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A Reescrita e os Caminhos da Construção do Sujeito - Centro de ...

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Maria J<strong>os</strong>e Martins <strong>de</strong> Nóbrega 1A <strong>Reescrita</strong> e <strong>os</strong> Caminh<strong>os</strong> <strong>da</strong> Construção <strong>do</strong> <strong>Sujeito</strong>Fazen<strong>do</strong> uma retr<strong>os</strong>pectiva <strong>da</strong>s teorias a respeito <strong>da</strong> aquisição <strong>da</strong> linguagem apartir <strong>da</strong>s consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> Eleonora Cavalcante ALBANO, em seu livro Da Falaà Linguagem Tocan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Ouvi<strong>do</strong>, verem<strong>os</strong> que, enquanto na Europa <strong>da</strong> primeirameta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século a Psicologia <strong>do</strong> Desenvolvimento vê na linguagem infantilsinais <strong>de</strong> uma "intensa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> intelectual", que não se restringe a umaaprendizagem por imitação, n<strong>os</strong> Estad<strong>os</strong> Unid<strong>os</strong>, o behaviorismo trata <strong>de</strong> reduziro processo <strong>de</strong> aquisição <strong>da</strong> linguagem a uma sucessão <strong>de</strong> estímul<strong>os</strong> eresp<strong>os</strong>tas: as palavras ouvi<strong>da</strong>s e as vocalizações <strong>da</strong> criança.Na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século, CHOMSKY 2 <strong>de</strong>monstra que <strong>os</strong> mo<strong>de</strong>l<strong>os</strong> <strong>do</strong>condicionamento clássico operante são insuficientes para "tratar quaisquerquestões relativas à aquisição e a<strong>os</strong> us<strong>os</strong> <strong>da</strong> linguagem". Não dispon<strong>do</strong> <strong>de</strong> umateoria <strong>de</strong> aprendizagem que p<strong>os</strong>sa "atestar a singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> intelecto humano",1 Pós-graduan<strong>da</strong> <strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong> Filologia e Língua Portuguesa <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, membro <strong>da</strong>Diretoria <strong>da</strong> Associação <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> Brasil.2 Noam CHOMSKY, lingüista americano, propõe uma teoria a que chama gramática gerativa. Enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong>"gramática' como um conjunto <strong>de</strong> regras que produzem as frases <strong>da</strong> língua e por "gerativa" a p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>, apartir <strong>de</strong> um número limita<strong>do</strong> <strong>de</strong> regras, gerar um número infinito <strong>de</strong> frases, para CHOMSKY a tarefa <strong>da</strong> Lingüística é<strong>de</strong>screver a "competência <strong>do</strong> falante", a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> que to<strong>do</strong> falante tem <strong>de</strong> produzir to<strong>da</strong>s as frases <strong>da</strong> língua. Apreocupação <strong>de</strong> CHOMSKY é não com o <strong>de</strong>sempenho particular <strong>de</strong> um falante, mas com a competência i<strong>de</strong>al queto<strong>do</strong> falante tem. A linguagem é uma facul<strong>da</strong><strong>de</strong> intrínseca à espécie humana: a linguagem é inata.77


CHOMSKY e seus segui<strong>do</strong>res tratam <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar a presença <strong>de</strong> estruturaslingüísticas inatas no processo <strong>de</strong> aquisição <strong>da</strong>s gramáticas <strong>da</strong>s línguasnaturais.Os crític<strong>os</strong> <strong>do</strong> pensamento <strong>de</strong> CHOMSKY apontam, entretanto, que a língua, porcomportar uma ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> e uma polissemia imprevisíveis, não po<strong>de</strong> serreduzi<strong>da</strong> a um sistema formal. A perspectiva construtivista piagetiana, porexemplo, sustenta que é p<strong>os</strong>sível falar através <strong>da</strong> abstração <strong>de</strong> experiências coma própria linguagem. Saberes presentes em um <strong>da</strong><strong>do</strong> momento reaparecemreestruturad<strong>os</strong> num processo <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nças qualitativas, ganhan<strong>do</strong> "um estatutomais lingüístico e gramatical".Um aspecto bastante polêmico em relação à teoria piagetiana é o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong>indivíduo enquanto "sujeito <strong>de</strong> sua própria aprendizagem". Além <strong>de</strong> term<strong>os</strong> <strong>de</strong>admitir predisp<strong>os</strong>ições inatas já bastante específicas e diferencia<strong>da</strong>s(GARDNER), não é p<strong>os</strong>sível <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar a natureza histórica e cultural<strong>do</strong> conhecimento humano. "Não há um sujeito onisciente que controle o própri<strong>os</strong>aber", pois as características culturais <strong>do</strong> objeto limitam a auto-organização d<strong>os</strong>ujeito, oference<strong>do</strong>-lhe pistas já trilha<strong>da</strong>s pela própria comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Asubjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> é assim re<strong>de</strong>fini<strong>da</strong> como o espaço <strong>do</strong> jogo e <strong>da</strong> curi<strong>os</strong>i<strong>da</strong><strong>de</strong>: "não éo centro <strong>do</strong> conhecimento, mas o seu motor". Apren<strong>de</strong>-se a falar, jogan<strong>do</strong> com aprópria linguagem e p<strong>os</strong>teriormente gramaticalizan<strong>do</strong> <strong>os</strong> recurs<strong>os</strong> já explorad<strong>os</strong>.Ain<strong>da</strong> que não se p<strong>os</strong>sa assimilar o processo <strong>de</strong> alfabetização à aquisição <strong>da</strong>linguagem oral, compreen<strong>de</strong>r melhor o último oferece element<strong>os</strong> paracompreen<strong>de</strong>r melhor o primeiro. As teorias <strong>da</strong> alfabetização também sesustentam nas psicologias cognitivas e nas teorias funcionalistas <strong>da</strong> linguagem.Defen<strong>de</strong>m que para que a criança p<strong>os</strong>sa vir a ser um usuário <strong>da</strong> escrita énecessário colocá-la em situações <strong>de</strong> aprendizagem que lhe permitam construirnão só o sistema notacional, como também <strong>os</strong> us<strong>os</strong> e as formas <strong>da</strong> linguagemassim constituí<strong>da</strong>.Tal processo, porém, não é solitário, já que é p<strong>os</strong>sível reconhecer na escritainicial <strong>da</strong> criança a presença <strong>do</strong> "outro". O processo dialógico, ao mesmo tempoque p<strong>os</strong>sibilita à criança ampliar seus recurs<strong>os</strong>, coloca restrições à suaprodução; é isto que permite à criança organizar as estruturas sintáticas <strong>da</strong>língua escrita e se apropriar <strong>da</strong>s restrições d<strong>os</strong> divers<strong>os</strong> gêner<strong>os</strong>.Observem<strong>os</strong> a carta que Natália (cinco an<strong>os</strong> e meio), moran<strong>do</strong> n<strong>os</strong> Estad<strong>os</strong>Unid<strong>os</strong>, escreve a seus colegas, então inician<strong>do</strong> o pré:78


NATALIAPARA SENHORA UTTA*, TIOS E TIASOI PROFESSORES TUDO BEMAQUI VAI TUDO BEM O TIOGEDEOM* NA MINHA ESCOLA DOSSTATES NA EDUCAÇÃO FÍSICAELA SO TREINA BASQUETEE FUTIBOL AMERICANO A PROFESO-RA PAULA * AQUI O NOME DO MEUPROFESSOR É MR. JIMENEZ MASEU NÃO TENHO MUITA AULA COM79


ELE POR QUE ESTOU TENDO OESL A PROFESSORA MANDELEIBRAÇAS PROS ALUNOSPROFESORA MELITA* AQUIO PROFESOR DE MUSIC E BEMBRAVO CADA VEZ QUE AGENTECHEGA ELE CANTA UMA MUSIQUINHAA GENTEASISTE TANBEM MUITO FILMIHNO E LE TANBEM CANTA UMA MUSIQUI-NHA CADA VEZ QUE AGENTE SAI.BEIJOS E LENBRANÇAS E UMAFELIZ PASCOPARA UTTA*UTTA é o nome <strong>da</strong> escola e <strong>de</strong> sua proprietária; Ge<strong>de</strong>on, o professor <strong>de</strong> Educação Física; Paula,a professora <strong>de</strong> classe; Melitta, a professora <strong>de</strong> Música.Natália não teve uma educação formal a respeito <strong>da</strong> escrita. A pré-escola <strong>da</strong>UTTA trabalha <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com <strong>os</strong> pressup<strong>os</strong>t<strong>os</strong> <strong>da</strong> teoria construtivista,proporcionan<strong>do</strong> gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s para que as crianças<strong>de</strong>scubram o que a escrita representa. Nem tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> colegas <strong>de</strong> Natália, queestavam inician<strong>do</strong> a pré-escola naquele ano, escreviam como ela. O gênerocarta não havia si<strong>do</strong> formalmente objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, mas a professora não perdiaoportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> introduzir as crianças no mun<strong>do</strong> <strong>da</strong> escrita, como, por exemplo,len<strong>do</strong> para elas as próprias circulares que a escola enviava a<strong>os</strong> pais, ou <strong>os</strong>convites para as festas <strong>de</strong> aniversário que circulavam na própria sala.A carta <strong>de</strong> Natália começa pela escrita <strong>do</strong> nome próprio, seguin<strong>do</strong>-se um<strong>de</strong>senho <strong>de</strong> uma figura feminina (ela própria, talvez). Não assina a carta ao final,como as restrições <strong>de</strong> gênero estabelecem; coloca seu nome no início, antes <strong>de</strong>qualquer coisa, como n<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> escolares. Inicia o texto com o vocativoprecedi<strong>do</strong> <strong>da</strong> prep<strong>os</strong>ição para, como n<strong>os</strong> impress<strong>os</strong> <strong>da</strong>s circulares escolares en<strong>os</strong> convites padronizad<strong>os</strong> para as festas infantis.Mas são <strong>os</strong> interlocutores <strong>de</strong> Natália, <strong>os</strong> antig<strong>os</strong> colegas que não partilham comela as experiências escolares n<strong>os</strong> "States", que farão emergir a exuberantesintaxe que exibe em seu texto.(..) O TIOGEDEOM NA MINHA ESCOLA DOSSTATES NA EDUCAÇÃO FÍSICAELA SO TREINA BASQUETEE FUTIBOL AMERICANO80


