada <strong>com</strong> nenhuma outra coisa. Mas o t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> espera no Jardim, é este quefaz gotejar sangue vermelho. Mais uma coisa digna <strong>de</strong> nota: não senti nenhumódio...” Três s<strong>em</strong>anas <strong>de</strong>pois escrevia ele: “<strong>de</strong>s<strong>de</strong> então pensei seguidamente <strong>em</strong>Jesus. Não consigo enten<strong>de</strong>r b<strong>em</strong> esse amor s<strong>em</strong> limites que ele sentiu por todos oshomens, <strong>em</strong> especial por aqueles que estavam ali para transpassar-lhe as mãos <strong>com</strong>os pregos. Encontrava-se ele muito acima <strong>de</strong> toda a paixão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o momento <strong>em</strong> quesaiu do Getsêmani. 49Impossível traçar a distinção entre o <strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong> Jesus e o <strong>de</strong> outras pessoas.Qualquer <strong>sofrimento</strong> extr<strong>em</strong>o experimenta o abandono <strong>de</strong> Deus. Numa Unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> TerapiaIntensiva, quando se respira <strong>com</strong> ajuda <strong>de</strong> aparelhos, o enfermo olha para o teto branco e, por4849Cf. SÖLLE, D. Sofrimento. op. cit., p. 87-89.Ibid., p. 91.100


alguns instantes, assiste o “filme <strong>de</strong> sua vida”. Sente um medo terrível, uma tristeza imensa.Tudo se <strong>de</strong>smorona e, a morte <strong>de</strong>le se enamora. A sensação da ausência <strong>de</strong> Deus o toca nomais íntimo <strong>de</strong> sua pessoalida<strong>de</strong>, levando-o às lagrimas. Está só, <strong>diante</strong> <strong>de</strong> si mesmo. Está àmercê da carida<strong>de</strong> daqueles que têm a obrigação <strong>de</strong> “administrar” sua situação. O que <strong>ser</strong>á <strong>de</strong>mim? Pensa o doente. E vê que se realiza ali o seu Getsêmani. Esta “espera” estarrece<strong>dor</strong>a <strong>de</strong>alguma maneira se une à “espera” <strong>de</strong> Jesus. O doente olha para o Crucificado,misteriosamente renova suas forças e não <strong>de</strong>siste <strong>de</strong> viver. No fundo, vítimas do <strong>sofrimento</strong> eJesus se <strong>com</strong>preen<strong>de</strong>m. De fato, todo <strong>sofrimento</strong> limite afeta a relação <strong>com</strong> Deus. Porém:A experiência que Jesus fez no Getsêmani ultrapassa a <strong>de</strong>struição. É aquela doconsentimento. O cálice do <strong>sofrimento</strong> transformou-se <strong>em</strong> cálice da fortaleza.Quando o tiver esgotado superou toda a angústia. Aquele que finalmente retorna daoração para junto dos a<strong>dor</strong>mecidos é alguém diferente daquele que dali partira. Estálúcido e acordado, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> tr<strong>em</strong>er. ‘Basta. É chegada a hora. Levant<strong>em</strong>-se.Vamos!’ Em cada oração um anjo está à nossa espera, porquanto toda oraçãotransforma a qu<strong>em</strong> a faz, fortalece-o, uma vez que o faz recolher-se <strong>em</strong> seu íntimo eo torna atento no mais alto grau, sobre o que no <strong>sofrimento</strong> nos é tirado e que noamor nós mesmos somos capazes <strong>de</strong> dar. 50Apesar do medo, apesar da ameaça <strong>de</strong> prisão, tortura e morte cruel, Jesus se mantémfirme <strong>em</strong> sua opção, não <strong>de</strong>spreza sua vida, mas também não se agarra a ela a todo custo. Osevangelhos não apresentam Jesus <strong>com</strong>o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>st<strong>em</strong>ido, ousado, super-hom<strong>em</strong>. Para alémda fraqueza e vulnerabilida<strong>de</strong> históricas <strong>de</strong> Jesus eles interpretam-nas <strong>em</strong> direção à maneira <strong>de</strong>Deus estar presente <strong>em</strong> nosso meio, revestindo-se <strong>de</strong> nossas fraquezas, angústias elamentações.3.3 O Deus crucificadoJesus crucificado exige da fé cristã uma profunda revisão da imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus. Na cruzestá presente o justo abandonado. A teologia que aqui é possível não é a <strong>de</strong> que Deus nuncaabandona o justo, mas a mais in<strong>com</strong>preensível: a <strong>de</strong> que Deus entrega o seu Filho. Alinguag<strong>em</strong> sobre Deus, <strong>diante</strong> da cruz <strong>de</strong> Jesus, só po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> dialética: Deus é po<strong>de</strong>roso, masfraco também; salva o justo, mas o entrega também; é o imortal, mas morre; está presente,mas aniquilado. Diante da cruz os <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s precisam reconhecer a Deus. Enxergá-lo alion<strong>de</strong> ele não <strong>de</strong>veria estar. Porque é dali que <strong>em</strong>erge a <strong>de</strong>sconcertante e espinhosa questão:“Por que Deus permite isso?”. 515051Ibid., p. 94.Cf. FAUS, J. I. G. Acesso a Jesus. op. cit., p. 16.101


A fé Cristã confessa que nesse Jesus crucificado encontramos o próprio Deus feitohom<strong>em</strong>; que Jesus é a revelação <strong>de</strong> Deus numa existência humana, ou melhor, é o próprioDeus feito limitação humana. Deste modo, na cruz <strong>de</strong> Jesus ocorre uma revelação <strong>de</strong> Deus, oque nos <strong>de</strong>ixa perplexos. 52Os evangelhos narram os momentos finais da vida <strong>de</strong> Jesus que havia dito que tinha opo<strong>de</strong>r <strong>de</strong> entregar a sua vida e o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> retomá-la (Jo 10,17-18). Ele aceita a possibilida<strong>de</strong>da morte por fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao seu i<strong>de</strong>al, o Abbá-Reino. Na cruz <strong>de</strong>clara: “Está consumado! E,inclinando a cabeça entregou o espírito” (Jo 19,30). Isso indica certa luci<strong>de</strong>z e domínio <strong>de</strong> si<strong>em</strong> face do <strong>sofrimento</strong>. Lucas mostra Jesus que ora: “Pai, <strong>em</strong> tuas mãos entrego o meuespírito. Dizendo isso, expirou” (Lc 23,46). Marcos relata o grito <strong>de</strong> Jesus: “’Eloi, Eloi, l<strong>em</strong>asabachtháni’ que significa: ‘meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?’ Depois dandoum gran<strong>de</strong> grito, expirou” (Mc 15,34.37).Para o teólogo al<strong>em</strong>ão Jürgen Moltmann, a morte <strong>de</strong> Jesus na cruz é o centro <strong>de</strong> todateologia cristã. Em Cristo crucificado, Deus se i<strong>de</strong>ntifica <strong>com</strong> a humanida<strong>de</strong> sofre<strong>dor</strong>a. Aencarnação do Logos se <strong>com</strong>pleta na cruz. Portanto, a teologia da encarnação se converte <strong>em</strong>teologia da cruz:Tornando-se hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré, Deus entra na situação limitada e finita dohom<strong>em</strong>. Pela morte <strong>de</strong> cruz abraça também a situação do hom<strong>em</strong> abandonado porparte <strong>de</strong> Deus. Jesus abandonado pelo Pai, sua humilhação e morte, é a possibilida<strong>de</strong>para todo hom<strong>em</strong> abandonado experimentar sua <strong>com</strong>unhão <strong>com</strong> Deus. 53Aqui Moltmann afirma que a divinda<strong>de</strong> é afetada pelo <strong>sofrimento</strong> porque ama. Opathos está <strong>em</strong> Deus e isso o faz sentir-se afetado pelas ações e <strong>sofrimento</strong>s <strong>humano</strong>s nahistória. Isto porque Deus se interessa pelo b<strong>em</strong> do seu povo. O hom<strong>em</strong>, no entendimento doteólogo al<strong>em</strong>ão, <strong>de</strong>senvolve sua atitu<strong>de</strong> vital a partir das experiências <strong>com</strong> Deus. Aexperiência da paixão divina torna o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> receptivo às alegrias e <strong>dor</strong>es da vida: <strong>com</strong>oamigo <strong>de</strong> Deus, sofre <strong>com</strong> o <strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong> Deus, ama <strong>com</strong> o amor <strong>de</strong> Deus, espera <strong>com</strong> aesperança <strong>de</strong> Deus. 54 À experiência do pathos divino correspon<strong>de</strong> a simpatia do hom<strong>em</strong>.Também ela é <strong>de</strong>terminada por Deus. 5552535455Cf. RÚBIO, A. G. O encontro <strong>com</strong> Jesus Cristo vivo. op. cit., p. 100.MOLTMANN, J. El Dios Crucificado. op. cit., p. 349.Cf. ibid., p. 390-391.Cf. MOLTMANN, J. Trinda<strong>de</strong> e Reino <strong>de</strong> Deus. op. cit., p. 41.102


