um dos habilitados; mas Pancome nada tinha que ver com as leis, emborafosse ministro e, como tal, encarregado <strong>de</strong> aplicá-las bem fielmente erespeitá-las cegamente.A sua vaida<strong>de</strong> e certas quizílias faziam-no <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cê-las a todo oinstante. Ninguém lhe tomava contas por isso e ele fazia do seu ministériocoisa própria e sua.Nomeava, <strong>de</strong>mitia, gastava as verbas como entendia, espalhando dinheiropor todos os toma-larguras que lhe caíam em graça, ou lhe escreviampanegíricos hiperbólicos.Uma das suas quizílias era com os feios e, sobretudo, com os bruzundanguenses<strong>de</strong> origem javanesa -- cousa que equivale aqui aos nossosmulatos.Constituíam o seu pesa<strong>de</strong>lo, o seu <strong>de</strong>sgosto e não julgava os indivíduos<strong>de</strong>ssas duas espécies apresentáveis aos estrangeiros, constituindo eles a vergonhada Bruzundanga, no seu secreto enten<strong>de</strong>r.Esta preocupação, nele, chegava às raias da obsessão, pois o seuespírito <strong>de</strong> herói da Bruzundanga não se orientava, no que toca à suaativida<strong>de</strong> governamental, pelos aspectos sociais e tradicionais do país, nãose preocupava em <strong>de</strong>scobrir-lhe o seu <strong>de</strong>stino na civilização por este ouaquele tênue indício a fim <strong>de</strong> com mais proveito, auxiliar a marcha <strong>de</strong> suapátria pelos anos em fora. Ao contrário: secretamente revoltava-se contrao <strong>de</strong>terminismo <strong>de</strong> sua história, condicionado pela sua situação geográfica,pelo seu povoamento, pelos seus climas, pelos seus rios, pelos seus aci<strong>de</strong>ntesfísicos, pela constituição do seu solo, etc.; e <strong>de</strong>sejava muito infantilmentefabricar, no palácio do seu ministério, uma Bruzundanga peralvilhae casquilha, gênero boulevard, sem os javaneses, que incomodavam tantoos estrangeiros e provocavam os remoques dos caricaturistas da Repúblicadas Planícies, limítrofe, e tida como rival da Bruzundanga.Enfim, ele não era ministro, para felicitar os seus concidadãos, paracorrigir-lhe os <strong>de</strong>feitos em medidas a<strong>de</strong>quadas para acentuar as suas qualida<strong>de</strong>s,para aperfeiçoá-las, para encaminhar melhor a evolução do país,acelerando-a como pu<strong>de</strong>sse; o viscon<strong>de</strong> era ministro para evitar aos estranhos,aos touristes, contratempos e maus encontros com javaneses. Elechegou até a preparar uma guerra criminosa para ver se dava cabo <strong>de</strong>stesúltimos...Mas como ia dizendo, Pancome, no seu ministério, fazia tudo o queentendia; mas, mesmo assim, não se atrevia a romper abertamente comaquela história <strong>de</strong> concursos, com os quais <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito andava escarmentado,<strong>de</strong>vido a razão que lhes hei <strong>de</strong> contar mais tar<strong>de</strong>.Era, afinal, uma pequena hesitação no espírito <strong>de</strong> um homem quetinha tido até ali tão audazes atrevimentos para <strong>de</strong>srespeitar todas as leis,todos os regulamentos e todas as praxes administrativas.É bastante dizer que, não contente em residir no próprio edifício doMinistério sem autorização legal, Pancome não trepidou em estabelecerna chácara do mesmo um redon<strong>de</strong>l <strong>de</strong> touradas, um campo <strong>de</strong> football,um café-concerto, para obsequiar respectivamente os diplomatas espanhóis,ingleses e suecos.Como já tive ocasião <strong>de</strong> dizer, tal ministro só trabalhava para impressionaros estrangeiros, e, apesar <strong>de</strong> não ter feito obra alguma <strong>de</strong> alcancesocial para a Bruzundanga, o povo o adorava porque o julgava admiradopelos países estranhos e seus sábios.Se alguém se lembrava <strong>de</strong> censurar esse seu <strong>de</strong>savergonhado modoe governar, logo os jornalistas habituados a canonizações simoníacas eparlamentares que gostavam do pot-<strong>de</strong>-vin, gritavam: que tipo mesquinho!Criticar esse patrimônio nacional que é o Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pancome, porcausa <strong>de</strong> ninharias! Ingrato!Diante <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>sculpa <strong>de</strong> patrimônio nacional, toda a gente se calavae o país ia engolindo as afrontas que o seu ministro fazia às suas leis e aosseus regulamentos.De on<strong>de</strong> -- hão <strong>de</strong> perguntar -- lhe tinha vindo tal prestígio?