Natália estabelece o tópico "O TIO GEDEOM NA MINHA ESCOLA DOSSTATES" - o professor, ou melhor, a professora <strong>de</strong> Educação Física "ELA" eacrescenta a informação nova: "SO TREINA BASQUETE E FUTIBOLAMERICANO". De mo<strong>do</strong> similar, "A PROFESSORA PAULA AQUI" e"PROFESSORA MELITA AQUI".Talvez as novas relações institucionais, que fazem com que Natália apresente <strong>os</strong>eu professor <strong>de</strong> classe como "MR. JIMENEZ", forcem-na a uma substituição <strong>do</strong>tratamento inicial "TIOS E TIAS", que, na rotina <strong>da</strong> antiga sala, era reduzi<strong>do</strong> aPaula, Ge<strong>de</strong>on, Melitta.Observem<strong>os</strong> este outro texto. Trata-se <strong>de</strong> um bilhete que Carolina (cinco an<strong>os</strong> emeio), encanta<strong>da</strong> com o "Coelho <strong>da</strong> Mônica" que ganhou <strong>de</strong> presente após umalonga batalha, <strong>de</strong>ixa para a emprega<strong>da</strong> <strong>da</strong> casa:DIUMA PURFAVORPONHA O QUELHO AZUNAMINHA CAMA COM A CABESANO TRAVICEIRO E COMAS ORELHAS PRA CIMAPURFAVORCOM FAVORDE CAROLINAPARA DIUMA81


Carolina procura gerenciar muito bem seu texto, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a produzir a ação<strong>de</strong>seja<strong>da</strong>: encontrar, sobre a cama, o coelho com as orelhas estica<strong>da</strong>s e com acabeça no travesseiro ("DIUMA PURFAVOR", "PURFAVOR", "COM FAVOR").Outro aspecto interessante a ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> é que Carolina nunca, em suasconversas com a família, se referiu ao "QUELHO AZU" <strong>de</strong>sse mo<strong>do</strong>: era oSansão, o coelho <strong>da</strong> Mônica, que servia para ela distribuir coelha<strong>da</strong>s como faz apersonagem <strong>de</strong> Maurício <strong>de</strong> Sousa. A substituição não me parece gratuita.Coelho azul é uma paráfrase mais eficiente a seus propósit<strong>os</strong>; "Sansão" po<strong>de</strong>não ser um conteú<strong>do</strong> partilha<strong>do</strong> entre ela e Dilma: <strong>de</strong>cidi<strong>da</strong>mente ela queriaencontrar o coelho em cima <strong>da</strong> cama, com a cabeça no travesseiro e com asorelhas estica<strong>da</strong>s.Os <strong>do</strong>is exempl<strong>os</strong> apresentad<strong>os</strong> m<strong>os</strong>tram situações <strong>de</strong> uso <strong>da</strong> escrita nãoescolares,text<strong>os</strong> que foram produzid<strong>os</strong> a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>sej<strong>os</strong> muito clar<strong>os</strong>: o <strong>de</strong>partilhar uma experiência nova e o <strong>de</strong> "fazer fazer". O que acontece com a escritana escola? Como se estabelece ou não a interlocução?Encontrarem<strong>os</strong> pela frente algumas crianças, ou melhor, alguns text<strong>os</strong>produzid<strong>os</strong> por crianças em situação escolar. Tentarem<strong>os</strong> escutá-Ias/l<strong>os</strong>;tentarem<strong>os</strong> apren<strong>de</strong>r/ensinar com elas/eles. Tentarem<strong>os</strong> encontrar caminh<strong>os</strong>para a construção <strong>do</strong> sujeito em língua escrita.TATIANAO texto <strong>de</strong> Tatiana chegou-me às mã<strong>os</strong> quan<strong>do</strong>, convi<strong>da</strong><strong>da</strong> a participar <strong>de</strong> umareunião pe<strong>da</strong>gógica em uma escola <strong>da</strong> Re<strong>de</strong> Municipal <strong>de</strong> São Paulo que viviauma crise interna com a passagem <strong>da</strong>s crianças <strong>do</strong> Ciclo Inicial para a 4a. série,sugeri que me enviassem exempl<strong>os</strong> d<strong>os</strong> "maus text<strong>os</strong>" <strong>de</strong> que se queixavampara que servissem <strong>de</strong> ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> para n<strong>os</strong>sas reflexões. O texto <strong>de</strong>Tatiana era um <strong>de</strong>les.82


nome: TatianaO que espero <strong>da</strong> 4a. sérieEu espero que eu vou muito bem nas materias.E que eu passe <strong>de</strong> ano.E que me conporte muito bem.E que a professora não chame minha atençãoE que eu apren<strong>da</strong> mais coisas novas.Espero que eu não falto muitoEspero que eu fasso muita amiza<strong>de</strong>Eu quero fazer muitas coisasEu quero apren<strong>de</strong>r bastante coisas.Olhe o início <strong>de</strong> suas orações. Quase to<strong>da</strong>s iguais.espero que eu vou - espero irespero que eu não falto - espero não faltarespero que eu faço - espero fazer(Os trech<strong>os</strong> sublinhad<strong>os</strong> e as observações em itálico são <strong>da</strong> professora <strong>de</strong>Tatiana)Estar com o texto <strong>de</strong> Tatiana nas mã<strong>os</strong>, nas condições <strong>de</strong>scritas, já era <strong>os</strong>uficiente para perceber que o tema não era relevante: não estava em jogo sabero que Tatiana esperava <strong>de</strong> seu ano escolar (Ain<strong>da</strong> que suas expectativas f<strong>os</strong>sem83


as melhores: aplicar-se n<strong>os</strong> estud<strong>os</strong>, ter comportamento exemplar, terassidui<strong>da</strong><strong>de</strong>, ser sociável..., tu<strong>do</strong> bem ao g<strong>os</strong>to <strong>do</strong> figurino institucional escolar.).O tema podia ser qualquer um que servisse <strong>de</strong> pretexto para "um diagnóstico":"Como vêm escreven<strong>do</strong> essas crianças?".Não é meu propósito aqui discutir o uso <strong>de</strong> uma avaliação diagnóstica comoinstrumento nortea<strong>do</strong>r <strong>do</strong> planejamento escolar. Entretanto, não é p<strong>os</strong>sível <strong>de</strong>ixar<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar que, se o propósito era avaliarem que medi<strong>da</strong> as criançasproduziam text<strong>os</strong> coerentes e coes<strong>os</strong>, o tema é uma armadilha. "O que espero<strong>de</strong>... qualquer coisa" sugere uma lista "cheia <strong>da</strong>s melhores intenções". Éexatamente o que Tatiana faz: retoman<strong>do</strong> o título <strong>da</strong> prop<strong>os</strong>ta como a uma"pergunta", apresenta a "resp<strong>os</strong>ta completa" - "Eu espero que eu vou..." e segueacrescentan<strong>do</strong> <strong>os</strong> itens <strong>da</strong> lista.O que Tatiana <strong>de</strong>veria ter feito? Ter entendi<strong>do</strong> que a pergunta não era umapergunta; que ninguém estava interessa<strong>do</strong> em suas experiências pessoais, emsuas expectativas; que era para fazer uma re<strong>da</strong>ção como fizeram alguns <strong>de</strong> seuscolegas.Observan<strong>do</strong>-se as passagens assinala<strong>da</strong>s e <strong>os</strong> comentári<strong>os</strong> feit<strong>os</strong> pelaprofessora, verifica-se:a) à esquer<strong>da</strong>, um "C" e uma linha vertical paralela ao texto;b) no próprio texto, marca<strong>da</strong>s com um traço, as formas incorretas no emprego <strong>do</strong>presente <strong>do</strong> subjuntivo;c) após o texto, um comentário recriminan<strong>do</strong> o fato <strong>de</strong> as orações construírem-sepor paralelismo sintático;d) em segui<strong>da</strong>, a transcrição <strong>da</strong>s formas incorretas <strong>do</strong> presente <strong>do</strong> subjuntivo jáassinala<strong>da</strong>s, apenas corrigin<strong>do</strong> a ortografia <strong>de</strong> "fasso"/faço e registran<strong>do</strong> aola<strong>do</strong> a "correção".O que representa o "C"? Certo? Visto? Não é conceito. As escolas municipais emSão Paulo não a<strong>do</strong>tam esse sistema. A linha estaria em relação com o "C" oucom o comentário sobre o início idêntico <strong>da</strong>s orações?O que Tatiana sabe e não sabe sobre as formas <strong>do</strong> presente <strong>do</strong> subjuntivo? Elasabe conjugá-lo: há sete ocorrências no texto <strong>da</strong>s quais quatro ela empregacorretamente (passe, comporte, chame, apren<strong>da</strong>); <strong>da</strong>s três que Tatiana "erra",duas são formas <strong>de</strong> verb<strong>os</strong> irregulares (ir e fazer). Parece-me muito razoável queTatiana <strong>de</strong>sconheça as formas irregulares, já que o esforço <strong>da</strong> criança aoconstruir a gramática <strong>de</strong> sua língua é o <strong>de</strong> buscar suas regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s. É por issoque Tatiana está na escola: "para apren<strong>de</strong>r coisas novas".84


