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Uma leitura para o XXI da carta de Galileo a Castelli

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ABSTRACT: This paper will focus on the epistemologicalarguments brought by the letter which <strong>Galileo</strong> Galilei wrote in 1613to the father Bene<strong>de</strong>tto <strong>Castelli</strong>, presenting a way of bringing theCopernican i<strong>de</strong>as to the acceptance of the Catholic Church. Thisletter is here un<strong>de</strong>rstood as one of the most important and longlastingdocuments in search of reconciling faith and reason,containing the foun<strong>da</strong>tions of any peaceful relationship betweenscience and religion. This point of view will be enhanced withquotes from two contemporary pronouncements of popes, theencyclical Provi<strong>de</strong>ntissimus Deus (1893) by Leo XIII and theDiscourse of Pope John Paul II to the Pontifical Aca<strong>de</strong>myA>ofSciences (1979), when it will be shown that the Catholic Churchseems to have assumed the main theses presented in the letter by<strong>Galileo</strong>.KEY-WORDS: <strong>Galileo</strong>. Letter. .<strong>Castelli</strong>. Faith. Reason.= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =


INTRODUÇÃOComo é amplamente sabido, em 1609 um telescópio foi primeiramentevoltado <strong>para</strong> o céu e revelou novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s surpreen<strong>de</strong>ntes,que minaram certezas milenares no campo <strong>da</strong> astronomia e <strong>da</strong>cosmologia. O autor <strong>de</strong>ssa memorável façanha – cujos 400 anosforam comemorados em 2009, através do Ano Internacional <strong>da</strong>Astronomia – foi o italiano <strong>Galileo</strong> Galilei (1564-1642), até entãoum silencioso a<strong>de</strong>pto <strong>da</strong> astronomia <strong>de</strong> Nicolau Copérnico (1473-1543). Como também é notório, Copérnico, através <strong>de</strong> seuAFsistemaastronômico, havia retomado e refinado uma velha idéia, a <strong>de</strong> quea Terra não é o centro do Universo (ou Cosmo): <strong>para</strong> ele, é o Solque ocupa a posição central, com estrelas e planetas – a Terra entreestes – girando em torno do astro-rei.Como se disse acima, logo em segui<strong>da</strong> às suas <strong>de</strong>scobertasastronômicas, <strong>Galileo</strong> saiu do silêncio. Inicialmente, publicou em1610 um pequeno – mas impactante – livro, escrito em latim, oSi<strong>de</strong>reus Nuncius, em que comunicava suas <strong>de</strong>scobertas astronômicas.Mas esse não foi, claro, o único pronunciamento <strong>de</strong> <strong>Galileo</strong>no chamado “período polêmico” <strong>de</strong> sua biografia filosófico-científica,período em que <strong>de</strong>bateu, às vezes asperamente, com representantes<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> acadêmica e com a ortodoxia católica. Operíodo polêmico totalizou duas dramáticas déca<strong>da</strong>s que se encerraramem 1633 com a con<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> <strong>Galileo</strong> à abjuração e à prisãopela Sagra<strong>da</strong> Inquisição.No outro terreno <strong>de</strong>ssa notável polêmica estava a quase totali<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>da</strong> elite pensante <strong>de</strong> então. Acadêmicos e religiosos eramquase todos <strong>de</strong>fensores <strong>da</strong> cosmologia <strong>de</strong> Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) e <strong>da</strong> astronomia <strong>de</strong> Cláudio Ptolomeu (90?-168?), <strong>para</strong> asquais a Terra era o centro do Universo, tudo girando, estrelas eplanetas (Sol e Lua entre estes!), em volta <strong>de</strong> nossa casa, que, portanto,não era um reles planeta, como Copérnico propunha, mas olugar privilegiado on<strong>de</strong> Deus alojou o ser que criou a sua imagem esemelhança.Do lado dos copernicanos, insista-se, havia poucos combatentes,além <strong>de</strong> <strong>Galileo</strong>. Entre eles estavam alguns homens <strong>de</strong> religião,como o padre Bene<strong>de</strong>tto <strong>Castelli</strong> (1578-1643). Este intelec-


tual <strong>de</strong> batina participou <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates, sempre <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo as teses<strong>de</strong> Copérnico e os argumentos <strong>de</strong> <strong>Galileo</strong> a favor <strong>de</strong>las. Um <strong>de</strong>sses<strong>de</strong>bates se <strong>de</strong>u em 12/12/1613 à mesa – prosseguindo até a “câmara”– <strong>da</strong> Grã- Duquesa <strong>de</strong> Toscana, Cristina <strong>de</strong> Lorena(GALILEU, 1988, p. 12, 17).Em 14/12/1613 <strong>Castelli</strong> envia uma <strong>carta</strong> a <strong>Galileo</strong> informando-osobre o que foi brandido nesse <strong>de</strong>bate (GALILEU, 1988,p.12) e, em 21 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1613, <strong>Galileo</strong> lhe encaminhou umaresposta – fazendo <strong>de</strong>la circular uma boa quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> cópias –em que apresentava sua proposta <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação <strong>da</strong>s tesescopernicanas às Sagra<strong>da</strong>s Escrituras, uma propostaA?epistemológicaque buscava conciliar fé e razão, na medi<strong>da</strong> em que pretendia removera oposição que aqueles amplíssimos setores <strong>da</strong> cristan<strong>da</strong><strong>de</strong>viam entre a nova ciência que <strong>Galileo</strong> aju<strong>da</strong>va a fun<strong>da</strong>r e as palavrasque o Espírito Santo inspirara aos que redigiram as Escrituras.Na <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong> se vislumbra a tese dos dois livros divinos,a natureza e as Escrituras, o primeiro <strong>de</strong>vendo ser lido através<strong>da</strong> “experiência sensível” e <strong>da</strong>s “<strong>de</strong>monstrações necessárias” e osegundo interpretado <strong>de</strong> maneira não-literal, em busca do “ver<strong>da</strong><strong>de</strong>irosentido <strong>da</strong>s passagens sagra<strong>da</strong>s”, uma vez que teria sido redigido<strong>de</strong> forma a se acomo<strong>da</strong>r “à capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> entendimento dopovo”Ȧ <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong> teve ampla repercussão e foi peça importantenos processos inquisitoriais <strong>de</strong> 1616, que redundou na con<strong>de</strong>naçãodo sistema copernicano, e <strong>de</strong> 1633, que, como já sabemos,concluiu pela con<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> <strong>Galileo</strong> à prisão. No primeiroprocesso, a <strong>carta</strong> foi enfaticamente cita<strong>da</strong> pelos acusadores e várias“diligências” foram empreendi<strong>da</strong>s em busca <strong>de</strong> seu original(PAGANI; LUCIANI, 1994, p.26, 47-48, 54-55). No processo <strong>de</strong>1633, uma cópia <strong>da</strong> <strong>carta</strong> foi submeti<strong>da</strong> à análise <strong>de</strong> uma espécie<strong>de</strong> parecerista do Santo Ofício, tendo este apontado nela diversaspalavras que “soam mal” (PAGANI; LUCIANI, 1994, p. 33-34).Parece razoável especular que o <strong>de</strong>saparecimento do original foiprovi<strong>de</strong>ncial <strong>para</strong> <strong>Galileo</strong> e <strong>de</strong>sapontador <strong>para</strong> seus acusadores,em ambos os processos.A <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong> foi segui<strong>da</strong>, em 1615, por duas outras, a<strong>carta</strong> ao Monsenhor Piero Dini e a <strong>carta</strong> à Grã-Duquesa Cristina <strong>de</strong>Lorena, que retomam e <strong>de</strong>senvolvem as argumentações <strong>da</strong> primei-


