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Ensaios Alternativos Latino-Americanos de Educação Física ...

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Esporte e políticaNildo Ouriques¹O esporte é uma ativida<strong>de</strong> social e, como tal, intrinsecamentepolítica. Essa é uma verda<strong>de</strong> elementar que no terrenodas ciências sociais é <strong>de</strong> fácil reconhecimento, mas que, para ogran<strong>de</strong> público, é <strong>de</strong> difícil aceitação. Afinal, na luta entre apaixão e a razão, a primeira parece eliminar qualquer exercício<strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> necessário para enten<strong>de</strong>r a função do esportena socieda<strong>de</strong> capitalista.Nesta socieda<strong>de</strong>, em que os atletas se transformaram emmercadoria – sujeitos, portanto, a compra e venda – houve atransformação do esporte em um ramo da economia, em área<strong>de</strong> investimento, e a submissão completa ao critério da rentabilida<strong>de</strong>empresarial passou a exigir <strong>de</strong> todos os envolvidos naativida<strong>de</strong> esportiva uma reflexão mais profunda do fenômenoesportivo em nossas socieda<strong>de</strong>s.Contudo, o caráter mercantil que o esporte assumiu nassocieda<strong>de</strong>s capitalistas parece ser o dado menos relevante parao gran<strong>de</strong> público, <strong>de</strong> tal forma que a paixão por um pequenopaís, a admiração por um atleta ou a <strong>de</strong>voção por um clube <strong>de</strong>futebol parecem não estar intimamente associados à capacida<strong>de</strong>financeira para a competição... Enfim, as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um1 Professor do Departamento <strong>de</strong> Economia e Presi<strong>de</strong>nte do Instituto <strong>de</strong> Estudos <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> (IELA-UFSC)


pequeno clube <strong>de</strong> vencer o campeonato brasileiro <strong>de</strong> futebol possuemíntima relação com a capacida<strong>de</strong> financeira que dispõesempre associada a patrocinadores, contratos, etc., mas esse dadoelementar parece não afetar em nada seus seguidores.Neste contexto, po<strong>de</strong> o esporte ser motivo <strong>de</strong> disputa política?Quais são as funções políticas que o esporte cumpre emnossa socieda<strong>de</strong>? Quais os limites entre a admiração por umesporte e a alienação política? Ora, na exata medida em quenas socieda<strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rnas sua evolução <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da acumulação<strong>de</strong> capital e cumpre funções cada dia mais importantes <strong>de</strong>legitimação i<strong>de</strong>ológica diante do estado, é igualmente inevitávelque também seja objeto da crítica emancipadora <strong>de</strong>stinada a liberáloda dinâmica capitalista da produção do êxito e da glória e anecessária legitimação i<strong>de</strong>ológica que atualmente cumpre.Não <strong>de</strong>ve passar <strong>de</strong>spercebido que um conjunto <strong>de</strong> professorescuja atuação está limitada ao ensino universitário e emespecial aos cursos <strong>de</strong> educação física tomem para si a tarefada crítica política e sociológica que envolve as relações entreesporte e socieda<strong>de</strong>. Os professores cumprem, assim, um duplopapel. Em primeiro lugar recolocam o tema para os profissionaisda cultura física, estabelecem os nexos e evi<strong>de</strong>nciam osprincípios e consequências, em que a divisão social do trabalhorequer o silêncio, produto óbvio da alienação. Em segundo,espetam a sociologia dominante que se nega a tratar comouma priorida<strong>de</strong> um tema relevante para milhões <strong>de</strong> pessoas,vinculados tanto ao <strong>de</strong>senvolvimento das socieda<strong>de</strong>s nacionaisquanto ao mundo dos negócios em escala planetária. É curiosoe revelador que os estudos sociológicos, políticos e econômicossobre o esporte, sob a forma <strong>de</strong> mercadoria, diminuem namedida em que este cresce em importância social, política eeconômica.


É possível subverter o esporte? Os ensaios aqui reunidosindicam uma resposta positiva para a pergunta. Indicam tambémque tanto na França e Alemanha quanto na Venezuela ouna Argentina, o esporte está em disputa; disputa teórica e política!On<strong>de</strong> alguns o valoram como fator <strong>de</strong> coesão social outroso revelam como fenômeno típico da alienação necessáriaà socieda<strong>de</strong> capitalista. Não <strong>de</strong>veríamos manifestar surpresadiante <strong>de</strong>ste conflito, pois, ironicamente, é da natureza do esportea disputa!No Brasil, a consolidação <strong>de</strong> uma linha crítica sobre oesporte em geral, e o futebol em particular, tem nos escritosaqui reunidos uma contribuição importante para que a práticaou a paixão pelo esporte não impliquem em maior dose <strong>de</strong>alienação. Nesse contexto, não <strong>de</strong>veria ser realmente espantosoque a atenção <strong>de</strong> um torcedor qualquer o leve a conhecerem <strong>de</strong>talhes todos os aspectos do esporte – situação do clube,disputas internas entre os dirigentes, contratação <strong>de</strong> jogadores,táticas adotadas na última partida – ao mesmo tempo queignora a mesma dinâmica na trama entre os partidos políticose sua relação com o estado, as alianças do governador e aspriorida<strong>de</strong>s do presi<strong>de</strong>nte da república. Também não <strong>de</strong>veriaintrigar ninguém o fato <strong>de</strong> que as emissoras <strong>de</strong> rádio ou TVs eos jornais <strong>de</strong>diquem um tempo extraordinariamente preciosopara acompanhar cotidianamente os <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong> cada novasituação em um <strong>de</strong>terminado clube ou modalida<strong>de</strong> esportiva.É preciso manter ocupada a atenção das maiorias <strong>de</strong> tal formaque ela mantenha sua ativida<strong>de</strong> intelectual nos marcos da “produçãodo consenso” que as escraviza socialmente enquantopotencializa seu gozo efêmero. O fenômeno é mundial, semdúvida; mas no contexto da América Latina, marcada historicamentepelo sub<strong>de</strong>senvolvimento e pela <strong>de</strong>pendência, a situaçãose agrava e ganha conteúdo dramático. Em nossa região,


o esporte, especialmente o futebol, cumpre funções <strong>de</strong>legitimação da or<strong>de</strong>m dominante que não po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>sprezíveis.Na mesma medida, permite e exige um esforço <strong>de</strong>politização <strong>de</strong>stinado a superar sua condição atual nos marcosda alienação social e política.O avanço na direção crítica fortalecida por estes ensaiospermitirá, mais cedo do que tar<strong>de</strong>, a transformação do esporte<strong>de</strong> tal forma que ele também se inscreva no movimento global<strong>de</strong> luta contra a alienação e a dominação política que caracterizanossa socieda<strong>de</strong>.


9ApresentaçãoA Globalização e a Indústria do Esporte: saú<strong>de</strong> ou negócio?Jaime BreilhEdgard Matiello JúniorPaulo Capela154255Uma Outra Cultura Esportiva é Possível: críticas ealternativas ao movimento olímpico internacionalArlindo <strong>de</strong> Souza Coelho JúniorAntônio Jorge ChadudHugo Leonardo Fonseca da SilvaMarcelo Guina FerreiraResponsabilida<strong>de</strong> Social, ONGs e Esporte:o caso do Instituto Ayrton Senna no BrasilJuliano Silveira71Estado, Esporte e I<strong>de</strong>ologia na Venezuela:“Hacer <strong>de</strong>porte es hacer Revolución”Nilso Domingos OuriquesDagmar Mena Barreto


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Brasil e Argentina: estudo comparativo sobre conteúdosda educação física escolar e questões <strong>de</strong> gêneroSuéllen RogelinMaria do Carmo SaraivaVerónica Alejandra Bergero94A Capoeira é do Brasil? A Capoeira no contexto da GlobalizaçãoJosé Luiz Cirqueira Falcão114O Esporte e a Educação na Contemporaneida<strong>de</strong>: ambiguida<strong>de</strong>s,contradições e tensões sociais na FrançaFábio Machado Pinto140Sobre o Sistema <strong>de</strong> Complexos Homem-Esporte-Saú<strong>de</strong>:reflexões a partir <strong>de</strong> contribuições da AlemanhaCeli Zulke Taffarel159184199Declaración <strong>de</strong> CuencaNosso manifesto pelo direito ao esporte no Brasil8


ApresentaçãoApresentaçãoEm diferentes regiões do planeta, através damercadorização do esporte, são sustentados i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> soberania<strong>de</strong> nações sobre outras nações; são propostas alternativasmágicas <strong>de</strong> prevenção ao uso das drogas e da prática <strong>de</strong> violências;e aventadas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fuga da pobreza comrápida ascensão à riqueza, <strong>de</strong>ntre tantos outros discursossimplistas e vazios <strong>de</strong> sentido, mas que são bastante úteis parareprodução das i<strong>de</strong>ologias <strong>de</strong> dominação.Contudo, observadores atentos percebem facilmente oquanto o discurso já mundialmente consagrado – “esporte ésaú<strong>de</strong>!” – tem seus limites, e mais que isto, percebem que estediscurso faz parte <strong>de</strong> uma estratégia <strong>de</strong> inculcação <strong>de</strong> valores epráticas sociais que alienam, exploram e verda<strong>de</strong>iramente <strong>de</strong>stroema saú<strong>de</strong> dos praticantes, pois na lógica do esporte, maisdo que o “tempo <strong>de</strong> fazer amigos” (slogan da Copa do Mundoda Alemanha 2006), o importante mesmo é exigir rendimento<strong>de</strong>sumano e superar os limites <strong>de</strong> realização <strong>de</strong> negóciosmultimilionários <strong>de</strong> empresas <strong>de</strong> capital transnacional.Nem sempre os po<strong>de</strong>res que organizam esses negócios sãoperceptíveis aos trabalhadores do esporte (atletas). Nem sempreessas ações ficam claras também para os que assistem aosespetáculos esportivos. Também nem sempre os próprios profissionaisda área do esporte, no caso os professores <strong>de</strong> educaçãofísica, são capazes <strong>de</strong> perceber o que está para além doespetáculo.9


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>No Brasil, há cerca <strong>de</strong> trinta anos, teve início um movimentonacional <strong>de</strong> professores <strong>de</strong> educação física que assumiuo compromisso <strong>de</strong> esclarecer a socieda<strong>de</strong> sobre esses tipos <strong>de</strong>manipulação que anunciamos linhas acima. Ao longo <strong>de</strong>sseprocesso, muitos <strong>de</strong>les foram buscar apoio para suas formaçõesacadêmicas em outros centros <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> conhecimentocientífico, <strong>de</strong>stacadamente na Alemanha, mas tambémem outros países da Europa, como Portugal, Espanha e França.No retorno, encontraram na América Latina companheirospreocupados com os mesmos problemas científicos e profissionais,sendo então possível impulsionar coletivamente um movimentoque, apesar das limitações históricas, promoveu nosúltimos anos uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> trocas <strong>de</strong> conhecimentosuficientes para articular diferentes perspectivas dopensamento crítico no campo da Educação Física, do Esporte,do Lazer e Saú<strong>de</strong>, com gran<strong>de</strong> representativida<strong>de</strong> e repercussãoprincipalmente nos meios acadêmico, escolar, e sobretudona gestão pública em todos os níveis.Apesar do esforço coletivo e dos avanços conquistados,isto ainda não é suficiente para se contrapor <strong>de</strong> forma contun<strong>de</strong>ntea toda essa dominação anunciada. Pois, perante os gravesproblemas sociais, as imensas distâncias geográficas e ascondições <strong>de</strong>siguais <strong>de</strong> financiamento das chamadas ciênciasduras em relação às humanas, os poucos centros <strong>de</strong> produção<strong>de</strong>mocrática <strong>de</strong> conhecimento ainda não conseguem apresentaramplamente suas idéias e seus trabalhos concretos <strong>de</strong> práticarevolucionária neste terreno chamado esporte.É neste cenário que este primeiro volume dos <strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong>se apresenta. Tendo em vista a pouca visibilida<strong>de</strong>que as críticas ao esporte têm alcançado em âmbito mundial,ao mesmo tempo em que o esporte tem inúmeras relações coma saú<strong>de</strong> dos povos (incluindo os trabalhadores do esporte),10


Apresentaçãopensamos ser importante trazer <strong>de</strong> forma consistente algunsconhecimentos que aju<strong>de</strong>m a expandir essa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> articulaçãosolidária.Partindo <strong>de</strong> nossas experiências com companheiros brasileirosque transitaram por outros países da América Latina eEuropa, pensamos ser possível apresentar novas contribuiçõespara alicerçar esse movimento internacional <strong>de</strong> luta pela saú<strong>de</strong>através do esporte e <strong>de</strong> outras manifestações próprias ao campoda Educação Física. Dessa forma, esta produção científicacom vocação militante caracteriza-se como estratégia inicial<strong>de</strong> trabalho do recém criado Vitral <strong>Latino</strong>-Americano <strong>de</strong> EducaçãoFísica, Esportes e Saú<strong>de</strong>.Constituindo-se como um dos projetos que integra oInstituto <strong>de</strong> Estudos <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<strong>de</strong> Santa Catarina, o Vitral vem buscando gradativamentei<strong>de</strong>ntificar, aproximar e disseminar os pensamentos críticos nassuas áreas <strong>de</strong> interesse, tendo como referência a realida<strong>de</strong> brasileirae latino-americana na perspectiva <strong>de</strong> consolidação <strong>de</strong>um pensamento emancipador nos campos da Educação Físicaem suas múltiplas e contraditórias relações com a Saú<strong>de</strong>. Assim,em termos gerais, crítico refere-se à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> análisesobre os processos políticos, sociais, culturais e econômicosque limitam ou impe<strong>de</strong>m a plena realização das potencialida<strong>de</strong>shumanas e con<strong>de</strong>nam a preservação da natureza.Para tanto, os organizadores <strong>de</strong>sta produção buscaramreunir autores/as que representem alternativas ao isolamentocaracterístico <strong>de</strong> setores, grupos e pesquisadores/as em paísesda América Latina cujo colonialismo científico impera ao ladoda escassez <strong>de</strong> recursos. Como alternativa <strong>de</strong> escoamento <strong>de</strong>produção científica para além das amarras institucionais, espera-seque esta publicação – <strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> – seja re-11


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>presentativa das aspirações coletivas <strong>de</strong> diferentes segmentosque lutam em <strong>de</strong>fesa da Saú<strong>de</strong> e da <strong>de</strong>mocratização ao acessoàs práticas corporais.Por recomendação dos organizadores, os textos contêmlinguagem <strong>de</strong> fácil compreensão porque não se <strong>de</strong>stinam exclusivamenteao meio acadêmico, nem somente ao universoda Educação Física, ao mesmo tempo em que, apesar <strong>de</strong> seremescritos em linguagem simples, foi resguardado o <strong>de</strong>vidorigor teórico e metodológico em suas elaborações.É preciso mencionar o caráter pluralista <strong>de</strong>sta obra, poisnela confluíram trabalhos <strong>de</strong> especialistas brasileiros das práticascorporais com os <strong>de</strong> um especialista da epi<strong>de</strong>miologia críticaque trabalha a <strong>de</strong>terminação social da saú<strong>de</strong> e do esporte,na Universida<strong>de</strong> Andina Simón Bolívar, do Equador. Esta entida<strong>de</strong>equatoriana coor<strong>de</strong>na a Re<strong>de</strong> para o Direito à Saú<strong>de</strong>,que juntamente com o MPS do Equador, impulsionou a lutapela nova constituição <strong>de</strong>ste país, consagrando uma visão integraldo direito a modos <strong>de</strong> vida saudáveis, dos quais fazemparte as práticas corporais. Dessa forma, a partir <strong>de</strong>sta parceriainternacional que se inicia com um projeto editorial, a Universida<strong>de</strong>Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina e a Universidad AndinaSimón Bolívar estarão impulsionando, no futuro, umaintegração <strong>de</strong> esforços do Vitral brasileiro com os do ObservatórioAndino da Determinação Social da Saú<strong>de</strong>.Além dos organizadores da obra, os quais também seempenharam na produção <strong>de</strong> um dos capítulos, foram chamadosa colaborar pessoas <strong>de</strong> cinco universida<strong>de</strong>s brasileiras localizadasem quatro macro regiões do país. Eles e elas sãodoutores/as, mestres, especialistas e professores/as da Re<strong>de</strong>Pública <strong>de</strong> Ensino <strong>de</strong> três estados brasileiros, os/as quais atuamem diferentes campos do conhecimento.12


ApresentaçãoGostaríamos <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar também o contínuo apoio políticoe financeiro do Ministério dos Esportes e sua Re<strong>de</strong> CEDES,bem como da FINEP, <strong>de</strong>ntre tantas outras entida<strong>de</strong>s e pessoascom as quais assumimos parcerias consistentes e duradouras.Para finalizar, como neste trabalho buscamos conteúdosdiferenciados, optamos pela criação <strong>de</strong> capa que representasseartisticamente esse movimento coletivo, sensível e militanteque tem, nas palavras do autor da capa (e do logotipo doVitral),A pedagogia da imagem composta – que é uma frasesem fim que convida ao diálogo – passeia pelosterritórios institucionalizados e instituídos pelo po<strong>de</strong>r/saber/fazer da socieda<strong>de</strong>, da aca<strong>de</strong>mia e das ruas[...] Brinca<strong>de</strong>iras e brinquedos, criança e AméricaLatina brincam juntos nas trajetórias do pião dasrelações que estabelecemos e se (r)estabelecem numoutro modo <strong>de</strong> ser, <strong>de</strong> saber e <strong>de</strong> fazer uma outracultura, corporal, humana, <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> próprialatino-americana. Em suma, transformam. Porque<strong>de</strong>sinstalam, brincam, bailam e manifestam uma outracondição <strong>de</strong> vida e para a vida [...].Registramos que foram inseridos ao final dos trabalhosmais dois textos, sendo um <strong>de</strong>les a Declaração <strong>de</strong> Cuenca, produzidacoletivamente por ocasião da Segunda Assembléia Mundial<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> dos Povos, no Equador, em julho <strong>de</strong> 2005, representandouma proposta para revitalização das ações no campoda saú<strong>de</strong> para impulsionar vigorosamente um projeto planetárioem <strong>de</strong>fesa da vida em sua plenitu<strong>de</strong>. É também uma<strong>de</strong>claração <strong>de</strong> intenções, <strong>de</strong> convite à participação integradados diferentes povos e organizações do mundo, e que, ao recuperara concepção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> como direito humano fundamental,reconhece a educação como forte aliada na construção <strong>de</strong>um projeto emancipador. Quanto ao segundo texto menciona-13


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>do (Nosso manifesto pelo direito ao esporte no Brasil), trata-seda transcrição da narrativa <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o produzido especialmentepara essa Assembléia Mundial, e que <strong>de</strong>vido à sua mensagemcontun<strong>de</strong>nte e direta, <strong>de</strong> forte apelo à sensibilida<strong>de</strong>, tem sidobastante requisitado para fins didáticos em diferentes oportunida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> formação acadêmica e <strong>de</strong> educação popular.Esperamos que os conhecimentos, o esforço solidário e fraternoque cada autor/a trouxe nos textos sirva <strong>de</strong> pequena contribuiçãopara a qualificação científica das lutas populares poruma Educação Física, esporte, lazer e saú<strong>de</strong> em favor da vida.Fica aqui, portanto, nosso mais sincero <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> que estasérie <strong>de</strong> publicações que agora se inicia seja sempre honestamenteavaliada pelos movimentos sociais, para que tenhamosluzes para nos orientar na permanência como intelectuais orgânicose intelectuais públicos aliados às suas causas legítimas.Com admiração pelos autores/as e <strong>de</strong>dicação aos leitores/asEdgard Matiello Júnior, Paulo Capela & Jaime Breilh14


A Globalização e a Indústria do Esporte: saú<strong>de</strong> ou negócio?A Globalização e a Indústria doEsporte: saú<strong>de</strong> ou negócio?Jaime Breilh*Edgard Matiello Júnior**Paulo Capela***Introdução: o exercício e o esporte comoagentes <strong>de</strong>terminantes da saú<strong>de</strong>Apesar <strong>de</strong> haver uma imagem i<strong>de</strong>al na qual o esporte ésinônimo <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, a relação entre ambos é um processo socialmente<strong>de</strong>terminado, cujas características <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m dascorrelações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que operam em uma <strong>de</strong>terminada formaçãosocial.Portanto, embora as práticas do esporte e os seus espetáculossejam consi<strong>de</strong>rados bons recursos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento humano,sob condições históricas e modos <strong>de</strong> vida típicos <strong>de</strong> certasclasses e grupos sociais, essas ativida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m per<strong>de</strong>r ocaráter protetor da saú<strong>de</strong> e se tornar práticas <strong>de</strong>strutivas.* Doutor e Diretor da Área <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> da Universida<strong>de</strong> Andina Simón Bolívar, Equador; Coor<strong>de</strong>nador doGlobal Health Watch para a América Latina; E-mail: jbreilh@uasb.edu.ec.** Doutor e Professor da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina. Coor<strong>de</strong>nador do Vitral <strong>Latino</strong>-Americano<strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong> e pesquisador do Grupo Vivendo Educação Física e Saú<strong>de</strong> Coletivae Instituto <strong>de</strong> Estudos <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> – UFSC. E-mail: <strong>de</strong>gaufsc@gmail.com.*** Mestre em Educação e Professor do Centro <strong>de</strong> Desportos da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina.Coor<strong>de</strong>nador do Vitral <strong>Latino</strong>-Americano <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong> e pesquisador do Grupo <strong>de</strong>Estudos <strong>de</strong> Cultura Popular e <strong>de</strong> Movimento e do Instituto <strong>de</strong> Estudos <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> – UFSC.E-mail: pcapela@bol.com.br.15


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Esse caráter surpreen<strong>de</strong>nte e contraditório do esporte regidopela lógica capitalista se manifesta <strong>de</strong> diversas formas.A mais dramática é a tensão crônica que acarreta lesões permanentesem <strong>de</strong>sportistas <strong>de</strong> elite induzidos à competição extrema.Tal processo <strong>de</strong>teriora o fenótipo do atleta, afetando seus sistemasfísicos, como o osteomuscular e sua saú<strong>de</strong> mental.Por outro lado, a pressão para o consumo <strong>de</strong> artigos esportivossubmete a maioria dos praticantes <strong>de</strong> esportes a padrõesalienantes e nem sempre saudáveis, através dos maisdiferentes mecanismos, alguns <strong>de</strong>les impulsionados pelo po<strong>de</strong>rda mídia. Assumindo papel-chave <strong>de</strong> alienação, a mídia afirmaas i<strong>de</strong>ias hegemônicas sobre esportes e fitness, promovendocenários <strong>de</strong> competições extremas, <strong>de</strong> modo a reproduzir afalta <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> e o estilo <strong>de</strong> vida que permanentementecontribuem para a expansão do mercado, cuja expansão tambéma beneficia.Nesse sentido, quando o esporte passa a ser controladopelo monopólio das corporações transnacionais, as regras violentasda socieda<strong>de</strong> capitalista terminam por transmutar aspráticas corporais <strong>de</strong> caráter recreativo e lúdico em mais umadas formas típicas <strong>de</strong> violência, convertendo os bens humanos(como o esporte, no caso) em mercadorias, subsumidas à sualógica e condicionadas pela estrutura técnica e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte dovalor <strong>de</strong> troca <strong>de</strong>las, ao invés <strong>de</strong> os bens humanos serem conservadoscomo bem <strong>de</strong> valor <strong>de</strong> uso para a saú<strong>de</strong> humana(ECHEVERRÍA, 2006).Dados esses elementos introdutórios, neste trabalho, serãodiscutidos alguns aspectos do esporte que o caracterizamcomo importante patrimônio cultural da humanida<strong>de</strong> e comoum imenso potencializador da formação educacional e da saú<strong>de</strong>humana, buscando <strong>de</strong>monstrar que, apesar disso, ele temservido como mais um forte instrumento <strong>de</strong> alienação a servi-16


A Globalização e a Indústria do Esporte: saú<strong>de</strong> ou negócio?ço <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rosas engrenagens do capital transnacional, as quaistêm se utilizado <strong>de</strong> diferentes meios <strong>de</strong> propagação e controle <strong>de</strong>suas ações, inclusive no interior das estruturas do Estado.Desenvolvimento do fenótipo e sua historicida<strong>de</strong>Quando caiu o véu <strong>de</strong>terminista das pesquisas sobre ocorpo e suas funções, ficou evi<strong>de</strong>nte que não havia nenhumprocesso puramente biológico no <strong>de</strong>senvolvimento humano.A <strong>de</strong>terminação social do rendimento físico-<strong>de</strong>sportivo, assimcomo <strong>de</strong> todo o processo da vida humana, é um produto <strong>de</strong>relações entre alguns processos sociais amplos e outros <strong>de</strong> or<strong>de</strong>mindividual, os quais condicionam a lógica global do negócioesportivo.Na primeira categoria está a cumplicida<strong>de</strong> entre a políticae as instituições; a contribuição dos padrões culturais alienantes;os processos ou padrões coletivos que correspon<strong>de</strong>m a modos<strong>de</strong> viver próprios <strong>de</strong> classes ou grupos sociais diferentes, comseus modos típicos <strong>de</strong> trabalhar, seus padrões <strong>de</strong> consumo e <strong>de</strong>lazer, e até mesmo suas condições espaciais. E na categoriaindividual tem-se a “livre” escolha, na qual o estilo <strong>de</strong> vidapessoal expressa as possibilida<strong>de</strong>s concretas dos modos <strong>de</strong> vida<strong>de</strong> todo o sistema para os membros <strong>de</strong> cada grupo, e suascondições biológicas e psicológicas (BREILH, 2003).O potencial físico e psicológico com que se pratica exercícioou esporte é, consequentemente, o produto <strong>de</strong> um processocomplexo <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminação. Esse potencial po<strong>de</strong> ser representadopelo tônus muscular; capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reação e coor<strong>de</strong>nação;mobilida<strong>de</strong>; capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> articulações para resistir àscargas e <strong>de</strong>mandas funcionais; pela qualida<strong>de</strong> da calcificaçãoóssea; <strong>de</strong>sempenho cardiovascular e respiratório; potencialmetabólico; respostas do sistema imunológico para proteção17


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>contra resíduos metabólicos e agentes externos, ou seja, representatodo o conjunto <strong>de</strong> recursos fenotípicos para a realizaçãodas práticas corporais. O conjunto <strong>de</strong>sses recursos, por suavez, indica as limitações e as potencialida<strong>de</strong>s dos praticantes<strong>de</strong> esportes, as quais são induzidas pela condição <strong>de</strong> classe emodo cultural <strong>de</strong> vida, e pelas práticas <strong>de</strong> estilo <strong>de</strong> vida pessoais<strong>de</strong>terminadas pelo grupo social pertencente (Quadro 1).Daí a importância em esclarecer como os mecanismos históricosgerados pelo mercado do esporte agem sobre o modo<strong>de</strong> vida das classes trabalhadoras e classe média, impondo,com pouca ou nenhuma liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha, o estilo <strong>de</strong> vidaque adotamos. Por isso a importância em aplicar o conhecimentosobre a historicida<strong>de</strong> do corpo humano e suas funçõespara a luta contra a mercantilização e o mercenarismo <strong>de</strong>sportivo.Esses são assuntos-chave para a luta por vida e saú<strong>de</strong>.Para tanto, é necessário revisar algumas característicascruciais da historicida<strong>de</strong> biológica que fazem parte dahistoricida<strong>de</strong> da vida humana. De maneira geral, po<strong>de</strong>mos sintetizartais conhecimentos da seguinte forma:1) a <strong>de</strong>terminação social das funções corporais está profundamentearraigada nas relações sociais amplas ese expressa no genótipo e no fenótipo, incluindo opsiquismo. As pesquisas oferecem muitas evidênciassobre a <strong>de</strong>terminação social das características físicas(biológicas) e do fenótipo: variações entre classessociais na ida<strong>de</strong> da primeira menstruação – menarca– (TANNER, 1962); as modificações históricas da culturasomática (BOLTANSKI, 1975; 1989); a mudançahistórica <strong>de</strong> vulnerabilida<strong>de</strong> à tuberculose(MCKWEON, 1976); a transformação histórica dasnormas genéticas <strong>de</strong> reação (LEWONTIN; ROSE;18


A Globalização e a Indústria do Esporte: saú<strong>de</strong> ou negócio?KAMIN, 1984; LEVINS; LEWONTIN, 1985); ou osestudos incontáveis sobre as variações históricas secularesdas tendências das medidas antropomórficas.Resumidamente, trata-se <strong>de</strong> evidências da influênciaprofunda que os processos sociais têm sobre a constituiçãogenotípica e fenotípica para a prática <strong>de</strong> exercíciose ativida<strong>de</strong>s esportivas;2) em segundo lugar, a <strong>de</strong>terminação histórica do caráterbiológico ocorre tanto como fenômeno atual quantopretérito, causado por <strong>de</strong>terminações cumulativas quepo<strong>de</strong>m ser ligadas à hereditarieda<strong>de</strong> (BREILH, 2003); e3) Finalmente, a <strong>de</strong>terminação social do caráter biológiconem sempre produz mudanças ascen<strong>de</strong>ntes, estandosujeita a avanços e retrocessos, os quais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>mdas condições sociais <strong>de</strong> cada período histórico.Nível ColetivoNível IndividualRelaçõesestruturaisgeraisLógicadominantena prática<strong>de</strong>sportivaModos <strong>de</strong>vida (grupossociais)Estilo <strong>de</strong>vida ecotidianida<strong>de</strong>individualCondiçõesGenotípicasCondiçõesFenotípicasEconômica:Mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>Acumulaçãoporexpropriação* Monopólio emercantilizaçãodos negóciosesportivose setoresafins* Trabalhoescravo naconfecção <strong>de</strong>roupas esportivase equipamentos* Práticascomunitárias* Trabalhoexplorado ealienado*Consumismo* Sobrecargalaboral*Se<strong>de</strong>ntarismo* Características genômicase normas genéticas <strong>de</strong> reaçãoque <strong>de</strong>terminam a capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> física*Tônus muscular*Capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> movimentoarticular*Qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> calcificação*Condição cardiovascular* Condição respiratória* Capacida<strong>de</strong> metabólica*Sistemas corporais:imunológico, nervoso, etc.* condição mental (psíquica)Quadro 1. Matriz <strong>de</strong> processos críticos na <strong>de</strong>terminação social da prática <strong>de</strong>sportiva e naaptidão física. (continua)Fonte: Breilh (2005).19


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Nível ColetivoNível IndividualRelaçõesEstruturaisGeraisPolíticaCulturalLógicadominantena prática<strong>de</strong>sportiva* Políticasclientelistas* Paternalismo* Políticasemancipatórias* Cultura colonizadae<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte* Cultura dacompetição* Ciência esportivalucrativa* Elitizaçãodas práticas eespetáculos* Desigualda<strong>de</strong>social,étnica e <strong>de</strong>gêneroModos <strong>de</strong>vida (grupossociais)* Debilida<strong>de</strong>do sujeito-social* CarênciasOrganizativase <strong>de</strong> auxíliocoletivo* Modo <strong>de</strong>vida em quepredomina:trabalharpara sobreviversem tempopara práticascorporais e<strong>de</strong> ócio comqualida<strong>de</strong>;recursos etempo mínimosparalazer; baixaqualida<strong>de</strong>dos recursospara lazer;padrões culturaisse<strong>de</strong>ntários;restriçãodo espaço doconsumo;microambiente<strong>de</strong>teriorado.Estilo <strong>de</strong>vida ecotidianida<strong>de</strong>individual* Competitivida<strong>de</strong>* Ausência <strong>de</strong>segurida<strong>de</strong>social* Valoraçãosocial do esporte* Machismo* Culturasomática* Prática científicaalienante:<strong>de</strong>sconhece aigualda<strong>de</strong>* Debilida<strong>de</strong><strong>de</strong> princípios<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>e soberaniaCondiçõesGenotípicasCondiçõesFenotípicasPrincipaiscontradiçõesem cadadimensãoMonopólio,elitismo,competitivida<strong>de</strong>vs. Práticas<strong>de</strong> <strong>de</strong>sfrutesolidárioAcesso vs. ExclusãoQualida<strong>de</strong>vs. DeficiênciaPráticas sustentáveise solidáriasvs.práticas irregulares,ina<strong>de</strong>quadasealienantesSobrevida, aptidão e práticaprolongada vs. envelhecimentoe <strong>de</strong>terioraçãoQuadro 1. Matriz <strong>de</strong> processos críticos na <strong>de</strong>terminação social da prática <strong>de</strong>sportiva e naaptidão física. (continuação)Fonte: Breilh (2005).20


A Globalização e a Indústria do Esporte: saú<strong>de</strong> ou negócio?Mercantilização e monopólio do esporte:hegemonia e periculosida<strong>de</strong>Po<strong>de</strong>-se dizer que assim como o capitalismo histórico produzo espaço que necessita (LEFEBVRE, 1991), a socieda<strong>de</strong>capitalista atual também produz os cenários esportivos querequer para um duplo propósito: acumulação <strong>de</strong> riqueza e construçãoda hegemonia.A “se<strong>de</strong> <strong>de</strong> lucro” também captura a alma do esporte,envolvendo-o em sua busca <strong>de</strong> aceleração econômica e controle<strong>de</strong> mercado. Seu crescimento exponencial ultrapassa asbarreiras territoriais e aumenta a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apropriaçãodos recursos <strong>de</strong> outros países. As empresas <strong>de</strong> espetáculo esportivosão capazes <strong>de</strong> transformar a prática <strong>de</strong> esportes e <strong>de</strong>fitness em artigos que circulam sob engrenagens industriais <strong>de</strong>imensa lucrativida<strong>de</strong>² (SILVA, 2001).Os complexos transnacionais esportivos po<strong>de</strong>m realizar seusprocessos globalizados <strong>de</strong> acumulação <strong>de</strong> capital porque elesdominam os seguintes elementos-chave: os meios <strong>de</strong> comunicação<strong>de</strong> massa; o monopólio sobre gran<strong>de</strong>s e únicos eventosmundiais (espetáculos esportivos); clubes esportivos e equipes;organizações <strong>de</strong>sportivas mundiais (encabeçadas pelo COI –Comitê Olímpico Internacional); proprieda<strong>de</strong> ou acordoseconômicos com companhias que produzem equipamentos einfraestrutura <strong>de</strong>sportiva para competições sofisticadas; equipesmultidisciplinares <strong>de</strong> investigação sobre alto rendimento<strong>de</strong>sportivo; a cumplicida<strong>de</strong> dos Estados em países organizadores<strong>de</strong> mega-eventos; a proprieda<strong>de</strong> do passe <strong>de</strong> atletas e <strong>de</strong> recursospara seus treinamentos; e o controle social dos consumido-2 Só para mencionar, a indústria <strong>de</strong>sportiva norte-americana gerencia 213 bilhões <strong>de</strong> dólares a cada ano,o que correspon<strong>de</strong> ao dobro do lucro da indústria automotiva e sete vezes o da indústria <strong>de</strong> cinema (AFP,2007).21


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>res convertidos em uma massa acrítica ou passiva (ALTUVE,2002), <strong>de</strong>ntre outros.As corporações <strong>de</strong>sportivas conseguem construir estahegemonia e sua aceitação graças também ao fetichismo dofair play, uma vez que os espetáculos <strong>de</strong>sportivos representamum suposto igualitarismo e um mo<strong>de</strong>lo i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> coexistênciahumana, em que o esporte se apresenta como sinônimo <strong>de</strong>tranquilida<strong>de</strong>, paz, harmonia e competição leal (ALTUVE,2002).O esporte, quando tratado como mercadoria, relega amaioria das pessoas a um papel eminentemente passivo <strong>de</strong>consumidores do espetáculo e <strong>de</strong> sua propaganda. Além disso,ele se organiza e se <strong>de</strong>senvolve sobre os ombros da força <strong>de</strong>trabalho dos esportistas e <strong>de</strong>mais trabalhadores envolvidos nessaprática, criando uma estratificação <strong>de</strong> imensa <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>.Ou seja, os <strong>de</strong>sportistas com melhor <strong>de</strong>sempenho, que compõemtal força <strong>de</strong> trabalho, e que são em última instância oimã do espetáculo <strong>de</strong>sportivo, fazem parte <strong>de</strong> uma estrutura <strong>de</strong>trabalho altamente injusta, na qual o exultante sucesso econômico<strong>de</strong> uma elite minoritária mascara a situação <strong>de</strong> trabalho<strong>de</strong>sfavorável da vasta maioria dos <strong>de</strong>sportistas. Uma lacunasocial, conforme <strong>de</strong>monstrado pela estratificação <strong>de</strong> classe <strong>de</strong>jogadores <strong>de</strong> futebol brasileiros (Quadro 2).22


A Globalização e a Indústria do Esporte: saú<strong>de</strong> ou negócio?RENDA MENSAL (dólares americanos)até 7575 a 150150 a 375375 a 750750 a 1.500mais que 1.500%44,941.65,02,81,53,3%(402 jogadores)Quadro 2. Estratificação <strong>de</strong> renda mensal <strong>de</strong> jogadores <strong>de</strong> futebol brasileiros (800 clubescom 12.000 jogadores).Fonte: Altuve (2002, p. 104).O esporte, quando consi<strong>de</strong>rado como negócio, reproduzuma profunda <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social nas práticas corporais. Ocorre,por um lado, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> entre os que têm acesso a umaprática <strong>de</strong>sportiva realmente saudável e entre aqueles que ficamà margem <strong>de</strong> práticas corporais seguras e que, na maioriados casos, convertem-se em meros espectadores. Especialmentese suas condições social, étnica, <strong>de</strong> gênero, <strong>de</strong> geração ouincapacida<strong>de</strong> os discriminam ou lhes impõem passivida<strong>de</strong> quereforçam as relações sociais injustas.Neste ramo <strong>de</strong> negócios, é reproduzida a disparida<strong>de</strong> entreo valor que se paga à maioria da força <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong>sportiva,e os benefícios econômicos <strong>de</strong> uma elite, que é capaz <strong>de</strong> produzirfeitos espetaculares que po<strong>de</strong>m se tornar produtos comerciaisaltamente lucrativos, e que geram um rápido acúmulo<strong>de</strong> capital para as gran<strong>de</strong>s empresas.E, finalmente, é preciso consi<strong>de</strong>rar que o negócio <strong>de</strong>sportivoraramente permite que atletas profissionais possam tomar suas<strong>de</strong>cisões contratuais com liberda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vido a regulamentos elimitações severos que controlam com mãos <strong>de</strong> ferro as suas23


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>ativida<strong>de</strong>s e provocam em seus espíritos a situação <strong>de</strong> subordinaçãopermanente. Nesse forte esquema <strong>de</strong> controle, as tentativas<strong>de</strong> protesto isolado e rebeliões eventuais são imediatamentereprimidas e <strong>de</strong>squalificadas.Por tais razões se observa acesso <strong>de</strong>crescente dos pobresaos bens e recursos necessários para a prática <strong>de</strong>sportiva a<strong>de</strong>quada,e se constata o abismo existente entre as enormes ganânciase privilégios <strong>de</strong>sportivos <strong>de</strong> elites minúsculas e a exclusãomassiva dos pobres, que arrancam <strong>de</strong> seu modo <strong>de</strong> vidaempobrecido alguns minutos <strong>de</strong> ócio <strong>de</strong> má qualida<strong>de</strong>, ou porvezes se entretêm assistindo ao circo do esporte montado comoforma <strong>de</strong> uma perfeita globalização alienante.Companhias esportivas, mercado global e saú<strong>de</strong>A mega iniquida<strong>de</strong> imposta pelatransnacionalização do esporteEmpresas transnacionais po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>finidas como ascorporações que exercem suas ativida<strong>de</strong>s além das fronteirasdo país <strong>de</strong> origem. Elas buscam manter contratos internacionaistanto com suas filiais e sucursais espalhadas ao redor doglobo, como também com empresas estranhas ao seu grupo econômicoe com os Estados aos quais <strong>de</strong>dicam suas ativida<strong>de</strong>s eque lhes provêm cobertura (SCHMITT; SANTORO, 2006).Com o objetivo <strong>de</strong> reduzir seus custos (<strong>de</strong> mão <strong>de</strong> obra,impostos, acessos a financiamentos), as gran<strong>de</strong>s corporaçõestêm se utilizado cada vez mais <strong>de</strong>sse recurso, pois isso significamaior competitivida<strong>de</strong> e ampliação <strong>de</strong> mercados, permitindo,por exemplo, no caso das transnacionais do esporte, projetarnovos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> calçados esportivos na Inglaterra; extrair do24


A Globalização e a Indústria do Esporte: saú<strong>de</strong> ou negócio?Brasil a matéria prima; enviar o produto ao Equador para serindustrializado; recolher todas as partes e montar o calçado naIndonésia; exportar o produto final para todo o mundo e, então,acumular o lucro das vendas em bancos <strong>de</strong> diferentes países.Como observado anteriormente, o esporte é um mega-negócioque integra o mercado global e envolve po<strong>de</strong>rosascorporações capitalistas transnacionais. Nesse contexto, não éexagero afirmar que a base para a aceleração do negócio esportivoglobal é, em gran<strong>de</strong> extensão, o resultado <strong>de</strong> operaçõesfraudulentas e acordos. Essa é uma das conclusões a que chegaramos jornalistas Simson e Jennings (1992).Ao investigarem os dirigentes do COI (Comitê OlímpicoInternacional), os jornalistas mostraram a corrupção que envolveos Jogos Olímpicos Mo<strong>de</strong>rnos, os quais se tornaram altamentelucrativos, <strong>de</strong> modo a ser a ferramenta favorita <strong>de</strong> certasempresas. Eles também <strong>de</strong>nunciaram que o COI mobilizaquantias imensas como patrocínio para seus eventos internacionais.E que enquanto são disseminados os valores do fair playe a ética do bom relacionamento esportivo, são reproduzidosos círculos aristocráticos <strong>de</strong> uma oligarquia que vive em condiçõesextremamente luxuosas, as quais transformaram o esporteinternacional e os Jogos Olímpicos em empreendimentos <strong>de</strong>lucro privado. De fato, apesar da gran<strong>de</strong> experiência dos jornalistasmencionados, cuja fama como tal resultou em estudosprósperos sobre a Máfia italiana, o caso Irã-Contras, o terrorismoe a corrupção na Scotland Yard, eles revelaram que o caso<strong>de</strong> corrupção no esporte Olímpico foi o mais difícil <strong>de</strong> ser investigado.Dentre as várias possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> discutir o po<strong>de</strong>rio empresarialque comanda o esporte em âmbito global, analisar ofutebol é dissecar o caso mais emblemático. Consi<strong>de</strong>rado o25


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Esporte Rei pela FIFA (Fe<strong>de</strong>ration International of FootballAssociation), envolve quase 250 milhões <strong>de</strong> pessoas diretamentena forma <strong>de</strong> praticante, <strong>de</strong>batedor ou espectador, e outros 1,4bilhões com algum outro tipo <strong>de</strong> interesse. Para ilustrar a magnitu<strong>de</strong><strong>de</strong> sua influência, po<strong>de</strong>-se mencionar que a audiência<strong>de</strong> jogos finais <strong>de</strong> Copa do Mundo chega a ser <strong>de</strong> 3 bilhões <strong>de</strong>espectadores, ou seja, o equivalente à meta<strong>de</strong> da populaçãoplanetária (HAAG, 2005).Em um “País do Futebol” típico como o Brasil (recordistaem títulos da Copa do Mundo da FIFA), sua principal confe<strong>de</strong>ração<strong>de</strong> futebol, CBF (Confe<strong>de</strong>ração Brasileira <strong>de</strong> Futebol),tem se transformado em uma empresa <strong>de</strong> caráter transnacional.Porém, o mais contraditório e curioso nesse processo, é queum dos efeitos mais importantes <strong>de</strong>sse fenômeno é o <strong>de</strong> que,tendo o Brasil se transformado num exportador <strong>de</strong> craques, ostorcedores brasileiros só reverenciam seus mais valiosos jogadoresquando eles atuam pela Seleção brasileira.Se, por um lado, isso é motivo <strong>de</strong> orgulho nacional, poisaqui são produzidos craques reverenciados no mundo todo, poroutro, isso caracteriza o Brasil como um país pobre que nãopo<strong>de</strong> manter seus jogadores em seu território.Um jogador que se <strong>de</strong>staca, jogando por um clubebrasileiro, tem seu <strong>de</strong>stino selado: em muito poucotempo estará jogando num clube europeu (GUEDES,2004, p. 8).Em síntese, essa é uma combinação entre nacionalização etransnacionalização, pois se os jogadores têm pátria, ao seremtransformados em mercadoria, já não têm!Jacobs e Duarte (2006), no livro Futebol Exportação, indicamque a venda da “mercadoria jogador <strong>de</strong> futebol brasileiro”para outros países cresceu 392% entre 1992 e 2005. Somente26


A Globalização e a Indústria do Esporte: saú<strong>de</strong> ou negócio?em 2005 foram 804 transferências, predominando mercadoscomo Alemanha, Itália, Espanha e Portugal, mas também figurandolugares antes impensáveis <strong>de</strong> se interessarem pelo “produto”,tais como países da África e Ásia. O Quadro 3 <strong>de</strong>monstra claramentea evolução histórica <strong>de</strong>sse importante negócio.AnoNúmero <strong>de</strong> transferênciasAnoNúmero <strong>de</strong> transferências19922351999658199332220007011994207200173619952542002665199638120038581997556200485719985322005804Quadro 3. Transferências <strong>de</strong> jogadores <strong>de</strong> futebol brasileiros para o exterior entre 1992 a 2005.Fonte: CBF/Folha <strong>de</strong> São Paulo (citado por JACOBS; DUARTE, 2006).A administração da Seleção brasileira <strong>de</strong> futebol ilustraessa transformação do jogador em “commodity” do esporte.Des<strong>de</strong> as primeiras <strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> talento dos jogadores,fato que po<strong>de</strong> ocorrer antes mesmo <strong>de</strong> alcançarem oprofissionalismo, os atletas são negociados preferencialmentecom clubes do exterior, geralmente da Europa. Como eles sãovaliosas mercadorias, seus clubes europeus, que são empresastransnacionais ou são ao menos patrocinados por elas, exercemforte pressão para que ocupem um papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque nocenário mundial, ganhem visibilida<strong>de</strong> e agreguem valor. Nessalógica, se uma estrela <strong>de</strong> futebol consegue jogar pela seleçãocinco vezes campeã mundial pela FIFA, é bem provável queseu valor aumente consi<strong>de</strong>ravelmente.Evidências <strong>de</strong>ssa situação po<strong>de</strong>m ser notadas facilmentepela convocação da Seleção brasileira <strong>de</strong> futebol para o jogodas eliminatórias para a Copa do Mundo, em 2010, contra o27


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Equador: dos 22 atletas, apenas dois jogavam em equipes brasileiras.Aqui é importante analisar os <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> dois <strong>de</strong>les(Quadro 4) que vinham sendo convocados regularmente paraesta Seleção. O primeiro é do goleiro Doni, contratado por umclube italiano, e o segundo é <strong>de</strong> Vagner Love, atacante doCSKA, da Rússia.Jogador/data da entrevistaDoni, entrevista fornecida em24/07/2007 e obtida em23/11/2007Vagner Love, entrevistafornecida em 14/06/2007 eobtida em 23/11/2007DepoimentoQuase todo clube europeu está procurando goleirobrasileiro. (...) Antes era só atacante, hoje a imagem dogoleiro é muito boa aqui na Europa, isso <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Taffarel,o Dida, o Júlio. Hoje tem o Gomes, o Elton, eu na Roma,então, acho que abriu mercado para o goleiro brasileiroe eu fico feliz com isso porque anos atrás falar <strong>de</strong>contratar um goleiro brasileiro era quase impossível.Repórter: O atacante Vagner Love está há 3 anos nofutebol russo, fato que é pouco visto, pouco comentado,mas ainda assim conseguiu chamar atenção do treinadorDunga e tem sido presença constante nas listas feitas pelotreinador.Vagner Love: Fico feliz por isso e o objetivo era esse, estarna Seleção e graças a Deus o Dunga está dandooportunida<strong>de</strong> aos jogadores que jogam na Itália,Espanha, Inglaterra...jogadores que estão jogando emMoscou, na Rússia (...)Quadro 4. Depoimentos <strong>de</strong> jogadores convocados pela Seleção Brasileira <strong>de</strong> Futebol(principal).Fonte: . Acesso em: 23 nov. 2007.O que foi chamado <strong>de</strong> “po<strong>de</strong>r da oligarquia” no futebol é<strong>de</strong>monstrado pela indicação do Brasil como o único candidatopara sediar a Copa do Mundo em 2014. De acordo com Athay<strong>de</strong>(2007), a CBF, diretamente, manipulou essa <strong>de</strong>cisão, graças aseus vínculos com o Estado brasileiro, as companhiastransnacionais e a FIFA.28


A Globalização e a Indústria do Esporte: saú<strong>de</strong> ou negócio?A análise das <strong>de</strong>cisões político-econômicas <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong>(2007, p. 32) mostram que:Teixeira {o Presi<strong>de</strong>nte da CBF} tem pela frentecompromissos políticos e comerciais com os quaisestá largamente habituado. O acordo com a NIKEgarante 12 milhões <strong>de</strong> dólares por ano e prevê bônus<strong>de</strong> 6 milhões caso o Brasil vença as Copas <strong>de</strong> 2010,2014 e 2018. A exclusivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transmissão pelaRe<strong>de</strong> Globo na tevê aberta ren<strong>de</strong> outros 600 mildólares, por jogo, à entida<strong>de</strong>. Ele também transformoua venda <strong>de</strong> jogadores da seleção e a negociação <strong>de</strong>amistosos em um gran<strong>de</strong> negócio. Em 2006, afe<strong>de</strong>ração russa pagou 1.5 milhão <strong>de</strong> dólares paraver a seleção da CBF em Moscou. [...] a CBF recebeu500 mil dólares para realizar um amistoso da seleçãobrasileira contra a Líbia. O jogo nunca aconteceu e odinheiro nunca foi <strong>de</strong>volvido [...].No caso da análise do futebol em nosso país (Brasil), umainvestigação sobre a corrupção foi iniciada pela Câmara dosDeputados (órgão do Legislativo brasileiro). Muitos fatos obscurose não esclarecidos envolvendo a NIKE e seus contratoscom a CBF indicaram problemas graves. Seguem alguns <strong>de</strong>staquesdos documentos oficiais (BOUDENS, 2002a):– Fazer do futebol um gran<strong>de</strong> negócio e da FIFA umagran<strong>de</strong> potência econômica que se sustente comrendas próprias tem sido a tarefa que se propôs JoãoHavelange, que foi presi<strong>de</strong>nte da entida<strong>de</strong> por 24anos.– Assim, hoje, praticamente todas as entida<strong>de</strong>s<strong>de</strong>sportivas ligadas ao futebol profissional estãorendidas à lógica do mercado [...] que se alimenta doproduto da compra e venda <strong>de</strong> jogadores, daparticipação no comércio <strong>de</strong> produtos e marcas edas diversas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> patrocínio intermediadaspor bancos <strong>de</strong> investimento.– O contrato regula <strong>de</strong>talhadamente o uso dochamado “Kit” da NIKE pela CBF [...] assegura, emsíntese, a onipresença da marca [...] a seleçãomasculina ficará à disposição da NIKE para um29