O que precisa <strong>de</strong> uma explicação é por que a professora não oferece um mo<strong>de</strong>lopara o que Tatiana "erra", ou seja, o presente <strong>do</strong> subjuntivo? Por que ela usa oinfinitivo? Algumas hipóteses me ocorrem. Já que havia observa<strong>do</strong> que <strong>os</strong>iníci<strong>os</strong> <strong>da</strong>s orações eram "quase tod<strong>os</strong> iguais", oferece um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> variação -a reduzi<strong>da</strong>. Estrutura, aliás, que parece não apresentar problemas para Tatiana:"quero fazer", "quero apren<strong>de</strong>r". Além <strong>de</strong> continuar, é claro, começan<strong>do</strong> asorações <strong>da</strong> mesma maneira, só que com uma estrutura reduzi<strong>da</strong>. Outra hipóteseé a <strong>de</strong> que a professora consi<strong>de</strong>re o subjuntivo um conteú<strong>do</strong> muito difícil para a4ª série, sen<strong>do</strong> o infinitivo uma forma <strong>de</strong> contornar a situação.Com relação ao comentário sobre <strong>os</strong> iníci<strong>os</strong> <strong>da</strong>s orações serem iguais, a própriaTatiana, com certeza, <strong>de</strong>ve tê-lo observa<strong>do</strong>, mas como produzir frases diferentespara esta prop<strong>os</strong>ta? Se soubesse, teria feito.O que Tatiana po<strong>de</strong> fazer com essas observações? Muito pouco. Enten<strong>de</strong>r arelação que se estabelece entre <strong>os</strong> <strong>do</strong>is text<strong>os</strong> requer um cálculo complica<strong>do</strong>.Ain<strong>da</strong> que consiga realizá-lo, o que a "correção" faz é colocar Tatiana <strong>de</strong> novo nolugar <strong>do</strong> já sabi<strong>do</strong>; ensina-se outra vez o que ela já sabe.Mas será que o texto <strong>de</strong> Tatiana é tão ruim assim, tão cartilhesco? Se oanalisarm<strong>os</strong> com mais cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, verem<strong>os</strong> que a or<strong>de</strong>m não é tão aleatória assim.Além <strong>de</strong> a distribuição a<strong>os</strong> pares d<strong>os</strong> períod<strong>os</strong> que o compõem revelar a gênese<strong>de</strong> uma subordinação, <strong>os</strong> <strong>do</strong>is períod<strong>os</strong> finais funcionam claramente comoconclusão: "muitas coisas" e "bastante coisas" retomam <strong>os</strong> element<strong>os</strong> citad<strong>os</strong>anteriormente.Eu espero que eu vá muito bem nas matérias.E que eu passe <strong>de</strong> ano.E que me comporte muito bem.E que a professora não chame a minha atenção.E que apren<strong>da</strong> mais coisas novas.Espero que eu não falte muito.Espero que eu faça muita amiza<strong>de</strong>.Eu quero fazer muitas coisasEu quero apren<strong>de</strong>r bastante coisas.Reconhecen<strong>do</strong> o movimento <strong>de</strong> Tatiana por trás <strong>do</strong> dito, a prop<strong>os</strong>ta didática ficaclara. É como se Tatiana, através <strong>de</strong> seu texto, dissesse o que precisa apren<strong>de</strong>r:como faço para articular estas prop<strong>os</strong>ições explicitan<strong>do</strong> o nexo entre elas? A85


tarefa para o grupo seria tentar <strong>de</strong>scobrir <strong>de</strong> quantas maneiras ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>ssespares po<strong>de</strong>ria ser reescrito. Seria interessante colocar uma restrição: não po<strong>de</strong>usar o "E"; afinal, o mecanismo <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação já é perfeitamente <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>, é o<strong>da</strong> língua oral. O que Tatiana precisa apren<strong>de</strong>r são <strong>os</strong> mecanism<strong>os</strong> <strong>da</strong>subordinação própri<strong>os</strong> <strong>da</strong> língua escrita:- Eu espero ir muito bem nas matérias para que passe <strong>de</strong> anopara passar <strong>de</strong> ano.- Para que passe <strong>de</strong> ano, (eu) espero ir muito bem nas matérias.- In<strong>do</strong> bem nas matérias, passarei <strong>de</strong> ano.vou passar <strong>de</strong> ano.- Se for muito bem nas matérias, vou passar <strong>de</strong> ano.- Irei tão bem nas matérias que passarei <strong>de</strong> ano.- ...O exercício abriria p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s para gerar um conjunto muito gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>períod<strong>os</strong>, permitin<strong>do</strong> ao grupo refletir sobre o efeito <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> obti<strong>do</strong> com o usod<strong>os</strong> divers<strong>os</strong> articula<strong>do</strong>res e apresentan<strong>do</strong> um vastíssimo material para Tatianareescrever seu texto.Entretanto, a repetição, tão patrulha<strong>da</strong> pela escola, não é um problema na língua.É o recurso por excelência <strong>de</strong> coesão referencial no texto oral e produzinteressantes efeit<strong>os</strong> estilístic<strong>os</strong> no texto escrito. Tatiana precisa saber disso: quea repetição que ela empregou po<strong>de</strong>ria funcionar muito bem em um texto poéticocomo, por exemplo, no poema <strong>de</strong> Sérgio CAPARELLI (Rest<strong>os</strong> <strong>de</strong> Arco-íris, PortoAlegre, L&PM):Às Vezes <strong>de</strong> NoiteÀs vezes, <strong>de</strong> noite,acor<strong>do</strong> com muito me<strong>do</strong><strong>de</strong> alguém roubar <strong>os</strong> meus segred<strong>os</strong>,às vezes, <strong>de</strong> noite.Às vezes, <strong>de</strong> noite,a<strong>do</strong>rmeço e no lume <strong>da</strong> velaestou <strong>de</strong>sperta e mais velhaàs vezes, <strong>de</strong> noite.Às vezes, <strong>de</strong> noite,no meu sonho corre um rioque me faz tremer <strong>de</strong> frio,as vezes, <strong>de</strong> noite.Às vezes, <strong>de</strong> noite,me digo que sou boa, que sou meiga e que soubela.86


E cresci. E estou cega.Às vezes, <strong>de</strong> noite.Vejam<strong>os</strong> como Luís Felipe, uma criança que estava refazen<strong>do</strong> a 2a. série,respon<strong>de</strong> ao <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> elaborar um poema a partir <strong>do</strong> mote "Às vezes à noite":Às vezes à noiteLuís FelipeÀs veseses <strong>de</strong> noitesinto uma lus enc<strong>os</strong>tan<strong>do</strong> en min,que eu tenho que acor<strong>da</strong>r.Para dizer que eu tenho que ficar mais velho.Às vezes à noiteDemora para agente fazeramiza<strong>de</strong> con o dia.E a noite não dá porqueela é quita <strong>de</strong> mais.Às vezes à noiteDa uma sensação que agenteestá flutuan<strong>do</strong>, vuan<strong>do</strong>e agente não sente na<strong>da</strong>.Às vezes à noitesinto que sou umapessoa livre <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>As vezes à noiteTenho pressão que sou um astro naftaO resulta<strong>do</strong>, se <strong>de</strong>ixarm<strong>os</strong> <strong>de</strong> la<strong>do</strong> as questões ortográficas, é muito bom. Opoema trata <strong>da</strong> noite como o espaço <strong>da</strong> evasão e, quanto mais isso se explicitano texto, mais Luís Felipe se afasta <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo e aban<strong>do</strong>na a estratégia <strong>de</strong>preenchimento <strong>da</strong>s linhas que a professora havia <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>. As estrofes vãofican<strong>do</strong> mais leves e parecem querer voar com o "astronalta".Normalmente as crianças elaboram bons text<strong>os</strong> quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>safia<strong>da</strong>s a produzirpoemas <strong>de</strong>sse tipo: o mote assegura a coerência interna d<strong>os</strong> element<strong>os</strong>justap<strong>os</strong>t<strong>os</strong>, mesmo para aquelas que não conseguem alinhavar umaprogressão temática tão sensível quanto a <strong>de</strong> Luís Felipe. Experiências <strong>de</strong>sucesso são fun<strong>da</strong>mentais para apren<strong>de</strong>r. Faz to<strong>da</strong> a diferença saber que aquiloque se produziu po<strong>de</strong> ser muito bom para um outro tipo <strong>de</strong> texto. Substituir apalavra "erro" por "a<strong>de</strong>quação" não é expediente <strong>de</strong> temp<strong>os</strong> "politicamentecorret<strong>os</strong>"; correspon<strong>de</strong> a um <strong>de</strong>slocamento profun<strong>do</strong> na maneira como asquestões <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong> língua materna <strong>de</strong>vem ser trata<strong>da</strong>s na escola.87