fácil <strong>de</strong> explicar.Ele veio, no fim, da tal história das con<strong>de</strong>corações que já lhes contei-- fato que encheu <strong>de</strong> júbilo todo o povo daquela pátria, porque a Repúblicadas Planícies que Pancome trabalhava para sempre andar às turrascom a Bruzundanga, não as tinha obtido, apesar <strong>de</strong> disputá-las. Antesdisso, porém, ele já tinha um ascen<strong>de</strong>nte bem forte, <strong>de</strong>vido a uma gran<strong>de</strong>proeza. Pancome tinha subido ao cume do Tiaya, o mo<strong>de</strong>sto Himalaia dacorografia da República da Bruzundanga, dois mil e novecentos a três milmetros <strong>de</strong> altitu<strong>de</strong>. Vou-lhes contar como a cousa foi.Um dia, estando Pancome nas proximida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ssa montanha, anuncioua todos os quadrantes que ia escalá-la.<strong>Os</strong> bruzundanguenses do lugar sorriram diante do projeto daquelehomem gordo e pesado. Aquilo (o monte) diziam, era muito alto e elenão teria fôlego para chegar ao cume; havia fatalmente <strong>de</strong> rolar pelasencostas abaixo, antes <strong>de</strong> atingir o meio da jornada.O viscon<strong>de</strong>, porém, não se temorizou, subiu e dizem que foi ao picoda montanha.A vista <strong>de</strong> semelhante proeza, os naturais do país, logo que a novase espalhou, exultaram, pois andavam <strong>de</strong> há muito necessitados <strong>de</strong> umherói. Não contentes da notícia da façanha ter corrido toda a nação,telegrafaram para as cinco partes do mundo exaltando a ousadia aindamais.E verda<strong>de</strong> que, antes <strong>de</strong> Pancome, muitos outros, entre os quais oKaetano Phulgêncio, um roceiro do local, tinham subido o Tiaya váriasvezes, em aventuras <strong>de</strong> caça, e até esse Phulgêncio serviu-lhe <strong>de</strong> guia; masisto não foi lembrado e Pancome passou por ser o primeiro a fazê-lo.De tal proeza e das consequências que <strong>de</strong>la advieram, nasceu a famado viscon<strong>de</strong>, a sua consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> herói nacional, tanto mais que os clubesalpinos da Europa tomaram nota do ilustre feito e, graças à diplomacia daBruzundanga, o retrato e a biografia do portentoso varão foram estampadosnas revistas especiais <strong>de</strong> sport.Durante um mês, os jornais da capital do interessante país que oranos ocupa, não <strong>de</strong>ixaram um só dia <strong>de</strong> publicar telegramas do seguinte teorou parecidos: "La Vie au Grand Air, importante revista francesa, publicao retrato do Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pancome, o <strong>de</strong>stemido herói do Tiaya, e os seustraços biográficos".Um outro quotidiano dizia: "Army, Navy and Sport, célebre magazineinglês, estampando o retrato do Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pancome, essa legítima glóriado nosso país, afirma que a sua ascensão ao cume do Tiaya é sem prece<strong>de</strong>ntesna história do alpinismo"; e assim transcreviam ou noticiavamreferências <strong>de</strong> outras revistas alemãs, italianas, sírias, gregas, tcheques, etc.Recebendo esse impulso do estrangeiro, os jornais da Bruzundanga,os mais lidos e os mais obscuros, e as revistas <strong>de</strong> toda a natureza redobrarama sua habitual gritaria em casos tais. Enchiam-se <strong>de</strong> artigos louvandoo herói que fizera a Bruzundanga conhecida na Europa, afirmaçãoessa em que logo o povo do país acreditou piamente; mostraram tambémcom períodos bem caídos, como o fato tinha um alcance excepcional eproclamaram o homem o primeiro <strong>de</strong> todos os bruzudanguenses.A seguir-se aos jornais, vieram os poetas louvaminheiros com as suaso<strong>de</strong>s, poemas, sonetos, cantatas, erguendo às nuvens o viscon<strong>de</strong> e a suaextraordinária proeza. Eles sacavam com atilamento sobre o futuro, porquanto,quando Pancome veio a ser ministro, os encheu <strong>de</strong> propinas efartos jantares.É ocasião <strong>de</strong> notar aqui uma singular feição dos poetas da Bruzundanga.Todos os vates <strong>de</strong> lá, em geral, são incapazes <strong>de</strong> comparação, <strong>de</strong> criticae impróprios para a menor reflexão mais <strong>de</strong>tida, e, com a sua mentalida<strong>de</strong><strong>de</strong> parvenus aperuados, estão sempre dispostos a bajular os titulares ou osapatacados burgueses, para terem o prazer <strong>de</strong> ver mais perto as suas mulherese filhas, pois se persuadiram que são elas feitas <strong>de</strong> outra substância
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Os Bruzundangas, de Lima BarretoTex
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