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JORNALISMO E CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE: NOTAS ...

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<strong>JORNALISMO</strong> E CONSTRUÇÃO <strong>SOCIAL</strong> <strong>DA</strong> REALI<strong>DA</strong>DE:<strong>NOTAS</strong> SOBRE OS CRITÉRIOS DE REPRESENTAÇÃO <strong>DA</strong> VIOLÊNCIA NAIMPRENSA CARIOCA 1Edílson Márcio Almeida da SilvaInegavelmente, os estudos sobre violência ocupam hoje uma posição central nosdebates entre pesquisadores brasileiros. Embora não se possa subsumir a variedade deobjetos/violência sob um conceito uno e sintético 2 , levantamentos na área das ciênciassociais (KANT DE LIMA et alli: 2000; ZALUAR: 1999) atestam que, nas últimas décadas,produziu-se no Brasil um considerável acúmulo de trabalhos voltados, direta ouindiretamente, para a temática em questão. Nesse sentido, um dos eixos que vêm sendocrescentemente privilegiados diz respeito aos estudos sobre a chamada “violência urbana”,recentemente transformada de “problema social” em “objeto sociológico” (LENOIR: 1998)e, concomitantemente, alçada à inequívoca condição de problemática obrigatória 3 .Pesquisadores diversos (por exemplo, cf. Misse: 1999; Machado da Silva: 1995)têm discutido problemas relativos ao recrudescimento da criminalidade e da violência noBrasil, o que, segundo eles, estaria diretamente relacionado a uma série de transformaçõesconjunturais que, desde a década de 70, vêm se impondo a diferentes cidades de grande emédio porte do país. Paralelamente ao crescimento do tráfico de drogas ilícitas e,1 Uma primeira versão desse trabalho foi publicada, com o mesmo título, em Revista Praia Vermelha –Estudos de Política e Teoria Social, n o 13. Rio de Janeiro: Escola de Serviço Social da Universidade Federaldo Rio de Janeiro, 2005.2 Apesar de não pretender discutir a noção de “violência”, tampouco utilizá-la como operador analítico, épreciso salientar que, sociológica e historicamente, ela tem ensejado as interpretações mais diversas. Pode-seafirmar que, como tantas outras, não se trata de uma noção que obedeça a qualquer acordo semântico ouético-cultural. Cumpre observar, assim, que o emprego do termo far-se-á aqui a despeito de sua polissemia edas implicações enredadas pelo uso, muitas vezes generalizante, vago e impreciso, que no senso comum emesmo no meio acadêmico recorrentemente se lhe conferem.3 Tomo aqui emprestada a noção de problemática obrigatória tal qual formulada por Bourdieu (2001, p. 207),isto é, como uma das temáticas prevalecentes nas abordagens e discussões de um dado contexto sociohistóricoque, como tal, faz parte de um “repertório de lugares-comuns” ou “conjunto de questões obrigatórias quedefinem o campo cultural de uma época”.


conseqüentemente, à expansão quantitativa da violência (que pode ser depreendida, porexemplo, do crescente número de homicídios nas capitais 4 ), os estudiosos apontam aconsolidação de mudanças qualitativas nos padrões de criminalidade, o que tem resultadona intensificação do verdadeiro estado de insegurança presente em diferentes pontos doterritório nacional.Foi partindo do pressuposto de que, nas últimas décadas, a temática da “violênciaurbana” tem despertado interesse geral e assumido crescente importância, ocupando, comnotável regularidade, espaços nobres na mídia e, particularmente, a primeira página dosprincipais jornais brasileiros, que concebi este texto cujo propósito é, tão-somente,contribuir para a compreensão do modo como são construídas as representações daviolência urbana na imprensa. Para realizá-lo, dirigi o foco para a cidade do Rio de Janeiroe acompanhei o processo de produção de notícias em um jornal de grande circulação naregião. Com isso, procurei entender como, dentre as violências do dia-a-dia, os seusprofissionais selecionam aquilo que deve ser noticiado, o que tem potencial para se tornarmanchete de primeira página e, contrariamente, o que, dentro de uma escala de valoresespecífica, acaba por ser pouco explorado ou mesmo excluído do espaço do jornal.É, pois, sobre essa experiência de pesquisa e algumas das primeiras impressões porela suscitadas que trata o texto a seguir.4 Por figurar, segundo os dados oficiais, entre as capitais que apresentam os mais elevados índices decriminalidade, o Rio de Janeiro ilustra satisfatoriamente as afirmações acerca da expansão quantitativa daviolência. Conforme um levantamento da Secretaria de Polícia Civil do Rio de Janeiro, apenas a região doGrande Rio teria sido palco de 43.601 assassinatos durante a década de oitenta. De acordo com tais dados, adécada seguinte assistiu ao agravamento desse quadro, uma vez que foram assassinadas 73.430 pessoas entreo início dos anos noventa e meados do ano 2000 (SODRÉ, M. Sociedade, Mídia e Violência. Porto Alegre:Sulina/Edipucrs, 2002, p. 13-14).


CAMPO EMPÍRICO E UNI<strong>DA</strong>DE ANALÍTICA <strong>DA</strong> PESQUISAConforme já foi enunciado, o objeto de interesse deste artigo reside na compreensãodo processo de produção de notícias na grande imprensa carioca e, particularmente, domodo como é abordada a temática da “violência urbana”. Por conta disso, entre os meses demarço e agosto de 2005, realizei trabalho de campo na redação de um conhecido jornal doRio de Janeiro, ocasião em que tive oportunidade de assistir a seminários, participar dereuniões, conversar com repórteres, entrevistar editores e chefes de reportagem, enfim,acompanhar in loco as rotinas que compõem o seu processo diário de produção da notícia.Paralelamente a isso, durante um período de aproximadamente sete meses (entre janeiro eagosto de 2005), li e fichei todas as edições deste mesmo jornal, procurando destacar eanalisar um conjunto de reportagens que, a posteriori, foram mapeadas comparativamente,a fim de verificar, entre outras coisas, a freqüência, a forma de apresentação e a importânciarelativa conferida às notícias que lidam especificamente com a temática da “violênciaurbana”.O jornal analisado na pesquisa tem uma tiragem média de 260 mil exemplares noschamados dias úteis e 380 mil aos domingos, o que o leva a figurar entre os três maioresveículos do setor no ranking nacional de vendagem 5 . Mantendo-se na posição de líderabsoluto entre as classes A e B do Rio de Janeiro 6 , apresenta cotidianamente reportagenssobre “os principais fatos do Brasil e do mundo, em todas as áreas” e constitui-se, por assim5 Fonte: IVC (Instituto Verificador de Circulação), maio de 2005.6 Segundo o IVC, no mês de maio de 2004, a circulação do jornal pesquisado foi a seguinte: 1% dos leitores(3.096) residia em São Gonçalo; 3% (6.848) estavam concentrados na Baixada Fluminense; outros 3% (6.660)encontravam-se no Centro da cidade; 4% (8.649) viviam na região da Leopoldina; 8% (16.165) eram deNiterói; 9% (18.878) da Zona Central; 17% (36.382) da Zona Norte; enquanto a maioria deles (55% ou117.078 leitores) estavam concentrados na Zona Sul da cidade, notadamente uma região em que residem,entre outros, segmentos populacionais de alto poder aquisitivo.


profissionais. Entre elas, estão as reuniões de pauta da editoria nas quais são apresentados ediscutidos os temas de potencial noticiabilidade, a fim de avaliar a sua relevância e decidir(se e) em que lugar do jornal estes devem ser publicados. Dos espaços comumentedisponíveis, o mais nobre e valorizado corresponde à primeira página ou, conforme acategoria nativa, ao “abre” da seção 10 , cuja definição se apresenta como um momentoespecialmente elucidativo para a identificação e compreensão dos múltiplos critérios queenvolvem o processo de produção das notícias. A partir da análise de alguns dessescritérios, pretende-se mostrar como um mesmo fato noticioso é passível de recebertratamentos diversos, que podem ser orientados tanto pelo seu caráter extraordinário, comopela linha editorial do jornal, pelos interesses político-econômicos em jogo ou, até mesmo,pelas preferências pessoais que determinados jornalistas, porventura, manifestem.Para entender quais são e como operam os princípios que regem a seleção e ahierarquização das prioridades noticiosas, tomar-se-á como ponto de partida os “bastidores”de construção de uma notícia específica para, em seguida, promover-se a sua desconstruçãoe, com isso, desvelar a ideologia 11 dominante que se lhe acompanha. A notícia em questão(veiculada na edição de 27 de julho de 2005), intitulada “Bala perdida atinge morta emvelório”, informa que o corpo de uma babá teria sido atingido por uma bala perdida,enquanto era velado no Cemitério do Catumbi, causando pânico entre os presentes. Na horado ocorrido, conforme o texto, havia um tiroteio numa das maiores favelas das redondezas,o Morro de São Carlos, de onde, supunha-se, teria partido o disparo. Com chamada na10 Por trazer a público a notícia mais importante do dia, o “abre” costuma receber um tratamento editorialdiferenciado. Para a sua preparação, ao contrário do que ocorre com as reportagens em geral, comumentedisponibilizam-se, pelo menos, dois ou três repórteres. Escolhida como destaque da seção, a sua feituramobiliza, ainda, profissionais das editorias de arte e de fotografia, além de boa parte da equipe de produção,que durante todo o dia lhe dedicam especial atenção.11 A noção de ideologia aqui assumida, tal qual definida por Dumont (1985), diz respeito ao “conjunto socialde representações”, ou ainda, ao “conjunto das idéias e valores comuns” (p. 279) que permeiam as práticas deuma sociedade ou grupo social.


