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testemunhos do humano e ideia de futuro em ludwig ... - Ubi Thesis

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Universida<strong>de</strong> da Beira InteriorFaculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Artes e LetrasDepartamento <strong>de</strong> Comunicação e ArtesTESTEMUNHOS DO HUMANO EIDEIA DE FUTURO EMLUDWIG FEUERBACH(1839-1843)José Carlos da Conceição CoelhoCovilhã, 24 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 2009


Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong> apresentada porJosé Carlos da Conceição Coelho à UBI,para obtenção <strong>do</strong> Grau <strong>de</strong> Mestre,ten<strong>do</strong> por orienta<strong>do</strong>r o ProfessorDoutor José Maria Silva Rosa3


“O meu livro contém, disse-o acima, oprincípio <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> in concreto <strong>de</strong> umafilosofia nova, não dirigida à escola mas aohom<strong>em</strong>”.Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo,Tradução <strong>de</strong> Adriana Veríssimo Serrão, FundaçãoCalouste Gulbenkian, Lisboa, 2008 3 , Apêndice, p. 436.4


INDICEI N T R O D U Ç Ã O ............................................................................................... 7PRIMEIRA PARTE................................................................................................ 20Caminhos <strong>do</strong> <strong>humano</strong> ............................................................................................. 211. Testimonia divitatis .............................................................................. 22A questão da religião e a subjectivida<strong>de</strong>........................................ 22Deus como “pro nobis” ou abertura ao sensualismo .................... 292. Hegel – antecipação/preparação <strong>de</strong> Feuerbach ....................... 36A Cruz <strong>do</strong> presente ................................................................................ 443. A Crítica teológico-filosófica............................................................. 56Do céu à Terra ........................................................................................ 56A categoria <strong>do</strong> “lançar para fora”.................................................... 58A tarefa da filosofia nova .................................................................... 67A procura pelo ser sensível .................................................................. 70SEGUNDA PARTE................................................................................................ 82A essência <strong>do</strong> fenómeno religioso .......................................................................... 831. Essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. .......................................................................... 84A Religião como assunto <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> ................................................ 84Essência e Inteligência ......................................................................... 98Entendimento e coração................................................................... 100A Perfeição moral – ou Deus como amor ...................................... 104TERCEIRA PARTE ............................................................................................. 109A existência verda<strong>de</strong>ira......................................................................................... 1101. O hom<strong>em</strong> como finito e <strong>em</strong>pírico.................................................. 111Incarnação – a consciência <strong>do</strong> amor ............................................ 1125


A Oração ............................................................................................... 120QUARTA PARTE ................................................................................................ 127A humanida<strong>de</strong> sensível ......................................................................................... 1281. Antropologia real e sensível. ........................................................... 129O sofrimento – <strong>de</strong>terminação fundamental <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> ............ 130A trinda<strong>de</strong>.............................................................................................. 136A questão <strong>do</strong> f<strong>em</strong>inino ....................................................................... 140O Segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> Logos e o afundamento na intuição sensível .... 143QUINTA PARTE.................................................................................................. 154Do Hom<strong>em</strong> como indivíduo ao Ser Social. .......................................................... 1551. O hom<strong>em</strong> como ser social – Da relação Eu – Tu ao <strong>em</strong>ergir <strong>de</strong>uma nova teologia..................................................................................... 156A completu<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> – um novo mo<strong>de</strong>lo interpretativo. .. 160Naturalização <strong>do</strong> indivíduo. A sensibilida<strong>de</strong>. ................................ 162O verda<strong>de</strong>iro ser................................................................................... 165O saber <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> sobre si mesmo ................................................ 166O Hom<strong>em</strong> medida ............................................................................... 1682. I<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Futuro .................................................................................. 172C O N C L U S Ã O .............................................................................................. 176B I B L I O G R A F I A ....................................................................................... 1896


I N T R O D U Ç Ã O7


O projecto <strong>de</strong> Tese <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong> inicialmente apresenta<strong>do</strong> “DaConstrução <strong>do</strong> Humano <strong>em</strong> Feuerbach ao Novo Hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>Dostoiévski” foi altera<strong>do</strong> para “Test<strong>em</strong>unhos <strong>do</strong> Humano e I<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>Futuro <strong>em</strong> Ludwig Feuerbach (1839-1843)”.A leitura cuidada <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> Fió<strong>do</strong>r Dostoiévski 1 permitiu<strong>de</strong>scortinar abismos da alma humana, centralida<strong>de</strong> na interiorida<strong>de</strong> <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>, personagens atormentadas por crises, obsessões, pulsõesirracionais, uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> interligações, <strong>de</strong> avanços, <strong>de</strong> recuos,interrogações, situações extr<strong>em</strong>as, reconciliação com o outro, consigomesmo, com a realida<strong>de</strong>. Trata-se <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> da existência humanapara a filosofia 2 . Estas razões aconselharam a rever o projecto e a1 Fió<strong>do</strong>r DOSTOIÉVSKI, O Idiota, (Tradução <strong>do</strong> russo <strong>de</strong> Nina Guerra e FilipeGuerra), Editorial Presença, Lisboa, 2007 4 . Fió<strong>do</strong>r DOSTOIÉVSKI, Crime e Castigo,(Tradução <strong>do</strong> russo <strong>de</strong> Nina Guerra e Filipe Guerra), Editorial Presença, Lisboa,2007 5 . Fió<strong>do</strong>r DOSTOIÉVSKI, Irmãos Karamázov, (Tradução <strong>do</strong> russo <strong>de</strong> Nina Guerrae Filipe Guerra), Editorial Presença, Lisboa, 2005 2 . Fió<strong>do</strong>r DOSTOIÉVSKI, PobreGente, Livraria Civilização/Editora, Barcelos, 1973. Fió<strong>do</strong>r DOSTOIÉVSKI, Sonho <strong>de</strong>um Hom<strong>em</strong> Ridículo, (Tradução <strong>de</strong> Natália Nunes), Edições Quasi, Vila Nova <strong>de</strong>Famalicão, 2008 1 . Fió<strong>do</strong>r DOSTOIÉVSKI, Diário <strong>de</strong> Um Escritor, (I), (II), (Tradução<strong>de</strong> João Gaspar Simões), Obras Completas <strong>de</strong> Dostoiévski, Editora Arcádia, Lisboa1973.2 Andrzej WALICKI, A History of Russian thought from the enlightenment tomarxism, (Translated from the polish by Hilda Andrews – Rusiecka, Stanforduniversity press, Stanford, California, 1979, p. 309: “Russian literature, perhapsmore than any other in the nineteenth century, was given to philosophical reflectionon the meaning of human existence and was imbued with a <strong>de</strong>ep sense of moralresponsibility for the fate of its own nation and mankind as a whole. The mostcharacteristic writers in this respect are those two great literary profhets Dostoevskyand Tolstoy. In both men the return to religion was linked to the terrifyingexperience of approaching <strong>de</strong>ath”; p. 315: “The clash between individualistic“licence” and the “Christian truth” receives more profound treatment inDostoevsky`s great novels of the 1860`s and 1870`s. By this time he had come to the8


invertê-lo no senti<strong>do</strong> da probl<strong>em</strong>ática <strong>do</strong> <strong>humano</strong> <strong>em</strong> LudwigFeuerbach, ten<strong>do</strong> por companheiro <strong>de</strong>ste caminhar o <strong>de</strong>scortinar<strong>futuro</strong> <strong>de</strong> caminhos mais esclarece<strong>do</strong>res para um posterior estu<strong>do</strong>,mais cuida<strong>do</strong> e fino, <strong>de</strong> Fió<strong>do</strong>r Dostoiévski. Porém a referência aoprocesso da Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> mantém-se como o solo da <strong>em</strong>ergência <strong>de</strong>ambos os pensa<strong>do</strong>res. O século XIX é o século <strong>de</strong> mudançasprofundas na socieda<strong>de</strong>, é o século das máquinas, <strong>do</strong> materialismo e<strong>do</strong> material. O século da <strong>de</strong>claração da morte <strong>de</strong> Deus.Acrescente-se ao referi<strong>do</strong> que neste revisitar LudwigFeuerbach está não só presente o interesse pelo pensa<strong>do</strong>r que <strong>de</strong>uforma à mentalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s séculos XX e XXI 3 b<strong>em</strong> como uma melhorcompreensão da relação <strong>do</strong> fenómeno da secularização com a teologiae a filosofia e também a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> <strong>futuro</strong> <strong>de</strong> que o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>ve terconsciência: consciência <strong>do</strong> seu ser e <strong>do</strong>s seus limites: morrer <strong>em</strong> pazhumanamente. É que no mun<strong>do</strong> actual encontramo-nos mergulha<strong>do</strong>snesse fenómeno.conclusion that both Western capitalism and socialist i<strong>de</strong>as were a consequence ofman`s falling away from God. European civilization had rejected the way of Christ,the God-Man, and had instead chosen the i<strong>do</strong>lization of man, the way of the Man-God. This i<strong>de</strong>a, [...] was probably suggested to Dostoevsky by Feuerbach, to whosewritings he was introduced in his youth as a m<strong>em</strong>ber of the Petrashevsky Circle.“The divin being is nothing else than the human being,” Feuerbach wrote. “All theattributes of the divine nature are, therefore, attributes of the human nature...Man isthe real God”. Ver ainda Joseph FRANK, Dostoevsky The Seeds of Revolt, 1821-1849, Princeton University Press, Chichester, West Sussex, 1976, Chapter 17-ThePetrashevski Circle- p. 242: “ […] Moreover, having read and assimilated Straussand Feuerbach, he did not share the religiosity either of Fourier, or of his successoras the head of the mov<strong>em</strong>ent Victor Considérant. “Naturalism” is <strong>de</strong>finedapprovingly in the Pocket Dictionary as a mo<strong>de</strong>rn philosophy which, consi<strong>de</strong>ring“divinity nothing other than the general and higher function of human thought,” hasled to “anthropotheism”- the recognition that all positive religions based onrevelation or tradition are really man`s <strong>de</strong>ification of himself or of the laws ofnature. […]”.3FEUERBACH, Ludwig, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, (Tradução <strong>de</strong> AdrianaVeríssimo Serrão), Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2008 3 , pp.[XXII], [XXIII]: “ […] a ponto <strong>de</strong> ser possível i<strong>de</strong>ntificar um “retorno a Feuerbach”,tal se <strong>de</strong>ve ao facto <strong>de</strong> nela se inscrever<strong>em</strong> algumas das categorias que moldam amentalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> nosso t<strong>em</strong>po”. [Daqui <strong>em</strong> diante citamos a obra <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>:Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. x].9


Acrescenta-se ainda a referência a algumas dificulda<strong>de</strong>svividas, relacionadas com a estrutura formal das obras <strong>de</strong> Feuerbach,on<strong>de</strong> se nota que os mesmos t<strong>em</strong>as são retoma<strong>do</strong>s <strong>em</strong> diversas partes.É <strong>de</strong> realçar, também, também a ginástica exigente e necessária paraacompanhar os duplos movimentos, <strong>do</strong> transcen<strong>de</strong>nte ao subjectivo e<strong>de</strong>ste como revela<strong>do</strong>r da atitu<strong>de</strong> religiosa. Um outro movimento liga àvida e daqui ao fundamento da religião. Não menos difícil foi captar,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, uma antropologia integrada, pois <strong>de</strong>paramos com diversasdimensões <strong>do</strong> <strong>humano</strong>. Fica a dificulda<strong>de</strong> da <strong>de</strong>limitação entreverda<strong>de</strong> e a ilusão.Este estu<strong>do</strong> está centra<strong>do</strong> no posicionamento <strong>de</strong> LudwigFeuerbach relativamente à religião e à teologia sen<strong>do</strong> <strong>de</strong> referir odiálogo <strong>do</strong> pensa<strong>do</strong>r com o pensamento Antigo, a Ida<strong>de</strong> Média, aIgreja, o Cristianismo, o catolicismo, o protestantismo e o pensamentoda época. Aqui vai estar <strong>em</strong> estu<strong>do</strong> a referência à filosofia <strong>de</strong> LudwigFeuerbach como uma re<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> inquietações e interrogaçõespatentes no seu pensamento, que são também as <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> hoje,numa visível atenção aos <strong>test<strong>em</strong>unhos</strong> referi<strong>do</strong>s que têm o cunho <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>, <strong>do</strong> <strong>humano</strong>, da humanida<strong>de</strong>. Daí que mesmo os <strong>test<strong>em</strong>unhos</strong><strong>do</strong> Cristianismo mo<strong>de</strong>rno, <strong>em</strong> nosso enten<strong>de</strong>r, não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser<strong>test<strong>em</strong>unhos</strong> <strong>do</strong> que po<strong>de</strong> ser Deus e, sen<strong>do</strong> assim, po<strong>de</strong>m ser<strong>test<strong>em</strong>unhos</strong> ricos da História da Humanida<strong>de</strong> numa fésubjectivamente infinita. Porém, não é este o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong>Feuerbach. Por isso mesmo não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> merecer admiração a tarefan<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre fácil <strong>de</strong> cumprir: “Ya Feuerbach <strong>de</strong>cía: “Refutar es muyfácil; pero compren<strong>de</strong>r es muy difícil” 4 . O âmbito <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong> situase<strong>em</strong> obras produzidas entre os anos <strong>de</strong> 1839-1843, com apoio <strong>em</strong>4 “Prólogo” in Manuel CABADA, El Humanismo pr<strong>em</strong>arxista <strong>de</strong> L. Feuerbach, LaEditorial Católica, S. A., Madrid, 1975: [Daqui <strong>em</strong> diante citamos s<strong>em</strong>pre a obra<strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong>: Manuel CABADA, El Humanismo pr<strong>em</strong>arxista <strong>de</strong> L. Feuerbach, p. x].10


outras cujo conteú<strong>do</strong> é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um adjuvante esclarece<strong>do</strong>r dat<strong>em</strong>ática feuerbachiana patente <strong>em</strong> Para a crítica da Filosofia <strong>de</strong>Hegel (1839), A Essência <strong>do</strong> Cristianismo (1841), Necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Reforma da Filosofia (1842), Teses provisórias para a reforma dafilosofia (1842), Princípios da filosofia <strong>do</strong> <strong>futuro</strong> (1843), A Essênciada fé segun<strong>do</strong> Lutero (1844).O fio condutor aqui segui<strong>do</strong> t<strong>em</strong> a preocupação <strong>de</strong> respeitar oautor s<strong>em</strong>pre com o intuito <strong>de</strong> relevar a sua preocupação <strong>em</strong> captar aessência da religião, relevan<strong>do</strong> <strong>test<strong>em</strong>unhos</strong> <strong>do</strong> <strong>humano</strong> e consequente<strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> <strong>futuro</strong>. Assim a característica da religião consiste <strong>em</strong> criar um<strong>do</strong>mínio transcen<strong>de</strong>nte à realida<strong>de</strong> sensível que é qualifica<strong>do</strong> <strong>de</strong>atributo on<strong>de</strong> o hom<strong>em</strong> projecta imagens. Porém é neste “lançar parafora” que se encontra a conexão entre o <strong>humano</strong> e o divino, sen<strong>do</strong>essas imagens produzidas pela fantasia <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, mostran<strong>do</strong> o seuDeus ou <strong>de</strong>uses uma s<strong>em</strong>elhança com o hom<strong>em</strong>, seu cria<strong>do</strong>r. Essascriações significam a necessida<strong>de</strong> que o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> <strong>de</strong> dizer os seus<strong>de</strong>sejos, mostran<strong>do</strong> isso <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> inconsciente a consciência que ohom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> <strong>de</strong> si. Em outro senti<strong>do</strong> Feuerbach mostra também que ateologia, ao transformar aquele Deus <strong>humano</strong> e pessoal <strong>em</strong> formaabstracta, nega a relação <strong>de</strong> ligação, proximida<strong>de</strong> entre Deus e ohom<strong>em</strong> <strong>de</strong>tentor da fé. Ligan<strong>do</strong> este aspecto ao cristianismoFeuerbach critica um trabalho <strong>de</strong> moldag<strong>em</strong> segun<strong>do</strong> a incarnaçãocristã responsável pela filosofia que está <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com ocristianismo.Assim, na Primeira Parte, <strong>de</strong>nominada “Caminhos <strong>do</strong><strong>humano</strong>” há toda uma referência ao facto <strong>de</strong> que as obras e liturgiassão provas, <strong>em</strong> nosso enten<strong>de</strong>r, <strong>test<strong>em</strong>unhos</strong> ricos da presença <strong>do</strong><strong>humano</strong> na religião.O <strong>humano</strong> está presente no fenómeno religioso, verda<strong>de</strong>escondida da religião e os predica<strong>do</strong>s atribuí<strong>do</strong>s pelo hom<strong>em</strong> a Deussão proprieda<strong>de</strong>s humanas. No aproveitamento que faz <strong>de</strong> Lutero,11


Feuerbach enten<strong>de</strong> na expressão luterana “Deus pro nobis in Christo”um Deus sensível. Este aspecto é revela<strong>do</strong>r <strong>de</strong> que o princípio dafilosofia é o hom<strong>em</strong>. Daí o segre<strong>do</strong> da teologia ser a antropologia.Na linha <strong>de</strong> Lutero há um conceber a consciência interiorperante a materialida<strong>de</strong>, necessitan<strong>do</strong> da subjectivida<strong>de</strong>. T<strong>em</strong>os,assim, no hom<strong>em</strong> o critério da crítica da religião. O Deus <strong>de</strong> Lutero é<strong>humano</strong>, pelo que essência <strong>do</strong> cristianismo assenta no hom<strong>em</strong>, na sua<strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>. A expressão <strong>de</strong> Lutero t<strong>em</strong> na incarnação e paixão <strong>de</strong>Cristo o cerne da fé, porque o seu sofrimento é <strong>humano</strong>, pois nóssofr<strong>em</strong>os n`Ele. Há uma abertura ao sensualismo, ao sensível poisCristo é a humanida<strong>de</strong> divina como humana, sensível, real.No seguimento há a referência à herança da teologiaprotestante b<strong>em</strong> como à importância da relação <strong>de</strong> Feuerbach comHegel sen<strong>do</strong> pelos escritos da juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste que se <strong>de</strong>u aassimilação <strong>do</strong> pensamento <strong>de</strong> Hegel, como um segun<strong>do</strong> nascimentopara Feuerbach. O Hegel da juventu<strong>de</strong> critica a base religiosa damo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, realçan<strong>do</strong> a crítica no Além, sen<strong>do</strong> uma espécie <strong>de</strong>fermento da perspectiva fuerbachiana 5 . Um outro aspecto é o daharmonia entre o cidadão e a cida<strong>de</strong> na Al<strong>em</strong>anha que se diferenciavada felicida<strong>de</strong> na Grécia Antiga. Tornava-se urgente uma incarnação daI<strong>de</strong>ia da<strong>do</strong> o Deus cristão estar no Além, distante o que tornavaalienada a situação <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> no mun<strong>do</strong>. A uma positivida<strong>de</strong> Jesusveio contrapor uma posse da subjectivida<strong>de</strong>, a intencionalida<strong>de</strong> daconsciência.No entanto <strong>em</strong> Teses para a reforma da filosofia Feuerbach<strong>de</strong>svia-se da orientação <strong>do</strong> Hegel pois era importante <strong>de</strong>stronar certasconcepções gerais que eram vistas como os alicerces da história,propon<strong>do</strong> um méto<strong>do</strong> <strong>de</strong>svela<strong>do</strong>r, enquanto Hegel mostrava aconfiança na razão, no “Conceito”.5 Manuel CABADA, El Humanismo pr<strong>em</strong>arxista <strong>de</strong> L. Feuerbach, p. 150.12


Para finalizar a primeira parte trata-se da crítica <strong>de</strong> Feuerbach aHegel, <strong>do</strong> insurgir contra o fun<strong>do</strong> teológico da filosofia <strong>de</strong> Hegel,mostran<strong>do</strong> a verda<strong>de</strong> “<strong>de</strong> carne e osso” pois para Hegel a essência dateologia é a essência fora <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> 6 . Por seu la<strong>do</strong> Feuerbach procurano hom<strong>em</strong> o que é próprio da filosofia, retiran<strong>do</strong> à filosofia <strong>de</strong> Hegelto<strong>do</strong> o seu carácter abstracto, reconduzin<strong>do</strong> à dimensão <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> 7 . Éa afirmação da nova filosofia que t<strong>em</strong> por objecto o hom<strong>em</strong> “o hom<strong>em</strong>que é e sabe que é a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> real” 8 com abertura ao sensível, ànatureza.A Segunda Parte, intitulada “A essência <strong>do</strong> fenómenoreligioso”, refere que a essência da religião <strong>de</strong>ve ser ela própriahumana. Neste senti<strong>do</strong> está-se perante o <strong>em</strong>ergir da <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> que areligião é um assunto <strong>humano</strong>, ten<strong>do</strong> <strong>em</strong> vista passar da teologia àantropologia 9 . Da diferença entre o hom<strong>em</strong> e o animal avança-se paraa existência <strong>de</strong> uma vida dupla no hom<strong>em</strong> manifestada <strong>em</strong>interiorida<strong>de</strong> e exteriorida<strong>de</strong> sen<strong>do</strong> o primeiro aspecto o quepossibilita estabelecer relações com o género. Um outro aspecto areferenciar é a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> e da religião,fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> o sujeito <strong>de</strong> uma essência infinita 10 . Este é o cerneda crítica <strong>de</strong> Feuerbach à religião no intuito <strong>de</strong> ver nesta o resulta<strong>do</strong><strong>do</strong> espírito e <strong>do</strong> coração <strong>humano</strong>s. Daí a meto<strong>do</strong>logia seguida porFeuerbach ser tipo anatomia 11 ven<strong>do</strong> mesmo na essência <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sejos a6 Ludwig FEUERBACH, Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia, (Tradução <strong>de</strong>Artur Morão), (www.lusosofia.net), in Lusosofia: Press, Covilhã, 2008, p. 4: “Aessência da teologia é a essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, transcen<strong>de</strong>nte, projectada para fora <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>; a essência da lógica <strong>de</strong> Hegel é o pensamento transcen<strong>de</strong>nte, o pensamento<strong>do</strong> hom<strong>em</strong> posto fora <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. [Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 28 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 2009]. [Daqui <strong>em</strong>diante citamos a obra <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>: Ludwig FEUERBACH, Teses Provisóriaspara a Reforma da Filosofia, p. x].7 I<strong>de</strong>m, p. 7.8 I<strong>de</strong>m, p. 179 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 5.10 I<strong>de</strong>m, p. 11.11 Adriana Veríssimo SERRÃO, A Humanida<strong>de</strong> da Razão, Fundação CalousteGulbenkian, Fundação para a Ciência e Tecnologia, Lisboa, 1999, p. 59. [Daqui <strong>em</strong>13


essência <strong>do</strong>s <strong>de</strong>uses 12 . Trata-se <strong>de</strong> um mostrar da consciência que ohom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus, é a consciência <strong>de</strong> si <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>.Depois <strong>de</strong> diagnosticada a patologia inci<strong>de</strong>-se <strong>em</strong> aspectosessenciais da t<strong>em</strong>ática feuerbachiana: o entendimento, o coração, oamor.Por sua vez a Terceira Parte <strong>de</strong>signada “A existênciaverda<strong>de</strong>ira” trata da afirmação da existência finita <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>,referida ao hom<strong>em</strong>, como finito, <strong>em</strong>pírico. Aspecto que inci<strong>de</strong> nohom<strong>em</strong> <strong>de</strong> “carne e osso”, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> <strong>em</strong>erge a verda<strong>de</strong> ocultada “soblágrimas e suspiros” 13 . Neste senti<strong>do</strong> é o realçar <strong>de</strong> princípios como aIncarnação, a Trinda<strong>de</strong> e os atributos <strong>de</strong> Deus como el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> umaantropologia sensível, real.Há um aspecto que se consi<strong>de</strong>ra relevante, pois talvez ohom<strong>em</strong> <strong>de</strong> hoje ainda não se tenha da<strong>do</strong> conta que pela oração Deusnão se alheia <strong>do</strong>s que o veneram. Na oração Deus é trazi<strong>do</strong> para junto<strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, sen<strong>do</strong> o Deus pessoal uma necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> coração 14 . Pelaoração, o hom<strong>em</strong> religioso crê que a divinda<strong>de</strong> é <strong>de</strong>terminada peloacto interior da oração, pois Deus é para o hom<strong>em</strong> coração e neste t<strong>em</strong>o coração <strong>humano</strong> o seu consolo pois “o coração só po<strong>de</strong> dirigir-seao coração” 15. É um Deus psicologicamente como o hom<strong>em</strong>. Deus éamor, porque é um <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> coração <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, pois este parte dasua individualida<strong>de</strong> para a sua subjectivida<strong>de</strong> e daqui para o <strong>de</strong>sejoque se converte no po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> sentimento, da oração daquele que fala eouve a si mesmo, sen<strong>do</strong> que o objecto da religião é, assim, positivo enegativo. Quer dizer, o hom<strong>em</strong> reza e este rezar quer dizerdiante citamos a obra <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>: Adriana Veríssimo SERRÃO, AHumanida<strong>de</strong> da Razão, p. x].12 LUBAC, S. J. Henry <strong>de</strong>, O Drama <strong>do</strong> Humanismo Ateu, (Tradução <strong>de</strong> IrondinoTeixeira <strong>de</strong> Aguiar), Porto Editora, Lda., Porto, p. 24. [Daqui <strong>em</strong> diante citamos aobra <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>: LUBAC, S. J. Henry <strong>de</strong>, O Drama <strong>do</strong> Humanismo Ateu, p. x].13 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 438.14 I<strong>de</strong>m, p. 177.15 I<strong>de</strong>m, p. 57.14


ecolhimento, interiorida<strong>de</strong>. Neste aspecto afirma-se a totalida<strong>de</strong>integral subjectivo/objectivo.Consequent<strong>em</strong>ente na Quarta Parte, assinalada por “Ahumanida<strong>de</strong> sensível”, o hom<strong>em</strong> sensível crê num Deus sensível, noque ele mesmo é na sua essência. Por conseguinte, o segre<strong>do</strong> daIncarnação encontra-se na referência “Deus é amor” sen<strong>do</strong> osofrimento o segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> amor. Cristo é ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> como Deus se fezhom<strong>em</strong>. Ora, o sofrimento é o ponto nodal <strong>em</strong> que pensamentos esensações primeiramente se ligam a Deus. Em Deus está a perfeição e<strong>em</strong> Cristo a necessida<strong>de</strong>. Ora, para Feuerbach o sofrimento <strong>do</strong> amorimpressiona, porque o acontecimento da paixão atinge o íntimo <strong>do</strong>coração <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Quer dizer, ten<strong>do</strong> o cristianismo a sua melhorparte no “pathos”, no coração então o coração vence o hom<strong>em</strong>,passan<strong>do</strong> pelo f<strong>em</strong>inino. Assim, sofrer por outro é divino, um tornarseDeus para os homens. Por isso, o amor que sofre é a essênciamáxima <strong>do</strong> coração sen<strong>do</strong> Cristo, que sofreu pelos outros, a afirmação<strong>do</strong> <strong>humano</strong>. Aqui t<strong>em</strong>os a espécie humana como o verda<strong>de</strong>iro hom<strong>em</strong>,pois o sofrimento <strong>de</strong> Cristo situa Cristo para lá <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> comumcumprin<strong>do</strong> a perfeição da espécie. À parte a visão <strong>do</strong> <strong>do</strong>cetismo, osofrimento <strong>de</strong> Cristo é uma “passio” e por essa razão a religião cristãnão é <strong>do</strong> Além <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, da<strong>do</strong> confirmar a fraqueza, <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>humana. Cristo chorou por Lázaro, no Horto quis que se afastasseaquele cálice 16 e entregou-se à morte na cruz. É o revelar asensibilida<strong>de</strong> humana. Neste aspecto está a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Feuerbachpassar pelo Deus <strong>do</strong> sofrimento para po<strong>de</strong>r respon<strong>de</strong>r à projecção. AIncarnação é assumir a consciência histórica. Será a agonia no Hortouma simples recordação ou um objecto <strong>de</strong> alegria? Serása<strong>do</strong>masoquismo? Ou não será antes a afirmação <strong>de</strong> Deus comocoração?16 I<strong>de</strong>m, p. 64.15


O segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> sofrimento mostra-se no sofrimento <strong>de</strong> Cristopois é na recondução para o hom<strong>em</strong> <strong>do</strong>s predica<strong>do</strong>s e <strong>em</strong> Cristoencontram-se as necessida<strong>de</strong>s humanas. Por isso Deus é um ser-com.Assim a trinda<strong>de</strong> é o sonho <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> que vai ser completada comuma figura que expressasse o f<strong>em</strong>inino <strong>em</strong> Deus. Pôr Cristo é colocara mãe <strong>de</strong> Deus como condição pois tornou-se hom<strong>em</strong> na mulher eadquiriu <strong>do</strong> coração da mãe impressões inapagáveis 17 . Quer isto dizerque o amor <strong>de</strong> Deus pelo ser <strong>humano</strong> se encontra no coração <strong>de</strong> mãe.Na trinda<strong>de</strong> o filho <strong>de</strong> Deus, o logos é a palavra e na vidapolítica a palavra é essencial. Nesta questão vai relacionar-se oimpulso <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> para falar como um impulso divino 18 , como umvínculo entre os homens politicamente e <strong>em</strong> Deus e <strong>em</strong> Cristo operamilagres. E existe quanto mais se partilha 19 . Assim, no segre<strong>do</strong> <strong>do</strong>logos encontra-se o segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> encontrar no outro umapalavra que o acolhe. É o grafar o test<strong>em</strong>unho <strong>de</strong> uma visão pessoal <strong>de</strong>vida num livro como forma <strong>de</strong> imortalização terrena. É um dar-se <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> à Humanida<strong>de</strong> pela palavra. Também neste aspecto se <strong>de</strong>tectaa importância <strong>do</strong> labor filosófico: produzir textos e torná-losacessíveis aos outros. Disto ressalta que a vida humana é o mo<strong>de</strong>lopara a filosofia, porque sen<strong>do</strong> esta um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> pensar é também umapartilha no comunicar, pois “ […] ensinamos a nós mesmos, comofaríamos a outros, esses pensamentos que brotam imediatamente <strong>do</strong>génio <strong>do</strong> pensamento […]” 20 . Inerente a este aspecto é o acto <strong>de</strong>escrever como um vivência, experienciada, com mediação <strong>do</strong> eu e <strong>do</strong>tu sen<strong>do</strong> como um momento funda<strong>do</strong>r, originário, pois a filosofia17 I<strong>de</strong>m, p. 81.18 I<strong>de</strong>m, p. 90.19 I<strong>de</strong>m, p. 91.20 Ludwig FEUERBACH, Filosofia da Sensibilida<strong>de</strong>. Escritos (1839-1846), (Tradução<strong>de</strong> Adriana Veríssimo Serrão), Centro <strong>de</strong> Filosofia da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa,Lisboa, 2005, p. 54. [Daqui <strong>em</strong> diante citamos a obra <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>: LudwigFEUERBACH, Filosofia da Sensibilida<strong>de</strong>. Escritos, p. x].16


<strong>de</strong>sperta o pensamento. A filosofia nova t<strong>em</strong> <strong>em</strong> vista um ponto <strong>de</strong>apoio que rompa com o círculo elaboran<strong>do</strong> elipses.No que concerne à Quinta Parte assinalada como “Dohom<strong>em</strong> como indivíduo ao ser social” mostra-se que a essênciadivina não é diferente da essência humana para Feuerbach e que forada natureza e <strong>do</strong>s homens nada existe. Assim, o mo<strong>do</strong> mais imediatoda consciência é a hetero-consciência, consciência religiosa, que selança para fora <strong>de</strong> si. Daí a religião não ser mais <strong>do</strong> que autoconhecimento<strong>do</strong> próprio hom<strong>em</strong>. Por conseguinte cada culturatransfere para os seus <strong>de</strong>uses os seus <strong>de</strong>sejos e a sua concepção <strong>de</strong>mun<strong>do</strong> sen<strong>do</strong> esse Deus nada mais <strong>do</strong> que atributos <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Ohom<strong>em</strong> ao colocar <strong>em</strong> Deus esses atributos lança a sua essência parafora <strong>de</strong> si para <strong>de</strong>pois recuperar a dignida<strong>de</strong> perdida. A essência divinaé humana: “homo homini Deus est”. É o afirmar o hom<strong>em</strong>, pois aquele<strong>de</strong>s<strong>do</strong>brar é uma fuga para a transcendência.É notório que Feuerbach se preocupou com uma reflexão sobreo <strong>humano</strong>, o hom<strong>em</strong> como indivíduo que necessita <strong>de</strong> se completar narelação com os outros. Assim, Feuerbach vai incidir a sua reflexão nacomunida<strong>de</strong> humana como afirmação da existência, pois a verda<strong>de</strong>iradialéctica é um diálogo entre um eu e um tu, uma relação <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>com outros homens 21 . Trata-se da importância da existência <strong>do</strong> outrocomo meio pelo qual o mun<strong>do</strong> adquire senti<strong>do</strong> haven<strong>do</strong> nessereconhecimento uma experiência <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong>. Essa abertura ao outro<strong>de</strong>signa abertura <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> a um <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> possíveis. O hom<strong>em</strong> <strong>em</strong>situação po<strong>de</strong> dar senti<strong>do</strong> à realida<strong>de</strong> e ser compreendi<strong>do</strong>. Umasituação inserida na sensibilida<strong>de</strong>, num corpo. É na unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> eu-tuque se apresenta o <strong>de</strong>us <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, “o hom<strong>em</strong> com o hom<strong>em</strong>” a21 Ludwig FEUERBACH, Princípios da Filosofia <strong>do</strong> Futuro, (Tradução <strong>de</strong> ArturMorão), (www.lusosofia.net), in Lusosofia: Press, Covilhã, 2008, Princípio 59, p.72. [Daqui <strong>em</strong> diante citamos a obra <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>: Ludwig FEUERBACH,Princípios da Filosofia <strong>do</strong> Futuro, p. x].17


unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> eu e <strong>do</strong> tu é Deus 22 . Talvez se encontre nisto o surgir <strong>de</strong>uma nova teologia.Feuerbach vai realçar as interconexões infinitas das relações<strong>em</strong> socieda<strong>de</strong>, o passar <strong>do</strong> indivíduo para a comunida<strong>de</strong>, o hom<strong>em</strong> queé com os homens. O po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> é maior <strong>em</strong> comunida<strong>de</strong>,afirman<strong>do</strong> a Humanida<strong>de</strong>, o género, o segre<strong>do</strong> da vida comum social.As orientações apresentadas po<strong>de</strong>m orientar para o questionarse o hom<strong>em</strong> concreto, genérico não é uma abstracção? No entanto ofortalecer da dimensão prática <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> irá possibilitar novoscaminhos à filosofia futura, influencian<strong>do</strong> Marx e Engels.No fim Feuerbach volta ao finito para revalorizar esse<strong>do</strong>mínio, a natureza e ao mo<strong>do</strong> como o hom<strong>em</strong> participa nessanatureza. Não se limitan<strong>do</strong> à redução <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> ao natural reconduziuos atributos <strong>de</strong> Deus para o novo ser <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Um regresso aohom<strong>em</strong> construin<strong>do</strong> <strong>em</strong> re<strong>do</strong>r <strong>de</strong>le a antropologia, num novo projecto<strong>de</strong> humanismo. A nova filosofia que é antropológica pensa o concretocomo concreto sen<strong>do</strong> a sensibilida<strong>de</strong> e a individualida<strong>de</strong> os seusprincípios. A nova filosofia ao reconhecer o hom<strong>em</strong> como ser sensívelreleva um género <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> medida <strong>em</strong> que tu<strong>do</strong> possui senti<strong>do</strong>. T<strong>em</strong>existência como corpo e por este é no mun<strong>do</strong>. Feuerbach restitui aohom<strong>em</strong> a trinda<strong>de</strong> divina, preten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> enquadrar num conjunto arazão, os senti<strong>do</strong>s e a afectivida<strong>de</strong>. Por isso a nova filosofia apresentasecomo alternativa à religião, restituin<strong>do</strong> ao hom<strong>em</strong> o coração. Estepormenor fará com que o hom<strong>em</strong> religioso não esteja separa<strong>do</strong> <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> que sente e pensa 23 . Este é o aspecto a ter <strong>em</strong> conta pois existeuma unida<strong>de</strong> entre razão e hom<strong>em</strong> no género <strong>humano</strong>. Só o <strong>do</strong>mínio<strong>humano</strong> é real. Na unida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s homens expressa-se a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> algocomum: a razão humana. A razão t<strong>em</strong> um lugar: o <strong>humano</strong>.22 I<strong>de</strong>m, Princípio 60, p. 72.23 Ludwig FEUERBACH, Princípios da Filosofia <strong>do</strong> Futuro, Princípio 34, p. 55: “[…] afirma apenas na e com a razão o que cada hom<strong>em</strong> […] reconhece no coração”.18


Estamos, assim, a realçar a elipse, diferença na sensibilida<strong>de</strong> eno sentir, ao relevar a relação entre os homens. O que permanece é aHumanida<strong>de</strong> por meio <strong>do</strong>s laços inter-individuais e a razão é acondição sine qua non <strong>do</strong> género, pois t<strong>em</strong> a forma “comunida<strong>de</strong> ouuniversalida<strong>de</strong>”. É a abertura, pela Humanida<strong>de</strong>, ao comum entre oshomens: o pensamento. Daí que a importância <strong>do</strong> pensar está <strong>em</strong> pôrum outro, estan<strong>do</strong> no pensar a essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>.Daí que esteja nesta parte a referência à <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> <strong>futuro</strong>,<strong>em</strong>bora apareça preparada ao logo <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong>. Trata-se <strong>do</strong> anunciarda filosofia <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, haven<strong>do</strong> a referir Escritos, Necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>uma reforma da filosofia, Teses provisórias para a reforma dafilosofia e Princípios da filosofia <strong>do</strong> <strong>futuro</strong>, on<strong>de</strong> o significa<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta<strong>i<strong>de</strong>ia</strong> está presente. Feuerbach lança as bases <strong>de</strong>ssa nova filosofia,Antropológica, alicerçada na vida <strong>do</strong>s homens reais, concretos e nasocieda<strong>de</strong>. É a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconstruir a unida<strong>de</strong> humana, ao contrário<strong>do</strong>s dualismos tradicionais. É a ligação à vida, ao que ro<strong>de</strong>ia ohom<strong>em</strong>, o concreto como princípio da filosofia nova, <strong>de</strong> carne esangue. Uma filosofia nova que caminha para a frente e que t<strong>em</strong> porparadigma o hom<strong>em</strong> integral, sensível, corpóreo e o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>spossíveis, algo não acaba<strong>do</strong>, como uma trajectória, <strong>em</strong> <strong>de</strong>vir, a partirda vida <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> no presente s<strong>em</strong>pre a tanger o <strong>futuro</strong>.19


PRIMEIRA PARTE20


Caminhos <strong>do</strong> <strong>humano</strong>“Há boas razões para o autor ter i<strong>do</strong> buscar os seus<strong>test<strong>em</strong>unhos</strong> ao arquivo <strong>de</strong> séculos há muito passa<strong>do</strong>s.Também o cristianismo teve os seus t<strong>em</strong>posclássicos” 24 .24 Ludwig FEUERBACH, “Prefácio” in Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong>Cristianismo, p. 421


1. Testimonia divitatis“También las obras y liturgias <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s los pueblostestimonian esto: que ser Dios no es otra cosa sinohacer el bien a los hombres” 25 .A questão da religião e a subjectivida<strong>de</strong>Ler Feuerbach é como experienciar o voo da ave <strong>de</strong> Minervasobre <strong>test<strong>em</strong>unhos</strong>, <strong>test<strong>em</strong>unhos</strong> ricos, que leu e o marcaram – AntigaGrécia, Ida<strong>de</strong> Média, o Cristianismo, a teologia protestante, Kant,Hegel – pois têm <strong>em</strong> comum o carácter <strong>de</strong> contribuição para as suasobras, especialmente para aquela que é a sua obra fundamental: AEssência <strong>do</strong> Cristianismo 26 . Feuerbach alicerça e <strong>de</strong>senvolve a suaperspectiva acerca <strong>do</strong> fenómeno religioso “como uma questãoexclusivamente humana, ao mesmo t<strong>em</strong>po que interpela o crente a25 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, Estudiopreliminar, traducción y notas <strong>de</strong> Luís Miguel Arroyo Arrayás, Editorial Tecnos,Madrid, 2001, p. 25. [Daqui <strong>em</strong> diante citamos a obra <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>: LudwigFEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. x].26 Karl LÖWITH, De Hegel à Nietzsche, Paris, Édition Gallimard, 1969, p. 96 :« Comme tous les philosophes idéalistes all<strong>em</strong>ands, Feuerbach partit <strong>de</strong> la théologieprotestante, qu`il étudia à Hei<strong>de</strong>lberg auprès <strong>de</strong> l`hégélien Daub et <strong>de</strong> Paulus ».[Daqui <strong>em</strong> diante citamos a obra <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>: Karl LÖWITH, De Hegel àNietzsche, p. x].22


compreen<strong>de</strong>r e esclarecer o senti<strong>do</strong> da sua fé” 27 . Feuerbach analisa asdiferentes religiões: o cristianismo, especialmente, mas também opaganismo e o judaísmo. Distingu<strong>em</strong>-se no mo<strong>do</strong> como estruturam asrepresentações da divinda<strong>de</strong>, <strong>em</strong>bora se ass<strong>em</strong>elh<strong>em</strong>. A essência dareligião não t<strong>em</strong> realização <strong>de</strong>finitiva <strong>em</strong> nenhuma religião,encontran<strong>do</strong> na subjectivida<strong>de</strong> a junção entre o hom<strong>em</strong> e a divinda<strong>de</strong>.Feuerbach é <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s pensa<strong>do</strong>res passa<strong>do</strong>s, da tradição,mormente da teologia protestante pois era seu ensejo <strong>de</strong>scobrir osenti<strong>do</strong> ateu da teologia <strong>de</strong> Lutero a partir <strong>de</strong> obras <strong>de</strong>ste, pequenosescritos 28 . É este o berço <strong>de</strong> A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, o âmbitointelectual <strong>de</strong>sta obra. As obras <strong>de</strong> Lutero aqui referidas têm o senti<strong>do</strong>da variação, poisEn cierto senti<strong>do</strong> estas obras pue<strong>de</strong>n compararsecon el ej<strong>em</strong>plo musical <strong>de</strong> las variciones sobre un mismot<strong>em</strong>a, en las que aparece la riqueza que se escon<strong>de</strong> enun t<strong>em</strong>a musical, cuan<strong>do</strong> es <strong>de</strong>sarrolla<strong>do</strong> en sucomplejidad 29 .Feuerbach pretendia com a teologia <strong>de</strong> Lutero meio <strong>de</strong> provadas teses expostas na sua obra fundamental, sen<strong>do</strong> estas obras algoque mostra efeitos e possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interpretação 30 . Como ver<strong>em</strong>oso el<strong>em</strong>ento fundamental <strong>do</strong> pensamento feuerbachiano consiste <strong>em</strong>negar Deus, sen<strong>do</strong> por isso <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> <strong>de</strong> pensamento ateu. Assim,não se trata só <strong>de</strong> <strong>de</strong>smontar uma imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus que é falsa mastambém mostrar a verda<strong>de</strong> escondida da religião, <strong>de</strong>scobrir que os27 Ludwig FEUERBACH, “Prefácio à 2.ª Edição” in Ludwig FUERBACH, A Essência<strong>do</strong> Cristianismo, p. [V].28 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La essencia <strong>de</strong>l cristianismo, pp. [X,XI]: “La esencia <strong>de</strong> la fe según Lutero y los otros pequeños escritos (La diferenciaentre la divinizácion <strong>de</strong> los hombres en el paganismo y en el cristianismo yAfirmaciones <strong>de</strong> Lutero con glosas). […] tra<strong>em</strong>os también aquí el breve artículotitula<strong>do</strong> Lutero cómo árbitro entre Strauß y Feuerbach”.29 I<strong>de</strong>m, p. [XI].30 Ibi<strong>de</strong>m.23


predica<strong>do</strong>s que o hom<strong>em</strong> atribui a Deus não são efectivamente <strong>de</strong>Deus, mas da natureza e da Humanida<strong>de</strong>, poisTu<strong>do</strong> se resume a isto. Tal como são predica<strong>do</strong>s<strong>de</strong> Deus? Não; tal como são predica<strong>do</strong>s da natureza eda Humanida<strong>de</strong> – proprieda<strong>de</strong>s naturais, humanas. Aoser<strong>em</strong> <strong>de</strong>sloca<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Deus para o hom<strong>em</strong> per<strong>de</strong>mprecisamente o carácter da divinda<strong>de</strong> que apenas lheadvém no afastamento <strong>em</strong> relação ao hom<strong>em</strong> – naabstracção, na fantasia 31 .É o <strong>de</strong>slocamento da mística nocturna <strong>do</strong> ânimo religioso paraa luz <strong>do</strong> dia, os predica<strong>do</strong>s tornam-se “comuns”, “profanos”.Feuerbach com a sua posição mostra, também, alguma religiosida<strong>de</strong>pois “o hom<strong>em</strong> é o Deus, o ser supr<strong>em</strong>o <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>” 32 , vin<strong>do</strong> a suaposição teológica a “consi<strong>de</strong>rar o género, o Hom<strong>em</strong>, uma abstracção,uma <strong>i<strong>de</strong>ia</strong>, como a nossa verda<strong>de</strong>ira essência […]” 33 <strong>em</strong> oposição overda<strong>de</strong>iro eu individual <strong>em</strong>bora prossiga para uma espécie <strong>de</strong>materialismo on<strong>de</strong> o centro <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser o hom<strong>em</strong> para ser a natureza,ter chega<strong>do</strong> à verda<strong>de</strong> da sensibilida<strong>de</strong>, ao ser sensível como serabsoluto 34 . Para Lutero o hom<strong>em</strong> é nega<strong>do</strong> perante Deus “Eu estouaqui, eu não posso fazer <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>. Que Deus me aju<strong>de</strong>.Amén!” 35 e isto é <strong>de</strong>sacor<strong>do</strong> relativamente à proposta <strong>de</strong> Feuerbach naobra A Essência <strong>do</strong> Cristianismo que consi<strong>de</strong>ra a essência <strong>do</strong>ssentimentos <strong>humano</strong>s como a essência da religião cristã. Deste mo<strong>do</strong>se suprime a posição <strong>do</strong> cristianismo, “cuja essência se esgota na31 Ludwig FEUERBACH, Filosofia da Sensibilida<strong>de</strong>. Escritos, p. 171.32 I<strong>de</strong>m, p. 173.33 Ibi<strong>de</strong>m.34 Ludwig FEUERBACH, “Prefácio à 2.ª Edição” in Ludwig FEUERBACH, A Essência<strong>do</strong> Cristianismo, p. [VII]: “Mas o que sobretu<strong>do</strong> ressalta da obra é o forte elogio davida, seja na exaltação da Natureza como fundamento da realida<strong>de</strong>, seja namensag<strong>em</strong> <strong>de</strong> universalismo sustentada na <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> comunitária <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> como umúnico género <strong>humano</strong> […]”.35 Martinho LUTERO - Speech at the Diet of Worms (1521), Reported in Bartlett'sFamiliar Quotations, 10thed. (1919), in Martinho Lutero,http://www.gnu.org.copyleft/fdl.htm. [Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 15 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 2009].24


proposição: “eu, este indivíduo exclusivo, incomparável, mesmo quenão agora, pelo menos segun<strong>do</strong> a minha <strong>de</strong>stinação celeste, souDeus” 36 . A verda<strong>de</strong>ira realida<strong>de</strong> está no outro la<strong>do</strong> da negaçãoluterana, pois o ser nada <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> é porque ele é to<strong>do</strong> <strong>em</strong> Deus. Épor isso que, segun<strong>do</strong> Lutero, <strong>em</strong> Cristo enxergamos Deus, ficamos asaber qu<strong>em</strong> Ele é e como ama. Para Feuerbach “Su fórmula favorita esla fórmula luterana Deus pro nobis in Christo” 37 . Cristo é o Deussensível, estan<strong>do</strong> na humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo um Deus, um ser para nós.Assim, o sentimento nega um Deus objectivo, sen<strong>do</strong> Deus para simesmo, sen<strong>do</strong> qualquer outro Deus imposto <strong>de</strong> fora ao sentimento.Por isso, “o sentimento é ateu na acepção da fé orto<strong>do</strong>xa, segun<strong>do</strong> aqual a fé se liga a um objecto exterior” 38 . À parte <strong>do</strong>s escritos atráscita<strong>do</strong>s, as suas obras mais importantes são: História da FilosofiaMo<strong>de</strong>rna (1833); Exposição, evolução e Crítica da Filosofia <strong>de</strong>Leibniz (1837); A Essência <strong>do</strong> Cristianismo (1841); Tesespreliminares para a Reforma da Filosofia (1843); Princípios daFilosofia <strong>do</strong> Futuro (1843); A essência da religião (1845); Liçõessobre a essência da religião (1857). Feuerbach apresenta a noção <strong>do</strong>protestantismo, herança da esquerda hegeliana tentan<strong>do</strong> compreen<strong>de</strong>ra realida<strong>de</strong> por meio da razão <strong>de</strong> que o sujeito é o hom<strong>em</strong> <strong>em</strong>reconciliação com o mun<strong>do</strong> 39 . Para Feuerbach a teologia e a filosofiasó possu<strong>em</strong> senti<strong>do</strong> se se converter<strong>em</strong> numa antropologia. O princípioda filosofia não é uma transcendência, a I<strong>de</strong>ia ou o Ser, mas o únicoreal: o hom<strong>em</strong>. É esta perspectiva que faz <strong>de</strong>signar a posição <strong>de</strong>Feuerbach <strong>de</strong> “humanismo ateu”. Não obstante, é <strong>em</strong> Hegel que seencontra o <strong>em</strong>brião <strong>de</strong>ste ponto <strong>de</strong> vista sen<strong>do</strong> necessário, segun<strong>do</strong>36 Ludwig FEUERBACH, Filosofia da Sensibilida<strong>de</strong>. Escritos (1839-1843), p. 175.37 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. [XIII];Ver ainda p. [XXV].38 Ludwig FEUERBACH, “Introdução” in Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong>Cristianismo, p. 20.39 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. [XIV].25


Feuerbach, <strong>de</strong>senterrar os fantasmas pois “os fantasmas são sombras<strong>do</strong> passa<strong>do</strong>” 40 e o “Espírito” hegeliano cria<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> é apenas umnome expressivo da totalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> fenómeno da história. O único fimreal é a Natureza on<strong>de</strong> o hom<strong>em</strong> pensa seres não finitos e a infinitu<strong>de</strong>,não por que existam fora da mente humana mas por razão dasqualida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Com a publicação <strong>de</strong> A Essência <strong>do</strong>Cristianismo “a tarefa <strong>de</strong>ste escrito é também a <strong>de</strong> provar que sob osmistérios sobrenaturais da religião se encontram verda<strong>de</strong>sinteiramente simples, naturais; […]” 41 ; “O hom<strong>em</strong> – eis o segre<strong>do</strong> dareligião – objectiva-se e torna a fazer <strong>de</strong> si objecto <strong>de</strong>sta essênciaobjectivada, transformada num sujeito. Ele pensa-se, é objecto parasi, mas como objecto <strong>de</strong> um objecto, <strong>de</strong> um outro ser. É o queacontece neste caso. O hom<strong>em</strong> é objecto <strong>de</strong> Deus” 42 ; “Deus é aessência separada e isolada, a essência mais subjectiva <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>,[…]” 43 . Daí que se apresente a <strong>do</strong>utrina justificativa <strong>do</strong> ateísmofeuerbachiano: “que o segre<strong>do</strong> da teologia é antropologia” 44 eA nossa tarefa mais essencial está assimcumprida. Reduzimos a essência extramundana,sobrenatural e supra-humana às componentes daessência humana como suas componentes fundamentais.Na conclusão, voltámos <strong>de</strong> novo ao princípio. O hom<strong>em</strong>é o começo da religião, o hom<strong>em</strong> é o centro da religião,o hom<strong>em</strong> é o fim da religião 45 .No contexto <strong>do</strong> século XIX, segunda meta<strong>de</strong>, o cerne <strong>do</strong>pensamento encontra-se na l<strong>em</strong>brança da religião e suas origens 46 . Asafirmações <strong>de</strong> Feuerbach assentam <strong>em</strong> <strong>test<strong>em</strong>unhos</strong> teológicos,judaicos, católicos, Doutores da Igreja, Sagradas Escrituras e outros <strong>de</strong>40 Ludwig FEUERBACH, “Prefácio” in A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 6.41 I<strong>de</strong>m, p. 4.42 I<strong>de</strong>m, p. 36.43 I<strong>de</strong>m, p. 37.44 I<strong>de</strong>m, p. 5.45 I<strong>de</strong>m, p. 222.46 Artigo sobre “Religião” in Enciclopédia Luso-Brasileira da Cultura, EditorialVerbo, Lisboa 1974, volume 16, coluna 240.26


cariz histórico-filosófico patentes nas suas obras 47 . É <strong>de</strong> referirtambém o protestantismo <strong>de</strong> Lutero, Melanchthon e Calvino 48 .Há uma relação hermenêutica com o texto que tenta substituiro mo<strong>do</strong> medieval (interpretação pela tradição, <strong>em</strong> senti<strong>do</strong> literal,simbólica, moral, analógica). Em Lutero há um senti<strong>do</strong> actualizante,seguro sen<strong>do</strong> este um caminho para o senti<strong>do</strong> antropológico pois otexto comporta um senti<strong>do</strong> performativo, intencionalida<strong>de</strong> prática 49 . AReforma <strong>de</strong> Lutero é ex<strong>em</strong>plo da afirmação da experiência da religiãoque preten<strong>de</strong> expulsar razões que se foram imiscuin<strong>do</strong> na religião,opon<strong>do</strong>-se a uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> venda, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> mais dá, contra a fé. Doponto <strong>de</strong> vista prático era a preocupação com a salvação futura, <strong>de</strong>comprar a possibilida<strong>de</strong> futura <strong>de</strong> pecar. Foi contra isto que <strong>em</strong>ergiu,que veio para o centro <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate, a religião. Quer dizer, com Luteroestá-se perante uma gran<strong>de</strong> virag<strong>em</strong>, mercê da Reforma que <strong>de</strong>u oprima<strong>do</strong> à intenção, aos direitos da consciência interior face àmaterialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> facto. Esta é que <strong>de</strong>termina, necessitan<strong>do</strong> dasubjectivida<strong>de</strong>. Lutero consi<strong>de</strong>rava que, na linha da <strong>de</strong>sconfiançarelativamente à escolástica, a razão ven<strong>de</strong>-se. Por isso o que éimportante é a relação com Deus 50 . Feuerbach situa-se na linha daReforma <strong>de</strong> Lutero. Feuerbach enriqueceu a segunda edição <strong>de</strong> AEssência <strong>do</strong> Cristianismo referin<strong>do</strong> mesmo a inclusão <strong>de</strong> muitas47 Os <strong>test<strong>em</strong>unhos</strong> aparec<strong>em</strong> ao longo da obra A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, sen<strong>do</strong>também referi<strong>do</strong>s <strong>em</strong> Apêndice, p. 337, da mesma obra.48 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. [XVI].49 I<strong>de</strong>m, p. [XVI]: “Lutero <strong>em</strong>ancipó al creyente sólo en el ámbito práctico,superan<strong>do</strong> y anulan<strong>do</strong> la contradicción católica entre la carne y el espíritu; pero, alencarecer extraordinariamente el papel <strong>de</strong> la fe, impidió la <strong>em</strong>ancipación teórica,abisman<strong>do</strong> al creyente en la contradicción entre la razón y la fe”.50 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La essencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. [XXV]:“En la esencia <strong>de</strong> la fe según Lutero introduce Feuerbach el principio <strong>de</strong>lsensualismo a través <strong>de</strong> su omnipresente afirmación <strong>de</strong> que el Dios <strong>de</strong> Lutero es unDios <strong>humano</strong>. […] lo que Dios es y hace lo es por y para nosotros. Por tanto, Dios esun ser esencialmente referi<strong>do</strong> al hombre. Pero esto significa que Dios tiene que serun ser <strong>de</strong> sentimientos <strong>humano</strong>s”.27


citações <strong>de</strong> Lutero 51 . Por meio <strong>de</strong> Lutero <strong>de</strong>svela a verda<strong>de</strong>ira essência<strong>do</strong> Cristianismo, fundamentan<strong>do</strong> no hom<strong>em</strong> os critérios da crítica àreligião, sen<strong>do</strong> o hom<strong>em</strong> o Deus <strong>do</strong> cristianismo e a antropologia osegre<strong>do</strong> da teologia, acima referi<strong>do</strong> 52 .Em Lutero há um senti<strong>do</strong> actualizante, seguro. Vai ser por aquique a Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> vai sobrevalorizar a moral, o senti<strong>do</strong>antropológico pois o texto comporta um senti<strong>do</strong> performativo,intencionalida<strong>de</strong> prática. Assim, por ex<strong>em</strong>plo, quan<strong>do</strong> lê Marcos 53 ,Jesus está a dirigir-se a Lutero e a nós, pois a mensag<strong>em</strong> é int<strong>em</strong>poral.O texto per<strong>de</strong> a tradição e interpela o leitor na primeira pessoa. Comono caso <strong>de</strong> Paulo 54 está-se perante uma leitura subjectiva que coloca osujeito no centro. É o que acontece <strong>em</strong> Lutero ao interrogar-se sobrepara que nos serve um Deus provi<strong>de</strong>nte 55 . T<strong>em</strong>-se, assim, ao contrário<strong>do</strong> catolicismo um Deus para o hom<strong>em</strong>, um hom<strong>em</strong>-Deus. Quer dizerpara o protestantismo só o hom<strong>em</strong> está <strong>em</strong> causa, sen<strong>do</strong> a antropologiao segre<strong>do</strong> da teologia e o ser finito é o el<strong>em</strong>ento constitutivo <strong>do</strong>infinito, o critério e a medida <strong>de</strong> Deus 56 . Neste senti<strong>do</strong> há na Bíbliauma preciosida<strong>de</strong>: a “proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se encontrar nela tu<strong>do</strong> o que sequiser. O que outrora existiu, naturalmente que já lá não está agora.[…] A revelação divina é tão variável quanto a opinião humana.51 Carta <strong>de</strong> Feuerbach a seu editor, O. Wigand, in Ludwig FEUERBACH, Escritos entorno a La essencia <strong>de</strong>l cristianismo, Estu<strong>do</strong> preliminar, traducción y notas <strong>de</strong> LuisMiguel Arroyo Arrayás, Editorial Tecnos, Madrid, 2001, nota 7, p. [XVIII].52 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, pp. 5, 36 e 366.53 Bíblia Sagrada, Editora Vozes, Petrópolis, 2005 50 , Mt, 3,2, “ […] Convertei-vosporque está próximo o reino <strong>do</strong>s céus”. [Daqui <strong>em</strong> diante citamos a obra <strong>do</strong> seguint<strong>em</strong>o<strong>do</strong>: Bíblia Sagrada].54 Bíblia Sagrada, Mt, 19, 21: “Se queres ser perfeito, vai, ven<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> que tens, dá odinheiro aos pobres, e terás um tesouro nos céus; <strong>de</strong>pois v<strong>em</strong> e segue-me”.55 “Lutero in Walch, Philosophisches Lexicon, art. Vorsehung” in “Apêndice” inLudwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 365.56 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 366: “ “Deus vê o hom<strong>em</strong>”significa que o hom<strong>em</strong> apenas se vê a si mesmo <strong>em</strong> Deus; […] Portanto, a plenitu<strong>de</strong>da essência divina é a plenitu<strong>de</strong> da essência humana – a divinda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus é,portanto, a Humanida<strong>de</strong>. […] Eu existo para Deus, porque Deus existe para mim”.28