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>mínimo <strong>de</strong> 50 jogos ou exibições internacionais, aserem organizadas sob a responsabilida<strong>de</strong> daempresa, com direitos exclusivos <strong>de</strong> comercialização,patrocínio e licenciamento [...]. A NIKE tornou-setambém co-patrocinadora das escolas, clínicas equaisquer programas juvenis <strong>de</strong> futebol diretamenteoperados pela CBF.Nesse contexto, como já observado, o protesto dos jogadores<strong>de</strong> futebol contra o abuso e a exploração por parte <strong>de</strong> seuslí<strong>de</strong>res é firmemente controlado. Tais regras tão claramente opressivasgarantem a imposição <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r para subordinaros trabalhadores do esporte aos seus “donos” nacionais etransnacionais. A própria FIFA <strong>de</strong>terminou que os trabalhadoresdo futebol não <strong>de</strong>vem manifestar suas opções políticas emjogos. Eles também são praticamente obrigados pelos patrocinadores<strong>de</strong> clubes e pelos <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> seus passes (empresários)– <strong>de</strong>vido a condições contratuais –, a estampar as marcas<strong>de</strong> empresas em seus uniformes <strong>de</strong> treinamento e <strong>de</strong> jogos,reforçando claramente a disseminação <strong>de</strong> suas imagens públicasligadas à propaganda.É bem sabido que os atletas são permanentemente advertidos<strong>de</strong> que, se querem “sobreviver” nesse mundo <strong>de</strong> negócios,eles têm que cuidar bem <strong>de</strong> sua imagem pública. Assim, elessão “fortemente aconselhados” a controlar suas emoções noscasos polêmicos e que impliquem em conflito <strong>de</strong> interesse econômico.Aqueles que não seguem as regras e <strong>de</strong>sviam-se docomportamento passivo têm sido, frequentemente, acusados<strong>de</strong> conduta rebel<strong>de</strong>. Rebeldia que lhes custa caro, sendo utilizadoscastigos simbólicos que visam domesticar diretamentesuas consciências, bem como, indiretamente, amedrontar atodos os seus companheiros <strong>de</strong> profissão.O controle <strong>de</strong> rebeldia é realizado por meio <strong>de</strong> vários mecanismos.As principais medidas utilizadas para operar essa30


A Globalização e a Indústria do Esporte: saú<strong>de</strong> ou negócio?manipulação são as punições que envolvem: não convocaçãopara as seleções nacionais; isolamento dos atletas com treinoseparado das equipes; elevadas multas e interrupção dos contratos;cancelamento do calendário <strong>de</strong> publicida<strong>de</strong>; inclusãoem lista <strong>de</strong> in<strong>de</strong>sejáveis disponibilizadas para outros clubes.Assim, consi<strong>de</strong>rando que a carreira <strong>de</strong> atletas profissionais temvida curta, um único <strong>de</strong>scuido frente aos po<strong>de</strong>res instituídospo<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> difícil recuperação, fazendo com que o reinado dospo<strong>de</strong>rosos permaneça garantido.Esporte como cultura e lógica da competição ealto rendimento: pseudorrecreação,periculosida<strong>de</strong> e reforço da hegemoniaSendo o esporte mo<strong>de</strong>rno um formidável patrimônio dahumanida<strong>de</strong>, controlado na atualida<strong>de</strong> por interesses privados,as análises sobre ele não po<strong>de</strong>m mais se restringir apenas aocampo <strong>de</strong> jogo, pois muito do que aí acontece é <strong>de</strong>vido a pressõesexternas difíceis <strong>de</strong> serem percebidas quando observadassuperficialmente. Enfim, já não cabe mais a análise ingênua eromântica. É necessário chamar a atenção para a apropriaçãoeconômica oportunista do mundo dos esportes e também paraos <strong>de</strong>svios culturais <strong>de</strong>correntes, tais como os apelos machistase elitistas que manipulam e também contribuem para a lógicado mercado e para a <strong>de</strong>terioração das práticas corporais comouma fonte <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e conduta protetora.Portanto, para além dos muitos bons ensinamentos doesporte, é preciso reconhecer também seu imenso potencial <strong>de</strong>alienação política, e um dos aspectos <strong>de</strong>ssa alienação que maisincomoda é a naturalização dos acontecimentos sociais. Sobreo futebol, avaliamos ser extremamente perigoso consi<strong>de</strong>rar naturalque:31


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>• O sonho da excelência esportiva seja disseminadocomo possível <strong>de</strong> ser alcançado por todos, quandoabsolutamente não é!• Em nome <strong>de</strong>sse sonho se permita o investimento dosescassos recursos públicos na perspectiva do esporte<strong>de</strong> rendimento, bem como sejam estimulados <strong>de</strong> formairresponsável os esforços <strong>de</strong> famílias miseráveisna aposta do talento <strong>de</strong> suas crianças, sendo estasmuitas vezes confiadas a pessoas/instituições no mínimo<strong>de</strong>spreparadas para mediar a formação das criançasatletas e suas relações <strong>de</strong> sucesso/fracasso como esporte.• Seja permitido colocar em situação <strong>de</strong> exploraçãoqualquer ser humano que, não tendo outra opção, sesubmeterá a pressões e treinamentos <strong>de</strong>sgastantes queaviltam sua dignida<strong>de</strong>, provocam lesões por vezesirreversíveis e que po<strong>de</strong>m ampliar a chance <strong>de</strong> morte.• Seja feita vista grossa ao esvaziamento e<strong>de</strong>squalificação das organizações <strong>de</strong> classe – a exemplo<strong>de</strong> sindicatos – para <strong>de</strong>fesa dos interesses dos atletas– trabalhadores do esporte.• Até mesmo as escolas (uma das poucas instituiçõesque ainda se po<strong>de</strong> esperar que contribuam para oesclarecimento dos sujeitos quanto à realida<strong>de</strong> do esportee do trabalhador <strong>de</strong>ssa área) sejam apropriadascomo órgãos formadores do consenso que levamà reprodução <strong>de</strong>sse sistema, já figurando na atualida<strong>de</strong>como verda<strong>de</strong>iros centros <strong>de</strong> <strong>de</strong>tecção <strong>de</strong> talentose <strong>de</strong> treinamento <strong>de</strong>sportivo; <strong>de</strong>ssa forma, istoimpe<strong>de</strong> o aprendizado dos jogos, brinca<strong>de</strong>iras e es-32


A Globalização e a Indústria do Esporte: saú<strong>de</strong> ou negócio?portes orientados por outra perspectiva <strong>de</strong> emancipaçãohumana.• No esporte oferecido para os pobres e <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong>po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> toda or<strong>de</strong>m, se <strong>de</strong>senvolva a chamadatecnologia da improvisação (pedagogia do conformismo),com o argumento do estímulo à criativida<strong>de</strong>,quando o que acontece em geral é a enganação, comaproveitamento <strong>de</strong> locais e materiais <strong>de</strong> péssima qualida<strong>de</strong>,que não oferecem atrativos e que representaminsegurança para seus usuários.• No esporte sejam concedidos espaços cada vez maioresa valores e atitu<strong>de</strong>s imorais. Numa ativida<strong>de</strong> humanaeducativa por excelência, não é possível acreditarser natural a corrupção <strong>de</strong> atletas, árbitros edirigentes; uso/abuso <strong>de</strong> recursos ergogênicos; agressõesverbais e físicas contra etnias, classes sociais e gêneros;estabelecimento <strong>de</strong> normas, campeonatos e legislações/tribunais orientados pelos interesses do capital.Retornando ao Brasil como referência para as análises,este país, a exemplo <strong>de</strong> outros países da América Latina, temconquistado avanços importantes em termos políticos, econômicos,sociais e culturais nas últimas décadas. Apesar disso,ele permanece extremamente <strong>de</strong>sigual, com gran<strong>de</strong> parcela dapopulação vivendo em condições <strong>de</strong> pobreza e miséria absolutas.Dessa forma, ao invés <strong>de</strong> serem provocadas mudançassignificativas nas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e nas condições <strong>de</strong> vida dapopulação, as virtu<strong>de</strong>s do esporte, por serem muito sedutoras,têm sido disseminadas como algo mágico, associadas <strong>de</strong> formasimplista à resolução <strong>de</strong> problemas muito sérios da realida<strong>de</strong>brasileira, tais como o <strong>de</strong>semprego, a marginalida<strong>de</strong> e o usodas drogas.33


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Com esses elementos, é possível compreen<strong>de</strong>r que emmuitas situações o esporte é a tábua <strong>de</strong> salvação daqueles que,além do esporte, nada têm, nada po<strong>de</strong>m, nada esperam!Nesse contexto, as crianças talentosas para o futebol passama ser alvo preferencial <strong>de</strong> especuladores. De acordo comum documento da investigação parlamentar referente às transaçõesentre CBF/NIKE, existe uma Associação Internacional<strong>de</strong> Agentes <strong>de</strong> Jogadores. Tal ativida<strong>de</strong> é regulamentada pelaFIFA e, no Brasil, “os critérios <strong>de</strong> avaliação da aptidão paraatuar como intermediário são livremente estabelecidas pelaCBF”. Tratado como caso <strong>de</strong> “tráfico <strong>de</strong> seres humanos”, odocumento oficial (BOUDENS, 2002b) da Câmara dos Deputadosdo Brasil traz informações assustadoras que ajudam aesclarecer a lógica <strong>de</strong> empresa transnacional e mercadorização<strong>de</strong> atletas <strong>de</strong>senvolvida por essas instituições:• O empresário viaja pelo país em busca <strong>de</strong> criançasque <strong>de</strong>monstram bom potencial esportivo, mas aindanão têm vínculo contratual com algum clube. Daíentra em contato com a família, que geralmente seencontra em estado <strong>de</strong> ignorância e miséria, oferecendodinheiro em troca <strong>de</strong> uma procuração pela qualconsegue autorização para, em nome dos pais, assinarum contrato <strong>de</strong> trabalho com um clube estrangeiro.• No exterior, a criança é entregue ao clube que o “contratou”,cuja primeira providência é retirar da criançao passaporte. A criança passa a jogar futebol emcompetições on<strong>de</strong> o estilo <strong>de</strong> jogo é diferente daquelea que estava acostumado no Brasil e, por ser estrangeiro(e, principalmente, por ser sul-americano), é socialmentediscriminado. O empresário encerra sua missãoe o abandona à própria sorte.34


A Globalização e a Indústria do Esporte: saú<strong>de</strong> ou negócio?• As condições <strong>de</strong> trabalho são tão miseráveis (salário<strong>de</strong> fome, comida ruim, inexistência <strong>de</strong> plano <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,comunicação difícil) que não há como viver forado alojamento do clube. E se quiser retornar paracasa, terá muitas dificulda<strong>de</strong>s, pois não po<strong>de</strong> rompero contrato e não sabe como fazer contato com suafamília.• Nessas transações comerciais, portanto, há sérias violaçõesda Declaração Internacional dos Direitos Humanose do Estatuto (brasileiro) da Criança e doAdolescentePara concluir, nós temos que sublinhar o fato <strong>de</strong> que nãohá nenhuma dúvida quanto ao tipo <strong>de</strong> esporte explorador elucrativo i<strong>de</strong>alizado pelo COI, pela FIFA e por algumas dasmais <strong>de</strong>stacadas comissões nacionais <strong>de</strong> esporte, bem comoquanto aos interesses que controlam empreendimentostransnacionais e se reproduzem pelos Estados por meio <strong>de</strong> suaspolíticas públicas nas áreas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e educação. Essas práticassão impregnadas <strong>de</strong> valores e princípios que atentam contraa dignida<strong>de</strong> humana e os modos <strong>de</strong> vida saudáveis.Alternativas saudáveis para Educação Física eesporte <strong>de</strong>mocráticosO argumento <strong>de</strong> construir saú<strong>de</strong> é a melhor <strong>de</strong>sculpa paramultiplicar as vendas e ampliar o mercado <strong>de</strong> bens esportivos.Listas longas foram <strong>de</strong>senvolvidas para promover o consumismo:produtos <strong>de</strong>sportivos (bicicletas e tênis sofisticados, por exemplo);serviços (<strong>de</strong> médicos, nutricionistas, psicólogos e treinadores)e mega-estruturas <strong>de</strong>sportivas, estas quase sempreconstruídas e mantidas pelo Estado (como complexos aquáti-35


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>cos e estádios <strong>de</strong> futebol). No outro extremo, ou seja, para os<strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> recursos financeiros e historicamente afastadosdo acesso aos seus direitos, também é incentivada a prática <strong>de</strong>esportes. Mas, em geral, essa prática é realizada com produtos,serviços e estruturas em condições precárias, gerando falta<strong>de</strong> estímulo; dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> acesso; perda <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong> emuita insegurança.Apesar <strong>de</strong>sses obstáculos históricos e da dificulda<strong>de</strong> paraconstruir alternativas para eles, há propostas interessantes <strong>de</strong>senvolvidasem muitos lugares, análises <strong>de</strong>sportivas alternativase pesquisas sobre experiências concretas que estão abrindoo caminho para o esporte emancipador e saudável. Claro quemudanças profundas não ocorrerão sem lutas sociais e organização,mas é preciso construir alternativas críticas e contrahegemônicasque anunciem e sustentem tais possibilida<strong>de</strong>s. Assim,<strong>de</strong>vido à impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resumir toda essa experiênciarica e já disponível em extensa literatura <strong>de</strong>sportiva crítica, serão<strong>de</strong>stacadas aqui três linhas básicas <strong>de</strong> ação.Primeiramente, <strong>de</strong>ve-se fazer referência à necessida<strong>de</strong> emaprovar leis (nacionais e internacionais) que impeçam o maluso do sistema esportivo como um monopólio privado, e quepromovam a proteção das políticas públicas. Também temosque lutar pela institucionalização da responsabilida<strong>de</strong> e dosmecanismos <strong>de</strong> monitoramento da comunida<strong>de</strong>. É preciso realizaruma auditoria social que facilite a pesquisa e que controlepermanentemente os negócios <strong>de</strong>sportivos, envolvendo instituiçõesligadas ao esporte e às práticas corporais em todos osníveis. Leis que coloquem a soberania do Estado e os direitoshumanos e dos trabalhadores acima <strong>de</strong> toda a exploração daquelesque vivem do esporte (trabalhadores do esporte e nãosimplesmente atletas) e daqueles que vivem com o esporte(aprendizes em nível recreativo e espectadores/torcedores).36


A Globalização e a Indústria do Esporte: saú<strong>de</strong> ou negócio?O segundo eixo se refere às políticas públicas voltadas parao esporte. Não se po<strong>de</strong> aceitar que dinheiro público, principalmente<strong>de</strong> países empobrecidos, seja investido no esporte Olímpicocom toda sua natureza elitista. É preciso ter certeza queos recursos públicos serão aplicados no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>programas que visem a <strong>de</strong>mocratização do acesso ao esporte.Para ilustrar o que significa a priorida<strong>de</strong> nesse processo <strong>de</strong>investimento, basta lembrar os resultados dos Jogos Pan-americanosorganizados no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em 2007. Com o sloganrepetido <strong>de</strong> que esse mega-evento esportivo atrairia investimentosnovos e estimularia a economia do país, o evento representouuma verda<strong>de</strong>ira quebra financeira do Estado brasileiro: mais<strong>de</strong> 2 bilhões <strong>de</strong> dólares <strong>de</strong> investimentos públicos. Ou seja,essa quantia po<strong>de</strong>ria ter sido usada na construção <strong>de</strong> mais <strong>de</strong>15 mil estruturas esportivas diversificadas e <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, oque significa aproximadamente três constituições em cada cida<strong>de</strong>brasileira.Arruda (1997) diz que o maior <strong>de</strong>safio dos educadores élutar pela emancipação e libertação dos trabalhadores. Assim,a terceira linha <strong>de</strong> ação é a realização <strong>de</strong> uma profunda análisecrítica do ensino <strong>de</strong> esporte, uma vez que este é baseadopredominantemente em teorias que priorizam a busca do alto<strong>de</strong>sempenho e a competição.Então, seria possível acreditar no esporte movido por princípios<strong>de</strong>mocráticos e <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> e por valores que contribuiriamcom a saú<strong>de</strong> para além das possibilida<strong>de</strong>s orgânicas.Isso não significa <strong>de</strong>scartar o treinamento e a técnica, e simtrazer novos significados e assumir outros objetivos, que nãoreduzam as práticas corporais a metas utilitárias e imediatas.Isso implica em superar as perspectivas centralizadoras do processoeducativo no qual o professor <strong>de</strong>fine a priori o que é37


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>melhor para os estudantes e cria suas próprias estratégias paraalcançar os objetivos verticalmente assumidos em instituiçõesinternacionais <strong>de</strong>tentoras e centralizadoras <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, seguindocegamente as regras <strong>de</strong>sportivas e relações sociais pre<strong>de</strong>terminadas,ao invés <strong>de</strong> motivar o uso criativo do corpo e valorizara sabedoria popular, a organização coletiva e a subversão dasnormas impostas, frequentemente violentas, ilegítimas e imorais.Nessa nova perspectiva³, as escolas po<strong>de</strong>m se caracterizarcomo importantes centros <strong>de</strong> disseminação do esporte paralibertação humana. Para isso ser possível, elas precisam sertransformadas em espaços que alimentem tais experiências, oque necessariamente não requer equipamentos ou instalações<strong>de</strong> custo elevado. É perfeitamente possível realizar esporte paralibertação humana a partir <strong>de</strong> equipamentos e instalações simplese econômicas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que estimulantes e <strong>de</strong> boa qualida<strong>de</strong>.Seguindo essa lógica, consi<strong>de</strong>ra-se que o espaço escolar esua estrutura po<strong>de</strong>m constituir o que <strong>de</strong>nomina-se como Centros<strong>de</strong> Cultura Popular e <strong>de</strong> Movimento, criados e produzidosem parcerias entre comunida<strong>de</strong>s, movimentos sociais, Po<strong>de</strong>rPúblico e centros <strong>de</strong> formação científica com claras opções<strong>de</strong>mocráticas e revolucionárias.3 Esta discussão foi apresentada anteriormente em outra publicação do GHW (CAPELA; MATIELLO JÚNIOR,2005).38


A Globalização e a Indústria do Esporte: saú<strong>de</strong> ou negócio?ReferênciasAFP. Maneja 213 mil mdd anuales la industria <strong>de</strong>l <strong>de</strong>porteestaduni<strong>de</strong>nse. La Jornada, México, Distrito Fe<strong>de</strong>ral, ano 23,n. 8065, fev. 2007. Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Economia. Disponível em:. Acesso em:15 out. 2009.ALTUVE, Eloy. Deporte: mo<strong>de</strong>lo perfecto <strong>de</strong> globalización.Maracaibo: Centro Experimental <strong>de</strong> Estudios <strong>Latino</strong>americanos,Universidad <strong>de</strong>l Zulia, 2002.______. Juego, Historia, Deporte y Sociedad en América Latina,Maracaibo: Centro Experimental <strong>de</strong> Estudios <strong>Latino</strong>americanos,Universidad <strong>de</strong>l Zulia, 1997.ARRIGHI, Giovanni. Hegemony Unraveling. New Left Review,Londres, n. 32, mar./abr., 2005.ARRUDA, Marcos. A formação que interessa à classetrabalhadora. Revista Forma e Conteúdo, São Paulo, v. 1,p. 23-27, 1997.ATHAYDE, Phydia. Oligarquia do futebol. Carta Capital, País,n. 7, p. 30-35, nov. 2007.BREILH, J. Conferência <strong>de</strong> Abertura do XIV Congresso Brasileiro<strong>de</strong> Ciências do Esporte e I Congresso Internacional <strong>de</strong> Ciências <strong>de</strong>Esporte. Colégio Brasileiro <strong>de</strong> Ciências do Esporte. Universida<strong>de</strong>Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong> do Sul; 5 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2005.BOUDENS, Emile. O contrato CBF/NIKE/TRAFFIC. In: CPI CBF/NIKE: Textos e Contexto I. Brasília: Câmara dos Deputados,2002a.______. Medidas <strong>de</strong> prevenção à saída do país <strong>de</strong> atletas menores<strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. In: CPI CBF/NIKE: Textos e Contexto IV. Brasília:Câmara dos Deputados, 2002b.39


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>BOLTANSKI, Luc. Los Usos Sociales <strong>de</strong>l Cuerpo. Buenos Aires:Periferia, 1975.______. As Classes Sociais e o Corpo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Graal,1989.BREILH, Jaime. Epi<strong>de</strong>miología Crítica: Ciencia Emancipadora eInterculturalidad. Buenos Aires: Lugar Editorial, 2003. (Ediciónen portugués por Editora FIOCRUZ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2006).CAPELA; Paulo; MATIELLO JÚNIOR, Edgard. El Deporte y laLiberación Humana. In: BREILH, J. (Org.) Informe <strong>Alternativos</strong>obre la Salud en América Latina. Quito: Somos Punto y Línea,p. 270-275, 2005.ECHEVERRÍA, Bolivar. Vuelta <strong>de</strong> Siglo. México: Ediciones Era, 2006.GUEDES, Simoni Lahud. Mercado X pátria: a transnacionalizaçãodo esporte e os europeus do futebol brasileiro. In: VIII CongressoLuso-Afro-Brasileiro <strong>de</strong> Ciências Sociais, 2004, Coimbra,Portugal, 2004.GRUPO DE ESTUDOS E PESQUISA EM SOCIOLOGIA DOESPORTE. Um Outro Mundo é Possível e Nele Uma OutraCultura Esportiva. Goiânia: Manifesto ao II Fórum Social Mundialdo Grupo da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação Física da Universida<strong>de</strong>Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Goiás, 2002.HAAG, Carlos. A pátria pendurou as chuteiras? Revista PesquisaFapesp, São Paulo, n. 117, nov. 2005. Disponível em: .Acesso em: 15 out. 2009.HARVEY, David. New Imperialism. Oxford: The Oxford UniversityPress, 2003.JACOBS, Claudia Silva; DUARTE, Fernando. Futebol exportação.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Senac Rio, 2006.LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Mal<strong>de</strong>n: BlackwellPublishing, 1991.40


A Globalização e a Indústria do Esporte: saú<strong>de</strong> ou negócio?LEVINS, Richard; LEWONTIN, Richard. The Dialectical Biologist.Cambridge: Harvard University Press, 1985.LEWONTIN, Richard; ROSE, Steven; KAMIN, Leon. Not in OurGenes. New York: Pantheon Books, 1984.MACHADO, Juan; ESTRELLA, Lucia. Efectos <strong>de</strong> la GlobalizaciónNeoliberal en el Deporte: El Caso <strong>de</strong>l Baloncesto. Revista CubaSocialista, Habana, n. 12, p. 12, 1999.MCKWEON, T. The rise of mo<strong>de</strong>rn population. New York:Aca<strong>de</strong>mic Press, 1976.RICHTER, Nathan. U.S. College Basketball and the Missing SocialContract. The Globalist, Washington, 05 abr. 2007. Disponívelem: .Acesso em: 15 out. 2009.SCHMITT, Leandro <strong>de</strong> Mello; SANTORO, Valéria Figueiro.O fenômeno das empresas transnacionais. Boletim Jurídico,Uberaba, 09 out. 2006, seção Fique por Dentro. Disponível em:. Acesso em: 15 out. 2009.SILVA, Ana Márcia. Corpo, Ciência e Mercado. Florianópolis:Editora da UFSC, 2001.SIMSON, V. Y. V.; JENNINGS, Andrew. Os senhores dos anéis:po<strong>de</strong>r, dinheiro e drogas nas Olimpíadas Mo<strong>de</strong>rnas. São Paulo:Editora Best Seller, 1992.TANNER , J. Growth at Adolescence. 2. ed. Oxford: BlackwellScientific Publications, 1962.THOMAS, A. Esporte: introdução à psicologia. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Ao Livro Técnico, 1983.ZINGONI, Patrícia. Políticas públicas participativas <strong>de</strong> esporte elazer: da congestão à co-gestão. Revista Motrivivência,Florianópolis, v.10, n.11, p. 31-46, jul. 1998.41


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Uma Outra Cultura Esportiva éPossível: críticas e alternativas aomovimento olímpico internacionalArlindo <strong>de</strong> Souza Coelho Júnior*Antônio Jorge Chadud**Hugo Leonardo Fonseca da Silva***Marcelo Guina Ferreira****IntroduçãoEste texto foi produzido originariamente como manifestoapresentado ao Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre,Brasil. A pertinência do assunto, as repercussões da produção,durante e após o evento e sua atualida<strong>de</strong> motivaramsua publicação, com poucos ajustes, junto a este <strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong>,somando-se a tantos outros trabalhos que lutampor um outro mundo. Acredita-se que neste novo cenário mundialque se forja em diferentes nações e áreas <strong>de</strong> conhecimentoe intervenção, também uma outra cultura esportiva é possívele necessária. Uma cultura esportiva que se materialize como* Graduado em Educação Física/UFG, Professor <strong>de</strong> Educação Física das Re<strong>de</strong>s Estadual <strong>de</strong> Educação <strong>de</strong>Goiás e Municipal <strong>de</strong> Educação <strong>de</strong> Goiânia.** Especialista em Educação Física Escolar, Graduado em Educação Física e Ciencias Sociais pela UFGe Professor <strong>de</strong> Educação Física Re<strong>de</strong> Municipal <strong>de</strong> Educação e Cultura <strong>de</strong> Palmas.*** Mestre em Educação, Professor do Departamento <strong>de</strong> Educação Física da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Goiás– Campus Catalão. E-mail: hgleofonseca@hotmail.com**** Doutor em Educação, Professor da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação Física da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Goiás.42


Uma Outra Cultura Esportiva é Possível: críticas e alternativas ao movimentoolímpico internacionalexpressão <strong>de</strong> uma nova sociabilida<strong>de</strong> sensível às necessida<strong>de</strong>shumanas, inclu<strong>de</strong>nte, dialógica e comunicativa.As olimpíadas são a gran<strong>de</strong> referência dofenômeno esportivo no mundo contemporâneoe globalizadoO esporte se constitui como um dos fenômenos mais complexose abrangentes das socieda<strong>de</strong>s contemporâneas, tornando-seinclusive uma das práticas sociais <strong>de</strong> maior unanimida<strong>de</strong>quanto a sua legitimação social. Os jogos olímpicos são umadas expressões mais típicas <strong>de</strong>sse fenômeno, à medida que reúnem,num gran<strong>de</strong> evento, povos e culturas <strong>de</strong> todo mundo soba hegemonia dos países capitalistas centrais. Portanto, a maioriados países participantes encontra aí mais uma forma <strong>de</strong>manutenção da sua posição subalterna no quadro geral da“globalização” que, a rigor, tem sido muito mais um sustentáculoi<strong>de</strong>ológico do imperialismo político e econômico, e no casodas olimpíadas, revela sua face <strong>de</strong> imperialismo cultural.A instituição esportiva se expandiu tão rápidoquanto o capital pelo mundoA i<strong>de</strong>ia da constituição <strong>de</strong> um impérium mundi não é nova,remonta mesmo às origens do mundo oci<strong>de</strong>ntal, sendo inclusiveparte essencial <strong>de</strong> sua tradição intelectual. O fenômeno esportivotem contribuído <strong>de</strong>cisivamente para o processo milenar<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntalização do mundo. Basta ver que o esporte, <strong>de</strong> suaorigem à sua “globalização”, percorre basicamente o mesmoprocesso <strong>de</strong> expansão da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, surgindo em meio aos43


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>processos relacionados às Revoluções Industrial, Científica ePolítica ou Burguesa. É nesse contexto que tanto a instituiçãoesportiva, quanto o capitalismo alastram-se tão rápido e ferozmente,a partir da Europa para o mundo todo, refletindohegemonicamente as características da socieda<strong>de</strong> burguesa.O esporte possui características hegemônicasque são funcionais à or<strong>de</strong>m burguesaO esporte sob essas condições se <strong>de</strong>senvolveu com baseem características que refletem os valores mais funcionais paraa manutenção do status quo. Entre outros, é possível citar:racionalização, cujo pensamento técnico e científico predominasobre qualquer pensamento místico, tradicional ou religioso,fatos visíveis no esporte pela ênfase dada, cada vez mais, àquantificação dos feitos atléticos, numa maior especializaçãodos papéis a serem executados pelos atletas e pelo <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> táticas e estratégias <strong>de</strong> jogo cada vez mais “frias” ecalculistas; secularização, que po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>finir como processopelo qual as representações sociais não estão atreladas a explicaçõesreligiosas, e sim calcadas na razão científica e nas técnicasdando-lhes um certo caráter “profano”; por outro lado, oesporte enquanto promotor da força <strong>de</strong> trabalho, nos mol<strong>de</strong>sdo sistema capitalista, reproduz em seu interior a divisão socialdo trabalho e sua alta complexida<strong>de</strong>, o que reflete na especialização<strong>de</strong> papéis, que limita as potencialida<strong>de</strong>s humanas, poisdo conjunto <strong>de</strong> aquisições e habilida<strong>de</strong>s técnico-esportivas que,em tese, estariam disponíveis a atletas, restringe-se a apenasalgumas exigidas pelos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> performance e <strong>de</strong>sempenhohegemônicos; regulação em alta escala que se caracterizapor uma forma <strong>de</strong> controle social exercida não só <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cima44


Uma Outra Cultura Esportiva é Possível: críticas e alternativas ao movimentoolímpico internacionalpelo MOI (Movimento Olímpico Internacional), mas também<strong>de</strong>s<strong>de</strong> baixo, por exemplo, pelas famílias e clubes que fomentamuma <strong>de</strong>terminada “obsessão” pelo resultado máximo. Issosem falar que os códigos (regras, estruturas hierárquicas, etc.),criados pelo COI (Comitê Olímpico Internacional) e pelas confe<strong>de</strong>rações,são reguladores do funcionamento da prática esportivaatravés <strong>de</strong> instrumentos como, por exemplo, a CartaOlímpica. Assim, os envolvidos com o esporte (atletas, dirigentes)ficam submetidos a um controle hierárquico do qual nãosão sujeitos ativamente implicados em sua construção. Outrascaracterísticas do esporte, como os condicionantes econômicos,o treinamento esportivo e os resultados técnicos, se tornamimportantes no processo regulador <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e consciênciasindividuais e coletivas; a burocratização traz um novomo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> organização para o esporte, em que nascem as fe<strong>de</strong>rações,as gran<strong>de</strong>s promotoras dos torneios <strong>de</strong> “alto nível”(altamente comerciais). As novas organizações formam as ligasprofissionais que adéquam o esporte à lógica do capitalismoindustrial, por sua vez essa nova lógica faz com que váriaspráticas corporais sejam esportivizadas, fortalecendo ainda maisum <strong>de</strong>terminado mo<strong>de</strong>lo burocrático. A comercialização e consumoexacerbado e a prática do doping são outras característicasdo esporte mo<strong>de</strong>rno já bastante conhecidas e assunto que,<strong>de</strong> certa forma, será abordado mais adiante.O movimento olímpico é a mola propulsora da“oci<strong>de</strong>ntalização esportiva do mundo”Juntamente com a expansão do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntalpara o restante do mundo, o esporte se torna uma dasestruturas difusoras da nova organização social, e o MOI é a45


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>mola propulsora <strong>de</strong>ssa difusão. Des<strong>de</strong> sua origem, o MOI tema cúpula formada por Barões (a começar pelo Barão Pierre <strong>de</strong>Coubertain), Príncipes e Aristocratas. Nos atuais dias, eles foramsucedidos por toda sorte <strong>de</strong> ricos e endinheirados “homens<strong>de</strong> negócio”. Nunca houve espaço nessa cúpula para a“classe que vive do trabalho”. Nesse sentido, como po<strong>de</strong>ria oMOI <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser um gran<strong>de</strong> difusor da visão social <strong>de</strong> mundoa que pertenciam e, ainda, pertencem aqueles que, na acepçãodo pensador Antônio Gramsci, lhe conferem a <strong>de</strong>vida direçãomoral e intelectual? Aqui basta um único exemplo: a próprianoção <strong>de</strong> internacionalismo do MOI nada tem a ver comaquela outra, construída pelo movimento operário internacional.A verda<strong>de</strong> é que os conflitos centrais da socieda<strong>de</strong> burguesageraram, à época, duas organizações (não instituições) esportivasparalelas e rivais. A classe trabalhadora europeia éfundadora, inclusive, <strong>de</strong> uma Associação Internacional Socialistapara o Esporte e a Cultura Corporal. A primeira[...] constrói (sic) uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> clubes ginásticoesportivosreunidos em fe<strong>de</strong>rações nacionais (einternacionais), que procura dar um sentido“proletário” à prática da ginástica e do esporte,criticando o individualismo e a competição,consi<strong>de</strong>rados valores burgueses, enfatizando asolidarieda<strong>de</strong> (<strong>de</strong> classes). Este movimento chegou aorganizar três gran<strong>de</strong>s olimpíadas especificamente daclasse trabalhadora. Esta organização estava ligadaà luta mais geral da classe trabalhadora, sofrendoinclusive a divisão própria da internacional bemsocialista e comunista e após a Segunda GuerraMundial não po<strong>de</strong> mais ser recuperada. O argumentocentral para se constituir apenas uma organizaçãoesportiva, congregando os interesses “exclusivamenteesportivos”, foi o <strong>de</strong> que um dos males e equívocosocorridos havia sido a instrumentalização políticado esporte (no caso o da olimpíada <strong>de</strong> Berlim porHitler), <strong>de</strong>vendo permanecer neutro (BRACHT, 1997,p. 104).46


Uma Outra Cultura Esportiva é Possível: críticas e alternativas ao movimentoolímpico internacionalUm espetáculo <strong>de</strong> racismo, terrorismo,boicotes, bloqueios, etc.Sabe-se <strong>de</strong> vários episódios <strong>de</strong> uso político-i<strong>de</strong>ológico doesporte. O exemplo mais famoso ocorreu na Olimpíada <strong>de</strong> Berlimem 1936, quando o regime nazista pretendia fazer do evento avitrine da suposta superiorida<strong>de</strong> da raça ariana. Felizmente, onegro norte-americano Jesse Owens, ganhador <strong>de</strong> duas medalhas<strong>de</strong> ouro, provou, já naquela época, que um outro mundoé possível.Durante os anos <strong>de</strong> bipolarida<strong>de</strong> e da Guerra Fria, as olimpíadasse tornaram um palco privilegiado para o confronto entreas superpotências e suas respectivas áreas <strong>de</strong> influência, exemplodisso foram os boicotes às Olimpíadas <strong>de</strong> Moscou (1980) eLos Angeles (1984). Mas com o colapso dos regimes do LesteEuropeu, as olimpíadas passam a ser um palco privilegiadopara os países capitalistas centrais expressarem sua supremacia.Símbolo <strong>de</strong>sses novos tempos é a admissão, a partir daOlimpíada <strong>de</strong> Barcelona em 1992, dos atletas da liga profissional<strong>de</strong> basquetebol dos EUA, a NBA. Numa estratégia <strong>de</strong>marketing a imprensa logo se encarregou <strong>de</strong> batizá-los <strong>de</strong> DreamTeam. O fato <strong>de</strong> que é praticamente impensável algum outropaís do mundo vencê-lo, simboliza a hegemonia norte-americanaatualmente, ainda mais pensando que tal fato só se tornoupossível com o fim da URSS, o que permitiu aos EUAimpor sua vonta<strong>de</strong> soberana ao COI (como já se faz na ONU,FMI, Banco Mundial, etc.) sem qualquer resistência.Como esquecer ainda dos protestos dos Black Phanters,estaduni<strong>de</strong>nses negros que, em sintonia com as lutas raciaisem seu país, erguiam os punhos fechados quando subiam aopódio durante a olimpíada do México em 1968? Em tempos <strong>de</strong>47


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>terrorismo há <strong>de</strong> se lembrar dos atentados contra a equipe israelensena Olimpíada <strong>de</strong> Munique em 1972.De novo em Barcelona, em 1992, torcedores cubanos,aproveitando o elevado prestígio internacional <strong>de</strong> seus atletasparticipantes do evento, realizaram uma manifestação contraa atual situação política <strong>de</strong> Cuba, portando um cartaz com osseguintes dizeres: “Rompemos o Bloqueio”.Por tudo isso não se po<strong>de</strong> ignorar que as olimpíadas mo<strong>de</strong>rnasrefletem os conflitos e contradições do mundo em quese vive atualmente. Se realmente um outro mundo é possível,é necessário superar o atual.Neoliberalismo, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, exclusão epolíticas públicas <strong>de</strong> olimpismoCom o avanço do neoliberalismo no mundo, as condições<strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e miséria extremas são agravadas. Assim, omito da igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s nas competições esportivascai por terra, bastando uma passada <strong>de</strong> olhos pelo quadro<strong>de</strong> medalhas olímpicas, para ver o abismo econômico, político,cultural e tecnológico que separa os países ricos (ganhadoresda quase totalida<strong>de</strong> das medalhas) dos países africanos elatino-americanos, po<strong>de</strong>-se citar apenas dois exemplos.Mas há também o exemplo <strong>de</strong> Cuba, que, mesmo sem opo<strong>de</strong>rio econômico da Europa Oci<strong>de</strong>ntal e dos EUA, ganhaum número expressivo <strong>de</strong> medalhas, reflexo da justiça social edos avanços que o socialismo possibilitou a seu povo.Apesar disso, em países como o Brasil, as autorida<strong>de</strong>s,ligadas ao Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e ao próprio governoe seus órgãos responsáveis pelo esporte nacional continuamconsi<strong>de</strong>rando que o <strong>de</strong>senvolvimento e a promoção do48


Uma Outra Cultura Esportiva é Possível: críticas e alternativas ao movimentoolímpico internacionalesporte po<strong>de</strong>m ser realizados “apesar <strong>de</strong>”, “por cima <strong>de</strong>”, ou“mesmo com” uma socieda<strong>de</strong> estruturalmente <strong>de</strong>sigual eexclu<strong>de</strong>nte, bastando para tanto políticas públicas pontuais,que inci<strong>de</strong>m na especificida<strong>de</strong> do fenômeno esportivo. Depoisdo “vexame” brasileiro na olimpíada em 2001, na Austrália, oGoverno <strong>de</strong> Fernando Henrique Cardoso resolveu apostar numaversão “pós-mo<strong>de</strong>rna” da velha política da escola como baseda pirâmi<strong>de</strong> esportiva, já implementada sem sucesso nos anos<strong>de</strong> 1960 e 1970. Para tanto, anunciou verbas e recursos paraProgramas <strong>de</strong> Esporte Educacional, o que <strong>de</strong>spertou críticas eresistências por parte das entida<strong>de</strong>s científicas e movimentossociais progressistas vinculados à área <strong>de</strong> Educação Física/Ciênciasdo Esporte. Em tempos <strong>de</strong> neoliberalismo é bom lembrarque isso significou mais recursos do (já tão escasso) FundoPúblico para aten<strong>de</strong>r a fins privados/particulares estabelecidospelo COI. Na verda<strong>de</strong>,[...] se instalou uma parceria entre po<strong>de</strong>r público eorganização esportiva. Essa organização esportiva éhoje um gran<strong>de</strong> lobby econômico internacional, umverda<strong>de</strong>iro governo internacional do esporte que usa(e abusa) do po<strong>de</strong>r (e do dinheiro) público. O sistemaesportivo é um parceiro dos governos fe<strong>de</strong>rais queoferece como retorno, basicamente, um produtosimbólico que é o prestígio – reconhecimentointernacional com repercussões internas <strong>de</strong> caráterlegitimador, e, secundariamente, um retornoeconômico. Aliás, esta dimensão, a econômica, ten<strong>de</strong>a assumir a posição central na questão dos motivosda intervenção do Estado. Assim, uma primeiraindicação a uma política pública para o setor <strong>de</strong>cunho <strong>de</strong>mocrático é superar finalmente a idéia dapirâmi<strong>de</strong> e sua perspectiva implícita <strong>de</strong> que o sistemaesportivo teria como finalida<strong>de</strong> a produção <strong>de</strong> atletascampeões, idéia que, por incrível que pareça,permanece firme na mente dos políticos, no sensocomum político e é usada e afirmada pelo sistemaesportivo nacional e internacional, porque lhe éfundamental. Não para recrutar melhores praticantes,49


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>como é o discurso, mas para a socialização do exército<strong>de</strong> consumidores <strong>de</strong> seu produto e seus subprodutos.(BRACHT, 1997, pp. 82-83)O olimpismo não é filosofia, é i<strong>de</strong>ologia – overda<strong>de</strong>iro i<strong>de</strong>al olímpico se tornou o lucroO olimpismo se confirma como uma i<strong>de</strong>ologia e não comofilosofia, já que não forma uma i<strong>de</strong>ia seguida <strong>de</strong> uma práticaconcreta. Os jogos olímpicos mo<strong>de</strong>rnos, através <strong>de</strong> uma audiênciamonumental e com o <strong>de</strong>senvolvimento dos acontecimentosolímpicos, criam esponsorização ou principal referênciaeconômica da comunicação aos jogos olímpicos. As gran<strong>de</strong>sempresas (Coca-Cola, Nike, Reebock, IBM e outras) são anunciantesque <strong>de</strong>stinam recursos elevados para conseguirem chegaraos telespectadores <strong>de</strong>ssas manifestações esportivas. Osjogos olímpicos são objeto <strong>de</strong> apropriação em regime do monopóliopor parte do COI, que atua como uma empresamultinacional, cujo risco <strong>de</strong>corre do sistema <strong>de</strong> economia <strong>de</strong>mercado e <strong>de</strong> livre empresa privada sem sofrer seus inconvenientes.Os atletas são os artifícios da espetacularida<strong>de</strong> esportiva,e se convertem em agentes publicitários das gran<strong>de</strong>s empresas,caracterizando-se como um símbolo atrativo, fazendodo esporte um indutor do consumismo.Com altos salários os atletas se transformaram emverda<strong>de</strong>iros produtos industriais que sãocomercializados através dos managers, queconstituem uma nova categoria <strong>de</strong> profissionaisincorporada ao mercado <strong>de</strong> trabalho na área doesporte. Um exemplo disso, foram os rumores sobre oiminente retorno <strong>de</strong> Michel Jordan, em março <strong>de</strong>1995, à liga NBA, que dispararam as ganâncias dosinvestidores em Wall Street e a bolsa novaiorquina.As ações das companhias que utilizam para sua50


Uma Outra Cultura Esportiva é Possível: críticas e alternativas ao movimentoolímpico internacionalpromoção comercial a imagem <strong>de</strong> Air Jordan haviamaumentado suas cotas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o arranque do rumor,em mais <strong>de</strong> dois pontos. Foram 300 milhões <strong>de</strong>dólares, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ando esse incrível fenômeno pelascompanhias: o estoque dos sapatos esportivos NIKEaumentou em 3,3%, as ações da multinacionalMcDonald's ascen<strong>de</strong>ram 4,4% nas últimas jornadas,os produtos alimentícios General Mills, 4,8% e até amarca <strong>de</strong> cereais Quaker Oats aproveitou o ruídocom 1,12% <strong>de</strong> aumento. (CARRAVETA, 1997, p. 47).Rumo a uma outra cultura esportivaNo Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisa em Sociologia do Esporteda FEF/UFG acredita-se que uma nova cultura esportiva seráproduto e produtora e será fruto <strong>de</strong> uma nova socieda<strong>de</strong>. Deseja-seaqui encerrar este manifesto socializando um pouco dasdiscussões que têm ocorrido no Grupo, com o objetivo <strong>de</strong>ampliá-las e enriquecê-las com outras contribuições, sugestõese críticas.Pensamos que uma outra cultura esportiva teráque, necessariamente, romper com a forma-mercado<strong>de</strong> organização econômica <strong>de</strong> nossas socieda<strong>de</strong>s.No mercado capitalista internacional sabemosbem quem serão os <strong>de</strong>tentores – “sob regime <strong>de</strong> monopólio”– da mais mo<strong>de</strong>rna tecnologia esportiva, quemreunirá as melhores condições <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho esportivo;e quem ficará, mais uma vez, excluído do acesso aequipamentos, instalações, conhecimentos, etc.Pensamos que uma cultura esportiva alternativapo<strong>de</strong>rá ser fruto <strong>de</strong> variados modos <strong>de</strong> planejamentoeconômico. Rompendo com a lógica <strong>de</strong> mercado,e ao mesmo tempo com os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> planejamentoeconômico centralizados e burocráticos que acabarampor fazer predominar no “socialismo realmente exis-51


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>tente” uma economia planificada, permitirá que a “riquezaesportiva” (tecnologia, equipamentos, conhecimentose pesquisa, instalações, etc.) produzida e acumuladapela humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> sofrer apropriaçãoprivada, para que todos possam ter acesso e <strong>de</strong>la usufruir,num processo <strong>de</strong> apropriação social <strong>de</strong>mocrático ecoletivo em escala mundial.Pensamos que uma nova cultura esportiva terá que,necessariamente, romper com o imperialismo cultural.Ora, sob as condições acima aludidas do mercado,as olimpíadas acabam por se tornar um gran<strong>de</strong> espetáculo<strong>de</strong> imperialismo cultural, cujo melhor símbolo pareceser o Dream Team dos EUA. Aos povos do dito terceiromundo, África, Ásia (à exceção, por exemplo, da China edo Japão) entre outros, que não estão totalmente excluídos,resta pouco espaço numa olimpíada para a expressão<strong>de</strong> suas culturas, que não seja <strong>de</strong> maneira subalterna.Pensamos que uma cultura esportiva alternativaterá que ser multidimensional. Tratar os povos e suasculturas apenas como uma questão <strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> e diferença,sem analisar radicalmente as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rmaterial e simbólico, que privilegiam uns em <strong>de</strong>trimento<strong>de</strong> outros, em suma, dar tratamento igual para <strong>de</strong>siguais,como historicamente faz o COI, é um sustentáculo po<strong>de</strong>rosodo olimpismo hegemônico. Assim, uma nova culturaesportiva terá que necessariamente realizar esse exameradical das condições históricas objetivas que possibilitamtanto a manutenção quanto a transformação doimperialismo também na sua faceta cultural. Quando ospovos realmente pu<strong>de</strong>rem usufruir com mínimas condições<strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>, e segundo seus costumese tradições escolher aquilo que <strong>de</strong>sejam usufruir,ou não, então po<strong>de</strong>remos pensar num esporte que respeiteo multiculturalismo como contraponto ao imperialismocultural.Pensamos que uma cultura esportiva alternativaterá que, necessariamente, romper com a razão52


Uma Outra Cultura Esportiva é Possível: críticas e alternativas ao movimentoolímpico internacionalinstrumental que anima o i<strong>de</strong>al olímpico burguês.Como sabemos, a i<strong>de</strong>ologia do olimpismo cria uma falsanecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recor<strong>de</strong>s e resultados esportivos, exigidospelos patrocinadores, espectadores, mídia, etc. Surgeentão a indústria dos meios artificiais – dopping –para obtenção <strong>de</strong>sses resultados. As indústrias <strong>de</strong>fármacos se tornaram po<strong>de</strong>rosas e influentes junto a atletas,equipes esportivas e até mesmo junto ao COI. Esseexemplo do dopping é bastante ilustrativo da(ir)racionalida<strong>de</strong> que anima o olimpismo mo<strong>de</strong>rno e seusistema <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> meios para alcançar os fins <strong>de</strong>sejados,mas sem uma discussão ampla e aprofundada<strong>de</strong>stes mesmos fins. As consequências, no caso dodopping, po<strong>de</strong>m ser (como ocorrem inúmeras vezes) amorte do atleta que fez uso <strong>de</strong> substâncias químicas.Assim, o que esperar <strong>de</strong> uma racionalida<strong>de</strong> queinstrumentaliza o corpo humano (mulheres que per<strong>de</strong>msuas características femininas, como o timbre <strong>de</strong> voz eacentuado crescimento <strong>de</strong> pêlos pelo corpo; homens queficam estéreis, câncer do fígado em ambos os sexos, etc.)em nome <strong>de</strong> um sistema produtivo que coloca o lucroantes e acima das pessoas?Pensamos que uma outra cultura esportiva po<strong>de</strong>rábasear-se numa razão mais comunicativa, abertae dialógica. Este espaço é um bom exemplo da capacida<strong>de</strong>comunicativa que possuem os povos do mundopara, com diálogo, refletirem sobre seus problemascomuns, pensarem <strong>de</strong>mocrática e radicalmente em soluçõesantissistêmicas diante <strong>de</strong> um capitalismo que se revelacada vez mais senil, <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte. Pensamos que umanova cultura esportiva po<strong>de</strong>rá enraizar-se a partir <strong>de</strong> umnovo internacionalismo, bem distinto daquele preconizadopelo COI; <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>mos um internacionalismo <strong>de</strong>novo tipo, no qual a melhor tradição do movimento operáriocontinua bem viva, como no caso <strong>de</strong> muitos sindicatoscombativos, militantes socialistas e comunistas e<strong>de</strong> certas correntes <strong>de</strong> extrema esquerda (anarquistas etrotskistas), assim como na ala esquerda dos movimentosautonomistas e <strong>de</strong> libertação nacional. Ele po<strong>de</strong>, em53


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>certas condições, exercer uma influência <strong>de</strong> massa. Poroutro lado, novas sensibilida<strong>de</strong>s internacionalistas <strong>de</strong>spontamem certos movimentos sociais planetários (feminista,ecológico), nos movimentos europeus da juventu<strong>de</strong>antirracista, nas mobilizações <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> com oTerceiro Mundo, em algumas ONGs cristãs ou laicas (AnistiaInternacional). É da fusão entre a tradição classista,socialista, anti-imperialista dos primeiros e das novasexigências humanistas, ecológicas e <strong>de</strong>mocráticas dossegundos que po<strong>de</strong>rá surgir o “internacionalismo <strong>de</strong>amanhã”. E é nessa possibilida<strong>de</strong> utópica que <strong>de</strong>positamosnossas melhores esperanças, porque o esporte hojehegemônico é o esporte da pré-história da humanida<strong>de</strong>,enquanto que o nosso sonho é uma cultura esportivacuja construção apenas começará, quando começar verda<strong>de</strong>iramentea História da Humanida<strong>de</strong>.ReferênciasBRACHT, Valter. Sociologia Crítica do Esporte: uma introdução.Vitória: Editora da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo, 1997.CARRAVETA, Elio Salvador. O Esporte Olímpico: novosparadigmas <strong>de</strong> suas relações sociais e pedagógicas. Porto Alegre:Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, 1997.54


Responsabilida<strong>de</strong> Social, ONGs e Esporte: o caso do Instituto Ayrton Senna no BrasilResponsabilida<strong>de</strong> Social, ONGs eEsporte: o caso do InstitutoAyrton Senna no BrasilJuliano Silveira*Introdução: os novos mecenas da questão social?Há muitos fenômenos do final do Século XX que aindacarecem <strong>de</strong> uma melhor teorização. Um <strong>de</strong>les é o vertiginososurgimento e proliferação das chamadas Organizações nãogovernamentais– ONGs. Embora o termo ONG tenha sidoutilizado primordialmente no início dos anos <strong>de</strong> 1950, tais organizaçõesse expan<strong>de</strong>m e ganham visibilida<strong>de</strong> apenas no finaldo Século XX e início do Século XXI, principalmente, por meio<strong>de</strong> eventos internacionais e pelo <strong>de</strong>staque <strong>de</strong> algumas organizaçõesem campanhas filantrópicas ou mesmo instituições <strong>de</strong>gran<strong>de</strong> presença na mídia, como é o caso do Greenpeace. Nessecontexto mais recente, elas são concebidas como componentesdo chamado “terceiro setor”.As ONGs ten<strong>de</strong>m a assumir funções ou <strong>de</strong>senvolver açõesque, num momento anterior, eram exclusivamente responsabilida<strong>de</strong>do Estado. Portanto, a sua expansão também está ligadaao processo crescente <strong>de</strong> agudização das contradições capi-* Mestre em Educação Física – Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina - UFSC. E-mail:juliano_silveira@yahoo.com.br.55


