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O caso Mussalém. Fonte: Douglas Tavolaro. A casa do delírio ...

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O <strong>caso</strong> <strong>Mussalém</strong>.<strong>Fonte</strong>: <strong>Douglas</strong> <strong>Tavolaro</strong>. A <strong>casa</strong> <strong>do</strong> <strong>delírio</strong>. Reportagem no Manicômio Judiciáriode Franco da Rocha. São Paulo: SENAC, 2002, p. 139-155.Logo após o carnaval de 2000, a escola da FUNAP ganhou um colabora<strong>do</strong>rde peso: J. M., o <strong>Mussalém</strong>, professor aposenta<strong>do</strong> de ciência política daUniversidade de Campinas (Unicamp). Isso mesmo: professor de ciência política.Para quem imagina o manicômio como um depósito de loucos, encontrar alguémcom a estrutura intelectual de <strong>Mussalém</strong> pode ser ainda mais chocante <strong>do</strong> quevislumbrar seres maltrapilhos que falam enraiveci<strong>do</strong>s para as paredes ou mordemo próprio corpo. A paranóia é assim: um mal inconti<strong>do</strong> que não escolhe classesocial para atacar.O Professor <strong>Mussalém</strong> chegou a Franco da Rocha no dia 14 de abril de1999, transferi<strong>do</strong> da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, onde viveuquatro anos numa cela isolada, no pavilhão mais seguro da cadeia. Eram 2h datarde quan<strong>do</strong> o camburão da Polícia Militar estacionou no portão <strong>do</strong> hospital.Surgiu, então, lentamente, um senhor alto, forte, de cabelos grisalhos bemapara<strong>do</strong>s, fisionomia inofensiva, roupas claras e um par de sandálias de couro. Osolhos castanho-escuros examinaram o portão principal em to<strong>do</strong> o contorno.Educadamente, cumprimentou com um breve gesto os agentes de segurança e sedespediu. Desde então, passou a viver como um exila<strong>do</strong>. Voltou a estudar e aaprofundar seus conhecimentos por meio de livros que comprava diretamente daseditoras via sedex. Tornou-se um <strong>do</strong>s melhores joga<strong>do</strong>res de xadrez da história<strong>do</strong> hospital.Faltava pouco para o almoço no feria<strong>do</strong> <strong>do</strong> Dia <strong>do</strong> Trabalho, e <strong>Mussalém</strong><strong>do</strong>rmia. O pavilhão 1, ala em que mora com 55 pacientes, estava abafa<strong>do</strong>. Nãohavia na unidade atividades programadas pelo núcleo de recreação. O rádio,instala<strong>do</strong> na improvisada cabeceira – montada sobre duas caixas de madeira,uma em cima da outra -, tocava suavemente As bodas de Fígaro, de Mozart. Asintonia era a de sempre, de 24 horas por dia na Rádio USP FM. Uma pilha deCDs de música erudita servia de apoio para algumas cebolas partidas e umminúsculo pote de mel. A coletânea Bolero de Ravel é o disco preferi<strong>do</strong> <strong>do</strong>professor. Sente-se encanta<strong>do</strong> toda vez que ouve a música. Lembra-seinvariavelmente da primeira vez em que tais acordes circulantes tomaram seuouvi<strong>do</strong>, no encerramento <strong>do</strong> filme Retratos da vida, de Claude Lelouch, e daemoção que sentiu ao contemplar os passos flutuantes <strong>do</strong> bailarino argentinoJorge Donn, na Torre Eiffel, em Paris.Naquele Primeiro de Maio, porém, o sono de <strong>Mussalém</strong> era profun<strong>do</strong>.Mesmo de bermuda e camisa xadrez de viscose, suava um pouco. A roupa estavalimpa. Ele é um <strong>do</strong>s poucos internos que se dão ao luxo de pagar a outrospacientes para lavar suas trouxas sujas. Desembolsa um maço de cigarros a cadaseis ou sete peças limpas. Os óculos, com aros retangulares e contornos<strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s, utiliza<strong>do</strong>s para corrigir os 2.7 de astigmatismo, estavam enrosca<strong>do</strong>sem seus cabelos. Caída em seu ombro esquer<strong>do</strong> estava uma antiga edição daRepública de Platão, em que fizera anotações em quase todas as páginas. Numadessas, com sublinha<strong>do</strong> vermelho, destacou o seguinte trecho:1


