com pelotiquices e passes <strong>de</strong> mágica intelectuais.Tendo convivido com alguns poetas samoiedas, pu<strong>de</strong> estudar um tanto<strong>de</strong>moradamente os princípios teóricos <strong>de</strong>ssa escola e julgo estar habilitadoa lhes dar um resumo <strong>de</strong> suas regras poéticas e da sua estética.Esses poetas da Bruzundanga, para dar uma origem altissonante emisteriosa à sua escola, sustentam que ela nasceu do poema <strong>de</strong> um príncipesamoieda, que viveu nas margens do Ártico, nas proximida<strong>de</strong>s do Óbi ou doLena, na Sibéria, um original que se alimentava da carne <strong>de</strong> mamutes conservadoshá centenas <strong>de</strong> séculos nas geleiras daquelas regiões.Essa espécie <strong>de</strong> alimentação do longínquo príncipe poeta dava aosolhos <strong>de</strong> todos eles, singular prestígio aos seus versos e aos do fundador,embora pouco eles os conhecessem.O príncipe chamava-se Tuque-Tuque Fit-Fit e o seu poema ParikáithontVakochan, o que quer dizer no nosso calão -- O silêncio das renas nocampo <strong>de</strong> gelo.Tuque-Tuque Fit-Fit era <strong>de</strong>scrito pelos "samoiedas" da Bruzundangacomo sendo uma beleza sem par e triunfal entre as <strong>de</strong>ida<strong>de</strong>s daquelas regiõesárticas.Tudo isto era fantástico, mas graças à credulida<strong>de</strong> dos sábios do país,só um ou outro <strong>de</strong>salmado tinha a coragem <strong>de</strong> contestar tais lendas.Como todos nós sabemos, a raça samoieda é <strong>de</strong> estatura baixa, poucomenos que a dos lapões, cabelos longos, duros e negros <strong>de</strong> ja<strong>de</strong>, vivendo dacarne <strong>de</strong> renas, <strong>de</strong> urso branco, quando a felicida<strong>de</strong> lhe fornece um. Taishomens andam em trenós e fazem kayacs <strong>de</strong> peles <strong>de</strong> renas ou focas queeles empregam para capturar estas últimas.As suas concepções religiosas são reduzidas, e os seus ídolos, manipansoshediondos, tocos <strong>de</strong> pau besuntados <strong>de</strong> pinturas incoerentes. Vestem-se,os samoiedas, com peles <strong>de</strong> renas e outros animais hiperbóreos.Entretanto, na opinião dos poetas daquela república, que dizem seguiras teorias da literatura do Oceano Ártico, não são os samoiedas assim, comoo contam os mais autorizados viajantes; mas sim os mais belos espécimensda raça humana, possuindo uma civilização digna da Grécia antiga.Esta Grécia serve para tudo, especialmente na Bruzundanga...Em geral, os vates bruzundanguenses a<strong>de</strong>ptos da tal escola samoieda,como os senhores vêem, não primam pela ilustração; e, quando se contesteno tocante à beleza <strong>de</strong> tais esquimós, respon<strong>de</strong>m categoricamente que a <strong>de</strong>vemter extraordinária, pois quanto mais fria é a região, mais belos sãoos tipos, mais altos, mais louros, e os samoiedas vivem em zona frigidíssima.Não há como discutir com eles, porque todos se guiam por idéiasfeitas, receitas <strong>de</strong> julgamentos e nunca se aventuram a examinar por siqualquer questão, preferindo resolvê-las por generalizações quase semprerecebidas <strong>de</strong> segunda ou terceira mão, diluídas e <strong>de</strong>sfiguradas pelas sucessivaspassagens <strong>de</strong> uma cabeça para outra cabeça.Atribuem, sem base alguma, a esse tal Tuque-Tuque a fundação daescola, apesar <strong>de</strong> nunca lhe terem lido as poesias nem a sua arte poética.Sempre procurei saber por que se enfeitavam com esse exótico avoengo;as razões psicológicas, eu as encontrei na vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les, no seu <strong>de</strong>sejo<strong>de</strong> disfarçar a sua inópia poética com um padrinho esquisito e misterioso;mas o núcleo da lenda, o grãozinho <strong>de</strong> areia em torno do qual se concretizavao mito ártico da escola, só ultimamente pu<strong>de</strong> encontrar.Consegui <strong>de</strong>scobrir entre os livros <strong>de</strong> um inglês meu amigo, SenhorParsons, um volume do Senhor H. T. Switbilter, <strong>de</strong> Bristol (Inglaterra) --Literature of the Stingy Peoples; e encontrei nele alguns versos samoiedas.São anônimos, mas o estudioso <strong>de</strong> Bristol <strong>de</strong>clara que os recolheu da boca<strong>de</strong> um certo Tuck-Tuck, samoieda <strong>de</strong> nação, que ele conheceu em 1867,quando foi encarregado pela Socieda<strong>de</strong> Paleontológica <strong>de</strong> Bristol <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrirna embocadura dos gran<strong>de</strong>s rios da Sibéria monstros antediluvianosconservados no gelo, como escaparam <strong>de</strong> encontrar, quase intactos, o naturalistaPallas, nos fins do século XVIII, e o viajante Adams, em 1806. Ahistória do tal príncipe Tuque-Tuque alimentar-se <strong>de</strong> carne <strong>de</strong> elefantes
