11.07.2015 Views

Marco Antonio Mello - IFCS - UFRJ

Marco Antonio Mello - IFCS - UFRJ

Marco Antonio Mello - IFCS - UFRJ

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Maio 2010EntrevistaJornal da<strong>UFRJ</strong>13<strong>Marco</strong> FernandesDa reforma urbana do prefeito Pereira Passos, noinício do século XX, até os atuais projetos derevitalização de bairros decadentes, o Rio deJaneiro vem sendo produzido com odeslocamento dos pobres de áreas tidas comonobres. Foi como alternativa à captura da cidadepelo projeto de “modernização capitalista” quesurgiram e cresceram as favelas da cidade, naanálise do antropólogo <strong>Marco</strong> <strong>Antonio</strong> <strong>Mello</strong>,coordenador do Laboratório de EtnografiaMetropolitana (Lemetro) do Instituto de Filosofiae Ciências Sociais (<strong>IFCS</strong>) da <strong>UFRJ</strong>.Nesta entrevista ao Jornal da <strong>UFRJ</strong>, o pesquisadorexplica a origem do termo favela –“que passa aser definida sempre negativamente em relação àcidade formal” – e afirma que as relações entreesses territórios e o asfalto estão mais polarizadas.“Antes, não havia uma fronteira tãosimbolicamente estruturada em torno do medo eda ideia de ‘eles e nós’”, avalia <strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>, doutorem Antropologia, com pós-doutorado emSociologia na Universidade de Paris X-Nanterre. <strong>Marco</strong> <strong>Antonio</strong> <strong>Mello</strong>Entrevista


Jornal da14 <strong>UFRJ</strong>EntrevistaMaio 2010<strong>Marco</strong> FernandesSegundo ele, há uma produção deliberadade certa imagem negativa das favelas porparte da imprensa – “os jornais penduradosnas bancas são espantalhos urbanos” – quecontribui para criminalizar os seus moradores.Especialista em Antropologia e SociologiaUrbana, <strong>Mello</strong> critica, ainda, o retorno dapolítica de “remoção” para a realização de lucrodo capital imobiliário e do entretenimento eressalta que grandes cidades do mundo, comoo Rio de Janeiro, estão se transformando emcommodities.Cidades:Commodities para consumo?Coryntho BaldezJornal da <strong>UFRJ</strong>: Em maio, o Laboratóriode Etnografia Metropolitana realizou umColóquio comemorativo dos 50 anos de publicaçãodo estudo Aspectos Humanos daFavela Carioca, que será objeto de reportagemna nossa próxima edição. Essa podeser considerada a primeira pesquisa acercadas favelas no Brasil?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Essa foi realmente a primeiragrande pesquisa empírica realizadanas favelas do então Distrito Federal. Oestudo foi feito por encomenda da famíliaMesquita, dona do jornal O Estado de SãoPaulo, que contratou a Sagmacs, uma empresade pesquisa criada na França pelopadre dominicano Louis-Joseph Lebret.Para fazer o levantamento, essa empresase associou ao professor e sociólogo JoséArtur Rios. Depois de finalizada, O Estadode São Paulo publicou a pesquisa na íntegra,em duas edições, em 1960.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: Na época, eles se defrontaramcom que tipo de problema para levaradiante esse empreendimento?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Muitos. Um deles era a rejeiçãodo ensino universitário à pesquisaempírica e ao fato de um sociólogo seapresentar no espaço público oferecendoum serviço, uma expertise. Isso pareciaincongruente com o que se professava nassalas universitárias. Outro problema eraa inexistência, no Rio de Janeiro, de umamassa crítica de estudantes, de jovens pesquisadores,capacitados a trabalhar com achamada pesquisa empírica. Por isso, JoséArtur Rios foi a São Paulo, na Escola Livrede Sociologia e Política, coordenadapelo sociólogo norte-americano DonaldPearson, para contratar profissionais quedesenvolvessem essa metodologia dapesquisa empírica proposta, no início dosanos 1950, por Joseph Lebret.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: E qual é a importância deLebret para a compreensão da cidade contemporânea?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Ele foi autor do primeiromanual de pesquisa urbana em línguafrancesa, que inclui não apenas indicadoreseconômicos, mas também sociais. Issoera, até certo ponto, uma grande novidadenos quadros de uma Sociologia muitomais preocupada com o desenvolvimentoeconômico.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: Acerca das origens dasfavelas no Rio de Janeiro, há alguma relaçãoentre a chamada modernizaçãocapitalista promovida pela reforma dePereira Passos, no início do século XX,e a ocupação dos morros pela populaçãode baixa renda?