a. Assim, a <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong>, por sua concisão e <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong>, po<strong>de</strong> serdita suficiente <strong>para</strong> conhecer a articulação que <strong>Galileo</strong> faz entreciência e fé.O presente artigo percorrerá as argumentações <strong>de</strong> <strong>Galileo</strong> na<strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong>, evi<strong>de</strong>nciando sua impressionante atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Maisdo que isso, espera-se que o leitor concor<strong>de</strong> que a <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong> éuma peça <strong>de</strong>finitiva, na medi<strong>da</strong> em que as teses <strong>de</strong> <strong>Galileo</strong> constituema base <strong>de</strong> qualquer articulação entre ciência e fé. Este entendimentose fortalecerá com citações <strong>de</strong> dois pronunciamentos <strong>de</strong>papas <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong>, a encíclica Provi<strong>de</strong>ntissimus Deus(1893) <strong>de</strong> Leão XIII e o Discurso do Papa João Paulo II àAGPontifíciaAca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Ciências (1979), on<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>-se dizer, a Igreja Católicaparece ter assumido as principais teses <strong>de</strong> <strong>Galileo</strong>, num movimentoque culminou com sua reabilitação como “homem <strong>de</strong> fé”pelo papa João Paulo II em 1992.Se o leitor concor<strong>da</strong>r com a apreciação <strong>de</strong> que a <strong>carta</strong> <strong>de</strong> <strong>Galileo</strong>a <strong>Castelli</strong> é um documento <strong>de</strong> valor insuperável <strong>para</strong> o estabelecimento<strong>de</strong> relações entre a ciência e a fé, po<strong>de</strong>rá fazer uso <strong>de</strong> suaestratégia geral e <strong>de</strong> suas etapas <strong>de</strong> argumentação <strong>para</strong> se posicionarnos <strong>de</strong>bates atuais em que cientistas e religiosos voltam a se confrontar,em posições que muitos pensam ser irreconciliáveis. O principalconfronto a que estas linhas estão se referindo é aquele quese dá hoje em dia entre os a<strong>de</strong>ptos <strong>da</strong>s teses evolucionistas e oscristãos conhecidos como “criacionistas” (on<strong>de</strong>, registre-se comnecessária brevi<strong>da</strong><strong>de</strong>, não se incluem os católicos <strong>de</strong> João PauloII). Talvez as sábias palavras <strong>de</strong> <strong>Galileo</strong> a <strong>Castelli</strong> aju<strong>de</strong>m, assim, acompreen<strong>de</strong>r que <strong>para</strong> ser evolucionista não é necessário ser ateu e<strong>para</strong> se preservar a visa<strong>da</strong> <strong>da</strong> fé não é preciso recusar as conquistas<strong>da</strong> biologia contemporânea.A RECUSA DA INTERPRETAÇÃO LITERAL DA“INVIOLÁVEL VERDADE” DA ESCRITURASomente um não-especialista po<strong>de</strong> se surpreen<strong>de</strong>r ao ler, naprimeira etapa argumentativa <strong>da</strong> <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong>, a pena <strong>de</strong> <strong>Galileo</strong><strong>da</strong>r como “estabelecido por V. Rev.a, não po<strong>de</strong>r a sagra<strong>da</strong> Escriturajamais mentir ou errar, e possuírem os seus <strong>de</strong>cretos absoluta e


inviolável ver<strong>da</strong><strong>de</strong>”. Não percamos tempo: informemos sumariamentea este leitor não-especialista que em nenhum momento <strong>da</strong>re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong> – quiçá em nenhum momento <strong>de</strong> suavi<strong>da</strong> – <strong>Galileo</strong> <strong>de</strong>cidiu-se por <strong>de</strong>ssacralizar as Escrituras ou insinuarsuspeitas sobre a veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>clarações 2 .Mas, logo após aquela <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> confiança na veraci<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>da</strong>s Escrituras, <strong>Galileo</strong> apressa-se aAHacrescentar:... se bem que a Escritura não possa errar, os seus intérpretese expositores po<strong>de</strong>riam, entretanto, incorrer por vezes emerros, e <strong>de</strong> várias maneiras. Entre esses erros, um seriagravíssimo e frequentíssimo, ocorrendo sempre que tais intérpretesquisessem ater-se ao mero significado <strong>da</strong>s palavras,porque assim produziriam não só diversas contradições,mas graves heresias e também blasfêmias (GALILEU,1988, p. 18).Ora, há passagens <strong>da</strong> Escritura, prossegue <strong>Galileo</strong>, em que oentendimento literal <strong>de</strong> suas palavras levar-nos-ia a pensar que Deustem pés, mãos, olhos e sentimentos como ira, arrependimento eaté ódio. Mas, especula <strong>Galileo</strong>, a existência na Bíblia <strong>de</strong> “muitasproposições que têm aspecto literal diferente do ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro” se<strong>de</strong>veria à necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> acomodá-las “à capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> entendimentodo povo”.Note-se a corajosa clareza com que a expressão “aspecto literaldiferente do ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro” formaliza a recusa <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> interpretaçãoliteral <strong>da</strong> Bíblia. Ora, se esta, então, não po<strong>de</strong> ser li<strong>da</strong> estritamentese atendo ao primeiro significado <strong>da</strong>s palavras, é precisoque entrem em cena aqueles doutos homens que vão nos explicar oque está atrás <strong>da</strong>s significações mais óbvias <strong>da</strong>s palavras sagra<strong>da</strong>s:Por isso, torna-se necessário que os sábios intérpretes expliquemos seus ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros sentidos <strong>para</strong> aqueles poucos quemerecem ser distinguidos <strong>da</strong> plebe, e que indiquem as razõesespecíficas pelas quais esses sentidos foram ocultadossob tais palavras (GALILEU, 1988, p. 18).É inequívoco que aqui há uma postura elitista: <strong>para</strong> a “plebe”não se explica na<strong>da</strong>, somente aos poucos que <strong>de</strong>la “merecem ser


distinguidos” os intérpretes <strong>de</strong>vem dirigir seus escritos ou seus sermões.Mas é <strong>de</strong> se perguntar se <strong>Galileo</strong> é o único que tem tal posturaem sua época ou se, ao contrário, essa atitu<strong>de</strong> era comumentre os homens com alguma cultura no XVII.Mas isso aqui não importa, importa anotarmos que a <strong>carta</strong> a<strong>Castelli</strong> tar<strong>da</strong>rá um pouco em tratar dos intérpretes em geral, pois<strong>Galileo</strong> inicialmente concentra ataques nos que querem fazer interpretaçõesliterais <strong>da</strong>AIBíblia.AS PALAVRAS SAGRADAS NÃO TÊM AUTORIDADENOS DEBATES CIENTÍFICOSO trecho seguinte <strong>da</strong> <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong> expõe enfática e longamentea tese <strong>de</strong> que a ina<strong>de</strong>quação <strong>da</strong> interpretação literal se esten<strong>de</strong> <strong>para</strong>os poucos momentos <strong>da</strong> Escritura em que se leem proposiçõessobre os “efeitos naturais”. O argumento: se não se <strong>de</strong>ve ler literalmentetrechos em que Deus parece ter mãos, pés, raiva, arrependimento,por que se empreen<strong>de</strong>ria uma interpretação literal <strong>para</strong> osbreves trechos em que a Escritura fala sobre a natureza? Citemosalgumas <strong>da</strong>s vigorosas palavras com que <strong>Galileo</strong> expõe a tese e oargumento:Se, unicamente <strong>para</strong> se a<strong>da</strong>ptar ao entendimento dos povosru<strong>de</strong>s e incultos, a Escritura não se absteve <strong>de</strong> escurecer alguns<strong>de</strong> seus principais dogmas, atribuindo até mesmo aopróprio Deus condições distantes e contrárias à sua essência,quem po<strong>de</strong>rá renitentemente sustentar que ela, colocando<strong>de</strong> lado este motivo ao falar ocasionalmente <strong>da</strong> Terra, doSol, ou <strong>de</strong> qualquer outra coisa cria<strong>da</strong>, tenha optado porater-se em todo rigor nos limitados e restritos significados<strong>da</strong>s palavras? (GALILEU, 1988, p.19)Po<strong>de</strong>-se dizer que <strong>Galileo</strong> está convocando todos os nobres, religiosose intelectuais, enfim, os homens que, como ele, “merecemser distinguidos <strong>da</strong> plebe” a respeitarem sua inteligência e cultura enão <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rem uma tese quase ilógica <strong>de</strong> interpretação literal <strong>da</strong>spassagens em que a Escritura fala <strong>da</strong> natureza. Se é insensato lerque Deus tem mãos e tomar isso ipsis litteris, então por que seria


