IIA nobreza <strong>de</strong> BruzundangaUM leitor curioso e simpático, por ser curioso, escreveu-me umaamável cartinha, pedindo-me esclarecimentos sobre os usos, os costumes,as instituições civis sociais e políticas da República dos Estados Unidos daBruzundanga.Diz-me ele que procurou informações <strong>de</strong> tal país em compêndios <strong>de</strong>geografia, em dicionários da mesma disciplina e várias obras, nada encontrandoa respeito.O meu simpático leitor não me disse que obras consultou, mas certamenteele não procurou informações nos livros que o governo da Bruzundangamanda imprimir, dando fabulosos lucros aos impressores e editores,livros escritos em várias línguas e <strong>de</strong>stinados a fazer a propaganda dopaís no estrangeiro.É estranho; pois que, por meio <strong>de</strong> tais livros, muita gente tem feitofortuna e adquirido notorieda<strong>de</strong> nos corredores das Secretarias e nos <strong>de</strong>svãosdo Tesouro da República da Bruzundanga.Po<strong>de</strong> ter acontecido, entretanto, que o meu leitor amigo os tivesseprocurado nas livrarias principais; mas não é aí que eles po<strong>de</strong>m ser encontrados.As obras que a república manda editar para a propaganda <strong>de</strong> suasriquezas e excelências, logo que são impressas completamente, distribuem-sea mancheias por quem as queira. Todos as aceitam e logo passam adiante,por meio <strong>de</strong> venda. Não julgue o meu correspon<strong>de</strong>nte que os "sebos" asaceitem. São tão mofinas, tão escandalosamente mentirosas, tão infladas<strong>de</strong> um optimismo <strong>de</strong> encomenda que ninguém as compra, por sabê-lasfalsas e <strong>de</strong>stituídas <strong>de</strong> toda e qualquer honestida<strong>de</strong> informativa, <strong>de</strong> formaa não oferecer nenhum lucro aos reven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> livros, por falta <strong>de</strong>compradores.On<strong>de</strong> o meu leitor po<strong>de</strong>rá encontrá-las, se quer ter informações maisou menos transbordantes <strong>de</strong> entusiasmo pago, é nas lojas <strong>de</strong> merceeiros,nos açougues, nas quitandas, assim mesmo em fragmentos, pois todos aspe<strong>de</strong>m nas repartições públicas para vendê-las a peso aos retalhistas <strong>de</strong>carne ver<strong>de</strong>, aos ven<strong>de</strong>iros e aos ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> couves.Contudo, a fim <strong>de</strong> que o meu <strong>de</strong>licado missivista não fique fazendomau juízo a meu respeito, vou dar-lhe algumas informações sobre o po<strong>de</strong>rosoe rico país da Bruzundanga.Hoje lhe falarei das nobrezas da gran<strong>de</strong> Nação; proximamente, emartigos sucessivos, tratarei <strong>de</strong> outras instituições e costumes.A nobreza da Bruzundanga se divi<strong>de</strong> em dous gran<strong>de</strong>s ramos. Talqualmentecomo na França <strong>de</strong> outros tempos, em que havia a nobreza <strong>de</strong>Toga e a <strong>de</strong> Espada, na Bruzundanga existe a nobreza doutoral e umaoutra que, por falta <strong>de</strong> nome mais a<strong>de</strong>quado, eu chamarei <strong>de</strong> palpite.A aristocracia doutoral é constituída pelos cidadãos formados nasescolas, chamadas superiores, que-são as <strong>de</strong> medicina, as <strong>de</strong> direito e as<strong>de</strong> engenharia. Há <strong>de</strong> parecer que não existe aí nenhuma nobreza; que oscidadãos que obtêm títulos em tais escolas vão exercer uma profissão comooutra qualquer. É um engano. Em outro qualquer país, isto po<strong>de</strong> se dar;na Bruzundanga, não.Lá, o cidadão que se asma <strong>de</strong> um título em uma das escolas citadas,obtém privilégios especiais, alguns constantes das leis e outros consignadosnos costumes. O povo mesmo aceita esse estado <strong>de</strong> cousas e temum respeito religioso pela sua nobreza <strong>de</strong> doutores. Uma pessoa da plebenunca dirá que essa espécie <strong>de</strong> brâmane tem carta, diploma; dirá: tempergaminho. Entretanto, o tal pergaminho é <strong>de</strong> um medíocre papel <strong>de</strong>Holanda.As moças ricas não po<strong>de</strong>m compreen<strong>de</strong>r o casamento senão com odoutor; e as pobres, quando alcançam um matrimônio <strong>de</strong>ssa natureza, en-
