10.07.2015 Views

eGeBRQ

eGeBRQ

eGeBRQ

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Dedicado a todos os que lutarame lutam pela Liberdade!


Ângelo Cardoso da Silva: Herzog gaúchoGraziane Ortiz Righi ................................................................................................................................. 132Focos de ação comunistas no Maranhão e Doutrina de Segurança NacionalSarah Fernanda Moraes Gomes .............................................................................................................. 142Operando Informações (1975-1977): Atuação Repressiva e Evolução das Violações de Direitos Humanosno DOI/CODI/II ExércitoDiego Oliveira de Souza ........................................................................................................................... 150Segurança Pública em dois atos: da polícia de repressão à polícia de aproximaçãoLívio Silva de Oliveira ............................................................................................................................... 160IV – Ditaduras e Imprensa .................................................................................................... 169Victor Civita e a Ditadura Civil-Militar Brasileira: a posição da revista VejaEdina Rautenberg ..................................................................................................................................... 171O Tratamento das Revistas Semanais À Abordagem Do PNDH-3 Sobre A Questão da Memória e daVerdadeDiego Airoso da Motta .............................................................................................................................. 180"O Arauto do Bem e da Verdade": o Jornal do Comércio (1964-1965) e o apoio à ditadura civil-militar emCampo GrandeSabrina Rodrigues Marques ..................................................................................................................... 188O Jornal A Razão e o discurso anticomunistaSilvania Rubert ......................................................................................................................................... 193V – Recursos discursivos e discussão conceitual acerca da Ditadura ............................ 201O discurso da Ditadura na obra de Elio GaspariCarla Luciana Silva * .................................................................................................................................. 203Entre Civis e Militares: Conceitos e Versões do Golpe e da Ditadura Pós-1964 no BrasilYuri Rosa de Carvalho e Diorge Alceno Konrad ...................................................................................... 208Segurança Nacional: Uma Discussão ConceitualAline Aparecida Faé Inocenti .................................................................................................................... 216VI – Ditaduras: Arte, Cultura e Censura .............................................................................. 225A Memória da Censura durante a Ditadura Civil Militar em Campo Grande/MSMariana Duenha Rodrigues...................................................................................................................... 227Memórias da ditadura nos Cinemas Latino-americanos contemporâneosRosângela Fachel de Medeiros ................................................................................................................ 233O malabarista, a farda e o nanquim: o governo Jango e golpe nas charges de Sampaulo publicadas nojornal Diário de Notícias em março e abril de 1964Dante Guimaraens Guazzelli ................................................................................................................... 241VII – Ditaduras em arquivo: documentos da repressão e da resistência ......................... 251Análise do Processo Descritivo Como Produção de Conhecimento Arquivístico: o caso das oitivas defamiliares de uruguaios desaparecidos na ditadura militarAnna Luiza de Moura Saldanha ............................................................................................................... 253O DOPS e os arquivos da repressão: as atribuições da Delegacia de Ordem Política e Social noMaranhãoManoel Afonso Ferreira Cunha ................................................................................................................ 261


Arquivos Repressivos da Polícia Política: o caso do Departamento de Ordem Política e Social do RioGrande do SulAnanda Simões Fernandes ...................................................................................................................... 269VIII - Debates sobre ditaduras no campo jurídico .............................................................. 279Uma luta inconclusa: reflexões sobre a Lei da Anistia (L. 6.683/79) e o processo de redemocratização noBrasilDébora Strieder Kreuz .............................................................................................................................. 281Bourdieu e o campo jurídico: debate sobre a autonomia do Supremo Tribunal Federal durante a ditaduramilitar brasileira (1964-1979)Mateus Gamba Torres .............................................................................................................................. 288As vozes da contemporaneidade e a questão da imprescritibilidade dos crimes de tortura perpetrados naditadura civil-militar no BrasilFabiano Negreiros ................................................................................................................................... 293A atuação do Poder Judiciário na Argentina frente aos crimes de lesa humanidade perpetrados pelaDitadura de Segurança Nacional (1976-1983)Patrícia da Costa Machado ...................................................................................................................... 301A Comissão Nacional da Verdade e a Ausência de Função JurisdicionalGabriela Goergen de Oliveira ................................................................................................................... 309IX - Resistências e redes de solidariedade nas Ditaduras do Cone Sul ........................... 317Los tortuosos caminos: a fuga dos argentinos para o Brasil, no marco temporal das ditaduras civismilitaresde Segurança NacionalJorge Christian Fernandez ....................................................................................................................... 319Mortos e desaparecidos políticos no Brasil, no Chile e no Uruguai: notas sobre a atuação dos seusfamiliaresCarlos Artur Gallo ..................................................................................................................................... 330A ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul e a formação de redes de solidariedade nafronteira Brasil-UruguaiMarla Barbosa Assumpção ...................................................................................................................... 339Madres de Plaza de Mayo: o movimento que enfraqueceu o regime militar argentino (1976 – 1983) ... 347Arianne Chiogna e Bruna Cardoso .......................................................................................................... 347O Grupo Clamor e a atuação em redes na defesa dos Direitos Humanos frente as ditaduras do Cone SulGuilherme Barboza de Fraga ................................................................................................................... 354X – Outras experiências de repressão e resistência à ditadura ........................................ 363A democracia brasileira não foi doada: a resistência na ditadura civil militar brasileiraDiorge Alceno Konrad * .............................................................................................................................. 365Mulheres vítimas da Ditadura Militar: luta e afirmação de gênero e os Direitos HumanosGiselda Siqueira da Silva Schneider ........................................................................................................ 379Uma Visão sobre a Ação Popular (AP): do Socialismo Humanista ao MaoísmoCleverton Luis Freitas de Oliveira ............................................................................................................ 386A mudança de posicionamento da Igreja na Ditadura e a Repressão a Padres em São Luís- MAMarcos Paulo Teixeira .............................................................................................................................. 393De Ditadura em Ditadura: o jogo duro das elites dominantes sobre o cidadão comum (1930-1964)Adriana Picheco Rolim ............................................................................................................................. 401


XI – Políticas de memória e Justiça de Transição .............................................................. 409Direito de memória e perpetração da violência: o papel da identificação e ressignificação dos espaços detortura e resistência na justiça de transiçãoChristine Rondon Teixeira ......................................................................................................................... 411Inicio de la Política Reparatoria como Política PúblicaMaría Teresa Piñero ................................................................................................................................. 420Memória política ou políticas da memória? Memória, verdade e justiça a trinta anos do fim da ditadura naArgentina (1983-2013)Nicholas Rauschenberg ........................................................................................................................... 428


ApresentaçãoA II Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos realizada noArquivo Público do Estado entre os dias 24 e 27 de abril foi um evento em que, maisuma vez, a Instituição reiterou o seu comprometimento com uma sociedade latinoamericanamais democrática, tendo em vista que este tema integra a agenda detrabalhos desta Casa desde o ano 2006. Comprometimento efetivado por meio dasólida parceria com o Departamento de História e o PPG em História da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul, especialmente a partir da pessoa do professor EnriqueSerra Padrós.Neste encontro foram debatidos estudos referentes às ditaduras militaresbrasileira, argentina, paraguaia, uruguaia, salvadorenha e chilena. Entre os inúmerosvieses pelos quais estas ditaduras foram examinadas, ressalto as pesquisas queabordaram as suas conexões e práticas repressivas assim como estudos quetrouxeram as denúncias, as lutas e as resistências realizadas pelos familiares dosmortos e desaparecidos, além de pesquisas examinando a atuação dos exiladospolíticos, mencionando seus embates, redes de solidariedade e dificuldades desobrevivência.Entre os diferentes trabalhos apresentados sobre a ditadura brasileira, destacoaqueles que examinaram o papel da mídia tanto na sustentação do golpe e do regimequanto se opondo e resistindo a ele. Nesse contexto, o posicionamento político dealgumas instituições também foi analisado, entre elas, o Supremo Tribunal Federal e aIgreja Católica.Em consonância com os debates que estão sendo realizados nacionalmente,provenientes dos trabalhos das Comissões Nacional e Estaduais da Verdade, a IIJornada também trouxe para análise e reflexões, as incoerências jurídicas e políticasda Lei de Anistia Nacional de 1979, sobretudo, no que tange aos direitos humanos,uma vez que a tortura é considerada crime de lesa humanidade pela ONU e pela CorteInteramericana de Direitos Humanos. Crime que a Lei de Anistia brasileira anistiou.Em síntese, a II Jornada foi um momento em que a comunidade presentediscutiu e apresentou as pesquisas mais recentes sobre a temática das ditaduras edireitos humanos, e nela tivemos a oportunidade de comparar os limites eambiguidades da Justiça Transicional brasileira onde o direito a Memória, a Verdade ea Justiça precisam ser realmente efetivados.A partir dessa publicação com certeza será possível ampliar o alcance daprodução intelectual e dos debates travados ao longo do evento. Parabéns a todas etodos que se envolveram nessa construção!Isabel Oliveira Perna AlmeidaDiretora do Arquivo Público11


IntroduçãoLembrar, pesquisar e refletir: resgatando a história e a memória do Cone Sul daSegurança NacionalA presente obra é o resultado da II Jornada de Estudos sobre Ditaduras e DireitosHumanos, evento bianual organizado conjuntamente pelo Arquivo Público do Estado do RioGrande do Sul (APERS) e pelo Departamento de História e Programa de Pós-Graduaçãoem História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O sucesso daJornada confirmou a certeza da necessidade de abrir espaços acadêmicos para apublicização e socialização de uma crescente produção de estudos e pesquisas sobre atemática do passado ditatorial recente da região.Dando sequência a experiência iniciada em 2011, a Jornada deste ano recebeu comocomplemento da sua marca de identidade o subtítulo “Há 40 anos dos golpes no Chile e noUruguai”. Dessa forma, marcamos o ano em que se reflete sobre as quatro décadas doocorrido nos dois países, e mantemos uma das suas características essenciais: a deperceber as experiências traumáticas de segurança nacional do Cone Sul em perspectivaregional, fator que se relaciona com uma forma peculiar de olhar esse fenômeno históricodesde o Rio Grande do Sul.Em concomitância com abordagens que se desenvolvem em outros países daregião, as histórias nacionais em questão, não ficam reduzidas as suas fronteiras, mas seprojetam através dos efeitos produzidos pelos golpes de Estado que implementam ditadurasque possuem especificidades mais que, inegavelmente, se aproximam, se assemelham emcertos aspectos e interagem intensamente quando definem determinados objetivosestratégicos comuns.Nesse sentido, como vasos capilares irradiadores de múltiplas formas de interação,complementação ou confronto, os exílios, as ações de resistência e solidariedade bemcomo as formas de atuação da conexão repressiva produzem um emaranhado decomplexas relações que acabam conformando o mapa da segurança nacional regional dasdécadas de 1960 a 1980.Nesse ano de 2013 foram intensas as rememorações dos golpes de Estado doUruguai e do Chile, seus impactos e significados na América Latina em meio à Guerra Fria,e sobretudo o significado do fim da experiência socialista da Unidade Popular. Mas tambémfoi o ano em que rememoramos os 30 anos da redemocratização argentina, e com certeza,é o momento em que o Brasil – além do impacto de alguns avanços e grandes recuos daComissão Nacional da Verdade, das comissões estaduais, bem como dos comitês regionaisvinculados à sociedade civil (com poucas exceções) – vive a expectativa pelos “50 anos dogolpe de 1964”, algo que será motivo de debates em todo o país e nos países vizinhos notranscurso de 2014.Em função dessas demandas, o encontro, realizado entre os dias 24 e 27 de abril de2013, contou com uma programação variada: uma conferência de abertura, cinco mesasredondas, doze sessões de comunicações e uma atividade cultural-musical deencerramento. A conferência de abertura foi ministrada pela historiadora chilena VerónicaValdivia (Universidad Diego Portales/Chile), com o título Regime Pinochet (1993-1990):ditadura e terrorismo de Estado no Chile, e com comentários do professor Cesar Guazzelli,da UFRGS.As mesas redondas foram as seguintes: A imprensa como trincheira: denúncia eresistência, com a participação do jornalista Elmar Bonés e do cartunista Santiago; Brasil:mídias e ditadura, com os professores Carla Luciana Silva (UNIOESTE) e Nilo Piana deCastro (UFRGS); O mundo dos Exílios: repressão, resistência e sobrevivência, com os13


historiadores Melisa Slatman (UBA/Argentina) e Jorge Fernández (UFMS); 40 anos dogolpe no Uruguai: ditadura e terrorismo de Estado, com o depoimento de Cláudio Gutiérreze os pesquisadores Ananda Simões Fernandes e Enrique Serra Padrós; e, finalmente,Brasil nos ‘Anos de Chumbo’: estratégias de resistência e sobrevivência, com oshistoriadores Janaína Teles (USP), Diorge Konrad (UFSM) e Caroline Silveira Bauer(UFPEL) e o depoimento de Suzana Keniger Lisbôa (Familiares dos Mortos eDesaparecidos Políticos). A atividade encerrou com a participação musical do cantor ecompositor Raul Ellwanger.Cinquenta e um trabalhos foram aprovados para apresentação no evento, e foramdistribuídos nos seguintes doze painéis: “Ditaduras no Cone Sul”; “Memórias e Ditaduras:aproximações do passado”; “Ditaduras e Imprensa”; “Ditaduras: Arte, Cultura e Censura”;“Resistências e redes de solidariedade nas Ditaduras do Cone Sul”; “Outras experiências derepressão e resistência à ditadura”; “Memórias militares sobre a Ditadura”; “Recursosdiscursivos e discussão conceitual acerca da Ditadura”; “Ditaduras em Arquivo: documentosda repressão e da resistência”; “Políticas de memória e Justiça de Transição”; “Ditadura eAparatos Repressivos”; e “Debates sobre Ditaduras no campo jurídico”. A abrangência dastemáticas e a diversidade de origens dos campos de pesquisa confirmam a explosão daspesquisas sobre a história recente das experiências ditatoriais de segurança nacional. Cabemencionar, ainda, a participação de pesquisadores de diversos estados do país (Maranhão,Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, SãoPaulo) e do exterior (Argentina, Chile e Uruguai).O livro digital que ora apresentamos se transformou em uma grande publicação, quegarante ampla difusão à produção intelectual que foi apresentada, debatida, compartilhadae sentida ao longo dos quatro dias de evento em abril desse ano. Essa obra apresenta osquarenta e cinco artigos que foram efetivamente comunicados na Jornada, além decontribuições escritas de três palestrantes (Cesar Guazzelli, Diorge Konrad e JorgeFernández), e da transcrição da conferência de Verónica Valdívia. Os textos foramorganizados em onze sessões que identificam eixos temáticos aglutinadores, respeitandoquase que integralmente a organização proposta para as sessões do evento: I – Ditadurasna América Latina e no Cone Sul: debates há 40 anos dos golpes no Chile e no Uruguai; II –Memórias e Ditaduras: aproximações do passado; III – Ditaduras e Aparatos Repressivos;IV – Ditaduras e Imprensa; V – Recursos discursivos e discussão conceitual acerca daDitadura; VI – Ditaduras: Arte, Cultura e Censura; VII – Ditaduras em Arquivo: documentosda repressão e da resistência; VIII – Debates sobre Ditaduras no campo jurídico; IX –Resistência e redes de solidariedade nas ditaduras do Cone Sul; X – Outras experiênciasde repressão e resistência à Ditadura; XI – Políticas de memória e Justiça de Transição.Com a publicação dos textos os promotores e organizadores da II Jornada deEstudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos garantem mais uma contribuição à série dedebates das mais diversas tonalidades, matizes e perspectivas que vêm sendo travados noCone Sul em torno dessa área temática, embora exista pretensão de maior incidência noque diz respeito à realidade brasileira. Acreditamos que assim contribuímos para aprofundaro circuito Ensino-Pesquisa-Extensão, fazendo com que as reflexões e a produção doconhecimento extrapolem cada vez mais os muros da academia, alcançando espaços maisamplos, de forma particular as salas de aula, mas também, de forma geral, todos osespaços societários onde se estabelece o debate e o contraditório, seja através da crônicajornalística, da produção artística, das ações de movimentos e organizações sociais quelutam por justiça e direitos humanos.Cabe registrar que, parte importante dos expositores, como do público presente naJornada, se constitui de professores e futuros professores da rede de ensino. Sendo assim,há uma ênfase na origem da proposta tanto do evento quanto da circulação do materialapresentado, de que se semeie o conhecimento produzido ou em fase de aferição nocampo estratégico e mais universal da rede escolar, através da intermediação das novasgerações de docentes comprometidos com uma postura de resgate da Memória e daHistória, para que estas dimensões da identidade social sejam constitutivas de uma14


perspectiva de cidadania e de dignidade política, que permita relacionar a violência e aimpunidade do nosso tempo com a ausência de atuação da Justiça diante dos crimes delesa humanidade produzidos pelas ditaduras de segurança nacional e reconhecidoshistoricamente como tais.Por fim, encerramos agradecendo a todos aqueles que possibilitaram tanto arealização do evento quanto dessa publicação, em que registramos seus resultados. Emespecial, um agradecimento aos funcionários do APERS e aos expositores e convidadosque se deslocaram desde os mais distantes pontos cardeais para abrilhantar e valorizaresta II Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos.Boa leitura e até a III Jornada!Clarissa de Lourdes Sommer AlvesEnrique Serra PadrósOrganizadores15


I – Ditaduras na América Latina e no Cone Sul:debates há 40 anos dos golpes no Chile e noUruguai17