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>talistas, que culminam em índices assombrosos <strong>de</strong> miséria e<strong>de</strong>gradação humana, caminhando juntamente com o citado“<strong>de</strong>scaso estatal” referente às políticas públicas chamadas sociais.Dessa maneira, constata-se um processo no qual foi abertauma via <strong>de</strong> comunicação entre a socieda<strong>de</strong> civil e o Estadojustamente num momento em que se <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ava[...] um processo <strong>de</strong> ajuste estrutural que previatransferir responsabilida<strong>de</strong>s do Estado para asocieda<strong>de</strong> e inserir as ONGs no projeto <strong>de</strong>colaboração <strong>de</strong> políticas compensatórias (TEIXEIRA,2002, p. 107).Como consequência, a constatação da ineficácia estatal,fortalecida e divulgada especialmente pela onda neoliberal,incentiva o surgimento <strong>de</strong>ssas instituições na socieda<strong>de</strong> civil.Problemas crônicos ou mal resolvidos pela administração estatalsão assumidos voluntariamente pelas ONGs.O terceiro setor é apresentado como outra esfera da vidaem socieda<strong>de</strong>, como um novo elemento a incorporar tudo oque não é estatal ou mercantil. O Estado seria o local da políticae o mercado seria o local da economia, enquanto que asocieda<strong>de</strong> civil ou terceiro setor seria o espaço do social, dasrelações sociais baseadas na solidarieda<strong>de</strong> e no altruísmo, quepromoveria a participação da comunida<strong>de</strong> (MELO, 2005). Essediscurso que visa à fragmentação dos setores como universosisolados, ou talvez em coatuação, difun<strong>de</strong> a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que caberiaà socieda<strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r pela questão social. Assim, os cidadãos,valendo-se <strong>de</strong> iniciativas individuais, <strong>de</strong>veriam unir-se paraenfrentar seus problemas, num processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>spolitização erepolitização pelo não conflito.Esta proposta <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> social individual substituia concepção <strong>de</strong> direitos sociais pela concepção <strong>de</strong> serviços56


Responsabilida<strong>de</strong> Social, ONGs e Esporte: o caso do Instituto Ayrton Senna no Brasilsociais, configurando-se como concessão ou ainda mercadoriaa ser consumida. E, para além disso, produz uma separaçãodas esferas política, econômica e social, como realida<strong>de</strong>s in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,o que conduz a uma espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>spolitização dosocial, como se esse âmbito não fosse <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do econômicoe também do político. Assim, as lutas pelo social per<strong>de</strong>m<strong>de</strong> seu foco as contradições <strong>de</strong> classe, o movimento do mercado,o <strong>de</strong>semprego, as orientações políticas conjunturais, as reivindicaçõesjunto ao Estado; e passam <strong>de</strong>finitivamente para ocampo da autoajuda, da solidarieda<strong>de</strong> funcional ao capital,das soluções engendradas <strong>de</strong>ntro da própria comunida<strong>de</strong>, daeconomia informal, etc.São necessárias algumas ressalvas acerca das ONGs e <strong>de</strong>seus objetivos. Com toda certeza não se po<strong>de</strong> tratar essas organizaçõescomo entida<strong>de</strong>s homogêneas, com os mesmos finse inseridas numa mesma lógica. Não se po<strong>de</strong> negar a existência<strong>de</strong> organismos que ainda preservam em suas ações um papel<strong>de</strong> questionamento e cobrança das ações do Estado, a lutacontra a expansão capitalista à custa da <strong>de</strong>gradação ambientale da saú<strong>de</strong>, a mobilização social pela cidadania e respeito aosdireitos sociais, etc. No entanto, como trata-se especificamenteda vertiginosa expansão das ONGs como responsáveis pelaquestão social, isto é, pelo <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> ações junto àsprincipais vítimas do capitalismo, enten<strong>de</strong>mos que a críticatecida anteriormente não per<strong>de</strong> sua valida<strong>de</strong> em vista da citadaheterogeneida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas organizações.É nesse contexto e com essas advertências que este trabalhose insere. Trata-se <strong>de</strong> um ensaio que tem como principal objetivodiscutir o “papel social do esporte” na contemporaneida<strong>de</strong>. Taldiscussão leva em consi<strong>de</strong>ração as ações do Estado frente àadoção <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>ário neoliberal e à proliferação <strong>de</strong> “agentes”no âmbito da “socieda<strong>de</strong> civil”, que, por meio do discurso da57


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>corresponsabilida<strong>de</strong>, sugerem saídas para os problemas sociaisatravés do esporte.Como forma <strong>de</strong> ilustrar esse tipo <strong>de</strong> apropriação, ao finalserão apresentados alguns dados parciais e preliminares <strong>de</strong>pesquisa realizada sobre uma ONG brasileira – o Instituto AyrtonSenna. Tal ONG se apropria do nome <strong>de</strong> um ícone do esportemundial, estabelecendo parcerias com o Estado, mas tambémcom a iniciativa privada, visando <strong>de</strong>senvolver projetos na áreada educação com crianças e jovens em situação <strong>de</strong> risco social.Esporte e políticas públicas no BrasilEm termos <strong>de</strong> Brasil, po<strong>de</strong>-se dizer que a trajetória políticado esporte tem início no Século XIX, quando o esporte chegaao país por meio da imigração europeia. Desse momentoaté o início da década <strong>de</strong> 1930, observa-se uma efetiva autonomiada socieda<strong>de</strong> para se organizar esportivamente. Com aRevolução <strong>de</strong> 1930 e o Estado Novo, é <strong>de</strong>marcada <strong>de</strong> formamais consistente a entrada do Estado no setor esportivo.De acordo com Linhales (1997, p. 220),[...] no Estado Novo, o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> institucionalizaçãodo esporte baseava-se em princípios tutelares,corporativos e arbitrários. Um mo<strong>de</strong>lo que apenasperpetuava as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s no processo <strong>de</strong>distribuição dos recursos públicos.Em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa má distribuição <strong>de</strong> recursos, o Estadoafastava-se da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> um projetoinstitucional para o setor esportivo que fosse capaz <strong>de</strong> atingirtodas as diferentes camadas da população e, assim, consolidaro esporte como direito social.58


Responsabilida<strong>de</strong> Social, ONGs e Esporte: o caso do Instituto Ayrton Senna no BrasilCom o passar do tempo o setor esportivo burocratizou-senos planos, nas diretrizes e nos projetos que compunham oplanejamento centralizado no Estado; o esporte aparece comoum direito social, a partir <strong>de</strong> uma perspectiva liberalfuncionalista.Em outras palavras, <strong>de</strong>veria ser oferecido a todos,como um bem mo<strong>de</strong>rno e capaz <strong>de</strong> atuar como elemento<strong>de</strong> compensação e equilíbrio dos efeitos do mundo industrializadoe urbano.Para além da lógica liberal-funcionalista, a política esportivabrasileira foi influenciada por outros projetos políticos eesportivos que aconteciam para além das fronteiras brasileiras.De fato,[...] o mo<strong>de</strong>lo corporativo adotado no Estado novo,a massificação nos anos 60, a reprodução do mo<strong>de</strong>loescandinavo do “esporte para todos”, <strong>de</strong>ntre outros,são exemplos a serem consi<strong>de</strong>rados sobre a influênciaexterna (LINHALES, 1997, p. 22l).No que tange à realização do direito ao esporte, que pressupõeuma intervenção pública <strong>de</strong> natureza social, percebe-seum comprometimento <strong>de</strong> tal perspectiva <strong>de</strong>vido à clara opçãodo Estado em reconhecer o esporte prepon<strong>de</strong>rantemente emsua forma-mercadoria. Essa situação confusa acontece <strong>de</strong>vidoaos incentivos aos interesses produtivos que atuam no setor, etambém por sua omissão ou contemplação passiva. Assim sendo,o Estado torna-se conivente com um mercado <strong>de</strong> concorrência<strong>de</strong>sigual, próprio do sistema capitalista.Essa opção reflete um contexto no qual a localização daspriorida<strong>de</strong>s do Estado, seja no âmbito do esporte <strong>de</strong> lazer ouno <strong>de</strong> alto rendimento ou espetáculo, po<strong>de</strong> ser um indicadordos motivos ou “serviços” (benefícios) que o Estado espera doesporte. E, <strong>de</strong>sse modo,59


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>[...] a política social brasileira precisa sercompreendida não em termos assistencialistas, massim, em termos econômicos e políticos, como uminstrumento usado pelo Estado para manter as basesdo funcionamento do sistema <strong>de</strong> acumulação(BRACHT, 2003, p. 70).Seguindo esse percurso, convém <strong>de</strong>stacar que, nosurgimento do pensamento neoliberal, nos últimos 20 anos doSéculo XX, <strong>de</strong>scortinou-se outra realida<strong>de</strong>, na medida em queo novo eixo político-econômico implicou em redução do tamanhodo Estado (Estado Mínimo) e correspon<strong>de</strong>nte ampliaçãodos espaços para mercadorização <strong>de</strong> ações que eram, até então,atribuições das suas políticas públicas (PIRES, 2004). Nolimiar <strong>de</strong>ssa lógica, então, cada vez mais, as atribuições doEstado parecem se tornar atrativos <strong>de</strong> investimentos da iniciativaprivada e também <strong>de</strong> ONGs, isto é,[...] parece ter restado para a Educação Física eesporte escolar, enquanto políticas públicas, o<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> ações compensatórias e <strong>de</strong>inclusão para populações <strong>de</strong>sfavorecidas e/ou emsituação <strong>de</strong> risco social (PIRES, 2004, p. 11).Enfim, com base no pensamento neoliberal, o Estado, tendoem vista o <strong>de</strong>sinteresse pelo esporte como um direito social a serassegurado a todos, acaba abrindo possibilida<strong>de</strong>s para que omercado e outras instituições possam lucrar com o mesmo numaperspectiva privada <strong>de</strong> oferta <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s esportivas e <strong>de</strong> lazer.“Esporte social” e esporte como direito socialAs diferentes tarefas atribuídas ao esporte adquiriram visibilida<strong>de</strong>perante a socieda<strong>de</strong> por meio do exemplo <strong>de</strong> diversosatletas e ex-atletas bem-sucedidos que passaram a atuar em60


Responsabilida<strong>de</strong> Social, ONGs e Esporte: o caso do Instituto Ayrton Senna no Brasilnome da transformação da realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> crianças e jovens “carentes”por meio <strong>de</strong> projetos esportivos (SILVEIRA, 2006). Somentecom fins <strong>de</strong> ilustração <strong>de</strong>sse panorama, po<strong>de</strong>-se citarcomo exemplo: Instituto Ayrton Senna, Instituto Guga Kuerten,Instituto Dunga <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento do cidadão, Instituto beneficenteRomário <strong>de</strong> Souza Farias, Instituto bola pra frente,Fundação gol <strong>de</strong> letra, Fundação Cafu, Instituto Jackie Silva,Instituto Rexona <strong>de</strong> esporte e Instituto Canhotinha <strong>de</strong> ouro¹.No entanto, a citada associação entre “esporte social” etransformação social vem sendo realizada predominantementesem levar em consi<strong>de</strong>ração uma série <strong>de</strong> questões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>mconceitual e, logicamente, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m social. A abordagem quereveste o esporte na presente perspectiva po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>radacomo utilitarista ou, ainda, como salvacionista.A atribuição esportiva que parece ter se legitimado há maistempo na socieda<strong>de</strong> foi o velho discurso entre a sua prática e a“promoção da saú<strong>de</strong>”. Esse é um discurso muito sedutor, aindahoje, mesmo no âmbito da Educação Física, mas o seugran<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque está no consenso produzido pela frase “esporteé saú<strong>de</strong>”, com presença marcante nos meios <strong>de</strong> comunicação<strong>de</strong> massa. Tal discurso carrega consigo uma perspectiva <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> ligada a fatores comportamentalistas, isto é, afirma quea saú<strong>de</strong> é resultado da mudança <strong>de</strong> hábitos individuais.Ao esporte também foi atribuída a função <strong>de</strong> manter ascrianças e jovens afastados do mundo das drogas e da1 Instituto Ayrton Senna (Tricampeão mundial <strong>de</strong> Fórmula 1), Instituto Guga Kuerten (Tenista tricampeãodo torneio <strong>de</strong> Roland Garos), Instituto Dunga <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento do cidadão (Dunga é ex-jogador <strong>de</strong> futebol,Campeão mundial pela seleção brasileira em 1994, atualmente técnico da seleção brasileira <strong>de</strong> futebol),Instituto beneficente Romário <strong>de</strong> Souza Farias (Romário é jogador <strong>de</strong> futebol, campeão mundial pela seleçãobrasileira em 1994), Instituto bola pra frente (Sob responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jorginho e Bebeto, ex-jogadores <strong>de</strong>futebol, campeões mundiais pela seleção brasileira em 1994), Fundação gol <strong>de</strong> letra (sob responsabilida<strong>de</strong><strong>de</strong> Raí e Leonardo, ex-jogadores <strong>de</strong> futebol, campeões mundiais pela seleção brasileira em 1994), FundaçãoCafu (Jogador <strong>de</strong> futebol, campeão mundial pela seleção brasileira em 2002), Instituto Jackie Silva (Jaquelineé ex-jogadora <strong>de</strong> vôlei <strong>de</strong> praia, campeã olímpica em 1996), Instituto Rexona <strong>de</strong> esporte (sob responsabilida<strong>de</strong><strong>de</strong> Ana Moser, ex-jogadora <strong>de</strong> voleibol), Instituto Canhotinha <strong>de</strong> ouro (sob responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gérson, exjogador<strong>de</strong> futebol, campeão mundial pela seleção brasileira em 1970).61


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>criminalida<strong>de</strong>, responsabilizando-o pelo disciplinamento da juventu<strong>de</strong>ociosa, uma vez que predomina em nossa socieda<strong>de</strong>uma visão preconceituosa <strong>de</strong> que jovem pobre é sinônimo <strong>de</strong>criminoso em potencial. Assim,[...] o esporte seria o “antídoto” perfeito para coibirtais práticas, uma espécie <strong>de</strong> analgésico social, semprenuma perspectiva conservadora <strong>de</strong> controle social(MELO, 2005, p. 82).Uma das atribuições que também assumiu gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>staqueno senso comum foi a caracterização do esporte comopassaporte para a ascensão social. Isso se concretiza, sobretudo,no exemplo dos milhares <strong>de</strong> meninos que sonham em serjogadores <strong>de</strong> futebol profissional e, assim, adquirirem estabilida<strong>de</strong>financeira. Isso se dá, provavelmente, porque o esportemo<strong>de</strong>rno traz consigo a i<strong>de</strong>ia do “igualitarismo” inerente à práticaesportiva, por ser uma “or<strong>de</strong>m social fundada em regrasuniversais aplicadas a todos” (ZALUAR, 1994, p. 88); e, alémdisso, a promessa <strong>de</strong> “integração social”, alimentando, assim,nas crianças e jovens das classes sociais empobrecidas o “sonho”e a ilusão <strong>de</strong> se converterem em atletas <strong>de</strong> alto nível e,consequentemente, <strong>de</strong> “ascensão social” para saírem do quadro<strong>de</strong> vulnerabilida<strong>de</strong> e risco social a que são submetidas cotidianamentepela lógica <strong>de</strong>strutiva do capital. Em síntese, apromessa <strong>de</strong> ascensão social através do esporte po<strong>de</strong> criar nascrianças e jovens o mito da possibilida<strong>de</strong> ilusória <strong>de</strong> um melhorlugar no “podium” da divisão social <strong>de</strong> classe.Outra tendência diz respeito ao esporte como promotorda inclusão social. Mas, primeiramente, quando se fala <strong>de</strong> inclusão,é preciso se perguntar on<strong>de</strong> se quer incluir os excluídos.Nesse caso, apesar <strong>de</strong> se ter conhecimento que no mundoneoliberal não há lugar para todos, é interessante, aqui, incluir62


Responsabilida<strong>de</strong> Social, ONGs e Esporte: o caso do Instituto Ayrton Senna no Brasilas pessoas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que elas não alterem o quadro <strong>de</strong> dominaçãoexistente. Dessa maneira, percebe-se como a inclusão socialnão supera os limites <strong>de</strong> uma expressão vazia <strong>de</strong> sentido, <strong>de</strong>vidoa sua fragilida<strong>de</strong> teórica e por ter se tornado um “jogo <strong>de</strong>palavras” que promete muito e nada po<strong>de</strong> cumprir.Acerca da promoção da cidadania, contempla-se um cenáriobastante próximo do que foi tratado na inclusão social.Ou seja, tal termo também passa por um processo <strong>de</strong>banalização. É possível constatar claramente o esvaziamento<strong>de</strong> seu sentido, uma vez que a cidadania engloba cada vezmais um número maior <strong>de</strong> ações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m social. Nessa lógica,cidadania é sinônimo <strong>de</strong> ações que tirem as crianças ejovens da rua; é sinônimo também <strong>de</strong> qualquer ação solidária,<strong>de</strong> filantropia empresarial, etc. De acordo com Melo[...] este termo se tornou auto-explicativo (sic). Estána moda. Sua <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> conceitual, sua carga <strong>de</strong>enfrentamento à or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>sigual e o seu processo <strong>de</strong>conquista, que sempre implicou lutas por direitos <strong>de</strong>diversas or<strong>de</strong>ns, foram mimetizados a um discursosem sentido (MELO, 2005, p. 80).O que parece esmorecer neste processo <strong>de</strong> banalização éa <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ração do esporte como direito social, conquistadoa duras penas como <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> Estado e direito do conjunto doscidadãos. Cidadania per<strong>de</strong> o seu caráter <strong>de</strong> conquista e passapara a esfera da assistência ou mesmo do consumo. As políticasesportivas estatais são minimizadas, abrindo espaço paraa atuação do chamado “terceiro setor”, para por meio do “esportesocial” aten<strong>de</strong>r a tal prerrogativa <strong>de</strong> crianças e jovens.Assim, po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>stacar que, por meio <strong>de</strong> tais ações naesfera da responsabilida<strong>de</strong> social e das ONGs, o esporte chegaa ser utilizado como ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> substituição a outros direitossociais, dos quais as populações atendidas encontram-se <strong>de</strong>sti-63


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>tuídas. De acordo com Zaluar (1994), a emergência <strong>de</strong> programase projetos esportivos en<strong>de</strong>reçados às populações <strong>de</strong> menorpo<strong>de</strong>r aquisitivo guarda estreita relação com os graves problemasque afetam a socieda<strong>de</strong> brasileira.É necessário compreen<strong>de</strong>r que programas que utilizam oesporte como carro-chefe da questão social, por si, jamais serãocapazes <strong>de</strong> resolver todos os problemas sociais. Isso porqueo mesmo não po<strong>de</strong> ser tratado como solução para problemasque requerem ações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m política muito mais incisivasdo que realmente a criação <strong>de</strong> tais programas. E mais, tal tendênciaapenas contribui para o ocultamento da real gênese <strong>de</strong>ssesproblemas que, supostamente, se tenta enfrentar (MELO, 2005).O “esporte social” no Âmbito do InstitutoAyrton SennaA principal proposta socioeducativa pautada pelo esporteno Instituto Ayrton Senna é o Programa “Educação pelo Esporte”.Tal Programa, assim como todas as ativida<strong>de</strong>s do InstitutoAyrton Senna, tem um objetivo primordial: o <strong>de</strong>senvolvimentohumano. Nesta proposta po<strong>de</strong>-se notar, por exemplo, ointuito <strong>de</strong> preparar crianças e jovens “para enfrentar com competênciaos <strong>de</strong>safios presentes em sua vida pessoal, social eprofissional” (INSTITUTO AYRTON SENNA, 2004, p. 13). Paraalém <strong>de</strong> tal objetivo, <strong>de</strong>stacam-se pretensões subliminares referentesà saú<strong>de</strong>, ao lazer, à profissionalização, à cidadania, àinclusão social e à apropriação crítica do esporte na vida <strong>de</strong>crianças e jovens.Assim, observam-se dois principais pressupostos políticopedagógicosem suas ações: o <strong>de</strong>senvolvimento humano e acorresponsabilida<strong>de</strong> social. Com relação ao primeiro, suas raízes64


Responsabilida<strong>de</strong> Social, ONGs e Esporte: o caso do Instituto Ayrton Senna no Brasilestão ligadas ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento(PNUD), que tem como meta investir no <strong>de</strong>senvolvimentohumano dos países, almejando um ótimo <strong>de</strong>sempenhoem indicadores como educação, po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> compra e expectativa<strong>de</strong> vida. Po<strong>de</strong>-se inferir, então, que a concepção <strong>de</strong>educação presente no Instituto Ayrton Senna é referente à propostada UNESCO, juntamente com os quatro pilares da educaçãopara o Século XXI (apren<strong>de</strong>r a ser, apren<strong>de</strong>r a conviver,apren<strong>de</strong>r a fazer e apren<strong>de</strong>r a conhecer). De acordo com oPrograma, foi i<strong>de</strong>ntificado nosquatro pilares da educação do relatório da UNESCOum referencial teórico fundamental para orientar aelaboração <strong>de</strong> caminhos e propostas com base no<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> competências indispensáveis àvida pessoal, social e produtiva (INSTITUTO AYRTONSENNA, 2004, p. 47).O trabalho com essas competências po<strong>de</strong> ser visto comoo caminho para o proposto <strong>de</strong>senvolvimento humano.Todavia, é importante ressaltar que esse pressuposto é inerentea uma proposta <strong>de</strong> educação que finca raízes na lógicaneoliberal. Dessa maneira, ao voltar o olhar para os quatropilares da educação para o Século XXI, <strong>de</strong>para-se com umaproposta que visa a<strong>de</strong>quar os sujeitos ao projeto neoliberal <strong>de</strong>sociabilida<strong>de</strong>, ou talvez, moldar as consciências <strong>de</strong> acordo coma lógica do capital e sua perpetuação. Individualismo, autorresponsabilização,pluralismo indiferente às diferenças <strong>de</strong> classe,insensibilida<strong>de</strong> para com as questões sociais inerentes ao atualmundo do trabalho, são características latentes na proposta <strong>de</strong><strong>de</strong>senvolvimento humano adotada pelo Instituto. Sendo assim,a proposta <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento humano <strong>de</strong>fendida carrega consigoelementos que proporcionam uma leitura mais crítica, <strong>de</strong>stacandoque esse tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento humano, inerente à65


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>lógica do capital, está longe <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado o “<strong>de</strong>senvolvimentodo gênero humano” (HELLER, 1994). Ou seja, a propostado Instituto Ayrton Senna, que parte do <strong>de</strong>senvolvimentohumano como um processo individual, que se dá por meio dasconquistas individuais, resultantes dos esforços também individuais,está muito aquém <strong>de</strong> ser concebida como o <strong>de</strong>senvolvimentodo gênero humano, isto é, <strong>de</strong> todos os indivíduos, outalvez, da humanida<strong>de</strong>. Desenvolvimento que não é compatívelcom o atual modo <strong>de</strong> produção; apontando, portanto, para anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> “para além do capital”.Sobre a “corresponsabilida<strong>de</strong> social”, é clara a tendênciado Instituto em <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a ação conjunta do Estado, <strong>de</strong> empresasprivadas e <strong>de</strong> organizações da socieda<strong>de</strong> civil, noenfrentamento da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social expressa na realida<strong>de</strong>brasileira. Sua parceria estratégica com a AUDI² é um exemplo<strong>de</strong> tal ação corresponsável. É possível ver, então, um quadrono qual uma empresa privada, simpatizando com os serviçossociais prestados por uma ONG, estabelece uma aliançacom repasse <strong>de</strong> recursos, visando uma suposta “transformação”<strong>de</strong> uma dada realida<strong>de</strong>, ou quem sabe, a construção <strong>de</strong>“um mundo melhor” para todos.Entretanto, é possível afirmar que esse pressuposto, aparentementecom ares <strong>de</strong> inocência, carrega consigo um projetoque, concomitantemente, justifica o <strong>de</strong>scaso estatal no quetange às políticas sociais e corrobora para que, gradativamente,as questões sociais³ pertençam mais ao campo das empresasprivadas e das organizações da socieda<strong>de</strong> civil. Isso leva à com-2 Empresa automobilística alemã com fábrica no Brasil.3 De acordo com Castel, "a questão social <strong>de</strong>ve ser tratada pelo filtro <strong>de</strong> sua historicida<strong>de</strong>, como dimensãoque se constrói a partir <strong>de</strong> um equilíbrio frágil entre coesão e conflito, não po<strong>de</strong> ser vista como puro efeitomecânico, quer do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> sua longa constituição, quer do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> suas configuraçõescontemporâneas" (2001, p.13). No entanto, quando alocadas na esfera do Terceiro setor ou mesmo da"carida<strong>de</strong> privada", tais características da questão social parecem ser, em muitos momentos, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>radas.66


Responsabilida<strong>de</strong> Social, ONGs e Esporte: o caso do Instituto Ayrton Senna no Brasilpreensão <strong>de</strong> que, cada vez mais, os direitos sociais a seremassegurados pelo Estado passam a ser serviços prestados noâmbito da socieda<strong>de</strong> civil organizada ou, talvez, mercadorias aserem consumidas. Dessa maneira, a cidadania acaba banalizada,os direitos <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser conquistas dos cidadãos frenteao Estado e o discurso da cidadania pregado por ONGs e “empresascidadãs” não passa <strong>de</strong> um discurso vazio.Tomando como base o exemplo do Instituto Ayrton Senna,entre outras Organizações não-governamentais, po<strong>de</strong>-se dizerque as relações entre ONGs e esporte se constituem em umfenômeno em ascensão, sobretudo, quando levarmos em contao chamado “papel social do esporte”. Os objetivos sociaisdo esporte alocados nas mãos das organizações não-governamentaise mesmo do Estado estabelecem relações <strong>de</strong> causa eefeito <strong>de</strong> uma maneira linear, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar uma série<strong>de</strong> questões pertinentes no que se refere à cidadania, saú<strong>de</strong>,profilaxia ao uso <strong>de</strong> drogas, inclusão social, entre outras. Taisdiscursos, na maioria das vezes, acabam encobrindo fatores<strong>de</strong> suma importância para a compreensão <strong>de</strong> como, efetivamente,crianças que praticam o esporte passam a ser incluídassocialmente; passam a ser cidadãs, a ser saudáveis, a abandonaro crime e o mundo das drogas, etc. A hipótese é a <strong>de</strong> quetais projetos contribuem, mais, para mistificar os processossociais e banalizar os mesmos, e, efetivamente, menos paraseus objetivos propostos. A questão não é <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar a importância<strong>de</strong> tais projetos na vida das pessoas, mas sim, compreen<strong>de</strong>ros aspectos político-pedagógicos <strong>de</strong>ssas ações esportivase a real capacida<strong>de</strong> em cumprir com as metas propostas.Enfim, ao levar em consi<strong>de</strong>ração as contradições inerentesà lógica do capital e a produção da miséria humana pelosquatro cantos do mundo, sobretudo em contextos como a África,a Ásia e a América Latina, é possível ver o quão funcional67


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>po<strong>de</strong>m ser os projetos esportivos <strong>de</strong>senvolvidos por ONGs. Aspectoscomo a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social, a falta <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s,o não acesso a direitos como a educação, a saú<strong>de</strong>, o lazer e oesporte apontam <strong>de</strong>ficiências na condução das políticas públicas– responsabilida<strong>de</strong> do Estado. Sendo assim, as Organizaçõesnão-governamentais assumem <strong>de</strong>staque em tal panorama,propondo ações que visam, ao menos, amenizar os problemas<strong>de</strong> or<strong>de</strong>m social que afligem a socieda<strong>de</strong>. Nessa perspectiva,adotar o esporte como ferramenta para propor respostaspara os problemas sociais parece constituir uma tendênciaem permanente expansão. Porém, como frisado acima, muitasdas responsabilida<strong>de</strong>s atribuídas ao esporte, <strong>de</strong> maneira algumapo<strong>de</strong>m ser cumpridas, a menos que as questões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>msocial que o envolvem sejam <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>radas e os objetivospropostos, banalizados. Resumir a questão da saú<strong>de</strong>, da cidadania,da inclusão social, do combate ao crime e do <strong>de</strong>senvolvimentohumano ao esporte, apenas contribui para que os processosmais amplos que levariam à conquista dos mesmos sejamobscurecidos, percam o foco das lutas sociais. Portanto,as saídas para problemas sociais, estritamente vinculadas aoesporte, são funcionais ao capitalismo e somente encobrem amiséria com ares <strong>de</strong> esperança, uma vez que mantêm afastadaqualquer perspectiva <strong>de</strong> luta por uma educação e por umasocieda<strong>de</strong>, como nos ensina Mészáros (2005), para além docapital.A educação pelo esporte no Instituto Ayrton Senna, pormais bem alicerçada e fundamentada que se constitua, ainda<strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rada como uma alternativa <strong>de</strong> cunho reformista,ou seja, que preten<strong>de</strong>, no máximo, mudanças que não afetamem nada a lógica da educação capitalista. Como afirmaMészáros (2005, p. 26),68


Responsabilida<strong>de</strong> Social, ONGs e Esporte: o caso do Instituto Ayrton Senna no Brasil[...] mesmo as mais nobres utopias educacionais,anteriormente formuladas do ponto <strong>de</strong> vista docapital, permaneciam estritamente <strong>de</strong>ntro dos limitesda perpetuação do domínio do capital como modo<strong>de</strong> reprodução social metabólica.Dessa maneira, as mudanças visando o <strong>de</strong>senvolvimentodo gênero humano <strong>de</strong>vem ocorrer sim na educação, mas semabrir mão <strong>de</strong> mudanças no modo social <strong>de</strong> produção do qual,geralmente, as propostas educacionais não po<strong>de</strong>m se<strong>de</strong>svincular.ReferênciasBRACHT, V. Sociologia crítica do esporte: uma introdução. 2. ed.Ijuí: UNIJUI, 2003.CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica dosalário. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.HELLER, A. Sociologia <strong>de</strong> la vida cotidiana. 4. ed. Barcelona:Península, 1994.INSTITUTO AYRTON SENNA. Educação pelo esporte: educaçãopara o <strong>de</strong>senvolvimento humano pelo esporte. São Paulo:Saraiva: Instituto Ayrton Senna, 2004.LINHALES, M. A. Políticas públicas para o esporte no Brasil:interesses e necessida<strong>de</strong>s. In: SOUSA, E. S. <strong>de</strong>; VAGO, T. M.(Orgs.) Trilhas e partilhas: Educação Física na cultura escolar enas práticas sociais. Belo Horizonte: Cultura, 1997.MELO, M. <strong>de</strong> P. Esporte e juventu<strong>de</strong> pobre: políticas públicas <strong>de</strong>lazer na vila olímpica da Maré. Campinas: Autores Associados,2005.69


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. São Paulo:Boitempo, 2005.PIRES, G. <strong>de</strong> L. A Escola, a Educação Física e as PolíticasPúblicas: quais são os projetos para o esporte escolar? In: Revistametropolitana <strong>de</strong> ciências do movimento humano. São Paulo,ano 5, n. 1, pp. 9-15, 2004.SILVEIRA, J. Reflexões preliminares acerca das finalida<strong>de</strong>satribuídas ao “esporte social”. In: Congresso Sul Brasileiro <strong>de</strong>Ciências do Esporte, 3º, 2006, Anais, Santa Maria – RS, 2006.(1 CD-ROM).TEIXEIRA, A. C. C. A atuação das Organizações nãogovernamentais:entre o Estado e o conjunto da socieda<strong>de</strong>. In:DAGNINO, E. (Org.) Socieda<strong>de</strong> civil e espaços públicos no Brasil.São Paulo: Paz e Terra, 2005. pp. 105-142.ZALUAR, A. Cidadãos não vão ao paraíso. São Paulo: Escuta/Campinas – SP: UNICAMP, 1994.70


Estado, Esporte e I<strong>de</strong>ologia na Venezuela: “Hacer <strong>de</strong>porte es hacer Revolución”Estado, Esporte e I<strong>de</strong>ologia naVenezuela: “Hacer <strong>de</strong>porte eshacer Revolución”Nilso Domingos Ouriques*Dagmar Mena Barreto**ApresentaçãoO esporte, por sua força convocatória, ação educativa eimportância na área da saú<strong>de</strong>, na correção dos aspectos sociaisdo ponto <strong>de</strong> vista da inclusão social, assim como no <strong>de</strong>senvolvimentoda qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, é i<strong>de</strong>ntificado como relevantefenômeno social. O fenômeno esportivo mo<strong>de</strong>rno construiugradativamente a sua teia <strong>de</strong> relações por meio <strong>de</strong> organizações<strong>de</strong> clubes, ligas, fe<strong>de</strong>rações, confe<strong>de</strong>rações e <strong>de</strong>mais estruturas,a ponto <strong>de</strong> se dizer com muita frequência, ser o esporteo fenômeno cultural mais importante da socieda<strong>de</strong> contemporânea(GONZÁLES, 1993).Durante o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento esportivo, outrosaspectos da ação esportiva não po<strong>de</strong>riam ser <strong>de</strong>sprezados, principalmenteaqueles que são criados e recriados com o Estadonas suas relações políticas e i<strong>de</strong>ológicas.* Mestre em Sociologia Política pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina – UFSC; Professor daUniversida<strong>de</strong> do Oeste <strong>de</strong> Santa Catarina. E-mail: nilso.ouriques@unoesc.edu.br.** Mestre em Educação pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina – UFSC; Professor da Universida<strong>de</strong>do Meio Oeste <strong>de</strong> Santa Catarina.71


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Na expectativa <strong>de</strong> contribuir com a iniciativa internacional<strong>de</strong> consolidação <strong>de</strong> um projeto alternativo <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> dospovos, apresenta-se aqui uma interpretação do ponto <strong>de</strong> vistasociológico sobre as transformações que estão ocorrendo nasrelações internacionais entre o Estado, o esporte e a i<strong>de</strong>ologia,analisando a proposta já consolidada <strong>de</strong> criação da Universida<strong>de</strong>Iberoamericana do Esporte (UNICADE-UniversidadIberoamericana y Caribena <strong>de</strong> la Ativida<strong>de</strong> Física e Del Deporte),bem como os motivos para a implementação <strong>de</strong>ssa propostapelo governo <strong>de</strong> Hugo Chávez, na Venezuela.Esse <strong>de</strong>bate é recente e sobre ele recaem as mais diversasvisões, e somente com o passar do tempo po<strong>de</strong>rá ser possívelestreitar os posicionamentos. Inicia-se a análise observando asrelações que o esporte, por meio do gran<strong>de</strong> espetáculo esportivo(principalmente os Jogos Olímpicos), e o futebol, através daFIFA, estabeleceram com os Estados.Salienta-se a importância <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r os aspectos estruturais<strong>de</strong>ssa relação, <strong>de</strong>terminada ao longo do tempo pelacorrelação <strong>de</strong> forças existentes na socieda<strong>de</strong> capitalista. Paraefeitos <strong>de</strong>ste texto optou-se por analisar tais relações a partir<strong>de</strong> exemplos concretos entre Estado e esporte. Em um segundomomento, procurou-se, por meio da <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>nal(2006), sob o título <strong>de</strong> A revolução silenciada, <strong>de</strong>monstrar oque vem acontecendo na Venezuela e que a gran<strong>de</strong> imprensaprocura escon<strong>de</strong>r. Após apresentar alguns indicadores sociais<strong>de</strong>sse país, preten<strong>de</strong>-se localizar a proposta <strong>de</strong> criação da Universida<strong>de</strong>Iberoamerica nos seus aspectos sociológicos, com aintenção <strong>de</strong> verificar o que existe <strong>de</strong> conservador e inovadornessa proposta, principalmente nos seus aspectos políticos ei<strong>de</strong>ológicos.72


Estado, Esporte e I<strong>de</strong>ologia na Venezuela: “Hacer <strong>de</strong>porte es hacer Revolución”Estado, esporte e i<strong>de</strong>ologia: um pouco <strong>de</strong>históriaAo longo da história, a relação entre Estado e esporte tem<strong>de</strong>monstrado a constante utilização do esporte como instrumento<strong>de</strong> dominação e manipulação i<strong>de</strong>ológica e <strong>de</strong> disputapolítica. Esse entrelaçamento é inevitável. Sua utilização se dádo ponto <strong>de</strong> vista da política interna do país, assim como,também, <strong>de</strong> sua função política e i<strong>de</strong>ológica internacional.Prieto (1979), ao analisar a função do esporte na socieda<strong>de</strong>soviética, afirma que da noite para o dia o esporte se transformouem uma arma para atacar o mundo capitalista. A i<strong>de</strong>iado enfrentamento entre blocos transformou-se em instrumentopolítico e i<strong>de</strong>ológico da guerra fria. E assim afirma textualmente:“La consigna en los albores <strong>de</strong> los anos cuarenta era: Hemos<strong>de</strong> batir todas las marcas <strong>de</strong> los <strong>de</strong>sportistas burgueses. Sepue<strong>de</strong> pedir mayor politización?” (PRIETO, 1979, p. 200).Ao a<strong>de</strong>ntrar no Século XXI, poucas alterações po<strong>de</strong>m serpercebidas. Assim, para discutir melhor a expressão “Hacer<strong>de</strong>porte es hacer Revolución”, proferida por Hugo Chávez emum <strong>de</strong> seus pronunciamentos, visando à construção da Universida<strong>de</strong>do Esporte e suas repercussões políticas, naquilo que opresi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>termina como Revolução Bolivariana, é necessárioobservar um pouco a história das relações entre Estado,esporte e política internacional. Nessa análise, os exemplos históricostornam-se da mesma forma explícitos, quando ganhama envergadura do espetáculo esportivo. Guy Debord (1997) crioua expressão da socieda<strong>de</strong> do espetáculo como instrumento i<strong>de</strong>ológicoe mercadológico intenso. Tal espetáculo fica imensamentevisível quando se observa os Jogos Olímpicos.Em uma breve retrospectiva, é possível salientar algunselementos importantes do ponto <strong>de</strong> vista histórico. A Olimpía-73


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>da <strong>de</strong> 1936 em Berlim, na Alemanha, possuiu a marca daorganização e da competência alemã e foi também o marcoque evi<strong>de</strong>nciou a eterna relação entre o esporte e o racismo.A política do Estado alemão em querer mostrar a superiorida<strong>de</strong>da raça ariana ficou encravada na história do esporte.Por sua vez, a Olimpíada <strong>de</strong> Londres, em 1948, reforça osvínculos históricos entre política e esporte. A Alemanha e oJapão, <strong>de</strong>rrotados na guerra, não foram convidados para participar.Em 1956, na Olimpíada <strong>de</strong> Melbourne na Austrália, apolítica mais uma vez interferiu no andamento da competição.A <strong>de</strong>legação chinesa se recusou a participar das Olimpíadasporque os jogos teriam a participação da inimiga Taywam.Em 1968, no México, a Olimpíada foi marcada por gran<strong>de</strong>srecor<strong>de</strong>s nas provas <strong>de</strong> saltos e velocida<strong>de</strong> no atletismo.No mundo, havia todo um campo <strong>de</strong> mudanças acontecendo.Os protestos contra o racismo entravam em momento <strong>de</strong>efervescência política. Martin Luther King e Mohamed Ali nosEstados Unidos e Nelson Man<strong>de</strong>la na África do Sul se manifestavam<strong>de</strong> maneira contun<strong>de</strong>nte contra o racismo. É em meio aessa crescente pressão política, em uma situação explosiva,que surge no seio do gran<strong>de</strong> espetáculo esportivo o movimentoBlack Power, que encontra em Tommie Smith e John Carlosseus protagonistas. Após suas vitórias nas provas do atletismo,ambos fazem um gesto, que marcaria para sempre a históriadaqueles jogos e da luta contra o racismo.Durante a cerimônia <strong>de</strong> premiação, o inesperado. No momentoda execução do Hino dos Estados Unidos,[...] os dois norte-americanos, já usando broches domovimento negro em seus agasalhos, abaixam acabeça e erguem um punho cerrado, <strong>de</strong>vidamentevestido por uma luva negra. O gesto do movimentoBlack Power era feito diante <strong>de</strong> todos, sem que74


Estado, Esporte e I<strong>de</strong>ologia na Venezuela: “Hacer <strong>de</strong>porte es hacer Revolución”ninguém pu<strong>de</strong>sse impedir. Não naquele momento(LEAL, 2006)Na Olimpíada <strong>de</strong> Munique, em 1972, a presença dos elementospolíticos aflorou fortemente. O atentado terrorista organizadopelo grupo “setembro negro” exigia a libertação <strong>de</strong>234 prisioneiros árabes em prisões israelenses.No período <strong>de</strong> Guerra Fria, em que estavam <strong>de</strong> um ladoos países socialistas aliados à URSS e <strong>de</strong> outro os países capitalistasli<strong>de</strong>rados pelos EUA, aconteceram diversas situaçõesenvolvendo esporte e i<strong>de</strong>ologia. Em 1976, na Olimpíada <strong>de</strong>Montreal, no Canadá, ocorreu o boicote por questões políticasvinculadas à exclusão da África do Sul no evento, como puniçãoao processo <strong>de</strong> segregação racial <strong>de</strong>terminado naquele país.Já em 1980, em Moscou, o esporte apresenta-se como armai<strong>de</strong>ológica na Guerra Fria. O boicote dos países capitalistascomandados pelos EUA envolveu 61 países. No centro da disputa,Jimmy Carter, presi<strong>de</strong>nte norte-americano da época, exigiaa retirada das tropas soviéticas do Afeganistão, o que acabounão acontecendo.Em 1984, em Los Angeles, foi a vez dos países socialistascomandarem o boicote aos Jogos como represália aos EUA.Essa Olimpíada é marcada pela intensa comercialização dosJogos e pela interferência mercadológica e política das gran<strong>de</strong>smultinacionais no espetáculo esportivo. O mesmo processo jáhavia sido iniciado no final da década <strong>de</strong> 1970 no futebol,através <strong>de</strong> João Havelange, então presi<strong>de</strong>nte da FIFA.João Havelange e Adolfo Dassler, proprietário damultinacional Adidas, construíram juntos as regras econômicasdo novo espetáculo esportivo que seria o futebol nos anos<strong>de</strong> 1980. Os acordos econômicos passavam antes pelos acordospolíticos e pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dominar as instituições es-75


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>portivas criadas ao longo do Século XX. Aproveitando-se dodomínio que exercia sobre a entida<strong>de</strong> maior do futebol mundial,a FIFA, João Havelange criou uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r internacional,utilizando-se da expansão do espetáculo esportivo e dos exemploseconômicos <strong>de</strong> seu sucesso. Essa teia <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r político seexpan<strong>de</strong> para os <strong>de</strong>mais setores do meio esportivo internacional,como as fe<strong>de</strong>rações internacionais, confe<strong>de</strong>rações, fe<strong>de</strong>raçõesnacionais, chegando ao seu núcleo central, o COI (ComitêOlímpico Internacional). Jean Marie Faustin Go<strong>de</strong>froidHavelange é um homem que convive com o po<strong>de</strong>r do Estado.Tem inúmeras con<strong>de</strong>corações e títulos, por on<strong>de</strong> ele passa érecebido por reis, presi<strong>de</strong>ntes, governadores e outras li<strong>de</strong>rançaspolíticas. É Cavalheiro da Legian <strong>de</strong> Honor na França, Comandantedos Cavalheiros Portugueses da Or<strong>de</strong>m do InfanteDom Henrique; lhe foi concedida a Or<strong>de</strong>m da Gran<strong>de</strong> Cruz <strong>de</strong>Izabel Católica da Espanha. Foi esse homem, conhecido simplesmentecomo João ou Havelange, que conseguiu os votosnecessários para eleger Juan Antonio Samaranch ao COI. Dessaforma assumiu o controle do grandioso espetáculo esportivoque é os Jogos Olímpicos. Mas, quem era Samaranch? Bem,durante quase 40 anos foi um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>fensor <strong>de</strong> uma dasmaiores ditaduras da Europa, comandada por Francisco Franco.Desfilava pelas ruas fazendo a saudação fascista vestindoa sua camisa azul.Llegó a ser parlamentario facista, miembro facistaDel concejo municipal <strong>de</strong> Barcelona, presi<strong>de</strong>ntefascista <strong>de</strong>l concejo regional catalán y,durante algúntiempo, ministro fascista <strong>de</strong>l <strong>de</strong>porte. Saramanch era,según él mismo afirmaba, “ciento por ciento”franquista. Se inclinaba y hacia reverencia al lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong>un sistema político que las <strong>de</strong>mocracias occi<strong>de</strong>ntalesrechazaron y aislaron (SIMSON; JENNINGS, 1992,p 153).76


Estado, Esporte e I<strong>de</strong>ologia na Venezuela: “Hacer <strong>de</strong>porte es hacer Revolución”Havelange e Samaranch conheciam os caminhos do po<strong>de</strong>rcomo poucos. Agora vinculados também a gran<strong>de</strong>smultinacionais, comandavam um império. Porém, toda essaexpansão econômica do espetáculo esportivo só encontra justificativaquando possui como elo a competição no plano internacionalentre os Estados, o confronto e a disputa i<strong>de</strong>ológicapela <strong>de</strong>monstração da superiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> gestãoesportiva e, assim, das socieda<strong>de</strong>s em questão.Nesse novo momento do <strong>de</strong>senvolvimento esportivo comforte presença do mercado, o controle esportivo internacionalestava monitorado pelos países centrais e a sua dinâmica internacolocada nas mãos das gran<strong>de</strong>s multinacionais com vínculosdiretos com a FIFA, o COI e com as <strong>de</strong>mais instituiçõesesportivas, mantendo ótimas relações com o po<strong>de</strong>r estatal. Empresascomo Adidas, Nike e outras disputam espaço político emercados em todas as partes do mundo, colocando suas mercadorias,patrocinando ídolos em todos os países e modalida<strong>de</strong>s.Por sua vez, empresas como a Coca-Cola, Fuji Filme, Kodake outras fazem fabulosos acordos comerciais com as instituiçõesesportivas vinculadas a grupos políticos por eles patrocinados.Ocorreu um jogo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r intenso <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> instituiçõesconservadoras que criaram ao longo do tempo castas <strong>de</strong>dirigentes esportivos que espalham seus tentáculos pelo mundotodo, em países <strong>de</strong> caráter capitalista ou socialista. As diferençaspolíticas entre os vários Estados-Nação pouco interferemnas relações esportivas entre essas estruturas e seu controle políticointernacional. O que <strong>de</strong>termina o movimento esportivo internacionalé o crescimento do espetáculo esportivo enquantomercado, cujo lucro e controle político são mais importantes doque as diferenças i<strong>de</strong>ológicas, muito embora elas existam.É evi<strong>de</strong>nte que em tempos anteriores, a queda do muro <strong>de</strong>Berlim e a <strong>de</strong>sagregação, o <strong>de</strong>clínio do socialismo real, repre-77


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>sentado pela URSS e as normas <strong>de</strong> mercado geradas pelo espetáculoesportivo encontravam resistências i<strong>de</strong>ológicas, manifestadascomo, por exemplo, nos boicotes aos Jogos. Esseselementos e o fortalecimento da dinâmica capitalista foramimpulsionados pelas políticas <strong>de</strong> Reegan e Margareth Tatcher epelo surgimento do neoliberalismo da década <strong>de</strong> 1980, na qualo receituário econômico <strong>de</strong>ssa política <strong>de</strong>terminava um novoavanço dos países centrais sobre as periferias do mundo.As novas relações internacionais, associadas aos avanços econômicos,implementados pela FIFA e pelo COI, criavam ascondições i<strong>de</strong>ais ao <strong>de</strong>senvolvimento do espetáculo esportivomundial e suas novas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r internacionais.O domínio das políticas neoliberais na América Latinatornou-se hegemônico até o final do século, quando começa adar sinais <strong>de</strong> <strong>de</strong>clínio, <strong>de</strong>vido, por um lado, às consequênciasdanosas das políticas para as economias locais e suas <strong>de</strong>sastrosasconsequências sociais e econômicas. Por outro lado, aascensão <strong>de</strong> forças populares em vários países como Brasil,Bolívia, Venezuela e outros mais, reforça a resistência à fortehegemonia norte-americana no continente. O discursobolivariano do presi<strong>de</strong>nte venezuelano, seguido pela eleição <strong>de</strong>Evo Morales e sua associação a Hugo Chávez e Fi<strong>de</strong>l Castro,<strong>de</strong>monstra a criação <strong>de</strong> um forte núcleo <strong>de</strong> resistência às políticasneoliberais, mesmo diante <strong>de</strong> posturas menos agressivascomo a <strong>de</strong> Luiz Inácio Lula da Silva, Nestor Kirchiner e a dapolítica chilena.Esse <strong>de</strong>bate político, existente na América Latina, tornaseimportante no plano da Educação Física e do <strong>de</strong>senvolvimentoesportivo, pois é nos sinuosos campos da política e dasrelações macroeconômicas entre os Estados que se criam ascondições estruturais para o <strong>de</strong>senvolvimento das políticas públicasno meio esportivo. O mundo acadêmico da Educação78


Estado, Esporte e I<strong>de</strong>ologia na Venezuela: “Hacer <strong>de</strong>porte es hacer Revolución”Física, muitas vezes, prefere ignorar tais relações estruturais,produzindo análises feitas sobre bases metafísicas, distantesda realida<strong>de</strong> concreta.O exemplo brasileiro, <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento das políticaspúblicas na área do esporte, é uma resposta direta à situaçãoque as políticas neoliberais <strong>de</strong>terminam. A partir do momentoem que os dois governos sucessivos <strong>de</strong> Fernando Henrique Cardosoaprofundaram as reformas neoliberais, utilizando-se domecanismo das privatizações, das liberalizações,<strong>de</strong>sregulamentação da economia, do discurso i<strong>de</strong>ológico <strong>de</strong> umEstado menor, ao mesmo tempo tratavam <strong>de</strong> engessar o Estadodotando-o <strong>de</strong> uma legislação como a Lei <strong>de</strong> Responsabilida<strong>de</strong>Fiscal, que limita a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> investimento no camposocial das políticas públicas para saú<strong>de</strong>, educação, esportee outras áreas mais. Na impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> assim expandir anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r às <strong>de</strong>mandas sociais cada vez maiores,o Estado abre espaços enormes para essas necessida<strong>de</strong>s serematendidas através do mercado. Esse Estado, permeado por interessesempresariais internos e externos, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> cumprir suasobrigações com a socieda<strong>de</strong>, retirando-se da cena do jogo ereafirmando o discurso i<strong>de</strong>ológico da maior capacida<strong>de</strong> administrativados setores e patrocinando o discurso da lentidãoestatal, da burocracia corrupta e <strong>de</strong> tantas outras expressõesque marcaram a vida do estado no Brasil nos últimos anos.Esse processo fica claro quando são analisadas as posturasadotadas no final do governo do estado <strong>de</strong> Santa Catarina.A estrutura esportiva do estado, que <strong>de</strong>morou os últimos 20anos para tomar contornos mais aprazíveis diante das necessida<strong>de</strong>sesportivas estaduais, está sofrendo um longo e <strong>de</strong>finitivoprocesso <strong>de</strong> <strong>de</strong>smanche. É um <strong>de</strong>smanche silencioso e <strong>de</strong>cisivorumo a um processo <strong>de</strong> privatização das ativida<strong>de</strong>s esportivas.O primeiro passo para essa nova situação das políticas públi-79


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>cas na ativida<strong>de</strong> esportiva é a extinção da FEESPORTE, entida<strong>de</strong>gestora do esporte catarinense. O segundo passo é o lançamento<strong>de</strong> editais públicos para que empresas <strong>de</strong> marketingesportivo realizem os eventos esportivos no estado. O estado<strong>de</strong> Santa Catarina foi gradativamente <strong>de</strong>sfazendo-se da tarefa<strong>de</strong> pensar políticas para o <strong>de</strong>senvolvimento esportivo local, regionale estadual, transformando-se, simplesmente, em um realizador<strong>de</strong> eventos e reduzindo gradativamente as condiçõespara a realização dos mesmos. Por outro lado, <strong>de</strong>ixa que osinteresses <strong>de</strong> grupos empresariais locais se <strong>de</strong>senvolvam nassuas próprias entranhas, contando, obviamente para isso, com aajuda da imprensa local e <strong>de</strong> alguns setores da burocracia, e mesmo<strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s esportivas interessadas em ganhos maiores.Talvez esse exemplo extremamente prático do que acontecena política <strong>de</strong> esporte <strong>de</strong> Santa Catarina, um estado <strong>de</strong>renome no esporte brasileiro, possa <strong>de</strong>monstrar a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> fazer vínculos permanentes com a política macroeconômicaadotada no país.Descritos rapidamente os vínculos entre Estado, política ei<strong>de</strong>ologia, o quadro político latino americano, as relações coma política neoliberal e suas consequências na participação doEstado como elemento <strong>de</strong>terminante do <strong>de</strong>senvolvimento sociale político e as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sses vínculos nas análises, éimportante analisar o tema que foi dado acerca da Venezuela,o esporte e a criação da Universida<strong>de</strong> Iberoamericana do Esportesob a luz <strong>de</strong> sua base estrutural.A Revolução Venezuelana segundo Car<strong>de</strong>nalO primeiro elemento a ser <strong>de</strong>stacado na criação da Universida<strong>de</strong>Iberoamericana do Esporte, que recebe a sigla80