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: O engenheiro Pereira Passosestudou no antigo Instituto Politécnico,no prédio do atual Instituto de Filosofiae Ciências Sociais (<strong>IFCS</strong>), onde estamosfazendo essa entrevista. Ele foi um homemmuito bem articulado acadêmica e tecnicamente.Passou muito tempo na Françaestudando as gares (grandes construçõesem ferro, aço e vidro) e os sistemas detransporte ferroviário, que constituíam ogrande exemplo de modernidade e racionalizaçãoda vida nas cidades. Pereira Passos,que também representava os interessescapitalistas e a especulação imobiliária,é nomeado prefeito por imposição do Clubede Engenharia. Durante o seu mandato,no quadriênio 1902 a 1906, o Rio vive umprocesso chamado de renovação urbanaassociado à reforma sanitária.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: Pereira Passos recebeucarta branca de Rodrigues Alves para fazeressa reforma?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Sim, ele inclusive impôsuma condição a Rodrigues Alves paraaceitar o cargo de prefeito: a de que nãoprecisasse consultar a Câmara Municipal.Obteve a concordância do presidente epassou a promover essa grande reformaurbana no Rio, inspirada na que foi realizadaem Paris, na segunda metade doséculo XIX, pelo então prefeito Georges-Eugène Haussmann, nomeado por NapoleãoIII.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: Esta reforma estava vinculadaà ideia de higienizar a cidade, o espaçopúblico, e afastar os moradores pobresdas chamadas áreas nobres?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Exatamente. Era um projetoque estava ligado à reforma sanitária,promovida por Oswaldo Cruz, que muitocedo enveredou pela discussão da chamadaMedicina Experimental, a partir dasdescobertas de Pasteur na área da Microbiologia.Ele implanta a vacinação obrigatória,que sofre resistência dos positivistas,que eram contrários ao aumento dopoder de polícia do Estado. O higienismoé muito importante posto que, com Pasteur,houve uma mudança na concepçãodo laço social. As fronteiras entre públicoe privado são alteradas radicalmente.Entre os indivíduos, que aparentementeeram mônadas separadas, passa a havercontinuidade, que é dada pelo inimigo dedentro, os micróbios. Então, o Estado vaireivindicar acesso às áreas que ele jamaistinha pensado em entrar, o que significadizer que o poder de polícia do Estado aumentasignificativamente.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: E o que isso representou?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Uma presença superlativado Estado na vida das pessoas, por meiodessas políticas de saúde, algo que não erabem visto pelos positivistas e grande partedos republicanos. Com a reforma urbana,vem, então, o chamado “bota-abaixo”, quese dirige a um sistema construído e antigo,os chamados cortiços e casas de cômodos,que são associados à insalubridade. Todoo modelo de vida que era peculiar nessashabitações também vai ser banido docentro urbano. É como se a política de renovaçãourbana associada ao sanitarismopudesse exorcizar todo o mal da cidade.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: E houve um aumento daocupação dos morros com a expulsão daspessoas que moravam em cortiços?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: A reforma urbana operadapor Pereira Passos altera a morfologiaurbana e social da cidade. Certamente,houve maior ocupação dos morros,que foi uma das alternativas para a populaçãoatingida pelo “bota-abaixo”.Ainda não existia o termo favela, queera uma fava pequena, como o feijão,que existia em um dos morros do arraialde Canudos (BA). Quando os combatentesde Canudos vêm para o Rio de Janeiro,eles vão para o morro da Providência.No entorno desse morro, inclusive, haviamuitas chácaras de famílias abastadas, entreelas a família que abrigou Machado deAssis. Era uma área de gente que morava


Maio 2010EntrevistaJornal da<strong>UFRJ</strong>15bem. Esses ex-combatentes se instalamno alto e, de lá, por analogia, começam adizer que o local se parecia com o morroda favela, de Canudos. Assim surgiu otermo e a categoria “favela”, que passa aser definida sempre em termos negativosem relação à cidade formal. As favelas nãoteriam ruas, mas becos. Não teriam casas,mas barracos, e assim por diante.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: Pode-se dizer que essaideia de “civilizar” a cidade, com a exclusãode setores de baixa renda, que marcoua gestão de Pereira Passos, contaminou opoder público desde então?