Regime Pinochet (1973-1990): Ditadura e Terrorismo de Estado no Chile 1Verónica Valdívia Ortiz de Zárate 2“Están matando mucha gente. Tienen necesidad de matar para que puedan dominar losmedíocres. Matarán mucho....Y cuando ya no puedan matar más, entonces se pondránbenévolos, los gobernantes besarán a lós niños pobres... Pero entonces serán máspeligrosos que nunca”. (Armando Uribe “Caballeros” de Chile, Lom, 2003, p.121)Estas palavras foram ditas pelo poeta, prêmio nobel de literatura, Pablo Neruda, poucos diasantes de morrer, e hoje refletem e sintetizam o que foi a Ditadura chilena, e a imagem do que foi o terrorde Pinochet. Para nossa desgraça, não foi apenas terror, mas uma ditadura com pretensõeshegemônicas, e portanto, havia muito interesse em gerar consenso na sociedade, com interesseparticular no povo. Se o povo não fosse ressocializado a ditadura não teria êxito. Então, mataram semcansar, mas também se apropriaram das crianças.Em 11 de setembro de 1973 as Forças Armadas e a polícia derrotaram o governo socialista deSalvador Allende, o primeiro experimento de chegar, pela via democrática, a uma proposta marxista. Sea experiência brasileira gerou impacto nos Estados Unidos, o triunfo de Allende foi sensivelmenteintolerável. Desde o dia em que Allende ganhou, os EUA, e não apenas os EUA, como também ossegmentos de oposição a Allende, uma nova direita, um centro dividido, se lançaram a preparar umgolpe de Estado. Este golpe demorou três anos, porque a experiência socialista tinha raízes sociaisprofundas, e não foi fácil expulsar Allende. Finalmente, em setembro de 1973, o golpe se realiza, e oChile passa a fazer parte das ditaduras terroristas que dominavam o Cone Sul.O Chile tinha uma tradição supostamente democrática. Éramos uma exceção no Cone Sul,juntamente com o Uruguai, mas passamos pelas mesmas experiências, e tivemos que tolerar um ditadorpor dezessete anos. Um ditador genocida, que não se contentou somente em matar, mas que desejavatransformar a sociedade. A violência do golpe de Estado começou logo em seguida, como muitos devocês sabem. Os que têm mais de trinta anos recordam das imagens do bombardeio sobre o PalácioPresidencial, o presidente suicidando-se. Imediatamente quando começou o golpe todas as rádios emeios de comunicação do governo foram silenciados, e imediatamente foram presos todos os dirigentesda Unidade Popular. Assassinatos imediatos; a criação de centros de detenção pública; criação decampos de concentração; invasão – e isso quero que retenham – invasões ao que seriam as favelas,que começaram três dias depois do golpe, com muita violência, o que se conhece como violênciamassiva contra as populações.Na noite do dia 11 de setembro, a Junta de Governo fez sua primeira aparição, não sabíamosquem eram, não conhecíamos a Pinochet, não conhecíamos ao general Gustavo Leight, comandante emchefe da Força Aérea, o Almirante Toribio Merino, chefe da Armada, e o novo diretor da Polícia, que seauto designou “director de Carabineros” 3 . Nesta noite os quatro generais se apresentam ao país, e ogeneral da Força Aérea disse que o golpe – por certo não usou a palavra “golpe” – tinha como objetivoextirpar o “câncer marxista” até as últimas consequências. Nessa noite o general Leight declarou guerraao país. A verdade é que não tínhamos ideia do que ele estava falando. No dia seguinte, dia 12, ogeneral Pinochet declarou que o Chile estava em guerra interna – tampouco sabíamos do que se tratava– e se estabeleceu o toque de recolher, no dia 12, às 24h. Vivemos com toque de recolher por quase 17anos. Algo que se foi amenizando, mas durante os 17 anos o toque foi algo permanente. A maior partedo tempo estivemos em estado de sítio, e quando não estávamos em estado de sítio estávamos emestado de emergência, e portanto a suspensão de direitos foi permanente.Em 1976 todos os dirigentes da Unidade Popular ou estavam mortos, ou estavam no exílio. Osdirigentes da esquerda marxista – Partido Comunista, Partido Socialista, Movimiento de IzquierdaRevolucionaria (MIR), Movimiento de Acción Popular, de orientação social cristã – todos, os que nãoestavam mortos, estavam fora do país. Um segmento muito pequeno ficou no país. Em 1976 noMovimiento de Izquierda Revolucionaria, que reivindicava a via armada desde sua fundação, em 1965,de mil militantes restavam cinquenta vivos no Chile. O restante estava morto, e poucos no exílio. OPartido Comunista, com uma estrutura e um aparato criado desde 1922, logrou sobreviver. Seus123Texto produzido a partir da transcrição de conferência proferida na abertura da II Jornada de Estudos sobreDitaduras e Direitos Humanos. Transcrição/tradução: Clarissa de Lourdes Sommer Alves.Licenciada em História. Doutora em Estudos Americanos, menção Pensamiento y Cultura pela Universidad deSantiago de Chile. Docente da Universidad Diego Portales.Nota da tradução: Carabineros é a polícia militar chilena.19


dirigentes, alguns foram presos, outros partiram ao exílio na União Soviética, mas o Partido Comunistaviu muitos de seus dirigentes e a juventude – particularmente sua juventude – sofrendo com a torturadesde 1974. O Partido conseguiu sobreviver: alguns dirigentes intermediários salvaram-no, mas trêsdireções foram assassinadas entre 1973 e 1976. Em relação ao Partido Socialista, muitos de seusdirigentes partiram à Alemanha Oriental, que existia nesse tempo, e outros ficaram no Chile. Seudirigente máximo, Carlos Altamirano, foi retirado pela Stasi em um operativo, caso contrário teria sidoassassinado. Muitos jovens dirigentes socialistas eram estudantes e foram assassinados. O que querosalientar é que em 1976 a esquerda marxista no Chile quase não existia mais. Os que restavam estavamna clandestinidade, e era uma esquerda quase paralisada.No Chile não houve solidariedade, na maioria dos casos. O impacto da violência foi de tal nível,que o que produziu foi uma paralisação social. Muitos dos perseguidos não receberam ajudam, e o queocorreu no país foi finalmente gerando uma espécie de indiferença social. Já vou explicar porque aguerra psicológica feita pela ditadura teve êxito, e muitos setores da sociedade chilena chegaram àconclusão de que se alguns eram perseguidos, algo haviam feito, e portanto deviam merecer o que lhesestava ocorrendo. Assim, a rede de solidariedade não foi majoritária, e as pessoas que auxiliaram aosperseguidos sofreram com a repressão em consequência.Chile é hoje um país muito despolitizado. O terror paralisou grande parte da sociedade, e quemseguia militando, colaborando ou ajudando era uma minoria. O restante estava submetido à ditadura eao discurso – ou ao monólogo – de Pinochet e de seus iguais. Agora, se o impacto interno da violênciafoi a paralisação, a quase aniquilação da esquerda, e a neutralização da oposição – refiro-me àDemocracia Cristã – ao nível internacional a violência do golpe gerou isolamento. Se os EUA e a CIAprepararam o golpe de Estado, na prática para o mundo o fato de Salvador Allende ter chegado por viasdemocráticas ao poder tornava a violência do golpe era inaceitável, portanto, desde o primeiro momento,a Junta de Governo ficou isolada politicamente. O Chile foi condenado sistematicamente pororganizações de Direitos Humanos, condenado pelas Nações Unidas, condenado pela OEA. Portanto, oregime que acreditava que, uma vez derrotado Allende, seria o “favorito”, ou receberia o apoiointernacional, na prática era um regime sitiado, que não tinha apoio econômico, mas sim recebeu apoioda CIA para exercer a repressão.Por que este tema do isolamento internacional e o impacto da violência do golpe de Estado?Porque diferentemente dos casos da Argentina e do Uruguai, no Chile não existia uma esquerda armadaconsiderável. Não tínhamos nem Tupamaros, nem Montoneros. Havia o Movimiento de IzquierdaRevolucionaria, que reivindica a violência e a via armada. O MIR foi um dos poucos partidos que tratoude resistir ao golpe pela via armada. Mas sem dúvida, era um Partido muito pequeno, que não tinha maisde dois mil militantes. Preparados com experiência em guerrilha, ou algo do estilo, não eram mais de dezpor cento de seus dirigentes. Em testemunhos os miristas se recordam que não tinham mais de cemmilitantes preparados para combater. Destes, os que tiveram condições de lutar não passaram decinquenta. O chefe do MIR foi detectado um ano após o golpe. Em outubro de 1974 foi assassinado. Osúltimos dirigentes foram arrancados em 1975. Portanto, o MIR não teve nenhuma capacidade deenfrentar o golpe de Estado. Este tema é muito importante, porque a existência de uma guerrilha nãopode ser justificativa para o golpe de Estado. Seria nos casos da Argentina e do Uruguai, onde aresistência armada transformou-se em “desculpa” para o fato. Todavia, nos casos da Argentina e doUruguai existiam efetivamente grupos armados importantes. Na prática eles também foram derrotadosantes do golpe de Estado, mas sem dúvida o fato de terem existido permitiu a desculpa para o golpe, eisso provocou a posição institucional das Forças Armadas, que se justificavam a si mesmas e a suasalianças no poder, porque sua tarefa era derrotar a subversão. O conceito de subversão neste casoestava associado a existência de uma guerrilha. Mas no caso do Chile isso não era possível. A ditadurausou o discurso de que no Chile havia uma guerrilha.De fato, em outubro de 1973, inventou-se o que foi chamou de o “Plano Zeta”. Pretendia-se dizerque a Unidade Popular estava preparando um autogolpe, portanto, o golpe de setembro teria sido paraevitar a instalação de um governo totalitário ditatorial dirigido por MAPU 4 . Isso era mentira. Esse planonunca existiu. Fez-se o que se conhece como Caravana da Morte, um assassinato de dirigentes daUnidade Popular com a justificativa de que eles estavam comprometidos com o Plano Zeta. No fundo, aditadura precisava inventar que no Chile efetivamente havia um perigo armado para justificar o golpe deEstado. Por tanto, a ideia de que seria necessário manter um governo militar de longa duração não sejustificava pela existência de uma guerrilha que não existia. Nesse sentido, era necessário justificar ogolpe a partir de outro ponto de vista. E esse ponto de vista é o que explica porque, hoje em dia, 40 anosdepois, seguimos vivendo sob os parâmetros da ditadura.Se vocês têm visto notícias sobre o Chile, sabem que os estudantes têm gerado, pela primeiravez em 40 anos, um movimento político com impacto realmente político. Pela primeira vez estãocolocando no tapete os problemas da aliança ditatorial. Pela primeira vez o sistema político tem4Nota de tradução: MAPU é a sigla para Movimiento de Acción Popular Unitario.20


condições, ou está disposto a escutar uma demanda social.Por que a partir do caso do Chile se pode saber um pouco o que foram as experiências do ConeSul? Pelo tipo de enfrentamento que houve no Chile. Entre 1970 e 1973 houve uma confrontação deprojeto. Foi um enfrentamento entre uma aposta socialista, de corte marxista, e uma aposta capitalistaem processo de rearticulação.No país apareceu uma nova direita, no começo dos anos de 1960, que começou a olhar para oque seria o neoliberalismo, que desejava propor um capitalismo de mercado – no Chile o que havia,como em toda a parte, era um capitalismo keynesiano, fortemente estatista. Esta nova direita desejavaneutralizar o poder do Estado, neutralizar o poder dos sindicatos, e desejava colocar o Chile dentro domercado mundial, sob as lógicas de transnacionalização da economia, lógicas de mercado. Essa direitanão teria nenhuma possibilidade de ter êxito politicamente naquele contexto.Enquanto a direita se rearticulava, a esquerda marxista alcançou o poder em 1970. E o maisimportante disso é que era uma esquerda no poder. Se dizia no país que essa esquerda não eraperigosa porque significava um perigo armado, mas porque havia tomado o comando do aparato estatal.Desde o Poder Executivo, a Unidade Popular no comando do Chile transformou a economia, e permitiu adinamização de todos os movimentos sociais. Desde o aparato estatal criou-se um setor de economianacionaliza. Os grandes empresários, os grandes bancos, o sistema comercial, o sistema de grandetransporte, todos foram nacionalizados, e sob esse plano de criação de uma área de propriedade social,os trabalhadores da indústria, os camponeses, os moradores das favelas, se mobilizaram eaprofundaram a experiência da Unidade Popular. Ainda que Allende nunca tenha colocado a construçãodo socialismo naquele momento, mas sim um processo com vias ao socialismo, na prática o movimentosocial gerou o que o historiador Peter Winn chamou de uma “revolução desde baixo”.A esquerda no Chile não ameaçava com as armas. O problema da esquerda no país foi terdemonstrado que desde o aparato do Estado era possível transformar a economia e a sociedade. Portanto, o perigo marxista tinha relação com o controle do Estado, e não com as armas.O segundo problema que tínhamos no Chile, segundo a perspectiva dos golpistas, era que aesquerda marxista era parte da institucionalidade. O Partido Comunista e o Partido Socialista entraramno sistema político durante os anos de 1930, e portando a chamada democracia chilena, no século XX,contou com a participação de socialistas e comunistas todo o tempo. Isso significava que os partidosmarxistas, sobretudo o Partido Comunista, eram partidos com profunda inserção social. O PartidoComunista nasceu em 1922, quando na verdade sua origem era o Partido Obrero Socialista de 1912, detrabalhadores, e não de intelectuais, e portanto era um partido que se desenvolvia com muita facilidadeno mundo social, no mundo popular.O que quero dizer é que no caso do Chile o marxismo era parte da cultura política. Nestesentido, os golpistas deveriam extirpar o marxismo no Chile. A repressão no Chile era insuficiente, e foifocalizada. É certo que com milhares de mortos, milhares de torturados, milhares de desaparecidos, masa repressão de dirigiu fundamentalmente a dirigentes políticos, estudantis e sindicais. O terror seapoderou da sociedade, mas a repressão foi focalizada. Isso significa que para extirpar o câncermarxista era necessário outro tipo de guerra. E essa guerra era uma guerra ideológica.Todos os que têm estudado a Doutrina de Segurança Nacional sabem que a guerra contrasubversivaera uma guerra ideológica. Sem dúvida, quando se fala do conceito de guerra ideológica, nãose está vislumbrando apenas a repressão, mas a guerra psicológica, e vale dizer, o tema da propaganda.No caso do Chile a guerra psicológica foi profunda. A ditadura controlou o principal canal de televisão,que era o Canal Nacional, o único que chegava a todo o país. Usou esse canal e controlou muitos meiosde comunicação.A guerra no Chile era insuficiente desde a perspectiva da propaganda, precisamente porque aesquerda era parte da cultura. Pode-se dizer que o marxismo no Chile era como um guarda-chuvapolítico, e portanto, como dizia o general Pinochet, era necessário arrancá-lo da mentalidade dapopulação. A guerra psicológica, como diz a teoria, pressupunha a conquista das mentes da população.Isso era o que deveriam fazer. Por isso na declaração do general Leight – “vamos extirpar o câncermarxista até as últimas consequências!”. As últimas consequências não era a repressão, mas simressocializar o povo do Chile. E por isso a ditadura durou tantos anos. Porque o objetivo da ditadura era,numa linguagem atual, “reformar” a população. Haviam que criar outro sistema de crenças e de ideias.Porque o que fazia a repressão era extirpar: as pessoas se aterrorizavam e abandonavam ideais. Mas aditadura não se contentou com isso: precisavam preencher o vazio deixado pela repressão. E esse vazioera um projeto. Essa era uma ditadura programática. Não era uma ditadura que se resumia a matar. Porisso que usei as palavras parafraseadas de Pablo Neruda. Não se incomodaram nunca de matar, masdepois se aproximaram das crianças, e com as crianças quero dizer que o que fizeram foi gerar umprograma político, um projeto de corte global, que permitia construir uma nova sociedade.Se todas as ditaduras de Terrorismo de Estado no Cone Sul tinham uma aspiração fundacional,no caso do Chile essa aspiração se cumpriu até a atualidade. E o que quer dizer isso? Que a justificaçãodo golpe e a posição institucional dos diferentes ramos das Forças Armadas diante do questionamento21


da necessidade de permanecerem no poder, não estava em desarmar uma guerrilha. A posiçãoinstitucional vinha com a promessa de construir um novo país. As Forças Armadas ficariam no poderporque iam refundar o Chile, e construir o que chamavam de uma “grande nação”. As frentes em quelutariam esta guerra, que eu tenho denominado como uma guerra social, eram as frentes econômicas,sociais, culturais e psicológicas. A guerra militar era importante, mas não era o mais importante. Ofundamental era mudar a mente das pessoas.Mas por que foi importante uma guerra social no caso do Chile? Pelo conceito de subversão. Osmilitares chilenos, por sua trajetória histórica, associavam a ideia de subversão à pobreza. Para eles,por que o Partido Comunista e Socialista tinham tanta tradição? Como era possível que o marxismotivesse chegado ao poder por via democrática? Porque o Chile era um país pobre e subdesenvolvido, eportanto a pobreza era o que atraia o marxismo. E de que forma se poderia superar essa ideologiamaligna? Superando a pobreza! Nesse sentido, as Forças Armadas se propuseram desde o princípio asuperar os níveis de estancamento econômico que havia no Chile. Deveriam construir um novo projetomodernizador para transformar o país e trazer crescimento econômico; esse crescimento deveriaeliminar o que se chamava de “extremamente pobres”, os marginais, os das favelas; e em terceiro lugar,este projeto modernizador deveria terminar com a influência dos partidos. Deveria despolitizar,entendendo por despolitizar, eliminar a influência dos partidos. Assim, deveria ser um projeto global querespondesse aos problemas econômicos, sociais e políticos. Esse projeto ficou pronto apenas em 1978,provindo dos civis, mas também de elementos das Forças Armadas.Desde o ponto de vista econômico, o projeto apontou para o neoliberalismo, ou o que hojecompreendemos como o neoliberalismo, já que ele não existia enquanto projeto na década de 1970. Oque havia, a partir de teóricos como Milton Friedman, e tudo o que eles defendiam, as políticas demercado da década de 1970, eram receitas de estabilização econômica, receitas monetaristas parabaixar a inflação, mas não existia o neoliberalismo como projeto. Mas nesse projeto o neoliberalismoexcede o marco econômico, e passa ao marco social, político e cultural. Esse processo se completa noChile em 1978, advindo de um grupo de economista que haviam estudado na Universidade de Chicago eque, junto com outro setor denominado “gremialistas” – nome que advém de um grupo de estudantes dedireita que se autodesignou “Movimento Gremial de la Pontificia Universidad Catolica”, porque diziamque os grêmios estudantis e sindicais deveriam estar separados dos partidos, e dedicar-se a seus finsespecíficos, ocupando espaços organizados de forma separada dos partidos – articularam um projetotecnocrático que cumpria com todas as condições para “vencer os desafios do Chile”, produzido a partirde uma mescla entre os neoliberais e os gremialistas.O que propunham os neoliberais? Desarmar o aparato estatal, completamente, e introduzir naeconomia chilena as lógicas de mercado. Portanto, o Estado se desfez de suas empresas públicas,reprivatizou todo o sistema financeiro que havia sido estatizado, privatizou o sistema comercial, tornandotudo privado. O mais importante de 1978 é que, uma vez desestatizando o sistema econômico, osneoliberais plantaram uma utopia: a utopia de uma sociedade autorregulada pelo mercado, que nãonecessitasse das interferências do Estado, mas que sozinha pudesse se autorregular pelo mercado. Issosignificou transpassar às lógicas neoliberais para o sistema social: privatizar a previdência, a saúde, aeducação, e todos os sistemas sociais. E isso que dizer que temos que pagar por tudo no Chile. Atémesmo a cultura, as entradas nos museus, é tudo pago.E então, do que se ocupa o Estado? Apenas dos extremamente pobres, dos habitantes dasfavelas, que segundo a ditadura não eram mais de vinte e um por cento dos habitantes do Chile, eportanto toda a guerra psicológica e social esteve voltada a esta porcentagem dos “pobres”, para queesses pudessem internalizar as lógicas de mercado.Nesse sentido, no país não havia nenhuma possibilidade de reestatizar a saúde, ou aprevidência em 1990, porque tudo já pertencia a grandes consórcios econômicos transnacionalizados. Apossibilidade de que a saúde ou o trabalho voltasse às mãos da regulação do Estado não existia.Precisariam pagar indenizações gigantescas aos grandes conglomerados, e isso não era possível. Alémdisso, o que a ditadura fez foi colocar a lógica neoliberal em todos os âmbitos da vida privada, porquetudo se transformou em problema privado: a educação, que era pública, agora era um problema privado,e as famílias, que discutiam onde estudariam seus filhos, não resolviam na esfera pública. Tudo setransformou em um problema privado, o que gerou uma atomização geral da sociedade. Tudo é umproblema individual, e não social. Não é um problema político. Isso significou uma legislação trabalhistaque desarticulou por completo os poucos sindicatos que existiam. Se dizia que estava mantida anegociação coletiva, mas na prática não tinham nenhuma capacidade de enfrentar os patrões, e omundo sindical praticamente sucumbiu. Subsistiram os sindicatos, mas sob a lógica neoliberal.O Chile do começo dos anos 1980 é um Chile que já não tem mais um Estado que considereque deva estar a cargo do social, salvo para estes grupos extremamente pobres, sobre os quais seexercerá a ressocialização mais profunda. Nós, o restante, vivemos a guerra psicológica através dosmeios de comunicação e de nossa própria experiência. Tivemos que perder a educação que tínhamos,perder o sistema de saúde que tínhamos, e aprender com essa experiência. Mas sobre os pobres se22