“E agora, deixa-me mostrar, por meio de uma comparação, até que ponto nossa naturezahumana vive banhada em luz ou mergulhada em sobras. Vê! Seres humanos viven<strong>do</strong> em umabrigo subterrâneo, uma caverna, cuja boca se abre para a luz, que a atinge em toda a extensão.Aí sempre viveram, desde crianças, ten<strong>do</strong> as pernas e o pescoço acorrenta<strong>do</strong>s, de mo<strong>do</strong> que nãopodem mover-se e apenas vêem o que está à sua frente, uma vez que as correntes os impedemde virar a cabeça. Acima e por traz deles, um fogo arde a certa distância e, entre o fogo e osprisioneiros, a uma altura mais elevada, passa um caminho. Se olhares bem, verá uma paredebaixa que se ergue ao longo desse caminho, como se fosse um anteparo que os anima<strong>do</strong>res demarionetes usam para esconder-se enquanto exibem os bonecos. [...] Pois esses seres são comonós. Vêem apenas suas próprias sombras, ou as sombras uns <strong>do</strong>s outros, que o fogo projeta naparede que lhes fica à frente.Ao la<strong>do</strong> das anotações, <strong>Mussalém</strong> escreveu: “Sou como a sombra dacaverna de Platão. Eu não sou um monstro”.O professor acorda assusta<strong>do</strong>. Ainda sob o efeito da medicação, estásonolento. Toma 260g de Hal<strong>do</strong>l e 120g de Diazepan, em duas <strong>do</strong>ses diárias.Desperta reclaman<strong>do</strong> <strong>do</strong> calor e pergunta se o almoço já foi servi<strong>do</strong>. Geme de<strong>do</strong>res na perna e <strong>do</strong> gosto amargo da comida, que “tem muita pedra”. Refeiçãobem diferente da que lhe serviam em Campinas nos restaurantes grã-finos,especializa<strong>do</strong>s em pratos árabes. <strong>Mussalém</strong> nutre verdadeira a<strong>do</strong>ração por tabulee quibes, gosto herda<strong>do</strong> <strong>do</strong>s pais libaneses, Moisés e Janete. O <strong>casa</strong>l deixou acapital Beirute e veio para o Brasil na década de 1930 em busca de melhorescondições de vida. Fugiam da guerra civil entre cristãos e muçulmanos, queevoluiu para um confronto aberto devasta<strong>do</strong>r. Peregrinaram por várias regiõesbrasileiras até encontrar, em Macaubal, São Paulo, condições para trabalhar eformar uma família. Começaram na roça, economizaram dinheiro e montaramuma pequena loja de teci<strong>do</strong>s e chapéus. Aos poucos, os filhos foram nascen<strong>do</strong>.Moisés sonhava ver a <strong>casa</strong> cheia. Queria crianças corren<strong>do</strong> de um la<strong>do</strong> para ooutro pelo quintal e pulan<strong>do</strong> em seu colo. Vieram Odete e Alice, as irmãs maisvelhas, mas faltava um homem, a quem o pai passaria o lega<strong>do</strong> da família.<strong>Mussalém</strong> nasceu na madrugada de 16 de março de 1946. A famíliachamou os amigos e festejou a chegada <strong>do</strong> primeiro homem <strong>do</strong> lar. Era ummilagre de Deus. Moisés tornou-se um árabe realiza<strong>do</strong>. Quase um sultão. Nem opatriarca <strong>do</strong> povo de Israel, diante da Terra Prometida, sentira tamanhasatisfação. O nascimento de Vera e o de Ivete, depois, não foram tão bemrecebi<strong>do</strong>s como a chegada <strong>do</strong> menino.