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Creio que sim. O grandedístico da reforma de Pereira Passosé ‘O Rio civiliza-se’. Quer dizer, o Rionão precisa ser civilizado, ser desenvolvido,moderno, mas precisa parecerser desenvolvido e moderno. A palavracivilização, na língua francesa, está associadaao polimento de superfície depedra. Tanto que se diz: ‘fulano é muitocivilizado, muito polido’. Tinha-se queparecer civilizado por um problemaconcreto e gravíssimo. O Rio de Janeiroera um porto dos mais importantes dasAméricas e corria-se o risco de os navioso evitarem. Isso porque morriamtripulações inteiras de febre amarela noRio de Janeiro. Os grandes setores associadosà exportação e à importaçãocomeçam a pressionar o governo pormedidas na área da Saúde. Um exemploé a Escola de Enfermagem AnnaNery (EEAN), da <strong>UFRJ</strong>, que surge pararesolver problemas bastante concretosligados ao coração desse capitalismonascente.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: Foi essa a lógica queorientou a criação das primeiras leis noBrasil para tratar da questão social?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Essa é uma discussãomuito interessante porque frequentementeos pesquisadores passam longedela. Um colega do Lemetro, professorRafael Soares Gonçalves, discorre emseu livro, lançado em Paris recentemente,acerca da construção da favela comoobjeto jurídico. E o ponto central dasua tese é que a favela é produzida peloEstado. Seria talvez uma veleidade deminha parte comentar as leis porque háuma sucessão enorme de leis e decretospara regular, ou melhor, para impedira relação do resto da cidade com essasáreas chamadas de favelas.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: Dê alguns exemplos.<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: São leis que impedem,por exemplo, obras de melhorias namoradia e no acesso a essas áreas. Ouseja, o Estado precariza a habitação. Aofazê-lo, favorece o que chamamos de“favelização”. Esse processo, portanto,é derivado da incúria do poder públicoem relação à moradia como um direitofundamental, um direito à cidade. Osdispositivos legais, em diferentes momentos,tinham a finalidade, na verdade,de viabilizar uma relação com o capitalvinculado à especulação imobiliária.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: A favela sempre teve umapresença forte no imaginário carioca e foitema de várias manifestações culturais. Porexemplo, no cinema, os filmes Rio, 40 graus,de Nelson Pereira dos Santos, da década de1950, e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles,de 2003, retratam épocas distintas darealidade das favelas. É possível identificaro que mudou, de lá para cá, na sociabilidadedos moradores desses territórios?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Tanto Rio 40 graus, do nossoquerido Nelson Pereira dos Santos,como Cidade de Deus são obras de ficção,que tentam apreender, de modos distintos,a favela como um elemento associadoà própria imagem do Rio de Janeiro. Osquadros de Di Cavalcanti também fazemisso. Do ponto de vista da sociabilidade,há vários colegas queafirmam que houveuma grande transformaçãonesse tipo depadrão de relação interpessoale na relaçãoentre diferentes gruposurbanos que fazemparte da cidade. Háquem fale de “cidadepartida”. Há outros queinsistem em reeditar adiscussão de um historiadorfrancês, LouisChevalier, que escreveuum livro, há muitosanos, chamado Asclasses perigosas, umaobra que associa essesterritórios à criminalidade.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: A cidadede Rio 40 grausficou então para trás?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Um colegameu, o professor Luiz <strong>Antonio</strong> Machadoda Silva, cunhou a expressão de“sociabilidade violenta” para mostrar queas formas de sociabilidade registradas emRio 40 graus não vigem mais. Eu, particularmente,não tenho certeza disso, emboranão queira desqualificar os modos deapreender as transformações nas relaçõessociais que os sociólogos e antropólogos,que fazem pesquisas na área, têm trazidopara discussão. O que, de fato, parece seruma constatação banal, é que as relaçõessimbolicamente polarizadas entre a favelae o asfalto se alteraram. As relaçõeseram mesmo muito mais entremeadas,não havia nenhuma separação marcadapor uma fronteira tão simbolicamenteestruturada em torno do medo, da ideiade ‘eles’ e de ‘nós’. Ou seja, não eram relaçõesmarcadas por aquilo que podemoschamar de “aduanas urbanas”. Hoje, elasexistem tanto na relação com as eufemisticamentechamadas “comunidades”,como nos bairros dos bacanas. Há ruasque foram privatizadas, ou melhor, nasquais o uso foi particularizado, porque“Como planejarpolíticas públicasurbanas para a áreade transportes, porexemplo, se essafunção fica a cargo deempresas privadas?Como pensar emplanejamentohidroviário se odono da empresa detransporte por barcasé, também, o donoda Viação 1001?”não se trata de uma definição jurídica,mas diz respeito ao modo de uso do espaço.O espaço da rua é público, não privado,mas pode ser apropriado para usoparticular, por meio de cancelas, guaritas.