primeira página do jornal e ocupando a segunda página da local, a notícia gerou umareportagem e uma pequena coluna, intitulada “Insegurança já virou rotina”, na qual afirmaseque a direção de muitos cemitérios do Rio têm desaconselhado ou proibido a realizaçãode velórios à noite e que, além disso, “traficantes, segundo a polícia, não estariampermitindo que bandidos rivais fossem enterrados em cemitérios como o de São FranciscoXavier (Caju), Murundu (Realengo), Inhaúma e Cacuia (Ilha do Governador)”.Como é de praxe durante esse tipo de rotina, durante a primeira reunião da local dodia 26 de julho (véspera de publicação da notícia), a pauta era lida pelo editor responsável 12e, subseqüentemente, comentada pelos subeditores e chefes de reportagem. Tudotranscorria dentro da normalidade, até que uma das subeditoras, subitamente, pronunciou-sesobre aquele que, na sua opinião, deveria ser o próximo “abre” da seção. Empolgada, ajornalista afirmava ser possível até ver a manchete estampada no dia seguinte: “BALAPERDI<strong>DA</strong> NO RIO NÃO PERDOA NEM DEFUNTO”. O editor interino, por sua vez,mostrou-se pouco animado com a idéia e apresentou um posicionamento notadamentediverso em relação ao assunto. Segundo ele, a notícia de abertura da edição deveria ser umaoutra, que tratava da repercussão de uma medida adotada pela Secretaria Municipal deGoverno proibindo o uso de equipamentos de som nos quiosques da Lagoa Rodrigo deFreitas.A subeditora, em defesa de seu ponto de vista, alegava que seria possível relacionaro caso da bala perdida com outros tantos ocorridos nos últimos tempos, tais como, porexemplo, o fechamento de escolas, vias públicas e estabelecimentos comerciais a mando detraficantes. Por meio desse expediente, acreditava ela, poder-se-ia não só noticiar o caso emsi (um defunto alvejado por um tiro num cemitério da cidade) como promover uma12 Na ocasião, o editor da Local estava de férias e, em seu lugar, assumia, interinamente, o editor-adjunto.


discussão mais ampla acerca do “crescimento da violência” e da mudança de hábitos que,conseqüentemente, estaria sendo impingida aos moradores do Rio de Janeiro. Convicta desua postura, a profissional recordou que, há meses, na local, havia sido construído um“abre” dessa mesma forma, a partir do que ela descreveu como “um fait-divers ocorrido noJardim Botânico”. Diante da insistência da colega, o editor respondeu (para minha surpresa)com a seguinte colocação: “você acabou de falar a palavrinha mágica: Jardim Botânico” e,assim, encerrou a discussão, dando a entender que, caso não surgisse uma notícia maisimportante no decorrer do dia 13 , o “abre” da local acabaria sendo, conforme suadeliberação, sobre o “barulho na Lagoa”.HIERARQUIAS INTERNASConsiderando-se o episódio descrito, um primeiro comentário que pode ser feito dizrespeito aos vieses derivados do modo como estão estruturadas as relações sócioprofissionaisna Local. No desfecho inicialmente apresentado para o impasse entre asubeditora e o editor interino, por exemplo, pôde-se notar que, a despeito dos argumentosapresentados de lado a lado, o poder de decisão acabou por ser monopolizado por aqueleque, no momento, apresentava a mais elevada posição hierárquica – no caso, ele. Ao queinteressa, aqui, deve-se salientar que situações como essa, longe de apresentarem caráter13 A reportagem de abertura da Local acabou sendo uma outra, denominada “Um pitbull com liminar”, quetratava da licença obtida por um casal, junto à Justiça, para passear livremente com sua cadela, contrariando,com isso, o decreto 37.921 da governadora Rosinha Garotinho, segundo o qual cães das raças pitbull,dobermann, fila e rotweiller só poderiam circular em locais públicos entre as 22h e 5h, ainda assim comfocinheiras e enforcadores. Como é comum ocorrer no jornal, esta notícia, que apareceu de última hora,acabou por obnubilar as demais, assumindo grande importância, por se tratar, entre outras razões, de umapolêmica recente (o decreto tinha sido baixado há vinte dias) que vinha sendo cuidadosamente acompanhadapelos jornalistas da editoria.


atípico, revelam a existência de um rígido e pouco aparente sistema hierárquico cujofuncionamento opera como dos mais importantes elementos de definição das prioridadesnoticiosas, chegando mesmo a inscrever um habitus 14 a partir do qual, cotidianamente, osjornalistas, a um só tempo, referenciam, produzem e reproduzem determinadas formas deconcepção/apreensão do real.Certa vez, durante conversa informal com um dos produtores da local, fuiapresentado a uma explicação sobre como funcionaria tal sistema hierárquico. Para isso, ojornalista me apresentou uma reportagem, após o que, com tom professoral, questionou suarelevância, desfilando o seguinte comentário: “isso aqui não é notícia!”. Segundo ele, areportagem (que havia aberto a seção no dia) não interessaria a ninguém e não era,portanto, digna de ocupar um lugar tão destacado no espaço do jornal. Após tecer algumasconsiderações sobre o assunto, o profissional, em defesa de seu ponto-de-vista, promoveuuma rápida enquete com repórteres da seccional, indagando sobre quantos deles tinham, porqualquer razão, lido o “abre” do dia. A lógica proposta era simples: se a reportagem emquestão não fosse capaz de suscitar interesse nos próprios jornalistas, não haveria deinteressar, conseqüentemente, ao grande público. Assim, após ouvir os colegas e confirmarsua tese 15 , o produtor concluiu, pragmaticamente, que o tema noticiado (supostamente“desgastado” e “sem apelo” 16 ) teria se tornado o “abre” da edição por uma única eexclusiva razão: “o editor quis!”.14 Segundo Bourdieu (2002), o habitus pode ser entendido como um ‘conhecimento adquirido’, um ‘haver’,um ‘capital’ que explica ou ensina “esta espécie de sentido do jogo (...) que faz com que se faça o que épreciso fazer no momento próprio, sem ter havido necessidade de tematizar o que havia que fazer, e menosainda a regra que permite gerar a conduta adequada” (p.23)15 Dos três repórteres ouvidos, apenas um tinha lido a reportagem. Ainda assim, disse que o fez porque teriaque escrever uma reportagem para a edição de domingo sobre o assunto. Cabe salientar que os repórteres queparticiparam da enquete o fizeram sem receber qualquer explicação a respeito do porquê de sua realização.16 O abre da Local, na ocasião, ganhou a primeira página do jornal com o título “Traficantes tentam criar baseem Manguinhos”, acompanhado do seguinte texto: “Quatro traficantes foram mortos ontem em tiroteio com a


Em anuência com o exemplo supra-citado, dados obtidos no trabalho de campopermitem afirmar que o sistema hierárquico vigente na local não só influencia como,muitas vezes, chega a direcionar o processo de produção das notícias. Não bastasse suacapacidade de gerar esse tipo de resultado, o referido sistema chama a atenção, ainda, porsua singular convivência com uma estrutura horizontalizada e polifônica que, há algunsanos, pretende-se implementada na editoria. Conforme atesta o trabalho de campo, a localopera segundo uma perspectiva na qual as discussões e trocas de idéias são não sórecorrentes como, pelo menos formalmente, necessárias e desejadas. A despeito da adoçãoda moderna diretriz (que pode ser ilustrada, por exemplo, pela recente divisão da seccionalem times), o que se percebe, porém, é que, tal qual no passado, a figura do editor continuasendo associada à de um todo-poderoso que paira sobre os demais profissionais gerando,entre outras conseqüências, uma certa personalização da editoria e seus produtos.Personalização essa que se evidencia pela freqüência com que, na seccional, sãocomumente ouvidas frases tais como “o editor é quem manda na local” ou “eu nãoconcordo com tudo que o editor fala. Mas, quando ele está aqui, ele manda e eu faço”.Destarte, ainda que, em vários momentos, a definição das prioridades noticiosas sejaassociada a um trabalho de equipe, não resta dúvida de que, em última instância, ela estejasubmetida a uma lógica na qual o editor, por conta de sua estatura hierárquica, ocupaposição de notável centralidade:Etnógrafo: No geral, como você diria que são selecionadas as matérias? O que vaientrar, o que vai ser abertura...Jornalista: Ah, isso é pela importância jornalística. Quer dizer, o interesse que elaspodem ter pra sociedade como um todo, né, e pro nosso leitor.PM dentro da Refinaria de Manguinhos, prestes a ser desativada, na Av. Brasil. Os bandidos tentavam instalarum ponto de embalagem de drogas”.


Etnógrafo: E como vocês definem isso?Jornalista: Olha, o critério é um critério meio subjetivo, né, dos editores aqui. A gentese reúne todo o dia, a gente discute os principais assuntos do dia e a gente vê quaisdeles são mais relevantes, não só pra população, mas pro nosso leitor.Embora os processos de seleção e hierarquização das notícias estejam maisvisivelmente relacionados à figura dos editores, cumpre ressaltar que, nesse sentido, astomadas de decisão podem partir também dos altos escalões da redação, ou seja, doseditores executivos e, em casos relativamente excepcionais, do próprio diretor da redação.Além dos canais habituais (tais como as reuniões de produção e de editores) a suainterferência junto às editorias se dá, principalmente, através das propostas de reportagemdenominadas RECO. Diferentemente do que ocorre com os demais pontos de pauta, essaspropostas são assim chamadas por terem sido, geralmente, recomendadas por altosfuncionários do jornal. Logo, se estes, por alguma razão, consideram que determinadoassunto deve ser abordado, sugerem, então, que uma editoria específica faça umareportagem a respeito e, embora não haja nenhuma determinação oficial nesse sentido,normalmente tal sugestão acaba por ser acolhida, ainda que possa permanecer engavetadapor algum tempo e ser repautada até que se dê a ocasião de sua publicação.Embora possam, pelo menos em tese, ser sugeridas por qualquer profissional, asRECO não correspondem, de modo algum, a um recurso de uso indiscriminado eigualitário. Pelo contrário, dependendo de quem as solicita, elas assumem ordens degrandeza claramente diferenciadas:Etnógrafo: Eu queria que você falasse um pouquinho pra mim o que seriam essasmatérias ‘reco’...Repórter: São as matérias recomendadas. São pautas de editores... que podem ser... aí,eles dizem... e é tão engraçado... acho isso tão curioso aqui! Porque as ‘reco’ são muitoassumidas, né!? Então, você tem ‘reco’ do Fulano, ‘reco’ do... e, aí, isso já vai dando a