Cristo. 59 O Cristo “entregue” e abandonado por nós e por amor <strong>de</strong> nós é o irmão e amigo aoO grito <strong>de</strong> agonia <strong>de</strong> Jesus na cruz é a fenda aberta <strong>de</strong> qualquer teologia cristã. 56Moltmann elege a teologia da entrega afirmando que: o Pai abandona o Filho por nós, isto é,ele o entrega para tornar-se Deus e Pai dos abandonados. O Pai entrega o Filho para tornar-sePai dos entregues por meio <strong>de</strong>le (Rm 1,18ss). Isso transforma também o Pai Todo-Po<strong>de</strong>roso,pois Cristo foi crucificado na fraqueza <strong>de</strong> Deus (2Cor 13,4). O Filho é entregue a morte paratornar-se o irmão e salva<strong>dor</strong> dos con<strong>de</strong>nados e amaldiçoados.No entanto, é preciso distinguir nitidamente: na entrega do Filho também o Pai seentrega, porém, não da mesma forma. O Filho sofre o morrer no abandono. O Paisofre a morte do Filho. Ele a sofre na imensa <strong>dor</strong> do amor pelo Filho. À morte doFilho correspon<strong>de</strong>, por isso, a <strong>dor</strong> do Pai. 57A concreta história <strong>de</strong> Deus na morte <strong>de</strong> Jesus na cruz contém <strong>em</strong> si todas asprofundida<strong>de</strong>s e abismos da história humana, po<strong>de</strong>ndo, por isso mesmo <strong>ser</strong> interpretada <strong>com</strong>ohistória da história. Deste modo, por mais <strong>de</strong>terminada que esteja pela culpa, pelo <strong>sofrimento</strong>e pela morte está assumida nesta história <strong>de</strong> Deus, ou seja, na Trinda<strong>de</strong>, integrando-se nofuturo da história <strong>de</strong> Deus. Não há <strong>sofrimento</strong> nessa história que não seja convertido <strong>em</strong><strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong> Deus. Não há morte que não seja convertida <strong>em</strong> morte <strong>de</strong> Deus na históriasobre o Gólgota. Na mesma intensida<strong>de</strong>, não há vida, não há alegria, não há felicida<strong>de</strong> quenão se integr<strong>em</strong> na vida eterna, na eterna alegria <strong>de</strong> Deus. Todas as dimensões do <strong>humano</strong>experimentam a vida <strong>de</strong> Deus. 58Na entrega <strong>de</strong> Deus existe um <strong>sofrimento</strong> ativo (At 2,23). No entanto, Deus nãoprovoca os <strong>sofrimento</strong>s <strong>de</strong> Cristo, e Cristo não é uma vítima passiva <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong>s. Por meio<strong>de</strong> sua entrega, Deus vai <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> suas criaturas perdidas e ocupa-se <strong>com</strong> seu abandono, elhes traz sua <strong>com</strong>unhão imperdível. Toda a Trinda<strong>de</strong> está a caminho da entrega, que na paixão<strong>de</strong> Cristo atinge os homens perdidos e lhes é revelada. Moltmann conclui então que é purainsensatez pensar que uma pessoa da Trinda<strong>de</strong> teria sofrido e que a outra teria provocado. Seassim fosse, não se po<strong>de</strong>ria falar da “<strong>dor</strong> <strong>de</strong> Deus” que está na orig<strong>em</strong> dos <strong>sofrimento</strong>s <strong>de</strong>qual tudo se po<strong>de</strong> confiar, porque conhece tudo e sofreu todos os males que nos po<strong>de</strong> atingir.A resposta da teologia da “entrega” ao grito por Deus do Cristo abandonado por Deus: “MeuDeus, meu Deus, por que me abandonaste?” é, pois, a seguinte:56575859Cf. MOLTMANN, J. O caminho <strong>de</strong> Jesus Cristo. 2. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994, p. 110.Ibid., p. 237.Cf. MOLTMANN, J. El Dios Crucificado. op. cit., p. 349.Cf. ibid., p. 244.103


Abandonei-te por um breve instante, para que te tornasses o irmão dos homens<strong>de</strong>samparados e para que, <strong>em</strong> tua <strong>com</strong>unhão, nada mais pu<strong>de</strong>sse separar qualquerpessoa do nosso amor. Não te abandonei eternamente, mas estive contigo <strong>em</strong> teucoração. 60Desta forma, Moltmann purifica a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus colocando-o junto <strong>de</strong> nós, parceiroconosco na luta contra o mal e o <strong>sofrimento</strong>. Sua teologia nos ajuda a verificar oenvolvimento <strong>de</strong> Deus na história humana. Deus “sofre” nos acontecimentos dolorosos quenos ating<strong>em</strong>. Ele não é impassível, mas o Deus apaixonado da Bíblia. Se fosse incapaz <strong>de</strong>sofrer conosco, também <strong>ser</strong>ia incapaz <strong>de</strong> nos amar. O <strong>sofrimento</strong> precisa <strong>ser</strong> o ponto <strong>de</strong>partida da reflexão cristã para que alcanc<strong>em</strong>os uma solidarieda<strong>de</strong> real <strong>com</strong> as vítimas dahistória. No “Deus crucificado” v<strong>em</strong>os a relação <strong>de</strong> simpatia entre Deus e nós. Jesus, na suapaixão pela vida, aceita o <strong>sofrimento</strong> inevitável. O método dialético <strong>de</strong> Moltmann mostraDeus ao contrário: impotente, abandonado, amaldiçoado, <strong>em</strong> <strong>com</strong>unhão <strong>com</strong> todas as pessoassofre<strong>dor</strong>as.Jesus crucificado revela-nos um Deus que não é apático, n<strong>em</strong> impassível. É o Deus-Ágape que se faz hom<strong>em</strong> e se põe a <strong>ser</strong>viço da vida do hom<strong>em</strong>. Assume todas asconseqüências do “<strong>ser</strong> <strong>humano</strong>” e é atingido pelos <strong>sofrimento</strong>s, portanto. Nesta imag<strong>em</strong> <strong>de</strong>Deus <strong>em</strong>erge o Deus solidário <strong>com</strong> o <strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong> cada <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Um Deus que assume o<strong>sofrimento</strong> e a morte <strong>de</strong> Jesus e, inseparavelmente, o <strong>sofrimento</strong> e a morte <strong>de</strong> todos os <strong>ser</strong>es<strong>humano</strong>s. Um Deus que vence o mal, não <strong>com</strong> discursos, mas assumindo-o <strong>de</strong> acordo <strong>com</strong> opróprio interior da negativida<strong>de</strong> da história. Assim se <strong>com</strong>preen<strong>de</strong> melhor porque aqueles quesofr<strong>em</strong> constitu<strong>em</strong> a mediação privilegiada do Reino <strong>de</strong> Deus. Neles está presente <strong>de</strong> maneiraoculta o Filho (Mt 25,31ss). 61 Em Jesus crucificado o Todo-po<strong>de</strong>roso se humilha, olha para oque é pequeno. Reina nos céus, mas habita junto às viúvas e aos órfãos. O excelso vai aoencontro dos homens nas suas coisas pequeninas e <strong>de</strong>sprezíveis. 62Deste modo <strong>de</strong>scobrimos que, quando pa<strong>de</strong>c<strong>em</strong>os qualquer <strong>sofrimento</strong> po<strong>de</strong>mos estar<strong>em</strong> <strong>com</strong>unhão <strong>com</strong> o Deus crucificado e louvá-lo <strong>em</strong> <strong>com</strong>unhão <strong>com</strong> o Deus ressuscitado.Passamos assim da teologia da cruz para a teologia doxológica. 6360616263Ibid., p. 246.RÚBIO, A. G. O encontro <strong>com</strong> Jesus Cristo vivo. op. cit., p. 101.Cf. ibid., p. 41. “Essas auto-humilhações <strong>de</strong>v<strong>em</strong> <strong>ser</strong> entendidas <strong>com</strong> as a<strong>com</strong>odações <strong>de</strong> Deus às fraquezashumanas. Mas, <strong>com</strong>o adaptações do amor eterno, elas são ao mesmo t<strong>em</strong>po uma antecipação da universal cohabitação<strong>com</strong> a glória eterna <strong>de</strong> Deus. Tal fé no Deus que sofre juntamente <strong>com</strong> Israel é a fonte inesgotávelda força que pre<strong>ser</strong>va o povo perseguido do <strong>de</strong>sespero e do entorpecimento e mantém a sua esperança navida, atingida e abalada” (ibid., p. 42).Cf. ibid., p. 23.104


O Deus que ama o mundo não correspon<strong>de</strong> ao Deus que basta a si mesmo. ParaDeus, o imutável, tudo é igual e indiferente. Para Deus, o amante, nada é indiferente.Para um Deus indiferente, tudo é irrelevante. Para um Deus livre <strong>em</strong> seu amor, tudoé infinitamente importante. 64Tendo presente a questão Deus e o Sofrimento, quer<strong>em</strong>os clarear ainda mais pelareflexão cruz e encarnação, a presença solidária <strong>de</strong> Deus na história dos crucificados. Deus“não podia” <strong>ser</strong> indiferente às <strong>dor</strong>es humanas.3.4 Cruz e encarnaçãoA relação entre cruz e encarnação é t<strong>em</strong>a pertinente na reflexão <strong>de</strong> importantesteólogos. Se, permanent<strong>em</strong>ente colocarmos a questão sobre qu<strong>em</strong> é Jesus <strong>de</strong> Nazaré e o quesignifica para a humanida<strong>de</strong> e, especificamente, que resposta ele dá ao mal e ao <strong>sofrimento</strong>,ter<strong>em</strong>os acesso a uma imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus plenamente <strong>com</strong>prometido <strong>com</strong> os que sofr<strong>em</strong>,diferent<strong>em</strong>ente da imag<strong>em</strong> tradicional do Jesus, fort<strong>em</strong>ente marcada por sua divinda<strong>de</strong>, que otorna estranho aos probl<strong>em</strong>as <strong>humano</strong>s (<strong>com</strong>o já vimos e insistimos, porque é crucial para onosso trabalho). E essa imag<strong>em</strong> a partir <strong>de</strong> uma teologia renovada da cruz repercute sobre a<strong>com</strong>preensão da encarnação do Logos.Segundo Leonardo Boff, a cruz dá acesso à verda<strong>de</strong>ira humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus:É na humanida<strong>de</strong> total e <strong>com</strong>pleta <strong>de</strong> Jesus que encontramos Deus. A reflexão sobrea morte e a cruz nos propicia a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensarmos radicalmente ahumanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus. Na medida <strong>em</strong> que acolh<strong>em</strong>os Jesus assim <strong>com</strong>o osevangelhos, principalmente os sinóticos, no-lo pintam <strong>em</strong> sua vida carregada <strong>de</strong>conflitos, <strong>em</strong> sua via dolorosa, na proporção <strong>em</strong> que tomamos verda<strong>de</strong>iramente asério a encarnação <strong>com</strong>o esvaziamento, sim, exinanição <strong>de</strong> Deus, nesta mesmaproporção acolh<strong>em</strong>os a nós mesmos <strong>com</strong> toda nossa fragilida<strong>de</strong> e miséria, s<strong>em</strong>vergonha e humilhação. Esta senda teológica coloca-nos imediatamente noseguimento <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré, porque ele, primeiro, seguiu até o último passo onosso próprio caminho <strong>humano</strong>. 65Para Gustavo Gutiérrez, o <strong>sofrimento</strong> e o abandono vividos por Jesus, por conta dahumilhante e escandalosa con<strong>de</strong>nação à morte na cruz, o levaram a <strong>de</strong>monstrar <strong>de</strong> modo maisradical sua intenção <strong>de</strong> solidarizar-se <strong>com</strong> toda a humanida<strong>de</strong> e <strong>com</strong> cada <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, numaprofunda atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>com</strong>unhão. Ao gritar seu abandono na cruz, <strong>com</strong> o Salmo 22, Jesus revelaa solidão da pessoa que crê, sua queixa e esperança, faz a experiência <strong>de</strong> que o <strong>sofrimento</strong> nãoé uma situação i<strong>de</strong>al e sim a aspiração pela vida.6465Cf. MOLTMANN, J. Trinda<strong>de</strong> e Reino <strong>de</strong> Deus. op. cit., p. 162.BOFF, L. Paixão <strong>de</strong> Cristo. op. cit., p. 8.105