T<strong>em</strong>pora mutantur” 57 . O texto t<strong>em</strong> uma finalida<strong>de</strong> post morte,salvação última – recondução. O texto é coloca<strong>do</strong> à mercê dainterpretação, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> haver uma espécie <strong>de</strong> magistério<strong>do</strong>utrinário encanta<strong>do</strong>. O texto t<strong>em</strong> tantos senti<strong>do</strong>s quantos os que ohom<strong>em</strong> conseguir encontrar. Eis-nos perante um Feuerbach her<strong>de</strong>iro e<strong>de</strong> Lutero e reforma<strong>do</strong>r. A reforma estava por fazer, pois a religião eravista como a expressão da miséria social 58 .Deus como “pro nobis” ou abertura ao sensualismoFeuerbach diz-nos que o Deus <strong>de</strong> Lutero é <strong>humano</strong> 59 .Feuerbach é <strong>de</strong> opinião que a essência da religião, neste caso dareligião cristã, é a essência <strong>do</strong>s sentimentos <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Assim a<strong>do</strong>utrina luterana realçava a absoluta transcendência e po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deusrelativamente ao hom<strong>em</strong> o qual estava submeti<strong>do</strong> ao pecarPues ¿como podría el hombre por sí mismo llegara una <strong>do</strong>ctrina que le <strong>de</strong>grada y le rebaja hasta lo másprofun<strong>do</strong>, que, al menos ante Dios, […] le niega57 I<strong>de</strong>m, p. 356. Ver ainda Melachthon, Epistola Simmoni Grynaeo, in “Apêndice”,in Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 368: “Saepe fatorumsaevitiam Ienit Deus, placatum piorum votis”.58 Artur MORÃO “Apresentação” in Karl MARX, Para a Crítica da filosofia <strong>do</strong>direito <strong>de</strong> Hegel, (Tradução <strong>de</strong> Artur Morão), in (www.lusosofia.net), Covilhã,2008, p. 6; Ver ainda p. 4: “A crítica da religião liberta o hom<strong>em</strong> da ilusão, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>que ele pense, actue e configure a sua realida<strong>de</strong> como hom<strong>em</strong> que per<strong>de</strong>u as ilusõese recuperou o entendimento, a fim <strong>de</strong> que ele gire à volta <strong>de</strong> si mesmo e, assim, àvolta <strong>do</strong> seu verda<strong>de</strong>iro sol; Ver ainda p. 14 “ […] De facto, o passo revolucionárioda Al<strong>em</strong>anha é teórico – é a Reforma. […] Lutero venceu, s<strong>em</strong> dúvida, a servidãopela <strong>de</strong>voção. […] Abalou a fé na autorida<strong>de</strong>, porque restaurou a autorida<strong>de</strong> da fé[…] Mas, <strong>em</strong>bora o protestantismo não fosse a verda<strong>de</strong>ira solução, pôs pelo menos oprobl<strong>em</strong>a <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> correcto.[…]”.http://lusosofia.net/textos/marx_karl_para_a_critica_da_filosofia_<strong>do</strong>_direito_<strong>de</strong>_hegel.pdf. [Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 28 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 2009]. Ver ainda “Capítulo II” in LucienFÈBVRE, Martinho Lutero, Um Destino, Livraria Bertrand, (Tradução <strong>de</strong> MariaElizabeth Cabral), Sobre a 4.ª Edição francesa, Lisboa, 1976.59 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. 3. Verainda p. [XXV].29


adicalmente toda gloria, to<strong>do</strong> mérito, oda virtud yfuerza <strong>de</strong> voluntad, toda legitimidad y credibilidad, todarazón e inteligencia? 60Feuerbach serve-se precisamente da distinção entre osvocábulos “essência” e “aparência”, patente <strong>em</strong> A Essência <strong>do</strong>Cristianismo e na sua crítica religiosa, com o intuito <strong>de</strong> <strong>de</strong>svelar averda<strong>de</strong>ira essência. No probl<strong>em</strong>a é a essência religiosa eantropológica <strong>do</strong> cristianismo relativamente à sua aparência teológica.Segun<strong>do</strong> Lutero Deus e os homens são diferentes, pois “Dioses eterno, justo, santo, verda<strong>de</strong>ro y, en suma, to<strong>do</strong> lo bueno. Por elcontrario, el hombre es mortal, injusto, mentiroso, lleno <strong>de</strong> vicios,peca<strong>do</strong>s y perversidad. […] Esto es el hombre consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> frente aDios” 61 . Por conseguinte à riqueza, à perfeição <strong>de</strong> Deus opõe-se amiséria e a imperfeição <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Quer dizer o que é referi<strong>do</strong> a Deusé tira<strong>do</strong> ao hom<strong>em</strong> e vice-versa. Quanto mais se engran<strong>de</strong>ce Deusmais se diminui o hom<strong>em</strong>. Quanto mais se enriquece o hom<strong>em</strong> maisse <strong>em</strong>pobrece Deus. Se ter Deus implica dizer não ao hom<strong>em</strong>, ter ohom<strong>em</strong> implica dizer não a Deus. A pobreza <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> é a base daimportância <strong>de</strong> Deus. A gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> Deus (eterno, justo, santo,verda<strong>de</strong>iro, sábio, bom, po<strong>de</strong>roso, é e permanece na eternida<strong>de</strong>, cheio<strong>de</strong> graça) assenta na diminuição <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> (mortal, injusto,mentiroso, necessita<strong>do</strong>, cheio <strong>de</strong> vícios, peca<strong>do</strong>s, perversida<strong>de</strong>, débil,vive no meio da morte, cheio <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraça): “La naturaleza <strong>de</strong> Diosestá en que él manifiesta su majestad y fuerza divinas a través <strong>de</strong> lanulidad y la <strong>de</strong>bilidad” 62 . O hom<strong>em</strong> é, assim, ser para Deus e perante60 I<strong>de</strong>m, p. 4.61 (Lutero, Escritos y obras, Leipzig, 1729, tomo XVI, página 536) in LudwigFEUERBACH, Escritos en torno a la esencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. 4.62 (Lutero, Escritos y obras, Leipzig, 1729, tomo VI, página 60) in LudwigFEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, pp. 5, 6. Ver aindaBíblia Sagrada, Paulo, 2Cr. 12: “ […] Basta-te a minha graça, porque é na fraquezaque a força chega à perfeição”. Portanto prefiro orgulhar-me das minhas fraquezaspara que habite <strong>em</strong> mim a força <strong>de</strong> Cristo. Eis porque sinto alegria nas fraquezas,nos insultos, nas necessida<strong>de</strong>s […]”. Cf. Paulo, 2Cr. 11: “Qu<strong>em</strong> está fraco s<strong>em</strong> que30


ele. Na <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> está a razão <strong>de</strong> ser da força e na harmonia entre<strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> e força para se ser Cristo <strong>de</strong> outro, nas palavras <strong>de</strong> Lutero.Tu<strong>do</strong>, para Lutero, está prova<strong>do</strong> nas Sagradas Escrituras pois “OSenhor é benevolente e justo, nosso Deus é misericordioso”; “ […] eTo<strong>do</strong>s os homens são mentirosos” 63 . Daí a advertência a Israel e areferência ao facto <strong>de</strong> o hom<strong>em</strong> viver na ausência <strong>de</strong> glória: “To<strong>do</strong>specaram e to<strong>do</strong>s estão priva<strong>do</strong>s da glória <strong>de</strong> Deus, e sãogratuitamente justifica<strong>do</strong>s pela graça, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> da re<strong>de</strong>nçãorealizada por Jesus Cristo” 64 . Quer isto dizer que Lutero consi<strong>de</strong>raque a glória <strong>de</strong> Deus t<strong>em</strong> <strong>de</strong> estar <strong>em</strong> junção com a negativida<strong>de</strong> <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>, os predica<strong>do</strong>s negativos acima referi<strong>do</strong>s. Estamos perante anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus assente na posse por Ele <strong>do</strong> que os homens nãopossu<strong>em</strong> n<strong>em</strong> são. Deste mo<strong>do</strong>, que se ganha ou per<strong>de</strong> com aexistência ou não <strong>de</strong> Deus? No entanto, se falta o que faz Deus, se opróprio Deus não existe, logo Ele é necessário como no caso dasqualida<strong>de</strong>s essenciais. Mas essas qualida<strong>de</strong>s exist<strong>em</strong> no hom<strong>em</strong>?Nesse aspecto há a referência à “supr<strong>em</strong>a liberda<strong>de</strong>” comoliberda<strong>de</strong>: “liberdad completa, <strong>de</strong>cidida, verda<strong>de</strong>ra, correspondientecom el concepto <strong>de</strong> liberdad” 65 . Por isso “livre arbítrio” é umsintagma, um nome divino pois “que nadie <strong>de</strong>biera <strong>de</strong>sear llevar, puesúnicamente el Señor Dios hace (como dice el salmo 115) lo que quierey como quiere, en el cielo, en la tierra, en el mar y en todas lasprofundida<strong>de</strong>s” 66 . Se Deus é ser supr<strong>em</strong>o <strong>em</strong> liberda<strong>de</strong> então tambémaqui a liberda<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> é diminuída. Assim, dizer isso <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>é, segun<strong>do</strong> Lutero, qualificá-lo <strong>de</strong> Deus. Deste mo<strong>do</strong> ser Deussignifica ter o que o hom<strong>em</strong> não t<strong>em</strong>, pelo que atribuir ao hom<strong>em</strong>eu esteja com ele? […] Se é preciso contar vantagens, contarei vantagens da minhafraqueza”.63 Bíblia Sagrada, Sl 116, 5-11.64 I<strong>de</strong>m, Rom. 3, 23.65 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. 8.66 Ibi<strong>de</strong>m.31


proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Deus é superar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, alicerce dareligião.No seguimento po<strong>de</strong> afirmar-se que a religião é um liame entreDeus e o hom<strong>em</strong>, significan<strong>do</strong> isto que assenta numa necessida<strong>de</strong>. Noentanto, ter as qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Deus é o mesmo que não faltar nada, poisfaltan<strong>do</strong> Deus este é uma necessida<strong>de</strong> para o hom<strong>em</strong>. Por isso “Estaimposibilidad, esta necesidad <strong>de</strong> que cada afirmación en Diospresupone una negación en el hombre, es el fundamento sobre el queLutero ha construi<strong>do</strong> su edificio y <strong>de</strong>rrui<strong>do</strong> la Iglesia católicaromana” 67 . Na mesma linha <strong>de</strong> pensamento, Lutero consi<strong>de</strong>ra que obom v<strong>em</strong> unicamente <strong>do</strong> bom, sen<strong>do</strong> o hom<strong>em</strong>. Aqui surge Cristocomo qu<strong>em</strong> reconcilia Deus com o hom<strong>em</strong> pelo que como po<strong>de</strong> ohom<strong>em</strong> apagar os peca<strong>do</strong>s? Se o hom<strong>em</strong> os po<strong>de</strong> apagar, para que foia morte <strong>de</strong> Cristo na cruz? Neste aspecto Lutero também se refere à fé<strong>do</strong>s ju<strong>de</strong>us que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> as obras para apagar os peca<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> istonegar Cristo 68 . É a questão da fé e das obras: <strong>em</strong> que se sustém ohom<strong>em</strong>? Nas obras ou na graça <strong>de</strong> Deus? “Las <strong>do</strong>s cosas no se toleranal ti<strong>em</strong>po y no pue<strong>de</strong>n estar juntas: creer que nosotros ten<strong>em</strong>os lagracia <strong>de</strong> Dios a causa <strong>de</strong> Cristo, sin mérito nuestro, y sostener queeso también ten<strong>em</strong>os que alcanzarlo por las obras. Pues, si eso lomereciéramos por nosotros, entonces no <strong>de</strong>beríamos nada a Cristo” 69 .Lutero toma o la<strong>do</strong> <strong>de</strong> Deus pois “Dios es para él, como ya h<strong>em</strong>osvisto, to<strong>do</strong>; el hombre, nada” 70 . Trata-se da relação acima referida:força <strong>de</strong> Deus e <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. De um Deus que actua para ohom<strong>em</strong>, tornan<strong>do</strong> este supérfluo. Ou Cristo ou o hom<strong>em</strong>.O que o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> <strong>em</strong> Deus não t<strong>em</strong> <strong>em</strong> si próprio, mas Deusé <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> como essencialmente, como algo que lhe falta,67 I<strong>de</strong>m, p. 11.68 (Lutero, Escritos y obras, Leipzig, 1729, t. XVIII, p. 45) in Ludwig FEUERBACH,Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. 12.69 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. 13.70 I<strong>de</strong>m, p. 14.32


indispensável. Em seu aspecto a fé luterana e a fé católicaass<strong>em</strong>elham-se se consi<strong>de</strong>radas na aparência <strong>do</strong> seu objecto econteú<strong>do</strong>, pois Deus “por nosotros los hombres y por nuestrasalvación se ha hecho hombre, por nosotros fue crucifica<strong>do</strong>, pa<strong>de</strong>ció,fue sepulta<strong>do</strong> y resucitó” 71 . Eis aqui a estrutura <strong>de</strong> ambas as fés, osist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Santo Agostinho. Porém, Lutero vai separar-se <strong>de</strong>ste cantopois vai colocar toda a sua incidência <strong>em</strong> “Deus pro nobis in Christo”,“para nós”. O conteú<strong>do</strong> essencial e objecto da fé encontra-se segun<strong>do</strong>Lutero na incarnação <strong>de</strong> Cristo b<strong>em</strong> como na sua paixão. Porquesofreu Cristo? “Pues, si Cristo ha sufri<strong>do</strong> realmente por nosotros,entonces nuestro sufrir es superfluo y vano; lo que <strong>de</strong>be ser alanza<strong>do</strong>a través <strong>de</strong> nuestro sufrimiento ya es alcanza<strong>do</strong> a través <strong>de</strong>lsufrimiento <strong>de</strong> Cristo, o – un terrible o – Cristo a sufri<strong>do</strong>inútilmente” 72 . O sofrimento <strong>de</strong> Cristo é o sofrimento <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>.Assim, Cristo ao ter sofri<strong>do</strong> pelo hom<strong>em</strong>, nós já sofr<strong>em</strong>os nele vistoque a acção <strong>de</strong> Cristo pelos homens foi uma acção no lugar <strong>de</strong>stes. Osofrimento é um ex<strong>em</strong>plo para o hom<strong>em</strong> imitar, com paciência eresignação. Cristo sofreu “por nós” e isto libertou o hom<strong>em</strong> <strong>do</strong>sofrimento, da <strong>do</strong>r. O sofrimento <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> é como uma força esenti<strong>do</strong> morais, pois não religiosos, não no objecto “sino en nosotrosradica el fin y el senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>l objeto <strong>de</strong> la fe. No que Cristo sea Cristo,sino que él es Cristo por ti, no que él ha sufri<strong>do</strong> y muerto, sino que élha sufri<strong>do</strong> por ti y muerto por ti: esto es lo esencial” 73 . É que Cristo é71 I<strong>de</strong>m, p. 19.72 I<strong>de</strong>m, p. 20.73 I<strong>de</strong>m, p. 21. Ver ainda Ludwig FEUERBACH, Princípios da Filosofia <strong>do</strong> Futuro, p.5: “A filosofía <strong>do</strong> <strong>futuro</strong> t<strong>em</strong> a tarefa <strong>de</strong> reconduzir a filosofía <strong>do</strong> reino das “almaspenadas” para o reino das almas encarnadas”, das almas vivas”; I<strong>de</strong>m, Princípio 1, p.6: “A tarefa <strong>do</strong>s t<strong>em</strong>pos mo<strong>de</strong>rnos foi a realização e a humanização <strong>de</strong> Deus – atransformação e a resolução da teologia na antropologia”; I<strong>de</strong>m, Princípio 2: “Omo<strong>do</strong> religioso ou prático <strong>de</strong>sta humanização foi o Protestantismo. O Deus que é ohom<strong>em</strong>, portanto o Deus <strong>humano</strong>, isto é, Cristo – é apenas o Deus <strong>do</strong>Protestantismo. O Protestantismo já não se preocupa, como o Catolicismo, com oque Deus é <strong>em</strong> si mesmo, mas apenas com o que Ele é para o hom<strong>em</strong>; por isso, jánão t<strong>em</strong> como aquele nenhuma tendência especulativa ou cont<strong>em</strong>plativa; já não é33


<strong>em</strong> simultâneo Deus e hom<strong>em</strong>, porque é para os homens, “para nós”.Cristo nasceu, sofreu, morreu e ressuscitou pelos homens, “por nós”.Para Feuerbach o que Lutero diz estava presente mas não expressa<strong>do</strong>na antiga fé:Ciertamente, lo que Lutero dice ya estabaconteni<strong>do</strong> en la antigua fe, pero aún no estabaexpresa<strong>do</strong> ni dicho sin reservas, al menos no <strong>de</strong> unamanera tan <strong>de</strong>finitiva, tan aprehensible, tan popular.Lutero ha si<strong>do</strong> el primero en <strong>de</strong>svelar el secreto <strong>de</strong> la fecristiana 74 .“Pro nobis” Cristo fez-se Deus-hom<strong>em</strong>, sofreu, é Deus,cria<strong>do</strong>r – por nós Cristo é o que é. Deus é Deus só enquanto nossoDeus. A palavra Deus significa o hom<strong>em</strong>, porque “en la fe en Dioscomo un ser esencialmente referi<strong>do</strong> a los hombres […]” 75 assenta a fépara Lutero. Por isso “ […] quan<strong>do</strong> apareceu a bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus,nosso Salva<strong>do</strong>r, e seu amor para com to<strong>do</strong>s, ele nos salvou, não porcausa das obras <strong>de</strong> justiça […], mas por sua misericórdia, […]” 76 .Deste mo<strong>do</strong> ter um Deus é um refúgio das necessida<strong>de</strong>s, é terconfiança no coração, faz o b<strong>em</strong> e é bom, verda<strong>de</strong>iro e isso otest<strong>em</strong>unham, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> rico, “ […] las obras y liturgias <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s lospueblos testimonian esto: que ser Dios no es otra cosa sino hacer elbien a los hombres. […]” 77 . Deus é bom “pro nobis”, <strong>em</strong> benefício <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>, <strong>de</strong> nós, porque Deus pensa <strong>em</strong> nós, é cria<strong>do</strong>r, pai e Ele nosquer ao querer a existência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para nós, on<strong>de</strong> nada está contrao hom<strong>em</strong>. Significa isto que Deus é <strong>de</strong> sentimentos <strong>humano</strong>s 78 , nãoteologia – é essencialmente só cristologia, isto é, antropologia religiosa”. Ver aindaLudwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, pp. 4 e 222.74 I<strong>de</strong>m, p. 23.75 I<strong>de</strong>m, p. 24.76 Bíblia Sagrada, Tt, 3, 4-5.77 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. 25.78 I<strong>de</strong>m, p. 35, 36; Ver ainda pp. 37, 38, on<strong>de</strong> Feuerbach r<strong>em</strong>ete o sentimento<strong>humano</strong> para a sensibilida<strong>de</strong>: “Don<strong>de</strong> no hay oí<strong>do</strong> tampoco hay lamentos, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> nohay ojos tampoco hay lágrimas; sin pulmones no se suspira y sin sangre no palpita34


<strong>em</strong> senti<strong>do</strong> individual, mas no género, pois este é uma medidaabsoluta e o que é bom para o género é-o também para animais eplantas. Como sab<strong>em</strong>os que Deus é um ser para par nós, bom, <strong>de</strong>sentimentos <strong>humano</strong>s? Pela manifestação <strong>de</strong> Deus como hom<strong>em</strong> <strong>em</strong>Cristo, como <strong>humano</strong>. E, assim, na humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo repousa ahumanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Deus como um ser “pro nobis”, para o hom<strong>em</strong>,é um ser para os senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. A divinda<strong>de</strong> é predica<strong>do</strong> dahumanida<strong>de</strong> e, por isso, po<strong>de</strong> falar-se <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> – Deus. Estamos,assim, perante o afirmar <strong>de</strong> uma nova filosofia, logo um aban<strong>do</strong>nar <strong>do</strong>catolicismo e <strong>de</strong> Hegel, ten<strong>do</strong> por base o real da<strong>do</strong> no sensível 79 . É <strong>em</strong>Cristo a humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus como hom<strong>em</strong>, como ser sensível, comorealida<strong>de</strong>.Cristo: eis o verda<strong>de</strong>iro objecto da fé cristã b<strong>em</strong> como da féluterana, no geral, Cristo pois o que Cristo é <strong>em</strong> si e para si é “pronobis”, porque o que é d`Ele é <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, nosso. O alicerce <strong>de</strong> Deusestá no hom<strong>em</strong>, pressupõe o hom<strong>em</strong>, porque como diz Mateus: “Elenão é Deus <strong>de</strong> mortos mas <strong>de</strong> vivos” 80 .Será esta a lógica da fé?un corazón. […] La garantía y la verdad <strong>de</strong> la bondad y <strong>de</strong> la misericordia, esto es,<strong>de</strong> la humanidad, <strong>de</strong> Dios radica, por tanto, sólo en Cristo como la realidad sensible<strong>de</strong> Dios”; e Lutero dirá: “Un Dios sin carne no serve par nada”. Na incarnação <strong>de</strong>Cristo, Deus é sensível e na humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo, Deus é para nós. O amor é aessência <strong>de</strong> Deus para nós <strong>em</strong> Cristo, pelo que na religião o hom<strong>em</strong> procura por sipróprio. Esta é a forma <strong>de</strong> ateísmo da religião que Feuerbach quer <strong>de</strong>svelar pelaanálise da fé luterana.79 Ludwig FEUERBACH, Princípios da Filosofia <strong>do</strong> Futuro, Princípio 34, pp. 55, 56:“A nova filosofia funda-se na verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> amor, na verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> sentimento. É noamor, no sentimento <strong>em</strong> geral, que cada hom<strong>em</strong> reconhece a verda<strong>de</strong> da novafilosofia. A nova filosofía, relativamente à sua base, nada mais é <strong>do</strong> que a essência<strong>do</strong> sentimento elevada à consciência – afirma apenas na e com a razão o que cadahom<strong>em</strong> – o hom<strong>em</strong> real – reconhece no coração. Ela é o coração eleva<strong>do</strong> aoentendimento. O coração não quer objectos e seres abstractos, metafísicos outeológicos – quer objectos e seres reais e sensíveis”; I<strong>de</strong>m, Princípio 36, p 55: “anova filosofia começa com a proposição: sou um ser real, um ser sensível; sim, ocorpo na sua totalida<strong>de</strong> é o meu eu, a minha própria essência”. [Consula<strong>do</strong> <strong>em</strong> 28 <strong>de</strong>Julho <strong>de</strong> 2007].80 Bíblia Sagrada, Mt 22, 32.35


2. Hegel – antecipação/preparação <strong>de</strong>FeuerbachComo to<strong>do</strong>s os filósofos i<strong>de</strong>alistas al<strong>em</strong>ães Feuerbach começapela teologia protestante 81 . Escreveu um estu<strong>do</strong> “A essência <strong>do</strong>protestantismo”, concepção hegeliana <strong>do</strong> protestantismo. A esquerdahegeliana, her<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>sta concepção, consi<strong>de</strong>rava que “elprotestantismo es la expresión religiosa <strong>de</strong>l espíritu libre y autónomo<strong>de</strong> la mo<strong>de</strong>rnidad, por el que el hombre se liberó <strong>de</strong> la arbitrariedad<strong>de</strong> la Iglesia […]” 82 . É preciso ter presente quão importante foi arelação <strong>de</strong> Feuerbach com Hegel (1823-1825) e que os escritos dajuventu<strong>de</strong> <strong>de</strong>veriam ser a manifestação da assimilação <strong>do</strong> pensamentohegeliano 83 . Feuerbach <strong>de</strong>ixa Hei<strong>de</strong>lberg e dirige-se para aUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Berlim. Ele escreve na sua correspondência :81 Karl LÖWITH, De Hegel à Nietzsche, p. 96 ; « Comme tous les philosophesidéalistes all<strong>em</strong>ands, Feuerbach parti <strong>de</strong> la théologie protestante, qu`il étudia àHei<strong>de</strong>lberg auprès <strong>de</strong> l`hégélien Daub et <strong>de</strong> Paulus. De l`enseign<strong>em</strong>ent <strong>de</strong> ce <strong>de</strong>rnieril écrit dans une lettre à ses parents que c`est une toile d`araignée <strong>de</strong> sophismes et unbattoir à linge qui torture à ce point les expressions qu`elles finissent par avouerquelque chose qu`elles n`ont jamais voulu dire. Dégoûté <strong>de</strong> cette « expectorationd`un esprit mala<strong>de</strong> », il souhaita aller à Berlin où, […] ». Ver ainda ManuelCABADA, El Humanismo pr<strong>em</strong>arxista <strong>de</strong> L. Feuerbach, La Editorial Católica, S. A.,Madrid, 1975, pp. 16 e 149.82 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. [XIV].83 Manuel CABADA, El Humanismo pr<strong>em</strong>arxista <strong>de</strong> L. Feuerbach, pp. 151-152:“[…] Por medio <strong>de</strong> Hegel llegué yo a tomar conciencia <strong>de</strong> mí mismo y <strong>de</strong>l mun<strong>do</strong>.A él le llamaba yo entonces mi segun<strong>do</strong> padre, como a Berlín la ciudad <strong>de</strong> minacimiento espiritual”.36


J`ai l`intention…<strong>de</strong> consacrer essentiell<strong>em</strong>ent ces<strong>em</strong>estre à la philosophie afin d`achever pour l`essentielrapi<strong>de</strong>ment le cours obligatoire <strong>de</strong> philosophie et d`yacquérir profit et réflexion. C`est pourquoi je suis lescours <strong>de</strong> logique, <strong>de</strong> métaphysique et <strong>de</strong> philosophie <strong>de</strong>la religion <strong>de</strong> Hegel…J`aime infiniment les cours <strong>de</strong>Hegel encore que je n`en sois pas pour autant décidé àme faire hégélien 84 .Feuerbach <strong>de</strong>screve a vida académica, mais positiva, comodiscípulo <strong>de</strong> Hegel, <strong>do</strong> que outrora como aluno <strong>de</strong> Daub:Mucho <strong>de</strong> lo que me resultaba todavía oscuroe ininteligible con Daub o que me parecía aisla<strong>do</strong> o<strong>de</strong>sconecta<strong>do</strong> <strong>de</strong>l conjunto, lo he comprendi<strong>do</strong>ahora en las pocas clases que he teni<strong>do</strong> con Hegel,y me parece que he capta<strong>do</strong> sus íntimas conexiones.Veo así crecer en mí la planta cuya s<strong>em</strong>illa habías<strong>em</strong>bra<strong>do</strong> Daub 85 .Mas a vida escolar com Hegel foi s<strong>em</strong>elhante a um segun<strong>do</strong>nascimento, pois numa carta a seu professor <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>lberg, Daub,agra<strong>de</strong>ce-lhe a iniciação no pensamento <strong>de</strong> Hegel:[…] Son las mismas clases <strong>de</strong> Hegel las qu<strong>em</strong>i obligan a ponerme en contacto con usted, puesmi breve estancia en Berlín tienne para mí laimportancia <strong>de</strong> una eternidad, <strong>de</strong> momento estelar<strong>de</strong> mi vida; Berlín se ha converti<strong>do</strong> para mí enBelén <strong>de</strong> un nuevo mun<strong>do</strong>. Y si yo pue<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>rarlas clases <strong>de</strong> Hegel, aun tenien<strong>do</strong> que soportar lapesada cruz <strong>de</strong>l concepto y los rayos y truenos <strong>de</strong> ladialéctica, como la mayor felicidad que yo podríajamás encontrar…, tengo que constatar que esto selo <strong>de</strong>bo única y exclusivamente a su [<strong>de</strong> usted]talent. 8684 Karl LÖWITH, De Hegel à Nietzsche, p. 96.85 Manuel CABADA, El Humanismo pr<strong>em</strong>arxista <strong>de</strong> L. Feuerbach, pp. 149, 150.86 I<strong>de</strong>m, nota 138, p. 150.37


Finaliza<strong>do</strong>s os estu<strong>do</strong>s hegelianos, <strong>de</strong>ixa a teologia e passa àfilosofia s<strong>em</strong>, no entanto, <strong>de</strong>saparecer a questão religiosa. Na sua Tese<strong>de</strong> <strong>do</strong>utoramento Feuerbach refere a importância <strong>do</strong> princípio damaterialida<strong>de</strong> sensível 87 , falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> passo <strong>de</strong> rebaixamento <strong>de</strong> Deus àrazão. Trata-se <strong>do</strong> processo <strong>do</strong> superior ao inferior, <strong>do</strong> abstracto aoconcreto, “<strong>de</strong> lo suprasensible a lo sensible” 88 . Feuerbach irá oporuma nova filosofia (uma filosofia que não comece por si, mas pela nãofilosofia, pelo sensualismo) à filosofia <strong>de</strong> Hegel nas Teses para areforma da filosofia quan<strong>do</strong> afirma:O filósofo <strong>de</strong>ve introduzir no texto dafilosofia aquilo que no hom<strong>em</strong> não filosofa, aquiloque, pelo contrário é contra a filosofia, que se opõeao pensamento abstracto, portanto, aquilo que <strong>em</strong>Hegel se reduz a simples nota. Só assim a filosofiase tornará a força universal, s<strong>em</strong> antagonismos,irrefutável e irresistível 89 .Quer dizer Feuerbach ao <strong>de</strong>sviar-se <strong>do</strong> caminho e orientaçãohegelianos, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> preocupar-se unicamente com questõesteológicas, mas s<strong>em</strong>pre os seus escritos se encontram inseri<strong>do</strong>s nareligião e na teologia, orientan<strong>do</strong>-se por um novo méto<strong>do</strong>, pareci<strong>do</strong> aoda anatomia. O que a partir <strong>de</strong> agora estava <strong>em</strong> causa era ir mais além,87 Karl LÖWITH, De Hegel à Nietzsche, pp. 96-97: “il insiste égal<strong>em</strong>ent déjà sur leprincipe <strong>de</strong> la « matérialité sensible » car les idées ne <strong>do</strong>ivent pas se tenir au-<strong>de</strong>ssusdu matériel dans l`<strong>em</strong>pire du général, mais au contraire <strong>de</strong>scendre du « firmament <strong>de</strong>leur pureté incolore » et <strong>de</strong> « l`unité avec elle-même » vers une vue immédiate quipénètre le particulier, afin <strong>de</strong> s`incorporer le <strong>do</strong>nné <strong>de</strong>s phénomènes apparents. Lepure logos a besoin d`une « Incarnation », l`Idée réclame une « réalisation » et une« mise au mon<strong>de</strong> ». Il justifie son désir <strong>de</strong> ramener l`Idée sur terre, en déclarant quece désir est « accordé avec l`époque » ou, « ce qui est la même chose », fondé surl`esprit même <strong>de</strong> la philosophie hégélienne, car ce n`est pas là affaire d`une école,mais affaire <strong>de</strong> l`humanité ».Ver ainda Manuel CABADA, El Humanismopr<strong>em</strong>arxista <strong>de</strong> L. Feuerbach, pp. 31, 32: “<strong>de</strong>l mismo mo<strong>do</strong> que la razón une entre sía to<strong>do</strong>s los hombres y por medio <strong>de</strong> ella participa el hombre <strong>de</strong> la humanidad entera,así une la especie entre sí a los hombres, dán<strong>do</strong>le a cada uno conciencia <strong>de</strong> símisma”.88 Manuel CABADA, El Humanismo pr<strong>em</strong>arxista <strong>de</strong> L. Feuerbach, p. 18.89 Ludwig FEUERBACH, Teses provisórias para a reforma da Filosofia, p. 11.[Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 28 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 2009].38


Deus, o cristianismo e <strong>de</strong>struir as concepções que <strong>do</strong>minaram até ess<strong>em</strong>omento, concepções gerais, universais (acerca <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, Deus, ot<strong>em</strong>po, a morte, o aqui, o Além, o absoluto) e que eram tidas comobase, fundamento da história e da <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> perfeita <strong>de</strong> religião universal,para dar importância ao particular, um estar no mun<strong>do</strong>. E este aspecto« Il justifie son désire <strong>de</strong> ramener l`Idée sur terre, en déclarant que cedésir est « accordé avec l`époque » ou, « ce qui est la même chose »,fondé sur l`esprit <strong>de</strong> la philosophie hégélienne, car ce n`est pas làaffaire d`une école, mais affaire <strong>de</strong> l`humanité » 90 . Trata-se <strong>de</strong> umméto<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconstrução, analítico, <strong>de</strong>svela<strong>do</strong>r a colocar <strong>em</strong> práticapor Feuerbach.Ao contrário <strong>de</strong> Feuerbach, Hegel afirma toda a sua confiançana razão ao evi<strong>de</strong>nciar a existência <strong>do</strong> “Conceito” totalmente separa<strong>do</strong><strong>do</strong> real sen<strong>do</strong> no cristianismo que a “unida<strong>de</strong> e a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> danatureza divina e da natureza humana” se apresentam como assuntoda “intuição” 91 . Para Hegel a realida<strong>de</strong> efectiva é não po<strong>de</strong>r sercontestada por nenhuma imediatida<strong>de</strong>, porque ela é a imediatida<strong>de</strong>reflectida: “La réalité effective se tient égal<strong>em</strong>ent plus haut quel`existence. Celle-ci est bien l`immédiateté issue du fon<strong>de</strong>ment et <strong>de</strong>sconditions, ou <strong>de</strong> l`essence et <strong>de</strong> sa réflexion. Elle est en soi ce qu`estla réalité effective, une réflexion réelle, mais elle n`est pas encorel`unité posée <strong>de</strong> la réflexion et <strong>de</strong> l`immédiateté” 92 . Deus é omovimento <strong>de</strong> que resulta o pensamento, a física e as forças queoriginam a história, expressan<strong>do</strong>-se pela figura fechada e imóvel.Deus é uma perfeição para além <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, numa espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>sertoda imensa eternida<strong>de</strong>, Deus é a substância e todas as coisas. Qual90 Karl LÖWITH, De Hegel à Nietzsche, p. 97.91 Kostas PAPAIOANNOU, Hegel, (Tradução <strong>de</strong> Ana Maria Patacho), EditorialPresença, Lisboa, 1964, p.47. [Daqui <strong>em</strong> diante citamos a obra <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>:Kostas PAPAIOANNOU, Hegel, p. x].92 G.W.F.HEGEL, Science <strong>de</strong> la Logique, in François CHATELET, Hegel, Éditions duSeuil, Paris, 1968, p. 97.39


Espinosa representava a natureza como um conjunto <strong>de</strong> modificações<strong>de</strong> uma substância infinita. Daí que para Hegel quan<strong>do</strong> alguémcomeça a filosofar t<strong>em</strong> que passar pela escola <strong>de</strong> Espinosa, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong>banhar-se no éter <strong>em</strong> que tu<strong>do</strong> se encontra submerso, poisEspinoza é um ponto crucial na filosofiamo<strong>de</strong>rna. A alternativa é: espinozismo ou não-filosofia(…) Quan<strong>do</strong> se começa a filosofar <strong>de</strong>ve-seprimeiramente ser espinozista. A alma <strong>de</strong>ve banhar-seneste éter <strong>de</strong> uma substância única na qual tu<strong>do</strong> o que sesupôs verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sapareceu. To<strong>do</strong>s os filósofos<strong>de</strong>verão chegar a essa negação <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> o que éparticular; é a libertação <strong>do</strong> espírito e o seu fundamentoabsoluto 93 .É <strong>de</strong> referir que Feuerbach vai recuperar Espinosa como oprimeiro materialista <strong>do</strong> <strong>futuro</strong> 94 . Mas voltan<strong>do</strong> a Hegel, estecompreen<strong>de</strong>u a necessida<strong>de</strong> da filosofia pois <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos <strong>de</strong> crise, <strong>de</strong>cisões é necessário o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> unificação na vida <strong>do</strong>s homens. Por issoa perspectiva judaico-cristã <strong>de</strong>u primazia ao Além, opon<strong>do</strong> Deus aomun<strong>do</strong>, ao hom<strong>em</strong>, à natureza. A própria razão mo<strong>de</strong>rna alargou acisão <strong>em</strong> opostos (espírito/matéria, alma/corpo; é/entendimento;ser/nada; conceito/ser; finito/infinito; razão/sensibilida<strong>de</strong>;inteligência/natureza). É aqui que o jov<strong>em</strong> Hegel situa o dualismocristão e a falta <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, sen<strong>do</strong> objecto das suas93 G.W.F.HEGEL, História da filosofia, in Kostas PAPAIOANNOU, Hegel, p.140.94 Ludwig FEUERBACH, Princípios da Filosofia <strong>do</strong> Futuro, Princípio 15, pp. 24-25:“Por isso, Espinosa acertou no prego com a sua proposição para<strong>do</strong>xal: Deus é umser extenso, isto é, material. Encontrou, pelo menos para a sua época, a verda<strong>de</strong>iraexpressão filosófica da tendência materialista <strong>do</strong>s t<strong>em</strong>pos mo<strong>de</strong>rnos; legitimou-a esancionou-a: o próprio Deus é materialista. A filosofia <strong>de</strong> Espinosa era uma religião;ele próprio era uma personalida<strong>de</strong>. Nele, como <strong>em</strong> muitos outros, o materialismonão entrava <strong>em</strong> contradição com a representação <strong>de</strong> um Deus imaterial,antimaterialista que, consequent<strong>em</strong>ente, transforma <strong>em</strong> <strong>de</strong>ver <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> as suassimples tendências e ocupações antimaterialistas e celestes; pois Deus nada mais é<strong>do</strong> que o arquétipo e o i<strong>de</strong>al <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>: ser como e o que Deus é, eis o que o hom<strong>em</strong><strong>de</strong>ve ser, eis o que o hom<strong>em</strong> quer ser ou, pelo menos, espera vir a ser um dia. Mas ocarácter, a verda<strong>de</strong> e a religião só exist<strong>em</strong> on<strong>de</strong> a teoria não é negada pela prática,n<strong>em</strong> a práxis pela teoria. Espinosa é o Moisés <strong>do</strong>s livres pensa<strong>do</strong>res e materialistasmo<strong>de</strong>rnos”.40


eflexões na juventu<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> vai tratar a relação sujeito-objecto.Assim colocar Deus para lá <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> e da natureza é referir umprocesso <strong>de</strong> alienação que faz <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> um ser estranho no universo.Alienação que é histórica, sen<strong>do</strong> aqui que se situa a razão dainfelicida<strong>de</strong> ou mesmo felicida<strong>de</strong>, pela crença no Além ou pelapertença a este universo. Porém há que ter <strong>em</strong> conta o movimento dahistória on<strong>de</strong> t<strong>em</strong>os o hom<strong>em</strong> in concreto. Por isso o Hegel dajuventu<strong>de</strong> vai analisar os fundamentos religiosos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,critican<strong>do</strong> a ilusão <strong>do</strong> Além e o Deus nesse Além:La Religion est <strong>de</strong> l`ordre <strong>de</strong> l`Esprit: elle n`en estni l`extérieure, le contingent, le surplus, encore moins ledépass<strong>em</strong>ent ou la vérité. Ni l`Aufklärung, qui a voulusubstituer à la tradition une “théologie naturelle”fondée sur une analyse rationnelle du concept <strong>de</strong> d´Êtreinfini, ni le sentimentalisme religieux, prenant assise surla passion que la conscience <strong>de</strong> soi développelorsqu`elle aperçoit sa finitu<strong>de</strong> et aspire à l`au-<strong>de</strong>là, nepermettent <strong>de</strong> comprendre le fait religieux. L´un etl`autre, d`ailleurs, font la preuve <strong>de</strong> leur carencepuisqu`ils continuent <strong>de</strong> discuter, par arguments et parcoups <strong>de</strong> force, <strong>de</strong> cela même qui est au fon<strong>de</strong>ment <strong>de</strong> lareligion : l`existence <strong>de</strong> Dieu 95 .Hegel critica o dualismo religioso no <strong>do</strong>mínio da existência, dahistória. Encontra-se, aqui, a s<strong>em</strong>ente da posição <strong>de</strong> Feuerbach, além<strong>de</strong> outros pensa<strong>do</strong>res. É o “reivindicar, como proprieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>,os tesouros que foram espolia<strong>do</strong>s <strong>em</strong> proveito <strong>do</strong> céu” 96 . Os jovenshegelianos puseram <strong>em</strong> prática essa recuperação apresentada pelojov<strong>em</strong> Hegel:Tu<strong>do</strong> o que há <strong>de</strong> belo na natureza humana,transportámo-lo para um indivíduo estranho(Deus), fican<strong>do</strong> nós apenas com todas as vilanias95 François CHÂTELET, Hegel, pp. 117, 118.96 Kostas PAPAIOANNOU, Hegel, p.20. Ver ainda Karl LÖWITH, De Hegel àNietzsche, p. 96.41


<strong>de</strong> que ela é capaz. Depois, reconhec<strong>em</strong>os, cheios<strong>de</strong> alegria, a nossa obra como nossa, apossámo-nos<strong>de</strong>la <strong>de</strong> novo, e por esse processo apren<strong>de</strong>mos aestimarmo-nos, mau gra<strong>do</strong> anteriormenteconsi<strong>de</strong>rarmos como nosso exclusivo o que apenaspodia ser objecto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo 97 .Encontra-se <strong>em</strong> Hegel o que se po<strong>de</strong> constatar, também, <strong>em</strong>Feuerbach, quan<strong>do</strong> refer<strong>em</strong> a Grécia como t<strong>em</strong>po áureo, que<strong>de</strong>sconhecia a cisão e a projecção no Além, base da alienação. Às<strong>em</strong>elhança <strong>de</strong> Cristo para os cristãos a Grécia é “um ponto luminoso”porque, para lá da arte e <strong>do</strong> espírito, a Grécia é vista por Hegel como“o paraíso político perdi<strong>do</strong>” on<strong>de</strong> existia harmonia entre o individuo ea πoλις. Desconheciam a ruptura entre esses <strong>do</strong>is <strong>do</strong>mínios da<strong>do</strong> que aparticipação activa no <strong>do</strong>mínio público era fonte <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> terrena,não existin<strong>do</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Além, pois “A <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> pátria, <strong>de</strong>Esta<strong>do</strong>, era, para o cidadão antigo, a realida<strong>de</strong> invisível, o maiseleva<strong>do</strong> fim para que trabalhava: o seu alvo final no mun<strong>do</strong> ou o alvofinal <strong>do</strong> seu mun<strong>do</strong>” 98 . A l<strong>em</strong>brança da felicida<strong>de</strong> na Grécia Antiga é ooposto da Al<strong>em</strong>anha <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Hegel pois “Tal vez, con laexcepción <strong>de</strong> Lutero para los protestantes, ¿qué héros podríamostener nosotros que nunca fuimos una nación?” 99 .Assim na Grécia Antiga97 G.W.F.HEGEL, Nohl, in Kostas PAPAIOANNOU, Hegel, p. 24.98Kostas PAPAIOANNOU, Hegel, p. 25. Ver ainda HEGEL, Principes <strong>de</strong> laphilosophie du droit, (Traduit <strong>de</strong> l`All<strong>em</strong>and par André Kaan et Préfacé par JeanHyppolite), Editions Gallimard, Paris, 1940, p. 270 : « L`État, comme réalité en acte<strong>de</strong> la volonté substantielle, réalité qu`elle reçoit dans la conscience particulière <strong>de</strong>soi universalisée, est le rationnel en soi et pour soi : cette unité substantielle est unbut propre absolue, immobile, dans lequel la liberté obtient sa valeur suprême, etainsi ce but final, a un droit souverain vis-à-vis <strong>de</strong>s individus, <strong>do</strong>nt le plus haut<strong>de</strong>voir est d`être m<strong>em</strong>bres <strong>de</strong> l`État » ; I<strong>de</strong>m, p. 277 : « L`État est la réalité en acte<strong>de</strong> la liberté concrète ; or, la liberté concrète consiste en ceci que l`individualitépersonnelle et ses intérêts particulières reçoivent leur plein développ<strong>em</strong>ent et lareconnaissance <strong>de</strong> leurs droits pour soi […] en même t<strong>em</strong>ps que d`eux-mêmes ilss`intègrent à l`intérêt général, ou bien le reconnaissant consci<strong>em</strong>ment etvolontair<strong>em</strong>ent comme la substance <strong>de</strong> leur propre esprit, et agissent pour lui,comme leur but final ».99 Nohl, in G. W. F. HEGEL, Escritos <strong>de</strong> Juventud, p. 144.42


En cuanto hombres libres, obe<strong>de</strong>cían a leyes queellos mismos se habían da<strong>do</strong>, […] ofrecían sus bienes,sus pasiones, sacrificaban mil vidas por una causa queera suya. […] [Sin <strong>em</strong>bargo,] el hombre era capaz <strong>de</strong>oponerse, <strong>de</strong> oponer su liberdad a este po<strong>de</strong>r, a estesdueños <strong>de</strong> la naturaleza, si entraba en conflito com ellos.Su voluntad era libre, obe<strong>de</strong>cía a sus propias leyes 100 .A relação <strong>em</strong> harmonia entre o habitante da pólis e a pólisabria a uma relação <strong>do</strong> mesmo género entre o hom<strong>em</strong> e o universo.Hegel refere-se à socieda<strong>de</strong> al<strong>em</strong>ã <strong>do</strong> seu t<strong>em</strong>po – s<strong>em</strong> corag<strong>em</strong> - “Lamultitud ha perdi<strong>do</strong> la virtud pública, yace tirada bajo la opresión, ynecesita ahora <strong>de</strong> otros sostenes, <strong>de</strong> otros consuelos para resarcirse<strong>de</strong> una miseria que no pue<strong>de</strong> osar disminuir” 101 . De mo<strong>do</strong> opostoactua o republicano que <strong>de</strong>spen<strong>de</strong> as forças e a vida ao serviço dapátria. Neste âmbito o cristianismo não atribuiu a <strong>de</strong>vida importânciaao Esta<strong>do</strong> n<strong>em</strong> à participação na acção da pólis, pelo que o hom<strong>em</strong> erapertença <strong>do</strong> céu e não da terra poisEl Cristianismo ha <strong>de</strong>spobla<strong>do</strong> el Walhalla,ha tala<strong>do</strong> los bosques sagra<strong>do</strong>s y ha extirpa<strong>do</strong> lafantasía <strong>de</strong>l pueblo como si fuera una supersticiónvergonzosa, un veneno maldito; en cambio, nos diola fantasía <strong>de</strong> un pueblo cuyo clima, cuyalegislación, cultura e interesses nos son ajenos,cuya historia no tiene conexión alguna con lanuestra. En la imaginación <strong>de</strong> nuestro pueblo siguevivo un David, un Salomón, […] 102 .É o <strong>de</strong>sprezo pelo género <strong>humano</strong> tanto na religião como napolítica 103 . O cristianismo separa o universo <strong>em</strong> <strong>do</strong>is: diminuição <strong>de</strong>ste100 Nohl, in G. W. F. HEGEL, Escritos <strong>de</strong> Juventud, pp. 150 e 151.101 Nohl, in G. W. F. HEGEL, Escritos <strong>de</strong> Juventud, p. 39.102 Nohl, in G. W. F. HEGEL, Escritos <strong>de</strong> Juventud, p. 144.103 Carta <strong>de</strong> Hegel a Schelling <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1795 in G. W. F. HEGEL, Escritos<strong>de</strong> Juventud, p. 61: “Pero ¿por qué se ha tarda<strong>do</strong> tanto en revalorar la dignidadhumana, en reconocer su capacidad <strong>de</strong> libertad, […]?”.43


mun<strong>do</strong> <strong>em</strong> primazia <strong>do</strong> Além, fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> infeliz. É este ocontexto <strong>em</strong> que o cristianismo anula o paganismo, substituin<strong>do</strong>-o:La sustitución <strong>de</strong> la religión pagana por lacristiana es una <strong>de</strong> aquellas revoluciones increíbles porcuyas causas el historia<strong>do</strong>r pensante tiene quepreocuparse. […] La religión griega y romana eranreligiones sólo para pueblos libres, mas con la pérdida<strong>de</strong> la libertad tenía que per<strong>de</strong>rse también el senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>esta religión, su fuerza, su a<strong>de</strong>cuatión a los hombres. 104Era necessária uma espécie <strong>de</strong> incarnação da I<strong>de</strong>ia, comosen<strong>do</strong> um <strong>de</strong>sejo da própria época, presente na filosofia hegeliana,pois o Deus cristão estan<strong>do</strong> longe no Além, não o está da oração.Tornava-se pr<strong>em</strong>ente trespassar os mo<strong>do</strong>s históricos caducos: « […]les conceptions du t<strong>em</strong>ps, <strong>de</strong> la mort, <strong>de</strong> l`ici-bas, <strong>de</strong> l`au –<strong>de</strong>là, dumoi, <strong>de</strong> l`individu, <strong>de</strong> la personne, et <strong>de</strong> la personne considérée horsdu mond fini dans l`Absolut et en tant qu`Absolut, à savoir <strong>de</strong> Dieu,[…] » 105 .A Cruz <strong>do</strong> presente« Hic Rhodus, hic saltus » 106Hegel pensa a vida, pois sen<strong>do</strong> a filosofia a procura <strong>do</strong> racionalé também “o apreen<strong>de</strong>r o presente e <strong>do</strong> real efectivo” 107 . Deste mo<strong>do</strong>104 Nohl, in G. W. F. HEGEL, Escritos <strong>de</strong> Juventud, pp. 149, 150.105 Karl LÖWITH, De Hegel à Nietzsche, p. 97.106 Provérbio grego in G.W.F. HEGEL, Prefácio <strong>do</strong> direito natural e ciência <strong>do</strong>esta<strong>do</strong> <strong>em</strong> compêndio Sist<strong>em</strong>a da Ciência, in G.W.F. HEGEL, Prefácios, (Tradução,introdução e notas <strong>de</strong> Manuel J. Carmo Ferreira), Imprensa Nacional – Casa daMoeda, Lisboa, 1990, p.198. Hegel usa a frase primeiro <strong>em</strong> grego e <strong>de</strong>pois <strong>em</strong> latime <strong>em</strong> seguida dá uma tradução al<strong>em</strong>ã. Marx também se refere a esta frase, citan<strong>do</strong>-ano 18. Brumário <strong>de</strong> Louis Bonaparte, Cf. MARX, Karl, O 18 Brumário <strong>de</strong> LuísBonaparte, Editora Vento <strong>de</strong> Leste, Lisboa 1975, p. 22: “ […] e na qual as própriascondições proclam<strong>em</strong>: Hic Rhodus, hic salta”! É aqui que está a rosa, é aqui que épreciso dançar!”.44


não se trata <strong>de</strong> colocar um Além, porque o mesmo refere <strong>de</strong>sconhecerseon<strong>de</strong> está, mas passar pelo sofrimento, pela perversão. Há que ter<strong>em</strong> conta o espírito da época, tanto para a filosofia como para oindivíduo, não po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ninguém sair da substância da época, pelo quea filosofia não salta por cima <strong>do</strong> seu t<strong>em</strong>po, <strong>em</strong>bora formalmenteesteja, sen<strong>do</strong> preciso anular a totalida<strong>de</strong>. É a imperativida<strong>de</strong> damudança, algo que v<strong>em</strong> <strong>do</strong> interior mas também da situação histórica.A máxima acima referida é citada por Hegel po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> quererdizer a importância <strong>do</strong>s actos pratica<strong>do</strong>s pelas pessoas, sen<strong>do</strong>impossível recuar, ten<strong>do</strong> <strong>de</strong> avançar, realçan<strong>do</strong> o contexto dasocieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna. “Reconhecer a razão como a rosa na cruz <strong>do</strong>presente […]” 108 é o Logos a alegrar-se com o presente, como umaconsagração <strong>de</strong> um t<strong>em</strong>po que se esqueceu, diminuiu <strong>em</strong> proveito <strong>do</strong>Além. Se se está no presente s<strong>em</strong> o enten<strong>de</strong>r, está-se num ponto <strong>de</strong>vista vazio. A razão é a rosa que floresce na cruz <strong>do</strong> presente pelo quecolher este florão é colher nisto que passa. Ou seja, a razão floresce nopresente pelo que é preciso colher nisto que passa, sen<strong>do</strong> precisoconhecer na história, nas negações. Há aqui uma visão trágica, pois ahistória s<strong>em</strong> tragédia são páginas <strong>em</strong> branco 109 .Trata-se da[…] Reconciliação com a realida<strong>de</strong> efectiva, quea filosofia conce<strong>de</strong> àqueles a qu<strong>em</strong> alguma vez foi dadaa consciência interior <strong>de</strong> conceber e <strong>de</strong> manterigualmente no que é substancial a liberda<strong>de</strong> subjectiva[…] 110 .Trata-se <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong> da forma, da razão enquantoconhecimento conceptual com a matéria, da razão como realida<strong>de</strong>natural. Ou não será a filosofia o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> elevação acima <strong>do</strong>107 I<strong>de</strong>m, p. 196.108 I<strong>de</strong>m, p.198.109 I<strong>de</strong>m, nota 34, p. 203.110 I<strong>de</strong>m, p. 198.45


sofrimento, da <strong>do</strong>r e <strong>do</strong> obstáculo que <strong>do</strong>minou o mun<strong>do</strong> a fim <strong>de</strong>restabelecer a obra comum?O jov<strong>em</strong> Hegel faz exegese bíblica para respon<strong>de</strong>r à situação<strong>de</strong> cisão, ruptura. A situação económica, política, religiosa daAl<strong>em</strong>anha <strong>de</strong> finais <strong>do</strong> século XVIII é uma situação <strong>de</strong> cisão,dilaceração, exprime uma condição alienada. A consciência judaicocristã<strong>de</strong>svalorizou a natureza, transforman<strong>do</strong>-a <strong>em</strong> objecto. Pelareligião <strong>do</strong> Além fez-se a oposição entre Deus e o mun<strong>do</strong>. A istoacrescenta-se a generalização da cisão pela razão da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>em</strong>dualismos sen<strong>do</strong> estas expressões <strong>do</strong> dualismo cristão e dainfelicida<strong>de</strong> da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Nas obras <strong>do</strong> jov<strong>em</strong> Hegel, Deus éeleva<strong>do</strong> acima <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> e da natureza e a exploração <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> pelohom<strong>em</strong> são revela<strong>do</strong>res <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> alienação, tornan<strong>do</strong> ohom<strong>em</strong> estranho a si mesmo e ao mun<strong>do</strong>, fruto da tradição e dahistória oci<strong>de</strong>ntal 111 . A crítica <strong>do</strong> jov<strong>em</strong> Hegel é a crítica a uma igrejaque produz <strong>do</strong>utrina para que outros obe<strong>de</strong>çam.Do ponto <strong>de</strong> vista económico a situação da Al<strong>em</strong>anha érevela<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> servos a passar <strong>de</strong> um artesanato para a fábrica e <strong>de</strong> umadistinção entre o proprietário, burguês, e os assalaria<strong>do</strong>s. Fazia faltasuperar o esta<strong>do</strong> religioso para haver consequências políticas, ten<strong>do</strong> oprotestantismo fica<strong>do</strong> a meio <strong>do</strong> caminho 112 . Feuerbach t<strong>em</strong>convicções <strong>de</strong>mocráticas 113 e manifesta interesse pela activida<strong>de</strong>111 Kostas PAPAIOANNOU, Hegel, p. 21: “Ora esta alienação não é condição natural<strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, mas fenómeno puramente histórico liga<strong>do</strong>, <strong>de</strong> maneira estrita, ao seugrau <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> política, porquanto é <strong>de</strong>ste que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> a “satisfação” ou a“infelicida<strong>de</strong>” humana, e logo o enraizamento no mun<strong>do</strong> ou a fuga ao além”.112 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. [XXIX]:“[…] Si superamos la escisión <strong>de</strong>l protestantismo entre el cielo, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> somosseñores, y la tierra, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> somos esclavos, si reconoc<strong>em</strong>os a la tierra como nuestrolugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino, entonces el protestantismo conduce a la república […]. Sólocuan<strong>do</strong> tú hayas supera<strong>do</strong> la religión cristiana recibes el <strong>de</strong>recho a la república,porque en la religión cristiana tienes tu república en el cielo. No necesitas, por tanto,aquí ninguna. Al contrario, aquí tienes que ser esclavo, <strong>de</strong> lo contrario el cielo essuperficial”.113 Ludwig FEUERBACH, Necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma Reforma da Filosofia, p. 5, (Tradução<strong>de</strong> Artur Morão), www.lusosofia.net, Covilhã, 2008. [Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 28/07/2009].46


política, pois na monografia sobre Lutero quan<strong>do</strong> fala <strong>de</strong> amor é aoamor <strong>humano</strong> que se refere, como um amor sensível, concreto 114É neste contexto que se <strong>de</strong>senvolvera o movimento “Sturm undDrang” 115 (T<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong> e Ímpeto), movimento literário. MaximillianKlinger (1752-1831) 116 critica o iluminismo francês <strong>de</strong> matrizracionalista, génese <strong>do</strong> <strong>de</strong>spotismo. Realça a <strong>em</strong>oção e o sentimentocomo o órgão <strong>do</strong> conhecimento. Trata-se da relação imediata com arealida<strong>de</strong> 117 , quase selvag<strong>em</strong>, <strong>do</strong> i<strong>de</strong>alismo al<strong>em</strong>ão que <strong>de</strong>poistermina.“Sturm und Drang” po<strong>de</strong> situar-se entre 1760 e 1780 ecaracteriza-se como movimento musical, artístico e filosófico que usaa figura <strong>de</strong>cisiva <strong>de</strong> Espinosa <strong>do</strong> movimento. Os jovens al<strong>em</strong>ãesrevelam mal-estar pela separação existente entre a especulação e aacção, entre o sonho e a realida<strong>de</strong> e talvez estejam na génese <strong>do</strong>movimento. “Se, no fim <strong>do</strong> século, a nação al<strong>em</strong>ã ainda não adquiriu[Daqui <strong>em</strong> diante citamos a obra <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>: [Ludwig FEUERBACH,Necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma Reforma da Filosofia, p. x].114 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. [XXIX]:“[…] la vida para los otros, para la humanidad, para los fines generales. Ahora bien,estos fines generales encuentran su realidad y verdad sólo en la realización humana– si yo quiero, por ej<strong>em</strong>plo, la liberdad, entonces no quiero otra cosa que hombreslibres; yo no quiero una liberdad y una voluntad sólo <strong>de</strong> cabeza, quiero una liberdady una voluntad visible, palpable -, así precisamente pongo al hombre como el alfa yla omega. Los burros teólogos y filósofos, que son una legión, no compren<strong>de</strong>n esto,y ni se figuran lo que yo quiero”.115 Movimento literário com início <strong>em</strong> 1769. Recebeu o nome <strong>do</strong> Título <strong>de</strong> uma peçaescrita por Maximilian Klinger <strong>em</strong> 1776.116Ver Friedrich Maximilian Klinger inhttp://www.nudb.com/people/286/000094004/. [Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 18 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong>2009]. Ver ainda Niccolás Abbagnano: História da Filosofia inhttp://www.proteus.1afm.com/abbat301.html. [Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 18 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 2009].Max Klinger (Leipzig, 18 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1857 - Grossjena, 4 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1920) foium pintor simbolista, escultor e artista gráfico al<strong>em</strong>ão.http://pt.wikipedia.org/wiki/Max_Klinger [Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 29 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 2009].Ver ainda José Luis Garcia RÚA, Estudio preliminar, pp. 16,17, in LudwigFEUERBACH, Pensamientos sobre muerte e inmortalida<strong>de</strong>, (Traducción y estudiopreliminar <strong>de</strong> José Luis García Rúa), Ed. Alianza Editorial, S.A., Madrid, 1993.117 François CHÂTELET, História da Filosofia, Publicações Dom Quixote, Lisboa,1972, p. 114, Volume 4: “O “regresso” à natureza”, assimila<strong>do</strong> com a exclusão dasteses políticas <strong>de</strong> Rousseau, aparece como uma primeira condição <strong>de</strong> umareformulação da socieda<strong>de</strong>”. [Daqui <strong>em</strong> diante citamos a obra <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>:François CHÂTELET, História da Filosofia, p. x].47


a sua existência política, os filósofos, os poetas e os músicos fizeram<strong>de</strong>la a primeira nação europeia.” 118 .É preciso que tu<strong>do</strong> passe pelo sujeito. Acabar com a cisão. Eraprobl<strong>em</strong>ático anunciar a revolução, apesar <strong>de</strong> Kant rejubilar com aRevolução Francesa.Tornava-se necessária a leitura da Bíblia da<strong>do</strong> ser esta a razãoda situação vivida. Era necessário repensar a Bíblia. Mas reinterpretara Bíblia t<strong>em</strong> repercussões noutros <strong>do</strong>mínios.Feuerbach vai recuperar Espinosa como o primeiromaterialista <strong>do</strong> <strong>futuro</strong> 119 . Nesta referência a Espinosa não está ausenteo “Sturm und Drang” on<strong>de</strong> as referências a este filósofo são secretas<strong>em</strong> Goethe e Lessing 120 . Her<strong>de</strong>r, expoente <strong>de</strong>ste movimento, recuperaas fontes nacionais e populares, dan<strong>do</strong> primazia a um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong>pensamento arcaico, à mitologia nórdica 121 e à intencionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Lutero. Espinosa ao ver Deus <strong>em</strong> tu<strong>do</strong> e tu<strong>do</strong> <strong>em</strong> Deus, favorecia opanteísmo dinâmico ten<strong>do</strong> por referência as noções <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong> enecessida<strong>de</strong> 122 .118 I<strong>de</strong>m, p. 118, Volume 4. Ver http://www2.crb.ucp.pt/Estu<strong>do</strong>sal<strong>em</strong>aes/historia.pdfp. 16. [Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 26/05/2009].119 Ludwig FEUERBACH, Princípios da Filosofia <strong>do</strong> Futuro, Princípio 15, pp. 24-25,P: “Por isso, Espinosa acertou no prego com a sua proposição para<strong>do</strong>xal: Deus é umser extenso, isto é, material. Encontrou, pelo menos para a sua época, a verda<strong>de</strong>iraexpressão filosófica da tendência materialista <strong>do</strong>s t<strong>em</strong>pos mo<strong>de</strong>rnos; legitimou-a esancionou-a: o próprio Deus é materialista. A filosofia <strong>de</strong> Espinosa era uma religião;ele próprio era uma personalida<strong>de</strong>. Nele, como <strong>em</strong> muitos outros, o materialismonão entrava <strong>em</strong> contradição com a representação <strong>de</strong> um Deus imaterial, antimaterialista que, consequent<strong>em</strong>ente, transforma <strong>em</strong> <strong>de</strong>ver <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> as suas simplestendências e ocupações antimaterialistas e celestes; pois Deus nada mais é <strong>do</strong> que oarquétipo e o i<strong>de</strong>al <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>: ser como e o que Deus é, eis o que o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>veser, eis o que o hom<strong>em</strong> quer ser ou, pelo menos, espera vir a ser um dia. Mas ocarácter, a verda<strong>de</strong> e a religião só exist<strong>em</strong> on<strong>de</strong> a teoria não é negada pela prática,n<strong>em</strong> a práxis pela teoria. Espinosa é o Moisés <strong>do</strong>s livres pensa<strong>do</strong>res e materialistasmo<strong>de</strong>rnos”.120 I<strong>de</strong>m, p. 105: “ […] Lessing […] As suas pesquisas sobre a metafísica mo<strong>de</strong>rna,na sequência <strong>de</strong> Leibniz e <strong>de</strong> Espinosa, o exame crítico ao qual submete a revelaçãofaz<strong>em</strong>-no ter acesso, para além da polémica, a uma visão dialéctica da história dasreligiões”.121 François CHÂTELET, História da Filosofia, pp. 109-112.122 I<strong>de</strong>m, p. 78: “Enfim, a interpretação mais correcta <strong>do</strong> espinosismo convidava aver na Natureza uma alma <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> constituída por uma matéria muito subtil,48


Regress<strong>em</strong>os a Hegel, mais propriamente, “A Vida <strong>de</strong> Jesus”será para Hegel um ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>, como um mestre moral,universalida<strong>de</strong> da razão. Do mo<strong>do</strong> como o apresenta <strong>em</strong> “A Vida <strong>de</strong>Jesus” distanciamento (a religião não se converteu <strong>em</strong> pura moral),comprometen<strong>do</strong> também a política. Ainda que Hegel aceite a herançada liberda<strong>de</strong> segun<strong>do</strong> Kant, a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve investir não só noindivíduo mas também no Esta<strong>do</strong> <strong>em</strong> senti<strong>do</strong> republicano 123 . É a partirdaqui que Hegel se distancia <strong>de</strong> Kant ou mesmo quebra com opensamento <strong>de</strong> Kant 124 . Contra isto o jov<strong>em</strong> Hegel separa-se <strong>de</strong> Kant(a categoria <strong>do</strong> conhecimento como intuição. A <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> kantiana <strong>de</strong>intuição sensível) 125 . A religião assenta no amor, no coração como olugar on<strong>de</strong> se superam as cisões 126 . No âmbito racionalista“compren<strong>de</strong>r es <strong>do</strong>minar” 127 . Assim, “únicamente en el amor somosunos con el objeto: aquí el objecto no <strong>do</strong>mina ni está <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>” 128 . Areligião é, assim, o realizar a reconciliação, poiss<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> movimento, e da qual as almas individuais apenas constitu<strong>em</strong> umaporção”.123 G. W. F. HEGEL, Escritos <strong>de</strong> Juventud, p. 39: “La certidumbre interior <strong>de</strong> la fe enDios y en la inmortalidad tiene que sustituirse por seguriida<strong>de</strong>s externas, por la fe enpersonas que lograron crear la opinión <strong>de</strong> que entien<strong>de</strong>n más en estos asuntos”. Verainda p. 47: “[…] Un espíritu gran<strong>de</strong>, como correspon<strong>de</strong> a la república, pone todassus fuerzas, físicas e morales, al servicio <strong>de</strong> su i<strong>de</strong>a, to<strong>do</strong> su campo <strong>de</strong> acción goza<strong>de</strong> unidad”.124 G.W.F. HEGEL <strong>de</strong>scobre os místicos renanos, Mestre Eckhart (Hegel citava comprazer a palavra <strong>do</strong> Mestre Eckart: Ver Kostas PAPAIOANNOU, Hegel, p. 58:“Oolhar com que Deus me vê é o olhar com que eu o vejo, o meu olhar e o seu são ume o mesmo; se Deus não existisse, eu não existiria, se eu não existisse, ele nãoexistiria” e Tauler, e o Evangelho <strong>de</strong> S. João que o aproximaram <strong>do</strong> Amor e daVida. Sinal <strong>de</strong>sta mudança é o po<strong>em</strong>a místico Eleusis que Hegel <strong>de</strong>dicará aHöl<strong>de</strong>rllin (Po<strong>em</strong>a “Eleusis” in Kostas PAPAIOANNOU, Hegel, p. 103). Est<strong>em</strong>omento marca a ruptura com Kant.125 G. W. F. HEGEL, Escritos <strong>de</strong> Juventud, p. 241: “[…] Religión es la veneraciónlibre <strong>de</strong> la divindad. La religión meramente subjetiva, sin imaginación es larectitud”.126 Nohl (376-377) in I<strong>de</strong>m, p.241: No <strong>do</strong>mínio racionalista “compren<strong>de</strong>r es<strong>do</strong>minar”. No âmbito da vida teorética “Las síntesis teóricas se conviertenenteramente en objectivas, en algo que se opone totalmente al sujeto” ao passo quena activida<strong>de</strong> prática “ […] el objeto y es enteramente subjetiva” .127 NOHL (376-377) in I<strong>de</strong>m, p. 241.128 NOHL (376-377) in I<strong>de</strong>m, p.241.49