fósseis, parece ter origem no fato bem sabido <strong>de</strong> terem os cães <strong>de</strong>voradoas carnes do mamute, cujo esqueleto Adams trouxe para o museu <strong>de</strong> SãoPetersburgo; e o príncipe já sabemos quem é.O Senhor Switbilter pouco acrescenta a algumas poesias que publica; eas que estão no volume, traduzidas, são por <strong>de</strong>mais monstruosas, semprecom um mesmo pensamento <strong>de</strong>nunciando uma concepção estreita da vida edo universo, muito explicável em bárbaros glaciais.O viajante inglês que conhece o samoieda, entretanto, diz aqui e ali,que elas são enfáticas, sem quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentimento ou um acento musicalagradável e individual, <strong>de</strong>scaindo quase sempre para a melopéia ou o"tantã" ignaro, quando não alternam uma cousa e outra.Mas não foi no livro do Senhor Switbilter que os augustos poetas daBruzundanga foram encontrar as bases da sua escola. Eles não conhecemesse autor, pois nunca os vi citá-lo.Eles, os "samoiedas" da Bruzundanga, encontraram o mestre nosescritos <strong>de</strong> um tal Chamat ou Chalat, um aventureiro francês que pareceter estado no país daquela gente ártica, aprendido um pouco da língua<strong>de</strong>la e se servido do livro do viajante inglês para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r uma poéticaque lhe viera à cabeça.Esse Chamat ou Chalat, Flaubert, quando esteve no Egito, encontrou-opor lá, como médico do exército quedival; e ele se ocupava nos ócios <strong>de</strong>sua provável mendicância em rimar uma tragédia clássica, Ab<strong>de</strong>lcá<strong>de</strong>r, emcinco atos, on<strong>de</strong> havia um célebre verso <strong>de</strong> que o gran<strong>de</strong> romancista nuncase esqueceu. É, o seguinte :"C'est <strong>de</strong> Id par Allah! qu' Abd-Allah s'en alla".O esculápio do Cairo insistia muito nele e esforçava-se por <strong>de</strong>monstrarque, com semelhante "harmonia imitativa" como os antigos chamavam,obtinha traduzir, em verso, o sonido do galope <strong>de</strong> cavalo.Havia mais belezas <strong>de</strong> igual quilate e outras originalida<strong>de</strong>s. Nãoobstante, quando apareceu, foi um louco sucesso <strong>de</strong> riso muito parecidocom o do Tremor <strong>de</strong> terra <strong>de</strong> Lisboa, aquela célebre tragédia do cabeleireiroAndré, a quem Voltaire invejou e escreveu, entretanto, ao receber--lhe a obra, que continuasse a fazer sempre cabeleiras -- "toujours <strong>de</strong>sperruques", Senhor André.Chalat afrontou a crítica e não po<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se com os clássicosfranceses, apelou para a poesia em língua samoieda, que conhecia um poucopor ter sido marinheiro <strong>de</strong> um baleeiro que naufragou nas proximida<strong>de</strong>sda terra <strong>de</strong>sses lapões, entre os quais passou alguns meses. Não <strong>de</strong>sconheciao livro do Senhor Switbilter, como tive ocasião <strong>de</strong> verificar nos fragmentos<strong>de</strong> um seu tratado poético, citado na tradução da obra <strong>de</strong> um seu discípulobasco por on<strong>de</strong> os "samoiedas" da Bruzundanga estudaram a escola queverda<strong>de</strong>iramente Chalat ou Chamat fundara.O seu <strong>de</strong>safio à crítica, escudado na poética e estética das margens doglacial Ártico, trouxe-lhe logo uma certa notorieda<strong>de</strong> e discípulos.Estes vieram muito naturalmente, pois, dada a indigência mental daquelaespécie <strong>de</strong> esquimós, a sua pobreza <strong>de</strong> impressões e sensações, a suaincapacida<strong>de</strong> para as idéias gerais, os hinos, os cânticos, os rondós dosmesmos, citados pelo medicastro, facilitavam muito o ofício <strong>de</strong> fazer verso,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se tivesse paciência; e a facilida<strong>de</strong> seduziu muitos dos seus patríciose <strong>de</strong>terminou a admiração dos bardos bruzundanguenses.<strong>Os</strong> discípulos <strong>de</strong> Chalat ou Chamat tiraram da sua obra regras infalíveispara fazer poetas e poesias e um certo até aplicou a teoria dos errosà sua arte poética.A instrução do grosso dos menestréis bruzundanguenses não permitiaesse apelo à matemática; e contentaram-se com umas regras simples quetinham na ponta da língua, como as beatas as rezas que não lhes passampelo coração, e outros <strong>de</strong>senvolvimentos teóricos.Era pois essa poética e essa estética que dominavam entre os literatos
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