O fato é que Jesus o faz seu e, cravado na cruz, apresenta ao Pai a <strong>dor</strong> e o abandono<strong>de</strong> toda a humanida<strong>de</strong>. Esta profunda <strong>com</strong>unhão <strong>com</strong> o <strong>sofrimento</strong> dos <strong>ser</strong>es<strong>humano</strong>s o faz entrar até o mais fundo da história, precisamente no momento <strong>em</strong> quesua vida está a ponto <strong>de</strong> terminar. 66Também para Jon Sobrino, a morte <strong>de</strong> Jesus foi conseqüência histórica <strong>de</strong> sua vida. Eacrescenta que a cruz é resultado do plano <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong> encarnar-se <strong>em</strong> uma situação históricamarcada pelo pecado:Plano <strong>de</strong> Deus entendido <strong>com</strong>o a autêntica encarnação <strong>de</strong> Deus. Se Deus seencarnou na história, se aceitou os mecanismos, as ambigüida<strong>de</strong>s e as contradiçõesda história, então a cruz revela a Deus não só <strong>em</strong> si mesmo, mas conjuntamente <strong>com</strong>o caminho histórico que leva Jesus à cruz. A teologia da cruz <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> histórica, istoé, há <strong>de</strong> ver a cruz não <strong>com</strong>o um arbitrário <strong>de</strong>sígnio <strong>de</strong> Deus, mas <strong>com</strong>o aconseqüência da opção primigênia <strong>de</strong> Deus: a encarnação. A cruz é conseqüência <strong>de</strong>uma encarnação situada <strong>em</strong> um mundo <strong>de</strong> pecado que se revela <strong>com</strong>o po<strong>de</strong>r contra oDeus <strong>de</strong> Jesus. 67As gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>finições cristológicas do Concílio <strong>de</strong> Nicéia, no século IV trataram, nofundo, dos probl<strong>em</strong>as Deus e o <strong>sofrimento</strong>. A controvérsia centralizou-se no Arianismo. Ário<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u que o Logos não <strong>ser</strong>ia verda<strong>de</strong>iramente Deus. Não <strong>ser</strong>ia igual ao Pai. Pelo contrário,o Logos fora criado do nada pelo Pai <strong>com</strong>o a primeira e a mais excelsa criatura, a únicarealida<strong>de</strong> criada feita diretamente por Deus. A Palavra po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> chamada Filho e Deustambém (“e a Palavra era Deus” Jo 1,1), porém, não é da mesma substância do Pai. Mesmoexistindo antes <strong>de</strong> todas as criaturas, a Palavra teve um início <strong>de</strong> sua existência; houve umt<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que ela não era. No curso <strong>de</strong>vido, o Logos funcionou <strong>com</strong>o o instrumento do restoda criação (“todas as coisas foram feitas por meio <strong>de</strong>le” Jo 1,3), enquanto Deus permanecia àdistância do mundo. Na encarnação, a Palavra se fez carne por meio da união <strong>com</strong> um corpo<strong>humano</strong>. Nenhuma alma humana estava presente, pois seu lugar fora tomado pelo Logos.Assim, Jesus Cristo na <strong>com</strong>preensão ariana, é um <strong>ser</strong> intermediário, n<strong>em</strong> divino n<strong>em</strong><strong>humano</strong>. 68Entre outras palavras, estas afirmações visam a negar a realida<strong>de</strong> da crucificação. EmA fé <strong>em</strong> Jesus Cristo, Sobrino afirma que a razão pela qual Ário não aceitava a divinda<strong>de</strong> <strong>de</strong>Cristo era fundamentalmente o <strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong> Jesus, o Logos encarnado. Bispos e teólogos doConcílio precisavam tomar posição sobre a relação entre Deus e o <strong>sofrimento</strong>. Era necessáriopensar que Deus não só age <strong>em</strong> favor dos que sofr<strong>em</strong>, mas que se converteu num <strong>de</strong>les. É isto666768GUTIÉRREZ, G. Falar <strong>de</strong> Deus a partir do <strong>sofrimento</strong> do inocente. Uma meditação sobre o livro <strong>de</strong> Jó.Petrópolis-RJ: Vozes, 1986, p. 160.SOBRINO, J. Jesus, o Libera<strong>dor</strong>. p. 171. citado por SINIVALDO S. TAVARES. Cruz <strong>de</strong> Jesus e o<strong>sofrimento</strong> no mundo. A contribuição da teologia latino-americana. Petrópolis-RJ: Vozes, 2002, p. 73.Cf. FIORENZA, S. F.; GALVIN, P. J. Teologia Sist<strong>em</strong>ática. Vol.1. São Paulo: Paulus, 1997, p. 344-346.106


que está <strong>em</strong> jogo <strong>em</strong> Nicéia, na perspectiva das vítimas. Para Ário, Cristo não só não eraDeus, mas não podia <strong>ser</strong> Deus <strong>de</strong>vido às suas limitações e <strong>sofrimento</strong>s. O Concílio, porém,proclamou a divinda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus Cristo e, <strong>de</strong>sta forma, teve que pôr <strong>em</strong> relação, <strong>de</strong> algummodo, Deus e o <strong>sofrimento</strong>. Este é o fato fundamental que expressará algo específico da fécristã:Ao pôr <strong>em</strong> contato os dois termos Deus-<strong>sofrimento</strong>, o concílio <strong>de</strong> Nicéia nos situaante as duas questões mais <strong>de</strong>cisivas que se <strong>de</strong>ram na história e na vida dos homens.E ao respon<strong>de</strong>r afirmativamente que se dá uma cópula entre ambos, põe <strong>em</strong> relevo opróprio nervo da fé cristã <strong>em</strong> tudo que t<strong>em</strong> <strong>de</strong> irrupção impensada e inesperada, quenão se encaixa facilmente nos esforços explicativos n<strong>em</strong> nos <strong>de</strong>sejos <strong>humano</strong>s e queé antes juízo e con<strong>de</strong>nação <strong>de</strong>stes. 69Por fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> aos textos do Novo Testamento, os padres conciliares aceitaram adivinda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um Cristo sofre<strong>dor</strong>. Deus e o <strong>sofrimento</strong> se converg<strong>em</strong>. Com o interessesoteriológico, a partir das vítimas, po<strong>de</strong>-se afirmar que s<strong>em</strong> a afinida<strong>de</strong> não há salvação.Afinida<strong>de</strong> que chega ao nível mais angustiante do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, on<strong>de</strong> a expectativa <strong>de</strong> salvaçãoé mais necessária, ou seja, na experiência do <strong>sofrimento</strong>. Vale aqui a máxima da teologiagrega: “O que não foi assumido não foi redimido”. A divinda<strong>de</strong>, portanto, é afetada pelo<strong>sofrimento</strong>. Isto é fato salvífico. É escândalo para a razão e, num primeiro momento é<strong>de</strong>sola<strong>dor</strong> que o mistério, excesso <strong>de</strong> luz, se torne também um enigma, excesso <strong>de</strong>obscurida<strong>de</strong>. Esta relação Deus-Sofrimento <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> mantida <strong>com</strong>o condição <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>para expressar a realida<strong>de</strong> última <strong>de</strong> Deus, tanto <strong>em</strong> seu conteúdo, Deus é amor, <strong>com</strong>o <strong>em</strong> suaformalida<strong>de</strong>, Deus é mistério. Em contraposição à teologia grega do Deus-impassível, seafirma, implicitamente <strong>em</strong> Nicéia, que Deus é afetado pela realida<strong>de</strong> dos <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s. Aproclamação da divinda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus Cristo e <strong>de</strong> sua perfeita humanida<strong>de</strong> ensina, portanto, oque é <strong>ser</strong> Deus. Deus ama os <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s à maneira humana. Nesse sentido, <strong>diante</strong> do<strong>sofrimento</strong> <strong>humano</strong> na história, a forma mais eficaz <strong>de</strong> mostrar o inefável e inapreensível <strong>de</strong>Deus é simultanear <strong>em</strong> Deus transcendência e <strong>sofrimento</strong>. 70Se os nossos <strong>sofrimento</strong>s diz<strong>em</strong> respeito a Deus e o faz sofrer também, o que nosenche <strong>de</strong> esperança, porque experimentamos sua ausência e seu silêncio nas horas <strong>de</strong> <strong>dor</strong>?Andrés Torres Queiruga nos apresenta uma resposta.6970FAUS, G. Humanidad nueva. p. 447. Citado por SOBRINO, J. A fé <strong>em</strong> Jesus Cristo. Ensaio a partir dasvítimas. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000, p. 395.Cf. SOBRINO, J. A fé <strong>em</strong> Jesus Cristo. op. cit., p. 395-397.107


3.5 Em seu silêncio <strong>diante</strong> do <strong>sofrimento</strong> Deus é PalavraA imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um Deus que po<strong>de</strong> agir e eliminar o <strong>sofrimento</strong>, mas que não o faz éinquietante. Diante <strong>de</strong> muitas tragédias, <strong>com</strong>o o <strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong> crianças inocentes que gritampor socorro e não são ajudadas, <strong>de</strong> pessoas doentes que <strong>de</strong>dicaram suas vidas na construçãodo Reino <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong> pobres e injustiçados, nos <strong>de</strong>paramos <strong>com</strong> o silêncio <strong>de</strong> Deus. Ohorroroso abandono <strong>de</strong> Jesus no calvário provocará s<strong>em</strong>pre a pergunta: “Por que Senhor?” Afalta <strong>de</strong> respostas, a difícil <strong>com</strong>unicação <strong>com</strong> o divino, levam muitos a pensar que Deus causaou permite o mal, o <strong>sofrimento</strong> e a morte. Como ocorreu <strong>com</strong> Jesus, passamos por momentosterríveis <strong>em</strong> nosso sofrer e parece que Deus não nos quer ajudar ou, por seus <strong>de</strong>sígnios divinosnos prova 71 – ou então simplesmente se retirou <strong>em</strong> silêncio.No caso <strong>de</strong> Jesus, o princípio <strong>de</strong> que Deus não abandona o justo, cai por terra. Deusnão o socorre: “Confiou <strong>em</strong> Deus: pois que o livre agora, se é que se interessa por ele! Já queele disse: Eu sou Filho <strong>de</strong> Deus” (Mt 27,43). Era um atroz silêncio divino que parecia darrazão àqueles que o haviam con<strong>de</strong>nado. Como é assusta<strong>dor</strong> o silêncio do Deus-Ágape <strong>diante</strong>do Filho crucificado! Nos salmos v<strong>em</strong>os este abandono profundo que se experimenta noíntimo: “Não seja surdo à minha voz, porque, se tu te calas, <strong>ser</strong>ei mais um dos que <strong>de</strong>sc<strong>em</strong> àcova” (Sl 28,1). Experiência do <strong>de</strong>samparo: “Não fiques calado, <strong>em</strong> silêncio e inerte Senhor;olha que teus inimigos se agitam, e os que te o<strong>de</strong>iam levantam a cabeça” (Sl 83,2-3).Todavia, sublinha Queiruga, a partir <strong>de</strong> Cristo, na escuta da fé, sab<strong>em</strong>os <strong>de</strong> forma<strong>de</strong>finitiva que isso não é verda<strong>de</strong>: Deus jamais nos abandonou, e nunca está tão próximo <strong>de</strong>nós <strong>com</strong>o quando a injustiça dos homens ou a violência da vida <strong>com</strong> seus males nos pregamna cruz. 72Em nossa reflexão sobre o <strong>sofrimento</strong>, o silêncio <strong>de</strong> Deus é um aspecto do probl<strong>em</strong>ado mal. Perceb<strong>em</strong>os que estamos <strong>diante</strong> <strong>de</strong> uma “impotência” divina, ou dizendo <strong>com</strong> maisexatidão: <strong>diante</strong> <strong>de</strong> uma impossibilida<strong>de</strong> da criatura. O silêncio <strong>de</strong> Deus não se <strong>de</strong>ve a que elequeira calar, mas a que nós não po<strong>de</strong>mos escutar. Porque há uma distância abismal entre nóscriaturas e Deus Cria<strong>dor</strong>. Mas Deus, que é Ágape, nos ama a tal ponto que é capaz <strong>de</strong> realizareste mistério da <strong>com</strong>unicação: na encarnação Deus se auto<strong>com</strong>unicou a nós enquanto Palavra,para tornar acessível o inacessível. Olhando essa Palavra, que disse tudo, até <strong>de</strong>rramar seusangue na cruz, intuímos que Deus fez tudo quanto estava <strong>em</strong> suas mãos para aproximar-se <strong>de</strong>7172Cf. QUEIRUGA, A. T. Recuperar a Salvação. op. cit., p. 145-146.Cf. IDEM. Do terror <strong>de</strong> Isaac ao Abbá <strong>de</strong> Jesus. op. cit., p. 100.108