<strong>Mussalém</strong> acompanhava o pai no trabalho, nos passeios pelo campo e porqualquer lugar onde fosse. Um <strong>do</strong>s maiores orgulhos de Moisés foi ver o filho, deterno azul apertadinho e gravata-borboleta, dar aulas sobre a Bíblia na escola<strong>do</strong>minical da igreja presbiteriana que a família freqüentava nos <strong>do</strong>mingos à noite.Foi nessa época que o professor descobriu a paixão pela educação e aprendeu osprincípios da fé protestante. Mesmo confina<strong>do</strong> no manicômio, <strong>Mussalém</strong> nãoesquece as lições da a<strong>do</strong>lescência: lê to<strong>do</strong> dia, antes de <strong>do</strong>rmir, um capítulo <strong>do</strong>Antigo Testamento e <strong>do</strong>is <strong>do</strong> Novo Testamento, para completar a leitura <strong>do</strong> livrosagra<strong>do</strong> no prazo exato de um ano.Em mea<strong>do</strong>s de 1967, empolga<strong>do</strong> pelo acelera<strong>do</strong> crescimento urbano deSão Paulo, seu pai achou que poderia construir prédios. Até hoje, vários edifíciosde três andares que aju<strong>do</strong>u a fazer permanecem em pé no bairro de Pinheiros. Jáseu relacionamento com a mãe era menos próximo. Não que a rejeitasse, mas ela2


mantinha certo distanciamento <strong>do</strong> filho. Ninguém sabia exatamente por quê.Apesar dessa frieza, a mãe sempre foi seu grande í<strong>do</strong>lo.- Ela representava para mim a personificação da honestidade, da pureza e<strong>do</strong> respeito – lembra <strong>Mussalém</strong>, e avisa ao colega de pavilhão que vai almoçararroz com pão.Senta<strong>do</strong> numa das pontas da cama de ferro e envolto até a cintura numcobertor de listras marrons, ele conta cabisbaixo o fim trágico <strong>do</strong> pai, vítima de umatropelamento mal explica<strong>do</strong> na ro<strong>do</strong>via Fernão Dias. Falsos amigos teimavamem dizer, com maldade, que Moisés era esquizofrênico como <strong>do</strong>is de seus tiosque morreram interna<strong>do</strong>s no Juqueri. “Mas tu<strong>do</strong> não passava de conspiração”,assegura <strong>Mussalém</strong>. Leva como lembrança <strong>do</strong> pai as parábolas contadas paraensinar os segre<strong>do</strong>s da vida – entre elas, a história da ponte que ligava umaestrada sobre um imenso abismo. No caminho, a placa alertava: “A ponte estáquebrada”. Um viajante chegava, lia o aviso e voltava. Outro viajante fazia omesmo. Até que chegou um analfabeto desavisa<strong>do</strong> e despencou montanhaabaixo. A lição valeu.<strong>Mussalém</strong> jamais despencaria. O jovem obstina<strong>do</strong> deixou Macaubal parase tornar um professor universitário brilhante. Completou o colégio em São Paulo,viven<strong>do</strong> na <strong>casa</strong> de um tio, no centro velho da cidade, até entrar para oDepartamento de Ciência Política da Faculdade de Ciências Sociais de Rio Claro,antigo campus da USP. Em 1972, foi seleciona<strong>do</strong> para trabalhar como professorassistente <strong>do</strong> Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Aos 41 anos,o maior sonho estava se concretizan<strong>do</strong>. Seu lazer era passar horas e horas nasbibliotecas de Campinas e, às vezes, viajar quilômetros para vasculhar livrarias ecentros culturais em São Paulo e no io de Janeiro. Ele fala, lê e escreve emfrancês, alemão, inglês e espanhol. Tem 4 mil livros em <strong>casa</strong>, em Campinas. Sãoobras – a maioria importada – sobre psicologia, política, antropologia e sociologia.To<strong>do</strong> o conhecimento acumula<strong>do</strong> devia unicamente ser transmiti<strong>do</strong> a seus alunos.Esse prazer de ensinar ainda hoje o acompanha. Sente-se realiza<strong>do</strong> toda vez queum paciente pede ajuda para escrever carta aos familiares ou pergunta osignifica<strong>do</strong> de expressões que ouve na tevê ou lê nas revistas.