Tinham entrado no ritual da nova República os banquetes pantagruélicos;e, nas vésperas da reunião, houve um <strong>de</strong> estrondo.À sessão inaugural, prestou guarda <strong>de</strong> honra uma brigada; mas, bemcontando, era unicamente um batalhão.Quando saíram os constituintes, Z., um <strong>de</strong>les, perguntava <strong>de</strong> si para si:-- Que vou propor eu?H. excogitava:-- Devo ser pelo divórcio? Esses padrões...B. meditava:-- Antes não me metesse nisto. O imperador po<strong>de</strong> voltar e é odiabo...Quase todos, porém, consi<strong>de</strong>ravam com toda a convicção, com todoo acendramento, com um recolhimento religioso:-- Qual a Constituição que <strong>de</strong>vemos imitar?Em geral, eles esperavam ser escolhidos para a comissão dos vinte eum que tinha <strong>de</strong> redigir o projeto da futura lei básica, e era justo quetivessem semelhante preocupação absorvente:-- Qual a Constituição que <strong>de</strong>vemos imitar?Votado o regimento interno da gran<strong>de</strong> assembléia e tomadas todas asoutras disposições secundárias, a comissão dos vinte e um membros, encarregada<strong>de</strong> redigir o projeto, foi escolhida; e, em reunião, houve entre osseus membros caloroso <strong>de</strong>bate a respeito <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>veria ser o relatorou os relatores.Escolheram, afinal, três sumida<strong>de</strong>s: Felício, Gracindo e Pelino, todoseles -- ben -- qualquer cousa.O resto pôs-se a <strong>de</strong>scansar e os três, em sala separada, no dia seguinte,juntaram-se e trataram dos mol<strong>de</strong>s em que <strong>de</strong>via ser elaborada a nova MagaCarta.Pelino foi <strong>de</strong> parecer que a Constituição futura <strong>de</strong>via ser vazada nocadinho em que fora a do país dos Huyhnms.-- É um país <strong>de</strong> cavalos! exclamou Gracindo.-- Que tem isto? retrucou Pelino. Nós somos bastante parecidoscom eles.- Não, não queremos, objetaram os dous outros.-- Então, como vai ser? perguntou Pelino. Se não querem à modados cavalos, não po<strong>de</strong>mos achar outro mo<strong>de</strong>lo, pois o país dos camelosnão tem Constituição.- Façamos a Constituição aos modos da <strong>de</strong> Lilliput, fez Felício.-- Não me serve! exclamou Pelino. Semelhante gente não pesa, émuito pequena!-- Então ao jeito da <strong>de</strong> Brobdingnag, o país dos gigantes.Todos acharam justa a proposta e começaram a redigir o projeto <strong>de</strong>Constituição da Bruzundanga republicana, conforme o paradigma da dopaís dos gigantes.Quando Gulliver lá esteve (creio que os senhores se lembram disso),figurou como um verda<strong>de</strong>iro brinquedo. Ninguém o levava a sério comohomem; era antes um boneco que dormia com as moças e tinha outras:intimida<strong>de</strong>s que, se não foram contadas, po<strong>de</strong>m ser adivinhadas.A população da Bruzundanga, tirante um atributo ou outro, não eracomposta <strong>de</strong> pessoas diferentes do doutor Gulliver; eram minúsculos bonecos,portanto, que queriam possuir uma Constituição <strong>de</strong> gigantes.Felizmente, porém, já na gran<strong>de</strong> comissão, já no plenário a imitaçãofoi modificada; e, em muitos pontos, a Carta da Bruzundanga veio aafastar-se da <strong>de</strong> Brobdingnag.Houve mesmo disposições originais que merecem ser citadas. Assim,por exemplo, a exigência principal para ser ministro era a <strong>de</strong> que o candidatonão enten<strong>de</strong>sse nada das cousas da pasta que ia gerir.Por exemplo, um ministro da Agricultura não <strong>de</strong>via enten<strong>de</strong>r cousaalguma <strong>de</strong> agronomia. O que se exigia <strong>de</strong>le é que fosse um bom especulador,um agiota, um ju<strong>de</strong>u, sabendo organizar trusts, monopólios, estancos,