exerceu uma guerra social. O que fez a ditadura foi criar grupos que iam até essas populações, emsecretariados, voluntariados de mulheres e de jovens, para ressocializar as mulheres e jovens dasfavelas. Houve todo um trabalho de doutrinamento sobre o mundo popular, para que entendessem alógica neoliberal. Ensinavam às mulheres, por exemplo, que a economia do lugar era uma empresa,portanto tinha que funcionar como em uma empresa, em que os recursos eram poucos, e asnecessidades eram muitas, e portanto as mulheres deviam adequar os poucos recursos disponíveis paramanter seus filhos e organizar suas casas. Esses eram os valores do novo Chile.Assim, não houve apenas uma mudança estrutural, como também um trabalho direto no mundopopular. A lógica da ditadura era de que se o povo do Chile não entendesse que a sociedade haviamudado, o golpe não teria sentido. Como dizia o Ministro do Interior, Sergio Fernández, se o povo nãoentende as lógicas da economia livre que estamos construindo, tudo é inútil. O consenso mínimoindispensável era que o povo pudesse entender a lógica neoliberal, podendo viver e reproduzir-se nela.Esse foi o objetivo da ditadura.Paralelamente a isso, houve uma redefinição política, que vinha por parte dos gremialistas. Esteser “malévolo”, Jaime Guzmán, líder do movimento gremial, determinou de maneira muito sintética:criou-se um sistema neopresidencialista, em que o presidente da república quase não tinha atribuições,porque haviam organizações supra Executivo, como o Conselho de Segurança Nacional, formadomajoritariamente pelas Forças Armadas, e um Tribunal Constitucional que pode, até os dias de hoje,revogar leis aprovadas pelo Congresso, bastando que um deputado diga que determinada lei éinconstitucional. Colocou-se uma série de empecilhos institucionais para limitar o Executivo.E ainda em paralelo a isso, o projeto autoritário redefiniu a participação política. Até então o povochileno entendia como participação política a participação nos grandes debates nacionais. No Chile foitoda uma discussão o caminho para chegar ao socialismo. Foi uma discussão que tipo de Estado e desociedade queríamos. O que a ditadura pretendia era que as pessoas nunca mais se preocupassem comos grandes projetos. E o que era preciso fazer? Radicar as pessoas em seus temas cotidianos: Limitarseaos seus temas locais. Foi feita uma separação entre participação social e participação política. Aspessoas deviam participar socialmente, em concreto, em suas comunas, por isso no Chile a reformapolítica pressupõe a reforma municipal, e por isso quando se implementou o neoliberalismo e adesestatização, foram transferidos todos os serviços sociais aos municípios: a saúde, a educação, osistema de definição de construções, etc. Isso significa que quando as pessoas necessitam de umauxílio de subsídio, por exemplo, não demandam ao Ministro do Trabalho, demandam ao município. Setêm algum problema de saúde, é saúde municipal, se há um problema de educação, é educaçãomunicipalizada. Isso significa que todas as demandas sociais não vão ao Estado central, mas serealizam nas comunas. Isso significa que as pessoas, seu entorno e sua lógica política se estreitou, saiudo debate de cima, e se focalizou no nível territorial. Essa reforma municipal se mantém até os dias dehoje, e portanto, durante os anos de 1990, no momento da transição democrática, não discutimos omodelo econômico, porque isso estava imbricado a cima. Não discutimos o autoritarismo, porque esse étema da tecnocracia. Mas o que vamos discutir então? Vamos discutir se fazemos uma praça!Discutimos se nos faltam luzes nas ruas, mas não podemos discutir o tema de fundo. Esse é o problema.Esse projeto, que parece tão redondinho, explica que quarenta anos após o golpe o projeto daditadura siga completamente inteiro. Por que o tema da repressão não é o grande tema hoje em dia?Porque nosso problema é nos desfazermos da ditadura enquanto projeto. Não é que a repressão nãoimporte, pois sim, importa. Mas importa de forma muito mais limitada. O movimento estudantil do Chilehoje em dia tem muito claro o que são violações aos Direitos Humanos. As pessoas democráticas sabemque no Chile se violaram os Direitos Humanos, mas há, sem dúvida, cerca de quarenta por centos dechilenos pinochetistas, para os quais a repressão não importa nada, e que dizem mais: que bom quefizeram isso! Porque não mataram mais gente? Essa é a divisão no Chile: sessenta a quarenta porcento.E por que o movimento estudantil conseguiu tanto êxito no último período? Porque essemovimento está apontando o projeto da ditadura. O que os estudantes estão demandando hoje é discutiro tema país, não o tema das praças. Discutamos a educação pública. E por isso o governo de Piñera 5não quer discutir. Por isso a direita se opõe a que entremos em um debate profundo sobre as bases daditadura, e se os estudantes conseguem que se discuta o tema da educação e da saúde, mas que sediscuta as bases disso, começamos finalmente a minar a herança de Pinochet. E nesse sentido, comovocês podem compreender, a resistência é enorme. E por isso a direita não quer mudar o sistemapolítico, que lhes permite controlar a metade do parlamento com um terço dos votos, não quer mudar omodelo econômico, e seu discurso é “olhemos para o futuro!”. Não querem que olhemos para o passado,porque discutir o passado significa discutir o futuro, ou seja, discutir se vamos transformar o Chile, ou sevamos seguir sendo os filhos de Pinochet.5Nota da tradução: Sebastián Piñera, eleito presidente do Chile para mandato entre 2010 e 2013.23


“Desde entonces la patria no es la misma”: impressões sobre o terror de estado no ChileCesar Augusto Barcellos Guazzelli A alta qualidade da conferência proferida pela Professora Doutora Verónica Valdívia soma-seàquelas de outros professores chilenos de História da América Latina que estiveram em nosso meio;refiro-me a Miguel Rojas Mix e Eduardo Devés Valdéz, ambos com trabalhos que se relacionam dealguma maneira com a ditadura civil-militar chilena. Nestas circunstâncias, aproximar-me dasabordagens mais recentes sobre o Terror de Estado no Chile exigiria um distanciamento crítico quepossivelmente eu não alcance, pois minha visão histórica daquela realidade se confundeinequivocamente com minha memória, e esta é muito traiçoeira e inconfiável! Mais até do que partidária,ela é passional e marcada pela indignação até os dias de hoje!Eu recém-havia ingressado na universidade – também vivendo os horrores do Terror de Estadono Brasil após o Quinto Ato Institucional de 1968 – e as notícias que vinham do Chile eram alvissareiras!Tratarei então de marcar as impressões que tive dos tempos que antecederam a eleição SalvadorAllende da Unidad Popular à presidência do Chile, o impacto das realizações e das dificuldades do seugoverno, e as repercussões mais imediatas do golpe de Estado e implantação da ditadura de Pinochet.Antes de tudo, convém situar a “familiaridade” que já tinha com a política chilena com ashistórias que meus pais contavam, de muitos anos antes. E estas falavam de um país que tinha umadestacada tradição comunista na América Latina. O pai ouvira Pablo Neruda declamar seu Dicho enPacaembu no famoso Comício do Partido Comunista em julho de 1945, quando prestou sua homenagema Luis Carlos restes, libertado recém em abril dos porões do Estado Novo. Os milhares de pessoas quelotavam o maior estádio brasileiro de então ouviram Pablo Neruda dizer no fechamento do seu poema:“Hoy pido un gran silencio de volcanes y ríos. / Un gran silencio pido de tierras y varones. / Pido silencioa América de la nieve a la pampa. / Silencio: La palavra al Capitán del Pueblo. / Silencio: Que el Brasilhablará por su boca.” 1 Quatro anos depois, escreveria ainda outra homenagem de Neruda, em Prestesdel Brasil, recordando o encontro no Pacaembu: “El estadio pululaba con cien mil corazones rojos queesperaban verlo y tocarlo”. 2 A grande obra do futuro Prêmio Nobel aludia ao líder comunista brasileiroem dois de seus poemas, destacando-o entre os grandes Libertadores do continente americano.Quanta diferença deste Chile ligado ao Brasil pela utopia daquelas publicações que pela primeiravez divulgaram o “perigo vermelho” numa eventual vitória de candidatos da esquerda! Esta situação eratemida mesmo no moderado governo de Eduardo Frei, do Partido Demócrata Cristiano por ativistas daextrema direita brasileira! Com efeito, o próprio Plínio Correa de Oliveira, fundador da famigeradaSociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), tratou de identificar os riscosque advinham da reforma agrária levada a efeito por Frei, mesmo que ela fosse muito restrita. Temia aDemocracia Cristã chilena, “desatenta” a tais projetos, mesmo que tímidos. Juan Gonzalo LarrainCampbell, diretor da versão da TFP no Chile – Sociedade Chilena de Defesa da Tradição, Família ePropriedade – explica: “O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, sempre fiel sentinela da Contra-Revolução, nãotardou em discernir o perigo que significava para o continente latino-americano a ascensão de Frei.Pediu, então, a Fábio Vidigal Xavier da Silveira que viajasse ao país andino para confirmar in loco asapreensões que lhe assomavam ao espírito.” 3 Com efeito, ainda em 1967 o diretor de TFP Fábio Vidigalpublicou o livro Frei, o Kerensky Chileno, que prenunciava o avanço das ideias esquerdistas na AméricaLatina, mesmo pelas mãos da Democracia Cristã. 4Mas se a ultradireita brasileira e a ditadura militar se preocupavam com o Chile antes daseleições de 1970, a pior situação para elas estava por acontecer. Houve uma cisão entre os grupos nãoesquerdistas: de um lado, o Partido Nacional, com Alessandri, que congregava os setores burguesesmais conservadores e os latifundiários; também a Democracia Cristã, com um projeto mais progressistaque atraía grupos médios urbanos, pequena burguesia e até alguns setores populares, apresentoucandidato próprio, Tomic. Esta divisão favoreceu a vitória de Unidad Popular: em 4 de setembro, com1234Professor Associado do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul.Esta poesia foi incluída em Canto General, publicado por primeira vez no México em 1950. Neste volume, ahomenagem a Prestes se inclui em Los Libertadores, parte IV do livro. NERUDA, Pablo. Dicho en Pacaembu(Brasil, 1945). In: Canto General. Buenos Aires: Losada, 1975, p.143-145.Prestes del Brasil (1949). In: Id. Ibid. p.141-143.LARRAIN CAMPBELL, Juan Gonzalo. Frei, o Kerensky chileno: 30 anos depois. Catolicismo. São Paulo, EditoraPadre Belchior de Pontes, agosto de 1997 (edição on line).SILVEIRA, Fábio Vidigal Xavier da. Frei, o Kerensky Chileno. Editora Vera Cruz, 1967.24


36,6% dos votos vencia Salvador Allende, do Partido Socialista.A Unidad Popular era composta pelo Partido Socialista e o Partido Comunista, ambos de forteinserção entre os trabalhadores, além do Partido Radical, que representava setores médios urbanos emédios proprietários, e o Movimento de Ação Popular Unitária (MAPU), facção da Democracia Cristã quese radicalizara. No campo da esquerda havia também o Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR)que defendia a ação direta, com tomada violenta do poder; se de inicio via com reservas o governo deAllende, mais tarde faria forte oposição desde a extrema esquerda, acusando a Unidad Popular dereformista e demagógica.Havia, decerto, temores sobre o futuro desta vitória eleitoral. Em 25 de outubro, um complôarmado pela Central Intelligence Agency (CIA) resultou no assassinato do Comandante-em-Chefe dasForças Armadas do Chile, René Schneider. Este general defendia a obediência à Constituição do país,criando a chamada Doutrina Schneider que promovia a exclusão das forças armadas da políticanacional. 5 Presumivelmente autorizada pelo chanceler estadunidense Henry Kissinger, o afastamento deSchneider seria uma condição para impedir a posse de Allende. 6 No entanto, além da grande comoçãopopular, o presidente Eduardo Frei agiu com energia, e nomeou para o cargo o general Carlos Prats, quecompartilhava a defesa da ordem legal; mais tarde ele seria mantido no cargo por Salvador Allende.Restava ainda uma questão política: por não ter maioria absoluta de votos, a eleição necessitava deconfirmação no Congresso Nacional, majoritariamente contrário à Unidad Popular. Aqui uma vez mais aDemocracia Cristã manteve uma posição coerente com as urnas, e Allende obteve 78.4 % dos votos doscongressistas, legitimando-se como presidente.Tais notícias vinham das agências internacionais de informações, além de serem “filtradas” pelacensura que os órgãos de imprensa sofriam na ditadura brasileira. Também vinham de familiares eamigos de perseguidos políticos que cada vez mais procuravam refugio no Chile, buscando uma utopiasocialista, uma revolução “desarmada” que buscava, a partir do governo da Unidad Popular, profundastransformações sociais nos termos constitucionais e sem tomar o poder pela força.O ano de 1971 foi promissor, o que era possível acompanhar em que pese a censura dos órgãosde imprensa. O programa da Unidad Popular trazia profundas medidas econômicas: a nacionalização docobre – principal produto chileno – era um golpe muito duro no capitalismo internacional; a reformaagrária muito ampliada em relação àquela iniciada por Frei, feria os interesses dos latifundiários chilenos,comprometendo as bases de um sistema semifeudal muito arraigado; o controle dos bancoscomplementava este leque. Assim, o Chile vivia uma proposta ao mesmo tempo anti-imperialista,antioligárquica e antiburguesa, e o Estado era o fiador deste projeto.Mas já no ano seguinte apareceram e recrudesceram as ações de enfrentamento e sabotagens– internas e externas – ao governo Allende. As dificuldades em manter as relações comerciais pelodeclínio do preço do cobre somaram-se ao desabastecimento generalizado provocado por atacadistas,comerciantes e setores de transportes. Havia ainda uma insólita mobilização de setores das classesdominantes, os moradores dos “barrios altos” protestando contra a situação política e econômica doChile. Estes graves problemas foram amplamente noticiados pela imprensa nacional e agênciasestrangeiras, constituindo-se em forte propaganda contrarrevolucionária.Com tantas dificuldades impostas ao governo Allende, a direita chilena – à qual se somava agoraa Democracia Cristã – apostava nas eleições legislativas de março de 1973. Quando o resultado delas,dando 44% dos votos para a Unidad Popular, tornou-se muito claro não havia mais solução política àvista, e a oposição tratou de prepara uma saída golpista. Deste processo fez parte o levante de 29 dejunho conhecido como Tancazo ou Tanquetazo, quando uma coluna de 16 carros de combate invadiu ocentro de Santiago e cercou o Palacio de La Moneda, da presidência. A sublevação foi dominada pelastropas leais comandadas pelo general Prats, mas trouxeram alento aos opositores do regime, dentro efora do Chile. 7 Dois meses depois o Prats renunciou ao ministério da Defesa, substituído por AugustoPinochet.Em 11 de setembro viria o esperado golpe militar, uma ação cruenta levada a cabo por todas asForças Armadas chilenas, comandadas pelo próprio ministro Pinochet da Defesa. O bombardeio Palaciode La Moneda foi televisionado para o mundo inteiro, e recebido com regozijo por todos oposicionistas,dentro e fora do Chile. Mesmo a imagem de uma sede de governo sendo alvejada e incendiada, com opresidente Allende morrendo durante o bombardeio recebeu qualquer contrariedade por parte dos567Afirmara Schneider ainda em maio de 1970: “vamos garantizar la normalidad del proceso elecccionario y darseguridad de que asuma el Poder Ejecutivo quien resulte electo.” AYLWIN, Mariana & al. Chile en el Siglo XX.Santiago: Planeta, 1999. 230-232.É famosa uma frase de Kissinger sobre a eleição de Allende: "Não vejo porque precisamos ficar parados eassistir um país tornar-se comunista por causa da irresponsabilidade do seu povo”.Durante o Tancazo, jornalista argentino Leonardo Henrichsen filmava as ações quando foi alvejado por um cabodas forças golpistas; as imagens do cinegrafista “documentando a própria morte” causaram impactomundialmente, o que não impediu a propaganda anticomunista contra o governo de Allende.25