nós. Se existe silêncio, este se enraíza não no calar <strong>de</strong> Deus, mas na sur<strong>de</strong>z estrutural dacriatura, e isso “dói” nele.O evangelho nos garante que por trás <strong>de</strong>sse “silêncio” não se escon<strong>de</strong> o vazio do nadan<strong>em</strong> o interesse <strong>de</strong> uma onipotência que “não quer”, mas um amor salva<strong>dor</strong> s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong>sejoso<strong>de</strong> achegar-se a nós. 73 É o que v<strong>em</strong>os na experiência <strong>de</strong> Jesus:Nunca esteve o Pai tão perto <strong>de</strong> Jesus e tão unido a ele <strong>com</strong>o no momento terrível dacruz. Ativo, amoroso e <strong>com</strong>passivo: apoiando-o para que pu<strong>de</strong>sse enfrentar oinevitável s<strong>em</strong> que o inevitável o <strong>de</strong>struísse, para que fosse capaz <strong>de</strong> integrá-lo s<strong>em</strong>ce<strong>de</strong>r na coerência da sua <strong>de</strong>cisão n<strong>em</strong> <strong>de</strong>sesperar-se pelo fracasso aparente.Envolvendo-o todo na fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um amor que lhe assegurava –<strong>com</strong> todas asimpotências, acusações ou injustiças – a dignida<strong>de</strong> inviolável <strong>de</strong> sua pessoasofre<strong>dor</strong>a; assegurando-lhe uma <strong>com</strong>panhia que ninguém lhe podia roubar: “b<strong>em</strong>aventuradosvós, os pobres, os que chorais, os perseguidos ..., porque vosso é Deus evosso é o Reino”. Um amor, finalmente, que, cumprida as leis da história,conseguirá – <strong>com</strong>o nos revelou o ressucitado- fazer brilhar a verda<strong>de</strong>, vencer o mal eeliminar o <strong>sofrimento</strong> <strong>de</strong> todas as vítimas. 74A idéia <strong>de</strong> Deus <strong>com</strong>o onipotência abstrata, preconcebida e carregada por nós <strong>com</strong>categorias <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> influência, <strong>de</strong> ânsia e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za tão <strong>humano</strong>s, ou uma noção mágica<strong>de</strong> sua ação divina, cai por terra <strong>com</strong> a vinda <strong>de</strong> Jesus e é <strong>de</strong>finitivamente cruzada pela suamorte <strong>de</strong> cruz. Ele, <strong>em</strong> sua relação <strong>com</strong> o Pai, não <strong>de</strong>scobriu um <strong>ser</strong> onipotente à modahumana, mas um Pai <strong>de</strong> amor, liberda<strong>de</strong> e esperança:A onipotência <strong>de</strong> Deus quer dizer somente que ele po<strong>de</strong> realizar qualquer coisa quenão seja logicamente impossível. Deus não é impotente, pelo contrário, é tão potenteque po<strong>de</strong> criar a criatura entregue a si mesma, conce<strong>de</strong>ndo espaço ao outro s<strong>em</strong>absorvê-lo, porém, no seu amor e na encarnação, torna-se ‘vulnerável’ e assume aimpotência humana. 75É preciso prudência <strong>em</strong> atribuir a Deus, ao seu silêncio, as nossas situações dolorosas.A vida não é uma “prova” à qual Deus nos submete para salvar-nos, mas a condiçãoinevitável <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> para realizar essa salvação, isto é, para fazer-nos <strong>de</strong>finitivamenteplenos e felizes. Em nossa finitu<strong>de</strong>, incluindo as situações-limite <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong>, somoschamados a crescer e realizar-nos, nós mesmos, na liberda<strong>de</strong>. Estamos expostos ao<strong>sofrimento</strong>. Todavia, sab<strong>em</strong>os também o <strong>de</strong>finitivo: que o sentido está assegurado, já queviv<strong>em</strong>os <strong>em</strong>balados pelo amor <strong>de</strong> Deus, apoiados por sua presença ativa e <strong>com</strong> a esperança <strong>de</strong>sua vitória final sobre a culpa, o <strong>sofrimento</strong> e a morte. 7673747576Cf. IDEM. Recuperar a Salvação. op. cit., p. 147-149.QUEIRUGA, A.T. Recuperar a Criação. op. cit., p. 114.IDEM. Do terror <strong>de</strong> Isaac ao Abbá <strong>de</strong> Jesus. op. cit., p. 225-226.Cf. ibid., p. 227.109


4 A RESSURREIÇÃO DE CRISTO: SUPERAÇÃO DEFINITIVA DO MAL E DOSOFRIMENTOCom a morte <strong>de</strong> Jesus, tudo parecia ter terminado no mais absoluto fracasso. Sua vida,sua mensag<strong>em</strong> e sua luta para eliminar os <strong>sofrimento</strong>s pareciam sepultadas para s<strong>em</strong>pre. Masa resposta lhe foi dada, sua Ressurreição aconteceu, sua vida continuou, fato que ilumina e dásentido à sua existência humana e a <strong>de</strong> todos os <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s <strong>de</strong> todos os t<strong>em</strong>pos. A mortenão teve a última palavra. O anseio que tínhamos <strong>de</strong> uma vida nova, <strong>de</strong> um sentido para aexistência humana, a convicção <strong>de</strong> que viver vale a pena apesar dos <strong>sofrimento</strong>s, a esperançado amor que tudo renova, a vitória sobre a morte, tudo isso se realiza <strong>com</strong> a Ressurreição <strong>de</strong>Jesus.A orig<strong>em</strong> e o fundamento da fé na ressurreição são <strong>de</strong>scritas pelos evangelistas no“sepulcro vazio” (Mc 16,1-8; Jo 20,1-13; Mt 28,1-13) e nas “aparições <strong>de</strong> Jesus” (Mt 28,9-10.16-20; Lc 24, 13-49; Jo 20,11-21.23). Estas são as formas <strong>de</strong> expressar as experiências da<strong>com</strong>unida<strong>de</strong> cristã <strong>de</strong> que Jesus continua vivo e ativo. Importante ressaltar que João e Lucasassinalam a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do ressuscitado <strong>com</strong> o Crucificado (sinais da paixão nas chagas, tercarne e ossos, <strong>com</strong>er). 77O fato da ressurreição é formulado no NT <strong>de</strong> três modos: 1) Jesus “continua vivo” (Lc24,5), o que acentua que a morte física não interrompe a vida pessoal. Qu<strong>em</strong> possui o Espírito<strong>de</strong> Deus goza <strong>de</strong> vida que não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> <strong>de</strong>struída pela morte; 2) Como “havendo ressuscitado”(Mc 16,6; cf. At 10,41), Deus reivindica Jesus dando-lhe vida nova; 3) “Tendo sido exaltado”,ou, “estando à direita <strong>de</strong> Deus” (At 2,33; 5,31), que sublinha a condição divina <strong>de</strong> Jesus e aglória <strong>de</strong> seu novo estado <strong>de</strong>pois da morte. 78Com a ressurreição <strong>de</strong> Jesus, os primeiros discípulos vão <strong>com</strong>preen<strong>de</strong>ndo o sentidodas atitu<strong>de</strong>s, das opções, do <strong>com</strong>portamento, da mensag<strong>em</strong> e da morte <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré. APáscoa constitui o fundamento da fé <strong>em</strong> Jesus e o ponto <strong>de</strong> partida para a reflexão cristã sobreele: O Crucificado é o ressuscitado. Ficam assim iluminados o sentido da vida e da morte <strong>de</strong>Jesus. À luz da experiência pascal as <strong>com</strong>unida<strong>de</strong>s realizaram uma profunda releitura daexpectativa messiânica do Antigo Testamento que resulta na verda<strong>de</strong> do messianismo <strong>de</strong>Jesus <strong>de</strong> Nazaré. Por isso se vê a reflexão centrada na ressurreição-exaltação <strong>de</strong> Jesus (At2,32-36; 5,30-32; 13,28-31; Rm 1,4). A existência terrena <strong>de</strong> Jesus passa a ter um sentidoprofundamente liberta<strong>dor</strong>. Em Jesus Cristo, morto e ressuscitado, perceb<strong>em</strong> e confessam na fé7778Cf. MATEOS. J.; CAMACHO, F. Jesus e a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po. op. cit., p. 119.Cf. ibid., p. 118-119.110