<strong>Mussalém</strong> conta que suas maiores referências intelectuais sempreforam ofilósofo francês Jean-Paul Sartre e o pensa<strong>do</strong>r genebrino Jean-JacquesRousseau. Um <strong>do</strong>s trabalhos que mais gostou de fazer foi a análise comparativadas teses de Freud, Lacan e Jung. Por esse trabalho, foi escolhi<strong>do</strong> para traduzir,no fim <strong>do</strong>s anos 1980, o livro A questão <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> na psiquiatria, <strong>do</strong> alemãoVictor Frankl.- Deus se revelou a mim como aos filósofos gregos – afirma <strong>Mussalém</strong>, jásem as pernas enroladas no cobertor.Senta-se na cama incômoda com os pés descalços larga<strong>do</strong>s no chão.Apóia os braços nas pernas, depois de esticar o pescoço para conferir a hora esaber se alguém roubou o mel. Fixa os olhos no raio de luz que bate numa dasjanelas de grades cerradas <strong>do</strong> pavilhão. Um paciente pergunta se quer comprarum pacote de bolachas recheadas e ele diz que não. Um “não” seco, grosseiro,solto no ar. Ameaça dizer algo, mas desiste. O silêncio é enigmático. Estará ten<strong>do</strong>um surto? O que há no infame raio de luz? Sua face permanece erguida e3


estática. De repente, escorrega a mão pela barba malfeita e respira fun<strong>do</strong> antesde dizer:- Eles estão por toda a parte. Se reproduzem como um pungente vírusbiológico e são mortais como um vírus biológico.Começa o <strong>delírio</strong>. <strong>Mussalém</strong> traz à memória a caliginosa conspiração quesepultou seus projetos de vida e o confinou no Manicômio de Franco da Rocha.Nos becos e vielas, nas ruas e praças, na benéfica rotina de trabalho, nosconflitos com a família, nos soturnos sonhos da madrugada. Os conspira<strong>do</strong>resestão por toda a parte, mancomuna<strong>do</strong>s com Deus e o mun<strong>do</strong>. É preciso protegerse.Contra-atacar. Avançar sobre os inimigos antes que a morte chegue, como amaré que tragou o marinheiro Gilliat no romance Os trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> mar, obraprimade Victor Hugo.Impulsiona<strong>do</strong> pelo seu <strong>delírio</strong>, o professor aceitou o convite de seuadvoga<strong>do</strong> para conhecer uma das melhores lojas de armas de Campinas. Naprimeira visita comprou uma pistola Taurus PT-380, uma semi-automática 6,5 mme um revólver calibre 38, além de muita, muita munição. Guarda até hoje a notafiscal e a autorização para o porte de armas em seu apartamento de <strong>do</strong>is quartos,num con<strong>do</strong>mínio da região norte de Campinas. Ele sempre apreciou prédiosespaçosos em bairros arboriza<strong>do</strong>s. Era caseiro, odiava badalações e festasnoturnas. Preferia passar as noites em sua biblioteca particular ou senta<strong>do</strong> navaranda, observan<strong>do</strong> a movimentação da rua.Atento ao vaivém <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> edifício, começou a desconfiar dascontas <strong>do</strong> con<strong>do</strong>mínio. Em outro de seus devaneios, convenceu-se de que osíndico liderava uma máfia audaciosa, responsável pela criação de um caixa <strong>do</strong>iscom parte <strong>do</strong> dinheiro de aluguéis e con<strong>do</strong>mínios. Não tinha como comprovar oesquema. Armou, então, uma armadilha para flagrar um <strong>do</strong>s mentores daquadrilha – o zela<strong>do</strong>r.Numa sexta-feira de frio rigoroso, inventou um vazamento de água nobanheiro de sua <strong>casa</strong> e pediu ajuda ao zela<strong>do</strong>r. Sua idéia era persuadi-lo aentregar o ban<strong>do</strong> e desmascarar to<strong>do</strong>s publicamente. O funcionário demorou asubir e, minutos depois, pelo interfone, prometeu verificar o problema no diaseguinte. Alegava estar substituin<strong>do</strong> o porteiro naquela noite, sem condições deaban<strong>do</strong>nar o posto. <strong>Mussalém</strong> ficou furioso. Desceu as escadas