governantes do continente. Sabe-se que houve aberta atuação dos Estados Unidos em prol do golpe,inclusive com sua armada a postos para intervir, assim como a participação da diplomacia brasileira, doItamaraty até sua representação no Chile. 8Chegava ao fim a experiência chilena de revolução pacífica, dentro dos marcos institucionais e– talvez por isto mesmo! – derrubada por uma ação muito cruenta das Forças Armadas, até pouco tempoantes comprometidas com a ordem constitucional. 9 Em uma obra recente, o historiador chileno MiguelRojas Mix elenca uma série de “tarefas” que a ditadura civil-militar de Terror de Estado assumiu no Chile,de resto semelhante a outras aparecidas na América Latina. 10 Ele chama a atenção para algunsaspectos significativos:1. O Terror de Estado é um corolário da chamada Doutrina de Segurança Nacional (DSN),desenvolvida nos Estados Unidos e propalada para a América Latina; para garantir a integridade dospaíses americanos, deve-se promover uma guerra contra os “inimigos internos”, justificando-se todos osmeios para isto. 112. O caráter religioso que aproxima o golpe chileno do falangismo da Guerra Civil Espanhola; o“banho de sangue” para lavar o país, resgatando o “nacional-catolicismo” e a hispanidad do povo chilenoda conspurcação pretendida pelo Comunismo, internacional e ateu. A civilização ocidental se confundecom o Catolicismo.3. As Forças Armadas do Chile retomaram o papel histórico de defensoras do país desde ostempos da Conquista; o golpe de Estado coloca-as como a representação máxima do nacionalismochileno.4. A democracia e a “degeneração” dos costumes eram sinais inequívocos da “decadência” doOcidente. Spengler e Toynbee foram alguns dos autores que inspiraram estas ideias: as civilizaçõespassam sempre por um processo de “despertar, ascensão e queda”, necessitando de “minoriascriadoras” capazes de regenerarem as nações.5. Estes pressupostos ideológicos se somavam às doutrinas neoliberais, defendidas por Heyer,Friedmann e Popper desde 1947, e que se impunham progressivamente entre os países capitalistas.Favorecer os empreendimentos transnacionais no Chile e liquidar com a intervenção do Estado naeconomia foram tarefas cumpridas pela ditadura.Nos anos seguintes a ditadura protagonizou a eliminação de antigos membros do governoAllende. Para tanto, havia criado em 1974 a Dirección de Inteligencia Nacional (DINA), uma políciasecreta treinada por agentes da CIA na Escola das Américas, na Zona do Canal do Panamá,encarregada de fomentar a contrainsurgência nos países americanos. Já em 30 de setembro de 1974, arecém-criada DINA levou a cabo o atentado a bomba que resultou na morte do general Carlos Prats,exilado em Buenos Aires. Em 21 de setembro de 1976 foi a vitimado Orlando Letelier, que tinha sidoembaixador do Chile nos Estados Unidos e depois Ministro de Relações Exteriores, Interior e defesa; em891011Um fato pitoresco: o primeiro testemunho ocular do golpe de 11 de setembro foi dado em Porto Alegre pelopresidente da Federação Gaúcha de Futebol, Rubens Freire Hoffmeister. Ele se encontrava em Santiago nocomando de uma seleção de jogadores de clubes do interior do Rio Grande do Sul que disputaria um jogocontra a Seleção do Chile. Quando aconteceu o bombardeio do palácio de governo, a delegação estava em umhotel localizado nas proximidades. Tendo ligações políticas com a ARENA, Hoffmeister defendeu a versão oficialdos golpistas, a defesa da “democracia ocidental” contra o avanço do “comunismo” na América Latina. Como eraum homem muito caricato e alvo de ditos jocosos pela imprensa, seu testemunho de certa forma desmoralizouas razões que justificavam o golpe de Estado.Foram muitas as explicações dadas por intelectuais de esquerda para o fracasso do Chile. Agustín Cuevadefendeu que a causa do golpe se deu pelo caráter revolucionário da Unidad Popular, onde o Estado era a“institución encargada de regular las contradicciones sociales, ahora más bien las reproducía ampliamente en suseno, convertido en uno de los puntos nodales de la lucha de clases. Lucha que se expresaba en este nivel,entre otras formas, como una contradicción entre las prácticas gubernamentales orientadas hacia latransformación del modo de producción dominante y la superestructura jurídico-política encargada deperpetuarlo.” CUEVA, Agustín. Teoria Social y Procesos Políticos em América Latina. México: Edicol, 1979,p.119. Já para Sader, a Unidade Popular partia da ocupação de apenas uma parte do poder para iniciar atransição “Ou seja, um centro vital do aparato criado para a preservação da ordem burguesa era ocupado poruma coalizão que pretendia destruí-la. Porém, o insólito prosseguia no fato de que esta coalizão pretendiachegar ao socialismo pelas vias institucionais criadas para combatê-lo”. SADER, Eder. Um Rumor de Botas. Amilitarização do estado na América Latina. São Paulo: Polis, 1982 p.91-92. Semelhante é a explicação deAggio, que afirma ter o processo chileno se caracterizado por uma “revolução passiva”, onde “o Chile tinha nafunção moderna desempenhada pelo Estado seu referencial de “racional absoluto”, cabendo a ele implementar“do alto” as transformações clamadas pela sociedade em seu conjunto”. AGGIO, Alberto. Frente Popular,radicalismo e revolução passiva no Chile. São Paulo: Annablume / FAPESP, 1999, p. 210.ROJAS MIX, Miguel. El dios de Pinochet. Fisionomía del fascismo iberoamericano. Buenos Aires: Prometeo,2007, p.13-18.A DSN tinha uma versão latino-americana realizada pelo general Golbery do Couto e Silva na escola Superiorde Guerra do Brasil. SILVA, Golbery do Couto e. Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro: Jospe Olympio, 1967.26


seu exílio nos Estados Unidos, ele movia forte campanha contra o governo de Pinochet, quando foimorto pela ação conjunta entre a DINA, a CIA e imigrados cubanos de ultradireita.O maior protagonismo externo do Chile foi a liderança do Plan Condor, criado pela DINA em 25de novembro de 1975, em aliança com os serviços secretos das ditaduras da Bolívia, do Brasil, doParaguai e do Uruguai; a Argentina – que sob o governo de Isabelita Perón caíra sob domínio dossetores direitistas do peronismo, comandados pelo ministro López Rega – também participou.Mas eram mais candentes as notícias que vinham do próprio Chile sobre o Terror de Estado, amaior parte delas por pessoas que haviam conseguido refugio em outros países. Além da Europa, oMéxico foi um lugar de eleição por muitos destes fugitivos, assim como a Argentina no breve interregnodemocrático entre 1973 e 1976. O Estadio de Chile 12 foi transformado em campo de concentração paracentenas de prisioneiros, dos quais muitos seriam “desaparecidos” ou executados. É emblemático destatragédia o assassinato do grande compositor Victor Jara, o mais famoso artista chileno destes anos;ainda preso no estádio, compôs o poema Somos cinco mil, também chamado de Estadio de Chile, quefoi memorizado e reproduzido mais tarde por seus companheiros: “Somos cinco mil / en esta pequeñaparte de la ciudad / Somos cinco mil / ¿Cuantos seremos en total? / en las ciudades y en todo el país?”Contou-se por muito tempo a história de que Jara teve suas mãos decepadas como uma ironiamacabra pelos versos famosos de Lo único que tengo, uma de suas canções mais conhecidas: “Y mismanos son lo único que tengo y mis manos son mi amor y mi sustento.” No entanto, a inglesa Joan Jara,viúva do artista, nega este fato na biografia que escreveu sobre ele. 13Entretanto, aquele Chile que a ditadura tentava arrasar nos chegava por outros caminhos, e ostempos de Allende apareciam através de uma profusa produção cultural, agora banida do país! Trazidasda Argentina – até a implantação da ditadura em 24 de março de 1976! – e de outras partes, diversasmanifestações artísticas chilenas, engajadas ao projeto da Unidad Popular, eram divulgadas entre osopositores da ditadura militar, mesmo com o risco de serem acusados de propagandear material“subversivo”. Tornavam-se mais conhecidos os músicos, que desde os anos 60 tinham se organizado emtorno da Nueva Canción Chilena, procurando tirar das raízes populares inspiração para os movimentospolíticos contemporâneos, de maneira similar ao que ocorria principalmente na Argentina, no Uruguai, noMéxico.A própria Violeta Parra – a mais importante artista musical do Chile, que se suicidou em 1967 –apesar de anteceder esta geração, de alguma forma se associava a este grupo. Mesmo sendo umacompositora já bem conhecida, algumas de suas canções mais radicais – Violeta era comunista! – sedifundiram a partir de seus seguidores: La carta, Al centro de la injusticia, Que dirá el santo padre Lospueblos americanos, Me gustan los estudiantes, são algumas delas. 14 Seus filhos, Ángel e Isabel Parra,ambos compositores e cantores, além de seus trabalhos artísticos próprios, criaram em 1965 a famosaPeña de los Parra, uma penha folclórica que reunia os principais intérpretes da Nueva Canción Chilena.Destas reuniões resultaram os álbuns La Peña de los Parra, ainda de 1965, com vários intérpretes, e LaPeña de los Parra volume 2, agora apenas com os irmãos Ángel e Isabel.Por lá andou Patrico Manns, que em 1971 escreveu No cierre los ojos, sobre aqueles que tinhamvotado em Allende para presidente, e que “y esgrimiendo su confianza / fueron a las elecciones / aganar.” Como esquecer Pedro Alarcón, com sua canção Si somos americanos, ainda de 1965: “si somosamericanos, seremos todos iguales”. Ou do conjunto Quilapayun, cujo álbum Por Vietnam, de 1968,exibia na capa uma paródia da bandeira dos Estados Unidos com listras pretas e caveiras em lugar dasestrelas que, segundo eles, havia sido feita por Mark Twain! Deste trabalho consta Canto a la pampa,onde por primeira vez eu soube do grande massacre de Santa Maria de Iquique de 1907... Sobre o tema,dois anos depois eles gravariam a impressionante Cantata de Santa Maria de Iquique, do compositorLuis Advis. Também lembro o grupo Inti-Illimani, especialmente por Viva Chile, álbum lançado já noexílio: nele, entre tantas canções, há Cueca de la CUT, o hino da Central Única de Trabajadores de Chiledo cantautor Héctor Pavez, outro dos tantos artistas da Nueva Canción Chilena, composta poucosmeses antes do golpe militar; sem esquecer Venceremos, canção da Unidad Popular durante acampanha de Allende.No entanto, é impossível pensar no impacto – mesmo que tardio – do cancioneiro do cantautorVictor Jara, antes referido. Mais além da indignação pelo seu assassinato em mãos do Terror de Estadoque se abatia sobre o Chile, sua qualidade artística a serviço das causas sociais chilenas foi notável!Impossível dissociar seu álbum de 1969, Pongo en tus manos abiertas, com a foto das mãos calejadas121314Este era um estádio multiesportivo, construído em 1949, com capacidade para 4.500 espectadores. Muitos oconfundem com o Estadio Nacional de Chile, voltado para o futebol, com 47.000 lugares; ele não foi usado comocampo de concentração. Em 2004 o Estadio de Chile foi renomeado como Estadio Victor JaraJARA, Joan. Canção Inacabada. Vida e obra de Victor Jara. Rio de Janeiro: Record, 1998.Somente em 1976 canções de Violeta Parra seriam gravadas no Brasil. Elis Regina no álbum “Falso Brilhante”gravou Gracias a la Vida, e Milton Nascimento em “Geraes” interpretou Volver a los diecisiete junto com aargentina Mercedes Sosa.27


de um camponês na capa, dos martírios que sofreu antes de ser morto pela ditadura. Nele está Zambadel Che, recordando outro dos tantos mártires americanos: “Mataron al guerrillero Che ComandanteGuevara”... Também a conhecida Te recurdo Amanda! Em 1971, no disco El derecho de vivir, Jaraapresenta uma das canções mais canônicas da América Latina, Plegaria a un labrador, um verdadeirohino para as históricas lutas camponesas do continente; os versos finais são da própria Ave Maria,dando o tom de oração que prometia no título: “Juntos iremos unidos en la sangre / ahora y en la hora denuestra muerte / Amén”. Talvez a mais importante obra artística de Victor Jara seja La Población, de1972, que trata da toma dos terrenos da Calle San Pablo em Barrancas, região metropolitana deSantiago. Esta ocupação por camponeses em março de 1967 foi severamente reprimida pelo governoFrei, e suas narrativas foram transformadas numa obra musical de elevado cunho social. 15Menos impactantes que as canções – mas não em seu conteúdo! – muitos livros foram escritossobre os acontecimentos no Chile, por exilados do país ou de estrangeiros que lá viviam. Não lembroquantos nem de seus títulos, mas circulavam nos meios estudantis e intelectuais que, nos tempos daDistensão proposta pelo presidente Geisel, já tinham um pouco mais de oportunidades para tanto. Umavez mais voltamos a Neruda! Em Montevidéu, abril de 1973 – pouco antes do golpe militar que instaurouo Terror de Estado também no Uruguai – foi publicado o último livro de poemas do poeta chileno, quedois anos antes fora agraciado com o prêmio Nobel de Literatura. O provocativo título Invitación alNixonicidio y alabanza a la revolución chilena já apontava para os riscos que o Chile de Allende corriaem relação à política externa agressiva do presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon. Em Juntoshablamos, poema de encerramento do livro, Pablo Neruda escreveu em seus versos finais: “Chile, miPatria no será vencida / ni al extranjero domínio sometida”. 16 Isto foi em janeiro de 1973; Neruda aindapresenciaria o golpe de Estado daquele ano, falecendo em 23 de setembro!**********Mais que “História”, eu contei apenas “histórias”, memórias que tenho sobre o Chile, que trateide ordenar da melhor maneira, buscando um perfil mais próximo possível de um trabalho acadêmico.Cabe ainda, antes de encerrar este texto, mostrar um pouco dos trabalhos realizados na UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul. Alguns colegas historiadores – aos quais eu me somo – realizarampessoalmente ou orientaram alunos a escreverem dissertações de Mestrado e teses de Doutorado sobreas ditaduras na América Latina, incluída aqui aquela que se abateu sobre o Chile. Temas relacionadosao terrorismo de Estado já adquiriram bastante relevância entre nós, e certamente isto me traz orgulhode pertencer à Universidade e fazer parte deste grupo de docentes e alunos! Assim, em nosso Programade Pós-Graduação em História foram realizadas quinze Dissertações de Mestrado e cinco Teses deDoutorado, sobre o Terror de Estado no Brasil e em outros países latino-americanos. Considerando quejá existem ainda muitos Trabalhos de Conclusão do Curso (TCC) de Graduação em História, temos umnúmero bastante significativo de pesquisas! 17151617SIMÕES, Sílvia S.“Canto que ha sido valiente siempre será canción nueva” : o cancioneiro de Víctor Jara e ogolpe civil-militar no Chile. Porto Alegre: UFRGS (Dissertação de Mestrado), 2011, p.152-153.NERUDA, Pablo. Invitación al Nixonicidio y alabanza a la revolución chilena. Montevideo:Ediciones Vanguardia,1973. Postumamente foi editado seu livro de memórias, onde se refera à sua trajetória como intelectual emilitante comunista. NERUDA, Pablo. Confieso que he vivido. Buenos Aires: Losada, 1974. (Este livro sóapareceria no Brasil em 1978, quando já se anunciava a Abertura do futuro governo de João Figueiredo.NERUDA, Pablo. Confesso que vivi – Memórias. Rio de Janeiro: Difel, 1978.)Dissertações de Mestrado. Orientador Benito B. Schmidt: GASPAROTTO, Alessandra. O terror renegado: umareflexão sobre os episódios de retratação pública protagonizados por integrantes de organizações de combate àditadura civil-militar no Brasil (1970-1975). Porto Alegre: UFRGS, 2008 Orientadora Carla S. Rodeghero: ALVES,Taiara S. Dos quartéis aos tribunais: a atuação das auditorias militares de Porto Alegre e Santa Maria nojulgamento de civis em processos políticos referentes às leis de segurança nacional (1964-1978). Porto Alegre:UFRGS, 2009; DOBERSTEIN, Juliano M. As duas censuras do regime militar: o controle das diversões públicase da imprensa entre 1964 e 1978. Porto Alegre: UFRGS, 2007; GUAZZELLI, Dante G. A lei era a espada:atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979). Porto Alegre: UFRGS, 2011. OrientadorCesar A. B. Guazzelli: ROSA, Michele R. O pensamento de esquerda e a revista Civilização Brasileira (1965-1968). Porto Alegre: UFRGS, 2004; SOUZA, Hélder C. Os cartões de visita do Estado: a emissão de selospostais e a ditadura militar brasileiro. Porto Alegre: UFRGS, 2006; AGUIAR, José Fabiano G. C. de. “Yo vengo acantar por aquellos que cayeron": poesia política, engajamento e resistência na música popular uruguaia : ocancioneiro de Daniel Viglietti : 1967-1973. Porto Alegre: UFRGS, 2009; SIMÕES, Sílvia S.“Canto que ha sidovaliente siempre será canción nueva” : o cancioneiro de Víctor Jara e o golpe civil-militar no Chile. Porto Alegre:UFRGS, 2011. Orientadora Claudia Wasserman: BAUER, Caroline S. Avenida João Pessoa, 2050 – 3º. andar:terrorismo de Estado e ação de polícia política do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande doSul (1964-1982). Porto Alegre: UFRGS, 2006; ARENHART, Davi R. Entre risos e prantos: as memórias acercada luta armada contra a ditadura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2011; BRASIL, Clarissa. O Bradode Alerta para o Despertar das Consciências: uma análise sobre o Comando de Caça aos Comunistas no Brasil,28


Houve ainda algumas atividades destacáveis. De janeiro a março de 2004, o Museu Universitárioda Universidade Federal do Rio Grande do Sul recebeu a exposição La Memoria Herida, idealizada eorganizada pelo historiador chileno Miguel Rojas Mix, um impressionante acervo de artistas plásticos doChile sobre os anos da ditadura naquele país. Inspirados pela exposição, os professores ClaudiaWasserman, Enrique Serra Padrós e eu organizamos o Seminário A Ditadura na América Latina,aproveitando o ensejo dos aniversários de 30 anos das ditaduras chilena e uruguaia no ano anterior, edos 40 anos da brasileira que aconteceria naquele ano. Este Seminário teve sua Conferência deAbertura proferida pelo próprio professor Miguel Rojas Mix, quando inaugurou a supracitada exposição.O Seminário teve sequência com Mesas Redondas apresentadas pelos professores organizadores etambém alguns dos seus orientandos, tanto de Graduação quanto de Pós-Graduação em História. AConferência de Encerramento ficou a cargo do escritor e jornalista Zuenir Ventura. Destes trabalhosresultou a publicação do livro Ditaduras Militares na América Latina, organizado pela professora ClaudiaWasserman e por mim; além dos organizadores e dos conferencistas do Seminário, há mais nove textosescritos por alunos que participaram do mesmo. 18E que mais? Um trauma que ainda permanece, o fantasma das ditaduras de Terror de Estadoassombrando a todos! No Chile, de maneira especial: uma ditadura muito cruenta que ainda não teve odevido “acerto de contas” – o que de resto também não aconteceu entre nós! Dois autores chilenos sãomuito eloquentes neste sentido.O escritor Ariel Dorfman comenta que, apesar dos horrores do Terror de Estado no Chile,existem por todo lado pessoas que admiram o “bom trabalho” do governo de Pinochet, trazendo a ordemdas casernas, afastando a insubordinação de trabalhadores, e principalmente favorecendo a economiade mercado. Por tais razões, escreve ele: “Essa encarnação ambígua de Pinochet – mescla de bichopapãoaterrador com paradigma histórico eminente e digno de ser imitado – não desapareceu, como euesperava, quando em 1990 o Chile recuperou uma democracia precária e restrita.” 19Já Miguel Rojas Mix mostra mais preocupação com a exaltação da figura de Pinochet porqueuma parcela significativa da população chilena lamentou a morte do sanguinário condutor da ditadurachilena. Acrescenta ainda que, mesmo entre aqueles que se tornaram críticos em relação ao generalmuito mais o fizeram por conta da apropriação indébita de alguns milhões de dólares do que pelosmilhares de mortos e desaparecidos pelo Terror de Estado. Como símbolo da exaltação que o chefeainda recebe no Chile, Rojas Mix apresenta na contracapa do livro uma fotografia de homenagensprestadas durante o velório de Pinochet, que comenta no Prólogo do livro: “Y la foto de los tres jóveneshaciendo el saludo fascista sobre el ataúd presagia el futuro. Fue entonces que me dije que era hora depublicar estas reflexiones.” 20Finalizo este texto, trazendo à baila a película chilena No, dirigida por Pablo Larraín e estreandoem 2012. O enredo trata das estratégias que os oposicionistas à ditadura militar chilena desenvolverampara o plebiscito que o governo havia convocado, na convicção de que seria vitorioso. Contra asexpectativas de que o voto “si” legitimaria Pinochet, a campanha pelo “no” inverteria esta situação,trazendo na sua esteira o afastamento dos militares e a redemocratização do país. No filme, o grandeartífice da campanha publicitária pelo ”no” é representado pelo renomado ator mexicano Gael García, e apelícula foi indicada para premiação do Oscar em 2013. Chamo atenção para isto, porque assistindo ao1819201968-1981. Porto Alegre: UFRGS, 2010. Orientador Enrique Serra Padrós: FERNANDES, Ananda S. Quando oinimigo ultrapassa a fronteira: as conexões repressivas entre a ditadura civil-militar brasileira e o Uruguai (1964-1973). Porto Alegre: UFRGS, 2009; BECHER, Franciele. O “Perigo moral” em tempos de segurança nacional:políticas públicas e menoridade em Caxias do Sul- RS (1962-1992). Porto Alegre: UFRGS, 2012; REIS, RamiroJ. Operação Condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre, Porto Alegre: UFRGS,2012; LAMEIRA, Rafael F. O Golpe de 1964 no Rio Grande do Sul: A Ação Política Liberal-Conservadora naConstrução do Golpe Civil-Militar. Porto Alegre: UFRGS, 2012. Teses de Doutorado: Orientador Cesar A. B.Guazzelli: PADRÓS, Enrique S. “Como el Uruguay no hay”: terror de Estado e segurança nacional Uruguai(1968-1985): do pachecato à ditadura civil-militar. Porto Alegre: UFRGS, 2005; ROSA, Michele R."Esquerdisticamente afinados”: os intelectuais, os livros e as revistas das editoras Civilização Brasileira e Paz eTerra: (1964-1969). Porto Alegre: UFRGS, 2011. Orientadora Claudia Wasserman: BAUER, Caroline S. Umestudo comparativo das práticas de desaparecimento nas ditaduras civil-militares argentina e brasileira e aelaboração de políticas de memória em ambos os países. Porto Alegre: UFRGS (co-tutoria com a Universtat deBarcelona), 2011; COUTO, Cristiano P. de P. Intelectuais e exílios: confronto de resistências em revistasculturais: Encontros com a civilização brasileira, Cuadernos de Marcha e Controversía (1978 – 1984). PortoAlegre: UFRGS, 2013. Orientados Pedro C. D. Fonseca: RAMIREZ, Hernán R. Os institutos de estudoseconômicos de organizações empresariais e sua relação com o Estado em perspectiva comparada: Argentina eBrasil, 1961-1996. Porto Alegre: UFRGS, 2005.WASSERMAN, Claudia & GUAZZELLI, Cesar A. B. Ditaduras Militares na América Latina. Porto Alegre: Editorada UFRGS, 2004.DORFMAN, Ariel. O longo adeus a Pinochet. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 192.ROJAS MIX op. cit. p.12.29


filme, me senti temeroso de que ganhasse o “si”, mesmo que obviamente seja conhecedor do resultadodaquele plebiscito! Isto para atestar a tensão emocional e o horror que o tema ainda me causa!Mais que nunca precisamos cuidar para que não reapareça o Terror de Estado!¡Viva Chile, mierda!30