azoável ler literalmente, por exemplo, que Deus mandou <strong>para</strong>r oSol <strong>para</strong> Josué consoli<strong>da</strong>r sua vitória sobre seus inimigos?Sendo assim, não é legítimo apoiar-se na literali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s palavras<strong>da</strong> Escritura <strong>para</strong> recusar uma proposição científica. Vale aquireproduzir extensamente algumas <strong>da</strong>s <strong>de</strong>nsas palavras com que<strong>Galileo</strong> como que <strong>de</strong>monstra essaAJtese:Visto, pois, que a Escritura, em muitas passagens, não apenaspermite, mas necessariamente exige exposições diferentesdo aparente significado <strong>da</strong>s palavras, parece-me que nasdiscussões naturais ela [a Escritura] <strong>de</strong>veria ser cita<strong>da</strong> somenteem última instância. Porque, proce<strong>de</strong>ndo igualmentedo Verbo Divino a Sagra<strong>da</strong> Escritura e a natureza, aquelacomo palavra escrita do Espírito Santo e esta comoperfeitíssima executora <strong>da</strong>s or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> Deus, sabendo-se agora,ain<strong>da</strong> mais, que as Escrituras dizem muitas coisas diferentes<strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> absoluta, quanto ao aspecto e significados<strong>da</strong>s palavras, a fim <strong>de</strong> a<strong>da</strong>ptarem-se ao entendimento <strong>de</strong>todos, e sendo, to<strong>da</strong>via, a natureza inexorável, imutável eindiferente a que suas recônditas razões e modos <strong>de</strong> operarsejam acessíveis ou não ao entendimento dos homens, razãopela qual jamais transgri<strong>de</strong> os termos <strong>da</strong>s leis a ela impostas,parece-me que o concernente aos efeitos naturais, que a experiênciasensível coloca-nos diante dos olhos, ou que asnecessárias <strong>de</strong>monstrações comprovam, não <strong>de</strong>va <strong>de</strong> maneiraalguma ser colocado em dúvi<strong>da</strong> pelas passagens <strong>da</strong>Escritura <strong>de</strong>vido ao fato <strong>de</strong> haver nas palavras uma aparência<strong>de</strong> significado diferente.Há muito o que comentar sobre esta extraordinária passagem.Inicialmente, <strong>de</strong>ve-se notar, em seu final, uma brevíssima referência<strong>de</strong> <strong>Galileo</strong> ao seu método, fun<strong>da</strong>do na confiança nas necessárias<strong>de</strong>monstrações (necessarie dimostrazioni, em geral matemáticas)e na experiência sensível (sensata esperienza, expressão quealguns especialistas preferem traduzir por “experiência sensata”).Outra coisa a notar é que <strong>Galileo</strong> está ain<strong>da</strong> colocando sob ataquecerrado a chama<strong>da</strong> interpretação literal e uma pretensão <strong>de</strong>sta a<strong>de</strong>smentir proposições científicas que a contradigam.Mais interessante é registrar que há estudiosos, como PabloMaricon<strong>da</strong>, que veem nessa passagem uma distinção entre duas


linguagens, “uma, comum, usa<strong>da</strong> pelos homens na vi<strong>da</strong> cotidiana<strong>para</strong> regular seus afazeres comuns e pelo Espírito Santo na Bíblia<strong>para</strong> ensinar o caminho <strong>da</strong> salvação; a outra, matemática, usa<strong>da</strong>nas investigações naturais rigorosas que se po<strong>de</strong>m fazer com o uso<strong>da</strong> razão natural”, distinção esta que <strong>Galileo</strong> avança, segundoMaricon<strong>da</strong>, <strong>para</strong> uma afirmação <strong>da</strong> “incontestável superiori<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>da</strong> linguagem científica sobre a teológica” (MARICONDA, 2001,p. 30).Numa perspectiva radicalmente diferente, o papa João Paulo IIcitou esta mesma passagem, em um discurso European PhysicalSociety em 31 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1979, <strong>para</strong> ilustrar a existência doAAqueele chamou “um laço entre a fé e a ciência”:Há um laço entre a fé e a ciência, como também vos foi<strong>da</strong>do afirmar. O Magistério <strong>da</strong> Igreja sempre o <strong>de</strong>clarou eum dos fun<strong>da</strong>dores <strong>da</strong> ciência mo<strong>de</strong>rna, Galileu, escreviaque «a Sagra<strong>da</strong> Escritura e a Natureza proce<strong>de</strong>m, uma eoutra, do Verbo divino: uma, como sendo dita<strong>da</strong> pelo EspíritoSanto, e a outra como executora fi<strong>de</strong>líssima <strong>da</strong>s obras<strong>de</strong> Deus». Assim escrevia na sua <strong>carta</strong> <strong>de</strong> 1613 a B. <strong>Castelli</strong> .(JOÃO PAULO II, 1979)Esta visa<strong>da</strong> <strong>de</strong> João Paulo II não se importa (no momento <strong>de</strong> seudiscurso, claro) com a conclusão do raciocínio <strong>de</strong> <strong>Galileo</strong>, querchamar apenas a atenção <strong>para</strong> sua aceitação, como homem <strong>de</strong> fé,<strong>de</strong> que a Escritura provém do “Verbo divino”, <strong>de</strong> que as palavrasque nela se leem são palavras dita<strong>da</strong>s pelo Espírito Santo. Como jáse anotou mais acima, muitos estudiosos acadêmicos sem vínculoscom a Igreja católica, enten<strong>de</strong>m, como João Paulo II, que <strong>Galileo</strong>sempre foi um católico sincero.Mas aqui neste trabalho queremos enfatizar o que <strong>Galileo</strong> querestabelecer, numa quase-<strong>de</strong>monstração: a proposição <strong>de</strong> que “nasdiscussões naturais ela [a Escritura] <strong>de</strong>veria ser cita<strong>da</strong> somente emúltima instância”. E com esse negrito em “cita<strong>da</strong>” queremos reafirmaro entendimento <strong>de</strong> que, até aqui, <strong>Galileo</strong> está recusando apenasa interpretação literal e sua pretensão a <strong>de</strong>cidir questões científicas.Mas e quanto às interpretações não-literais? Não po<strong>de</strong>ria ser queos intérpretes fornecessem chaves <strong>de</strong> interpretação outras – que