etc.<strong>Os</strong> <strong>de</strong>putados não <strong>de</strong>viam ter opinião alguma, senão aquelas dos governadoresdas províncias que os elegiam. As províncias não po<strong>de</strong>riam escolherlivremente os seus governantes; as populações tinham que os escolherentre certas e <strong>de</strong>terminadas famílias, aparentadas pelo sangue ou porafinida<strong>de</strong>.Havia artigos muito bons, como por exemplo o que <strong>de</strong>terminava anão acumulação <strong>de</strong> cargos remunerados e aquele que estabelecia a liberda<strong>de</strong><strong>de</strong> profissão; mas, logo, surgiu um <strong>de</strong>putado pru<strong>de</strong>nte que estabeleceu oseguinte artigo nas disposições gerais: "Toda a vez que um artigo <strong>de</strong>staConstituição ferir os interesses <strong>de</strong> parentes <strong>de</strong> pessoas da 'situação' ou <strong>de</strong>membros <strong>de</strong>la, fica subentendido que ele não tem aplicação no caso".Na constituinte, todos esperavam ficar na "situação", <strong>de</strong> modo que oartigo acima foi aprovado unanimemente.Com este artigo a Lei Suprema da Bruzundanga tomou uma elasticida<strong>de</strong>extraordinária. <strong>Os</strong> presi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> província, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que estivessem<strong>de</strong> acordo com o presi<strong>de</strong>nte da República, -- na Bruzundanga chama-seMandachuva -- faziam o que queriam.Se algum recalcitrante, à vista <strong>de</strong> qualquer violação da Constituição,apelava para a Justiça (lá se chama Chicana), logo a Corte Supremaindagava se feria interesses <strong>de</strong> parentes <strong>de</strong> pessoas da situação e <strong>de</strong>cidiaconforme o famoso artigo.Um certo governador <strong>de</strong> uma das províncias da Bruzundanga, gran<strong>de</strong>plantador <strong>de</strong> café, verificando a baixa <strong>de</strong> preço que o produto ia tendo, <strong>de</strong>modo a não lhe dar lucros fabulosos, proibiu o plantio <strong>de</strong> mais um pé quefosse da "preciosa rubiácea".Era uma lei colonial, uma verda<strong>de</strong>ira disposição da carta régia. Houveentão um cidadão que pediu habeas corpus para plantar café. A SupremaCorte, à vista do tal artigo citado, não o conce<strong>de</strong>u, visto ferir os interessesdo presi<strong>de</strong>nte da província, que pertencia à "situação".Como todo o mundo não podia pertencer à "situação", os que ficavamfora <strong>de</strong>la, vendo os seus direitos postergados, começavam a berrar, apedir justiça, a falar em princípios, e organizavam, <strong>de</strong>sta ou daquela maneira,masorcas.Se eram vitoriosos, formavam a sua "situação" e começavam a fazero mesmo que os outros.Havia apelo para a "Chicana", mas a Suprema Corte, consi<strong>de</strong>randobem o tal artigo já citado, <strong>de</strong>cidia <strong>de</strong> acordo com a 'situação". Era tudoa "situação".Todos os partidos que não pertenciam a ela, pregavam a reforma daConstituição; mas, logo que a ela a<strong>de</strong>riam, repeliam a reforma como umsacrilégio.A Constituição afirmava que ninguém podia ser obrigado a fazer ou<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fazer alguma cousa, senão em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> lei. Não havia lei quepermitisse as províncias <strong>de</strong>portar indivíduos <strong>de</strong> uma para outra, mas oEstado do Kaphet, graças ao tal artigo, <strong>de</strong>portava quem queria e aindaencomendava aos jornais que o chamassem <strong>de</strong> província mo<strong>de</strong>lo.A Constituição da Bruzundanga era sábia no que tocava às condiçõespara elegibilida<strong>de</strong> do Mandachuva, isto é, o Presi<strong>de</strong>nte.Estabelecia que <strong>de</strong>via unicamente saber ler e escrever; que nunca tivessemostrado ou procurado mostrar que tinha alguma inteligência; que nãotivesse vonta<strong>de</strong> própria; que fosse, enfim, <strong>de</strong> uma mediocrida<strong>de</strong> total.Nessa parte a Constituição foi sempre obe<strong>de</strong>cida.A República dura, na Bruzundanga, há cerca <strong>de</strong> trinta anos. Têmpassado pela curul presi<strong>de</strong>ncial nada menos do que seis Mandachuvas, enão houve, talvez, um que infringisse tão sábias disposições.
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