-- Que sente o senhor?Krat Ben Suza foi-lhe dizendo logo o terrível mal no estômago <strong>de</strong>que vinha sofrendo, há tanto tempo, mal que aparecia e <strong>de</strong>saparecia masque não o <strong>de</strong>ixava nunca. O doutor Adhil Ben Thaft fê-lo tirar o paletó,o colete, auscultou-o bem, examinou-o <strong>de</strong>moradamente, tanto <strong>de</strong> pé, como<strong>de</strong>itado, sentou-se <strong>de</strong>pois, enquanto o negociante recompunha a sua mo<strong>de</strong>statoilette.Suza sentou-se também, e esperou que o médico saísse <strong>de</strong> sua meditação.Foi rápida. Dentro <strong>de</strong> um segundo, o famoso clínico dizia com todasegurança:-- O senhor não tem nada.O humil<strong>de</strong> ven<strong>de</strong>iro ergueu-se <strong>de</strong> um salto da ca<strong>de</strong>ira e exclamouindignado:-- Então, senhor doutor, eu pago cinquenta mil-réis e não tenhonada! Esta é boa! Noutra não caio eu!E saiu furioso do consultório que merecia da cida<strong>de</strong> uma romariasemelhante à da milagrosa Lour<strong>de</strong>s, no doce país <strong>de</strong> França.XVIA organização do entusiasmoA curiosa República <strong>de</strong> que me venho ocupando, é acusada pelos seusfilósofos <strong>de</strong> não ter costumes originais. É um erro <strong>de</strong> que participam quasetodos os seus naturais -- erro muito naturalmente explicável, pois mergulhadosna sua vida, não possuem pontos <strong>de</strong> referência para aquilatar daoriginalida<strong>de</strong> das usanças especiais <strong>de</strong> sua terra.<strong>Os</strong> estrangeiros, porém, logo as percebem e contam nos seus livros.Li muitos livros <strong>de</strong> viagem na Bruzundanga; e, em nenhum <strong>de</strong>les vi referênciasa um costume curioso daquele país -- "a manifestação".Chama-se isto ao ato <strong>de</strong> fazer ressaltar uma dada personalida<strong>de</strong> comaclamação, o vivório <strong>de</strong> muitos outros. Esta é a gran<strong>de</strong> manifestação; hátambém as pequenas que consistem em banquetes, saraus, piqueniques, emhonra <strong>de</strong> um dado sujeito.Convém fazer observar que tanto uma espécie como a outra visama publicação <strong>de</strong> longas notícias nos jornais, <strong>de</strong> modo a fazer crer ao públicoque o "manifestado" é mesmo homem <strong>de</strong> valor(às vezes o é) emerece dos po<strong>de</strong>res públicos todo o acatamento e toda a proteção. E esteo fim oculto da "manifestação", gran<strong>de</strong> ou pequena.Houve lá um rapaz que, graças aos banquetes que lhe eram oferecidose cujas notícias saíam em colunas pelos jornais afora, foi <strong>de</strong> segundoTenente da Marinha a contra-almirante, em cinco anos, sem nunca tercomandado uma falua.Um senhor que conheci, fez-se uma celebrida<strong>de</strong> em astronomia, comauxílio dos saraus que lhe eram oferecidos pelos amigos. Ele tinha emcasa um óculo <strong>de</strong> bordo, montado sobre uma tripeça, que, por sua vez, sealcandorava em um mangrulho erguido na sua chácara; lia o Flammarion;e isto tudo com mais uns amigos <strong>de</strong>dicados a lhe oferecer bailes, porocasião das suas portentosas <strong>de</strong>scobertas nos céus ignotos, levaram o governoda Bruzundanga a nomeá-lo diretor <strong>de</strong> um dos Observatórios Astronômicosda República.Esses casos são <strong>de</strong> pequenas homenagens levadas ao cabo por amigoscuja amiza<strong>de</strong> e vinhos generosos são bastantes para incutir-les entusiasmo,por ocasião <strong>de</strong> tais manifestações.Mas, para as gran<strong>de</strong>s, para aquelas feitas a políticos, a capitalistas, aembaixadores; para aquelas em que se exige multidão, o entusiasmo nãoera fácil <strong>de</strong> obter-se assim do pé pra mão e quando eram realizadas, além
<strong>de</strong>sse "<strong>de</strong>feito" apresentavam alguns outros.Muitas vezes até os organizadores verificavam que os manifestantesnão sabiam bem o nome do gran<strong>de</strong> homem a festejar. Era uma lástima!Uma vergonha!Acontecia em certas ocasiões que um grupo gritava -- Viva o doutorClarindo! -- o outro exclamava: -- Viva o doutor Carlindo -- e umterceiro expectorava -- Viva o doutor Arlindo! -- quando o verda<strong>de</strong>ironome do doutor era -- Gracindo!Para obviar tais inconvenientes, houve alguém que teve a idéia <strong>de</strong>"canalizar, <strong>de</strong> disciplinar" o entusiasmo do povo bruzundanguense, entusiasmotão necessário às manifestações que lá há constantemente, e tão indispensáveissão ao fabrico <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s homens que dirijam os <strong>de</strong>stinos dagran<strong>de</strong> e formosa República dos Estados Unidos da Bruzundanga.Esse alguém, esse homem <strong>de</strong> gênio, cujo nome infelizmente me escapaagora, <strong>de</strong>lineou -- a "Guarda do Entusiasmo".