não fossem pela aceitação pura e simples dos primeiros significados<strong>da</strong>s palavras – e com tais interpretações o teólogo pu<strong>de</strong>sseparticipar <strong>de</strong> – ou até iluminar – um <strong>de</strong>bate científico? Não, issotambém não po<strong>de</strong> ser, diz-nos Galileu, porque não é “possível assegurarque todos os seus [<strong>da</strong> Escritura] intérpretes falam sob inspiraçãodivina”.Como se vê, a <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong>, além <strong>de</strong> recusar longamente ainterpretação literal, ataca também todo tipo <strong>de</strong> interpretação compretensão <strong>de</strong> pronunciamento sobre questões científicas. O resultadofinal <strong>da</strong> argumentação galileana é a recusa em confiar papel<strong>de</strong>cisivo no terreno <strong>da</strong> ciência tanto <strong>para</strong> as interpretaçõesBEEliteraiscomo <strong>para</strong> as não-literais. Nenhuma interpretação <strong>da</strong> Bíblia, enfim,po<strong>de</strong> garantir que expressa a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre a natureza e, porisso, não po<strong>de</strong>m preten<strong>de</strong>r ter algum papel <strong>de</strong>cisivo em <strong>de</strong>batescientíficos.AS INTERPRETAÇÕES DA ESCRITURA A REBOQUEDAS REALIZAÇÕES CIENTÍFICAS?Como se acabou <strong>de</strong> ver, com essa etapa <strong>de</strong> argumentação na<strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong>, <strong>Galileo</strong>, po<strong>de</strong>-se dizer, estabelece <strong>de</strong>finitivamenteque as palavras <strong>da</strong> Escritura, entendi<strong>da</strong>s literalmente ou interpreta<strong>da</strong>smais largamente, não po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>cidir, nem ao menos ter qualquerfunção argumentativa, numa discussão científica. Enfim, suaautori<strong>da</strong><strong>de</strong> é nula em tais discussões. Por essa e outras razões, PabloMaricon<strong>da</strong> vê na <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong> um “manifesto concernente à liber<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> pesquisa científica” (MARICONDA, 2001, p. 28) ouum “pleito <strong>de</strong> autonomia” <strong>da</strong> ciência em relação à teologia(MARICONDA, 2001, p.32).<strong>Galileo</strong> faz mais do que pleitear autonomia <strong>para</strong> a ciência, eleaumenta a digni<strong>da</strong><strong>de</strong> dos que leem o livro <strong>da</strong> natureza. Isso é explicadopor Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento, que ensina que os“padres e doutores medievais” – que já faziam uso, diz-nos, <strong>da</strong>metáfora dos dois livros <strong>de</strong> Deus – entendiam que “todos po<strong>de</strong>mler o livro <strong>da</strong> natureza, mesmo o ignorante; a <strong>leitura</strong> do livro <strong>da</strong>escritura, ao contrário, supõe alguma instrução <strong>para</strong> ser lido” (NAS-CIMENTO, 1986, p.56). Com <strong>Galileo</strong>, só quem conhece a mate-


mática (mais exatamente: a geometria <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s, o instrumentomatemático por excelência na primeira meta<strong>de</strong> do XVII) po<strong>de</strong> seatirar à <strong>leitura</strong> do livro <strong>da</strong> natureza.E <strong>Galileo</strong> <strong>de</strong>clara “a natureza inexorável, imutável e indiferentea que suas recônditas razões e modos <strong>de</strong> operar sejam acessíveisou não ao entendimento dos homens, razão pela qual jamais transgri<strong>de</strong>os termos <strong>da</strong>s leis a ela impostas” enquanto “nem to<strong>da</strong> afirmação<strong>da</strong> Escritura amarra-se a uma obrigação tão severa comoca<strong>da</strong> efeito <strong>da</strong> natureza”. O Espírito Santo, quando ditou palavras<strong>para</strong> os que escreveram a Escritura, queria o “entendimento doshomens”, <strong>da</strong>í o uso mais livre <strong>da</strong> linguagem <strong>para</strong> se “acomo<strong>da</strong>r”BEBàcapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> compreensão <strong>da</strong> “plebe”. Já o Deus Criador or<strong>de</strong>naseveramente o mundo e não está preocupado, por assim dizer, sealguém vai compreen<strong>de</strong>r ou não o livro <strong>da</strong> natureza. Daí a maiordificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se ler este livro 3 . Em outras palavras: não é fácil lero livro <strong>da</strong> natureza, on<strong>de</strong> as razões e os modos <strong>de</strong> operação não seexibem às claras, estão “recônditos”, e as “obrigações” <strong>da</strong>s coisas<strong>da</strong> natureza são severas.Mas <strong>Galileo</strong> faz mais ain<strong>da</strong> no sentido <strong>de</strong> dignificar a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> investigação <strong>da</strong> natureza: ele coloca a teologia em uma posiçãosegun<strong>da</strong> em relação à ciência. Vejamos como ele apresenta estai<strong>de</strong>ia:... sendo ... pacífico que duas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s não po<strong>de</strong>m jamais secontradizer, é função dos sábios expositores e intérpretesempenharem-se em estabelecer o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro sentido <strong>da</strong>spassagens sagra<strong>da</strong>s, <strong>de</strong> forma a concor<strong>da</strong>rem elas com asconclusões naturais acerca <strong>da</strong>s quais o sentido evi<strong>de</strong>nte ou asnecessárias <strong>de</strong>monstrações tornaram-nos certos e seguros.(GALILEI, 1988, p.19)É impressionante a coragem – ou será temeri<strong>da</strong><strong>de</strong>? – <strong>de</strong> <strong>Galileo</strong>.Ele está, po<strong>de</strong>-se dizer, subordinando a teologia à ciência, ele estácolocando os “sábios expositores e intérpretes” a serviço dos quetem educação <strong>para</strong> ler o livro <strong>da</strong> natureza.Pelo bem <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não se po<strong>de</strong> ir muito longe na tese <strong>de</strong> quea teologia foi coloca<strong>da</strong> a serviço <strong>da</strong> ciência na <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong>, pelarazão simples <strong>de</strong> que <strong>Galileo</strong> vê escopos diferentes <strong>para</strong> ca<strong>da</strong> uma<strong>de</strong>las:


BE>Eu acredito antes que a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s Letras Sagra<strong>da</strong>s tenhatão somente o objetivo <strong>de</strong> persuadir os homens <strong>da</strong>quelesartigos e proposições que, sendo necessários à sua salvaçãoe colocando-se acima <strong>de</strong> qualquer possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> mentehumana, não possam fazer-se críveis por nenhum outro meiosenão pela palavra do próprio Espírito Santo. Mas não pensoque seja necessário acreditar que aquele mesmo Deus quenos dotou <strong>de</strong> sentidos, <strong>de</strong> razão e <strong>de</strong> intelecto, tenha querido,<strong>de</strong>sprezando o seu uso, <strong>da</strong>r-nos por outro qualquer meioas notícias que po<strong>de</strong>mos obter através <strong>de</strong>les. (GALILEI,1988, p.19)Essa tese reaparece na <strong>carta</strong> a Cristina <strong>de</strong> Lorena, <strong>de</strong> modo maisincisivo, através <strong>de</strong> uma fórmula atribuí<strong>da</strong> ao car<strong>de</strong>al Barônio: “aintenção do Espírito Santo é ensinar-nos como se vai <strong>para</strong> o céu enão como vai o céu” (GALILEI, 1988, p.52). E também se apresentanaquela encíclica <strong>de</strong> Leão XIII:Não haverá nenhum <strong>de</strong>sacordo real entre o teólogo e ofísico enquanto ambos se mantenham em seus limites, cui<strong>da</strong>ndo,segundo a frase <strong>de</strong> Santo Agostinho, “<strong>de</strong> não afirmarna<strong>da</strong> ao acaso e não <strong>da</strong>r por conhecido o <strong>de</strong>sconhecido”(LEÃO XIII, 1893).Enfim, há uma in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ncia <strong>da</strong>s linguagens <strong>de</strong> que Deus fazuso na Escritura e na natureza porque elas tem finali<strong>da</strong><strong>de</strong>s diferentes:uma quer a salvação <strong>de</strong> nossa alma, e Deus a usa, portanto,dirigi<strong>da</strong> a nós; a outra, a proveniente do livro <strong>da</strong> natureza, provémigualmente do Verbo divino mas não é enuncia<strong>da</strong>, por assim dizer,em nossa direção; apenas está ao nosso alcance, já que Deus nosdotou “<strong>de</strong> sentidos, <strong>de</strong> razão e <strong>de</strong> intelecto”.UMA REVIRAVOLTA SURPREENDENTE NA CARTA:A INTERPRETAÇÃO LITERAL DA PASSAGEM DE JOSUÉO trecho seguinte <strong>da</strong> <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong> é um momento, po<strong>de</strong>-sedizer, misto <strong>de</strong> amargura e ironia, lamentando a atitu<strong>de</strong> <strong>da</strong>queles