importância da matéria. ‘Reco’ do X 17 ninguém pode derrubar, entendeu? [Ele] é oeditor... maior editor aqui no jornal... editor do jornal mesmo.Etnógrafo: Então se ele recomendou...Repórter: É porque vamos fazer direito. É uma curiosidade... então, assim, pra vocêderrubar ‘reco’ de editor, você tem que estar muito seguro do que você tá falando.Da mesma forma que apresentam ordens de grandeza diferenciadas, as RECOexigem posturas e tratamentos também diferenciados por parte dos jornalistas. Pode-semesmo dizer que, só em saber quem solicita a reportagem, é possível ao profissional delaencarregado antever, por extensão, o dispêndio e o esforço requeridos para sua realização:Etnógrafo: E quando tem uma coisa de vocês saírem meio que já sabendo o resultado...ou seja, tem uma pauta e, de certa forma, vocês têm que...Repórter: Olha, pra falar a verdade, às vezes pode ocorrer de algum editor chegar,sobretudo acontece com as tais ‘recos’, são as recomendadas que eles falam... você jádeve ter ouvido falar disso, é claro. O cara teve uma coisa: “Está perigoso passar emfrente à Favela da Vila Cruzeiro, porque tem umas criancinhas ali”. O cara passou eteve um delírio, ali, e viu uma cena qualquer... imaginou uma coisa. Aí, você tem que irlá e defender isso. Isso é meio complicado. Que você vai derrubar o ‘reco’ do Fulanoque viu, ele viu aquilo! Está acontecendo! As criancinhas malabaristas estão tirandouma faca, uma peixeira e assaltando motoristas. Aí é difícil.Etnógrafo: Você tem que ficar lá...Repórter: Você tem que ficar lá pra ver isso acontecer e, se não acontecer isso, vocêfalar com mil pessoas e essas pessoas confirmarem que não está acontecendo. Aí sim,você volta e banca. Mas, é difícil assim!Etnógrafo: Então, é uma saia-justa?Repórter: É uma saia-justa quando tem essa coisa de ‘reco’.Embora seja, mormente, identificada como algo que está além de uma simplessugestão de pauta, há na local quem proponha uma visão mais relativista das RECO sem,contudo, conseguir escapar ao reconhecimento do seu evidente caráter hierárquico. Pormais que se procure eufemizar as discussões a respeito, não deixa de ser curiosa a17 Em consonância com a conduta até aqui adotada, não haverá menção aos nomes dos profissionais citadosnas entrevistas. Em casos desse tipo, os nomes serão substituídos por letras, pelos cargos correspondentes ouserão simplesmente alterados, como, a propósito, vem sendo feito com os nomes das editorias e seções dojornal.


a dinâmica de funcionamento do próprio campo jornalístico 19 , o que se percebe é que opoder (ou melhor, a autoridade) do editor ou do editor-executivo acaba por se impor deforma desigual em relação aos demais profissionais, cabendo a estes, portanto, aobediência. Como explica Bourdieu (2002;1983), isso se dá porque os agentes do campojornalístico (como os de qualquer outro campo de poder) na luta para fazerem reconhecer asua visão como objetiva (e, portanto, legítima), dispõem de forças desiguais, de “pesosfuncionais” distintos que dependem das relações de força simbólicas e dos trunfosdiferenciais que cada um, de acordo com sua respectiva posição no interior do campo, écapaz de acionar.SITUAÇÃO SOCIOESPACIAL <strong>DA</strong> NOTÍCIARetomando o “caso da bala perdida”, relatado no início do artigo, um segundocomentário que pode ser feito diz respeito à grande importância que, no jornal, é dada àlocalidade na qual os fatos noticiosos ocorrem. A simples resposta dada pelo editor da localà sua colega de trabalho, por ocasião da definição de um “abre” (“você acabou de falar apalavrinha mágica: Jardim Botânico”), revela a existência de uma perspectiva –tempo, a sua opinião e as engrenagens que movem o veículo para o qual trabalha. Os assaltos mencionadosforam objeto de uma série de reportagens que denunciavam aquilo que no jornal se convencionou denominarde “gangues das bicicletas”. As reportagens em questão teriam se iniciado após os assaltos sofridos por umconhecido cantor e compositor carioca e por um alto executivo da empresa a que pertence o jornalpesquisado. Entre as lições oferecidas pelo episódio, cabe mencionar o reforço à máxima postulada porBourdieu (1983) segundo a qual “para que um campo funcione, é preciso que haja objetos de disputas epessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus que impliquem no conhecimento e noreconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputas, etc.” (p.89).19 Neste trabalho, assume-se o campo jornalístico como um campo de poder. De acordo com Bourdieu(2002), os campos de poder caracterizam-se por apresentarem “relações de forças entre as posições sociaisque garantem aos seus ocupantes um quantum suficiente de força social – ou de capital – de modo que estestenham a possibilidade de entrar nas lutas pelo monopólio do poder, entre as quais possuem uma dimensãocapital as que têm por finalidade a definição da forma legítima do poder” (p.28-29).


hegemônica na redação – que relaciona de forma nitidamente direta a maior ou menornoticiabilidade dos fatos à distribuição sócio-geográfica do público leitor. Como explicauma produtora:O leitor do jornal, a maior parte é Zona Sul... é Zona Sul, entendeu? Não tem como...não que não tenhamos leitores na Zona Norte. Mas, tudo que acontece na Zona Sul temmuito mais visibilidade do que lá, entendeu? E até porque o jornal é voltado praclasses... Quem consome o jornal? Classes ‘A’ e ‘B’. Onde vivem as classes ‘A’ e ‘B’?Eminentemente Zona Sul, Barra, entendeu?Os jornalistas têm como parte de suas atribuições identificar quais, dentre asinúmeras ocorrências do dia-a-dia, devem ser noticiadas, como estas devem ser tratadas eem que lugar do jornal devem ser publicadas. Nesse sentido, pode-se afirmar que oprivilégio conferido aos fatos que circunscrevem a área de residência do público leitor (oude sua maioria) constitui um dos mais importantes critérios de seleção e hierarquização dasnotícias, sendo este, pois, um dos primeiros elementos a que produtores e repórteres seatêm para definir o que é realmente prioritário. A partir desse tipo de corte, delimita-sefundamentalmente o que seria de interesse do público visado e o que, em contrapartida, nãolhe diz respeito ou pouco interessa:Produtora: Agora, é claro que como eu vim de um jornal popular, a gente cobria aviolência de uma maneira. Quando você vem pra um outro jornal, que é um públicodiferenciado, um público de leitor... é diferente. Porque o mesmo crime que em umjornal popular tinha um destaque de meia página, aqui era uma tripa, quer dizer, umamatéria menor, né!? Porque você também tem que ver o que interessa ao seu leitor.Será que o crime que acontece lá em Seropédica vai ter a mesma repercussão pro leitorda classe ‘A’, ‘B’? É claro que o leitor da classe ‘D’ e ‘E’ vai querer saber. Mas, o daclasse ‘A’, ‘B’, ele tá... ele quer saber do crime que tá acontecendo no Leblon, na Barra,na área onde ele circula. Isso eu estou dizendo que é assim que se faz nos jornais. Nãoquer dizer que eu concorde com isso. Aí, já é outra história...


Uma vez identificado que a maioria dos leitores do jornal pesquisado (cerca de55%) está concentrada na Zona Sul da cidade, notadamente uma região em que residem,entre outros, segmentos populacionais dotados de alto poder aquisitivo, estes acabam porser genericamente tratados como uma espécie de clientela preferencial, de modo que asnotícias que tocam direta ou indiretamente o seu interesse acabam, via de regra, recebendotratamento prioritário:Etnógrafo: Aí, na hora, então, de escolher o que é prioridade, é Centro, Zona Sul...Repórter: Centro, Zona Sul, Zona Norte. A prioridade na realidade, não é nem umadiscriminação, mas você tem que saber o jornal em que você trabalha. A prioridade ésempre Zona Sul. Porque a Zona Sul vende notícia, vende jornal. Ela vende jornal,essa é a realidade.Etnógrafo: É o leitor do jornal?Repórter: É, o leitor do jornal! Então, o foco do leitor do jornal é a Zona Sul... é a ZonaOeste, a Zona Oeste em termos, que é a Barra da Tijuca. Ali tá centrado o leitor dojornal.Etnógrafo: É, porque se fosse uma questão meramente geográfica, a Barra também élonge, né!?Repórter: A Barra também é longe, mas é uma questão do público alvo, o público parao qual o jornal é direcionado. Aí... não é essa discriminação... porque... ah, porque nãoCampo Grande? Porque não Santa Cruz? Porque não Senador Camará? São todos sereshumanos, são todos contribuintes, são todos... são leitores também. Quer dizer, é umnúmero bastante reduzido, mas também são leitores do jornal.Etnógrafo: Mas, na hora de pesar...Repórter: Mas na hora de pesar a notícia, você tem que saber pra onde vai tender opêndulo da balança: se vai ser pra Copacabana, se vai ser Barra da Tijuca, se vai serIpanema ou se vai ser Santa Cruz. Qualquer coisa que acontece na Zona Sul, você sabeque é notícia, né!?Muitas vezes naturalizada, a lógica localista que orienta o processo de produção danotícia faz com que determinadas temáticas e regiões recebam tratamento privilegiadoenquanto outras, embora não necessariamente ignoradas, permaneçam limitadas a um lugarsecundário no espaço do jornal. A avaliação da relevância socioespacial dos fatos, porconstituir um dos elementos-chave no processo de seleção e hierarquização das prioridadesnoticiosas, contribui não só para delimitar o perfil do público-leitor como, em certa medida,


para estabelecer distinções entre aquilo que é objeto de interesse dos quality papers emgeral e aquilo que o é para os ditos jornais populares.Sinteticamente, o editor da local analisa a questão da seguinte maneira:Eu tenho que escrever pro meu leitor. A gente não é uma televisão, rádio que é aberta.Muitas vezes, eu não escrevo só pro meu leitor. Lógico que eu dou destaque quando ocrime é na Zona Sul, na Barra. Quando afeta o meu público diretamente, estratégia desobrevivência. Você vende pão pra quem quer comprar pão. Você não vai vender pãopra quem quer comprar carne. Então tem que entregar o que interessa ao meu leitor,mas nem por causa disso a gente deixa de dar o resto. ’Que tem que ter informação... achacina lá de Nova Iguaçu, o quê que afetou o leitor do Leblon? Nada, mas ele precisasaber do que tá acontecendo lá... a importância política, social que tem uma chacina...ainda mais praticada por policiais. Então, é o corpo, é o estado sendo corroído por umcâncer... então... entendeu? Não necessariamente... às vezes, a gente publica só o que éde interesse imediato pro nosso leitor. Ele tem que ter uma idéia da situação geral, né!?E até porque... primeiro porque afeta ele indiretamente, que se ele não mora lá naBaixada, a empregada dele mora. Se ele não mora na Baixada, na hora em que ele vaipra Itatiaia ou pra não sei aonde, o carrinho dele passa ali...Ainda que, de modo geral, reconheçam e assumam o direcionamento que conferemà cobertura dos fatos, não deixa de ser curioso notar como alguns jornalistas representamaquilo que se produz tendo em vista o seu público-alvo como algo de interesse das “pessoasem geral” ou, para usar a nomenclatura corrente, como algo de interesse público. Emconsonância com esse tipo de perspectiva, um produtor da local definiu prioridadenoticiosa como sendo:O que vai mexer com a vida das pessoas... da cidade... vai interferir na vida... se tiverum tiroteio num túnel importante, como o túnel Rebouças, parar o trânsito todo, isso éum acontecimento que vai interferir com a vida de todo mundo, todo mundo vai querersaber, então... (...) É mais ou menos isso! O quê que isso vai... o quê que o fato vaiinterferir nas vidas das pessoas da cidade. E de uma certa forma também pro públicodo jornal. O jornal também tem esse aspecto, ele trabalha... ele trabalha focado nopúblico dele, embora coisas que aconteçam fora de uma área... onde o jornal possa nãoter uma grande circulação... mas, são... tem coisas importantes que o leitor do jornalprecisa conhecer dessas outras áreas que não fazem parte dessa geografia, vamos dizerassim, dominante da circulação do jornal.