Jacqueline AUTHIER, em sua teoria sobre a heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> constitutiva d<strong>os</strong>ujeito apoian<strong>do</strong>-se no dialogismo backtiniano 3 e na psicanálise <strong>de</strong> FREUD emsua releitura por LACAN 4 propõe a<strong>os</strong> que trabalham com o texto escrito infantilum gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio. Ao enumerar as formas <strong>da</strong> heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> m<strong>os</strong>tra<strong>da</strong> -discurso direto, aspas, formas <strong>de</strong> retoque, discurso indireto livre, ironia -,AUTHIER apresenta-n<strong>os</strong> um sujeito competente no uso que faz <strong>do</strong> sistemalingüístico. Não é esse emprego ajusta<strong>do</strong> às regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>do</strong> código lingüísticoque vem<strong>os</strong> no texto que a criança produz.Uma primeira direção, que me parece equivoca<strong>da</strong>, seria consi<strong>de</strong>rar taisviolações como equívoc<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> <strong>do</strong> aprendiz e, assim sen<strong>do</strong>, nãointeressan<strong>do</strong> à análise <strong>do</strong> discurso. Entretanto, as contribuições <strong>da</strong> Psicologia <strong>do</strong>Desenvolvimento acerca <strong>do</strong> processo <strong>da</strong> construção <strong>da</strong> escrita pós-Piagetobrigam-n<strong>os</strong> a examiná-l<strong>os</strong> <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> men<strong>os</strong> leviano.A regulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sses "err<strong>os</strong>" permite que se veja através <strong>de</strong>les com queconcepções a respeito <strong>da</strong> escrita a criança opera: permite, também, que seenxergue um pouco o próprio processo <strong>de</strong> elaboração <strong>do</strong> escrito que, em geral,não está disponível ao leitor. A escrita, enquanto objeto, separa o texto <strong>de</strong> seuenuncia<strong>do</strong>r, conferin<strong>do</strong> certa autonomia ao escrito. M<strong>os</strong>tran<strong>do</strong> o seu processo erevelan<strong>do</strong> as convicções <strong>de</strong> seu produtor, o texto infantil abre espaço para que oalocutário, reconhecen<strong>do</strong> tais <strong>de</strong>svi<strong>os</strong>, assuma com mais freqüência papéisnormativ<strong>os</strong>: "Não é assim que se escreve tal palavra"; ou ria <strong>de</strong> efeit<strong>os</strong> <strong>de</strong> senti<strong>do</strong><strong>de</strong>rivad<strong>os</strong> <strong>de</strong> construções <strong>de</strong>sviantes.Minha intenção é consi<strong>de</strong>rar as p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s didáticas que a "escuta" <strong>de</strong> taismarcas po<strong>de</strong> introduzir na relação entre a criança, seu texto, as p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<strong>da</strong> linguagem escrita e o professor. Penso que o professor enquanto alocutáriopo<strong>de</strong> assumir papéis que vão além <strong>da</strong> imp<strong>os</strong>ição <strong>da</strong>s coerções normativas.Analisan<strong>do</strong> as marcas <strong>do</strong> discurso, po<strong>de</strong> criar condições que permitam à criançaajustar o seu dizer ao dito. O produto é, portanto, <strong>de</strong> co-autoria: um escritor maisexperiente aju<strong>da</strong> a um men<strong>os</strong> experiente a <strong>do</strong>minar a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> escrita <strong>da</strong>linguagem.3 A obra <strong>de</strong> BAKHTIN começou a ser divulga<strong>da</strong> na Europa a partir <strong>de</strong> 1963 com a publicação <strong>de</strong> A Poética <strong>de</strong>D<strong>os</strong>toiévski. São <strong>de</strong> BAKHTIN expressões como "dialogismo" e "polifonia". Para o autor, "a experiência discursivaindividual <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> pessoa se forma e se <strong>de</strong>senvolve em uma constante interação com <strong>os</strong> enunciad<strong>os</strong> individuaisalhei<strong>os</strong>". O "outro" é constitutivo <strong>do</strong> sujeito; o sujeito se constitui sujeito a partir <strong>da</strong>s trocas que estabelece com <strong>os</strong>outr<strong>os</strong>.4 LACAN nasceu em 1901 e morreu em 1980. Estu<strong>do</strong>u Medicina e <strong>de</strong>pois Psiquiatria. Seu pensamento tem importâncianão apenas para a Psicanálise, mas também para outras áreas <strong>do</strong> conhecimento. Para LACAN, o inconsciente éconstituí<strong>do</strong> <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> significantes, tem uma estrutura <strong>de</strong> linguagem. Para ele, na Psicanálise, as coisas sepassam em função <strong>da</strong> fala: o psicanalista busca a fala para encontrar o que não é dito. Portanto, a linguagem <strong>de</strong>fine o<strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> Psicanálise.88


O PATINHO FEIO DA MÃENASEUELIRZOVEUIRIBORAFOIPRAFORESTAOLIATORAPEHAELEOPAROFOFIRASISNEIELEIFICOFELISPARASPREI- O patinho feio <strong>da</strong> mãe nasceu- Ele resolveu ir embora- Foi para a floresta- O lenha<strong>do</strong>r pega ele- O pato foi virar cisne- E ele ficou feliz para sempreGeral<strong>do</strong> (Ciclo Básico Inicial - correspon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> à 1a. série <strong>do</strong> 1 °- Grau) produzuma reescrita <strong>de</strong> O Patinho Feio basicamente alfabética, isto é, estabelecen<strong>do</strong>as relações entre as letras e <strong>os</strong> segment<strong>os</strong> sonor<strong>os</strong>. Entretanto, ain<strong>da</strong> não<strong>do</strong>mina as convenções ortográficas: não segmenta o texto em palavras, nãoemprega sinais <strong>de</strong> pontuação etc.Mas, ain<strong>da</strong> que atravessa<strong>do</strong> pela orali<strong>da</strong><strong>de</strong>, não opera apenas com a hipótese<strong>de</strong> que a escrita seja mera transcrição <strong>da</strong> fala:1. Escreve com "O" a vogal reduzi<strong>da</strong> que em sua mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> fala é produzi<strong>da</strong>com /u/. Ex.: "patinho", "feio", "pato".89


2. Usa o princípio acrofônico para resolver localmente alguns problemascolocad<strong>os</strong> pela escrita. Ex.: "rzoveu" (R - erre), "peha" (H - aga). "sprei" (S -esse).O texto produzi<strong>do</strong> atém-se ao gênero, mantém coerência interna, organiza-se emtorno <strong>de</strong> três partes: introdução, <strong>de</strong>senvolvimento e conclusão. Os fat<strong>os</strong> foramenunciad<strong>os</strong> <strong>de</strong> maneira cronológica, chaman<strong>do</strong> a atenção o uso <strong>de</strong> um verbomental em "resolveu ir embora" que antecipa a ação subseqüente "Foi para afloresta". Embora não segmente o texto em palavras, Geral<strong>do</strong> parece usar asegmentação como critério para organizar as partes <strong>da</strong> história - asprop<strong>os</strong>ições com as quais constrói seu texto.Um aspecto que aponta mais claramente as marcas <strong>do</strong> pensamento éencontra<strong>do</strong> no uso que Geral<strong>do</strong> faz <strong>da</strong> regra ortográfica que <strong>de</strong>termina que seescreva com "e" o /i/ que ocorre em sílaba pré-tônica e pós-tônica.Em "eli", "ibora", "liator", usa a letra "i" transcreven<strong>do</strong> a fala. Mas em "ele" (quartalinha) e em "sisne", Geral<strong>do</strong> já opera com as convenções ortográficas. O maisinteressante ocorre na escrita <strong>da</strong> co<strong>da</strong> "E ele ficou feliz para sempre". Geral<strong>do</strong>,que omitiu tantas letras em algumas p<strong>os</strong>ições, escreve "elei" e "sprei" fazen<strong>do</strong>conviver na mesma palavra o "e" <strong>da</strong> convenção ortográfica e o "i" que se ajustamais à fala <strong>de</strong> sua comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> lingüística.90


O casamento <strong>da</strong> Rap<strong>os</strong>aum belo dia Rap<strong>os</strong>a si casou com loboquan<strong>do</strong> Rap<strong>os</strong>a foi si casa quau foi o presente mais maorfoi Rei leão disi sou o xuva ela ficou queta pensanopensaono pensano e dise quero xuva e sou no mesmo diaPatrícia e Juliana (Ciclo Básico Inicial) reescrevem a fábula O Casamento <strong>da</strong>Rap<strong>os</strong>a, que argumenta em direção à moral "Sol e chuva, casamento <strong>de</strong> rap<strong>os</strong>a",uma variação <strong>de</strong> "Sol e chuva, casamento <strong>de</strong> viúva".Ambas já avançaram bastante em relação à escrita <strong>de</strong> Geral<strong>do</strong>. Segmentar aescrita em palavras sem dúvi<strong>da</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong> a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> analisar o que se diz:segmentar as uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> fala. É muito difícil para as crianças aceitarem comopalavras <strong>os</strong> itens <strong>da</strong> língua que não sejam lexicais. Isto traz, sem dúvi<strong>da</strong>,implicações para a escrita. Vejam<strong>os</strong> um exemplo <strong>de</strong> como isto se reflete nasegmentação que Carl<strong>os</strong> Eduar<strong>do</strong> e Danilo (Ciclo Básico Inicial) dão às palavrasque compõem a propagan<strong>da</strong> que fizeram <strong>da</strong> Coca-Cola:ACOCA-COLA ÉGOSTOSA DETOMAREUAMO EUAMO COCA-COLABEMGELADADe maneira geral, ao reescreverem text<strong>os</strong>, as crianças preferem organizar <strong>os</strong>aconteciment<strong>os</strong> manten<strong>do</strong> a lineari<strong>da</strong><strong>de</strong> cronológica. Em relação à fábula emquestão, a or<strong>de</strong>m seria:1 - casamento2 - presentes3 - o presente <strong>do</strong> leão: sol ou chuva (ou / exclusivo)4 - escolha: sol e chuva (e / valor inclusivo)5 - <strong>do</strong>ação <strong>do</strong> presenteO que Patrícia e Juliana fazem é um novo rearranjo que estabelece umaimportante separação entre o universo d<strong>os</strong> aconteciment<strong>os</strong> e o universo <strong>da</strong>enunciação: hierarquizam a informação:1, 2, 5, 3, 4. Sabem<strong>os</strong> que o casamento aconteceu ("Rap<strong>os</strong>a si casou com lobo").A pergunta retórica "quau foi o presente mais maor" instaura algunspressup<strong>os</strong>t<strong>os</strong>: a) divers<strong>os</strong> presentes foram <strong>da</strong>d<strong>os</strong> à rap<strong>os</strong>a, como acontece emcasament<strong>os</strong> em n<strong>os</strong>sa cultura; b) um <strong>de</strong>les foi o maior. Em segui<strong>da</strong> sabem<strong>os</strong>quem <strong>de</strong>u o presente "mais maor", mas ain<strong>da</strong> continuam<strong>os</strong> sem saber qual foi opresente. É o pequeno diálogo que vai explicitá-lo.91


