tantes. Por isso entrara no coupé <strong>de</strong>pressa, sôfrego, sem mesmo repararse, <strong>de</strong> fato, era o seu. Vinha cegamente, tangido por sentimentoscomplexos: orgulho, força, valor, vaida<strong>de</strong>.Todo ele era um poço <strong>de</strong> certeza. Estava certo do seu valor intrínseco;estava certo das suas qualida<strong>de</strong>s extraordinárias e excepcionais.A respeitosa atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos e a <strong>de</strong>ferência universal que o cercavaeram nada mais, nada menos que o sinal da convicção geral <strong>de</strong> serele o resumo do país, a encarnação dos seus anseios. Nele viviam osdoridos queixumes dos humil<strong>de</strong>s e os espetaculosos <strong>de</strong>sejos dos ricos.As obscuras <strong>de</strong>terminações das coisas, acertadamente, haviam-no erguidoaté ali, e mais alto levá-lo-iam, visto que só ele, ele só e unicamente,seria capaz <strong>de</strong> fazer o país chegar aos <strong>de</strong>stinos que os antece<strong>de</strong>ntes<strong>de</strong>le impunham...E ele sorriu, quando essa frase lhe passou pelos olhos, totalmenteescrita em caracteres <strong>de</strong> imprensa, em um livro ou em um jornal qualquer,Lembrou-se do seu discurso <strong>de</strong> ainda agora:"Na vida das socieda<strong>de</strong>s, como na dos indivíduos"...Que maravilha! Tinha algo <strong>de</strong> filosófico, <strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>nte. E osucesso daquele trecho? Recordou-se <strong>de</strong>le por inteiro:"Aristóteles, Bacon, Descartes, Spinosa e Spencer, como Sólon,Justiniano, Portalis e Ihering, todos os filósofos, todos os juristas afirmamque as leis <strong>de</strong>vem se basear nos costumes"...O olhar, muito brilhante, cheio <strong>de</strong> admiração -- o olhar do lea<strong>de</strong>rda oposição -- foi o mais seguro penhor do efeito da frase...E quando terminou! Oh!"Senhor, o nosso tempo é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s reformas; estejamos com ele:reformemos!"A cerimônia mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo comque esse final foi recebido.O auditório <strong>de</strong>lirou. As palmas estrugiram; e, <strong>de</strong>ntro do gran<strong>de</strong>salão iluminado, pareceu-lhe que recebia as palmas da Terra toda.O carro continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciamcomo um só traço <strong>de</strong> fogo; <strong>de</strong>pois sumiram-se.O veículo agora corria vertiginosamente <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma névoafosforescente. Era em vão que seus augustos olhos se abriam <strong>de</strong>smedidamente;não havia contornos, formas, on<strong>de</strong> eles pousassem.Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava a mesmahora, o mesmo minuto da sua saída da festa.-- Cocheiro, on<strong>de</strong> vamos?Quis arriar as vidraças. Não pô<strong>de</strong>; queimavam.Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente,Gritou ao cocheiro:-- On<strong>de</strong> vamos? Miserável, on<strong>de</strong> me levas?Apesar <strong>de</strong> ter o carro algumas vidraças arriadas, no seu interiorfazia um calor <strong>de</strong> forja. Quando lhe veio esta imagem, apalpou bem,no peito, as grã-cruzes magníficas. Graças a Deus, ainda não se haviam<strong>de</strong>rretido. O Leão da Birmânia, o Dragão da China, o Lingão da Índiaestavam ali, entre todas as outras, intactas.-- Cocheiro, on<strong>de</strong> me levas?Não era o mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele homem <strong>de</strong>nariz adunco, queixo longo com uma barbicha, não era o seu fielManuel!-- Canalha, pára, pára, senão caro me pagarás!O carro voava e o ministro continuava a vociferar:-- Miserável! Traidor! Pára! Pára!Em uma <strong>de</strong>ssas vezes voltou-se o cocheiro; mas a escuridão que seia, aos poucos fazendo quase perfeita, só lhe permitiu ver os olhos doguia da carruagem, a brilhar <strong>de</strong> um brilho brejeiro, metálico e cortante.Pareceu-lhe que estava a rir-se.O calor aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não po<strong>de</strong>ndo