La agenda pendiente del proceso de paz salvadoreño: Justicia Transicional, Ley deAmnistia y Comisión de la Verdad. 1 Aleksander Aguilar Antunes 2Resumen: El rabioso conflicto salvadoreño que oficialmente vigoró entre 1980 y 1992 no fue únicamentela irrupción de la violencia armada, ni estaba anclado solamente en el contexto de la Guerra Fría. Hoypersiste un escenario socio-político en el país centroamericano marcado por la presencia de tensiones yviolencias que tienen por fundamento, no por acaso, las incertezas sobre la noción de paz, o el revelarsede los peligros de una paz negativa asumida como la necesaria y, por consecuencia, institucionalizada.Las pendencias de los Acuerdos de Paz de Chaputelpec se expresan principalmente en la no aceptacióny en el cumplimiento parcial de las recomendaciones de la Comisión de la Verdad, en la ausencia deimplementación de la Justicia de Transición y en la vigencia de la Ley General de Amnistía, mermandolas posibilidades de reconciliación nacional e impidiendo la consolidación de la democracia.Palabras Claves: Proceso de paz salvadoreño - Memoria Histórica – Justicia Transicional – Ley deAmnistia – Comisión de la VerdadAbstract: The raging conflict in El Salvador, which officially lasted between 1980 and 1992, was not onlythe emergence of an armed violence period in the country, nor was merely anchored within the context ofthe Cold War. Still nowadays remains in this Central American State a socio-political scenario marked bythe presence of tensions and violence. This, not by chance, is fuelled by the uncertainties on the notion ofpeace, or the revelations from the potential dangers that stem from a negative peace accepted asnecessary and, consequently, institutionalized. The quarrels of the Chaputelpec´s Peace Accords areexpressed primarily: in the non-acceptance and in the partial fulfilment of the recommendations of theTruth Commission; in the absecene of the implementation of Transitional Justice and in the ongoingvalidatiy of the Amnesty Law. These pending pointgs undermine the chances for national reconciliationand prevent the consolidation of the salvadorean democracy.Key words: El Salvador´s peace process – Historical Memory, Transitional Justice, Amnesty Law, TruthCommision1. El Salvador: sangre, café y rebeliónLos Acuerdos de Chapultepec en 1992 pusieron fin a la guerra civil en El Salvador y dieron paso auna nueva fase en la historia política del país. Pero esto también conllevó que se asumiera que el fin dela guerra significaba vivir en paz, ignorando deliberadamente que la noción sobre esta incluye muchomás que la mera ausencia de guerra.En El Salvador se instauró en el postguerra una eficiente Comisión de la Verdad que seconvertió en modelo mundial, organizada bajo tutela de las Naciones Unidas. El trabajo de dichacomisión en el país evidenció que para la construcción de la democracia era necesario hacerdesaparecer falacias históricas y clarificar los hechos. Eso corroboró la idea de que la promoción dememoria historica contribuye para la reconciliación nacional y, a la vez, demostró que la agenda para suplena efectivación sigue lejos de estar completa.La lucha armada salvadoreña no estaba anclada solamente en el contexto de la Guerra Fría,sino tuvo origen en la larga historia de exclusión política y social de la gran mayoría de la población. Enun breve repaso histórico, en 1823 las Provincias Unidas de Centroamérica (Guatemala, El Salvador,Honduras, Nicaragua y Costa Rica) ya independientes de España desde dos años, se constituyeroncomo una república federal. La federación, sin embargo, era débil y se corroyó en 1838. Surgenrepúblicas independientes, pero durante décadas se formaron, generalmente a la fuerza, federaciones yconfederaciones que reunían algunas provincias anteriores y que luego volvían a disolverse. Con laexcepción de Costa Rica, en los demás países centroamericanos se dio una larga sucesión dedictadores, juntas cívico-militares y coroneles separatistas que se disputaron la presidencia en distintosperíodos. Los países de Centroamérica “en los primeros 170 años que siguieron después de su12Recife, Brasil, fevereiro/2013.Máster en Estudios Internacionales por la Universitat de Barcelona (UB), becario Fundación Carolina, ydoctorando en Ciencia Política por la Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), becario CAPES.email:antular@hotmail.com - fone: 81-9934 518931


independencia, se organizaron como economías oligárquicas cuya cohesión se mantuvo por medio de larepresión más que por la participación”. 3En 1841, la Asamblea Constituyente estableció la separación formal de El Salvador de laFederación Centroamericana, y declaraba al país Estado independiente y soberano, pero seintensificaron las disputas entre los dos grupos políticos. Cambios en la legislación a partir de entoncespermitieron a unas pocas familias apoderarse de grandes extensiones de tierras. Estas familias sedesarrollaron en el área del comercio y en la producción e industrialización de café. El gobierno se quedóen manos de los grandes terratenientes cafetaleros. La élite económica pasó a controlar el país. Lasituación se hizo conocida como el control de las 14 Familias (número simbólico, relacionado con elnumero de departamentos del país) u Oligarquía Criolla, por ser un grupo de descendientes directos deespañoles nacidos en el país (EQUIPO MAÍZ, 2005). A partir de 1930, con la crisis del precio del café enel mercado internacional, hay una crisis institucional y los militares toman el poder. Empieza en ElSalvador, con el general Maximiliano Hernández Martínez, un largo período de gobiernos autoritarioscontrolados por las Fuerzas Armadas.En 1932 el dictador Maximiliano sumergió en sangre la insurrección campesina indígenacometiendo uno de los genocidios más brutales de la historia de El Salvador y de América Latina. 4Después de su deposición, hasta 1972 se sucedieron una serie de gobiernos militares fruto de continuosgolpes de Estado o de elecciones fraudulentas. En esos años empezaron a surgir organizaciones ysindicatos llevando a cabo luchas reivindicativas laborales, como la influyente Asociación Nacional deDocentes de El Salvador (ANDES). Pero para las dictaduras militares y las élites económicas del país lasreivindicaciones significaban el riesgo de pérdida de poder. Por eso se recrudecía la represión y crecía laindignación en la población.La sociedad salvadoreña estaba dividida y una economía de pobreza y de exclusión social fuemantenida por medio de largos períodos de dictaduras militares. Emergió en El Salvador en esta época,bien como en las vecinas Guatemala y Nicaragua, grupos guerrilleros como actores armados contra losregímenes dictatoriales. La aspiración era la de erradicar las dictaduras militares y establecer sociedadessocialistas. Hubo una ruptura en el Partido Comunista Salvadoreño (PCS) en los años 60 con la salidade militantes históricos, situación que dio origen a organizaciones clandestinas dispuestas a impulsar lalucha armada, como el Ejercito Revolucionario del Pueblo (ERP) y las Fuerzas Populares de Liberación(FPL). De divergencias internas en el ERP surge la Resistencia Nacional (RN) y de nuevas escisiones enesta surge el Partido Revolucionario de los Trabajadores Centroamericanos (PRTC). Fue solamente en1977 que el PCS concluyó que debería unirse a la lucha revolucionaria armada. Por lo tanto, en 1978esas cinco organizaciones políticas-militares deciden empezar un proceso de unificación y crean unaDirección Revolucionaria Unificada (DRU), que dio pasó a la construcción del Frente Farabundo Martípara la Liberación Nacional (FMLN), constituido formalmente en 10 de octubre de 1980.Es importante ubicar la rebelión de dimensionas nacionales en el contexto internacional,especialmente respecto la Guerra Fría y el involucramiento de los Estados Unidos durante el gobierno deRonald Reagan. El discurso estadounidense era que El Salvador se había convertido en el escenariopara un atrevido intento de la URSS, Cuba y Nicaragua de instalar el comunismo en todo el hemisferioamericano. Reagan en un mensaje a la nación en 1984, dejó claro que los Estados Unidos harían todoen su poder para frenar el comunismo en América Central y consecuentemente proteger el país(REAGAN, 1984). Fue así como la pequeña nación centroamericana asumió protagonismo en el dramainternacional de la Guerra Fría. El gobierno Reagan pasó a apoyar las élites, el ejército y gobiernosalvadoreño con una ayuda financiera estimada en más de un millón de dólares diarios durante por lomenos once años (CHING, 2010).Durante el periodo de la guerra, principalmente en su años iniciales, el FMLN obtuvoimpresionantes victorias militares y es un aceptado análisis el de que “si no fuera por la ayuda de los34KRUIJT, D. Los movimientos guerilleros en Centroamerica, Nombres Propios. Fundación Carolina, Madrid, 2008,pp. 121-127.Farabundo Martí, fundador y dirigente del Partido Comunista Salvadoreño (PCS) fue el principal y másreconocido líder de los campesinos indígenas en la organización de la insurrección de 32, pero fue encarceladoy muerto antes de la culminación de la rebelión. En diciembre de 1931 por medio de un golpe de estado, llegó alpoder el Coronel Maximiliano Hernández, y el clima de insatisfacción social fue el punto de partida para lasprimeras huelgas de trabajadores en las plantaciones cafetaleras, que demandaban tierra y trabajo. En 22 deenero de 1932, varios campesinos, armados con machetes y pistolas tomaron las ciudades de Tacuba, Juayúa,Izalco y Teotepeque, a demás de los cuarteles de Ahuachapán, Santa Tecla y Sonsonate, dejando muertos en elcamino 20 civiles y 30 militares. Sin embargo, la oligarquía salvadoreña con el apoyo del gobierno de turno,sufocaron la rebelión en 3 días, utilizándose de inmensa crueldad. La persecución duró un mes y fueronasesinados 30.000 personas, indígenas campesinos en su mayoría. (HENRIQUEZ CONSALVI, C. & Gould, J.Documental 1932, Cicatriz de la memoria. Museo de la Palabra y la Imagen, San Salvador, 2008. Disponible enhttp://video.google.es/videoplay?docid=683961949821788422&hl=es#. Ultimo acceso en 30 enero 2013.32


Estados Unidos al gobierno, la guerrilla habría ganado el conflicto” 5 . Los guerrilleros lograron un empatecon el ejército salvadoreño después de 11 años de guerra y tenían suficiente poder de negociación paralograr algunos de sus objetivos claves como reformas democráticas y la depuración de las fuerzasmilitares y cuerpos de seguridad.2. Negociación e implementación de la paz en El SalvadorDe esta forma, entre lós años de 1980 a 1992 la República de El Salvador en América Centralestuvo hundida en una guerra que desgastó a la sociedad del país por medio de intensos niveles deviolencia que dejó millares de muertos y la marcó “con formas delincuenciales de espanto” 6 . Aunque noexisten datos definitivos sobre el número total de víctimas de violaciones de Derechos Humanos duranteel conflicto armado, se estima que se torturó, ejecutó extrajudicialmente o se hizo desaparecer por lomenos a unas 75.000 personas (BBC MUNDO, 2004).Los Acuerdos de Paz de 92 establecieron un marco institucional para cerrar la guerra civil en elpaís y para el FMLN deponer las armas, transformándose en una fuerza político-electoral. Pero elproceso de diálogo y negociación entre el gobierno y el Frente fue complejo. Hubo desconfianzas y laelaboración de la agenda fue un consenso difícil. Después de varios rondas de debates como GrupoContadora, reuniones de La Palma y proceso de Esquipulas, se alcanza el primer acuerdo, en Ginebra,1990. En ese momento se iniciaron dos intensos años de negociación que resultaran en la firma de losAcuerdos de Paz de Chapultepec, en México, el 16 de enero de 1992.Los Acuerdos de Chapultepec reiteraron compromisos anotados en Ginebra y añadieronreformas políticas y jurídicas en temas esenciales para la democratización del país. Fueron el resultadode más de tres años de convenios negociados entre las dos partes bajo los auspicios de las NacionesUnidas. Se estableció la depuración y reducción de la Fuerza Armada. El ejército fue designado garantede la soberanía y la defensa nacional, sustrayéndolo de funciones que tuvieran que ver con la seguridadinterna y pública (lo que también ayuda a explicar el porqué la reciente decisión del actual gobierno, delproprio FMLN, en enviar el ejército a contribuir en la seguridad pública ha sido tan controversial en elpaís). Los batallones, como el Atlacatl, formados como estrategia contrainsurgente, fueron disueltos. Lacreación de una nueva Policía Nacional Civil (PNC) fue uno de los principales puntos de los acuerdos.Basada en la doctrina de servicio a la sociedad, la instauración de la Academia Nacional de SeguridadPublica fue parte de los pactos.Los Acuerdos de Chapultepec también establecían un conjunto de medidas económico-sociales.Se creó la Procuraduría para la Defensa de los Derechos Humanos, como mecanismo para asegurar elrespeto irrestricto a estos principios. También se hicieron reformas electorales para dotar las eleccionesde mayor transparencia y obtener la confianza de la ciudadanía. En las áreas rurales pese los esfuerzosconcertados por abordar las necesidades de retornados, combatientes y población afectada por laguerra, los programas implementados se quedaron cortos con relación a las expectativas. Según elactual vicepresidente del país, Sánchez Céren,(…) en este punto el acuerdo no representa una transformación de la estructura de lapropiedad que hoy en día nos muestra una concentración de tierras y riqueza en manosde una minoría. Hay que recordar que una de las causas generadoras del conflictoarmado fue la imposibilidad de acceso a la tierra por parte del campesinado y elpredominio del latifundismo. 7Puede decirse que se llevaron a cabo los programas de retorno, reinserción, o repoblación. Peroen su núcleo, y en el mejor de los casos, sus resultados no excedieron a una reinstalación de laspersonas afectadas directamente por la guerra – mujeres, hombres, hogares – en las mismascondiciones de pobreza y marginalidad que vivían antes de los conflictos armados. Hubo reinserción,pero no integración social y productiva (GAMMAGE, 2002).Aunque se pactaron temas (como el Foro Económico) que no se implementaron, los Acuerdos dePaz Chapultepec pusieron fin a la guerra civil y dieran paso a una serie de reformas políticas y militares.Pero según señala Monterrosa, “el discurso gubernamental, y quizá también el popular, comenzó aasumir que el fin de la guerra significaba vivir en paz. Desde el punto de vista de las causas de la guerra,567CHING, E. Civil war and guerrilla radio in northern Morazán, El Salvador: setting the stage for reading Laterquedad del Izote, 2010, p. 3INFORME DE LA COMISIÓN DE LA VERDAD PARA EL SALVADOR. De la Locura a la Esperanza. La guerra dedoce años en El Salvador publicado por el Departamento de Información Pública de las Naciones Unidas en LasNaciones Unidas y El Salvador, 1990-1995. Serie de Libros Azules de las Naciones Unidas, Volumen IV, NuevaYork, 1995, p. 3.SÁNCHEZ CERÉN, S. Con sueños se escribe la vida, Editorial Ocean Sur, San Salvador, 2008, p. 228.33


el conflicto no está cerrado”. 83. La actual conflictividad en El SalvadorEs común y ampliamente reconocido que el fin de la guerra no representó el establecimiento dela paz (GAMMAGE, 2002; CERÉN, 2008; CONSALVI, 2008; MONTERROSA, 2009). Hablar de paz en ElSalvador puede conformar un desafío lleno de complejidades. Como señala Arévalo, los esfuerzos parala para la construcción de una cultura de paz “son contrarios a toda la construcción ideológica educativarepublicana existente en el país”. 9 La violencia es una constante en El Salvador y ocurre desde la cultura,la política y la educación. Hay una violencia directa que es resultado de la violencia estructural vigente yesta conforma la base sobre la cual se realizó la reconstrucción de la sociedad salvadoreña.Es necesario por lo tanto conceptualizar las nociones de violencia y de paz a la luz de losllamados estudios de paz y conflicto. Johan Galtung, uno de los principales estudiosos de esta cienciasocial aplicada llamada “Investigación para la Paz”, ha evidenciado que la contraposición a la paz noestá en la guerra, sino en la violencia – una definición ya bastante popularizada y repetida. 10 En estostérminos, el concepto medular necesario es la idea de paz como quehacer, como tarea de todos. Paz,según explica Fisas (2002), no tiene nada que ver con un concepto blando, angélico o etéreo, sino unhorizonte de transformación social.Vigora en El Salvador un tipo de violencia estructural que se manifiesta a través de la dicotomíade pobreza de las amplias mayorías y privilegios de reducidas élites. La pobreza en El Salvador esresultado de un proceso paulatino, sistemático e histórico de exclusión y desigualdad existentes adentrode la sociedad.Pero El Salvador además de su condición de vulnerabilidad social, también tienemanifestaciones bastante directas de violencia.Efectivamente, según el informe 2009-2010 sobre Desarrollo Humano para América Central delPrograma de las Naciones Unidas para el Desarrollo (PNUD) la región, y en especial el llamadoTriangulo Norte (conformado por El Salvador, Honduras y Guatemala) “es hoy por hoy la más violenta delmundo. Si se exceptúan las guerras que padecen algunas partes de África o de Asia, esta región registralas tasas de homicidio más elevadas del planeta” 11 . La inseguridad en El Salvador se complica aún máspor el crimen organizado. Las organizaciones internacionales del narcotráfico utilizan El Salvador, al igualque al resto de países de Centro América, como una ruta de paso para transportar droga entre los paísesproductores y los países consumidores.Hoy vigora un evidente conflicto en El Salvador. Hay un escenario de violencia directa yestructural que existe con suficiente intensidad para llevar al gobierno – no sin encontrar críticas yoposición en una polémica que persiste – por decidir militarizar la seguridad pública en noviembre de2009 y recurrir a la utilización del Ejército para frenar la violencia. Con esto 2.500 soldados y oficiales sesumaron a la policía para combatir la delincuencia en el país.Pero el conflicto salvadoreño también tiene que ver con su historia, su incapacidad de establecerjusticia y verdad, su agenda pendiente en términos de Memoria histórica que concretamente es parte dela falta del cumplimiento cabal de los Acuerdos de Paz de Chapultepec. De este incumplimiento tieneorigen una reconciliación nacional a medias, unas instituciones con un largo camino por consolidarse, lavigencia únicamente de una paz negativa y mucho quehacer hacia la paz positiva.En septiembre de 2009, el Centro Internacional para la Justicia Transicional (ICTJ, en la sigla eninglés) y el Instituto de Derechos Humanos de la Universidad Centroamericana José Simeón Cañas(IDHUCA) de El Salvador presentaron al Consejo de Derechos Humanos de la ONU, un reporte sobre loque consideran los temas pendientes que debe enfrentar El Salvador para cerrar el legado de violenciadel conflicto armado que vivió el país entre 1980 y 1992. El documento hace un recuento de la deudavigente del Estado salvadoreño con las víctimas en materia de verdad, justicia y reparación.La materialización de esa situación en El Salvador se refleja en tres elementos:el no cumplimiento de la Justicia Transicional; la Ley de Amnistía (1993);la falta de divulgación y puesta en práctica de las recomendaciones de la Comisión de la Verdad891011MONTERROSA, L. Entrevista concedida por email a Aleksander Aguilar. San Salvador, 20 julio 2009.ARÉVALO, A. Construyendo un futuro común: una propuesta de educación para la paz en El Salvador. Castellónde la Plana. Cátedra UNESCO Filosofía para la Paz. Master Internacional en Estudios de Paz, Conflictos yDesarrollo – Universitat Jaume I, 2009.GALTUNG, J. Peace by Peaceful Means. Oslo, Sage Publications, 1996, p. 9.PNUD. Informe sobre Desarrollo Humano para America Central: abrir espacios para la seguridad ciudadana y eldesarrollo humano. Naciones Unidas, Impreso en Colombia, 2011.34