Apren<strong>de</strong>r a escrever através <strong>de</strong> process<strong>os</strong> <strong>de</strong> reescrita pressupõe apropriar-se<strong>da</strong>s características <strong>do</strong> gênero, assimilan<strong>do</strong> também <strong>os</strong> us<strong>os</strong> <strong>da</strong> linguagem quelhe são típic<strong>os</strong>. Mas essa apropriação não é uma cópia. Para produzir o texto queproduziram as meninas tiveram que <strong>de</strong>smontar a narrativa, perceber a relaçãofuncional entre <strong>os</strong> divers<strong>os</strong> element<strong>os</strong>, para então reorganizá-l<strong>os</strong> <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>.Entretanto, o que parece preocupar a escola neste momento é o número <strong>de</strong> err<strong>os</strong>ortográfic<strong>os</strong> que as duas cometem:um belo dia Rap<strong>os</strong>a si casou com loboquan<strong>do</strong> Rap<strong>os</strong>a foi si casa quau foi o presente mais maorfoi Rei leão disi sou ou xuva éla ficou queta pensanopensaono pensano e dise quero xuva e sou no mesmo diaO pressup<strong>os</strong>to é o <strong>de</strong> que primeiro <strong>de</strong>vam ser trata<strong>da</strong>s as questões relativas aocódigo. O que acaba prevalecen<strong>do</strong> é que num texto <strong>de</strong> 41 palavras, houve 17err<strong>os</strong>. Sírio POSSENTI, em Porque (Não) Ensinar Gramática na Escola, nocapítulo "Falam<strong>os</strong> mais corretamente <strong>do</strong> que pensam<strong>os</strong>", afirma que "Há duasmaneiras <strong>de</strong> contar err<strong>os</strong>: uma é contar <strong>os</strong> err<strong>os</strong> individualmente, sem classificál<strong>os</strong>;a outra é contar tip<strong>os</strong> <strong>de</strong> erro, isto é, contar err<strong>os</strong> classifican<strong>do</strong>-<strong>os</strong>".Contem<strong>os</strong> <strong>os</strong> err<strong>os</strong> outra vez:1. Tatiana e Patrícia transcrevem a fala; não <strong>de</strong>scobriram ain<strong>da</strong> que o portuguêsé um sistema não apenas alfabético, mas também ortográfico: "si", "casa","disi", "queta", "maor", "pensano".2. Desconhecem as regras contextuais: "dise" (a letra "S", em p<strong>os</strong>içãointervocálica, nunca representa o fonema /S/), "éla".3. Desconhecem as restrições <strong>de</strong> natureza etimológica: "quau", "sou", "xuva".São 3 e não 17. I<strong>de</strong>ntificar quais tip<strong>os</strong> <strong>de</strong> err<strong>os</strong> as crianças cometem é essencialao trabalho pe<strong>da</strong>gógico. Não apren<strong>de</strong>m<strong>os</strong> a escrever uma a uma as palavras <strong>da</strong>língua: apren<strong>de</strong>m<strong>os</strong> através <strong>de</strong> regras, que não precisam ser, necessariamente,explicita<strong>da</strong>s. "Tocam<strong>os</strong> a língua <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>" como diz ALBANO.Escutar o que o texto diz começa por enten<strong>de</strong>r que <strong>os</strong> err<strong>os</strong> não sãoidi<strong>os</strong>sincrátic<strong>os</strong>; <strong>os</strong> err<strong>os</strong> revelam hipóteses acerca <strong>do</strong> funcionamento <strong>da</strong> língua.Reconhecer tais hipóteses é fun<strong>da</strong>mental para que o professor p<strong>os</strong>sa eleger umconjunto <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s com a linguagem que permita efetivamente ensinar aquiloque as crianças ain<strong>da</strong> não sabem. Neste senti<strong>do</strong>, a ortografia po<strong>de</strong> ser bem mais<strong>do</strong> que simplesmente escrever três vezes uma palavra que se errou, ou passar alimpo o que se escreveu corrigin<strong>do</strong> o que se errou: ortografia po<strong>de</strong> ser a porta <strong>de</strong>92


entra<strong>da</strong> para estu<strong>da</strong>r interessantes questões <strong>de</strong> linguagem, como, por exemplo,as relações entre o oral e o escrito.Elegerem<strong>os</strong>, a título <strong>de</strong> exemplo, "casa" (casar). M<strong>os</strong>tran<strong>do</strong> que o -R (<strong>de</strong>sinência<strong>do</strong> infinitivo) não é mais fala<strong>do</strong>, mas precisa ser escrito. Embora isto p<strong>os</strong>saparecer pouco ante a obsessão exaustiva <strong>da</strong> escola tradicional, estam<strong>os</strong>discutin<strong>do</strong> um fenômeno geral - a escrita representa a fala, não a transcreve;estam<strong>os</strong> tratan<strong>do</strong> também <strong>de</strong> uma situação particular, mas que apresentaum alto po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> generalização: não estam<strong>os</strong> apren<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a escrever apenas"casar", mas tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> infinitiv<strong>os</strong> <strong>do</strong> português.Como fazer? Explicitan<strong>do</strong>, inicialmente, o que estam<strong>os</strong> tratan<strong>do</strong>: há muitas letrasque não correspon<strong>de</strong>m a segment<strong>os</strong> <strong>da</strong> fala em n<strong>os</strong>sa variante lingüística, como o-r em casar. Mas ain<strong>da</strong> assim é necessário escrever. P<strong>os</strong>teriormente vam<strong>os</strong>fixar isto através <strong>da</strong> estrutura Verbo auxiliar + infinitivo (presente no própriotexto ou não), provocan<strong>do</strong> trocas paradigmáticas:A rap<strong>os</strong>a foi se casar.Antes <strong>do</strong> casamento ela foi se lavarse pentearse vestirse preparar...Mas isto não é o suficiente. Sabem<strong>os</strong> que discutir questões <strong>de</strong> ortografia fora <strong>do</strong>texto po<strong>de</strong> permitir a <strong>de</strong>scoberta <strong>da</strong>s regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>do</strong> sistema e a explicitação<strong>da</strong>s regras, mas não garante que as crianças escrevam corretamente no texto.Assim, o <strong>de</strong>safio é <strong>de</strong>scobrir alternativas <strong>de</strong> retornar ao texto para fixar as<strong>de</strong>scobertas realiza<strong>da</strong>s.Uma estratégia que tem<strong>os</strong> encontra<strong>do</strong> é escolher alguns text<strong>os</strong> que não setraduzem em primor<strong>os</strong><strong>os</strong> mo<strong>de</strong>l<strong>os</strong> <strong>de</strong> língua escrita, mas que permitem que ascrianças ganhem fluência no uso <strong>do</strong> código e p<strong>os</strong>sam ocupar sua atenção,p<strong>os</strong>teriormente, com questões mais relevantes. Veja-se o texto seguinte, <strong>de</strong> Marye Eliar<strong>do</strong> França (São Paulo, Ática):Dia e NoiteNão sei se g<strong>os</strong>to mais <strong>do</strong> dia.Não sei se g<strong>os</strong>to mais <strong>da</strong> noite.93