transtorna<strong>do</strong>,carregan<strong>do</strong> nas mãos o martelo usa<strong>do</strong> para provocar o vazamento. Não houvetempo para a reação <strong>do</strong> zela<strong>do</strong>r: <strong>Mussalém</strong> desferiu-lhe marteladas nas costas,mandan<strong>do</strong> o homem para o setor de traumatologia <strong>do</strong> Hospital das Clínicas deCampinas. Foi convoca<strong>do</strong> para depor na Justiça, acusa<strong>do</strong> de agressão, mas oprocesso não resultou em nada. A partir <strong>do</strong> incidente, o professor passou a servisto como uma ameaça iminente no prédio. To<strong>do</strong>s tinham receio de encontrá-losozinho no eleva<strong>do</strong>r ou no estacionamento. As crianças eram orientadas pelasmães para não falar com “aquele senhor esquisito” ou para correr dele ao primeirosinal de agressão.As perseguições criadas por sua mente logo se estenderam para aUnicamp. Seus trabalhos acadêmicos passaram a ser duramente critica<strong>do</strong>s poroutros professores, e suas propostas de reformulação da grade de ensino eramsempre desprezadas. Nas salas e corre<strong>do</strong>res da faculdade, vivia atribula<strong>do</strong> pela4


sensação de o estarem perseguin<strong>do</strong>. Uma sombra escura, malignamente oculta,parecia rondar seus caminhos. Estava convicto: eram os militares.Na época, por volta de 1976, com <strong>do</strong>is anos de mandato <strong>do</strong> generalErnesto Geisel na presidência da República, a supressão <strong>do</strong>s direitosconstitucionais era absoluta. <strong>Mussalém</strong> imaginava que tinha os passos vigia<strong>do</strong>sdia e noite. Sua vida corria perigo. Malditos milicos! Oprimiam a classe intelectualem nome da luta contra o comunismo. O professor não saia de <strong>casa</strong> desarma<strong>do</strong>.Sua rotina mu<strong>do</strong>u. Não ia aos restaurantes árabes com a freqüência de antes, eraras também se tornaram as idas a bibliotecas. Ele conta que começou a receberameaças de morte por telefone e por correspondências anônimas de várias partes<strong>do</strong> país, até mesmo <strong>do</strong> exterior.Guar<strong>do</strong> até hoje uma carta enviada <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s que diz que, se eupisar no hemisfério norte, serei morto – afirma, e recolhe as pernas como quem seabstém de pisar.Parece calmo, mas está convicto. Lembra que seus pensamentos erampermea<strong>do</strong>s por idéias de prisão, tortura, exílio e morte. As lembranças defuzilamento de Carlos Marighella, em São Paulo, causaram-lhe pesadelosassombrosos por várias semanas. Acordava de madrugada assusta<strong>do</strong> com obarulho da porta da cozinha baten<strong>do</strong> no fogão, quan<strong>do</strong> esquecia de trancar ajanela da área de serviço. Levantava-se, sentava-se na cama com os braçosapoia<strong>do</strong>s nas pernas e chorava. Chorava durante horas, às vezes até amanhecer.Suava gela<strong>do</strong>. E voltava a <strong>do</strong>rmir com mais me<strong>do</strong> ainda. A qualquer momento,agentes <strong>do</strong> Destacamento de Operações e Informações e <strong>do</strong> Centro deOperações de Defesa Interna (DOI-Codi) poderiam arrombar a porta e levá-loalgema<strong>do</strong> a uma das salas de tortura. Jurava não contar nada que quizessem.Não sabe bem o que ia esconder, mas seguramente nada falaria.Em junho de 1977, em meio a um longo surto paranóico, convenceu ochefe <strong>do</strong> seu departamento a conceder-lhe bolsa de estu<strong>do</strong>s para defender tesede <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> na Alemanha. Era a oportunidade de escapar <strong>do</strong>s militares.Embarcou para a Universidade Livre de Berlim no mês seguinte, com a malarepleta de livros, receitas