Son esas deudas los principales elementos que conforman lo que se ha dado llamar de “agendapendiente del proceso de paz salvadoreño”. 123.1 La Justicia TransicionalLa Justicia Transicional es como se suele llamar la implementación de una justicia adaptada asociedades que se transforman a sí mismas después de un período de violación generalizada de losDerechos Humanos. Su objetivo es reconocer a las víctimas y promover iniciativas de paz, reconciliacióny democracia. Es un enfoque que surgió a finales de los años 80, principalmente como respuesta acambios políticos y demandas de justicia en América Latina y en Europa oriental. Es un concepto queplantea cuatro tareas fundamentales para que consolide la democracia en Estados que vivieronregímenes autoritarios: reforma institucional, derecho a la memoria y a la verdad, reparación de lasvíctimas y tratamiento jurídico adecuado de los crímenes cometidos.En 1998, la creación de la Corte Penal Internacional, a partir del Estatuto de Roma, fuesignificativa para el respaldo de estos principios, dado que el Estatuto de la Corte consagra obligacionesestatales de importancia vital para la lucha contra la impunidad y el respeto de los derechos de lasvíctimas.El Salvador, que no es signatario del Estatuto de Roma, a su turno, para estar al día con laJusticia Transicional, debería cumplir con las recomendaciones emitidas por la Comisión de la Verdad.Esto incluye implementar las observaciones dirigidas a prevenir la repetición de los hechos,particularmente en lo que se refiere a la persecución penal de los autores intelectuales y materiales delas violaciones a Derechos Humanos. Y, especialmente, las autoridades salvadoreñas tendrían queeliminar los obstáculos legales que impiden la investigación de los hechos ocurridos y que facilitan laimpunidad, tal como la Ley de Amnistía.3.2 La Ley de Amnistía en El SalvadorEl informe de la Comisión Verdad para El Salvador fue tildado por la cúpula militar de la repúblicacentroamericana como “injusto, incompleto, ilegal, parcial y atrevido”. 13 Pero la Asamblea Legislativa, en1993, antes de la publicación del documento final de la Comisión, aprobó el proyecto del gobierno: “Leyde Amnistía General para la Consolidación de la Paz” 14 .Esa norma, aún vigente, establece la extinción de la acción penal y civil de todas aquellaspersonas que estuvieron comprometidas en violaciones de los Derechos Humanos durante el conflicto.En la práctica eso significa que la posibilidad de las víctimas de exigir justicia y reparación en lostribunales con base en la información aportada por la Comisión de la Verdad está vedada por eseenorme obstáculo.El impedimento que esa ley representa para la aplicación de la justicia transicional en ElSalvador ha sido puesto de manifiesto durante la visita del Grupo de Trabajo sobre DesaparicionesForzadas o Involuntarias del Consejo de Derechos Humanos de la ONU a este país en 2007, queregistró 2.661 casos de personas desaparecidas durante el conflicto armado. El comunicado de prensadel Grupo con los resultados de la labor, afirma que “un elemento fundamental que en el contextosalvadoreño constituye un obstáculo para realizar el derecho a la justicia, a la verdad, a la reparación y ala readaptación, es la vigencia de la Ley de Amnistía de 1993”. 15En el año 2000, la ley de amnistía salvadoreña fue sometida a control de constitucionalidad através de varias demandas ante la Corte Suprema de Justicia. La Corte al estudiar específicamente losartículos 1 y 4 de la ley (los cuales las organizaciones de Derechos Humanos argumentan estar enincompatibilidad con una serie de instrumentos internacionales de Derechos Humanos tales como laConvención Interamericana para Prevenir y Sancionar la Tortura, y la Convención Americana SobreDerechos Humanos) emitió un fallo en que optó sobreseerse en el análisis. Además declaró también que(…) no existen las infracciones constitucionales alegadas, consistentes en que el12131415INSTITUTO DE DERECHOS HUMANOS DE LA UNIVERSIDAD CENTROAMERICANA JOSÉ SIMEÓN CAÑAS– IDHUCA. La agenda pendiente, diez años después: de la esperanza inicial a las responsabilidadescompartidas. San Salvador, Editoriales UCA, 2002.Vid. LA PRENSA GRÁFICA, El Salvador, 22 de marzo de 1993, p.53.ASAMBLEA LEGISLATIVA DE LA REPÚBLICA DE EL SALVADOR. Ley de Amnistía General para laConsolidación de la Paz, Decreto Legislativo nº 486, 20 marzo 1993. Extraído el 10 de febrero de 2013, desdehttp://www.unhcr.org/refworld/pdfid/3e50fd334.pdf. Ultimo acceso en 10 febrero 2013.COMUNICADO DE PRENSA DEL GRUPO DE TRABAJO SOBRE DESAPARICIONES FORZADAS OINVOLUNTARIAS DEL CONSEJO DE DERECHOS HUMANOS DE LAS NACIONES UNIDAS, emitido por elseñor Santiago Corcuera, Presidente-Relator del Grupo de Trabajo, y el señor Darko Göttlicher, miembro delmismo Grupo, luego de su misión a El Salvador. Febrero de 2007.35


artículo 1 de la referida ley viola el art. 244 y el 2 inciso primero de la Constitución; y queel artículo 4 letra e del mismo cuerpo legal contraviene los artículos 2 inciso tercero y245 Cn., ya que tales disposiciones admiten una interpretación conforme a laConstitución. 16En 2012, el procurador de los Derechos Humanos de El Salvador, Oscar Luna, explicó que comoparte del compromiso con los organismos internacionales en El Salvador “la ley de Amnistía debióhaberse derogado hace tiempo”. Sobre esto, Benjamin Cuellar, director del IDHUCA, ha sido incisivo: “Enlos 20 años luego de los Acuerdos de Paz el único paso que no se ha dado es hacia la verdad, resolverel daño, superar la impunidad”. 173.3 La Comisión de la Verdad de El SalvadorLas Comisiones de la Verdad son organismos de investigación surgidos partir del debate sobrequé hacer con los responsables de las violaciones a los Derechos Humanos y al Derecho Humanitario.El objetivo es ayudar a las sociedades, como la mayoría de las latinoamericanas en el siglo XX, que hansufrido graves situaciones de violencia política o guerra interna, a enfrentarse críticamente con supasado, a fin de superar las profundas crisis y traumas generados por la violencia y evitar que taleshechos se repitan en el futuro.De esa forma se crearon, desde instancias del poder oficial en países como Argentina, Chile y ElSalvador espacios para las investigaciones de Comisiones. En estos países las Comisiones de la Verdadse crearon por mandato legal, pero no sin la fuerte incidencia de actores políticos interesados enasegurar la memoria histórica y la reparación del las víctimas.La Comisión de la Verdad de El Salvador, fruto de los Acuerdos Chaputelpec, estaba compuestapor especialistas de alto nivel y tenían un mandato temporal de apenas seis meses. Los comisionadospor la ONU, al contrario de lo que se hizo en Argentina y Chile, eran académicos de otrasnacionalidades, no salvadoreños y fueron: Belisario Betancur (Ex Presidente de Colombia), ReinaldoFigueredo Planchart (Congresista venezolano) y Thomas Buergenthal, (juez estadounidense, exPresidente de la Corte Interamericana de Derechos Humanos).Entre las definiciones y facultades, la Comisión tendría a su cargo “la investigación de graveshechos de violencia ocurridos desde 1980, cuya huella sobre la sociedad reclama con mayor urgencia elconocimiento público de la verdad” 18 . La Comisión se constituye en instrumento de contribución paraerradicación de la impunidad cuando tiene su autoridad ampliada en el artículo 5 del Acuerdo de Paz deChapultepec denominado “Superación de la Impunidad” y el conjunto de esas disposiciones, luego,componen su Mandato.El trabajo de la Comisión de la Verdad hizo un análisis de los patrones de violencia usadosdurante la guerra civil, es decir, el examen de responsabilidades materiales e intelectuales en algunoscasos. La comisión recibió 23.000 denuncias de las cuales se elaboró una lista de 13.569 casos ainvestigar. De estos últimos la comisión eligió “casos ilustrativos” de los patrones de violencia de laspartes contendientes durante la guerra civil, como el asesinato en marzo de 1980 del arzobispo de SanSalvador, Óscar Arnulfo Romero, y la masacre de El Mozote, en diciembre de 1981. Sus conclusionesdetallaron también otras aniquilaciones y desapariciones forzadas producidas en operaciones militares yactos de violencia de las fuerzas guerrilleras, como el asesinato de alcaldes.El vicepresidente de la República y ministro de Educación ad honorem, Salvador SánchezCerén, anunció en enero de 2012 que la Comisión de la Verdad desclasificaria las investigaciones de loscasos tratados y que el mismo Ejecutivo promoverá que esta información sea difundida. Pero laProcuradoría para la Defensa de los Derechos Humanos (PDDH), no há confirmado la intención dedesclasificar la información (GARCÍA, 2012).Para visualizarse el incumplimiento de la Comisión de la Verdad de El Salvador, destacase queesta presentó una serie de recomendaciones que incluyen cuatro grandes grupos de medidas:161718SALA DE LO CONSTITUCIONAL DE LA CORTE SUPREMA DE JUSTICIA DE EL SALVADOR. Resolución nº24-97/21-98. Extraído en 22 de octubre de 2009 desde la base de datoshttp://www.csj.gob.sv/constitu/jur_base.htm.GARCÍA, Gabriel. Desclasificarán archivos de la Comisión de la Verdad. Diario Digital Contrapunto, 2012.Disponible en: http://www.contrapunto.com.sv/cparchivo/derechoshumanos/desclasificaran-archivos-decomision-de-la-verdad.Extraído en 20 octubre 2012.INFORME DE LA COMISIÓN DE LA VERDAD PARA EL SALVADOR (1995). De la Locura a la Esperanza. Laguerra de doce años en El Salvador publicado por el Departamento de Información Pública de las NacionesUnidas en Las Naciones Unidas y El Salvador, 1990-1995. Serie de Libros Azules de las Naciones Unidas,Volumen IV, Nueva York, p. 1036


I. reforma de la legislación penal y el Poder Judicial,II. depuraciones en las Fuerza Armadas, Fuerzas Policiales y dentro de la administración pública;III. inhabilitaciones políticas a las personas involucradas en violaciones de los Derechos Humanosy del Derecho Humanitario, por un lapso no menor de diez años.IV. otorgamiento de reparación material y moral para las víctimas de la violencia y sus familiaresdirectos.El presidente Mauricio Funes ha cumplido una parte importante de su deber en lo referente alproceso transicional, como jefe de Estado, ha reconocido en algunas oportunidades, de manera inédita,la responsabilidad del Estado por las masacres y ha pedido perdón. En 16 de enero de 2010, en ocasiónde conmemorarse 18 años desde la firma de los Acuerdos de Paz, Funes dirigió el más gran acto por lamemoria histórica en el país hasta la fecha y reconoció la responsabilidad del Estado salvadoreño engraves violaciones a Derechos Humanos contra la población civildurante el conflicto armado; pidióperdón por esos graves crímenes en nombre del Estado salvadoreño; anunció la creación de la ComisiónNacional de Búsqueda de niñas y niños desaparecidos durante el conflicto armado, y se comprometió aestablecer mecanismos para la reparación moral y material por los daños ocasionados.Sin embargo el esfuerzo estatal para castigar a los responsables, reparar a las víctimas yadoptar mecanismos para que las violaciones no se repitan no es suficiente dado que estasmanifestaciones del Estado, sumadas a la depuración de las Fuerzas Armadas al fin de la hostilidadbélica, solamente expresan que, pasados más de 20 años, apenas las dos primeras recomendacionesde la Comisión de la Verdad han sido parcialmente cumplidas.4. ConclusiónLa posguerra en El Salvador demostró las insuficiencias de una transición que no enfrenta elpasado. Vigora en el país un reconocido incumplimiento del Estado en materia de verdad, justicia yreparación como requisito imperioso para la construcción de un verdadero Estado de derecho. Lapoblación de El Salvador se siente insegura y las tasas de delincuencia son espeluznantes. No obstante,sorprendentemente no hay en el país una política integral de seguridad y la paz negativa es el conceptoinstitucionalizado.Algunos de los factores que explican los altos niveles de violencia que afectan la sociedadsalvadoreña son la inequidad, la falta de oportunidades económicas y sociales, los altos índices deimpunidad penal y la insuficiente capacidad de las instituciones para hacer frente a la problemática, alpunto de optarse por la utilización del ejército en la seguridad pública. Y El Salvador tiene víctimas queseguirán surgiendo de continuar vigente el actual modelo, y en una falta de política preventiva eficaz ydiseñada como herramienta de construcción de paz.La memoria histórica tiene un papel clave para desmantelar los mecanismos que han hechoposible el terrorismo de Estado y para evidenciar el sistema económico y político excluyente, además deconfigurarse como un instrumento poderoso para resistir e impedir el desvanecimiento de las identidadesculturales.En El Salvador la inédita e histórica victoria electoral del FMLN trajo expectativas positivas endiversas organizaciones de Derechos Humanos en la comunidad internacional para que se alcance lasuperación de la impunidad y el derecho a la verdad, a la justicia y a la reparación. La no aplicación delas recomendaciones de la Comisión de la Verdad para la implementación de la justicia transicionalcontribuye para que se mantenga en abierto el legado de violencia del conflicto armado que vivió el paísentre 1980 y 1992.Más de 20 años de los Acuerdos de Paz, aun vigora la deuda del Estado frente a las miles devíctimas de violaciones a los Derechos Humanos. Los responsables no fueron juzgados y los temaseconómico-sociales – que están en las raíces del origen del conflicto armado – no fueron abordadossatisfactoriamente.Permanece como el gran reto la revisión de la ley de amnistía.5. Referências BibliográficasARÉVALO, A. Construyendo un futuro común: una propuesta de educación para la paz en El Salvador.Castellón de la Plana. Cátedra UNESCO Filosofía para la Paz. Master Internacional en Estudios de Paz,Conflictos y Desarrollo – Universitat Jaume I, 2009.ASAMBLEA LEGISLATIVA DE LA REPÚBLICA DE EL SALVADOR (1993); Ley de Amnistía General para37


la Consolidación de la Paz, Decreto Legislativo nº 486, 20 marzo 1993. Extraído el 10 de febrero de2013, desde http://www.unhcr.org/refworld/pdfid/3e50fd334.pdf. Ultimo acceso en 10 febrero 2013.BBC MUNDO. Radiografía de El Salvador. Publicado en 2004. Extraído el 28 de enero de 2013, desdehttp://news.bbc.co.uk/hi/spanish/international/newsid_3550000/3550459.stmCHING, E. Civil war and guerrilla radio in northern Morazán, El Salvador: setting the stage for reading Laterquedad del Izote, Furman University, Greenville, USA, 2010.COMUNICADO DE PRENSA DEL GRUPO DE TRABAJO SOBRE DESAPARICIONES FORZADAS OINVOLUNTARIAS DEL CONSEJO DE DERECHOS HUMANOS DE LAS NACIONES UNIDAS, emitidopor el señor Santiago Corcuera, Presidente-Relator del Grupo de Trabajo, y el señor Darko Göttlicher,miembro del mismo Grupo, luego de su misión a El Salvador. Febrero de 2007.CONSALVI, C.H. Entrevista concedida personalmente a Aleksander Aguilar. San Salvador, 6 octubre2008.EQUIPO MAÍZ. Historia de El Salvador, Editorial Asociación Equipo Maiz, San Salvador, 2005.FISAS, V. Cultura de Paz y Gestión de Conflictos. Barcelona, Editorial Icarias – Ediciones Unesco, 2002.GALTUNG, J. Peace by Peaceful Means. Oslo, Sage Publications, 1996.GAMMAGE, S. Retorno con integración: el reto después de la paz. San Salvador, FLACSO-Programa ElSalvador, 2002.GARCÍA, Gabriel. Desclasificarán archivos de la Comisión de la Verdad. Diario Digital Contrapunto,octubre 2012. Disponible en:http://www.contrapunto.com.sv/cparchivo/derechoshumanos/desclasificaranarchivos-de-comision-de-la-verdad.Extraído en 20 octubre 2012.INFORME DE LA COMISIÓN DE LA VERDAD PARA EL SALVADOR. De la Locura a la Esperanza. Laguerra de doce años en El Salvador publicado por el Departamento de Información Pública de lasNaciones Unidas en Las Naciones Unidas y El Salvador, 1990-1995. Serie de Libros Azules de lasNaciones Unidas, Volumen IV, Nueva York, 1995.INSTITUTO DE DERECHOS HUMANOS DE LA UNIVERSIDAD CENTROAMERICANA JOSÉ SIMEÓNCAÑAS – IDHUCA. La agenda pendiente, diez años después: de la esperanza inicial a lasresponsabilidades compartidas. San Salvador, Editoriales UCA, 2002.KRUIJT, D. Los movimientos guerilleros en Centroamerica, Nombres Propios. Fundación Carolina,Madrid, 2008.MONTERROSA, C. Entrevista concedida por email a Aleksander Aguilar. San Salvador, 20 julio 2009.PNUD. Informe sobre Desarrollo Humano para America Central: abrir espacios para la seguridadciudadana y el desarrollo humano. Naciones Unidas, Impreso en Colombia, 2011.REAGAN, R. Address to the Nation on the United States Policy in Central America. Oval Office at theWhite House, Washington D.C., 1984. Disponible enhttp://www.reagan.utexas.edu/archives/speeches/1984/50984h.htm. Ultimo acceso 10 febrero 2013.SALA DE LO CONSTITUCIONAL DE LA CORTE SUPREMA DE JUSTICIA DE EL SALVADOR.Resolución nº 24-97/21-98. Extraído en 22 de octubre de 2009 desde la base de datoshttp://www.csj.gob.sv/constitu/jur_base.htm.SÁNCHEZ CERÉN, S. Con sueños se escribe la vida, Editorial Ocean Sur, San Salvador, 2008.38