Estado, Esporte e I<strong>de</strong>ologia na Venezuela: “Hacer <strong>de</strong>porte es hacer Revolución”UNICADE (Universidad Iberoamericana y Caribena <strong>de</strong> laAtividad Física e Del Deporte) é o contexto em que o seu projetose insere. Um cidadão comum no Brasil, que recebe asinformações através da gran<strong>de</strong> imprensa, tem pouca compreensão<strong>de</strong> como está o projeto <strong>de</strong> Hugo Chávez naquele país,ou seja, como é a Revolução Bolivariana <strong>de</strong> fato. Existe umbloqueio da mídia a esse processo. Mas não é possível bloqueartudo, é preciso noticiar, senão o que é a revolução, ao menosos resultados das últimas eleições. Isso, este cidadão comumacaba recebendo como informação. Essa informação confirmada,<strong>de</strong>monstra a vitória <strong>de</strong> Hugo Chávez com ampla maioria,mas não explica o porquê <strong>de</strong>ssa vitória e nem entra em<strong>de</strong>talhes maiores. Trata-se apenas <strong>de</strong> criar um perfil <strong>de</strong> estadistaatrasado, preso a i<strong>de</strong>ais superados e ao mesmo tempo associara imagem <strong>de</strong> um ditador ao seu amigo cubano Fi<strong>de</strong>l Castro.Para <strong>de</strong>screver um pouco o que é Revolução Bolivariana,será utilizado um relato do poeta mundialmente famoso e respeitadopelas causas que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, Ernesto Car<strong>de</strong>nal, que recentementeesteve na Venezuela participando <strong>de</strong> um congresso<strong>de</strong> intelectuais e artistas em <strong>de</strong>fesa da humanida<strong>de</strong>. Car<strong>de</strong>nal(2006) a princípio salienta o alto peso i<strong>de</strong>ológico da revolução.Ao chegar em Caracas encontra frases: “Bolívar vive, la luchasigue” e salienta que essa era uma expressão comum na RevoluçãoNicaraguense, ao <strong>de</strong>stacar: “Sandino vive, la lucha sigue”.Esses intelectuais foram convidados a conhecer os resultadosda revolução e <strong>de</strong> maneira aleatória espalharam-se pelacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Caracas. Car<strong>de</strong>nal <strong>de</strong>sejou conhecer as favelas quecercam a cida<strong>de</strong>. São cerca <strong>de</strong> 25 milhões <strong>de</strong> pessoas vivendoem favelas, conhecidas lá com o nome <strong>de</strong> “Cerros”. Sua visitaestava centrada em uma favela com cerca <strong>de</strong> um milhão <strong>de</strong>habitantes. Para sua surpresa, <strong>de</strong>scobriu em meio a essa fave-81


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>la um sofisticado hospital que a princípio acreditou tratar-se<strong>de</strong> um hospital para ricos, mas ao contrário <strong>de</strong> suas suposiçõesiniciais, era um hospital para todos e todos os serviços eramgratuitos. Perto dali iria encontrar uma farmácia em que ospreços dos medicamentos eram 85% inferiores aos <strong>de</strong> mercado.Debatendo a questão saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong>scobriu que somente 15%dos venezuelanos são atendidos pelo setor privado e que o restanteda população tem cobertura integral e <strong>de</strong> boa qualida<strong>de</strong>.O programa <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> discute a saú<strong>de</strong> do ponto <strong>de</strong> vista integral,tratando educação, esporte e cultura como elementos estruturais<strong>de</strong>ssa condição básica. Esse processo somente é possívelna Venezuela <strong>de</strong> hoje pela ajuda dada por Cuba, através<strong>de</strong> 20 mil médicos preparados para lidar com situações comoessa, e que os médicos venezuelanos não estavam acostumados,por estarem sempre com o olhar voltado para o mercado.Cada médico cubano cuida <strong>de</strong> 250 famílias, tanto na clínicano período da manhã como nas visitas domiciliares no períododa tar<strong>de</strong>.Ao visitar e <strong>de</strong>bater o processo educacional na Venezuela,Car<strong>de</strong>nal <strong>de</strong>scobre a existência em todo país das escolasbolivarianas, que surgiram para reparar uma dívida social imensacom os pobres das favelas ou dos lugares mais distantes,até mesmo na selva on<strong>de</strong> se ensina para os índios. Essas escolasjá somam mais <strong>de</strong> mil e espalham-se em todo territórionacional oferecendo três refeições. Nelas, os alunos dispõem<strong>de</strong> inclusão digital, esportes, Internet, psicólogos e atendimentomédico. Os alunos da classe média começam agora a migrar dasescolas particulares para o sistema estatal, pela qualida<strong>de</strong> dosserviços e porque são <strong>de</strong> graça. Cuba novamente assessora todoensino na Venezuela fornecendo professores, ví<strong>de</strong>os e livros.82


Estado, Esporte e I<strong>de</strong>ologia na Venezuela: “Hacer <strong>de</strong>porte es hacer Revolución”Car<strong>de</strong>nal afirma em várias partes <strong>de</strong> seu relato a existência<strong>de</strong> um espírito comunitário, na busca <strong>de</strong> uma nova socieda<strong>de</strong>.Na favela os vizinhos não se conheciam. Hoje, por <strong>de</strong>senvolveremtrabalhos comunitários em inúmeros locais, acabaramcriando uma nova mentalida<strong>de</strong> e rompendo com o individualismopróprio <strong>de</strong> outras socieda<strong>de</strong>s. Hugo Chávez, porsua vez, recorreu ao mesmo artifício <strong>de</strong> Lula no Brasil ao criarbolsas no valor <strong>de</strong> 100 dólares para trabalhadores <strong>de</strong> projetoscomunitários. Segundo <strong>de</strong>poimento colhido por Car<strong>de</strong>nal, essafoi uma das formas <strong>de</strong> socializar a riqueza vinda do petróleo,que antes só ficava nas mãos dos ricos. Salienta que intensificara participação popular é uma das formas <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratizare ao mesmo tempo vencer as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um Estado lento,viciado e corrupto que procura, na medida do possível, pormeio <strong>de</strong> seus funcionários, barrar os feitos da revolução oucriar dificulda<strong>de</strong>s.Outro elemento extremamente positivo colhido neste encontro,diz respeito à postura do exército venezuelano. Afirmaseque esse exército tem formação política e social, que leuMarx e outros autores clássicos, diferenciando-se assim <strong>de</strong> <strong>de</strong>maisexércitos latino americanos. Tal exército, comprometidocom causas sociais, é visto por todas as partes realizando consertos,reparos, pinturas, levantando obras e outras manifestaçõesque <strong>de</strong>monstram o seu compromisso com o social.Continuando sua <strong>de</strong>scrição empolgada com a RevoluçãoBolivariana, Car<strong>de</strong>nal (2006) comenta sobre a questão do esportee da educação física, elemento central da saú<strong>de</strong> e daeducação corporal:[...] cuento todo esto porque sé que se <strong>de</strong>sconece enel extranjero. El programa <strong>de</strong>portivo tiene vários miles<strong>de</strong> profesores <strong>de</strong>portivos comunitários. Ahora soncomunes en los Barrios las ativida<strong>de</strong>s que antes eran83


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>exclusivas <strong>de</strong> una minoria que podia pagar un lujuosogimnasio. Hay educación física y <strong>de</strong>porte en lasescuelas, y también gimnasia básica para la mujer,gimnasia musical aeróbica y baile-terapia, ativida<strong>de</strong>sfísicas para los obesos, para hipertensos, paraaembarazzadas, y también para los <strong>de</strong>l Club <strong>de</strong>abuelos (los <strong>de</strong> la tercera edad).Os resultados da Revolução Bolivarianasegundo Hugo ChávezSeria possível ficar preso às <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>nal sobreos resultados da Revolução Bolivariana, mas po<strong>de</strong>-se solidificaressas afirmações com alguns indicadores sociais e econômicos,retirados do seu próprio governo 1 . Essa análise rápidae superficial tem como proposta apenas <strong>de</strong>monstrar ao leitora importância <strong>de</strong> verificar esses indicadores na versão <strong>de</strong>Chávez, não tendo aqui qualquer pretensão <strong>de</strong> fazer uma leituraprofunda <strong>de</strong>sses números, o que fugiria à intenção inicial<strong>de</strong>ste trabalho. Feita essa explicação, <strong>de</strong>staca-se que, segundoMiguel Pérez Abab(2009, p. 10), presi<strong>de</strong>nte da Fe<strong>de</strong>ração dasIndústrias:La economia venezoelana navega en uno <strong>de</strong> susmejores tiempos, 24 meses <strong>de</strong> expansión económicay un incremento <strong>de</strong> PIB no petrolero en el primertrimestre <strong>de</strong>l anõ <strong>de</strong> 10,4%, muestran un empuje quetranscien<strong>de</strong> y enrumban al país a las proximida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> una bonanza económica. El parque industrialvenezolano en su conjunto exhibe un incrementonotable <strong>de</strong> su capacidad instalada, por encima <strong>de</strong>l73%, valor que supera el promedio <strong>de</strong> 52%, y conello se aproxima a su frontera <strong>de</strong> producción.1 Miguel Pérez Abab, presi<strong>de</strong>nte da Fe<strong>de</strong>ração das indústrias da Venezuela.84


Estado, Esporte e I<strong>de</strong>ologia na Venezuela: “Hacer <strong>de</strong>porte es hacer Revolución”Essa base econômica foi suficiente para impulsionar outrosindicadores necessários à construção <strong>de</strong> um projeto <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>para todos. Observando a proposta <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong> uma educaçãointitulada: “educação <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> para todos” é possívelver que por meio do projeto “Misíon Robinson I” a Venezuela<strong>de</strong>clarou-se território livre do analfabetismo. Já o outro programa,“Misión Ribas”, incorpora ao sistema formal <strong>de</strong> ensinoparcelas da população que sempre estiveram excluídas <strong>de</strong>sseprocesso. Por sua vez, a intitulada “Misión Sucre” preocupouseem duplicar a oferta <strong>de</strong> vagas nas universida<strong>de</strong>s.O que chama a atenção, além dos resultados expressivosem números do processo educativo, é a <strong>de</strong>nominação profundamentei<strong>de</strong>ológica da palavra Missão, que po<strong>de</strong> ser associada,do ponto <strong>de</strong> vista cristão, à fé, a um encargo religioso, ouainda a palavras fortes como obrigação, compromisso e <strong>de</strong>ver.Como algo que <strong>de</strong>ve ser feito a qualquer custo com o compromisso<strong>de</strong> todos. Essas mesmas <strong>de</strong>nominações i<strong>de</strong>ológicas, quecobram um compromisso com todos, será utilizada no campoda saú<strong>de</strong>, e veremos a seguir.Por sua vez, os indicadores oficiais do governo Hugo Chávezno campo específico da saú<strong>de</strong>, através do seu indicador <strong>de</strong> gestão,intitulado “Salud y calidad <strong>de</strong> vida para todos”, apresentadois projetos que buscam a inclusão social e o <strong>de</strong>senvolvimentoda justiça social. Tais programas, como <strong>de</strong>scrito por Car<strong>de</strong>nal,possuíam a ajuda <strong>de</strong> 20 mil médicos cubanos num exemplo <strong>de</strong>solidarieda<strong>de</strong>. O primeiro programa chama-se Misión BarrioA<strong>de</strong>ntro I e o segundo Misíon Mercal; esses dois programasconseguem incorporar ao sistema público <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> 85% dapopulação (INSTITUTO NACIONAL DE DEPORTO, 2006).85


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Os indicadores <strong>de</strong> gestão, quando analisada a questão dasegurida<strong>de</strong> social comparada com o último presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> oposiçãoa Chávez, apresentam melhoras significativas. O comportamentohistórico do índice <strong>de</strong> risco país é dos mais baixos;o <strong>de</strong>semprego mantém uma tendência à baixa; a inflação, queno período <strong>de</strong> Cal<strong>de</strong>ra atingiu a marca <strong>de</strong> 103,2%, hoje, encontra-seno patamar <strong>de</strong> 14,4%; o Produto Interno Bruto – PIBtem mantido nos últimos três anos uma taxa média <strong>de</strong> 10%,que comparada, por exemplo, ao índice brasileiro, é muito boa.O sistema nacional Bolivariano Del DeporteA estrutura esportiva montada por Hugo Chávez <strong>de</strong>nomina-se“Sistema Nacional Bolivariano Del Deporte”. Essesistema garante a ativida<strong>de</strong> física, o esporte e a recreação comoum direito social. Além <strong>de</strong> todas as funções dos sistemas esportivos<strong>de</strong> planejar, supervisionar e controlar programas. Salienta-sea necessida<strong>de</strong> da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida da população e abusca por um esporte <strong>de</strong> alto nível extremamente competitivo.Tem como objetivo a incorporação massiva da populaçãoe o fortalecimento do esporte escolar, buscando <strong>de</strong>tectar e formartalentos para o esporte <strong>de</strong> alto rendimento. A base doprograma esportivo bolivariano é um triângulo formado peloesporte cidadão ligado ao esporte para todos. Esse programabusca a inclusão social <strong>de</strong> elementos antes distantes <strong>de</strong>ssa prática,tais como o resgate cultural e o processo <strong>de</strong> humanizaçãoe, também, <strong>de</strong>tecta valores esportivos. O segundo ponto é oesporte e a educação física escolar e a sua necessáriamassificação na busca novamente <strong>de</strong> valores rumo ao terceiroeixo, o esporte <strong>de</strong> rendimento, que é preocupação intensa doprograma.86


Estado, Esporte e I<strong>de</strong>ologia na Venezuela: “Hacer <strong>de</strong>porte es hacer Revolución”Ao analisar os indicadores da gestão esportiva, observa-se<strong>de</strong> maneira geral alguns elementos que <strong>de</strong>vem ser tratados emseparado. Primeiro, o intenso controle estatístico da estrutura<strong>de</strong> Estado; segundo, a utilização <strong>de</strong> uma terminologia <strong>de</strong> programasrestrita ao padrão técnico do esporte e direcionada, àprimeira vista, para o esporte <strong>de</strong> rendimento, mantendo-se assimextremamente conservadora e vinculada ao padrão esportivointernacional. Terceiro, no Brasil, o Esporte para Todos –EPT foi utilizado pelo regime militar com propósito <strong>de</strong> difundira prática esportiva e os traços i<strong>de</strong>ológicos que marcaram aépoca. Na Venezuela, ele toma contornos i<strong>de</strong>ológicos interessantesquando rompe com o tradicional e utiliza novamente apalavra Missão, quando propõe o “Misíon Barrio A<strong>de</strong>ntro”.Esse programa é comandado por professores venezuelanos ecubanos e envolve mais <strong>de</strong> cinco mil professores em 169 municípios<strong>de</strong> 21 estados. O programa é o <strong>de</strong> maior repercussãosocial, incluindo a gran<strong>de</strong> maioria da socieda<strong>de</strong> venezuelana.A i<strong>de</strong>ia é municipalizar o esporte, fortalecer a socieda<strong>de</strong> civil ecriar eventos esportivos <strong>de</strong> massa.Feitas essas consi<strong>de</strong>rações iniciais, bastaria salientar <strong>de</strong>maneira geral que a pirâmi<strong>de</strong> invertida da estrutura do esportevenezuelano possui quatro estágios. Em cima, uma gran<strong>de</strong> basereservada à massificação esportiva, logo abaixo, uma faixabem menor <strong>de</strong>nominada <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lagem ou reserva esportiva,na qual encontra-se o campo das competições, ou seja, asligas nacionais, campeonatos nacionais e escolares no sentidodo alto rendimento. Em um terceiro plano, a parte <strong>de</strong>stinadaao aperfeiçoamento esportivo, ou seja, a alta competição,e, por último, uma parcela restrita a um pequeno número <strong>de</strong>stinadoà elite esportiva, ou o que se <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> esperançasolímpicas e paraolímpicas. Esse esporte <strong>de</strong> rendimento que87


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>ocupa gran<strong>de</strong> parte da estrutura oficial possui todo o aparatodas ciências médicas e aplicadas ao esporte e joga na suaestruturação o sonho <strong>de</strong> subir no quadro <strong>de</strong> medalhas das competiçõesmundiais do sistema esportivo internacional.A Universida<strong>de</strong> Iberoamericana do EsporteChega-se ao ponto da análise em que se procura <strong>de</strong>svendaros objetivos políticos da criação da Universida<strong>de</strong>Iberoamericana do Esporte (UNICADE), suas limitações, avançose retrocessos. Realizou-se um longo caminho até aqui, masacredita-se ser plenamente justificável, do ponto <strong>de</strong> vista doEstado, da política e da i<strong>de</strong>ologia, estabelecer os eixos <strong>de</strong>stasanálises <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma linha que se preocupa em ser estrutural.Um dos aspectos a ressaltar, <strong>de</strong> caráter essencial do ponto<strong>de</strong> vista do Estado e <strong>de</strong> suas preocupações políticas e i<strong>de</strong>ológicas,é a proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong> opiniões entre o governo <strong>de</strong> Hugo Cháveze o <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l Castro. O Diário Gramna, órgão oficial do ComitêCentral do Partido Comunista Cubano, todas as vezes que semanifestou acerca da Universida<strong>de</strong>, referiu-se a ela com extremoentusiasmo. Segundo o jornal, datado <strong>de</strong> 3/11/2005, aUniversida<strong>de</strong> é um passo importantíssimo no processo <strong>de</strong>integração regional impulsionado pelo presi<strong>de</strong>nte Hugo Chávez.Continuando, a reportagem, quando ainda se construía o projetoem 2005, diz que a Universida<strong>de</strong> representa um símbolodas mudanças que ocorrem na Venezuela e a consolidação daintegração dos povos, como parte da Alternativa Bolivarianapara as Américas (ALBA). Assinalou ainda que a instituiçãoterá como propósitos fomentar a cooperação internacional, o<strong>de</strong>senvolvimento da educação física e estabelecer o esporte comoum direito para melhorar a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e a formação88


Estado, Esporte e I<strong>de</strong>ologia na Venezuela: “Hacer <strong>de</strong>porte es hacer Revolución”integral. Para tanto, chegaram à Venezuela 120 estudantes graduadosem Cuba em várias especialida<strong>de</strong>s que se incorporaramao projeto.Por sua vez, em 30 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2006, quando se consolidao projeto, aparece na Gazeta oficial da RepúblicaBolivariana o Decreto nº 4.242, que cria legalmente a Universida<strong>de</strong>Iberoamericana e Caribenha do Esporte, on<strong>de</strong> se ressaltaa sua importância para transformar a Venezuela em umagran<strong>de</strong> potência esportiva.No mesmo diário Gramna, <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2006,Chávez anunciou a criação do Ministério do Esporte em seupaís, afirmando que este é um ato <strong>de</strong> reconhecimento ao <strong>de</strong>sempenhoesportivo dos atletas que estão transformando aVenezuela em uma potência esportiva. O chefe <strong>de</strong> Estado entregouainda aos atletas que conquistaram a medalha <strong>de</strong> ouroa Or<strong>de</strong>m do Libertador.Não existem muitas surpresas na atuação <strong>de</strong> Chávez. Homem<strong>de</strong>terminado a trazer à cena política o sonho <strong>de</strong> SimomBolívar, lutou como poucos pela criação da RepúblicaBolivariana. Não se tratava apenas <strong>de</strong> um nome ou um exagero,como diziam alguns; tratava-se <strong>de</strong> reconstruir os nomes eos símbolos que marcaram uma época e que precisavam serreconquistados, para a criação <strong>de</strong>sse campo i<strong>de</strong>ológico. Crioua Constituição Bolivariana e anda com esse documento poron<strong>de</strong> passa. Reconstruiu o discurso patriótico e os símbolosvinculados a Simom Bolívar, re<strong>de</strong>senhou o discurso ético <strong>de</strong>uma América Latina integrada, uma América Latina única lutandocontra o seu pior inimigo, os EUA (e seus parceiros internacionais).Conquistou através da ascensão das esquerdas naAmérica Latina relações sólidas e <strong>de</strong>senvolveu um discurso fortee sintonizado <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa dos interesses latino americanos.89


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Utiliza-se do esporte para a reprodução do discursobolivariano e o faz com extrema maestria. Obviamente essaprática não é nem um pouco inovadora, como po<strong>de</strong>-se perceberao longo do texto. O Estado sempre se utilizou do esportecomo instrumento i<strong>de</strong>ológico <strong>de</strong> luta política. Chávez reproduzessa prática através da utilização dos símbolos, da ban<strong>de</strong>ira,das homenagens aos atletas, do nome dado às or<strong>de</strong>ns quehomenageiam os gran<strong>de</strong>s campeões, como a “Or<strong>de</strong>m do Libertador”.Do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> sua política interna, Cháveztrabalha com extrema maestria na relação esporte, Estado ei<strong>de</strong>ologia. Através <strong>de</strong> sua política externa, ele implementa umanovida<strong>de</strong> no discurso i<strong>de</strong>ológico do esporte ao trazer para oesporte o sonho bolivariano da integração latino americana.Utiliza o esporte como instrumento <strong>de</strong>ssa integração e assimcria a proposta da Universida<strong>de</strong> Iberoamericana.Dessa forma, Chávez cria um elo entre os países da AméricaLatina antes inexistente. Numa mesma universida<strong>de</strong> estarãoconvivendo argentinos, brasileiros, guatemaltecos,nicaraguenses, cubanos, bolivianos, paraguaios e outros povosmais. São professores e alunos <strong>de</strong> diferentes regiões, com diferençaslinguísticas e culturais na área esportiva e <strong>de</strong> culturacorporal, assim como <strong>de</strong> conhecimento científico da EducaçãoFísica. Realida<strong>de</strong>s diferentes, diversida<strong>de</strong> cultural, todosmonitorados pelo sonho <strong>de</strong> Hugo Chávez e seu discursobolivariano. Essa é a gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong> e o gran<strong>de</strong> mérito daUniversida<strong>de</strong>. Chávez produz aquilo que Darcy Ribeiro (1995)<strong>de</strong>finiu como “choque cultural”. Através <strong>de</strong>ssa diversida<strong>de</strong> cultural,busca um ponto <strong>de</strong> encontro, a unida<strong>de</strong> latino americana.Por sua vez, na sua estrutura interna, a Universida<strong>de</strong> possuirátrês cursos <strong>de</strong> formação em licenciatura: ativida<strong>de</strong> físicae saú<strong>de</strong>, treinamento <strong>de</strong>sportivo e gestão tecnológica do esporte.Está claro que o primeiro curso trabalha com a intenção <strong>de</strong>90


Estado, Esporte e I<strong>de</strong>ologia na Venezuela: “Hacer <strong>de</strong>porte es hacer Revolución”preparar professores para fazer o trabalho social da educaçãofísica que está sendo implementado na Venezuela com o propósito<strong>de</strong> inclusão social, <strong>de</strong>senvolvimento da saú<strong>de</strong> e qualida<strong>de</strong><strong>de</strong> vida por meio do esporte. Já a priorida<strong>de</strong> da Universida<strong>de</strong>situa-se no plano externo da disputa política e i<strong>de</strong>ológicaatravés do esporte. Ou seja, no seu insistente discurso <strong>de</strong> fazerda Venezuela uma potência esportiva. Nesse aspecto, Chávezreproduz o discurso soviético dos seus parceiros socialistas dopós-guerra. Discurso conhecido e que causou gran<strong>de</strong>s males aoesporte e à Educação Física <strong>de</strong>sses países. A luta <strong>de</strong>sesperadapelo recor<strong>de</strong>, pelas medalhas, a superação na tabela <strong>de</strong> classificaçãoe do resultado geral dos jogos <strong>de</strong> caráter internacional.Se esse é um gran<strong>de</strong> mal, por outro lado, países periféricosque nunca tiveram a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conquistar maioresíndices <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento esportivo, como Guatemala e Nicarágua,passarão a conhecer todo <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sportivocubano como, por exemplo, no discurso político e ético do esporteligado à saú<strong>de</strong> e à cidadania; do esporte enquanto meio<strong>de</strong> coesão social e i<strong>de</strong>ntificação das culturas do povo latino;da construção do esporte popular, enquanto elemento <strong>de</strong> educação<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma nova orientação política; enfim, passarãoa ter acesso ao conhecimento avançado <strong>de</strong>sses países emtreinamento esportivo e na gestão da tecnologia do esporte, oque é extremamente saudável para o <strong>de</strong>senvolvimento esportivo<strong>de</strong>sses países.Da mesma forma, na diversida<strong>de</strong> do encontro <strong>de</strong> diferentesestudantes e professores, cria-se um solo extremamente fortepara o surgimento <strong>de</strong> uma educação física extremamentecrítica, muito diferente da visão colonizada, oci<strong>de</strong>ntal que sepossui hoje.Por isso, quando Chávez afirma: “Hacer <strong>de</strong>porte és hacerrevolución” ele resgata para América Latina a lógica histórica91


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>que uniu Estado, esporte e i<strong>de</strong>ologia, agora do ponto <strong>de</strong> vistada esquerda e não mais da direita. A Educação Física daAmérica Latina colonizada pelo oci<strong>de</strong>nte que, em suas váriasfases, absorveu esse discurso i<strong>de</strong>ológico da direita e somentemais tar<strong>de</strong>, quando surgiu uma Educação Física mais crítica ereflexiva, soube fazer a crítica a essa situação política, teráagora a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> observá-la criticamente pelo viés daesquerda, e procurar enten<strong>de</strong>r o que significa “Hacer <strong>de</strong>porteés hacer revolución”.ReferênciasABAB, Miguel Pérez. Disponível em: . Acessoem: 13 <strong>de</strong>z. 2006.CARDENAL, Ernesto. Venezuela: La revolución silenciada. Adital,Nicaragua, 19 maio 2006. Disponível em: .Acesso em: 26 ago. 2009.DEBORD, Guy. A Socieda<strong>de</strong> do espetáculo. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Contraponto, 1997.GONZÁLES, José Ignácio Barbero. Deporte Y Clase Social In:BROHM, J.M.; BOURDIEU,P.; DUNNING, E. Materiales <strong>de</strong>Sociologia <strong>de</strong>l Deporte. Madrid: García-Rico, 1993.INSTITUTO NACIONAL DE DEPORTO www.ind.gob.ve.LEAL, Ubiratan. História dos Jogos Olímpicos 1896-2004: <strong>de</strong>Atenas a Atenas-XIX Jogos Olímpicos, 1968 cida<strong>de</strong> do México(México). Disponível em: . Acesso 13 <strong>de</strong>z. 2006.92


Estado, Esporte e I<strong>de</strong>ologia na Venezuela: “Hacer <strong>de</strong>porte es hacer Revolución”PRIETO, Luiz M. Cazorla. Deporte y Estado. Barcelona: LaborPoliteia, 1979.RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido doBrasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.SIMSON, Vyv; ANDREW, Jennings. Los señores <strong>de</strong> los anillos:po<strong>de</strong>r, dinero y doping en los juegos olimpicos. Bogotá: ed.Norma, 1992.93


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Brasil e Argentina: estudocomparativo sobre conteúdos daeducação física escolar e questões<strong>de</strong> gênero 1Suéllen Rögelin Patrício 2Maria do Carmo Saraiva 3Verónica Bergero 4IntroduçãoOs problemas que envolvem as questões <strong>de</strong> gênero já foramampla e profundamente analisados nos campos da saú<strong>de</strong> eda educação em âmbito mundial e continuam <strong>de</strong> extrema importânciapara os povos que lutam pela emancipação humana.No entanto, apesar dos avanços já conquistados nessescampos a esse respeito, há muitos setores da socieda<strong>de</strong> emque ainda persistem o atraso teórico, os limites práticos e oconservadorismo político, <strong>de</strong>ntre eles os que se relacionam ao1 Pesquisa realizada no segundo semestre <strong>de</strong> 2006.2 Graduada em Educação Física/UFSC. Realiza estudos e pesquisas sobre a dança e gênero no âmbito daeducação física escolar. E-mail: surogelin@yahoo.com.br3 Doutora em Motricida<strong>de</strong> Humana, especialida<strong>de</strong> Dança; professora do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação doDEF/CDS/UFSC e membro do NEPEF/UFSC. Investiga nas linhas <strong>de</strong> pesquisa Teorias sobre o corpo e omovimento humano e Teorias pedagógicas e didáticas do ensino da educação física, em especial temas comoGênero, Coeducação e Dança. E-mail: marcarmo@terra.com.br4 Mestre em Educação Física, pelo CDS/UFSC. Realiza estudos sobre Dança e Educação Física. Tem artigospublicados nas temáticas <strong>de</strong> Dança, Educação Física e mídia. Atualmente trabalha como professora no Projeto<strong>de</strong> Dança extracurricular na Re<strong>de</strong> Municipal <strong>de</strong> Ensino <strong>de</strong> Florianópolis – SC. E-mail: verobergero@hotmail.com94


Brasil e Argentina: estudo comparativo sobre conteúdos da educação física escolar equestões <strong>de</strong> gêneroesporte em todos os níveis e ao ensino da disciplina EducaçãoFísica nas escolas.Em atenção a esses problemas, busca-se recuperar elementosda literatura especializada para analisar <strong>de</strong> forma comparativaa Educação Física <strong>de</strong>senvolvida em escolas <strong>de</strong> doispaíses da América do Sul – Argentina e Brasil – focalizando asatenções ao tratamento (e não tratamento) dado às questões<strong>de</strong> gênero. As análises foram realizadas sobre documentos oficiaisque regem o ensino escolar nos dois países e sobre a práticapedagógica adotada por educadores(as) das escolasinvestigadas, bem como sobre a compreensão <strong>de</strong> esporte e gênerodos(as) estudantes envolvidos(as).Na Argentina, foram realizadas observações <strong>de</strong> aulas <strong>de</strong>Educação Física em escola pública (vinculada à Universida<strong>de</strong>),na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> La Plata, em duas turmas <strong>de</strong> sétimo ano 5(11-12 anos), uma feminina e outra masculina. Na femininahavia 15 meninas, e na masculina, 14 meninos. No Brasil foramobservadas aulas em um colégio público (também vinculadoà Universida<strong>de</strong>), situado em Florianópolis, sul do país,envolvendo nove meninas e 14 meninos da sexta série (também11-12 anos). No caso <strong>de</strong>sta escola, a turma po<strong>de</strong>ria optarpor fazer aulas mistas ou separadas por gênero, tendo escolhidoa primeira opção. Ambas as observações foramcomplementadas por respostas a questionários e entrevistas.Para efeito <strong>de</strong> contextualização <strong>de</strong>sta produção intelectual,é importante <strong>de</strong>stacar que as reflexões são fruto, <strong>de</strong>ntretantas experiências, <strong>de</strong> trabalhos <strong>de</strong> formação profissional <strong>de</strong>educadores da Re<strong>de</strong> Oficial <strong>de</strong> Ensino do Município <strong>de</strong>Florianópolis, Estado <strong>de</strong> Santa Catarina – UFSC, Brasil, atra-5 Que correspon<strong>de</strong>m à sexta série do ensino fundamental do Brasil.95


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>vés <strong>de</strong> Projeto <strong>de</strong>senvolvido em parceria entre o NEPEF (Núcleo<strong>de</strong> Estudos Pedagógicos em Educação Física, Universida<strong>de</strong>Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina) e a Prefeitura Municipal <strong>de</strong>Florianópolis, através <strong>de</strong> sua Secretaria <strong>de</strong> Educação. As reflexões<strong>de</strong>correm, também, <strong>de</strong> diversas pesquisas realizadas nessaárea; <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as que envolvem os universitários e as universitáriasda UFSC, há algumas décadas, até aquelas que envolveramcrianças <strong>de</strong> escolas <strong>de</strong> outros países como Portugal eAlemanha.Para aten<strong>de</strong>r aos interesses <strong>de</strong> estudiosos e militantes daquestão <strong>de</strong> gênero, i<strong>de</strong>ntificados como integrantes <strong>de</strong>sse movimentointernacional alternativo do campo da saú<strong>de</strong> – GlobalHealth Watch – foram trazidos alguns dos referenciais consagradospelo campo crítico da Educação Física brasileira. Essesreferenciais vêm se <strong>de</strong>stacando no cenário mundial por suacontribuição relevante para práticas transformadoras quantoao ensino da Educação Física e Esportes. Ao longo do texto,serão apresentados brevemente alguns dados da referida investigaçãocomo forma <strong>de</strong> dar materialida<strong>de</strong> a toda análise críticaaqui <strong>de</strong>senvolvida.Em termos conceituais, neste trabalho, gênero refere-seao sentido que foi atribuído a essa palavra, a partir da década<strong>de</strong> 1970, por estudiosas feministas, ou seja, é um conceitocontemporâneo. Falar <strong>de</strong> gênero é atribuir a cada ser – homeme mulher –, <strong>de</strong>terminadas características impostas pela socieda<strong>de</strong>e pela cultura, sendo o genêro, portanto, uma construçãohistórico-social. Para Jane Felipe (apud FELIPE; GUIZZO,2004, p. 33):O conceito <strong>de</strong> gênero procura se contrapor à idéia(sic) <strong>de</strong> uma essência (masculina ou feminina) natural,universal e imutável, enfatizando os processos96


Brasil e Argentina: estudo comparativo sobre conteúdos da educação física escolar equestões <strong>de</strong> gênerosocialmente <strong>de</strong>terminados. A constituição <strong>de</strong> cadapessoa <strong>de</strong>ve ser pensada como um processo que se<strong>de</strong>senvolve ao longo <strong>de</strong> toda a vida em diferentesespaços e tempos.A alternativa educacional que permeia toda a construção<strong>de</strong>ste texto é a Coeducação, proposta que vem sendo <strong>de</strong>senvolvidahá, aproximadamente, duas décadas no interior daEducação Física brasileira, já com boa aceitação e experiênciasconcretas no meio acadêmico e profissional da área, tantono Brasil quanto em países com os quais o NEPEF mantémrelações <strong>de</strong> colaboração, <strong>de</strong>stacadamente Argentina, Portugale Alemanha.Contextualizando o gênero e a educação física:Brasil e ArgentinaAcredita-se que in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do sexo, as pessoas têm osmesmos direitos <strong>de</strong> experimentar, nas escolas, diversas formas<strong>de</strong> manifestações da cultura <strong>de</strong> movimento durante aulas <strong>de</strong>Educação Física. Mas não é <strong>de</strong> hoje que a Educação Físicaescolar exerce papel distintivo, pois separa as pessoas por sexo,<strong>de</strong>limita os espaços e prepara as crianças para o mundo, visandoum resultado sem preocupar-se com o processo e comas relações que nele ocorrem (LOURO, 1997).Os conteúdos e as ativida<strong>de</strong>s na Educação Física têm um<strong>de</strong>terminado objetivo. As crianças entram na escola com a i<strong>de</strong>ia<strong>de</strong> que algumas coisas são exclusivamente para homens e outras,para mulheres. Em cada socieda<strong>de</strong>, a forma <strong>de</strong> ser homeme <strong>de</strong> ser mulher é ensinada às crianças <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que nascempelas práticas culturais estabelecidas – no primeiro momentopela família e <strong>de</strong>pois pelas diferentes instituições sociais. A partir97


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>daí, constituem-se estereótipos <strong>de</strong> gênero que revelam em qualsocieda<strong>de</strong> os sujeitos estão inseridos (RIBEIRO; SOARES, apudDEVENS, 2004). Essas relações <strong>de</strong> gênero também se estabelecemnas salas <strong>de</strong> aulas e essa realida<strong>de</strong> não é encontradasomente em nossos cotidianos e países.Sobre a problematização do gênero na escola, Saraiva(2002) aponta que as práticas corporais implicam nos processosculturais <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> estereótipos, como amasculinização e a feminilização <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas ativida<strong>de</strong>s.Estereótipos construídos pela história e confirmados pela mídia,que moldam os processos <strong>de</strong> ensino, gerando diferentes processospara homens e mulheres.Frente a esse fato, a Educação Física <strong>de</strong>veria ter comoobjetivo a formação do “ser total”, a formação <strong>de</strong> sujeitos críticose capazes <strong>de</strong> dar significado a esses movimentos (própriosda nossa área) para o seu cotidiano; seres aptos a construir etransformar a realida<strong>de</strong>. Porém, isso só é possível se a EducaçãoFísica conseguir estabelecer entre os sujeitos diferentes (quesomos) um diálogo entre iguais, e para que isso aconteça, ela<strong>de</strong>ve oferecer as mesmas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento paraambos os sexos, e não se restringir aos valores das representaçõessexuadas, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> lado questões como homossexualida<strong>de</strong>,multiculturalida<strong>de</strong> e igualda<strong>de</strong> entre todas as pessoas.Na mesma direção, Sayão (2002) trata das questões <strong>de</strong> gêneroe da sua relação com os sexos expondo a trajetória histórica ecultural <strong>de</strong>ssa relação. Ambas as autoras dizem que o trabalhodo gênero no âmbito escolar não está restrito às aulas mistas,mas o que realmente importa é a garantia <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong>oportunida<strong>de</strong> a todos.Atualmente, nas aulas <strong>de</strong> Educação Física, algumas coisasmudaram e melhoraram, porém alguns professores e pro-98


Brasil e Argentina: estudo comparativo sobre conteúdos da educação física escolar equestões <strong>de</strong> gênerofessoras continuam reproduzindo a prática pedagógica atravésdo treinamento esportivo, que ao seguir a lógica instrumental(orientada apenas pelo alto rendimento), não abre espaço parareflexão crítica e para as diferentes formas <strong>de</strong> experimentaçõesda cultura corporal. Desse modo, a Educação Física continuaassumindo forma <strong>de</strong> alienação e controle. Tais ativida<strong>de</strong>s afirmamquestões das relações construídas entre homens e mulheres,e representam uma realida<strong>de</strong> que diminui as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><strong>de</strong>senvolvimento das diferentes dimensões corporais das pessoas.Isso também se <strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong> que, quando chegam àescola, as crianças trazem consigo imagens-padrão do que éser um ou outro, sendo que po<strong>de</strong>m ser apresentadas diferentemente,<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da socieda<strong>de</strong> em que estão inseridas. Sendoa escola <strong>de</strong>finida também como meio que prepara para avida, e se organiza a partir da noção <strong>de</strong> cultura, é nela em quese crê que cultivando o indivíduo e ensinando-lhe a culturahistoricamente construída pela humanida<strong>de</strong>, é possível <strong>de</strong>senvolvero que há <strong>de</strong> “melhor” para a socieda<strong>de</strong>.Assim, ao falar <strong>de</strong> Educação Física escolar, é preciso pensarem que contexto ela está inserida. É necessário tambémobservar a sua expressão institucional, normatizada nos CBC(Contenidos Básicos Comunes da Argentina) e nos PCN(Parâmetros Curriculares Nacionais do Brasil). Aqui e ali, ambosos documentos objetivam organizar e orientar a práticapedagógica da Educação Física.Na Argentina, os conteúdos da Educação Física na escolasão apresentados em forma <strong>de</strong> jogos, expressão corporal e habilida<strong>de</strong>smotrizes e corporais. A Educação Física é o espaçoon<strong>de</strong> os cidadãos po<strong>de</strong>m se apropriar dos conteúdos culturaisda socieda<strong>de</strong>. As concepções <strong>de</strong> cultura encontradas no CBCestão relacionadas às questões políticas e <strong>de</strong> legitimação social.99


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Já no Brasil, nos PCNs, os conteúdos são apresentadosem três partes: “conhecimentos sobre o corpo”, “esportes, jogos,lutas e ginásticas” e “ativida<strong>de</strong>s rítmicas e expressivas”.São trabalhados <strong>de</strong> maneira gradativa, seguindo uma lógica,conforme a dificulda<strong>de</strong> e é valorizado o ato <strong>de</strong> movimentar-separa <strong>de</strong>senvolver capacida<strong>de</strong>s e apren<strong>de</strong>r habilida<strong>de</strong>s motoras.É necessário atenção para o que Caparroz (2003) alerta,o autor ressalta que a construção do PCN foi centralizada,tendo participado professores, especialistas contratados peloMinistério da Educação, e que outros âmbitos da socieda<strong>de</strong>não influenciaram. Diz, ainda, que tal documento segue “orientações”do FMI, do Banco Mundial e da UNESCO, e queregras impostas pelo mercado conduzem a educação no país.Outra crítica é que, ao mesmo tempo em que é anunciadocomo um “parâmetro” (possibilida<strong>de</strong>), também é uma referênciaa ser necessariamente seguida.Apesar das diferenças <strong>de</strong> conteúdos explicitados nos CBCse nos PCNs, na essência, eles reproduzem as orientações <strong>de</strong>“velhos conhecidos” dos campos da educação, figurando comopeças políticas das reformas neoliberais que se encontram emprocesso avançado <strong>de</strong> implantação na América Latina (CBCE,1997). Assim, compreen<strong>de</strong>-se que em ambos os países eles<strong>de</strong>vem servir como referência, mas não necessariamente paraestabelecer padrões <strong>de</strong> ensino. A ambiguida<strong>de</strong> e a contradiçãoestão presentes nos textos. Nota-se também o ocultamento dofeminino ao referir-se aos sujeitos (homens e mulheres) apenascomo HOMEM, não como seres do mesmo gênero humano.100


Brasil e Argentina: estudo comparativo sobre conteúdos da educação física escolar equestões <strong>de</strong> gêneroSobre os conteúdos da Educação Física escolarA área da Educação Física <strong>de</strong>veria tratar das variadas formasda cultura corporal, como os jogos, a dança, a ginástica eo esporte, através <strong>de</strong> inserções <strong>de</strong> conteúdos expressivo-corporais.Mas, será que realmente a Educação Física na escolaabarca essa gama <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s?Percebe-se que o esporte 6 ainda aparece como conteúdoprincipal da Educação Física e a própria escola cria uma expectativanos alunos e alunas, reforçando o ensino <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadasativida<strong>de</strong>s. Nos primeiros anos <strong>de</strong> escolarização no Brasil,as crianças têm, em geral, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que quando alcançaremo quinto ano <strong>de</strong> estudo, tudo muda em termos <strong>de</strong> conteúdodas aulas <strong>de</strong> Educação Física: as aulas <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> se caracterizarcomo meras brinca<strong>de</strong>iras para crianças e passam a seconcentrar no esporte, assumindo valor primordial, pois afinal,todos querem “jogar” nas Olimpíadas escolares.Assim, como falou a professora brasileira (2006) durantea entrevista:Então, a princípio a gente está trabalhando, e tambémpela função que <strong>de</strong> 5ª a 8ª série, é mais voltado parao <strong>de</strong>sporto no Colégio A; a gente está trabalhandocom os esportes em si, as cinco modalida<strong>de</strong>s (futebol,basquetebol, han<strong>de</strong>bol, voleibol e atletismo), e tambémestamos trabalhando com os exames antropométricos,que também é uma norma já instituída na escola;que não é necessariamente o que eu e o Po1acreditamos, mas como já é isso há mais <strong>de</strong> anosassim, tem uma avaliação antropométrica dos alunosné, então assim, isso é entendido como conteúdo daEducação Física, e a partir daí, a gente explora daforma como po<strong>de</strong>. E, a gente espera trabalhar mais6 O esporte possui características hegemônicas (a especialização, a divisão, a complexida<strong>de</strong>) que servemmuito bem ao capitalismo. Segue a lógica do mercado, em que tudo vira mercadoria.101


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>vinculado após as Olimpíadas com conteúdos maisvoltados à experiência corporal, a dança, até eu tavaconversando com o Po1, pra gente trabalhar agoraapós a entrada dos estagiários, com algumasativida<strong>de</strong>s, até com expressão corporal, para explorarum pouco mais esses conteúdos que <strong>de</strong> 5ª a 8ªrealmente ficam mais <strong>de</strong> lado.Nas entrevistas com o professor e a professora brasileira 7percebeu-se que eles não concordam com isso, mas como estãoem minoria, consi<strong>de</strong>ram difícil empreen<strong>de</strong>rem alguma mudança.No Colégio argentino, o esporte também é a ativida<strong>de</strong> principal,no entanto a fala do professor é um pouco contraditória.Ao mesmo tempo em que evi<strong>de</strong>ncia a técnica esportiva nasaulas, ele também visa uma assimilação <strong>de</strong>sses conteúdos pararesolução <strong>de</strong> problemas da vida cotidiana. Isso expressa amaneira pela qual o esporte é tratado, valorizando a competiçãoque leva a formas <strong>de</strong> dominação, e ao que parece, essaEducação Física ten<strong>de</strong> a criar problemas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s enão resolvê-los.Conforme a professora argentina (2005)Con el 7º año, primero hacemos la observación, eldiagnóstico, al comienzo y <strong>de</strong>spués empezamos conlos <strong>de</strong>portes, así con los juegos recreativos y con lainiciación <strong>de</strong>portiva, para que los niños aprehendana respetar las reglas y cosas básicas como pasar,recibir, driblar, lanzar. Bueno, <strong>de</strong>spués iniciamos conel <strong>de</strong>porte pero con el reglamento reducido. En eltercer año ocurre el que llamamos <strong>de</strong> "muestreo", quesería como una muestra <strong>de</strong> algunos <strong>de</strong>portes, paraque los alumnos elijan el que les gusta más, paraelección <strong>de</strong>l <strong>de</strong>porte para el Polimodal.Em ambos os países o esporte continua sendo o principalconteúdo da Educação Física escolar. Outras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>7 Os nomes dos(as) entrevistados(as) foram omitidos para preservar suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s.102


Brasil e Argentina: estudo comparativo sobre conteúdos da educação física escolar equestões <strong>de</strong> gêneropráticas corporais não fazem parte dos planos <strong>de</strong> ensino, docurrículo escolar. Mas, no Brasil, percebe-se nas falas dos professoresa intenção <strong>de</strong> trabalhar outros conteúdos, como adança, a ginástica, a capoeira e o esporte <strong>de</strong> aventura. Essasativida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m levar à formação diferenciada das pessoas,pois estimulam a criativida<strong>de</strong>, a expressão, a comunicação e aliberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> movimento (<strong>de</strong>svinculando-se dos movimentos estereotipados).Mesmo assim, esses outros conteúdos sãoinexistentes ou apenas eventuais.A maioria dos(as) alunos(as), ao respon<strong>de</strong>rem aos questionários,apresentou um entendimento sobre os conteúdos da EducaçãoFísica que se reduz aos esportes. Quando questionados(as)sobre seu gosto pelas aulas, em ambos os países, a maioriarespon<strong>de</strong>u positivamente – dizendo que gosta das aulas –, além<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar preferência dizendo: “as aulas são legais” ou“adoro esportes”. Em relação à preferência por <strong>de</strong>terminadosconteúdos, o esporte aparece em mais <strong>de</strong> 90% das respostas,nos dois países. Mas também aparecem conteúdos como: o jogo,a dança, a ginástica, o taco e a ioga. Há uma maior rejeiçãopor parte dos meninos argentinos pela dança e pela ginástica e,aparentemente, uma maior aceitação das meninas nos dois paísesem relação a esses mesmos conteúdos.Sobre a eleição dos conteúdos da EducaçãoFísicaSegundo o Coletivo <strong>de</strong> Autores (1992, p. 25)Um projeto político-pedagógico representa umaintenção, ação <strong>de</strong>liberada, estratégia. É políticoporque expressa uma intervenção em <strong>de</strong>terminadadireção e é pedagógico porque realiza uma reflexão103


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>sobre a ação dos homens na realida<strong>de</strong> explicandosuas <strong>de</strong>terminações.Nessa direção, o projeto político-pedagógico <strong>de</strong>ve, também,propor ações que se vinculam com as metas do ensino –entre elas, a estruturação <strong>de</strong> bases sólidas para o conhecimentocientífico e o <strong>de</strong>senvolvimento da responsabilida<strong>de</strong> social eambiental – e perspectivar a inclusão, tarefas que se espelham,sem dúvida, numa orientação coeducativa da prática pedagógica.Sendo assim, po<strong>de</strong>-se dizer que a maneira como tratamoso conhecimento reflete na organização e sistematizaçãodos conteúdos escolares.Sobre os conteúdos, o mesmo Coletivo <strong>de</strong> Autores (1992)afirma a existência <strong>de</strong> cinco princípios curriculares que norteiamo processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição dos conteúdos, são eles: a relevânciasocial do conteúdo, a contemporaneida<strong>de</strong> do conteúdo, a a<strong>de</strong>quaçãoàs possibilida<strong>de</strong>s sociocognitivas do aluno, a simultaneida<strong>de</strong>dos conteúdos e a provisorieda<strong>de</strong> do conhecimento.Infelizmente, esses cinco princípios dificilmente são pensados etrabalhados. Os conteúdos obe<strong>de</strong>cem a uma certa estruturado colégio, que está relacionada à construção histórica, <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong> um cenário político e econômico.Apesar dos professores participarem da eleição das ativida<strong>de</strong>s,essa escolha é manipulada e segue <strong>de</strong>terminados padrõesda instituição <strong>de</strong> ensino. Para elaboração <strong>de</strong> seu plano,os professores se baseiam no Plano Político Pedagógico da escola.Mesmo assim, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> pronto, ele ainda vai ser aprovadopela direção do colégio (na Argentina) e pela coor<strong>de</strong>naçãopedagógica (no Brasil), que <strong>de</strong>ve formatá-lo para seguir o mo<strong>de</strong>loinstitucional. Tal mo<strong>de</strong>lo limita a formação dos estudantese restringe a autonomia e a criativida<strong>de</strong> dos educadores edas educadoras, pois prioriza as ativida<strong>de</strong>s que são mais inte-104


Brasil e Argentina: estudo comparativo sobre conteúdos da educação física escolar equestões <strong>de</strong> gêneroressantes para a instituição. Nesse contexto, percebe-se que nosdois países os conteúdos continuam sendo utilizados como elementosque po<strong>de</strong>m servir a uma forma <strong>de</strong> controle e manipulaçãosocial.Nesse “ciclo”, alguns professores e professoras assumemuma posição conformista, aceitando o que lhes é imposto ereforçam certos conceitos. Outros discordam <strong>de</strong>ssa estruturafechada; assim, há uma constante luta, <strong>de</strong>ntro da própria escola,entre os professores e professoras que <strong>de</strong>sejam uma mudançae os que não a querem. Estes alegam que as mudançasnecessitam <strong>de</strong> um mínimo <strong>de</strong> esforço e para tanto é preciso ummovimento por parte da escola como um todo, a fim <strong>de</strong> que sepossa refletir sobre os conteúdos mais significativos.Como dito anteriormente, a herança histórica ainda émuito “forte”. O professor brasileiro diz que os conteúdos jáforam eleitos no final da década <strong>de</strong> 1960 e que até hoje prevaleceessa estrutura, sendo que, as formas <strong>de</strong> intervir, então,ocorrem, não pela variação dos conteúdos, mas sim pelametodologia adotada por cada professor.Ressalta-se que um conteúdo tem que possibilitar às pessoasa resolução <strong>de</strong> problemas <strong>de</strong> acordo com cada momentoe, se os conteúdos daquela época eram pensados a partir daquelarealida<strong>de</strong> histórica, hoje os conteúdos precisam aten<strong>de</strong>ràs necessida<strong>de</strong>s sociais mais atuais e urgentes. E para que issoocorra, os conteúdos necessitam ser, constantemente, repensados.Ao professor e à professora cabe uma reflexão diáriasobre a função dos conteúdos escolares e <strong>de</strong> sua ação na escola,respon<strong>de</strong>ndo para si mesmo “para que” quer ensinar. Issosignifica que o movimento dos professores em direção à mudançados conteúdos <strong>de</strong>ve começar pela intervenção nos projetospolíticos pedagógicos e, consequentemente, pelo acompanhamentodo cumprimento <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>terminações.105