cruz. 79 A ação que revela a Deus está, essencialmente, relacionada no acontecido a Jesus:dois modos <strong>de</strong> existir que caracterizam duas etapas distintas: a da fraqueza, modo <strong>de</strong> existir“segundo a carne”; e a da plenitu<strong>de</strong> do Espírito, modo <strong>de</strong> existência “segundo o Espírito” (Rm1,3-4; 1Tm 3,16; 1Pd 3,18). Ambas part<strong>em</strong> da fé na ressurreição daquele que foi morto na“Deus ressuscitou Jesus da morte” (Gl 1,1). Esta ação liberta<strong>dor</strong>a <strong>de</strong> Deus faz justiça a umavítima. Deus ressuscitou Jesus que anunciou o Reino aos pobres, <strong>de</strong>nunciou os po<strong>de</strong>rosos, foiperseguido e injustiçado, e manteve <strong>em</strong> tudo isso uma radical fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Éassim que viveu o ressuscitado por Deus. A revelação <strong>de</strong> Deus é, então, re-ação ao <strong>sofrimento</strong>que alguns <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s infring<strong>em</strong> a outros: o <strong>sofrimento</strong> das vítimas. 804.1 A Ressurreição <strong>de</strong> Jesus: esperança para as vítimasEnten<strong>de</strong>mos, <strong>com</strong>o o teólogo Jon Sobrino, que a Ressurreição <strong>de</strong> Jesus t<strong>em</strong> que dizeralgo às vítimas <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong>s no hoje da história, <strong>de</strong> modo que, para elas, seja o motivo daesperança na luta contra o mal. Isto significa que não se po<strong>de</strong> fazer da ressurreição um fato dopassado. O ressuscitado não po<strong>de</strong> converter-se num mito. Mesmo <strong>de</strong>pois da ressurreição <strong>de</strong>Cristo e por sua própria essência o hom<strong>em</strong> está orientado para o futuro <strong>de</strong> sua própria história,cuja plenificação espera (1Cor 15,13; Rm 8,11; 1Pd 1,3). A essência da fé cristã <strong>de</strong>ve afirmaro que já é enquanto não chega a <strong>ser</strong> plenamente para todos. A ressurreição <strong>de</strong> Jesus torna avida do hom<strong>em</strong> um êxodo. 81Jon Sobrino ressalta que a realida<strong>de</strong> da ressurreição não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> entendida somente<strong>com</strong>o a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida após a morte, mas <strong>com</strong>o ação <strong>de</strong> Deus que afeta eficazmente ahistória no seu presente, o que supõe a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se viver, na contingência que nos éprópria, já <strong>com</strong>o ressuscitados, 82 tendo a esperança das vítimas <strong>de</strong> que Deus triunfará sobre ainjustiça.O teólogo salva<strong>dor</strong>enho sublinha que a ressurreição <strong>de</strong> Jesus evi<strong>de</strong>ncia o Pai <strong>com</strong>oaquele que po<strong>de</strong> chamar à vida o que não é, e por isso <strong>com</strong>o amor a tudo o que é pequeno,aniquilado e con<strong>de</strong>nado à morte, suscitando esperança aos que sofr<strong>em</strong> na história. Se Deus79808182Cf. RÚBIO, A. G. O encontro <strong>com</strong> Jesus Cristo vivo. op. cit., p. 16-17.Cf. SOBRINO, J. A fé <strong>em</strong> Jesus Cristo. op. cit., p. 127-128.132.Cf. IDEM. Cristologia a partir da América Latina. Esboço a partir do seguimento do Jesus histórico.Petrópolis: Vozes, 1983, p. 274.Cf. IDEM, J. A fé <strong>em</strong> Jesus Cristo. op. cit., p. 24.111


Ressuscitou Jesus, então estava também na cruz <strong>de</strong> Jesus, estava nos horrores da históriahumana. 83 Deste modo, Jesus se torna esperança <strong>em</strong> primeiro lugar para os crucificados dahistória. Deus ressuscitou um crucificado e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, há esperança para os crucificados dahistória. Estes po<strong>de</strong>m ver <strong>em</strong> Jesus ressuscitado realmente o primogênito <strong>de</strong>ntre os mortos,porque na verda<strong>de</strong> o conhec<strong>em</strong> <strong>com</strong>o o irmão maior. Por isso po<strong>de</strong>rão ter a corag<strong>em</strong> <strong>de</strong>esperar sua própria ressurreição cheios <strong>de</strong> ânimo na história. Porque a cruz <strong>de</strong> Jesus, antes <strong>de</strong><strong>ser</strong> a cruz é uma cruz entre muitas outras antes e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Jesus.Hoje, sob diversas formas, diz Sobrino, muitas pessoas morr<strong>em</strong> crucificadas,assassinadas. Milhões morr<strong>em</strong> pela lenta crucificação produzida pela injustiça estrutural.Povos s<strong>em</strong> rosto n<strong>em</strong> figura, <strong>com</strong>o o Crucificado. 84 Existe, portanto, uma correlação entreressurreição e crucificados, análoga à correlação entre Reino <strong>de</strong> Deus e pobres. 85 Quando amorte própria não é só conseqüência das limitações biológicas n<strong>em</strong> do <strong>de</strong>sgaste que produzmanter a própria vida, e sim quando é conseqüência da entrega por amor aos outros e àquiloque nos outros há <strong>de</strong> pobre e produto da injustiça, então há uma analogia entre essa vida <strong>em</strong>orte e a vida e morte <strong>de</strong> Jesus. Então, e só então <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista cristão, po<strong>de</strong>r-se-áparticipar também na esperança da ressurreição. 86 Vislumbra-se aqui que o lugarhermenêutico para <strong>com</strong>preen<strong>de</strong>r a ressurreição <strong>de</strong> Jesus não é simplesmente a esperança, masa pergunta pela justiça na história do <strong>sofrimento</strong>, pergunta que não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> sufocada n<strong>em</strong>respondida afirmando que alguém ressuscitou. A discussão fundamental <strong>em</strong> torno daressurreição <strong>de</strong> Jesus não tratou da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensá-la física, biológica ouhistoricamente, mas sobre o triunfo da justiça, ou daquele que oprime ou daquele que éoprimido. 87 Sobrino então conclui que a ressurreição <strong>de</strong> Jesus não só é revelação do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>Deus sobre o nada, mas triunfo da justiça sobre a injustiça. 88Nesta perspectiva, diz o teólogo salva<strong>dor</strong>enho, a fé na ressurreição do Crucificado porparte <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> sofre e espera a salvação, se constitui no reconhecimento da onipotência <strong>de</strong>Deus, que é capaz <strong>de</strong> “dar vida aos mortos e chamar o que não existe à existência” (Rm838485868788IDEM, J. Jesus na América Latina. São Paulo: Vozes, Loyola, 1985.Cf. ibid., p. 220-221.SOBRINO, J. A fé <strong>em</strong> Jesus Cristo. op. cit., p. 71.Cf. ibid., p. 72: “Fora <strong>de</strong>ssa <strong>com</strong>unhão <strong>com</strong> o Crucificado, a ressurreição só diz possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sobrevivência, e essa sobrevivência, <strong>com</strong>o afirma a mais clássica doutrina da Igreja, é ambígua: po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> paraa salvação ou para a con<strong>de</strong>nação. Para que haja esperança que essa esperança seja salvífica, é necessárioparticipar da cruz <strong>de</strong> Jesus. E partir daí se po<strong>de</strong>rá universalizar a esperança da ressurreição e torná-la uma boanotícia para todos”.Cf. IDEM. Cristologia a partir da América Latina. op. cit., p. 253.Cf. IDEM. Jesus, o Liberta<strong>dor</strong>. A história <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 186.112


4,17). Se na cruz apareceu a impotência <strong>de</strong> Deus, incapaz <strong>de</strong> causar esperança, na ressurreiçãoo po<strong>de</strong>r divino se torna crível. A razão está <strong>em</strong> que a onipotência <strong>de</strong> Deus é expressão <strong>de</strong> suaabsoluta proximida<strong>de</strong> dos pobres e <strong>de</strong> que <strong>com</strong>partilha até o fim <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>stino. Importa paraos crucificados saber se Deus esteve na cruz <strong>com</strong> Jesus, o que consuma a proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Deus <strong>com</strong> eles na afirmação conseqüente da encarnação, anunciada e tornada presente porJesus durante a sua vida terrena. Com esta proximida<strong>de</strong>, os sofre<strong>dor</strong>es da história po<strong>de</strong>mrealmente crer que o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus é boa notícia, porque é amor, porque á palavra últimasobre a morte antecipada nos diversos <strong>sofrimento</strong>s.A cruz, então, é a expressão mais acabada do imenso amor <strong>de</strong> Deus aos crucificados e,a ressurreição <strong>de</strong> Jesus converte-se <strong>em</strong> “seu” símbolo <strong>de</strong> esperança. 89 A onipotência soberana<strong>de</strong> Deus na cruz só é <strong>com</strong>preendida através <strong>de</strong> sua impotência na cruz. Na ressurreição, Deusvai além <strong>de</strong> dar vida às coisas que não exist<strong>em</strong> (criação), superando não apenas o nada, mas amorte que é causada pela injustiça e pelo mal. O po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus sobre o mal e sobre a injustiçanão é exercido a partir <strong>de</strong> fora, mas submergido nele, na cruz. O que revela então Deus não éapenas o abandono <strong>de</strong> Jesus na cruz, n<strong>em</strong> só sua ação na ressurreição, mas a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Deus a Jesus nestes dois acontecimentos. O que revela Deus é a ressurreição do Crucificadoou a cruz do ressuscitado. Esta dualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aspectos é que permite conhecer a Deus <strong>com</strong>oprocesso aberto, cuja última síntese se realiza no éschaton. Esta dualida<strong>de</strong> é que permite dar,s<strong>em</strong> banalizá-lo, o novo e <strong>de</strong>finitivo nome <strong>de</strong> Deus: Deus é amor (1Jo 4, 8.16). S<strong>em</strong> aressurreição o amor não <strong>ser</strong>ia autêntico po<strong>de</strong>r; s<strong>em</strong> a cruz, o po<strong>de</strong>r não <strong>ser</strong>ia amor. 904.2 A práxis solidária <strong>em</strong> face do <strong>sofrimento</strong>: <strong>de</strong>scer da cruz os “crucificados”Já vimos que a resposta convincente ao mal é o <strong>com</strong>bate contra ele. A fé naressurreição <strong>de</strong> Jesus é que justifica esta postura. Jon Sobrino nos auxilia nesta <strong>com</strong>preensãoquando diz que nossa fé não só nos dá esperança <strong>de</strong> <strong>ser</strong>mos ressuscitados, mas nos faztambém ressuscita<strong>dor</strong>es. No terreno da analogia, trata-se <strong>de</strong> anunciar a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma boanotícia: fez-se justiça a uma vítima e trata-se <strong>de</strong> fazer realida<strong>de</strong> essa verda<strong>de</strong>.Para <strong>de</strong>terminar essa práxis, diz nosso teólogo, <strong>de</strong>ve-se levar <strong>em</strong> conta a dimensãoformal e material da ressurreição <strong>de</strong> Jesus. Formalmente, a ressurreição é uma ação <strong>de</strong> Deushistoricamente “impossível”, e daí a práxis a<strong>de</strong>quada <strong>ser</strong> aquela que mostre algum grau <strong>de</strong>8990Cf. IDEM. Jesus na América Latina. op. cit., p. 222-223.Cf. IDEM. Cristologia a partir da América Latina. op. cit., p. 271-272.113