De dia, eu p<strong>os</strong>so brincar.Mas, <strong>de</strong> noite, eu p<strong>os</strong>so sonhar.De dia, eu p<strong>os</strong>so balançar.Vou alto, bem alto, no meu balanço.Mas, <strong>de</strong> noite, eu p<strong>os</strong>so sonhar.De dia, eu p<strong>os</strong>so ler.Mas, <strong>de</strong> noite, ah!... <strong>de</strong> noite, eu p<strong>os</strong>so sonhar.Não sei se g<strong>os</strong>to mais <strong>do</strong> dia.Não sei se g<strong>os</strong>to mais <strong>da</strong> noite.O texto tem uma estrutura muito simples. O personagem-narra<strong>do</strong>r hesita em suapreferência pelo dia ou pela noite. Segue enumeran<strong>do</strong> argument<strong>os</strong> quefavorecem o dia: po<strong>de</strong>r brincar, balançar, ler. A ca<strong>da</strong> argumento a favor <strong>do</strong> dia,apresenta sempre o mesmo a favor <strong>da</strong> noite: po<strong>de</strong>r sonhar. Entretanto, "po<strong>de</strong>rsonhar" apresenta-se a ca<strong>da</strong> vez com sentid<strong>os</strong> diferentes. A ilustração, a ca<strong>da</strong>uma <strong>da</strong>s ocorrências, potencializa um aspecto <strong>do</strong> próprio dia. Assim, se ailustração para brincar é um cavalinho <strong>de</strong> pau, à noite o sonho é com um cavaloala<strong>do</strong>; se <strong>de</strong> dia a menina vai alto em seu balanço, à noite é ela própria quemvoa... O opera<strong>do</strong>r argumentativo "mas", que introduz o argumento em favor <strong>da</strong>noite, confere uma pista a mais na construção <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>. Ain<strong>da</strong> que o <strong>de</strong>sfechoretome as mesmas frases <strong>do</strong> início, elas não traduzem hesitação: o aspectoidílico <strong>da</strong> noite acaba prevalecen<strong>do</strong>. Mesmo que a personagem não "saiba" seprefere o dia ou a noite, o leitor sabe.Escolhem<strong>os</strong> o texto também porque a estrutura p<strong>os</strong>so + infinitivo é bastanteprodutiva (seis ocorrências).Após term<strong>os</strong> conversa<strong>do</strong> sobre <strong>os</strong> sentid<strong>os</strong> <strong>do</strong> texto, propusem<strong>os</strong> às criançasque imitassem <strong>os</strong> autores, escreven<strong>do</strong> também um livro Dia e Noite, só queagora expressan<strong>do</strong> as preferências <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> uma.Vejam<strong>os</strong> o texto <strong>de</strong> Patrícia, uma <strong>da</strong>s meninas que compunham a dupla <strong>do</strong>trabalho anterior e, em segui<strong>da</strong>, o <strong>de</strong> Gilberto, outro aluno <strong>da</strong> classe:DIA E NOITEDe dia eu p<strong>os</strong>so brinca <strong>de</strong> bicicletaDe noite eu p<strong>os</strong>so sonharDe dia eu p<strong>os</strong>so brincar <strong>de</strong> bonecaDe noite eu p<strong>os</strong>so sonhar que sou uma fa<strong>da</strong>94


DIA E NOITEDe dia eu p<strong>os</strong>so brincarDe noite eu p<strong>os</strong>so <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> sonharDe dia eu p<strong>os</strong>so empinar pipaDe noite eu p<strong>os</strong>so sonharSurpreen<strong>de</strong>u-n<strong>os</strong> o sucesso <strong>da</strong> ação, traduzi<strong>da</strong> na apropriação <strong>da</strong> convençãoortográfica na produção escrita. É importante frisar que a prop<strong>os</strong>ta <strong>de</strong> maneiraalguma alertava as crianças para que "prestassem atenção no uso <strong>do</strong> R" ouqualquer coisa <strong>do</strong> gênero. A primeira ocorrência "brinca" <strong>do</strong> texto <strong>de</strong> Patríciaain<strong>da</strong> mantém a forma <strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong>; as outras não mais. Sabem<strong>os</strong> que é assimque a aprendizagem se dá: há moment<strong>os</strong> em que convivem no texto as formas<strong>do</strong> velho e <strong>do</strong> novo.95


O ROXINOL DO INPERADORFelipeEm um palácio <strong>da</strong> China havia uma inpera<strong>do</strong>r e oinpera<strong>do</strong>r tinha um enorme jardim, e nesse jardim haviaum Roxinol que o canto <strong>de</strong>le era maravilh<strong>os</strong>o.Certa vez o inpera<strong>do</strong>r queria o Roxinol e falou:- Mor<strong>do</strong>mo, traga este Roxinol e não volte sem ele.E o mor<strong>do</strong>mo foi em busca <strong>do</strong> Roxinol.Percorreu o jardim enteiro até que encontrouuma senhora que lhe perguntou:- O que você está procuran<strong>do</strong>?O mor<strong>do</strong>mo lhe respon<strong>de</strong>u:- Eu estou procuran<strong>do</strong> o Roxinol, você sabe on<strong>de</strong>ele está?A mulher lhe respon<strong>de</strong>u:- Sei sim, ele está lá nas pedras.O mor<strong>do</strong>mo foi corren<strong>do</strong> até as pedras eencontrou o Roxinol.O mor<strong>do</strong>mo se aproximou e agarrou o Roxinollevan<strong>do</strong>-o para o palácio.96


O inpera<strong>do</strong>r peguou o Roxinol e or<strong>de</strong>nou quecantasse.Depois <strong>de</strong> muito tempo o inpera<strong>do</strong>r ganhouum Roxinol mecânico que cantava igual ao Roxinolanimal.Certo dia o Roxinol mecânico quebrou e oRoxìnol animal fugiu.O inpera<strong>do</strong>r ficou <strong>do</strong>ente até que or<strong>de</strong>nou seumor<strong>do</strong>mo à procura <strong>do</strong> Roxinol. O mor<strong>do</strong>moencontrou o Roxinol e levou até o palácio.Chegan<strong>do</strong> a o palácio o Roxinol começou acantar e o inpera<strong>do</strong>r foi cura<strong>do</strong>.CONCLUSÃO: Nunca troque um animal por uma máquina <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que você estejasatisfeito com ele.Assim digita<strong>do</strong>, afasta<strong>do</strong> <strong>da</strong> letra cursiva infantil, o texto po<strong>de</strong> ser atribuí<strong>do</strong> a umaluno <strong>de</strong> qualquer série <strong>do</strong> 1 0 Grau. Felipe está inician<strong>do</strong> a 3 a série, mas po<strong>de</strong> serpareci<strong>do</strong> com este o texto que estará redigin<strong>do</strong> ao terminar a 8 a .De maneira geral, a escola tem poucas coisas a fazer com text<strong>os</strong> <strong>do</strong> tipo queFelipe produz. Eliminan<strong>do</strong>-se alguns <strong>de</strong>slizes ortográfic<strong>os</strong> e algumas repetições,o texto é limpo: marca a mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> parágrafo com o afastamento <strong>da</strong> margem,usa o travessão para caracterizar a troca <strong>de</strong> interlocutor no diálogo.Mas há ain<strong>da</strong> o que trabalhar no texto <strong>de</strong> Felipe? Claro que sim.Em curs<strong>os</strong> <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> professores, quan<strong>do</strong> pergunto que questões <strong>de</strong>linguagem <strong>de</strong>veriam ser prioriza<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> análise <strong>do</strong> texto <strong>de</strong> Felipe,encontro como resp<strong>os</strong>ta ain<strong>da</strong> uma vez a questão ortográfica (o que faria aescola se <strong>os</strong> alun<strong>os</strong> acertassem ortografia?). Insistin<strong>do</strong> um pouco mais, apontama repetição. Perguntan<strong>do</strong> sobre como trabalhariam <strong>os</strong> problemas <strong>de</strong> repetição notexto <strong>de</strong> Felipe, sugerem o emprego <strong>de</strong> pronomes pessoais.Felipe sabe empregar pronomes pessoais, usa com proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> até <strong>os</strong> oblíqu<strong>os</strong>:" - O que você está procuran<strong>do</strong>?O mor<strong>do</strong>mo lhe respon<strong>de</strong>u:- Eu estou procuran<strong>do</strong> o Roxinol,você sabe on<strong>de</strong> ele está?A mulher lhe respon<strong>de</strong>u:- Sei sim, ele está lá nas pedras."97


A insistência no uso <strong>da</strong> pronominalização como expediente para eliminar arepetição po<strong>de</strong> criar problemas maiores para a legibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um texto comoeste em que há tant<strong>os</strong> candi<strong>da</strong>t<strong>os</strong> a "ele": o impera<strong>do</strong>r, o mor<strong>do</strong>mo, o rouxinolmecânico, o rouxinol animal.A ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> reescrita parece restringir-se a<strong>os</strong> conteúd<strong>os</strong> gramaticaisescolarizad<strong>os</strong>, limitan<strong>do</strong>-se a<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> mais periféric<strong>os</strong> <strong>da</strong> escrita. Mas,observan<strong>do</strong> o primeiro parágrafo <strong>do</strong> texto, verem<strong>os</strong> que Felipe está tentan<strong>do</strong>manobrar outr<strong>os</strong> recurs<strong>os</strong> <strong>da</strong> língua para não só assegurar a continui<strong>da</strong><strong>de</strong>referencial, como também articular as idéias:"Em um palácio <strong>da</strong> China havia um impera<strong>do</strong>r e o impera<strong>do</strong>r tinha um enormejardim, e nesse jardim havia um Rouxinol que o canto <strong>de</strong>le era maravilh<strong>os</strong>o."Não é o uso ina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> <strong>do</strong> pronome relativo e o p<strong>os</strong>sível emprego <strong>de</strong> "cujo"que me chama a atenção. É perceber que o "que" eliminaria to<strong>da</strong>s as repetições<strong>do</strong> parágrafo."Em um palácio <strong>da</strong> China havia um impera<strong>do</strong>r que tinha um enorme jardim, emque havia um Rouxinol, o qual** tinha um canto maravilh<strong>os</strong>o."(*) on<strong>de</strong>(**) para não dizer que... esperava o cujoEliminar as repetições com elipses, com pronominalizações é manter Felipe nolugar <strong>do</strong> que já sabe e não <strong>do</strong> que está tentan<strong>do</strong> manejar. Aliás, mais abaixo eledá m<strong>os</strong>tras <strong>de</strong> conseguir fazer bom uso <strong>da</strong>s relativas...: "...até que encontrou umasenhora que lhe perguntou" e em "...o inpera<strong>do</strong>r ganhou um Roxinol mecânicoque cantava igual ao Roxinol animal.".Trabalhar a reescrita é trabalhar estruturas próprias <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> escrita. Se oprofessor não as reconhece no mo<strong>de</strong>lo e se não consegue interpretar <strong>os</strong>esforç<strong>os</strong> <strong>da</strong>s crianças no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> se apropriarem <strong>de</strong>las, então por que pedirque reescrevam?"Mas pronome relativo é conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong> 3 a série?" Se pensarm<strong>os</strong> na maneira comoem geral se tratam <strong>os</strong> conteúd<strong>os</strong> gramaticais na escola: <strong>de</strong>finição, listas..., aresp<strong>os</strong>ta é não. Isso não é conteú<strong>do</strong> para série nenhuma. Achar que saber a listad<strong>os</strong> relativ<strong>os</strong> habilita alguém a empregá-l<strong>os</strong> com proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> é ingenui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>que nem <strong>os</strong> professores <strong>de</strong> Português pa<strong>de</strong>cem mais. Divers<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> sobre arepresentação <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong> gramática atestam que quase nenhum professoracredita na funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> ensino que segue reproduzin<strong>do</strong>.98