Ahí <strong>do</strong>n<strong>de</strong> sujeto y objeto – o liberdad ynaturaleza – se piensan uni<strong>do</strong>s <strong>de</strong> manera tal que lanaturaleza es liberdad, que sujeto y objeto non sonseparables, ahí está lo divino; tal i<strong>de</strong>al es el objeto <strong>de</strong>toda religión. Una dividad es sujeto y objeto a la vez; nose pue<strong>de</strong> <strong>de</strong>cir que sea sujeto en oposición a objetos oque tiene objetos 129Há, <strong>em</strong> Hegel, uma divinda<strong>de</strong> convertida pela imaginaçãonum ser, hipostasia<strong>do</strong>. Neste aspecto há uma antecipação a LudwigFeuerbach. Perante aquela divinda<strong>de</strong> o hom<strong>em</strong> cindi<strong>do</strong> “sienterespeto, veneración; el hombre uni<strong>do</strong> [consigo mismo], amor. Aquél,a causa <strong>de</strong> su mala conciencia – la conciencia <strong>de</strong> la escisión –, sientet<strong>em</strong>or frente a ella” 130 . O hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> má consciência sente t<strong>em</strong>or, maso hom<strong>em</strong> uni<strong>do</strong> consigo mesmo sente amor 131 . Por isso “Solo pue<strong>de</strong>producirse amor hacia aquello que es igual a nosotros, hacia elespejo, hacia el eco <strong>de</strong> nuestro ser” 132 . Em Hegel, Jesus v<strong>em</strong>apresentar na religião o Amor como centro <strong>do</strong> seu projecto. Pelocontrário a religião judaica é religião, culto s<strong>em</strong> alegria. A estapositivida<strong>de</strong> triste, Jesus v<strong>em</strong> contrapor uma apropriação dasubjectivida<strong>de</strong> crente. À <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> judia <strong>de</strong> Deus como Senhor, Jesus opõeuma relação entre Deus e os homens s<strong>em</strong>elhante à relação entre o paie os seus filhos. Jesus encarna<strong>do</strong> na humanida<strong>de</strong>. Em Jesus <strong>em</strong>erge aintencionalida<strong>de</strong> amorosa 133 . Jesus contrapõe ao legalismo aintencionalida<strong>de</strong> da consciência, dizen<strong>do</strong> que o hom<strong>em</strong> é maisimportante que o t<strong>em</strong>po. Apropriação subjectiva acima quer <strong>do</strong> espaçoquer <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po. O amor mostra a vida. Hegel vê na figura <strong>de</strong> Jesusalgo que vai contra o senti<strong>do</strong> tradicional da religião. Jesus opõe-se ao129 Ibi<strong>de</strong>m.130 Ibi<strong>de</strong>m.131 Ibi<strong>de</strong>m.132 NOHL (376), in G. W. F. HEGEL, Escritos <strong>de</strong> Juventud, p. 242.133 Biblia Sagrada, Mt, 18.50


legalismo exterior. Jesus ataca a raiz <strong>do</strong> judaísmo, a servidão 134 . Jesusestá inseri<strong>do</strong> politicamente na vida e história <strong>do</strong> seu povo. É atento àsituação. Jesus é a vonta<strong>de</strong> livre que quer a liberda<strong>de</strong>. O mun<strong>do</strong> éresulta<strong>do</strong> e não uma realida<strong>de</strong> intocável. Jesus traduz o ser livre que sefaz.Como é que Hegel interpreta a alienação exterior? É omomento <strong>em</strong> que Jesus per<strong>do</strong>a os peca<strong>do</strong>s a Madalena 135 . Jesus olhouo interior daquela mulher, viu <strong>de</strong>ntro e constatou que ela se per<strong>do</strong>ara asi própria. A mulher reconcilia-se, como na Reforma protestante.Porém, na tradição católica isto n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre foi assim. Havia a figura<strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>te a per<strong>do</strong>ar, uma espécie <strong>de</strong> controlo da consciência e <strong>em</strong>gran<strong>de</strong> parte a Reforma reage contra isso, pon<strong>do</strong> a consciência ligadaa si própria. Segun<strong>do</strong> Hegel qu<strong>em</strong> per<strong>do</strong>ou a si própria foi aMadalena 136 , pois o projecto religioso <strong>de</strong> Jesus era isento <strong>de</strong> qualqueralienação. O perdão <strong>do</strong>s peca<strong>do</strong>s, a disposição para se reconciliar comos outros é a condição para o perdão. Jesus reconheceu a confiança nafé <strong>de</strong> Madalena como um coração igual ao seu 137 .Hegel preten<strong>de</strong>u mostrar que na essência <strong>do</strong> cristianismo háuma lei moral universal que está escrita no coração <strong>de</strong> toda ahumanida<strong>de</strong>, é a essência imutável. É a abordag<strong>em</strong> histórica <strong>do</strong> jov<strong>em</strong>Hegel <strong>em</strong> oposição ao Hegel da maturida<strong>de</strong>, da Fenomenologia <strong>do</strong>Espírito.134 G. W. F. HEGEL, Escritos <strong>de</strong> Juventud, p. 268: “La raíz <strong>de</strong>l judaísmo es loobjetivo, es <strong>de</strong>cir: el servicio, la servidumbre frente a algo ajeno. Era eso lo queJesús atacaba. a) Servidumbre ante su ley, ante la voluntad <strong>de</strong> Señor opuesto a ella:auto<strong>de</strong>terminación, actividad propia”.135 Bíblia Sagrada, Mt 26,6-12. Mc 14,3-9. Lc 7,36-50. Jo 12,1-8.136 G. W. F. HEGEL, Escritos <strong>de</strong> Juventud, p. 334: “[…] Un alma profundamenteherida, sin <strong>em</strong>bargo, que está a punto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperar, tiene que elevar su clamor porencima <strong>de</strong> sí misma, por encima <strong>de</strong> la propia tosquedad, para dar y recibir, contra lospropios sentimientos <strong>de</strong> lo apropria<strong>do</strong>, toda la plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>l amor, para hundir suconciencia en esta íntima fruición.”. Ver ainda, I<strong>de</strong>m, p. 335.137 I<strong>de</strong>m, p. 331: “Tener fe significa conocer el espíritu por médio <strong>de</strong>l espíritu, ysolamente espíritus iguales pue<strong>de</strong>n conocerse y compren<strong>de</strong>rse; los <strong>de</strong>sigualespue<strong>de</strong>n reconocer solamente que no son lo que es el otro”.51


Hegel reconhece que <strong>em</strong> Lutero a subjectivida<strong>de</strong> não estavacompleta, pois ainda havia uma exteriorida<strong>de</strong>. É preciso prosseguiruma fé como esta<strong>do</strong>, momento para o conhecimento. A Filosofia t<strong>em</strong>uma condição tardia pois surge como um recapitulação, como“ciência” da experiência da consciência, pelo mo<strong>do</strong> como aconsciência sai fora <strong>de</strong> si, na história. A consciência coinci<strong>de</strong> com opróprio espírito a manifestar-se, a fazer a sua viag<strong>em</strong>. A Filosofiasurge ao entar<strong>de</strong>cer, anoitecer para repensar o percurso.O conceito <strong>em</strong> Hegel é resulta<strong>do</strong>, fruto <strong>de</strong> uma concepção,supõe um processo 138 . Hegel viu o Espírito a cavalo:Vi o impera<strong>do</strong>r, essa alma <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, atravessar acavalo as ruas da cida<strong>de</strong> (…). Experimenta-se umsentimento prodigioso ao ver um tal indivíduo que, acavalo, concentra-se, elege um objectivo, e esten<strong>de</strong>n<strong>do</strong>sesobre o mun<strong>do</strong>, o <strong>do</strong>mina (…). Como o fiz outrora,to<strong>do</strong>s faz<strong>em</strong> agora votos <strong>de</strong> sucesso pelo exércitofrancês, sucesso que não lhe po<strong>de</strong> faltar, dada a incríveldiferença <strong>do</strong> seu chefe e <strong>do</strong>s seus solda<strong>do</strong>s <strong>em</strong> relação aoinimigo 139 .O próprio Hegel po<strong>de</strong> ser visto como o secretário <strong>do</strong> EspíritoAbsoluto. A Filosofia refaz o regresso <strong>do</strong> Espírito a si próprio.Hegel ao referir que o “Absoluto é sujeito” l<strong>em</strong>bra Espinosa. Jáestava patente no jov<strong>em</strong> Hegel. Na expressão hegeliana “O verda<strong>de</strong>iroé o To<strong>do</strong>” 140 quer dizer que é “evolução”, resulta<strong>do</strong>” e no fim “aquiloque na verda<strong>de</strong> é”, <strong>de</strong>vir. O Ser vazio a que se foram retiran<strong>do</strong> todasas notas vai dar lugar a um processo dialéctico, <strong>em</strong> que o verda<strong>de</strong>iro é<strong>de</strong>vir <strong>de</strong> si mesmo, chegan<strong>do</strong>-se ao Nada, Ser como Nada como Devir,o Círculo.138 I<strong>de</strong>m, p 199: “Aquilo que o conceito ensina, mostra-o também a histórianecessariamente, que só na maturida<strong>de</strong> da realida<strong>de</strong> efectiva o i<strong>de</strong>al aparece frenteao real […]”.139 Kostas PAPAIOANNOU, Hegel, p. 14. Ver ainda François CHÂTELET, Hegel, p. 20.140 G.W.F. HEGEL, Prefácio <strong>do</strong> sist<strong>em</strong>a da ciência, in G.W.F. HEGEL, Prefácios,(Tradução, introdução e notas <strong>de</strong> Manuel J. Carmo Ferreira), Imprensa Nacional –Casa da Moeda, Lisboa, 1990, p. 46.52


Para Espinosa Deus ama-se a si mesmo, separa-se, pon<strong>do</strong>-sefora <strong>de</strong> si, supõe a negativida<strong>de</strong>. A negativida<strong>de</strong> na cruz <strong>do</strong> presente.Segun<strong>do</strong> a or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po o que é manifesta-se, t<strong>em</strong> que ganhar<strong>de</strong>vir. Deus ao amar-se a si mesmo põe o outro <strong>de</strong> si. “O Verda<strong>de</strong>iro éo to<strong>do</strong>” é o resulta<strong>do</strong> da conservação/superação “ […] que se cumpreatravés da sua evolução.” 141 .O século XIX tornou-se um século da história, porque épreciso assistir à génese <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>. A história é a expressão <strong>do</strong>Espírito 142 .A Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>de</strong>veria resolver diferentes contradições 143 . Acisão era resolvida pela religião popular, comunida<strong>de</strong> <strong>do</strong> amor 144 . Areligião é uma tentativa <strong>de</strong> sanar aquela cisão, <strong>em</strong>bora diga o mesmoque a filosofia, mas a forma é que é diferente. Pela religião o hom<strong>em</strong>t<strong>em</strong> consciência da sua essência, sen<strong>do</strong> naquela que se objectiva aessência da natureza e <strong>do</strong> seu espírito. A figura da religião não é a daverda<strong>de</strong> mas <strong>do</strong> sentimento. Porém, Hegel refere que a religião <strong>de</strong>veser como um “puro saber pensante”, um puro universal. A religião éuma questão subjectiva, mas o sujeito <strong>de</strong>ve estar acima <strong>de</strong>la, comoobjectivo. Há, assim, a pretensão <strong>de</strong> uma oposição entre razão e fé <strong>em</strong>Hegel ainda que sejam momentos <strong>de</strong> um mesmo processo.A religião é, ao contrário <strong>de</strong> Feuerbach, um fim superior <strong>de</strong>manifestação <strong>do</strong> Espírito. Por isso, não <strong>de</strong>ve “ser nada <strong>de</strong> subjectivo,pertencente ao sujeito como tal, mas, <strong>de</strong>ixada a sua particularida<strong>de</strong>,141 Ibi<strong>de</strong>m, in G.W.F. HEGEL, Prefácios, p. 46.142 Vico é o gran<strong>de</strong> antecessor <strong>de</strong> Hegel na Teoria da História. Cf. Gardiner, PatrickTeorias da História, (Tradução e Prefácio <strong>de</strong> Vítor <strong>de</strong> Matos e Sá), FundaçãoCalouste Gulbenkian, Lisboa, p. 12: “Pelo contrário, a natureza humana só po<strong>de</strong>, elaprópria, ser compreendida através da história pois a história contém os vários mo<strong>do</strong>spelos quais os homens se exprimiram <strong>em</strong> épocas diferentes, e é <strong>em</strong> tais formas <strong>de</strong>expressão que a natureza humana se revela, directamente, a ela mesma”.143 G.W.F. HEGEL, Discurso inaugural da <strong>do</strong>cência <strong>de</strong> filosofia na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Berlim, in G.W.F. HEGEL, Prefácios, p. 164144 I<strong>de</strong>m, p. 165: “ Cada um t<strong>em</strong> esta necessida<strong>de</strong>, para cada um a solução estápresente na religião, na fé, na <strong>do</strong>utrina – sentimento, entendimento – levada maispróxima <strong>do</strong> infinito – <strong>do</strong>utrinas totalmente sustentadas na universalida<strong>de</strong> abstracta –crença na harmonia – formas <strong>de</strong> representação sensível”.53


<strong>de</strong>ve ser como puro saber universal” 145 . Estamos perante a virag<strong>em</strong> <strong>do</strong>jov<strong>em</strong> Hegel <strong>em</strong> relação ao Hegel da maturida<strong>de</strong>. É o reconhecer ofinito no infinito “Eu, particular, ergo-me ao infinito; […] ” 146 . Ocontrário é <strong>em</strong> Feuerbach, trazer o infinito para o finito.Para a imaginação o mun<strong>do</strong> foi cria<strong>do</strong> por Deus. Para a razão éum acontecimento, que v<strong>em</strong> para fora, <strong>em</strong>anação. A consciência t<strong>em</strong>que acompanhar o processo – auto-geração <strong>do</strong> Filho pelo Pai. AHistória é um <strong>de</strong>senvolvimento da razão on<strong>de</strong> a religião é ummomento e o hom<strong>em</strong> uma passag<strong>em</strong> 147 . Hegel afirma que afundamentação <strong>do</strong> Espírito é int<strong>em</strong>poral. A religião cristã é, paraHegel, a religião absoluta.A direita hegeliana legitima os <strong>do</strong>gmas, a <strong>do</strong>utrina. Tu<strong>do</strong> o quese encontra <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s da fé é transporta<strong>do</strong> para a razão,porque não po<strong>de</strong> residir na religião, porque é exteriorida<strong>de</strong> 148 .L. Feuerbach publica “Pensamentos Sobre a Morte e aImortalida<strong>de</strong>” <strong>em</strong> 1828. Nesta obra Feuerbach nega, por um la<strong>do</strong>, aimortalida<strong>de</strong> da alma a nível individual, realçan<strong>do</strong> a imortalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>espírito <strong>humano</strong>, como um conjunto e por outro substitui atranscendência divina pela transcendência humana. Defen<strong>de</strong> tambémHegel relativamente a Bachmann 149 , ainda que ambos estejamdistancia<strong>do</strong>s.Em 1838 Feuerbach colabora com artigos na revista dirigidapor Arnold Ruge 150 . Feuerbach vai distanciar-se relativamente a145 Ibi<strong>de</strong>m.146 Ibi<strong>de</strong>m.147 I<strong>de</strong>m, p. 166: “ […] então: intuo-me nela, sei-me nela – concebo o necessáriocomo <strong>de</strong>terminação própria da razão”.148 Nicolai HARTMANN, A Filosofia <strong>do</strong> I<strong>de</strong>alismo Al<strong>em</strong>ão, p. 670: “ […] Hegelexperimentou aqui que a astúcia da razão tinha feito trabalhar o espírito subjectivopara os seus próprios fins”.149 KARL LÖWITH, De Hegel à Nietzsche, pp. 98, 99. Feuerbach familiarizou-secom o pensamento <strong>de</strong> Hegel, len<strong>do</strong> a sua crítica <strong>do</strong> « Anti-Hegel » <strong>de</strong> Bachmannsurgida <strong>em</strong> 1835.150 Anais <strong>de</strong> Halle para a Ciência e a Arte Al<strong>em</strong>ãs. Para esta revista Feuerbachescreve três artigos: “Sobre a Crítica da Filosofia Positiva”; O segun<strong>do</strong> foi reduzi<strong>do</strong>54


Hegel. A referida revista incentiva a união <strong>do</strong>s jovens hegelianosdan<strong>do</strong> orig<strong>em</strong> a um movimento com certa estabilida<strong>de</strong>. Porém, umaquestão <strong>de</strong> âmbito religioso originada por Strauss, vai dividir ossegui<strong>do</strong>res <strong>de</strong> Hegel <strong>em</strong> jovens hegelianos, a esquerda hegeliana e adireita hegeliana conserva<strong>do</strong>ra e i<strong>de</strong>alista 151 .A primeira corrente composta por Arnold Ruge, Max Stirner,Bruno Bauer, Moses Hesse e Feuerbach vão concertar uma crítica àdireita hegeliana. Ser jov<strong>em</strong> hegeliano era intervir no real por meio dacrítica. Trata-se <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> intelectuais livres e é neste âmbitoque evolu<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma crítica à religião para uma crítica política.Cativa<strong>do</strong>s pela Revolução Francesa e atraí<strong>do</strong>s pelos i<strong>de</strong>ais iluministastornaram-se arautos da razão imiscuin<strong>do</strong> i<strong>de</strong>alismo e racionalida<strong>de</strong>.pela censura. O terceiro “Contribuição à crítica da Filosofia <strong>de</strong> Hegel” on<strong>de</strong> revela acontraposição a Hegel pois critica o ponto <strong>de</strong> vista da filosofia positiva.151 KARL LÖWITH, De Hegel à Nietzsche, p 395: “La Vie <strong>de</strong> Jésus <strong>de</strong> Strauss(1835), écrite sous l`influence <strong>de</strong> Schleiermacher, part <strong>de</strong> la philosophie <strong>de</strong> lareligion <strong>de</strong> Hegel pour l`appliquer à la théologie, alors que Hegel, au contraire, vintà la philosophie, en partant <strong>de</strong> la théologie et d`une Vie <strong>de</strong> Jésus. La penséethéologique <strong>de</strong> Strauss est centrée sur l thèse <strong>de</strong> Hegel : la philosophie <strong>do</strong>it hausser àla forme conceptuelle ce que la religion ne possè<strong>de</strong> que sous forme <strong>de</strong>représentation. Il estime que le <strong>do</strong>gme chrétien contient sans <strong>do</strong>ute une part <strong>de</strong> véritémais sous une form encore mal adaptée à cette vérité ; aussi ne peut-il êtredirect<strong>em</strong>ent dégagé <strong>de</strong> son concept historique religieux pour être traduit en concept.[…] Mais les métho<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Hegel et <strong>de</strong> Strauss diffèrent : Hegel transpose en conceptla représentation religieuse et Strauss la ramène à un mythe libr<strong>em</strong>ent inventé : soninterprétation mythique <strong>de</strong> la <strong>do</strong>ctrine chrétienne aboutit à cette conclusion :« L`Homme-Dieu, c`et l`Humanité ».55


3. A Crítica teológico-filosóficaDo céu à Terra“O que um dia entra no espaço e no t<strong>em</strong>po t<strong>em</strong> também<strong>de</strong> se submeter às leis <strong>do</strong> espaço e <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po” 152 .Há três escritos 153 (Necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma reforma da filosofia,Teses provisórias para a reforma da filosofia e Princípios da filosofia<strong>do</strong> <strong>futuro</strong>) que fazen<strong>do</strong> parte <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> da maturida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Feuerbachsão revela<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s aspectos essenciais <strong>do</strong> pensamento <strong>de</strong>ste filósofo.Há um projecto que os une, a saber uma “reforma da filosofia” 154 ,mais propriamente <strong>do</strong> i<strong>de</strong>alismo hegeliano.152 Ludwig FEUERBACH, Para a crítica da filosofia <strong>de</strong> Hegel, in Ludwig FEUERBACH,Filosofia da Sensibilida<strong>de</strong>, Escritos (1839-1846), p. 46.153 Ludwig FEUERBACH, Teses provisórias para a Reforma da Filosofia, (Tradução<strong>de</strong> Artur Morão), in Lusosofia (www.lusosofia.net), Covilhã, 2008; Necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>uma reforma da filosofia, (Tradução <strong>de</strong> Artur Morão), in Lusosofia(www.lusosofia.net), Covilhã, 2008; Princípios da filosofia <strong>do</strong> <strong>futuro</strong>, (Tradução <strong>de</strong>Artur Morão), in Lusosofia (www.lusosofia.net), Covilhã, 2008.154 Artur MORÃO, “Apresentação” in Teses provisórias para a Reforma daFilosofia: “O escrito aqui traduzi<strong>do</strong>, juntamente com Necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma reformada filosofia (1842) e Princípios da filosofia <strong>do</strong> <strong>futuro</strong> (1843), inscreve-se no perío<strong>do</strong>da maturida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Feuerbach e proporciona ao leitor um contacto com as vertentesessenciais <strong>do</strong> seu pensamento. Os três centram-se no projecto <strong>de</strong> uma «reforma dafilosofia» e constitu<strong>em</strong>, no essencial, um ajuste <strong>de</strong> contas com o i<strong>de</strong>alismo,sobretu<strong>do</strong> o hegeliano”.56


A Filosofia feuerbachiana é, entre vários aspectos, umareacção à filosofia hegeliana, à teofilosofia, àquilo que na filosofia <strong>de</strong>Hegel nos r<strong>em</strong>ete ou po<strong>de</strong> r<strong>em</strong>eter para os <strong>do</strong>mínios da teologia.Ludwig Feuerbach é referência e herança para Marx e Nietzschequan<strong>do</strong> criticam a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.Embora na reflexão <strong>de</strong> Feuerbach haja frágeis referências aocampo das relações sociais, base <strong>do</strong> surgir <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> civilizacional <strong>em</strong>que se encontrava, <strong>de</strong>ve-se a ele a ruptura com o <strong>do</strong>mínio teológicofilosóficoi<strong>de</strong>alistaMas uma filosofia que é imediatamente a históriada humanida<strong>de</strong> é outra coisa <strong>de</strong> to<strong>do</strong> diversa 155 e Anegação consciente funda uma nova época, funda anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma filosofia nova, franca, não maiscristã, resolutamente acristã 156 .É a <strong>em</strong>ergência da sensibilida<strong>de</strong>, <strong>do</strong> corpo, da natureza, <strong>do</strong><strong>de</strong>sejo <strong>em</strong> contraposição a consciência, espírito, história e vonta<strong>de</strong>. Hácomo que a construção, o talhar <strong>do</strong> <strong>humano</strong>, o inflectir para o <strong>do</strong>mínioantropológico numa perspectiva radical, uma espécie <strong>de</strong> teologização<strong>do</strong> <strong>humano</strong> <strong>em</strong> Feuerbach. Este aspecto é, <strong>em</strong> si, revela<strong>do</strong>r <strong>de</strong> que aquestão da religião, <strong>de</strong> Deus foi e é uma questão <strong>em</strong> aberto.Feuerbach insurge-se contra o fun<strong>do</strong> teológico da filosofia <strong>de</strong>Hegel. Porquê? Segun<strong>do</strong> Feuerbach toda a especulação hegeliana nosreenvia, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> subtil, para a teologia. Como é que o atrás referi<strong>do</strong>se verifica? Pela crítica da filosofia especulativa, toman<strong>do</strong> o predica<strong>do</strong>como sujeito e este como objecto e princípio. Assim,O méto<strong>do</strong> da crítica reforma<strong>do</strong>ra da filosofiaespeculativa <strong>em</strong> geral não se distingue <strong>do</strong> já aplica<strong>do</strong> nafilosofia da religião. T<strong>em</strong>os apenas <strong>de</strong> fazer s<strong>em</strong>pre <strong>do</strong>predica<strong>do</strong> o sujeito e fazer <strong>do</strong> sujeito o objecto e155 Ludwig FEUERBACH, Necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma reforma da filosofia, (Tradução <strong>de</strong>Artur Morão), in Lusosofia (www.lusosofia.netp.). [Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 28 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong>2009].156 I<strong>de</strong>m, p. 4.57


princípio – portanto, inverter apenas a filosofiaespeculativa <strong>de</strong> maneira a termos a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>svelada, averda<strong>de</strong> pura e nua 157 .Trata-se <strong>de</strong> fazer a inversão da filosofia especulativa, mostran<strong>do</strong> averda<strong>de</strong> <strong>de</strong> carne e osso. Quer dizer “A essência da teologia é a essência <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>, transcen<strong>de</strong>nte, projectada para fora <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>; a essência lógica<strong>de</strong> Hegel é o pensamento transcen<strong>de</strong>nte, o pensamento <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> posto fora<strong>do</strong> hom<strong>em</strong>.” 158 .A categoria <strong>do</strong> “lançar para fora”“O hom<strong>em</strong> começa por lançar a sua essência para fora <strong>de</strong>si” 159 .Feuerbach r<strong>em</strong>ete para o pensamento <strong>de</strong> Hegel um mo<strong>do</strong>meto<strong>do</strong>lógico que se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>tectar na teologia e que é próprio dafilosofia hegeliana. Em que consiste o referi<strong>do</strong> méto<strong>do</strong>? No essencialtrata-se <strong>de</strong> um lançar <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> para fora <strong>de</strong> si “ (…) a essência <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> fora <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, a essência <strong>do</strong> pensamento fora <strong>do</strong> acto <strong>de</strong>pensar” 160 para o exterior <strong>do</strong> que possui <strong>de</strong> mais próprio, mais seu. Asua própria essência. Quer dizer, a filosofia <strong>de</strong> Hegel alienou ohom<strong>em</strong> <strong>de</strong> si próprio.O “lançar para fora” atrás referi<strong>do</strong> contém a forma <strong>de</strong> umaalienação realizada pelo hom<strong>em</strong> daquilo que lhe é próprio sen<strong>do</strong>, paraFeuerbach, o meio <strong>de</strong> orientação para interpretar correctamente omo<strong>do</strong> hegeliano <strong>de</strong> filosofar assim como da crítica a efectuar à157 Ludwig FEUERBACH, Teses provisórias para a Reforma da Filosofia, p. 2.158 I<strong>de</strong>m, p. 4.159 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 23.160 Ludwig FEUERBACH, Teses provisórias para a Reforma da Filosofia, p. 5.58


filosofia <strong>de</strong> Hegel. O novo objecto da filosofia e <strong>do</strong> filosofar é opredica<strong>do</strong> da filosofia <strong>de</strong> Hegel mas conduzi<strong>do</strong> à noção <strong>de</strong> sujeito.A categoria <strong>de</strong> “lançar para fora” que permite, segun<strong>do</strong> Feuerbach,compreen<strong>de</strong>r a noção <strong>de</strong> espírito absoluto, importante <strong>em</strong> Hegel, é umaobjectivação <strong>do</strong> espírito <strong>humano</strong> “O espírito absoluto <strong>de</strong> Hegel nada mais é<strong>do</strong> que o chama<strong>do</strong> espírito finito, abstracto, separa<strong>do</strong> <strong>de</strong> si, da mesmamaneira que o Ser infinito da teologia nada mais é que o ser finito,abstracto.” 161 . Por isso, Hegel roubou ao hom<strong>em</strong> aquilo que o caracterizava,que lhe era próprio colocan<strong>do</strong> isso mesmo fora <strong>do</strong> próprio hom<strong>em</strong>, numcampo superior ao <strong>do</strong> próprio hom<strong>em</strong>. No entanto, nada há superior aohom<strong>em</strong> pois se existe algo que não lhe é pertença, próprio, interno é <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> alhe ser exterior ou porque é resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> “lançar para fora”,realiza<strong>do</strong> pelo hom<strong>em</strong> para fora <strong>de</strong> si <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> irreal e como <strong>i<strong>de</strong>ia</strong>. Assim,Hegel separou <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> um atributo seu, próprio que irá mediatizar to<strong>do</strong> oseu pensamento filosófico. Abstraiu, separou e isto é o âmago da alienaçãorealizada ao hom<strong>em</strong> pela filosofia <strong>de</strong> Hegel 162 . Está-se perante umaseparação operada pelo pensamento filosófico <strong>de</strong> Hegel. Não estará, assim, afilosofia <strong>de</strong> Hegel a afastar-se <strong>do</strong> caminho que é próprio da filosofia?A religião dirigiu-se s<strong>em</strong>pre ao hom<strong>em</strong>, ao longo da história,abordan<strong>do</strong>-o nas suas várias perspectivas racional, afectiva e sensitiva.A tarefa <strong>de</strong> Feuerbach consistiu <strong>em</strong> tornar a dar ao hom<strong>em</strong> a unida<strong>de</strong>perdida, on<strong>de</strong> estavam patentes aquelas dimensões. Deste mo<strong>do</strong>,Feuerbach serve-se <strong>de</strong> uma crítica da religião pois esta tinha rouba<strong>do</strong>s<strong>em</strong> razão ao hom<strong>em</strong> certos atributos que, por sua vez, tornavamaquela unida<strong>de</strong> impossível, atribuin<strong>do</strong>-os a Deus, e <strong>de</strong> uma maneira <strong>de</strong>abordag<strong>em</strong> específica da teologia. Quer dizer, enquanto que para omaterialismo a única realida<strong>de</strong> é a natureza, para a filosofia <strong>de</strong> Hegel a161 I<strong>de</strong>m, p. 4.162 I<strong>de</strong>m, p. 5 “ Abstrair significa pôr a essência da natureza fora da natureza, aessência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> fora <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, a essência <strong>do</strong> pensamento fora <strong>do</strong> acto <strong>de</strong>pensar. Ao fundar to<strong>do</strong> o seu sist<strong>em</strong>a nestes actos <strong>de</strong> abstracção, a filosofiahegeliana alienou o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> si mesmo; […] mas apenas <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> quecomporta novamente a separação e a mediação. À filosofia hegeliana falta aunida<strong>de</strong> imediata, a certeza imediata, a verda<strong>de</strong> imediata”.59


natureza é alterida<strong>de</strong>, alienação <strong>do</strong> Espírito Absoluto, pois “ (…) nestesist<strong>em</strong>a o pensar e o seu produto discursivo, a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong>, constitu<strong>em</strong> oprimário, sen<strong>do</strong> a natureza o <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>, aquilo que, no geral, só po<strong>de</strong>existir por con<strong>de</strong>scendência da <strong>i<strong>de</strong>ia</strong>” 163 .A crítica <strong>de</strong> Feuerbach à religião irá, como já foi referi<strong>do</strong>,restituir ao hom<strong>em</strong> tu<strong>do</strong> o que por intermédio da religião lhe tinha si<strong>do</strong>injustamente rouba<strong>do</strong> 164 . É com o hom<strong>em</strong> que se compreen<strong>de</strong> aessência que revela a religião <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, pois anteriormente o hom<strong>em</strong>era ignorante <strong>de</strong> que a consciência que possui <strong>de</strong> Deus é a consciênciada sua própria essência. A religião é a consciência que o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong><strong>de</strong> si, mas s<strong>em</strong> consciência. Na religião o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> por objecto asua essência s<strong>em</strong> saber que ela é sua, uma essência alienada. Areligião é o corte <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> consigo próprio, <strong>em</strong> que ele põe Deusperante si como um ser oposto, não sen<strong>do</strong> o que o hom<strong>em</strong> é. Parajustificar este senti<strong>do</strong> os predica<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Deus são diferentes <strong>do</strong>s <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> 165 . O hom<strong>em</strong> ao objectivar a sua essência, escondida, <strong>em</strong> Deusmostra a existência <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sacor<strong>do</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> com aquilo que elepróprio é, com a sua essência. Feuerbach caminha no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>, apartir da sua análise, das representações <strong>do</strong> Deus cristão para fazer arecondução <strong>de</strong> qualificativos pessoais a predica<strong>do</strong>s <strong>humano</strong>s. O corteaqui referi<strong>do</strong> é revela<strong>do</strong>r <strong>de</strong> que a essência divina não é diferente dahumana, pois só po<strong>de</strong> existir corte entre seres que sen<strong>do</strong> um só, estãosepara<strong>do</strong>s mas que <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> são um só 166 . Aquela essência é oentendimento. Por isso, a essência divina é a consciência <strong>de</strong> si <strong>do</strong>163 Karl MARX e Friedrich ENGELS, Textos Filosóficos, Biblioteca <strong>de</strong> CiênciasHumanas, Editorial Presença, 4.ª edição, Lisboa, 1974 4 , p. 33.164 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 23: “ A religião é oprimeiro, mas indirecto, conhecimento <strong>de</strong> si <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. É por isso que <strong>em</strong> toda aparte, tanto na história da Humanida<strong>de</strong>, como na história <strong>do</strong> indivíduo, a religiãoprece<strong>de</strong> a filosofia. O hom<strong>em</strong> começa por lançar a sua essência para fora <strong>de</strong> si, antes<strong>de</strong> a encontrar <strong>em</strong> si. A sua própria essência começa por ser para ele objecto comouma essência para fora <strong>de</strong> si, antes <strong>de</strong> a encontrar <strong>em</strong> si. A sua própria essênciacomeça por ser para ele objecto como uma essência diferente”.165 I<strong>de</strong>m, p. 41.166 Ibi<strong>de</strong>m.60


entendimento, <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. A obra A essência <strong>do</strong> Cristianismo irárealçar o materialismo, mostran<strong>do</strong> que a natureza é o solo <strong>em</strong> que oshomens cresc<strong>em</strong> e evolu<strong>em</strong>, sen<strong>do</strong>, também, eles próprios, produtosda natureza. Assim, fora da natureza e <strong>do</strong>s homens nada existe. Nestesenti<strong>do</strong> “os seres superiores forja<strong>do</strong>s pela nossa imaginação religiosanão são mais <strong>do</strong> que reflexos fantásticos <strong>do</strong> nosso próprio ser” 167 .Há uma diferença essencial entre o hom<strong>em</strong> e o animal, poiseste não t<strong>em</strong> religião ainda que esta seja atribuída no <strong>do</strong>mínio dasfábulas 168 . O hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> algo <strong>de</strong> distintivo relativamente ao <strong>do</strong>mínionatural, mais especificamente aos animais e <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> o mais o queexiste é a consciência 169 . O hom<strong>em</strong> é acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> consciência,sen<strong>do</strong> por isso que existe capacida<strong>de</strong> para a ciência. Pela consciência ohom<strong>em</strong> mostra-se como ser diverso mesmo <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> animal. Ohom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> vida interior e vida exterior, sen<strong>do</strong> a primeira a vida <strong>em</strong>relação com o género. Por isso o hom<strong>em</strong> é “para si ao mesmo t<strong>em</strong>poeu e tu; po<strong>de</strong> colocar-se no lugar <strong>do</strong> outro, precisamente porque t<strong>em</strong>como objecto, não apenas a sua individualida<strong>de</strong>, mas o seu género, asua essência” 170 . Todavia, o mo<strong>do</strong> mais imediato <strong>de</strong> consciência não éconsciência <strong>de</strong> si, auto-consciência, mas um certo mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> heteroconsciência,ou seja, a consciência religiosa. Esta é a consciência <strong>de</strong> si“lançada para fora”, alienada <strong>em</strong> outr<strong>em</strong>, num ser a qu<strong>em</strong> sãoatribuídas todas as perfeições <strong>do</strong> próprio hom<strong>em</strong>. Assim, o hom<strong>em</strong>pô<strong>de</strong> rever-se na <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> Deus, compreendi<strong>do</strong> este como um serexterior ao hom<strong>em</strong> e sumamente perfeito. O objecto religiosoencontra-se no próprio hom<strong>em</strong>, é-lhe intrínseco, íntimo. Por isso, toda167 Karl MARX e Friedrich ENGELS, Textos Filosóficos Editorial Presença, Lisboa,1974 4 , pp. 33-34.168 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p.9.169 Ibi<strong>de</strong>m, “ Consciência <strong>em</strong> senti<strong>do</strong> estrito só existe quan<strong>do</strong> um ser t<strong>em</strong> comoobjecto seu próprio género, a sua essencialida<strong>de</strong>”.170 I<strong>de</strong>m, p. 10.61


a religião não passa <strong>de</strong> uma relação <strong>de</strong> auto-conhecimento <strong>do</strong> própriohom<strong>em</strong>, da relação <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> consigo próprioA religião, pelo menos a cristã, é a atitu<strong>de</strong> <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> para consigo mesmo, ou melhor, para com a suaessência (a saber, subjectiva), mas para com a suaessência como se fosse uma essência diferente. Aessência divina nada é senão a essência humana, oumelhor, a essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> purificada, liberta daslimitações <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> individual, objectivada, isto é,intuída e a<strong>do</strong>rada como uma essência própria, diferente,distinta <strong>de</strong>le – todas as <strong>de</strong>terminações da essência divinasão, por isso, <strong>de</strong>terminações humanas 171 .O “lançar para fora” pelo hom<strong>em</strong>, <strong>de</strong> si mesmo, num acto <strong>de</strong>exteriorização i<strong>de</strong>al e <strong>de</strong> objectivação está <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> condições,da cultura que marca a história <strong>do</strong> pensamento. Assim, é notório quecada cultura transfere, “lança para fora” nos seus <strong>de</strong>uses, no divino,os seus próprios <strong>de</strong>sejos b<strong>em</strong> como a sua maneira <strong>de</strong> conceber omun<strong>do</strong>. Esta é a razão pela qual o Deus judaico-cristão não é o mesmoque os <strong>de</strong>uses <strong>do</strong>s gregos <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que os <strong>de</strong>uses <strong>do</strong>s gregosse distanciaram <strong>do</strong>s <strong>de</strong>uses <strong>do</strong>s povos que os antece<strong>de</strong>ram. Cadacultura faz perdurar nos seus <strong>de</strong>uses aquilo a que <strong>de</strong> mais peculiar,particular se mostra ligada. Por isso, os seus valores, a sua visão <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>, as suas incapacida<strong>de</strong>s que objectiva i<strong>de</strong>almente num serexterior que não se encontra limita<strong>do</strong> pela finitu<strong>de</strong> humana 172 . Assim,a verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> predica<strong>do</strong> é a certeza da sua existência. Esse hom<strong>em</strong> écomo real, com <strong>de</strong>terminações <strong>em</strong> oposição ao sonha<strong>do</strong>, concebi<strong>do</strong>. A171 I<strong>de</strong>m, p. 24.172 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 30: “A certeza da existência<strong>de</strong> Deus, da qual se afirmou estar o hom<strong>em</strong> tão certo, e até mais certo <strong>do</strong> eu da suaprópria existência, só <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> por isso da certeza da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus – não é umacerteza imediata. Para o cristão só a existência <strong>do</strong> Deus cristão é uma certeza, para opagão só a <strong>do</strong> Deus pagão. O pagão não duvidava da existência <strong>de</strong> Júpiter, porque aessência <strong>de</strong> Júpiter não o escandalizava, porque não podia representar Deus sobnenhuma outra qualida<strong>de</strong>, porque esta qualida<strong>de</strong> era para ele uma certeza, umarealida<strong>de</strong> divina. Só a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> predica<strong>do</strong> é a garantia da existência. Umverda<strong>de</strong>iro ateu é, pois, apenas aquele para qu<strong>em</strong> os predica<strong>do</strong>s divinos, o amor, asabe<strong>do</strong>ria, a justiça, nada são, mas não aquele para qu<strong>em</strong> o sujeito <strong>de</strong>stes predica<strong>do</strong>snada é”.62


noção <strong>de</strong> existência é a noção primeira da verda<strong>de</strong>. Do mesmo mo<strong>do</strong>Deus ou a religião <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da <strong>de</strong>terminação pela qual o hom<strong>em</strong>compreen<strong>de</strong> a sua essência 173 . Os atributos ou vonta<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Deus nãosão mais <strong>do</strong> que atributos essenciais <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> e o hom<strong>em</strong> nada maisé <strong>do</strong> que <strong>de</strong>terminação possuin<strong>do</strong> a sua existência nas suas<strong>de</strong>terminações 174 . Estas <strong>de</strong>terminações revelam que a religião t<strong>em</strong> asua essência no facto <strong>de</strong> elas revelar<strong>em</strong> a essência <strong>de</strong> Deus.A diferença entre Deus e o hom<strong>em</strong> vai acentuar-se, originan<strong>do</strong>a negação <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Porquê? Pela razão <strong>de</strong> que o hom<strong>em</strong> vai alémda sua essência colocan<strong>do</strong> acima <strong>de</strong>la a transcendência divina. Nestesenti<strong>do</strong>, o hom<strong>em</strong> <strong>em</strong>pobrece-se, para enriquecer Deus, originan<strong>do</strong>uma ruptura, um corte ao anular a referência a si próprio, nãousufruin<strong>do</strong> da condição <strong>de</strong> sujeito singular, in<strong>do</strong> além <strong>de</strong> si, da suaessência para outra, Deus, a qu<strong>em</strong> atribui <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> in<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> o estatuto<strong>de</strong> ser supr<strong>em</strong>o “Para enriquecer Deus, o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> <strong>de</strong> se<strong>em</strong>pobrecer, para que esse mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> Deus seja tu<strong>do</strong> e o hom<strong>em</strong> sejanada” 175 . O hom<strong>em</strong> aliena-se, pois vive <strong>em</strong> Deus o que o afasta <strong>de</strong> sipróprio 176 . Aquilo que o hom<strong>em</strong> nega na religião é a sua razão, o seu173 Ibi<strong>de</strong>m: “Se se provou então que aquilo que o sujeito é resi<strong>de</strong> exclusivamente nas<strong>de</strong>terminações <strong>do</strong> sujeito, ou seja, que só o predica<strong>do</strong> é que o sujeito é para nósobjecto na sua essência, também se <strong>de</strong>monstrou que, se os predica<strong>do</strong>s divinos são<strong>de</strong>terminações da essência humana, também o sujeito <strong>de</strong>les é <strong>de</strong> essência humana”.174 I<strong>de</strong>m, p. 31: “Tais predica<strong>do</strong>s são, por ex<strong>em</strong>plo, que Deus é pessoa, que é olegisla<strong>do</strong>r moral, o pai <strong>do</strong>s homens, o santo, o bon<strong>do</strong>so, o justo, o misericordioso.Por estas e outras <strong>de</strong>terminações se vê imediatamente, ou ver-se-á pelo menos no<strong>de</strong>curso da nossa exposição, que, enquanto <strong>de</strong>terminações pessoais, são<strong>de</strong>terminações puramente humanas (…)”.175 I<strong>de</strong>m, p. 32.176 Artigo sobre “Alienação – De Feuerbach ao jov<strong>em</strong> Marx in Enciclopédia Enaudi,José Gil (Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r responsável da edição portuguesa), Imprensa Nacional –Casa da Moeda, Lisboa, 1985, p. 241: “ […] A religião, por conseguinte, baseia-senuma cisão que é uma abstracção: a essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> (a inteligência, aespiritualida<strong>de</strong>, etc.) é separada <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> sensível e finito, o qual é reduzi<strong>do</strong> aproduto ou criatura da própria essência hipostasiada ou substanciada, ou seja, éreduzi<strong>do</strong> a predica<strong>do</strong> <strong>do</strong> próprio predica<strong>do</strong>. Esta reviravolta ou inversão, na qualaquilo que é primário, é precisamente a alienação religiosa”. Ver ainda PauloSERRA, “Alienação”, in (www.lusosofia.net) Covilhã, 2008, p. 7: “A alienaçãoresi<strong>de</strong> aqui, no facto <strong>de</strong> o hom<strong>em</strong> atribuir a outr<strong>em</strong> – a Deus, um “outro”imaginário – aquilo que não é senão seu”.63


saber, o seu pensar, o que é próprio <strong>do</strong> género, para o colocar <strong>em</strong>Deus. O hom<strong>em</strong> renuncia a si para crer num ser in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,omnipotente, Deus. O hom<strong>em</strong> ao criar Deus compromete a suai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>humano</strong>. Nega também a sua liberda<strong>de</strong>, o serele próprio, autónomo, privan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> ser essência.Quanto mais se nega a sensibilida<strong>de</strong>, assim se torna Deus maissensível. Há, assim, um sacrifício <strong>do</strong> sensível <strong>em</strong> prol <strong>do</strong> divino. Ohom<strong>em</strong> afirma <strong>em</strong> Deus o que nega <strong>de</strong> si. Como já referi, o hom<strong>em</strong> aorealizar este acto na religião o ser <strong>humano</strong> nega-se, negan<strong>do</strong> a suarazão e nada conhece acerca <strong>de</strong> Deus pois os seus pensamentos sãoterrenos. No entanto existe uma s<strong>em</strong>elhança entre Deus e o hom<strong>em</strong>,pois aquele t<strong>em</strong> pensamentos <strong>humano</strong>s. T<strong>em</strong>, como o hom<strong>em</strong>,esqu<strong>em</strong>as mentais. Daí que o hom<strong>em</strong>, ao colocar <strong>em</strong> Deus o seu saber,o seu pensar anula-se como pessoa, ven<strong>do</strong> <strong>em</strong> Deus, um ser to<strong>do</strong>po<strong>de</strong>rosoque busca, pela criação <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, a sua glória.No âmbito <strong>do</strong> b<strong>em</strong> e <strong>do</strong> mal, o primeiro é pensa<strong>do</strong> como uma<strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> Deus enquanto que o hom<strong>em</strong> é mau, não capaz <strong>do</strong>b<strong>em</strong>. Assim o que é atribuí<strong>do</strong> ao Deus <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> é pertença <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>. Por isso, o que o hom<strong>em</strong> afirma <strong>de</strong> Deus di-lo <strong>de</strong> si próprio. Épor isso que o hom<strong>em</strong> ao a<strong>do</strong>rar Deus como um ser bom cont<strong>em</strong>pla<strong>em</strong> Deus a sua imag<strong>em</strong>, quer dizer, o que é a sua essência boa.Estamos perante uma inversão na medida <strong>em</strong> que aquele que<strong>de</strong>termina Deus só nega aparent<strong>em</strong>ente a acção humana. Dizer a acção<strong>de</strong> Deus como humana é afirmar a acção <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> como divina. “Areligião t<strong>em</strong> um segre<strong>do</strong>” 177 : é o próprio hom<strong>em</strong>, porquanto seobjectiva fazen<strong>do</strong> <strong>de</strong> si próprio objecto <strong>de</strong>ssa essência que sehttp://www.lusosofia.net/textos/serra_paulo_alienacao.pdf [Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 29 <strong>de</strong>Maio <strong>de</strong> 2009].177 Ludwig FEUERBACH, “A Essência <strong>do</strong> Cristianismo”, p. 36: “O hom<strong>em</strong> – eis osegre<strong>do</strong> da religião – objectiva-se e torna a fazer <strong>de</strong> si objecto <strong>de</strong>ssa essênciaobjectivada, transformada num sujeito; ele pensa-se, é objecto para si, mas comoobjecto <strong>de</strong> um objecto, <strong>de</strong> um outro ser”.64


objectivou, modificada num sujeito. O hom<strong>em</strong> é um para si comoobjecto <strong>de</strong> Deus. Quer dizer, o hom<strong>em</strong> visa-se a si mesmo <strong>em</strong> Deus epor meio <strong>de</strong>le. É um visar <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> a si mesmo pois a acção <strong>de</strong> Deusnão é distinta da activida<strong>de</strong> humana. Trata-se <strong>de</strong> uma tautologia, <strong>de</strong>uma mesma coisa, à s<strong>em</strong>elhança da sístole e diástole <strong>do</strong> coração,assim o mesmo se mostra na religião. Pela primeira função o hom<strong>em</strong>lança a sua essência para fora <strong>de</strong>le próprio. Pela segunda o hom<strong>em</strong>torna a receber no seu íntimo, coração o que havia rejeita<strong>do</strong>. Estamosperante uma reversibilida<strong>de</strong> <strong>em</strong> que o hom<strong>em</strong> recupera a dignida<strong>de</strong>que per<strong>de</strong>ra, como na seguinte expressão: “Homo homini <strong>de</strong>us est” 178 .A essência divina é humana, é o próprio hom<strong>em</strong>. As <strong>de</strong>terminações <strong>de</strong>Deus são as <strong>de</strong>terminações <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Deste mo<strong>do</strong> criar o divino émais <strong>do</strong> que um sonho, pois Deus sen<strong>do</strong> cria<strong>do</strong> pelo hom<strong>em</strong> é osujeito que possui predica<strong>do</strong>s reais, por isso é necessário reduzir ateologia à antropologia 179 . Por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> uma complexida<strong>de</strong> parecehaver algo mais simples. O hom<strong>em</strong> torna-se importante <strong>em</strong> Feuerbach.Feuerbach observa que a teologia foi utilizada para amarfanhar ohom<strong>em</strong>, para afirmar um Deus que há-<strong>de</strong> vir. Por conseguinte ateologia implica o mun<strong>do</strong> fantasmático, é a faculda<strong>de</strong> da imaginação.A teologia é o sonho <strong>do</strong> espírito <strong>humano</strong>.178 Adriana Veríssimo SERRÃO, Da razão ao hom<strong>em</strong> ou o lugar sist<strong>em</strong>ático <strong>de</strong> AEssência <strong>do</strong> Cristianismo, in Pensar Feuerbach, J. Barata-MOURA, V. SoromenhoMARQUES, Pensar Feuerbach, p. 15. Ver ainda Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong>Cristianismo, pp.276 a 278.179 Paulo SERRA, “Alienação”, in (www.lusosofia.net), Covilhã, 2008, p. 8: “Sen<strong>do</strong> aalienação religiosa a fonte <strong>de</strong> toda a alienação, a solução da mesma – a <strong>de</strong>salienação– implica a passag<strong>em</strong> da teologia à antropologia, <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> divino ao mun<strong>do</strong><strong>humano</strong>, a <strong>de</strong>scida <strong>do</strong> “céu” à “terra”. Daí que, e ao contrário <strong>do</strong> que afirma Hegel,para Feuerbach a arte, a religião e a filosofia não são manifestações ou revelações <strong>do</strong>“Absoluto”, mas antes “as manifestações ou revelações <strong>do</strong> ser <strong>humano</strong> verda<strong>de</strong>iro”.Este ser “<strong>humano</strong> verda<strong>de</strong>iro” não é o indivíduo, o hom<strong>em</strong> individual – mas antes ohom<strong>em</strong> que é o “eu” e o “tu”, a comunida<strong>de</strong> humana, a humanida<strong>de</strong> no seu conjunto.Ela é que é, verda<strong>de</strong>iramente, o infinito e o eterno que o hom<strong>em</strong>, erradamente,atribui a Deus. O hom<strong>em</strong> como humanida<strong>de</strong> é o Deus <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>.”. [Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong>29 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 2009].65


Feuerbach <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir o segre<strong>do</strong> da religião mais b<strong>em</strong>guarda<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a criação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> importa fazer uma pergunta que éinterior: como é que foi possível que se Deus não existe, como é que ohom<strong>em</strong> se <strong>de</strong>sapossou <strong>do</strong> que é mais seu, se <strong>de</strong>sse este monstruosoprocesso <strong>de</strong> alienação, rouba o que é <strong>de</strong> mais próprio no hom<strong>em</strong>, <strong>de</strong>si? Em Marx o hom<strong>em</strong> é expropria<strong>do</strong> por outros. Em Feuerbach é opróprio hom<strong>em</strong> que se <strong>de</strong>sapossa. Não acredita que seja o que é eentão parece que t<strong>em</strong> vertigens e <strong>de</strong>sapossa-se, entregan<strong>do</strong> o que há <strong>de</strong>melhor no hom<strong>em</strong>.Como é que a alienação acontece pelo “lançar para fora”? Agénese da religião é psicológica, haven<strong>do</strong> por consequência umaprojecção <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro para fora. Há como que uma antropologiabiológica: distingue o hom<strong>em</strong> <strong>do</strong> animal. O hom<strong>em</strong> vive <strong>de</strong> acor<strong>do</strong>com a consciência, po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> reflexão e o animal <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com oinstinto. Aquele po<strong>de</strong> objectivar a sua própria essência (genérica)específica, po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> cindir, <strong>de</strong>s<strong>do</strong>brar, que se coloca fora, comoconstituin<strong>do</strong> um “objectum” e <strong>em</strong> torno <strong>de</strong>sta <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> si faz imensasvariações. Aquele <strong>de</strong>s<strong>do</strong>brar é uma rampa <strong>de</strong> fuga para atranscendência (o hom<strong>em</strong> objectiva a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> si). Por consequênciatrai o próprio hom<strong>em</strong> ao objectivar a sua essência lançan<strong>do</strong>-se numaespécie <strong>de</strong> hipostasiação, <strong>de</strong> substancialização <strong>do</strong> que era apenas um<strong>de</strong>vaneio. É um processo mais metafísico.Com o hom<strong>em</strong> há uma espécie <strong>de</strong> contradição entre aexpressão como finito e a tomada <strong>de</strong> consciência como infinito. Háuma ruptura ao projectar noutro ser o que há <strong>de</strong> melhor <strong>em</strong> si. Énecessário dizer que o hom<strong>em</strong> não é Deus mas espécie, <strong>em</strong> mençãometafísica.Em Feuerbach é preciso corrigir o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> transcendência,reconduzin<strong>do</strong> ao lugar certo, auto-transcendência e não o “lançar parafora”, na metafísica. A antropologia é, assim, segun<strong>do</strong> a metáfora <strong>de</strong>Feuerbach, a terra prometida da filosofia, pois assim como Moisés66


avistou a terra prometida, também a filosofia ao longo da sua histórianunca nos levou à terra prometida, porque nos <strong>de</strong>u promessas vãs.Todavia, agora t<strong>em</strong> consciência <strong>de</strong> estar a organizar uma revolução nahistória <strong>do</strong> pensamento. Por isso foi sua preocupação <strong>de</strong>monstrar quea religião elevada a teologia é o pior para a Humanida<strong>de</strong>, porque<strong>de</strong>turpa a essência da religião e substitui por uma essência falsa, ateologia. É o pior momento da Humanida<strong>de</strong> 180 . Logo, era precisotransformar <strong>em</strong> verda<strong>de</strong>ira essência, substituin<strong>do</strong> a teologia pelaantropologia.A tarefa da filosofia novaNesse senti<strong>do</strong> on<strong>de</strong> enxergar aquilo que é próprio da filosofia?Não será no próprio hom<strong>em</strong>? É no próprio hom<strong>em</strong> que está a unida<strong>de</strong>que a filosofia <strong>de</strong>ve procurar. Feuerbach vai inverter a filosofia <strong>de</strong>Hegel expurgan<strong>do</strong>-lhe to<strong>do</strong> o seu carácter abstracto, fazen<strong>do</strong> a suarecondução à sua verda<strong>de</strong>ira dimensão: a dimensão <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Nestesenti<strong>do</strong>, é notória a constância na procura <strong>do</strong> infinito na finitu<strong>de</strong> <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>. Daí a sua insistência <strong>de</strong> que a essência <strong>do</strong> finito é a infinitu<strong>de</strong>e que esta <strong>de</strong>ve ser buscada na “<strong>em</strong>piria” <strong>do</strong> finito. Quer dizer, se oinfinito só existe, só é real se <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> não se colocacomo infinito, mas como finito “então o finito é efectivamente oinfinito” 181 . Assim, qual é a verda<strong>de</strong>ira tarefa da filosofia? “A tarefada verda<strong>de</strong>ira filosofia não é reconhecer o infinito como finito, mas ofinito como o não finito; ou não é transpor o finito para o infinito,180 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 4.181 Ludwig FEUERBACH, Teses Provisórias para a reforma da filosofia, p. 7.[Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 29 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 2009].67


mas o infinito para o finito.” 182 . Feuerbach quer, assim, dizer que oinício da filosofia é o finito, o real. Ou seja, não se po<strong>de</strong> pensar oInfinito s<strong>em</strong> o finito, o <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pois antes <strong>de</strong> se pensar aqualida<strong>de</strong> há o sentir a qualida<strong>de</strong>. Por isso, o infinito é a verda<strong>de</strong>iraessência <strong>do</strong> finito – o finito verda<strong>de</strong>iro. A especulação ou filosofiaverda<strong>de</strong>ira nada mais é <strong>do</strong> que a <strong>em</strong>piria verda<strong>de</strong>ira e universal.Assim, o infinito da filosofia b<strong>em</strong> como da religião foi e é algo finito.O próprio Feuerbach culpa a filosofia especulativa <strong>do</strong> erro pratica<strong>do</strong>pela teologia que fez das <strong>de</strong>terminações da realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminações <strong>do</strong>infinito.É naquele senti<strong>do</strong> que Feuerbach se refere à honestida<strong>de</strong> dafilosofia, quan<strong>do</strong> diz que o segre<strong>do</strong> da natureza <strong>em</strong> Deus não é mais<strong>do</strong> que o segre<strong>do</strong> da natureza humana. Refere mesmo que a filosofiaseguiu, até ao momento, um caminho inverti<strong>do</strong>, ao contrário, poiscaminhou <strong>do</strong> abstracto para o concreto, <strong>do</strong> i<strong>de</strong>al para o real. O mo<strong>do</strong><strong>de</strong> conceber a filosofia por Feuerbach <strong>em</strong>erge como um <strong>de</strong>spertar <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>, <strong>do</strong> <strong>humano</strong> para a sua realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> si mesmo que t<strong>em</strong> lugarna filosofia prática. É <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong> que “A filosofia é o conhecimento<strong>do</strong> que é. Pensar e conhecer as coisas e os seres como são – eis a leisupr<strong>em</strong>a, a mais elevada tarefa da filosofia.” 183 . Deste mo<strong>do</strong> afilosofia é a tomada <strong>de</strong> consciência por parte <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> orienta<strong>do</strong>para construir um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> se ver a si próprio <strong>de</strong>spi<strong>do</strong> da exteriorida<strong>de</strong>teológico/metafísica <strong>em</strong> que s<strong>em</strong>pre se situou. Este aspecto realça quea filosofia se inicia pelo ser da consciência, não se po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> estaseparar daquele – à unida<strong>de</strong> real <strong>de</strong> espírito e consciência éconsciência. Por isso filosofar é um voltar a si mesmo para se captarna totalida<strong>de</strong>. É o confirmar e possuir <strong>de</strong> novo <strong>em</strong> si to<strong>do</strong>s oscaracteres que se encontravam perdi<strong>do</strong>s. Está-se perante o recuperar etornar a formular, a partir <strong>do</strong> <strong>humano</strong>, to<strong>do</strong> o caminho da filosofia.182 Ibi<strong>de</strong>m.183 I<strong>de</strong>m, p. 9.68