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: Cite um exemplo.<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: A Selva de Pedra, no Leblon,que é um conjunto de 40 prédiosde 13 andares voltados para uma praçapública. Foi construída em ruas públicas.Esse lugar parece um condomínio fechado,mas não é. São ruas e praças públicas.Na Selva de Pedra, há guardas particularesem cabines, guaritas e uma parafernáliaeletrônica para controle de visitantes.Atrás das guaritas há uma placa onde se lê“logradouro público”, que foi colocada pordeterminação do Estado. Mas a verdade éque as pessoas são permanentemente dissuadidasde entrar ali.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: E nasfavelas, como a presençado tráfico e dasmilícias afeta a sociabilidadee o movimentocomunitário?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Umadas primeiras formasde atividade de trabalhoassociativo nasfavelas, como políticapública, foi desenvolvidapor José Artur Rios,que era o chamadomutirão. Quem trouxea discussão de mutirãofoi ele, com um argumentomuito simples.Nos anos 1950, a populaçãodas favelas doentorno da cidade aindatinham uma forteorigem rural. E a únicaforma de trabalho coletivoe associativo quepoderia ter apelo nessas favelas era o mutirão,já conhecida no mundo rural. Hoje,o movimento associativo sofre muito coma presença crescente dessa economia políticado tráfico que passa a controlar asassociações de moradores, na maioria doscasos. Eu já presenciei uma situação constrangedora.Em uma reunião, o pessoalda associação teve que ir pegar as chavesde um equipamento urbano público nasmãos de uma pessoa ligada ao tráfico.Isso acontece em várias favelas do Rio; asassociações foram “fagocitadas” pelo tráfico,que tem a persuasão impositiva dasarmas.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: E o outro lado da moeda,isto é, as execuções extrajudiciais, astorturas e os abusos de poder por parte dasforças policiais nas favelas? Até que pontoessas práticas são um meio para manter essessetores sob controle?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Isso envolve uma questãoligada ao caráter perverso de algumas daspolíticas públicas de segurança. Nuncapodemos esquecer de um dado fundamental,a associação do clientelismo e dotráfico com o aparato policial. O professorMichel Misse tem um argumento interessante.Ele chama de mercadoria políticaaquela oferecida pela polícia, na suafaceta informal, como milícia ou comocorrupção policial. Isto porque se trata devender proteção para mercados ilícitos,que comercializam drogas e armas. Paraprotegê-los, surge uma outra mercadoria,que tem um preço.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: E que papel tem a mídiano reforço desse tipo de política de segurançae de prática policial?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Essa agenda do medo tambémé produzida pela imprensa. Quandoexaminamos os arquivos do jornal Correioda Manhã, no Arquivo Nacional, apenasno que se refere às fotografias, podemosconstatar empiricamente a produçãodeliberada de certa imagem sobre a favela.Os jornais e suas manchetes funcionamcomo espantalhos urbanos. Os moradoresdas favelas são criminalizados e, por umprocesso de subjetivação extremamenteperverso, passam a se autoincriminar.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: Quais os efeitos disso notecido social?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Certamente, isso provocanas pessoas uma demanda por mais helicópterospoliciais, blindados, “caveirões”.A metáfora da guerra que vem sendoutilizada pela polícia e pela mídia, e queconvém muito em certas condições, é absolutamenteinadequada. Não há nenhumanalista sério que afirme que, de fato, existauma guerra. Essa metáfora da guerrasugere um inimigo, que é a favela. A solução,claramente falaciosa, passa a ser o usode tanques para subir as favelas. Passa ahaver um clamor para ‘remover’ as favelase as pessoas começam a dizer absurdos dotipo: ‘tem que jogar napalm nas favelas’. Afavela é demonizada.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: Em relação aos dados sobreviolência, há alguma maquiagem?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Esse é um problema. Oaparato policial no Rio de Janeiro resistiudurante muito tempo à estatística. Não épossível formular políticas públicas comprando“caveirão” e helicóptero sem mostraros dados, que muitas vezes apontamem outra direção. Por exemplo, no municípiode São Gonçalo, onde existem muitasfavelas e assentamentos de baixa renda,uma pesquisa empírica mostrou, parahorror de todo mundo, que 64% dos homicídiosna cidade ocorrem em ambientedoméstico. Ou seja, o que o helicópteroblindado vai resolver nesses casos? E nãoé um caso único. Qualquer delegado oupolicial medianamente informado podeconfirmar isso. Há toda uma manipulaçãode dados. O Instituto de SegurançaPública (ISP), encarregado da produçãode estatísticas no estado, cujo trabalhoacompanhei desde a sua fundação, sofreuinúmeros reveses. Isso aconteceu porque


