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CONTO DE NATAL - Celsul.org.br

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Anais do 5º Encontro do <strong>Celsul</strong>, Curitiba-PR, 2003 (554-557)A CONSTRUÇÃO <strong>DE</strong> SENTIDO NO “<strong>CONTO</strong> <strong>DE</strong> <strong>NATAL</strong>”Flaviana Gonçalves VIANI (Universidade Estadual de Londrina)Luís Carlos FERNAN<strong>DE</strong>S (Universidade Estadual de Londrina)ABSTRACT: This paper analysis the short story “Conto de Natal”, by Rubem Braga, we focus on theconstruction of meaning and discoursive features of the short story. Our analyses are based on FrenchDiscourse Analysis. Our aim is to investigate points that are important to language teaching andlanguage learning.KEYWORDS: Discourse Analysis; Portuguese teaching; enunciation.0- IntroduçãoCom freqüência, deparamos-nos com inúmeras pesquisas abordando as falhas no ensino e práticade leitura e produção de texto nas aulas de Língua Portuguesa. Partindo dessa realidade, o projeto “Guina-Guia de Navegação pelos Sentidos do Texto” busca novas estratégias de interpretação e compreensão detextos para utilização por alunos e professores, visando o desenvolvimento das capacidades de linguagem,considerando que o seu uso adequado possibilita uma maior consciência e participação do indivíduo nasociedade.O projeto foi criado ainda objetivando: incentivar a integração de alunos, docentes, graduados epós-graduandos do curso de letras nas pesquisas so<strong>br</strong>e os sentidos do texto e a renovação das práticas deensino de leitura; auxiliar a formação teórica e prática de leitura de futuros professores de língua, pormeio de discussões relativas a teoria lingüísticas e participação na criação de material didático; construirguias de leitura de textos de variados gêneros.Além das análises lingüísticas e do desenvolvimento de um trabalho pedagógico de adequação deestratégias e da linguagem, as atividades prevêem também o uso das novas tecnologias, no caso ocomputador, já que uma das etapas do projeto referem-se a confecção de guias de leitura no formatohipertexto como homepage da internet. Com o emprego dessa nova tecnologia, procura-se induzir o alunousuário a uma melhor interação e experimentação dos recursos da informática para a renovação daspráticas de ensino de leitura.As novas tecnologias representadas pelo computador e pela internet transformaram-se numa dasaquisições mais valorizadas pela atual geração, assim faz-se necessário integrá-los ao processo de ensinoaprendizagem.Por isso, propomos um trabalho com o texto que explore os aspectos gráfico-visuaispropiciado pelo hipertexto no programa do computador.Salienta-se, também, o enfoque so<strong>br</strong>e o contexto de produção dos sentidos, já que a linguagemreflete a ideologia e a historicidade que envolve tanto o texto como os leitores. Para isto, utilizam-se asidéias teóricas da Análise do Discurso e da Semiótica greimasiana, instrumentos que permitem suporteeficaz para as práticas de leitura. O texto é visto, deste modo, como unidade fundamental dotado designificado. Por meio de atividades de compreensão e interpretação, explicitam-se a construção e oprocesso de produção do qual decorrem os sentidos presentes nos textos.Em função desse contexto inicial, esta comunicação procura, ainda que de modo limitado,apresentar, como exemplo ilustrativo, a análise do texto “Conto de Natal”, de Rubem Braga, a partir daqual foi elaborado um dos guias do projeto. O mesmo procedimento se repete com os demais textosvisando à construção de atividades de compreensão de textos cujo objetivo dominante é propor a reflexão,so<strong>br</strong>e os temas que aborda, incentivando simultaneamente o amadurecimento da visão crítica por partedos alunos usuários.I – Significados e sentidos do “Conto de Natal”O “Conto de Natal” descreve, por meio de um percurso não linear, a situação de uma família emdolorosa movimentação de um lugar para outro, decorrente de uma <strong>br</strong>iga pela propriedade de terras, e aperspectiva do nascimento e morte de um dos filhos do casal em meio ao decorrer dessa caminhada.Assim, o texto é construído partindo da relação entre uma vida penosa e a ameaça constante da morte.O texto, portanto, se constrói em torno da oposição entre vida e morte, representando valores deesperança e de desesperança, os quais podem ser percebidas no nível fundamental da teoria semióticagreimasiana, com o que se explicam os níveis mais abstratos do texto. Esta oposição é manifestada namedida em que é narrado o sofrimento da família, cuja vida é marcada pela desesperança. O nascimento