Nesta recuperação nota-se que só um ser que se <strong>de</strong>senvolve e<strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra no t<strong>em</strong>po é, <strong>em</strong> referência feuerbachiana, um ser absoluto,verda<strong>de</strong>iro real.Isto é também uma questão <strong>de</strong> amor, e chama, <strong>de</strong> espírito,energia, limite, t<strong>em</strong>po, aflição. Só o ser necessita<strong>do</strong> t<strong>em</strong> necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> existência, pois “A existência s<strong>em</strong> necessida<strong>de</strong> é um existênciasupérflua (…) um ser <strong>em</strong> indigência é um ser s<strong>em</strong> fundamento.” 184 . Oser que <strong>de</strong>ve ter o <strong>do</strong>m da existência é o ser que sofre, o ser comafecção, com sensibilida<strong>de</strong> e matéria, com carne e sangue. É a“<strong>em</strong>piria” <strong>do</strong> finito 185 que faz surgir a nova filosofia <strong>em</strong> oposição àfilosofia <strong>do</strong> Absoluto. Há como que fazer assentar a filosofia nacabeça, no coração, no pensamento e na intuição. É a partir <strong>de</strong>sta queo pensamento t<strong>em</strong> essência e se une a vida e a verda<strong>de</strong> 186 , pois pelaintuição a essência torna-se idêntica à existência, a existência une-se àessência, a passivida<strong>de</strong> à activida<strong>de</strong>. Em Feuerbach só on<strong>de</strong> hámovimento, paixão, sangue, sensibilida<strong>de</strong> existe espírito. O coraçãopassa <strong>de</strong> uma fortaleza, na teologia, a acto contra a teologia, umcomeço ateu na perspectiva teológica. Porquê? Pela razão <strong>de</strong> crer narealida<strong>de</strong> divina da própria essência. Pelo contrário, a cabeça dáorig<strong>em</strong> a uma essência objectiva.A religião, porque é “apenas afecção, sentimento, coração,amor” 187 nega Deus e dissolve-o no Hom<strong>em</strong>. A nova filosofia é aafirmação da religião, da religião que se compreen<strong>de</strong> a si própria.Para Hegel, o pensamento é o ser, um pensamento no própriopensamento, pelo que se aliena e esta alienação é a natureza. Overda<strong>de</strong>iro real é o pensamento. O pensamento pensa-se a si próprio,184 I<strong>de</strong>m, pp. 10, 11. [Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 28 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 2009].185 I<strong>de</strong>m, p. 8, “O infinito é a essência verda<strong>de</strong>ira <strong>do</strong> finito – o finito verda<strong>de</strong>iro. Aespeculação ou filosofia verda<strong>de</strong>ira nada mais é <strong>do</strong> que a <strong>em</strong>piria verda<strong>de</strong>ira euniversal".186 I<strong>de</strong>m, p. 12.187 I<strong>de</strong>m, p. 13.69


enquanto os objectos são predica<strong>do</strong>s. Disto resulta uma contradição,<strong>em</strong> que o pensamento se vai transformar <strong>em</strong> sujeito e a religião,objecto, <strong>em</strong> predica<strong>do</strong> daquele.Torna-se necessário <strong>de</strong>ixar a filosofia <strong>de</strong> Hegel, pois só assimnos <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>mos da teologia. A verda<strong>de</strong> é que o ser é o sujeito,enquanto que o pensamento é o predica<strong>do</strong>. Há, aqui, uma relaçãounívoca pois o pensamento é resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> ser.A nova filosofia é a negação da filosofia como qualida<strong>de</strong>abstracta, sen<strong>do</strong> o próprio hom<strong>em</strong>, não o conceito <strong>de</strong> Hom<strong>em</strong>, comoser concreto, que existe e se encontra no mun<strong>do</strong> e na socieda<strong>de</strong>, que seconhece como “auto consciência da essência da natureza, a essênciada história, a essência <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s, a essência da religião” 188 . A novafilosofia t<strong>em</strong> por objecto o hom<strong>em</strong> que pensa “o hom<strong>em</strong> que é e sabeque é a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> real (não imaginária), absoluta, <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s osprincípios e contradições, <strong>de</strong> todas s qualida<strong>de</strong>s activas e passivas,espirituais e sensíveis, políticas e sociais” 189 passan<strong>do</strong> a Ser supr<strong>em</strong>o,nome <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os nomes, expressan<strong>do</strong> s<strong>em</strong>pre a sua essência. Querdizer, Feuerbach ao referir o hom<strong>em</strong> como questão central dá-lhe,restitui-lhe o que lhe tinha si<strong>do</strong> tira<strong>do</strong>: a humanida<strong>de</strong> com as suas<strong>de</strong>terminações reais, a existência, como indivíduo sensível. Na novafilosofia, a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> realizou-se passan<strong>do</strong> a ser a verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> cristianismo.A procura pelo ser sensível“Os segre<strong>do</strong>s mais profun<strong>do</strong>s resi<strong>de</strong>m por isso nasmais simples coisas naturais, que o especulativo188 I<strong>de</strong>m, p. 17.189 Ibi<strong>de</strong>m.70


calca <strong>de</strong>baixo <strong>do</strong>s pés, ao apelar fantasiosamenteao além” 190 .Feuerbach com a sua Contribuição à Crítica da filosofia <strong>de</strong>Hegel apresenta as características base acerca <strong>do</strong> ser. Feuerbach opõesee recusa o carácter especulativo da filosofia al<strong>em</strong>ã, a filosofiahegeliana. A Filosofia <strong>de</strong> Hegel tinha <strong>em</strong> vista abranger <strong>em</strong> si própriaa noção <strong>de</strong> filosofia. É este aspecto que Feuerbach vai questionar ecriticar. Hegel diferencia as religiões, filosofias, as épocas e os povosrelegan<strong>do</strong> para plano secundário aquilo que é comum e s<strong>em</strong>elhante,referin<strong>do</strong> a religião cristã como religião absoluta, s<strong>em</strong> dar importânciaao comum, a natureza da religião. Situação idêntica vive a filosofia. Afilosofia <strong>de</strong> Hegel t<strong>em</strong> <strong>em</strong> vista englobar <strong>em</strong> si o que é próprio <strong>do</strong>conceito <strong>de</strong> filosofia. Apesar <strong>de</strong>sta pretensão, a filosofia <strong>de</strong> Hegel é<strong>de</strong>terminada, ten<strong>do</strong> existência <strong>em</strong>pírica. Houve, no entanto, a suaexpressão como filosofia absoluta 191 . A Filosofia hegeliana apresenta<strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong> o probl<strong>em</strong>a e Feuerbach o mostra da seguinte maneira:“será possível, pelo menos <strong>em</strong> geral, que o género se realizeabsolutamente num único indivíduo, a arte num único artista, afilosofia num único filósofo?” 192 . Esta é uma questão <strong>de</strong>terminantepois a Filosofia Absoluta <strong>de</strong> Hegel <strong>de</strong>para-se com o <strong>de</strong>vir t<strong>em</strong>poral.Há, assim, uma exigência para que algo se torne real: ser <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>.Por isso, este aspecto mostra uma <strong>de</strong>sa<strong>de</strong>quação entre incarnação <strong>do</strong>género num indivíduo histórico e que seria visto como umacontecimento inexplicável, milagre, pois haveria um refutar omistério que faz <strong>de</strong> Deus um hom<strong>em</strong>. Há, assim, uma190 Ludwig FEUERBACH, Para a Crítica da Filosofia <strong>de</strong> Hegel in LudwigFEUERBACH Filosofia da Sensibilida<strong>de</strong>, Escritos (1839-1846), p. 76.191 I<strong>de</strong>m, p. 45: “ A filosofia <strong>de</strong> Hegel, digo, a <strong>de</strong> Hegel […] é s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong>terminada,particular, <strong>em</strong>piricamente existente – é <strong>de</strong>finida e proclamada, se não pelo própriomestre, pelo menos pelos seus discípulos, os seus discípulos orto<strong>do</strong>xos […] como afilosofia absoluta, ou seja, n<strong>em</strong> mais n<strong>em</strong> menos <strong>do</strong> que como a própria filosofia”.192 Ibi<strong>de</strong>m.71


incompatibilida<strong>de</strong> entre incarnação e história, porque a entrada <strong>do</strong>divino na história anula a história. Porém, a história continua a seguiro seu caminho o que leva à anulação da teoria da incarnação pelahistória. Quer dizer a manifestação <strong>do</strong> divino situa-se noenca<strong>de</strong>amento fenoménico presente na história <strong>em</strong> senti<strong>do</strong> natural. Porisso não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong> que o t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>svela tu<strong>do</strong> o que ésegre<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> a verda<strong>de</strong> filha <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po. Se aplicarmos este mo<strong>do</strong> <strong>de</strong>raciocinar ao <strong>do</strong>mínio da filosofia <strong>de</strong>stitui-se a <strong>em</strong>ergência <strong>de</strong> umafilosofia assente num predica<strong>do</strong> absoluto 193 . Assim, Feuerbachconfirma a sua oposição a predica<strong>do</strong>s absolutos, incondicionaisatravés <strong>do</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> que está patente <strong>em</strong> Hegel, <strong>do</strong> finito porque asfilosofias passam, porque os homens e os t<strong>em</strong>pos também passam 194 .Há, assim, a negação da noção absoluta da filosofia <strong>de</strong> Hegel,seguin<strong>do</strong>-se uma espécie <strong>de</strong> nivelamento, porque <strong>de</strong>terminada eparticular, pois no início <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> há como que um Deus <strong>do</strong> fim,pelo que a auto-limitação é condição s<strong>em</strong> a qual não se entra nele 195 .Há, <strong>em</strong> Hegel, a ausência da condição da filosofia pois não dáimportância ao enquadramento da filosofia no t<strong>em</strong>po, como algo<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pois era assim que se tornava real, pois “O que um diaentra no espaço e no t<strong>em</strong>po t<strong>em</strong> também <strong>de</strong> se submeter às leis <strong>do</strong>193 I<strong>de</strong>m, p. 47: “Fosse a filosofia <strong>de</strong> Hegel a realida<strong>de</strong> absoluta da <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> filosofia,então a suspensão da razão na filosofia <strong>de</strong> Hegel teria <strong>de</strong> ter necessariamente comoconsequência a suspensão <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po, porque se o t<strong>em</strong>po prosseguisse como antes oseu triste curso, a filosofia <strong>de</strong> Hegel ficaria irr<strong>em</strong>ediavelmente privada <strong>do</strong> predica<strong>do</strong>da absolutida<strong>de</strong>”.194 Ibi<strong>de</strong>m, “Pens<strong>em</strong>os por alguns instantes apenas no <strong>futuro</strong> <strong>do</strong>s próximos séculos.Não será então para nós a filosofia <strong>de</strong> Hegel, mesmo segun<strong>do</strong> o t<strong>em</strong>po, uma filosofiaestranha, legada pela tradição? Po<strong>de</strong>r<strong>em</strong>os consi<strong>de</strong>rar a filosofia <strong>de</strong> um outro t<strong>em</strong>po,a filosofia <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, como a nossa filosofia, como nossa cont<strong>em</strong>porânea? […] Nãohaver<strong>em</strong>os então <strong>de</strong> sentir a filosofia <strong>de</strong> Hegel tal como outrora os reforma<strong>do</strong>ressentiram o Aristóteles medieval, como um constrangimento e um far<strong>do</strong>? […] nãoserá portanto a filosofia <strong>de</strong> Hegel novamente r<strong>em</strong>etida nolens volens <strong>do</strong> estatuto <strong>de</strong>realida<strong>de</strong> absoluta da <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> para a mo<strong>de</strong>sta condição <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada eparticular?”.195 I<strong>de</strong>m, p. 46 “Seja o que for que se torne real só se torna real como algo<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>. Uma incarnação <strong>do</strong> género <strong>em</strong> toda a sua plenitu<strong>de</strong> numa únicaindividualida<strong>de</strong> seria um milagre absoluto, uma supressão violenta <strong>de</strong> todas as leise princípios da realida<strong>de</strong> – seria <strong>de</strong> facto o <strong>de</strong>clínio <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”.72


espaço e <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po” 196 . A filosofia hegeliana começa pelo ser, puro.Não por um pressuposto, por um começo como a filosofia <strong>de</strong> Hegel,universal e necessário. Porém, para Feuerbach trata-se <strong>de</strong> um começo<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> e isto pela perspectiva <strong>de</strong> Hegel. Há, assim, um caminhar<strong>em</strong> direcção ao próprio ser, s<strong>em</strong> ro<strong>de</strong>ios n<strong>em</strong> pressupostos 197 . Nota-seno texto <strong>de</strong> Feuerbach um balançar entre um posicionamento crítico àfilosofia especulativa hegeliana e o afirmar o ser sensível, negan<strong>do</strong> ocomeço hegeliano pelo ser puro ten<strong>do</strong> Hegel começa<strong>do</strong> com opressuposto da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> absoluta, poisA <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> absoluta ou <strong>do</strong> absoluto <strong>em</strong>geral era para ele uma verda<strong>de</strong> objectiva, s<strong>em</strong> mais, enão apenas uma verda<strong>de</strong>, mas a verda<strong>de</strong> absoluta, aprópria <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> absoluta – a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> absoluta, quer dizer, quejá não podia ser posta <strong>em</strong> dúvida, que se erguia acima<strong>de</strong> toda a crítica e <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o cepticismo; constitui umefeito e uma proprieda<strong>de</strong> notáveis, e psicologicamentenecessários, da <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>do</strong> absoluto, não po<strong>de</strong>r ser maisposta <strong>em</strong> dúvida, seja ela o que for 198 .A I<strong>de</strong>ia não é só o início, o ponto <strong>de</strong> partida mas também o<strong>de</strong>senvolvimento. A I<strong>de</strong>ia não só orienta mas também é o ser e aessência, pertencen<strong>do</strong>-lhe ultrapassar os enre<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s seu caminho 199 .A <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> realiza uma odisseia <strong>em</strong> que se ve<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s osmomentos realizan<strong>do</strong>-se. A <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> absoluta é tida como o primeirotermo e o último. A progressão é um regredir, retroce<strong>de</strong>r, voltar <strong>de</strong>196 I<strong>de</strong>m, p. 46.197 I<strong>de</strong>m, p. 48, “Ora é fácil <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r que tu<strong>do</strong> t<strong>em</strong> <strong>de</strong> começar e, portanto,também a filosofia.”. S<strong>em</strong> dúvida; mas este começo é contingente, indiferente; pelocontrário, o começo com o qual a filosofia <strong>de</strong>ve começar t<strong>em</strong> um significa<strong>do</strong>especial, o significa<strong>do</strong> daquilo que <strong>em</strong> si, ou cientificamente, é primeiro. Ora, eupergunto justamente: porquê constituir <strong>em</strong> geral um tal começo? Será que o conceito<strong>de</strong> começo já não é um objecto da crítica, será ele imediatamente verda<strong>de</strong>iro euniversal? Porque é que, no começo, não hei-<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r prescindir justamente <strong>do</strong>conceito <strong>de</strong> começo, porque não hei-<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r referir-me imediatamente ao real?Hegel começa com o ser, ou seja, com o conceito <strong>de</strong> ser; porque não hei-<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rcomeçar com o próprio ser, ou seja, com o ser real?”198 I<strong>de</strong>m, p. 64.199 I<strong>de</strong>m, p. 50, “A <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> da <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> ou a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> absoluta compreen<strong>de</strong> nela a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> daessência, <strong>do</strong> ser”.73


novo àquilo <strong>de</strong> que se partiu. Quer dizer, “No fim volto ao princípio. A<strong>i<strong>de</strong>ia</strong> da <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> ou a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> absoluta compreen<strong>de</strong> nela a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> daessência, <strong>do</strong> ser. Portanto, agora sei que ser, essência são momentosda <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> ou que são a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> absoluta como a Lógica in nuce” 200 . Háuma ligação entre o início e o fim, no âmbito da filosofia <strong>de</strong> Hegel, aonível <strong>do</strong> trabalho absoluto da <strong>i<strong>de</strong>ia</strong>. Feuerbach não concorda com oespírito <strong>de</strong> sist<strong>em</strong>a, sen<strong>do</strong> o culminar <strong>do</strong> filosofar sist<strong>em</strong>ático, in<strong>do</strong>procurar sobre a necessida<strong>de</strong> ou a consequência da circularida<strong>de</strong>formal. Do ponto <strong>de</strong> vista feuerbachiano não existe, não po<strong>de</strong> existir,confusão entre sist<strong>em</strong>a e a razão. A forma t<strong>em</strong> <strong>de</strong> ser didáctica, ten<strong>do</strong>a exposição da filosofia <strong>de</strong> ser filosófica, uma espécie <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>entre forma e conteú<strong>do</strong>. Assim, o sist<strong>em</strong>ático é um artista e Hegel é omais perfeito artista filosófico. O sist<strong>em</strong>a é, segun<strong>do</strong> Hegel, o círculoque se fecha sobre si, que regressa ao início. Por isso a filosofiahegeliana é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> o sist<strong>em</strong>a mais perfeito. Para Hegel a formaobjectiva-se ao assumir a forma <strong>de</strong> essência, o ser <strong>do</strong> pensamento paraoutros no ser <strong>em</strong> si. Há a transformação <strong>em</strong> fim <strong>do</strong> que <strong>de</strong>veria serapenas um meio 201 . O sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong>veria ser como a razão, <strong>em</strong> que aexposição não <strong>de</strong>via pressupor nada <strong>em</strong> nós, mas esgotar o sujeito. Éum sist<strong>em</strong>a que auto-aliena a razão. Está-se perante um formalismológico, ao abstrair da preexistência <strong>do</strong> entendimento, <strong>de</strong> não apelar aoentendimento, <strong>de</strong> <strong>de</strong>svalorização da subjectivida<strong>de</strong>. Há, assim, naperspectiva <strong>de</strong> Fuerbach uma crítica a uma teoria que se fecha sobre simesma, rejeitan<strong>do</strong> o <strong>do</strong>mínio <strong>em</strong>pírico pelo movimento <strong>do</strong> conceito.Neste senti<strong>do</strong> a crítica <strong>de</strong> Feuerbach à filosofia especulativa <strong>de</strong> Hegel200 Ibi<strong>de</strong>m.201 I<strong>de</strong>m, p. 54, “Qualquer exposição da filosofia, seja ela oral ou escrita, apenas t<strong>em</strong>e po<strong>de</strong> ter o significa<strong>do</strong> <strong>de</strong> um meio. Cada sist<strong>em</strong>a é somente expressão, somenteimag<strong>em</strong> da razão, por isso é para a razão somente um objecto, que ela, enquantopo<strong>de</strong>r vivo que se reproduz <strong>em</strong> novos seres pensantes, contrapõe a si mesma comoum objecto da crítica. Qualquer sist<strong>em</strong>a que não seja reconheci<strong>do</strong> e assimila<strong>do</strong> comoum simples meio limita e corrompe o espírito, uma vez que põe o pensamentomediato e formal no lugar <strong>do</strong> pensamento imediato, originário, material”.74


t<strong>em</strong> <strong>em</strong> vista procurar o sensível “A resolução <strong>de</strong>sta contradição seriaa prova da realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ser lógico, a <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> que ele não éaquela abstracção irreal, como o entendimento agora a consi<strong>de</strong>ra” 202 .Por isso, “O ser sensível <strong>de</strong>smente o ser lógico; este contradiz aquele,aquele contradiz este” 203 , pois efectivo é apenas o ser concreto. Há <strong>em</strong>Feuerbach uma oposição e uma procura <strong>do</strong> ser sensível, real, concretorelativamente ao ser e essência da <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>em</strong> Hegel. Neste senti<strong>do</strong> tirarao hom<strong>em</strong> aquilo que o faz ser hom<strong>em</strong> prova-se que não é hom<strong>em</strong> 204 .Há, assim, segun<strong>do</strong> Feuerbach um colocar da filosofia especulativa<strong>em</strong> oposição, discordância com o real sensível, <strong>do</strong> ser concreto <strong>em</strong>oposição ao ser geral, “O oposto <strong>do</strong> ser – <strong>do</strong> ser <strong>em</strong> geral, como aprópria lógica o consi<strong>de</strong>ra – não é o nada, mas o ser sensível,concreto” 205 . É por isso que Feuerbach coloca <strong>em</strong> causa a divergênciapatente no ser lógico 206 . E mesmo a dialéctica não consiste nummonólogo da especulação consigo própria, mas num diálogo <strong>de</strong>ssaespeculação e da <strong>em</strong>piria. O que Hegel <strong>de</strong>via ter feito era refutar a<strong>em</strong>piria mostran<strong>do</strong> que o ser sensível era irreal e que o pensamento erareal. No entanto acontece algo ao contrário, pois a lógica <strong>de</strong> Hegel202 I<strong>de</strong>m, p. 59.203 Ibi<strong>de</strong>m.204 I<strong>de</strong>m, p. 58, “Se tiras ao hom<strong>em</strong> aquilo pelo qual é hom<strong>em</strong>, po<strong>de</strong>s provar-me s<strong>em</strong>qualquer dificulda<strong>de</strong> que ele não é um hom<strong>em</strong>. Mas como o conceito <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> <strong>do</strong>qual retiraste a differentia specifica <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> já não é um conceito <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> masuma essência artificosa, como é o caso <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> platónico segun<strong>do</strong> Diógenes,também o conceito <strong>de</strong> ser ao qual retiraste o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> ser já não é o conceito <strong>de</strong>ser. Tão diversas são as coisas, tão diverso é o ser. O ser coinci<strong>de</strong> com a coisa que é.A qu<strong>em</strong> retiras o ser, retiras tu<strong>do</strong>. O ser não po<strong>de</strong> ser isola<strong>do</strong>, por si. O ser não é umconceito particular; pelo menos para o entendimento, ele é tu<strong>do</strong>”.205 I<strong>de</strong>m, p. 59.206 I<strong>de</strong>m, p. 58, “Como po<strong>de</strong> então a Lógica, como po<strong>de</strong> <strong>em</strong> geral uma filosofia<strong>de</strong>terminada, <strong>de</strong>monstrar a sua verda<strong>de</strong> e realida<strong>de</strong>, se começa com uma contradição<strong>em</strong> relação à realida<strong>de</strong> sensível, <strong>em</strong> relação ao entendimento da realida<strong>de</strong>, e nãoresolver essa contradição? Que ela se mostre a si mesma como verda<strong>de</strong>ira, disso nãorestam dúvidas; mas não é disso que se trata. Para <strong>de</strong>monstrar, são precisos <strong>do</strong>is: ao<strong>de</strong>monstrar o pensa<strong>do</strong>r cin<strong>de</strong>-se, contradiz-se a si mesmo; e só na medida <strong>em</strong> que opensamento sustentou e superou esta oposição-a-si-mesmo é um pensamento<strong>de</strong>monstra<strong>do</strong>. D<strong>em</strong>onstrar não é mais <strong>do</strong> que refutar. Cada <strong>de</strong>terminação intelectualt<strong>em</strong> o seu oposto, a sua contradição. Não é na unida<strong>de</strong> com o seu oposto, mas narefutação <strong>de</strong>le, que consiste a verda<strong>de</strong>”.75


discorda da realida<strong>de</strong> sensível e não se mostra capaz <strong>de</strong> se <strong>de</strong>monstrarcomo verda<strong>de</strong>ira, porque o outro <strong>do</strong> pensamento puro é oentendimento sensível. Assim, fazer a prova no <strong>do</strong>mínio filosófico éefectuar a superação da contradição que existe entre inteligênciasensível e pensamento puro fazen<strong>do</strong> que “o pensamento é verda<strong>de</strong>ironão apenas para si, mas também para o seu contrário” 207 . Quer dizer,Feuerbach torna inváli<strong>do</strong> um test<strong>em</strong>unho subjectivo, unilateral,duvi<strong>do</strong>so pois o ser lógico constitui uma contradição directa com o serda intuição <strong>em</strong>pírico-concreta <strong>do</strong> entendimento. A ruptura com aintuição imediata não a realizou só Hegel, mas toda a filosofiamo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong>s<strong>de</strong> R. Descartes e Espinosa. Para Feuerbach o i<strong>de</strong>alistavia na natureza vida e razão introduzi<strong>do</strong> pelo próprio, “por isso, o queele dava à natureza voltava a recuperá-lo para si próprio: a naturezaé o seu eu objectiva<strong>do</strong>, o espírito intuí<strong>do</strong> por si mesmo fora <strong>de</strong> si” 208 .O i<strong>de</strong>alismo era a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong> sujeito e <strong>do</strong> objecto, <strong>do</strong> espírito e danatureza. No entanto, o objecto (natureza) era coloca<strong>do</strong> pelo espírito,como se fosse <strong>em</strong>anação <strong>do</strong> i<strong>de</strong>alista. Para Fichte a realida<strong>de</strong>,espiritual e material, era resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um eu universal, absoluto. ParaSchelling havia uma unida<strong>de</strong> absoluta. O absoluto era posto no seula<strong>do</strong> real. No entanto as duas filosofias representam formas <strong>de</strong>i<strong>de</strong>alismo, pois ligam-se ao absoluto, porque “A filosofia da natureza<strong>de</strong>ixou portanto subsistir integralmente o i<strong>de</strong>alismo; no fun<strong>do</strong>, quis<strong>de</strong>monstrar apenas a posteriori o que o i<strong>de</strong>alismo tinha afirma<strong>do</strong> apriori <strong>de</strong> si” 209 .Para a filosofia da natureza só existe natureza, para o i<strong>de</strong>alismosó existe o espírito. Porém, a filosofia da natureza é substância, sujeito– objecto, sen<strong>do</strong> <strong>em</strong> simultâneo i<strong>de</strong>alismo. Para este significa<strong>do</strong>bastava <strong>de</strong>volver a natureza a uma existência autónoma.207 I<strong>de</strong>m, p. 61.208 I<strong>de</strong>m, p. 65.209 I<strong>de</strong>m, p. 66.76


Feuerbach enten<strong>de</strong> as filosofias <strong>de</strong> Fichte e Schelling comodistintas manifestações <strong>do</strong> absoluto no seu aspecto real para o segun<strong>do</strong>e no aspecto i<strong>de</strong>al para o primeiro. De notar que para a Filosofia daNatureza só existe natureza, enquanto que para o I<strong>de</strong>alismo só existe oespírito. Para o I<strong>de</strong>alismo a natureza é objecto e para a Filosofia daNatureza é substância, como inteligência no interior <strong>do</strong> I<strong>de</strong>alismo.Enquanto que <strong>em</strong> Schelling há a unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> espírito e da natureza,Feuerbach afirma que não existe essa unida<strong>de</strong> no conceito da próprianatureza. Trata-se da crítica e oposição <strong>de</strong> Feuerbach à tradiçãofilosófica <strong>do</strong>minante visan<strong>do</strong> o carácter especulativo <strong>de</strong>ssa tradição.Há nessas diferentes filosofias algo comum, <strong>em</strong>bora se distingamquanto à forma <strong>de</strong> apresentar. Neste escrito <strong>de</strong> Feuerbach é mostradaessa relação 210 . Assim, Hegel comporta-se relativamente a Schellingcomo Fichte para Kant. Em ambos a verda<strong>de</strong>ira filosofia <strong>de</strong>pendia <strong>do</strong>conteú<strong>do</strong>, pois tinham um interesse sist<strong>em</strong>ático, formal logocientífico. A crítica <strong>de</strong> ambos era relativa a certas características dafilosofia <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po, mas não acerca da essência da filosofia 211 . Afilosofia hegeliana t<strong>em</strong> um senti<strong>do</strong> crítico, mas não genético-crítico,pois segun<strong>do</strong> Feuerbach a filosofia genético-crítica investiga a orig<strong>em</strong><strong>de</strong> um objecto e se esse objecto é “real, ou uma mera representaçãoou um fenómeno psicológico <strong>em</strong> geral, que por isso distingue com omaior rigor possível entre o subjectivo e o objectivo” 212 . A filosofiagenético-crítica diferencia o objectivo <strong>do</strong> subjectivo que coloca umacondição: “si fabula vera”<strong>em</strong> oposição à perspectiva da filosofia210 I<strong>de</strong>m, p. 59, “Kant foi crítico <strong>em</strong> relação à velha metafísica, mas não crítico <strong>em</strong>relação a si mesmo. Fichte pressupôs a filosofia Kantiana como verda<strong>de</strong>. Nada maisquis <strong>do</strong> que elevá-la à ciência, ligar o que <strong>em</strong> Kant permanecia separa<strong>do</strong>, <strong>de</strong>rivá-lo<strong>de</strong> um princípio comum. Igualmente Schelling pressupôs, por um la<strong>do</strong>, a filosofia <strong>de</strong>Fichte como verda<strong>de</strong> constituída, por outro, ele é, <strong>em</strong> oposição a Fichte, orestaura<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Espinosa. Hegel é o Fichte mediatiza<strong>do</strong> por Schelling. Hegelpol<strong>em</strong>izou contra o absoluto <strong>de</strong> Schelling, reconheceu nele a falta <strong>do</strong> momento dareflexão, <strong>do</strong> entendimento, da negativida<strong>de</strong>, […]”.211 I<strong>de</strong>m, pp. 59-60.212 I<strong>de</strong>m, p. 69.77


absoluta que diviniza a natureza. Por isso, a filosofia genético-críticavai restituir o que foi rejeita<strong>do</strong> pela filosofia <strong>de</strong> Hegel 213 . Noseguimento po<strong>de</strong> dizer-se que há uma base mística na lógica <strong>de</strong> Hegel,uma mística racional 214 que está ligada a uma confusão surgida nafilosofia absoluta pois Hegel concebeu a verda<strong>de</strong> objectiva on<strong>de</strong> nãoera mais <strong>do</strong> que necessida<strong>de</strong> subjectiva e até as tomou por certas, oque para Feuerbach era duvi<strong>do</strong>so, <strong>de</strong>svirtuan<strong>do</strong> o ser secundário eprimitivo, não ten<strong>do</strong> <strong>em</strong> consi<strong>de</strong>ração ou coloca<strong>do</strong> à marg<strong>em</strong> 215 . Queconsequência resulta <strong>de</strong>ste aspecto?Torna-se interessante, segun<strong>do</strong> Feuerbach, a interrogação sobreo que se compreen<strong>de</strong> por nada, ao contrário <strong>de</strong> não ser pensa<strong>do</strong> paraHegel, pois pensar é <strong>de</strong>terminar. Quer dizer, o nada não po<strong>de</strong> serpensa<strong>do</strong>, “Non entis nulla sunt praedicata. Non entis nulla estscientia” 216 . Até mesmo a falta <strong>de</strong> uma separação ente subjectivo eobjectivo no pensamento <strong>de</strong> Hegel reenvia à <strong>de</strong>tecção <strong>de</strong> umasimilitu<strong>de</strong> entre absoluto e nada, poisAssim, logo no início da Lógica, e comorepresentação <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>ficiência <strong>de</strong> investigaçãogenético-crítica, v<strong>em</strong>os o nada – uma representaçãomuito próxima da <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> absoluto – <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penha umpapel. Mas o que v<strong>em</strong> a ser este nada? 217 .213 Ibi<strong>de</strong>m, “A filosofia genético-crítica t<strong>em</strong> principalmente como seu objecto aquiloa que já se chamou as causae secundae; e para ilustrar esta relação através <strong>de</strong> umacomparação, ela está para a filosofia absoluta […] assim como a cont<strong>em</strong>plaçãoteológica da natureza […] está para visão puramente fisicista ou naturalista […]”.214 I<strong>de</strong>m, p. 70, “A filosofia <strong>de</strong> Hegel é mística racional – por isso é única no seugénero, por isso atrai tanto e ao mesmo t<strong>em</strong>po repele tanto, quer os espíritos místicoespeculativos[…] quer os espíritos racionais, a qu<strong>em</strong> repugna a ligação <strong>do</strong> el<strong>em</strong>entoracional com o el<strong>em</strong>ento místico”.215 Ibi<strong>de</strong>m, p. 70, “E foi assim que Hegel colheu efectivamente no particular, comoverda<strong>de</strong> objectiva, algumas representações que apenas exprim<strong>em</strong> necessida<strong>de</strong>ssubjectivas […] D<strong>em</strong>onstrou como sen<strong>do</strong> <strong>em</strong> si e para si racionais muitas coisas quesó particular e relativamente são racionais”.216 Ibi<strong>de</strong>m, p. 70. Cf. Também na página 71: “O pensar <strong>do</strong> nada é um pensar que serefuta a si mesmo. Qu<strong>em</strong> nada pensa, justamente não pensa. O nada é a negação <strong>do</strong>pensar; por isso só po<strong>de</strong> ser pensa<strong>do</strong> pelo facto <strong>de</strong> se tornar <strong>em</strong> alguma coisa. Logo,no preciso momento <strong>em</strong> que é pensa<strong>do</strong> não é pensa<strong>do</strong>, porque eu penso s<strong>em</strong>pre ocontrário <strong>do</strong> nada”.217 Ibi<strong>de</strong>m, p. 70.78


Feuerbach refere-se ao facto <strong>de</strong> os filósofos pagãos ter<strong>em</strong> si<strong>do</strong>censura<strong>do</strong>s por ter<strong>em</strong> pensa<strong>do</strong>, por ter<strong>em</strong> a matéria por objecto <strong>do</strong> seupensar. É que o pensar não po<strong>de</strong> ir além da existência, porque só sepo<strong>de</strong> pensar submeti<strong>do</strong> ao <strong>de</strong>vir. Pelo contrário, os cristãostransferiram a eternida<strong>de</strong> para o ser divino.Feuerbach ao <strong>de</strong>sejar <strong>de</strong>monstrar que o nada não t<strong>em</strong> soli<strong>de</strong>zapoia-se na oposição ao pensamento que se baseia <strong>em</strong> representaçõessubjectivas. O nada é uma impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar, um pensarvazio, um não pensar, uma ausência <strong>de</strong> pensamento.No entanto, este tipo <strong>de</strong> pensamento, dá orig<strong>em</strong> a verda<strong>de</strong>sobjectivas. O brilho <strong>do</strong> nada como a orig<strong>em</strong> da visão e crença <strong>em</strong>fantasmas é, para Feuerbach, como uma imag<strong>em</strong> fantástica daimaginação especulativa. Daí, “Não é a representação das trevas parauma consciência sensível o mesmo que a representação <strong>do</strong> nada parauma consciência abstracta?” 218 . Da<strong>do</strong> o parentesco entre o nada e astrevas (o olhar não po<strong>de</strong> ver as trevas e a inteligência o nada) é omesmo que conduz à génese <strong>de</strong> ambos, sen<strong>do</strong> possível esclarecer <strong>em</strong>paralelo com a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> absoluto patente na Lógica <strong>de</strong> Hegel. O nadat<strong>em</strong> a sua orig<strong>em</strong> no mo<strong>do</strong> <strong>humano</strong> <strong>de</strong> representar, no não-pensar.Assim, o nada é nada também para o pensar, pelo queSó a fantasia faz <strong>do</strong> nada um substantivo, mas fá-loapenas metamorfosean<strong>do</strong> o próprio nada num serfantasmático, priva<strong>do</strong> <strong>de</strong> essência. Por isso Hegel nãoinvestigou a génese <strong>do</strong> nada; tomou o nada como moedacorrente 219 .Hegel t<strong>em</strong> o nada por certo.Dada a incoerência <strong>do</strong> pensar o nada, o nada não po<strong>de</strong> serposto como oposição ao ser o que equivaleria a tomá-lo como espécie<strong>do</strong> ser. No entanto, o nada não possui n<strong>em</strong> pensamento n<strong>em</strong> razão, é218 I<strong>de</strong>m, p. 73.219 I<strong>de</strong>m, p. 74.79


vazio, não t<strong>em</strong> base, realida<strong>de</strong> racional como um oposto ao ser, sen<strong>do</strong>um limite da razão. Não existe uma oposição metafísica entre ser enada pelo que atrás foi referi<strong>do</strong>. Por isso a oposição entre ser e nadaencontra-se no indivíduo que representa e reflecte, isto é, na relação<strong>do</strong> ser singular com o ser universal, <strong>do</strong> indivíduo com o género 220 . Sóo indivíduo que reflecte po<strong>de</strong> pôr o nada, pois este não subsiste por si.O nada só t<strong>em</strong> significa<strong>do</strong> como oposto na representação, existin<strong>do</strong>nesta a oposição <strong>de</strong> ser e nada. Assim, o ser é real mas o nada existena reflexão, representação. Assim, o indivíduo t<strong>em</strong> consciência <strong>do</strong>género e antecipa o seu não ser na representação, captan<strong>do</strong> aindiferença <strong>do</strong> género <strong>em</strong> relação ao indivíduo singular – a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong>imortalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> género perante a morte pessoal 221 .Feuerbach afirma um regresso à natureza, à apreensão danatureza ten<strong>do</strong> <strong>em</strong> vista a busca <strong>do</strong>s fundamentos <strong>do</strong> pensamento como objectivo <strong>de</strong> abolir as incongruências objectivo-subjectivo, repon<strong>do</strong>o eu que foi relega<strong>do</strong> por Hegel para plano secundário 222 . É o libertarda natureza unin<strong>do</strong> o amparo da sua crítica “Mas se <strong>em</strong> contrapartidaa natureza for verda<strong>de</strong>iramente apreendida – apreendida como a220 I<strong>de</strong>m, pp. 74-75.221 I<strong>de</strong>m, p. 75: “O género é a indiferença relativamente ao indivíduo singular. Oindivíduo que reflecte t<strong>em</strong> <strong>em</strong> si a consciência <strong>do</strong> género; po<strong>de</strong>, pois, ir para além <strong>do</strong>seu ser real, pô-lo como indiferente e antecipar na representação o seu não-ser,opon<strong>do</strong>-se ao ser real – e só assim, como oposto na representação, é que o não-sert<strong>em</strong> também significa<strong>do</strong>. Que me importa a mim a minha vida, a minha morte? –po<strong>de</strong> dizer o hom<strong>em</strong> a si mesmo. Se existo ou não existo, não t<strong>em</strong> a mínimaimportância. E um dia que esteja morto, estarei s<strong>em</strong> <strong>do</strong>r e s<strong>em</strong> consciência. O nãoseré aqui representa<strong>do</strong> e autonomiza<strong>do</strong> como o esta<strong>do</strong> da pura apatia e ausência <strong>de</strong>sensibilida<strong>de</strong>. A unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser e nada t<strong>em</strong> um significa<strong>do</strong> positivo apenas comoindiferença <strong>do</strong> género ou da consciência <strong>do</strong> género para com o indivíduo singular,mas a própria oposição <strong>de</strong> ser e nada só existe na representação; com efeito, serexiste <strong>de</strong>certo na realida<strong>de</strong>, ou melhor, ele próprio é o real, mas nada, não-ser, existeapenas na representação e na reflexão”.222 Ibi<strong>de</strong>m, “Não foi por acaso, mas no seguimento <strong>do</strong> espírito da filosofiaespeculativa da Al<strong>em</strong>anha […] que Hegel pôs <strong>de</strong> la<strong>do</strong> as causae secundae, que sãoporém <strong>de</strong>masiadas vezes as causae primae e só são verda<strong>de</strong>iramente apreendidasquan<strong>do</strong> não são compreendidas apenas <strong>em</strong>piricamente mas tambémmetafisicamente, isto é, filosoficamente; Hegel pôs <strong>de</strong> la<strong>do</strong> os princípios e causasnaturais, os fundamentos da filosofia genético-crítica. Com a filosofia absolutapassámos <strong>do</strong> extr<strong>em</strong>o <strong>de</strong> um subjectivismo hipercrítico ao extr<strong>em</strong>o <strong>de</strong> umobjectivismo acrítico”.80


azão objectiva –, então ela será o cânone tanto da filosofia como daarte” 223 . Feuerbach <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> o retorno à natureza ten<strong>do</strong> <strong>em</strong> vista a novafigura da filosofia <strong>em</strong> oposição à perspectiva filosófica especulativaque preten<strong>de</strong> ir além da natureza e <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Aí estará a salvação 224 .E este retorno à natureza não conhece contradição <strong>de</strong>sta relativamenteà liberda<strong>de</strong> n<strong>em</strong> <strong>de</strong>sajustamento entre os <strong>do</strong>is <strong>do</strong>mínios, <strong>em</strong>bora sejacontra a liberda<strong>de</strong> <strong>do</strong> imaginário 225 . Esta apologia <strong>do</strong> retorno ànatureza <strong>de</strong>fendida por Feuerbach é simultânea à negação <strong>do</strong> absoluto.A filosofia genético-crítica <strong>de</strong> Feuerbach mostra que a filosofiaabsoluta e a filosofia da natureza são incompatíveis. A rejeição <strong>do</strong> serabsoluto abstracto da<strong>do</strong> pelo pensamento especulativo orienta para oafirmar <strong>do</strong> concreto e busca <strong>do</strong> ser sensível. Trata-se <strong>de</strong> umnaturalismo como base <strong>de</strong> um <strong>futuro</strong> materialismo. É a ruptura com afilosofia absoluta e a investigação acerca <strong>do</strong> cristianismo irá levar à<strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> que a teologia é uma antropologia.223 Ibi<strong>de</strong>m, p. 75.224 I<strong>de</strong>m, p. 76, “A filosofia é a ciência da realida<strong>de</strong> na sua verda<strong>de</strong> e totalida<strong>de</strong>, maso somatório da realida<strong>de</strong> é a natureza (natureza no senti<strong>do</strong> mais universal <strong>do</strong> termo).Os segre<strong>do</strong>s mais profun<strong>do</strong>s resi<strong>de</strong>m por isso nas mais simples coisas naturais, que oespeculativo calca <strong>de</strong>baixo <strong>do</strong>s pés, ao apelar fantasiosamente ao além. O retorno ànatureza é a única fonte <strong>de</strong> salvação”.225 Ibi<strong>de</strong>m, “É falso apreen<strong>de</strong>r a natureza <strong>em</strong> contradição com a liberda<strong>de</strong> ética. Anatureza não construiu apenas a vulgar oficina <strong>do</strong> estômago, mas também o t<strong>em</strong>plo<strong>do</strong> cérebro; […] A natureza só se subleva contra a liberda<strong>de</strong> fantástica, mas nãocontradiz a liberda<strong>de</strong> racional. Cada copo <strong>de</strong> vinho que beb<strong>em</strong>os <strong>em</strong> excesso é umaprova muito patética, e até peripatética, <strong>de</strong> que o servilismo da paixão excita osangue; uma prova <strong>de</strong> que a prudência, a σωφροσύνη grega, está <strong>em</strong> total acor<strong>do</strong>com a natureza”.81


SEGUNDA PARTE82


A essência <strong>do</strong> fenómeno religioso“É s<strong>em</strong> dúvida <strong>do</strong> interesse da religião que a essênciaque ela toma como objecto seja diferente <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>; masé também <strong>do</strong> seu interesse, e até mais, que esta outraessência seja ao mesmo t<strong>em</strong>po humana.” 226 .226 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 44.83


1. Essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>.A Religião como assunto <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>“Porque cria o hom<strong>em</strong> o seu <strong>de</strong>us ou os seus <strong>de</strong>uses?” 227 .O Cristianismo não é misterioso, sen<strong>do</strong> acessível à razão.Em Feuerbach há um <strong>em</strong>ergir <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>núncia da teologia euma compreensão da religião tradicional, on<strong>de</strong> há heranças <strong>de</strong> autoresanteriores pois a religião é um assunto <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>.A investigação que Feuerbach leva a efeito acerca <strong>do</strong>Cristianismo preten<strong>de</strong> realçar que a teologia é uma antropologia 228 .A Essência <strong>do</strong> Cristianismo está dividida <strong>em</strong> duas partes. Naprimeira, “ […] trata-se <strong>de</strong> converter os “mistérios” datranscendência <strong>em</strong> “segre<strong>do</strong>s” da natureza humana” 229 . A segundatrata da essência não-verda<strong>de</strong>ira, isto é, teológica da religião.Um primeiro senti<strong>do</strong>, explícito na Introdução <strong>de</strong> A Essência <strong>do</strong>Cristianismo, preten<strong>de</strong> alcançar a essência <strong>do</strong> fenómeno religioso227 Adriana Veríssimo SERRÃO, Da razão ao hom<strong>em</strong> ou o lugar sist<strong>em</strong>ático <strong>de</strong> AEssência <strong>do</strong> Cristianismo, in Pensar Feuerbach, J. Barata-MOURA, V. SoromenhoMARQUES, p. 16.228 Ludwig FEUERBACH, “Prefácio” in A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 5: “O queneste livro se <strong>de</strong>monstra por assim dizer a priori – que o segre<strong>do</strong> da teologia é aantropologia – já foi há muito <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> e confirma<strong>do</strong> a posteriori pela históriada teologia. […] Há muito que a teologia se tornou antropologia”.229 I<strong>de</strong>m, Apresentação, p. [XIX].84


numa perspectiva genético-crítica 230 . Tal é o processo <strong>de</strong> investigaçãopatente <strong>em</strong> A Essência <strong>do</strong> Cristianismo. Porém, compreen<strong>de</strong>r ofenómeno religioso não se limita ao perguntar sobre Deus, mas ir maisalém e perguntar por que cria o hom<strong>em</strong> o seu <strong>de</strong>us. Feuerbach estáinteressa<strong>do</strong> <strong>em</strong> reflectir sobre o fenómeno religioso, única esimplesmente, um fenómeno que é comum a to<strong>do</strong>s os homens. Porquêapelidá-lo <strong>de</strong> filósofo ateu? Porém o nosso autor nega Deus enquantonegação <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, pelo que fará senti<strong>do</strong> apelidá-lo <strong>de</strong> ateu? 231Feuerbach na “Essência <strong>do</strong> Cristianismo” trata o fenómeno religiosopartin<strong>do</strong> <strong>do</strong> próprio hom<strong>em</strong>. Refere que o hom<strong>em</strong> se distingue <strong>do</strong>animal pela consciência e que esta é a característica <strong>de</strong> um serperfeito 232 . É uma consciência própria ou infinita que possibilita a umser ter como objecto o seu género. O animal t<strong>em</strong> sentimento <strong>de</strong> si, nãocomo género, pois não possui consciência. Esta torna possível a umser ter por objecto o seu próprio género. É este facto que tornapossível referir-se, segun<strong>do</strong> a sua natureza, a objectos por intermédio<strong>de</strong> “coisas ou seres” 233 . Quer dizer, o hom<strong>em</strong> possui uma vida duplaque se manifesta por uma vida interior e uma vida exterior. O primeirotipo <strong>de</strong> vida estabelece o relacionamento com o seu género. O hom<strong>em</strong>é capaz <strong>de</strong> funções genéricas como “falar e pensar”, <strong>de</strong> ser para sicomo um “eu e tu” simultâneo. O hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> por objecto não só a sua230 I<strong>de</strong>m, p. 53.231 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La essencia <strong>de</strong>l cristianismo, p.[XXXI]: “Quien no sabe <strong>de</strong>cir <strong>de</strong> mí sino que soy ateo, no sabe nada <strong>de</strong> mí. Lacuestión <strong>de</strong> si Dios existe o no, la contra-posición <strong>de</strong> teísmo y ateísmo pertence a lossiglos XVII e XVIII, pero no al XIX. Yo niego a Dios. Esto quiere <strong>de</strong>cir en mi caso:yo niego la negación <strong>de</strong>l hombre. En vez <strong>de</strong> una posición ilusoria, fantástica,celestial <strong>de</strong>l hombre, que en la vida real se convierte necesariamente en negación <strong>de</strong>lhombre, yo propugno la posición sensible, real y, por tanto, necesariamente políticay social <strong>de</strong>l hombre. La cuestión sobre el ser o no ser <strong>de</strong> Dios es en mi casoúnicamente la cuestión sobre el ser o no ser <strong>de</strong>l hombre”. Ver ainda LudwigFEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. [XXII].232Ludwig FEUERBACH, “Introdução” in Ludwig Feuerbach, A Essência <strong>do</strong>Cristianismo, p. 9. Cf. P.15.233 Ibi<strong>de</strong>m.85


individualida<strong>de</strong>, mas também a sua essência. Esta é a razão que lhepermite “ser um outro”.Há, <strong>em</strong> geral, uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> ereligião e este aspecto i<strong>de</strong>ntifica a religião com a consciência <strong>de</strong> si <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>, “à consciência que o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> da sua essência.” 234 . Estesenti<strong>do</strong> faz <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> possui<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma essência infinita, s<strong>em</strong>limitações da essência. Quer dizer, “só na consciência <strong>do</strong> infinito éque o ser consciente t<strong>em</strong> como objecto a infinitu<strong>de</strong> da própriaessência” 235 .O cerne da crítica <strong>de</strong> Feuerbach à religião é ver nela umproduto que <strong>em</strong>erge <strong>do</strong> espírito e <strong>do</strong> coração <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> formaespontânea. Na religião o hom<strong>em</strong> aban<strong>do</strong>na po<strong>de</strong>res que o consom<strong>em</strong>.O segre<strong>do</strong> da teologia é já a antropologia. Por isso, o trabalhofilosófico não consiste <strong>em</strong> perguntar como Kant como são possíveis asproposições a priori mas o que é a religião, o que é Deus? 236 . Trata-se<strong>de</strong> esclarecer no âmbito <strong>de</strong> um <strong>de</strong> facto e não <strong>de</strong> jure. É umaperspectiva genético-crítica 237 . Feuerbach quer encontrar a baseconcreta para fazer o diagnóstico, pelo que “O hermeneuta da religiãovê-se inicialmente confronta<strong>do</strong> com fenómenos que po<strong>de</strong> <strong>de</strong>nominar<strong>de</strong> patológicos […] ” 238 . Visa <strong>de</strong>tectar a <strong>do</strong>ença profunda para a curar.Feuerbach preten<strong>de</strong> ir mais atrás, não no senti<strong>do</strong> especulativo mas aGiordano Bruno ou a um Espinosa, ao panteísmo como transição dateologia para a Antropologia. Jacob e os orto<strong>do</strong>xos r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> Deuspara a subjectivida<strong>de</strong> mais profunda, sen<strong>do</strong> Deus o mais fun<strong>do</strong> <strong>do</strong>234 I<strong>de</strong>m, p. 10.235 I<strong>de</strong>m, p. 11.236 Adriana Veríssimo SERRÃO, A Humanida<strong>de</strong> da Razão, Fundação CalousteGulbenkian, Fundação para a Ciência e Tecnologia, Lisboa, 1999, p.59, cf. I<strong>de</strong>m,nota n.º 5: “Eu não pergunto, como Kant, como são possíveis proposições a priori?Não pergunto, portanto: como é possível a religião? Mas sim: o que é a religião, oque é Deus? E isto na base <strong>de</strong> factos concretos”.237 I<strong>de</strong>m, p. 59 e nota n.º 6 da mesma página.238 I<strong>de</strong>m, p. 62.86


hom<strong>em</strong>. O próprio Espinosa referia que quan<strong>do</strong> se conhece, conheceDeus.O panteísmo aparece a Feuerbach como uma via <strong>de</strong> passag<strong>em</strong>entre a teologia e o ateísmo, on<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> é Deus. No limite nada éDivino. O panteísmo acaba por se tornar um ateísmo. Por outro la<strong>do</strong> opanteísmo permite sublinhar a autonomia e suficiência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>(entregue a si próprio – tu<strong>do</strong> se passa no cenário <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> ohom<strong>em</strong> <strong>de</strong>ve assumir a sua tarefa fundamental).A essência da religião resi<strong>de</strong> na subjectivida<strong>de</strong> radical.Feuerbach alcança a sua <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> subjectivida<strong>de</strong> genérica da essênciahumana. Se o hom<strong>em</strong> recebe o material para a sua religião, perguntasecomo se explica que o sentimento religioso se refira a proprieda<strong>de</strong>stranscen<strong>de</strong>ntes? Qual é o el<strong>em</strong>ento exterior que justifica este lançarpara fora <strong>de</strong> si? Como imagina a sua própria essência distinta <strong>de</strong> si,alienada, não humana? Como se explica que se atribua a Deus umaexistência objectiva in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> espírito? Quer dizer, o hom<strong>em</strong>hipostasia, atribui subjectivida<strong>de</strong> a qualquer coisa que não a t<strong>em</strong>,distinta da essência humana. Porém, não se esqueça que essahipostasiação pren<strong>de</strong>-se a qu<strong>em</strong> a dá. Trata-se, como foi referi<strong>do</strong>, <strong>de</strong>um mecanismo que se dá a nível da consciência. A imaginação lançapara fora. É próprio <strong>de</strong>sta essência humana fantasiar e esquecer quesão as suas fantasias.O importante é inverter: Deus é que t<strong>em</strong> orig<strong>em</strong> na natureza.A natureza <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo é <strong>de</strong> natureza infinita e o objecto <strong>do</strong><strong>de</strong>sejo é o meu Deus. O <strong>de</strong>sejo como essência da religião. Deste mo<strong>do</strong>e numa dimensão oréxica, a essência <strong>do</strong>s <strong>de</strong>uses é a essência <strong>do</strong>s<strong>de</strong>sejos. Assim, qu<strong>em</strong> não t<strong>em</strong> <strong>de</strong>sejos não t<strong>em</strong> Deus 239 . Os <strong>de</strong>sejosacabam por <strong>de</strong>terminar a medida da divinda<strong>de</strong>. Por isso os <strong>de</strong>uses239 S. J. Henri <strong>de</strong> LUBAC, O Drama <strong>do</strong> Humanismo Ateu, Porto Editora, p. 24:“Feuerbach dirá, paralelamente: Deus não passa <strong>de</strong> um mito <strong>em</strong> que se exprim<strong>em</strong> asaspirações da consciência humana. “Qu<strong>em</strong> não sente <strong>de</strong>sejos também não sente anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>uses… Os <strong>de</strong>uses são os votos <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, realiza<strong>do</strong>s”.87


acabam por surgir nesta espécie <strong>de</strong> contradição fundamental entre oquerer, <strong>de</strong>sejar <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> e o que ele po<strong>de</strong>.Do ponto <strong>de</strong> vista clássico há uma tría<strong>de</strong> fundamental. Am<strong>em</strong>ória t<strong>em</strong> aqui ecos cordiais. Na tradição clássica, filosófica,teológica e latina o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>finia-se como m<strong>em</strong>ória, inteligência evonta<strong>de</strong>. O hom<strong>em</strong> é uma espécie <strong>de</strong> eterno <strong>em</strong> ciclo. Porém <strong>em</strong>Feuerbach falta-lhe a transcendência. No entanto o esqu<strong>em</strong>a mantémse:o coração, a vonta<strong>de</strong> e a inteligência – antropologia trinitária, poisé preciso este movimento para o infinito. É uma consciência que geraabertura, porque a religião é o corte <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> consigo mesmo. Ocorte, a cisão acontece entre seres <strong>de</strong>suni<strong>do</strong>s “mas que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser umsó, que po<strong>de</strong>m ser um só, […]” 240 . Está-se perante a mecânica da cisãopois o hom<strong>em</strong> rompe com o que <strong>de</strong>ve ser, sujeito <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, aoultrapassar a sua essência para uma outra, atribuin<strong>do</strong> a esta a posição<strong>de</strong> um ser absoluto e supr<strong>em</strong>o 241 . Este ser supr<strong>em</strong>o <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> oHom<strong>em</strong> <strong>de</strong>signa como investi<strong>do</strong> das suas faculda<strong>de</strong>s é visto comoilusão, um ser superior e que tu<strong>do</strong> po<strong>de</strong>. Por isso não Lhe (a Deus) sãoindiferentes as intenções e as acções <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Quer dizer, o hom<strong>em</strong>torna-se objecto <strong>de</strong> Deus. Será este aspecto um rebaixamento <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> ou sumamente eleva<strong>do</strong>?A religião é caracterizada como “patologia psíquica”. Assim oDeus superior, transcen<strong>de</strong>nte faz <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> um objecto <strong>de</strong> si, ohom<strong>em</strong> como que per<strong>de</strong> a sua autonomia. No entanto o hom<strong>em</strong> sóaparent<strong>em</strong>ente é rebaixa<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> pelo contrário eleva<strong>do</strong>, porqueA essência divina nada é senão a essênciahumana, ou melhor, a essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> purificada,liberta das limitações <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> individual, objectivada,isto é, intuída e a<strong>do</strong>rada como uma essência própria,240 Do “Prefácio” in Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 41.241 I<strong>de</strong>m, p. 36: “O hom<strong>em</strong> – eis o segre<strong>do</strong> da religião – objectiva-se e torna a fazer<strong>de</strong> si objecto <strong>de</strong>sta essência objectivada, transformada num sujeito; ele pensa-se, éobjecto para si, mas como objecto <strong>de</strong> um objecto, <strong>de</strong> um outro ser. É o que aconteceneste caso”.88


diferente, distinta <strong>de</strong>le – todas as <strong>de</strong>terminações daessência divina são, por isso, <strong>de</strong>terminações humanas 242 .Assim, o hom<strong>em</strong> só se visa a si mesmo, pelo que a activida<strong>de</strong>divina não se distingue da humana. A activida<strong>de</strong> divina po<strong>de</strong> actuarsobre (e no) hom<strong>em</strong> porque não é uma activida<strong>de</strong> diferente, sen<strong>do</strong>uma activida<strong>de</strong> humana. Quer dizer <strong>de</strong>monstrar o conteú<strong>do</strong> <strong>humano</strong> dailusão divina por intermédio <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminações i<strong>de</strong>ntitárias,Assim, <strong>em</strong> Deus o hom<strong>em</strong> só t<strong>em</strong> como objecto asua própria activida<strong>de</strong> […] compreen<strong>de</strong>-se facilmenteque se trata apenas <strong>de</strong> uma tautologia: para ele, oimpulso para o b<strong>em</strong> também só chega, por isso, <strong>do</strong> lugaron<strong>de</strong> se colocou o b<strong>em</strong> 243 .É neste senti<strong>do</strong> que Feuerbach refere que o hom<strong>em</strong> não é, nassuas <strong>de</strong>terminações, uma essência absoluta n<strong>em</strong> a<strong>do</strong>ra “nenhumaoutra essência a não ser a essência da natureza humana.” 244essência humana que estava escondida no ilusório da religião vaimostrar-se <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, pois o que a religião põe como primeiro ésegun<strong>do</strong>, da<strong>do</strong> a essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> que se objectiva que é para simesma segunda, o hom<strong>em</strong>, que é a primeira. A consciência que ohom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus é dita <strong>em</strong> consciência <strong>de</strong> si <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Por issoDeus age no hom<strong>em</strong>, com ele, por meio <strong>de</strong>le, nele, para ele, sen<strong>do</strong> o“bom princípio e essência” <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Quer dizer, Deus possui algos<strong>em</strong>elhante com o hom<strong>em</strong> pelo que nos orienta para o originário.Sen<strong>do</strong> assim, estamos perante um momento <strong>de</strong> virag<strong>em</strong> na históriauniversal da humanida<strong>de</strong>, porque “Se a essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> é aessência supr<strong>em</strong>a <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, também na prática, a lei supr<strong>em</strong>a eprimeira t<strong>em</strong> <strong>de</strong> ser o amor <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> pelo hom<strong>em</strong>. Homo HominiDeus est.” 245 Nesta virag<strong>em</strong>, inversão, o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> o seu espelho <strong>em</strong>A242 I<strong>de</strong>m, p. 24.243 I<strong>de</strong>m, p. 37.244 I<strong>de</strong>m, p. 328.245 Ibi<strong>de</strong>m.89


Deus e Deus no hom<strong>em</strong> e pelo Deus se conhece o hom<strong>em</strong> e por meio<strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, Deus. Está-se perante a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> uma ilusão que, nover <strong>de</strong> Feuerbach, t<strong>em</strong> um resulta<strong>do</strong> negativo na Humanida<strong>de</strong> “ […]retiran<strong>do</strong> aos homens tanto a força da vida real, como o senti<strong>do</strong> daverda<strong>de</strong> e da virtu<strong>de</strong> […]” 246 . Mesmo o amor se mostra pelareligiosida<strong>de</strong> como aparente, uma ilusão. Porquê? Pela razão <strong>de</strong> que oamor religioso só ama o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a Deus, só ama na verda<strong>de</strong>Deus. Assim, é pela inversão que Feuerbach refere a <strong>de</strong>struição dailusão e o patentear a verda<strong>de</strong> 247 . Há um outro aspecto a ter <strong>em</strong> conta,a saber: a diferença ao nível da essência entre razão e fé pois esta nãodispensa a razão natural <strong>em</strong> que esta é a regra e aquela a excepção àregra. No entanto a razão natural é universal enquanto que a fé éparticular e é neste aspecto que a fé t<strong>em</strong> na razão universal o momentofundacional, naquilo que as torna diferentes. E que na base <strong>do</strong>smistérios sobrenaturais da religião há verda<strong>de</strong>s naturais. Neste senti<strong>do</strong><strong>de</strong>monstrar que “o segre<strong>do</strong> da teologia é a antropologia” é trabalhocrítico e hermenêutico e não ver a religião apenas como negativa, masseparar o verda<strong>de</strong>iro <strong>do</strong> falso ten<strong>do</strong> <strong>em</strong> vista afirmar queA nossa tarefa mais essencial está assimcumprida. Reduzimos a essência extramundana,sobrenatural e supra-humana às componentes daessência humana como suas componentes fundamentais.Na conclusão, voltámos <strong>de</strong> novo ao princípio. O hom<strong>em</strong>é o começo da religião, o hom<strong>em</strong> é o centro da religião,o hom<strong>em</strong> é o fim 248 .246 I<strong>de</strong>m, p. 333.247 Ibi<strong>de</strong>m, “Basta-nos inverter as relações religiosas, captar s<strong>em</strong>pre como fim o quea religião põe como meio, elevar a coisa principal, a causa, o que é para ela osubordina<strong>do</strong>, o acessório, a condição, e ter<strong>em</strong>os então <strong>de</strong>struí<strong>do</strong> a ilusão e frente aosnossos olhos a luz transparente da verda<strong>de</strong>. Os sacramentos <strong>do</strong> baptismo e da ceia,po<strong>de</strong>m confirmar e ilustrar esta verda<strong>de</strong>.”; Cf. I<strong>de</strong>m, p. 328: “A religião é a primeiraconsciência <strong>de</strong> si <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. As religiões são sagradas, justamente porqueconstitu<strong>em</strong> as tradições da primeira consciência”.248 I<strong>de</strong>m, p. 222.90