Uma vez conhecida a “geografia dominante da circulação do jornal”, o processo deprodução das notícias tende a se desenvolver objetivando atender, prioritariamente, àsexpectativas e áreas de interesse de um público específico, o que, muitas vezes, leva àconstrução de tipos idealizados com os quais, não raro, os jornalistas acabam por dialogar.A caracterização do público leitor e sua associação a uma imagem tipicamente idealizadaconstitui uma prática relativamente comum no meio jornalístico, podendo ser identificada,aqui e alhures, tanto no presente quanto no passado. Robert Darnton (1990), por exemplo,ao recordar os tempos de repórter no The New York Times, relata que os seus antigoscolegas tinham como parâmetro para produção de textos a imagem de uma garota de dozeanos que, segundo ele, era reconhecidamente folclórica e “funcionava simplesmente comouma advertência para que nossas matérias ficassem claras e legíveis” (p.71). Em algumamedida, observadas diferenças pontuais, pode-se dizer que algo similar se passa em relaçãoao jornal pesquisado:Repórter: O jornal é voltado pra classe média, pra uma específica classe média. Eles [dadireção] fizeram uma pesquisa há um tempo atrás e descobriram que o leitor fiel dojornal é aquela senhora classe média que mora na Tijuca. Então, o jornal é feitopensando nessa mulher... tem até o nome dela: dona Alzira. Então, a gente sempre,quando tem dúvida, fala assim: “O quê que dona Alzira gostaria de ler nessa página”,entendeu!?. E aí, faz com que você delimite muitas coisas, entendeu!?(...)Etnógrafo: Então, quer dizer que vocês têm um leitor médio, né!?Repórter: É.Etnógrafo: Que vocês escrevem pensando...Repórter: Exatamente, exatamente!Etnógrafo: Isso é bacana. Isso eu não ouvi ninguém falar...Repórter: Você tem um interlocutor, assim, quando você escreve a matéria. Aí, vocêfala assim... se você bota um termo assim muito rebuscado, sabe que não vai. Então,quando eu pego, por exemplo, um texto de repórter que vem assim com um certorococó, digamos assim, no texto, eu vou eliminando, entendeu, botando ordem direta,


tornando o texto mais simples possível e direto, que é o nosso... que é o bom jornalismoque eles dizem aqui, né!? Há controvérsias...Como se vê, seja qual for o recurso utilizado, todo o esforço dos jornalistas gira emtorno da elaboração de um produto – no caso a notícia – que, conforme coloca Bourdieu(1998), esteja “perfeitamente ajustado ao ‘horizonte de expectativas’ da grande maioria dosleitores” (p.67). Nesse sentido, ligações telefônicas, cartas, e-mails, etc., além dos jámencionados mecanismos de controle de qualidade, operam como os canais a partir dos sãoconstruídas as imagens que impregnam as representações dos jornalistas acerca de seusleitores, suas preferências e seus respectivos interesses:Produtora: O público do jornal não gosta de muito detalhe, por exemplo. Ele quer serinformado que foram 29 mortos na chacina, mas ele não quer ser informado dedetalhes, é... “uma pessoa foi torturada e morta em Ipanema”... isso eles querem saber.Agora, eles não querem saber detalhes da tortura.Etnógrafo: Eles querem saber o endereço...Produtora: Eles querem saber onde foi.Etnógrafo: Mas, não precisa ter riqueza de detalhes.Produtora: Detalhes... não, não gosta. O leitor reclama. Eles querem saber que a pessoateve um atropelamento, mas não querem ver a foto do atropelado.Etnógrafo: O quê que você pensa disso? O que você acha que é disso? Uma espécie deassepsia...Produtora: É... são mais, digamos, intelectuais, entendeu!? O público não quer maissaber dessa violência do dia a dia... eles não gostam dos detalhes. Eu não sei porque,mas realmente é verdade. Não é discriminação! A classe média baixa e a classe baixagostam mais dessa riqueza de detalhes, é mais mórbida...(...)Etnógrafo: Então, tem... você tá dizendo que o leitor do jornal é diferente do leitor dojornal mais popular, no sentido que ele quer estar bem informado, mas ele rejeita...Produtora: É, essas informações mais cruas, sabe? Esses detalhes, eles não gostam. Oíndice de reclamação é muito alto...


Parte integrante do campo jornalístico 20 , o público leitor mantém, ainda que nãomanifestamente, uma relação dialética com o jornal na qual tanto sofre quanto produzefeitos. O simples fato de os jornalistas escreverem orientados pela imagem que têm dosleitores permite afirmar que estes, em alguma medida, interferem no processo de produçãodas notícias, gerando aquilo que, nos termos de Bourdieu, poder-se-ia chamar corretamentede polidez 21 . Conforme esclarece o sociólogo, “toda expressão é um ajustamento entre uminteresse expressivo e uma censura constituída pela estrutura do campo em que ocorreesta expressão” (p.108). Assim, à medida que produz um noticiário endereçado a umpúblico leitor que demanda estar bem informado mas, ao mesmo tempo, rejeita detalhes ouimagens demasiado fortes, pode-se dizer que o jornalista se submete a um tipo deajustamento que o “leva a produzir algo que é um acordo de compromisso, umacombinação do que era para ser dito, que tinha como objetivo ser dito, e do que poderia serdito” (p.108). Mais do que ajudar a decidir, portanto, que casos devem ser noticiados, acaracterização do público leitor permite, ainda, que se estipule a maneira como os fatosdevem ser tratados e o modo como eles devem vir a público.Em síntese, pode-se afirmar, portanto, que o processo de seleção e hierarquizaçãodas notícias está intrinsecamente relacionado à representação que os jornalistas têm doespaço social e dos públicos que o compõem. Segundo essa perspectiva, os acontecimentosque se referem apenas às regiões menos favorecidas da cidade tendem a ser alijados dosespaços mais destacados do jornal, enquanto, pelo contrário, aqueles que se passam noschamados bairros nobres, tendem a receber tratamento diferenciado e, conseqüentemente,20 Conforme postula Bourdieu (2002), “o limite de um campo é o limite dos seus efeitos ou, em outro sentido,um agente ou uma instituição faz parte de um campo na medida em que nele sofre efeitos ou que nele osproduz” (p.31).21 Segundo Bourdieu (1983), “a polidez é o resultado da transação entre o que há a dizer e as coerçõesexternas constitutivas de um campo” (p.108).


ganhar maior visibilidade pública. Conforme sintetizou um repórter, “Lagoa, Ipanema,Leblon, Jardim Botânico, Gávea e Barra da Tijuca, têm tratamento vip na local”. De acordocom os entrevistados, contudo, embora seja notadamente prevalecente, essa situação podeser alterada, desde que, para isso, ocorram situações excepcionais capazes de colocar emsegundo plano o seu contexto de origem, conforme esclarece o depoimento a seguir:Produtora: E, quando a matéria chega aqui, é claro que tem os filtros, também! Aí, éaquilo que eu te disse no início... quer dizer, se o crime foi em Serópedica, se o crimefoi em Queimados... num jornal grande, talvez alguma linhas, se for um morto. Seforem trinta mortos 22 , aí é outra história, entendeu!? Quer dizer, tem uma avaliação deque tem que ser uma chacina pra ser importante...COBERTURAS DE SEGURANÇA PÚBLICAA exemplo do que, decerto, se passa com as demais empresas do ramo, no jornalpesquisado, há um conjunto de critérios que referenciam e norteiam o processo de produçãoda notícia. A existência dessa multiplicidade de orientações possibilita que, em diversosmomentos, os jornalistas tenham uma interpretação dissonante dos fatos e que, por contadisso, se estabeleçam, entre eles, manifestas relações concorrenciais. No caso tomado comoponto de partida para a elaboração desse artigo, por exemplo, enquanto o editor da local sedeixava guiar por um determinado critério de seleção e hierarquização das notícias (o dasua situação socioespacial), a subeditora adotava um outro que, segundo ela, mais queinformar, visaria promover uma ampla discussão sobre o estado da segurança pública no22 O comentário refere-se à chacina ocorrida no dia 30 de março de 2005, quando vinte e nove pessoas foramassassinadas a tiros nos bairros de Queimados e Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense (RJ). O princípiosubjacente aqui é o de que, nos termos de outro produtor, “precisam morrer 30 na Baixada para ter o espaçono jornal que a morte de um no Leblon recebe”.


