<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>dividido numa esfera <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e numa outra profana. Nela,0 curso da natureza, enquanto emanação do mana, já se elevaraem norma que exige a submissão. Mas se apesar <strong>de</strong>toda submissão o selvagem nôma<strong>de</strong> ainda tomava parte nofeitiço que a limitava, disfarçando-se em caça para surpreen<strong>de</strong>ra caça, nos períodos posteriores, o comércio com os espíritose a submissão foram distribuídos pelas diferentes classesda humanida<strong>de</strong>: o po<strong>de</strong>r fica <strong>de</strong> um lado, o obe<strong>de</strong>cer dooutro. Os processos da natureza, eternamente iguais e repetitivos,são inculcados nos que são submetidos, quer por tribosestranhas, quer pelas suas próprias camarilhas dirigentes,como cadência <strong>de</strong> trabalho marcada pelo ritmo do pilão edo açoite, que ressoa em cada tambor bárbaro, em cada ritualmonótono. Os símbolos assumem a expressão do fetiche. Arepetição da natureza, que eles significavam, evi<strong>de</strong>ncia-se daípor diante sempre como a repetição da permanência <strong>de</strong> coaçãosocial por eles representada. O terror objetualizado naimagem fixa torna-se signo da dominação fortalecida dosprivilegiados. Mas os conceitos gerais continuam a ser essesmesmos signos, embora tendo eliminado <strong>de</strong> si qualquer afiguração.A forma <strong>de</strong>dutiva da ciência espelha ainda a hierarquiae a coação. Tal como as primeiras categorias representama tribo organizada e seu po<strong>de</strong>r sobre o indivíduo,toda a or<strong>de</strong>m lógica, <strong>de</strong>pendência, concatenação, extensão econexão dos conceitos fundamentam-se nas relações correspon<strong>de</strong>ntesda realida<strong>de</strong> social, da divisão do trabalho. 1 Contudo,esse caráter social das formas do pensar não é, comoensina Durkheim, expressão <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> social, mas testemunhoda unida<strong>de</strong> impenetrável entre socieda<strong>de</strong> e dominação.A dominação confere maior força e consistência aotodo social no qual se estabelece. A divisão do trabalho, naqual a dominação se <strong>de</strong>senvolve socialmente, serve à autoconservaçãodo todo dominado. Mas, com isso, o todo como1 Cf. E. Durkheim, De quelques formes primitives <strong>de</strong> classificatim, UAnnée sociologique, vol. IV,1903, pp. 66 ss. (N. do A.)— 38 —
ADORNOtal, a ativida<strong>de</strong> da razão a ele imanente, torna-se execuçãodo particular. A dominação faz frente ao indivíduo a título<strong>de</strong> geral, <strong>de</strong> razão na esfera da realida<strong>de</strong>. O po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> todosos membros da socieda<strong>de</strong>, que enquanto tais não dispõem<strong>de</strong> outra saída aberta, soma-se, sempre <strong>de</strong> novo, por meioda divisão <strong>de</strong> trabalho que lhes é imposta, para a realizaçãojustamente do todo, cuja racionalida<strong>de</strong> assim é por sua vezmultiplicada. O que é feito a todos por poucos, perfaz-sesempre pela subjugação <strong>de</strong> alguns por muitos: a opressãoda socieda<strong>de</strong> exibe sempre, ao mesmo tempo, os traços daopressão exercida por um coletivo. É essa unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coletivida<strong>de</strong>e dominação, e não a imediata generalida<strong>de</strong> social,a solidarieda<strong>de</strong>, que se sedimenta nas formas do pensamento.Os conceitos filosóficos com os quais Platão e Aristóteles expõemo mundo, pela pretensão à valida<strong>de</strong> universal, elevaramas relações por eles fundamentadas ao status da realida<strong>de</strong>verda<strong>de</strong>ira. Esses conceitos provêm, como se lê em Vico, 1do mercado <strong>de</strong> Atenas. Eles espelham, com a mesma pureza,as leis da física, a igualda<strong>de</strong> dos cidadãos <strong>de</strong> pleno direitoe a inferiorida<strong>de</strong> das mulheres, crianças e escravos. A próprialinguagem conferiu ao dito, às relações <strong>de</strong> dominação, universalida<strong>de</strong>que ela própria assumiu enquanto meio <strong>de</strong> comunicação<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> burguesa. A insistência metafísica,a sanção por idéias e normas, não passava da hipóstaseda dureza e exclusivida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>ve sempre caracterizar osconceitos on<strong>de</strong> quer que a linguagem tenha unido a comunida<strong>de</strong>dos dominantes no exercício do comando. Quantomais crescia o po<strong>de</strong>r^social da linguagem, mais supérfluastornavam-se as idéía§ g^ra fortalecê-lo, e a linguagem daciência lhes <strong>de</strong>u o golpe <strong>de</strong> misericórdia. A sugestão, quetinha em si ainda algo do terror perante o fetiche, não seprendia à justificação consciente. A unida<strong>de</strong> entre coletivida<strong>de</strong>e dominação manifesta-se antes naquela universalida<strong>de</strong>1 G. Vico, Die Neue Wissensdaft über die gemeinschaflliche Natur <strong>de</strong>r Võlker. Trad. <strong>de</strong> Auerbach,Munique, 1924, p. 397. (N. do A.)— 39 —
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