Flaviana Gonçalves VIANI & Luís Carlos FERNAN<strong>DE</strong>S 555de um dos filhos do casal, que seria a representação da esperança, reverte-se na seqüência, em seu opostocom a morte do recém nascido.A afirmação da desesperança é concretizada por meio da tensão criada com a referência aosignificado do natal, enunciado já de início, no título, e retomado no desfecho da narrativa, que põe emjogo significados contraditórios.Desta forma, manifestado no nível discursivo, temos a percepção do sujeito da enunciação e docontexto social-histórico. Demonstra-se, assim, uma competência interdiscursiva que explicita valores daideologia cristã e da cultura regional; e competência intertextual, por meio de um questionamento do livrobíblico. Ao fazer intertextualidade com o texto bíblico, o enunciador concerne um estatuto de verdade,aproximando valores da doutrina cristã que estão inseridos nos hábitos sociais. Estabelecem-se, portanto,objetivos bem demarcados entre o enunciador o enunciatário do texto:“cada manifestação da langue põe em jogo um enunciador e um enunciatário com seus pontos devista, que ela ocorre num espaço e num tempo precisos, que se refere a elementos de umasemiótica de mundo natural e que visa em última instância, à persuasão.” ( Fiorin, 1995: p.29).O enunciador utiliza figuras como “cerca de arame farpado”, “gravidez”, “barriga”, “trapos”,“capim”, “<strong>br</strong>oa dura” e “casinha de sapê” que tematizam a dor, o sacrifício, a fragilidade, a injustiça e aexclusão social, que vêm explicitados nas varias seqüências do texto. Trata-se de figuras e temáticas que,por meio do título e do nome do recém nascido, Jesus Cristo, sugerem nos a associação com a passagembíblica do “Nascimento de Jesus Cristo”, que assim se enuncia no discurso bíblico:“... Naqueles tempos apareceu um decreto..., ordenando um recenseamento de toda a terra ...todos iam alistar-se...José também subiu da Galiléia ...à Judéia... para se alistar com sua esposaMaria, que estava grávida....Estando eles ali, completaram-se os dia dela... deu à luz seu filhoprimogênito, e, envolvendo-o em faixas, reclinou-o num presépio; porque não havia lugar paraeles na hospedaria...anuncio a boa nova que será alegria, para todo o povo...nasceu ..umSalvador, que é o Cristo Senhor ”.(Lc. 2: 1-11, p.1348).Assim, o nascimento de Jesus Cristo, representa para os cristãos a esperança e a salvação. Noconto de Rubem Braga, Faustino vê o nascimento de seu filho, coincidentemente no dia de Natal, comomomento de alegria e motivo para risos, o que se demonstra, de modo inconsciente, sua ideologiareligiosa e um dos vários sentidos presentes no texto.“O sentido é, assim, uma relação determinada do sujeito afetado pela língua com a história. É ogesto da interpretação que realiza essa relação do sujeito com a língua, com a história, com ossentidos. Esta é a marca da subjetivação e, ao mesmo tempo, o traço da relação da língua com aexterioridade: não há discurso sem sujeito. E não há sujeito sem ideologia. Ideologia einconsciente estão materialmente ligados.”(Orlandi, 2000: p.47).A história é contada a partir do ponto de vista de um enunciador que faz de Faustino umareferência. Portanto, Faustino, sujeito operador, que devido à <strong>br</strong>iga com o coronel Desidério e suaconseqüente expulsão da fazenda, faz-se agente da caminhada a um lugar desconhecido em companhia dasua mulher e do filho de seis anos.Este processo impressiona os sentidos e auxilia a formulação da temática da exclusão social, nocaso, conseqüência da questão agrária; e de uma sociedade que ainda tem a figura da mulher comosubmissa, o que enuncia nos textos em frases como: “A mulher segui-o mesmo sem compreender” e “ohomem ajudou-a a levantar-se”. Nesse conto, a figura feminina é privada inclusive de um nome e o papelque lhe é confiado restringe-se o de seguir as atitudes do marido.Assim, mesmo quando contrariada, como no momento em que Faustino quis dar ao filho o nomede Jesus Cristo, não questiona, mas apenas manifesta sua irritação por meio de gestos: “A mulher nãoachou graça. Fez uma careta e penosamente voltou a cabeça para o lado, cerrando os olhos”.O fio da narrativa se desenvolve na seqüência de verbos de ação, geralmente empregados nopretérito perfeito, com o que se indicam acontecimentos já passados: “sem dizer uma palavra o homemdeixou a estrada, andou alguns metros...”, descreve os personagens conforme o espaço.O sujeito enunciador utiliza a terceira pessoa narrativa, com o que se tem uma de<strong>br</strong>eagemenunciva, ou seja, uma operação em que a instância de enunciação separa-se do sujeito, do espaço e dotempo e projeta-se no enunciado em um não-eu, um não-aqui e um não-agora, colocado no enunciadocomo actantes, espaço e tempo, conforme Fiorin (1995: p.45-46). Mantendo a enunciação afastada dodiscurso, transmite um tom de distanciamento ao, atingindo uma certa objetividade.