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Sobre as aulas mistasAinda hoje, é complicado falar em aulas mistas na EducaçãoFísica. Essa divisão é ou não realizada tomando comobase o sexo das pessoas e varia <strong>de</strong> escola para escola.No Colégio brasileiro ocorre a seguinte divisão: do primeiro aoquarto ano <strong>de</strong> estudos (1ª a 4ª séries), as aulas são mistas; doquinto ao oitavo ano (5ª a 8ª series), são separadas. No ensinomédio, as turmas são mistas, porém divididas por modalida<strong>de</strong>sesportivas. Na turma observada, o professor e a professora responsáveisresolveram fazer uma votação para saber das criançaso que preferiam: aulas mistas ou separadas. As criançasoptaram por aulas mistas, pelo direito <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>rem juntas ea garantia das mesmas oportunida<strong>de</strong>s.Na Argentina, a partir da 5ª série as turmas são separadasentre homens e mulheres, sendo que no “Polimodal” (ensinomédio) ocorre divisão por modalida<strong>de</strong>s esportivas também.Quando questionado sobre a não existência das turmas mistas,o professor argentino (2005) afirmou que: “Sí, porque lasaptitu<strong>de</strong>s físicas no son las mismas y el <strong>de</strong>sarrollo motortampoco”. Essa visão parece reforçar a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> uma correntetradicionalista[...] que concebe a Educação Física (e o estudo domovimento humano) no paradigma tecnicistahigienistado esporte <strong>de</strong> rendimento <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> físicacomo saú<strong>de</strong>, e que ten<strong>de</strong> a adotar pontos <strong>de</strong> vistabiológicos para explicar a diferenciação física ecomportamental <strong>de</strong> homens e mulheres (SARAIVA,2005, p. 31).Sem dúvida, a construção histórico-cultural <strong>de</strong> comportamentosdiferentes para homens e mulheres se fundamentou naconcepção <strong>de</strong> um corpo masculino que representa po<strong>de</strong>r e for-106


Brasil e Argentina: estudo comparativo sobre conteúdos da educação física escolar equestões <strong>de</strong> gêneroça física, e <strong>de</strong> um corpo feminino que é frágil e débil. As turmasestudadas na Argentina são separadas por sexo, além disso,o professor (sexo masculino) dá aulas para a turma masculina,e a professora (sexo feminino) para a turma feminina. Namaioria das turmas é assim, e não há, aparentemente, algumtipo <strong>de</strong> movimento por parte <strong>de</strong>sses educadores e educadoraspara uma possível mudança <strong>de</strong>sse pensamento. Assim, professorese professoras[...] acabam por reproduzir as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gêneroexistentes na socieda<strong>de</strong>, a partir <strong>de</strong> concepçõesessencialistas, pautadas em uma “natureza” capaz <strong>de</strong><strong>de</strong>terminar, irremediavelmente, os comportamentosmasculinos e femininos (FELIPE; GUIZZO, 2004, p. 32).Sobre os conteúdos e ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>stinadospara homens e mulheresA história da Educação Física mostra que essa disciplinafoi preconceituosa com a mulher, caracterizando comportamentosfemininos e masculinos. Assim, algumas ativida<strong>de</strong>s erame ainda são realizadas por <strong>de</strong>terminado sexo. Para justificaressas diferenças, <strong>de</strong>senvolveram-se teorias pedagógicas, queinfluenciaram ao longo <strong>de</strong> décadas as práticas na área.Buytendijk (apud SARAIVA, 2005), por exemplo, <strong>de</strong>senvolveuuma “teoria geral do movimento humano” 8 que nomeava gestosou movimentos característicos para cada sexo. A influênciadisso po<strong>de</strong> ser um dos “porquês” <strong>de</strong> alguns esportes serem praticadospor homens e outros por mulheres. Segundo Butendjik,ainda, o chute no futebol provoca um forte afastamento das8 Esta teoria foi <strong>de</strong>senvolvida por Buytendijk nas décadas <strong>de</strong> 1950 e 1960, na Alemanha.107


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>pernas, e por isso estaria em <strong>de</strong>sacordo à saia feminina, quemantém as pernas juntas. Às mulheres não caberia o movimento<strong>de</strong> “abrir” as pernas, por ser expansivo.Sabe-se que há uma corrente <strong>de</strong> professores e professorasque vão contra esse pensamento. Segundo o professor e a professorabrasileiros entrevistados, não existe diferença entre osconteúdos para homens e mulheres. O professor acredita que aescola <strong>de</strong>ve oferecer para as crianças as mesmas oportunida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do sexo. A maneira, porém, com quecada pessoa vai se apropriar <strong>de</strong>sses conteúdos, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong>la.Na Argentina, tal diferença não está explícita apenas nasfalas do professor e da professora. Nos próprios programas <strong>de</strong>ensino também po<strong>de</strong> ser encontrada essa divisão. Enquantoque no Colégio brasileiro encontra-se apenas um plano para asexta série, no Colégio argentino são dois planos distintos, umpara cada sexo; sendo que os conteúdos e as ativida<strong>de</strong>s sãodiferentes.Os conteúdos comuns nos dois países são: atletismo, ginástica,voleibol, han<strong>de</strong>bol. Na escola argentina estudada, asmeninas fazem o “cestobol” e o “softbol”. Já os meninos apren<strong>de</strong>mo basquetebol que as mulheres não têm a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>vivenciar. Percebe-se que embora haja conteúdos comuns paraambos os sexos – que incluem, por exemplo, a ginástica e oatletismo – a maneira como tais esportes são abordados parahomens e mulheres é diferente. Por exemplo, no esporte, paraas meninas são evi<strong>de</strong>nciadas as formas básicas – uma iniciaçãoàs modalida<strong>de</strong>s esportivas. Para os meninos, o ensino ébaseado na técnica esportiva. Na ginástica, as meninas trabalhamexercícios com bolas, bastões (que remetem à ginásticarítmica <strong>de</strong>sportiva). Para os meninos são explorados exercíciosem que se utiliza força. Ainda no programa para as meninas108


Brasil e Argentina: estudo comparativo sobre conteúdos da educação física escolar equestões <strong>de</strong> gêneroencontram-se palavras como expressão, comunicação e recreação,que não aparecem no plano para os rapazes.Interpretando os processos empreendidos por alunos e alunas,nessas turmas em separado, po<strong>de</strong>-se inferir o <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> interesses diferenciados por conteúdos da cultura <strong>de</strong>movimento. Isso, geralmente, circunscreve hierarquias do “saber-po<strong>de</strong>r”nas práticas corporais e po<strong>de</strong> redundar em polarida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> ação e antagonismos na relação <strong>de</strong> gênero, nas práticasda Educação Física, restringindo, ainda, a ampliação dorepertório <strong>de</strong> movimento dos/as educandos/as, no aspecto motor,com consequências para a construção da autoestima e da autonomia(SARAIVA-KUNZ, 1996).Uma co-educação é possível para a superaçãodo problema?Os conteúdos escolares ainda hoje possuem muitos rasgose heranças históricas <strong>de</strong> uma Educação Física higienista,tecnicista e militar, que exalta o valor da força física dos homens,e que atribui às mulheres exercícios <strong>de</strong>licados. Assim, écomum ver que <strong>de</strong>terminados conteúdos são <strong>de</strong>stinados àsmeninas e outros aos meninos.No Brasil, quando fala-se <strong>de</strong> esportes, refere-se ao futebol,voleibol, basquetebol, atletismo e han<strong>de</strong>bol. Na Argentina,além <strong>de</strong>sses, há o “softbol” e o “cestobol”. Em ambos ospaíses, são trabalhados o futebol, o han<strong>de</strong>bol, o voleibol, obasquetebol e o atletismo. Já a dança, a ginástica e outraspossibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> práticas corporais aparecem como ativida<strong>de</strong>spontuais ou ainda são inexistentes. Ao que parece, isso po<strong>de</strong>acontecer por três motivos: pela falta <strong>de</strong> preparação dos professorese professoras escolares; porque os outros saberes são109


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>consi<strong>de</strong>rados supérfluos por não correspon<strong>de</strong>rem aos objetivoscondizentes com o capitalismo; ou ainda, pela herança históricae preconceituosa. Em relação à eleição dos conteúdos, elesobe<strong>de</strong>cem a um plano da escola, que também está submetidoa um projeto maior <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong> cada país. Os professores eprofessoras <strong>de</strong> Educação Física participam da seleção <strong>de</strong>ssasativida<strong>de</strong>s escolares, porém têm que seguir uma estrutura <strong>de</strong>ensino pautada na instrumentalização técnica para o mercado.Essa estrutura, que separa competências, é a mesma queforja a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> competências entre meninos e meninasna escola, separando-os em todas as vivências.Todavia, enten<strong>de</strong>mos que as aulas mistas, se não são garantias<strong>de</strong> direitos e oportunida<strong>de</strong>s iguais, po<strong>de</strong>m ser uma possibilida<strong>de</strong>para problematização do gênero na escola, numaperspectiva coeducativa. Na Argentina, as aulas são separadaspor sexo e os conteúdos são explicitamente distintos paramulheres e homens. No Brasil as aulas são mistas e separadastambém, mas, como visto, existem situações em que as criançaspo<strong>de</strong>m escolher, disponibilizando os mesmos conteúdos parameninos e meninas.A partir das indagações iniciais, foi constatado um “fator”fundamental e <strong>de</strong>terminante para uma possível mudançana Educação Física: a atuação <strong>de</strong> professores e professoras.Para além das diferenças entre os dois países, tratando dasdiversida<strong>de</strong>s, sendo elas culturais, <strong>de</strong> escolarização, <strong>de</strong> formaçãouniversitária e do momento da ação pedagógica, existealgo mais forte que os une: a intenção e o objetivo enquantoeducadores e educadoras. O papel dos(as) educadores(as) daEducação Física na escola é proporcionar aos alunos e às alunasdiferentes possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r. Propiciar aos homense às mulheres as mesmas oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e110


Brasil e Argentina: estudo comparativo sobre conteúdos da educação física escolar equestões <strong>de</strong> gêneroaprendizagem. Segundo Paulo Freire (1987), a ação na escola<strong>de</strong>ve estar baseada em certos princípios, como: a fé, a coragem,a esperança e o diálogo. Com isso, ensinar implica permanentereflexão e construção coletiva. A coeducação, comouma prática que procura o diálogo para discernir o que é estereótipo,preconceito e discriminação, torna-se um possível caminhopara superação do problema, pois ela po<strong>de</strong> ser um processo<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconstrução da dominação, da solidarieda<strong>de</strong>, dacooperação e da participação entre iguais (SARAIVA, 2005).Mesmo estando ciente <strong>de</strong> que o momento <strong>de</strong> “<strong>de</strong>núncia”<strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong> já foi encaminhado, não são verificadas muitasmudanças nas aulas <strong>de</strong> Educação Física. No entanto, aperspectiva coeducativa <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> uma proposta concreta, oferecendoas mesmas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento para todasas pessoas, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do sexo, cor, etnia, etc. Ela po<strong>de</strong>proporcionar uma formação <strong>de</strong> pessoas mais críticas, sensíveis,conscientes e conhecedoras <strong>de</strong> si mesmo e do mundo.Espera-se que as contribuições aqui oferecidas possamprovocar reflexões e, principalmente, ações sobre o que temsido – e o que se <strong>de</strong>seja que sejam – os conteúdos da EducaçãoFísica escolar. Por fim, talvez seja possível terminar com amáxima marcusiana, <strong>de</strong> que[...] as verda<strong>de</strong>iras necessida<strong>de</strong>s são necessida<strong>de</strong>shumanas, não masculinas e femininas. Elas <strong>de</strong>vemser <strong>de</strong>scobertas e preenchidas em trabalho e alegriaconjuntos por homens e mulheres (MARCUSE, 1978, 87).111


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>ReferênciasBRACHT, V.; CRISORIO, R. (orgs.). La Educación Física enArgentina y en Brasil. I<strong>de</strong>ntidad, <strong>de</strong>safios y perspectivas. La Plata,Buenos Aires: Ediciones Al Margen, 2003.CAPARROZ, Francisco Eduardo. Parámetros CurricularesNacionales <strong>de</strong> Educación Física: Algunas claves para discutir lai<strong>de</strong>ntidad <strong>de</strong> Área frente al travestismo discursivo <strong>de</strong> las reformaseducativas. In: BRACHT, Valter; CRISORIO, Ricardo (orgs.). LaEducación Física en Argentina y en Brasil. I<strong>de</strong>ntidad, <strong>de</strong>safios yperspectivas. La Plata, Buenos Aires: Ediciones Al Margen, 2003.COLÉGIO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE – CBCE(org.). Educação física escolar frente à LDB e aos PCNs:profissionais analisam renovações, modismos e interesses. Ijuí:Sedigraf, 1997.COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino da EducaçãoFísica. São Paulo: Cortez, 1992.CRISORIO, R. (orgs.). La Educación Física en Argentina y enBrasil. I<strong>de</strong>ntidad, <strong>de</strong>safios y perspectivas. La Plata, Buenos Aires:Ediciones Al Margen, 2003.DEVENS, B. R. O Brincar na perspectiva do gênero e suasimplicações nas práticas corporais das aulas <strong>de</strong> Educação Físicaescolar. Trabalho <strong>de</strong> Conclusão <strong>de</strong> Curso (Graduação emEducação Física) – Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina,2004.FELIPE, J.; GUIZZO, B. S. Entre batons, esmaltes e fantasias. In:MEYER, Dagmar; SOARES, Rosangela. (Orgs.). Corpo, gênero esexualida<strong>de</strong> nas práticas escolares. Porto Alegre: Mediação, 2004.FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz eTerra, 1987.112


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<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>A Capoeira é do Brasil?A Capoeira no contexto daGlobalizaçãoJosé Luiz Cirqueira Falcão*IntroduçãoEste texto analisa o processo <strong>de</strong> globalização da capoeirano contexto da reestruturação produtiva do capitalismo.Embora a mídia em geral ainda não tenha <strong>de</strong>vidamenteevi<strong>de</strong>nciado esse fenômeno, é importante afirmar que ao longodos últimos anos, a capoeira vem se inserindo vertiginosamentenos mais diferentes espaços institucionais das médias e gran<strong>de</strong>scida<strong>de</strong>s do Brasil e em vários países do exterior, consolidandoum avanço histórico controvertido. Se, por um lado acapoeira, na época da escravidão, era associada com as lutas<strong>de</strong> negros escravizados em busca da liberda<strong>de</strong>, por outro, atualmente,ela tem sido vinculada majoritariamente com a lógicado mercado.A capoeira, criada pelos negros africanos escravizados noBrasil, a partir do Século XVII <strong>de</strong>senvolveu-se como um misto<strong>de</strong> jogo, luta e dança praticada ao som <strong>de</strong> instrumentos musi-* Professor Adjunto III da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina (UFSC). Doutor em Educação pelaUniversida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia. Coor<strong>de</strong>nador do Núcleo da Re<strong>de</strong> CEDES da UFSC. Sócio Pesquisador doColégio Brasileiro <strong>de</strong> Ciências do Esporte. Mestre <strong>de</strong> Capoeira do Grupo Beribazu.joseluizfalcao@hotmail.com.114


A Capoeira é do Brasil? A Capoeira no contexto da Globalizaçãocais criados com elementos da natureza pelos próprios negros,com auxílio <strong>de</strong> suas palmas e cantos, que eram praticamenteos únicos recursos disponíveis naquela situação <strong>de</strong> cativeiro.Apesar <strong>de</strong> conter lógica própria, a capoeira apresenta traços<strong>de</strong> conformismo e resistência muito próprios do campo dasculturas populares. Ao mesmo tempo em que incorporou códigose valores dominantes da socieda<strong>de</strong>, ela foi capaz <strong>de</strong> simultaneamentenegá-los com sutileza, a partir <strong>de</strong> alguns componentes,como o exercício do lúdico, a irreverência gestual e assuas cantigas, que ao reatualizarem fatos históricos, aguçam anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reflexão crítica sobre eles.Em seu <strong>de</strong>senvolvimento no Brasil, a capoeira consolidou,a partir do Estado da Bahia, duas vertentes distintas, mas interrelacionadas:a Capoeira Angola e a Capoeira Regional. SegundoVieira (1995), a Capoeira Regional insere-se numa lógicametódica e racional com vistas ao incremento da eficiência,em oposição à Capoeira Angola, cujos princípios estão calcadosno improviso e na irreverência.Se para Mestre Bimba 1 , o criador da Regional, a capoeirasurgiu na região do Recôncavo Baiano (daí a <strong>de</strong>nominaçãoRegional), portanto, brasileira, para Mestre Pastinha 2 – o principalrepresentante da Capoeira Angola –, ela teria suas raízesem terras angolanas, a partir <strong>de</strong> uma dança-luta africana <strong>de</strong>iniciação sexual chamada N’golo, portanto, africana. A partir<strong>de</strong>ssas diferentes visões dos principais lí<strong>de</strong>res acerca da origem1 Mestre Bimba - Manuel dos Reis Machado (1899 - 1974) era filho <strong>de</strong> Maria Martinho do Bonfim e LuizCândido Machado. Foi iniciado na capoeira aos 12 anos, pelo africano Bentinho, capitão da Companhia <strong>de</strong>Navegação Baiana. Fundou na década <strong>de</strong> 1930, em Salvador, a primeira aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> capoeira do Brasil.2 Mestre Pastinha - Vicente Ferreira Pastinha (1889 - 1981) era filho <strong>de</strong> José Pastiña, um mascate espanhol,e Raimunda dos Santos, uma negra. Foi iniciado na capoeira aos 10 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> pelo africano Benedito,natural <strong>de</strong> Angola. Aos 12 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, entrou para a Escola <strong>de</strong> aprendizes <strong>de</strong> Marinheiro on<strong>de</strong> permaneceuaté os 20 anos. Fundou em 1941, em Salvador, o Centro Esportivo <strong>de</strong> Capoeira Angola e tornou-se o principalguardião da Capoeira Angola.115


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>da capoeira, perfilam outras tantas tentativas <strong>de</strong> diferenciaçãoque <strong>de</strong>marcaram profundamente os códigos simbólicos <strong>de</strong> umae <strong>de</strong> outra 3 . Essas diferentes visões, que não são apenas <strong>de</strong>conteúdo, mas também i<strong>de</strong>ológicas, <strong>de</strong>marcam o <strong>de</strong>bate entreuma capoeira, cujos praticantes a <strong>de</strong>finem como mais populare <strong>de</strong> resistência, a Angola, e outra mais sintonizada com osvalores dominantes, a Regional.É importante consi<strong>de</strong>rar que essa divisão e suas diferentes<strong>de</strong>fesas apresentam conflitos e ambiguida<strong>de</strong>s, pois no contextocontemporâneo, a dinâmica cultural transforma cada capoeirapraticante em um mosaico <strong>de</strong> códigos in<strong>de</strong>cifráveis, dissolvendoi<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s estáveis e criando produtores <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>smúltiplas. Isso po<strong>de</strong> ser facilmente verificado no próprio movimentodos grupos <strong>de</strong> capoeira. Tais grupos vêm <strong>de</strong>monstrandoque, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> cultivarem a “mesma” capoeira, produzem“múltiplas” capoeiras, evi<strong>de</strong>nciando, assim, que i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nãoé uma entida<strong>de</strong> absoluta, uma essência que tenha sentido isoladamente.A chamada “crise <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>”, presente tambémnos grupos <strong>de</strong> capoeira, está abalando os quadros <strong>de</strong> referênciaque davam uma ancoragem estável ao mundo social.As velhas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, que por tanto tempo estabilizaram omundo social, estão em <strong>de</strong>clínio, fazendo surgir novas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>se fragmentando o indivíduo mo<strong>de</strong>rno, até aqui visto comoum sujeito unificado. É nesse cenário fragmentado que a capoeirase insere.O <strong>de</strong>senvolvimento da capoeira apresenta contradiçõesimportantes que se expressam pela visível expansão e <strong>de</strong>slocamentosque ela vem operando no contexto nacional e internacional.Nos últimos anos, constata-se a saída <strong>de</strong> expressivo3 Para saber mais a respeito da Capoeira Angola e Regional, ver, por exemplo: Abreu (1999; 2003); Moura(1993); Pires (2001; 2002); Rego (1968); Reis (1993); Vieira (1995).116


A Capoeira é do Brasil? A Capoeira no contexto da Globalizaçãonúmero <strong>de</strong> praticantes (mestres e discípulos), para o exterior,em busca <strong>de</strong> melhores condições <strong>de</strong> sobrevivência que, além<strong>de</strong> contribuírem, efetivamente, com o seu processo <strong>de</strong> expansãono mundo, influenciam também na inversão dos fluxosmigratórios, ou seja, se no início do Século XX europeus vieramem massa para o Brasil, neste início <strong>de</strong> Século XXI, épossível perceber um consi<strong>de</strong>rável número <strong>de</strong> brasileiros dirigindo-seao continente Europeu. Exemplo disso é que somentepara Portugal, na década <strong>de</strong> 1990, cerca <strong>de</strong> 110 mil brasileirosmigraram para aquele país. Em relação à capoeira, são 35professores, <strong>de</strong>ntre eles 20 mestres, trabalhando com essa artelutaem terras lusitanas.O principal objetivo <strong>de</strong>ste artigo é analisar o processo <strong>de</strong>internacionalização da capoeira, conforme trabalho <strong>de</strong> pesquisarealizado a partir do estágio <strong>de</strong> doutoramento em 2003, noInstituto <strong>de</strong> Ciências Sociais (ICS), da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa.Os dados relatados foram obtidos das pesquisas realizadas emseis países da Europa (Portugal, Itália, Espanha, Inglaterra,Polônia e Noruega), e, também, a partir <strong>de</strong> dados da capoeiraem outros países do capitalismo central, como os Estados Unidosda América e a França.Foram observadas aulas práticas e teóricas, intercâmbios,comemorações, exibições e confraternizações. Foram tambémentrevistados lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong> grupos que já <strong>de</strong>senvolvem trabalhossistematizados no exterior há mais <strong>de</strong> três anos.117


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>A Internacionalização da Capoeira: <strong>de</strong> símbolo<strong>de</strong> brasilida<strong>de</strong> a patrimônio cultural dahumanida<strong>de</strong>Quando muitos capoeiras 4 brasileiros começaram a sairdo país, a partir do início da década <strong>de</strong> 1970, para trabalharem grupos folclóricos no exterior, em busca <strong>de</strong> apoio e reconhecimento,não tinham i<strong>de</strong>ia da magnitu<strong>de</strong> que esse fenômenoviria a ter três décadas mais tar<strong>de</strong>. No início, tudo era muitodifícil e a rua era, frequentemente, o único espaço que elesencontravam para expressar sua arte ou para manter contatoscom outros artistas do cotidiano, como palhaços e malabaristasdas mais diversas origens.O principal motivo da saída do Brasil <strong>de</strong> uma “avalanche”<strong>de</strong> mestres, professores e iniciados em capoeira para o exterioré <strong>de</strong>terminado por fatores econômicos e está relacionado coma busca <strong>de</strong> melhores opções <strong>de</strong> trabalho, reconhecimento eprestígio. Se, no Brasil, a mensalida<strong>de</strong> para se fazer aulas <strong>de</strong>capoeira três vezes por semana oscila em torno <strong>de</strong> R$ 30,00 (oequivalente a US$ 10), nas principais cida<strong>de</strong>s norte-americanase europeias esse valor correspon<strong>de</strong> a apenas uma hora <strong>de</strong>ativida<strong>de</strong>. Para fazer apenas uma aula <strong>de</strong> capoeira na Aca<strong>de</strong>miaAlvin Alley Ballet, em Nova York, com a Mestra brasileiraEdna Lima, o interessado tem que pagar US$ 20 (SANTANA,2001, p. 7).Esse movimento <strong>de</strong> expansão, motivado por inúmeros interesses,alguns legítimos outros não, mesmo assim trazconsequências inusitadas para a capoeira e é visto, por muitos,4 Para <strong>de</strong>signar os(as) agentes da capoeira (praticantes, mestres(as), professores(as), militantes, etc.), seráutilizado o termo capoeira em <strong>de</strong>trimento do termo capoeirista, por enten<strong>de</strong>rmos que o primeiro tem nacultura o seu campo privilegiado <strong>de</strong> ação, enquanto que o termo capoeirista sugere uma intervenção maisespecífica, mais especializada, típica do(a) especialista.118


A Capoeira é do Brasil? A Capoeira no contexto da Globalizaçãocomo algo sedutor, embora venha causando inquietações porparte <strong>de</strong> pessoas preocupadas com a “manutenção” das suastradições. Se, por um lado, muitos alegam que isso vem contribuindopara o distanciamento dos princípios e valores que <strong>de</strong>legaramà capoeira um emblema <strong>de</strong> “luta <strong>de</strong> resistência” contraa exploração, por outro, muitos consi<strong>de</strong>ram que esse processoestá contribuindo para a valorização das referências culturaisafricanas e para <strong>de</strong>spertar um interesse maior pelo Brasile pela cultura brasileira.Alguns analistas apregoam que, nos EUA, a capoeira temcontribuído, também, para revitalizar o elo entre os negros norte-americanose a África, cuja relação foi abalada pelo processoviolento <strong>de</strong> segregação <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ado em séculos passados.Na busca <strong>de</strong>sse “elo perdido”, muitos norte-americanos vêmpara o Brasil com o objetivo <strong>de</strong> “beber na fonte” e procuramconhecer os mestres mais representativos <strong>de</strong>ssa arte-luta.Convém <strong>de</strong>stacar que outro interesse marcante dos estrangeirospela capoeira se <strong>de</strong>sdobra imediatamente em dois <strong>de</strong>sejos,conhecer o Brasil e falar o português. Esses interesses seoriginam do contato com mestres e professores que ministramaulas no exterior que, em busca <strong>de</strong> um apelo ao mais “tradicional”,fazem questão <strong>de</strong> se expressar no idioma português. Falarportuguês nas aulas <strong>de</strong> capoeira é um requisito que operacomo uma espécie <strong>de</strong> “selo <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>” e vem contribuindopara abrir campos <strong>de</strong> trabalhos antes impensáveis. Em <strong>de</strong>corrênciada <strong>de</strong>manda provocada pela capoeira nos EUA, O HunterCollege, uma das mais tradicionais faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Nova York, jáoferece cursos regulares <strong>de</strong> português (NUNES, 2001, p. 3).O movimento <strong>de</strong> difusão da capoeira no contexto mundialé mais visível e intenso em direção aos Estados Unidos e àEuropa. Com raras exceções, comprometidas politicamente em119


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong><strong>de</strong>senvolver trabalhos <strong>de</strong> “retorno” <strong>de</strong>ssa arte-luta à África, a maioriadas iniciativas se <strong>de</strong>stina aos países centrais do capitalismo.Essa exportação não convencional (na forma <strong>de</strong> um símboloétnico), que se expressa pelo movimento <strong>de</strong> saída <strong>de</strong> capoeirasdo Brasil para trabalhar em outros países, assume dimensõescomplexas e controvertidas. Uma <strong>de</strong>las que convémreferenciar é que há muitos capoeiras acompanhando a tendência<strong>de</strong> muitos jovens e trabalhadores <strong>de</strong> países empobrecidos,que buscam melhorias econômicas ven<strong>de</strong>ndo sua força <strong>de</strong> trabalho<strong>de</strong> forma precária em países <strong>de</strong> capitalismo central.Nesse movimento complexo, a capoeira vem se inserindo<strong>de</strong> forma cada vez mais abrangente em vários setores da comunida<strong>de</strong>internacional. Como consequência, é possível i<strong>de</strong>ntificaralguns traços culturais da capoeira, tais como a oralida<strong>de</strong>,o improviso e a “mandinga”, que são subestimados para darlugar a outras categorias mais “sintonizadas” com o momentoatual, tais como: “mercadoria étnica”, “folia <strong>de</strong> espírito”, “malhação”e “espetacularização”, etc. (VASSALLO, 2003).O abandono <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados rituais consi<strong>de</strong>rados "tradicionais",os quais exercem um po<strong>de</strong>r simbólico muito forte nessecontexto, é outro aspecto que <strong>de</strong>sagrada experimentadoscapoeiras incomodados com alguns processos <strong>de</strong> transformação<strong>de</strong>ssa arte-luta.No momento presencia-se a expansão da cultura brasileirano mundo, e a capoeira insere-se como um dos componentes<strong>de</strong>sse processo. O fato é que ela vem se expandindo emescala geométrica por todo o globo, e o incremento <strong>de</strong>sse movimento<strong>de</strong> internacionalização tem ocorrido em comunhão comoutros símbolos da cultura brasileira, como o carnaval, o samba,o pago<strong>de</strong>, etc. É possível afirmar que essa expansão dacultura brasileira se constrói sob os ditames da “globalização120


A Capoeira é do Brasil? A Capoeira no contexto da Globalizaçãoeconômica”, que produz uma brasilida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>alizada, construídapor cima e ao largo das gritantes diferenças culturais e econômicasque moldam a realida<strong>de</strong> concreta do povo brasileiro.Nessa direção, observa-se a disseminação mundial da culturabrasileira, empobrecida <strong>de</strong> reflexão crítica frente à globalizaçãoeconômica, em busca <strong>de</strong> novos mercados para seus produtosculturais.Acompanhando e analisando experiênciassignificativas <strong>de</strong> Capoeira pela EuropaPor ocasião das investigações, foram visitadas importantesinstituições <strong>de</strong> ensino e pesquisa, em especial, faculda<strong>de</strong>s<strong>de</strong> Educação Física em diferentes países. Em algumas <strong>de</strong>las,existem trabalhos sistematizados <strong>de</strong> capoeira que funcionamcomo projetos <strong>de</strong> extensão ou como ativida<strong>de</strong>s extracurriculares,em que professores brasileiros são contratados por tempo <strong>de</strong>terminadopara ministrar ativida<strong>de</strong>s aos que se interessarem.Geralmente, os discípulos pagam taxas que oscilam entre€20,00 e €50,00 por mês, (que correspon<strong>de</strong> entre R$60 eR$160,00), e é do montante <strong>de</strong>ssas taxas que provém o pagamentodo professor <strong>de</strong> capoeira, como é o caso dos projetosdo Estádio Universitário da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa, da Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> Varsóvia e da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Oslo.O primeiro trabalho <strong>de</strong> ensino sistematizado <strong>de</strong> capoeirana Europa foi empreendido pelo reconhecido Mestre NestorCapoeira 5 . Embora alguns capoeiras brasileiros tenham reali-5 Nestor Capoeira foi iniciado por Mestre Leopoldina e graduou-se corda vermelha pelo Grupo Senzala em1969. É autor <strong>de</strong> vários livros e artigos <strong>de</strong> capoeira. Mestre e Doutor em Comunicação e Cultura pelaUniversida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro, foi ator principal do filme "Cordão <strong>de</strong> Ouro", produzido pela Embrafilme(hoje disponível em ví<strong>de</strong>o pela Globoví<strong>de</strong>o), sob a direção <strong>de</strong> A. C. Fontoura, em 1978.121


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>zado espetáculos pela Europa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1951, foi Nestor Capoeiraquem iniciou o processo <strong>de</strong> ensino sistematizado <strong>de</strong>ssa manifestaçãona Europa, na London School of Contemporary Dance,Inglaterra.A partir da experiência do Mestre Nestor Capoeira, milhares<strong>de</strong> workshops e oficinas se espalharam por toda a Europa.Em entrevista, o referido Mestre <strong>de</strong>clarou que, embora tenhasabido da passagem <strong>de</strong> Mestre Artur Emídio pela Europa, paraparticipar <strong>de</strong> shows e ministrar oficinas, foi ele que, em 1971,começou a ministrar aulas sistemáticas <strong>de</strong> capoeira no VelhoContinente.Ao longo dos últimos 30 anos, o movimento da capoeirana Europa intensificou-se significativamente, fazendo com queela adquirisse expressiva <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>, mas no começo, tudo eramuito difícil pela falta <strong>de</strong> informação sobre o que realmentesignificava esse misto <strong>de</strong> dança-luta-jogo.O <strong>de</strong>poimento do Mestre Barão, que <strong>de</strong>senvolve um conhecidotrabalho <strong>de</strong> capoeira em Porto, ao norte <strong>de</strong> Portugal,serve para ilustrar esse complexo e conflituoso movimento:Eu nasci perto <strong>de</strong> Aracaju (capital do estado <strong>de</strong> Sergipe-Brasil), em Itaporanga d´Ajuda, lá no meio do mato,numa família humil<strong>de</strong>, mas honesta também. Depoisfomos para Santos-SP, morar lá no Nova Sintra, nomorro. A gente morava numa casinha humil<strong>de</strong>, moravanum quarto on<strong>de</strong> todo mundo dormia junto. Depoiseu ia estudar, <strong>de</strong>pois das aulas eu ia ven<strong>de</strong>r doce noponto final dos ônibus, em Santos. Ven<strong>de</strong>r bananinhapara ajudar minha família, né. Depois eu parei <strong>de</strong>ven<strong>de</strong>r doce e fui trabalhar com um português,carregando lavagem nas costas <strong>de</strong> domingo a domingo.Depois fui trabalhar na oficina, apren<strong>de</strong>r a função <strong>de</strong>mecânico. Aí, estu<strong>de</strong>i. Depois fiz um concurso, entreinas docas. Aí, ganhei uma passagem e vim cair aquiem Portugal. Cheguei aqui em 1994. Tenho nove anos122


A Capoeira é do Brasil? A Capoeira no contexto da Globalizaçãoaqui. E faço também um trabalho social porque eugosto <strong>de</strong> ajudar as crianças mais carentes porque éimportante você fazer uma criança sorrir, não só noNatal, mas também no ano todo [...] (Mestre Barão,comunicação pessoal, 8 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2003).Mestre Umoi, que há 13 anos resi<strong>de</strong> em Portugal, <strong>de</strong>stacouque, no início, teve que dar aula na rua para convencer ascrianças a fazer capoeira. Dizia que iria ensiná-las a “darpernadas”. Segundo ele, precisou utilizar <strong>de</strong>ssa possibilida<strong>de</strong> paralevar os “miúdos” a se interessarem pelas “pernadas do Brasil”:Quando eu cheguei aqui, em agosto <strong>de</strong> 1990, pelomenos na região da Gran<strong>de</strong> Lisboa, on<strong>de</strong> eu meinstalei, não tinha capoeira. Ninguém tinhaconhecimento do que era capoeira e, claro, eu vimpra cá na tentativa mesmo <strong>de</strong> ensinar a capoeira.Comecei a procurar as aca<strong>de</strong>mias aqui e a primeirareação dos donos das aca<strong>de</strong>mias geralmente era quenão queriam nada com galinheiros aqui em Portugal,porque capoeira aqui em Portugal significa galinheiro.Então isso dificultou muito o início do trabalho aqui(Mestre Umoi, comunicação pessoal, 27 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong>2003).Os trabalhos <strong>de</strong>dicados e ininterruptos <strong>de</strong> muitos mestrese professores <strong>de</strong>ram continuida<strong>de</strong> à iniciativa implementadapor Nestor Capoeira e contribuíram para que essa manifestaçãoadquirisse gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>, diversida<strong>de</strong>, visibilida<strong>de</strong> eprestígio social.Na Europa, a aceitação crescente pela prática da capoeirase expressa pelo rico acervo cultural presente nos seus gestos,cantos e história, que extrapolam as referências <strong>de</strong> sua“baianida<strong>de</strong>” e edificam uma “brasilida<strong>de</strong>” i<strong>de</strong>alizada, à medidaque não leva em consi<strong>de</strong>ração as evi<strong>de</strong>ntes diferenças culturais(e econômicas) presentes no Brasil, país <strong>de</strong> dimensões123


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>continentais 6 . Essa “<strong>de</strong>sbaianização” e “brasilização”concomitante da capoeira é resultado <strong>de</strong>ssa mobilida<strong>de</strong> visívelque se expressa pela saída <strong>de</strong> capoeiras das mais diferentescida<strong>de</strong>s brasileiras, em direção ao Velho Mundo e à Américado Norte. Esse movimento contribui para ampliar as referênciasculturais <strong>de</strong>ssa manifestação e ornamentar o carimbo <strong>de</strong>brasilida<strong>de</strong>. Um professor norueguês afirmou que: hoje em dia,as pessoas já conhecem bem o que é a capoeira e querem acapoeira (...) Quem procura a capoeira já tem uma i<strong>de</strong>ia que éuma coisa brasileira e querem isso! (Professor Torcha, comunicaçãopessoal, Oslo, Noruega, 18 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2003).O fato é que a capoeira, com esse “carimbo” <strong>de</strong> Brasil,embutido em suas cantigas, comportamentos, ramificou-se eexpandiu-se significativamente e tem servido, atualmente, comoveículo <strong>de</strong> agregação <strong>de</strong> povos <strong>de</strong> vários cantos do mundo,adquirindo, assim, uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> supranacional. O MestreUmoi, já citado, nos afirmou:A capoeira está quebrando a barreira do oceano quedivi<strong>de</strong> o Brasil, a África, a Europa, a América do Norte.A capoeira é do capoeirista. E a gente já tem muitosbons capoeiristas aqui na Europa. Você vê muitoangoleiro alemão jogando uma Angola tão boa e atémelhor do que muito capoeirista que nunca saiu <strong>de</strong>Salvador, que nunca saiu do Brasil. Aí você fala. Ah!é por que é alemão? Não, é porque é capoeirista(Mestre Umoi, comunicação pessoal, Amsterdã, 18<strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2003).6 Apesar <strong>de</strong> o Estado da Bahia (nor<strong>de</strong>ste do Brasil) exercer forte influência na capoeira, o processo <strong>de</strong>internacionalização <strong>de</strong>ssa manifestação relativiza essa influência e, ainda por cima, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra a diversida<strong>de</strong>do país, como se o Brasil, <strong>de</strong> dimensões continentais, fosse um bloco cultural homogêneo.124


A Capoeira é do Brasil? A Capoeira no contexto da GlobalizaçãoO que movimenta milhares <strong>de</strong> europeus nas rodas 7 <strong>de</strong> capoeira,em suas mais diversas formas, são os sistemas <strong>de</strong> representaçõessignificativas, construídos e usufruídos coletivamenteem relação ao que se convencionou chamar <strong>de</strong> “fundamento”8 da capoeira. O alimento para esses sistemas <strong>de</strong> representaçõespo<strong>de</strong> ser encontrado nos uniformes, nas estampasdas camisetas, nos sites da Internet, nas cantigas ecoadas nasrodas, etc.Ao fazer análise das experiências dos capoeiras em Paris,Vassallo (2003) afirma que esse fundamento está articuladocom o que consi<strong>de</strong>ra ser a cultura brasileira. Essa articulaçãoincluiria “o domínio da língua portuguesa, bem como as danças,o ritmo e, sobretudo, a visão <strong>de</strong> mundo, característicosdaqui” (VASSALLO, p. 8 e 9).Sem consi<strong>de</strong>rar que muitos professores mudam <strong>de</strong> paíscom certa frequência, contabiliza-se, no primeiro semestre <strong>de</strong>2003, a presença <strong>de</strong> 35 professores, entre mestres, contramestrese instrutores <strong>de</strong> capoeira, em ativida<strong>de</strong> sistemática, somenteem Portugal.A maioria dos mestres e professores <strong>de</strong> capoeira que atuamna Europa é proveniente do Nor<strong>de</strong>ste Brasileiro, em especial,das cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Recife e Salvador, mas existem professores7 A roda constitui-se no momento mais importante das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> capoeira. Na roda o capoeira brinca,joga e luta. Os participantes <strong>de</strong> uma roda são potenciais jogadores, instrumentistas e cantores e se revezamnessas ocupações durante o seu <strong>de</strong>senrolar. Na roda <strong>de</strong> capoeira todos os golpes e contragolpes partem daginga – a movimentação básica da capoeira. É ela que impe<strong>de</strong> o confronto direto entre os jogadores. No jogo,esses golpes são mesclados com um número in<strong>de</strong>finido <strong>de</strong> movimentos que cada jogador improvisa a partir<strong>de</strong> suas possibilida<strong>de</strong>s, numa espécie <strong>de</strong> dramatização do confronto direto. O jogo <strong>de</strong> capoeira na roda émetáfora do jogo e da roda da vida; é mais do que a execução <strong>de</strong> seus elementos técnicos ou fundamentos.8 Toda prática cultural tem seus fundamentos. No caso da capoeira esses “fundamentos” são construídos econsolidados por grupos e mestres, mas eles não são unívocos nem, tampouco, harmônicos. Consiste noconjunto <strong>de</strong> conhecimentos relativos ao jogo da capoeira que po<strong>de</strong> variar <strong>de</strong> grupo para grupo, emboraexistam algumas referências consagradas por todos os seus praticantes, como por exemplo, o reconhecimentodo berimbau como instrumento “mestre” da capoeira e a utilização das cantigas (interativas) na roda. Emgeral, os fundamentos são passados boca a boca pelos mestres, embora, atualmente, seja possível constatarvárias formas <strong>de</strong> acessá-los.125


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong><strong>de</strong> praticamente todos os estados brasileiros trabalhando comessa manifestação no Velho Continente.Des<strong>de</strong> o início da década <strong>de</strong> 1970, Paris vem recebendomuitos capoeiras <strong>de</strong> diversos grupos brasileiros. A professoraÚrsula, há mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos radicada na França, argumentaque, quando lá chegou, poucas pessoas conheciam a capoeira.Atualmente, apesar <strong>de</strong> muitos “aventureiros” chegarem ládizendo que são mestres, sem nunca terem passado por umaaca<strong>de</strong>mia (<strong>de</strong> capoeira), a capoeira já é bastante difundida e,freqüentemente, “as mulheres são maioria nas aulas”(CARVALHO, 2002, p. 17).É fato inconteste também, que os capoeiras, na Europa,caminham para uma espécie <strong>de</strong> profissionalização moldadapor trabalhos frequentemente <strong>de</strong>sregulamentados, instáveis,dispersos e ocasionais. Essa condição laboral precária, em geralclan<strong>de</strong>stina, em que se inserem os brasileiros responsáveispela disseminação da capoeira no exterior, diferencia-se, frontalmente,das carreiras previsíveis, <strong>de</strong> rotinas estáveis que, atépouco tempo, caracterizavam os postos convencionais <strong>de</strong> trabalho.A luta pela sobrevivência e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> reconhecimento apartir <strong>de</strong> novas experiências são os principais motivos que levamtantos professores <strong>de</strong> capoeira a <strong>de</strong>ixar o Brasil e a se“jogar” em promessas incertas <strong>de</strong> “vida boa” no exterior. Entretanto,o que eles frequentemente encontram são opções <strong>de</strong>trabalhos dispersos, <strong>de</strong>sregularizados, fluídos e “invisíveis”, talcomo os fiddly jobs (expressão <strong>de</strong> MACDONALD apud MA-CHADO PAIS, 2001, p. 21), ou como free lancer, que se caracterizamcomo vias alternativas para “ganhar a vida”.A chegada dos professores <strong>de</strong> capoeira na Europa, geralmente,é marcada por muita frustração e dificulda<strong>de</strong>. O <strong>de</strong>po-126


A Capoeira é do Brasil? A Capoeira no contexto da Globalizaçãoimento do Mestre Matias, natural do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais,que se mudou para a Suíça em 1989 e, atualmente, <strong>de</strong>senvolvetrabalhos em várias cida<strong>de</strong>s daquele país, faz coro commuitas outras experiências <strong>de</strong> mestres e professores que se “jogaram”em busca <strong>de</strong> melhores horizontes.Foi muito dura a chegada na Suíça, ralei [trabalhei]muito, toquei berimbau na neve, nas estações <strong>de</strong> trem,enten<strong>de</strong>u, porque os capoeiristas que tinham lá nãofaziam roda <strong>de</strong> rua. Eu ia para a rua sozinho, às vezestocava o meu berimbau, tentava saltar, às vezes faziacoisas malucas e também era um modo <strong>de</strong> me libertar.O berimbau era o meu companheiro. Era o modo <strong>de</strong>eu me livrar daquela angústia, daquela sauda<strong>de</strong>,daquela vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> estar no Brasil, no meio dos alunos,dos colegas. Aquele país frio, você chega e toma aquelechoque, não conhece ninguém, porque a língua éoutra. Então foi uma barra [dificulda<strong>de</strong>] enorme queeu enfrentei, mas, graças a Deus, eu superei tudo issoe hoje eu não vou dizer que falo perfeito o alemão,porque eu moro na parte alemã, mas falo bem (MestreMatias, comunicação pessoal, Madrid – Espanha,29 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2003).Com as novas e severas leis adotadas pelo serviçoimigratório dos países europeus, passar pela alfân<strong>de</strong>ga é umavitória aclamada em conversas <strong>de</strong> bastidores <strong>de</strong> eventos. Geralmente,os professores imigrantes chegam aos aeroportos comvistos <strong>de</strong> turistas e muitos apetrechos <strong>de</strong> capoeira (berimbau,pan<strong>de</strong>iros, uniformes, etc.) que, via <strong>de</strong> regra, causam <strong>de</strong>sconfiançada polícia alfan<strong>de</strong>gária.Os que conseguem passar por essa primeira barreira, se<strong>de</strong>param com outras dificulda<strong>de</strong>s similares a do Mestre Umoi,cujo <strong>de</strong>poimento explicita uma atribulada realida<strong>de</strong>:Então, foi assim. No início foi uma fase muito negativaque eu tive aqui em Portugal. Porque juntou tudo. Omeu pai morrendo lá no Brasil, eu aqui <strong>de</strong>sempregado,127


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>vivendo sem dinheiro e veio aquela fase que eu já tecontei ontem – a do pãozinho com água. Que foi umafase que hoje em dia eu conto isso com piada, comgraça, porque, realmente, é uma escola, é um exercício<strong>de</strong> humilda<strong>de</strong>. Mas, aqui em Portugal, eu comi pãocom água! Não era água com açúcar porque nãotinha açúcar. Era pão com água mesmo. Mas, assim...acreditando que essa bo<strong>de</strong>ga [ativida<strong>de</strong>] podia umdia dar certo (Mestre Umoi, comunicação pessoal,Lisboa – Portugal, 27 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2003).O fato é que, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> frequentes <strong>de</strong>sesperos e até<strong>de</strong>portações, muitos professores <strong>de</strong> capoeira vislumbram a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> conquistar, no exterior, o status e o reconhecimentoque provavelmente jamais conseguiriam no Brasil. “Eusou um pássaro”, “ninguém me segura”, “já me sinto lá”, eramfrases prontas, frequentemente proferidas por um dinâmicoprofessor <strong>de</strong> Recife, que, apesar <strong>de</strong> ter sido <strong>de</strong>portado peloserviço alfan<strong>de</strong>gário <strong>de</strong> Portugal, retornou, via Espanha, paraas terras lusitanas, e vem levando a vida como uma gran<strong>de</strong>aventura mesclada <strong>de</strong> flutuações e incertezas nebulosas, mascom muita arte e alegria contagiante.O que me tirou do Brasil foi a violência, não foi a falta<strong>de</strong> dinheiro. A violência da política, a violência datelevisão, a violência das drogas, a violência da rua.Foi isso que me afastou do meu país. Não foi prabuscar dinheiro aqui na Europa não, porque o dinheirovocê ganha lá também. Tem pessoas superfelizes comcapoeira no Brasil dando aula que não precisaramsair do Brasil para ir a lugar nenhum. Hoje eu estouaqui, ando para todos os lados, não tenho preocupaçãocom nada. Se eu vou acordar amanhã bem ou mal.Mas é isso ai... O que me fez vir par Europa foijustamente isso. No Brasil, a gente anda muito inseguro,<strong>de</strong>ntro do ônibus, <strong>de</strong>ntro do cinema, <strong>de</strong>ntro doshopping, numa praia. Aon<strong>de</strong> você vai, você teminsegurança. E aqui na Europa você tem totalsegurança e liberda<strong>de</strong>. É só isso. (Instrutor ET,comunicação pessoal, Lisboa – Portugal, 25 <strong>de</strong> agosto<strong>de</strong> 2003).128


A Capoeira é do Brasil? A Capoeira no contexto da GlobalizaçãoNa Europa, os capoeiras brasileiros “querem ser mais brasileirosdo que são”. Assim afirmou uma capoeira italiana quefez intercâmbio no Brasil, “apaixonou-se” pela arte e está, atualmente,fazendo uma tese no campo da Antropologia, sobreo “espírito” da Capoeira Angola. É bem verda<strong>de</strong> que no exterior,os professores brasileiros mitificam o Brasil a partir dasupervalorização <strong>de</strong> “fundamentos brasileiros” da capoeira,contribuindo, <strong>de</strong>ssa forma, para promover, além das clássicashierarquias já presentes no universo da capoeira (graduações),uma hierarquia entre os praticantes não brasileiros, baseadano domínio dos nossos símbolos. Em busca <strong>de</strong>sses fundamentos,alguns são criticados por se arvorarem a falar sua línguanativa com sotaque abrasileirado.Para Vassallo (2003), essa naturalização da brasilida<strong>de</strong>da capoeira é discriminatória e o apren<strong>de</strong>r capoeira se transformanum i<strong>de</strong>al inatingível, já que os brasileiros conteriam osseus “fundamentos” no sangue. A capoeira não seria, portanto,uma construção social, mas uma substância naturalizadanos corpos e no sangue dos brasileiros.Como é possível observar, as dificulda<strong>de</strong>s que enfrenta ummestre <strong>de</strong> capoeira para se estabelecer e ensinar essa arte noexterior são muitas: o preconceito por muitos <strong>de</strong>les não teremformação acadêmico-universitária; o estranhamento cultural;o <strong>de</strong>sconhecimento da língua; as barreiras alfan<strong>de</strong>gárias nosaeroportos e a vida levada na clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong> que os obrigama exercer seu trabalho em condições precárias.Porém, é importante <strong>de</strong>stacar que os professores <strong>de</strong> capoeiraque saíram do Brasil para trabalhar na Europa encontram-senuma condição menos <strong>de</strong>sconfortável em relação aos<strong>de</strong>mais imigrantes, já que não disputam com os “nativos” umposto <strong>de</strong> trabalho. Desfrutam <strong>de</strong> reconhecido prestígio, à medi-129


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>da que são possuidores <strong>de</strong> uma habilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma especialida<strong>de</strong>“ma<strong>de</strong> in Brazil”, que funciona como um selo <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>muito requisitado pelos jovens europeus, em geral. Sãoportadores, portanto, <strong>de</strong> saberes “exóticos” e “culturais” que,<strong>de</strong> certa forma, <strong>de</strong>safiam os modos tradicionais <strong>de</strong> entrada nocampo produtivo e re<strong>de</strong>finem o sentido do trabalho, atualmentecaracterizado como: instável, flexível e transitório.Alguns poucos conquistam certa segurança, a partir <strong>de</strong>contratos com instituições públicas e privadas sólidas. Ummestre que trabalha em Portugal relatou, durante um eventona Noruega, que se sente muito valorizado como “professor <strong>de</strong>capoeira” <strong>de</strong> uma instituição pública. Na oportunida<strong>de</strong> em queele <strong>de</strong>monstrava o seu orgulho, mostrando a carteira que lheconcedia essa habilitação, ele questionava: “será que no Brasileu teria condições <strong>de</strong> ter uma carteira <strong>de</strong>ssas?” Ele mesmorespon<strong>de</strong>: “jamais!”. E complementa, ressentido: “no nossopaís, a cada esquina, tem uma roda <strong>de</strong> capoeira, em cadaesquina tem um mestre <strong>de</strong> capoeira, mas que, infelizmente,não tem valor. Morrem <strong>de</strong> fome, morrem na pobreza e sãoesquecidos” (Mestre Ulisses, comunicação pessoal, Oslo, Noruega,17 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 2003).Outro aspecto a <strong>de</strong>stacar a partir das experiências doscapoeiras brasileiros na Europa diz respeito ao fato <strong>de</strong>ssa manifestaçãocultural aglutinar, por intermédio dos concorridoseventos, pessoas oriundas <strong>de</strong> diferentes camadas sociais emum mesmo espaço <strong>de</strong> convívio. Em geral, um mestre ou professoralterna trabalhos em espaços nobres com os chamados“trabalhos sociais”. Via <strong>de</strong> regra, nos finais <strong>de</strong> semana, ou noseventos, os integrantes <strong>de</strong>sses diferentes “espaços” encontramsee se confraternizam em movimentadas rodas <strong>de</strong> capoeira.130


