diferente daquela que forma as cozinheiras e os pequenos burgueses.Tão tolos são eles que não se lembram que tais marqueses e maisbarões da sua terra são <strong>de</strong> origem tão humil<strong>de</strong> e tão vexatória em facedo critério nobiliárquico que os próprios portadores <strong>de</strong> tais títulos fidalgosocultam o mais que po<strong>de</strong>m a sua ascendência. Mas é preciso voltar aonosso Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pancome.A custa <strong>de</strong> todas essas vociferações, o povo não permitia que ninguémlhe tocasse na reputação e ficou convencido <strong>de</strong> que o homem era mesmoum <strong>de</strong>miurgo e consubstanciou a sua admiração ingênua nesta fórmulasimples: "é um bruzundanguense conhecido na Europa".Porque a mania daquele povo é querer à força que o seu país e osseus homens sejam conhecidos no estrangeiro, embora ele não possua umaativida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> qualquer natureza, nem mesmo um homem notável que possaatrair a curiosida<strong>de</strong> dos estranhos sobre a região e as suas coisas.De modo que, qualquer referência a ele ou a um natural <strong>de</strong>le, se elaé favorável e elogiosa, logo alvorota o povo da Bruzundanga, que ficacrente <strong>de</strong> que em todas as al<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> países afastados não se fala em outracousa senão na sua nação.Quando, porém, se diz lá fora que, na sua população, há milhões<strong>de</strong> javaneses e mestiços <strong>de</strong>les (o que é verda<strong>de</strong>), imediatamente todos seaborrecem, zangam-se, lançando tristemente o labéu <strong>de</strong> vergonha sobre osseus compatriotas <strong>de</strong> tal extração.É uma tolice <strong>de</strong>les (aí entram também muitos javaneses), pois tantoos <strong>de</strong> origem javanesa como os <strong>de</strong> outras raízes raciais têm dado inteligênciase ativida<strong>de</strong>s que se equivalem. Não há este <strong>de</strong> tal procedência quesobrepuje aquele <strong>de</strong> outra procedência, nem mesmo na quantida<strong>de</strong>; os <strong>de</strong>uma origem não sobrelevam os <strong>de</strong> outra, isto dura há três séculos e poucos;e, po<strong>de</strong>-se dizer, que é uma prova perfeitamente experimental, obtida nolaboratório da história. Tão bom como tão bom...Com tal mania, não é <strong>de</strong> admirar que, <strong>de</strong> uma hora para outra,Pancome ficasse sendo o ídolo da Bruzundanga; e o governo, para premiá-loe satisfazer a opinião pública, apressou-se em nomeá-lo embaixadorjunto ao governo <strong>de</strong> uma potência européia, e foi (lembro-me agora)quando embaixador, que obteve as con<strong>de</strong>corações a que aludi em capítuloanterior.E <strong>de</strong> tal forma a população do país se convenceu da imensa inteligência,das geniais vistas do viscon<strong>de</strong>, <strong>de</strong> que ele era admirado no mundointeiro, e <strong>de</strong> que, também todos os sábios do Universo respeitavam-noreligiosamente, que ao chegar ele da estranja para assumir a pasta doExterior, toda ela correu em massa para a rua, quase lhe <strong>de</strong>satrelam, osmais entusiastas, os cavalos do carro, aclamando-o freneticamente pelasruas em que passou, como se recebesse a cida<strong>de</strong> Júlio César vitorioso ouDescartes, caso a natureza da glória <strong>de</strong>ste se compa<strong>de</strong>cesse com admiraçõesirrefletidas.Além daquelas medidas que citei em um dos capítulos passados, logono início do seu ministério, tomou o viscon<strong>de</strong> estas primordiais; usar pape!<strong>de</strong> linho nos ofícios, estabelecer uma cozinha na sua secretaria e baixaruma portaria, <strong>de</strong>terminando que os seus funcionários engraxassem as botastodos os dias. Na cozinha, porém, é que estava o principal das suas reformas,pois era o seu fraco a mesa farta, atulhada.Em seguida, convenceu o Mandachuva que o país <strong>de</strong>via ser conhecidona Europa por meio <strong>de</strong> uma imensa comissão <strong>de</strong> propaganda e <strong>de</strong> anúnciosnos jornais, cartazes nas ruas, berreiros <strong>de</strong> camelots, letreiros luminosos, nasesquinas e em outros lugares públicos.A sua vonta<strong>de</strong> foi feita; e a curiosa nação, em Paris foi muitas vezesapregoada nos boulevards como o último específico <strong>de</strong> farmácia ou comouma marca <strong>de</strong> automóveis. Contam-se até engraçadas anedotas.Nos anúncios luminosos, então, a sua imaginação foi fértil. Houveum que ficou célebre e assim rezava: "Bruzundanga, País rico -- Café,cacau e borracha. Não há pretos".