que, por não acreditarem <strong>de</strong> fato possuírem a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, “lançamsubitamente mão <strong>de</strong> uma arma tremen<strong>da</strong> [a Escritura], cuja simplesvisão aterroriza o mais hábil e esperto campeão”. Mas, comisso, estes supostos <strong>de</strong>fensores <strong>da</strong> fé cristã conseguem apenas <strong>de</strong>ixarevi<strong>de</strong>nte que são eles mesmos “os primeiros aterrorizados”.Posta essa crítica aos que lhe querem imputar uma pecha <strong>de</strong>inimigo a combater com a força <strong>da</strong> Escritura, <strong>Galileo</strong> faz um movimentosurpreen<strong>de</strong>nte ao leitor não familiarizado com suas táticas<strong>de</strong> argumentação: numa impressionante reviravolta, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> examinaruma passagem <strong>da</strong> Escritura atendo-se ao significado literal –que criticara longamente linhas atrás – “a fim <strong>de</strong> que oBEFadversárionão presuma uma possível liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r alterar ou mu<strong>da</strong>r ossignificados <strong>da</strong>s palavras” 4 .A passagem bíblica em questão é justamente a que mais era brandi<strong>da</strong>contra o copernicanismo, a passagem que registra uma vitóriamilitar grandiosa <strong>de</strong> Josué que corre o risco <strong>de</strong> não ser consoli<strong>da</strong><strong>da</strong>porque o dia vai se acabar. Josué então bra<strong>da</strong> “Sol, <strong>de</strong>tém-te sobreGabaon...” e o Senhor, excepcionalmente, “obe<strong>de</strong>ceu” à voz <strong>de</strong>um homem (Jos.,10,12-13). Os adversários <strong>de</strong> Copérnico argumentavamque essa passagem bíblica atestava a falsi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> suas tesesheliocêntricas, em que o Sol está imóvel no centro do Universo.Ora, perguntavam com ironia, por que Deus <strong>para</strong>ria o que já está<strong>para</strong>do?<strong>Galileo</strong>, <strong>de</strong>safiadoramente, inicia sua interpretação (literal) <strong>da</strong>passagem <strong>de</strong> Josué afirmando que “esta passagem nos mostra manifestamentea falsi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do sistema <strong>de</strong>Aristóteles e Ptolomeu e que, ao contrário, se a<strong>da</strong>pta perfeitamenteao <strong>de</strong> Copérnico”.E pergunta “ao adversário se ele sabe por quais movimentos semove o Sol” (na hipótese aristotélico-ptolomaica, a do adversárioquestionado). E respon<strong>de</strong> ele mesmo: o anual, do poente em direçãoao nascente e o diurno, “por oposto, do nascente em direção aopoente”.Aqui vale comentar <strong>para</strong> o leitor atual a resposta galileana à essaquestão. O sistema aristotélico-ptolomaico tem a vantagem na<strong>da</strong><strong>de</strong>sprezível <strong>de</strong> estar <strong>de</strong> acordo com as observações do céu feitaspor nós, habitantes <strong>da</strong> Terra. Po<strong>de</strong>mos nos <strong>da</strong>r conta do movimentodiário do Sol, que dura aproxima<strong>da</strong>mente 24 horas. Só vemos o


trecho diurno, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o nascente até o por-do-sol. E se formos diligentes,notaremos que o Sol percorre em aproxima<strong>da</strong>mente 365dias as constelações do Zodíaco (Leão, Virgem, Libra, etc...). Paranos <strong>da</strong>rmos conta disso, é preciso postar-se ao alvorecer mirando onascente e observar que constelação surge no horizonte um poucoantes do nascer do Sol. Se fizermos isso ao longo do ano, veremosLeão nascer nos finais <strong>da</strong>s noites <strong>de</strong> 23 <strong>de</strong> julho a 22 <strong>de</strong> agosto,Virgem entre 23 <strong>de</strong> agosto e 23 <strong>de</strong> setembro, Libra entre 24 <strong>de</strong>setembro e 23 <strong>de</strong> outubro, etc.Ora, <strong>Galileo</strong> está, então, relembrando seu adversário aristotélicoptolomaicoo fato básico <strong>de</strong> que os dois movimentos do Sol,BE?odiário e o anual, tem sentidos contrários. E segue explicando quesomente o segundo “pertence ao Sol”, enquanto o primeiro “não épropriamente seu, mas do céu altíssimo, isto é, do primeiro móvel,que arrebata consigo o Sol e os outros planetas, e ain<strong>da</strong> a esferaestrela<strong>da</strong>, obrigando-os a <strong>da</strong>r um giro em torno <strong>da</strong> Terra em vinte equatro horas, num movimento, como disse, quase contrário àqueleque lhe é natural e próprio”.Aqui <strong>Galileo</strong> está usando uma conceituação aristotélica, a <strong>da</strong>esfera que move to<strong>da</strong>s as esferas planetárias, Esse “primeiro móvel”obriga os planetas a acompanharem seu movimento <strong>de</strong> 24horas aproxima<strong>da</strong>s <strong>de</strong> duração, arrastando-os, “arrebatando-os”.E note-se que <strong>Galileo</strong> escreveu “o Sol e os outros planetas”.Sim, o Sol é um planeta no sistema aristotélico-ptolomaico! Osplanetas são os astros celestes que percorrem as constelações doZodíaco e o Sol faz isso em 365 dias, aproxima<strong>da</strong>mente (Mercúrioo faz em 88 dias, Vênus em 273 dias, etc.).Assim, o planeta Sol tem dois movimentos e o que lhe é próprionão é o <strong>de</strong> 24 horas! Este movimento ele faz porque é “arrebatado”pelo primeiro móvel, enquanto o movimento que é seu, mesmo,dura 365 dias, e é <strong>de</strong> sentido contrário ao movimento diurno.<strong>Galileo</strong> explica a seguir que, como “é forçoso” que seu adversárioaceite que se “o dia e a noite são efeitos do primeiro móvel ...quem não vê que <strong>para</strong> prolongar o dia é necessário <strong>de</strong>ter o primeiromóvel e não o Sol?”. Mais: que se Deus tivesse <strong>de</strong>tido o Sol, emseu movimento próprio, o dia ficaria mais curto, pois, como já haviadito, “o movimento do Sol [é] contrário ao <strong>da</strong> evolução diurna”.