A ditadura de Stroessner no Paraguai e o controle da oposição: os mecanismos usadospela ditadura stronista visando ao controle da oposição.Miguel Dos Santos 1Resumo: O regime ditatorial imposto pelo general Stroessner ao povo paraguaio desde 1954 não sefurtou do uso de medidas violentas para controlar a oposição política que tentava se organizar no sentidode pressionar o governo. O general ditador dispôs de um leque de mecanismos autoritários que iamdesde a perseguição político-partidária, do exílio, da tortura e dos assassinatos, e ainda contou com acooperação de diversos setores da sociedade paraguaia na sua cruzada contra as pessoas ouinstituições que se voltassem contra o regime autoritário por ele estabelecido.Palavras-chave: Stroessner – oposição – mecanismos-autoritários – Paraguai – povo.Abstract: the dictatorial regime imposed by general Stroessner after 1954 to the Paraguayan people didnot avoid to use violence to control the political opposition that was trying to organized himself to makepressure against the government. The dictador had a lot of mechanism like authoritarian party-political,exile, torture and murder, and still had the cooperation of various sectors of Paraguayan society in hiscrusade against people or institutions that turned against the authoritarian regime established by him.Keywoards: Stroessner – opposition – mechanism-authoritarians – Paraguay – people.O longo período do regime militar stronista no Paraguai deixou marcas que dificilmente serãoapagadas do contexto social do país, haja vista as características autoritárias, exclusivistas e opressivasde um Estado elitista mais preocupado com a manutenção do status quo de uma minoria de indivíduosem detrimento da grande massa da população que vivia em condições extremamente precárias. Essalonga sobrevivência da ditadura de Stroessner não se deu pelo acaso, mas sim, devido a uma eficienteorganização estatal repressiva e autoritária que buscava, incessantemente, eliminar qualquer vestígio deoposição ao regime estabelecido.Stroessner enfrentó vários desafios, pero sobrevivió poniendo en marcha laconsolidación de un tipo diferente de autoritarismo. Delineó objetivos de modernización:la erradicación del caos interno y la necessidad de proporcionar a la población un certogrado de participación política. Para incrementar la seguridad interna, su administraciónprohibió todo cuestionamiento o ataque a su legitimidad, así como también a susposiciones ideológicas y sus orientaciones políticas. La ruptura entre el sistema social yel sistema político se volvió evidente. El régimen atendia a las necesidades y lasexpectativas de un grupo reducido de ciudadanos. La represión sirvió para conservardicho orden institucional (MIRANDA, 1990, p. 10).Nesse sentido, vários foram os mecanismos usados pela ditadura stronista para se consolidar nopoder, sendo que todos eles buscavam, de alguma forma, senão eliminar, ao menos limitar,significativamente, o alcance dos movimentos das organizações oposicionistas 2 que buscavam aderrocada do regime. Esse trabalho do aparelho repressivo e autoritário se deu nas mais variadasinstâncias da sociedade paraguaia; indo desde os setores mais populares, incluindo aqui oscamponeses, passando pelos partidos políticos, inclusive alguns membros do partido oficial, eterminando na burocracia estatal. Essa foi a forma encontrada pelo regime de Stroessner para garantirsua longa duração no poder, mesmo que isso custasse um alto preço ao povo paraguaio.Este artigo é parte integrante da monografia apresentada no curso de pós-graduação em Históriado Brasil Contemporâneo, na Fapa, e tem como objetivo analisar como a ditadura stronista controlou a12Pós-Graduado em História do Brasil Contemporâneo pela Fapa e professor da rede pública e privada de ensinodo Rio Grande do Sul. Contato: miguelfapa77@gmail.com – (51-93182503)As principais organizações oposicionistas ao regime stronista foram, em um primeiro momento: o PartidoLiberal, o Partido Febrerista e o Partido Comunista Paraguaio. Em um segundo momento também participaramda oposição ao regime: a Igreja Católica, o Partido Liberal Radical Autêntico, o Mopoco (movimento popularcolorado), o grupo 14 de Maio e a Vanguarda Revolucionária. Esses últimos três grupos constituíram a oposiçãoarmada ao regime e pressionaram o governo através da guerrilha.39


oposição e quais os mecanismos usados pelo regime no sentido de tornar mais efetivo o controle dosgrupos oposicionistas. Nesse sentido, buscar-se-á, no decorrer do trabalho, mapear as ações do regimestronista para a sua consolidação no poder, além de discorrer sobre o papel e o funcionamento de cadaestrutura posta em prática pela ditadura de Stroessner. Para a realização desse artigo a metodologiautilizada foi a leitura de material impresso a cerca da temática abordada, além do uso de materialdisponível na mídia eletrônica.Entre os mecanismos usados pelo regime de Stroessner para se consolidar no poder merecedestaque o sistema repressivo montado pelo aparato estatal stronista objetivando o desmantelamento detodos os movimentos que fizessem oposição ao regime. Entenda-se aqui como sistema repressivo todasas ações colocadas em prática pelo Estado paraguaio no intuito de eliminar os focos de tensionamentoao regime que estava em vias de se consolidar no poder, principalmente aquelas medidas queprocuravam enquadrar os opositores do regime através das perseguições, da tortura, do exílio e dosassassinatos 3 .Nesse sentido, o controle político foi um dos mecanismos postos em prática pelo Estado nosentido de eliminar a oposição, ou, no mínimo, limitar a participação dos partidos oposicionistas diante daatuação do regime stronista. “Os partidos políticos que atuaram como forças opositoras no Paraguaiforam contados” (MIRANDA, 1990, p. 92). Essa situação se tornou fundamental para o governo, pois, sepor um lado, os partidos de oposição precisavam ser duramente controlados, por outro havia anecessidade de um espaço de atuação para esses partidos como forma de mascarar o autoritarismo elivrar o regime das pressões internacionais, principalmente das que vinham dos representantes dosdireitos humanos. Mesmo assim não se pode afirmar que os partidos de oposição, durante o regime deStroessner, não tenham existido, pelo contrário; o regime permitiu que alguns partidos continuassematuando no cenário político nacional, mais como uma forma de dar um caráter “democrático” ao contextopolítico paraguaio do que por qualquer outra questão; até porque os partidários da oposição querealmente se dispuseram a enfrentar o regime foram perseguidos e exilados pelo governo.Nessa diretriz governamental que envolvia os adversários do stronismo, a cooptação dos lideresda oposição foi outro mecanismo muito utilizado pelo regime como uma medida para desestabilizar ospartidos oposicionistas, além da manipulação da oposição pelo governo no sentido de dividi-la e,consequentemente, enfraquecê-la, tornando-a mais suscetível de ser controlada. Nesse contexto, poucoa pouco os velhos líderes do Partido Liberal e do Partido Febrerista, que estavam exilados no exterior,tiveram a permissão para retornar ao país e participarem das eleições, mesmo que essa participaçãotivesse um objetivo muito específico do ponto de vista do governo: transmitir a ideia de que as eleiçõesno Paraguai eram pluripartidárias e, consequentemente, ocorriam em um ambiente de aura democrática.Foi assim que procedeu a ditadura stronista na eleição presidencial de 1963 quando permitiu que oslideres dos partidos políticos de oposição que haviam sido exilados voltassem ao país e se organizassempara participarem do pleito eleitoral. Esse fato foi significativo para a fragmentação entre os partidosoposicionistas, principalmente do Partido Liberal e do Partido Febrerista, pois essa estratégia do governovisava a cooptação dos líderes desses partidos; e a aceitação dos mesmos a participar das eleiçõesacabava, invariavelmente, gerando conflitos e cisões dentro das organizações partidárias que eramadversárias do regime de Stroessner.Os objetivos do regime eram muito claros nesse sentido, pois, fragmentando os partidos deoposição o governo estaria enfraquecendo-os nos seus objetivos, ao mesmo tempo em que aparticipação de determinados setores cooptados desses partidos acabaria passando, para a populaçãoparaguaia e para o contexto internacional, a idéia de que no Paraguai de Stroessner as eleições erampluripartidárias e que o povo tinha o direito de escolha através do voto. Porém, essa situação nãocondizia com a realidade social do país, haja vista que o estado opressor era quem ditava as regras decomo deveriam se processar as eleições, inclusive determinando quem deveria ser o vencedor 4 ; nessecaso, o general Alfredo Stroessner, juntamente o seu séquito de seguidores do Partido Colorado, assimcomo os altos representantes da hierarquia militar.O controle político posto em prática pelo regime stronista não se limitou a excluir do contextosocial somente os partidos de oposição. O próprio Partido Colorado sofreu a intervenção do governo, o34LEWIS, H. Paul. Paraguai Bajo Stroessner. Mexico: Colleción Popular, 1986, p. 322. El ejército paraguaio háganado la reputación de ser un ejército selvaje en su forma de tratar a los guerrilleros. Sus métodos son simplesy despiadados: no toman prisioneros; solo les disparan sin tan siquiera formales juicio. Por ejemplo, endeciembre de 1959, las autoridades argentinas en el pueblo ribereño de Clorinda informaron que unos 25guerrilleros capturados fueron llevados a bordo del canonero paraguayo Humaitá, anclado en el costado opuestode la ribera, y sumariamente ejecutados ante los asombrados espectadores. En agosto de 1960, 17 cuerposmutilados fueron sacados del río cerca do pueblo argentino de posadas.De 1958, ano da primeira eleição de Stroessner, a 1988, ano da última vitória eleitoral de Stroessner, todas asdisputas eleitorais foram vencidas por ele. Em alguns casos nem eram disputas, pois ele não tinha concorrentes,ou seja, somente ele aparecia como candidato, pois a oposição não conseguia colocar um candidato na disputa,muito em conseqüência da repressão praticada pelo aparato de Estado do General Stroessner.40


que gerou um grande número de expurgos de líderes do partido que não compactuavam com asdiretrizes autoritárias que emanavam das ações estatais. Como a composição do Partido Colorado erabastante heterogênea, o regime teve que trabalhar intensamente para evitar as ações de algunssegmentos do partido que não apoiavam as medidas autoritárias de Stroessner, principalmente osrepresentantes da chamada ala democrática do partido.Nesse contexto, muitos representantes do Partido Colorado acabaram indo parar no exílio,sobretudo os vinculados a ala democrática, os mesmos que, futuramente, fundariam o Mopoco(Movimento Popular Colorado). Esse foi um dos problemas causados ao governo pelo partido da base,mas não deve ser considerado o mais grave, visto que esses estavam se organizando fora do país. Oproblema mais sério a ser enfrentado pelo governo de Stroessner era em relação aos segmentos doPartido Colorado que faziam parte do seu gabinete administrativo, ou seja, da burocracia estatal, vistoque as disputas pelo poder eram constantes, e a proximidade desses com as estruturas do estadopoderia dar-lhes condições de tramar um golpe para retirar Stroessner do poder.Como forma de se consolidar no governo e evitar um novo golpe, e a conseqüente perda dopoder, o governo de Stroessner buscou estabelecer um equilíbrio 5 entre as principais facções do PartidoColorado, principalmente no que dizia respeito aos epifanistas, de Epifânio Méndez Fleitas; aosdemocráticos, de Federico Chaves, e aos guionistas, de Natalício Gonzalez 6 . Esses dois últimos gruposreferidos eram inimigos declarados entre si, mesmo que pertencessem ao Partido Colorado. Seuobjetivo, com isso, era se aproveitar das velhas disputas intra-partidárias 7 para ir eliminando um a um ospolíticos que se mostrassem em condições de lutar pelo poder, ou que ao menos se colocassem comopossíveis ameaças ao seu projeto de governo.Os expurgos partidários, as seccionais coloradas e o Estado de SítioPrimeiramente, Stroessner excluiu do círculo de poder os epifanistas, como forma de se vingarda tentativa de golpe arquitetada por Epifânio Méndez Fleitas quando este fizera parte do gabineteadministrativo de Stroessner. Paralelamente a isso, foi alijando dos quadros do governo osrepresentantes da ala democrática do partido (a mesma do presidente Federico Chaves que ele haviadeposto do poder com o golpe militar em 04 de maio de 1954). O único grupo que ele manteve nasestruturas do regime por um espaço de tempo maior, e até com certo grau de autonomia, foi o guión rojoe seu aparato de violência sistemática, pelo fato de que ele necessitaria dos serviços dos guionistas parapoder controlar as investidas dos adversários contra o governo, mas, também, como forma de manter oequilíbrio das disputas intra-partidárias e, assim, bloquear as ações da facção democrática do partido,principalmente.Na verdade os guionistas tiveram um papel fundamental na organização do aparato repressivodo regime stronista, pois eram eles que, ao mesmo tempo, defendiam e realizavam as ações dogoverno, principalmente as agitações violentas em nome do regime, e, por isso, tornaram-se osdefensores do governo até as últimas conseqüências, geralmente abusando de métodos violentos paraatingir seus objetivos; sendo que as atitudes abusivas dos guionistas eram respaldadas pelo governo deStroessner.Nos momentos de dificuldades pelas quais passou o regime stronista foi que acabou aparecendoàs habilidades do estrategista general Stroessner, sempre atuando com o objetivo de limitar aparticipação daqueles que contrariavam as diretrizes autoritárias do estado. Nesse aspecto, ele nãopoupou esforços no sentido de se consolidar a frente do aparelho estatal autoritário posto emfuncionamento por ele; fazendo o uso de métodos violentos 8 e intimidadores, e, conseqüentemente,5678LEWIS, H. Paul. Paraguai Bajo Stroessner. Mexico: Colleción Popular, 1986, p.144. Por su parte, Stroessnerestaba listo para hacer una trégua con los democráticos, pues elles eran un contrapeso para Méndez Fleitas. Elnuevo régimen empezó, así, con la lucha de tres bandos para obtener el poder y en la que ninguna de las partescontaba con una ventaja clara.Essas três facções do Partido Colorado eram adversárias entre si. Os epifanistas tinham uma ligação muitopróxima com o governo peronista da Argentina. Já os Democráticos de Federico Chaves eram representantesda ala conservadora do Partido Colorado, além de defenderem a democracia como forma de governo para oParaguai. Natalício Gonzalez era o líder da facção guionista e inicialmente serviu ao governo stronista, masacabou sendo expulso do regime por planejar um golpe contra o governo de Stroessner.MIRANDA, R. Carlos. Paraguai e la era de Stroessner. Assunción; RPediciones, 1990, p. 92. El gobierno deStroessner uso habilmente las fragmentaciones partidárias internas y la estructura de partidos en general paraasegurar su domínio. Seguro al saber que una fuerte relación entre el Partido Colorado y las fuerzas armadashabía virtualmente garantizado su continuidad, el regimen trato de manejar las situaciones de otros partidos ycentralizo las actividades del partido oficial alrededor de la administración. El resultado fue una estructura derepresentación fuertemente limitada em alcance, la cual no pudo proporcionar el fundamento para lacompetência abierta.LEWIS, H. Paul. Paraguai Bajo Stroessner. Mexico: Colleción Popular, 1986, p. 320. A violência da ditadurastronista no Paraguai assustou os representantes dos Direitos Humanos e da Anistia Internacional ao ponto41


colocando a população paraguaia em geral, e a oposição em particular, como possíveis vítimas dasações repressivas dos grupos que apoiavam o regime. A participação política da população estava cadavez mais cerceada pelo aparato repressor stronista.Los esfuerzos por participar en política fuera de los confines del control gubernamentalfueram tratados com la coerción, la cooptación y la represión. Los sindicatos, lasorganizaciones campesinas, las federaciones estudiantiles y raros intentos de luchaarmada fueron infiltrados, sobornados o destruídos. Mientras los patrones de violacionesde derechos humanos han cambiado algo en el transcurso de los anos, los paraguayosque intentam ejercer sus derechos de organizarse o de expresar su disidencia,continúan aún hoy enfrentando arrestos, tortura, apaleamientos, exílio e despidos desus empleos (BOUVIER, 1988, p. 18).De fato, o controle exercido pelo aparato de Estado no Paraguai de Stroessner limitousensivelmente a participação da população nas questões relacionadas à política. O povo paraguaio teveproibida sua liberdade de escolha, pois somente podiam votar nos candidatos do partido governista(Partido Colorado).Esse aspecto era muito importante para o regime e, por isso, o controle se dava de diversasformas, mas sempre com o objetivo de que a posição do governo não fosse modificada perante asnormas de um intenso controle social por ele exercido.Para que essa situação fosse realmente conseguida era indispensável que houvesse umaorganização sistemática da estrutura que envolvia o estado como um todo; e foi isso que Stroessnerconseguiu realizar no intento de se manter a frente do governo, mesmo que jamais tenha conseguidoeliminar totalmente a oposição ao seu regime.As ações violentas contra aqueles que se indispusessem com o aparato oficial foram constantese efetivas, o que facilitou bastante a vida dos repressores. O suporte para as medidas repressivas doregime stronista era oferecido principalmente pelo guion rojo e pelos pyragués 9 colorados, mas, também,a própria polícia paraguaia 10 atuava nesse sentido, pois ela era controlada por políticos guionistas, eestes se constituíam em uma das bases de sustentação do governo de Stroessner.O Partido Colorado foi essencial para que Stroessner consolidasse seu domínio no conturbadocontexto político do Paraguai. Uma das formas encontradas por ele nesse sentido foi forçar as pessoas ase filiarem ao partido para conseguirem ter suas demandas atendidas. Além disso, “o governo baixou umdecreto que obrigava todos os representantes da burocracia estatal a se filiarem ao partido, inclusivetendo que doar 5% do seu salário para os cofres do Partido Colorado” (MIRANDA, 1990, p. 99). Essasmedidas foram responsáveis pelo crescimento significativo do número de correligionários colorados;além de enriquecer a máquina partidária, o que também se constituía em um objetivo claro da ditadurastronista.Ainda nesse aspecto de intenso controle social e político deve-se mencionar o exército, porque oingresso para as forças armadas só era possível para os jovens que fossem filiados ao partido dogoverno, neste caso o Partido Colorado. Isso fazia com que cada vez mais as estruturas do exércitofossem ocupadas por representantes do Partido Colorado, assim como as estruturas da sociedade comoum todo, ou seja, cada vez mais os ambientes político e social paraguaio eram penetrados pelo partidoda base do governo.A rede de controle posta em prática pelo stronismo, na sociedade paraguaia, perpassava todosos segmentos sociais, ou seja, nada escapava aos olhos da máquina estatal no intuito de defender aditadura de Stroessner. A grande penetração social do Partido Colorado foi fundamental para que ocontrole buscado pelo regime se desse de forma bastante efetiva. Nesse contexto de vigilânciagovernamental tiveram grande destaque às seccionais e subseccionais 11 do Partido Colorado.91011destes considerarem os métodos de tortura da polícia estatal paraguaia com características “medievais”. Osistema de tortura e repressão era bastante menos sofisticado que o do Brasil, mas, porém, tinha bastanteefetividade.GOIRIS, Fabio Aníbal Jará. Paraguay: ciclos adversos y cultura política. Asunción: Servi Libro, 2004, p. 55. Noidioma guarani pyragué significa “pés aveludados”, que seria o sigiloso denunciante anônimo. Eram funcionáriospúblicos e membros subalternos do partido governista (Colorado) que se infiltravam silenciosamente por todo oterritório nacional (e inclusive no exterior), com o objetivo de identificar e delatar os opositores ao regime deStroessner, criando, com isso, uma verdadeira cultura do medo e da desconfiança dentro da população.A polícia paraguaia se tornou fundamental para o controle repressivo durante a ditadura stronista. O momentode maior envolvimento desta no que diz respeito ao uso de métodos violentos foi quando esteve sob controledos políticos guionistas, principalmente Edgar Insfran e Ramón Duarte Vera, pois estes dois representantespolíticos colorados eram adeptos da idéia de que o controle da oposição seria facilitado na medida em que apolícia perseguisse, prendesse e torturasse toda pessoa que representasse algum tipo de perigo para asestruturas estatais.Esses organismos do Partido Colorado foram fundamentais para que o regime conseguisse penetrar42