556 A CONSTRUÇÃO <strong>DE</strong> SENTIDO NO “<strong>CONTO</strong> <strong>DE</strong> <strong>NATAL</strong>”Por outro lado, o sujeito enunciador dá voz aos personagens. Assim, no conto, tem-se umade<strong>br</strong>eagem interna, em forma de discurso direto, criando-se assim um efeito de realidade, como nosenunciados: “He, mulher”, “Eu nem me lem<strong>br</strong>ava” e “Uai! Pera aí...”.O discurso dos personagens possibilita estabelecer suas características, bem como o espaço e otempo em que estão inseridos. Neste sentido, obtém-se uma maior verossimilhança no texto e induz oenunciatário a reconhecer elementos presentes no texto como verdadeiros, principalmente, pelas escolhaslexicais, marcada pelo uso de palavras curtas e regionalistas.II- ConclusãoA partir desse tipo de análise, os pesquisadores do projeto procuram em seguida elaboraratividades de leitura que possam levar os usuários do Guina a compreender os sentidos e o modo deprodução deles nos textos selecionados. Em seu trabalho, utilizam uma ampla variedade de textos,priorizando o ensino da Língua portuguesa enquanto atividade passível de reflexão e como fonte deincentivo à valorização da cultura nacional. Desse modo, possibilita capacitar o aluno para sua formaçãoenquanto leitor componente, que participa e convive em sociedade.No caso deste trabalho, ativemo-nos à análise do “Conto de Natal”, que como todo texto literáriopermite o desenvolvimento de sensibilidade e gosto estético e o introduz num mundo imaginário capaz deampliar a sua percepção do mundo do mundo real. E como toda manifestação de linguagem, apresentamarcas lingüísticas específicas que nos permitem recuperar a origem da formulação dos sentidos aliexistentes. Valoriza ainda nesse processo em que se situamos alunos de nível médio, futuros usuários doprojeto.RESUMO: Este trabalho enfoca a construção de sentido e os procedimentos lingüísticos presentes no“Conto de Natal”, baseado nas teorias da Analise do Discurso e da semiótica greimasiana, a fim deressaltar os pontos relevantes para o ensino e aprendizagem de leitura.PALAVRAS–CHAVE: ensino de leitura; enunciação; discurso.ANEXOConto de NatalSem dizer uma palavra, o homem deixou a estrada andou alguns metros no pasto e se deteve uminstante diante da cerca de arame farpado. A mulher seguiu-o sem compreender, puxando pelamão o menino de seis anos.— Que é?O homem apontou uma árvore do outro lado da cerca. Curvou-se, afastou dois fios de arame epassou. O menino preferiu passar deitado, mas uma ponta de arame o segurou pela camisa. O paiagachou-se zangado:— Porcaria...Tirou o espinho de arame da camisinha de algodão e o moleque escorregou para o outro lado.Agora era preciso passar a mulher. O homem olhou-a um momento do outro lado da cerca eprocurou depois com os olhos um lugar em que houvesse um arame arrebentado ou dois fios maisafastados.— Péra aí...Andou para um lado e outro e afinal chamou a mulher. Ela foi devagar, o suor correndo pela caramulata, os passos lerdos sob a enorme barriga de 8 ou 9 meses.— Vamos ver aqui...Com esforço ele afrouxou o arame do meio e puxou-o para cima.Com o dedo grande do pé fez descer bastante o de baixo.Ela curvou-se e fez um esforço para erguer a perna direita e passá-la para o outro lado da cerca.Mas caiu sentada num torrão de cupim!— Mulher!Passando os <strong>br</strong>aços para o outro lado da cerca o homem ajudou-a a levantar-se. Depois passou amão pela testa e pelo cabelo empapado de suor.— Péra aí...Arranjou afinal um lugar melhor, e a mulher passou de quatro, com dificuldade. Caminharam atéa árvore, a única que havia no pasto, e sentaram-se no chão, à som<strong>br</strong>a, calados.