<strong>Os</strong> fins a que a organização <strong>de</strong> semelhante corpo manifestante <strong>de</strong>viaobe<strong>de</strong>cer, foram expostos pelo seu criador, mais ou menos, nas seguintespalavras que, se não são transcritas do seu manifesto, po<strong>de</strong>m ser tomadascomo verda<strong>de</strong>iras, pois me gabo <strong>de</strong> ter muito boa memória.Ei-las:"As sucessivas e continuadas festas que Bosomsy (capital da Bruzundanga)tem dado a vários personagens nacionais e estrangeiros, nestesúltimos tempos, sugerem a idéia <strong>de</strong> se organizar um corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>z milhomens, convenientemente fardados, armados e disciplinados, encarregadosdas aclamações, dos vivórios e todas as outras cousas que os jornais englobamsob o título -- 'Uma Entusiástica Recepção'.É conveniente que esse corpo tenha uma organização a<strong>de</strong>quada efique sujeito à suprema direção <strong>de</strong> um dos nossos ministérios, por intermédio<strong>de</strong> uma Diretoria Geral <strong>de</strong> Manifestações e Festejos, que <strong>de</strong>ve sercriada oportunamente.O nosso catita Ministério <strong>de</strong> Estrangeiros está naturalmente indicadopara superinten<strong>de</strong>r os <strong>de</strong>stinos superiores <strong>de</strong>ssa 'Guarda do Entusiasmo',e da diretoria, que fará parte naturalmente da respectiva Secretaria <strong>de</strong>Estado.O aproveitamento da energia entusiástica <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>z mil homens obter--se-á com uma disciplina inteligente e uma hierarquia conveniente.Cada soldado, pelo menos, <strong>de</strong>verá dar dois 'vivas' por minuto; ossargentos e <strong>de</strong>mais inferiores, nos intervalos dos 'vivas', baterão palmas,muitas palmas, seguidas e nervosas; os oficiais serão encarregados <strong>de</strong> soltarfoguetes e traques; o general fará, por intermédio do corneta, os sinais daor<strong>de</strong>nança, <strong>de</strong> modo a graduar, a marcar a aclamação <strong>de</strong>lirante.Ter-se-á assim a canalização, a organização do entusiasmo, e a população<strong>de</strong> Bosomsy mediante um pequeno imposto, ficará <strong>de</strong>sembaraçada doônus manifestante.O fardamento não custará lá gran<strong>de</strong> cousa. Roupas usadas, velhoschapéus <strong>de</strong> funcionários sobrecarregados <strong>de</strong> família, botas acalcanhadas <strong>de</strong>empregados <strong>de</strong> advogados, emprestarão aos soldados o aspecto mais popularpossível. <strong>Os</strong> oficiais vestirão a sobrecasaca <strong>de</strong> sarja das gran<strong>de</strong>s ocasiões;o general e o seu estado-maior virão em carro <strong>de</strong>scoberto.A 'Guarda do Entusiasmo' não formará, por completo, para toda equalquer homenagem.Um embaixador belíssimo terá direito à meta<strong>de</strong>; um chefe <strong>de</strong> Estadofeio, a toda ela.O Governo, como atualmente proce<strong>de</strong> com as bandas <strong>de</strong> música militares,po<strong>de</strong>rá alugar fracções da 'Guarda', ou mesmo ela completa, a particularesque pretendam realizar manifestações honestas e republicanas;e, com isto, obterá uma segura fonte <strong>de</strong> renda para o erário nacional.Tudo indica que nela haja algumas centenas <strong>de</strong> praças e uma ou duasdúzias <strong>de</strong> oficiais conhecedores do entusiasmo inglês, francês, china e abeximpara as manifestações a gran<strong>de</strong>s personagens abexins, chineses, fran-
- Page 1 and 2: Os Bruzundangas, de Lima BarretoTex
- Page 4 and 5: tantes. Por isso entrara no coupé
- Page 6 and 7: com pelotiquices e passes de mágic
- Page 8 and 9: da Bruzundanga; era assim como o se
- Page 10: E muitas outras de que me esqueci,
- Page 13 and 14: Certo dia, Idle Bhras de Grafofone
- Page 15 and 16: chem de orgulho a família toda, os
- Page 17 and 18: Entretanto, as primeiras têm um an
- Page 19 and 20: A minha estadia na Bruzundanga foi
- Page 21 and 22: ao fim.Não desanimarei e ainda mai
- Page 23 and 24: Eis como são as riquezas do país
- Page 25 and 26: Pode-se dizer que todos anseiam por
- Page 27 and 28: esse negócio de condecorações e
- Page 29 and 30: etc.Os deputados não deviam ter op
- Page 31 and 32: homem cuja única habilidade se res
- Page 33 and 34: gado e quase sempre generoso, e eu,
- Page 35 and 36: aritmética, era a conta de juros,
- Page 37 and 38: suas correrias, encontrou-se com um
- Page 39 and 40: da inteligência humana e da nature
- Page 41 and 42: sabem quem ele é, quais são os se
- Page 43 and 44: traziam. Via perfeitamente tais arm
- Page 45: fregueses e a ter cuidado com os ca
- Page 49 and 50: Assim, em uma espécie de Rua da Al
- Page 51 and 52: cho coletivo, levando tão estranha
- Page 53 and 54: hediondas! Quanta insuficiência ar
- Page 55 and 56: fácil de explicar.Ele veio, no fim
- Page 57 and 58: Não ficou aí. Mostrou a necessida
- Page 59 and 60: exímio em dança; e, enquanto ele
- Page 61 and 62: hortaliças, legumes e a criação
- Page 63 and 64: grandes festas o centenário da fun
- Page 65 and 66: ecursos medianos, modestos, retraí
- Page 67 and 68: tudo...Recentemente, na Bruzundanga
- Page 69 and 70: Quando ficam ricos, estão completa
- Page 71 and 72: nossa opinião que essa questão de
- Page 73 and 74: janelas da sala.Careta, Rio, 5-11-2