O leitor contemporâneo <strong>de</strong>ve se <strong>de</strong>ter aqui, a fim <strong>de</strong> visualizarem sua imaginação que o movimento próprio do Sol, o <strong>de</strong> 365 dias,pelo fato <strong>de</strong> ter sentido contrário ao do movimento diurno, atrasa achega<strong>da</strong> do Sol ao poente. Então se Deus <strong>para</strong>sse o movimentopróprio do Sol, ele seria “arrebatado” sem resistência, seria arrastadoem direção ao poente em um tempo menor ... o que era o contráriodo interesse <strong>de</strong> Josué!De modo avassalador, <strong>Galileo</strong> <strong>de</strong>duz,BEGentão:... ou é necessário que os movimentos não sejam or<strong>de</strong>nadoscomo quer Ptolomeu, ou então é necessário alterar o sentido<strong>da</strong>s palavras e dizer que, quando a escritura afirmou haverDeus <strong>de</strong>tido o Sol, queria afirmar que ele <strong>de</strong>teve o primeiromóvel, mas que, a fim <strong>de</strong> se acomo<strong>da</strong>r à capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> compreensão <strong>da</strong>queles que já têm dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>rapenas o nascimento e o ocaso do Sol, ela foi compeli<strong>da</strong>a falar o contrário <strong>da</strong>quilo que <strong>de</strong>veria ter afirmado dirigindo-sea homens doutos (GALILEI, 1988, p.23).Detenhamo-nos <strong>para</strong> apreciar o que <strong>Galileo</strong> está fazendo: eleestá passando ao adversário o ônus <strong>da</strong> a<strong>de</strong>quação com a Escriturae está lhe dizendo que <strong>para</strong> salvar sua concepção geocêntrica ele<strong>de</strong>ve abraçar exatamente o que os primeiros parágrafos <strong>de</strong>sta <strong>carta</strong>a <strong>Castelli</strong> propunham, a idéia <strong>de</strong> que o Espírito Santo não falaapenas com “homens doutos” e por isso eventualmente simplificasua linguagem.<strong>Galileo</strong> prossegue inclemente acrescentando que “não é crívelque Deus <strong>de</strong>tivesse somente o Sol” porque teria “alterado to<strong>da</strong> aor<strong>de</strong>m, os aspectos e as disposições <strong>da</strong>s <strong>de</strong>mais estrelas em relaçãoao Sol”. Para enten<strong>de</strong>r isso, imaginemos que a batalha <strong>de</strong> Josué emGabaon ocorresse atualmente, num dia 22 <strong>de</strong> agosto. O Sol estariaprestes a entrar em Virgem mas como seu movimento próprio teriasido <strong>para</strong>do por Deus, haveria um atraso nessa entra<strong>da</strong> e o Solpermaneceria em Leão mais tempo que o normal. Ao fim do milagre,o Sol voltaria a ter seu movimento próprio mas estaria <strong>de</strong>finitivamentealtera<strong>da</strong> seu momento <strong>de</strong> entra<strong>da</strong> em Virgem.<strong>Galileo</strong>, enfim, está mostrando que insistir na interpretação literal<strong>da</strong> passagem <strong>de</strong> Josué obriga-nos, por assim dizer, a <strong>de</strong>s<strong>carta</strong>rmoso geocentrismo e a abraçarmos as tese copernicanas. Sim, por-


que estas po<strong>de</strong>m ser concilia<strong>da</strong>s com o relato bíblico em questão,tomado literalmente, como <strong>Galileo</strong> vai mostrar a seguir.Adota<strong>da</strong> como premissa a interpretação literal, “por termosconvencionado que não se <strong>de</strong>ve alterar as palavras do texto”,<strong>Galileo</strong> propõe que a passagem <strong>de</strong> Josué seja entendi<strong>da</strong> à luz doque <strong>de</strong>clara ter “<strong>de</strong>scoberto e logicamente <strong>de</strong>monstrado”, a rotaçãodo Sol em torno <strong>de</strong> si mesmo, fazendo uma inteira evoluçãoem um mês lunar, aproxima<strong>da</strong>mente na exata direção em que seprocessam to<strong>da</strong>s as outras evoluções celestes”.A “<strong>de</strong>scoberta” <strong>de</strong> que <strong>Galileo</strong> está falando é consequência <strong>de</strong>seus estudos sobre as manchas solares e <strong>da</strong> polêmica queBEHempreen<strong>de</strong>ucom o jesuíta Christopher Scheiner, que reclamava a priori<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>da</strong> observação <strong>de</strong> tais manchas e as entendia como projeções<strong>de</strong> pequenos corpos que girariam em torno do Sol. <strong>Galileo</strong> recusa aexplicação <strong>de</strong> Scheiner, mostrando que as manchas se movem <strong>de</strong>um modo tal que só po<strong>de</strong> ser compreendido se se postula que sãocontíguas a Sol e que este gira em torno <strong>de</strong> si mesmo.Posto isso, <strong>Galileo</strong> propõe como sendo “muito provável e razoávelque o Sol como instrumento e regente máximo <strong>da</strong> natureza,quase coração do mundo, dê não somente, como claramente dá, aluz, mas também o movimento aos planetas que giram em torno<strong>de</strong>le”. Aqui o Sol que gira em torno <strong>de</strong> si mesmo impulsiona, comeste seu giro, os planetas a se moverem circularmente “na exatadireção” <strong>de</strong>sse giro solar.Ora, sendo a Terra um planeta no sistema copernicano e sendoo dia e a noite, neste sistema, consequência do movimento <strong>de</strong> rotação<strong>de</strong> nosso planeta “quem não vê que <strong>para</strong> <strong>de</strong>ter todo o sistemabastou <strong>de</strong>ter o Sol, como exatamente indicam as palavras do textosagrado, sem alterar o restante <strong>da</strong>s recíprocas relações relações dosplanetas, alterando somente o espaço e o tempo <strong>da</strong> iluminaçãodiurna?”.Vejamos: se não há movimento <strong>da</strong>s estrelas – estas apenas parecemgirar em torno <strong>de</strong> nós, <strong>de</strong>vido à rotação <strong>da</strong> Terra – se há apenasmovimentos planetários em redor do Sol, o “Sol, <strong>de</strong>tém-te ...”proferido por Josué <strong>para</strong> o motor-Sol, imobiliza não só o gran<strong>de</strong>motormas também tudo o que era movido por ele. Tudo <strong>para</strong>dodurante o tempo <strong>de</strong> efetivação do milagre ... e quando Deusreativasse o motor-Sol, a or<strong>de</strong>m <strong>da</strong>s estrelas e as localizações pla-


