<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>intacto o essencial. A individualida<strong>de</strong> não esgota a essênciados <strong>de</strong>uses. Eles ainda tinham em si algo <strong>de</strong> mana, encarnavama natureza enquanto po<strong>de</strong>r universal; e, com seus traçospré-animistas, sobrevivem no iluminismo. Debaixo do véupudico da cronique scandaleuse do Olimpo, já se tinha configuradoa doutrina da mistura, da pressão e choque dos elementos,que logo em seguida se estabeleceu como ciência ereduziu os mitos a construções da fantasia. Com a clara distinçãoentre ciência e poesia, a divisão do trabalho já efetivadacom seu auxílio se esten<strong>de</strong> à linguagem. Como signo, a palavraentra na ciência; como som, como imagem, como palavrapropriamente dita, ela é distribuída pelas diferentesartes, sem que jamais possa ser restabelecida pela soma <strong>de</strong>ssasúltimas, pela sinestesia ou pela "arte global". Como signo,a linguagem <strong>de</strong>ve resignar-se a ser um cálculo, para conhecera natureza, precisa renunciar à pretensão <strong>de</strong> lhe ser semelhante.Como imagem, ela <strong>de</strong>ve resignar-se a ser reprodução,para ser totalmente natureza, tem que renunciar à pretensão<strong>de</strong> conhecê-la. Com o progredir do iluminismo, só as autênticasobras <strong>de</strong> arte pu<strong>de</strong>ram escapar <strong>de</strong> ser meras imitaçõesdaquilo que, <strong>de</strong> qualquer maneira, já é. A antítese corriqueiraentre arte e ciência, que separa as duas em diferentes setoresculturais, a fim <strong>de</strong> que, enquanto setores culturais, elas possamser ambas administradas, faz com que cada uma <strong>de</strong>las, enquantoexato oposto, converta-se finalmente na outra em virtu<strong>de</strong><strong>de</strong> suas próprias tendências. A ciência, na sua interpretaçãoneopositivista, torna-se esteticismo, um sistema <strong>de</strong> signossoltos, <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> qualquer intenção que transcenda o sistema:jogo que os matemáticos, já há muito tempo, orgulhosamente<strong>de</strong>clararam ser o seu assunto. Mas a arte da reprodutibilida<strong>de</strong>integral abandonou-se à ciência positivista até mesmonas suas técnicas. Mais uma vez, <strong>de</strong> fato, ela se torna mundo,duplicação i<strong>de</strong>ológica, dócil reprodução. A separação entre signoe imagem é inevitável. Todavia, se for mais uma vez hipostasiada,num incauto contentamento consigo mesma, cadaum dos dois princípios isolados induz à <strong>de</strong>struição da verda<strong>de</strong>.— 34 —
ADORNOA filosofia evita o abismo que se abriu com essa separação,na relação entre conceito e intuição, e tenta sempre eem vão cobri-lo: sim, na verda<strong>de</strong>, ela se <strong>de</strong>fine por essa tentativa.No mais das vezes, ela se posta <strong>de</strong>certo do lado doqual recebe o nome. Platão baniu a poesia, no mesmo espíritocom que o positivismo <strong>de</strong>sterrou a doutrina das idéias. Comsua arte tão louvada, Homero não impôs reformas nem públicasnem privadas, não ganhou guerras nem fez <strong>de</strong>scobertas.Desconhecemos a existência <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong>seguidores que o teriam venerado ou amado. A arte aindaterá que comprovar sua utilida<strong>de</strong>. 1 Em Platão, como no judaísmo,a imitação é proscrita. Razão e religião banem oprincípio da feitiçaria. Enquanto arte, numa abnegada distânciada existência, esse princípio ainda é <strong>de</strong>sonesto; os queo praticam tornam-se errantes, nôma<strong>de</strong>s sobreviventes quenão têm mais pátria entre os que se tornaram se<strong>de</strong>ntários.A natureza não <strong>de</strong>ve mais ser influenciada por assemelhação,mas dominada pelo trabalho. A obra <strong>de</strong> arte tem ainda emcomum com a feitiçaria a fixação <strong>de</strong> um domínio própriofechado em si, subtraído da contextura do existir profano.Vigem aí leis particulares. Assim como o feiticeiro começavaa cerimônia <strong>de</strong>limitando, contra todo o mundo circundante,0 lugar próprio para o jogo das forças sagradas, assim tambémem cada obra <strong>de</strong> arte <strong>de</strong>staca-se do real o seu âmbitofechado. A renúncia à influência, pela qual a arte se <strong>de</strong>sligada simpatia mágica, é justamente o que mais profundamentepreserva a herança mágica. Ela impõe, em oposição à existênciaem carne e osso Jà imagem pura que supera em si oselementos <strong>de</strong>ssa existência. O sentido da obra <strong>de</strong> arte, a aparênciaestética, exige que ela seja aquilo em que se convertia,naquele feitiço do primitivo, o novo e terrificante acontecer:a aparição do todo no particular. Perfaz-se mais uma vez,na obra <strong>de</strong> arte, a duplicação pela qual a coisa aparecera1 Cf. no décimo livro da República. (N. do A.)— 35 —
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