de quibe e esfiha – e sem as armas. Estava disposto arecomeçar a vida longe da censura à produção cultural que atingia políticos,artistas, músicos, estudantes e intelectuais.A viagem foi uma pílula de ânimo. Tu<strong>do</strong> caminhava bem – sua tese, Méto<strong>do</strong>e capitalismo em Marx, foi aprovada em Berlim com a segunda maior nota dabanca, e ele estava encanta<strong>do</strong> por uma bela mexicana de cabelos louros curtos,olhos negros e pele rosada, exatamente as características físicas que admiravaem uma mulher. A<strong>do</strong>rava ver a moça mascan<strong>do</strong> chiclete e detinha-se na análiseminuciosa <strong>do</strong>s movimentos de seu maxilar. A musa <strong>do</strong> professor era <strong>casa</strong>da eapaixonada pelo mari<strong>do</strong>, Servan<strong>do</strong> Ortoll, que também estava em Berlim. O <strong>casa</strong>lficou amigo de <strong>Mussalém</strong>. Estudavam juntos e saíam nos finais de semana parabeber cerveja.Os dias de paz <strong>do</strong> professor pareciam chegar ao fim. Voltaram ospesadelos delirantes no silêncio da madrugada, acompanha<strong>do</strong>s da tenebrosasensação de ser persegui<strong>do</strong> e da desconfiança de to<strong>do</strong>s que o rodeavam. Osmilitares, enfim, tinham encontra<strong>do</strong> <strong>Mussalém</strong>. Pior: tu<strong>do</strong> ocorreu no mesmoperío<strong>do</strong> de uma viagem diplomática <strong>do</strong> presidente Geisel à Alemanha. Solda<strong>do</strong>s5


alemães, em cumplicidade com o governo brasileiro, estavam por toda a parte,infiltra<strong>do</strong>s na multidão que transitava, nos carros que trafegavam de formasuspeita, entre os mora<strong>do</strong>res da república estudantil ou entre professores ealunos.- Nada mais astuto que incutir um espião camufla<strong>do</strong> como inofensivocolega de curso – conclui <strong>Mussalém</strong> na sua lógica peculiar. – Ortoll era oconspira<strong>do</strong>r!A mulher estaria caída de amores por <strong>Mussalém</strong>, e o mari<strong>do</strong>, sedento devingança, entregara-o ao governo brasileiro.O início da tarde daquele Primeiro de Maio estava calmo no manicômio. Oprofessor cumprimentou um paciente, numa roda de amigos que enrolava fumopara o cigarro de palha, e novamente mergulhou, convicto, na teoria conspiratóriaaplicada a seus tempos de Berlim.- Durante três ou quatro dias fui persegui<strong>do</strong> por um helicóptero da ForçaAérea Alemã. Naquela semana, fui anestesia<strong>do</strong>, sevicia<strong>do</strong> e estupra<strong>do</strong> porpessoas comandadas por Ortoll. Esse cidadão era homossexual, e sua mulherestava completamente apaixonada por mim.O fato é que <strong>Mussalém</strong> foi obriga<strong>do</strong> a retornar ao Brasil onze meses antesde completar a bolsa de estu<strong>do</strong>s. Motivo: a direção da Universidade de Berlimsolicitou o cancelamento <strong>do</strong> acor<strong>do</strong> para sua estada, alegan<strong>do</strong>, por meio de sedexenvia<strong>do</strong> à Unicamp, que o aluno criava constrangimento no campus.<strong>Mussalém</strong> viajou desola<strong>do</strong> com a notícia e indigna<strong>do</strong> com o poder demanipulação da cúpula das Forças Armadas. De volta à Unicamp, o derradeirochoque: foi impedi<strong>do</strong> de dar aulas e, em 1984, afasta<strong>do</strong> definitivamente da funçãoe obriga<strong>do</strong> a aposentar-se, depois de submeter-se a exame de saúde mental.Diagnóstico: problemas psiquiátricos.