Imagino propor ao grupo a tarefa <strong>de</strong> reescrever o parágrafo, eliminan<strong>do</strong> asrepetições com o que. Em segui<strong>da</strong>, é p<strong>os</strong>sível até ampliar o repertório com alista d<strong>os</strong> pronomes relativ<strong>os</strong>. Mas é fun<strong>da</strong>mental voltar ao texto, não só ao <strong>de</strong>Felipe. Seguramente há impera<strong>do</strong>res <strong>de</strong>mais, rouxinóis a<strong>os</strong> band<strong>os</strong>, exércit<strong>os</strong> <strong>de</strong>mor<strong>do</strong>m<strong>os</strong>. A nova tarefa seria assinalar to<strong>da</strong>s as repetições e verificar quais<strong>de</strong>las po<strong>de</strong>riam ser elimina<strong>da</strong>s com o emprego <strong>do</strong> relativo.Se esperam<strong>os</strong> que o aluno use o pronome relativo em seu texto, não é p<strong>os</strong>síveltrabalhar no limite <strong>da</strong> frase. Não basta que Felipe saiba <strong>de</strong>finir pronome relativo,mas que vá refinan<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> vez mais o uso até, mais tar<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>r perceber asimplicações <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> que restritivas e explicativas trazem para aspressup<strong>os</strong>ições no texto.Há ain<strong>da</strong> outras ocorrências que atestam o movimento <strong>de</strong> Felipe em direção aum mo<strong>de</strong>lo mais sofistica<strong>do</strong> <strong>de</strong> linguagem.Em geral, a história <strong>de</strong> Felipe provoca ris<strong>os</strong>, efeito muito diverso <strong>do</strong> original <strong>de</strong>ANDERSEN, muito triste por sinal, como em geral <strong>os</strong> cont<strong>os</strong> <strong>do</strong> autor. Mas porquê? É a conclusão:"Nunca troque um animal por uma máquina <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que você estejasatisfeito com ele."Sou força<strong>da</strong> a argumentar, como POSSENTI, que rim<strong>os</strong> "por causa <strong>de</strong> umapeculiari<strong>da</strong><strong>de</strong> sintático-semântica". O uso <strong>do</strong> opera<strong>do</strong>r "<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que" instala umaambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> no texto: a <strong>de</strong> que a troca está autoriza<strong>da</strong> se por acaso o"consumi<strong>do</strong>r não estiver satisfeito". Ora, esta não é uma conclusão p<strong>os</strong>sível parao original <strong>de</strong> An<strong>de</strong>rsen e nem me parece que Felipe a tenha consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>:dificilmente crianças querem trocar animais <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> por outr<strong>os</strong> <strong>de</strong> brinque<strong>do</strong>;em geral, som<strong>os</strong> nós, adult<strong>os</strong>, que propom<strong>os</strong> trocas <strong>de</strong>sse tipo.Entretanto, precisam<strong>os</strong> admitir que não há na<strong>da</strong> <strong>de</strong> erra<strong>do</strong> com a frase se o efeitopretendi<strong>do</strong> f<strong>os</strong>se provocar humor. A ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> capítulo <strong>de</strong> "Víci<strong>os</strong> <strong>de</strong>Linguagem" aparece como ironia no capítulo sobre "Figuras <strong>de</strong> Linguagem".Insisto ain<strong>da</strong> uma vez: faz muita diferença falar em erro ou a<strong>de</strong>quação. Nessesenti<strong>do</strong>, seria importante ler MILLÔR, L. F. VERÍSSIMO para explorar aimportância <strong>da</strong> ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> na construção <strong>do</strong> humor.É também o uso ina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> <strong>do</strong> conectivo que produz a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> em "Oinpera<strong>do</strong>r ficou <strong>do</strong>ente até que or<strong>de</strong>nou seu mor<strong>do</strong>mo à procura <strong>do</strong>Roxinol". Quan<strong>do</strong> proponho, em curs<strong>os</strong>, que se elimine tal ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, aresp<strong>os</strong>ta é invariavelmente "O impera<strong>do</strong>r ficou <strong>do</strong>ente e or<strong>de</strong>nou que seumor<strong>do</strong>mo f<strong>os</strong>se à procura <strong>do</strong> rouxinol", que seguramente <strong>de</strong>sfaz a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>,99


mas <strong>de</strong>strói o esforço evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Felipe <strong>de</strong> articulá-las através <strong>da</strong> subordinação.Felipe está erran<strong>do</strong> porque está tentan<strong>do</strong> manobrar expedientes maissofisticad<strong>os</strong> <strong>da</strong> escrita. Ain<strong>da</strong> uma vez, intervir <strong>de</strong>sse mo<strong>do</strong> é mandá-lo <strong>de</strong> voltaao lugar <strong>do</strong> que já sabe.Penso que uma ação pe<strong>da</strong>gógica que se proponha a respon<strong>de</strong>r às in<strong>da</strong>gações<strong>de</strong> Felipe precisa necessariamente trabalhar com as relações que <strong>os</strong> conectores"até que" e "<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que" introduzem e com a busca <strong>do</strong> conector a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> paraexpressar claramente o que se quer:- Ficarem<strong>os</strong> em classe até que o sinal toque.O imper<strong>do</strong>r ficou tão <strong>do</strong>ente que or<strong>de</strong>nou seu mor<strong>do</strong>mo à procura <strong>do</strong> rouxinol.- Vocês po<strong>de</strong>rão ir ao passeio <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que tragam a autorização assina<strong>da</strong>.Nunca troque um animal por uma máquina mesmo que você estejainsatisfeito com ele.É importante <strong>de</strong>ixar claro que o trabalho que tentam<strong>os</strong> realizar não po<strong>de</strong> serconfundi<strong>do</strong> com uma "higienização <strong>da</strong> escrita". Tentam<strong>os</strong> apreen<strong>de</strong>r asorientações que a criança tenta conferir à palavra, não para aprisioná-la,submeten<strong>do</strong>-a às imp<strong>os</strong>ições <strong>da</strong> norma, mas para ampliar seu conhecimento arespeito <strong>da</strong>s p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> tais formas no interior <strong>do</strong> sistema lingüístico e <strong>de</strong>seus us<strong>os</strong> no universo discursivo.Daí n<strong>os</strong>sa insistência em retomar sempre outr<strong>os</strong> text<strong>os</strong> para analisar ofuncionamento <strong>da</strong>quilo que momentaneamente se <strong>de</strong>squalifica.BAKHTIN sustenta que, "para <strong>os</strong> membr<strong>os</strong> <strong>de</strong> uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> lingüística <strong>da</strong><strong>da</strong>,o sinal e o reconhecimento estão dialeticamente apagad<strong>os</strong>"; é no processo <strong>de</strong>assimilação <strong>de</strong> uma língua estrangeira que se sente a "sinali<strong>da</strong><strong>de</strong>" e oreconhecimento. Sustentam<strong>os</strong> que, ain<strong>da</strong> que a língua escrita tenha relaçõescom a fala, escrever não é transcrever o fala<strong>do</strong>. Assim sen<strong>do</strong>, a escrita <strong>da</strong> línguamaterna apresenta-se em seu processo <strong>de</strong> aprendizagem como uma línguaestrangeira. Observar uma criança pequena escrever é testemunhar ocomplica<strong>do</strong> processo <strong>de</strong> manufatura <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> palavra. Parodian<strong>do</strong> BAKTHIN, aassimilação i<strong>de</strong>al <strong>da</strong> escrita dá-se "quan<strong>do</strong> o sinal é completamente absorvi<strong>do</strong>pelo signo e o reconhecimento pela compreensão". Permitir a assimilação <strong>da</strong>linguagem escrita é assegurar as vantagens <strong>de</strong> não se ser "estrangeiro" aoescrever.Os process<strong>os</strong> <strong>de</strong> reescrita <strong>do</strong> texto não são, exatamente por isso, process<strong>os</strong> <strong>de</strong>correção, pois estes carregam consigo a "sinali<strong>da</strong><strong>de</strong>". Discutir com as criançasque não se escreve "tô" mas sim "estou", em um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> lugar, é também100