suportar o calor, <strong>de</strong>spiu-se. Tirou a agaloada casaca, <strong>de</strong>pois o espadim,o colete, as calças...Sufocado, estonteado, parecia-lhe que continuava com vida, masque suas pernas e seus braços, seu tronco e sua cabeça dançavam,separados.Desmaiou; e, ao recuperar os sentidos, viu-se vestido com umareles "libré" e uma grotesca cartola, cochilando à porta do palácioem que estivera ainda há pouco e <strong>de</strong> on<strong>de</strong>, saíra triunfalmente, nãohavia minutos.Nas proximida<strong>de</strong>s um coupé estacionava.Quis verificar bem as coisas circundantes; mas não houve tempo.Pelas escadas <strong>de</strong> mármore, gravemente, solenemente, um homem(pareceu-lhe isso) <strong>de</strong>scia os <strong>de</strong>graus, envolvido no fardão que <strong>de</strong>spira,tendo no peito as mesmas magníficas grã-cruzes...Logo que o personagem pisou na soleira, <strong>de</strong> um só ímpetoaproximou-se e, abjectamente, como se até ali não tivesse feito outracoisa, indagou:-- Vossa Excelência quer o carro?Como esta há, na Bruzundanga, muitas outras "histórias" que correm<strong>de</strong> boca em boca e se transmitem <strong>de</strong> pai a filho.<strong>Os</strong> literatos, propriamente, aqueles <strong>de</strong> bons vestuários e a<strong>de</strong>manes <strong>de</strong>encomenda, não lhes dão importância, embora <strong>de</strong> todo não <strong>de</strong>sprezem aliteratura oral. Ao contrário: todos eles quase não têm propriamente obrasescritas; a bagagem <strong>de</strong>les consta <strong>de</strong> conferências, poesias recitadas nassalas, máximas pronunciadas na intimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> amigos, discursos em batizadosou casamentos, em banquetes <strong>de</strong> figurões ou em cerimônias escolares,cifrando-se, as mais das vezes, a sua obra escrita em uma plaquette <strong>de</strong>fantasia <strong>de</strong> menino, coletâneas <strong>de</strong> ligeiros artigos <strong>de</strong> jornal ou num maçudocompêndio <strong>de</strong> aula, vendidos, na nossa moeda, à razão <strong>de</strong> quinze ou vintemil-réis o volume.Estes tais são até os escritores mais estimados e representativos, sobretudoquando empregam palavras obsoletas e são médicos com larga freguesia.São eles lá, na Bruzundanga, conhecidos por "expoentes" e não há moçarica que não queira casar com eles. Fazem-no <strong>de</strong>pressa porque vivem poucoe menos que os seus livros afortunados. Há outros aspectos. Vamos verum peculiar.O que caracteriza a literatura daquele país, é uma curiosa escola literárialá conhecida por "Escola Samoieda".Não que todo o escritor bruzundanguense pertença a semelhante ritoliterário; os mais pretenciosos, porém, e os que se têm na conta <strong>de</strong> sacerdotesda Arte, se dizem graduados, diplomados nela. Digo -- "caracteriza",porque, como os senhores verão no correr <strong>de</strong>stas notas, não há na maioriadaquela gente uma profun<strong>de</strong>za <strong>de</strong> sentimento que a impila a ir ao âmagodas cousas que fingem amar, <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifrá-las pelo amor sincero em que astêm, <strong>de</strong> querê-las totalmente, <strong>de</strong> absorvê-las. Só querem a aparência dascousas. Quando (em geral) vão estudar medicina, não é a medicina queeles preten<strong>de</strong>m exercer, não é curar, não é ser um gran<strong>de</strong> médico, é serdoutor; quando se fazem oficiais do exército ou da marinha, não é exerceras obrigações atinentes a tais profissões, tanto assim que fogem <strong>de</strong> executaro que é próprio a elas. Vão ser uma ou outra cousa, pelo brilho douniforme. Assim também são os literatos que simulam sê-lo para ter a glóriaque as letras dão, sem querer arcar com as dores, com o esforço excepcional,que elas exigem em troca. A glória das letras só as tem, quema elas se dá inteiramente; nelas, como no amor, só é amado quem se esquece<strong>de</strong> si inteiramente e se entrega com fé cega. <strong>Os</strong> samoiedas, como vamos ver,contentam-se com as aparências literárias e a banal simulação <strong>de</strong> notorieda<strong>de</strong>,umas vezes por incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inteligência, em outras por instruçãoinsuficiente ou viciada, quase sempre, porém, por falta <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro talentopoético, <strong>de</strong> sincerida<strong>de</strong>, e necessida<strong>de</strong>, portanto, <strong>de</strong> disfarçar os <strong>de</strong>feitos
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fácil de explicar.Ele veio, no fim
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Não ficou aí. Mostrou a necessida
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exímio em dança; e, enquanto ele
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grandes festas o centenário da fun
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tudo...Recentemente, na Bruzundanga
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Quando ficam ricos, estão completa
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nossa opinião que essa questão de
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