Rio de Janeiro. Bastante empregado na definição das prioridades noticiosas, o segundocritério aponta, de forma significativa, para o advento de uma nova perspectiva nacobertura dos fatos criminais:Etnógrafo: Em relação especificamente a essa... a isso que, hoje em dia, chamam decobertura de segurança pública, que antes era reportagem policial...Produtor: É, que é o seguinte... isso aí é outra coisa interessante, porque a reportagemde polícia, que era o nome clássico, ela foi perdendo força a partir da década dademocratização. Tem a ver, tem uma relação com o processo de democratização nopaís. Porquê? Porque, durante muito tempo, também essa reportagem de polícia, elaficou manchada, né, pela atividade de alguns jornalistas, repórteres e tal, que tinhammuito envolvimento com a polícia, né, que tinham interesses em comum, entendeu!?Tinha até denúncia de corrupção e tudo... dinheiro de jogo de bicho... Então, é uma áreaque ficou meio que imaculada (sic), né!? Aí, com o tempo, quer dizer, com aredemocratização, começa-se a esquecer essa nomenclatura de reportagem de polícia epassa-se a matéria de polícia, cobertura de polícia... cobertura de segurança pública é onome mais pomposo, né, pra isso.Recorrentes na Local, as “coberturas de segurança pública” costumam serrepresentadas como uma espécie de substituto moderno da tradicional reportagem policial.Nelas, intencionalmente, o espaço dado à violência e à criminalidade são como quesubsumidos por sua contraparte, qual seja, a apresentação de subsídios que contribuam paraa adoção de medidas proativas visando, fundamentalmente, a manutenção da ordem e a pazsocial:Repórter: Porque mudou o nome. Não é mais jornalismo policial. Tratou... passou a serchamado de segurança pública. Segurança pública é questão de governo, segurançapública dá voto... e essa passou a discutir como proteger o cidadão. É a segurança, nãomais notícia policial. Porque notícia policial de antigamente o quê que era? Quando euera adolescente, que gostava de jornalismo policial, que eu lia o famoso espreme e saisangue, era assim: “Doze mortos não sei aonde”... “O Mão Branca tirou a cabeça denão sei quem”. Hoje, não! Já se trata como o governo vai conter isso, como fazer pramelhorar o ir e vir do cidadão. Acho que mudou...


Noutro sentido, há quem considere que cobertura de segurança pública e reportagempolicial são formas de fazer jornalístico distintos que, não só não disputam entre si, como,muitas vezes, operam em complementaridade, de sorte que o desenvolvimento de uma, demodo algum, compromete ou se superpõe à existência da outra. Segundo essa perspectiva,o surgimento da cobertura de segurança pública não implicaria, portanto, no fim dareportagem policial (também chamada de factual), mas sim em seu redimensionamento:Etnógrafo: Você diria que então, hoje, vocês têm uma preocupação que vai além danotícia? Porque, se eu estou entendendo o que você tá dizendo, não há mais umapreocupação meramente com o factual, não é isso?Produtor: É, é!Etnógrafo: O factual ele vem a se somar a uma explicação do problema, a uma tentativade apresentar possíveis soluções pro problema?Produtor: É. O factual ele vem como uma... ele vem pra dar o alicerce pra você colocaralguma coisa em discussão, né!? ’Que aí você começa a ouvir as pessoas pra tentarentender e tentar fazer com o que o seu leitor entenda o quê que tá acontecendo.Com base nesse tipo de relato, depreende-se que para a realização das coberturas desegurança pública os jornalistas assumem como ponto de partida notícias factuais que, nummomento ulterior, tornam-se ilustrações empíricas das discussões e análises empreendidas.Mais do que comentar ou discutir eventos criminais específicos, pretender-se-ia com asistematização de um conjunto de informações estabelecer uma nova modalidade decobertura que sirva, inclusive, de diferencial entre o jornal pesquisado e os demais veículoscomunicativos:Etnógrafo: Nas conversas que eu tive aqui com... tanto com repórteres, quanto comalguns subeditores, eles falaram que hoje em dia o jornal faz matéria de segurançapública, né, não faz mais reportagem policial...Produtor: A gente faz reportagem policial sim. Quando a gente corre pro factual, éreportagem policial. Mas a gente tem uma estratégia de sempre estar... é aquilo que eu


te falei de início... sempre estar procurando a discussão em cima do fato. Não sópublicar o fato. É uma estratégia nossa!(...)Etnógrafo: Então, o factual é só um ponto de partida, né?Produtor: Muitas vezes não. Uma chacina você tem que dar a chacina. Muitas vezesvocê tem que dar o factual, mas eu acho que o factual, às vezes... você tem que ver oque tá por trás da notícia, o que antecede a notícia, o quê que vai causar, a conseqüênciada notícia. Eu gosto dessa análise maior.Etnógrafo: Mas eu lembro que mesmo na chacina...Produtor: A gente procura fazer...Etnógrafo: Vocês ainda procuravam dar uma interpretação do porquê daquilo estaracontecendo, né!?Produtor: Sim, sim. É uma notícia a mais. Até porque a gente concorre com jornal, comrádio, que são ‘on line’. Como é jornal do dia seguinte, a gente tem que tentar sempredar um, como dizem, um ‘plus’ a mais. Tem que tentar dar alguma coisa a mais.Para se sobressair numa realidade em que, “em nome da concorrência, cada um seapressa em copiar o outro” (HALIMI:1998, p.66), impõe-se, pois, que o jornal apresentealgo novo ou, como dizem os entrevistados, que suas reportagens vão além dos fatos em si.Em meio a uma espécie de circularidade da informação que leva os veículos midiáticos atrabalharem por meio de variações sobre o mesmo tema 23 , os jornalistas se vêmconstrangidos a reconhecer que, sob pena de diminuir o alcance do produto querepresentam, eles não podem ir a campo mostrar a mesma coisa que os concorrentes. Abusca de um “diferencial”, nesse caso, tem como conseqüência a emergência de umaperspectiva editorial cujo objetivo, pode-se dizer, reside em estimular os jornalistas a não selimitarem ao chamado crime factual ou, como diria o editor da local, ao crime “no varejo”.Com isso, impõe-se a exigência de que o jornalista se aprofunde cada vez mais nolevantamento de dados, construa suas próprias estatísticas, ouça especialistas, enfim,23 A respeito da mútua influência intra-midiática, Champagne (1998) observa que “embora a televisão sealimente em grande parte da imprensa escrita ou das mesmas fontes que ela (essencialmente os despachos deagências), ela tem uma lógica de trabalho e leis específicas que pesam muito na fabricação dosacontecimentos. Ela age sobre os telespectadores comuns, mas também sobre os outros meios decomunicação. Não podem mais ignorar os jornalistas da imprensa escrita hoje o que, na véspera, foi manchetedos jornais televisados das 20 horas” (p.64-65).


produza um material de qualidade que não se limite a apenas noticiar a “violência urbana”,mas que a contextualize, explique e, com isso, contribua para o seu enfrentamento 24 .Embora se continue noticiando ocorrências criminais isoladas, o objeto de interesseda editoria local parece ser, cada vez mais, não a velha reportagem policial, mas sim arealização de trabalhos que dialoguem, de uma forma ou de outra, com as políticas desegurança pública. Na busca de uma leitura mais ampla da realidade social e do diálogocom as autoridades constituídas, os discursos de especialistas e o uso de estatísticasapresentam-se como recursos reconhecidamente úteis e, por conta disso, são bastantevalorizados no meio jornalístico:Etnógrafo: Então as estatísticas, hoje, acabam sendo uma estratégia pra poder vocêsdarem conta do volume?Produtor: É onde a gente pode refletir a situação um pouco em geral, ou quando háalgum determinado caso. Eu não posso, eu não publicaria, por exemplo, todos osassaltos à residência. Eu nem sei quantos estão acontecendo na cidade ao mesmotempo. Mas, se isso acontece, a gente chega uma hora e: “Olha tá acontecendo muito.”A gente começa a fazer muita matéria. Agora está saindo uma série de assaltos que tátendo ali na Barra, Recreio e Leblon, daquele Pedro Dom e outros... são três ganguesatuando ali. Você acaba chamando a atenção... a gente faz muita matéria. Daqui apouco, começa a ter muito seqüestro-relâmpago... a gente começa a fazer matéria. ‘Oh,tá tendo muito seqüestro-relâmpago”. Mas, não pode publicar cada... a gente atépublica, mas...Etnógrafo: Toda vez, então, que uma nova modalidade de crime...Produtor: Ou aumenta o número, ou ganha um clamor social. ’Que, às vezes, ainda nãoaumentou muito o número, mas teve um destaque por algum fator específico.Etnógrafo: Por exemplo?Produtor: Foi um assalto num órgão público ou na residência de uma pessoa, um ator(...) que chama atenção. Então, vira um clamor. Aquilo acaba... as pessoas sãoconhecidas. Acaba influenciando mais.24 Tendo em vista essa reorientação, um abre que trate, atualmente, da temática da ‘violência urbana’, porexemplo, deve ser composto esquematicamente dos seguintes elementos: uma reportagem, com foto, sobre oepisódio em questão; um box (denominado memória) contextualizando o fato noticiado; uma coluna comcomentários de “especialistas”, testemunhas ou pessoas próximas da(s) vítima(s) e, por fim, se necessário, uminfográfico contendo ilustrações ou dados numéricos, direta ou indiretamente, relacionados à reportagemprincipal.


Assim, salvo casos excepcionais, em que a notícia parece se impor por si mesma(como, por exemplo, quando ocorre uma calamidade que redunde em clamor público ou umfato criminal envolvendo personalidade(s) famosa(s)), os critérios de definição dasprioridades noticiosas podem ser esquematicamente divididos tendo por base: (a) ashierarquias profissionais que regem as relações entre os jornalistas, (b) a situaçãosocioespacial do fato a ser noticiado e, por fim, (c) a possibilidade de construção de umadiscussão sobre o problema da segurança pública no Rio de Janeiro. Ainda que não sedesconsidere que possam existir (e, decerto, existem) outros critérios de orientação do fazerjornalístico, esse seria, pode-se dizer, o tripé de sustentação no qual se baseia o processo deseleção e hierarquização das notícias. Somados ao advento do imponderável ou, melhorseria dizer, do extraordinário, são esses, fundamentalmente, os critérios que compõem oreceituário daquilo que se considera uma grande cobertura, uma “grande história”:Repórter: Não sou eu que defino se vou ou não até ao local. Posso até dizer: “Acho quea coisa é grande!” Você já dá um diagnóstico do que você ouviu:. “Olha teve tiro, nãoteve... parece que teve ferido...”. Ou: “Olha, eu acho que foram muitos carrosassaltados”. E, principalmente, onde aconteceu, né!? Primeiro por questões geográficasmesmo. Porque, se é uma história aqui do lado, é do tipo da coisa que não custa vocêmobilizar uma equipe rapidinho pra resolver. Se é uma coisa em Santa Cruz, longe,você... quanto mais longe, acho que tem que ser maior o ...Etnógrafo: A noticiabilidade.Repórter: Tem que ser uma coisa maior, assim. Então, a gente diz aqui... qualquer coisana Zona Sul, Leblon, principalmente, Ipanema, Lagoa, a gente vai. Agora, quando é osbairros da Baixada, né, Zona Oeste lá pra baixo ou Zona Norte, coisa assim, aí só vaiquando é uma grande história.Etnógrafo: E quando é uma grande história?Repórter: Com mortos, muitos feridos. Ah, outra coisa que dá muito ibope aqui nojornal é fechamento de via expressa. Fechamento de linha, qualquer coisa na LinhaAmarela, Linha Vermelha, Avenida Brasil... as grandes... os grandes corredores viáriostambém têm grande repercussão... porque é uma quantidade de veículos gigante quepassa por ali, né!? Então, um acidente na Avenida Brasil com feridos, que fecha aAvenida Brasil... você, na verdade... você tá interferindo na rotina não só daquelaspessoas que se acidentaram, mas às vezes de uma cidade inteira, né, o deslocamento daspessoas e tal. Acho que isso é levado muito em consideração.