Não ficou aí. Mostrou a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma esquadra po<strong>de</strong>rosa eo Mandachuva encomendou uma custosíssima, para o serviço da qual opaís não tinha marinheiros dignos, arsenais, é que pôs <strong>de</strong> alcatéia a Repúblicadas Planícies.Tudo isto e mais a transformação da capital, da noite para o dia, fatoa que já aludi, endividaram sobremodo o país e, com a vinda <strong>de</strong> uminepto Mandachuva, para cuja ascensão ele muito concorreu, a Bruzundangaveio a ficar na miséria.Por essas e outras, foi Pancome proclamado o maior estadista danação, embora a situação interna, durante o seu longo ministério (quase<strong>de</strong>z anos), piorasse sempre e cada vez mais, sem que ele apresentasse oulembrasse medidas para remediar um tal estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>scalabro.Tirassem-no das coisas fantasmagóricas e berrantes que feriam a vaida<strong>de</strong>pueril do povo, fazendo este supor que a Bruzundanga era respeitadana Europa; tirassem-no daí que ninguém era capaz <strong>de</strong> sacar-lhe da cacholauma idéia <strong>de</strong> governo, um alvitre <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro estadista.Basta dizer, para se avaliar a triste situação interna da extravagantenação <strong>de</strong> que lhes dou notícias, que, nos arredores da capital, se morria àmíngua, à fome, as terras estavam abandonadas e invadidas pelas <strong>de</strong>predadorassaúvas, a população roceira não tinha direitos nem justiça e viviaà mercê <strong>de</strong> cúpidos e ferozes senhores <strong>de</strong> latifúndios, cuja sabedoria agronômicaera igual à dos seus capatazes ou feitores.Mas o povo, graças aos poetas e jornalistas simoníacos, não queriacapacitar-se <strong>de</strong> que Pancome era simplesmente <strong>de</strong>corativo e continuou aadmirá-lo como um semi<strong>de</strong>us.E ele fazia o que queria e se agora estava atrapalhado com a nomeação<strong>de</strong> um amanuense, não era porque fosse do seu natural respeitar as leis.Há um pequeno e passageiro temor da natureza daquele que sentemos heróis quando vão entrar em combate.Já nomeara pouco mais <strong>de</strong> meia dúzia por meio <strong>de</strong> concurso masnão estava satisfeito com essas nomeações.E verda<strong>de</strong> que os que nomeara, trajavam regularmente, engraxavamas botas e não tinham nunca o colarinho sujo. Eram já gran<strong>de</strong>s qualida<strong>de</strong>s,porque <strong>de</strong> tal forma viera a encontrar o pessoal da secretaria, esbo<strong>de</strong>gado,relaxado, vestindo roupas baratas, morando nos subúrbios, que foinecessário toda a sua energia para que ele modificasse tão maus hábitos.As verbas do ministério pagaram a quase todos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o servente atéum chefe <strong>de</strong> secção, ternos bem talhados, camisas finas, botinas <strong>de</strong> bomcabedal, etc. Assim, conseguira dar um ar <strong>de</strong> Foreign Office ou <strong>de</strong>Quai d'Orsay à mo<strong>de</strong>sta Secretaria <strong>de</strong> Estrangeiros do mo<strong>de</strong>sto