Flaviana Gonçalves VIANI & Luís Carlos FERNAN<strong>DE</strong>S 557O sol ardia so<strong>br</strong>e o pasto maltratado e secava os lameirões da estrada torta. O calor abafava, enão havia nem um sopro de <strong>br</strong>isa para mexer uma folha.De tardinha seguiram caminho, e ele calculou que deviam faltar umas duas léguas e meia para afazenda da Boa Vista quando ela disse que não agüentava mais andar. E pensou em voltar até osítio de «seu» Anacleto.— Não...Ficaram parados os três, sem saber o que fazer, quando começaram a cair uns pingos grossos dechuva. O menino choramingava.— Eh, mulher...Ela não podia andar e passava a mão pela barriga enorme. Ouviram então o guincho de um carrode bois.— Oh, graças a Deus...Às 7 horas da noite, chegaram com os trapos encharcados de chuva a uma fazendinha. Otemporal pegou-os na estrada e entre os trovões e relâmpagos a mulher dava gritos de dor.— Vai ser hoje, Faustino, Deus me acuda, vai ser hoje.O carreiro morava numa casinha de sapé, do outro lado da várzea. A casa do fazendeiro estavafechada, pois o capitão tinha ido para a cidade há dois dias.— Eu acho que o jeito...O carreiro apontou a estrebaria. A pequena família se arranjou lá de qualquer jeito junto de umavaca e um burro.No dia seguinte de manhã o carreiro voltou. Disse que tinha ido pedir uma ajuda de noite na casade “siá” Tomásia, mas “siá” Tomásia tinha ido à festa na Fazenda de Santo Antônio. E ele nãotinha nem querosene para uma lamparina, mesmo se tivesse não sabia ajudar nada. Trazia quatro<strong>br</strong>oas velhas e uma lata com café.Faustino agradeceu a boa-vontade. O menino tinha nascido. O carreiro deu uma espiada, masnão se via nem a cara do bichinho que estava em<strong>br</strong>ulhado nuns trapos so<strong>br</strong>e um monte de capimcortado, ao lado da mãe adormecida.— Eu de lá ouvi os gritos. Ô Natal desgraçado!— Natal?Com a pergunta de Faustino a mulher acordou.— Olhe, mulher, hoje é dia de Natal. Eu nem me lem<strong>br</strong>ava...Ela fez um sinal com a cabeça: sabia. Faustino de repente riu. Há muitos dias não ria, desde quetivera a questão com o Coronel Desidério que acabara mandando embora ele e mais dois colonos.Riu muito, mostrando os dentes pretos de fumo:— Eh, mulher, então “vâmo” botar o nome de Jesus Cristo!A mulher não achou graça. Fez uma careta e penosamente voltou a cabeça para um lado,cerrando os olhos. O menino de seis anos tentava comer a <strong>br</strong>oa dura e estava mexendo noem<strong>br</strong>ulho de trapos:— Eh, pai, vem vê...— Uai! Péra aí...O menino Jesus Cristo estava morto.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica. São Paulo: Ática,2000.BRAGA, Rubem, Os Melhores Contos. São Paulo: Editora Global, 8ª. Edição,1998.FIORIM, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo.ORLANDI, Eni Puccinelli. Analise do Discurso. Campinas: Pontes, 2000.

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