A Capoeira é do Brasil? A Capoeira no contexto da GlobalizaçãoO mestre Barão transita, com suas aulas <strong>de</strong> capoeira, emuniversos aparentemente inconciliáveis da Cida<strong>de</strong> do Porto.Eu dou aula no bairro Lagarteiro, um bairro bemcomplicado. É um bairro social que o pessoal chamaaquilo lá <strong>de</strong> inferno. Dou aula também para ciganosnum outro bairro também complicado do Porto. Euestou lá fazendo um trabalho social com eles. Saio<strong>de</strong>sse bairro social e vou para um ginásio que treinasó ricos, que é só empresários (Mestre Barão,Comunicação pessoal, 8 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2003).Outro exemplo possível <strong>de</strong> citar se <strong>de</strong>u com o processo <strong>de</strong>inserção <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> capoeira na Polônia. Durante algumtempo, um grupo <strong>de</strong> amigos interessados em conhecer melhoressa manifestação começou a praticá-la a partir <strong>de</strong> algumasreferências conseguidas em fitas <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o e na Internet. Em1998, um dos integrantes <strong>de</strong>sse grupo encaminhou mensagem,pela re<strong>de</strong>, para vários professores <strong>de</strong> capoeira na Europa, solicitandomaterial e sondando possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> realização nacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Varsóvia. Um professor, que estava realizando curso<strong>de</strong> doutoramento na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bristol, Inglaterra, respon<strong>de</strong>ua algumas mensagens e se colocou à disposição paracolaborar com o grupo <strong>de</strong> interessados, a partir <strong>de</strong> oficinas queocorriam mensalmente. Durante alguns meses, os contatos foramse intensificando e <strong>de</strong>cidiram então constituir um grupo <strong>de</strong>capoeira em Varsóvia. Em síntese, o resultado é que três anos<strong>de</strong>pois, tivemos a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> participar <strong>de</strong> um evento<strong>de</strong>sse grupo (<strong>de</strong> 8 a 12 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2003) e foi constatado oenvolvimento <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 400 poloneses <strong>de</strong> diferentes faixasetárias, completamente fascinados pela capoeira. Des<strong>de</strong> o iníciodos trabalhos <strong>de</strong>sse grupo, as relações interculturais foramse intensificando, criando novas necessida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>spertandonovos interesses por parte dos envolvidos. Tanto é, que nesse131


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>intervalo <strong>de</strong> tempo, cerca <strong>de</strong> 20 integrantes apren<strong>de</strong>ram a línguaportuguesa, muitos já realizaram viagens ao Brasil, e oevento do qual participaram po<strong>de</strong> ser comparado com os melhoresfestivais <strong>de</strong> capoeira realizados no Brasil. Ativida<strong>de</strong>s comopalestras na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Varsóvia, batismos, graduações,formaturas, rodas, oficinas e a presença <strong>de</strong> renomados mestresbrasileiros fizeram do acontecimento um expressivo festivalacadêmico-cultural.Convém <strong>de</strong>stacar que a materialização <strong>de</strong>sse movimento<strong>de</strong> inserção da capoeira na Polônia não se <strong>de</strong>u <strong>de</strong> forma imediata,improvisada, nem sob os auspícios <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quados suportesfinanceiros. Isso somente se tornou possível em <strong>de</strong>corrênciadas inúmeras articulações e <strong>de</strong>slocamentos <strong>de</strong> pessoas que efetivamentese inserem em aventuras, motivadas por sonhos eesperanças <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma vida melhor, re<strong>de</strong>finindo einfluenciando projetos pessoais e <strong>de</strong> outros, contribuindo, comisso, para a construção <strong>de</strong> outras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> existência.Nesse caso, em específico, um mestre brasileiro, juntamentecom sua esposa, também professora <strong>de</strong> capoeira, <strong>de</strong>cidiu assumir,há dois anos, a coor<strong>de</strong>nação do referido grupo. Um <strong>de</strong>talheé que seus dois filhos, pelo fato <strong>de</strong> terem aprendido alíngua polonesa em curto espaço <strong>de</strong> tempo, atuam como intérpretesem ocasiões em que é impossível a comunicação através<strong>de</strong> uma língua comum aos interlocutores.O fato é que nesse movimento, a capoeira, com todas asimplicações que uma manifestação cultural engendra, afirmasecomo manifestação <strong>de</strong> expressiva <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> à medida quemestres e professores “ensinam” os seus “fundamentos” parapessoas provenientes das mais diferentes origens e culturas e,com isso, vem contribuindo para a diminuição dos estereótiposconstruídos no interior do seu próprio movimento histórico. Se132


A Capoeira é do Brasil? A Capoeira no contexto da Globalizaçãoa capoeira “é brasileira”, “se está no nosso sangue”, como elapo<strong>de</strong> ser ensinada a pessoas que não têm o sangue brasileironas veias? Travassos (1999, p. 266) questiona: “Como se po<strong>de</strong>riaensinar algo que está inscrito no sangue, nos corpos e nasmentes <strong>de</strong> uns e não <strong>de</strong> outros?” Respostas para essas questõesexigem um necessário questionamento dos pressupostosque alimentam parte das “verda<strong>de</strong>s” proferidas sobre as possibilida<strong>de</strong>s<strong>de</strong>ssa manifestação. A <strong>de</strong>speito da existência <strong>de</strong> umaprofusão <strong>de</strong> áreas do conhecimento sendo utilizadas para explicaresse fenômeno cultural, ainda são constatados discursosoriundos <strong>de</strong> teorias evolucionistas, racistas e biologicistas transitandonesse contexto.Talvez por isso, o movimento da capoeira na Europa temsido alvo <strong>de</strong> algumas contraposições. A padronização, oautoritarismo e a formalida<strong>de</strong> vêm sendo questionados por algunspraticantes que tentam abordar a capoeira a partir <strong>de</strong>outras referências, como é o caso emblemático da AssociaçãoMaíra 9 , <strong>de</strong> Paris, França, analisado por Vassalo (2003).Segundo Vassallo (2003), a Associação Maíra foi criada em1989, é formada por capoeiras franceses e <strong>de</strong> outras nacionalida<strong>de</strong>s,“<strong>de</strong>scontentes com seus mestres brasileiros, consi<strong>de</strong>rados excessivamenteautoritários” (VASSALLO, 2003, p. 2). Ela nasceu<strong>de</strong> um “<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> emancipação” em relação à capoeirabrasileira; e os seus dirigentes, provenientes dos subúrbios situadosao sul <strong>de</strong> Paris, consi<strong>de</strong>ram-se dissi<strong>de</strong>ntes da capoeira “àbrasileira” e procuram <strong>de</strong>senvolver o que chamam <strong>de</strong> “trocashorizontais <strong>de</strong> saber”, em que cada um transmite seus conhecimentosaos <strong>de</strong>mais, sem hierarquia e sem seguir padrão algum.Os capoeiras franceses acusam os professores e mestres9 Maíra era um nome atribuído pelos nativos brasileiros aos franceses que residiam na costa do Brasil,durante o Século XVI, com o objetivo <strong>de</strong> criar, aqui, a França Antártica (VASSALLO, 2003).133


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>brasileiros <strong>de</strong> imporem um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> organização social extremamenterígido e hierarquizado, no qual o discípulo teria que sesubmeter cegamente aos <strong>de</strong>sejos e imposições do seu professor.As críticas dos integrantes do Maíra não são, segundoVassallo (2003), en<strong>de</strong>reçadas apenas aos mestres e professoresbrasileiros, mas se esten<strong>de</strong>m a toda socieda<strong>de</strong> capitalistaneoliberal. A organização do espaço e das ativida<strong>de</strong>s expressao i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> “liberda<strong>de</strong>” individual que eles tentam cultivar. “Asduchas e os vestiários são mistos, misturando corpos nus <strong>de</strong>homens e mulheres” (VASSALO, 2003, p. 3). Não usam uniforme,não participam das rodas quando querem, não sãoobrigados a usar “graduações”, não se “<strong>de</strong>ixam contaminarpela mídia”, e “os papéis <strong>de</strong> professor e aluno são minimizados,e este último não é obrigado a realizar aquilo que o primeirosugere” (VASSALO, 2003, p. 3).Para a referida autora, a experiência do Maíra explicitauma contradição:[...] os capoeiristas brasileiros, geralmente negros oumulatos e originários das classes populares, saem <strong>de</strong>sua posição <strong>de</strong> oprimidos e se tornam opressores. Osfranceses, na condição <strong>de</strong> alunos <strong>de</strong> mestresbrasileiros, ocupariam o lugar dos oprimidos,invertendo as relações <strong>de</strong> dominação. Mais do queisso, a capoeira como um todo <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser uma luta<strong>de</strong> libertação para encarnar um modo <strong>de</strong> exploraçãoe dominação (VASSALLO, 2003, p. 8).É importante consi<strong>de</strong>rar que a condição social, tanto dosmestres e professores brasileiros que eram “oprimidos” e se tornaram“opressores”, quanto dos franceses, supostamente “opressores”que se tornaram “oprimidos”, não implica numa mudançada condição <strong>de</strong> classe social da qual eles fazem parte.Todos estão inseridos numa dinâmica social mais ampla, e os134


A Capoeira é do Brasil? A Capoeira no contexto da Globalizaçãoseus discursos situam-se na re<strong>de</strong> <strong>de</strong> contradições que permeiaas representações que os sujeitos engendram nesse processoconflituoso <strong>de</strong> construção dos discursos e dos processosi<strong>de</strong>ntitários.Cumpre notar que, na luta pela sobrevivência, os professores<strong>de</strong> capoeira brasileiros na Europa, ao utilizarem essamanifestação como instrumento <strong>de</strong> trabalho, inventam formasatípicas <strong>de</strong> ganhar dinheiro e <strong>de</strong>monstram uma notável capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> improvisação, que se enriquece na pobreza aparentedos <strong>de</strong>talhes. Muitos se articulam em intrincadas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>,através da <strong>de</strong>nsa convivência que se materializa emeventos, workshops, festas, ou simples visitas aos “trabalhos”dos seus conterrâneos irmanados pela dupla condição <strong>de</strong> capoeira-imigrante.Muitos grupos consi<strong>de</strong>rados rivais no Brasil,ao se instalarem na Europa, minimizam e relativizam essa rivalida<strong>de</strong>para enfrentar os dissabores que a condição <strong>de</strong> imigrantefrequentemente impõe a todos os portadores do passaportebrasileiro, indistintamente. Com isso, livram-se do fatalismoe da inércia, a partir <strong>de</strong> formas próprias e originais <strong>de</strong>“ganhar a vida”, ainda que em terrenos da informalida<strong>de</strong>, ouna chamada “economia subterrânea”, em que se po<strong>de</strong> trabalhare ganhar dinheiro sem o <strong>de</strong>clarar para efeitos <strong>de</strong> impostos.É importante <strong>de</strong>stacar que essas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>, formadaspelos capoeiras no exterior, são tênues e, geralmente,se <strong>de</strong>smontam, transformando-se em re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> intriga quandoum <strong>de</strong> seus integrantes beneficia-se <strong>de</strong> privilégios que, <strong>de</strong> algumaforma, não são ou não po<strong>de</strong>m ser compartilhados.Essas múltiplas alternativas <strong>de</strong> trabalho com capoeiramaterializam-se na forma <strong>de</strong> shows em casas <strong>de</strong> espetáculos,<strong>de</strong> oficinas em instituições educacionais, <strong>de</strong> orientação <strong>de</strong> jovensem situação <strong>de</strong> risco social. Frequentemente, o trabalho135


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>do profissional <strong>de</strong> capoeira, na Europa, apresenta-se <strong>de</strong> formaeventual, temporária, aleatória, parcial e até ilegal. O comércio<strong>de</strong> apetrechos <strong>de</strong> capoeira – roupas, livros, CDs, DVDs,materiais e instrumentos, etc. – serve para incrementar o orçamento<strong>de</strong>sses aventureiros abnegados, isso quando não constituiativida<strong>de</strong> principal <strong>de</strong> muitos.Eventualmente, os contatos com pessoas importantes facilitama conquista <strong>de</strong> melhores postos e melhores condições<strong>de</strong> trabalho, mas, em geral, esses estão vinculados a pequenasempresas ou instituições que militam em programas <strong>de</strong>reinserção social.Mesmo <strong>de</strong> forma precária, mas com gran<strong>de</strong>s pitadas <strong>de</strong>criativida<strong>de</strong>, esses “profissionais” se utilizam <strong>de</strong>ssa manifestaçãocultural para manterem-se vivos e buscam as mais inusitadaspossibilida<strong>de</strong>s para escapar à sina daqueles que, consi<strong>de</strong>radospela maioria como os gran<strong>de</strong>s mestres da capoeira, morreramem situação <strong>de</strong> miséria absoluta. Mestres como Pastinha,Bimba, Val<strong>de</strong>mar da Liberda<strong>de</strong> e outros 10 , que “experimentarama encruzilhada da fome com a fama” (ABREU, 2003,p. 14), apesar <strong>de</strong> se tornarem os gran<strong>de</strong>s referenciais da“capoeiragem” no Século XX são, para as novas gerações <strong>de</strong>capoeiras, produtos <strong>de</strong> uma condição <strong>de</strong> exploração da qualtentam se esquivar.10 Mestre Pastinha faleceu pobre, cego e esquecido em Salvador-BA. Mestre Bimba faleceu pobre, lutandopor melhores condições <strong>de</strong> vida, em Goiânia-GO. Mestre Wal<strong>de</strong>mar da Liberda<strong>de</strong> – conduziu nas décadas<strong>de</strong> 1940 e 1950, aos domingos, a roda <strong>de</strong> capoeira que se tornou o mais importante ponto <strong>de</strong> encontro doscapoeiras <strong>de</strong> Salvador, on<strong>de</strong> o escritor Jorge Amado e o fotógrafo Pierre Verger “se alimentavamculturalmente” (ABREU, 2003, p. 43). Mestre Wal<strong>de</strong>mar morreu em 1990, em Salvador, na pobreza, comotantos outros capoeiras.136


A Capoeira é do Brasil? A Capoeira no contexto da GlobalizaçãoConclusõesDa análise <strong>de</strong>sse intrincado e rico movimento <strong>de</strong>internacionalização da capoeira, é possível formular três consi<strong>de</strong>raçõesfundamentais: a) a capoeira adquiriu, nos últimos<strong>de</strong>z anos, gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>, visibilida<strong>de</strong> e po<strong>de</strong>r simbólico e setransformou em um dos principais cartões postais do Brasil noexterior; b) o significado que os sujeitos apreen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> suaspráticas, emocionalmente compartilhadas, está vinculado coma intensida<strong>de</strong> das interações e com a plenitu<strong>de</strong> da experiência.Nessas práticas entrecruzam as dimensões ético-políticas, históricas,culturais e econômicas da vida em socieda<strong>de</strong>; e c) acapoeira insere-se no mo<strong>de</strong>lo cultural capitalista e está sujeita,portanto, à estratificação social própria <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> divididaem classes, expressando-se em possibilida<strong>de</strong>s diversificadas<strong>de</strong> acordo com as classes sociais em que está inclusa.Po<strong>de</strong>-se verificar que, tal como outras práticas significativas,a capoeira é condicionada por valores e regras sociais quepo<strong>de</strong>m transformá-la em heroína ou vilã. Como construçãosocial, que permanentemente se manifesta, e como manifestaçãocultural que permanentemente se constrói, ela é influenciadapelo tempo histórico em que se situa, mas também,edificada a partir dos interesses e das ações dos sujeitos que,através <strong>de</strong>la, atuam e disputam po<strong>de</strong>r na socieda<strong>de</strong>.Embora uma parcela significativa da capoeira a trate comosímbolo étnico (Capoeira é brasileira! Capoeira é africana! Capoeiraé afro-brasileira!), tal análise nos leva a pensá-la comouma manifestação com status <strong>de</strong> patrimônio cultural da humanida<strong>de</strong>e, por esse motivo, um direito social inalienável <strong>de</strong> qual-137


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>quer ser humano que se sinta atraído pelo seu “axé” 11 . Nessaperspectiva ela não teria pátria, embora carregue símbolos <strong>de</strong>sua inquestionável brasilida<strong>de</strong>.A análise aqui efetuada nos leva a <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r que os dilemasparticulares engendrados numa <strong>de</strong>terminada prática relacionam-secom os dilemas mais amplos presentes na socieda<strong>de</strong>.A principal luta do capoeira, nos dias <strong>de</strong> hoje, não <strong>de</strong>ve ser contraum <strong>de</strong>terminado opressor, como acontecia antigamente, nemtampouco contra outros praticantes <strong>de</strong> capoeira; a luta da capoeira<strong>de</strong>ve ser coletiva e emplacada contra todo e qualquertipo <strong>de</strong> opressão, discriminação e pela construção <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>universal efetivamente justa, livre e <strong>de</strong>mocrática.ReferênciasABREU, F. J. Bimba é bamba: a capoeira no ringue. Salvador:Instituto Jair Moura, 1999.______ . O barracão do mestre Wal<strong>de</strong>mar. Salvador: OrganizaçãoZarabatana, 2003.CARVALHO, L. C. Na roda com a mulher. Revista PraticandoCapoeira. São Paulo, ano II, n. 17, 2002.MACHADO PAIS, J. Ganchos, tachos e biscates: jovens, trabalhoe futuro. Âmbar: Porto, 2001.MOURA, J. Mestre Bimba: a crônica da capoeiragem. Salvador: oautor, 1993.11 Termo bastante utilizado no contexto da capoeira para <strong>de</strong>signar a energia contagiante resultante das açõesdos jogadores.138


A Capoeira é do Brasil? A Capoeira no contexto da GlobalizaçãoNUNES, V. Capoeira ma<strong>de</strong> in NYC. Correio Braziliense. Brasília-DF, Ca<strong>de</strong>rno Coisas da Vida, p. 1 e 3, 13 mar. 2001.PIRES, A. L. C. S. Movimentos da cultura afro-brasileira: aformação histórica da capoeira contemporânea (1890-1950).Tese (Doutorado em História). Campinas-SP, Departamento <strong>de</strong>História, Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas, 2001.______ . Bimba, Pastinha e Besouro <strong>de</strong> Mangangá: trêspersonagens da capoeira baiana. Tocantins/Goiânia: NEAB/Grafset, 2002.REGO, W. Capoeira Angola: um ensaio sócio-etnográfico.Salvador: Itapuã, 1968.REIS, L. V. S. Negros e brancos no jogo da capoeira: a reinvençãoda tradição. Dissertação (Mestrado em Antropologia). São Paulo,Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> São Paulo, 1993.SANTANA, J. Velhos mestres. Correio da Bahia. Salvador:Ca<strong>de</strong>rno Correio Repórter, p. 1-7, 15 abr. 2001.TRAVASSOS, S. D. Negros <strong>de</strong> todas as cores: capoeira emobilida<strong>de</strong> social. In: BACELAR, J.; CAROSO, C. (Orgs.). Brasil:um país <strong>de</strong> negros? Rio <strong>de</strong> Janeiro: Pallas; Salvador-BA: CEAO, p.261-271, 1999.VASSALLO, S. P. A transnacionalização da capoeira: etnicida<strong>de</strong>,tradição e po<strong>de</strong>r para brasileiros e franceses em Paris. In: Anaisda Quinta Reunião <strong>de</strong> Antropologia do Mercosul. Florianópolis-SC, 30 <strong>de</strong> novembro a 3 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2003.VIEIRA, L R. O jogo <strong>de</strong> capoeira: cultura popular no Brasil. Rio<strong>de</strong> Janeiro: Sprint, 1995.139


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>O Esporte e a Educação naContemporaneida<strong>de</strong>:ambiguida<strong>de</strong>s, contradições etensões sociais na FrançaFabio Machado Pinto*IntroduçãoHá uma crise sistêmica promovida pelas reformas políticasneoliberais que afeta a todas as populações mundiais, inclusiveos países capitalistas ricos, penalizando <strong>de</strong> forma drásticaos jovens e trabalhadores. Frente a esse cenário, o esporte,como política <strong>de</strong> Estado, serve para tentar amenizar, amortecere <strong>de</strong>smobilizar o ímpeto <strong>de</strong> auto-organização e luta dostrabalhadores e populações empobrecidas.A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>svelar as diversas facetas, as mazelase as violências protagonizadas no esporte surgem na Françaem meados dos anos <strong>de</strong> 1960, estimuladas pelos textos <strong>de</strong>Brohm 1 , os quais contribuem com o surgimento do pensamentocrítico da sociologia do esporte nesse país. A partir <strong>de</strong>sse* Professor do Departamento <strong>de</strong> Metodologia <strong>de</strong> Ensino da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina,doutorando em Ciências da Educação na Université Paris 8, e Bolsista do programa CAPES/MEC/Brasil.E-mail: fabiobage@yahoo.com.br1 Gran<strong>de</strong> parte da produção crítica <strong>de</strong> Jean Marie Brohm se encontra na revista Quels Corps (1975-1997).A revista <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser editada em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1996. Des<strong>de</strong> seu primeiro número, “pour une nouvelle façon<strong>de</strong> percevoir le corps” se tornou uma referência do pensamento crítico Francês nos campos das ciênciashumanas e sociais. Destacaríamos ainda, entre as principais obras do autor: Sociologie politique du sport,1976 e Le corps analyseur: essai <strong>de</strong> sociologie critique, 2001.140


O Esporte e a Educação na Contemporaneida<strong>de</strong>: ambiguida<strong>de</strong>s, contradicoes e tensõessociais na Françamarco é possível i<strong>de</strong>ntificar os esportes como mercadorias oferecidaspela indústria cultural 2 , como cultura <strong>de</strong> massa, às populações.Porém, também é possível perspectivar o esportecomo cultura <strong>de</strong> resistência e como prática corporal <strong>de</strong> libertaçãoe emancipação humana.A França possui ótimas estruturas e equipamentospoliesportivos disponibilizados em bairros <strong>de</strong> periferia e, ainda,oferece à população possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>la própria administrar suasáreas <strong>de</strong> lazer. Porém, mesmo sendo oferecidas ótimas estruturas<strong>de</strong> esportes e lazer que causam inveja a qualquer país pobre,como os da América Latina, essas são ações insuficientespara conter os protestos e insatisfações sociais manifestadascontra os <strong>de</strong>smontes promovidos pelas reformas neoliberaissobre seu território.Neste texto, o objetivo é explorar os meandros da <strong>de</strong>mocratizaçãoou massificação do futebol e dos esportes na França,através <strong>de</strong> sua disseminação como política pública, emescolas (ativida<strong>de</strong>s curriculares e extracurriculares) e em clubese associações <strong>de</strong> bairros periféricos <strong>de</strong> Paris. Há também umaanálise sobre o papel que <strong>de</strong>sempenha o selecionado francês<strong>de</strong> futebol neste contexto. O olhar sobre esses temas é <strong>de</strong> umbrasileiro que cursa doutorado residindo nesta cida<strong>de</strong>, fato quepossibilita o engajamento na realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um bairro <strong>de</strong> suaperiferia.2 O surgimento do conceito <strong>de</strong> indústria cultural e <strong>de</strong> cultura <strong>de</strong> massa está relacionado ao surgimento doCinema, Rádio e Televisão e ligado organicamente ao po<strong>de</strong>r econômico do capital industrial e financeiro.Portanto, seu objetivo é tornar todos em consumidores potenciais. Adorno e Horkheimer (1985) foram osprincipais arquitetos <strong>de</strong>sse conceito, mostrando os mecanismos que levavam a manipulação das massas, sejana Alemanha nazista ou na América liberal. Ver Duarte (2003).141


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Esporte e socieda<strong>de</strong> francesa atual naperspectiva <strong>de</strong> um brasileiro resi<strong>de</strong>nteNos últimos dois anos, o brasileiro mencionado viveu comoresi<strong>de</strong>nte estrangeiro num bairro popular do subúrbio parisiense.Nesse período presenciou três acontecimentos marcantes: emoutubro <strong>de</strong> 2005 eclodiu a “Crise <strong>de</strong>s Banlieues” (conflitos nosbairros pobres 3 ), em abril <strong>de</strong> 2006 o movimento contra a CPE 4e os impactos na socieda<strong>de</strong> francesa e no <strong>de</strong>partamento 93 5da Copa do Mundo <strong>de</strong> 2006 realizada na Alemanha, na qual aFrança conquistou o vice-campeonato.Revoltados, sem perspectivas <strong>de</strong> um futuro melhor do queaquele para o qual as escolas francesas empurram os jovensdo Banlieue (predominatemente, <strong>de</strong> origem étnica árabe ouafricana), eles foram às ruas, queimaram carros e mostrarama face <strong>de</strong> uma integração pouco convincente na França. Poucosmeses <strong>de</strong>pois, na primavera <strong>de</strong> 2006, novamente, jovensdas universida<strong>de</strong>s francesas revoltam-se com as reformasneoliberais propostas pelo governo cuja proposição retira direitostrabalhistas daqueles que entrarão no mercado <strong>de</strong> trabalho.Tais acontecimentos revelam fissuras no processo <strong>de</strong> formaçãoe integração entre aquele que vive no “banlieue”– oriundodas ex-colônias – e o jovem <strong>de</strong> classe média, consi<strong>de</strong>rado3 Na periferia das cida<strong>de</strong>s francesas, os jovens se revoltaram contra a ação do Estado e seus aparelhos <strong>de</strong>repressão, a ação foi marcada pelo controle da polícia e a perseguição <strong>de</strong> três garotos que foram eletrocutadosao se escon<strong>de</strong>rem numa estação <strong>de</strong> energia elétrica. No dia seguinte a esse ato <strong>de</strong> violência, o atual ministrodo interior e candidato a presi<strong>de</strong>nte nas próximas eleições, Nicolas Sarkozi, foi ao bairro Clichy-sous-Boise usou o termo “racaille” (Ralé) para se dirigir às pessoas que se manifestavam revoltosas contra a açãopolicial e a política do governo. Esse ato tornou-se fundamental para o início, em todo o território francês,<strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> manifestações radicais.4 Contrato <strong>de</strong> Primeiro Emprego. Projeto <strong>de</strong> Lei apresentado pelo governo no sentido <strong>de</strong> regulamentar asleis do trabalho, flexibilizando as relações entre proprietário e trabalhador. O Projeto foi fortemente rejeitadopelo conjunto da socieda<strong>de</strong>, principalmente pelos jovens universitários.5 O “93, Seine-Saint-Denis”, é um dos <strong>de</strong>partamentos mais pobres da França, marcado também porhistórias <strong>de</strong> lutas e reivindicações sociais e culturais, por se tratar da região que abriga boa parte da populaçãooriginária das ex-colônias francesas.142


O Esporte e a Educação na Contemporaneida<strong>de</strong>: ambiguida<strong>de</strong>s, contradicoes e tensõessociais na Françafrancês “puro”, num contexto <strong>de</strong> turbulência social e econômica,em que o <strong>de</strong>semprego atingiu números alarmantes.É em meio a esse contexto <strong>de</strong> protestos que acontece naEuropa a Copa do Mundo <strong>de</strong> Futebol <strong>de</strong> 2006, que possibilitaaos franceses assistir à surpreen<strong>de</strong>nte ascensão da geração“Black, Blanc et Beur” (Negro, Branco e Bege 6 ), ou “LesBleus”, como é <strong>de</strong>nominada a seleção francesa 7 . Des<strong>de</strong> 1998,o selecionado francês tem sido utilizado para veicular a mensagem<strong>de</strong> que é possível aos estrangeiros ascen<strong>de</strong>r socialmentena França. Porém, para os jovens dos “Banlieues”, essaequipe representa uma promessa que não se realiza emsuas vidas cotidianas. Po<strong>de</strong>-se dizer, que o selecionado francêstem servido i<strong>de</strong>ologicamente para amenizar o impacto dasinúmeras experiências <strong>de</strong> fracasso que eles acumulam nas suastrajetórias escolar e profissional.Para eles o futebol aparece como uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mobilida<strong>de</strong> social, mas também <strong>de</strong> construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>dos jovens que vivem uma crise <strong>de</strong> pertencimento 8 . A fortepresença <strong>de</strong> negros na equipe francesa data da década <strong>de</strong> 1960e vem se acentuando graças ao talento <strong>de</strong>sses garotos formados,sobretudo, nos bairros pobres, mas que possuem quasesempre uma excelente estrutura esportiva disponibilizada peloEstado. Na “Ilê <strong>de</strong> France”, <strong>de</strong>staca-se o exemplo <strong>de</strong> Paris,prefeitura <strong>de</strong> esquerda que gasta 150 milhões <strong>de</strong> Euros anuais6 Para saber mais sobre a integração dos “Beur” ou beges à socieda<strong>de</strong> francesa ver ENAFAA (1996).7 A seleção francesa conta em sua equipe com três jogadores nascidos no exterior, Vieira (Senegal), Makelele(Congo), Boumsong (Camarão); cinco nascidos na França e parentes <strong>de</strong> estrangeiros, como Zinedine Zidane(Argélia) e Trezeguet (Argentino), e, ainda, nove nascidos nas Antilhas, portanto, franceses. A cor da pele dosjogadores da seleção francesa diferencia-se das <strong>de</strong>mais seleções europeias. Trata-se <strong>de</strong> uma equipe compostapor jovens jogadores <strong>de</strong> origem multiracial que expressam em sua cor as miscigenações raciais trazidas dascolônias francesas invadidas pelo antigo império francês, são jovens oriundos <strong>de</strong>ssas colonizações e que hojebuscam seu espaço nesse país.8 Não nasceram nos países que originaram suas famílias, como Argélia, Marrocos, Tunísia, etc., portanto,já estão distantes <strong>de</strong>stes, mas também não se sentem plenamente à vonta<strong>de</strong> no seu país <strong>de</strong> nascimento.143


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>com a estruturação <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> esporte. Possui 2.400 agentesesportivos e 26 mil crianças por dia participando dos centrosesportivos e “ateliers Bleus” 9 . E mesmo com gran<strong>de</strong>s investimentospúblicos com esportes nas periferias é <strong>de</strong>la queeclodiram as maiores manifestações <strong>de</strong> protestos durante a rebelião<strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2005.Mas, é da periferia, na pequena comuna on<strong>de</strong> resido <strong>de</strong>s<strong>de</strong>2004 10 , que é relatada essa experiência particular. Pelo segundoano tenho compartilhado os campos <strong>de</strong> futebol com osjovens, sobretudo os negros e árabes, e com eles disputado ocampeonato regional 11 . Os treinos e os jogos são realizadosnum complexo esportivo do bairro que conta com um estádio<strong>de</strong> futebol e <strong>de</strong> atletismo, um ginásio poliesportivo, entre outros,à disposição da comunida<strong>de</strong>. Trata-se, na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>um complexo esportivo igual a centenas <strong>de</strong> outros espalhadospelo país.A política esportiva implantada para a utilização dos equipamentosdo complexo poliesportivo é gerida pelas própriaspessoas da comunida<strong>de</strong> (a pequena “Pierrefitte”) e privilegia aparticipação efetiva dos cidadãos (os “Pierrifitois”). Durantedois anos, nenhum ato <strong>de</strong> vandalismo aos equipamentos docomplexo poliesportivo foi presenciado, ao contrário, as instalaçõesmantiveram-se sempre próprias e disponíveis ao uso comfins esportivos e <strong>de</strong> lazer. Foi possível perceber que aqui o esporteé muito valorizado como política <strong>de</strong> Estado e <strong>de</strong>stina-seao lazer dos cidadãos. Há uma forte tendência do Estado empromover a <strong>de</strong>mocratização <strong>de</strong> acesso popular às instalações9 Informações no Maire <strong>de</strong> Paris PARISPORTS (2002).10 Para maiores informações sobre a comuna ver . Acesso em: 16 nov. 2007.11 Essa equipe é composta por 20 educadores voluntários, trabalhando com 215 jogadores distribuídos em<strong>de</strong>z categorias: masculino e feminino.144


O Esporte e a Educação na Contemporaneida<strong>de</strong>: ambiguida<strong>de</strong>s, contradicoes e tensõessociais na França<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> e também possibilitar uma gestão popular sobrea <strong>de</strong>finição das priorida<strong>de</strong>s e das ativida<strong>de</strong>s esportivas e culturaisque irão se realizar. É forte o sentimento entre os usuários<strong>de</strong>sses complexos poliesportivos <strong>de</strong> que, aquilo que é público,também é <strong>de</strong>les, assim como do coletivo, e que por isso <strong>de</strong>vemser preservados, a fim <strong>de</strong> que continuem a servir a si e a todos.Parece contraditório pensar que uma política esportiva <strong>de</strong>Estado assim equacionada não seja suficiente para impedir asmanifestações que se suce<strong>de</strong>ram. No entanto, uma possívelhipótese a respeito é a <strong>de</strong> que são contradições <strong>de</strong> um Estadoque levou o “welfare state” ao limite e que hoje se ressente emnão po<strong>de</strong>r acompanhar os países liberais, em que pesem osesforços da pequena e comunista comuna <strong>de</strong> Pierrefitte. Noentanto, tal fato po<strong>de</strong> contribuir na reflexão sobre as experiênciasdo Brasil, país <strong>de</strong> capitalismo tardio, mas que não foipoupado pelas ações neoliberais. No Brasil, são numerosas asações governamentais que veiculam a falsa i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o esportee o lazer po<strong>de</strong>m ser preventivos à criminalida<strong>de</strong>, ao uso/abuso <strong>de</strong> drogas e a violências resultantes do abandono dopróprio Estado em outros setores da socieda<strong>de</strong>.Frente às políticas <strong>de</strong> lazer do Estado francês, ainda insuficientespara conter a rebeldia dos jovens, o futebol tambémpassa a ser utilizado como solução 12 . Nas comunida<strong>de</strong>s carenteso futebol ganha força à medida que as perspectivas <strong>de</strong> futurodos trabalhadores são reduzidas. O futebol nessas comunida<strong>de</strong>stem sido proposto como solução salvadora àquelesjovens que têm pouca esperança na escola e que também se12 Em conversas informais é possível perceber entre os franceses uma profunda admiração pelo futebolbrasileiro, mas é Zizou (Zinedine Zidane) que lhes enche <strong>de</strong> orgulho e alimenta um sonho <strong>de</strong> integração e <strong>de</strong>que é possível a ascensão social, mesmo para aqueles que vivem na margem norte da rica Paris. Os Bleustornaram os gramados dos banlieues um terreno fértil para o surgimento <strong>de</strong> uma nova geração. Um futebolpreparado em campos sintéticos <strong>de</strong> tecnologia avançada, com uma formação esportiva talhada no corpo <strong>de</strong>meninos afro-franceses e que vivem problemas sociais e culturais profundos.145


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>ressentem, cada vez mais, por não terem acesso aos bens <strong>de</strong>consumo, cujos apelos lhes são muito atraentes.Nessas comunida<strong>de</strong>s é muito forte a exploração das mensagensveiculadas pela mídia dos mega-eventos esportivos (asOlimpíadas e a Copa do Mundo). Tais eventos são veiculadorestanto do sonho <strong>de</strong> ganhar a loteria do “peneirão” – milhões <strong>de</strong>garotos se per<strong>de</strong>m a caminho do profissionalismo – quanto <strong>de</strong>produzir as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> consumo que lhes fazem sentir ogosto das vitórias <strong>de</strong> seus ídolos como se fossem suas.Durante a Copa do Mundo da Alemanha, em 2006, nascida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Dortmund, Dusserldorf e Koln, foi possível observaraspectos <strong>de</strong>sse mega-evento que provoca certa reflexão sobreo assunto. Televisionada em quase todos os países do globo, afantástica “indústria da bola” promove seus ícones. Homensmilionários que, embora jovens, não precisam mais trabalharpara viver. Corpos cuidados com todo o recurso científico etecnológico para ren<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ntro e fora do campo. Milhares <strong>de</strong>câmeras para registrar cada <strong>de</strong>talhe e informar ao mundo queo importante acontece ali, e que todos <strong>de</strong>vem estar atentos aoque é dito, pensado, mostrado e vendido pelas telas da TV.Fora do campo, uma população mobilizada em torno docomércio, cuja prostituição também marcava forte presença 13 .Um gran<strong>de</strong> circo armado para divertir as pessoas; muita cervejapara entorpecer as mentes, enquanto se esquece do cotidiano,mas não das mercadorias a consumir. Ali o lazer prestasepara criar no imaginário popular a esperança <strong>de</strong> um futurodiferente daquele que, provavelmente, o será.Em campo, a França vence o selecionado brasileiro e avançana competição até ser <strong>de</strong>rrotada, já na final, pela equipe13 Centenas <strong>de</strong> prostitutas – muitas <strong>de</strong>las brasileiras – rondando os estádios, trabalhando nas casasespecialmente preparadas para a Copa.146


O Esporte e a Educação na Contemporaneida<strong>de</strong>: ambiguida<strong>de</strong>s, contradicoes e tensõessociais na Françaitaliana. No entanto, um dos fatos mais marcantes <strong>de</strong>sse jogoe da Copa foi o golpe com a cabeça <strong>de</strong> Zidane no adversário.Segundo o atacante, o gesto foi uma reação à agressão verbalsofrida.Tendo sido o primeiro a ser entrevistado, o Presi<strong>de</strong>nte Chiracsaiu em <strong>de</strong>fesa do ídolo e mostrou saber que “Zizou” representaum sonho que, após o <strong>de</strong>spertar, po<strong>de</strong> romper com o silênciomomentâneo dos excluídos.Zidane é uma unanimida<strong>de</strong> na França, mesmo para a classemédia, para quem o futebol não é mais do que uma entre astantas práticas corporais oferecidas pelo Estado. O seu ato oua falha <strong>de</strong> Trezeguet provocaram diferentes discursos. No extremo,o discurso racista relaciona o <strong>de</strong>sequilíbrio emocional eanimalida<strong>de</strong> aos “les Bleus”. Esse discurso tem contribuído paraa construção <strong>de</strong> um clima <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança que se instalou nasocieda<strong>de</strong> francesa. Também fazem parte <strong>de</strong>sse tensionamentoas políticas relacionadas aos imigrantes, cada vez mais restritivas.Dessa forma, fica evi<strong>de</strong>nte que o futebol não tem o po<strong>de</strong>r<strong>de</strong> anular a discriminação e o racismo. Ele não representa verda<strong>de</strong>iramenteas relações <strong>de</strong> classe vividas na socieda<strong>de</strong>.É possível que um ídolo nacional seja negro ou <strong>de</strong> origem mestiçae, assim mesmo, a socieda<strong>de</strong> não incorpore isso comouma possibilida<strong>de</strong> real <strong>de</strong> integração <strong>de</strong> um povo. A esse respeito,po<strong>de</strong>-se dizer que pouco mudou na socieda<strong>de</strong> francesa<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1998 (quando a seleção francesa <strong>de</strong> futebol sagrou-secampeã da Copa disputada naquele país). Parece mesmo queo <strong>de</strong>semprego e as condições sociais e econômicas pioraram.Os jovens do meio popular continuam traçando percursos escolaresmais curtos e menos valorizados, também continuam aentrar no mercado <strong>de</strong> trabalho pela porta <strong>de</strong> trás.147


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>O futebol, pela força e pela penetração social que alcançounas últimas décadas, tem sido falsamente anunciado comoopção para os jovens 14 . Trata-se <strong>de</strong> um anúncio enganoso, vistoque é um projeto elitista e hierarquizado, no qual o jogadoré cada vez mais refém, seja das operações financeiras que envolvemseu trabalho, seja do uso e abuso do seu corpo nasescolinhas <strong>de</strong> iniciação esportiva <strong>de</strong> profissionais.Os percursos escolares personalizados, recentementeapresentados às escolas francesas, indicam essa tendência. Sãoprojetos educacionais alternativos oferecidos nos dois últimosanos <strong>de</strong> escolarização obrigatória, entre 16 e 18 anos 15 . Argumentamos especialistas que os alunos em situação <strong>de</strong> fracassoescolar têm aí uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> serem valorizados eencontrarem uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social 16 . Percebe-se aqui a lógicado rendimento esportivo a<strong>de</strong>ntrando o universo escolar realmentepela porta da frente.14 Espalham-se mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> escolas <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> jogadores <strong>de</strong> futebol no mundo todo. As criançasoriundas <strong>de</strong> países ou comunida<strong>de</strong>s empobrecidas transformam-se em mercadorias cuidadosamenteproduzidas para aquecer a economia <strong>de</strong> mercado. Por outro lado, essa alternativa aparece como umasolução para situação <strong>de</strong> extrema penúria e miséria em que vivem essas crianças. Um exemplo é o projeto<strong>de</strong>nominado Diambars realizado no Senegal. A escola mo<strong>de</strong>lo do futebol africano é coor<strong>de</strong>nada por exjogadorese um homem <strong>de</strong> negócios. Eles trabalham com jovens vindos <strong>de</strong> todos os cantos do Senegal. Umprograma rigoroso <strong>de</strong> treinamento e formação geral inclui <strong>de</strong> sete a nove horas <strong>de</strong> treinamento, aulas <strong>de</strong>idiomas, cursos, refeições e pausas para <strong>de</strong>scanso. Trata-se <strong>de</strong> um clube que habilita para o futebol e tambémrealiza a escolarização das crianças. Os responsáveis assumem que entre todos os jovens, apenas 20 setornarão profissionais, enquanto os outros po<strong>de</strong>rão encontrar emprego mais qualificado mesmo na África.15 Esses garotos têm uma escola em que a priorida<strong>de</strong> é o futebol e respon<strong>de</strong>m às exigências do esporte <strong>de</strong>alto nível, beneficiando-se <strong>de</strong> horários escolares flexíveis. Alojados em sistema <strong>de</strong> internato, possuem seisseções <strong>de</strong> treinamento semanais, incluindo os jogos <strong>de</strong> finais <strong>de</strong> semana.16 Uma escola integral <strong>de</strong> ensino médio está sendo pensada com atletas <strong>de</strong> diferentes modalida<strong>de</strong>s: Futebol,Basquete, Karatê, Squash, Polo Feminino e Pilotos <strong>de</strong> automóveis.148


O Esporte e a Educação na Contemporaneida<strong>de</strong>: ambiguida<strong>de</strong>s, contradicoes e tensõessociais na FrançaNotas sobre aspectos da história da educaçãoescolar e do esporte na França 17Neste tópico será realizada uma análise histórica das mudançasocorridas no sistema escolar francês para promover osreajustes à <strong>de</strong>mocratização e massificação do esporte e dofutebol, através da escola, em suas ativida<strong>de</strong>s curriculares eextracurriculares.Esporte e educação escolar andam juntos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final daSegunda Gran<strong>de</strong> Guerra, quando a reorganização <strong>de</strong> uma escola<strong>de</strong>mocrática tornou-se a priorida<strong>de</strong> nacional, ou seja, aquelaque buscava oferecer a todas as crianças uma instrução equilibradae uma cultura tão elevada quanto possível. A disciplinaEPS – Educação Física e Esportiva – <strong>de</strong>stacava-se na escolapelo discurso higienista, com o intuito <strong>de</strong> amenizar os efeitosda guerra 18 , pois era preciso educar as novas gerações, recuperara autoestima, ainda abalada pela ocupação alemã. Umaformação completa exigia também um corpo forte, ágil, resistentee competitivo.Em 1946, o Congresso Nacional <strong>de</strong> Esportes coloca comopriorida<strong>de</strong> transformar o esporte em objeto educativo da escola19 , e durante a quarta República ele tornou-se assunto <strong>de</strong>Estado, buscando a ampliação <strong>de</strong> sua prática 20 . As AssociaçõesEsportivas (AS) começaram a ser criadas nesta época ehoje são mais <strong>de</strong> 173 mil e 15 milhões <strong>de</strong> licenças esportivaspara competir, dirigir ou coor<strong>de</strong>nar ativida<strong>de</strong>s esportivas17 Este tópico foi estruturado a partir dos estudos <strong>de</strong> Atalli et al. (2004).18 600 mil mortos, dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> alojamento, o racionamento <strong>de</strong> alimentos, produção industrial em queda.Dos 12 milhões <strong>de</strong> menores, 250 mil estavam órfãos, 1,3 milhões estavam fora <strong>de</strong> suas residências e 300 milprecisavam <strong>de</strong> cuidados médicos.19 Des<strong>de</strong> o início do Século XX muitos tentam introduzir o esporte na escola, entre eles o Barão <strong>de</strong> Coubertin.20 Na época eram apenas 5% que praticavam esportes, hoje 86% assumem realizar alguma prática esportivadurante o ano.149


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>(DEFRANCE, 2006, p. 5). Data <strong>de</strong>sse período a criação doInstituto Nacional dos Esportes (INS). Aparecia então, a figurado cidadão esportivo orientado por um discurso cívico emoral, vinculado à reconstrução do país. Nesse contexto, RobertMérand 21 cria o movimento em prol do <strong>de</strong>nominado EsporteEducativo, no qual o ensino escolar aparece como continuida<strong>de</strong>do esporte <strong>de</strong> alto nível.Dos anos <strong>de</strong> 1960 ao começo da década <strong>de</strong> 1980, o ensino<strong>de</strong> EPS sofre uma crise <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong>vido à pluralida<strong>de</strong><strong>de</strong> projetos envolvendo questões como: qual a sua utilida<strong>de</strong>escolar e social? É a época do surgimento da socieda<strong>de</strong> doslazeres (DUMAZEDIER, 1964). Os lazeres físicos e esportivos ganhamespaço social 22 . Somente nos anos <strong>de</strong> 1970 essas práticasvão bater às portas da escola, a partir dos esportes californianos eas APNs – Ativida<strong>de</strong>s Físicas na Natureza. O período da crítica aoesporte aparece com força. A questão <strong>de</strong> sua significação políticae cultural é colocada numa perspectiva crítica.[...] les gestes toujours les mêmes, enferment le sportifdans un mon<strong>de</strong> clos d’éternel retour et présententbeaucoup d’analogies avec les tâches parcellaires dumachinisme industriel […] la spécialisation, larépétition, la mécanisation placent entraîneur et sportifdans une voie d’appauvrissement progressif(VIGARELLO, 1966, p. 40). 2321 O autor se inscreve na perspectiva materialista dialética e consi<strong>de</strong>ra que o esporte coloca questõesa serem respondidas coletivamente, as quais conferem à criança as mais elevadas dimensões motrizes.Apesar da integração das ativida<strong>de</strong>s esportivas ao sistema capitalista, elas permanecem uma ativida<strong>de</strong>humana fundamental, oferecendo todos os requisitos culturais, permitindo <strong>de</strong>senvolver aptidões físicas,intelectuais e sociais.22 Em 1961, a França conta com 145 estádios poliesportivos, 510 campos <strong>de</strong> competição, 4.032 campos <strong>de</strong>treinamento, 6.000 <strong>de</strong> basquete e vôlei, 3.855 <strong>de</strong> tênis, 45 salas <strong>de</strong> esporte, 626 piscinas, etc. Um forteempenho do Estado em triplicar essas instalações é iniciado. Um novo “tempo do esporte” é marcado pelamo<strong>de</strong>rnização das instalações esportivas francesas e milhões <strong>de</strong> francos são aplicados em cinco anos.23 “Os movimentos sempre os mesmos, encerram o esportista num mundo fechado do eterno retorno eapresentam muitas analogias com as tarefas fracionadas do maquinismo industrial [...] A especialização, arepetição, a mecanização colocam treinador e esportista numa via <strong>de</strong> empobrecimento progressivo”(traduzido pelo autor).150


O Esporte e a Educação na Contemporaneida<strong>de</strong>: ambiguida<strong>de</strong>s, contradicoes e tensõessociais na FrançaO esporte não po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado como um espaço particular,protegido das contradições que dominam a socieda<strong>de</strong>,mas sim como símbolo e suporte <strong>de</strong> difusão dos mais po<strong>de</strong>rosos.A crítica ao esporte vai encontrar em Brohm (1966) seumomento <strong>de</strong> maior radicalida<strong>de</strong>:En s’organisant autour <strong>de</strong> la compétition, il véhiculele mythe <strong>de</strong> la réussite porté par l’agressivité et leconflit, l’égoïsme et le narcissisme; et, il promeut lemodèle social dominant du self-ma<strong>de</strong>-men <strong>de</strong>vants’imposer au détriment <strong>de</strong>s autres et contre les autres.Il renforce l'idéologie <strong>de</strong> la possibilité pour tousd'arriver au sommet <strong>de</strong> la hiérarchie sociale (c’est-àdire<strong>de</strong> réussir) par la seul opiniâtreté et l’effortindividuel (ATALI et al., 1994, p. 191). 24O autor se contrapõe à perspectiva marxista <strong>de</strong> Merand,utilizando-se para fazer a crítica das reflexões <strong>de</strong> Marx sobre osefeitos da maquinaria na vida dos trabalhadores e, ainda, argumentaque os efeitos do esporte sobre o indivíduo produziramuma alienação esportiva 25 .Portanto, a alternativa se situa na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> uma culturado corpo não-repressiva, consi<strong>de</strong>rando todas as dimensõesda corporeida<strong>de</strong> (estética, cultural, simbólica, artística,etc.) e fundada sob o princípio do prazer/lúdico, oposto ao princípiodo rendimento. Trata-se <strong>de</strong> duas correntes apoiadas nasteses Marxistas, mas que divergem no plano da ação ao trataremdas implicações do esporte na socieda<strong>de</strong>.24 “Se organizando em torno da competição, veicula o mito do sucesso carregado pela agressivida<strong>de</strong> e oconflito, o egoísmo e o narcisismo; e, promete o mo<strong>de</strong>lo social dominante do Self-ma<strong>de</strong>-man <strong>de</strong>vendo seimpor em <strong>de</strong>trimento dos outros e contra os outros. Ele reforça a i<strong>de</strong>ologia da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> chegar ao altoda hierarquia social (isto é, do sucesso) pelo único caminho perseverança e esforço individual” (traduzidopor Fabio Machado Pinto)25 Eles se fundamentam nas teses <strong>de</strong> estudo <strong>de</strong> Herbert Marcuse (1975) para quem o po<strong>de</strong>r opressivo tomaforma <strong>de</strong> razão objetiva. Se o esporte é aqui consi<strong>de</strong>rado como um fenômeno cultural, ele não representamais que a parte <strong>de</strong>ste sistema opressivo proposto por uma pequena elite às massas, que ao praticaremcorrem o risco <strong>de</strong> alienarem-se.151


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Percebendo os espaços perdidos, partidários do esporteavançam com suas propostas e, com apoio do Ministério daJuventu<strong>de</strong> e Esportes, inventam um novo conceito, que se traduzpela i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a disciplina EPS <strong>de</strong>ve participar do processoeducativo sem necessariamente ser ensinada na escola.Assim, é permitida a participação <strong>de</strong> colaboradores na educaçãodos alunos. A solução prevê, ainda, uma educação físicarealizada por educadores esportivos nas estruturas anexas aosestabelecimentos escolares. Uma iniciação esportiva propostanesse âmbito permite preencher os déficits <strong>de</strong> horários da educaçãofísica. Com essa privatização da educação física abriuseuma via para o mesmo acontecer com outras disciplinas daescola 26 .Nos anos <strong>de</strong> 1980, a EPS procura se situar frente ao processo<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratização escolar que atingiu todos os níveis,porém não se efetivou qualitativamente. O princípio da igualda<strong>de</strong><strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s teve uma inflexão importante queinduz novas formas <strong>de</strong> ensino. A disciplina <strong>de</strong> EPS é colocadaem questão frente à luta do Estado contra o fracasso, a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>escolar e contra o <strong>de</strong>semprego do jovem 27 . É nítida aatração da maioria dos alunos pela disciplina EPS, principalmenteos alunos mais <strong>de</strong>sfavorecidos e <strong>de</strong>smotivados.A escola, como elevador social, está em pane. Ela quetem como uma <strong>de</strong> suas missões a integração do povo francês,vem promovendo um igualitarismo <strong>de</strong> fachada e tolerando umsistema clan<strong>de</strong>stino <strong>de</strong> discriminação que privilegia <strong>de</strong> fato osprivilegiados e abandona no meio do caminho milhares <strong>de</strong> jo-26 Data <strong>de</strong>sta época a política <strong>de</strong> “esporte para todos” oficializada por Mazeud em 1973. O esporte comoum antídoto às violências mo<strong>de</strong>rnas era consi<strong>de</strong>rado um meio pelo qual o Estado realizaria o controle egarantiria a aplicação <strong>de</strong> regras comuns.27 Em 1981, surgem as ZEPs – Zonas <strong>de</strong> Educação Prioritária – com uma pedagogia diferenciada apontandopara justiça escolar, a luta contra o fracasso e extensão da pedagogia <strong>de</strong> projeto.152