país daBruzundanga.A sua atrapalhação estava na tal história do concurso, pois até ali,<strong>de</strong>vido a tão tola formalida<strong>de</strong>, não conseguira ter nos cargos <strong>de</strong> amanuensesmoços bonitos e <strong>de</strong>mais, para fazer concursos, sempre apareciam unsrebarbativos candidatos <strong>de</strong> raça javanesa, com os quais ele embirravasolenemente.Da última vez, até, quase que um atrevido javanês puro consegue oprimeiro lugar, tal era o brilho <strong>de</strong> suas provas; Pancome, porém, arranjouas cousas tão lealmente diplomáticas que o rapaz per<strong>de</strong>u a últimaprova.Não queria que a cousa se repetisse e estudava o modo <strong>de</strong>, evitandoo concurso, encontrar um candidado bonito, bem bonito, não sendo em nadajavanês, que pu<strong>de</strong>sse oferecer aos olhares do ministro da Coréia ou doAfganistão um belo exemplar da beleza masculina da Bruzundanga.Todos os candidatos que se haviam apresentado não preenchiam essaexigência do seu alto critério governamental.Alguns eram mesmo feios, outros tinham toques <strong>de</strong> javanês, e nenhuma beleza radiante que ele queria ver nos amanuenses.Essas suas sábias medidas, para recrutamento do seu pessoal, levarampara a sua secretaria moços bonitos e excelentes mediocrida<strong>de</strong>s, que ainda
- Page 1 and 2:
Os Bruzundangas, de Lima BarretoTex
- Page 4 and 5:
tantes. Por isso entrara no coupé
- Page 6 and 7: com pelotiquices e passes de mágic
- Page 8 and 9: da Bruzundanga; era assim como o se
- Page 10: E muitas outras de que me esqueci,
- Page 13 and 14: Certo dia, Idle Bhras de Grafofone
- Page 15 and 16: chem de orgulho a família toda, os
- Page 17 and 18: Entretanto, as primeiras têm um an
- Page 19 and 20: A minha estadia na Bruzundanga foi
- Page 21 and 22: ao fim.Não desanimarei e ainda mai
- Page 23 and 24: Eis como são as riquezas do país
- Page 25 and 26: Pode-se dizer que todos anseiam por
- Page 27 and 28: esse negócio de condecorações e
- Page 29 and 30: etc.Os deputados não deviam ter op
- Page 31 and 32: homem cuja única habilidade se res
- Page 33 and 34: gado e quase sempre generoso, e eu,
- Page 35 and 36: aritmética, era a conta de juros,
- Page 37 and 38: suas correrias, encontrou-se com um
- Page 39 and 40: da inteligência humana e da nature
- Page 41 and 42: sabem quem ele é, quais são os se
- Page 43 and 44: traziam. Via perfeitamente tais arm
- Page 45 and 46: fregueses e a ter cuidado com os ca
- Page 47 and 48: desse "defeito" apresentavam alguns
- Page 49 and 50: Assim, em uma espécie de Rua da Al
- Page 51 and 52: cho coletivo, levando tão estranha
- Page 53 and 54: hediondas! Quanta insuficiência ar
- Page 55: fácil de explicar.Ele veio, no fim
- Page 59 and 60: exímio em dança; e, enquanto ele
- Page 61 and 62: hortaliças, legumes e a criação
- Page 63 and 64: grandes festas o centenário da fun
- Page 65 and 66: ecursos medianos, modestos, retraí
- Page 67 and 68: tudo...Recentemente, na Bruzundanga
- Page 69 and 70: Quando ficam ricos, estão completa
- Page 71 and 72: nossa opinião que essa questão de
- Page 73 and 74: janelas da sala.Careta, Rio, 5-11-2