O hom<strong>em</strong> não é como <strong>de</strong>ve ser e, por isso, sente-se infeliz.Pela religião o hom<strong>em</strong> objectiva a sua essência secreta. Por isso existeum <strong>de</strong>sacor<strong>do</strong> entre o hom<strong>em</strong> e a sua essência. A religião trata aessência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> como diferente <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Porém, o hom<strong>em</strong>proce<strong>de</strong>rá como sen<strong>do</strong> sua. Há o querer que Deus exista, mas que sejao seu Deus, o ser <strong>humano</strong>.A essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> não se trata <strong>de</strong> uma essência à maneirada <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> Platão, <strong>de</strong> uma entida<strong>de</strong> metafísica, mas algo complexo <strong>de</strong>mo<strong>do</strong> dinâmico 249 . A essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> é a razão, a vonta<strong>de</strong> e ocoração. A unida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stas faculda<strong>de</strong>s são como po<strong>de</strong>res que serv<strong>em</strong><strong>de</strong> alicerces, <strong>de</strong> carácter distintivo e das quais não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sapossarpois essa falta faz surgir a imperfeição e a pobreza da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> 250 . São essas qualida<strong>de</strong>s que faz<strong>em</strong> um hom<strong>em</strong> completo, peloque aquela essência não é como um amontoa<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssas faculda<strong>de</strong>s ou<strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> vista superficiais e singulares. O género é <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínioespiritual e que perpassa cada indivíduo. Essa essência o hom<strong>em</strong> não at<strong>em</strong> n<strong>em</strong> faz, não sen<strong>do</strong>, por isso, <strong>de</strong>terminada existencialmente, mas écomo um po<strong>de</strong>r absoluto. A humanida<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, o seu génerobase da comunida<strong>de</strong> é condição sine qua non <strong>do</strong>s liames realiza<strong>do</strong>sentre os homens. A natureza humana é limite ilimita<strong>do</strong> (fim último <strong>de</strong>um ser como verda<strong>de</strong>iro fundamento e orig<strong>em</strong>), pois a consciência é<strong>de</strong> natureza infinita e as funções daquelas faculda<strong>de</strong>s abrang<strong>em</strong> aqueleilimita<strong>do</strong> e a individualida<strong>de</strong>, a finitu<strong>de</strong>, limitação são um obstáculodas perfeições da essência humana. O verda<strong>de</strong>iro ser é-o por aquelasfaculda<strong>de</strong>s ser<strong>em</strong> os princípios que caracterizam a sua essência, “aqual ele não t<strong>em</strong> n<strong>em</strong> faz, são os po<strong>de</strong>res que os animam, <strong>de</strong>terminam249 Adriana Veríssimo SERRÃO, Pensar a Sensibilida<strong>de</strong>: Baumgarten – Kant –Feuerbach, Centro <strong>de</strong> Filosofia da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa, Lisboa, 2007, p.95: “Éum complexo dinâmico <strong>de</strong> faculda<strong>de</strong>s ou forças <strong>de</strong> coesão universal, cujo únicosujeito e protagonista é o to<strong>do</strong> da Humanida<strong>de</strong> ou género <strong>humano</strong>, que se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>brana inesgotável multiplicida<strong>de</strong> e diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> indivíduos reais”.250 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 222.91


e <strong>do</strong>minam – po<strong>de</strong>res divinos, absolutos aos quais ele não po<strong>de</strong> oporqualquer resistência” 251 , pois não são faculda<strong>de</strong>s que o hom<strong>em</strong> tenhaou faça.O ponto <strong>de</strong> vista antropológico <strong>de</strong> Feuerbach, da<strong>do</strong> estabelecera diferença <strong>em</strong> cada hom<strong>em</strong> entre finito e infinito, não dá valor aosubjectivo mas faz <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r o indivíduo <strong>do</strong> género 252 . E isto faz comque o hom<strong>em</strong> se torne <strong>humano</strong> ao realizar nele próprio aquilo que écomum a ele e aos outros, ou seja, sentimentos, experiências epensamentos ten<strong>do</strong> por referencial a essência como mo<strong>de</strong>lo para acomunida<strong>de</strong>, pois “Se esse objecto é comum a vários indivíduos,iguais no género mas diferentes na espécie, então ele constitui, pelomenos enquanto é objecto <strong>de</strong>sses indivíduos segun<strong>do</strong> a suadiversida<strong>de</strong>, a sua essência própria, mas objectiva.” 253 . É este o mo<strong>do</strong>como o hom<strong>em</strong> po<strong>de</strong> atingir a sua humanida<strong>de</strong> e in<strong>de</strong>pendência. Nos<strong>do</strong>mínios científico, da vonta<strong>de</strong> e da consciência <strong>de</strong> si há um r<strong>em</strong>eterpara as áreas racionais, para mo<strong>do</strong>s <strong>do</strong> pensamento b<strong>em</strong> como daconsciência <strong>de</strong> si. No <strong>do</strong>mínio da ciência o hom<strong>em</strong> não está preso a sie sente um entusiasmo intelectual <strong>de</strong> se elevar a conceitos e relaçõesuniversais. A liberda<strong>de</strong> t<strong>em</strong> a sua i<strong>de</strong>ntificação na consciênciagenérica enquanto que a moralida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> da vonta<strong>de</strong>, clama251 Da “Introdução” in Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 12.252 Ibi<strong>de</strong>m: “Como po<strong>de</strong>ria resistir ao sentimento o hom<strong>em</strong> sentimental, ao amor oamante, à razão o hom<strong>em</strong> racional? […] Qu<strong>em</strong> é mais forte? O amor ou o hom<strong>em</strong>individual? Será o hom<strong>em</strong> que possui o amor ou não será antes o amor que possui ohom<strong>em</strong>? […] Quan<strong>do</strong> te afundas <strong>em</strong> profundas reflexões, esquecen<strong>do</strong>-te <strong>de</strong> ti e <strong>do</strong>que está à tua volta, és tu que <strong>do</strong>minas a razão ou não serás tu <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> e absorvi<strong>do</strong>por ela? Não é o entusiasmo científico o mais belo triunfo que a razão celebra sobreti? Não é o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> impulso <strong>do</strong> saber um po<strong>de</strong>r absolutamente irresistível, que tu<strong>do</strong>vence? E quan<strong>do</strong> reprimes uma paixão, aban<strong>do</strong>nas o hábito, <strong>em</strong> suma, quan<strong>do</strong>alcanças uma vitória sobre ti mesmo, é esta força vitoriosa a tua própria forçapessoal, pensada por si mesma, ou não será antes a energia da vonta<strong>de</strong>, o po<strong>de</strong>r damoralida<strong>de</strong> que se apo<strong>de</strong>ra po<strong>de</strong>rosamente <strong>de</strong> ti e te enche <strong>de</strong> indignação contra timesmo e as tus fraquezas individuais?”253 I<strong>de</strong>m, p. 13.92


pela acção dizen<strong>do</strong> o que o hom<strong>em</strong> ainda não é 254 . Pelo sentimento ohom<strong>em</strong> liga-se ao universal e no <strong>do</strong>mínio das inter-relações humanasos homens não se diferenciam entre si, mas reconhec<strong>em</strong>-se daquilo <strong>de</strong>que não po<strong>de</strong>m, isto é, <strong>do</strong> seu género.Feuerbach interpreta a religião “não pela particularida<strong>de</strong> <strong>de</strong>um conteú<strong>do</strong> confessional e <strong>do</strong>gmático ou pela diversida<strong>de</strong> das suasconfigurações históricas, mas como uma atitu<strong>de</strong> ou procedimento <strong>em</strong>que o hom<strong>em</strong> ultrapassa o limite da sua essência e coloca acima <strong>de</strong>laa or<strong>de</strong>m transcen<strong>de</strong>nte da essência divina” 255 . A religião é aconsciência que o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> <strong>de</strong> si, s<strong>em</strong> o saber que lhe pertence. Asua essência é para o hom<strong>em</strong> uma essência diferente. A religião separao hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> si próprio 256 . Por isso Feuerbach enten<strong>de</strong> ser precisoanalisar, <strong>de</strong>monstrar que a separação feita pela religião “é um<strong>de</strong>sacor<strong>do</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> com a sua própria essência.” 257 e que se aessência <strong>de</strong> Deus fosse diferente da humana, não haveria ruptura.Assim, a essência <strong>em</strong> relação à qual o hom<strong>em</strong> se sente separa<strong>do</strong>pertence-lhe ainda que diferente da essência que dá o sentimento. Aluz, a força e o amor são como que ornatos. Trata-se <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>entregue a si próprio. Há aqui uma espécie <strong>de</strong> sonho, tal como Jesussonhou com o Reino, Feuerbach sonhou uma relação humana e seainda não o é, sê-lo-á. Razão, amor e vonta<strong>de</strong> “são as forçassupr<strong>em</strong>as, a essência absoluta <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> qua talis, como hom<strong>em</strong>, e ofundamento da sua existência.” 258 . De jure mesmo que não seaperceba a si próprio hipostasia num ser superior. O hom<strong>em</strong> projecta,<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> espontâneo, esses atributos fora <strong>de</strong> si, objectivan<strong>do</strong>-os num254 I<strong>de</strong>m, pp. 48-49, “ […] que convida à acção, à <strong>em</strong>ulação, que me lança a mimmesmo <strong>em</strong> tensão, […] porque ao evocar <strong>em</strong> mim o que eu <strong>de</strong>vo ser, diz-me aomesmo t<strong>em</strong>po na cara, s<strong>em</strong> qualquer lisonja, o que eu não sou”.255 Adriana Veríssimo SERRÃO, Pensar a Sensibilida<strong>de</strong>, p.97.256 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 41: “Na religião, o hom<strong>em</strong>objectiva a sua própria essência secreta”.257 Ibi<strong>de</strong>m.258 I<strong>de</strong>m, p. 11.93


ser fantástico, <strong>em</strong> resulta<strong>do</strong> da sua imaginação, a que atribui o nome<strong>de</strong> Deus, que o afectam como “indivíduos <strong>de</strong> uma outra espéciesupostamente superior, […]” 259 . No entanto o fim último <strong>de</strong> um ser éa sua verda<strong>de</strong>ira causa e garante 260 . Não há fim exterior. É profun<strong>do</strong>.Cá está o diálogo <strong>de</strong> Feuerbach com a história da filosofia, procuran<strong>do</strong>um certo autor mas dan<strong>do</strong> o seu senti<strong>do</strong>, a interpretação que elepreten<strong>de</strong>. O hom<strong>em</strong> é um verda<strong>de</strong>iro ser, porque pensa, ama e quer e“Verda<strong>de</strong>iro, perfeito e divino é apenas o que existe <strong>em</strong> função <strong>de</strong> si[…] A trinda<strong>de</strong> divina no hom<strong>em</strong>, acima <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> individual[…]” 261 . Há uma concepção <strong>do</strong> divino, <strong>de</strong> si.Em Feuerbach há a divinização radical <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Coloca-seum hom<strong>em</strong> concebi<strong>do</strong> à maneira da trinda<strong>de</strong> cristã. Vive só para si.Não t<strong>em</strong> finalida<strong>de</strong> exterior, mas é auto-referencial. De jure o hom<strong>em</strong>,se <strong>de</strong> facto não vive, <strong>de</strong>veria viver, pois colocou fora <strong>de</strong> si o que eraseu. É preciso reconduzir o hom<strong>em</strong> à sua essência, à sua infinitu<strong>de</strong>.Feuerbach mais no final da Essência <strong>do</strong> Cristianismo preten<strong>de</strong>sublinhar que esse amor é altruísta (comunida<strong>de</strong>, corpo, filho) <strong>do</strong>ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> suporte (metafísica da espécie) não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar<strong>de</strong> dizer que também é espécie. É astuto porque vai realizan<strong>do</strong> adivinda<strong>de</strong>. Há um registo da alterida<strong>de</strong>, porque os corações que seencontrar<strong>em</strong> têm que bater ao mesmo ritmo, notan<strong>do</strong>-se uma oposiçãoa Max Stirner que dirá: “O que eu não sou mas <strong>de</strong>sejo ser e meesforço por vir a ser, isso é o meu Deus” 262 . Por isso a essênciahumana não está no indivíduo isola<strong>do</strong>, mas na comunida<strong>de</strong>.Acima <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> individual há a trinda<strong>de</strong>. Há uma tensãoentre a colocação da tónica no movimento – espírito, vonta<strong>de</strong>,259 I<strong>de</strong>m, p. 21.260 I<strong>de</strong>m, p. 11: “Mas qual é o fim da razão? A razão. Do amor? O amor. Davonta<strong>de</strong>? A liberda<strong>de</strong> da vonta<strong>de</strong>”.261 Ibi<strong>de</strong>m.262 Ludwig FEUERBACH, Filosofia da Sensibilida<strong>de</strong>, Escritos, p. 173. Cf. Henri <strong>de</strong>LUBAC, S. J., O Drama <strong>do</strong> Humanismo Ateu, Porto Editora, p. 27.94


movimento e a tónica bíblica, nas figuras – substantiva. Esta razãoinclui dinamismos projectivos 263 que po<strong>de</strong>m acabar por fechar, para osdar, os atribuir a outro. As faculda<strong>de</strong>s da razão, da vonta<strong>de</strong>, <strong>do</strong>coração e <strong>do</strong> amor são o que constitui a sua essência sen<strong>do</strong> por elasque inventa <strong>de</strong>uses. Quan<strong>do</strong> aquelas faculda<strong>de</strong>s laçam para fora, sãoacometidas como que <strong>de</strong> vertig<strong>em</strong>, pois até <strong>de</strong>sse lançar para fora aprópria consciência nasce nessa capacida<strong>de</strong> que t<strong>em</strong> <strong>de</strong> objectivar, <strong>de</strong>pôr fora. O hom<strong>em</strong> não t<strong>em</strong> essas faculda<strong>de</strong>s, mas é essas faculda<strong>de</strong>s,constitu<strong>em</strong> a sua essência. Mas quan<strong>do</strong> objectiva a sua essência po<strong>de</strong>passar a tê-las. São, também, um po<strong>de</strong>r divino porque não lhes po<strong>de</strong>fazer resistência. Não têm alterida<strong>de</strong>, não há objecto exterior. É serpara si próprio, ser <strong>em</strong> si e para si é a marca <strong>do</strong> divino. O hom<strong>em</strong>individual é um pouco <strong>de</strong> Deus, pois po<strong>de</strong> tomar consciência <strong>em</strong> si <strong>do</strong>que é divino. “Homo, homini Deus est 264 ”. É preciso que pelaconsciência o hom<strong>em</strong> singular se apreenda a si próprio como notas nasua essência, que quebre com o singularismo. Não que se dilua naespécie <strong>de</strong> progresso da humanida<strong>de</strong>, mas que tome consciência quefará esse infinito da espécie um hom<strong>em</strong>. É um projecto individual,mas t<strong>em</strong> que o construir quanto mais se exercitar na razão, na vonta<strong>de</strong>,no amor. Assim Deus virá. Como que se trata <strong>de</strong> uma filosofia <strong>do</strong>advento, à espera <strong>em</strong> oposição a Hegel, uma filosofia da Quaresma.A razão moralmente não no-la dá. A força da afirmação éretirada <strong>do</strong> test<strong>em</strong>unho. Um ex<strong>em</strong>plo mostra que esta afirmaçãoarranca <strong>de</strong> uma leitura da História 265 , que o hom<strong>em</strong> se engran<strong>de</strong>ce ouse <strong>em</strong>pobrece. Quer dizer, objectivan<strong>do</strong> a sua essência, o hom<strong>em</strong>precisa <strong>de</strong> um espelho, o hom<strong>em</strong> precisa <strong>de</strong> qualquer coisa para seconhecer, <strong>de</strong> se objectivar para se po<strong>de</strong>r conhecer nisso. O hom<strong>em</strong>263 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo p. 12: “ […] imaginação,fantasia, representação, opinião”.264 I<strong>de</strong>m, p. 328. Cf. I<strong>de</strong>m, p.68.265 I<strong>de</strong>m, p. 13: “Tinham uma única paixão fundamental <strong>do</strong>minante: a realizaçãodaquele fim era o objecto essencial da sua activida<strong>de</strong>”.95


carece <strong>de</strong> um espelho para se conhecer. Quan<strong>do</strong> t<strong>em</strong> consciência <strong>de</strong>que é um espelho seu é positivo. Mas o probl<strong>em</strong>a é quan<strong>do</strong> esteespelho é coloca<strong>do</strong> como uma imag<strong>em</strong> à qual se está preso. O hom<strong>em</strong>carece <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, porque é o objecto que o torna consciente <strong>de</strong> sipróprio (verda<strong>de</strong>iro <strong>em</strong> relação aos objectos i<strong>de</strong>ais mas também aosobjectos sensíveis) 266 . Quer dizer, o hom<strong>em</strong> também t<strong>em</strong> o seu sol 267 .Por isso, é importante saber o que é <strong>de</strong> jure <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, o que não é areligião, isto é, dar o seu a seu <strong>do</strong>no. Não se nos diz porque é que ohom<strong>em</strong> é <strong>em</strong> si. Está-se perante o pressuposto fundamental, <strong>de</strong>cisivo –com a suspeita – que <strong>de</strong> facto não há Deus, mas o hom<strong>em</strong>. S<strong>em</strong>pre queconhec<strong>em</strong>os alguma coisa, conhec<strong>em</strong>o-nos a nós próprios. É oencontro da subjectivida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> entendimento a que se refereFeuerbach 268 e é o objecto que o torna sujeito cognoscente, toman<strong>do</strong>consciência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> no cosmos. O carácter divino <strong>de</strong> algo t<strong>em</strong> <strong>em</strong>si o seu princípio e fim. Dá-se <strong>em</strong> activida<strong>de</strong>. Conhec<strong>em</strong>os muitoantes <strong>de</strong> nos conhecermos. Feuerbach sublinha o olhar no olha<strong>do</strong>, nohorizonte, como zona relacional on<strong>de</strong> cada linha é uma linha <strong>de</strong>incompletu<strong>de</strong>. O instinto faz o mesmo mas só por fora, no exterior.Mas o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> outro <strong>de</strong>stino 269 , porque é impossível sentir comoforças limitadas, finitas ou nulas 270 . O pensamento que se pensa por sipróprio é infinito (Espinosa). O objecto <strong>de</strong> que o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong>266 Ibi<strong>de</strong>m, “Pelo objecto conheces o hom<strong>em</strong> e é nele que te aparece a sua essência: oobjecto é a sua essência revelada, o seu verda<strong>de</strong>iro eu objectivo E isto não se aplicasomente aos objectos espirituais, mas também aos sensíveis”.267 I<strong>de</strong>m, p. 14: “Também a Lua, o Sol e as estrelas faz<strong>em</strong> l<strong>em</strong>brar ao hom<strong>em</strong> γνŵθισααυτόν, o “conhece-te a ti mesmo”. O facto <strong>de</strong> os ver, e <strong>de</strong> os ver como os vê, é umtest<strong>em</strong>unho da sua própria essência”.268 Ibi<strong>de</strong>m, Referência a Kant, último § da p. 13. Constituição <strong>de</strong> horizontes, Cf. P.14: “Só o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> alegrias e <strong>em</strong>oções puras, intelectuais, <strong>de</strong>sinteressadas – só ohom<strong>em</strong> celebra festas teóricas <strong>do</strong> olhar”.269 Ibi<strong>de</strong>m, “O olho é <strong>de</strong> natureza celeste. Por isso o hom<strong>em</strong> só se eleva acima daterra com os olhos; por isso a teoria começa com o olhar que se dirige para o céu. Osprimeiros filósofos foram astrónomos. O céu recorda ao hom<strong>em</strong> a sua <strong>de</strong>stinação, ofacto <strong>de</strong> não estar <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> apenas à acção, mas também à cont<strong>em</strong>plação”.270 I<strong>de</strong>m, pp. 14, 15: “E porque querer, sentir, pensar são perfeições, realida<strong>de</strong>s, éimpossível sentir ou percepcionar com razão a razão, com sentimento o sentimento,com vonta<strong>de</strong> a vonta<strong>de</strong>, como forças limitadas, finitas, isto é, nulas”.96


consciência, seja ele qual for, torna-o consciente da sua essência.Quan<strong>do</strong> o hom<strong>em</strong> afirma algo diferente <strong>de</strong> si, afirma-se a si mesmo. Ohom<strong>em</strong> vai experiencian<strong>do</strong> <strong>em</strong> acto. É como se o hom<strong>em</strong> seexperienciasse nisso. Ao nível <strong>do</strong> querer, <strong>do</strong> sentir e <strong>do</strong> pensar não hácritério <strong>de</strong> verificação <strong>do</strong> exterior, a não ser a experiência disso como“ […] verificação e confirmação imediata <strong>de</strong> si mesma.” 271 . Há umaespécie <strong>de</strong> auto-afirmação neste processo.Na antropologia clássica Deus é leva<strong>do</strong> ao infinito. EmDescartes a vonta<strong>de</strong> e a razão levam a Deus.No hom<strong>em</strong>, naquilo que quer<strong>em</strong>os esquec<strong>em</strong>o-nos quequer<strong>em</strong>os mais <strong>do</strong> que quer<strong>em</strong>os, o infinito. Auto-afirmação,momentos felizes <strong>do</strong> pensamento. É não estar separa<strong>do</strong> n<strong>em</strong> serdistinto <strong>do</strong> ser como consciência <strong>de</strong> si mesmo. Quer dizer aconsciência é po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> auto-afirmação, amor <strong>de</strong> si. O erro que fracturaé <strong>de</strong> passar para a espécie o que são limitações <strong>do</strong> indivíduo. Dessafractura é que <strong>em</strong>erge a vertig<strong>em</strong>: o hom<strong>em</strong> é ignorante, finito. Noentanto, isto não po<strong>de</strong> ser <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> e por isso atribui os predica<strong>do</strong>s aoutro (ilusão). O hom<strong>em</strong> vê-se ao espelho como vitória sobre a morte.E a consciência é um jogo <strong>de</strong> espelhos que acompanha qualquer outroacto, diferente <strong>do</strong> animal. Tu<strong>do</strong> o que é diferente é digno <strong>de</strong> distinção.É esta duplicida<strong>de</strong> profunda que constitui o hom<strong>em</strong>, sen<strong>do</strong> aconsciência a forma máxima da auto-afirmação <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Pelaimperfeição <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> é que o hom<strong>em</strong> toma conhecimento <strong>de</strong> sicomo limita<strong>do</strong> e nisto surge o erro e é também por isso que existe adiferença <strong>em</strong> relação ao animal: o hom<strong>em</strong> toma conhecimento <strong>de</strong> sicomo limita<strong>do</strong>, porque t<strong>em</strong> por objecto a infinitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> género face àssuas limitações 272 .271 I<strong>de</strong>m, p. 15.272 I<strong>de</strong>m, p. 16: “ […] porque t<strong>em</strong> como objecto a perfeição, a infinitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> género,seja ela objecto <strong>do</strong> sentimento, ou da consciência moral, ou da consciênciapensante”.97


Essência e Inteligência“Esta essência é a inteligência – o entendimento. Deus,pensa<strong>do</strong> como extr<strong>em</strong>o <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, é a essência objectiva<strong>do</strong> entendimento.” 273 .É a vida que leva a que o hom<strong>em</strong> transforme as suas limitações<strong>em</strong> limitações <strong>do</strong> género, originan<strong>do</strong> uma ilusão. A partir <strong>do</strong> momento<strong>em</strong> que a vida <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> é assim, o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> o caminho abertopara especular noutro la<strong>do</strong>, transforman<strong>do</strong> as limitações individuais<strong>em</strong> limitações da essência humana. O que Feuerbach <strong>de</strong>nuncia é aessência <strong>de</strong> um processo a que Nietzsche chama nihilismo, on<strong>de</strong> onada foi erigi<strong>do</strong> <strong>em</strong> princípio, <strong>em</strong> que os fracos faz<strong>em</strong> isso para<strong>do</strong>minar. É a Antropologia <strong>em</strong> Feuerbach. Na espécie é um<strong>de</strong>terminismo psicológico. É verda<strong>de</strong> que se alu<strong>de</strong> apenas à essênciahumana como subjectivida<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>ntal on<strong>de</strong> se reconhece asubjectivida<strong>de</strong> individual, sen<strong>do</strong> nisso necessário o sacrifício dasubjectivida<strong>de</strong> <strong>em</strong>pírica. (É necessário ter consciência genérica, daespécie. É como se houvesse graus <strong>de</strong> consciência. Quan<strong>do</strong><strong>de</strong>sabrocha há uma espécie <strong>de</strong> alargamento on<strong>de</strong> as consciências seencontram).A primeira parte da Essência <strong>do</strong> Cristianismo mostra como areligião cristã <strong>de</strong> facto é uma Antropologia. A religião é a cisão <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> consigo mesmo. Deus é visto como positivo e o hom<strong>em</strong> comonegativo. Na religião o hom<strong>em</strong> objectiva o que t<strong>em</strong> mais secreto <strong>de</strong> si:a sua essência. Por isso Feuerbach utiliza o méto<strong>do</strong> <strong>de</strong>scritivo,genético e <strong>de</strong>monstrativo para provar que a religião é consciência <strong>de</strong> si<strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, o hom<strong>em</strong> objectiva a sua essência secreta e que Deus é aessência objectiva <strong>do</strong> entendimento 274 . A religião é um sintoma, peloque Feuerbach preten<strong>de</strong> com da<strong>do</strong>s históricos, positivos (textos que273 I<strong>de</strong>m, p. 42.274 I<strong>de</strong>m, p. 41 e Cf. “Prefácio” da 2.ª Edição (1843), p.436.98


usca na tradição cristã) textos como <strong>do</strong>cumentos hermenêuticos aque ele próprio dá a sua interpretação. Se Deus existisse como outro, ohom<strong>em</strong> não sentiria aquela cisão. Feuerbach procura arrancar <strong>de</strong> umfacto, o sentimento da cisão <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, e que a perfeição dada a Deuspertence <strong>de</strong> jure ao hom<strong>em</strong>. Há <strong>de</strong>sunião <strong>de</strong> algo que <strong>de</strong>via estaruni<strong>do</strong> 275 , que é própria <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>.Feuerbach diagnostica a situação patológica ao consi<strong>de</strong>rar umailusão enten<strong>de</strong>r como limitada a essência absoluta <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, poisenquanto essência não po<strong>de</strong> negar-se para si própria, <strong>em</strong>bora sejalimitada para uma outra fora <strong>de</strong> si. A razão <strong>de</strong> ser das limitações daessência humana encontra-se no entendimento <strong>do</strong> género. Assim, oentendimento pensa Deus como o oposto <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, objectiva-se.Essência e entendimento têm um certo mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, porquepo<strong>de</strong>m estar juntos ou separa<strong>do</strong>s, haven<strong>do</strong> uma certa reversibilida<strong>de</strong>.Porém, na consciência humana há um <strong>de</strong>sacor<strong>do</strong> 276 que estabelece oprincípio <strong>de</strong> “lançar para fora”. Deus é a essência objectiva dainteligência 277 . Deus é o limite <strong>do</strong> entendimento, isto é, exprime aspossibilida<strong>de</strong>s últimas <strong>do</strong>s limites <strong>do</strong> entendimento. A possibilida<strong>de</strong>última. Deus como um horizonte último <strong>do</strong>s possíveis para oentendimento. Possibilida<strong>de</strong> mais radical, mas objectivada (houveuma espécie <strong>de</strong> esquecimento, dissimulação da teologia ao ocultar oque é da essência <strong>do</strong> entendimento). Esta objectivação é importante.Assim, todas as religiões, mesmo a cristã, são como a teologiaespeculativa, dissimula<strong>do</strong>ras, cânones que dão pretensa realida<strong>de</strong> aoque está fora <strong>do</strong> entendimento. O entendimento <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra, colocahorizontes a que não correspon<strong>de</strong> nada e num senti<strong>do</strong> mais amplointroduz o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma duplicida<strong>de</strong> <strong>em</strong> simultâneo.275 I<strong>de</strong>m, p. 42: “ […] que, por consequência, na essência, na verda<strong>de</strong>, são um só”.276 I<strong>de</strong>m, p. 17: “O <strong>de</strong>sacor<strong>do</strong> <strong>de</strong> entendimento e essência, <strong>de</strong> faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar efaculda<strong>de</strong> produtiva […]”.277 I<strong>de</strong>m, p. 42: “A essência divina, pura, perfeita, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>feitos é consciência <strong>de</strong> si<strong>do</strong> entendimento, a consciência que o entendimento t<strong>em</strong> da sua própria perfeição”.99


Entendimento e coração“O entendimento nada sabe <strong>do</strong>s sofrimentos <strong>do</strong> coração;não t<strong>em</strong> <strong>de</strong>sejos, n<strong>em</strong> paixões, n<strong>em</strong> carências e,justamente por isso, <strong>de</strong>ficiências e fraquezas como ocoração” 278 .O entendimento pensa, objectiva por si. Por esse facto éperfeito 279 . É por isso que acontece uma ruptura com o coração. Noprocesso <strong>de</strong> objectivação o entendimento separa-se para se tornar livre<strong>do</strong> pathos, <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sejos, das paixões, das carências, <strong>de</strong>ficiências eexcessos <strong>do</strong> coração.A inteligência ou entendimento não t<strong>em</strong> saber daquilo que é osofrer <strong>do</strong> coração o que faz com que os homens que a possu<strong>em</strong> <strong>em</strong>senti<strong>do</strong> puro não sejam <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s pelo sentimento. Não seencontram submissos, mas <strong>do</strong>minam as coisas. Aquela inteligência éconsciência imparcial, orig<strong>em</strong> da medida absoluta. O entendimentopermite ao hom<strong>em</strong> juízos e acções <strong>em</strong> oposição aos sentimentos,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o Deus da inteligência o exigir. Isto está na orig<strong>em</strong> <strong>de</strong>muitos conflitos com o nosso coração. O hom<strong>em</strong> abstrai pelainteligência, elevan<strong>do</strong>-se da sua subjectivida<strong>de</strong> <strong>em</strong> direcção aconceitos e consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o objecto como <strong>de</strong>terminante das impressõesmas s<strong>em</strong> relacionamento com o hom<strong>em</strong>. O entendimento não seengran<strong>de</strong>ce n<strong>em</strong> entristece. É a consciência <strong>do</strong> que não possuicontradição. É o lugar on<strong>de</strong> o hom<strong>em</strong> ajuíza e age <strong>em</strong> oposição aosseus mais queri<strong>do</strong>s sentimentos pessoais ou <strong>humano</strong>s, sob a or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>Deus <strong>do</strong> entendimento ou da lei.A consciência no limite une ou separa. Porém, queren<strong>do</strong>refutar-se esta posição é preciso levar isto ao limite, porque superar adicotomia é viver, experimentar. Pergunta-se: não po<strong>de</strong> haver um278 Ibi<strong>de</strong>m.279 Ibi<strong>de</strong>m, “A essência divina, pura, perfeita, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>feitos é a consciência <strong>de</strong> si <strong>do</strong>entendimento, consciência que o entendimento t<strong>em</strong> da sua própria perfeição”.100


outro assunto <strong>de</strong> consciência? Assim, qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> consciência supera-a,revelan<strong>do</strong> isto que não t<strong>em</strong> limites.Em Feuerbach não há outra luz para lá <strong>do</strong> entendimento. É poreste que o hom<strong>em</strong> abstrai <strong>de</strong> si próprio, enquanto ser subjectivo e seeleva a conceitos, <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar o objecto das impressões s<strong>em</strong> relaçãocom o hom<strong>em</strong>. O entendimento é on<strong>de</strong> o hom<strong>em</strong> é Deus. Deste mo<strong>do</strong>a essência <strong>do</strong> entendimento <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como é objecto para o hom<strong>em</strong> no<strong>do</strong>mínio da religião, é Deus “como essência universal, impessoal,abstracta, isto é, metafísica, Deus enquanto Deus, […]” 280 . Oentendimento agrava as dicotomias da razão, sen<strong>do</strong> o hom<strong>em</strong> comoque acometi<strong>do</strong> <strong>de</strong> vertigens, perplexida<strong>de</strong>s s<strong>em</strong> explicar porquê. Areligião não se explica pelo lançar para fora, pelo que o entendimentosepara-se das paixões <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a isentar-se, não se submeter a nada. Éuma faculda<strong>de</strong> genérica, da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, das regras. É a faculda<strong>de</strong> <strong>do</strong>geral, possibilita<strong>do</strong>ra da ciência, enquanto o coração exprime oindivíduo 281 . Mesmo os antropomorfismos religiosos são acontradição <strong>do</strong> entendimento. Porém, o Deus livre daquelesantropomorfismos é mesmo Deus, mas s<strong>em</strong> o lançar para fora dafantasia, <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> consolo. Este Deus é qua talis, enquantoDeus.A essência <strong>do</strong> entendimento é <strong>de</strong> natureza mais própria,consiste <strong>em</strong> objectivar. Neste aspecto o entendimento preten<strong>de</strong> ir aoarrepio da lógica religiosa, pois ao nível da religião o hom<strong>em</strong>comporta-se com a essência humana como diferente <strong>de</strong>le mesmo, mas<strong>de</strong>pois vê-a como sua. Ou seja, o hom<strong>em</strong> ainda que queira a existência<strong>de</strong> Deus ele quer, também, que ele mesmo seja para ele mesmo o seuDeus “um ser para ele, um ser <strong>humano</strong>” 282 . Há como que uma espécie<strong>de</strong> movimento orienta<strong>do</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, pois este ao interessar-se pela sua280 I<strong>de</strong>m, p. 43.281 Ibi<strong>de</strong>m, 1.º§.282 I<strong>de</strong>m, p. 44, 2.º §.101


existência já nisso está imbricada a sua existência. O pensamentovolta-se para a existência <strong>de</strong> Deus (pretensão <strong>de</strong> encontrar uma<strong>de</strong>monstração da existência <strong>em</strong> Deus) visan<strong>do</strong> a essência humana.Usan<strong>do</strong> Lutero como seu interlocutor, Feuerbach consi<strong>de</strong>ra que opróprio Cristo precisa <strong>de</strong> um salva<strong>do</strong>r, <strong>de</strong> um outro ser, acima <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>, pelo que ao colocar-se um outro ser superior, põe-se ohom<strong>em</strong> por intermédio da sua essência. Por isso no lugar <strong>de</strong> Deus énecessário colocar a Humanida<strong>de</strong>. Com este ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> Cristo, on<strong>de</strong>se faz a exigência <strong>de</strong> um media<strong>do</strong>r simultaneamente hom<strong>em</strong> e Deus.Feuerbach quer elucidar, Deus e o hom<strong>em</strong>, articular essas duasdimensões. Pois só Deus aparece como alguém que po<strong>de</strong>ria pacificar,dar consolo, que sofresse com o hom<strong>em</strong>, só esse Deus serviria para ohom<strong>em</strong>, colocar-se na pele <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a dar-se o que ele<strong>de</strong>seja 283 . Ou seja, quer que Deus seja <strong>humano</strong>. O cristianismo quermanter o outro no outro e mesmo. Cristo é hom<strong>em</strong> e Deus. Nestesenti<strong>do</strong> a interrogação: “Como posso partilhar da paz <strong>de</strong> um ser, senão faço parte da sua essência? Se a sua essência é diferente, tambéma sua paz é essencialmente diferente, não é paz para mim.” 284 . Assim,se o hom<strong>em</strong> fosse um ser diferente <strong>de</strong> Deus haveria um hiato, umabismo. É por isso que Deus é a verda<strong>de</strong>ira essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>,“porque só nela ele está próximo <strong>de</strong> si. […]” 285 . Há, <strong>em</strong> Feuerbach,uma crítica ao cristianismo face à filosofia clássica da Antiguida<strong>de</strong>pois o cristão pensa <strong>em</strong> si, na obtenção da felicida<strong>de</strong> enquanto que afilosofia nasce mais preocupada com o exterior, a natureza, pensa <strong>de</strong>igual mo<strong>do</strong> o piolho, a pulga e o hom<strong>em</strong> 286 . Há como que um colocara religião mais <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> coração, ao contrário <strong>do</strong>s <strong>de</strong>uses <strong>do</strong>s283 I<strong>de</strong>m, p.45: “Na religião, o hom<strong>em</strong> quer satisfazer-se <strong>em</strong> Deus. Mas comopo<strong>de</strong>ria encontrar nele consolo e paz, se ele fosse um ser essencialmente diferente?”.284 Ibi<strong>de</strong>m.285 Ibi<strong>de</strong>m.286 Ibi<strong>de</strong>m, “Os cristãos troçavam <strong>do</strong>s filósofos pagãos, porque eles, <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> ter<strong>em</strong>pensa<strong>do</strong> <strong>em</strong> si, na sua salvação, apenas tinham pensa<strong>do</strong> nas coisas exteriores”.102


filósofos, pelo que é preciso voltar às origens, <strong>de</strong>smontar o senti<strong>do</strong>oculto ao longo da história.O Deus <strong>do</strong> entendimento não é o Deus da religião, porque éuma essência objectivada. É por isso que o conhecimento <strong>de</strong> Deus t<strong>em</strong>como condição o conhecimento <strong>de</strong> si. Para justificar isso Feuerbachr<strong>em</strong>ete-nos para o facto <strong>de</strong> o cristão só pensar <strong>em</strong> si 287 . Feuerbach t<strong>em</strong>por horizonte mostrar Deus como a essência <strong>do</strong> entendimento e<strong>de</strong>svincula-o com o coração. O entendimento t<strong>em</strong> <strong>em</strong> vista aobjectivação e é por isso que “ […] consi<strong>de</strong>ra com igual entusiasmo apulga, o piolho, ou a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus, o hom<strong>em</strong>” 288 , como conceitos.Quer dizer, o hom<strong>em</strong> não <strong>de</strong>ve estar fora <strong>de</strong> si pois é no seu interiorque se encontra a verda<strong>de</strong>. Feuerbach <strong>de</strong>tecta no sentimento religiosoalgo que mostra como os mistérios da teologia são simples, ven<strong>do</strong>-oscomo um discurso <strong>em</strong> que interpreta o hom<strong>em</strong> na religião cristã, aovê-lo como essência subjectiva humana. Em senti<strong>do</strong> contrário, aindaque o entendimento afirme, também, a essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, trata-se <strong>de</strong>uma essência objectiva no senti<strong>do</strong> científico. Estamos, assim, no cerneda religião: o hom<strong>em</strong>. Feuerbach tenta <strong>de</strong>smistificar que por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong>um gran<strong>de</strong> mistério há algo quase ingénuo.Deste mo<strong>do</strong> as acções são <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> as pratica, pelo que to<strong>do</strong> oser não po<strong>de</strong> negar a sua natureza “Seja o que for que ponha – põe-ses<strong>em</strong>pre a si mesmo” 289 . Assim tu<strong>do</strong> o que o hom<strong>em</strong> diz <strong>de</strong> Deus, o diz<strong>de</strong>le mesmo. Por isso, o s<strong>em</strong>elhante conhece o s<strong>em</strong>elhante, pelo que“Toda a admiração é, no fun<strong>do</strong>, auto-admiração, to<strong>do</strong> o elogio autoelogio,cada juízo que <strong>em</strong>ites sobre outra coisa um juízo sobre ti287 I<strong>de</strong>m, p. 46, cf. nota: “A te incipiat cogitatio tua et in te finiatur, nec frustra in aliadistendaris, te neglecto. Praeter salut<strong>em</strong> tuam nihil cogites”.288 Ibi<strong>de</strong>m. Ver ainda Fió<strong>do</strong>r DOSTOIÉVSKI, Crime e Castigo, (Tradução <strong>do</strong> Russo<strong>de</strong> Nina Guerra e Filipe Guerra), Editorial Presença, Lisboa, 2007 5 . Na p. 66 é <strong>de</strong>notar este pormenor quan<strong>do</strong> o personag<strong>em</strong> Raskólnikov consi<strong>de</strong>ra o ser <strong>humano</strong>como um piolho: “E mais, num balanço geral, o que significa a vida <strong>de</strong>sta velhatísica, estúpida e mal<strong>do</strong>sa? Não significa mais <strong>do</strong> que a vida <strong>de</strong> um piolho, <strong>de</strong> umbarata, até porque também é nociva”.289 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 18.103


mesmo” 290 . É a afirmação da subjectivida<strong>de</strong> absoluta. Trata-se <strong>de</strong>trazer o to<strong>do</strong> para o to<strong>do</strong> da espécie, pelo que é preciso tornar ateologia <strong>em</strong> antropologia e dizê-lo <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, pois há um segre<strong>do</strong> quenunca ninguém ousou dizer. A essência religiosa da consciência <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> que t<strong>em</strong> no outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> espelho a essência religiosa. O quetorna religioso este sentimento é o facto <strong>de</strong> que o sentimento é “ […] oórgão <strong>do</strong> divino […] “o sentimento é o mais nobre, o mais excelente,isto é, o divino, no hom<strong>em</strong>” 291 . O hom<strong>em</strong> não se <strong>de</strong>ve iludir e nãolançar para fora <strong>de</strong> si, pois à essência humana é da<strong>do</strong> o fundamento dareligiosida<strong>de</strong> por estar no próprio hom<strong>em</strong>, t<strong>em</strong> <strong>em</strong> si o seu Deus. Osentimento não v<strong>em</strong> <strong>do</strong>s <strong>de</strong>uses, ele é próprio <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, é para simesmo, negan<strong>do</strong> um Deus objectivo. Por isso, negar o sentimento énegar Deus. Logo, o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> me<strong>do</strong> <strong>de</strong> ser Deus. No entanto osentimento é a essência da religião, po<strong>de</strong>r intrínseco ao hom<strong>em</strong> maseleva<strong>do</strong>, porque o afecta (<strong>de</strong>termina) como sen<strong>do</strong> Deus. Quer dizer, oque se <strong>de</strong>signa por essência é simultaneamente subjectivo e objectivo,pelo que o hom<strong>em</strong> “ […] nunca po<strong>de</strong>rá vir a ultrapassar a suaverda<strong>de</strong>ira essência.” 292 . Pela imaginação e pela fantasia o hom<strong>em</strong>elabora suposições, porém não abstrai da sua própria essência e ospredica<strong>do</strong>s atribuí<strong>do</strong>s a seres superiores fantasia<strong>do</strong>s são retira<strong>do</strong>s <strong>de</strong> si<strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, pelo que é a si que se <strong>de</strong>termina.A Perfeição moral – ou Deus como amor“A consciência religiosa opõe a si a sua própria essênciacomo objecto, como essência s<strong>em</strong> <strong>de</strong>feito e s<strong>em</strong> peca<strong>do</strong>,290 Ibi<strong>de</strong>m.291 I<strong>de</strong>m, p.19.292 I<strong>de</strong>m, p. 21.104


perfeitamente santa – é a sua própria essência, porque éa lei <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, […]” 293 .No seguimento <strong>do</strong> apresenta<strong>do</strong> na Introdução, Feuerbachreitera que as <strong>de</strong>terminações que o hom<strong>em</strong> objectiva são suas, da suaessência, representan<strong>do</strong>-se a si mesmo.A <strong>de</strong>terminação <strong>do</strong> entendimento e da razão ao estabelecer adistinção Deus – hom<strong>em</strong> reenvia-nos para uma alusão característica<strong>do</strong> hom<strong>em</strong>: a perfeição moral 294 . Esta é uma <strong>de</strong>terminação visto quevai levantar probl<strong>em</strong>as a propósito <strong>do</strong> b<strong>em</strong> e <strong>do</strong> mal.Deus ao nível da vonta<strong>de</strong> é um ser moralmente perfeito. Entãopor que é que o peca<strong>do</strong> aparece como uma contradição com a essênciadivina? Ou encontra-se na essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>?A contradição <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> <strong>em</strong> Deus é porque contradiz aessência humana. O hom<strong>em</strong> é bom e é por isso que ao dizer-se que opeca<strong>do</strong> contradiz a essência divina é porque é contrário à essência <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>. Da<strong>do</strong> que a essência divina não se distingue da humana aexistência <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> mostra uma contradição ao nível <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>individual com o que é seu, a sua essência pois <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong> ohom<strong>em</strong> agiria <strong>em</strong> acor<strong>do</strong> no universo 295 . O peca<strong>do</strong> só contradiz o queo hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>ve e po<strong>de</strong> ser e introduz Deus para se referir directamenteao hom<strong>em</strong>. Porque a essência divina e a essência humana se diz<strong>em</strong>uma pela outra é que o peca<strong>do</strong> é uma contradição, na essência divina opeca<strong>do</strong> contradiz a essência humana. Há, assim, uma espécie <strong>de</strong>intuição da essência humana como perfeita. Enquanto a essência <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> é só, completa, s<strong>em</strong> peca<strong>do</strong>, aí se exprime ao nível da essênciaa consciência moral da Humanida<strong>de</strong>.293 I<strong>de</strong>m, p. 47.294 I<strong>de</strong>m, p. 46: “Deus é objecto da religião como ser moralmente perfeito. Deus sóhabita num coração puro, só é acessível ao sentimento puro. Mas porquê, se el<strong>em</strong>esmo não é o ser moral puro? O peca<strong>do</strong> é uma contradição com a essência divina –na linguag<strong>em</strong> da religião, que tu<strong>do</strong> personifica: Deus o<strong>de</strong>ia o peca<strong>do</strong>, é contra ele”.295 I<strong>de</strong>m, p. 47: “Se, por natureza, o hom<strong>em</strong> agisse no peca<strong>do</strong>, então agia como<strong>de</strong>via agir, então o seu peca<strong>do</strong> seria um comme il faut, uma harmonia e não umadissonância no universo”.105


O hom<strong>em</strong> religioso opõe a sua essência como santa, a si. Porisso ele sente-se <strong>em</strong> contradição com aquela essência perfeita. Nestesenti<strong>do</strong> há uma cisão da sua essência na consciência <strong>de</strong> si <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>religioso. O indivíduo t<strong>em</strong> consciência <strong>de</strong> si porque não realizou acontradição da essência. Há uma espécie <strong>de</strong> oposição <strong>de</strong> si <strong>em</strong> <strong>do</strong>isplanos: entre o indivíduo/espécie (ser/<strong>de</strong>ver) e o entendimento. Ohom<strong>em</strong> é <strong>de</strong>ver como <strong>de</strong>ver ser. Mas como “não é como <strong>de</strong>ve ser e[…] como po<strong>de</strong> ser” 296 . Ele sente-se infeliz, s<strong>em</strong> senti<strong>do</strong>,con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> 297 . Na religião a essência <strong>do</strong> <strong>de</strong>ver é Deus, enquantolegisla<strong>do</strong>r, lei, sen<strong>do</strong> a lei moral objecto <strong>de</strong> outra essência que exclui ohom<strong>em</strong> da graça, da salvação e felicida<strong>de</strong>. Porém, será verda<strong>de</strong> istoda<strong>do</strong> Feuerbach lidar com uma tradição <strong>do</strong>gmática? Assim, se há umconflito entre a representação <strong>do</strong> entendimento (Deus como legisla<strong>do</strong>r,lei/perfeição moral) que mostra o que o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>ve ser e não é, surgeum conflito prático – o que o hom<strong>em</strong> não é. Neste senti<strong>do</strong> Deus seacaba por representar um “telos”.Como sarar esta oposição?É preciso objectivar o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> coração, o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> Amor.Não apenas o <strong>de</strong> Deus que julga (juíz), mas apreendê-lo como po<strong>de</strong>r<strong>de</strong> perdão, misericórdia “porque ao evocar <strong>em</strong> mim o que eu <strong>de</strong>vo ser,diz-me ao mesmo t<strong>em</strong>po na cara, s<strong>em</strong> qualquer lisonja, o que eu nãosou.” 298 . Assim, o hom<strong>em</strong> não po<strong>de</strong> permanecer nesta discórdia entreo entendimento e o coração e entre si, peca<strong>do</strong>r, e o ser perfeito. Oentendimento representa o i<strong>de</strong>al da perfeição moral <strong>em</strong> oposição àperfeição da espécie, a hospitalida<strong>de</strong> – que o não é, crian<strong>do</strong>-se por issoum fosso,296 I<strong>de</strong>m, p. 48.297 Ibi<strong>de</strong>m, “tanto mais quanto na religião a lei moral não é para ele objecto apenascomo lei e como sua essência própria e verda<strong>de</strong>ira, mas como objecto <strong>de</strong> uma outraessência pessoal que o<strong>de</strong>ia os peca<strong>do</strong>res, que os exclui da sua graça, da fonte <strong>de</strong>toda a salvação e felicida<strong>de</strong>”.298 I<strong>de</strong>m, p. 49.106


O hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong>, por isso, <strong>de</strong> afirmar e objectivarnão apenas o po<strong>de</strong>r da lei, a essência <strong>do</strong> entendimento,mas também o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> amor, a essência <strong>do</strong> coração, seé que <strong>de</strong>ve e quer satisfazer-se na religião e alcançar atranquilida<strong>de</strong> 299 .T<strong>em</strong> que ir além da objectivação, <strong>do</strong> representar <strong>do</strong>entendimento e pôr o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> coração.O entendimento é qualquer coisa que é mais divino no hom<strong>em</strong>,pois basta-se a si próprio, pensa-se. Porém não bastam um ao outro,porquanto a lei con<strong>de</strong>na e o coração é misericordioso, dan<strong>do</strong> esteúltimo a consciência <strong>do</strong> ser hom<strong>em</strong> enquanto que o entendimento dá aconsciência da nulida<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, <strong>do</strong> ser peca<strong>do</strong>r 300 . Assim, porquea lei é racional o hom<strong>em</strong> precisa <strong>de</strong> encontrar o coração (cuida<strong>do</strong>so,atencioso, indulgente, misericordioso) 301 . É preciso ir além da ruptura<strong>do</strong> entendimento, <strong>de</strong> Deus no entendimento 302 . Deus aguenta aessência no entendimento (perfeição moral) mas é cisão no hom<strong>em</strong>,porque a oposição Deus – hom<strong>em</strong> é a oposição entre o indivíduo eDeus, um indivíduo como espécie. É preciso reconhecer <strong>em</strong> Deus osaspectos lança<strong>do</strong>s para fora pelo entendimento. O amor é a verda<strong>de</strong>iraunida<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> e Deus. Deus é coração 303 . O amor é como um299 Ibi<strong>de</strong>m.300 Ibi<strong>de</strong>m, ver nota “Omnes peccavimus…Parricidae cum lege coeperunt et illisfacinus poena monstravit”.301 Ibi<strong>de</strong>m, “Apenas ao ter consciência <strong>do</strong> coração, <strong>do</strong> amor, como o po<strong>de</strong>r e averda<strong>de</strong> supr<strong>em</strong>os e absolutos, ao intuir a essência divina, não apenas como lei,como essência moral […] mas antes como uma essência que ama, que é cordial, eque é mesmo subjectivamente humana”.302 Há nisto uma espécie <strong>de</strong> “preparatio” da Incarnação.303 I<strong>de</strong>m, p. 50: “O amor é o terminus medius, o vínculo substancial, o princípio damediação entre o perfeito e o imperfeito, o ser peca<strong>do</strong>r e o ser puro, o universal e oindividual, a lei e o coração, o divino e o coração, o divino e o <strong>humano</strong>. O amor é opróprio Deus e fora <strong>de</strong>le não há Deus. O amor faz <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> Deus e <strong>de</strong> Deushom<strong>em</strong>. […] O amor é a verda<strong>de</strong>ira unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> e Deus, Natureza eespírito”. Ver ainda Jo 4, 1-42. Este aspecto faz ter presente o diálogo <strong>de</strong> Jesus coma Samaritana, on<strong>de</strong> há a referência a que Deus é espírito e que os actos externos sãoapenas expressão da a<strong>do</strong>ração <strong>em</strong> espírito e verda<strong>de</strong>.107


po<strong>de</strong>r universal, com carne e sangue, real e que po<strong>de</strong> sarar estacontradição entre essência e entendimento é Deus como amor 304 .Enquanto que para o judaísmo Deus é legisla<strong>do</strong>r, para ocristianismo a afirmação central é a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> Incarnação sen<strong>do</strong> por issoque é antropologia.304 Feuerbach utiliza textos da tradição teológica on<strong>de</strong> Deus é dito como amor. CfBíblia Sagrada, 1Coríntios13, 1-13; Autores clássicos (S. Tomás <strong>de</strong> Aquino, S. toAgostinho, Boécio, René Descartes) que colocam a ligação, a juntura <strong>em</strong> que não háconhecimento <strong>de</strong> Deus s<strong>em</strong> conhecimento <strong>de</strong> si. Feuerbach retoma esses textos numsignifica<strong>do</strong> antropológico.108


TERCEIRA PARTE109


A existência verda<strong>de</strong>ira“Qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> vergonha <strong>de</strong> ser finito, t<strong>em</strong> vergonha <strong>de</strong>existir. Toda a existência real, quer dizer, toda aexistência que é existência <strong>de</strong> facto, re vera, é existênciaqualitativa, <strong>de</strong>terminada e por isso finita” 305 .305 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 26.110


1. O hom<strong>em</strong> como finito e <strong>em</strong>pírico.Os primeiros momentos <strong>de</strong> A Essência <strong>do</strong> Cristianismorefer<strong>em</strong>-se às faculda<strong>de</strong>s genéricas que se encontram na base daformação inconsciente <strong>do</strong> processo teomórfico enquanto que osmomentos que se segu<strong>em</strong> são, cada um per si, a concretização dasanálises <strong>de</strong> Feuerbach <strong>em</strong> novas <strong>do</strong>utrinas e atributos acerca damostrag<strong>em</strong> das dimensões <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> como finito e <strong>em</strong>pírico. Estasdimensões são a partir <strong>de</strong> agora tratadas.Feuerbach refere que A Essência <strong>do</strong> Cristianismo só po<strong>de</strong> sercompreendida por eruditos e por isso não tinha n<strong>em</strong> intenção n<strong>em</strong>expectativa que o seu livro fosse li<strong>do</strong> pelo público <strong>em</strong> geral. E diz istoporque pela erudição e filosofia enten<strong>de</strong> o meio para <strong>de</strong>svelar otesouro secreto, escondi<strong>do</strong> no hom<strong>em</strong> 306 . Aqui é preciso nãoconfundir, pois Feuerbach é b<strong>em</strong> claro, que o mesmo consi<strong>de</strong>ra que overda<strong>de</strong>iro méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> ensinar e <strong>de</strong> escrever não é o erudito n<strong>em</strong>306 I<strong>de</strong>m, <strong>do</strong> “Prefácio” da 2.ª Edição (1843), p.435: “ Tenho ainda <strong>de</strong> recordar quefoi contra a minha intenção e expectativa que o meu livro chegou ao gran<strong>de</strong>público”.111


qualquer um <strong>do</strong>s filósofos <strong>em</strong> particular, mas o hom<strong>em</strong>, o universal.Porém, o livro A Essência <strong>do</strong> Cristianismo só po<strong>de</strong> ser compreendi<strong>do</strong>pelo erudito 307 . É que há referências históricas s<strong>em</strong> ser<strong>em</strong> <strong>de</strong>signadase que só o referi<strong>do</strong> erudito enten<strong>de</strong>, pelo que só qu<strong>em</strong> conhece ascondicionantes históricas da obra referida é que consegue estabeleceras junções das razões e pontos <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> Feuerbach.Feuerbach ao corrigir as aberrações da religião, da teologia eda especulação serve-se das expressões das mesmas para as resolver.Quer dizer, reduzir a teologia à antropologia. Assim, há um princípioque se <strong>de</strong>senrola <strong>em</strong> concreto <strong>do</strong> que <strong>de</strong>nomina por filosofia nova quese atém ao hom<strong>em</strong>. É um princípio produzi<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o interior dareligião, da sua essência. Assim, a verda<strong>de</strong> <strong>em</strong>erge <strong>do</strong> que se oculta“sob lágrimas e suspiros” 308 .O Segre<strong>do</strong> da Incarnação, da Trinda<strong>de</strong> e os atributos <strong>de</strong> Deus,da Criação, <strong>do</strong> Milagre e da Salvação mostram-nos queO corpo e a carne, a passivida<strong>de</strong>, a <strong>de</strong>pendência ea afectivida<strong>de</strong>, a relação interpessoal e dialógica nãosão já componentes <strong>de</strong> uma teoria da essência; formamno seu conjunto os princípios ou el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> umaantropologia real e sensível 309 .Incarnação – a consciência <strong>do</strong> amor“É pela consciência <strong>do</strong> amor que o hom<strong>em</strong> se reconciliacom Deus, ou melhor, consigo, com a sua essência, quena lei ele põe face a si como uma essência diferente” 310 .307 Ibi<strong>de</strong>m, “ – Entenda-se, apenas por aquele erudito que ama a verda<strong>de</strong>, capaz <strong>de</strong>julgar, que se eleva acima das convicções e preconceitos <strong>do</strong> povo instruí<strong>do</strong> e nãoinstruí<strong>do</strong>, pois <strong>em</strong>bora seja um produto inteiramente autónomo, é ao mesmo t<strong>em</strong>pouma consequência necessária da história”.308 I<strong>de</strong>m, p. 438.309 Adriana Veríssimo SERRÃO, Pensar a Sensibilida<strong>de</strong>, p.100.310 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 51.112


“A intuição, a consciência <strong>do</strong> amor divino ou, o que é omesmo, Deus como um ser ele mesmo <strong>humano</strong> – estaintuição é o segre<strong>do</strong> da Incarnação” 311 .Deus é amor, o amor é Deus no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> partilha, <strong>de</strong>partilhar o que se t<strong>em</strong>, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma imediação. Feuerbachinverte, pois é necessário transformar o amor <strong>em</strong> sujeito. O amor é queé Deus. Trata-se <strong>de</strong>, pelo amor, o hom<strong>em</strong> se reconciliar com Deus.Quer dizer “ […] consigo, com a sua essência, […]” 312 . O amor é umaespécie <strong>de</strong> encargo que só falta transferi-lo <strong>de</strong> Deus e dá-la ao seu<strong>do</strong>no. Descoberto este segre<strong>do</strong>, o hom<strong>em</strong> é Deus no amor, aman<strong>do</strong> e,por isso, este é o segre<strong>do</strong> da incarnação. Não está fora, está por<strong>de</strong>ntro. Assim, a incarnação é a natureza humana <strong>de</strong> Deus que se tornasensível. A incarnação resulta <strong>do</strong> amor e da misericórdia <strong>de</strong> Deus.Feuerbach enten<strong>de</strong> que compreen<strong>de</strong>r o fenómeno religioso nãotermina no interrogar-se sobre o que é Deus ou, numa perspectivagenética, <strong>de</strong>monstrar “que Deus é hom<strong>em</strong>”, mas por que razão ohom<strong>em</strong> cria Deus? Assim, o hom<strong>em</strong> religioso preten<strong>de</strong> uma vidaplena. No entanto enquanto <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> sentimento e subjectivida<strong>de</strong>,submisso ao ânimo e ao coração to<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> da existência <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>da afectivida<strong>de</strong> e da <strong>em</strong>oção com outro ser e porque “Na religião, ohom<strong>em</strong> quer satisfazer-se <strong>em</strong> Deus […] Por isso, se o hom<strong>em</strong> sentepaz <strong>em</strong> Deus, só a sente porque Deus é a sua verda<strong>de</strong>ira essência,porque só nela ele está próximo <strong>de</strong> si” 313 . É neste senti<strong>do</strong> que sedistingue razão natural (κατ` έξοχήν) da razão cristã e que “se ospredica<strong>do</strong>s divinos são <strong>de</strong>terminações da essência humana” 314 , logo osujeito <strong>de</strong>les t<strong>em</strong> essência humana. Saben<strong>do</strong> também da diferentedivisão entre os predica<strong>do</strong>s divinos, só os pessoais são a essência da311 Ibi<strong>de</strong>m.312 I<strong>de</strong>m, p. 51.313 I<strong>de</strong>m, p. 45.314 I<strong>de</strong>m, da “Introdução”, p. 30.113


eligião, on<strong>de</strong> a essência divina é objecto da religião, pois são<strong>de</strong>terminações humanas, verda<strong>de</strong>s, coisas, realida<strong>de</strong>s 315 .Mas, por que é que Deus incarnou, se fez hom<strong>em</strong> 316 ? A razãoencontra-se na infelicida<strong>de</strong> e necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, pois quersatisfazer-se; na misericórdia, porque já era <strong>humano</strong> antes <strong>de</strong> o ser narealida<strong>de</strong>, in concreto, e por essa razão sentia as necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>shomens, ficava sensibiliza<strong>do</strong> com a miséria humana. A incarnação éuma verda<strong>de</strong> no sentimento compa<strong>de</strong>ci<strong>do</strong> pelo hom<strong>em</strong>. Nota-se, <strong>de</strong>st<strong>em</strong>o<strong>do</strong>, o sentir <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> religioso como ser subjectivo <strong>em</strong> relaçãoafectiva com outro ser pessoal que também possui subjectivida<strong>de</strong>. Umsentir <strong>de</strong> um ser que sente <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> <strong>humano</strong>, um ser já na sua essência<strong>humano</strong>.É naquele senti<strong>do</strong> que po<strong>de</strong>mos socorrer-nos <strong>do</strong>s textos <strong>de</strong> S.Paulo 317 e <strong>de</strong> S. João 318 on<strong>de</strong> t<strong>em</strong>os um Deus para nós (esse ad), comouma espécie <strong>de</strong> oikonia e diferente <strong>do</strong> ser da teologia: um Deus <strong>em</strong> si(esse in), pois o cristianismo diz que “Deus é amor”.A <strong>do</strong>utrina da incarnação é <strong>do</strong>n<strong>de</strong> arranca o cristianismo,porque conduz à verda<strong>de</strong>: Deus é hom<strong>em</strong>. Naquilo que revela,escon<strong>de</strong> – que Cristo antes <strong>de</strong> se fazer hom<strong>em</strong>, já era projecta<strong>do</strong> comohom<strong>em</strong>, escon<strong>de</strong> que antes <strong>de</strong> Deus se fazer hom<strong>em</strong> e porque já eraDeus, escon<strong>de</strong>-o, revelan<strong>do</strong>-o. Cristo é fundamento da naturezahumana – Deus como coração, maná, intervin<strong>do</strong> na história. Por outrola<strong>do</strong> escon<strong>de</strong>, diz <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> antes <strong>de</strong> ser Deus. O que se revela na315 I<strong>de</strong>m, da “Introdução”, p. 31: “A essência da religião resi<strong>de</strong> precisamente nofacto <strong>de</strong> para ela estas <strong>de</strong>terminações exprimir<strong>em</strong> a essência <strong>de</strong> Deus. […] A religiãoé essencialmente <strong>em</strong>oção, por isso, também objectivamente, a <strong>em</strong>oção énecessariamente <strong>de</strong> essência divina”.316 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. 42: “El<strong>do</strong>gma fundamental <strong>de</strong>l cristianismo: Dios se ha revela<strong>do</strong> a los hombres, es <strong>de</strong>cir, seha hecho hombre – pues la encarnación <strong>de</strong> Dios fue la revelación <strong>de</strong> Dios - , no tieneentonces otro senti<strong>do</strong> más que éste: en el cristianismo Dios se ha converti<strong>do</strong> <strong>de</strong> unser <strong>de</strong> pensamiento en un ser sensible”.317 Bíblia Sagrada, 1Coríntios 13, 1-13.318 I<strong>de</strong>m, 1Jo 4, 8-20.114


Incarnação, escon<strong>de</strong>-se não dizen<strong>do</strong> 319 . Nesta citação exprime-se osegre<strong>do</strong> da Incarnação como amor. Só falta dizer <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> é – que nãopertence a Deus, mas ao hom<strong>em</strong>. O transcen<strong>de</strong>nte (Pai e Filho) e Deustorna-se hom<strong>em</strong>. O que o cristianismo quer escon<strong>de</strong>r é que antes <strong>de</strong>Deus se tornar hom<strong>em</strong> a condição <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> já era. Nisto resi<strong>de</strong>o segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> cristianismo, da Incarnação.Na Incarnação é posto Deus feito hom<strong>em</strong>. Porém, nisto não hámistério porque no la<strong>do</strong> escondi<strong>do</strong> da consciência religiosa o Deusque se põe na Incarnação é manifestação <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> feito Deus. Háuma precedência da elevação <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> a Deus relativamente à<strong>de</strong>scida <strong>de</strong> Deus ao hom<strong>em</strong>, porque o hom<strong>em</strong> já se encontrava <strong>em</strong>Deus antes <strong>de</strong>ste se tornar hom<strong>em</strong>. E isto porque Deus ao preocuparsecom o <strong>humano</strong> torna-se hom<strong>em</strong>. É um Deus com figura humana,pois no mais profun<strong>do</strong>, na sua essência, é <strong>humano</strong>.Para a Igreja é o Filho, segunda pessoa da divinda<strong>de</strong>, queincarna e no Filho encontra-se a criação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> a palavraque fala ao hom<strong>em</strong> e que representa o hom<strong>em</strong> perante Deus. E “oDeus <strong>humano</strong>” é o Deus verda<strong>de</strong>iramente, pessoa verda<strong>de</strong>ira, pois éele a primeira pessoa da religião. Parte-se <strong>do</strong> “terminus medius” aquida incarnação, porque é amor, mediação, pelo que não é um facto<strong>em</strong>pírico n<strong>em</strong> é resulta<strong>do</strong> da teologia clássica, orto<strong>do</strong>xa, n<strong>em</strong> <strong>de</strong>razões metafísicas 320 . A metafísica é pertença da primeira pessoa peloque não é uma pessoa que se comove.Mais uma vez Feuerbach se refere ao uso <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> genéticocríticocomo um méto<strong>do</strong> da suspeita pois anula ilusões misteriosas e319 I<strong>de</strong>m, Jo 1, 14: “E a Palavra se fez carne”.320 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. 45: “Asípues, el tesoro más noble y el consuelo más alto que nosotros los cristianos ten<strong>em</strong>oses que la Palabra, el auténtico y natural Hijo <strong>de</strong> Dios, se ha hecho hombre, tienerealmente carne y sangre, como otro hombre, y por amor nuestro se ha encarna<strong>do</strong>,con lo que llegamos a poseer la magna gloria <strong>de</strong> que nuestra carne y nuestra sangre,la piel y los cabellos, las manos y los pies, el estómago y la espalda están senta<strong>do</strong>sen lo alto <strong>de</strong>l cielo, iguales a Dios”.115


pela crítica torna natural o que o não é para o <strong>do</strong>gma. Quer dizer, arazão da Incarnação está no amor, pois que o cerne da questão é “ omístico “hom<strong>em</strong>-Deus”, é o amor <strong>de</strong> Deus pelo hom<strong>em</strong>; na medida<strong>em</strong> que Deus ama o hom<strong>em</strong>, […] já é hom<strong>em</strong>;” 321 . É por essa razãoque a segunda pessoa, o Filho, é dramática. Assim, pelo amor há umanegação <strong>do</strong> espírito pelo espírito “ ao amar, Deus renuncia à suadivinda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sapropria-se <strong>de</strong> si, antropomorfiza-se” 322 , afirman<strong>do</strong> ahumanida<strong>de</strong> íntima <strong>de</strong> Deus.A religião diz que Deus é amor 323 . Feuerbach está perante aduplicida<strong>de</strong> da religião. Deus é o próprio amor. Assim ser sujeito é serpredica<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> se diz Deus, diz-se amor. O sujeito não sedistingue <strong>do</strong> predica<strong>do</strong>. Se realçar que “Deus enviou por amor o seufilho unigénito” 324 on<strong>de</strong> fica o amor? Esqueci<strong>do</strong> pelo sujeito Deus.Porém, o amor é na afirmação aqui referida uma proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> umsujeito, mas <strong>de</strong>terminante. É por isso que só <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> espírito eânimo é a posição <strong>do</strong> predica<strong>do</strong>, mas não a <strong>do</strong> sujeito. Ora aparece e<strong>de</strong>saparece, manten<strong>do</strong>-se a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> Deus como to<strong>do</strong> o po<strong>de</strong>roso.É necessário que o amor seja posto como essência. De outromo<strong>do</strong> algo se mantém como sujeito poisDeus continua a aparecer-me ainda numa outrafigura que não a <strong>do</strong> amor, na figura da omnipotência, <strong>de</strong>um po<strong>de</strong>r tenebroso, não uni<strong>do</strong> pelo amor, <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r<strong>do</strong> qual os <strong>de</strong>mónios, os diabos, <strong>em</strong>bora <strong>em</strong> menor grau,também participam 325 .Por essa razão <strong>em</strong>erge o fanatismo religioso, expresso <strong>em</strong>práticas distintas <strong>do</strong> amor. No entanto, fica-nos ainda o amor que é oessencial da Incarnação pois é o amor que persua<strong>de</strong> Deus a321 Ludwig FEURBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 53.322 Ibi<strong>de</strong>m.323 Bíblia Sagrada, 1João 4-5.324 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 54. Ver ainda “Apêndice”,I<strong>de</strong>m, p. 347.325 Ibi<strong>de</strong>m.116