O Esporte e a Educação na Contemporaneida<strong>de</strong>: ambiguida<strong>de</strong>s, contradicoes e tensõessociais na Françavens <strong>de</strong>sfavorecidos. Na escola vêm sendo propostos projetospedagógicos diferenciados, a fim <strong>de</strong> que as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociaissejam melhor tratadas e superadas. Trata-se <strong>de</strong> promoverna escola discriminação positiva, ou seja, combater o efeitogheto, dando mais àqueles que têm mais necessida<strong>de</strong>;isso significa colocar meios suplementares à disposição das criançasdas classes mais <strong>de</strong>sfavorecidas. Os professores da disciplina<strong>de</strong> EPS, nesse sentido, tiveram que inventar novas formas<strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> viver juntos, privilegiando os alunosque estão em dificulda<strong>de</strong> no sistema educativo.As necessida<strong>de</strong>s econômicas parecem impor suas leis aosistema escolar. A lógica liberal <strong>de</strong> privatização que atinge atodos os setores da vida social toca agora também diretamenteà escola e ameaça o princípio da <strong>de</strong>mocratização, resultando,por vezes, no imobilismo e na resignação dos atores escolares.Tanto a escola quanto a disciplina EPS experimentam umafratura entre o planejado (socialização, cidadania, formação)e o realizado (perda <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s sociais, anonimato social e<strong>de</strong>semprego).As políticas <strong>de</strong> Estado aten<strong>de</strong>m aos pressupostos <strong>de</strong> eficiênciae <strong>de</strong> obrigação <strong>de</strong> resultados. Entra em disputa um novoprojeto <strong>de</strong> educação que questiona: qual homem, qual cidadãoe qual trabalhador <strong>de</strong>seja-se formar? Nesse novo contexto, aEPS se aproxima da <strong>de</strong>sescolarização e da animação esportiva.Conclusão: em quais aspectos a experiênciafrancesa ensina?O esporte é uma instituição singular que po<strong>de</strong> ajudar apensar o tempo presente, assim como suas possibilida<strong>de</strong>s, seja153


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>no Brasil ou na França. Esporte e Escola são duas instituiçõesautônomas, com percursos e características particulares e quese cruzam ao longo da história. No caso francês, verifica-seuma aproximação entre as instituições como política <strong>de</strong> Estadoe, frequentemente, são cruzadas quando se pensa a educaçãoe o trabalho. É possível notar que o esporte possui umahistória marcada por conflitos éticos e sociais, no entanto, nãoforam poucas as forças que o exigiram como instrumento econteúdo da formação dos mais novos. Ainda hoje pesa sobrea escola a exigência <strong>de</strong> tratar o esporte como um conhecimentoe um saber-fazer a ser ensinado por ela, visto a importânciaque o esporte ganha na socieda<strong>de</strong> contemporânea.Apesar das críticas mais radicais, observa-se no esporte –futebol – um instrumento para pensar diferentes estratégias <strong>de</strong>mobilização das classes populares 28 , constituindo-se em po<strong>de</strong>rosorecurso <strong>de</strong> emancipação popular frente ao tsunamineoliberal que assola as regiões mais pobres do planeta comas guerras e a fome, e que explora e oprime trabalhadores.Porém, reconhecemos que o futebol, nesse contexto, vem sendoutilizado como importante instrumento para iludir as massascom promessas <strong>de</strong> sucesso que nunca serão cumpridas 29 ,ou como distração do trabalhador, que encontra na i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>com um clube as suas últimas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> realização,mesmo sendo a sua vida repleta <strong>de</strong> frustrações. Apesar do muitoproduzido, ainda precisam ser realizados, em larga escala, estudossobre esses fenômenos, a fim <strong>de</strong> se conhecer mais a res-28 O conceito <strong>de</strong> classes populares é bastante controverso para ser <strong>de</strong>senvolvido no espaço <strong>de</strong>ste artigo. Ver,por exemplo, Sa<strong>de</strong>r e Paoli (1996). Este artigo limita-se a indicar que essa noção refere-se ao espaçoocupado pelos trabalhadores nas relações econômicas, mas também sociais e culturais (BOURDIEU, 2005).29 Conforme Adorno e Horkheimer (1985), promessas que nunca serão cumpridas fazem parte dos esquemasda indústria cultural. Assim, referimo-nos aqui aos projetos e <strong>de</strong>sejos colocados pelos ídolos esportivos e quelevam milhares <strong>de</strong> jovens aos peneirões <strong>de</strong> clubes famosos, fazendo <strong>de</strong>sse fenômeno algo como uma loteria,na qual a ínfima parcela chegará ao palco maior.154


O Esporte e a Educação na Contemporaneida<strong>de</strong>: ambiguida<strong>de</strong>s, contradicoes e tensõessociais na Françapeito <strong>de</strong> como os sujeitos singulares e coletivos escolhem diferentesprojetos que, uma vez totalizados, constituem-se emprojetos e <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> ser 30 , nos quais o futebol possibilita aconstrução <strong>de</strong> diferentes perfis <strong>de</strong> jogador, treinador, torcedor,amante, conhecedor, crítico, etc. Seja no clube esportivo ou naaula <strong>de</strong> educação física escolar, o ensino das práticas esportivasnão po<strong>de</strong> abrir mão do estudo e reflexão sobre a culturaesportiva.Educação escolar e esporte apresentam histórias particularesque por si justificam uma autonomia institucional. Contudo,na contemporaneida<strong>de</strong>, é impossível pensar a educaçãoescolar sem o esporte, e o esporte sem a educação que se preten<strong>de</strong>emancipadora. As escolas 31 precisam tematizar o esportecomo uma prática social que encarna atualmente um projeto<strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>, ao mesmo tempo em que <strong>de</strong>mocratiza as ferramentasculturais e corporais para que as crianças e jovensescolham e ocupem seu espaço nesta socieda<strong>de</strong>. Assim, umaautonomia entre esporte e escola precisa ser respeitada, emboraa escola que <strong>de</strong>seja se aproximar das práticas sociais comforte presença no meio popular não possa abrir mão <strong>de</strong> trabalharpedagogicamente esse importante fenômeno no sentido<strong>de</strong> uma ação sociocultural para liberda<strong>de</strong> 32 , inclusive, oferecendoferramentas para uma futura profissionalização para30 Com suporte na teoria existencialista do homem, sobretudo a <strong>de</strong> matriz sartreana, é realizado um estudosobre a constituição do sujeito que ajuda a pensar a personalida<strong>de</strong> humana como um fenômeno universal esingular, e transcen<strong>de</strong>nte, ou seja, algo que acontece no mundo, homens entre homens, coisas entre coisas.(PINTO; TEIXEIRA, 1999; 2002).31 Aqui refere-se não somente à educação formal, como também às escolinhas <strong>de</strong> formação esportiva quena França são amplamente difundidas e mantidas pelo Estado, e que no Brasil ocorrem <strong>de</strong> todas as formaspensadas, mas principalmente pela iniciativa <strong>de</strong> amadores do futebol, em meio popular.32 Durante o último quartel do Século XX, a educação física brasileira foi palco <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> propostasque caminham nesse sentido. Para citar os mais expressivos: Coletivos <strong>de</strong> Autores (1992) e Kunz (1994).Uma síntese <strong>de</strong>sse movimento, bem como um estreitamento da relação entre os que produzem o conhecimentoe os que o utilizam <strong>de</strong>ve ser melhor pensado. Dizemos mesmo que ainda está por ser pensado um mo<strong>de</strong>lo<strong>de</strong> relação que romperá com essa dicotomia.155


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>aqueles que na infância e juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejem ser alguém no“mundo da bola”. Uma escola <strong>de</strong>mocratizada e <strong>de</strong>mocráticaseria aquela que não somente oferece o futebol como umaprática corporal a mais, mas que permite aos alunos conhecereme se reconhecerem nesse mundo, on<strong>de</strong> o futebol ocupa umlugar na história, na cultura, nas relações sociais e econômicase na construção <strong>de</strong> seus projetos e <strong>de</strong>sejos. Isso exige um novoprofessor, uma nova educação, como possibilida<strong>de</strong> para construção<strong>de</strong> um outro mundo.Trata-se <strong>de</strong> estar atento a dois movimentos. O primeiro,que busca localizar os sujeitos das suas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> escolhanum mundo cujas contradições sociais estão explícitas eimplícitas e, portanto, <strong>de</strong>vem ser cuidadosamente analisadas,estudadas e transformadas. Os jovens precisam continuar sonhando,realizando os seus sonhos, ocupando seu espaço nasocieda<strong>de</strong>, em que o futebol é uma prática social historicamenteconstruída. No segundo, trata-se <strong>de</strong> dar volume às forçasque lutam contra a opressão das classes populares e pelaconstrução <strong>de</strong> outra or<strong>de</strong>m planetária. Nesse sentido, o futebol<strong>de</strong>ve ser duramente colocado em questão: Por que ganha tantaforça? A que interesses aten<strong>de</strong>? Quem se beneficia com ovolume <strong>de</strong> negócios que atualmente giram em seu entorno? Aque projeto <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> ele se vincula? Em consequência, qualhumanida<strong>de</strong> resultará <strong>de</strong>sse movimento?ReferênciasADORNO T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1985.156


O Esporte e a Educação na Contemporaneida<strong>de</strong>: ambiguida<strong>de</strong>s, contradicoes e tensõessociais na FrançaATALI, M.; et al. L’Éducation Physique <strong>de</strong> 1945 à nous jours: lesetapes d’une démocratisaton. Paris: armand Colin, 2004.BOURDIEU, P. O Po<strong>de</strong>r Simbólico. 8. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Bertrand Brasil, 2005.BROHM, J-M. Sociologie politique du sport. Nancy: P.U.N., 1996.______. Le corps analyseur: essai <strong>de</strong> sociologie critique. Paris:Anthropos, 2001.COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do Ensino da EducaçãoFísica. São Paulo: Cortez, 1992.DEFRANCE, J. Sociologie du Sport. 5. ed. Paris: La <strong>de</strong>couvert,2006.DUARTE. R. Teoria Crítica e Industria Cultural. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2003.DUMAZEDIER, J. Education physique, sport et sociologie. In:Revue EPS, n. 69, 7-10. Paris, 1964.ENAFAA, R. Les étudiants “beures” à l’université <strong>de</strong> Paris 8.Situations et Trajectoires comparées à celles <strong>de</strong>s garçons. In:Pluralisme et éducation, tome II. Montreal: Universtié <strong>de</strong>Montreal, 1996.KUNZ, E. Transformações Didático-pedagógicas do esporte. Ijuí:Unijuí, 1994.MARCUSE, H. Eros e Civilização: uma interpretação Filosófica dopensamento <strong>de</strong> Freud. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1975.PARISPORTS. Le gui<strong>de</strong> du sport à Paris. Paris: Mairie <strong>de</strong> Paris,2002.157


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>PINTO, F. M.; TEIXEIRA, C. F. A Personalida<strong>de</strong> em Sartre ereflexões sobre o processo ensino aprendizagem. In: RevistaBrasileira <strong>de</strong> Ciências do Esporte. 21 (1), setembro, 1999.p. 518-524.______. Aspectos da Educação Física Escolar & Desenvolvimentoe constituição da Personalida<strong>de</strong>. In: Revista DigitalEFDEPORTES, año 8, n. 55, diciembre <strong>de</strong> 2002. Textos do IVEncuentro Deporte y Ciências Sociales. Buenos Aires/Argentina:Universitad <strong>de</strong> Buenos Aires, 2002.REVUE QUELS CORPS? Football Connection. n. 10, Juillet,Montpellier: OERSCI, 1990.REVUE QUELS CORPS? Anthropophagie du sport, n. 41, Avril,Montpellier: OERSCI,1991.SADER, E.; PAOLI, M. C. Classes populares no movimentosociológico brasileiro. In: Aventuras Antropológicas. São Paulo:Paz e Terra, 1996.VIGARELLO, G. Entreîneur, éducateur. Revue Partisans, Paris,n. 28, 1966.158


Sobre o Sistema <strong>de</strong> Complexos Homem-Esporte-Saú<strong>de</strong>: reflexões a partir <strong>de</strong>contribuições da AlemanhaSobre o Sistema <strong>de</strong> ComplexosHomem-Esporte-Saú<strong>de</strong>: reflexões apartir <strong>de</strong> contribuições daAlemanhaCeli Zulke Taffarel*O primeira esclarecimento e agra<strong>de</strong>cimento a ser feito nestetexto é sobre a importantíssima contribuição que recebi do ProfessorDr. Jürgen Dieckert da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ol<strong>de</strong>nburg (Alemanha),também professor honorífico da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ralda Bahia (Brasil). O texto segue uma lógica sugerida por Dieckerte no segundo item, em que discutimos paradigmas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,há uma gran<strong>de</strong> contribuição <strong>de</strong> sua parte.Ativida<strong>de</strong> esportiva na construção do serhumanoO homem não nasce ser humano saudável praticando esporte,e nem sempre praticar esporte significa ser saudável. Arelação “ativida<strong>de</strong> física-saú<strong>de</strong>” é uma construção sócio-históricaque <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do modo <strong>de</strong> vida, do modo <strong>de</strong> organizar aprodução dos bens materiais e imateriais e isso não po<strong>de</strong> servisto <strong>de</strong> forma isolada, a partir <strong>de</strong> um indivíduo, mas, sim,<strong>de</strong>ve ser encarado historicamente, a partir da totalida<strong>de</strong> da* Professora Doutora, Titular UFBA. Pesquisadora 1 D CNPq. E-mail: taffarel@ufba.br.159


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>espécie humana, do gênero humano. Por isso não po<strong>de</strong>mosabstrair das práticas corporais seus sentidos e significados isolados,ou seja, sem o seu conteúdo histórico. O homem nãonasceu praticando esporte, e muito menos relacionando esportecom saú<strong>de</strong>. Foi pelo trabalho, pelas ativida<strong>de</strong>s, pelas condições<strong>de</strong> produzir e reproduzir seu modo <strong>de</strong> vida, que as relaçõesentre esporte e saú<strong>de</strong> foram se consolidando.Essa construção passa pelas relações do homem com anatureza e com os outros homens na manutenção da vida humana.Perante a natureza o homem representa, ele próprio, opapel <strong>de</strong> uma força natural. Tanto é que atualmente somosconsi<strong>de</strong>rados uma força geofísica capaz <strong>de</strong> colocar em risco avida no planeta, pelas nossas ações nas relações com a naturezae com os outros seres humanos 1 .O homem, para aten<strong>de</strong>r suas necessida<strong>de</strong>s vitais, põe emmovimento, pelas suas pernas, braços, cabeça e mãos, as forças<strong>de</strong> que seu corpo é dotado para se apropriar das matérias,para dar a essas matérias uma forma útil à sua vida. Vê-se,então, que as ativida<strong>de</strong>s corporais não objetivam a “expressãocorporal” <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias ou sentimentos. Elas são a materialização<strong>de</strong> experiências i<strong>de</strong>ológicas, religiosas, políticas, filosóficas ououtras, subordinadas às leis histórico-sociais que originaram formas<strong>de</strong> ação socialmente elaboradas e, por isso, são portadoras<strong>de</strong> significados i<strong>de</strong>ais do mundo objetivo, das suas proprieda<strong>de</strong>s,nexos e relações <strong>de</strong>scobertas pela prática social conjunta.É assim que na Alemanha, por exemplo, as práticas corporaisvão sendo construídas, firmadas, consolidadas e sistematizadasem dadas relações <strong>de</strong> produção da vida. Po<strong>de</strong>mos1 O padrão nessas relações tem sido <strong>de</strong> exploração e dominação. Se todas as pessoas da América Latinaalmejassem viver como vivem a classe média europeia e a classe média norte-americana, o mundo explodiria,não suportaria o grau <strong>de</strong> exploração. (CHESNAIS, 1996).160


Sobre o Sistema <strong>de</strong> Complexos Homem-Esporte-Saú<strong>de</strong>: reflexões a partir <strong>de</strong>contribuições da Alemanhareconhecer isso nas orientações para a educação <strong>de</strong> crianças ejovens influenciadas por Jean Jacques Rousseau (1712-1778),Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), até nas contribuições<strong>de</strong> Johann Cristoph Frie<strong>de</strong>rich Guts Muths (1759-1839), <strong>de</strong>Frie<strong>de</strong>rich Ludwig Jahn (1778-1852) – consi<strong>de</strong>rado pai doTurnen, a ginástica mo<strong>de</strong>rna – e nas contribuições <strong>de</strong> um dosprincipais cientistas e professores, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a entrada daginástica na Escola, que foi Adolph Spiess (1810-1858). Po<strong>de</strong>mosreconhecer essa construção nas propostas atuais do ensinodo movimentar-se aberto às experiências individuais e sociais<strong>de</strong> Reiner Hil<strong>de</strong>brandt-Stramann e <strong>de</strong> Raf Langing, bemcomo no “Esporte para Todos” <strong>de</strong>fendido por Jürgen Dieckert eoutros. Mas todas essas contribuições estão historicamente situadase correspon<strong>de</strong>m a dadas relações <strong>de</strong> produção em dadasformações econômicas, a saber, o feudalismo, o capitalismo,o imperialismo.Para Dieckert (2002), “esporte” não se refere somente àsáreas do esporte profissional, <strong>de</strong> competição e <strong>de</strong> alto rendimento,mas a todas as formas diversificadas <strong>de</strong> brincar, jogar emovimentar-se, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância até a terceira ida<strong>de</strong>. O centralnesse conceito <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> esportiva é o sentido e significadossócio-históricos construídos, consi<strong>de</strong>rando a relevância socialda ativida<strong>de</strong>. É assim que a Alemanha apresenta, por um lado,um vasto contingente populacional que pratica ativida<strong>de</strong>s físicas,exercícios físicos e esporte com finalida<strong>de</strong>s lúdicas, terapêuticas,estéticas, educativas, com uma elite que disputa nas competiçõesinternacionais a supremacia do país no cenário esportivo.Nesse percurso histórico, os questionamentos à práticasocial no campo do esporte e saú<strong>de</strong> estão colocados. Taisquestionamentos iniciam com a interrogação sobre como aativida<strong>de</strong> humana historicamente criada e socialmente <strong>de</strong>sen-161


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>volvida em torno <strong>de</strong> uma das mais importantes expressões dasubjetivida<strong>de</strong> humana, o jogo lúdico, que não tem como objetivoresultados materiais, se mercadorizou. Como os dois polos<strong>de</strong> um mesmo espectro o jogo lúdico que traz em si a dimensãoda competição faz com que seja subsumida uma <strong>de</strong>ssas dimensõesem prol <strong>de</strong> outra. Po<strong>de</strong>-se encontrar uma vasta literatura,tanto na Alemanha quanto no Brasil, <strong>de</strong> crítica àesportivização e mercadorização dos elementos da cultura corporal.Essa esportivização vem contribuindo, junto com aprofissionalização, com o uso midiático do esporte e com aprodução da indústria cultural <strong>de</strong> massa, para o <strong>de</strong>saparecimento<strong>de</strong> elementos ricos da cultura corporal e para o surgimento<strong>de</strong> outros elementos altamente alienantes, <strong>de</strong> acordo com osinteresses <strong>de</strong>sumanos e efêmeros <strong>de</strong> mercados consumistas.Ocorre atualmente o <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> ginásticacoletiva, familiar, <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> espaços públicos on<strong>de</strong>a população praticava ativida<strong>de</strong>s solidárias e colaborativas,em contato com a natureza, dando lugar à exacerbaçãotecnicista, competitiva e à predominância do sobrepujar a simesmo e aos outros.Para caracterizar a instituição esporte em nossa socieda<strong>de</strong>contemporânea po<strong>de</strong>mos nos valer dos estudos <strong>de</strong> Jean-FrançoisBourg (1995), pesquisador do Centro <strong>de</strong> Direito e Economiado Esporte, da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Limoges/França. Ele i<strong>de</strong>ntificaem seus estudos dois momentos do esporte que correspon<strong>de</strong>ma duas or<strong>de</strong>ns econômicas. Um a partir do restabelecimentodos Jogos Olímpicos Mo<strong>de</strong>rnos em 1896, quando seu criador,o Barão Pierre <strong>de</strong> Coubertin, refere-se a uma moral aristocráticae estetismo virtuoso. Outra, quando as empresas patrocinadorasdos Jogos Olímpicos explicam, <strong>de</strong> outra forma, a suaparticipação financeira. A passagem <strong>de</strong> uma a outra submeteuo esporte à lógica produtivista (o rendimento) e a seu modo <strong>de</strong>162


Sobre o Sistema <strong>de</strong> Complexos Homem-Esporte-Saú<strong>de</strong>: reflexões a partir <strong>de</strong>contribuições da Alemanhaavaliação (a moeda). Ainda segundo Bourg, com a aceleração<strong>de</strong>sse fenômeno, a tensão crescente entre as leis da economiae a exigência ética do jogo coloca o problema das finalida<strong>de</strong>sdo esporte, da salvaguarda <strong>de</strong> sua credibilida<strong>de</strong> e até mesmo<strong>de</strong> sua sobrevivência.Fatos recentes ressaltam a aceleração e, até mesmo, oagravamento do fenômeno: o capital transnacional assumindoa direção <strong>de</strong> empresas esportivas lucrativas, e a eliminação/exclusão do consi<strong>de</strong>rado “não rentável”. E é isso que atualmenteocorre em um dos gran<strong>de</strong>s bolsões <strong>de</strong> miséria humanada América Latina, em que a Educação Física e esporte naUniversida<strong>de</strong> e no Sistema Nacional <strong>de</strong> Educação Pública –Educação Infantil, Ensino Básico – Fundamental e Médio –são consi<strong>de</strong>rados “não rentáveis”.Nesta segunda or<strong>de</strong>m econômica três movimentos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>envergadura somaram efeitos:a) O esporte aparece como uma espécie <strong>de</strong> nova religião,o único modo <strong>de</strong> comunicação universal e acessível,oferecendo investimentos afetivos, resguardandosímbolos e alimentando mitos e, ainda, prestando-seà dramaturgia – manipulação do imagináriopopular – pelos meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa, viatelevisiva;b) A obsolescência do sistema taylorista <strong>de</strong> organizaçãodo trabalho (disciplina, hierarquia, vigilância, controle,divisão <strong>de</strong> tarefas) e sua concepção militar <strong>de</strong>mobilização da força <strong>de</strong> trabalho e a manipulação dos“valores esportivos”, tais como a lealda<strong>de</strong>, o senso <strong>de</strong>responsabilida<strong>de</strong>, o esforço pessoal, o espírito <strong>de</strong> equipe,caros às novas formas <strong>de</strong> gerenciamento científicoda produtivida<strong>de</strong> e da exploração da mais-valia; e163


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>c) A criação <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s, com a emergência <strong>de</strong> umtempo livre e o <strong>de</strong>senvolvimento do mito do corpo,criando um verda<strong>de</strong>iro setor econômico com taxas<strong>de</strong> crescimento elevadas, <strong>de</strong> 10% a 15% ao ano.São conjugadas, portanto, dimensões culturais, sociais eeconômicas da crise transformando o Mo<strong>de</strong>lo Esportivo emchave <strong>de</strong> sucesso dos empreendimentos disputados, tornandoseo esporte, como as empresas, uma figura do <strong>de</strong>sempenho,uma forma <strong>de</strong> relações estabelecidas e estruturadas com vistasà eficácia.É preciso vencer sim, a qualquer custo. As massas<strong>de</strong>sejam recor<strong>de</strong>s que igualem os esportistas aos superheróis, patrocinados por gran<strong>de</strong>s empresas, queinvestem em tecnologia, para estes homensaprimorados correrem cada vez mais e ven<strong>de</strong>remcada vez mais os produtos que estas empresasproduzem. Os heróis criados fazem propaganda <strong>de</strong>produtos que são consumidos pelas massas que aí seimaginam um pouco super heróis também, fechandoseo ciclo. “Para garantir a sensação efêmera <strong>de</strong>potência dos normais, os atletas da mídia tomamhormônios, <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser esportistas e virammáquinas <strong>de</strong> rendimento” (BOURG, 1995, p. 60).164Portanto, o esporte não é uma reação nem um conjunto<strong>de</strong> reações: é um sistema com estrutura, transições, conversõesinternas e <strong>de</strong>senvolvimento, motivo pelo qual não <strong>de</strong>ve serabstraído das formações econômicas e das relações sociais davida da socieda<strong>de</strong> com suas peculiarida<strong>de</strong>s e particularida<strong>de</strong>s.Ele é incluído no sistema <strong>de</strong> relações da socieda<strong>de</strong>, pois nãoexiste em absoluto fora <strong>de</strong>ssas relações. A ativida<strong>de</strong> esportiva,prática do homem, gera, além do caráter objetivo das imagens,a objetivida<strong>de</strong> das necessida<strong>de</strong>s, das emoções e dos sentimentos,<strong>de</strong>monstrando que os fins não são inventados e nemcolocados voluntariamente pelo sujeito, mas estão dados nascircunstâncias objetivas das relações <strong>de</strong> produção e reprodu-


Sobre o Sistema <strong>de</strong> Complexos Homem-Esporte-Saú<strong>de</strong>: reflexões a partir <strong>de</strong>contribuições da Alemanhação da vida humana. Todavia, a extração e conscientizaçãodos fins não é um processo momentâneo que acontece automaticamente,mas um processo relativamente longo <strong>de</strong> aprovaçãodos fins pela ação.Ao praticar esporte, ao esquiar em vertiginoso ziguezaguenos Alpes, ao cindir as águas com ágeis braçadas ou em po<strong>de</strong>rosaslanchas, voar graciosamente em asa <strong>de</strong>lta ou livre eousadamente em trapézios altíssimos, colocar uma bola numângulo imprevisível da quadra <strong>de</strong> tênis, permanecer no ar, <strong>de</strong>safiandoa gravida<strong>de</strong> numa arriscada pirueta ginástica, ou fintarsagazmente seu rival com a bola inexplicavelmente colada noseu pé, o ser humano está materializando em movimentos umconteúdo cujo mo<strong>de</strong>lo interior só é <strong>de</strong>terminado e <strong>de</strong>finido nopróprio curso da sua realização. É na prática objetiva que asubjetivida<strong>de</strong> se impregna <strong>de</strong> sentidos lúdicos, estéticos, artísticos,agonísticos, competitivos, ou outros, que se relacionamcom a realida<strong>de</strong> da própria vida do sujeito que age, com assuas motivações particulares. Desse modo, ele usufrui a suaprodução na própria objetivação ou materialização da experiênciaprática. É intrínseco à sua prática o valor e a unida<strong>de</strong>indissolúveis entre interior e exterior, entre subjetivo e objetivo.Reconhece-se, portanto, a relevância da ação prática, sujeitaàs leis sócio-históricas. E essas ações práticas são <strong>de</strong>senvolvidastambém na escola e no trabalho pedagógico em queprofessores, estudantes e praticantes tratam do conhecimentodo campo esportivo e da saú<strong>de</strong> e constroem sentidos e significadosda prática e na prática. Tais sentidos e significados enquantoconstruções sócio-históricas po<strong>de</strong>m ser alienados 2 , nas2 Mészáros no seu trabalho retoma e <strong>de</strong>sdobra os vários tipos <strong>de</strong> alienação do sistema capitalista. Seusaspectos econômicos, políticos, ontológicos, morais e estéticos, nas relações com o trabalho, na separaçãoentre teoria e prática e entre o homem e a natureza e tece consi<strong>de</strong>rações sobre a sua superação, além do queo autor chama <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m sociometábolica do capital (MÉSZÁROS, 2005).165


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>quais os praticantes não conseguem estabelecer nexos, relações,e reconhecer contradições entre “homem-esporte-saú<strong>de</strong>”,mas po<strong>de</strong>m estabelecer nexos e relações na perspectivaemancipatória 3 e omnilateral 4 . É isso que será analisado nasequência, perguntando sobre os paradigmas da saú<strong>de</strong> que predominaramnas relações com o esporte.Relação esporte – saú<strong>de</strong>O conceito integral <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> é a base da teoria da“Salutogênese”, <strong>de</strong>senvolvida por Aaron Antonowsky há cerca<strong>de</strong> 20 anos em oposição à predominante teoria da“Patogênese”, e que está sendo discutida a partir <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>losdiferentes ainda em <strong>de</strong>senvolvimento 5 . Essa concepção foi inicialmenteapresentada, nas ciências da saú<strong>de</strong>, por AaronAntonowsky em duas pesquisas (1979;1987).“Salutogênese” vem do latim “saluto” e significa “saú<strong>de</strong>”;“gênese” se refere à “origem”. Portanto, a salutogênese procurasaber: “De on<strong>de</strong> vem a saú<strong>de</strong>?”. Essa pergunta parece tãosimples, embora historicamente tenha sido negligenciada. Em3 A emancipação não está sendo aqui consi<strong>de</strong>rada na perspectiva liberal clássica, para quem LIBERDADEé a ausência <strong>de</strong> interferência ou coerção. O Liberalismo trata <strong>de</strong> maneira limitada essas restrições, sobreopções relevantes e sobre quem são os agentes, visto como in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, inclusive do mercado. Vemos aliberda<strong>de</strong> em termos dos obstáculos à emancipação humana e ao múltiplo <strong>de</strong>senvolvimento das possibilida<strong>de</strong>shumanas e à criação <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> associação digna da condição humana. Entre os obstáculos <strong>de</strong>stacasea condição <strong>de</strong> trabalho assalariado. A Liberda<strong>de</strong> como auto<strong>de</strong>terminação é coletiva, relacionando odireito à liberda<strong>de</strong> com o egoísmo e a proprieda<strong>de</strong> privada que restringem outras liberda<strong>de</strong>s mais valiosas.Kunz (1999) discute a questão sobre esclarecimento e emancipação no texto: “Esclarecimento eEmancipação”.4 O termo “omnilateral”, ou “onilateral” é encontrado em “A I<strong>de</strong>ologia Alemã”, obra <strong>de</strong> Marx e Engels.Segundo Manacorda (1991, p.79), a “omnilateralida<strong>de</strong>” trata da “chegada histórica do homem a umatotalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong>s produtivas e, ao mesmo tempo, a uma totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> consumo eprazeres, em que se <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar, sobretudo, o gozo daqueles bens espirituais, além dos materiais, e dosquais o trabalhador tem estado excluído em conseqüência da divisão do trabalho”.5 Ver mais a respeito In: BASSOLI (2004).166


Sobre o Sistema <strong>de</strong> Complexos Homem-Esporte-Saú<strong>de</strong>: reflexões a partir <strong>de</strong>contribuições da Alemanhavez disso, os médicos perguntaram, durante séculos ou até milênios:“De on<strong>de</strong> vem a doença?”. A partir <strong>de</strong>ssa pergunta <strong>de</strong>senvolveu-sea conhecida teoria da “Patogênese”. O que significa“Patogênese”? – “Pato” vem do grego e significa “doença”;gênese quer dizer “origem”. Portanto, a investigação por partedos médicos refere-se às causas das doenças. O que eles <strong>de</strong>senvolveramentão, com nossos agra<strong>de</strong>cimentos, foi um mo<strong>de</strong>lobiomédico das doenças, reconhecido por nós, “pacientes”,ou “clientes”. O que as pesquisas médicas <strong>de</strong>scobriram, também,foram os chamados “fatores <strong>de</strong> risco”, ou seja, fatoresque po<strong>de</strong>m causar doenças.A pergunta colocada na perspectiva do paradigma da“Patogênese” é como a ativida<strong>de</strong> física regular po<strong>de</strong> prevenirpossíveis doenças e compensar os “fatores <strong>de</strong> risco”? 6 .Por sua vez, na concepção <strong>de</strong> “Salutogênese”, supera-seessa perspectiva dos fatores <strong>de</strong> risco e busca-se a origem dasaú<strong>de</strong>, ou seja, tudo aquilo que nos <strong>de</strong>ixa saudáveis e garantea vida, tudo que contribui para a manutenção da nossa saú<strong>de</strong>ou para a sua recuperação. Antonowsky igualmente <strong>de</strong>scobriucausas, ele <strong>de</strong>nominou-as “fatores <strong>de</strong> proteção”. A partir disso,ele <strong>de</strong>senvolveu um mo<strong>de</strong>lo que foi além do mo<strong>de</strong>lo biomédico,centrado no corpo. Essa concepção <strong>de</strong>staca numerosos fatores<strong>de</strong> proteção localizados em diferentes níveis, frequentementechamados também <strong>de</strong> “recursos <strong>de</strong> resistência”.Destacam-se três que parecem relevantes para o <strong>de</strong>bateora travado sobre uma saída emancipatória para os impactosna saú<strong>de</strong> em <strong>de</strong>corrência da mercadorização, corporativizaçãodo esporte no mundo, que nos parecem especialmente importantespara a nossa tarefa pedagógica da promoção e educa-6 No Brasil, o programa ativida<strong>de</strong> física e saú<strong>de</strong> Agita São Paulo é um exemplo <strong>de</strong>ssa concepção médica.Matsudo et al (2001); Matsudo (2006).167


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>ção da saú<strong>de</strong>. O primeiro fator a <strong>de</strong>stacar é o sentido da vidaem dadas relações <strong>de</strong> produção. É necessário, para sermoshumanos, nos mantermos vivos. Por isso temos que <strong>de</strong>senvolveras condições <strong>de</strong> nossa existência. O que ocorre atualmenteé que organizamos nosso modo <strong>de</strong> produção da vida <strong>de</strong> formaa não garantirmos mais o sentido da vida que é manter a própriavida. Esse “sentido da vida”, que está ligado ao modocomo organizamos a nossa produção <strong>de</strong> bens materiais eimateriais, e como construímos e consolidamos pela prática osvalores e normas, constituindo uma visão do mundo(cosmovisão) que proporciona orientação e apoio, é o que dáforça, fortalece a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver, aumenta a coragem e estimulaotimismo e nos possibilita uma consciência social e umaconsciência <strong>de</strong> classe, porque é a classe que produz e reproduzas condições para a existência humana.A luta para manutenção da vida digna <strong>de</strong> todos e a interpretaçãopositiva da própria vida é um baluarte po<strong>de</strong>roso contrafatores <strong>de</strong> risco, um importante recurso <strong>de</strong> resistência e umfator <strong>de</strong> proteção fundamental para a manutenção e o fortalecimentoda saú<strong>de</strong>, não somente individual, mas coletiva.No que se refere às ativida<strong>de</strong>s físicas, nem todas as formas <strong>de</strong>prática contribuem como fator <strong>de</strong> resistência. Determinadasativida<strong>de</strong>s físicas, esportivas, construídas com certas finalida<strong>de</strong>s,po<strong>de</strong>m colaborar para que o fator <strong>de</strong> proteção “sentidoda vida” seja ativado ou não. Então não basta seguir recomendaçõesmédicas para correr, andar <strong>de</strong> bicicleta ou nadar diariamentepara que o sistema cardíaco-circulatório mantenha-sesaudável. Entra aí o “sentido da vida” e esse sentido não está<strong>de</strong>svinculado <strong>de</strong> condições objetivas da existência humana.E se existe algo cujo sentido <strong>de</strong>ve ser questionado é o rumo quenossas vidas assumem no modo do capital organizar a produção168


Sobre o Sistema <strong>de</strong> Complexos Homem-Esporte-Saú<strong>de</strong>: reflexões a partir <strong>de</strong>contribuições da Alemanhasubsumindo o trabalho humano, em um modo <strong>de</strong> vida individualista,egoísta, competitivista, alienado e altamente explorador.Em um modo <strong>de</strong> vida em que o planeta está sendo <strong>de</strong>struído.Isso nos leva a colocar os outros dois fatores <strong>de</strong> resistênciaque são: a “autoestima” e a “assistência social”. A autoestimadiz respeito à construção da subjetivida<strong>de</strong> humana pelainternalização dos valores que não se dá fora das relações objetivasda existência humana. Isso significa, por exemplo, quenas relações sociais estabelecidas na escola, on<strong>de</strong> ocorre permanentesexperiências <strong>de</strong> fracasso e violência para os estudantes,a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>les está ameaçada. Quando as ativida<strong>de</strong>s esportivasnos clubes promovem somente os melhores, para muitosnão há condições <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolverem autoestima positivaatravés das ativida<strong>de</strong>s físicas. Especialmente nos tempos atuais,em que há alta ênfase no corpo, com os i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> sensoesportivo e fitness, experiências <strong>de</strong> fracasso reforçam os chamadossentimentos <strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong> e enfraquecem, assim, nãosó o organismo físico, mas diminuem também a eficácia dosfatores <strong>de</strong> proteção. O problema hoje é “o imperialismo docorpo” e as novas formas <strong>de</strong> eugenia, conforme <strong>de</strong>nunciaTognolli (2000, p. 44). A eugenia dita positiva, segundo o mesmoautor, preocupa-se com a aplicação <strong>de</strong> uma reproduçãoseletiva, <strong>de</strong> modo a aprimorar as características <strong>de</strong> um organismoou espécie 7 .O terceiro e último fator é a assistência social. Tal fator <strong>de</strong>resistência e saú<strong>de</strong> diz respeito à convivência humana e às condiçõesconcretas <strong>de</strong> existência, <strong>de</strong> reconhecimento social, e <strong>de</strong>não exclusão – sem eliminação, sobra e <strong>de</strong>rrota. Acrescenta-sea isso as responsabilida<strong>de</strong>s, tanto dos indivíduos quanto doEstado, para garantir o direito à assistência social.7 Essa i<strong>de</strong>ologia vem sendo severamente criticada. Um exemplo é o texto <strong>de</strong> Tognolli (2000).169


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>O modo <strong>de</strong> vida capitalista exclui e elimina a maioria dospertencentes à classe trabalhadora e esse processo apren<strong>de</strong>mosna escola nas formas sistemáticas <strong>de</strong> avaliação e, principalmente,nas aulas <strong>de</strong> educação física.Na Alemanha existe na área do esporte um intenso e longotrabalho <strong>de</strong> voluntariado, o que representa uma fonte <strong>de</strong>estímulo, <strong>de</strong> auto-organização e <strong>de</strong> assistência social no sentidodo acolhimento, da inclusão, da consi<strong>de</strong>ração, do apoiomútuo, da segurança. Isso po<strong>de</strong> ser observado, por exemplo,nos tradicionais clubes <strong>de</strong> ginástica que mobilizam mais <strong>de</strong> ummilhão <strong>de</strong> praticantes 8 . No entanto, no que diz respeito à produçãoteórica da área <strong>de</strong> esporte, em especial à dimensão socialdo esporte, o que constata-se na literatura esportiva alemãé que a questão social é mencionada como uma justificativa,principalmente nas introduções das obras, mas, na realida<strong>de</strong>,não se efetiva na sequência da obra como argumentoestruturante na prática, como fator <strong>de</strong> resistência e <strong>de</strong>senvolvimentoda saú<strong>de</strong>. Nas investigações <strong>de</strong> Dieckert (2002) sobre oassunto constata-se que menos <strong>de</strong> um por cento das 61.000páginas pesquisadas em livros sobre esporte mencionam a dimensãosocial neste sentido <strong>de</strong> assistência. Isso <strong>de</strong>corre, provavelmente,em função da influência teórica tradicional e unilateraldos conhecimentos das Ciências do Movimento e doTreinamento Desportivo voltados com ênfase nas explicaçõesno âmbito biológico e para o alto rendimento.Mas, como isto é “assistência social” na prática? Comoreconhecê-la? Como promovê-la? Se o objetivo é alcançar o“bem-estar social”, então todas as nossas medidas didático-8 Na América Latina, em especial no Brasil, com a regulamentação da profissão e a criação do sistemaCREF/CONFEF, o trabalho do voluntariado no campo da educação física e esporte ficou completamenteinviabiizado porque somente po<strong>de</strong>m lidar com ativida<strong>de</strong>s físicas quem tiver a carteira do Sistema CREF/CONFEF. Esse sistema visa controlar mercado <strong>de</strong> trabalho, representando mecanismo <strong>de</strong> reserva <strong>de</strong> mercado.170


Sobre o Sistema <strong>de</strong> Complexos Homem-Esporte-Saú<strong>de</strong>: reflexões a partir <strong>de</strong>contribuições da Alemanhametodológicas <strong>de</strong>vem acentuar, prioritariamente, o “coletivo”.Isso implica, <strong>de</strong> um lado, na formação dos coletivosauto<strong>de</strong>terminados, auto-organizados, em pequenos grupos, <strong>de</strong>solidarieda<strong>de</strong>. Implica, por outro lado, na promoção <strong>de</strong> tarefasque exigem ações coletivas. É assim que o diálogo entre aspessoas é promovido, como também a compreensão, o respeitomútuo, a consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> um para o outro, a confiança e asegurança. Isso envolve construir compromissos, resolver problemas,tomar <strong>de</strong>cisões e realizar tarefas coletivamente; aí temque haver ajuda mútua e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cooperação, <strong>de</strong> reconhecimentoe apoio, <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> dos companheiros, <strong>de</strong>senvolvendo-seresponsabilida<strong>de</strong> para com os outros. Assim sãoestabelecidas relações sociais reforçadas pela consciência docoletivo, do grupo, da classe, em que cada um e todos se sentemapoiados, seguros, amparados, assistidos. Dessa forma, otão importante fator <strong>de</strong> proteção “assistência social” é ativadoe fortalecido: através da participação e inclusão <strong>de</strong> outras pessoasna ativida<strong>de</strong> e na própria chance <strong>de</strong> construção das condiçõespara a vida digna.Como ocorre, enfim, essa “assistência social” nos clubesesportivos, nas escolas e nas praças públicas on<strong>de</strong> se praticamativida<strong>de</strong>s físicas, exercícios físicos e esporte? Na Alemanha,bem como na Europa em geral, expan<strong>de</strong>-se a re<strong>de</strong> social paraativida<strong>de</strong>s em grupo além das aulas <strong>de</strong> exercício.No que diz respeito às políticas públicas relacionadas aoesporte e juventu<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>-se observar na Europa, por exemplo,a realização do “Fórum Europeu <strong>de</strong> Juventu<strong>de</strong> e Esporte” 9 queocorreu <strong>de</strong> 19 a 24 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2005, no Estádio <strong>de</strong> EsportesStoke Man<strong>de</strong>ville, no Reino Unido. O Fórum reuniu jo-9 Portal Europeu da Juventu<strong>de</strong>. Disponível em: . Acesso em: 25 jan.2006.171


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>vens <strong>de</strong> 28 países europeus para discutir as questões <strong>de</strong>voluntariado no esporte, combate à discriminação e esporte esaú<strong>de</strong> sob o tema geral <strong>de</strong> “Criar uma cultura <strong>de</strong> voluntariado ecidadania na Europa”. As recomendações colocadas no documentofinal foram construídas a partir das i<strong>de</strong>ias dos própriosparticipantes, oriundas dos workshops e <strong>de</strong>bates durante seis dias<strong>de</strong> Fórum. As recomendações foram elaboradas para ajudar aComissão Europeia, o Conselho da Europa e Organizações NãoGovernamentais – ONGs na Europa a <strong>de</strong>senvolverem suas estratégiasfuturas para esporte e recreação no Velho Continente.No Fórum, os jovens tiveram a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressarsuas opiniões e as recomendações são um reflexo fiel <strong>de</strong> suasexperiências e vidas na Europa mo<strong>de</strong>rna. Foi consi<strong>de</strong>rado vitalouvir os jovens, tanto para assegurar que a elaboração <strong>de</strong> políticaseuropeias fossem bem-sucedidas, quanto para o reconhecimentodo papel dos jovens na construção futura do continente.Os pontos centrais levantados pelos jovens foram:a) Convidar organizações internacionais <strong>de</strong> Esporte e Juventu<strong>de</strong>para serem consultores em reuniões intergovernamentais;b) Estabelecer uma política <strong>de</strong> presença <strong>de</strong> jovens em comitêsexecutivos que lidam com questões relacionadas ao esporte eà juventu<strong>de</strong>; c) Apoiar e <strong>de</strong>senvolver re<strong>de</strong>s relacionadas ao esportee à juventu<strong>de</strong> existentes na Europa; d) Educar os voluntários<strong>de</strong> forma a incluir matéria <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s para a vida naeducação primária e capacitar especialistas para administrarcursos e workshops em outros países europeus para promoverum melhor aproveitamento do voluntariado <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong> e esportepor toda a Europa; e) Criar um Log-Book <strong>de</strong> Voluntáriosreconhecido no continente que po<strong>de</strong>rá ser usado quando foremaprofundar sua educação ou concorrer a empregos; ef) fornecer maior suporte financeiro <strong>de</strong>ntro do programa “Juventu<strong>de</strong>em Ação” para cobrir os custos dos voluntários.172


Sobre o Sistema <strong>de</strong> Complexos Homem-Esporte-Saú<strong>de</strong>: reflexões a partir <strong>de</strong>contribuições da AlemanhaNa América Latina, em especial no Brasil, hegemonicamente,a construção <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s e o trabalho <strong>de</strong> voluntários se transformaem ativida<strong>de</strong> própria <strong>de</strong> ONGs que se apropriam <strong>de</strong> recursospúblicos para cumprir um papel que, segundo a ConstituiçãoBrasileira <strong>de</strong> 1988 10 , é <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> do Estado, passandoa atuar em políticas “assistencialistas”, compensatórias efocais – para “menores abandonados”, “para tirar menino <strong>de</strong>rua das ruas”, para “afastar crianças e jovens das drogas”.Lamentavelmente isso representa uma distorção do sentido esignificado das re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> e voluntariado. Tanto éassim, que o Tribunal <strong>de</strong> Contas da União (TCU) aponta asativida<strong>de</strong>s das ONGs, por exemplo, como fator <strong>de</strong> <strong>de</strong>struiçãodos serviços públicos 11 .Além disso, existe no Brasil um corporativismo representadono Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Educação Física e seu Sistema <strong>de</strong>Conselhos Regionais <strong>de</strong> Educação Física que ameaça colocarna prisão quem ousar trabalhar voluntariamente com a culturacorporal e não tiver a carteira do Sistema CREF/CONFEF 12 .Segundo Antonowsky (1979) existem capacida<strong>de</strong>s que po<strong>de</strong>mser adquiridas, o que exige um trabalho educativo, comono caso <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong> crítica – um conhecimento objetivo e claro– sobre saú<strong>de</strong> e doenças. Mas o fundamental é que o Ser Humanoé capaz <strong>de</strong> mobilizar e potencializar capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> resistirà manutenção do equilíbrio entre viver nas condições objetivasem que vivemos, em franca <strong>de</strong>composição, e a <strong>de</strong> uma10 No Brasil, com a promulgação da Constituição Fe<strong>de</strong>ral do Brasil em 1988, ficou estabelecido no marcoconstitucional o tripé – assistência, saú<strong>de</strong> e previdência pública – em regime <strong>de</strong> repartição. Com o avançodas contrarreformas e a retirada dos direitos sociais dos trabalhadores, essa concepção foi <strong>de</strong>struída ecaminha para a privatização e, cada vez mais, a mercadorização da assistência, saú<strong>de</strong> e previdência.11 In:Boletim da Corrente O Trabalho do Partido dos trabalhadores. Nº 612 28 <strong>de</strong> nov. a 13 <strong>de</strong>z. 2006. p. 3.12 O Conselho Nacional <strong>de</strong> Educação Física e sua consequente legislação que regulamenta a profissão (Lei9.696/98) é estudado em tese <strong>de</strong> doutoramento do professor Hajime Takeuci Nosaky e fica evi<strong>de</strong>nte o quantoesse tipo <strong>de</strong> aparelho i<strong>de</strong>ológico ligado ao estado burguês po<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir a cultura <strong>de</strong> um povo. Também a esterespeito ver Nozaki (2004).173


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>vida saudável, apesar das ameaças diárias. Esse equilíbrio <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>,para Antonowsky (1979), do grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> um “senso <strong>de</strong> coerência”, segundo o qual o ser humano agee extrai sua força <strong>de</strong> viver. Tal “senso <strong>de</strong> coerência” atua comobase <strong>de</strong> apoio para equilibrar duas forças contraditórias – ouseja, as forças internas, <strong>de</strong> um viver com intensida<strong>de</strong>, e asforças externas, representadas pelas sobrecargas e fatoresestressantes que na maioria das vezes são prejudiciais à saú<strong>de</strong>.O “senso <strong>de</strong> coerência” não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> apenas <strong>de</strong> um profundoautoconhecimento, um conhecimento <strong>de</strong> si, mas <strong>de</strong>ve contarcom o apoio <strong>de</strong> outros, ou estar amparado por uma re<strong>de</strong> socialno qual nos movimentamos. Essa re<strong>de</strong> representa a solidarieda<strong>de</strong>da classe. Ou seja, a re<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> das relações sóciohistóricas.Antonowsky (1979) alerta que a estruturação <strong>de</strong>sse“senso <strong>de</strong> coerência” inicia na infância e que as experiências evivências em dadas condições po<strong>de</strong>m influenciar por toda avida <strong>de</strong> um modo favorável ou prejudicial para a saú<strong>de</strong>. Aatenção, portanto, para crianças e jovens e o seu meio ambiente,suas relações sociais e suas experiências <strong>de</strong> vida, po<strong>de</strong>ser fator <strong>de</strong> vida ou <strong>de</strong> morte. Esse “Senso <strong>de</strong> Coerência” dizrespeito, portanto, não a como evitar ou prevenir contra osfatores <strong>de</strong> risco através <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s físicas e outros cuidados,mas sim, como <strong>de</strong>senvolver fatores <strong>de</strong> proteção da vida.Isso significa, em última instância, a crítica à práxis da humanida<strong>de</strong>e a superação da socieda<strong>de</strong> da <strong>de</strong>struição, a socieda<strong>de</strong><strong>de</strong> classes. Esse é o <strong>de</strong>safio colocado, não somente naAlemanha, mas para toda a humanida<strong>de</strong>, esteja ela on<strong>de</strong>estiver neste planeta.Antonowsky (1987) <strong>de</strong>staca que é imprescindível o conhecimentoe o pensamento sobre saú<strong>de</strong>. Não se <strong>de</strong>senvolve osentido da vida, o senso <strong>de</strong> coerência, a autoestima e a assis-174