- O lau<strong>do</strong> foi forja<strong>do</strong>. Os colegas da universidade não tinham capacidadeintelectual para desenvolver trabalhos como os meus e, por isso, me boicotaram –contesta o professor.Apesar das críticas, <strong>Mussalém</strong> admite um desvio mental. Acredita quea<strong>do</strong>eceu devi<strong>do</strong> à iniciação sexual tardia, ocorrida quan<strong>do</strong> tinha 20 anos, na <strong>casa</strong>de um colega em Rio Claro, durante um porre de conhaque com uma amiga defaculdade. A partir daí, alternou perío<strong>do</strong>s de solidão e de rápida convivência comtrês mulheres sucessivas. Aposenta<strong>do</strong>, dedicou-se intensamente à pesquisacientífica de temas liga<strong>do</strong>s a psiquiatria e filosofia.Voltou para o apartamento onde morava em Campinas, em 1984, ereencontrou uma velha conhecida: a paranóia. Descobriu que a quadrilha <strong>do</strong>zela<strong>do</strong>r continuava atuan<strong>do</strong>. Ao mesmo tempo, buscava compreender como oregime militar colhera tantas informações a seu respeito e como Geisel descobriraque estava na Alemanha. Mais: como os militares sabiam que uma mulher decabelos curtos e louros, olhos negros e pele rosada seria uma boa isca para atraílo?E o detalhe da descomunal atração que exercia o movimento <strong>do</strong> maxilarfeminino reproduzi<strong>do</strong> pela musa mexicana? Isso só podia ser coisa de genteíntima, e as suspeitas caíram sobre a mãe, <strong>do</strong>na de <strong>casa</strong> Janete, e a irmã, asecretária executiva Alice, que ele visitava esporadicamente.- Foram elas! Me entregaram para o DOI-Codi.6


Demorou nove anos para reagir à mirabolante trama criada em seuuniverso de <strong>delírio</strong>s e alucinações incontroláveis. Na manhã de 6 de julho de1993, um <strong>do</strong>mingo, visitou a irmã Odete, 51 anos, os últimos vinte vivi<strong>do</strong>s noHospital Psiquiátrico Doutor Cândi<strong>do</strong> Ferreira, em Campinas. Limpo e organiza<strong>do</strong>,esse sanatório abriga hoje 315 pacientes. <strong>Mussalém</strong> saiu de <strong>casa</strong> carregan<strong>do</strong> apistola Taurus PT-380 e, por to<strong>do</strong> o caminho, permaneceu atento para certificar-sede que não o estavam seguin<strong>do</strong>.A trágica coincidência: <strong>do</strong>na Janete e Alice haviam combina<strong>do</strong> de fazeruma surpresa para Odete no mesmo dia. Elas chegaram ao sanatório antes das11 h da manhã e carregaram Odete para um <strong>do</strong>s bancos frios de cimento, numespaço chama<strong>do</strong> informalmente de Recanto das Flores. A praça quadrada, emque o vento sopra com mais força no hospital, era o local predileto das pessoaspara ficar durante a visita. Dona Janete gostava de admirar as violetas e dáliascultivadas pelos internos. Naquele dia, a mãe arrancou uma das rosas e passouno rosto de Odete, que se derramava em gargalhadas. <strong>Mussalém</strong> chegou às11h30. Atravessou lentamente o estacionamento e alcançou o Recanto dasFlores. Sua fisionomia se transformou quan<strong>do</strong> viu as mulheres sentadas nobanco. Carrancu<strong>do</strong>, lembrou-se <strong>do</strong> pai, Moisés, pensou na <strong>casa</strong> de Macaubal e naloja de chapéus. Parou no espaço, mas não no tempo. Permaneceu em pé, osolhos fixos nas mulheres sentadas. O vento soprava forte ali. Odete emudeceu eficou séria. Janete e Alice continuavam rin<strong>do</strong>. É possível que não tivessem visto<strong>Mussalém</strong>.As cenas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> espocavam como flashes na retina <strong>do</strong> professor. Aescola <strong>do</strong>minical. O terninho azul. A gravata-borboleta odiada. A indiferença desua mãe. As parábolas de seu pai. Pobres professores de ciência política. Pobrezela<strong>do</strong>r. Pobre Geisel. Ortoll e a miserável mexicana. Cabelos curtos e louros,olhos negros e pele rosada ... Que importava? Pústula maligna, uma mulhermanipulada pela conspiração ... Delatores <strong>do</strong> sistema. Os agentes <strong>do</strong> DOI-Codi.Insolentes! Riam da desgraça alheia. Choravam <strong>do</strong> sucesso <strong>do</strong>s intelectuais ...