netárias seriam as mesmas do momento <strong>de</strong> início <strong>da</strong> imobilizaçãocósmica.A CARTA A CASTELLI E A IGREJA CATÓLICA CONTEM-BEIPORÂNEANão é comum, nas análises e ensaios sobre a <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong>,que o articulista se preocupe em trabalhar o tratamento <strong>de</strong> <strong>Galileo</strong><strong>para</strong> a passagem <strong>de</strong> Josué. É <strong>de</strong> se perguntar por que isso; masneste trabalho não nos permitimos tal omissão, pois aqui se temcomo premissa que ca<strong>da</strong> linha <strong>da</strong> <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong> é valiosa <strong>para</strong> osque no século <strong>XXI</strong> enfrentam a questão (recoloca<strong>da</strong>) <strong>da</strong> relaçãoentre ciência e fé.Também no espírito <strong>de</strong> subsidiar o leitor contemporâneo cominstrumentos <strong>para</strong> aproveitar ao máximo a <strong>carta</strong> <strong>de</strong> <strong>Galileo</strong>, vamosnos <strong>de</strong>ter um pouco em sua recepção pela Igreja Católica. Como jásabemos, durante a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>Galileo</strong> a <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong> foi recebi<strong>da</strong>pela Igreja Católica como uma peça incômo<strong>da</strong>, <strong>para</strong> alguns umaarrogância insuportável <strong>de</strong> um leigo, com muitas passagens que nomínimo “soavam mal”, quando não eram consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s heréticas.O presente trabalho seria bastante engran<strong>de</strong>cido se trouxesseum registro exaustivo <strong>de</strong> sua apreciação pela Igreja em momentosposteriores. Mas este estudo não po<strong>de</strong> ter, evi<strong>de</strong>ntemente, a pretensão<strong>de</strong> esgotar todos os momentos <strong>de</strong> recusa ou aceitação <strong>da</strong>steses que <strong>Galileo</strong> apresenta na <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong>. Entretanto, é possível<strong>de</strong>ter-nos brevemente em dois pronunciamentos papais quereverberam aquelas teses e praticamente endossam algumas <strong>de</strong>las.O primeiro, já o sabemos, é uma encíclica <strong>de</strong> autoria do papa LeãoXIII, <strong>de</strong> título Pru<strong>de</strong>ntissimus Deus, publica<strong>da</strong> em 1893. A primeiracoisa que vale <strong>de</strong>stacar nessa encíclica é sua concordância coma tese <strong>de</strong> que o Espírito Santo ás vezes escolhe palavras que escon<strong>de</strong>ma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre a natureza porque é preciso falar com todos,cultos ou ignorantes, sobre o que realmente interessa, os assuntosque encaminham à salvação. Vejamos como Leão XIII faz isso, aocomentar uma “regra” ensina<strong>da</strong> por Tomás <strong>de</strong> Aquino:Para penetrarmos bem a justeza <strong>de</strong>sta regra, <strong>de</strong>ve-se consi-


BEJ<strong>de</strong>rar em primeiro lugar que os escritores sagrados, ou melhor,o Espírito Santo, que falava através <strong>de</strong>les, não quiseramensinar aos homens estas coisas (a íntima natureza ou constituição<strong>da</strong>s coisas que se veem), uma vez que isso na<strong>da</strong> lhesserviria <strong>para</strong> sua salvação; e, assim, mais do que tentar especificamentea exploração <strong>da</strong> natureza, <strong>de</strong>screvem e tratam àsvezes as mesmas coisas, em sentido figurado ou segundo amaneira <strong>de</strong> falar <strong>da</strong>queles tempos, que ain<strong>da</strong> hoje vigora <strong>para</strong>muitas coisas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana até entre os homens maiscultos. E como à maneira vulgar <strong>de</strong> nos expressarmos convém,antes <strong>de</strong> tudo, <strong>de</strong>stacar o que cai sob os sentidos, <strong>de</strong>igual modo o escritor sagrado – e isso já o havia advertidoo Doutor Angélico – “se guia pelo que aparece sensivelmente”,que é o que o mesmo Deus, ao falar aos homens,quis fazer à maneira humana <strong>para</strong> ser entendido por eles.(LEÃO XIII, 1893)Como se po<strong>de</strong> ler, Leão XIII concor<strong>da</strong> integralmente com a tesegalilaica <strong>de</strong> que a voz do Espírito Santo quis “se a<strong>da</strong>ptar ao entendimentodos povos ru<strong>de</strong>s e incultos”. Interessante é notar que eleo faz <strong>de</strong> maneira talvez até mais elabora<strong>da</strong>.Numa outra passagem, Leão XIII fala dos intérpretes <strong>da</strong> Escrituraque trataram <strong>da</strong>s “coisas físicas”:... <strong>de</strong> que seja preciso <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r vigorosamente a Santa Escrituranão se segue que seja necessário manter igualmente to<strong>da</strong>sas opiniões que ca<strong>da</strong> um dos Padres ou dos intérpretesposteriores sustentaram ao explicar as mesmas Escrituras;os quais, ao expor as passagens que tratam <strong>da</strong>s coisas físicas,talvez não tenham julgado sempre segundo a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, até oponto <strong>de</strong> emitir certos pricípios que hoje não po<strong>de</strong>m seraprovados.Note-se que Leão XIII admite que respeitáveis intérpretes po<strong>de</strong>mter errado ao explicar passagens <strong>da</strong> Escritura que falam <strong>da</strong>scoisas <strong>da</strong> natureza. Linhas abaixo, em perfeita consonancia com<strong>Galileo</strong>, afirma que o intérprete <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>monstrar que a Bíblia nãoé afronta<strong>da</strong> pelas <strong>de</strong>scobertas bem estabeleci<strong>da</strong>s <strong>da</strong> ciencia. Emsuas palabras: “o intérprete <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>monstrar que as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s que


os estudiosos <strong>da</strong>s ciências físicas dão como certas e apoia<strong>da</strong>s emfirmes argumentos não contradizem a Escritura bem explica<strong>da</strong>” .Passemos ao segundo pronunciamento papal que aqui se quercomentar: como já sabemos, trata-se do Discurso do Papa JoãoPaulo II à Pontifícia Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Ciências, por ocasião do primeirocentenário do nascimento <strong>de</strong> Albert Einstein, em 1979. Curiosamente,João Paulo II pouco fala do aniversariante, é <strong>Galileo</strong> seuprincipal objeto <strong>de</strong> atenção. Depois <strong>de</strong> lamentar o que ele sofreu“<strong>da</strong> parte <strong>de</strong> homens e organismos <strong>da</strong> Igreja” e ressalvar que, entretanto,“as concordâncias entre religião e ciência são mais numerosas,e sobretudo mais importantes, que as incompreensões <strong>de</strong>BEAquenasceu o conflito áspero e doloroso que se prolongou durante osséculos seguintes”, João Paulo II fala <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o livro <strong>da</strong>natureza e o Livro Sagrado, se bem lidos, não po<strong>de</strong>m se contradizer:Aquele, que é chamado a justo título fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> física mo<strong>de</strong>rna,<strong>de</strong>clarou explicitamente que as duas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s, <strong>de</strong> fé e <strong>de</strong> ciência,não po<strong>de</strong>m nunca contradizer-se, “proce<strong>de</strong>ndo igualmente do Verbodivino a Escritura santa e a natureza, a primeira como dita<strong>da</strong>pelo Espírito Santo, a segun<strong>da</strong> como executora fi<strong>de</strong>líssima <strong>da</strong>s or<strong>de</strong>ns<strong>de</strong> Deus”, segundo ele escreveu na <strong>carta</strong> ao Padre Bene<strong>de</strong>tto<strong>Castelli</strong> a 21 <strong>de</strong> Dezembro <strong>de</strong> 1613 (Edição nacional <strong>da</strong>s obras <strong>de</strong>Galileu, vol. V, pp. 282-285). O Concílio Vaticano II não se exprimediferentemente; retoma mesmo expressões semelhantes quandoensina: “A investigação metódica, em todos os campos do saber,se é realiza<strong>da</strong> <strong>de</strong> modo ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente científico e conformeàs normas morais, não será nunca contrária à fé, porque as reali<strong>da</strong><strong>de</strong>stemporais e as reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> fé têm a sua origem no mesmoDeus” (Gaudium et Spes, 36).No mesmo discurso, outro ponto <strong>de</strong> concordância com <strong>Galileo</strong>que nos interessa. Embora a <strong>carta</strong> cita<strong>da</strong> seja a dirigi<strong>da</strong> a Cristina<strong>de</strong> Lorena (1615), já conhecemos <strong>da</strong> <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong> – e <strong>da</strong> encíclica<strong>de</strong> Leão XIII – o conteúdo aprovado por João Paulo II:Na sua <strong>carta</strong> à Grã-duquesa mãe, <strong>da</strong> Toscana, Cristina <strong>de</strong> Lorena,[<strong>Galileo</strong> ] reafirma a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Escritura: “A Sagra<strong>da</strong> Escrituranão po<strong>de</strong> nunca mentir, sob condição to<strong>da</strong>via <strong>de</strong> que seja penetra-