consi<strong>de</strong>rar que há p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, em outr<strong>os</strong>, <strong>de</strong> escrever "tô". Como em umacampanha publicitária <strong>de</strong> uma goma <strong>de</strong> mascar que trazia como slogan: "Açúcar,tô fora".As crianças respon<strong>de</strong>m muito bem a intervenções <strong>de</strong>sse tipo, porquecontemplam a língua como um território interessante a ser observa<strong>do</strong> e sobre oqual têm o que falar. Trabalhan<strong>do</strong> exatamente com a redução <strong>do</strong> ditongo /ow/, aprofessora seleciona a cantiga <strong>de</strong> ro<strong>da</strong> "A canoa virou". A cantiga era bastanteconheci<strong>da</strong> <strong>da</strong>s crianças, pois haviam "brinca<strong>do</strong>" muito com ela quan<strong>do</strong> tentavamse apropriar <strong>da</strong> escrita <strong>do</strong> nome próprio d<strong>os</strong> colegas:"Foi por causa <strong>de</strong>...Que não soube remar"Enquanto a professora transcrevia a cantiga na lousa, as crianças tentavam"adivinhar" o que iriam trabalhar <strong>da</strong>quela vez. Era a forma virô/virou... pensava aprofessora, quan<strong>do</strong> um <strong>de</strong>les grita entusiasma<strong>do</strong>:- Já sei o que a gente vai trabalhá: é o virô... eu sei um monte: "Virô a esquina,virô a mesa, virô jogadô...A professora humil<strong>de</strong>mente recolheu sua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>: a <strong>de</strong> Geral<strong>do</strong> era muito maisinteressante. Além <strong>de</strong> permitir refletir sobre a questão ortográfica, permitia tratar<strong>da</strong> polissemia, <strong>da</strong> ampliação <strong>de</strong> vocabulário... E seguem amb<strong>os</strong>, professora ealuno, dividin<strong>do</strong> a autoria <strong>do</strong> texto didático que constroem.Defen<strong>de</strong>r que se apren<strong>de</strong> a escrever através <strong>de</strong> process<strong>os</strong> <strong>de</strong> reescrita não <strong>de</strong>ve<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> algum ser confundi<strong>do</strong> com assujeitamento, com reprodução. Estam<strong>os</strong><strong>de</strong>stacan<strong>do</strong> o óbvio: to<strong>do</strong> texto é uma reescrita. O "outro" é constitutivo <strong>de</strong> n<strong>os</strong>sapalavra.Se apren<strong>de</strong>m<strong>os</strong> a falar jogan<strong>do</strong> com a linguagem, "tocan<strong>do</strong>-a <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>", pens<strong>os</strong>er p<strong>os</strong>sível apren<strong>de</strong>r a escrever através d<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> text<strong>os</strong>. A intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> éconstitutiva no processo <strong>de</strong> apropriação <strong>da</strong>s características d<strong>os</strong> divers<strong>os</strong>gêner<strong>os</strong>: escrever, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> gênero, é construir variações paraum mesmo tema. A forma conforma as p<strong>os</strong>sibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>do</strong> dizer; mas o dizer nã<strong>os</strong>e submete plenamente. Há vezes em que é preciso forjar novas formas (fórmas/fôrmas).Analisem<strong>os</strong> outra ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> que sem dúvi<strong>da</strong> <strong>de</strong>ixará mais claro o quepreten<strong>de</strong>m<strong>os</strong> dizer. As crianças autoras são <strong>da</strong> Almirante Barr<strong>os</strong>o, uma escola <strong>da</strong>Re<strong>de</strong> Pública Estadual <strong>de</strong> São Paulo, localiza<strong>da</strong> na Saú<strong>de</strong>, Zona Sul. Cursam,atualmente, o CBI (Ciclo Básico Inicial). A maioria não freqüentou uma pré-101


escola, uma ou outra criança passou por EMEI (Escola Municipal <strong>de</strong> EducaçãoInfantil) em uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> caráter mais assistencialista.A ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> que vam<strong>os</strong> analisar foi realiza<strong>da</strong> em ag<strong>os</strong>to/96. O objetivo eradiscutir aspect<strong>os</strong> <strong>da</strong> representação gráfica <strong>da</strong> nasali<strong>da</strong><strong>de</strong> em português. O ponto<strong>de</strong> parti<strong>da</strong>, um poema <strong>de</strong> Cecília MEIRELES:O CHÃO E O PÃOO chão.O grão.O grão no chão.O pão.O pão e a mão.A mão no pão.O pão na mão.O pão no chão?Não.As crianças g<strong>os</strong>tam muito <strong>de</strong> poesia nesta classe. Tal apreciação teve origemnum projeto <strong>de</strong> resgate <strong>de</strong> quadrinhas populares, que mobilizou muito não só <strong>os</strong>alun<strong>os</strong>, mas também as famílias: produziu-se uma antologia reunin<strong>do</strong> mais <strong>de</strong>cem <strong>de</strong>las.Após a leitura e uma conversa a respeito d<strong>os</strong> sentid<strong>os</strong> <strong>do</strong> texto, a professorasugeriu que listassem as palavras em -ão <strong>do</strong> poema e que, em segui<strong>da</strong>,ampliassem a lista com outras palavras termina<strong>da</strong>s assim. Concluí<strong>do</strong> o trabalho,propôs que, em duplas, as crianças construíssem poemas semelhantes ao <strong>de</strong>Cecília, usan<strong>do</strong> algumas <strong>da</strong>s palavras em -ão <strong>da</strong> lista.- É bico! - disseram alguns. E foi mesmo.PRISCILA, CINTIA, ADRIANO, JOAO, DANIELLE, DEBORAH...102


O CÃO E O ANÃO(Priscila e Cíntia)O cãoO anãoO anão é <strong>do</strong>no <strong>do</strong> cãoO cãoO anão e o cãoO cão mor<strong>de</strong>u o anãoO cão e o anãoO anão chutou o cão?Não!103


O CAPITÃO E O GARRAFÃO(Adriano e João Henrique)O capitãoO garrafãoO capitão pegou o garrafãoO capitãoO garrafão e a mãoA mão <strong>do</strong> capitão no garrafãoO garrafão na mãoO capitão secou o garrafão?Não104


O CORAÇÃO E A PAIXÃO(Danielle e Déborah)O coraçãoA paixãoO coração e a paixãoA paixão e o coraçãoO coração é <strong>do</strong>no <strong>da</strong> paixãoA paixão vive no coraçãoA paixão é alegriaAlegria no coração?Sim105


Ain<strong>da</strong> que as crianças tenham acha<strong>do</strong> "bico" e produzi<strong>do</strong> estes poemas commuita rapi<strong>de</strong>z, a tarefa não é tão simples assim. Envolve complexas operações: épreciso analisar a estrutura <strong>do</strong> poema (número <strong>de</strong> estrofes, número <strong>de</strong> vers<strong>os</strong> porestrofe); analisar a organização morf<strong>os</strong>sintática <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> verso; reconhecer aprogressão temática; selecionar palavras <strong>da</strong> lista que permitam construir umtexto coerente...Ao observarm<strong>os</strong> <strong>os</strong> resultad<strong>os</strong>, vem<strong>os</strong> que alguns element<strong>os</strong> são reproduzid<strong>os</strong>com fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> ao mo<strong>de</strong>lo: a organização sintagmática d<strong>os</strong> <strong>do</strong>is primeir<strong>os</strong> vers<strong>os</strong>,a interrogativa <strong>da</strong> última estrofe (as crianças ain<strong>da</strong> não pontuam seus text<strong>os</strong>); oúltimo verso.O que não respeitam? Introduzem verb<strong>os</strong>. Mas ao incluí-l<strong>os</strong> explicitam acompreensão que tiveram <strong>do</strong> poema <strong>de</strong> Cecília. Os text<strong>os</strong> que produzem sãocoerentes e esteticamente interessantes: ao lerem uns para <strong>os</strong> outr<strong>os</strong>, as duplascomemoram, saltan<strong>do</strong> e baten<strong>do</strong> as mã<strong>os</strong> espalma<strong>da</strong>s. Os colegas aplau<strong>de</strong>m ecomentam:- Ah... o Capitão não ficou bêba<strong>do</strong>?Danielle e Déborah trocaram risinh<strong>os</strong> cúmplices durante to<strong>da</strong> a produção <strong>de</strong>texto: queriam um final feliz - um sim no lugar <strong>do</strong> não. Às vezes é precisotransgredir <strong>os</strong> mo<strong>de</strong>l<strong>os</strong> para <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>do</strong> dizer.BibliografiaABAURRE, M. B. M. Os estud<strong>os</strong> lingüístic<strong>os</strong> e a aquisição <strong>da</strong> escrita. In: 11ENCONTRO NACIONAL SOBRE AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM. Anais...Porto Alegre: PUCRS, 1991.ALBANO, E. C. Da fala à linguagem tocan<strong>do</strong> <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong>. São Paulo: MartinsFontes, 1990.AITHIER-REVUS, J. Hétérogénéité montrée et hétérogénéité constitutive:élements pour une approche <strong>de</strong> I'autre <strong>da</strong>ns le discours. DRLAV-Revue <strong>de</strong>Linguistique, n. 26, 1982.ALVARENGA, D. et al. Da forma sonora <strong>da</strong> fala à forma gráfica <strong>da</strong> escrita: umaanálise lingüística <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> alfabetização. Ca<strong>de</strong>rn<strong>os</strong> <strong>de</strong> Estud<strong>os</strong>Lingüistic<strong>os</strong>, Campinas, Unicamp, n.16, 1989.106


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