chem <strong>de</strong> orgulho a família toda, os colaterais, e os afins. Não é raro ouviralguém dizer com todo o orgulho:-- Minha prima está casada com o doutor Bacabau.Ele se julga também um pouco doutor. Joana d'Arc não enobreceuos parentes?A formatura é dispendiosa e <strong>de</strong>morada, <strong>de</strong> modo que os pobres, inteiramentepobres, isto é, sem fortuna e relações, poucas vezes po<strong>de</strong>malcança-la.Cousa curiosa! O que mete medo aos candidatos à nobreza doutoral,não são os exames da escola superior; são os exames preliminares, aquelesdas matrículas que constituem o nosso curso secundário...Em geral, apesar <strong>de</strong> serem lentos e <strong>de</strong>morados, os cursos são medíocrese não constituem para os aspirantes senão uma vigília <strong>de</strong> armas para seremarmados cavaleiros.O título -- doutor -- anteposto ao nome, tem na Bruzundanga o efeitodo -- dom -- em terra <strong>de</strong> Espanha. Mesmo no Exército, ele soa emtodo o seu prestígio nobiliárquico. Quando se está em face <strong>de</strong> um coronelcom o curso <strong>de</strong> engenharia, o modo <strong>de</strong> tratá-lo é matéria para atrapalhaçõesprotocolares. Se só se o chama tout court -- doutor Kamisão --,ele ficará zangado porque é coronel; se se o <strong>de</strong>signa unicamente por coronel,ele julgará que o seu interlocutor não tem em gran<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração oseu título universitário-militar.<strong>Os</strong> pru<strong>de</strong>ntes, quando se dirigem a tais pessoas, juntam os dous títulos,mas há ainda aí uma dificulda<strong>de</strong> na precedência <strong>de</strong>les, isto é, se se <strong>de</strong>vem<strong>de</strong>signar tais senhores por -- doutor coronel -- ou -- coronel doutor.Está aí um problema que <strong>de</strong>ve merecer acurado estudo do nossosábio Mayrinck. Se o nosso gran<strong>de</strong> especialista em cousas protocolaresesolver o problema, muito ganhará a fama da inteligência brasileira.Quanto aos costumes, é isto que se observa em relação à nobrezadoutoral. Temos, agora, que ver no tocante às leis.O nobre doutor tem prisão especial, mesmo em se tratando dosmais repugnantes crimes. Ele não po<strong>de</strong> ser preso como qualquer do povo.<strong>Os</strong> regulamentos rezam isto, apesar da Constituição, etc., etc.Tendo crescido imensamente o número <strong>de</strong> doutores, eles, os seus pais,sogros, etc., trataram <strong>de</strong> reservar o maior número <strong>de</strong> lugares do Estadopara eles. Capciosamente, os regulamentos da Bruzundanga vão conseguindoesse <strong>de</strong>si<strong>de</strong>ratum.Assim, é que os simples lugares <strong>de</strong> alcai<strong>de</strong>s <strong>de</strong> polícia, equivalentesaos nossos <strong>de</strong>legados, cargos que exigem o conhecimento <strong>de</strong> simples rudimentos<strong>de</strong> direito, mas muito tirocínio e hábito <strong>de</strong> lidar com malfeitores, sópo<strong>de</strong>m ser exercidos por advogados, nomeados temporariamente.A Constituição da Bruzundanga proíbe as acumulações remuneradas,mas as leis ordinárias acharam meios e modos <strong>de</strong> permitir que os doutoresacumulassem. São cargos técnicos que exigem aptidões especiais, dizem.A Constituição não fez exceção, mas os doutores hermeneutas acharamuma.Há médicos que são ao mesmo tempo clínicos do Hospital dos Indigentes,lentes da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina e inspetores dos telégrafos; há,na Bruzundanga, engenheiros que são a um só tempo professores <strong>de</strong> gregono Ginásio Secundário do Estado, professores <strong>de</strong> oboé, no Conservatório<strong>de</strong> Música, e peritos louvados e vitalícios dos escombros <strong>de</strong> incêndios.Quando lá estive, conheci um bacharel em direito que era consultorjurídico da principal estrada <strong>de</strong> ferro pertencente ao governo, inspetor dosserviços metalúrgicos do Estado e examinador das candidatas a irmãs <strong>de</strong>carida<strong>de</strong>.Como vêem, eles exercem conjuntamente cargos bem técnicos e atinentesaos seus diplomas.Um empregado público qualquer que não seja graduado, não po<strong>de</strong> sereleito <strong>de</strong>putado; mas a mesma lei eleitoral faz exceção para aqueles funcionáriosque exercem cargos <strong>de</strong> natureza técnica, isto é, doutores. Já vimos
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