do o seu ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro sentido, que — não julgo po<strong>de</strong>r negar-se —está muitas vezes oculto e é diferentíssimo <strong>da</strong>quele que pareceindicar o simples significado <strong>da</strong>s palavras” (Edição nacional <strong>da</strong>sobras <strong>de</strong> Galileu, vol. V, p. 315). Galileu introduz o princípio dumainterpretação dos livros sagrados, que vai além do sentido literalmas é conforme ao intento e ao tipo <strong>de</strong> exposição que são próprios<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les. É necessário, como afirma, que “os sábios que aexpõem mostrem os sentidos ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros <strong>de</strong>la”. O magistério eclesiásticoadmite a plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s regras <strong>de</strong> interpretação <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong>Escritura. Ensina expressamente, <strong>de</strong> facto, com aencíclica Divino afflante Spiritu <strong>de</strong> Pio XII, a presença <strong>de</strong>BBEgénerosliterários diferentes nos livros sagrados e portanto a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> interpretações conformes ao carácter <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les.Eis outra <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a interpretação literal “muitasvezes” não é correta, agora com o <strong>de</strong>talhamento <strong>da</strong> exigência <strong>de</strong>“interpretações conformes” aos diferentes livros sagrados.CONCLUSÃOPo<strong>de</strong>mos encerrar aqui nossa brevíssima visita a pronunciamentos<strong>de</strong> papas <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mesmo precário, este percursojá nos mostrou endossos <strong>da</strong> Igreja Católica a teses <strong>da</strong> <strong>carta</strong> <strong>de</strong><strong>Galileo</strong> a <strong>Castelli</strong>. Talvez a religião que se propugna no Vaticano,mais madura que outras religiões, cristãs ou nãos, esteja, por assimdizer, vacina<strong>da</strong> por e contra erros como o <strong>da</strong> con<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> 1633,<strong>de</strong> modo que a iniciativa <strong>de</strong> João Paulo II, <strong>de</strong> reabilitar <strong>Galileo</strong> –leva<strong>da</strong> a cabo em 1992 – não é uma excepcionali<strong>da</strong><strong>de</strong> que venha aser corrigi<strong>da</strong> por papas posteriores.A justeza <strong>de</strong>ssa especulação pouco importa. O que importa éque <strong>para</strong> o leitor leigo, que eventualmente tenha que enfrentarfun<strong>da</strong>mentalismos que voltam a opor a ciência e a fé, fiquem osprolíficos entendimentos que se leem na <strong>carta</strong> a <strong>Castelli</strong> e a esperança,<strong>da</strong><strong>da</strong> por atitu<strong>de</strong>s como as <strong>de</strong> leão XIII e João Paulo II, <strong>de</strong>que a ciência e a fé cheguem a uma <strong>de</strong>finitiva convivência <strong>de</strong> respeitoe incentivo mútuos.


NOTAS1Aqui vamos sempre escrever “<strong>Galileo</strong>” ao invés <strong>de</strong> “Galileu”, contrariandolonga tradição, em respeito ao estatuto científico e filosófico dopisano, um fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> como René (e não Renato) Descartes,Francis (e não Francisco) Bacon, Wilhelm (e não Guilherme) Leibniz,John (e não João) Locke,BBB......2Vale adicionar: este autor não conhece especialista que <strong>de</strong>fen<strong>da</strong> a i<strong>de</strong>ia– nem mesmo Pietro Redondi em seu Galileu Herético (REDONDI,1991) parece fazê-lo – <strong>de</strong> um <strong>Galileo</strong> que luta contra a fé cristã.3É irresistível pensar o quanto este trecho “soou mal” – <strong>para</strong> usar aexpressão <strong>da</strong>quele parecerista do Santo Ofício referido parágrafos atrás –aos ouvidos <strong>de</strong> religiosos e acadêmicos alinhados em posição mais tradicional.4O leitor mais acostumado com o vigor do polemista <strong>Galileo</strong> já viuesta tática em outras peças <strong>de</strong> seu punho. No Diálogo, por exemplo, ele aemprega na análise do argumento <strong>da</strong> torre – argumento anticopernicanoque quer que se aceite que uma pedra abandona<strong>da</strong> do alto <strong>de</strong> uma torreem uma Terra em movimento não cairia em uma linha vertical porqueenquanto a pedra caisse a torre giraria com a Terra em rotação. Um adversáriohavia com<strong>para</strong>do a suposta torre em rotação solidária à <strong>da</strong> Terracom o mastro <strong>de</strong> um navio em movimento sobre as águas do mar. <strong>Galileo</strong>primeiro <strong>de</strong>smerece a com<strong>para</strong>ção <strong>para</strong> <strong>de</strong>pois a aceitar, empregando-a<strong>para</strong>, ao contrário do adversário, sustentar a tese copernicana, numa passagemfamosa do Dialogo, consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> uma pioneira postulação <strong>de</strong>movimentos inerciais.5Esse movimento <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação <strong>da</strong> teología às realizações científicas<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> soli<strong>de</strong>z tem um notável exemplo no século XX, quando oextraordinário pensador católico Teilhard <strong>de</strong> Chardin não se <strong>de</strong>ixou afugentarpelo crescente sucesso <strong>da</strong>s teses evolucionistas e elaborou todo umpensamento cristão em que a noção <strong>de</strong> evolução – toma<strong>da</strong> num sentidomais amplo que o dos biólogos – joga papel fun<strong>da</strong>mental.


REFERÊNCIASBB>GALILEI, Galileu. Ciência e Fé. São Paulo: Nova Stella, 1988.GALILEI, <strong>Galileo</strong>. Opere. Firenze: Barbéra, 1928.JOÃO PAULO II. Discurso à European Physical Society. Disponível em http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/1979/march/documents/hf_jp-ii_spe_19790331_europ-phys-soc_po.html. Acessadoem 28/08/2012.LEÃO XIII. Pru<strong>de</strong>ntissimus Deus. Disponível em http://www.vatican.va/h o l y _ f a t h e r / l e o _ x i i i / e n c y c l i c a l s / d o c u m e n t s / h f _ l -xiii_enc_18111893_provi<strong>de</strong>ntissimus-<strong>de</strong>us_en.html. Acessado em 19/08/2012.MARICONDA, Pablo. “Introdução: O Diálogo e a con<strong>de</strong>nação” inDiálogo sobre Dois Máximos Sistemas do Mundo Ptolomaico & Copernicano. SãoPaulo: Discurso, 2001.NASCIMENTO, Carlos Arthur. “Sobre uma frase <strong>de</strong> Galileu” in Ca<strong>de</strong>rnos<strong>de</strong> Lógica e Epistemologia n. 9. Campinas: Unicamp, 1986.PAGANI, Sérgio; LUCIANI, Antônio. Os Documentos do Processo <strong>de</strong> GalileuGalilei. Petrópolis: Vozes, 1993.

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