impossibilida<strong>de</strong> histórica. Isto po<strong>de</strong>ria <strong>ser</strong> <strong>em</strong> nossos dias a luta contra os ídolos <strong>de</strong>ste mundo,a superação <strong>de</strong> uma consciência popular secularmente resignada, o esquecer<strong>em</strong>-se as Igrejas<strong>de</strong> si mesmas e voltar<strong>em</strong>-se para os oprimidos <strong>de</strong>ste mundo. Materialmente, a missão expressapelo conteúdo da esperança é que se faça justiça às vítimas <strong>de</strong>ste mundo, <strong>com</strong>o se fez justiçaao Crucificado Jesus, e daí a práxis exigida é que se <strong>de</strong>sça da cruz o povo crucificado. É estauma práxis <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> favor das vítimas, dos crucificados da história. É práxisconflitiva, pois é <strong>em</strong> favor dos crucificados e, automaticamente, contra seus verdugos, posturaassumida que torna a pessoa também vítima. Por <strong>ser</strong> uma práxis a <strong>ser</strong>viço da ressurreição dosmortos, isto é, ressurreição <strong>de</strong> muitos, <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> também uma práxis social, política, que <strong>de</strong>sejatransformar as estruturas, ressuscitá-las. 91A fé na ressurreição afirma nossa esperança futura, no entanto, diz Sobrino, <strong>de</strong>veincidir na história, fazendo-nos viver ressuscitados no presente, oferecendo esperança para asvítimas. A ressurreição oferece a plenitu<strong>de</strong> e a vitória, mesmo que vivamos nas limitaçõeshistóricas, sobrecarregados pelo mal e pela <strong>dor</strong>. Esta práxis <strong>em</strong> favor das pessoas crucificadaspelo <strong>sofrimento</strong> revela que se t<strong>em</strong> uma noção <strong>de</strong> plenitu<strong>de</strong> escatológica manifestada pelaafirmação da esperança, da liberda<strong>de</strong> e da alegria no seguimento <strong>de</strong> Cristo. Esperança aqui éinstrumento contra a resignação, o <strong>de</strong>sencantamento, a trivialida<strong>de</strong>; a liberda<strong>de</strong> acontececontra as ataduras que a história impõe ao amor: riscos, t<strong>em</strong>ores, egoísmos; a alegria acontececontra a tristeza das <strong>dor</strong>es e dos <strong>sofrimento</strong>s. 92 No seguimento <strong>de</strong> Cristo afirmamos nossa féno Ressuscitado e tornamos atual o anúncio <strong>de</strong> que Deus faz justiça às vítimas. Isto nos coloca<strong>em</strong> luta contra as estruturas gera<strong>dor</strong>as do mal e do <strong>sofrimento</strong>. Jon Sobrinho enfatiza:Na história, po<strong>de</strong>-se viver <strong>com</strong> resignação ou <strong>de</strong>sespero, mas também se po<strong>de</strong> viver<strong>com</strong> esperança <strong>diante</strong> <strong>de</strong> uma promessa. E isso ocorre. Qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> uma radicalesperança para as vítimas <strong>de</strong>ste mundo, qu<strong>em</strong> não se convence à resignação <strong>com</strong>oúltima palavra n<strong>em</strong> se consola <strong>com</strong> a afirmação <strong>de</strong> que essas vítimas já <strong>ser</strong>virampara algo positivo, este po<strong>de</strong>rá incluir <strong>em</strong> sua experiência uma esperança análogaàquela <strong>com</strong> que se apreen<strong>de</strong>u a ressurreição <strong>de</strong> Jesus e po<strong>de</strong>rá orientar sua vida para<strong>de</strong>scer as vítimas da cruz. Mas, além disso, qu<strong>em</strong> <strong>em</strong> meio a essa história <strong>de</strong>crucificação celebra aquilo que há <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já <strong>de</strong> plenitu<strong>de</strong> e t<strong>em</strong> a liberda<strong>de</strong> para dar<strong>de</strong> sua própria vida, este, qu<strong>em</strong> sabe, não verá a história <strong>com</strong>o absurdo, n<strong>em</strong> <strong>com</strong>orepetição do mesmo, e sim <strong>com</strong>o promessa <strong>de</strong> um ‘mais’ que nos cabe e atrai <strong>de</strong>modo ineludível. 93919293IDEM. A fé <strong>em</strong> Jesus Cristo. op. cit. p. 77-79.Cf. ibid., p. 24-27.Cf. ibid., p. 126.114


A vida cristã se enten<strong>de</strong> <strong>com</strong>o seguimento <strong>de</strong> Cristo. 94 Significa refazer na história aestrutura <strong>de</strong> sua vida, práxis e <strong>de</strong>stino. Significa caminhar, <strong>ser</strong> e fazer atualizadamente o quefoi e fez Jesus e <strong>com</strong>o ele o fez. Nesse caminhar se adquire consciência <strong>de</strong> “alterida<strong>de</strong>” <strong>de</strong>Jesus <strong>com</strong>o “irmão primeiro” que apostou sua vida no “Abbá-Reino”. Deste seguimento<strong>em</strong>erge nossa afinida<strong>de</strong> <strong>com</strong> Jesus. 95 No seguimento nos tornamos próximos da realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Jesus e vislumbramos o mais a que a história é chamada. Possibilita conhecê-lo a partir <strong>de</strong><strong>de</strong>ntro. Mas não é o seguimento (qual? Por on<strong>de</strong>?) que nos leva aos que sofr<strong>em</strong> e sim são elesque nos levam ao seguimento! Pois o lugar <strong>em</strong> que o mais acontece e o seguimento se realizaé o clamor dos que sofr<strong>em</strong> as cruzes <strong>de</strong> nossa história. Convicção que nos obriga, enquantocristãos, à solidarieda<strong>de</strong>, ao <strong>ser</strong>viço dos irmãos que sofr<strong>em</strong>.O chamado que Jesus faz (Mc 1,16-20; Mt 8,22) para o seu seguimento é para que osdiscípulos sejam operários e colabora<strong>dor</strong>es do Reino, próximo e presente, cumprido no Filhoe orientado para o futuro, <strong>de</strong> realização escatológica. Seguir Jesus é antes <strong>de</strong> tudo uma práxis<strong>em</strong> favor dos que sofr<strong>em</strong>. Como Jesus, o discípulo sabe que no caminho está a cruz, o<strong>sofrimento</strong>. Sabe que, <strong>de</strong>sta forma, é revelada sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cristã perante a socieda<strong>de</strong>egoísta e injusta. Só é possível <strong>com</strong>preen<strong>de</strong>r e viver a ressurreição no caminho práxico doseguimento do Crucificado à luz do ressuscitado. Conseqüent<strong>em</strong>ente, a ressurreição é ummodo <strong>de</strong> <strong>ser</strong> e <strong>de</strong> viver o seguimento. 96 Quando <strong>de</strong>sc<strong>em</strong>os da cruz os crucificados pelapobreza, pelas doenças e todo tipo <strong>de</strong> marginalização, antecipamos o futuro do hom<strong>em</strong> e domundo e celebramos a ressurreição. Afirmamos, <strong>de</strong>sta maneira, <strong>em</strong> cada gesto <strong>de</strong>solidarieda<strong>de</strong> na história, que a ressurreição é fato atual e que o <strong>sofrimento</strong> não t<strong>em</strong> a últimapalavra. 9794959697Cf. IDEM. Seguimento <strong>de</strong> Jesus. in: Dicionário <strong>de</strong> conceitos fundamentais do cristianismo. São Paulo:Paulus, 1999, p. 771.Cf. IDEM. A fé <strong>em</strong> Jesus Cristo. op. cit., p. 476-477. “O seguimento consiste <strong>em</strong> refazer a vida e a práxis <strong>de</strong>Jesus, e neste refazer se po<strong>de</strong> conseguir a ‘conhecimento interno’ (<strong>com</strong>o diz<strong>em</strong> os santos)” (ibid., p. 477).Cf. SOBRINO, J. Seguimento <strong>de</strong> Jesus. in: Dicionário <strong>de</strong> conceitos fundamentais do cristianismo. op. cit., p.773: “A <strong>com</strong>unida<strong>de</strong> reconhece <strong>em</strong> Jesus, <strong>de</strong>finitivamente, o Filho. Por essa fé, a lógica reinterpretou aspalavras explícitas <strong>de</strong> Jesus sobre o seguimento, dando-lhe alcance mais universal quanto ao <strong>de</strong>stinatário einclusive quanto aos conteúdos, encarnação e ressurreição”.Cf. RÚBIO, A. G. Unida<strong>de</strong> na pluralida<strong>de</strong>. op. cit., p. 188.115


CONCLUSÃONeste terceiro e último capítulo <strong>de</strong> nosso trabalho constatamos que a reflexão sobreDeus e o <strong>sofrimento</strong> chega ao seu ponto alto. Deus respon<strong>de</strong> muitas perguntas àquele que sofreatravés do seu Filho. Jesus <strong>de</strong> Nazaré, verda<strong>de</strong>iro hom<strong>em</strong> e verda<strong>de</strong>iro Deus, enviado pelo Paitorna-se um <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, engran<strong>de</strong>cendo e valorizando a nossa existência. Sua encarnaçãoconstitui o sublime gesto <strong>de</strong> mi<strong>ser</strong>icórdia <strong>de</strong> Deus para conosco. A presença divina na históriahumana não podia <strong>ser</strong> mais radical. Em Jesus, Verbo encarnado, o <strong>humano</strong> e o divinoencontram sua perfeita harmonia, o que justifica, pela reflexão teológica e pela fé, o acesso aoconhecimento do <strong>ser</strong> <strong>de</strong> Deus e do <strong>ser</strong> do hom<strong>em</strong> e a que é chamado.No acesso à humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus e, especificamente, no seu posicionamento frente aos<strong>sofrimento</strong>s <strong>humano</strong>s, v<strong>em</strong>os um Deus que escolhe preferencialmente os doentes, os pobres eos marginalizados <strong>com</strong>o “lugar” privilegiado <strong>de</strong> sua revelação. Emerge <strong>de</strong>sta postura <strong>de</strong> Jesus,a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um Deus próximo e solidário <strong>com</strong> os que sofr<strong>em</strong>. Perceb<strong>em</strong>os, <strong>de</strong>sta forma, <strong>ser</strong>necessário recuperar a humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus, sua vida histórica, e aí perceber as manifestaçõesdo divino. Diante do mal que afeta as pessoas (doenças, injustiças, marginalização), Jesusrespon<strong>de</strong> <strong>com</strong> atitu<strong>de</strong>s concretas <strong>de</strong> <strong>ser</strong>viço a elas. Não discursa sobre o mal, antes o <strong>com</strong>bate.Em função <strong>de</strong>ssa sua causa (a realização do Abbá-Reino) acaba sendo atingido pelomal, se torna ele mesmo “hom<strong>em</strong> das <strong>dor</strong>es”, experimentando <strong>em</strong> sua própria carne a rejeição,a injustiça, a violência, tornando-se assim próximo <strong>de</strong> todos os atribulados. Porque <strong>com</strong>o“hom<strong>em</strong> das <strong>dor</strong>es”, po<strong>de</strong> aliviar nossas <strong>dor</strong>es e iluminar o caminho do <strong>sofrimento</strong> <strong>em</strong> quetrilhamos <strong>de</strong> uma ou outra forma. Constatamos, pelo princípio mi<strong>ser</strong>icórdia, que os<strong>sofrimento</strong>s das pessoas ating<strong>em</strong> profundamente o coração <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré, o que oimpulsiona a agir <strong>em</strong> favor <strong>de</strong>les a fim <strong>de</strong> eliminar suas <strong>dor</strong>es. Esta atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> amor e <strong>ser</strong>viçoao outro necessitado é que <strong>de</strong>fine o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>.Ao refletir sobre sua morte, vimos que foi obra dos <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>s. Achamosnecessário abordar as circunstâncias que envolveram todo o processo <strong>de</strong> sua con<strong>de</strong>nação queresultou na morte <strong>de</strong> cruz, para <strong>de</strong>ixar claro que isto foi provocado por <strong>ser</strong>es <strong>humano</strong>sconcretos, quando perceberam que a atuação <strong>de</strong> Jesus ameaçava suas bases religiosas epolíticas. Contra este regime que excluía e causava <strong>sofrimento</strong>s, Jesus se entrega, colocandoseao lado dos perseguidos e marginalizados. Oferecendo-se livr<strong>em</strong>ente, assume asconseqüências <strong>de</strong>ste enfrentamento, <strong>em</strong> vista do b<strong>em</strong> do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Isto fortalece nossaconvicção <strong>de</strong> que muitas <strong>dor</strong>es humanas e muitas mortes são provocadas, <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong>outra, pela ação dos homens, o que nos obriga a uma práxis para evitá-las.116