Etnógrafo: Então, tem algumas coisas que você já até naturalizaram, né!? Ou seja,aconteceu o fechamento de via pública, já sabe que aquilo ali...Repórter: É! Sábado aconteceu exatamente isso. Tinha uma menina aqui, na repol,falou: “Olha, parece que teve vários carros roubados na Linha Amarela”. Aí, a gentevai... sem ter muita notícia, a gente vai ver qual é. Realmente, tinham três carros, comvárias pessoas armadas rendendo os motoristas... fizeram a limpa nos carros.Etnógrafo: Isso é uma orientação da direção do jornal? Como é que é?Repórter: É uma orientação da chefia de reportagem que, por sua vez, recebeorientações dos editores que, por sua vez, recebe orientações da direção do jornal...acredito, né!? Mas, obviamente, você não pode recorrer aos editores a cadaacontecimento, né!? Então, a autonomia de ir ou não é sempre da chefia de reportagem.O tratamento que vai ser dado pra essa notícia... quem, acho, que define são os editores.Então, eu percebo assim... que quando tem uma coisa um pouco maior, né, eles jácomeçam a falar com os editores: “Oh, parece que teve uma história grande”. Aí, elescomeçam a orientar: “Vamos fazer uma memória, vamos ouvir Fulano”. Aí, eles jácomeçam a definir se a sua matéria vai merecer um grande destaque ou não.É notório que em qualquer grupo social, os homens adotam valores que determinama sua paisagem mental. Ao passo que esses são adotados, pode-se dizer que se estabelecemverdadeiras gradações segundo as quais, no primeiro plano das representações, evidenciamseos chamados valores fundamentais do grupo, isto é, aqueles tidos como ideológicos oumais conscientes e, num segundo momento, figuram os demais valores, tidos como nãoideológicosou menos conscientes (DUMONT: 1985). A hierarquização, que leva à adoçãode determinados valores em detrimento de outros, ao mesmo tempo que caracteriza,também norteia e, pode-se dizer, estrutura o processo de definição das notícias. Com basenela, os jornalistas desenvolvem níveis de experiência e de pensamento que lhes ensinam adefinir, em meio a rotinas e atividades diversas, aquilo que é estruturalmente indispensávelpara o jornal em que trabalham. Uma vez que incorporam essa perspectivação hierárquica asuas práticas cotidianas, os profissionais acabam por se tornar, consciente einconscientemente, predispostos a operar, não de acordo com aquilo que consideramjornalisticamente importante, mas sim conforme a ideologia dominante que se lhes impõe:


Etnógrafo: Como que vocês percebem o quê que é importante?Repórter: Taí uma boa pergunta! Eu acho que... é aquela coisa: como você percebe quehora que tem que passar a marcha do carro, quando você tá dirigindo? Já vira uma coisaautomática. Acho que, de tanto repetirem na nossa cabeça que certas coisas sãoimportantes, a gente acaba achando que elas são.Etnógrafo: Por exemplo?Repórter: Deixa eu ver... a coisa dos números... sempre que tem algo envolvendonúmeros, dá uma dimensão de que algo é importante, você tem que estar sempre atentoa isso. Em uma cidade embrutecida como o Rio, se você tem um tiroteio na favela do‘Gogó do Sapo’ em, sei lá o quê, Realengo – tô inventando, não existe essa favela – e,aí, tem um morto, isso não vai nem virar uma nota no jornal. Porque o volume depessoas mortas diariamente é grande, entendeu!? Então...Etnógrafo: Mas?Repórter: É isso... você tem que pensar na magnitude da coisa!Etnógrafo: Mas, se isso não é importante, o quê é importante?Repórter: Um baleado de classe média na Zona Sul, depois de um assalto relâmpago naLagoa. Isso é importante! Esse cara vai ganhar uma fotografia, a gente vai lá fazer umareportagem. Um ônibus que é...Etnógrafo: Isso é indiscutível? Isso já tá claro pra você?Repórter: É. Porque, pra mim, é uma coisa clara... eu acho... é uma coisa meio escrotaaté, que acaba rolando uma autocensura da gente, um pouco. A gente imagina que operfil do jornal é tal, o leitor é tal... porque é isso que se repete na nossa cabeça e agente acaba atendendo a essa... porque as pessoas comentam: “Ah, você acha queJacarepaguá vai dar manchete?” Dá manchete Lagoa, Leblon, entendeu!? A gente sabeque esse é o leitor típico do jornal. Então, ele quer se ver no jornal. Essa que é umaverdade universal. Então, sei lá, você vê que, às vezes, um ônibus que é incendiado, seilá o quê... então... deixa eu ver alguma coisa que tem a ver com ônibus... eu nãolembro... mas, vamos supor que haja isso: um ônibus seqüestrado lá em Santa Cruz.Não vai ter o mesmo destaque de um ônibus seqüestrado lá em São Conrado, como eufui fazer há algumas semanas, entendeu!?Etnógrafo: Vocês vão dar, mas...Repórter: Pode dar, mas com menos coisa. É um jornal bairrista, na verdade, assim.Acho que a Zona Sul ela tem um grande destaque... a cidade do Rio de Janeiro comoum todo... mas, um pouco mais, assim... mas, o grande foco é mesmo a Zona Sul. O queinteressa é esse leitor de classe média. A gente tem meio que se pôr no lugar dele,imaginar o quê que ele quer ler no jornal.Etnógrafo: Ah! Então, esse é esforço, né, tentar...Repórter: Mas, é um esforço que não é mais consciente! É isso que eu falo: é comovocê mudar realmente a marcha! Virou automático!A naturalização quanto às concepções e práticas cotidianas, metaforicamenterepresentada pela “mudança de marcha”, revela a existência, entre os jornalistas, de umadisposição incorporada, ou melhor, de um habitus que os leva a classificarem dedeterminada forma os acontecimentos, reconhecendo neles, um caráter de maior ou menor


noticiabilidade. Se, a exemplo do que se passa com os textos antropológicos, a notícia podeser tomada como uma “ficção”, ou seja, “algo construído”, “modelado”, enfim, “umafabricação” (GEERTZ:1989), tal disposição deve, pois, ser concebida como o elementoresponsável pela instituição dos “princípios abstratos” que orientam as representações dosjornalistas e, por extensão, moldam a sua produção de “estórias sobre ocorrências reais”(GEERTZ:2000, p.325). Tendo por base categorias socialmente constituídas de percepçãodo mundo social, o “campo ou, mais exatamente, o habitus de profissional previamenteajustado às exigências do campo (por exemplo, à definição da problemática legítima queesteja em vigor) vai funcionar como um instrumento de tradução” (BOURDIEU:1983,p.93) a partir do qual serão infundidos e regularmente (re)produzidos os critérios deseleção/hierarquização das prioridades noticiosas.Conforme salienta Bourdieu (2004),“Não podemos compreender o ajustamento das disposições às posições (que servem defundamento, por exemplo, ao ajustamento do jornalista ao jornal e, ao mesmo tempo,ao público desse jornal, ou o ajustamento dos leitores ao jornal e, ao mesmo tempo, aojornalista) se ignorarmos o fato de que as estruturas objetivas do campo da produçãoestão na origem das categorias de percepção e apreciação que estruturam a percepção ea apreciação de seus produtos (p.56).Uma vez que o habitus funciona em obediência à necessidade imanente do campo,demanda-se, pois, do jornalista que opere tendo em vista aquilo que, fundamentalmente,“cabe 25 ” no veículo para o qual trabalha, o que lhe obriga a se familiarizar “com a notícia,25 Por conta das recentes transformações no setor, pode-se dizer que, atualmente, um grande jornal precisa servendido, pelo menos, duas vezes: primeiro ao anunciante e depois ao leitor. Assim, a expressão “cabe” éintencionalmente utilizada aqui para destacar a importância, na passagem do acontecimento à notícia, dacompatibilidade daquele com a “estrutura editorial” ou a “ideologia do jornal”. Para uma interessantediscussão acerca da definição de noticiabilidade dos fatos e da natureza da imprensa, cf. BERGER, Christa.Do Jornalismo: toda notícia que couber, o leitor apreciar e o anunciante aprovar, a gente publica. In.: PORTO,Sérgio Dayrell (org.). O Jornal: da forma ao sentido (2 a ed.). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002.


tanto como uma mercadoria que é produzida na sala de redação quanto como uma maneirade ver o mundo” (<strong>DA</strong>RNTON:1990, p.97). Por meio desse “ajustamento”, sãoestabelecidos limites e linhas gerais cuja função consiste, claramente, em ressaltar apreeminência da concepção institucionalizada da notícia em relação a perspectivas pessoaisque, porventura, sejam postas em discussão:Etnógrafo: Eu tenho percebido, nas conversas que eu venho tendo aqui, formais ouinformais... é que vocês acabam desenvolvendo, também, vocês jornalistas, acabamdesenvolvendo um pouco uma... como é que eu poderia dizer... uma sensibilidade doque é ou não importante. O que vai ou não ser noticiado...Repórter: Pois é! Mas, não necessariamente o que é importante pra gente é o que éimportante pro jornal!Por conta do caráter determinante do campo sobre suas atividades, pode-se dizerque os jornalistas “escrevem pensando em toda uma série de grupos de referência”(<strong>DA</strong>RNTON:1990, p.86), que vai dos superiores hierárquicos da redação à imagemidealizada que se tem do público leitor. Buscando satisfazer às suas exigências, estesprofissionais se orientam por meio de “enquadramentos” específicos, ou seja, “padrões decognição, de interpretação e de apresentação, de seleção, de ênfase e de exclusão”(SEIFERT:2001, p.46) que lhes permitem organizar o discurso e, com isso, contemplar oconjunto dos interesses que lhe são habitualmente apresentados. Assim, ao escreveremtendo em vista os grupos de referência, os jornalistas produzem, por exemplo, um discursoem forma 26 , cuja característica principal consiste em se permitir reduzir “àquilo que se diz,mas numa forma tal que é como se pretendesse não dizê-lo” (BOURDIEU:1983, p.109).26 Conforme postula Bourdieu (1983), “o dizível num certo campo é o resultado daquilo que se poderiachamar de ‘dar forma’”, o que implica reconhecer que “o discurso deve suas propriedades mais específicas,suas propriedades de forma, e não apenas o seu conteúdo, às condições que determinam o campo de recepçãoonde esta coisa a dizer será ouvida” (p.108).