<strong>de</strong>sapossar-se <strong>do</strong> que <strong>em</strong> si é divino, como afirmava S. Bernar<strong>do</strong> 326 . Écomo um <strong>de</strong>spojar-se da divinda<strong>de</strong>, negan<strong>do</strong>-a, que está o concreto daIncarnação. Este <strong>de</strong>sapossar-se, auto-negação é o mostrar-se <strong>de</strong> Deuscomo uma essência humana. A negação da divinda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deusencontra-se no predica<strong>do</strong>, no amor, porque este é um po<strong>de</strong>r superiorao da divinda<strong>de</strong>. É por isso que “O amor vence Deus”, porque é umamor pelo hom<strong>em</strong> 327 . Este amor pelo hom<strong>em</strong> é o mesmo que amor<strong>humano</strong>, porque para se amar o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> que se amarhumanamente 328 . Ama-o com amor que é igual <strong>em</strong> toda a parte, s<strong>em</strong>dualismos entre divino e <strong>humano</strong>. Com amor verda<strong>de</strong>iro, o amor <strong>do</strong>sacrifício pelo outro.É o amor que situa o hom<strong>em</strong> acima da diferença entrepersonalida<strong>de</strong> divina e personalida<strong>de</strong> humana, pois foi o amor quesalvou o hom<strong>em</strong> e não Deus enquanto Deus. Do mesmo mo<strong>do</strong> que foipor amor que Deus se entregou também <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os colocar o amor nolugar <strong>de</strong> Deus. Isto é, o não sacrifício <strong>de</strong> Deus ao amor t<strong>em</strong> comoimplicação o sacrifício <strong>do</strong> amor a Deus. Há, assim, <strong>em</strong> Feuerbach aafirmação <strong>do</strong> predica<strong>do</strong> amor <strong>em</strong> vez <strong>do</strong> sujeito Deus, fonte <strong>do</strong>referi<strong>do</strong> fanatismo religioso. O que está <strong>em</strong> vista é anular a ilusão <strong>de</strong>que a Incarnação encerra um segre<strong>do</strong>, mais não sen<strong>do</strong> <strong>em</strong> vez <strong>de</strong>mistério sobrenatural e metafísico uma verda<strong>de</strong> simples, natural aohom<strong>em</strong> logo uma verda<strong>de</strong> universal, válida para to<strong>do</strong>s os cre<strong>do</strong>sreligiosos. Deus é da<strong>do</strong>, os senti<strong>do</strong>s mostraram-no 329 .326 I<strong>de</strong>m, p. 55: “O Amor vence Deus”.327 I<strong>de</strong>m, p. 347: “O segre<strong>do</strong> da incarnação é o segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> amor <strong>de</strong> Deus pelohom<strong>em</strong>, mas o segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> amor <strong>de</strong> Deus pelo hom<strong>em</strong> é o segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> amor <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> por si mesmo”.328 I<strong>de</strong>m, p. 55: “Mas Deus, ao amar o hom<strong>em</strong>, ama o hom<strong>em</strong> pelo hom<strong>em</strong>, para otornar bom, feliz, b<strong>em</strong>-aventura<strong>do</strong>”.329 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. 42: “Noes producto <strong>de</strong> la razón humana, como el Dios <strong>de</strong> los filósofos, pero tampoco unproducto <strong>de</strong> manos humanas, como el Júpiter <strong>de</strong> Fidias; es un ser autónomo que,consiguient<strong>em</strong>ente, me es da<strong>do</strong> no a través <strong>de</strong> mí, sino a través <strong>de</strong> sí mismo. Yo veosólo lo que se <strong>de</strong>ja ver. El ser sensible es un ser que se da […] La revelación da loque jamás podría salir <strong>de</strong> la cabeza <strong>de</strong> un hombre, pero sólo los senti<strong>do</strong>s dan al117


Contra este significa<strong>do</strong> da Incarnação t<strong>em</strong>os a incarnação cristãque é diferente da incarnação <strong>do</strong>s <strong>de</strong>uses pagãos, os quais eramprodutos <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, produtos da imaginação, porque <strong>em</strong> termos <strong>de</strong>existência nada mais havia nessas representações <strong>do</strong> que arepresentação <strong>de</strong> Deus. Pelo contrário, no cristianismo Deus é vistocomo sobre <strong>humano</strong>, manifestan<strong>do</strong>-se como <strong>humano</strong>, como hom<strong>em</strong>.Note-se, no entanto, que na incarnação cristã já está colocada,previamente, a essência humana. Quer dizer, nesta essência humanahá proprieda<strong>de</strong>s que consist<strong>em</strong> no amor <strong>de</strong> Deus pelo hom<strong>em</strong>, no facto<strong>de</strong> Deus ter <strong>em</strong> si um filho, por isso é pai. Há relações <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong>que não são pertença única <strong>de</strong> Deus ainda que o <strong>humano</strong> não sejadistante <strong>de</strong> Deus n<strong>em</strong> este t<strong>em</strong> <strong>de</strong>sconhecimento <strong>de</strong>le 330 . É <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>um amor real, <strong>em</strong> essência não diferente da <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Assim, aincarnação é expressão “forte”, “terna” e “sincera” <strong>do</strong> amor pois peloamor altera positivamente o esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> objecto, como cont<strong>em</strong>plaçãopresente no hom<strong>em</strong> como num acto <strong>de</strong> presença, um perante o outro.A b<strong>em</strong>-aventurança está no olhar o ama<strong>do</strong> pois está nisto a certeza <strong>do</strong>amor. É por isso que a incarnação é a certeza indubitável <strong>do</strong> amor <strong>de</strong>Deus pelo hom<strong>em</strong>. Além disso, o amor é permanente ao passo que aincarnação aconteceu, manifestou-se, <strong>de</strong>u-se espácio t<strong>em</strong>poralmente.Pelo contrário a essência <strong>de</strong>ste fenómeno existe para s<strong>em</strong>pre, é eternae universal. O facto <strong>de</strong> se crer no fenómeno da incarnação é só pelaessência porque o que <strong>de</strong>la fica é intuição <strong>do</strong> amor.Estamos, novamente, perante a evidência inquestionável <strong>de</strong>que a religião nos mostra que o hom<strong>em</strong>hombre lo que supera a todas sus expectativas y representaciones, a <strong>do</strong>n<strong>de</strong> jamáspodría llegar por sí mismo”.330 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 58: “Por isso, não exist<strong>em</strong>ais na essência <strong>de</strong> Deus <strong>do</strong> que existe na manifestação. Na incarnação, a religiãoapenas confessa o que noutros casos não quer admitir: que Deus é um serinteiramente <strong>humano</strong>. A incarnação, o segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> Deus-hom<strong>em</strong>, não é, pois, umamisteriosa composição <strong>de</strong> opostos, não é um facto sintético, como é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>pela filosofia especulativa da religião, porque sente uma alegria especial com acontradição; é um facto analítico – uma palavra humana com senti<strong>do</strong> <strong>humano</strong>”.118


É para si objecto como objecto divino, como fimdivino, <strong>de</strong> que na religião ele se relaciona apenas com asua própria essência, apenas consigo mesmo – é o amor<strong>de</strong> Deus pelo hom<strong>em</strong>: o fundamento e o centro dareligião 331 .É por isso que Deus se <strong>de</strong>sapropria mesmo da divinda<strong>de</strong> porcausa <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. É neste aspecto que se encontra a gran<strong>de</strong>za daincarnação, porque Deus revela humilda<strong>de</strong>, humilha-se por causa <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>. É o mesmo que dizer que <strong>em</strong> Deus o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> a intuiçãoda sua essência pois Deus ao tornar-se hom<strong>em</strong> pelo hom<strong>em</strong> dá-se amaior elevação <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, tornan<strong>do</strong>-se este fim último, mostran<strong>do</strong>-seassim a proprieda<strong>de</strong> divina da essência humana. Assim, será Deus quese humilha ou é o hom<strong>em</strong> que se engran<strong>de</strong>ce?Está-se perante uma <strong>de</strong>terminação divina: o amor <strong>de</strong> Deus pelohom<strong>em</strong> e que aman<strong>do</strong> cada hom<strong>em</strong> ama o hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> geral. É nesteponto fulcral que se encontra o primeiro ânimo da religião 332 . O Amordivino é um acordar para o amor <strong>humano</strong> 333 . O hom<strong>em</strong> ao amar Deusama o amor, mais ainda, o amor pelo hom<strong>em</strong>. Amar é venerar, peloque quan<strong>do</strong> o hom<strong>em</strong> ama está a venerar o amor com o qual Deus amao hom<strong>em</strong>. O amor por Deus é amor pelo hom<strong>em</strong>.T<strong>em</strong>os, assim, no hom<strong>em</strong> a matéria <strong>de</strong> Deus, pelo que quan<strong>do</strong>Este ama aquele é o próprio íntimo <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> que ele ama. O hom<strong>em</strong>não t<strong>em</strong> coração quan<strong>do</strong> não ama, porque o amor é que é o coração <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>. Logo, o hom<strong>em</strong> ama o seu coração que é a sua essência.A propósito <strong>do</strong>s fundamentos da incarnação, po<strong>de</strong> agora dizerseque ao per<strong>de</strong>r o objecto ama<strong>do</strong> o hom<strong>em</strong> per<strong>de</strong> o coração e este é oprincípio da vida, sen<strong>do</strong> por isso verda<strong>de</strong> que o hom<strong>em</strong> é o coração <strong>de</strong>Deus. O hom<strong>em</strong> ao ser objecto <strong>de</strong> Deus quer dizer objecto <strong>de</strong> si331 I<strong>de</strong>m, p. 59.332 Ibi<strong>de</strong>m: “A humilda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus torna-me humil<strong>de</strong>, o seu amor torna-me amante.Apenas o amor é objecto <strong>do</strong> amor: só o que ama se torna por sua vez ama<strong>do</strong>”.333 Bíblia Sagrada, 1João 4,19: “Nós o amamos, porque ele nos amou primeiro”.119


próprio <strong>em</strong> Deus, sen<strong>do</strong> a essência humana a matéria da essênciadivina. Deus como amor quer dizer que o amor <strong>de</strong> Deus pelo hom<strong>em</strong> éo cerne da religião. O conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> amor é o hom<strong>em</strong>, pelo que é oamor <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> para consigo próprio. É nisso que se enten<strong>de</strong> aobjectivação e intuição da supr<strong>em</strong>a verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Deus –hom<strong>em</strong> mostra-nos o eu e o outro, aumento <strong>do</strong>s predica<strong>do</strong>s positivos eanulação <strong>do</strong>s predica<strong>do</strong>s negativos 334 .A Oração“O acto essencial da religião, no qual ela confirma o queindicámos como essência, é a oração” 335 .Todas as religiões assentam no pressuposto <strong>de</strong> que Deus não éalheio àqueles que o veneram, ou seja, o <strong>humano</strong> pertence-lhe pois oobjecto <strong>de</strong> veneração faz <strong>de</strong>le um Deus <strong>humano</strong>.Assim, pela oração <strong>de</strong>svela-se o que estava escondi<strong>do</strong> naincarnação, pois “cada oração é <strong>de</strong> facto uma Incarnação <strong>de</strong>Deus” 336 . Porquê? Pela razão <strong>de</strong> que na e pela oração Deus é trazi<strong>do</strong>para junto <strong>do</strong> <strong>humano</strong>, sofren<strong>do</strong> com os que sofr<strong>em</strong> e participan<strong>do</strong> nasfraquezas humanas, sen<strong>do</strong> sensível e sofre<strong>do</strong>r 337 . Ou seja, Deus não éautista para com os g<strong>em</strong>i<strong>do</strong>s – lamentos – <strong>humano</strong>s, revelan<strong>do</strong>-s<strong>em</strong>isericordioso e, por isso, afasta a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> ser to<strong>do</strong>-po<strong>de</strong>roso divino334 Da “Introdução” in Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 24: “Aessência divina nada é senão a essência humana, ou melhor, essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>purificada, liberta das limitações <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> individual, objectivada, isto é, intuída ea<strong>do</strong>rada como uma essência própria, diferente, distinta <strong>de</strong>le – todas as <strong>de</strong>terminaçõesda essência divina são, por isso, <strong>de</strong>terminações humanas”.335 I<strong>de</strong>m, p. 235.336 I<strong>de</strong>m, p. 56.337 I<strong>de</strong>m, p. 177: “On<strong>de</strong> o Deus pessoal é uma autêntica necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> coração, aíele próprio t<strong>em</strong> <strong>de</strong> sofrer necessida<strong>de</strong>s. Só no seu sofrimento resi<strong>de</strong> a certeza da suarealida<strong>de</strong> efectiva, só nele resi<strong>de</strong> a impressão e ênfase essencial da incarnação”.120


para lá da finitu<strong>de</strong> e da humanida<strong>de</strong>. Pelo que quer estar atento esolicito ao hom<strong>em</strong>, mostra-se hom<strong>em</strong> como o hom<strong>em</strong> 338 . O amor é ocoração que late pelos outros, é a preocupação com os outros.A propósito, refira-se que a teologia está imbricada no que se<strong>de</strong>nomina por <strong>de</strong>terminações metafísicas <strong>do</strong> entendimento. Sen<strong>do</strong>assim não aceita o compa<strong>de</strong>cimento <strong>de</strong> Deus. Fazer isto é dizer não àverda<strong>de</strong> da religião. Neste senti<strong>do</strong>, mais uma vez Feuerbach inverte osenti<strong>do</strong> sofístico <strong>de</strong> uma afirmação sobre a impassibilida<strong>de</strong> ecompassibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus 339 .No acto da oração a religião, melhor, o hom<strong>em</strong> religioso,acredita que a divinda<strong>de</strong>, in concreto, imiscuída no sofrimento enecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse hom<strong>em</strong>, isto é, a voluntas Dei <strong>de</strong>termina-se pelainteriorida<strong>de</strong> própria da oração, b<strong>em</strong> como pela força <strong>do</strong> ânimo. É apresença <strong>do</strong> conhecimento concreto, actuan<strong>do</strong> por intermédio <strong>do</strong>coração, porque Deus é para o hom<strong>em</strong> religioso coração, um impulso,ânimo que o coração po<strong>de</strong> sentir, ou seja, “O coração só po<strong>de</strong> dirigirseao coração” 340 pois no coração, no ânimo t<strong>em</strong> o seu consolo napura essência. Neste senti<strong>do</strong> o Deus necessário não é to<strong>do</strong>-po<strong>de</strong>roso,transcen<strong>de</strong>nte, mas precisa <strong>de</strong> ter livre-arbítrio 341 . É por isso que ocumprimento da oração mostra um Deus <strong>de</strong>terminável pelo hom<strong>em</strong>como não atendimento real. Daí esse cumprimento não estar338 I<strong>de</strong>m. Ver ainda p. 175: “Ao participar da miséria humana, Deus enquantoobjecto da oração é já <strong>de</strong>certo um ser <strong>humano</strong>, ouve os <strong>de</strong>sejos <strong>humano</strong>s, mas aindanão é objecto da consciência religiosa como hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> facto”. Cf. LudwigFEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, pp. 53-54: “El amor enel senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> un ser no <strong>humano</strong> o sobre-<strong>humano</strong>, <strong>de</strong> un Dios no sensible, incapaz <strong>de</strong>sufrir, es una mentira manifiesta. […] Dios no es Dios, es <strong>de</strong>cir, no es un serin<strong>humano</strong> e insensible; Él es amor, es hombre”.339 I<strong>de</strong>m, p. 56, Ver nota <strong>de</strong> rodapé: “Impassibilis est Deus, sed non incompassibilis,cui proprium est misereri s<strong>em</strong>per et pacerere”.340 I<strong>de</strong>m, p. 57.341 Ludwig FEUERBACH, Escritos en torno a La esencia <strong>de</strong>l cristianismo, p. 8: “Elnombre “libré albedrío” no rima con el hombre, sino que es un hombre y títulodivinos que nadie <strong>de</strong>biera <strong>de</strong>sear llevar, pues únicamente el Señor Dios hace (comodice el salmo 115) lo que quiere y como quiere, en el cielo, en la tierra, en el mar yen todas las profundida<strong>de</strong>s”.121


<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre como uma maneira mecânica <strong>de</strong> pensar.Quer dizer, a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> Deus <strong>em</strong> aceitar, agora, a razão <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> éigual à aceitação passada. Acrescente-se a este aspecto que a oraçãorevela Deus <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pela oração, pelo ânimo. O acreditar-se numser “providência e <strong>de</strong> assistência” 342 num ser que é amor e que t<strong>em</strong>neste o princípio que <strong>de</strong>termina as suas acções, logo acreditar-se numser que possui coração. Mesmo que não seja igual <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vistamecânico, sê-lo-á psicologicamente como o <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>.Deste mo<strong>do</strong> o que é que o cristianismo, os cristãos atribuíramao seu Deus? Sensações e <strong>em</strong>oções <strong>do</strong> amor e misericórdia. O amorcoloca<strong>do</strong> <strong>em</strong> Deus pelo ânimo religioso não é um reflexo, mas real everda<strong>de</strong>iro, pois o “Deus é ama<strong>do</strong> e por sua vez amor; no amor divinoobjectiva-se e afirma-se apenas o amor <strong>humano</strong>” 343 . O amor é oaprofundar da verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> si <strong>de</strong> Deus.Feuerbach enten<strong>de</strong> que Israel corporiza, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vistahistórico, a consciência religiosa <strong>em</strong>bora enredada na questão <strong>do</strong>interesse próprio <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Judaico. Se retirarmos o Esta<strong>do</strong>, a questãonacional, o que fica é a religião cristã 344 . Assim, t<strong>em</strong>-se no Judaísmoespiritual o cristianismo próprio <strong>do</strong> comum das pessoas. Deus surgecomo hipostasia<strong>do</strong>, fora, transcen<strong>de</strong>nte, omnipotente, to<strong>do</strong>-po<strong>de</strong>roso,relativamente ao hom<strong>em</strong>. O israelita é o media<strong>do</strong>r que liga o hom<strong>em</strong> aDeus. Quer dizer, era ao israelita, enquanto israelita, que se referia arelação com Deus e este era a consciência <strong>de</strong> si <strong>de</strong> Israel que se punhacomo absoluto, “a consciência nacional, o centro da política” 345 . Seretirarmos o obstáculo da consciência nacional, o israelita fica ohom<strong>em</strong>. Detectamos algo comum ao israelita e ao cristão: ambos342 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 57.343 I<strong>de</strong>m, p. 58.344 I<strong>de</strong>m, p. 143: “A religião cristã é a religião judaica purificada <strong>do</strong> egoísmonacional, mas é, s<strong>em</strong> dúvida, por sua vez, uma religião nova, uma outra religião;pois cada reforma, cada <strong>de</strong>puração produz, sobretu<strong>do</strong> nas coisas religiosas, on<strong>de</strong>mesmo o insignificante t<strong>em</strong> significa<strong>do</strong>, uma alteração essencial”.345 Ibi<strong>de</strong>m.122


objectivam algo <strong>em</strong> Deus. O israelita objectiva a essência nacional, aopasso que o cristão objectiva a sua essência humana, subjectiva. Pelola<strong>do</strong> <strong>de</strong> Israel há o configurar as necessida<strong>de</strong>s <strong>em</strong> lei, sen<strong>do</strong> esteaspecto a divinização <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r político. O cristão fez a objectivaçãodas necessida<strong>de</strong>s da vonta<strong>de</strong> humana <strong>em</strong> po<strong>de</strong>r absoluto e lei. Ocristianismo <strong>de</strong>u feição espiritual subjectiva ao egoísmo judaico. Afelicida<strong>de</strong> terrena que o judaísmo tinha <strong>em</strong> vista <strong>de</strong>u lugar à felicida<strong>de</strong>que o cristianismo tinha <strong>em</strong> vista num outro mun<strong>do</strong>, celeste.Comparan<strong>do</strong> as duas religiões vê-se que consciência da leicomo po<strong>de</strong>r absoluto e divino é o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> afirmação da noção maissuperior, Deus no âmbito <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong>. Na religião cristã oDeus <strong>do</strong> ânimo, apolítico <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, é o amor que a tu<strong>do</strong> renunciavoluntariamente <strong>em</strong> prol <strong>do</strong> ama<strong>do</strong>. O amor t<strong>em</strong> por lei o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong>ama<strong>do</strong> e a fantasia como po<strong>de</strong>r.Deus é amor mostra-nos que o hom<strong>em</strong> se relaciona afectiva e<strong>em</strong>ocionalmente com Deus, pois satisfaz os <strong>de</strong>sejos <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Opróprio Deus é um <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> coração <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> torna<strong>do</strong> realida<strong>de</strong>. Ohom<strong>em</strong> parte da sua individualida<strong>de</strong> para a sua subjectivida<strong>de</strong>, o seuíntimo e daqui para o <strong>de</strong>sejo. Quer dizer, Deus é a certeza como po<strong>de</strong>rsupr<strong>em</strong>o, existente, divino. Quan<strong>do</strong> se diz que Deus é amor afirma-sea certeza <strong>de</strong> si <strong>do</strong> ânimo <strong>humano</strong>, um po<strong>de</strong>r que por existir é absolutoe divino e que mostra a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sejos íntimos <strong>do</strong> coração<strong>humano</strong>. Deste mo<strong>do</strong> Deus é o nome da<strong>do</strong> i<strong>de</strong>almente a um ser quesatisfaz os <strong>de</strong>sejos <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, sen<strong>do</strong> o conjunto <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong>amor 346 . Deus envolve o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> coração <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> que setransforma no t<strong>em</strong>po no po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> sentimento, na oração <strong>do</strong> que fala eouve a si próprio, com forças e fraquezas, não só como algo objectivo346 I<strong>de</strong>m, p. 145: “Deus é o amor – quer dizer, o ânimo é o Deus <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, émesmo Deus s<strong>em</strong> mais, a essência absoluta. Deus é a essência <strong>do</strong> ânimo que seobjectiva, o ânimo livre <strong>de</strong> barreiras, puro”.123


mas também subjectivo 347 . Nisto se distingue o coração da Natureza,porque esta é insensível à <strong>do</strong>r, aos sofrimentos <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Assim, ohom<strong>em</strong> encontra no seu íntimo, no seu interior o la<strong>do</strong> secreto eresguarda<strong>do</strong> das forças insensíveis, a audição para os seussofrimentos. É nesse interior que o hom<strong>em</strong> fala os seus sofrimentos,diz o que o aflige. Mas que significa dizer os seus sofrimentos, aliviaro seu coração, confessar a sua <strong>do</strong>r? Numa palavra, Deus 348 . Na oraçãoencontram-se as necessida<strong>de</strong>s reais <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, a realida<strong>de</strong>da miséria b<strong>em</strong> como <strong>do</strong> sofrimento, homens concretos, reais. Sinais<strong>de</strong> uma situação trágica, própria da religião <strong>do</strong> cristianismo.Aquilo que é a essência mais difícil <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r da religiãomostra-se no acto mais simples <strong>de</strong>sta: a oração, sofrida, <strong>do</strong> amor s<strong>em</strong>consolo, na oração que t<strong>em</strong> o seu início no sofrimento, na miséria, no<strong>de</strong>sânimo mas acaba na supr<strong>em</strong>a felicida<strong>de</strong>.Na oração o hom<strong>em</strong> está face a face com Deus. Deus é um tu,outro eu. Pela oração o hom<strong>em</strong> diz, confessa a Deus como o ser maispróximo e íntimo “os seus pensamentos mais secretos, os seus <strong>de</strong>sejosmais íntimos, que noutras situações se envergonha <strong>de</strong> exprimir <strong>em</strong> vozalta” 349 . O ser outro da oração que ouve os <strong>de</strong>sejos é um ser que ouveos g<strong>em</strong>i<strong>do</strong>s, pelo que a oração é o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> coração confiante no seucumprimento. Estamos, assim, perante o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus que é avonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, isto é, a essência <strong>do</strong> ânimo <strong>humano</strong> que se ouve asi mesmo e se afirma s<strong>em</strong> obstáculos ou exigências.347 Ibi<strong>de</strong>m: “ O ânimo que se percebe a si mesmo, o eco das nossas <strong>do</strong>res”. Cf. P.327: “ […] o conteú<strong>do</strong> e objecto da religião é inteiramente <strong>humano</strong>, e <strong>humano</strong> noduplo senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>ste termo, que significa tanto algo <strong>de</strong> positivo como <strong>de</strong> negativo;<strong>de</strong>monstrámos que a religião afirma incondicionalmente, não apenas os po<strong>de</strong>res daessência humana, mas também as sus fraquezas, os <strong>de</strong>sejos mais subjectivos <strong>do</strong>coração <strong>humano</strong> […]”.348 I<strong>de</strong>m, p. 145: “Deus é uma lágrima <strong>do</strong> amor <strong>de</strong>rramada no mais profun<strong>do</strong> segre<strong>do</strong>sobre a miséria humana. “Deus é um suspiro inexprimível coloca<strong>do</strong> no fun<strong>do</strong> daalma” […]”.349 I<strong>de</strong>m, p. 146.124


O que até aqui foi referi<strong>do</strong> mostra que o hom<strong>em</strong> reza, <strong>em</strong>oposição ao ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> representações media<strong>do</strong>rassobre o mun<strong>do</strong> e que é limita<strong>do</strong>r, r<strong>em</strong>eten<strong>do</strong> o hom<strong>em</strong> para o mun<strong>do</strong>das necessida<strong>de</strong>s. Rezar, significa o entrar <strong>em</strong> si <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, recolherse,na sua interiorida<strong>de</strong>. Pela oração está fora <strong>de</strong> questão a mediação,<strong>de</strong> submissão, <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> 350 . Na oração, os <strong>de</strong>sejos <strong>do</strong> coração sãoditos <strong>de</strong> maneira ilimitada, converti<strong>do</strong>s <strong>em</strong> objecto da essênciaabsoluta, to<strong>do</strong>-po<strong>de</strong>rosa. A oração é a confiança no ânimo <strong>humano</strong>numa totalida<strong>de</strong> integral <strong>de</strong> subjectivo e objectivo. A oração é arelação <strong>do</strong> coração <strong>humano</strong> consigo mesmo, com a sua essência.Na oração há um diálogo <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> com o seu coração, mas<strong>em</strong> voz alta. É um discurso sobre o que oprime o hom<strong>em</strong> e umaobjectivação <strong>do</strong> seu coração na concentração. Assim, a oração éconcentração, fechamento <strong>em</strong> si mesmo, na relação com a suaessência. A confiança, o apoio, a ajuda está na própria oração on<strong>de</strong> osubjectivo é objectivo, condição da oração 351 .A oração não é um dizer da <strong>de</strong>pendência, mas relativamente aocoração e sentimentos <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, não já relativamente a uma entida<strong>de</strong>exterior. Orar implica confiança s<strong>em</strong> entraves da subjectivida<strong>de</strong>,liberta <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s sen<strong>do</strong> as sensações realida<strong>de</strong>s divinas 352 . Noamor há uma mesma forma pedir e mandar, ou seja, o imperativo.Assim, o imperativo <strong>do</strong> amor é o pedi<strong>do</strong> pois o amor não é to<strong>do</strong>po<strong>de</strong>rosomas manifesta-se no mais íntimo dan<strong>do</strong> a enten<strong>de</strong>r os<strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> amor ten<strong>do</strong> a certeza imediata <strong>do</strong> seu cumprimento. Daí adiferença entre o <strong>de</strong>spotismo e o imperativo <strong>do</strong> amor. O primeiro350 I<strong>de</strong>m, p. 222: “ […] Hom<strong>em</strong> entra <strong>em</strong> ti! Sê <strong>em</strong> ti e junto a ti como <strong>em</strong> casa!Recolhe-te! Reza! Rezar significa recolher-se, traduzir o dispersivo diálogo da vidano sério monólogo da consciência interior”.351 I<strong>de</strong>m, p. 148, nota <strong>de</strong> rodapé. As razões subjectivas na oração colectiva:“Multorum preces impossible est, ut non impretent, inquit Ambrosius”.352 I<strong>de</strong>m, p. 149: “A criança que pe<strong>de</strong> ao pai alguma coisa não se lhe dirige como aum ser autónomo, distinto <strong>de</strong>le, como a um senhor ou a uma pessoa <strong>em</strong> geral, masdirige-se-lhe na medida <strong>em</strong> que o sabe <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pelos seussentimentos paternais, pelo amor pelo seu filho”.125


assenta na força mecânica enquanto que o segun<strong>do</strong> t<strong>em</strong> a sua acçãonuma espécie <strong>de</strong> atracção.Pai é, na oração, a maneira mais íntima <strong>de</strong> dizer Deus poisquan<strong>do</strong> o hom<strong>em</strong> se lhe dirige, dirige-se à sua essência absoluta. Napalavra Pai está a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> mais interior, mais forte on<strong>de</strong> se encontrao penhor <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sejos <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> e da sua salvação. Esta força a que ohom<strong>em</strong> se dirige na oração, a bonda<strong>de</strong> que é o mesmo que o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong>coração e <strong>do</strong> sentimento. É uma força que vai além <strong>do</strong> entendimento,<strong>do</strong>s limites naturais e que apenas quer que exista o sentimento, ocoração. A essência <strong>do</strong> to<strong>do</strong>-po<strong>de</strong>roso é a essência <strong>do</strong> ânimo que aosentir os obstáculos anula-os. O po<strong>de</strong>r está na execução <strong>do</strong> que há <strong>de</strong>mais íntimo <strong>do</strong> ânimo. Na oração é a si que o hom<strong>em</strong> se dirige, ao seupróprio coração on<strong>de</strong> capta a essência absoluta: a essência <strong>do</strong> seuânimo.126


QUARTA PARTE127


A humanida<strong>de</strong> sensível“O hom<strong>em</strong> sensível, sentimental, crê num Deus sensível,sentimental, apenas crê na verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> seu próprio ser eessência, pois <strong>em</strong> nada mais po<strong>de</strong> crer senão naquilo queele mesmo é na sua essência” 353 .353 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p 68.128


1. Antropologia real e sensível.Há três pontos constitutivos da essência antropológica dareligião. Deus-Pai seria uma perfeição; a segunda pessoa, o Filho,seria o centro da <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> humana. O sofrimento é sacraliza<strong>do</strong> peloscristãos e é coloca<strong>do</strong> <strong>em</strong> Deus. O Filho é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> o supra-sumo <strong>de</strong>uma certa concepção <strong>de</strong> Deus enquanto supra-sumo <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>.Enquanto Deus-Pai é acto puro, o Filho é puro sofrer. A f<strong>em</strong>inilida<strong>de</strong>na trinda<strong>de</strong> revela que ainda que Maria não tenha participa<strong>do</strong> <strong>de</strong>la,Maria é a mãe <strong>do</strong> Filho na ausência <strong>de</strong> relacionamento sexual. Mariat<strong>em</strong> uma gran<strong>de</strong> importância por moldar o Filho e lhe <strong>de</strong>dicar afecto oque faz com que o amor divino se torne f<strong>em</strong>inino. A figura <strong>de</strong> Maria,mãe é a figura da <strong>em</strong>oção, <strong>do</strong> sofrimento. O próprio amor possui umanatureza f<strong>em</strong>inina. Neste aspecto há diferença entre catolicismo eprotestantismo, pois enquanto este aban<strong>do</strong>nou a figura <strong>de</strong> Maria, mãe,o catolicismo conservou-a, conservan<strong>do</strong> na imaginação a figura damulher celestial. Feuerbach vai recolher, porque lhe interessavarecolher, todas as notas antropológicas <strong>de</strong>cisivas. O cristianismoassegurou o f<strong>em</strong>inino <strong>em</strong>bora este nunca corresponda a Deus, poisnunca Maria é Deus, <strong>em</strong>bora seja “Nostra Domina”. Maria estámarcada <strong>de</strong> qualquer coisa absoluta. É a amada <strong>de</strong> Deus.129


O sofrimento – <strong>de</strong>terminação fundamental <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>“Uma <strong>de</strong>terminação essencial <strong>do</strong> Deus feito-hom<strong>em</strong> ou,o que é o mesmo, <strong>do</strong> Deus <strong>humano</strong>, portanto <strong>de</strong> Cristo, éa paixão. O amor confirma-se pelo sofrimento” 354 .Foi referi<strong>do</strong> que o segre<strong>do</strong> da Incarnação se encontra no amor. E qualé o segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> amor?Feuerbach refere que o cerne da religião cristã é “A fé no Deusque se fez hom<strong>em</strong> por amor” 355 e que isto não é mais que fé no amorque não é senão a fé na verda<strong>de</strong> e divinda<strong>de</strong> <strong>do</strong> coração <strong>humano</strong>. Queristo dizer que o hom<strong>em</strong> que conhece a sua essência t<strong>em</strong> o coração e oentendimento como um to<strong>do</strong>, integral como divinos, absolutos. D<strong>em</strong>o<strong>do</strong> diferente diz a religião alicerçada na cisão entre essência <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> e sua realida<strong>de</strong>, pois projecta, objectiva a essência <strong>do</strong> coraçãocomo uma essência diferente, fora <strong>de</strong> si.Desvelar o segre<strong>do</strong> da Incarnação é referir que “Deus é amor”.E o segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> amor encontra-se no sofrimento. O amor confirma-sepelo sofrimento, pois o segre<strong>do</strong> da paixão é um jogo que não secontrola até ao fim. Não há amor que não traga consigo esta espécie<strong>de</strong> corolário 356 . A divinda<strong>de</strong> é instável, nas religiões, pois numas ésequiosa, requer o sofrimento da vítima para apagar, resgatar qualquercoisa. Em perspectiva feuerbachiana isso ainda é uma formaantropológica. Se o que se lança para fora <strong>em</strong> Deus é o que há <strong>de</strong>melhor, mas se a divinda<strong>de</strong> não correspon<strong>de</strong> a esta objectivação <strong>do</strong>coração, como amor, então seria uma divinda<strong>de</strong> passageira.354 I<strong>de</strong>m, p. 61.355 Ibi<strong>de</strong>m.356 Para os Gregos a divinda<strong>de</strong> não podia amar. O amor seria uma imperfeição.Assim o divino é como um ser invejoso. Referência a Xenófanes: Cf KIRK, G.S. &RAVEN, J. E., The Presocratic Philosophers, Cambridge University Press, 1957, p.169, “Theology, Fr. 23, Cl<strong>em</strong>ent Strom. V, 109: “One god, greatest among gods andmen, in no way similar to mortals either in body or in thought”.130


E qu<strong>em</strong> confirma isto é Cristo, como Deus que se fez hom<strong>em</strong>.No caso <strong>de</strong> Cristo o sofrimento é o ponto nodal <strong>de</strong> pensamentos esensações que inicialmente estão liga<strong>do</strong>s a Deus. Em Deus há a soma<strong>de</strong> perfeições divinas. Em Cristo as necessida<strong>de</strong>s e miséria humanas.A divinda<strong>de</strong> grega era uma hipostasiação <strong>do</strong> entendimento, <strong>em</strong> que aespontaneida<strong>de</strong> da inteligência era como activida<strong>de</strong> divina para osprimeiros filósofos. Para os cristãos o sofrimento tinha algo <strong>de</strong>santifica<strong>do</strong>, pois é próprio <strong>de</strong> Deus. T<strong>em</strong>os assim que Deus enquantoacto puro é o Deus <strong>do</strong>s filósofos e <strong>em</strong> oposição Cristo, Deus <strong>do</strong>scristãos, é o sofrimento puro. Oposição entre “actio” e “passio” sen<strong>do</strong>o lançar para fora <strong>do</strong> entendimento oposta ao lançar para fora daconsciência.Na perspectiva <strong>de</strong> Feuerbach o que mais impressiona é osofrimento <strong>do</strong> amor, pois a paixão toca no íntimo <strong>do</strong> coração <strong>humano</strong>e o que nela se objectiva é a essência <strong>do</strong> coração 357 . No Cristianismo a“pars melior” da consciência religiosa, s<strong>em</strong> contradições, é <strong>de</strong> Maria enão lhe será tirada, porque ainda que aquela seja uma invenção <strong>do</strong>coração pois o coração é passivo, pois quan<strong>do</strong> o coração se apo<strong>de</strong>ra <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> é como o fosse pelo seu Deus e, assim, a sua essência é aessência <strong>do</strong> coração. O Cristianismo na sua melhor parte é pathos, écoração “foi, portanto, a partir da essência humana, tal como ela serevelou como coração e pelo coração, […]” 358 . O coração comportasereceptivamente mas também é cria<strong>do</strong>r. O segre<strong>do</strong> da Incarnaçãotambém passa pela mulher, sen<strong>do</strong> o el<strong>em</strong>ento f<strong>em</strong>inino que resolve aaporia da trinda<strong>de</strong>, pois irá fazer a junção da trinda<strong>de</strong> por intermédio<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is aspectos da imaginação: receptiva e activa. O coração venceo hom<strong>em</strong>.357 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 62: “ […] daí se segueinevitavelmente que nesta história nada se exprime, nada se objectiva, a não ser aessência <strong>do</strong> coração”.358 I<strong>de</strong>m, p. 62. Na segunda parte Feuerbach vai dizer que é preciso inverter.131


Na proposição “Deus é amor” <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os tomar como sujeito oque a religião põe como predica<strong>do</strong> e vice-versa. A religião diz que se<strong>de</strong>ve sofrer para os outros e não para si. Na proposição “Deus sofre”,sofre não é predica<strong>do</strong> para si. Em Feuerbach quer isto significar queapenas sofrer por outros é divino, tornar-se Deus para os homens. É ainversão. E o que é aquele que sofre, o amor que sofre? É a essênciasupr<strong>em</strong>a <strong>do</strong> coração. Ainda que à luz da trinda<strong>de</strong> se resolvam osprobl<strong>em</strong>as, Deus é impassível. Porém, Deus não é impassível, porquesofreu por outros. O Verbo é “actio”. Cristo sofreu pelos outros peloque na impressão e no conteú<strong>do</strong> da história <strong>de</strong>sse sofrimento afirma o<strong>humano</strong>, pois estamos perante algo com positivida<strong>de</strong> que interfere nacabeça e no coração.O verda<strong>de</strong>iro hom<strong>em</strong> que se coloca pelo sofrimento <strong>de</strong> Cristo éo hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> si, a espécie humana. A impressão que o sofrimentocausa é real pois Cristo sofreu porque quis sofrer, pelos outros e comlivre amor. Esse sofrimento coloca Cristo além <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> comum,mas não <strong>do</strong> verda<strong>de</strong>iro hom<strong>em</strong>. É por isso que Deus é que é o filho <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>. Para Feuerbach Cristo cumpre o “<strong>de</strong>si<strong>de</strong>rato” da espécie, poisconsegue cumprir a perfeição da espécie, já que o hom<strong>em</strong> vulgar nãoconsegue. Cristo cumpriu por antecipação a perfeição da espécie.Deus <strong>em</strong> Cristo. Cristo é o Adão perfeito.Se com este sofrimento <strong>humano</strong> se pensar num conteú<strong>do</strong>religioso ou <strong>do</strong>gmático sobrenatural, pensa-se no Cristo sofre<strong>do</strong>rsen<strong>do</strong> <strong>em</strong> simultâneo Deus. Por isso o <strong>do</strong>cetismo enten<strong>de</strong> que comoDeus, Cristo não sofreu como <strong>humano</strong>, mas apenas num aspecto poiscomo divinda<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>-se que Cristo não po<strong>de</strong> sofrer, pelo que t<strong>em</strong>que simular, fazer teatro, sen<strong>do</strong> um sofrimento aparente 359 . No entantoo sofrimento <strong>de</strong> Cristo é “qua talis” um acto <strong>de</strong> passibilida<strong>de</strong>, pelo que359 I<strong>de</strong>m, p. 64: “ […] o seu sofrimento era apenas um sofrimento para ele enquantohom<strong>em</strong>, não enquanto Deus, apenas um sofrimento aparente, não verda<strong>de</strong>iro – <strong>em</strong>suma, uma mera comédia”.132


a religião cristã não é a religião <strong>do</strong> além <strong>humano</strong>, pois confirma a<strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> humana. Cristo revela a sensibilida<strong>de</strong> humana 360 . A mortena cruz dava-se aos covar<strong>de</strong>s, pelo que era o mais ínfimo dahumilda<strong>de</strong>. É por isso que Feuerbach tinha <strong>de</strong> passar por aí, pelo Deus<strong>do</strong> sofrimento para po<strong>de</strong>r respon<strong>de</strong>r ao “lançar para fora” <strong>do</strong> coração<strong>humano</strong>.Feuerbach enten<strong>de</strong> que o cristianismo t<strong>em</strong> por mandamento osofrimento e que os antigos cristãos, os <strong>de</strong> antigamente, não os <strong>de</strong> hoje(os actuais, <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Prussiano), e ao contrário <strong>do</strong>s pagãos “ossuspiros e as lágrimas <strong>do</strong> coração sofre<strong>do</strong>r, <strong>do</strong> ânimo, faz<strong>em</strong> parte <strong>do</strong>culto divino” 361 . Os suspiros são sons que sa<strong>em</strong> <strong>do</strong> mais íntimo daalma, logo da essência mais interior, íntima <strong>do</strong> Deus <strong>do</strong>s cristãos. Comas lágrimas, revela<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> pontos sensíveis, pensavam, julgavamhomenagear o seu Deus. Porém, Feuerbach não per<strong>de</strong> t<strong>em</strong>po e refereque um Deus que t<strong>em</strong> prazer nas lágrimas revela-se comoobjectivação <strong>do</strong> coração que sofre, logo <strong>do</strong> ânimo <strong>humano</strong>.Cristo não se socorre <strong>do</strong> Antigo Testamento mas há o assumirda cultura histórica, num <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> momento e lugar. Assim, nãohá uma consciência única. A Incarnação é o assumir a consciênciahistórica. Como a consciência <strong>de</strong> Cristo vai crescen<strong>do</strong> não é muitodiferente <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como a nossa vai crescen<strong>do</strong>. Os Cristãos levam asério a Incarnação e a Paixão <strong>de</strong> Cristo, haven<strong>do</strong> nisto um mistérioinexplicável. Será que <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os concordar com a afirmação <strong>de</strong> que omandamento <strong>do</strong> Cristianismo é o sofrimento 362 ? Feuerbach pela via360 Ibi<strong>de</strong>m, p. 64. Cristo chorou pela morte <strong>de</strong> Lázaro; No Horto, Cristo proclama:“se possível que se afaste <strong>de</strong> mim este cálice”. Narrativa aparent<strong>em</strong>ente ateia.Ambrósio admira a humilda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo, in “Expositio evangelii secundum Lucam.L. X. c. 22”. Cf. Carta aos Filipenses – expressão forte <strong>de</strong> Cristo que se esvazia <strong>de</strong> sipróprio obe<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> até à morte e morte na cruz. Tornou-se hom<strong>em</strong>. Não se valeu dasua divinda<strong>de</strong>, pois entregou-se ao nada <strong>do</strong> nada.361 I<strong>de</strong>m, p. 65.362 José Maria Silva ROSA, “Cristianismo: uma religião <strong>do</strong> sofrimento?” inAgência Ecclesia, S<strong>em</strong>anário <strong>de</strong> Actualida<strong>de</strong> Religiosa, 31 <strong>de</strong> Março <strong>de</strong> 2009/nº133


inversa diz o mesmo, pelo que há também uma teologia implícita <strong>em</strong>Feuerbach. Porém, Feuerbach confun<strong>de</strong> a religião <strong>do</strong>s pagãos e <strong>do</strong>santigos cristãos, porque Deus alegra-se com o arrependimento <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> e não com o sofrimento. E Cristo estará até ao fim, na agonia<strong>do</strong> Horto. Feuerbach como que se mostra num hom<strong>em</strong> crente aointerrogar-se “Deverá ela ser para mim apenas o objecto <strong>de</strong> uma friarecordação, ou um objecto <strong>de</strong> alegria, já que este sofrimento me fezganhar a salvação?” 363 Talvez o senti<strong>do</strong> genitivo subjectivo se refira àIgreja protestante ou católica da época.Mesmo a referência às imagens <strong>de</strong> Cristo crucifica<strong>do</strong> são um<strong>do</strong>cetismo pois ainda que a humanida<strong>de</strong> possa ser pintada, a divinda<strong>de</strong>não. Acresce, também, as auto-crucificações assentes numa leiturapsicológica da perspectiva religiosa. Porém, por que não reler a obrapor via <strong>do</strong> trai<strong>do</strong>r, como por ex<strong>em</strong>plo Pedro que negou Cristo váriasvezes numa noite, mas outras tantas teve perdão, perdão. Por issoFeuerbach acusa a experiência cristã <strong>de</strong> sa<strong>do</strong>masoquismo, acusaçãoaleivosa, haven<strong>do</strong> como que uma espécie <strong>de</strong> mimesis, como umainerência às imagens <strong>do</strong> sofrimento 364 . Porém, sofrer como autonegação,nisto consiste o amor da religião, a comprazer-se da ferida,no alimentar a própria ferida dirá Marx, ten<strong>do</strong> <strong>em</strong> vista a eternida<strong>de</strong>celeste 365 . Intuir Deus que sofre é a afirmação <strong>de</strong> si próprio, <strong>de</strong>leite <strong>do</strong>coração sofre<strong>do</strong>r. Afirmar que “Deus sofre” é afirmar que “Deus é umcoração”, pois no coração está a génese <strong>do</strong> sofrimento e nistoencontra-se a razão <strong>do</strong> coração. Há, assim, uma diferença entre oentendimento que é espontâneo e o coração pelo qual o hom<strong>em</strong> sente,1189, refere que “<strong>de</strong> jure” o Cristianismo não t<strong>em</strong> <strong>de</strong> ser uma <strong>do</strong>utrina jusifica<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> mal no mun<strong>do</strong>.363 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 66.364 Ibi<strong>de</strong>m: “Como não haveria <strong>de</strong> sentir prazer <strong>em</strong> se crucificar a si mesmo ou aoutros aquele que t<strong>em</strong> continuamente <strong>de</strong>baixo <strong>do</strong>s olhos a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> umcrucifica<strong>do</strong>?”.365 I<strong>de</strong>m, p. 67, Cf nota <strong>de</strong> rodapé: “Abstine…ab omnibus seculi <strong>de</strong>lectationibus, utpost hanc vitam in coelo laetari possis cum angelis”.134


sen<strong>do</strong> no âmbito <strong>do</strong> Deus que sofre que se encontra o oculto, o secretoda sensação. Por isso o Deus sofre<strong>do</strong>r é um Deus da sensação, estan<strong>do</strong>no sofrer e no ser infeliz o la<strong>do</strong> para saber ter compaixão e pieda<strong>de</strong>,misericórdia 366 . A sensação é divina. Trata-se <strong>de</strong> um apelo à sensação,pois Deus só po<strong>de</strong> ser senti<strong>do</strong>, nunca pensa<strong>do</strong>. É como que um abrir aporta à via mística. Há uma experiência não dita.Nestas frases estamos <strong>em</strong> presença <strong>de</strong> circunlóquios. Estamos,<strong>de</strong> novo, a ver a relação entre o que é ser sujeito e predica<strong>do</strong> realçan<strong>do</strong>Feuerbach no predica<strong>do</strong> o sujeito, a essência. Deste mo<strong>do</strong> paraFeuerbach a religião é a consciência <strong>de</strong> si <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> objectivada,sen<strong>do</strong> que o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> consciência <strong>de</strong> si como sua essência máxima.É por isso que o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> <strong>de</strong> si consciência como gera<strong>do</strong>ra <strong>de</strong>activida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> sofrimento. O hom<strong>em</strong> sente, muitas vezes ten<strong>do</strong> poroposição a vonta<strong>de</strong> e o pensar. A sensação é como um po<strong>de</strong>r, umaforça e perfeição divinas, pois a sensação brota <strong>em</strong> g<strong>em</strong>i<strong>do</strong>s e <strong>em</strong>lágrimas na religião.A experiência cristã t<strong>em</strong> relação com o corpo, é positiva 367 . Noestoicismo é por via da ataraxia que o estoicismo é inimigo dasensação. O hom<strong>em</strong> sensível crê num Deus sensível e isto é o mesmoque crer na sua própria essência, pois o que é sagra<strong>do</strong> para o hom<strong>em</strong> éo seu íntimo. Assim, só o Deus possui<strong>do</strong>r <strong>de</strong> sensação é pleno, vivo,concreto e positivo, porque t<strong>em</strong> o que para o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> valor eexpressa a essência humana. Feuerbach enten<strong>de</strong> o cristianismo como366 Ibi<strong>de</strong>m, nota <strong>de</strong> rodapé, S. Bernar<strong>do</strong>: “pati voluit., ut compati sciret, miser fieri,ut misereri disceret”. Cf. Bíblia Sagrada, Hb 4.15: “Ao contrário, passou pelasmesmas provações que nós, com excepção <strong>do</strong> peca<strong>do</strong>”; Hb 5,8: “Embora fosse Filho<strong>de</strong> Deus, apren<strong>de</strong>u a obediência por meio <strong>do</strong>s sofrimentos”.367 I<strong>de</strong>m, p. 68: “Existir é uma sorte, um favor especial. O que existe ama-se. Se ocensuras por se amar, estás a censurá-lo por existir. Existir significa afirmar-se,amar-se. Qu<strong>em</strong> se farta da vida, arranca <strong>de</strong> si a vida. On<strong>de</strong> a sensação não épreterida ou reprimida, como entre os estóicos, on<strong>de</strong> um ser não é inveja<strong>do</strong>, aí já seintroduziu po<strong>de</strong>r e significa<strong>do</strong> religioso, aí ela já se elevou àquele grau <strong>em</strong> que po<strong>de</strong>espelhar-se e reflectir-se, <strong>em</strong> que po<strong>de</strong> olhar <strong>em</strong> Deus, no seu próprio espelho. Deusé o espelho <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>”.135


patológico, mas mais patológica é a reduplicação, a negação dasensação.O que é sagra<strong>do</strong> para o hom<strong>em</strong> é o seu íntimo, que é a essênciada sua individualida<strong>de</strong>. Por isso só satisfaz o hom<strong>em</strong> o Deus que éexpressão da própria essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. O hom<strong>em</strong> religioso t<strong>em</strong> umfim, um ponto <strong>em</strong> que se concentrar, fora e acima <strong>de</strong>le. Pelo contrárioo hom<strong>em</strong> irreligioso conserva isso na sua cabeça. O característico aquié que a falta da religião parece tornar a vida humana, <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> s<strong>em</strong>um fim. É por isso que o hom<strong>em</strong> capaz constrói um fim último on<strong>de</strong>se resguarda uma vida ética arquitectada nesta teologia. No fim liga-seo teórico e o prático sen<strong>do</strong> isto a razão da ética. Por isso, o hom<strong>em</strong>dito vulgar per<strong>de</strong>-se s<strong>em</strong> religião, porque lhe falta o ponto <strong>de</strong> coesão,concentração sen<strong>do</strong> por isso o facto <strong>de</strong> cada hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>terminar umDeus para si, <strong>de</strong>termina um fim último. Deste mo<strong>do</strong>, qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> umfim último t<strong>em</strong> uma regra, lei acima <strong>de</strong> si. É conduzi<strong>do</strong> e possui umaterra on<strong>de</strong> nasceu e um santuário. Por isso é feliz. Aquele que possuium fim <strong>em</strong> si verda<strong>de</strong>iro e essencial para o hom<strong>em</strong>, t<strong>em</strong> nisso a suaprópria religião 368 .A trinda<strong>de</strong>“Em suma, só um ser que traz <strong>em</strong> si o hom<strong>em</strong> total po<strong>de</strong>igualmente satisfazer o hom<strong>em</strong> total. A consciência que ohom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> <strong>de</strong> si na sua totalida<strong>de</strong> é a consciência datrinda<strong>de</strong>” 369 .O segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> sofrimento encontra-se precisamente no facto <strong>de</strong>o Deus <strong>do</strong> Cristianismo ser um Deus que sofre.368 I<strong>de</strong>m, p. 70: “senão na acepção da religião vulgar, <strong>do</strong>minante, pelo menos naacepção da razão, da verda<strong>de</strong>, <strong>do</strong> amor universal, <strong>do</strong> único amor verda<strong>de</strong>iro”.369 I<strong>de</strong>m, p. 71.136