No Getsêmani vimos que Jesus nos revela uma experiência única e profunda <strong>de</strong> suahumanida<strong>de</strong>. Parece que chega às raízes do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>. Esta sua situação-limite o fazsolidário <strong>com</strong> todos os que são atingidos pelo mal do modo mais radical possível. Experiênciaprofunda <strong>de</strong> <strong>dor</strong> que toca sua alma e o faz pedir ao Pai que o poupe <strong>de</strong>ste cálice, o que nãoacontece. Deus quer, mas não po<strong>de</strong> eliminar este mal senão pela sua própria (<strong>com</strong>)paixãosofrendo por isso, junto <strong>com</strong> e <strong>em</strong> Jesus. É a mesma experiência feita por tantos homens <strong>em</strong>ulheres <strong>de</strong> todos os t<strong>em</strong>pos, oprimidos <strong>de</strong> todos os lados pela <strong>dor</strong>, pelo abandono, pelaperseguição e pela morte. Entretanto, perceb<strong>em</strong>os que cada “Getsêmani” <strong>de</strong> cada <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>da história se une ao “Getsêmani” <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> alguma forma. É <strong>com</strong>o se cada um dissessenesta hora: ele passou por isso, ele me enten<strong>de</strong> e <strong>com</strong> ele vencerei.Outro ponto que ressaltamos e que enriqueceu nosso trabalho foi a reflexão sobre oDeus crucificado. Olhando para o Crucificado enxergamos um Deus feito limitação humana, oque nos faz rever os conceitos do seu po<strong>de</strong>r e onipotência <strong>diante</strong> do mal e do <strong>sofrimento</strong>.Perceb<strong>em</strong>os que é o amor pelo Pai e por nós é que faz Jesus <strong>de</strong>ixar-se afetar pelos <strong>sofrimento</strong>s.Daí po<strong>de</strong>rmos afirmar que nossos <strong>sofrimento</strong>s afetam a Deus, porque ele nos ama. A morte <strong>de</strong>Jesus contém <strong>em</strong> si todas as profundida<strong>de</strong>s dos nossos <strong>sofrimento</strong>s <strong>humano</strong>s. Ele os assumetornando-os seus, nos mostrando que nossos <strong>sofrimento</strong>s são convertidos <strong>em</strong> <strong>sofrimento</strong>s <strong>de</strong>Deus. O Cristo, entregue e abandonado, torna-se para nós o irmão e amigo ao qual tudo sepo<strong>de</strong> confiar, porque conhece tudo e sofreu todos os males que nos po<strong>de</strong>m atingir. No “Deuscrucificado” v<strong>em</strong>os a relação <strong>de</strong> simpatia entre Deus e nós. Ele não é apático, n<strong>em</strong> impassível,antes “sofre” conosco, revelando-se um Deus apaixonado.Na busca <strong>de</strong> sentido para o <strong>sofrimento</strong> chegamos à consi<strong>de</strong>ração da Ressurreição <strong>de</strong>Jesus Cristo. A partir daqui, o sentido da vida, das ações e palavras <strong>de</strong> Jesus tornam-<strong>ser</strong>adicalmente liberta<strong>dor</strong>as para nós. A ressurreição <strong>de</strong> Jesus é resposta <strong>de</strong> Deus a uma vítima ea todas as vítimas da história. Deste modo, Jesus se torna esperança para todos os crucificadosda história e que esperam sua própria ressurreição. Perceb<strong>em</strong>os também que não é somente aesperança que nos faz <strong>com</strong>preen<strong>de</strong>r a Ressurreição, mas a pergunta pela justiça na história do<strong>sofrimento</strong>, ou seja, que nesta ação liberta<strong>dor</strong>a <strong>de</strong> Deus a justiça triunfou sobre a injustiça e,por isso cr<strong>em</strong>os no seu po<strong>de</strong>r. Deus esteve na cruz <strong>com</strong> Jesus e, por conta <strong>de</strong>sta certeza, ossofre<strong>dor</strong>es da história po<strong>de</strong>m crer que o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus é boa notícia, porque é amor. Vimos,enfim, que é pelo seguimento <strong>de</strong> Cristo, caracterizado por uma práxis <strong>de</strong> <strong>de</strong>scer da cruz oscrucificados, que tornamos atual o anúncio <strong>de</strong> que Deus faz justiça às vítimas. Este <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong>nosso posicionamento <strong>diante</strong> do <strong>sofrimento</strong>.117


CONCLUSÃO GERALO mal que se manifesta pelo <strong>sofrimento</strong>, pela <strong>dor</strong> e pela morte, atinge o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> eprovoca nele as questões cruciais pelo sentido do que lhe ocorre, r<strong>em</strong>etendo esse “por que” aopróprio Deus mesmo. Esse probl<strong>em</strong>a <strong>em</strong>erge na socieda<strong>de</strong> atual marcada pela viradaantropológica, don<strong>de</strong> se sobressai o pensamento crítico da pessoa. Neste contexto, a fé cristã é<strong>de</strong>safiada a propor respostas consistentes <strong>diante</strong> do probl<strong>em</strong>a do mal, traduzindo <strong>em</strong> apoio àpessoa que sofre. Por essa razão esta dis<strong>ser</strong>tação se propôs a refletir sobre o <strong>sofrimento</strong> a partir<strong>de</strong> nossa experiência pastoral <strong>de</strong> anos a<strong>com</strong>panhando doentes, moribundos, presos e seusfamiliares <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua perspectiva <strong>de</strong> “vítima”.No primeiro capítulo vimos que é nesses ambientes e situações especiais <strong>de</strong><strong>sofrimento</strong>s que <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> respostas imediatas, aparent<strong>em</strong>ente “cristãs”. Mesmo se articuladaspelas próprias pessoas atingidas por algum <strong>sofrimento</strong>, são percebidas <strong>com</strong>o insatisfatórias,incapazes <strong>de</strong> lhes proporcionar conforto e esperança. Procuramos então tipologizá-las <strong>de</strong>forma aproximativa, refletir sobre elas <strong>em</strong> seu vínculo <strong>com</strong> o probl<strong>em</strong>a do mal, que s<strong>em</strong>pre<strong>em</strong>erge por trás <strong>de</strong>las, a partir da retomada <strong>de</strong> uma teologia cristã da criação, a fim <strong>de</strong><strong>de</strong>smascará-las <strong>com</strong>o humanamente insuficientes e “pseudo-teológicas”.Dos <strong>sofrimento</strong>s inevitáveis, <strong>de</strong>vidos à finitu<strong>de</strong> criatural do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, e também domal moral, originado na autonomia e liberda<strong>de</strong> humanas, surg<strong>em</strong> no seio do própriocristianismo aquelas “respostas” fáceis e estereotípicas, <strong>de</strong> uma tradição catequética eteológica pré-conciliar e legalista, que ainda hoje circulam entre pessoas cristãs e não-cristãs,potencializando o próprio <strong>sofrimento</strong> e favorecendo uma postura fatalista. Ao mesmo t<strong>em</strong>po,elas veiculam imagens falsas e equívocas <strong>de</strong> Deus <strong>com</strong>o um <strong>de</strong>us soberano e impassível ou atétirano e sádico, arbitrariamente intervencionista. Tais “respostas” acabam por justificar o<strong>sofrimento</strong> <strong>com</strong>o provação ou mérito <strong>de</strong> salvação, encobrindo <strong>em</strong> última conseqüência asraízes verda<strong>de</strong>iras do mal no abuso da liberda<strong>de</strong> humana pela acusação <strong>de</strong> Deus.Em contrapartida <strong>de</strong>monstramos <strong>com</strong>o uma teologia da criação recupera por umaperspectiva autenticamente cristã, <strong>com</strong> base no reconhecimento <strong>de</strong> toda realida<strong>de</strong> criada para ob<strong>em</strong>, uma imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um Deus-Cria<strong>dor</strong> inteiramente bom, <strong>de</strong> uma onipotência diferente, quenão con<strong>de</strong>na o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>, mas o resgata s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong> novo <strong>de</strong> sua própria ambição <strong>de</strong> seconfundir <strong>com</strong> o cria<strong>dor</strong>. É numa práxis idolátrica <strong>com</strong>o abuso <strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong> que seoriginam todos os pecados, tanto pessoais quanto socioestruturais. Nesta perversão <strong>de</strong> suaestrutura criatural até a finitu<strong>de</strong> física natural, <strong>em</strong>erge <strong>com</strong>o um “mal”.118