<strong>Mussalém</strong> ajeitou os óculos – um <strong>do</strong>s aros tinha se solta<strong>do</strong> na noite anterior-, sacou a PT-380 e se aproximou da mãe. Quatro tiros. O primeiro, na cabeça,fez Dona Janete tombar de joelhos. O professor continuou o movimento, disparououtras duas vezes no crânio da mãe e lhe deu o tiro derradeiro na nuca. Alice, airmã, foi alvejada cinco vezes.- Odete cobriu o rosto com as mãos, desesperada – conta o motorista HélioBenedito Alves, que estava a pouco mais de 50m <strong>do</strong> local e foi o único apresenciar os crimes.Como se tivesse repentinamente recupera<strong>do</strong> a lucidez, Odete gritou porsua mãe.<strong>Mussalém</strong> sorri:- Estava transtorna<strong>do</strong> com a minha família e flagrei as duas rin<strong>do</strong> de Odete.Foi muito. Não agüentei. Minha mãe era promíscua. Fazia sexo com os homensque freqüentavam minha <strong>casa</strong> em Macaubal. Traía meu pai e me traiu também.Tenho diversas cáries até hoje porque ela não me ensinou a escovar os dentes.Odete, não. Odete queria me ensinar a escovar os dentes.O silêncio <strong>do</strong>mina os 3 ou 4 m <strong>do</strong> manicômio onde <strong>Mussalém</strong> vive. Eledesliga o rádio. Lambe uma colher de plástico com mel e se ajeita na cama. Está7


sereno. Sente-se mais angustia<strong>do</strong> ao relatar as agruras da paranóia <strong>do</strong> que aocontar como matou a mãe e a irmã.O crime abalou Campinas e infernizou o restante da família. A políciamontou um esquema especial de segurança para o enterro, que reuniu mais deduzentas pessoas. No cemitério Flamboyant, o velório foi fecha<strong>do</strong> durante amadrugada pela PM.Duas horas depois <strong>do</strong> assassinato, <strong>Mussalém</strong> estava longe. Fugiu paraSantos, para a praia de Itararé, em seu Escort verde, ano 1988. Antes de pegar aestrada, passou em seu apartamento e apanhou roupas, cartão <strong>do</strong> banco e asoutras armas. Deixou as chaves com o porteiro e desapareceu. Chegou ao litoralno final da tarde de <strong>do</strong>mingo e ficou num hotel. Após <strong>do</strong>is dias, transferiu-se parauma pensão. A polícia seguiu os seus rastros até encontrá-lo na quarta-feira, napraia <strong>do</strong> Gonzaga. Localiza<strong>do</strong> pelos registros <strong>do</strong>s saques bancários nos caixaseletrônicos de Santos, <strong>Mussalém</strong> foi preso por três solda<strong>do</strong>s da PM, enquantofolheava um livro de sociologia em livraria na esquina das avenidas Ana Costa ePresidente Wilson. Não ofereceu resistência e negou a autoria <strong>do</strong>s crimes. Nadelegacia, não demonstrou abalo pela morte da mãe e da irmã. Disse apenas:- Estou mal porque não comi nada e não sei se vou comer aqui.Depois se calou. Foi condena<strong>do</strong> pelo juiz José Henrique Rodrigues Torres,da Vara de Júri de Campinas, a cumprir pena na Casa de Custódia de Taubaté. Oprimeiro diagnóstico revelou que apresentava uma perturbação mental intercaladapor momentos de lucidez. Diz o prontuário:Diagnosticamos paranóia. No entanto, como há <strong>do</strong>entes e não apenas<strong>do</strong>enças, e como cada <strong>do</strong>ente faz a sua <strong>do</strong>ença, consideran<strong>do</strong>-se a história devida <strong>do</strong> paciente, suas características pessoais, seu alto grau de manipulação, arepercussão emocional que seus atos causam, não somente no ambiente familiarcomo em toda a comunidade circunstante, ele é considera<strong>do</strong> de altapericulosidade. (p. 139-155)* * *8

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