A consciência da trinda<strong>de</strong> oculta que Deus é pai, filho eespírito santo. E a consciência da trinda<strong>de</strong> é a consciência <strong>de</strong> si <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>. O segre<strong>do</strong> da trinda<strong>de</strong> exprime que Deus pensa e ao pensar-segera o filho, ama-se e conhece. A trinda<strong>de</strong> é como uma objectivaçãoda consciência <strong>de</strong> si. A trinda<strong>de</strong> é esta imediatez que a consciênciat<strong>em</strong> para o hom<strong>em</strong> dum significa<strong>do</strong> absoluto, ao pensar-se pensa-ses<strong>em</strong>pre trinitariamente, ou seja, como mente, conhecimento e amor. Oamor liga o conhecimento com o objecto, activida<strong>de</strong> cognitiva, quaseuma função <strong>de</strong> juntar. Tu<strong>do</strong> o que liga é amor. Um Deus que fosseignorante <strong>de</strong> si não po<strong>de</strong> ser Deus. Este é o primeiro segre<strong>do</strong> datrinda<strong>de</strong>, a consciência da consciência, a auto consciência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>.Do mesmo mo<strong>do</strong> que o hom<strong>em</strong> não se pensa s<strong>em</strong> consciência tambémDeus não o po<strong>de</strong> 370 . Está-se perante um la<strong>do</strong> ainda abstracto quecarece <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong>, <strong>de</strong>terminações, carece que o pai e o filho se digamcomo um eu e tu 371 .Porém, Deus é somente enquanto pai. Este Deus precisa <strong>de</strong> umfilho para se mostrar. O hom<strong>em</strong> religioso não ama nos homens elesmesmos, mas o seu salva<strong>do</strong>r.Deus enquanto tautologia, Deus enquanto Deus, referin<strong>do</strong>-se asi próprio é s<strong>em</strong> antropomorfismos, pois apenas se refere a ele mesmo.Neste aspecto o hom<strong>em</strong> é rejeita<strong>do</strong> enquanto que no filho o hom<strong>em</strong> énovamente posto. Quer dizer, Deus-filho é o Emanuel – no filho Deusé assunto da religião. Trata-se da recondução da teologia à cristologia,porque na religião cristã se diz Deus faz-se hom<strong>em</strong>. A teologia queFeuerbach privilegia é cristologia. Há uma redução da teologia aomedia<strong>do</strong>r, porque se Deus não se manifestasse era irrelevante. Há,aqui, uma ponte para a recondução, transfere para o hom<strong>em</strong> os seus370 I<strong>de</strong>m, p. 72: “A consciência <strong>de</strong> si divina não é senão a consciência da consciênciacomo essencialida<strong>de</strong> absoluta”.371 Ibi<strong>de</strong>m: “Mas a religião é a consciência que o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> <strong>de</strong> si na sua totalida<strong>de</strong><strong>em</strong>pírica, na qual a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da consciência <strong>de</strong> si só existe como unida<strong>de</strong> rica <strong>de</strong>relações e preenchida <strong>de</strong> eu e tu”.137


predica<strong>do</strong>s pois “só no filho é que ele é objecto da religião; Deuscomo objecto da religião, como Deus religioso, é Deus como filho” 372 .No filho têm-se as necessida<strong>de</strong>s humanas.Do ponto <strong>de</strong> vista antropológico o judaísmo seria uma falsareligião, pois faltaria o el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong> ligação, sen<strong>do</strong> a consagração daalienação.Para o hom<strong>em</strong> religioso o outro e o mun<strong>do</strong> são umanecessida<strong>de</strong> essencial pois sen<strong>do</strong> para ele um tu abstracto, precisa <strong>de</strong>um tu concreto, real. Da mesma maneira ele <strong>de</strong>spreza o amor natural ea amiza<strong>de</strong>, elegen<strong>do</strong> a comunida<strong>de</strong> religiosa como necessida<strong>de</strong>.Assim, Deus enquanto Deus é um Deus só, solitário. É autónomo,porque solitário. A solidão é sinal <strong>de</strong> força <strong>de</strong> carácter e <strong>de</strong>inteligência. Pelo pensamento o hom<strong>em</strong> está só, pelo amor é ser a<strong>do</strong>is. Por isso na solidão encontra-se a necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> pensamentoenquanto que a companhia é a necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> coração.Na trinda<strong>de</strong> t<strong>em</strong>os o segun<strong>do</strong> segre<strong>do</strong>, pois exprime a vidaverda<strong>de</strong>ira <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, plena comunhão. O hom<strong>em</strong> procura umarelação, estar com, basta auscultar o mais fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> coração – umarelação pessoal, com outro. Por isso a trinda<strong>de</strong> carecia <strong>de</strong> alterida<strong>de</strong>.Assim, o monoteísmo restrito é bastante antropológico, um Deus àparte. Do Deus solitário está ausente a partilha, a comunida<strong>de</strong>, o amorsen<strong>do</strong> estas essenciais para o hom<strong>em</strong>, a consciência <strong>do</strong> outro eu. Umentendimento com amor e amor com entendimento formam o espírito,sen<strong>do</strong> este o hom<strong>em</strong> total. Esta necessida<strong>de</strong> da consciência preenchidaé Deus-filho. Cristo foi morto porque ousou admitir a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ser filho <strong>de</strong> Deus. Deus enquanto ser-com.T<strong>em</strong>os, assim, o cerne da afirmação <strong>do</strong> segre<strong>do</strong> trinitário: Deusé um ser-com (co esse) 373 . Deus é um “ζωον πολιτικόν”, eis o ícone da372 I<strong>de</strong>m, p. 73.373 I<strong>de</strong>m, p. 74. “Só a vida <strong>em</strong> comunida<strong>de</strong> é vida verda<strong>de</strong>ira, satisfeita <strong>em</strong> si mesma,divina”.138


verda<strong>de</strong>ira comunida<strong>de</strong>. No entanto, como é que a religião expressaesta verda<strong>de</strong>? De mo<strong>do</strong> inverti<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> afirma “Deus é uma vida <strong>em</strong>comunida<strong>de</strong>, uma vida e essência <strong>do</strong> amor e da amiza<strong>de</strong>” 374 . Do ponto<strong>de</strong> vista da trinda<strong>de</strong> celeste um mais um é igual a <strong>do</strong>is. Mas <strong>do</strong> ponto<strong>de</strong> vista real, da vida <strong>em</strong> comunhão, um mais um é igual a três, <strong>do</strong>ponto <strong>de</strong> vista da vida. Do ponto <strong>de</strong> vista da gramática da vida atrinda<strong>de</strong> exprime simbolicamente esta vida rica <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminações. Atrinda<strong>de</strong> é um sonho <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, encontrar um tu para gerar umterceiro. O segre<strong>do</strong> da trinda<strong>de</strong> é o mesmo da política <strong>de</strong> Aristóteles.O hom<strong>em</strong> precisa <strong>de</strong> outros, <strong>de</strong> conviver.O espírito representa o amor como vínculo, amor recíproco <strong>do</strong>pai e <strong>do</strong> filho, ten<strong>de</strong>r a fazer <strong>de</strong>le uma pessoa hipostasian<strong>do</strong> o amor. Aterceira pessoa ficou s<strong>em</strong>pre vaga na teologia, porque só quer dizer oamor, substituiu-se, hipostasiou-se o predica<strong>do</strong> 375 . Dois é o princípio<strong>do</strong> amor, pois assim não se reduz a força <strong>do</strong> amor e s<strong>em</strong> amor nãoexiste coração e este é o hom<strong>em</strong>, porque ama. O filho é o princípio davida comunitária. O filho existe a partir <strong>do</strong> pai, a partir <strong>do</strong> outro. Nasegunda pessoa dá vida 376 . O amor é o que distingue. Assim, Deuscomo filho é ser finito, existe <strong>de</strong> outro. Deus pai significa existir por simesmo. Deus coloca <strong>em</strong> si o princípio da finitu<strong>de</strong>, tornan<strong>do</strong>-se hom<strong>em</strong>no filho através da essência. Por isso ao tornar-se assunto <strong>do</strong>sentimento, <strong>do</strong> coração Deus torna-se objecto <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. No filho osentimento afirma o filho e está aqui o profun<strong>do</strong> da divinda<strong>de</strong> pois éno filho que há o sentimento que por ser visto como obscuro pelohom<strong>em</strong> é nisto que existe algo <strong>de</strong> misterioso. O filho como que acaba374 Ibi<strong>de</strong>m.375 I<strong>de</strong>m, p. 75: “Que, no fun<strong>do</strong>, não haja mais <strong>do</strong> que duas pessoas – porque aterceira pessoa, <strong>em</strong>bora seja por sua vez representada como um ser particular, nãorepresenta, como se afirmou, senão o amor – resi<strong>de</strong> no facto <strong>de</strong> <strong>do</strong>is ser<strong>em</strong>suficientes para o estrito conceito <strong>de</strong> amor”.376 I<strong>de</strong>m, p. 76: “Só Deus como filho aquece o hom<strong>em</strong>, só nele Deus se torna, <strong>de</strong>objecto <strong>do</strong> olhar, <strong>do</strong> frio e indiferente senti<strong>do</strong> luminoso, num objecto <strong>do</strong> sentimento,da <strong>em</strong>oção, <strong>do</strong> entusiasmo, […] mas apenas porque o próprio filho nada é senão ofervor <strong>do</strong> amor, <strong>do</strong> entusiasmo”.139


por ficar como uma figura muito vaga. O verda<strong>de</strong>iro pai <strong>do</strong> filhodivino é o coração <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> e o filho é o coração <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> que seobjectiva como essência divina. Só existe Deus on<strong>de</strong> existe o princípioda <strong>de</strong>pendência, da <strong>em</strong>piria e só assim o hom<strong>em</strong> religioso ama umDeus que t<strong>em</strong> <strong>em</strong> si a essência <strong>do</strong> amor. Se Deus não participar nofinito não po<strong>de</strong> ser o pai <strong>do</strong>s homens, se não tiver um filho <strong>em</strong> si comosabia o que é amar 377 ?Para completar esta família divina era preciso introduzir umafigura que dissesse o f<strong>em</strong>inino <strong>em</strong> Deus.A questão <strong>do</strong> f<strong>em</strong>ininoMas para completar com toda a or<strong>de</strong>m a famíliadivina e o laço <strong>de</strong> amor entre pai e filho, foi acolhida nocéu ainda uma terceira pessoa, uma pessoa f<strong>em</strong>inina 378 .O espírito santo é uma figura vaga e frágil (precária).Feuerbach preten<strong>de</strong> que a trinda<strong>de</strong> não seja relida <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> orto<strong>do</strong>xo.A riqueza <strong>do</strong> género <strong>humano</strong> é masculino e f<strong>em</strong>inino. É precisointroduzir o que a política clássica <strong>de</strong>itou fora. Era necessário vercomo é que na trinda<strong>de</strong> se podia encontrar um el<strong>em</strong>ento que mostrasseo f<strong>em</strong>inino, Maria a par <strong>do</strong> pai e <strong>do</strong> filho. Maria é a mãe <strong>de</strong> Deus,porque mãe <strong>de</strong> Cristo e Cristo é Deus e hom<strong>em</strong>, significa que ser mãe<strong>de</strong> Cristo, Maria é a mãe da divinda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo, é mãe <strong>de</strong> Deus. Amulher, por via <strong>de</strong> Maria, t<strong>em</strong> o lugar <strong>de</strong> trono sen<strong>do</strong> o f<strong>em</strong>inino quaseen<strong>de</strong>usa<strong>do</strong> pois ao conceber o filho s<strong>em</strong> a presença masculina <strong>do</strong>mesmo mo<strong>do</strong> que Deus gerou o filho, s<strong>em</strong> a intervenção f<strong>em</strong>inina. A377 I<strong>de</strong>m, p. 77: “Deus pai ama por isso o hom<strong>em</strong> apenas no filho e pelo filho. Oamor pelos homens é um amor <strong>de</strong>riva<strong>do</strong> <strong>do</strong> amor pelo filho”.378 I<strong>de</strong>m, p. 78.140


mulher <strong>de</strong>ve ser o ícon da virg<strong>em</strong> mãe, fecunda e simultaneamenteeterno f<strong>em</strong>inino. Por via <strong>de</strong> Maria há como mesura <strong>do</strong> amor. Mariarepresenta esta introdução <strong>em</strong> Deus <strong>do</strong> que lhe faltava, a passivida<strong>de</strong>,pois Deus como activo carece da sua passivida<strong>de</strong>, como se o “ζωονπολιτικόν” carecesse <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminações activas e passivas, pois a vidada comunida<strong>de</strong> era expressa pelo <strong>do</strong>gma.Em Cristo mostra-se o ânimo f<strong>em</strong>inino <strong>de</strong> Deus e umahumilda<strong>de</strong> da parte <strong>de</strong> Deus ao dizer não à exclusivida<strong>de</strong> da sua auto –consciência 379 .Feuerbach avança para a importância a dar à mãe ao referir aatracção <strong>do</strong> filho pela mãe <strong>em</strong> que se mostra o amor <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> pelamulher, tornan<strong>do</strong>-se o amor <strong>do</strong> filho pela mãe “a primeira aspiração,o primeiro acto <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> face à mulher” 380 .O Filho <strong>de</strong> Deus está liga<strong>do</strong> à mãe <strong>de</strong> Deus, porque o primeiropõe como condição a mãe <strong>de</strong> Deus pois afirmar o primeiro é pôr asegunda 381 . Deus filho tornou-se hom<strong>em</strong> na mulher, porque estaaspirava pelo filho e este adquiriu sob o coração da mãe impressõesque não se apagam, pois é pelos senti<strong>do</strong>s e pelo coração que a mãe seapresenta, dá ao filho. Feuerbach torna-se um <strong>de</strong>fensor <strong>de</strong> Maria, damãe e refere que <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que se a<strong>do</strong>ra Cristo também se <strong>de</strong>vea<strong>do</strong>rar a mãe <strong>de</strong> Deus. Ou seja, Deus <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que não t<strong>em</strong>vergonha <strong>de</strong> ter um filho também não a terá <strong>de</strong> ter uma mãe. ColocaMaria <strong>em</strong> tal altar celeste. O lugar <strong>do</strong> f<strong>em</strong>inino, pela via da mãe,mostra ainda mais que o amor <strong>de</strong> Deus por nós está no coração <strong>de</strong> mãeque é o amor mais profun<strong>do</strong>. Deste mo<strong>do</strong>, enquanto que o pai comprincípio estóico se consola da morte <strong>do</strong> filho a mãe não t<strong>em</strong>379 I<strong>de</strong>m, p. 79: “O filho é, pois, o sentimento f<strong>em</strong>inino <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência <strong>em</strong> Deus; ofilho impõe-nos também s<strong>em</strong> querer a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma essência efectivamentef<strong>em</strong>inina”.380 Ibi<strong>de</strong>m.381 I<strong>de</strong>m, p. 80: “On<strong>de</strong> está o filho, não po<strong>de</strong> faltar a mãe. O filho é inato ao pai, masa mãe é inata ao filho. O filho supre ao pai a necessida<strong>de</strong> da mãe, mas o contrárionão acontece”.141


consolação, a mãe é sofre<strong>do</strong>ra encontran<strong>do</strong> na aflição a verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> seuamor.A recondução da trinda<strong>de</strong> ao hom<strong>em</strong> começou peloprotestantismo. Schleiermacher, colocan<strong>do</strong>-se <strong>em</strong> Deus mas nunca<strong>de</strong>volvida ao fiel. Tirou o f<strong>em</strong>inino <strong>de</strong> Deus 382 mas <strong>de</strong>via ter reuni<strong>do</strong>ao pai e filho celeste. O protestantismo preferiu uma mulher terrena noseu coração a uma mulher celeste, mas <strong>de</strong>via ter si<strong>do</strong> consequente 383 .O protestantismo, que é uma antropologia, traz no seu seio umprincípio ateu gera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> público e <strong>do</strong> priva<strong>do</strong>, <strong>em</strong>bora não o tenhaleva<strong>do</strong> ao fim. Devia ter revela<strong>do</strong> o segre<strong>do</strong> antropológico não só <strong>do</strong>f<strong>em</strong>inino, mas também da trinda<strong>de</strong> toda, estan<strong>do</strong> por cumprir avocação política da religião protestante. Feuerbach consi<strong>de</strong>ra que é eleque vai fazer, revelar isso. Quanto mais vazia é a vida, mais rico éDeus – perspectiva própria das correntes teológicas afirmavam umanoção <strong>de</strong> Deus unitarista 384 . Num único acto dá-se o esvaziar <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> concreto, real, e o preenchimento da divinda<strong>de</strong>. Aquilo <strong>de</strong> queo hom<strong>em</strong> sente falta, isso é Deus. Daí a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> os homens seamar<strong>em</strong> <strong>em</strong> socieda<strong>de</strong>, sen<strong>do</strong> isto Deus.382 Ibi<strong>de</strong>m: “On<strong>de</strong> <strong>de</strong>cai a fé na mãe <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong>cai também a fé no filho <strong>de</strong> Deus eno Deus-pai”.383 I<strong>de</strong>m, p. 81: “Mas por essa razão <strong>de</strong>veria ter si<strong>do</strong> suficient<strong>em</strong>ente honesto econsequente para renunciar, juntamente com a mãe, também ao pai e ao filho. Sóqu<strong>em</strong> não t<strong>em</strong> pais terrenos necessita <strong>de</strong> pais celestes”.384José Maria Silva ROSA, O Prima<strong>do</strong> da Relação, Universida<strong>de</strong> CatólicaPortuguesa, Lisboa, 2007, p. 114: “ É o caso <strong>do</strong>s socinianos, reeditan<strong>do</strong> a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong>que o Pai é superior a Cristo – verda<strong>de</strong>iramente, só Ele merece o nome <strong>de</strong> Deus […]“o Iluminismo europeu reduziu a fé cristã ao “monoteísmo”.142


O Segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> Logos e o afundamento na intuiçãosensível“A palavra é a luz <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>” 385 .O cerne <strong>do</strong> logos significa a centralida<strong>de</strong> da linguag<strong>em</strong> nohom<strong>em</strong>, o hom<strong>em</strong> é hom<strong>em</strong> porque <strong>de</strong>tém logos, pelo que Deusapresenta-se mas também fala. A palavra <strong>de</strong> Deus apresenta-se,porque é um vínculo essencial. Na trinda<strong>de</strong> há o interesse coloca<strong>do</strong> nofilho <strong>de</strong> Deus, o logos é palavra, sen<strong>do</strong> o media<strong>do</strong>r, verda<strong>de</strong>iro Deus<strong>de</strong> uma religião, b<strong>em</strong> como o seu objecto imediato. Assim, se natrinda<strong>de</strong> o logos é palavra, significa que na vida política a palavra é<strong>de</strong>cisiva e essencial. O logos satisfaz a necessida<strong>de</strong> antropológica <strong>de</strong>uma palavra que seja como uma imag<strong>em</strong>, que diga. Quan<strong>do</strong> alguém sedirige a um santo pressupõe que este é um meio <strong>de</strong> elevação a Deus,crê que Deus lhe conce<strong>de</strong> o que ele pe<strong>de</strong>. A súplica funciona comocapa <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong> no acto <strong>de</strong> pedir, mostran<strong>do</strong> um certo po<strong>de</strong>r sobreum outro ser. Assim, o santo funciona como o ser primeiro, <strong>do</strong> qual<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> Deus. Neste senti<strong>do</strong>, Deus <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong> santo pois é<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pelas súplicas, pela vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> santo e pelo seu coração.No entanto, o Deus que se encontra “oculto” <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> santo éuma <strong>i<strong>de</strong>ia</strong>, uma abstracção, pelo que o papel <strong>do</strong> santo é negar esta<strong>i<strong>de</strong>ia</strong>, pois a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> Deus para lá <strong>do</strong> santo, <strong>do</strong> media<strong>do</strong>r é como oentendimento para lá <strong>do</strong> coração. Pela incarnação Deus renunciou àsua majesta<strong>de</strong> e po<strong>de</strong>r, afirman<strong>do</strong> o Deus que é hom<strong>em</strong> no coração<strong>humano</strong> bon<strong>do</strong>so e misericordioso.385 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 90.143


A inteligência enquanto activida<strong>de</strong> separada e insensível não sea<strong>de</strong>qua ao hom<strong>em</strong> sensível e com sentimentos. Neste âmbito o queanima o hom<strong>em</strong> sensível é a imag<strong>em</strong>.Esta t<strong>em</strong>ática acaba por realçar o ser imag<strong>em</strong>, <strong>de</strong>notan<strong>do</strong> que ofilho é a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus 386 . É uma imag<strong>em</strong> que o hom<strong>em</strong> cria <strong>de</strong>Deus, colocan<strong>do</strong>-a no próprio Deus, saben<strong>do</strong>-a como realida<strong>de</strong>objectiva expressan<strong>do</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressar o po<strong>de</strong>r divino,neste caso como fantasia. Porém, isto não basta pois o filho é aimag<strong>em</strong> que o coração prefere, expressan<strong>do</strong> o filho a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>um outro ser 387 . O filho expressa o primeiro lugar <strong>do</strong> referente, daimaginação. O efeito <strong>do</strong> objecto figura<strong>do</strong> é o efeito da imag<strong>em</strong>. Noâmbito da história sagrada, o objecto sagra<strong>do</strong> é a coroa on<strong>de</strong> a imag<strong>em</strong>guarda a sua força misteriosa. A fantasia exerce, pelo objectoreligioso, o <strong>do</strong>mínio sobre o hom<strong>em</strong>. Há uma inter<strong>de</strong>pendência entresacralida<strong>de</strong> da imag<strong>em</strong> e sacralida<strong>de</strong> <strong>do</strong> objecto. Assim a vê aconsciência religiosa. No entanto esta não é o critério <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>.Apesar <strong>de</strong> a Igreja ter estabeleci<strong>do</strong> a distinção entre objecto daimag<strong>em</strong> e imag<strong>em</strong> b<strong>em</strong> como nega<strong>do</strong> a veneração da imag<strong>em</strong>,“confessou ao mesmo t<strong>em</strong>po nolens volens, pelo menosindirectamente, a verda<strong>de</strong> da imag<strong>em</strong> e proclamou a suasacralida<strong>de</strong>” 388 . Quer dizer, aceitar o mo<strong>de</strong>lo é como aceitar areprodução. Por isso sen<strong>do</strong> a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus, viva por que t<strong>em</strong> <strong>de</strong> sermorta a imag<strong>em</strong> <strong>do</strong> santo, se a imag<strong>em</strong> é resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> espírito que386 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 86, Nota <strong>de</strong> rodapé:“Proprium est filio esse imag<strong>em</strong>, quia illi convenit secundum proprietat<strong>em</strong>originis… Filius ex quod ab alio est, hab<strong>em</strong> qu<strong>em</strong> imitetur…i<strong>de</strong>o dicit Augustinus,quod eo imago est quo filius”.387 I<strong>de</strong>m p. 87: “O filho é o princípio supr<strong>em</strong>o e último <strong>do</strong> culto das imagens, pois éa imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus; mas a imag<strong>em</strong> toma necessariamente o lugar da coisa. Aa<strong>do</strong>ração <strong>do</strong> santo na imag<strong>em</strong> é a a<strong>do</strong>ração da imag<strong>em</strong> como se fosse o santo. Aimag<strong>em</strong> é a essência da religião; on<strong>de</strong> está a imag<strong>em</strong> está a expressão essencial, oórgão da religião”.388 I<strong>de</strong>m, p. 88.144


impele as mãos <strong>do</strong> artista a apresentar o santo como ele próprio se lheapresentou?Se formos ao cerne da centralida<strong>de</strong> da linguag<strong>em</strong> no hom<strong>em</strong>, ohom<strong>em</strong> é hom<strong>em</strong> porque <strong>de</strong>tém logos. Por isso Deus tinha não só <strong>de</strong>se apresentar mas também falar – a palavra <strong>de</strong> Deus apresenta-se,porque a palavra é um vínculo essencial. Se na trinda<strong>de</strong> o logos épalavra, significa que na vida política a palavra é <strong>de</strong>cisiva e essencial.O logos satisfaz a necessida<strong>de</strong> antropológica <strong>de</strong> uma palavraque seja como uma imag<strong>em</strong>, que diga. Os homens pelo conhecimentoda palavra imaginam conhecer a coisa <strong>de</strong>signada. O po<strong>de</strong>r daimaginação é o po<strong>de</strong>r da palavra. Para os primitivos, para os cristãos eno t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Feuerbach os homens acreditam no po<strong>de</strong>r enfeitiça<strong>do</strong>r dapalavra, pois é fruto da imaginação que actua como ópio sobre oshomens, amarran<strong>do</strong>-os à fantasia. Mas o importante é que, paraFeuerbach, as palavras <strong>de</strong>têm um po<strong>de</strong>r revolucionário, conduzin<strong>do</strong>alguém pela palavra, <strong>do</strong>minan<strong>do</strong> a Humanida<strong>de</strong> 389 . Assim, o hom<strong>em</strong>além <strong>de</strong> possuir o impulso para pensar, fantasiar t<strong>em</strong> também oimpulso para falar, isto é, comunicar. O po<strong>de</strong>r da palavra é umimpulso divino. “A palavra é o pensamento figura<strong>do</strong>, manifesto,radioso, que brilha, que ilumina” 390 . Ilumina, esclarece, liga. É umvínculo que liga os homens politicamente. A palavra é a luz <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> 391 . Antropomorficamente a palavra <strong>em</strong> Deus e <strong>em</strong> Cristo operamilagres 392 . A palavra t<strong>em</strong> po<strong>de</strong>r divino. A palavra não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser389 Faz l<strong>em</strong>brar o Fedro <strong>de</strong> Platão. Cf. PLATON, Le Banquet, Phèdre, (Traduction,notices et notes par Emile Chambry), Garnier-Flammarion, Paris, 1964, 271b-272a:« Socrate - Puisque le propre du discours est <strong>de</strong> conduire les âmes, pour être unhabile orateur, il faut savoir combien il y a d`espèces d`âmes […] ». Cf. I<strong>de</strong>m:268a-268d; 274d-275c, – o discurso e a palavra como uma espécie <strong>de</strong> fármaco.390 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 90.391 Ibi<strong>de</strong>m: “A palavra conduz a todas as verda<strong>de</strong>s, exclui to<strong>do</strong>s os segre<strong>do</strong>s, faz vero invisível, presentifica o passa<strong>do</strong> e o distante, finitiza o infinito, eterniza ot<strong>em</strong>poral. Os homens passam, a palavra permanece; a palavra é vida e verda<strong>de</strong>”.392 I<strong>de</strong>m, p. 91: “To<strong>do</strong> o po<strong>de</strong>r foi da<strong>do</strong> à palavra: a palavra faz cegos ver<strong>em</strong>, coxosandar<strong>em</strong>, <strong>do</strong>entes sarar<strong>em</strong>, mortos ressuscitar<strong>em</strong> – a palavra faz milagres e mesmoos únicos milagres racionais. A palavra é o Evangelho, o Paracleto da Humanida<strong>de</strong>”.145


multiplicada, tanto mais existe quanto mais se partilha 393 . Há aqui umafenomenologia racional – o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> nos confessarmos uns aos outrost<strong>em</strong> o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> nos redimir, <strong>de</strong> unir, <strong>de</strong> chegar ao outro na dúvida aoperdão. O segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> logos e Deus é o segre<strong>do</strong> <strong>de</strong> o hom<strong>em</strong> encontrarno outro uma palavra que o acolhe – o hom<strong>em</strong> eloquente. Pela palavrao hom<strong>em</strong> torna-se livre e falar é um acto <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, sen<strong>do</strong> a própriapalavra um acto <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e a cultura da palavra o alicerce dacultura e o cultivo da Humanida<strong>de</strong>. Um vínculo <strong>de</strong> “zoon politikon”enquanto “zoon logikon”. Pela palavra o hom<strong>em</strong> cria o que nãoexistia, comunida<strong>de</strong>, reconcilian<strong>do</strong>, concilian<strong>do</strong>. Trata-se, assim, <strong>de</strong>mediar a filosofia com a vida, uma vertente prática supera<strong>do</strong>ra daperspectiva erudita 394 . É o enquadrar a sensibilida<strong>de</strong> no espírito vivo<strong>de</strong> que resulta o livro on<strong>de</strong> fica grafa<strong>do</strong> o test<strong>em</strong>unho <strong>de</strong> umaperspectiva pessoal <strong>de</strong> vida que se po<strong>de</strong> prolongar no t<strong>em</strong>po e noespaço, uma forma <strong>de</strong> se imortalizar na forma terrena. Pela escrita ohom<strong>em</strong>, o indivíduo torna-se símbolo <strong>do</strong> género <strong>humano</strong>. Pela escrita,produtora <strong>de</strong> <strong>i<strong>de</strong>ia</strong>s, o hom<strong>em</strong> é um zoon politikon pois origina acomunida<strong>de</strong> e a comunicação entre os homens. Quer dizer da palavraao livro o hom<strong>em</strong> dá-se à Humanida<strong>de</strong> passan<strong>do</strong> a ser um b<strong>em</strong>comum. Está aqui, segun<strong>do</strong> Feuerbach, a primazia da activida<strong>de</strong>filosófica: produzir textos escritos e pô-los à disposição <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> – osenti<strong>do</strong> universal. Eis aqui o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma vida que se escreve por393 Ibi<strong>de</strong>m: “A palavra t<strong>em</strong> força para redimir, reconciliar, tornar feliz. Os peca<strong>do</strong>sque confessamos são-nos per<strong>do</strong>a<strong>do</strong>s graças ao po<strong>de</strong>r divino da palavra. Omoribun<strong>do</strong> que confessa os peca<strong>do</strong>s durante longo t<strong>em</strong>po cala<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>spe<strong>de</strong>-se,reconcilia<strong>do</strong>, da vida. O perdão <strong>do</strong>s peca<strong>do</strong>s resi<strong>de</strong> na confissão <strong>do</strong>s peca<strong>do</strong>s. As<strong>do</strong>res que revelamos ao amigo estão já <strong>em</strong> parte saradas. Aquilo <strong>de</strong> que falamosmitiga as nossas paixões, torna-se claro <strong>em</strong> nós; o objecto da cólera, <strong>do</strong> <strong>de</strong>sgosto, dapreocupação aparece-nos a uma nova luz na qual reconhec<strong>em</strong>os a indignida<strong>de</strong> dapaixão […] e muitas vezes no instante <strong>em</strong> que abrimos a boca para fazer umapergunta ao amigo <strong>de</strong>svanec<strong>em</strong>-se as dúvidas e obscurida<strong>de</strong>s”.394 Adriana Veríssimo SERRÃO, Pensar a Sensibilida<strong>de</strong>, p. 129: “Daí a acentuação<strong>de</strong> que tanto na literatura como na filosofia não se trata <strong>de</strong> seguir um processoabstractivo, <strong>de</strong> ascese ou <strong>de</strong> recusa <strong>do</strong> real, mas sim <strong>de</strong> optar por uma orientaçãoespiritualizada, que é porém s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong> imersão e <strong>de</strong> “afundamento” (Versenkung)no el<strong>em</strong>ento da intuição sensível”.146


meio <strong>de</strong> aforismos mas que ao inserir-se na tradição, ligan<strong>do</strong>-se aotexto da história passada, forma o contínuo da literatura <strong>em</strong> que qu<strong>em</strong>escreve e qu<strong>em</strong> lê se encontram numa comunhão espiritual, fazen<strong>do</strong>uma só obra 395 .A vida humana é para Feuerbach o mo<strong>de</strong>lo da filosofia. Esta éum aspecto <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> <strong>de</strong> o hom<strong>em</strong> comunicar além das condições<strong>de</strong> comunicação, encontran<strong>do</strong>-se na linguag<strong>em</strong> o el<strong>em</strong>ento concreto econstitutivo. A filosofia sen<strong>do</strong> um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> pensar é também umapartilha própria <strong>do</strong> acto <strong>de</strong> comunicar. Pela boca, no dizer ou pelapena, no escrever, a filosofia regressa à sua própria fonte.O pensamento precisa da linguag<strong>em</strong> para se exteriorizar. Há,assim, uma relação entre pensamento, linguag<strong>em</strong> e comunicação. Alinguag<strong>em</strong> não é outra coisa senão a mediação <strong>do</strong> género, graças àsuperação <strong>do</strong> seu isolamento individual, sen<strong>do</strong> o ar o el<strong>em</strong>ento dapalavra. Pelo escrever coloca-se <strong>em</strong> dúvida que os outros saibam oque escrev<strong>em</strong> ou sab<strong>em</strong>. Esta é a razão por que o hom<strong>em</strong> comunica. Opensa<strong>do</strong>r não é o meio <strong>de</strong> um pensamento absoluto, mas sujeito quepensa por si próprio e, por isso, é autor. Assim, uma exposiçãofilosófica r<strong>em</strong>ete para um original, um autor. Cada <strong>do</strong>utrina filosóficaé confirmação <strong>de</strong> uma autoria subjectiva, resultante <strong>de</strong> umaperspectiva singular da verda<strong>de</strong>. Embora s<strong>em</strong> ser única é, no entanto,múltipla.A exposição é um pensamento que se exterioriza, <strong>de</strong>claran<strong>do</strong>sena linguag<strong>em</strong>. A exposição <strong>do</strong> pensamento é <strong>de</strong>monstrativa <strong>em</strong>ostrativa. A exposição da filosofia t<strong>em</strong> <strong>de</strong> ser exposiçãofilosófica 396 . Tu<strong>do</strong> se <strong>de</strong>ve expor, <strong>de</strong>monstrar-se e isto é a imediatez,395 I<strong>de</strong>m, p. 130.396Ludwig FEUERBACH, Para a crítica da filosofia <strong>de</strong> Hegel, in LudwigFEUERBACH, Filosofia da Sensibilida<strong>de</strong>. Escritos, p. 55: “é aqui que a exigência dai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da forma e <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> encontra a sua justificação. A exposição, elamesma filosófica, a<strong>de</strong>quada aos pensamentos, é precisamente a exposiçãosist<strong>em</strong>ática”.147


pois o pensar é anterior à exposição <strong>do</strong> próprio pensar. A exposição é<strong>em</strong> si e para si, auto-exposição subjectiva <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> pensa 397 . O autortorna possível que o pensamento encarne enquanto o leitor que alinguag<strong>em</strong> se <strong>de</strong>senvolva. Na comunicação transforma-se opensamento e a linguag<strong>em</strong>. Mas a comunicação <strong>de</strong> pensamentos,sen<strong>do</strong> espiritual, é aquilo que é apenas através <strong>do</strong> sujeito.A exigência filosófica <strong>de</strong>sperta o pensamento, estimula-o pelapalavra. D<strong>em</strong>onstrar é mostrar 398 , sen<strong>do</strong> referência ao leitor épensamento para outr<strong>em</strong>, sen<strong>do</strong> necessária a linguag<strong>em</strong> como arealização <strong>do</strong> género, a mediação <strong>do</strong> eu com o tu. A linguag<strong>em</strong> é, porisso, criação da comunida<strong>de</strong> ao ligar o autor ao leitor, ambos sujeitos,suprimin<strong>do</strong> o isolamento individual. É o acto comunicativo comoactualizar-se uma universalida<strong>de</strong> racional pressuposta como prévia,tornan<strong>do</strong>-se real apenas no acto <strong>em</strong> que se realiza. Por isso, entre acomunicabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> pensamento e a própria comunicação surge umaduplicação que permite ao pensa<strong>do</strong>r sair <strong>do</strong> seu isolamento para setornar verda<strong>de</strong>iramente dialógico 399 . Deste mo<strong>do</strong>, para Feuerbach, nãoé na unida<strong>de</strong> para com o seu oposto, mas na refutação <strong>de</strong>ste queconsiste a verda<strong>de</strong>. Por isso “A dialéctica não é um monólogo daespeculação consigo mesma, é um diálogo da especulação e da<strong>em</strong>piria” 400 . Deste mo<strong>do</strong> o processo dialógico é dialéctico e dual, <strong>em</strong>cada la<strong>do</strong> da relação comunicativa: “O pensa<strong>do</strong>r é dialéctico apenas397 I<strong>de</strong>m, p. 54: “A <strong>de</strong>monstração é portanto unicamente o meio pelo qual retiro aosmeus pensamentos a forma <strong>do</strong> que é meu, a fim <strong>de</strong> que o outro os reconheça comoos seus próprios”.398 Ibi<strong>de</strong>m: “A <strong>de</strong>monstração é portanto unicamente o meio pelo qual retiro aos meuspensamentos a forma <strong>do</strong> que é meu, a fim <strong>de</strong> que o outro os reconheça como os seuspróprios”; Cf. I<strong>de</strong>m, p. 51: “A <strong>de</strong>monstração não é senão a mostração <strong>de</strong> que aquiloque eu digo é verda<strong>de</strong>iro, não é senão o reportar da exteriorização <strong>do</strong> pensamento àfonte originária <strong>do</strong> pensamento”.399 I<strong>de</strong>m, p. 58: “ […]. Para <strong>de</strong>monstrar, são precisos <strong>do</strong>is: ao <strong>de</strong>monstrar o pensa<strong>do</strong>rcin<strong>de</strong>-se, contradiz-se a si mesmo; e só na medida <strong>em</strong> que o pensamento sustentou esuperou esta oposição-a-si-mesmo é um pensamento <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong>”.400 Ibi<strong>de</strong>m.148


na medida <strong>em</strong> que é o seu próprio adversário” 401 . Assim, é próprio dafilosofia <strong>de</strong>spertar o pensamento, pelo que para que existacomunicação há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um duvidar <strong>de</strong> si, duvidan<strong>do</strong> <strong>de</strong> umcerto conteú<strong>do</strong> b<strong>em</strong> como das significações subjectivas <strong>do</strong> pensarindividual 402 . Trata-se da complexida<strong>de</strong> <strong>do</strong> comunicar e isso é <strong>de</strong>vi<strong>do</strong>a um certo esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> convencimento <strong>de</strong> se pensar na certeza <strong>do</strong> que seescreve, especialmente <strong>em</strong> <strong>do</strong>mínios mais herméticos. Nota-se quepela escrita se po<strong>de</strong> vivenciar sofrimento.Daí ser com a maior das dificulda<strong>de</strong>s que sechega tantas vezes a escrever acerca <strong>do</strong> que se sab<strong>em</strong>elhor, <strong>do</strong> que para nós é tão absolutamente certo eclaro que nos é impossível conceber como outros nãohaveriam <strong>de</strong> o saber também 403 .Está-se como que perante o assumir da <strong>do</strong>uta ignorânciasocrática, o reconhecer que por mais que se saiba n<strong>em</strong> crê que issosaiba, um não saber que se sabeAo escrever acerca <strong>de</strong> um assunto <strong>de</strong> que está tãocerto, que consi<strong>de</strong>ra, lá no fun<strong>do</strong>, que não valeria sequera pena escrever sobre ele, um escritor é lança<strong>do</strong> paraum especial género <strong>de</strong> humor. Ao escrever, torna vã asua escrita, ao provar, está a troçar da prova. Se <strong>de</strong>voescrever, e escrever b<strong>em</strong> e com profundida<strong>de</strong>, entãotenho <strong>de</strong> pôr <strong>em</strong> dúvida que os outros saibam o que eusei, pelo menos que o saibam como eu o sei 404 .Há como um autor cindi<strong>do</strong>: sábio e ignorante, patente na ironiae no humor, por intermédio da dúvida, sen<strong>do</strong> esta um meio <strong>de</strong>comunicação. Há que pressupor a comunicabilida<strong>de</strong>, pois401 I<strong>de</strong>m, pp. 58-59.402 I<strong>de</strong>m, p. 51: “ Se <strong>de</strong>vo escrever, e escrever b<strong>em</strong> e com profundida<strong>de</strong>, então tenho<strong>de</strong> pôr <strong>em</strong> dúvida que os outros saibam o que eu sei, pelo menos que o saibam comoeu o sei”. Ver ainda nota 404 <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong>.403 Ibi<strong>de</strong>m.404 Ver nota 402 <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong>.149


Qualquer <strong>de</strong>monstração não é por isso umamediação <strong>do</strong> pensamento no e para o própriopensamento, mas uma mediação através da linguag<strong>em</strong>entre o pensar, na medida <strong>em</strong> que é meu, e o pensar <strong>do</strong>outro, na medida <strong>em</strong> que é <strong>de</strong>le 405 .É o reconhecimento <strong>de</strong> uma medição <strong>do</strong> Eu e <strong>do</strong> Tu visan<strong>do</strong> nomeu pensamento o pensamento <strong>do</strong> outro.Os homens não rejeitam a comunicação, pois pelacomunicação po<strong>de</strong>mos avançar <strong>em</strong> direcção à verda<strong>de</strong>. A ligação <strong>do</strong>eu – tu é verda<strong>de</strong>ira, porque o que une é bom. Pelo <strong>de</strong>monstrar ecomunicar os homens divi<strong>de</strong>m entre si, partilhan<strong>do</strong>. Assim,distingu<strong>em</strong>-se filosofia dialógica e filosofia dramática. Nacomunicação filosófica entram o humor e o amor.O elo <strong>de</strong> intermédio, o terminus medius, entre osuperior e o inferior, o abstracto e o concreto, ouniversal e o particular é, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista prático, oamor, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista teórico, o humor 406O humor é o <strong>do</strong>mínio da autocrítica para consigo, enquantoque o amor é comunicação relativamente ao outro. Há a implicação <strong>do</strong>humor no amor e vice-versa. Deste mo<strong>do</strong> ambos representam umméto<strong>do</strong> humorístico-filosófico que t<strong>em</strong> a função <strong>de</strong> ligar ambos<strong>em</strong>piria e especulação, <strong>em</strong> oposição ao <strong>do</strong>cente <strong>de</strong> filosofia 407 . Averda<strong>de</strong>ira filosofia começa s<strong>em</strong> pressupostos e t<strong>em</strong> a liberda<strong>de</strong> e aousadia para duvidar <strong>de</strong> si mesma, realizan<strong>do</strong>-se a partir <strong>do</strong> seuoposto. O acto <strong>de</strong> orientar o outro a <strong>de</strong>scobrir.Que relação entre comunicar e <strong>de</strong>monstrar? Há um dar-se,porque – o que é meu é algo que <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong> igual mo<strong>do</strong> <strong>do</strong> outro. Há405 I<strong>de</strong>m, p. 52.406 Ludwig FEUERBACH “A Karl Rie<strong>de</strong>l. Para a Edificação <strong>do</strong> seu esboço”, inLudwig FEUERBACH, Filosofia da Sensibilida<strong>de</strong>. Escritos, p. 38.407 I<strong>de</strong>m, p. 37: “Este méto<strong>do</strong> consiste <strong>em</strong> ligar constant<strong>em</strong>ente o eleva<strong>do</strong> com oaparent<strong>em</strong>ente comum, o mais longínquo com o mais próximo, o abstracto com oconcreto, o especulativo com o <strong>em</strong>pírico, a filosofia com a vida; […] no meio <strong>de</strong>ser-fora-<strong>de</strong>-si da sensibilida<strong>de</strong> esteja imediatamente <strong>em</strong> si mesmo […]”.150


na exposição filosófica, seja oral ou escrita, uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo nosenti<strong>do</strong> <strong>de</strong> mediação, pois o que é <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>ve ser universal.AssimEle quer certamente conduzir-me até aospensamentos <strong>de</strong>le, não porém enquanto são <strong>de</strong>le, masenquanto pensamentos universalmente racionais, logo,também os meus 408 .Estamos perante o característico da filosofia: <strong>de</strong>spertar opensamento, reconhecen<strong>do</strong> o outro. Está-se perante um critériointersubjectivo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> pois o que é verda<strong>de</strong>iro”não éexclusivamente n<strong>em</strong> meu n<strong>em</strong> teu, mas universal” 409mas opensamento <strong>em</strong> que se un<strong>em</strong> o eu e o tu, pois pelo outro se t<strong>em</strong> certezada verda<strong>de</strong>. Por isso o verda<strong>de</strong>iro é o pensamento no qual se un<strong>em</strong> oeu e o tu, porque o que une é bom. Assim, o acto subjectivo racionaltorna presente um universal, confirma uma compreensão alicerçadanuma base originária, comum aos homens – a unida<strong>de</strong> da razão. A<strong>de</strong>monstração e a comunicação são mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> pensamento e <strong>de</strong>expressão. Por isso qualquer exposição ou <strong>de</strong>monstração, até o tiposist<strong>em</strong>ático 410 , <strong>de</strong>ve ser entendida como um mo<strong>de</strong>lo metódico dafilosofia que t<strong>em</strong> noutros mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> pensar o referente <strong>do</strong> seu discurso.O pensamento não refuta o seu adversário pelo que é no caminho daalterida<strong>de</strong> que se compreen<strong>de</strong> que os segre<strong>do</strong>s mais profun<strong>do</strong>s seencontram nas mais simples coisas naturais.No acto comunicativo actualiza-se a universalida<strong>de</strong> racionalpressuposta como prévia, tornan<strong>do</strong>-se real apenas no acto <strong>em</strong> que serealiza. Por isso, entre a comunicabilida<strong>de</strong> potencial <strong>do</strong> pensamento ecomunicação efectiva interpõe-se uma <strong>de</strong>svinculação que permite aopensa<strong>do</strong>r sair <strong>do</strong> isolamento para se tornar verda<strong>de</strong>iramente dialógico.408 I<strong>de</strong>m, p. 54.409 I<strong>de</strong>m, p. 52.410 I<strong>de</strong>m, p. 55.151


Neste processo são precisos <strong>do</strong>is. Assim para Feuerbach a verda<strong>de</strong> nãose encontra na unida<strong>de</strong> com o oposto, mas na refutação <strong>de</strong>le. Emresulta<strong>do</strong> disso, diz-se que “A dialéctica não é um monólogo daespeculação consigo mesma, é um diálogo da especulação e da<strong>em</strong>piria” 411 . Deste mo<strong>do</strong> o processo dialógico é dialéctico, dual <strong>em</strong>cada la<strong>do</strong> da relação comunicativa.Deste mo<strong>do</strong> é exigência da filosofia <strong>de</strong>spertar o pensamento,pelo que para que exista comunicação há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> duvidar <strong>de</strong> si,duvidan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um certo conteú<strong>do</strong> b<strong>em</strong> como das significaçõessubjectivas <strong>do</strong> pensar individual.Feuerbach vê no filósofo sist<strong>em</strong>ático, engenhoso, que anula a<strong>de</strong>scoberta, o filósofo artista, referin<strong>do</strong>-se também à forma, ao rigor<strong>de</strong>dutivo. A história da filosofia, neste senti<strong>do</strong>, é vista como galeria<strong>do</strong>s artistas e pinacoteca <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>res e das obras-primas <strong>do</strong>pensamento 412 . Feuerbach opõe àquela filosofia a filosofia que flui,que não se escon<strong>de</strong> da vida n<strong>em</strong> fecha esta num sist<strong>em</strong>a, ou seja,promove a filosofia <strong>do</strong> <strong>futuro</strong>, da vida. Este tipo <strong>de</strong> filosofia está qu<strong>em</strong>das cisões e t<strong>em</strong> na elipse o seu brasão. Em oposição o círculo eracentrípeto e uniforme com os pontos a igual distância <strong>de</strong> um únicocentro fixo. O círculo é o símbolo da filosofia especulativa, <strong>do</strong>pensamento <strong>em</strong> si, a filosofia <strong>de</strong> Hegel. Pelo contrário a elipse t<strong>em</strong><strong>do</strong>is centros, representan<strong>do</strong> a polarida<strong>de</strong>, sen<strong>do</strong> símbolo da filosofiasensível, <strong>do</strong> pensamento apoia<strong>do</strong> na intuição. A elipse é símbolo darazão tolerante que dá lugar ao outro, ao que coexiste.Feuerbach discorda da uniformida<strong>de</strong>, <strong>do</strong> sist<strong>em</strong>a inflexível, <strong>do</strong>círculo. Em oposição exist<strong>em</strong> ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> múltiplos centrossimboliza<strong>do</strong>s por outras analogias geométricas: espiral, parábola ehipérbole. A que se po<strong>de</strong> acrescentar a linha recta e a folha. Porex<strong>em</strong>plo, a espiral revela um padrão acumulativo <strong>de</strong> crescimento,411 Ludwig FEUERBACH, Filosofia da Sensibilida<strong>de</strong>. Escritos, p. 58.412 I<strong>de</strong>m, p. 55.152


processos essenciais da vida. Mesmo nas espirais da pinha e <strong>do</strong>girassol notam-se espirais num senti<strong>do</strong> e noutro. O importante éverificar-se nestas analogias geométricas uma espécie <strong>de</strong> funçãoteleológica. Trata-se da filosofia antropológica, bipolar, tensional nãohaven<strong>do</strong> submissão <strong>de</strong> um ao outro 413 . A verda<strong>de</strong> não é n<strong>em</strong> realismo,n<strong>em</strong> i<strong>de</strong>alismo, n<strong>em</strong> materialismo, n<strong>em</strong> espiritualismo. A filosofianova procura o ponto firme, “o ponto <strong>de</strong> Arquime<strong>de</strong>s”, ponto <strong>de</strong>equilíbrio ou ponto <strong>de</strong> apoio, ou não será mais uma tábua <strong>de</strong> salvação,que permite ultrapassá-los? O único critério capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir acerca daverda<strong>de</strong> é a intuição. É nessa direcção que o pensamento efectua aruptura com o círculo, começan<strong>do</strong> a elaborar a elipse 414 .413Artur MORÃO, Tensão ou distensão entre Ciência e Fé religiosa,(www.lusosofia.net), Covilhã, 2008 p. 6: “No horizonte da consciência pessoal, asua harmonização tensiva e o seu equilíbrio cognitivo, realiza<strong>do</strong> <strong>em</strong> círculosdiversos mas com intersecções ontológicas, <strong>de</strong> nenhum mo<strong>do</strong> se revelamimpossíveis”. [Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 12/03/2009).414 Ludwig FEUERBACH, Princípios da Filosofia <strong>do</strong> Futuro, Princípio 48, p. 66: Opensamento idêntico consigo e contínuo faz, <strong>em</strong> contradição com a realida<strong>de</strong>efectiva, girar o mun<strong>do</strong> <strong>em</strong> torno <strong>do</strong> seu centro; mas o pensamento interrompi<strong>do</strong>pela observação da não uniformida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste movimento, portanto pela anomalia daintuição, transforma, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a verda<strong>de</strong>, este círculo numa elipse. O círculo éo símbolo e o brasão da filosofia especulativa, <strong>do</strong> pensamento que apenas se apoia<strong>em</strong> si mesmo – […]; a elipse, pelo contrário, é o símbolo e o brasão da fi1osoliasensível, <strong>do</strong> pensamento que se apoia na intuição”. [Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 28 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong>2009].153


QUINTA PARTE154


Do Hom<strong>em</strong> como indivíduo ao SerSocial.“A Trinda<strong>de</strong> era o mistério supr<strong>em</strong>o, o ponto central dafilosofia e da religião absolutas. Mas o seu segre<strong>do</strong> […]é o segre<strong>do</strong> da vida comum e social – o segre<strong>do</strong> danecessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> tu para o eu […]” 415 .415 Ludwig FEUERBACH, Princípios da Filosofia <strong>do</strong> Futuro, Princípio 63, p. 73.155


1. O hom<strong>em</strong> como ser social – Da relação Eu –Tu ao <strong>em</strong>ergir <strong>de</strong> uma nova teologia.O referi<strong>do</strong> anteriormente torna manifesto que Feuerbach seabria, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> claro, a uma reflexão sobre o que se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>nominarpor <strong>humano</strong>. Quer dizer, reflectir sobre o hom<strong>em</strong>, a única realida<strong>de</strong>que dá a todas as <strong>de</strong>mais o seu ser.O contexto cultural que assistiu ao nascer da sua filosofia levaa que a sua reflexão antropológica concluísse, penso que pornecessida<strong>de</strong>, pela incompletu<strong>de</strong> <strong>do</strong> que é o puro reflectir, pensar sobreo hom<strong>em</strong> visto na sua individualida<strong>de</strong>, da essência formal e abstracta<strong>do</strong> <strong>humano</strong>. Porém um ser que é pensar, que é predica<strong>do</strong>,<strong>de</strong>terminação <strong>do</strong> entendimento é um ser abstracto, logo não t<strong>em</strong> ser. Opensar clama para si a singularida<strong>de</strong>.[…] A essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> está contida apenas nacomunida<strong>de</strong>, na unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> com o hom<strong>em</strong> – umaunida<strong>de</strong> que, porém, se funda apenas na realida<strong>de</strong> dadistinção <strong>do</strong> eu e <strong>do</strong> tu 416 .416 Ludwig FEUERBACH, Princípios da Filosofia <strong>do</strong> Futuro, Princípio 59, p.72156


Feuerbach realiza uma reflexão sobre o hom<strong>em</strong> enquantoindivíduo mas que revelan<strong>do</strong>-se incompleto, <strong>de</strong>ve completar-se nacompreensão global, <strong>do</strong> que <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro é o hom<strong>em</strong>: um ser situa<strong>do</strong>num conjunto <strong>de</strong> relações com os outros homens, quer dizer, um sersocial. Assim, Feuerbach não inci<strong>de</strong> unicamente no la<strong>do</strong> sensível <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>, no seu aspecto subjectivo. Há, por isso, uma reflexão acercada comunida<strong>de</strong> humana e da humanida<strong>de</strong> como condição fundamentalna formação <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. É assim o pensar <strong>de</strong> Feuerbach no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>afirmar que só t<strong>em</strong> existência o que existe <strong>em</strong> simultâneo para o outroe para mim. No puro pensar o hom<strong>em</strong> é i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> com ele próprio.Por intermédio <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s o hom<strong>em</strong> é um ser real que se manifesta.Assim, o hom<strong>em</strong> só é eu para si e para outro como ser sensível. É pelacomunicação <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> com o hom<strong>em</strong> que as <strong>i<strong>de</strong>ia</strong>s surg<strong>em</strong>. Énecessária a existência <strong>de</strong> um outro hom<strong>em</strong> exterior a mim, pois “Averda<strong>de</strong>ira dialéctica não é um monólogo <strong>do</strong> pensa<strong>do</strong>r solitárioconsigo mesmo, é um diálogo entre o eu e o tu” 417 . Quer dizer, paraFeuerbach, a consciência real não prescin<strong>de</strong> <strong>do</strong> outro Eu para a suaconstrução como hom<strong>em</strong> sen<strong>do</strong>, por isso, necessária a comunicação.Neste senti<strong>do</strong>, há como que uma reinterpretação <strong>do</strong> conceito hegeliano<strong>de</strong> dialéctica, a saber, <strong>de</strong> que tu<strong>do</strong> o que foi dito <strong>do</strong> ser <strong>de</strong>ve ser dito<strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Assim, se toda a reflexão acerca <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> se <strong>de</strong>vecompreen<strong>de</strong>r como reflexão sobre o hom<strong>em</strong> concreto, então trata-se<strong>do</strong> hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> relação com os Outros, os outros homens. Nestesenti<strong>do</strong>, Feuerbach afirmaO hom<strong>em</strong> singular por si não possui <strong>em</strong> si aessência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> n<strong>em</strong> enquanto ser moral, n<strong>em</strong>enquanto ser pensante. A essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> estácontida apenas na comunida<strong>de</strong>, na unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>com o hom<strong>em</strong> – uma unida<strong>de</strong> que, porém, se fundaapenas na realida<strong>de</strong> da distinção <strong>do</strong> eu e <strong>do</strong> tu 418 .417 Ibi<strong>de</strong>m, Princípio 62.418 Ibi<strong>de</strong>m, Princípio 59.157


A consciência da existência <strong>do</strong> outro é necessária,imprescindível, porque é pelo outro que o universo e o mun<strong>do</strong> fora <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> adquir<strong>em</strong>, possu<strong>em</strong> senti<strong>do</strong>. Como é que isto acontece? Aexplicação <strong>de</strong> Feuerbach é que o outro faz surgir, produz no hom<strong>em</strong>,<strong>em</strong> si, uma consciência, a consciência da sua limitação. A isto chamasereconhecimento das coisas fora <strong>do</strong> ser <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Qu<strong>em</strong> objectiva aminha essência, o meu ser é o outro. Nesta questão está-se peranteuma experiência <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong>, pois há o reconhecimento <strong>de</strong> algoexterior ao meu ser. Há como que um <strong>de</strong>sferir um golpe na vaida<strong>de</strong> <strong>do</strong>Eu, por intermédio <strong>do</strong> Tu, ou seja, um outro Eu. A solidão, dizFeuerbach, é finitu<strong>de</strong>, limitação enquanto que a comunida<strong>de</strong> éinfinida<strong>de</strong> 419 . Isto mostra, segun<strong>do</strong> Feuerbach, que aquela abrangênciafoi o que a tradição filosófica r<strong>em</strong>eteu para algo restan<strong>do</strong> ao hom<strong>em</strong> asolidão, uma incompletu<strong>de</strong> aqui referida como finitu<strong>de</strong>. A abertura aoTu significa a liberda<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> entregue a si mesmo e perante umhorizonte <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s. Ora é o outro que é a ligação entre mim eo universo. Surge aqui uma <strong>de</strong>pendência <strong>do</strong> universo pois se é<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> outros homens, precisa <strong>de</strong>stes da<strong>do</strong> encontrar<strong>em</strong>-seabertos para o mun<strong>do</strong>. Pelo outro o hom<strong>em</strong> dá senti<strong>do</strong> ao mun<strong>do</strong>, aouniverso, tornan<strong>do</strong>-se claro e consciente <strong>de</strong> si próprio e é isto quetorna o mun<strong>do</strong> também claro. O ponto <strong>de</strong> vista natural <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> é oponto <strong>de</strong> vista da distinção Eu – Tu. O hom<strong>em</strong> perfeito e verda<strong>de</strong>ironão anula nada <strong>de</strong> si, “Homo sum, humani nihil a me alienum puto” 420 .O hom<strong>em</strong> que existisse só para si próprio não enten<strong>de</strong>ria o hom<strong>em</strong>enquanto hom<strong>em</strong> n<strong>em</strong> a natureza como natureza. O hom<strong>em</strong> para si éum hom<strong>em</strong> 421 , é o primeiro objecto <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. A filosofia nova faz <strong>do</strong>419 Ibi<strong>de</strong>m, Princípio 60, “A solidão é finitu<strong>de</strong> e limitação, a comunida<strong>de</strong> é liberda<strong>de</strong>e infinida<strong>de</strong>. O hom<strong>em</strong> para si é um hom<strong>em</strong> (no senti<strong>do</strong> habitual); o hom<strong>em</strong> com ohom<strong>em</strong> – a unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> eu e <strong>do</strong> tu – é Deus”.420 I<strong>de</strong>m, Princípio 55, p. 71.421 I<strong>de</strong>m, Princípio 60, p. 72.158


hom<strong>em</strong>, incluin<strong>do</strong> a natureza, o objecto único e da antropologia aciência universal 422 .Segun<strong>do</strong> Feuerbach, o hom<strong>em</strong> que se pensa a si mesmo, quequer saber da sua essência não <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>ixar-se cair no erro <strong>em</strong> quepermaneceu a filosofia até ao seu t<strong>em</strong>po, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-a <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>abstracto isolan<strong>do</strong>-a da contingência. É que tanto a moral como aconsciência afastam o hom<strong>em</strong> da sua situação. No entanto é esta quelhe dá senti<strong>do</strong> e realida<strong>de</strong>, pela qual po<strong>de</strong> ser entendi<strong>do</strong>, apoian<strong>do</strong>-sena razão que t<strong>em</strong> por essência o hom<strong>em</strong>, numa razão impregnada <strong>de</strong>carne e osso e sangue. É uma relação situada no <strong>do</strong>mínio dasensibilida<strong>de</strong>, numa filosofia da corporeida<strong>de</strong> 423 Há um feixe <strong>de</strong>relações interpessoais para <strong>de</strong>finir o hom<strong>em</strong>, isto é, um eu que para teruma correcta dimensionação <strong>de</strong> si precisa <strong>de</strong> uma relação necessária aum tu. O ponto <strong>de</strong> vista natural, Eu – Tu, é verda<strong>de</strong>iro e absoluto. Énesta unida<strong>de</strong> que se encontra o Deus <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, “o hom<strong>em</strong> com ohom<strong>em</strong> – a unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> eu e <strong>do</strong> tu – é Deus” 424 . Neste aspecto háteólogos que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que da relação Eu – Tu po<strong>de</strong> <strong>em</strong>ergir umanova teologia. Ou seja, <strong>do</strong> encontro <strong>do</strong> Eu com o Tu, o Outro hom<strong>em</strong>,pela comunicação e partilha po<strong>de</strong> ressurgir o encontro com Deus.Não estar<strong>em</strong>os perante o lançar <strong>do</strong>s alicerces antropológicos,<strong>futuro</strong>s, <strong>do</strong> que se possa antever como uma reflexão originariamentecristã? Que alteração fez Feuerbach?Estamos perante um humanismo religioso, pois Feuerbach não<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> r<strong>em</strong>eter para um mo<strong>de</strong>lo abstracto, <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>, aindaque realçan<strong>do</strong> o ponto <strong>de</strong> vista prático <strong>do</strong> ser <strong>humano</strong>, sen<strong>do</strong> este um<strong>do</strong>s eixos influencia<strong>do</strong>res <strong>de</strong> Marx, Engels 425 . Só <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong> ohom<strong>em</strong> chegará a si mesmo <strong>em</strong> toda a sua amplitu<strong>de</strong>, dimensão. É esta422 I<strong>de</strong>m, Princípio 54, p. 71.423 Adriana Veríssimo SERRÃO, A Humanida<strong>de</strong> da Razão, Fundação CalousteGulbenkian, Lisboa, 1999, p. 219.424 Ludwig FEUERBACH, Princípios da Filosofia <strong>do</strong> Futuro, Princípio 60, p. 72.425 Enten<strong>de</strong>-se que o humanismo vai ter aceitação por parte <strong>de</strong> Marx.159


dimensão que tinha si<strong>do</strong> s<strong>em</strong>pre atribuída pela antiga filosofia, pelatradição filosófica a outr<strong>em</strong>, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> o <strong>humano</strong> numa situação <strong>de</strong>solidão, isto é, <strong>de</strong> limitação e finitu<strong>de</strong>. Essa amplitu<strong>de</strong> encontra-se naliberda<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, entregue a si mesmo, numa constantere<strong>de</strong>scoberta, <strong>em</strong> si, <strong>de</strong> possíveis.A completu<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> – um novo mo<strong>de</strong>lointerpretativo.“Homo sum, humani nihil a me alienum puto” 426 .A diferença entre o hom<strong>em</strong> para si e o hom<strong>em</strong> com o hom<strong>em</strong>,entre o da<strong>do</strong> e o possível, o finito e o infinito, só se realizará <strong>em</strong>plenitu<strong>de</strong> pelo assumir <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> si mesmo a trinda<strong>de</strong> da razão,da vonta<strong>de</strong> e <strong>do</strong> coração, completan<strong>do</strong>-a nas interconexões infinitasdas relações sociais. É o passar <strong>do</strong> indivíduo para a comunida<strong>de</strong> quepermite o “fechar” <strong>do</strong> edifício da filosofia feuerbachiana 427 . É umhom<strong>em</strong> que não é mais individual, pois recebe da cultura e dahumanida<strong>de</strong>, das relações sociais, <strong>em</strong> comunida<strong>de</strong> o seu po<strong>de</strong>r<strong>humano</strong> é infinito. Trata-se <strong>de</strong> afirmar a Humanida<strong>de</strong>, o género, e o<strong>futuro</strong> <strong>do</strong> qual é responsável. Quer dizer, Feuerbach ao fazer aquelatransposição – <strong>do</strong> indivíduo para o colectivo – revela-se como umaalternativa crítica à filosofia <strong>de</strong> Hegel, pois esta mostrava-se como amaneira máxima e última <strong>de</strong> interpretação da realida<strong>de</strong>. Nesta forma ohom<strong>em</strong> e a sua liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong>svaneciam-se perante a presença absoluta<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> prussiano, visto como encarnação da razão histórica.426 Ludwig FEUERBACH, Princípios da Filosofia <strong>do</strong> Futuro, Princípio 55, p. 71.427 Ibi<strong>de</strong>m, Princípio 61, “O filósofo absoluto, <strong>em</strong> analogia com o l`état c´est moi <strong>do</strong>monarca absoluto e l`être c`est moi <strong>do</strong> Deus absoluto, dizia ou, pelo menos, pensava<strong>de</strong> si, enquanto pensa<strong>do</strong>r naturalmente, não como hom<strong>em</strong>: la vérité c`est moi. Ofilósofo <strong>humano</strong>, pelo contrário, diz: no próprio pensamento, também enquantofilósofo, sou um hom<strong>em</strong> com os homens”.160


Todavia Feuerbach reenvia-nos para o mo<strong>de</strong>lo teológicoternário, e para a sua completu<strong>de</strong> numa unida<strong>de</strong> superior 428 . Querdizer, esta referência apontada a Hegel como sen<strong>do</strong> o cerne <strong>de</strong> to<strong>do</strong> oseu sist<strong>em</strong>a filosófico, é recuperada pelo próprio Feuerbach. Somosr<strong>em</strong>eti<strong>do</strong>s para ela.Assim, <strong>em</strong> que medida é que o hom<strong>em</strong> concreto a queFeuerbach se refere, não é ele mesmo uma abstracção <strong>em</strong> senti<strong>do</strong>filosófico? Deste mo<strong>do</strong>, será que Feuerbach evitou mesmo os perigos,as dificulda<strong>de</strong>s que apontou nos ataques à tradição filosófica que oantece<strong>de</strong>u?A trinda<strong>de</strong> humana que adquire a sua verda<strong>de</strong>ira dimensão narelação comunitária, não está isenta da crítica que Feuerbach <strong>de</strong>sferiuà tradição filosófica anterior. Por isso, po<strong>de</strong> ser vista como mais umparadigma interpretativo, hermenêutico, uma abstracção <strong>do</strong> que ohom<strong>em</strong> possivelmente seja.Porém, pensa-se que o reforçar, por Feuerbach, da dimensãoprática <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> contraposição à sua sobrevalorizada dimensãoteórica <strong>de</strong>ve ser um aspecto a consi<strong>de</strong>rar, pois possibilitou a abertura<strong>de</strong> novas perspectivas à filosofia que se lhe seguiu, sen<strong>do</strong> este aspectouma das bases que influenciou o pensamento filosófico <strong>de</strong> Marx eEngels b<strong>em</strong> como <strong>de</strong> toda a corrente filosófica que viria a inspirar-senestes <strong>do</strong>is pensa<strong>do</strong>res.Para Feuerbach o <strong>humano</strong> é a única dimensão queverda<strong>de</strong>iramente existe. Só o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> <strong>humano</strong> é verda<strong>de</strong>iramente428 I<strong>de</strong>m, Princípio 63, p. 73: “A Trinda<strong>de</strong> era o mistério supr<strong>em</strong>o, o ponto central dafilosofia e da religião absolutas. Mas o seu segre<strong>do</strong>, como se provou histórica efilosoficamente <strong>em</strong> A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, é o segre<strong>do</strong> da vida comum e social– o segre<strong>do</strong> da necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> tu para o eu – a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> que nenhum ser, quer sejaou se chame hom<strong>em</strong> ou Deus, espírito ou eu, é apenas por si mesmo um serverda<strong>de</strong>iro, perfeito e absoluto, e que só a ligação, a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seres <strong>de</strong> idênticaessência constitui a verda<strong>de</strong> e a perfeição. O princípio supr<strong>em</strong>o e último da filosofiaé, pois, a unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> com o hom<strong>em</strong>. Todas as relações fundamentais – osprincípios das diferentes ciências – são unicamente espécies e mo<strong>do</strong>s diferentes<strong>de</strong>sta unida<strong>de</strong>”.161


eal. Por isso, a referência a <strong>do</strong>mínios exteriores e diferentes <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada falsa, pois a sua realida<strong>de</strong> é umailusão, exterior ao hom<strong>em</strong>, não sen<strong>do</strong> senão uma projecção. Nestesenti<strong>do</strong> fazer ou tentar fazer <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> algo <strong>de</strong> diferente <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>no seu to<strong>do</strong>, é ir por um caminho enviesa<strong>do</strong>, pois o próprio hom<strong>em</strong> é averda<strong>de</strong>ira trinda<strong>de</strong>, o princípio e fim <strong>de</strong> toda a filosofia.Se se pu<strong>de</strong>r falar <strong>de</strong> sist<strong>em</strong>a <strong>em</strong> Feuerbach pensa-se que é esseo motivo pelo qual t<strong>em</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fechar o círculo por umareflexão sobre a relação <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> com outros homens, sobre arelação Eu-Tu, isto é, <strong>de</strong> uma reflexão sobre a própria socieda<strong>de</strong>.Naturalização <strong>do</strong> indivíduo. A sensibilida<strong>de</strong>.Virag<strong>em</strong>A seguir aos três primeiros momentos da primeira parte <strong>de</strong> “AEssência <strong>do</strong> Cristianismo”, apresentam-se predica<strong>do</strong>s <strong>do</strong> processoteomórfico e mostram-se dimensões <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> finito e <strong>em</strong>pírico. Sãoaspectos revela<strong>do</strong>res <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio íntimo e secreto <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>: é osegre<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo e da carne; o <strong>do</strong> sofrimento e passionalida<strong>de</strong>; da vidasocial; da imag<strong>em</strong> e da palavra e a experiência <strong>do</strong> diálogo. Trata-se<strong>do</strong>s el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> uma Antropologia <strong>em</strong>pírica 429 .Feuerbach volta ao finito elaboran<strong>do</strong> a estrutura <strong>de</strong>ssa finitu<strong>de</strong>,valorizan<strong>do</strong> esse <strong>do</strong>mínio, restituin<strong>do</strong>-lhe os atributos perdi<strong>do</strong>s.Feuerbach ao inverter a filosofia <strong>de</strong> Hegel fê-lo pararevalorizar a natureza e para relevar o mo<strong>do</strong> como o ser <strong>humano</strong>429 I<strong>de</strong>m. Ver ainda, Adriana Veríssimo SERRÃO, Da razão ao hom<strong>em</strong> ou o lugarsist<strong>em</strong>ático <strong>de</strong> A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, in Pensar Feuerbach, J. Barata-MOURA,V. Soromenho MARQUES, p. 16.162


partilha, participa <strong>de</strong>ssa natureza. Feuerbach não se limitou a umaredução <strong>do</strong> <strong>humano</strong> ao natural. Foi, no entanto, mais além, acaban<strong>do</strong>por reconduzir os atributos <strong>do</strong> ser e <strong>de</strong> Deus (infinito e perfeito) para onovo ser <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, finito <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da teologia b<strong>em</strong> como dametafísica.Numa obra sua <strong>de</strong> 1842, ilustra, por um la<strong>do</strong> o referi<strong>do</strong> e poroutro revela a alteração da sua filosofia, <strong>em</strong> especial a partir da obra“Essência <strong>do</strong> Cristianismo”. Essa virag<strong>em</strong> irá tratar da naturezahumana e <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Ten<strong>do</strong> por referência a obra mencionada,Feuerbach i<strong>de</strong>ntifica os atributos <strong>em</strong> geral da<strong>do</strong>s a Deus pelasreligiões antigas com a natureza,A natureza é a essência que não se distingue daexistência, o hom<strong>em</strong> é a essência que se distingue daexistência. A essência não distinta é o fundamento daessência que distingue – a natureza é, pois, ofundamento <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> 430 .Assim, o hom<strong>em</strong> surge <strong>do</strong> universo da totalida<strong>de</strong> da matéria,distinguin<strong>do</strong>-se da natureza pois, nele, o seu ser, o nível da imediatezprópria não se confun<strong>de</strong> com a sua existência porque esta aparececomo um processo complexo <strong>de</strong> unificação e integração da suaessência. Esta é elevada a um novo estatuto. A nova filosofia positivaé o hom<strong>em</strong> que é e se sabe que é a essência auto-consciente danatureza., mas também <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, da história e da religião. O hom<strong>em</strong>é uma essência passível <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminações.Feuerbach, à s<strong>em</strong>elhança <strong>de</strong> Hegel, irá apoiar-se no paradigmateológico ternário, para construir a sua filosofia. Assim,O segre<strong>do</strong> da teologia é a antropologia, mas osegre<strong>do</strong> da filosofia especulativa é a teologia – ateologia especulativa que se distingue da teologiacomum, porque transpõe para o aquém, isto é, actualiza,430 Ludwig FEUERBACH, Teses provisórias para a reforma da Filosofia, p. 16.163