Sobre o Sistema <strong>de</strong> Complexos Homem-Esporte-Saú<strong>de</strong>: reflexões a partir <strong>de</strong>contribuições da Alemanhatência social sem conhecimento, sem pensamento crítico. Desenvolvero “senso <strong>de</strong> coerência” para a vida exige, portanto, opensamento crítico, a atitu<strong>de</strong> crítica, e isso não brota espontaneamente,pois exige qualida<strong>de</strong> nas relações humanas, condições<strong>de</strong> vida dignas e aprendizagens que a escola po<strong>de</strong> contribuir.Shardakov (1968) assinala cinco condições para que se<strong>de</strong>senvolva essa mentalida<strong>de</strong> crítica, esse pensamento crítico,esse domínio do conhecimento:• Possuir os conhecimentos necessários na esfera emque a ativida<strong>de</strong> crítica <strong>de</strong>verá ser <strong>de</strong>senvolvida. Nonosso caso, nas relações “homem-esporte-saú<strong>de</strong>”, nãose po<strong>de</strong> analisar criticamente aquilo sobre o qual nãose possuem dados suficientes. Portanto, é necessáriosólido conhecimento sobre esse complexo temático;• Estar acostumado a comprovar qualquer resolução,ação ou juízo emitido antes <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rá-los acertados,enfrentando, assim, o bombar<strong>de</strong>io da mídia queleva as pessoas a aceitarem os conhecimentos falsoscomo verda<strong>de</strong>s absolutas;• Relacionar com a realida<strong>de</strong> as regras, leis, normas outeorias correspon<strong>de</strong>ntes, o processo e o resultado dasolução, a ação ou juízo emitido. Isso significa queenfrentamos as ilusões, radicalizamos a busca da verda<strong>de</strong>e estabelecemos nexos, relações e <strong>de</strong>terminaçõesentre “homem-esporte-saú<strong>de</strong>”;• Possuir o suficiente nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento no quediz respeito à construção dos raciocínios lógicos. Issoimplica que a ativida<strong>de</strong> não se reduz a práticas <strong>de</strong>sprovidas<strong>de</strong> reflexões; e175


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>• Ter suficientemente <strong>de</strong>senvolvida a personalida<strong>de</strong>: asopiniões, as convicções, os i<strong>de</strong>ais e a in<strong>de</strong>pendênciana forma <strong>de</strong> atuar, o que exige certas relações e condiçõeseducacionais.O que observamos na Alemanha, nas escolas, nos clubes,nas políticas públicas, nas universida<strong>de</strong>s, não <strong>de</strong> formahegemônica, mas em setores críticos, é um alerta geral para asituação em que o mundo se encontra e a responsabilida<strong>de</strong> daeducação ao tratar <strong>de</strong>sse complexo temático “homem-esportesaú<strong>de</strong>”.Possibilida<strong>de</strong>s emancipatóriasComo foi visto até aqui a saú<strong>de</strong> e a garantia da vida nãosão assuntos somente dos médicos e dos professores <strong>de</strong> educaçãofísica. Esse complexo temático “homem-esporte-saú<strong>de</strong>” esua abordagem na escola, na perspectiva emancipatória <strong>de</strong><strong>de</strong>salienação dos estudantes, é um passo importantíssimo paraenfrentar a questão.Para Kunz e Santos (2005), o <strong>de</strong>safio no campo da saú<strong>de</strong>é respon<strong>de</strong>r à pergunta pedagógica <strong>de</strong>cisiva: como po<strong>de</strong>mosrealmente potencializar crianças e jovens na escola e em especialnuma aula <strong>de</strong> Educação Física, e assim, promover umaeducação para a saú<strong>de</strong> e que atinja a totalida<strong>de</strong> do ser humanoe não apenas seus corpos físicos?Para nós, o <strong>de</strong>safio maior, em tempos <strong>de</strong> acentuação dabarbárie e <strong>de</strong> enfrentamento das questões referentes às exigênciassociais por uma melhor qualida<strong>de</strong> da educação e das condições<strong>de</strong> vida <strong>de</strong> todos é, prioritariamente, a elevação dosíndices <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> da população. Isso está colocado ao Estado e176


Sobre o Sistema <strong>de</strong> Complexos Homem-Esporte-Saú<strong>de</strong>: reflexões a partir <strong>de</strong>contribuições da Alemanhaà população em geral, mas, principalmente, aos que atribuemàs ativida<strong>de</strong>s físicas, aos exercícios físicos e ao esporte um papel<strong>de</strong>terminante nessa área.Isso traz uma responsabilida<strong>de</strong> direta à disciplina escolar“Educação Física” e duas exigências básicas aos professores<strong>de</strong> Educação Física. A primeira, <strong>de</strong> realizar análises mais radicaisda realida<strong>de</strong> social atual, da <strong>de</strong>struição das forças produtivas– natureza, trabalhador e cultura – e <strong>de</strong> analisar a contribuiçãodo esporte na construção do ser humano, principalmenteo esporte hegemônico, com seu caráter competitivo, <strong>de</strong>sobrepujança, individualista e tecnicista, versus o esporte <strong>de</strong>caráter lúdico, solidário, o esporte reinventado. A outra, <strong>de</strong> elaboraruma teoria pedagógica mais avançada, enten<strong>de</strong>ndo por“avançada” uma teoria científica que reconheça o campo daCultura Corporal como objeto <strong>de</strong> estudo da disciplina EducaçãoFísica, sem per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista os objetivos relacionados com aformação corporal, física, dos estudantes, mas recolocando-osno âmbito da vida real <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classes. “Avançada”porque supera o paradigma da “patogênese” para orientarpedagogicamente o trabalho em todos os âmbitos e campos,para um paradigma da “salutogênese”. “Avançada” por <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ra historicida<strong>de</strong> da cultura e a necessida<strong>de</strong> da sua preservaçãoatravés da participação coletiva na sua produção e evoluçãono marco <strong>de</strong> um projeto histórico que supere o atualmodo <strong>de</strong> organizar a vida que está baseado na exploração, noqual “cultura” recupere o seu significado <strong>de</strong> produto da vida eda ativida<strong>de</strong> do homem em busca da sua superação. “Avançada”por reconhecer a participação da classe trabalhadora naprodução <strong>de</strong> uma cultura que preserve a memória nacional epromova o <strong>de</strong>senvolvimento omnilateral, em todos os sentidoshumanos, em todos os sentidos da vida. Só assim a EducaçãoFísica po<strong>de</strong>rá encontrar sua razão <strong>de</strong> ser e <strong>de</strong> estar na escola.177


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Portanto, uma possibilida<strong>de</strong> no marco da emancipação/<strong>de</strong>salienação é a organização do trabalho pedagógico atravésdo sistema <strong>de</strong> complexos. A i<strong>de</strong>ia pedagógica <strong>de</strong> tratar o conhecimentoem sistema <strong>de</strong> complexos vem sendo estudada noBrasil a partir das contribuições pedagógicas <strong>de</strong> Pistrak (2000),que propõe a organização do trabalho pedagógico através <strong>de</strong>um sistema que garante a compreensão da realida<strong>de</strong> atual <strong>de</strong>acordo com o método dialético, pelo qual se estudariam osfenômenos ou temas articulados entre si e com nexos com arealida<strong>de</strong> mais geral, numa inter<strong>de</strong>pendência transformadora.O sistema <strong>de</strong> complexos, segundo Pistrak (2000), <strong>de</strong>ve estarembasado no plano social, permitindo aos estudantes, alémda percepção crítica real, uma intervenção ativa na socieda<strong>de</strong>,com seus problemas, interesses, objetivos e i<strong>de</strong>ais. Encontrar osentido da vida, o senso <strong>de</strong> coerência, a autoestima, a assistênciasocial, o autocuidado, a auto-organização dos coletivos,a atitu<strong>de</strong> crítica, exige que este sistema <strong>de</strong> complexos “homem-esporte-saú<strong>de</strong>”seja tratado pedagogicamente na escola.Na Alemanha, há uma influência muito significativa naresposta a tais questões, formuladas pelas contribuições teóricas<strong>de</strong> Andréas Trebels (1992), bem como dos holan<strong>de</strong>sesBuytendijk (1956), Tamboer (1979) e Gordjin sobre o movimentohumano e sua utilização pedagógica. Os autores fundamentamsuas posições na filosofia fenomenológica <strong>de</strong>stacandoa dimensão dialógica do movimentar-se, o que significa dizerque existe uma relação dialógica entre ser humano e mundoe que é nessa relação que o homem constitui verda<strong>de</strong>iramentesua visão <strong>de</strong> mundo, ou seja, seu entendimento das coisas,dos outros e <strong>de</strong> si próprio. O movimento humano passa aser, ao lado do falar e pensar, a mais importante forma <strong>de</strong>manifestação homem-mundo. Movimentar-se como diálogo178


Sobre o Sistema <strong>de</strong> Complexos Homem-Esporte-Saú<strong>de</strong>: reflexões a partir <strong>de</strong>contribuições da Alemanhapassa a ser assim um “compreen<strong>de</strong>r-o-mundo-pelo-agir”(TAMBOER, 1979). Essa concepção dialógica do movimento éconcebida como um “se-movimentar” em que a característicaantropológica é <strong>de</strong>stacada e não a caracterização biológica emecânica, como em geral o movimento humano é compreendido.O “se-movimentar” é o movimento vivo e para compreen<strong>de</strong>resse movimento é indispensável se referir: ao sujeito domovimento; a uma situação concreta na qual ele se vincula;aos sentidos/significados, guias indispensáveis do movimento eque irão ressaltar sua estrutura básica para a compreensão dasações.Contribuindo para avançar na compreensão acima <strong>de</strong>scrita<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-se aqui a concepção da construção da cultura corporalna perspectiva teleológica da superação do projeto históricohegemônico, o capitalismo. Estudos junto aos movimentos<strong>de</strong> luta social da classe trabalhadora no campo, em áreas <strong>de</strong>reforma agrária, em condições absolutamente íngremes e nosemiárido Sertão nor<strong>de</strong>stino nos permitem reafirmar as basesdas experiências do leste europeu no período revolucionárioentre 1917 a 1926, quando surgem as iniciativas pedagógicas<strong>de</strong>senvolvidas por Pistrak (2000). Destaca-se aqui a organizaçãodo plano escolar por sistemas <strong>de</strong> complexos, e entre ossistemas possíveis, o sistema “homem-esporte-saú<strong>de</strong>”. Destaca-setambém a auto-organização dos estudantes a partir dotrabalho socialmente útil na escola.Ressalta-se, por fim, que apesar das divergências teóricas,concordamos que uma das tarefas da educação física escolaré tratar do sistema <strong>de</strong> complexos “homem-esporte-saú<strong>de</strong>” <strong>de</strong>s<strong>de</strong>a mais tenra ida<strong>de</strong>. O professor <strong>de</strong> educação física que quisertratar o tema da saú<strong>de</strong> nas aulas <strong>de</strong> Educação Física <strong>de</strong>verever seu conceito <strong>de</strong> “saú<strong>de</strong>-doença”, <strong>de</strong> “cultura corporalativida<strong>de</strong>física”, <strong>de</strong> “escola-objetivo-método-avaliação”, <strong>de</strong> tra-179


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>balho pedagógico na sala <strong>de</strong> aula, na escola e no entorno daescola. Deverá compreen<strong>de</strong>r a construção sócio-histórica dacultura e agir com uma consistente base teórica sobre o sistema<strong>de</strong> complexos “homem-esporte-saú<strong>de</strong>”, que não se restringeao conhecimento corporal, biológico, aos fatores <strong>de</strong> riscopara a saú<strong>de</strong> e como preveni-los com “ativida<strong>de</strong>s físicas”. Deveráfazê-lo em perspectiva crítico-superadora conforme proposição<strong>de</strong>fendida pelo Coletivo <strong>de</strong> Autores (1992). Deverá fazêlo,não mais i<strong>de</strong>alisticamente e com base na i<strong>de</strong>ologia dahigienização e da eugenização, mas sim, na perspectivaemancipatória. Isso implica em radicalizar a crítica ao modocomo o capital organiza e <strong>de</strong>strói a vida digna <strong>de</strong> todos e propora superação.ReferênciasANTONOWSKY, A. Health, Stress and Coping: New Perspektiveson Mental and Physical Well-Being. San Francisco, Washington,London, 1979.______. Unraveling the mystry of health: How people managestess and stay well. San Francisco: Jossey – Bass, 1987.BASSOLI, A. O tema saú<strong>de</strong> na Educação Física Escolar: umavisão patogenética ou salutogenética? In: KUNZ, E;HILDEBRANT-STRAMANN. Intercâmbio Científico Internacionalem Educação Física e Esporte. Ijuí: Unijuí. 2004.BOURG, Jean-François. Recor<strong>de</strong>s a qualquer preço. Atenção, SãoPaulo, v. 1, p. 60-64, nov. 1995.180


Sobre o Sistema <strong>de</strong> Complexos Homem-Esporte-Saú<strong>de</strong>: reflexões a partir <strong>de</strong>contribuições da AlemanhaBRODTMANN, D. O que mantém as crianças e os jovens maissaudáveis? Novas maneiras <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a saú<strong>de</strong> e suasconseqüências para a promoção e educação da saú<strong>de</strong>. In:BUYTENDIJK; F. J. J. Allgemeine Theorie <strong>de</strong>r menschlichenHaltung und bewegung. Berlin: Götting, Hei<strong>de</strong>lber. 1956.BUYTENDIJK; F. J. J. Allgemeine Theorie <strong>de</strong>r menschlichenHaltung und bewegung. Berlin: Götting, Hei<strong>de</strong>lber. 1956.CHESNAIS, F. A Mundialização do Capital. São Paulo: Xamã,1996.COLAVOLPE, C. R.; TAFFAREL, C. Z. Sistema <strong>de</strong> ComplexoTemático: uma contribuição para o <strong>de</strong>bate <strong>de</strong> reestruturaçãocurricular do Curso <strong>de</strong> Educação Física da UFBA. 2005Disponível em: .Acesso em: 11 jan. 2006.COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do Ensino da educaçãofísica. São Paulo, Cortez. 1992.DIECKERT, J. Sozialerziehung – aber wie macht man das? In: Zs.Betrifft Sport 5, S. 5-17. 2000._______. Mensch – Sport – Gesundheit. 2002. In: Bayernturner 3.9-12, 2002.HILDEBRANDT-STRAMANN, R.Textos pedagógicos sobre oensino da Educação Física. 2. ed. Ijuí: Unijuí. 2003.KUNZ, E. Transformação didático-pedagógica do esporte. 5. ed.,Ijuí: Unijuí, 2003.______. Esclarecimento e Emancipação. In: Revista Movimento.UFRGS – Ano V, v. 5, n. 10, pp. 35-39, 1999/1._____. Educação Física: ensino e mudança. 2. ed. Ijuí: Unijuí.2001.181


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>KUNZ, E.; TREBELS, A. Gesundheit – mehr als eineSinnperspektive für <strong>de</strong>n Sportunterricht? In: BACH, I.;SIEKMANN, H. Bewegung im Dialog. Hamurg, Czwalina. 2003.______. Educação Física Crítico-Emancipatória: uma perspectivada pedagogia dos esportes da Alemanha. Ijuí: Unijuí, 2006.KUNZ, E.; SANTOS, L. M. E. Ministério da Saú<strong>de</strong> adverte: “viveré prejudicial à saú<strong>de</strong>”. In: Anais do XIV Congresso brasileiro <strong>de</strong>ciências do esporte e I Congresso Internacional <strong>de</strong> ciências doesporte, 2005, Porto ALegre, RS. Porto Alegre: UFRGS, v. 01. p.59-68, 2005.MANACORDA.M. A. História da educação: da antiguida<strong>de</strong> aosnossos dias, São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1989.______. Marx e a pedagogia mo<strong>de</strong>rna. São Paulo: Cortez/AutoresAssociados, 1991.MARX, K.; ENGELS, F. A i<strong>de</strong>ologia Alemã. São Paulo: Hucitec.1987.MATSUDO, S. Andra<strong>de</strong>, D. et al. Promoção da saú<strong>de</strong> mediante oaumento do nível <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> física: a proposta do programaAgita São Paulo. Revista Âmbito Medicina esportiva. v. 7, pp.253-261. 2001.MATSUDO, V. A experiência do Agita São Paulo na promoção daativida<strong>de</strong> física como instrumento <strong>de</strong> combate à obesida<strong>de</strong>infanto-juvenil. Revista Brasileira <strong>de</strong> Educação Física Esporte,São Paulo, v. 20, p. 35-36, set. 2006. (Suplemento n. 5. 35. XICongresso Ciências do Desporto e Educação Física dos países <strong>de</strong>língua portuguesa).MÉSZÁROS, I. A teoria da Alienação em Marx. São Paulo:Boitempo, 2005.182


Sobre o Sistema <strong>de</strong> Complexos Homem-Esporte-Saú<strong>de</strong>: reflexões a partir <strong>de</strong>contribuições da AlemanhaNOZAKI, Hajime Takeuci. Educação física e reor<strong>de</strong>namento nomundo do trabalho: mediações da regulamentação da profissão.Niterói: UFF, 2004.ORÇAMENTO 2007. O que fará Lula? In: Boletim da Corrente.O Trabalho do Partido dos trabalhadores, n. 612, 28 nov./ 13<strong>de</strong>z. p. 3, 2006.PISTRAK, M. Fundamentos da escola do trabalho. São Paulo: ed.Expressão Popular. 2000.SHARDAKOV, M. N. Desarrollo <strong>de</strong>l pensamiento en el escolar.Habana: Editorial <strong>de</strong> Libros para la Educación, 1968.SILVA, J.G. Ativida<strong>de</strong> Física, Saú<strong>de</strong> e Cultura Corporal: o embateteórico a partir das publicações da revista brasileira <strong>de</strong> ciência doesporte – RBCE (2000-2003). UFBA. Monografia. Curso <strong>de</strong>Especialização em Metodologia do Ensino e da Pesquisa emEducação Física Esporte e Lazer. Salvardor/ Bahia. 2006.TAMBOER, J. Movimentar-se: um diálogo entre homem e mundo.Mar. 1979. (livre tradução <strong>de</strong> Sportpädagogik, 2/79, Seelze,Friedrich Verlag, 1979.TAFFAREL, C. Z.; MORAES, D. Cultura corporal e saú<strong>de</strong>: umestudo a partir das abordagens epistemológicas das pesquisasrealizadas no Brasil. Salvador/BA UFBA. Anais Seminárioestudantil <strong>de</strong> Pesquisa VII Seminário <strong>de</strong> Pesquisa e Pósgraduação(VII SEMPPG). XXV Seminário Estudantil <strong>de</strong> Pesquisa(XXV SEMEP), 2006.TOGNOLLI, Cláudio. A vietnamização dos corpos. In: CarosAmigos. Ano IV, n. 44, nov., p. 44, 2000.TREBELS, A. H. Playdoyer para um diálogo entre teorias domovimento humano e teorias do movimento do esporte. RevistaBrasileira <strong>de</strong> Ciências do Esporte, v. 13, n. 3, p. 338-344,jun.1992.183


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Declaración <strong>de</strong> CuencaDes<strong>de</strong> 82 países <strong>de</strong> todo el mundo, 1492 personas seencontraron en la segunda Asamblea <strong>de</strong> la Salud <strong>de</strong> los Pueblosen Cuenca, Ecuador <strong>de</strong>l 17 al 22 <strong>de</strong> julio <strong>de</strong> 2005 para analizarlos problemas <strong>de</strong> salud globales y <strong>de</strong>sarrollar estrategias quepromuevan la Salud para Todo/as.Por ovación reafirmamos la importancia <strong>de</strong> la Declaraciónpor la salud <strong>de</strong> los Pueblos (2000) la que continuamos viendocomo un documento <strong>de</strong> llamado a la acción en las diferentesluchas en que nuestro Movimiento está involucrado, <strong>de</strong>l nivellocal al nivel global.La visión aprobada en la Segunda Asamblea Mundial <strong>de</strong>la Salud <strong>de</strong> los Pueblos (Cuenca) es la <strong>de</strong> un mundo social yeconómicamente más justo en que prevalezca la paz; un mundoen que todas las personas, in<strong>de</strong>pendientemente <strong>de</strong> sucondición económica y social, genero, i<strong>de</strong>ntidad cultural y habilida<strong>de</strong>ssean respetadas y sean capaces <strong>de</strong> exigir su <strong>de</strong>recho ala salud; y un mundo en que la gente celebre la vida, lanaturaleza y la diversidad.Solidarizamos con las luchas <strong>de</strong>l EcuadorAquí en el corazón <strong>de</strong> los An<strong>de</strong>s hemos aprendido mucho<strong>de</strong> la hospitalidad, la herencia cultural viva y las luchas <strong>de</strong>nuestras hermanas y hermanos ecuatorianos. Nos unimos aellos en solidaridad al oponernos al TLC propuesto por elgobierno <strong>de</strong> los EEUU y las IFIs. Este tratado solo aumentarálas ganancias <strong>de</strong> corporaciones y empobrecerá aun más a lostrabajadores, campesinos e indígenas <strong>de</strong> los An<strong>de</strong>s, al mismo184


Declaración <strong>de</strong> Cuencatiempo que impedirá su acceso a la atención a la salud. Tambiénnos unimos a nuestros hermanos andinos oponiéndonos al PlanColombia, nombre dado a la guerra biológica llevada a cabocontra ellos por los EEUU, y que está envenenando sus tierrasy su agua, al igual que militarizando las fronteras.La realidad <strong>de</strong>l la salud a nivel globalDeploramos el empeoramiento <strong>de</strong> las condiciones <strong>de</strong> saludque sufren la mayoría <strong>de</strong> la población <strong>de</strong>l mundo y <strong>de</strong>nunciamossu causa -el neoliberalismo. Las políticas neoliberalesimpuestas por el Grupo <strong>de</strong> los Ocho (G8) transfieren riqueza<strong>de</strong>l Sur hacia el Norte, <strong>de</strong> pobres a ricos y <strong>de</strong>l sector público alprivado. Las ganancias <strong>de</strong> las corporaciones aumentan mientrasque la gente pobre los indígenas y las victimas <strong>de</strong> la guerra yocupación sufre.Las inequida<strong>de</strong>s en salud generadas económica ypolíticamente han aumentado, sin embargo las causas básicas<strong>de</strong> enfermedad y muerte prevenibles no son abordadas <strong>de</strong>manera efectiva por las políticas y los programas actuales. Elespíritu <strong>de</strong> Alma Ata se ha traicionado por la mayor parte <strong>de</strong>los sistemas <strong>de</strong> salud oficiales a pesar <strong>de</strong> que se mantenidovivo incluso ante la adversidad por el esfuerzo <strong>de</strong> activistas ytrabajadores <strong>de</strong> la salud activos en proyectos a nivel <strong>de</strong> lacomunidad en todo el mundo. La atención primaria integral <strong>de</strong>salud esta siendo aplicada solo en pocos lugares y la provisión<strong>de</strong> servicios <strong>de</strong> salud es raramente vista como unaresponsabilidad social colectiva. Bajo el neoliberalismo no hay<strong>de</strong>recho a la salud, se fomenta el racismo, se profundiza laopresión <strong>de</strong> las mujeres, aumenta la exclusión social, la<strong>de</strong>gradación <strong>de</strong>l ambiente se vuelve una norma, no se respetan185


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>los <strong>de</strong>rechos <strong>de</strong> los trabajadores y la guerra es solo otro negocio.Los Gobiernos, las Instituciones Financieras Internacionales(IFIs), la OMS, las agencias bilaterales y multilaterales estánfuertemente influenciadas por las agendas corporativas.Establecer el <strong>de</strong>recho a la salud en esta era <strong>de</strong>globalización hegemónica es una obligaciónEl MSP convoca a los pueblos <strong>de</strong>l mundo a movilizarseante el asalto al <strong>de</strong>recho a la salud. El marco global <strong>de</strong>lneoliberalismo, la privatización y el “libre comercio”, empujadospor la OMC y las instituciones financieras internacionales, hajugado un papel <strong>de</strong>terminante en la transferencia al sectorcorporativo <strong>de</strong>l control <strong>de</strong> los <strong>de</strong>terminantes <strong>de</strong> la salud. Estoha resultado en la <strong>de</strong>gradación <strong>de</strong>l medio ambiente, lacontaminación ambiental con tóxicos, la negación <strong>de</strong> los<strong>de</strong>rechos al agua, la comida y a la propia vida. El <strong>de</strong>recho a lasalud y a los cuidados <strong>de</strong> salud <strong>de</strong>be ser más importante quelas ganancias <strong>de</strong> las corporaciones, especialmente las casasfarmacéuticas que lucran en <strong>de</strong>masía. De Facto, La OMC operacomo un gobierno a pesar <strong>de</strong> no ser un cuerpo electo; por lotanto es no representativo y no le respon<strong>de</strong> a ningún grupoelector constituyente. La responsabilidad por el comercio y el<strong>de</strong>sarrollo internacional <strong>de</strong>be ser nuevamente dada a losciudadanos a través <strong>de</strong> la agencia más relevante <strong>de</strong> la NacionesUnidas, el UNCTAD. A no ser que se le reforme masivamentepara que opere <strong>de</strong>mocráticamente, la OMC <strong>de</strong>bería ser abolidaya que es una fuente importante <strong>de</strong> violaciones a los <strong>de</strong>rechoshumanos y <strong>de</strong> injusticia social, a la vez que un mecanismoimportante <strong>de</strong> control corporativo <strong>de</strong> la vida en el mundo.186


Declaración <strong>de</strong> CuencaEl <strong>de</strong>recho a la salud <strong>de</strong>be lograrse a través <strong>de</strong> unamovilización popular amplia. El MSP iniciara o se unirá a luchaspor el <strong>de</strong>recho al agua, por la seguridad y soberanía alimentaria,por un medio ambiente saludable, por el trabajo y lavivienda dignas, por una educación universal y la igualdad <strong>de</strong>genero. Todo esto, ya que la salud <strong>de</strong> las personas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>de</strong>l logro <strong>de</strong> éstos <strong>de</strong>rechos. El MSP lanzará una CampañaGlobal por el Derecho a los Cuidados <strong>de</strong> Salud a todos nivelespara así <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r la salud y la seguridad social (que incluye ala salud). El MSP documentara y se opondrá activamente a lasviolaciones al <strong>de</strong>recho a la salud y a la inequidad que estasrepresentan. El MSP <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rá a los trabajadores <strong>de</strong> salud públicaen su oposición a la privatización <strong>de</strong> los servicios <strong>de</strong> salud,para ello construyendo alianzas multisectoriales amplias.El MSP organizará campañas para oponerse y acabar conlos TRIPS y para remover los mismos <strong>de</strong> la agenda <strong>de</strong> la OMC.Se opondrá también a los TLCs y el TRIPS+. Llamamos a losgobiernos a usar los acuerdos <strong>de</strong> Doha para darles a susciudadanos medicamentos genéricos al alcance <strong>de</strong>l bolsillo. ElMSP se opone a<strong>de</strong>más en principio los partenariados <strong>de</strong>l sectorpúblico con el privado porque este último sector no <strong>de</strong>be tenerrealmente lugar alguno en la preparación <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> saludpública. El MSP continuará su colaboración con y el monitoreo<strong>de</strong> la Comisión sobre los Determinantes Sociales <strong>de</strong> Salud <strong>de</strong>la OMS para asegurarse que se abogue efectivamente por atacarlas causas políticas y socioeconómicas <strong>de</strong> la pobreza y lafalta <strong>de</strong> salud e inequida<strong>de</strong>s en los sistemas <strong>de</strong> salud. El MSPtrabajara con sus aliados estratégicos para coordinar accionescomunes contra la privatización y regímenes inequitativos en elámbito internacional.187


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Promover la salud en un contexto interculturalEl MSP reconoce que la interculturalidad es un elementofundamental para promover equidad social y construir un sistema<strong>de</strong> salud justo. La equidad en el acceso a información ensalud es un <strong>de</strong>recho humano y es esencial para los pueblosindígenas. Se <strong>de</strong>be empezar por incorporar los diferentes saberes<strong>de</strong> los pueblos para <strong>de</strong>sarrollar sistemas <strong>de</strong> salud culturalmenteapropiados y equitativos; programas <strong>de</strong> prevención culturalmentea<strong>de</strong>cuados; capacitación <strong>de</strong> trabajadores/as <strong>de</strong> lasalud en habilida<strong>de</strong>s para la interculturalidad; condiciones <strong>de</strong>trabajo justas; seguridad nutricional; y el <strong>de</strong>sarrollo <strong>de</strong> unecosistema saludable. El MSP incorporará temas clave comola lucha contra los Tratados <strong>de</strong> Libre Comercio, reforma agrariay restauración <strong>de</strong> la tenencia <strong>de</strong> la tierra a los pueblos indígenas,protección contra el saqueo <strong>de</strong>l conocimiento ancestralcomo una <strong>de</strong>fensa fundamental <strong>de</strong> la seguridad social, i<strong>de</strong>ntidadcultural y seguridad nutricional. Los muchos aspectos positivos<strong>de</strong> la medicina tradicional y las culturas locales <strong>de</strong>ben serrescatados e incluidos como parte <strong>de</strong> un sistema <strong>de</strong> saludcentrado en las necesida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>l pueblo.Avance <strong>de</strong>l <strong>de</strong>recho a la salud para todos/as enun contexto <strong>de</strong> diversidad <strong>de</strong> género y sexual.La salud <strong>de</strong> las mujeres, <strong>de</strong> hombres y <strong>de</strong> personas en sudiversidad sexual está gravemente afectada por el predominio<strong>de</strong> una cultura patriarcal con inequida<strong>de</strong>s sociales y <strong>de</strong> géneroy discriminación que afecta su integridad. Los <strong>de</strong>rechos sociales,a la salud, sexuales y reproductivos <strong>de</strong> las mujeres les son negados.El MSP se compromete a incorporar la transversalización188


Declaración <strong>de</strong> Cuenca<strong>de</strong> la perspectiva <strong>de</strong> género y la perspectiva feminista en todoslos ejes <strong>de</strong> trabajo y planes <strong>de</strong> acción. Los hombres y mujeres<strong>de</strong> la ASP2 se comprometen a reconstruir sus relacionespatriarcales en la vida privada y pública. Esta Asamblea <strong>de</strong>mandael <strong>de</strong>smantelamiento <strong>de</strong> las políticas neoliberales quehan profundizado la inequidad <strong>de</strong> género. Para esto apoyarálas campañas internacionales, regionales y locales a favor <strong>de</strong>los <strong>de</strong>rechos sexuales y reproductivos; fortalecerá lacomunicación y relación con otras re<strong>de</strong>s y movimientos; ytrabajará para asegurar el acceso al aborto seguro a las mujeresy niñas. El MSP <strong>de</strong>nuncia firmemente todas las formas <strong>de</strong>violencia basada en género, incluyendo los feminicidios y <strong>de</strong>mandaque los gobiernos tomen medidas preventivas, persiga ycastiguen a los responsables y les brin<strong>de</strong>n todos los apoyos querequieren las mujeres afectadas.Las personas con discapacida<strong>de</strong>s y las personas <strong>de</strong> latercera edad <strong>de</strong>berán ser tratadas con respeto y su respectivo<strong>de</strong>recho a cuidados <strong>de</strong> salud apropiados <strong>de</strong>berá ser asegurado.El MSP apoya la Convención <strong>de</strong> las NNUU que protege ypromueve los <strong>de</strong>rechos <strong>de</strong> las personas con discapacida<strong>de</strong>s,que promueve los servicios <strong>de</strong> rehabilitación como parteindivisible <strong>de</strong> los cuidados <strong>de</strong> salud primaria, y urge a la Comisión<strong>de</strong> los Determinantes Sociales <strong>de</strong> la Salud a focalizar susesfuerzos en las personas con discapacida<strong>de</strong>s. El MSP esta afavor <strong>de</strong> incluir a las personas con discapacida<strong>de</strong>s en todos losaspectos <strong>de</strong> la vida cotidiana y recomienda que lasdiscapacida<strong>de</strong>s sean tratadas <strong>de</strong> la misma forma que lo sonlos aspectos <strong>de</strong> genero por las agencias donadoras <strong>de</strong> maneraque su <strong>de</strong>sarrollo sea asegurado y protegido.189


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Proteger el <strong>de</strong>recho a la salud en el contexto<strong>de</strong> la <strong>de</strong>gradación ambientalEl MSP llama a los pueblos <strong>de</strong>l mundo a apoyar accionesconcretas para terminar con el control imperialista sobre losrecursos naturales para así crear y mantener un ambientesaludable para todos y todas. Los recursos naturales son bienespúblicos. Llamamos a una campaña mundial por una Tratado<strong>de</strong> las Naciones Unidas sobre el Derecho al Agua, asegurandoque este recurso vital -la vida misma- nunca será usado comouna mercancía o será privatizado. Guiados por evi<strong>de</strong>ncia <strong>de</strong>ldaño <strong>de</strong>structivo y el principio precautorio, <strong>de</strong>mandamos unamoratoria sobre la minería <strong>de</strong> extracción y la exploración <strong>de</strong>lpetróleo, sobre la investigación en nanotecnologia y unaprohibición <strong>de</strong> patentar las formas y procesos <strong>de</strong> vida, laliberación al medio ambiente <strong>de</strong> organismos genéticamentemodificados y sobre el <strong>de</strong>sarrollo y el uso <strong>de</strong> todas las armasquímicas. Los gobiernos <strong>de</strong>berán rendir cuentas al pueblo y noa las corporaciones transnacionales y <strong>de</strong>berán asegurar los<strong>de</strong>rechos relacionados a la salud y a un ambiente sano medianteleyes y reglamentos que se puedan aplicar. Los gobiernos,las IFIs y la OMC <strong>de</strong>ben <strong>de</strong>jar <strong>de</strong> ser cómplices <strong>de</strong> lascorporaciones transnacionales (CTNE) y el imperialismo. Elconocimiento y la ciencia <strong>de</strong>ben <strong>de</strong> ser reclamados como unbien público y ser liberados <strong>de</strong>l control corporativo.190


Declaración <strong>de</strong> CuencaAsegurar la salud <strong>de</strong> los trabajadores<strong>de</strong>fendiendo y ampliando los <strong>de</strong>rechos que yahan alcanzadoEl MSP hace un llamado a los pueblos <strong>de</strong>l mundo a <strong>de</strong>mandarla implementación <strong>de</strong> tratados internacionales queprotejan la salud y a seguridad laboral <strong>de</strong> los trabajadores,reconozcan la salud <strong>de</strong> los trabajadores como un <strong>de</strong>recho humanouniversal y la responsabilidad <strong>de</strong>l estado; también llamaa involucrar a los trabajadores en los procesos <strong>de</strong> toma <strong>de</strong><strong>de</strong>cisión y <strong>de</strong> formulación <strong>de</strong> políticas sobre las condiciones <strong>de</strong>trabajo y <strong>de</strong> salud, y que prohíban el trabajo infantil. Apoyamosla abogacía que asegure que exista un pago igual por igualtrabajo para hombres y mujeres, la protección <strong>de</strong> logroshistóricamente alcanzados por los sindicatos en el sector informal;también apoyamos la renovación y fortalecimiento <strong>de</strong> lossindicatos, los movimientos <strong>de</strong> trabajadores y <strong>de</strong> lasorganizaciones anti-globalización al igual que sus relaciones conotros movimientos; a<strong>de</strong>más es importante para el MSP laprotección <strong>de</strong> la salud <strong>de</strong> los trabajadores en el sector informaly <strong>de</strong> los migrantes que estén más expuestos a los riesgos <strong>de</strong>salud ocupacional, y la i<strong>de</strong>ntificación <strong>de</strong> mecanismos alternativos<strong>de</strong> seguro para asegurar los <strong>de</strong>rechos a la salud.Defen<strong>de</strong>r el <strong>de</strong>recho a la salud ante la realidad<strong>de</strong> la guerra, la militarización y la violenciaEl MSP hace un llamado a los pueblos <strong>de</strong>l mundo aoponerse a la guerra y la militarización como también a losinaceptables ataques a la salud <strong>de</strong> los pueblos, en especial lasalud <strong>de</strong> las mujeres y <strong>de</strong> los pobres. Mientras que los ataques191


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>terroristas en Nueva York, Madrid y Londres causaron un dañonojustificable, la “guerra <strong>de</strong>l terror” li<strong>de</strong>rada por los EstadosUnidos ha generado una aun mas terrible y no-justificable guerrasin fin en poblaciones in<strong>de</strong>fensas con el afán <strong>de</strong> controlar recursosnaturales. Al mismo tiempo, guerras que han costadomillones <strong>de</strong> vidas no son reconocidas ya que el sistema <strong>de</strong> lasNaciones Unidas y nuestros gobiernos permiten que continúensin cesar.El MSP continuará a participar en el movimiento globalpara terminar la ocupación <strong>de</strong> los Estados Unidos en Afganistán.Tropas extranjeras <strong>de</strong>berían ser removidas <strong>de</strong> manera inmediatay reparaciones pagadas por el daño causado por la guerra li<strong>de</strong>radapor los Estados Unidos. El MSP hace un llamado pararealizar una investigación en el uso <strong>de</strong> la tortura por soldadosestadouni<strong>de</strong>nses y <strong>de</strong> personal medico en Guantánamo Bay,en Irak y en Afganistán. Demandamos que el personal médicose niegue <strong>de</strong> participar en <strong>de</strong>tenciones ilegales y en tortura. LosEstados Unidos y sus aliados <strong>de</strong>ben ser acusados por violaciones<strong>de</strong> las Convenciones <strong>de</strong> Ginebra por sus ataques a la poblacióncivil, en particular a personal <strong>de</strong> salud y a instituciones en Irak.El MSP hace un llamado a las Naciones Unidas y a agenciashumanitarias <strong>de</strong> intervenir <strong>de</strong> manera efectiva en las “guerraslentas” en el Congo, en el Sudan, en Chechenia y variosotros lugares y <strong>de</strong> promover una paz permanente a través <strong>de</strong> lareconciliación política y <strong>de</strong> programas económicos y sociales quepuedan transformar las causas subyacentes <strong>de</strong> estas guerras.El MSP se opone a la ocupación Israelí <strong>de</strong> Palestina y alos esfuerzos <strong>de</strong> aislar y <strong>de</strong> poner en ghettos a la poblaciónPalestina <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> la muralla ilegal <strong>de</strong> separación. La negación<strong>de</strong> los <strong>de</strong>rechos <strong>de</strong> salud Palestinos en el West Bank y Gaza haalcanzado proporciones <strong>de</strong> emergencia.192


Declaración <strong>de</strong> CuencaEl MSP apoya los pasos hacia la <strong>de</strong>mocracia y la auto<strong>de</strong>terminaciónrealizados por los pueblos indígenas <strong>de</strong>l sur <strong>de</strong>México, y hace un llamado para concluir el conflicto <strong>de</strong> bajaintensidad librada contra ellos por el gobierno Mexicano.El MSP <strong>de</strong>nuncia la guerra biológica llamada PlanColombia que actualmente es librada en contra <strong>de</strong>l pueblo enColombia, Ecuador y Perú bajo la apariencia <strong>de</strong> un control <strong>de</strong>la droga. Estas acciones contravienen convencionesinternacionales, y causan un daño irreversible a la saludambiental y humana en la región.El MSP hace a<strong>de</strong>más un llamado a los Estados Unidos aasumir responsabilidad por y <strong>de</strong> compensar a las victimas <strong>de</strong>lAgente Orange en Vietnam, y la contaminación toxica causadapor las bases militares <strong>de</strong> EE.UU. en las Filipinas y enotras partes.La lucha por los cuidados <strong>de</strong> salud primaria integrales ypor sistemas <strong>de</strong> salud locales <strong>de</strong> calidad, eficientes y sostenibles.El MSP reconoce que las políticas neoliberales han resultadoen caída en las inversiones en el sector público <strong>de</strong> la salud;que se ha promovido un número limitado <strong>de</strong> intervencionestécnicas mayoritariamente curativas elegidas más que nadasobre la base <strong>de</strong> una muy restringida y a veces inapropiadaaplicación <strong>de</strong> los análisis <strong>de</strong> costo-efectividad; que se han ignoradoconsi<strong>de</strong>raciones ambientales; que se ha acelerado lamigración <strong>de</strong> trabajadores <strong>de</strong> la salud <strong>de</strong>l sector público al privado<strong>de</strong> países más ricos; y la proliferación <strong>de</strong>l SIDA especialmenteen África ha llevado al colapso <strong>de</strong> los servicios <strong>de</strong> saludpublica en muchos países.193


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>El MSP llama a nuestros gobiernos nacionales a:• Implementar una salud primaria basada en lacomunidad que incluya los sectores relevantes y queesto sea sustentado por una legislación correspondiente.• Proveer ambientes <strong>de</strong> trabajo y <strong>de</strong> vida saludables querespeten y garanticen los <strong>de</strong>rechos a salud <strong>de</strong> todos.• Establecer e implementar un sistema universal <strong>de</strong>financiamiento <strong>de</strong> servicios <strong>de</strong> salud a nivel nacionalen c/u <strong>de</strong> nuestros países que proteja a los más pobresy vulnerables.• Urgentemente resolver la crisis <strong>de</strong> recursos humanosen salud a través <strong>de</strong> mejorías <strong>de</strong> sus niveles <strong>de</strong> salarios,sus condiciones <strong>de</strong> trabajo, su formación, supervisióny soporte; en especial, se <strong>de</strong>berá implementar un códigointernacional <strong>de</strong> prácticas éticas en lacontratación <strong>de</strong> personal que incluya unacompensación financiera a los países exportadores <strong>de</strong>personal, que facilite el retorno <strong>de</strong> éste personal através <strong>de</strong> incentivos y que establezca un fondo globalpara éstos efectos.• Asegurar una difusión <strong>de</strong> los conocimientos sobre elstatus <strong>de</strong>l VIH y acceso a oportunida<strong>de</strong>s paraexámenes voluntarios, al igual que acceso equitativo,al alcance <strong>de</strong>l bolsillo y sostenible a los medicamentosARV con un énfasis adicional en la prevención yen los cuidados <strong>de</strong> salud domiciliarios incluyendoservicios sociales.• El MSP llama a la OMS a apoyar activamente y promoverlas medidas aquí mencionadas como respon-194


Declaración <strong>de</strong> Cuencasabilida<strong>de</strong>s-<strong>de</strong>-los-gobiernos-miembros; a<strong>de</strong>más laOMS <strong>de</strong>berá requerir que se levanten las barreraseconómicas y políticas que se encuentran a todo nively que afectan negativamente las políticas sociales <strong>de</strong>los estados miembros• El MSP continuará a enfatizar en las comunida<strong>de</strong>s lanecesidad <strong>de</strong> monitorear las políticas y los procesos<strong>de</strong> su generación a nivel <strong>de</strong> gobierno y así hacer a losgobiernos responsables <strong>de</strong> sus acciones a favor <strong>de</strong> laequidad en salud. El MSP se compromete a recogerexperiencias positivas sobre salud primaria entre susmiembros para así aumentar la base <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>ncias afavor el enfoque <strong>de</strong> salud primaria y po<strong>de</strong>r abogarpor su revitalización.• Finalmente, El MSP saluda y apoya el fuerte enfoque<strong>de</strong> justicia social aplicado a la salud en Venezuela yCuba, enfoques que nos inspiran en nuestra luchapor la Salud Para Todos.Apoyo al crecimiento <strong>de</strong>l MSPEl MSP es una red y un movimiento que tiene como misiónel fortalecimiento <strong>de</strong> un movimiento más amplio <strong>de</strong> personas yorganizaciones <strong>de</strong> todo el mundo que luchan por el <strong>de</strong>recho ala salud. El MSP esta comprometido con la Declaración <strong>de</strong> laSalud <strong>de</strong> los Pueblos e incluye círculos por países y temáticos,así como afiliados que están activamente involucrados paraque el trabajo <strong>de</strong>l MSP avance. Más allá <strong>de</strong> este grupo central<strong>de</strong> activistas <strong>de</strong>l MSP están los amigos/as <strong>de</strong>l MSP y los aliados/asen todos los niveles.195


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Otro mundo es posible --estas son nuestrasestrategias para lograrlo!Esta <strong>de</strong>claración insta a los activistas <strong>de</strong> la salud <strong>de</strong> todoel mundo a organizarse, influir, hacer abogacía, analizar y educarpara mejorar la salud <strong>de</strong> los pueblos. El Movimiento <strong>de</strong>Salud <strong>de</strong> los Pueblos:• se abocara a trabajar activamente en los aspectos <strong>de</strong>l<strong>de</strong>recho a la salud incluyendo <strong>de</strong>rechos individuales ycomunitarios• continuará luchando para mejorar sus formas <strong>de</strong>trabajo fortaleciendo su coordinación global y regional.Continuará <strong>de</strong>sarrollando procesos <strong>de</strong> toma <strong>de</strong><strong>de</strong>cisiones participativos y transparentes para que los/as activistas <strong>de</strong> todos niveles sepan que sus opinionesson tomadas en cuenta.• celebra la inauguración <strong>de</strong> la Universidad por la Salud<strong>de</strong> los Pueblos, una universidad para activistas <strong>de</strong>salud que organizó cursos en asociación con el MSPlocal y universida<strong>de</strong>s seleccionadas <strong>de</strong> todo el mundo.• promoverá el <strong>de</strong>bate con instituciones <strong>de</strong> formaciónpara <strong>de</strong>batir el dominio <strong>de</strong>l paradigma <strong>de</strong> atención ala salud. Desarrollará diversas estrategias parareorientar la educación <strong>de</strong> los trabajadores/as <strong>de</strong> lasalud hacia la atención primaria integral, manteniendoen el centro los intereses <strong>de</strong> la gente en las comunida<strong>de</strong>s.• se convertirá un foro para que intelectuales apoyen aactivistas locales en su acción y luchas.• retará a los medios <strong>de</strong> comunicación a diseminar suinformación y hacerle publicitar sus activida<strong>de</strong>s.196


Declaración <strong>de</strong> Cuenca• fortalecerá su estrategia <strong>de</strong> comunicación para llegara las comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> base.• traducirá el mayor número <strong>de</strong> comunicaciones posiblesen dos o más idiomas; establecerá una mezcla <strong>de</strong>páginas web globales y regionales/nacionales; elboletín <strong>de</strong>l MSP continuará como una publicacióntrimestral y será traducido a varios idiomas.A modo <strong>de</strong> resumen <strong>de</strong> la estrategia <strong>de</strong>l MSP para lospróximos años:• El MSP vinculará los niveles local, nacional y globalhaciendo llegar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> abajo las necesida<strong>de</strong>s sentidasy guiando al Movimiento en que acciones concentrarsetácticamente.• El MSP documentará, analizará y diseminará resultados<strong>de</strong> investigaciones sobre problemas claves <strong>de</strong> saludrelacionados con los principios <strong>de</strong> su Carta.• El MSP creará conciencia acerca <strong>de</strong> los problemas <strong>de</strong>salud más urgentes en el día a día y <strong>de</strong>slegitimizará y<strong>de</strong>smitificará los falsos argumentos, prescripciones yslogans usados por el Establishment.• El MSP trabajará directamente con las organizaciones<strong>de</strong> base y con comunida<strong>de</strong>s en su afán <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>rmejor sus problemas y creará partenariados que <strong>de</strong>nsoporte a activistas locales en su lucha.• El MSP fortalecerá su trabajo en todos los aspectos<strong>de</strong>l <strong>de</strong>recho a la salud y apoyara iniciativas quefortalezcan el <strong>de</strong>recho a los cuidados <strong>de</strong> salud a todosniveles.• El MSP trabajará sin <strong>de</strong>scanso para organizar unasolidaridad internacional con los oprimidos y con197


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>aquellos afectados por <strong>de</strong>sastres naturales y la guerracivil.• El MSP enfrentara las po<strong>de</strong>rosas fuerzas opresivas ensu lucha por la justicia económica, en especial a trabes<strong>de</strong> un apoyo a la cancelación <strong>de</strong> la <strong>de</strong>uda, a la luchapor abolir las condicionalida<strong>de</strong>s económicas <strong>de</strong> lasIFIs y al establecimiento <strong>de</strong> un régimen justo <strong>de</strong>tributación internacional.• El MSP incorporará en su trabajo todos los aspectosculturales y espirituales <strong>de</strong> la salud.• El MSP trabajará con gobiernos nacionales, agencias<strong>de</strong> las NN UU y otras agencias nacionales einternacionales en un afán <strong>de</strong> influenciar sus<strong>de</strong>cisiones.El po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>l Movimiento por la Salud <strong>de</strong> los Pueblos pue<strong>de</strong>cambiar el mundo. Otro mundo es posible; un mundo queincluye la salud para todos. Tenemos que <strong>de</strong>mandar y lucharpor un mundo en que la salud es consi<strong>de</strong>rada un <strong>de</strong>recho y noestá sujeta a las fuerzas <strong>de</strong>l neoliberalismo.Apoye y agregue su firma a la Carta <strong>de</strong> la Salud <strong>de</strong> losPueblos y la Campaña <strong>de</strong> un millón <strong>de</strong> firmas que pi<strong>de</strong> la saludpara todos ahora! Y únase a su grupo local <strong>de</strong>l MSP y a lasnuevas campañas y activida<strong>de</strong>s que se están iniciando.www.phmovement.orgCuenca, EcuadorJulio 22 <strong>de</strong> 2005198


Nosso manifesto pelo direito ao esporte no BrasilNosso manifesto pelo direito aoesporte no Brasil¹No Brasil, país com tantas belezas e riquezas,apesar <strong>de</strong> sermos campeões nos esportes,somos ao mesmo tempo recordistas mundiais em fome, miséria,<strong>de</strong>semprego, trabalho infantil, violência e... infelicida<strong>de</strong>!Então, lutamos por nosso direito ao esporteMas não aquele esporte que divi<strong>de</strong> os brasileiros em fortes efracos, vencedores e vencidos.Não queremos, nesse esporte, enxergar as pessoascomo adversários, mas sim como companheiros e companheiras<strong>de</strong> aprendizado.E nem queremos mais o esporte que nos ensine a competirpela sobrevivência.Mas sim aquele que nos ensine a estabelecer relações <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>.Como educadores, queremos ajudar os praticantes do esportea estranharem suas próprias dores, e a se emocionarem e sesensibilizarem com as dores e dificulda<strong>de</strong>s dos outros, no esportee fora <strong>de</strong>le!Lutamos pelo direito ao esporte que nos traga alegria.Mas não apenas aquela alegria fútil, passageira...do podium edas medalhas douradas.1 Texto do ví<strong>de</strong>o “La pérdida <strong>de</strong>l <strong>de</strong>recho al <strong>de</strong>porte en el Brasil”, apresentado em 18/07/2005 em Cuenca,Equador, na II Asamblea Mundial <strong>de</strong> la Salud <strong>de</strong> los Pueblos. Produzido por Edgard Matiello Júnior (e-mail:<strong>de</strong>gaufsc@gmail.com); Paulo Ricardo do Canto Capela (e-mail: pcapela@bol.com.br) e Diego S. Men<strong>de</strong>s(e-mail: diegomen<strong>de</strong>s20@hotmail.com).199


<strong>Ensaios</strong> <strong>Alternativos</strong> <strong>Latino</strong>-<strong>Americanos</strong> <strong>de</strong> Educação Física, Esportes e Saú<strong>de</strong>Queremos a alegria das verda<strong>de</strong>iras vitórias.Aquelas repletas <strong>de</strong> amor, <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> justiça.Aquelas vitórias que nos transformam por <strong>de</strong>ntro, que nos permitemser mais.Não apenas mais fortes e mais rápidos...mas sim, mais criativose conscientes.Queremos então nosso direito à consciência.Porque as i<strong>de</strong>ologias também são reproduzidas através do corpo.E o nosso corpo, o queremos brincante,movido por regras que nós mesmos faremos.E nos daremos o direito <strong>de</strong> mudá-las quando quisermos!E quando estivermos cansados, exaustos <strong>de</strong> tanto brincar,queremos nosso direito a assistir a um esporte.Não apenas aquele com lances mágicos, digno da genialida<strong>de</strong>dos esportistas,mas sim aquele em que os atletas, trabalhadores do esporte,não sejam massacrados, violentados em sua dignida<strong>de</strong>, exploradospelos “Senhores dos Anéis”.Queremos então enten<strong>de</strong>r o que há por trás do jogo,e o que está por <strong>de</strong>baixo do tapete ver<strong>de</strong>.Por fim, mas só para começar, queremos nosso direito à <strong>de</strong>rrota,porque há <strong>de</strong>rrotas que nos orgulham mais do que muitas vitórias.Queremos então nosso direito <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r uma, duas, três vezes,e <strong>de</strong> chegarmos até em último se for preciso e engraçado, massó quando quisermos...Porque queremos ver a vida <strong>de</strong> diferentes formas, inclusive doponto <strong>de</strong> vista dos que nunca subiram no ponto mais alto dasdisputas humanas.Porque é <strong>de</strong> lá que também se apren<strong>de</strong>que o ouro não vale a vida das pessoasmas que todas as pessoas valem ouro!200

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