Nesse contexto apontamos o caráter existencialmente insatisfatório e atéfilosoficamente “misterioso” das explicações do mal, à base do reconhecimento <strong>de</strong>finitivo <strong>de</strong>que Deus n<strong>em</strong> intenciona n<strong>em</strong> admite o mal, mas s<strong>em</strong> o qual, no entanto, o mesmo tambémnão po<strong>de</strong> <strong>ser</strong>. Vislumbramos, enfim, que, paradoxalmente, na situação <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong> que fazquestionar pelo seu sentido, se encontra, ao mesmo t<strong>em</strong>po, o lugar, a partir do qual a reflexãoteológica há <strong>de</strong> traçar sua resposta, concebendo o hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> sua liberda<strong>de</strong>, dotado <strong>com</strong> o domda “co-criação”. Isto significa dizer que à base <strong>de</strong> uma aceitação do <strong>sofrimento</strong> <strong>em</strong> suafacticida<strong>de</strong> e inevitabilida<strong>de</strong> <strong>com</strong>o expressão <strong>de</strong> sua fragilida<strong>de</strong> e finitu<strong>de</strong>, o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>cristão <strong>de</strong>scobre o chamado à solidarieda<strong>de</strong> <strong>com</strong> os sofridos, experimentando Deus <strong>com</strong>oaquele que se <strong>com</strong>pa<strong>de</strong>ce do <strong>sofrimento</strong> do <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> e unicamente capaz <strong>de</strong> superá-lo.Na busca <strong>de</strong> um aprofundamento teológico sensível às situações diversas <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong>e enfrentamento da <strong>dor</strong> até a morte, <strong>em</strong> seu nexo <strong>com</strong> o probl<strong>em</strong>a do mal e especialmentedirecionado às pessoas sofridas, a fim <strong>de</strong> proporcionar para elas uma resposta cristã coerente ecapaz <strong>de</strong> fornecer suporte para fortalecer sua fé, encontramos a reflexão teológica <strong>de</strong> HubertLepargneur. Esta nasce <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do mesmo ambiente e <strong>de</strong> uma experiência pastorals<strong>em</strong>elhante à nossa, <strong>em</strong> preocupação particular <strong>de</strong>le <strong>com</strong> o próprio setor da saú<strong>de</strong>, motivo peloqual apresentamos sua contribuição <strong>com</strong>o referencial no segundo capítulo.Lepargneur parte da percepção <strong>de</strong> <strong>com</strong>o na socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna <strong>dor</strong> e <strong>sofrimento</strong> sãoconcebidos <strong>com</strong>o ameaça à realização plena da pessoa, me<strong>diante</strong> a absolutização dos i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong>juventu<strong>de</strong> permanente e beleza corporal egocentradas. Apresentamos <strong>com</strong>o o autor, numaperspectiva antropológica prévia à reflexão teológica, situa a experiência do <strong>sofrimento</strong><strong>humano</strong>, sobretudo a doença e a morte, os questionamentos oriundos daí, b<strong>em</strong> <strong>com</strong>o a buscapelo seu sentido último no campo da liberda<strong>de</strong> humana que, <strong>de</strong>spertada e r<strong>em</strong>etida à suadimensão corpórea, <strong>em</strong> sua ef<strong>em</strong>erida<strong>de</strong> e finitu<strong>de</strong>, po<strong>de</strong> se fechar <strong>em</strong> si mesma entregando-seao <strong>de</strong>sespero e à resignação ou então se abrir a qu<strong>em</strong> sofre <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> diminuir sua <strong>dor</strong>.Assim, solidário à pessoa, entra <strong>em</strong> <strong>com</strong>unhão <strong>com</strong> a <strong>dor</strong> do outro, acolhendo-o <strong>em</strong> suadimensão cósmica no que lhe é outorgado sentido, na medida <strong>em</strong> que acolhe o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> setrabalhar a si mesmo para aceitar o <strong>sofrimento</strong> inevitável e se impulsionar a contestar e<strong>com</strong>bater o <strong>sofrimento</strong> originado no abuso da liberda<strong>de</strong>. Nesse contexto, o autor não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong>enfocar a morte da pessoa <strong>com</strong>o evento processual preparado e antecipado <strong>em</strong> doença, medo evelhice, coroando <strong>em</strong> seu momento final toda a vida da pessoa <strong>em</strong> sua finalida<strong>de</strong>.Na concepção teológica concernente ao probl<strong>em</strong>a do mal, Lepargneur confirma nossavisão previamente concebida <strong>de</strong> que a maioria dos males que nos causam <strong>sofrimento</strong> seenten<strong>de</strong>m <strong>com</strong>o fruto da liberda<strong>de</strong> humana errante. Embora não seja permitido estabelecer119


uma relação diretamente causal entre uma doença ou um <strong>sofrimento</strong> qualquer e uma<strong>de</strong>terminada falha da pessoa que sofre, Lepargneur alega que, <strong>de</strong> alguma forma, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>nosso contexto histórico, os males manifestados inclusive na doença estejam vinculados aopecado original, ampliando cada vez mais os <strong>sofrimento</strong>s subseqüentes para o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong>.Em cima disso Lepargneur constrói sua reflexão teológica do sentido re<strong>de</strong>ntor do<strong>sofrimento</strong>, uma vez <strong>em</strong> direção ao corpo <strong>humano</strong> <strong>com</strong>o obra do calvário <strong>em</strong> perspectiva <strong>de</strong> fécristã e outra vez <strong>em</strong> direção à encarnação <strong>de</strong> Cristo e à dimensão salvífica <strong>de</strong> sua paixão e<strong>com</strong>paixão assumidas na pessoa <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> Nazaré. Unindo seu <strong>sofrimento</strong> ao <strong>de</strong> Cristo, ocristão, morrendo pelo mundo do pecado, <strong>de</strong>scobre sua <strong>dor</strong> <strong>com</strong>o meio pelo qual Deus revelaseu amor, que transcen<strong>de</strong> toda <strong>dor</strong> e leva o doente a uma nova dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoa, que atéhumaniza qu<strong>em</strong> <strong>com</strong> ela partilha seu <strong>sofrimento</strong>.A contribuição antropológico-teológica <strong>de</strong> Lepargneur nos trouxe diretamente à fonteconstitutiva do sentido último <strong>de</strong> <strong>sofrimento</strong>, <strong>dor</strong> e morte: Jesus, o Cristo, que na fé se tornareferência cabal para o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> que sofre. Consi<strong>de</strong>ramos indispensável explicitar, numterceiro capítulo, o fundamento cristológico <strong>com</strong>o resposta radical <strong>em</strong> superação <strong>de</strong>finitiva ao<strong>sofrimento</strong>, porque nos pareceu que a reflexão teológico-pastoral <strong>de</strong> Lepargneur o <strong>de</strong>ixou<strong>de</strong>masiado implícito.Pois, mais do que apenas “mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> vida” o crente concebe <strong>em</strong> Jesus o próprio Deusque se revestiu <strong>de</strong> nossas fraquezas, <strong>dor</strong>es e da própria morte, e morte vergonhosa, para sofrêlas<strong>em</strong> si mesmo e superando-as <strong>em</strong> sua raiz (a morte <strong>com</strong>o fim <strong>de</strong> todo sentido) pela práxis <strong>de</strong>solidarieda<strong>de</strong> e amor fiel até a última conseqüência, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as vítimas e pessoas sofre<strong>dor</strong>as dosmales. Diante <strong>de</strong> uma <strong>com</strong>preensão muitas vezes mecânica da “obra re<strong>de</strong>ntora” <strong>de</strong> Jesus,reduzida ao seu <strong>sofrimento</strong> e morte <strong>de</strong> cruz, procuramos resignificar, <strong>em</strong> linhas gerais, opróprio “evento Cristo”.Assim motivados, apresentamos nossa reflexão teológica, iluminados especialmentepela cristologia <strong>de</strong> Jon Sobrino, Jürgen Moltmann e Andrés Torres Queiruga, tentan<strong>dor</strong>ecuperar a humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus, especialmente referente à sua prática <strong>de</strong> <strong>com</strong>–paixão <strong>com</strong> ospobres e excluídos (e também por isso, doentes e sofridos) <strong>com</strong>o sinais do Reino <strong>de</strong> Deus porele anunciado e antecipado, a fim <strong>de</strong> a ela re-vincular sua própria paixão e morte <strong>com</strong>omartírio, <strong>em</strong> conseqüência <strong>de</strong> sua vida toda.No entanto, vimos que é somente à luz da experiência da ressurreição <strong>de</strong> Jesus porparte <strong>de</strong> seus discípulos, que sua vida e sua mensag<strong>em</strong> receb<strong>em</strong> seu sentido último <strong>em</strong> um ato<strong>de</strong> fé. Nesta ação liberta<strong>dor</strong>a, Deus reivindica a vida daquele que foi perseguido e injustiçado,revelando sua re-ação aos seus <strong>sofrimento</strong>s, <strong>dor</strong>es e, particularmente, da sua morte. Se ele120


essuscita Jesus é porque estava também na cruz e, nos horrores da história, certeza que suscitaesperança para os que hoje sofr<strong>em</strong>. É o saber da fé pascal que nos faz ver a presença, epresença <strong>com</strong>passiva <strong>de</strong> Deus <strong>em</strong> Jesus na cruz, paradoxalmente na hora do maior abandonodivino. A partir daí, essa presença amorosa <strong>de</strong> Deus também é vivenciada nas horas <strong>de</strong> nossomaior <strong>sofrimento</strong>. Deste modo venc<strong>em</strong>os a angústia da morte pela certeza maior e absoluta doamor <strong>de</strong> Deus que, apesar <strong>de</strong> sua fraqueza aparente, se <strong>de</strong>monstra invencível.Em conseqüência da ressurreição <strong>de</strong> Jesus crucificado, <strong>com</strong>o evento fundante da fécristã, há esperança para os crucificados da história, agora <strong>de</strong>finitivamente. Estes, que inclu<strong>em</strong><strong>em</strong> si todos os que sofr<strong>em</strong>, po<strong>de</strong>m ver <strong>em</strong> Jesus ressuscitado realmente o primogênito <strong>de</strong>ntreos mortos porque na verda<strong>de</strong> o conhec<strong>em</strong> <strong>com</strong>o seu irmão maior. No entanto, o conhec<strong>em</strong>s<strong>em</strong>pre e somente por meio <strong>de</strong> sua e nossa prática <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>. Por isso, esperam aprópria ressurreição <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então antecipada escatologicamente nessa experiência <strong>de</strong> fé esolidarieda<strong>de</strong>, no aqui e agora <strong>de</strong> nossa história. Isto significa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já viver <strong>com</strong>oressuscitados, na esperança <strong>de</strong> que Deus faz justiça às vítimas. Cada vez que <strong>de</strong>sc<strong>em</strong>os da cruzos crucificados, amenizando ou, qu<strong>em</strong> sabe, até eliminando a <strong>dor</strong> <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> sofre, esta justiça,que é pura graça, é alcançada e ressurreição acontece.Ao terminar este trabalho, recordamos o título da pesquisa: “o <strong>ser</strong> <strong>humano</strong> <strong>diante</strong> <strong>de</strong>Deus, <strong>em</strong> <strong>confronto</strong> <strong>com</strong> a <strong>dor</strong>, o <strong>sofrimento</strong> e a morte”: pergunt<strong>em</strong>o-nos uma última vezsobre o sentido <strong>de</strong>sses males que nos aflig<strong>em</strong>. E po<strong>de</strong>mos agora afirmar conclusivamente: o<strong>sofrimento</strong>, seja qual for, não t<strong>em</strong> sentido <strong>em</strong> si mesmo. Por isso, ele <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> eliminado.Conferimos ao <strong>sofrimento</strong> o sentido que atribuímos à nossa vida, radicado <strong>em</strong> nossa fé <strong>em</strong>Deus que, na Ressurreição <strong>de</strong> Cristo, nos garantiu a vitória sobre o mal.Por último, gostaríamos <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar que este trabalho nos tornou mais apaixonadospela vida humana mesmo <strong>em</strong> sua condição <strong>de</strong> efêmera, o que nos leva a <strong>de</strong>fendê-la <strong>com</strong>alegria, fazendo <strong>de</strong>scer da cruz os que estão crucificados <strong>em</strong> nossa socieda<strong>de</strong>.121


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