Jornal da16 <strong>UFRJ</strong>EntrevistaMaio 2010o levantamento de dados não indicava adireção que o governo queria. Passou-se,então, a manipulá-los.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: O poder público vembuscando associar a remoção a áreas derisco. Como o senhor avalia isso?<strong>Marco</strong> FernandesJornal da <strong>UFRJ</strong>: Algo parecido acontececom a população das favelas?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Sim. Segundo os dadosdo Instituto Pereira Passos, por exemplo,a Rocinha tem 50 mil moradores. Já deacordo com levantamento das associaçõesde moradores a população da favela é decerca de 170 mil. Há uma manipulação dedados, para cima ou para baixo. O Complexoda Maré tem 135 mil pessoas. Mashá favelas na América Latina com até ummilhão de habitantes, como Ciudad Bolívar,em Bogotá (Colômbia). Comparativamentea algumas favelas da ZonaSul do Rio, que possuem cerca de 5 mil,não é nada. Produz-se um tipo de discursoque se parece muito com umatécnica de apavoramento.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: Como o senhor avaliaa chamada Unidade de Polícia Pacificadora(UPP)?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: É interessante essa denominação,que apenas reforça a idéiada guerra. O administrador poderia terinventado uma denominação diferente.Mas os próprios moradores demandamesse serviço, porque se ele não existetem-se aqueles 64% de homicídios noâmbito doméstico. E sabe como a políciaclassifica esse tipo de conflito? “Feijoada”!Que quer dizer, briga de família, entreconhecidos. É um conflito tido comopouco nobre para receber a atenção dapolícia, que, portanto, deve se ocuparcom a “guerra”, com o “criminoso”. Elanão compreende que é mediadora deconflitos e que é um serviço público.Como pode alguém ficar com medo dapolícia, de um serviço público?Jornal da <strong>UFRJ</strong>: No Rio, voltou com forçaa ideia de remoção, um termo somenteutilizado, segundo o antropólogo <strong>Marco</strong>sAlvito, quando se fala de favela, lixo e cadáver.Como senhor avalia essa questão?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Primeiramente, concordointegralmente com a observaçãodo meu colega <strong>Marco</strong>s Alvito. Há umproblema na ideia de “remoção”, poiso Estado precisa dizer para onde vaia população deslocada de sua moradia.E o Estado pode, por exemplo, serpego em armadilhas. Por exemplo, naépoca em que desalojou Vila Mimosa,precisou indicar para onde ela iria.E acabou descobrindo que nenhumbairro queria a Vila Mimosa, porqueninguém quer prostituta morandoperto. Então, o Estado teve que voltaratrás e indenizá-las. Ou seja, recaiusobre elas o ônus de ir procurar lugarpara morar. Tentaram Nova Iguaçue acabaram na rua Ceará. Foram recebidasa pedradas e barricadas. Mashoje a Vila Mimosa está completamenteassociada à economia daquela áreadecadente da cidade.<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Não se deve misturar ascoisas. Em uma área nobre de Niterói,uma casa de luxo, na estrada Fróes,desabou e matou um homem. Lá existeoutra casa linda, prestes a desabar, eninguém vai falar em remoção, mas emcontenção de encosta.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: Historicamente, a ideiade remoção paira sempre como umaameaça sobre as classes pobres?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Ela sempre esteve presente,mas de modo dissimulado, tantono Brasil como em outros países.Fala-se de reestruturação urbana, masnão de renovação urbana, porque issoparece coisa do passado, lembra o‘bota-abaixo’ do Pereira Passos. Falaseem revitalização em bairros como aLapa, mas isso implicou na ‘remoção’de várias pessoas que moravam naquelesistema construído. Nesse processode estabelecimento de casas de shows,ocorreram vários conflitos. É uma áreaassociada ao corredor cultural que reabilitaum antigo circuito de diversão queera a Lapa. O capital do entretenimento seapropriou dessas áreas.