Como ocorre na transição entre as reportagens policiais (factuais) e as coberturas desegurança pública, esse efeito de eufemização se impõe à totalidade do discurso, de modoque “não é apenas uma palavra que é dita no lugar de outra, é o discurso enquanto tal, eatravés todo o campo, que funciona como instrumento de censura” (BOURDIEU:1983,p.110).Os comentários feitos pelos entrevistados acerca dos critérios de seleção ehierarquização das notícias refletem, em boa medida, a verdadeira complexidade queenvolve tais processos. A simples enunciação de frases como "não é que eu concorde, masas coisas são como são...", denota tal complexidade, desvelando, por conseguinte, aexistência de uma reflexividade crítica dos jornalistas em relação às suas práticas, queincide, essencialmente, sobre a contradição entre o ‘é’ e o ‘deve ser’, ou, como diria Geertz,entre “o que ocorre” e o que é “gramaticalmente correto” (GEERTZ:2000). Evidentemente,o afloramento desse tipo de reflexividade não se dá no vazio ou ocorre, por assim dizer, deforma espontânea. Em vez disso, pode-se mesmo afirmar que ele tem a ver com oreconhecimento da presença do etnógrafo no campo e com a sua interferência na rotina deprofissionais que, a propósito, também desfrutam de alguma familiaridade com as regras domundo acadêmico. Por essa razão, os seus discursos não podem ser encarados comomanifestações de pensamento meramente fortuitas e sim como produtos inequívocos darelação de pesquisa estabelecida entre o antropólogo e seu “objeto” de estudo. Nessesentido, embora haja, na redação, quem diga que “o romantismo no jornalismo acabou” eque “não existe neutralidade na produção da notícia”, a maioria dos entrevistados apresenta,significativamente, uma postura crítica em relação ao modo de construção da notícia, o que,por contraposição, os aproxima, pelo menos formalmente, de valores basilares do


jornalismo independente, tais como neutralidade, imparcialidade, objetividade ecompromisso com o interesse público 27 .Como se vê, embora existam critérios universalmente reconhecidos de seleção ehierarquização das prioridades noticiosas, isto não implica que a percepção da realidadesocial ou a aplicação desses critérios sejam as mesmas para todos os jornalistas. Pelocontrário, por se tratar do microcosmo de um campo de poder, não há como ignorar que naredação, em geral, e nas editorias, em particular, encerram-se um sem-número de disputasinternas, inclusive acerca da interpretação dos fatos ou do tratamento que se supõe maisadequado para eles. A própria dinâmica de funcionamento interno da redação revela que se,por uma lado, existe o reconhecimento geral quanto às hierarquias profissionais e o poderde mando dos superiores hierárquicos, por outro, há jornalistas querendo vender ‘suas’notícias e, não raro, propor outras formas de leitura do real (ainda que, muitas vezes,orientadas pelos critérios hegemônicos no jornal). Isto posto, para além de reafirmar opostulado antropológico de que os homens são, antes de tudo, diversos, a argumentação oradesenvolvida visa a acentuar fundamentalmente que, não sendo os critérios aqui discutidospassíveis de uma apreensão monolítica por parte de quaisquer profissionais, as disputasinternas e os eventuais dissensos sobre as prioridades noticiosas parecem destinados afuturas e sucessivas repetições. Isto porque, como bem sintetizou um dos produtores da27 A reflexão suscitada coloca em questão o alcance e a verdadeira natureza do habitus. Uma vezincorporado, ele gera, sem sombra de dúvida, um comportamento rotinizado. Mas, isso de forma algumasignifica que tal comportamento se dê de forma inconsciente e, menos ainda, acrítica. O tipo de conclusão oradesenvolvido sustenta-se não só na etnografia aqui apresentada como noutros trabalhos, tais quais, porexemplo, o já clássico estudo de Kant de Lima (1995) sobre a polícia do Rio de Janeiro. Assim, ao identificarno discurso dos seus “informantes” uma tensão entre a teoria e a prática legal, o antropólogo se deu conta deque, apesar de mostrarem conhecimento da lei, eles, muitas vezes, não só a desobedeciam, como justificavam“abertamente essa conduta como fazendo parte de suas obrigações policiais” (p.20).


local, no espaço da redação, “do editor-chefe ao repoleiro 28 , todo mundo acha que sabe oque é importante, o que é notícia”.CONSIDERAÇÕES FINAISConforme asseveram Berger e Luckmann, “a realidade é socialmente definida. Masas definições são sempre encarnadas, isto é, indivíduos concretos e grupos de indivíduosservem como definidores de realidade. Para entender o estado do universo construído emqualquer momento, ou a variação dele, é preciso entender a organização social que permiteaos definidores fazerem sua definição” (2002, p.157). Ao apresentar os critérios que, diretaou indiretamente, norteiam as atividades profissionais de um determinado grupo dejornalistas, o que pretendi foi expor, ainda que em linhas gerais, o modo como estãoestruturadas as suas relações e como, a partir delas, é possível se construir socialmente umadeterminada realidade. Tomando a redação de um jornal (e, em especial, uma de suaseditorias) como o microcosmo de um campo de poder em que diferentes agentes, contandocom trunfos diferenciais, lutam pelo monopólio de definição da realidade social, procureimostrar quais são os principais referenciais que regem as suas atividades, levando-os, pois,a moldar e hierarquizar de uma maneira específica as notícias e, com isso, oferecer aosleitores um determinado modo de ler e interpretar o real.Como demonstram os estudos sobre a mídia moderna, valores como objetividade,neutralidade, imparcialidade, compromisso com a verdade, com os fatos e com o interesse28 Repoleiro é o responsável pelo levantamento das notícias policiais. Apesar de sua importância estratégica,esta é considerada uma das funções hierarquicamente menos valorizadas no espaço da redação.


público permanecem, ainda hoje, sendo apregoados nos discursos de auto-representaçãosobre a base deontológica que estrutura o ofício jornalístico. Em conformidade com o textoapresentado, o que gostaria de propor, alternativamente, é que, em contraposição aofetichismo da objetividade e da neutralidade que se lhe impuseram historicamente, para sermelhor entendida, a notícia deve ser tomada como uma versão negociada dos fatos, o quesignifica dizer que ela é socialmente produzida, num trabalho coletivo de (re)construção darealidade social e por meio deste trabalho.<strong>NOTAS</strong>1 Uma primeira versão deste trabalho foi publicada, com o mesmo título, na Revista Praia Vermelha – Estudosde Política e Teoria Social, n o 13. Rio de Janeiro: Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio deJaneiro, 2005.2 Evidentemente, o termo “violência” não é empregado aqui como operador analítico, uma vez que,sociológica e historicamente, ele enseja interpretações as mais diversas e não obedece, portanto, a qualqueracordo semântico ou ético-cultural. Dada a sua polissemia, cumpre observar que o emprego do vocábulo farse-áaqui a despeito das implicações enredadas pelo uso, muitas vezes generalizante, vago e impreciso, que nosenso comum e mesmo no meio acadêmico recorrentemente se lhe conferem.3 Tomo aqui emprestada a noção de problemática obrigatória tal qual formulada por Bourdieu (2001, p. 207),isto é, como uma das temáticas prevalecentes nas abordagens e discussões de um dado contexto sociohistóricoque, como tal, faz parte de um “repertório de lugares-comuns” ou “conjunto de questões obrigatórias quedefinem o campo cultural de uma época”.4 Por figurar, segundo os dados oficiais, entre as capitais que apresentam os mais elevados índices decriminalidade, o Rio de Janeiro ilustra satisfatoriamente as afirmações acerca da expansão quantitativa daviolência. Conforme um levantamento da Secretaria de Polícia Civil do Rio de Janeiro, apenas a região doGrande Rio teria sido palco de 43.601 assassinatos durante a década de oitenta. De acordo com tais dados, adécada seguinte assistiu ao agravamento desse quadro, uma vez que foram assassinadas 73.430 pessoas entreo início dos anos noventa e meados do ano 2000 (SODRÉ, M. Sociedade, Mídia e Violência. Porto Alegre:Sulina/Edipucrs, 2002, p. 13-14).5 Fonte: IVC (Instituto Verificador de Circulação), maio de 2005.6 Segundo o IVC, no mês de maio de 2004, a circulação do jornal pesquisado foi a seguinte: 1% dos leitores(3.096) residia em São Gonçalo; 3% (6.848) estavam concentrados na Baixada Fluminense; outros 3% (6.660)encontravam-se no Centro da cidade; 4% (8.649) viviam na região da Leopoldina; 8% (16.165) eram deNiterói; 9% (18.878) da Zona Central; 17% (36.382) da Zona Norte; enquanto a maioria deles (55% ou117.078 leitores) estavam concentrados na Zona Sul da cidade, notadamente uma região em que residem,entre outros, segmentos populacionais de alto poder aquisitivo.


