11.07.2015 Views

O caso Mussalém. Fonte: Douglas Tavolaro. A casa do delírio ...

O caso Mussalém. Fonte: Douglas Tavolaro. A casa do delírio ...

O caso Mussalém. Fonte: Douglas Tavolaro. A casa do delírio ...

SHOW MORE
SHOW LESS
  • No tags were found...

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

“E agora, deixa-me mostrar, por meio de uma comparação, até que ponto nossa naturezahumana vive banhada em luz ou mergulhada em sobras. Vê! Seres humanos viven<strong>do</strong> em umabrigo subterrâneo, uma caverna, cuja boca se abre para a luz, que a atinge em toda a extensão.Aí sempre viveram, desde crianças, ten<strong>do</strong> as pernas e o pescoço acorrenta<strong>do</strong>s, de mo<strong>do</strong> que nãopodem mover-se e apenas vêem o que está à sua frente, uma vez que as correntes os impedemde virar a cabeça. Acima e por traz deles, um fogo arde a certa distância e, entre o fogo e osprisioneiros, a uma altura mais elevada, passa um caminho. Se olhares bem, verá uma paredebaixa que se ergue ao longo desse caminho, como se fosse um anteparo que os anima<strong>do</strong>res demarionetes usam para esconder-se enquanto exibem os bonecos. [...] Pois esses seres são comonós. Vêem apenas suas próprias sombras, ou as sombras uns <strong>do</strong>s outros, que o fogo projeta naparede que lhes fica à frente.Ao la<strong>do</strong> das anotações, <strong>Mussalém</strong> escreveu: “Sou como a sombra dacaverna de Platão. Eu não sou um monstro”.O professor acorda assusta<strong>do</strong>. Ainda sob o efeito da medicação, estásonolento. Toma 260g de Hal<strong>do</strong>l e 120g de Diazepan, em duas <strong>do</strong>ses diárias.Desperta reclaman<strong>do</strong> <strong>do</strong> calor e pergunta se o almoço já foi servi<strong>do</strong>. Geme de<strong>do</strong>res na perna e <strong>do</strong> gosto amargo da comida, que “tem muita pedra”. Refeiçãobem diferente da que lhe serviam em Campinas nos restaurantes grã-finos,especializa<strong>do</strong>s em pratos árabes. <strong>Mussalém</strong> nutre verdadeira a<strong>do</strong>ração por tabulee quibes, gosto herda<strong>do</strong> <strong>do</strong>s pais libaneses, Moisés e Janete. O <strong>casa</strong>l deixou acapital Beirute e veio para o Brasil na década de 1930 em busca de melhorescondições de vida. Fugiam da guerra civil entre cristãos e muçulmanos, queevoluiu para um confronto aberto devasta<strong>do</strong>r. Peregrinaram por várias regiõesbrasileiras até encontrar, em Macaubal, São Paulo, condições para trabalhar eformar uma família. Começaram na roça, economizaram dinheiro e montaramuma pequena loja de teci<strong>do</strong>s e chapéus. Aos poucos, os filhos foram nascen<strong>do</strong>.Moisés sonhava ver a <strong>casa</strong> cheia. Queria crianças corren<strong>do</strong> de um la<strong>do</strong> para ooutro pelo quintal e pulan<strong>do</strong> em seu colo. Vieram Odete e Alice, as irmãs maisvelhas, mas faltava um homem, a quem o pai passaria o lega<strong>do</strong> da família.<strong>Mussalém</strong> nasceu na madrugada de 16 de março de 1946. A famíliachamou os amigos e festejou a chegada <strong>do</strong> primeiro homem <strong>do</strong> lar. Era ummilagre de Deus. Moisés tornou-se um árabe realiza<strong>do</strong>. Quase um sultão. Nem opatriarca <strong>do</strong> povo de Israel, diante da Terra Prometida, sentira tamanhasatisfação. O nascimento de Vera e o de Ivete, depois, não foram tão bemrecebi<strong>do</strong>s como a chegada <strong>do</strong> menino.<strong>Mussalém</strong> acompanhava o pai no trabalho, nos passeios pelo campo e porqualquer lugar onde fosse. Um <strong>do</strong>s maiores orgulhos de Moisés foi ver o filho, deterno azul apertadinho e gravata-borboleta, dar aulas sobre a Bíblia na escola<strong>do</strong>minical da igreja presbiteriana que a família freqüentava nos <strong>do</strong>mingos à noite.Foi nessa época que o professor descobriu a paixão pela educação e aprendeu osprincípios da fé protestante. Mesmo confina<strong>do</strong> no manicômio, <strong>Mussalém</strong> nãoesquece as lições da a<strong>do</strong>lescência: lê to<strong>do</strong> dia, antes de <strong>do</strong>rmir, um capítulo <strong>do</strong>Antigo Testamento e <strong>do</strong>is <strong>do</strong> Novo Testamento, para completar a leitura <strong>do</strong> livrosagra<strong>do</strong> no prazo exato de um ano.Em mea<strong>do</strong>s de 1967, empolga<strong>do</strong> pelo acelera<strong>do</strong> crescimento urbano deSão Paulo, seu pai achou que poderia construir prédios. Até hoje, vários edifíciosde três andares que aju<strong>do</strong>u a fazer permanecem em pé no bairro de Pinheiros. Jáseu relacionamento com a mãe era menos próximo. Não que a rejeitasse, mas ela2

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!