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: Essa exclusão de moradoresse dá pelo fato de a habitação ser tratadamais como mercadoria do que comodireito?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Pior do que a habitaçãocomo mercadoria são as cidades comocommodities. Esse é o processo que estamosexperimentando. Eu somente fuicompreender Luanda depois que ouvi apalestra de uma colega da Escola de Arquiteturade La Villette (Paris, França).Ela falou de uma viagem dela para Istambul,Marrocos, e a descrição dela me fezentender o que está acontecendo na áreaportuária do Rio de Janeiro e também emMaricá, onde os espanhóis compraramuma extensa área. As cidades realmenteestão se transformando em commodities.Queiramos ou não, há um processo de internacionalizaçãodessas áreas para a realizaçãode um capital imobiliário.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: E qual o papel da universidadenessa discussão sobre a questãourbana?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: A universidade produzconhecimento, mas não é um polo dedecisão política, não executa políticaspúblicas. A universidade disponibiliza oconhecimento, mas não sabe se o agentepúblico vai dialogar seriamente com aprodução acadêmica. Às vezes, ele prefereuma relação com as organizações nãogovernamentais(ongs), o que considerouma perversão do espaço público. Essasorganizações têm acesso a uma mina dedinheiro para fazer supostamente políticapública. Em cidades como Paris, porexemplo, nenhum morador vai achar queum organismo desse tipo pode substituira política pública que ele demanda. NoBrasil, se construiu essa relação com asONG, com a “demonização”, inclusive,da universidade, considerada pesada,complexa e burocrática. É assim que sevai justificando a aproximação do poderpúblico com elas.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: Por que o poder públiconão consegue massificar efetivamenteo acesso à habitação de qualidade para asfaixas de baixa renda?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Isso deveria ser absolutamentebanal do ponto de vista da funçãoredistributiva do Estado. A imprensa publicourecentemente que o município deNiterói tem um dos mais altos impostosTerritorial e Urbano (IPTU) do Brasil. Aomesmo tempo, foi um dos que mais sofreucom deslizamentos e mortes por causadas chuvas que atingiram o Rio de Janeirono início de abril. Isso evidencia o caráterperverso da gestão, porque se deveria terpolíticas urbanas muito mais adequadas.Faltou planejamento? Sim. Mas, comoplanejar políticas públicas urbanas para aárea de transportes, por exemplo, se essafunção fica a cargo de empresas privadas?Como pensar em planejamento hidroviáriose o dono da empresa de transporte porbarcas é, também, o dono da Viação 1001?Esse é um processo predatório da ambiênciadas cidades levado a cabo por empresáriose que impede o planejamento urbano.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: Como enfrentar esse vácuono planejamento?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: O Estado não pode abrirmão de planejar, e de modo articulado. Apolítica de habitação não pode estar dissociadada política de urbanização. Hátambém o problema da educação, queé importante. No final dos anos 1970 einício dos anos 1980, tivemos no Riode Janeiro uma formulação de políticapública nessa área, com a criaçãodos Centros Integrados de EducaçãoPopular (Ciep), tendo à frente DarcyRibeiro e Maria Yedda Linhares. Aideia era implantar a educação integrale algumas soluções para contruiros Cieps em favelas passava, porexempo, pelo plano inclinado. Muitosas ridicularizaram, como se os moradoresdessas áreas não merecessemesse tratamento.Jornal da <strong>UFRJ</strong>: Em sua opinião, asolução seria então global, abrangendodiversas políticas públicas? E as soluçõespontuais, baseadas nas chamadasboas práticas, como o Favela-Bairro,estariam então esgotadas?<strong>Marco</strong> <strong>Mello</strong>: Acho que não. Um dosurbanistas que concebeu esse “Ovode Colombo” chamado Favela-Bairrofoi o nosso colega Sérgio Magalhães,professor da Faculdade de Arquiteturae Urbanismo (FAU) da <strong>UFRJ</strong>.É um projeto que surgiu a partir dequestões muito práticas. Por exemplo,como acabar com as enchentesda praça da Bandeira. E elas não vãoacabar caso não se resolva o problemada coleta de lixo nos morros do Borel,da Formiga, entre outros. Querendoseou não, são localidades que fazemparte da cidade, não podem ser excluídas.As soluções globais não excluemas intervenções pontuais. Não se podejogar a criança fora junto com a águado banho.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!