<strong>de</strong>termina e realiza a essência divina que a outra, porme<strong>do</strong> e estupi<strong>de</strong>z, exilava para o além 431 .É este aspecto <strong>de</strong> volta à antropologia que revela uma vertenteoriginal, própria da filosofia feuerbachiana, mostran<strong>do</strong> um filósofohumanista, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> regresso ao hom<strong>em</strong>. Feuerbach dialoga coma máxima “Conhece-te a ti mesmo” <strong>em</strong> que presencia um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vero hom<strong>em</strong> unifica<strong>do</strong>, melhor dizen<strong>do</strong>, o hom<strong>em</strong> perfeito (com razão,coração e senti<strong>do</strong>s). É uma <strong>do</strong>utrina da sensibilida<strong>de</strong> e daindividualida<strong>de</strong>. A razão s<strong>em</strong>pre foi atribuída ao hom<strong>em</strong>, mas agora éacrescenta<strong>do</strong> o coração 432 . Este quer “objectos, seres reais,sensíveis” 433 . A ambas Feuerbach acrescenta os senti<strong>do</strong>s, tambémesqueci<strong>do</strong>s. O hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>scobre-se como unida<strong>de</strong> das dimensões nadirecção <strong>em</strong> que se po<strong>de</strong> lançar, prolongar. Até aqui aquela projecção<strong>do</strong> hom<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre se realizou no campo da ruptura, cisão no própriohom<strong>em</strong>, da finitu<strong>de</strong> para o exterior numa imag<strong>em</strong> infinita. Todavia,com Feuerbach, o hom<strong>em</strong> inicia a tomada <strong>de</strong> consciência <strong>de</strong> que aunida<strong>de</strong> no hom<strong>em</strong> po<strong>de</strong> orientar para potencialida<strong>de</strong>s infinitas. Ainfinitu<strong>de</strong> e perfeição até aqui s<strong>em</strong>pre atribuídas a “Outro” são agoraresulta<strong>do</strong> das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> combinação daquelas. Segun<strong>do</strong>Feuerbach é pela tomada <strong>de</strong> consciência <strong>de</strong>sta unida<strong>de</strong> que o hom<strong>em</strong>se auto afirma orientan<strong>do</strong> para uma maneira <strong>de</strong> ver alegre e positiva<strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Alegre por orientar para a perfeição, sentin<strong>do</strong>-se satisfeitocom a sua figura. Positiva, porque r<strong>em</strong>ete para o <strong>humano</strong> aquilo que areligião e a metafísica lhe roubaram. Por isso a consciência é a autoactivação,auto-afirmação, amor <strong>de</strong> si. Consciência é o sinalcaracterístico <strong>de</strong> um ser perfeito.431 I<strong>de</strong>m, p. 1.432 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 49: “O hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong>, porisso, <strong>de</strong> afirmar e objectivar não apenas o po<strong>de</strong>r da lei, essência <strong>do</strong> entendimento,mas também o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> amor, a essência <strong>do</strong> coração (…)”.433 Adriana Veríssimo SERRÃO, A Humanida<strong>de</strong> da Razão, Fundação CalousteGulbenkian, Lisboa, 1999, p. 224.164


O verda<strong>de</strong>iro serO que é verda<strong>de</strong>iramente a essência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, da qual ele t<strong>em</strong>consciência, ou o que é que constitui o género, a humanida<strong>de</strong> nohom<strong>em</strong>? A resposta é apresentada pela existência <strong>de</strong> três faculda<strong>de</strong>s: arazão, a vonta<strong>de</strong> e o coração cuja unida<strong>de</strong> faz <strong>em</strong>ergir a unida<strong>de</strong> <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>: “Um verda<strong>de</strong>iro ser é um ser que pensa, ama e quer” 434 . Ohom<strong>em</strong> existe para pensar, para amar e para querer. A razão engloba acapacida<strong>de</strong> cognoscitiva e <strong>de</strong> imaginação. O coração representa acapacida<strong>de</strong> afectiva <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. A vonta<strong>de</strong> representa a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>querer, atingin<strong>do</strong> a sua completu<strong>de</strong> no <strong>do</strong>mínio da liberda<strong>de</strong>. Overda<strong>de</strong>iro ser é o ser que pensa, ama e quer e “Verda<strong>de</strong>iro, perfeito,divino é apenas o que existe <strong>em</strong> função <strong>de</strong> si” 435 . É a trinda<strong>de</strong> divinano hom<strong>em</strong>, encontran<strong>do</strong>-se acima <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> singular, individual.Assim, amar é ser intimamente com o outro 436 , s<strong>em</strong> ser o outro. Avonta<strong>de</strong> e o amor são po<strong>de</strong>res divinos.Para Feuerbach o hom<strong>em</strong> nada é s<strong>em</strong> objecto, pois esse objectoé a sua essência própria, objectiva. É o objecto que possibilita aohom<strong>em</strong> tornar-se consciente <strong>de</strong> si, da<strong>do</strong> que a consciência <strong>do</strong> objecto é“a consciência <strong>de</strong> si <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>” 437 . Até on<strong>de</strong> chega a essência <strong>do</strong>hom<strong>em</strong>, o seu sentimento ilimita<strong>do</strong> significa ser-se Deus até aí.434 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 11.435 Ibi<strong>de</strong>m.436 Adriana Veríssimo SERRÃO, A Humanida<strong>de</strong> da Razão, Fundação CalousteGulbenkian, Lisboa, 1999, p. 229.437 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 13.165


O saber <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> sobre si mesmoFeuerbach ao r<strong>em</strong>eter, reconduzir para o campo <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> asua essência que foi lançada para fora <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, torna imanente areflexão acerca <strong>de</strong> Deus e sobre o ser, conce<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ao hom<strong>em</strong> adimensão transcen<strong>de</strong>nte que só havia si<strong>do</strong> atribuída, concedida a Deuse ao ser. O objecto religioso está no próprio hom<strong>em</strong>. Daí a diferençarelativamente ao objecto exterior, sensível 438 . Assim, o hom<strong>em</strong>restituí<strong>do</strong> <strong>de</strong> todas as suas faculda<strong>de</strong>s t<strong>em</strong> <strong>de</strong> ser repensa<strong>do</strong> ten<strong>do</strong> <strong>em</strong>vista, da parte da filosofia, construir <strong>em</strong> volta <strong>de</strong>le um novo edifício,no caso antropologia. Quer dizer, enquanto na perspectiva da filosofiada religião, teologia, “O saber <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> sobre Deus é o saber <strong>de</strong>Deus sobre si mesmo” 439 , agora, na perspectiva da razão natural, há avalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um princípio contrário “O saber <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> sobre Deus é osaber <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> sobre si mesmo” 440 . Há nisto uma tautologia, pois oque para o hom<strong>em</strong> é Deus, isso é o seu espírito e vice-versa. Deus é olançar para fora <strong>do</strong> si mesmo <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Daí ser pertinente adiferença na religião, da consciência <strong>de</strong> si <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> que é aconsciência <strong>de</strong> Deus, da falta da consciência que o hom<strong>em</strong> religiosot<strong>em</strong> <strong>de</strong> que a consciência que possui <strong>de</strong> Deus seja a consciência <strong>de</strong> sida sua essência. Assim, só com o hom<strong>em</strong> se compreen<strong>de</strong> a essênciaque revela a religião ao hom<strong>em</strong>. É este um momento importante: oque anteriormente houvera si<strong>do</strong> intuí<strong>do</strong> e a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> como Deus é agoramanifesto, conheci<strong>do</strong> como algo <strong>de</strong> <strong>humano</strong>. A essência divina é aessência humana.438 I<strong>de</strong>m, p. 22.439 Ibi<strong>de</strong>m. Cf nota **.440 Ibi<strong>de</strong>m. Cf nota **.166


Está-se perante um projecto não <strong>de</strong> ateísmo, mas <strong>de</strong> novohumanismo, pois quan<strong>do</strong> se refere à relação entre predica<strong>do</strong>s eantropomorfismos também a crença <strong>de</strong> que existe Deus seria umpressuposto <strong>humano</strong>. Porém, no ser sujeito surge a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Deus e os predica<strong>do</strong>s surg<strong>em</strong> da activida<strong>de</strong> <strong>do</strong> pensar. O hom<strong>em</strong>existe primeiro e é ele a condição <strong>do</strong>s predica<strong>do</strong>s. O ser <strong>do</strong> sujeitoencontra-se no predica<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> este a verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> sujeito. Daí que ospredica<strong>do</strong>s divinos sejam <strong>de</strong>terminações da essência humana, <strong>do</strong>mesmo mo<strong>do</strong> o sujeito <strong>de</strong>sses predica<strong>do</strong>s é <strong>de</strong> essência humana. Ospredica<strong>do</strong>s são <strong>de</strong>terminações unicamente humanas. No <strong>do</strong>mínio dareligião o hom<strong>em</strong> comporta-se para Deus como para com a suaessência. Os predica<strong>do</strong>s são verda<strong>de</strong>s, coisas. Para a religião ospredica<strong>do</strong>s revelam a essência <strong>de</strong> Deus. A razão quan<strong>do</strong> reflecte sobrea religião nega-se porque os enten<strong>de</strong> como imagens 441 . No entanto,aquilo que é da<strong>do</strong> ao Deus <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> é da<strong>do</strong> ao hom<strong>em</strong> ele mesmo,isto é, o que o hom<strong>em</strong> diz, afirma <strong>de</strong> Deus é <strong>de</strong> si próprio que oafirma. Há, aqui, o fundar <strong>de</strong> algo peculiar, específico na religião. Ohom<strong>em</strong> religioso afirma a activida<strong>de</strong> humana ao fazer <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> ofim <strong>de</strong> Deus, sen<strong>do</strong> um meio da salvação humana. Assim, o hom<strong>em</strong> sóaparent<strong>em</strong>ente é rebaixa<strong>do</strong>, pois o hom<strong>em</strong> visa-se a si próprio <strong>em</strong>Deus. Na religião acontece o mesmo que no coração: o hom<strong>em</strong> lançasepara fora <strong>de</strong> si, negan<strong>do</strong>-se para <strong>em</strong> seguida voltar ao seu coração,receben<strong>do</strong> nele a essência rejeitada.Deste mo<strong>do</strong>, o hom<strong>em</strong> é restituí<strong>do</strong> <strong>de</strong> todas as suas faculda<strong>de</strong>s.Deve repensar-se, <strong>em</strong> torno <strong>de</strong>le, ten<strong>do</strong> <strong>em</strong> vista fazer-se pela filosofiaa construção <strong>de</strong> um nova estrutura, <strong>em</strong>bora Feuerbach só tenhalança<strong>do</strong> as suas bases: a Antropologia. É que “Essência <strong>do</strong>Cristianismo” ainda é uma obra sist<strong>em</strong>ática, copiada da teologia. No441 I<strong>de</strong>m, pp. 33, 34.167


entanto já não se preten<strong>de</strong> um sist<strong>em</strong>a fecha<strong>do</strong>, totalida<strong>de</strong>, porque háabertura histórica, um abrir ao <strong>futuro</strong>.O Hom<strong>em</strong> medida“Mas é só pelos senti<strong>do</strong>s que o eu é não-eu” 442 .Está-se perante um espírito novo que dá a conhecer arestituição <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> total no âmbito <strong>de</strong> uma nova antropologia.Feuerbach aban<strong>do</strong>na o méto<strong>do</strong> da inversão passan<strong>do</strong> a incidir sobreuma análise da existência, dan<strong>do</strong> os novos princípios da compreensãoda existência: a sensibilida<strong>de</strong> e a individualida<strong>de</strong>. A nova filosofiaantropológica pensa o concreto <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> concretoQue reconhece o real na sua afectivida<strong>de</strong> (…) opensamento realiza<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve ser algo diverso <strong>do</strong>pensamento não realiza<strong>do</strong>, <strong>do</strong> simples pensamento. […]O que é então este não-pensar, este el<strong>em</strong>ento distinto <strong>do</strong>pensar? O sensível. A realida<strong>de</strong> da I<strong>de</strong>ia é, pois, asensibilida<strong>de</strong>, mas a realida<strong>de</strong>, a verda<strong>de</strong> a I<strong>de</strong>ia –portanto – a sensibilida<strong>de</strong> é a sua verda<strong>de</strong>. (…) 443 .No princípio 32 Feuerbach mostra duas linhas orienta<strong>do</strong>ras davirag<strong>em</strong> levada a cabo pela nova filosofia antropológica: asensibilida<strong>de</strong> e a individualida<strong>de</strong>. Para Feuerbach to<strong>do</strong> o real se reduzaos senti<strong>do</strong>s 444 . A nova filosofia reconhece o hom<strong>em</strong> como um sersensível, uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> corpo e consciência, tu<strong>do</strong> nele ganhasenti<strong>do</strong>. É uma espécie <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> medida que Feuerbach quer afirmar442 Ludwig FEUERBACH, Princípios da Filosofia <strong>do</strong> Futuro, Princípio 32, p. 52.443 I<strong>de</strong>m, p. 51, Princípio 31. Ver ainda Princípio 32.444 I<strong>de</strong>m, p. 52, “O real na sua realida<strong>de</strong> efectiva, ou enquanto real, é o real enquantoobjecto <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, é o sensível. Verda<strong>de</strong>, realida<strong>de</strong> e sensibilida<strong>de</strong> são idênticas.Só um ser sensível é um ser verda<strong>de</strong>iro e efectivo. Apenas através <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s é queum objecto é da<strong>do</strong> numa verda<strong>de</strong>ira acepção – e não mediante o pensar por simesmo”.168


como fundamento <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, com mo<strong>de</strong>lo único <strong>de</strong> toda a realida<strong>de</strong>, quetu<strong>do</strong> ganha senti<strong>do</strong> nele. Existe como corpo e como corpo é nomun<strong>do</strong>. Pelos senti<strong>do</strong>s o hom<strong>em</strong> relaciona-se com o mun<strong>do</strong>, omaterial. O hom<strong>em</strong> é uma realida<strong>de</strong> individual. A nova filosofiareconhece a verda<strong>de</strong> na sensibilida<strong>de</strong>, com consciência.É encontrar para o corpo, se<strong>de</strong> <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, um novo estatuto,integran<strong>do</strong> o corpo, inseparável <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, na sua própria essência.Feuerbach revaloriza o corpo.Como já foi referi<strong>do</strong>, Feuerbach menciona que a trinda<strong>de</strong>divina foi restituída ao hom<strong>em</strong>. Com esta afirmação o filósofopretendia assimilar, num conjunto, a razão e os senti<strong>do</strong>s, b<strong>em</strong> como aafectivida<strong>de</strong>. Esta esteve s<strong>em</strong>pre indissociada daqueles pela religião. É<strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong> que a nova filosofia se propõe como alternativa à religião,pois era importante restituir ao hom<strong>em</strong> o seu coração, facto s<strong>em</strong> o qualo hom<strong>em</strong> religioso continuaria separa<strong>do</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> que sente e <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> que pensa 445 . Há, assim, uma unida<strong>de</strong> entre razão e hom<strong>em</strong>incarnada no género <strong>humano</strong>, como figura divina.O hom<strong>em</strong> é, para Feuerbach, não só um ser que sente e quepensa mas também um ser passional 446 . A reflexão <strong>de</strong> pen<strong>do</strong>rantropológico po<strong>de</strong> ser notada na síntese <strong>do</strong> pensamentofeuerbachiano, na proposta <strong>de</strong> um novo imperativo categórico:445 I<strong>de</strong>m, pp. 54, 55, “A nova filosofia funda-se na verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> amor, na verda<strong>de</strong> <strong>do</strong>sentimento. É no amor, no sentimento <strong>em</strong> geral, que cada hom<strong>em</strong> reconhece averda<strong>de</strong> da nova filosofia. A nova filosofia, relativamente à sua base, nada mais é <strong>do</strong>que a essência <strong>do</strong> sentimento elevada à consciência – afirma apenas na e com arazão o que cada hom<strong>em</strong> – o hom<strong>em</strong> real – reconhece no coração. Ele é o coraçãoeleva<strong>do</strong> ao entendimento. O coração não quer objectos e seres abstractos,metafísicos ou teológicos – quer objectos e seres reais e sensíveis”.446 I<strong>de</strong>m, Princípio 39, p. 57: “A antiga filosofia absoluta rejeitou os senti<strong>do</strong>s para o<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s fenómenos, da finitu<strong>de</strong>; e, no entanto, <strong>de</strong>terminou contraditoriamente oabsoluto, o divino, como o objecto da arte. Mas o objecto da arte – mediatamentenas belas artes, e imediatamente nas artes plásticas – é objecto da vista, <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong> e<strong>do</strong> tacto. Portanto, não é só finito, o fenómeno, mas também a essência verda<strong>de</strong>ira edivina que é objecto <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s – os senti<strong>do</strong>s são o órgão <strong>do</strong> absoluto. A arte“representa a verda<strong>de</strong> no sensível” – correctamente compreendi<strong>do</strong> e expresso istosignifica: a até representa a verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> sensível.”169


Não queiras ser filósofo na discriminação quantoao hom<strong>em</strong>; sê apenas um hom<strong>em</strong> que pensa; não pensescomo pensa<strong>do</strong>r, isto é, numa faculda<strong>de</strong> arrancada àtotalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ser <strong>humano</strong> real e para si isolada; pensacomo ser vivo e real, exposto às vagas vivificantes erefrescantes <strong>do</strong> oceano <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, como m<strong>em</strong>bro <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>, e não no vazio da abstracção como uma mónadaisolada, como monarca absoluto, como um <strong>de</strong>usindiferente e exterior ao mun<strong>do</strong> – po<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>pois, estarcerto <strong>de</strong> que os teus pensamentos são unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ser e<strong>de</strong> pensar 447 .Para Feuerbach o <strong>humano</strong> é a única dimensão queverda<strong>de</strong>iramente existe. Só o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> <strong>humano</strong> é verda<strong>de</strong>iramentereal. Por isso, a referência a <strong>do</strong>mínios exteriores e diferentes <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada falsa, pois a sua realida<strong>de</strong> é umailusão, exterior ao hom<strong>em</strong>, não sen<strong>do</strong> senão um lançar para fora. Aafirmação “unitas hominum nihil aliud exprimat significetque, quamunitat<strong>em</strong> rationis ipsius” 448 . Assim, fazer ou tentar fazer <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>algo <strong>de</strong> diferente <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> no seu to<strong>do</strong>, é ir por um caminhoenviesa<strong>do</strong>, pois o próprio hom<strong>em</strong> é a verda<strong>de</strong>ira trinda<strong>de</strong>, o princípio efim <strong>de</strong> toda a filosofia. É o estabelecer uma reversibilida<strong>de</strong> entre o<strong>humano</strong> e a razão. Quer dizer a razão situa-se no mun<strong>do</strong> <strong>humano</strong>,lugar da sua manifestação. Trata-se <strong>de</strong> negar uma transcendênciaSe pu<strong>de</strong>rmos falar <strong>de</strong> sist<strong>em</strong>a <strong>em</strong> Feuerbach penso que é esse omotivo pelo qual t<strong>em</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fechar o “círculo” melhor,afirmar a elipse, por uma reflexão sobre a relação <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> comoutros homens, sobre a relação Eu-Tu, isto é, <strong>de</strong> uma reflexão sobre aprópria socieda<strong>de</strong> como acima foi referi<strong>do</strong>. Neste aspecto há opermanecer da Humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> aos laços existentes entre osindivíduos, sen<strong>do</strong> a razão a condição real possibilita<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> género447 I<strong>de</strong>m, Princípio 51, p. 68.448 Ludwig Feuerbach, De ratione, una, universalis, infinita, in Adriana VeríssimoSERRÃO, A Humanida<strong>de</strong> da Razão, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1999,p. 33.170


<strong>humano</strong>. Assim, a razão revela-se na relação entre os indivíduos e navida <strong>em</strong> socieda<strong>de</strong> na forma <strong>de</strong> “comunitas sive univrsitatis” 449 . Dest<strong>em</strong>o<strong>do</strong>, há diferença entre os planos da sensibilida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> sentimento.Pelo primeiro dá-se uma união entre qu<strong>em</strong> sente e o que sente. Nosegun<strong>do</strong>, há uma comunhão entre os indivíduos, referin<strong>do</strong>-se um certorelativismo pois o outro é outro eu que t<strong>em</strong> individualida<strong>de</strong>.Ao nível <strong>do</strong> pensamento abre-se uma relação universal, poisnaquele há a união ao que há comum a to<strong>do</strong>s os homens, àHumanida<strong>de</strong>. Por isso quan<strong>do</strong> cada ser <strong>humano</strong> pensa é nasimultaneida<strong>de</strong> eu e outro, relação universal, união a to<strong>do</strong>s, àHumanida<strong>de</strong>. Por isso, quan<strong>do</strong> cada um pensa é ao mesmo t<strong>em</strong>po eu eoutro, um outro “alter omnino” 450 . Daí ser no pensamento que está aessência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, o absoluto <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> – “cogitatio ergo hominumabsoluta est essentia” 451 razão e ser universal e genérico.449 I<strong>de</strong>m, p. 35.450 Ibi<strong>de</strong>m.451 I<strong>de</strong>m, p. 36.171


2. I<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> FuturoNo Prefácio da segunda edição <strong>de</strong> A Essência <strong>do</strong> Cristianismo“já se anuncia com toda a clareza a transformação <strong>de</strong> uma filosofiapre<strong>do</strong>minante crítica numa filosofia <strong>do</strong>utrinal e positiva, b<strong>em</strong> como apassag<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma filosofia da razão a uma filosofia <strong>do</strong> Hom<strong>em</strong>” 452 .Nos Escritos, Necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma Reforma da Filosofia, As TesesProvisórias para a Reforma da Filosofia e os Princípios da Filosofia<strong>do</strong> Futuro há toda uma referência a uma filosofia nova como filosofia452 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. [XXI].172


<strong>do</strong> <strong>futuro</strong>. São como o lançar <strong>do</strong>s alicerces <strong>de</strong>ssa Filosofia ouAntropologia que terá como âmago a vida <strong>do</strong>s homens reais,concretos, a existência humana incarnada no concreto e no social.A Filosofia Antropológica <strong>de</strong> Feuerbach preten<strong>de</strong> fazer areconstrução da unida<strong>de</strong> humana, o dualismo antropológico no lugar<strong>do</strong>s dualismos tradicionais, “Verda<strong>de</strong> é o hom<strong>em</strong>, não a razão inabstracto, a vida, não o pensamento que fica no papel […]” 453 .Feuerbach refere que os seus pensamentos resultam <strong>de</strong> factosobjectivos, rejeitan<strong>do</strong> a especulação imaterial, necessitan<strong>do</strong> <strong>do</strong>ssenti<strong>do</strong>s para pensar. Pensar a partir <strong>do</strong> objecto. Por isso crê “ […] qu<strong>em</strong>uitas coisas […] são tidas hoje <strong>em</strong> dia como fantasia, como <strong>i<strong>de</strong>ia</strong>jamais realizável, até como simples quimera, existirão <strong>em</strong> plenarealida<strong>de</strong> já amanhã, isto é, no próximo século – […]” 454 . T<strong>em</strong>os,assim, por um la<strong>do</strong> um realismo teórico e, por outro, um i<strong>de</strong>alismoprático como duas formas <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a Filosofia Antropológica. Poressa razão “ no <strong>do</strong>mínio da filosofia teórica […] apenas são váli<strong>do</strong>spara mim o realismo, o materialismo, na acepção indicada” 455 . Afilosofia teórica está ligada à vida, às coisas imensas fora <strong>de</strong> nós epossui um princípio que t<strong>em</strong> por base a prática, confirma<strong>do</strong> noconcreto, “o princípio <strong>de</strong> uma filosofia nova essencialmente diferenteda filosofia velha;” 456 e que é inerente “à essência verda<strong>de</strong>ira, real etotal <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>” 457 . Trata-se <strong>de</strong> relevar o hom<strong>em</strong> integral <strong>em</strong> oposiçãoaos homens tolhi<strong>do</strong>s por uma religião não humana n<strong>em</strong> natural. Porisso a filosofia teórica, sen<strong>do</strong> a filosofia <strong>do</strong> real, t<strong>em</strong> olhos, ouvi<strong>do</strong>s,mãos, pés e que t<strong>em</strong> por coisa verda<strong>de</strong>ira não o objeto <strong>do</strong> pensamento,o pensamento da coisa, “mas no objecto <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> real, total,453 Do “Prefácio à 2.ª Edição” in Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo,p. 421.454 I<strong>de</strong>m, p. 425.455 Ibi<strong>de</strong>m.456 Ibi<strong>de</strong>m.457 Ibi<strong>de</strong>m.173


[…]” 458 . É uma filosofia que não se alicerça no pensamento absoluto,impessoal mas no pensamento <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, que se afunda na nãofilosofia,na filosofia que nasce da carne e <strong>do</strong> sangue, daquilo que nohom<strong>em</strong> não filosofa 459 . Uma filosofia que se funda no hom<strong>em</strong> e quet<strong>em</strong> por princípio o que é positivo, material. Quer dizer o carácterracional <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> afunda-se nas condições concretas <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>Que começa por se relacionar com o seuobjecto sensivelmente, isto é, passiva ereceptivamente, antes <strong>de</strong> o <strong>de</strong>terminar com opensamento – eis, pois, o meu livro; se b<strong>em</strong> que eleseja, por um la<strong>do</strong>, o resulta<strong>do</strong> verda<strong>de</strong>iro, feitocarne e sangue, <strong>de</strong> toda a filosofia até hoje, estálonge <strong>de</strong> ser um produto a colocar na categoria daespeculação; […] é mesmo a resolução daespeculação 460 .Em seguida vai <strong>do</strong> objecto, da coisa real para o pensamento.Produz o pensamento a partir <strong>do</strong> objecto. Por isso Feuerbach diz-sei<strong>de</strong>alista “apenas no <strong>do</strong>mínio da filosofia prática, isto é, aqui nãotransformo as barreiras <strong>do</strong> presente e <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> <strong>em</strong> barreiras daHumanida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> <strong>futuro</strong>;” 461 . Daí a necessida<strong>de</strong> da reforma dafilosofia vista por Feuerbach como a verda<strong>de</strong>ira e necessária a quetenha por referência a época e a humanida<strong>de</strong>, residin<strong>do</strong> a verda<strong>de</strong>iranecessida<strong>de</strong> no la<strong>do</strong> “que t<strong>em</strong> a exigência <strong>de</strong> <strong>futuro</strong> – o <strong>futuro</strong>458 I<strong>de</strong>m, p. 426. Ver ainda Ludwig FEUERBACH, Princípios da Filosofia <strong>do</strong> Futuro,Princípio 50, p. 67: “ O real na sua realida<strong>de</strong> e totalida<strong>de</strong>, o objecto da novafilosofia, é também só objecto para um ser real e total. A nova filosofia t<strong>em</strong>, pois,como seu princípio <strong>de</strong> conhecimento, como seu sujeito, não o eu, não o espíritoabsoluto, isto é, abstracto, numa palavra, não a razão por si só, mas o ser real e total<strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. A realida<strong>de</strong>, o sujeito da razão é apenas o hom<strong>em</strong>. [Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 20 <strong>de</strong>Agosto <strong>de</strong> 2009].http://www.lusosofia.net/textos/feuerbach_<strong>ludwig</strong>_principios_filosofia_<strong>futuro</strong>.pdf459 I<strong>de</strong>m, Princípio 52, p. 69: “ […] mas ao mesmo t<strong>em</strong>po, só ela é a verda<strong>de</strong> damesma e, claro está, como uma verda<strong>de</strong> nova e autónoma; efectivamente, só averda<strong>de</strong> feita carne e sangue é que é a verda<strong>de</strong>”. [Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 20 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong>2009].460 Do “Prefácio à 2.ª Edição” in Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo,p. 426.461 I<strong>de</strong>m, 424.174


antecipa<strong>do</strong>: naquele que é movimento para a frente” 462 . Deste mo<strong>do</strong> ohom<strong>em</strong> apresenta-se como realida<strong>de</strong> e como <strong>i<strong>de</strong>ia</strong>, sen<strong>do</strong> por estarazão que a filosofia nova, antropológica, t<strong>em</strong> conhecimento darealida<strong>de</strong> e é pesquisa <strong>do</strong> <strong>futuro</strong>. Por esta razão Feuerbach afirma-sei<strong>de</strong>alista prático pois abrange o <strong>do</strong>mínio i<strong>de</strong>al, ten<strong>do</strong> por mo<strong>de</strong>lo a<strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> integral (com el<strong>em</strong>entos como o sensível, o amor, acorporeida<strong>de</strong>, a linguag<strong>em</strong>, o diálogo e a intersubjectivida<strong>de</strong>) e o<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> possível, aberto, não <strong>de</strong>finitivo “ […] o t<strong>em</strong>po da vida realé o t<strong>em</strong>po cheio, on<strong>de</strong> montanhas <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> toda a espécieseparam o agora <strong>do</strong> instante seguinte” 463 : A dimensão <strong>do</strong> <strong>futuro</strong> comoum <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> algo por fazer e não acaba<strong>do</strong>, mascomo trajectória, um caminhar, porque filosofia <strong>do</strong> <strong>futuro</strong>. Nestesenti<strong>do</strong> e como acima foi referi<strong>do</strong> para Ludwig Feuerbach o que hoje éconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> ateísmo, no <strong>futuro</strong> será religião ou que for consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>erro, será verda<strong>de</strong> no <strong>futuro</strong>. Trata-se <strong>de</strong> uma filosofia <strong>do</strong> querer e <strong>do</strong>pensar, <strong>do</strong> compreen<strong>de</strong>r no espaço e no t<strong>em</strong>po, <strong>em</strong> <strong>de</strong>vir.A nova filosofia <strong>do</strong> <strong>futuro</strong>, a filosofia antropológica, é anegação <strong>de</strong> toda a filosofia <strong>de</strong> escola, da tradição sen<strong>do</strong> por issopositiva, pois “ […] ela é o próprio hom<strong>em</strong> pensante – o hom<strong>em</strong> que ée sabe que é a essência autoconsciente da natureza, a essência dahistória, a essência <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s, a essência da religião – o hom<strong>em</strong>que é e se sabe que é a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> real […]” 464 , pelo que o hom<strong>em</strong>compreen<strong>de</strong> a partir <strong>de</strong> si no viver presente, cujo centro é a vida <strong>do</strong>s462Ludwig FEUERBACH, Necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma Reforma da Filosofia, p. 2.[Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 20 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 2009].http://www.lusosofia.net/textos/feurbach_necessida<strong>de</strong>_reforma_filosofia.pdf463 Ludwig FEUERBACH, Princípios da Filosofia <strong>do</strong> Futuro, Princípio 12, p. 19.[Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 20 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 2009].http://www.lusosofia.net/textos/feuerbach_<strong>ludwig</strong>_principios_filosofia_<strong>futuro</strong>.pdf464 Ludwig FEUERBACH, Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia, p. 17.[Consulta<strong>do</strong> <strong>em</strong> 20 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 2009].(http://www.lusosofia.net/textos/feuerbach_teses_provisorias_<strong>de</strong>_reforma_da_filosofia.pdf.175


homens reais, concretos <strong>em</strong> relação social, a tocar s<strong>em</strong>pre no <strong>futuro</strong>,haven<strong>do</strong> s<strong>em</strong>pre a religião <strong>do</strong>s homens e <strong>do</strong> seu <strong>futuro</strong>.C O N C L U S Ã O176


O que foi <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> neste estu<strong>do</strong> revelou que há nopensamento <strong>de</strong> Feuerbach, para além da crítica à filosofia especulativa<strong>de</strong> Hegel e à religião, a afirmação <strong>do</strong> <strong>humano</strong> patenteada nas váriasobras centrais <strong>do</strong> filósofo al<strong>em</strong>ão da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Ainda que acabe,<strong>em</strong> certo momento, por se quedar por algo pareci<strong>do</strong> que criticou <strong>em</strong>Hegel, o genérico da humanida<strong>de</strong> parece abrir, <strong>de</strong> novo, a uma novateologia. Apesar <strong>de</strong>ste aspecto o que é, <strong>de</strong> facto inova<strong>do</strong>r, é aafirmação <strong>de</strong> que o <strong>humano</strong> é a única dimensão verda<strong>de</strong>iramenteexistente, sen<strong>do</strong> mesmo verda<strong>de</strong>iramente real, com razão, coração,vonta<strong>de</strong> e senti<strong>do</strong>s. Um hom<strong>em</strong> com corpo, <strong>de</strong> carne e sangue. Vimos177


como é que o hom<strong>em</strong> inventa Deus, sen<strong>do</strong> ele mesmo o sujeito <strong>de</strong>ssainvenção.Retirar o Cristianismo da posição que ocupava fazia parte <strong>do</strong>projecto que tinha por objectivo esclarecer b<strong>em</strong> como <strong>em</strong>ancipar aHumanida<strong>de</strong>. Em interligação com este aspecto havia que diluir arealida<strong>de</strong> metafísica, afirman<strong>do</strong> que a vida terrena é real, finita b<strong>em</strong>como o próprio hom<strong>em</strong>. A compreensão da transcendência po<strong>de</strong> terum senti<strong>do</strong> <strong>humano</strong>, porquanto há que referir quão significativos sãoos sonhos e a sua importância na vida, pois a história é dinamizada poressa imaginação <strong>em</strong> que os Deuses po<strong>de</strong>m ser vistos como o nossoponto <strong>de</strong> segurança, a nossa salvação, a última esperança <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>.A afirmação <strong>de</strong> que os t<strong>em</strong>pos mo<strong>de</strong>rnos têm <strong>de</strong> reconduzir ateologia ao que verda<strong>de</strong>iramente é, à antropologia, dan<strong>do</strong> ao hom<strong>em</strong> oque lhe foi usurpa<strong>do</strong> é uma tese que vai ter influências <strong>em</strong> posteriorescríticas à religião. Feuerbach, diz-se, é o pai <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o ateísmo, que sepreten<strong>de</strong> reflecti<strong>do</strong>, com argumentos e não reacção imediata contrauma socieda<strong>de</strong> que <strong>em</strong> nome <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong>fendia o “status quo”, o<strong>do</strong>mínio sobre os outros.Feuerbach é o adjuvante da purificação <strong>de</strong> que a teologia é quepo<strong>de</strong> ser o lugar das piores das i<strong>do</strong>latrias. Importa rejeitar toda ateologia e toda a religião. Ele vai mais além da crítica à teologia cristã<strong>em</strong> nome da reforma da filosofia <strong>em</strong> Antropologia. Feuerbach, nalinha da esquerda hegeliana, põe a tónica na dialéctica. Fez sua atarefa fundamental da filosofia: <strong>de</strong>svelar o segre<strong>do</strong> mais b<strong>em</strong>guarda<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A Boa nova é que o hom<strong>em</strong> real éque existe, sen<strong>do</strong> necessário liquidar todas as hipocrisias, projecções,importan<strong>do</strong> aban<strong>do</strong>nar as narrativas míticas e enveredar pelaverda<strong>de</strong>ira génese da religião, génese psicológica, segun<strong>do</strong> omecanismo <strong>de</strong> lançar para fora. Não mais fazer como Hegel que pôs o178


finito no infinito 465 , mas pelo contrário mostrar como o infinito está nohom<strong>em</strong>. O ponto efectivo na relação finito-infinito é a separação queanula a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o finito ultrapassar <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong>conhecimento a sua finitu<strong>de</strong> e dar-se conta <strong>de</strong>la. Assim, o finito comoque se transformava <strong>em</strong> infinito ou divino. Deste mo<strong>do</strong> passa a existiruma presença <strong>do</strong> Infinito e <strong>de</strong> Deus no hom<strong>em</strong>, possibilitan<strong>do</strong>consciência absoluta. Por conseguinte, se o hom<strong>em</strong> se encontrasseinseri<strong>do</strong> só na sua finitu<strong>de</strong> não saberia nada sobre o que o ultrapassan<strong>em</strong> sobre a sua finitu<strong>de</strong>, porque segun<strong>do</strong> Hegel “sólo se conoce osiente algo como límite, como <strong>de</strong>ficiencia, en cuanto se está al mismoti<strong>em</strong>po más allá (<strong>de</strong> ellos)” 466 A teologia implica o mun<strong>do</strong>fantasmático, é a faculda<strong>de</strong> da imaginação 467 . Trata-se <strong>do</strong> advento <strong>do</strong>humanismo radical, sen<strong>do</strong> necessário reduzir a teologia àAntropologia. Importa uma prática efectiva 468 . É necessária umarevolução efectiva.Feuerbach <strong>de</strong>scobriu o segre<strong>do</strong> da religião mais b<strong>em</strong> guarda<strong>do</strong><strong>de</strong>s<strong>de</strong> a criação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. É interessante fazer uma pergunta: como éque foi possível que se Deus não existe, como é que o hom<strong>em</strong> se<strong>de</strong>sapossou <strong>do</strong> que é mais seu? Somos nós próprios que nos<strong>de</strong>sapossamos. Há um momento <strong>em</strong> que não acreditamos que somosisto que somos, t<strong>em</strong>os vertigens, <strong>de</strong>sapossamo-nos, entregan<strong>do</strong> o quehá <strong>de</strong> melhor <strong>em</strong> nós. Em Marx somos expropria<strong>do</strong>s por outros.Segun<strong>do</strong> Feuerbach a verda<strong>de</strong> é o que está <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com ogénero, sen<strong>do</strong> que o engano <strong>do</strong> cristianismo consistiu <strong>em</strong> ver oshomens como indivíduos. Segun<strong>do</strong> o género restabelece-se a relaçãoeu-tu, pois algo surge na incompletu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta relação. Porém, tornou aunir indivíduo e género, pois o mirar-se <strong>em</strong> Deus t<strong>em</strong> neste o i<strong>de</strong>al da465 Manuel CABADA, El Humanismo pr<strong>em</strong>arxista <strong>de</strong> L. Feuerbach, p. 154.466HEGEL, G.W.F. in Manuel CABADA, El Humanismo pr<strong>em</strong>arxista <strong>de</strong> L.Feuerbach, p. 155.467 Ludwig FEUERBACH, Teses provisórias para a Reforma da Filosofia, p. 5.468 Ludwig FEUERBACH, Necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma Reforma da Filosofia, p. 5.179


vida eterna com recusa da vida terrena. Daí o louvar da morte pelocristão, pois a morte liga os homens com a eternida<strong>de</strong>. Por issoFeuerbach prefere o cristianismo primitivo ao <strong>do</strong> seu t<strong>em</strong>po: “Masimagin<strong>em</strong>-se aqueles t<strong>em</strong>pos <strong>em</strong> que se ainda se acreditava <strong>em</strong>milagres vivos […] o céu existia […] apenas na sua imaginação” 469 .Feuerbach é a melhor introdução a Marx. Porém, pelas “OnzeTeses sobre Feuerbach”, Marx diferencia-se <strong>de</strong> Feuerbach. Marxchama à atenção à teologia tradicional, escolástica, liberal. Po<strong>de</strong>mosver <strong>em</strong> Marx continuida<strong>de</strong> e ruptura com Feuerbach. Segun<strong>do</strong> Marx épreciso fundar o Parti<strong>do</strong>, transformar, ter uma activida<strong>de</strong> humanaconcreta 470 . Marx distanciou-se da teoria <strong>de</strong> Feuerbach pela relevânciadada à noção <strong>de</strong> crítica e crítico-prática, patente na activida<strong>de</strong>“revolucionária” 471 . Há uma virag<strong>em</strong> na história <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, masFeuerbach não enten<strong>de</strong>u esta virag<strong>em</strong> “crítico-prática”. Para Marx,Feuerbach rompeu com o abstracto hegeliano, mas per<strong>de</strong>u-se naessência genérica, abstracta, hom<strong>em</strong> geral, pensa<strong>do</strong> como umaessência comum a to<strong>do</strong>s os indivíduos, <strong>em</strong> todas as circunstâncias esocieda<strong>de</strong>s. As condições concretas <strong>de</strong> cada hom<strong>em</strong>, das relações quet<strong>em</strong> com os outros pelo trabalho e com a socieda<strong>de</strong> por meio <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> e das relações com a natureza são o que é preciso ter <strong>em</strong> conta.Em Marx a essência é a socieda<strong>de</strong>. A unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> como hom<strong>em</strong>, o género <strong>humano</strong>, o que é senão o conceito <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>? 472Ainda que Feuerbach refira o Hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> carne e osso, ele não tira asconsequências disso. Mesmo assim Marx enten<strong>de</strong>u que Feuerbach foi,<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Hegel, o pensa<strong>do</strong>r revolucionário dan<strong>do</strong> realce ao mo<strong>do</strong>469 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, pp. 159, 160.470 Karl MARX, Teses sobre Feuerbach, Lisboa, Editorial Presença, tese n.º 1, pp. 7,8. [Daqui <strong>em</strong> diante citamos a obra <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>: Karl MARX, Teses sobreFeedback, p. x].471 Ibi<strong>de</strong>m.472 Manuel CABADA, El Humanismo pr<strong>em</strong>arxista <strong>de</strong> L. Feuerbach, p. 164.180


como criticou a religião 473 . No entanto é da opinião que a filosofiafeuerbachiana é, ainda, cont<strong>em</strong>plativa, não transforma<strong>do</strong>ra pois averda<strong>de</strong> consiste <strong>em</strong> experimentar, t<strong>em</strong> o senti<strong>do</strong> prático. A realida<strong>de</strong>é o que fizermos <strong>de</strong>la, construirmos 474 . A novida<strong>de</strong> consiste <strong>em</strong>instaurar o novo, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma prática revolucionária 475 . Hegele Feuerbach compreen<strong>de</strong>ram b<strong>em</strong>, mas que fizeram, como secomprometeram na vida? 476 Feuerbach centra a argumentação noretorno à sensibilida<strong>de</strong>, na intuição como prática sensível, s<strong>em</strong>conceber aquela com esta 477 . Contrariamente a Feuerbach, para Marxa essência humana é a socieda<strong>de</strong>, “é o conjunto das relaçõessociais” 478 . Há toda uma teoria da revolução contra as filosofiasestéreis, pois a verda<strong>de</strong>ira filosofia é a prática <strong>do</strong> trabalho 479 . A acçãoconcreta t<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre a solução, dissolven<strong>do</strong> os nós nas dificulda<strong>de</strong>s<strong>do</strong>s probl<strong>em</strong>as.Segun<strong>do</strong> Marx a noção <strong>de</strong> Feuerbach <strong>de</strong> que Deus é expressão<strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> perfeição humana situa a religião como algo falso <strong>do</strong>ponto <strong>de</strong> vista histórico. O hom<strong>em</strong> inventa Deus b<strong>em</strong> como ospredica<strong>do</strong>s espirituais e religiosos, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se cria<strong>do</strong> por Deus eprecisan<strong>do</strong> <strong>de</strong>sses predica<strong>do</strong>s espirituais. Feuerbach <strong>de</strong>nominou estainversão entre os <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s, <strong>humano</strong> e divino, <strong>de</strong> alienação,significan<strong>do</strong> que o hom<strong>em</strong> se pensa como outro, ven<strong>do</strong> a sua essênciana figura <strong>de</strong> outro, <strong>de</strong> Deus.473 I<strong>de</strong>m, Cf. MARX, K. (escrito por Engels, pero aproba<strong>do</strong> también por Mar), p.165: “¿Quién ha <strong>de</strong>scubierto el secreto <strong>de</strong>l ´sist<strong>em</strong>a`? Feuerbach. ¿Quién haaniquila<strong>do</strong> la dialéctica <strong>de</strong> los conceptos…? Feuerbach. ¿Quién ha estableci<strong>do</strong>, no la´<strong>de</strong>finición <strong>de</strong>l hombre` - como si el hombre pudiera tener una <strong>de</strong>finición diversa <strong>de</strong>la <strong>de</strong> ser hombre-, sino ´al hombre`, en vez <strong>de</strong> las antiguallas o la ´infinitaautoconciencia`? Feuerbach, y sólo Feuerbach”.474 Karl MARX, Teses sobre Feuerbach, Tese n.º 2, p. 8.475 I<strong>de</strong>m, Tese n.º 3, p. 8.476 I<strong>de</strong>m, Tese n.º 4, p. 9.477 I<strong>de</strong>m, Tese n.º 5, pp. 9 e 19.478 I<strong>de</strong>m, Tese n.º 6, p. 10.479 I<strong>de</strong>m, Tese n.º 11, p. 11.181


No enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Marx a posição <strong>de</strong> Feuerbach requer umtratamento materialista e prático, pois se a religião é vista porFeuerbach como uma alienação torna-se necessário fazer a<strong>de</strong>sconstrução <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como aparece na consciência <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> 480 .Assim, é necessária a não transição da crença <strong>do</strong> Deus universal para acrença no hom<strong>em</strong> geral, isto é, o hom<strong>em</strong> genérico, <strong>de</strong> essênciaimutável mas enten<strong>de</strong>r o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> revolucionário ten<strong>do</strong> porreferência relações sociais e económicas que <strong>de</strong>senvolve com osoutros homens e com a natureza. A noção Feuerbachiana equivocouseao não compreen<strong>de</strong>r a dimensão social da religião e da alienaçãoreligiosa. Quer dizer, o ser <strong>do</strong>s homens <strong>de</strong>senrola-se no seu processo<strong>de</strong> vida real 481 . Com Marx há uma referência à transformação <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> maneira radical, a partir <strong>do</strong> indivíduo concreto, real, social.O que o hom<strong>em</strong> é assenta <strong>em</strong> bases concretas, materiais, na vida real enão na afirmação <strong>de</strong> uma natureza humana igual a to<strong>do</strong>s.A <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> céu e <strong>de</strong> Deus imortal <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada povo b<strong>em</strong>como a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> vida futura e suas compensações. Por isso para ocristianismo a vida terrena, sensível é <strong>de</strong> recusar, sen<strong>do</strong> melhoracreditar no Além 482 . No entanto ao acreditar no Além, acredita nafantasia e na afectivida<strong>de</strong>. Assim, para Feuerbach, na conclusão,volta-se ao início, “O hom<strong>em</strong> é o começo da religião, o hom<strong>em</strong> é ocentro, o hom<strong>em</strong> é o fim da religião” 483 . Neste senti<strong>do</strong>, a religião éequivalente a antropologia, sen<strong>do</strong> necessário ao hom<strong>em</strong> recuperar asua autonomia e responsabilida<strong>de</strong> face ao mun<strong>do</strong>, para o que é480 Cf. MARX, K.-ENGELS in Manuel CABADA, El Humanismo pr<strong>em</strong>arxista <strong>de</strong> L.Feuerbach, p. 166: “El fundamento <strong>de</strong> la crítica irreligiosa es: el hombre hace lareligión, la religión no hace el hombre. La religión es la autoconciencia osentimiento <strong>de</strong> sí mismo <strong>de</strong>l hombre, que o no se ha posesiona<strong>do</strong> todavía <strong>de</strong> símismo o se ha perdi<strong>do</strong> <strong>de</strong> nuevo a sí mismo”.481 Cf. Karl MARX e Friedrich ENGELS, A I<strong>de</strong>ologia Al<strong>em</strong>ã, Editora, Presença,Volume I, Lisboa, 1975, pp. 24-27.482 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 194: “ O corte com omun<strong>do</strong>, com a matéria, com a vida genérica é, por isso, o objectivo essencial <strong>do</strong>cristão. E este objectivo realiza-se <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> sensível na vida monástica”.483 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, p. 222.182


necessário compreen<strong>de</strong>r o seu mecanismo. É o mun<strong>do</strong> <strong>de</strong>sencanta<strong>do</strong> ea passag<strong>em</strong> da religião para a política.Além <strong>de</strong>ste aspecto, há outros no pensamento <strong>de</strong> Feuerbachque têm suscita<strong>do</strong> interesse, a saber: a t<strong>em</strong>ática da religião comopatologia psíquica e sua influência na análise que Freud faz dareligião 484 . Em ambos os pensa<strong>do</strong>res a religião t<strong>em</strong> uma componente<strong>do</strong>entia, constituin<strong>do</strong>-se como uma ilusão e <strong>em</strong> algo que não garantenenhum <strong>futuro</strong> à Humanida<strong>de</strong>. Em consequência, a crítica <strong>de</strong> Freud àreligião mostra a sua ligação com os pensa<strong>do</strong>res pós-hegelianos que arecusavam, ven<strong>do</strong> nela um factor <strong>de</strong> alienação.Foi por este caminho que Feuerbach tentou compreen<strong>de</strong>r ocristianismo. Assim, para ele b<strong>em</strong> como posteriormente paraNietzsche o cristianismo na época, século XIX, estava <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntesen<strong>do</strong> necessário <strong>de</strong>scobrir os el<strong>em</strong>entos que alteraram o cristianismo<strong>do</strong> início ao seu t<strong>em</strong>po, fazen<strong>do</strong> como que uma terapia <strong>de</strong> pesquisa 485 .É um esforço <strong>de</strong> inspiração iluminista para clarificar os assuntos dareligião. Basta-lhe reparar os erros da finitu<strong>de</strong> humana – observar asua finitu<strong>de</strong> s<strong>em</strong> pontos <strong>de</strong> vista místicos ou metafísicos, à s<strong>em</strong>elhança484 I<strong>de</strong>m, <strong>do</strong> “Prefácio”, p. 4: “Ora, neste livro, as imagens da religião não sãotransformadas n<strong>em</strong> <strong>em</strong> pensamentos – pelo menos na acepção da filosofiaespeculativa da religião – n<strong>em</strong> <strong>em</strong> coisas, mas são consi<strong>de</strong>radas como imagens, istoé, a teologia não é tratada n<strong>em</strong> como uma propaganda mística, como o faz amitologia cristã, n<strong>em</strong> como ontologia, como o faz a filosofia especulativa dareligião, mas como patologia psíquica”. Cf. I<strong>de</strong>m, p. [XXII] e [XXIII] referência aointeresse por Feuerbach.485 I<strong>de</strong>m, <strong>do</strong> “Prefácio”, p. 5: “O cristianismo mo<strong>de</strong>rno não t<strong>em</strong> quaisquer outros<strong>test<strong>em</strong>unhos</strong> para mostrar senão testimonia paupertatis. O que ele talvez aindapossui – não possui por si – pois vive <strong>de</strong> esmolas <strong>de</strong> séculos passa<strong>do</strong>s. Se ocristianismo mo<strong>de</strong>rno fosse um objecto digno <strong>de</strong> crítica filosófica, o autor po<strong>de</strong>riater poupa<strong>do</strong> o labor <strong>de</strong> reflexão e <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> que o seu livro lhe custou. O que nestelivro se <strong>de</strong>monstra por assim dizer a priori – que o segre<strong>do</strong> da teologia éantropologia – já foi há muito <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> e confirma<strong>do</strong> a posteriori pela históriada teologia. “A história <strong>do</strong> <strong>do</strong>gma” ou, na expressão mais lata, a história da teologia<strong>em</strong> geral, é a “crítica <strong>do</strong> <strong>do</strong>gma”, a crítica da teologia <strong>em</strong> geral. Há muito que ateologia se tornou antropologia. E <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong> a história realizou e transformou <strong>em</strong>objecto da consciência o que <strong>em</strong> si – e neste aspecto o méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> Hegel éperfeitamente certo e historicamente funda<strong>do</strong> – era a essência da teologia”.183


da lagarta para qu<strong>em</strong> a sua folha é o seu universo e limite, não ten<strong>do</strong>necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir além disso, sen<strong>do</strong> a medida <strong>de</strong> um ser a suainteligência, fazen<strong>do</strong> a sua crítica a Schleiermacher. Conhecer Deus éauto-conhecer-se sen<strong>do</strong> que, porém, essa consciência não é aconsciência <strong>de</strong> si, sen<strong>do</strong> daí que surge a religião.Com a crítica <strong>de</strong> Feuerbach, Marx, Nietzschhe, Kierkegaard eFreud à religião o cristianismo teve <strong>de</strong> repensar atitu<strong>de</strong>s e práticas.Deste mo<strong>do</strong> o que era religião <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> o ser e o que se tinha porateísmo seria religião no <strong>futuro</strong>. Sen<strong>do</strong> a antropologia a essênciaverda<strong>de</strong>ira da religião e a teologia a essência falsa da religião, há umareferência a ter <strong>em</strong> conta: o prático é o momento essencial da religião,sen<strong>do</strong> o b<strong>em</strong>, a salvação, a felicida<strong>de</strong> o fim da religião. Daí que ohom<strong>em</strong> ao relacionar-se com Deus se relacione com a sua salvação.T<strong>em</strong>os, aqui, um momento soteriológico da<strong>do</strong> o cristianismo setransformar numa <strong>do</strong>utrina da salvação, pois a salvação é como umb<strong>em</strong> não terrestre, <strong>em</strong> que a felicida<strong>de</strong> aqui afasta o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deusmas o sofrimento o liga mais a Deus. Mas porquê, pois a infelicida<strong>de</strong>,assim, surge como um factor na moldag<strong>em</strong> <strong>do</strong> crente sen<strong>do</strong> poucofavorável para a fé pois dispensaria a ajuda <strong>de</strong> Deus? Daí notar-se acrença como o apelo <strong>do</strong> coração, da afectivida<strong>de</strong>, não haven<strong>do</strong> lugarpara questões.Será a ida<strong>de</strong> da religião uma ida<strong>de</strong> inculta, por assentar nasubjectivida<strong>de</strong>? Talvez por isso Feuerbach veja o livre-arbítrio comouma mistificação <strong>do</strong> acaso, logo s<strong>em</strong> senti<strong>do</strong>. O próprio mecanicismoserve-se da imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus para explicar pois crer <strong>em</strong> milagrespassa<strong>do</strong>s é não acreditar neles, sen<strong>do</strong> a religião a mãe da noite, poisnada explica. Ou explica <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> simplista no milagre e livre-arbítrio.Porém a oração é um acto essencial da religião da<strong>do</strong> <strong>de</strong>ter el<strong>em</strong>entosdivinos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. A religião era, para Feuerbach, a relação <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>com a sua essência. Porém, ela não <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> ser uma contradição,184


pois a sua inverda<strong>de</strong> consistia <strong>em</strong> julgar que o hom<strong>em</strong> se relacionacom um ser supr<strong>em</strong>o.Deus existe porque os homens pensam nele? Deus está aí, <strong>de</strong>mo<strong>do</strong> in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da vonta<strong>de</strong> humana? Não será a i<strong>de</strong>alização <strong>de</strong>Deus uma contradição e um caminho para o ateísmo?Se tivermos <strong>em</strong> conta Kant, Feuerbach enten<strong>de</strong> não serpossível a <strong>de</strong>dução da existência <strong>de</strong> Deus a partir <strong>do</strong> seu conceito.Será que só po<strong>de</strong> agir moralmente o hom<strong>em</strong> religioso? Será possíveluma ética racional, internalizada no próprio hom<strong>em</strong>?Feuerbach ao atacar a <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> Deus como meio sobrenatural eao fazer da s<strong>em</strong>elhança entre Deus e o hom<strong>em</strong> apenas uma atracçãopreten<strong>de</strong> mostrar que n<strong>em</strong> Deus é totalmente <strong>humano</strong> e n<strong>em</strong> o hom<strong>em</strong>Deus. Daí ser uma ilusão. Não estar<strong>em</strong>os, <strong>em</strong> Feuerbach, nacompreensão <strong>de</strong> uma religião s<strong>em</strong> metafísica logo, política?Por que existe o religioso e as religiões? Por que parece existirum mistério que foge à explicação clara?O fenómeno religioso não se esgota no campo interior daexperiência <strong>de</strong> cada um, sen<strong>do</strong> configura<strong>do</strong> no solene <strong>de</strong>svelar <strong>do</strong>stesouros ocultos. Por que parece ao hom<strong>em</strong> s<strong>em</strong> senti<strong>do</strong> a vida s<strong>em</strong>religião poisO hom<strong>em</strong> vulgar per<strong>de</strong>-se s<strong>em</strong> religião (<strong>em</strong>senti<strong>do</strong> vulgar, mas universalmente váli<strong>do</strong>), falta-lhe oponto <strong>de</strong> concentração, <strong>de</strong> coesão. Cada hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong>,portanto, <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar para si um Deus, isto é, um fimúltimo” 486 .Ou t<strong>em</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um Deus pessoalA necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um Deus pessoal t<strong>em</strong> <strong>em</strong> geral oseu fundamento no facto <strong>de</strong> a pessoa só estar junto a si,só se encontrar a si mesma na personalida<strong>de</strong>. […] Mas ohom<strong>em</strong> só está satisfeito e feliz on<strong>de</strong> está junto a si, juntoà sua essência 487 .486 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, pp. 69, 70.487 I<strong>de</strong>m, p. 116.185


O hom<strong>em</strong> não t<strong>em</strong> uma cida<strong>de</strong> permanente, por isso busca o<strong>futuro</strong> “pois não t<strong>em</strong>os aqui cida<strong>de</strong> permanente, mas buscamos afutura” 488 por isso procura no céu o Salva<strong>do</strong>r. O céu é património daHumanida<strong>de</strong>.Não quererá o hom<strong>em</strong> realizar o céu na Terra?O princípio <strong>do</strong> século XXI parece dar razão a Feuerbach 489 . Afilosofia torna-se um terreno neutro <strong>em</strong> que a religião v<strong>em</strong> à luz.Há uma <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> <strong>futuro</strong>, ponto <strong>de</strong> virag<strong>em</strong> da história pelo quea crítica da religião dá uma <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> terapia para um <strong>futuro</strong> melhor,como preparação para uma humanida<strong>de</strong> mais consciente, mais<strong>em</strong>ancipada. Esta preparação <strong>de</strong>ve radicar na Humanida<strong>de</strong>, sen<strong>do</strong> maispolítica que teórica. É preciso recuperar este aspecto – a consciência<strong>de</strong> si <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> para que o hom<strong>em</strong> se reconheça nas suas reduçõesinconscientes.Por que é que o hom<strong>em</strong> busca o ponto <strong>de</strong> coesão, salvação, umponto que dê senti<strong>do</strong> à sua frágil Humanida<strong>de</strong>? Por que não lhebastam as explicações claras da ciência, preferin<strong>do</strong> procurar algo <strong>de</strong>salutar pelo trilhar nas coisas surpreen<strong>de</strong>ntes <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> se ficar pelascoisas esclarecidas? Por que será que o hom<strong>em</strong> não se libertafacilmente da <strong>i<strong>de</strong>ia</strong> <strong>de</strong> que as coisas finitas, sensíveis têm umarealida<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>ira?Não po<strong>de</strong>r viver s<strong>em</strong> a necessida<strong>de</strong> da religião, <strong>de</strong> Deus, érevela<strong>do</strong>r da fragilida<strong>de</strong> da pobre Humanida<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> ou dagran<strong>de</strong>za metafísica da sua eternização infinita? Ou não é a crítica dareligião a crítica <strong>do</strong> vale <strong>de</strong> lágrimas da existência humana, o<strong>de</strong>stronar da flor da vida o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> levar o hom<strong>em</strong> a pensar, agir, a488 Bíblia Sagrada, Hebreus 13, 14.489 Ludwig FEUERBACH, A Essência <strong>do</strong> Cristianismo, pp. [XXII], [XXIII]: “S<strong>em</strong>últiplos aspectos da <strong>do</strong>utrina feuerbachiana não têm <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> <strong>de</strong> suscitar nasúltimas décadas um crescente interesse, a ponto <strong>de</strong> ser possível i<strong>de</strong>ntificar um“retorno a Feuerbach”, tal s <strong>de</strong>ve ao facto <strong>de</strong> nela se inscrever<strong>em</strong> algumas dascategorias que moldam a mentalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> nosso t<strong>em</strong>po. […]”.186


fazer a sua vida <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> si mesmo? Pela acção teórica, como <strong>em</strong>Feuerbach, não foram lançadas as bases fundamenta<strong>do</strong>ras da acção <strong>do</strong>hom<strong>em</strong> no mun<strong>do</strong>, da espécie toman<strong>do</strong> o hom<strong>em</strong> consciência <strong>de</strong> serno mun<strong>do</strong> e limites s<strong>em</strong> se consolar <strong>em</strong> vão com ilusões? Porque,como Feuerbach refere, qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> vergonha <strong>de</strong> ser finito, t<strong>em</strong>vergonha <strong>de</strong> existir. O hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>ve ter consciência <strong>de</strong> si mesmo, <strong>do</strong>sseus limites, porqueDesear algo todavía <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> la muerte,sentir aún afán <strong>de</strong> algo, es un enorme error, pues lamuerte viene ella misma <strong>de</strong> un affán interno <strong>de</strong> lanaturaleza, que en ella, mientras existe, se alimenta<strong>de</strong>l impulso y <strong>de</strong> la incontenible ten<strong>de</strong>ncia <strong>de</strong> lanaturaleza a mostrar lo que ella es, […] 490A morte não <strong>de</strong>ve assustar-nos, angustiar-nos porque “Túmueres precisamente sólo porque, antes <strong>de</strong> la muerte, está ya to<strong>do</strong> loque tú te imaginas únicamente po<strong>de</strong>r alcanzar <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> lamuerte” 491 . A vida mais elevada é a vida <strong>de</strong>dicada à religião, à ciência,à arte, na totalida<strong>de</strong> histórica e universal da humanida<strong>de</strong>. Esta é a vidapor cima da vida sensível passageira, a vida por cima da morte. Aessência como indivíduo é o género, como pessoa é a Humanida<strong>de</strong>.“Después <strong>de</strong> tu muerte, pues, quedan otros, queda tu esencia, lahumanidad, que no sufre daño ni mengua con tu muerte” 492 . Por isso ohom<strong>em</strong> <strong>de</strong>ve “morir humanamente, morir com la conciencia <strong>de</strong> queen la muerte realizas tu último <strong>de</strong>stino <strong>humano</strong>, morir, por tanto, enpaz con la muerte: sea éste tu último <strong>de</strong>seo, tu último fin” 493 .490Ludwig FEUERBACH, Pensamientos sobre muerte e inmortalidad, EditoraAlianza Editorial, (Traducción y estudio preliminar <strong>de</strong> José Luís Garcia Rúa),Madrid, 1993, p. 79.491 Ibi<strong>de</strong>m.492 I<strong>de</strong>m.493 Manuel CABADA, El Humanismo pr<strong>em</strong>arxista <strong>de</strong> L. Feuerbach, La EditorialCatólica, S. A., Madrid, 1975, p. 200.187


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