7 Evidentemente, a definição serve a fins meramente analíticos, isto é, para o estabelecimento de distinçõesentre este tipo de jornal e outros veículos, comumente acusados de “populares” ou “sensacionalistas”. Deriva,pois, de um recurso identitário de auto e hetero-representação acionado pelos próprios profissionais dainformação. A propalada “objetividade jornalística”, embora possa ser desejada, apresenta-se como algoinatingível, uma vez que “o ato mesmo de relatar algum fato implica envolvimento, mesmo que este sejainconsciente” (ALVES: 2001, p.60). Assume-se, pois, aqui que, ao contrário do que recorrentemente seapregoa nos discursos jornalísticos, “transformar um fato em notícia não é o mesmo que reproduzirsingelamente o que ocorreu. Transformar um fato em notícia é também alterá-lo, dirigi-lo, mutilá-lo”(MARCONDES FILHO, 1986, p.66).8 Pelo menos, este foi o número oficial que, durante a pesquisa, foi disponibilizado pela direção do jornal.Através de conversas informais, porém, foi possível tomar ciência da existência de outros profissionais (oschamados free-lancers) que, por razões trabalhistas, acabam não constando nos quadros da empresa. Seunúmero exato, contudo, não foi possível levantar.9 Isso não significa, porém, que eu tenha deixado de entrevistar ou conversar com profissionais de outraseditorias, nem de percorrer ou observar as demais dependências que compõem o jornal. Pelo contrário, ocontato com repórteres, fotógrafos, editores e redatores das diversas seções permitiu, por vezes, a observaçãode posicionamentos distintos sobre um mesmo assunto, o que possibilitou uma rica coleta de dados, posto quepautada por múltiplas perspectivas.10 Por trazer a público a notícia mais importante do dia, o “abre” costuma receber um tratamento editorialdiferenciado. Para a sua preparação, ao contrário do que ocorre com as reportagens em geral, comumentedisponibilizam-se, pelo menos, dois ou três repórteres. Escolhida como destaque da seção, a sua feituramobiliza, ainda, profissionais das editorias de arte e de fotografia, além de boa parte da equipe de produção,que durante todo o dia lhe dedicam especial atenção.11 A noção de ideologia aqui assumida, tal qual definida por Dumont (1985), diz respeito ao “conjunto socialde representações”, ou ainda, ao “conjunto das idéias e valores comuns” (p. 279) que permeiam as práticas deuma sociedade ou grupo social.12 Na ocasião, o editor da local estava de férias e, em seu lugar, assumia, interinamente, o editor-adjunto.13 A reportagem de abertura da local acabou sendo uma outra, denominada “Um pitbull com liminar”, quetratava da licença obtida por um casal, junto à Justiça, para passear livremente com sua cadela, contrariando,com isso, o decreto 37.921 da governadora Rosinha Garotinho, segundo o qual cães das raças pitbull,dobermann, fila e rotweiller só poderiam circular em locais públicos entre as 22h e 5h, ainda assim comfocinheiras e enforcadores. Como é comum ocorrer no jornal, esta notícia, que apareceu de última hora,acabou por obnubilar as demais, assumindo grande importância, por se tratar, entre outras razões, de umapolêmica recente (o decreto tinha sido baixado há vinte dias) que vinha sendo cuidadosamente acompanhadapelos jornalistas da editoria.14 Segundo Bourdieu (2002), o habitus pode ser entendido como um ‘conhecimento adquirido’, um ‘haver’,um ‘capital’ que explica ou ensina “esta espécie de sentido do jogo (...) que faz com que se faça o que épreciso fazer no momento próprio, sem ter havido necessidade de tematizar o que havia que fazer, e menosainda a regra que permite gerar a conduta adequada” (p.23)15 Dos três repórteres ouvidos, apenas um tinha lido a reportagem. Ainda assim, disse que o fez porque teriaque escrever uma reportagem para a edição de domingo sobre o assunto. Cabe salientar que os repórteres queparticiparam da enquete o fizeram sem receber qualquer explicação a respeito do porquê de sua realização.16 O abre da local, na ocasião, ganhou a primeira página do jornal com o título “Traficantes tentam criar baseem Manguinhos”, acompanhado do seguinte texto: “Quatro traficantes foram mortos ontem em tiroteio com aPM dentro da Refinaria de Manguinhos, prestes a ser desativada, na Av. Brasil. Os bandidos tentavam instalarum ponto de embalagem de drogas”.


17 Em consonância com a conduta até aqui adotada, não haverá menção aos nomes dos profissionais citadosnas entrevistas. Em casos desse tipo, os nomes serão substituídos pelos cargos correspondentes ou serãosimplesmente alterados, como, a propósito, vem sendo feito com os nomes das editorias e seções do jornal.18 Mais que um truísmo, a ilação pode ser corroborada por uma situação testemunhada durante o trabalho decampo. Numa reunião de pauta da local, aconteceu, como de costume, do editor perguntar aos demaisprodutores qual, na sua opinião, deveria ser o abre no dia. Uma das subeditoras, de pronto, respondeu: “se forpela cabeça do jornal, dá a bicicleta. Eles [do comando da redação] gostam de bicicleta”. Em referência a umasérie de assaltos realizados por bandidos-ciclistas em bairros da Zona Sul, a profissional expôs, a um sótempo, a sua opinião e as engrenagens que movem o veículo para o qual trabalha. Os assaltos mencionadosforam objeto de uma série de reportagens que denunciavam aquilo que no jornal se convencionou denominarde “gangues das bicicletas”. As reportagens em questão teriam se iniciado após os assaltos sofridos por umconhecido cantor e compositor carioca e por um alto executivo da empresa a que pertence o jornalpesquisado. Entre as lições oferecidas pelo episódio, cabe mencionar o reforço à máxima postulada porBourdieu (1983) segundo a qual “para que um campo funcione, é preciso que haja objetos de disputas epessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus que impliquem no conhecimento e noreconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputas, etc.” (p.89).19 Neste trabalho, assume-se o campo jornalístico como um campo de poder. De acordo com Bourdieu(2002), os campos de poder caracterizam-se por apresentarem “relações de forças entre as posições sociaisque garantem aos seus ocupantes um quantum suficiente de força social – ou de capital – de modo que estestenham a possibilidade de entrar nas lutas pelo monopólio do poder, entre as quais possuem uma dimensãocapital as que têm por finalidade a definição da forma legítima do poder” (p.28-29).20 Conforme postula Bourdieu (2002), “o limite de um campo é o limite dos seus efeitos ou, em outro sentido,um agente ou uma instituição faz parte de um campo na medida em que nele sofre efeitos ou que nele osproduz” (p.31).21 Segundo Bourdieu (1983), “a polidez é o resultado da transação entre o que há a dizer e as coerçõesexternas constitutivas de um campo” (p.108).22 O comentário refere-se à chacina ocorrida no dia 30 de março de 2005, quando vinte e nove pessoas foramassassinadas a tiros nos bairros de Queimados e Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense (RJ). O princípiosubjacente aqui é o de que, nos termos de outro produtor, “precisam morrer 30 na Baixada para ter o espaçono jornal que a morte de um no Leblon recebe”.23 A respeito da mútua influência intra-midiática, Champagne (1998) observa que “embora a televisão sealimente em grande parte da imprensa escrita ou das mesmas fontes que ela (essencialmente os despachos deagências), ela tem uma lógica de trabalho e leis específicas que pesam muito na fabricação dosacontecimentos. Ela age sobre os telespectadores comuns, mas também sobre os outros meios decomunicação. Não podem mais ignorar os jornalistas da imprensa escrita hoje o que, na véspera, foi manchetedos jornais televisados das 20 horas” (p.64-65).24 Tendo em vista essa reorientação, um abre que trate, atualmente, da temática da ‘violência urbana’, porexemplo, deve ser composto esquematicamente dos seguintes elementos: uma reportagem, com foto, sobre oepisódio em questão; um box (denominado memória) contextualizando o fato noticiado; uma coluna comcomentários de “especialistas”, testemunhas ou pessoas próximas da(s) vítima(s) e, por fim, se necessário, uminfográfico contendo ilustrações ou dados numéricos, direta ou indiretamente, relacionados à reportagemprincipal.25 Por conta das recentes transformações no setor, pode-se dizer que, atualmente, um grande jornal precisa servendido, pelo menos, duas vezes: primeiro ao anunciante e depois ao leitor. Assim, a expressão “cabe” éintencionalmente utilizada aqui para destacar a importância, na passagem do acontecimento à notícia, dacompatibilidade daquele com a “estrutura editorial” ou a “ideologia do jornal”. Para uma interessantediscussão acerca da definição de noticiabilidade dos fatos e da natureza da imprensa, cf. BERGER, Christa.


Do Jornalismo: toda notícia que couber, o leitor apreciar e o anunciante aprovar, a gente publica. In.: PORTO,Sérgio Dayrell (org.). O Jornal: da forma ao sentido (2 a ed.). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002.26 Conforme postula Bourdieu (1983), “o dizível num certo campo é o resultado daquilo que se poderiachamar de ‘dar forma’”, o que implica reconhecer que “o discurso deve suas propriedades mais específicas,suas propriedades de forma, e não apenas o seu conteúdo, às condições que determinam o campo de recepçãoonde esta coisa a dizer será ouvida” (p.108).27 A reflexão suscitada coloca em questão o alcance e a verdadeira natureza do habitus. Uma vezincorporado, ele gera, sem sombra de dúvida, um comportamento rotinizado. Mas, isso de forma algumasignifica que tal comportamento se dê de forma inconsciente e, menos ainda, acrítica. O tipo de conclusão oradesenvolvido sustenta-se não só na etnografia aqui apresentada como noutros trabalhos, tais quais, porexemplo, o já clássico estudo de Kant de Lima (1995) sobre a polícia do Rio de Janeiro. Assim, ao identificarno discurso dos seus “informantes” uma tensão entre a teoria e a prática legal, o antropólogo se deu conta deque, apesar de mostrarem conhecimento da lei, eles, muitas vezes, não só a desobedeciam, como justificavam“abertamente essa conduta como fazendo parte de suas obrigações policiais” (p.20).28 Repoleiro é o responsável pelo levantamento das notícias policiais. Apesar de sua importância estratégica,esta é considerada uma das funções hierarquicamente menos valorizadas no espaço da redação.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASALVES, C. C. C. Nelson Rodrigues e a Reportagem Policial: Realidade X Ficção.Monografia de Graduação em Comunicação Social. Rio de Janeiro: UERJ, 2001.BERGER, C. Do Jornalismo: toda notícia que couber, o leitor apreciar e o anuncianteaprovar, a gente publica. In.: PORTO, Sérgio Dayrell (org.). O Jornal: da forma ao sentido(2 a ed.). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002.BERGER, P. & LUCKMANN, T. A Construção Social da Realidade: tratado de sociologiado conhecimento (22a ed.), Petrópolis: Vozes, 2002.BOURDIEU, P. A Produção da Crença: contribuição para uma economia dos benssimbólicos. São Paulo: Zouk, 2004.____________. O Poder Simbólico (5a ed.). São Paulo: Bertrand Brasil, 2002.____________. A Economia das Trocas Simbólicas (5a ed.). São Paulo: Perspectiva, 2001.


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