La seccional colorada era uma red de información conformada por la estructura delpartido gobernante, subalternizada al Ministério del Interior. Las seccionales coloradaseran lus nudos principales de red paralela de información política. La seccional operabacom el comisario distrital en la administración del miedo em su distrito...En cada barriode las ciudades y em cada compania em el sector rural estaba la célula partidária osubsseccional, cuya cabecilla, em alguns casos, coincidia com la persona del comisariode compania. De qualquier manera se puede dibujar como esses organismos do PartidoColorado fueran fundamentales para que lo regime conseguiesse penetrarprincipalmiente en las áreas rurales paraguayas. Atraviés delas lo Partido Colorado esus representantes locales mantuvierón activos en lo control de qualquier persona quese colocasse en la contramão del regime. Havia, entre as seccionais e subseccionais delPartido e o regime una relaçión de cumplicidad e confiança, pois los lideres dessessegmentos eran directamente veinculados ao gobierno dictatorial de Stroessner. Unaactividad paralela, ya que mantenía la función más directa y específica de trabajar sobresus correligionários, empenhados em la afiliación, y la realización de concentraciones alservicio del partido (GONZÁLEZ, 1997, p. 19).Esses mecanismos de controle estatal obtiveram bastante êxito na medida em que foram osresponsáveis pelas afiliações partidárias da população, além de funcionarem, também, como centros deinformação sobre as movimentações estranhas que notassem, tanto no meio rural, como no meiourbano. Esse último aspecto das subseccionais coloradas foi essencial para que o regime ficassesabendo dos movimentos realizados pelos grupos de oposição que optaram pela guerrilha armada.Ainda nesse sentido de intensa vigilância estatal, pode-se dizer que “os cidadãos que nãopertencessem ao partido oficial estavam praticamente imobilizados do ponto de vista das ações cívicas eexpostos a intriga dos pyragués” (González, 1997, p. 63). As ações pró-regime dos pyragués seconstituiu em um dos principais entraves para as ações das organizações de oposição no Paraguaidurante a ditadura stronista. Os pés de plumas, como eram chamados os pyragués, funcionaram comoos olhos e os ouvidos do regime, principalmente no meio rural, delatando para o governo tudo aquilo quepudesse colocar em perigo a estrutura autoritária instalada no país, principalmente no que diz respeito àsorganizações oposicionistas. Era a partir dos avisos dos pyragués que o aparato repressivo stronistaconseguia deter o avanço dos movimentos de oposição dentro do Paraguai, invariavelmente, através demétodos repressivos e de combates violentos que causavam grande número de mortes dos opositores.Mesmo assim eles relutavam em se enquadrar nos moldes de sociedade imposta pelo aparelho estatalorganizado e conduzido por Stroessner e continuavam a lutar contra o regime.Seguindo o contexto de intenso controle social imposto por Stroessner, devesse destacar ointenso uso do Estado de Sítio como forma de limitar as ações que pudessem colocar em risco aconsolidação do regime. Essa prática coerciva predominou na sociedade paraguaia durante a ditadurastronista, e só era suspensa por vinte e quatro horas nos dias de eleições, até como forma das pessoasparticiparem das votações e consolidarem o domínio do Partido Colorado.La medida en la que o Estado de Sítio há sido importante en Paraguay se centra en elcontexto constitucional global del cual deriva y esto sugere que el principio es una reglaexcepcional. Si bien la promulgación temporária de tal principio legal puede sernecesaria en muchos países, el contínuo retorno a esta práctica en Paraguay demostróque el liderazgo de Stroessner era incapaz de resolver problemas internos recurriendosolo a los instrumentos normales de coerción (MIRANDA, 1990, p. 89).12A declaração do Estado de Sítio é uma medida de exceção que pode ser tomada por qualquergovernante como forma de manter a ordem social a partir das diretrizes do executivo. Essa foi umaprática recorrente dos regimes militares da América Latina, mas nem todos foram tão duradouros erepressivos como o Estado de Sítio 12 declarado no Paraguai pelo presidente Stroessner. Essa medidaopressora vinha acompanhada de prisões, confinamentos, proibição de reuniões públicas emanifestações, ou seja, retirava dos cidadãos o direito de ir, vir e se reunir. Esses aspectos constituemprincipalmentenas áreas rurais paraguaias. Através delas o Partido Colorado e seus representantes locaismantinham-se ativos no controle de qualquer pessoa que se colocasse na contramão do regime. Havia, entre asseccionais e subseccionais do Partido e o regime uma relação de cumplicidade e confiança, pois os lideresdesses segmentos eram diretamente vinculados ao governo ditatorial de Stroessner.MIRANDA, R. Carlos. Paraguai e la era de Stroessner. Assunción; RPediciones, 1990, p. 89. La medida en laque el Estado de Sitio há sido importante en Paraguay se centra en el contexto constitucional global del cualderiva y esto sugiere que el principio es una regla excepcional. Si bien la promulgación temporária de talprincipio legal puede ser necesaria en muchos países, el contínuo retorno a esta práctica en Paraguay demostróque el liderazgo de Stroessner era incapaz de resolver problemas internos recurriendo solo a los instrumentosnormales de coerción.43


se em um demonstrativo de que o regime stronista se estabeleceu e se consolidou a partir de medidasautoritárias que visavam a um controle social a qualquer custo e sem se importar com a situação geraldos cidadãos paraguaios.O Estado de Sítio era sustentado pela chamada Guarda Urbana 13 , que atuava sob a direção deEdgar Ynsfran 14 , um líder guionista bem-sucedido na política paraguaia (chegou ao posto de Ministro dasRelações Exteriores), tendo grande influência sobre a polícia, assim como sobre os funcionários daburocracia estatal; o que facilitava as suas ações repressivas contra os inimigos do regime stronista aoqual estava estreitamente ligado. Estando protegido pelo Estado de Sítio, as ações do governo nosentido de controlar a sociedade foram pautadas pela violência sem limites. “Os milicianos da GuardaUrbana tinham o direito de entrar em qualquer casa e prender qualquer pessoa que fosse consideradasuspeita de agir contra o governo” (LEWIS, 1986, p. 172). A vigência do Estado de Sítio colocava asociedade paraguaia a mercê do medo e da insegurança, além de cercear o direito à liberdade dosparaguaios. A brutalidade da polícia paraguaia não tinha limites em suas ações, e essa situação acaboudespertando a crítica de representantes da Igreja Católica, 15 pois esta passou a pressionar o governopara a suspensão do Estado de Sítio e a conseqüente interrupção das práticas de torturas realizadascontra alguns membros da oposição política ao regime.A Igreja Católica não era a única instituição que passou a repudiar as práticas violentas dogoverno stronista; além dela, o próprio exército estava preocupado com a ascensão da Guarda Urbanade Ynsfran, e passou a pressionar Stroessner para que esse não concedesse tanto espaço de atuaçãopara uma força militar que poderia estar fora de seu controle, haja vista que, na visão de alguns líderesmilitares, o próprio Ynsfran poderia estar arquitetando um plano para retirar Stroessner do poder 16 . Esselíder político guionista desfrutava de um importante apoio junto aos campesinos paraguaios, além de serum ferrenho anticomunista, o que, de certa forma, foi importante para que obtivesse a confiança deStroessner.Nesse aspecto, o intenso controle exercido pelo regime stronista em relação aos segmentossociais contrários ao seu governo foi diverso, pois este buscava enquadrar seus adversários, a qualquercusto, no sentido de eliminar as possibilidades destes virem a exercer algum tipo de pressão contra asdiretrizes ditatoriais. As formas de controle se deram em todo espectro social, mas foram mais intensasno campo político, em que os partidos de oposição foram, cada vez mais, perdendo espaço de atuaçãojunto à população paraguaia, muito devido ao exílio de seus principais lideres que viam na fuga do país edas garras da ditadura a única forma de se manterem vivos e tentarem se articular para poderempressionar o regime, a partir de fora do Paraguai. A oposição ao regime de Stroessner foi bastantelimitada, mas nunca deixou de ocorrer. Essa limitação oposicionista só foi possível devido ao bemarticulado e amplo sistema repressivo organizado pelo aparato oficial do governo centralizado nas mãosdo general Stroessner.Referências Bibliográficas:BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Ed. daUnB, 2004.BOUVIER, M. Virgínia. El Ocaso de un Sistema: encrucijada en Paraguai. Asunción: Editora NandutiVive, 1988.COLMÁN, Evaristo, MORAES, Ceres. A Guerrilha da Fulna: considerações preliminares. 2009.Disponível em: http://www.cedema.org/uploads/moraes_colman.pdf. Acesso em: 04 fev. 2011.LEWIS, H. Paul. Paraguai Bajo Stroessner. Mexico: Colleción Popular, 1986.MEZA, Ruben Ariel. El Triângulo de la Opression. Asunción: Editora Imprensa Salesiana, 1990.13141516Guarda Urbana era uma milícia de aproximadamente vinte mil homens armados e treinados para proteger ospovoados enquanto o exército regular se preocupava com os invasores guerrilheiros.Foi um líder político do Partido Colorado que ganhou a confiança de Stroessner devido ao fato de ser o líder dafacção do Guión Rojo e abusar do uso de métodos violentos contra seus opositores políticos. Tornou-se o braçodireito da ditadura stronista no intenso trabalho de desarticulação dos movimentos de guerrilha, principalmentenas áreas rurais paraguaias.A Igreja Católica paraguaia como instituição não criticou abertamente o regime stronista em seu início, pelocontrário, apoiou esse regime justamente pelo anticomunismo apregoado pela retórica ditatorial. Algunsrepresentantes do clero paraguaio se envolveram em críticas as ações de perseguição e violência praticadaspelo regime, o que acabou por gerar a prisão desses representantes religiosos. Com o aumento da violência doregime e a perseguição a alguns padres, a Igreja Católica passou a criticar o regime stronista e a lutar peladefesa dos direitos humanos, o que acabou por fazer o regime de Stroessner romper com a Igreja Católica.LEWIS, H. Paul. Paraguai Bajo Stroessner. Mexico: Colleción Popular. 1986, p. 174-175.44


MIRANDA, R. Carlos. Paraguai e la era de Stroessner. Assunción; RPediciones, 1990.PAREDES, Roberto. Los Presidentes Del Paraguay. Asunción: Ed. Servi Libro, 2005.STOPPINO, Mário. Autoritarismo. In: BOBBIO, Norberto. et. al. Dicionário de Política. Trad. Carmem C.Varrialle et al, sob a coordenação de João Ferreira. 2ª ed. DF: Universidade de Brasília, 1986.45


Terrorismo de Estado na Argentina e a Operação Condor: uma análise a partir dedocumentos de denúncia.Marcos Vinicius RibeiroResumo: O artigo apresenta uma análise de documento conseguido junto ao Centro de Estudos Legaise Sociais (CELS) da Argentina. Analisa-se, sobretudo, um caso inserido na lógica da Operação Condor eoutro relacionado a estruturação de um Centro Clandestino de Detenção chamado “La Cacha”.Palavras-chave: Argentina – Operação Condor – “La Cacha”.Abstract: The article presents an analysis of document achieved near the center of Legal and SocialStudies (CELS) of Argentina. It analyzes, in particular, a case inserted in the logic of Operation Condorand another related to the structuring of a clandestine Center of Detention called "La Cacha".Keywords: Argentina – Operation Condor – “La Cacha”.O documento utilizado para a análise foi de autoria do Centro de Estudios Legales e Sociales(CELS) da Argentina. O material contém um informe que tratou das condições encontradas no país emrelação à violação e/ou respeito aos direitos humanos durante a ditadura argentina de Terrorismo deEstado (TDE). O informe foi confeccionado em Buenos Aires com o seguinte titulo: “La situación de losDerechos en la Argentina (Octubre de 1979 – octubre de 1980)” 1 .A referência está composta de um sumário que contempla os principais temas descritos sobre aquestão dos Direitos Humanos no país. “1 - Violaciones al derecho a la vida, la libertad y la integridadfísica; 2 - Secuestros en el exterior atribuidos a agentes del Gobierno argentino; 3 - Muertes; 4 -Desapariciones temporarias. 4.a - Secuestro de once personas en Rosario. 5 - Testimonios oferecidos enel exterior; 6 - Consideraciones sobre el problema de los desaparecidos y la negativa a brindarinformaciones; 7 - Expresiones oficiales. 8 - Situación de los detenidos; 9 - Situación de las entidades deDerechos Humanos; 10 - Violaciones al derecho de información y difusión; 11 - Tratamiento oficial delInforme de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos (OEA); 12 - Reclamos de distintossectores de opinión en torno de detenidos-desaparecidos y presos políticas; 13 - Violaciones al derechode practicar libremente su culto; 14 - Contralor Ideológico y adoctrinamiento educativo” 2 .Segundo o informe que inicia o relatório, o resultado apresentado é parcial e limitado, uma vezque vai até o ano de 1980 e indica que a questão que envolve o tema - Direitos Humanos na Argentina -é um problema e, “Nada hace pensar que las autoridades estén dispuestas a llevar a cabo – en casoalguno - investigaciones destinadas aclarar y sancionar los gravísimos hechos cometidos por susagentes desde la fecha citada” 3 .A fonte não abordou o contexto de ditadura em sua totalidade. Foi um relatório sobre seqüestros,detenções, torturas e desaparecimentos que: “sieguen teniendo lugar, aunque en menor numero,episodios y en particular detenciones seguidas de torturas, vejámenes y desapariciones que ponen demanifiesto la subsistencia de procedimientos ilegales y clandestinos, autorizados y empleados desde elcomienzo de la represión” 4 .O Relatório da CELS indica que a situação era suplantada a partir da manipulação da opiniãopública, realizada pelos principais meios de comunicação social argentinos. Segundo o Relatório, asituação existente em 1980 a respeito da repressão era sustentada porque: “Su reiteración sólo esposible por el ocultamiento que se hace de ellos a la opinión publica, mediante la manipulación de losmedios de comunicación social y la intimidación” 5 .12345Biblioteca do Centro de Estudos Legales e Sociales - C.E. L.S. Buenos Aires Argentina (Octubre de 1980).O texto de Advertência diz que se trata de um material que, “En alguna medida completa el Informe sobre lasituación de los Derechos Humanos en Argentina, aprobado por dicha Comisión el 11 de abril de 1980 ypublicado en Washington DC como documento OEA/Ser.L/V/II.49 doc. 19” (Id. Ibid.)Continua com a seguinte afirmação, “Por el contrario, entre los estimonios que se incluyen en el presenteestudio se encuentran diversas declaraciones de gobernantes y militares, en las cuales se sostine que seimpedirá de calquier manera la intención de revisar aun por via judicial, las violaciones cometidas en prejuicio demiles de ciudadanos” (Id. Ibid).Id, p. 02.Id. Ibid.46


O texto de advertência que compõe as primeiras páginas do documento 6 está datado emnovembro de 1980. Trata-se do período de retirada de Jorge Rafael Videla do poder. À guiza deintrodução, o documento alertou para o fato de que: “Los hechos que a continuación se describen, con elagregado de breves comentarios, se hallan debidamente documentados. Por lo demás, parte de dichosepisodios ha sido materia de información periodística” 7 .Em resumo, este documento tráz informações sobre 62 casos de denúncia documentados entreo fim de 1979 e o ano de 1980. Sendo que, destes 62 casos, 34 casos recolhidos em testemunhos queversam sobre os últimos 4 meses de 1979, e, 28 casos documentados em 1980. Segundo o documento:“Sin duda alguna, el número real de desapariciones excede a la cifra antedicha, por cuanto confrecuencia las familias no formulan denuncia algunas a las organizaciones de derechos humanos o lohacen tardíamente” 8 . Apesar da comoção mundial, gerada a partir da visita ao país da Comissão, osmecanismos repressivos destinados a manter o silêncio em torno da questão, não se abrandaram 9 . Pelocontrário, passados 4 anos do golpe de março de 1976, após a visita da referida Comissão, osmecanismos foram redirecionados a manter o ambiente de perseguição, mas foram estendidos àvigilância dos organismos de direitos humanos encarregados de recolher o maior número deinformações sobre a prática do TDE.Os 34 casos nomeados pela Comissão ocorridos nos últimos meses de 1979, a saber, entresetembro e dezembro daquele ano, perfazem o conteúdo do material. Todos eram cidadãos argentinos eforam seqüestrados e se tornaram detidos-desaparecidos em território nacional. Em todos os casosapresentados no Relatório se encontra um breve levantamento das informações pessoais dos indivíduosenvolvidos, sendo que, em alguns deles, além das informações de documentação, relatam-se ascircunstâncias em que cada um foi detido.Após o levantamento realizado pela CELS referente ao ano de 1979, segue no mesmo tom adescrição de mais 28 casos de detenção/desaparição, inclusive com o emprego dos mecanismosrepressivos conhecidos e praticados pela ditadura argentina, dentre os quais, torturas com choqueelétrico com o emprego da Picana Eléctrica e práticas de afogamento (Submarino), além deaçoitamentos e isolamento das pessoas aprisionadas pelas diversas instituições de segurançacomponentes do Estado.Após referenciar cada caso tratado, o documento segue com um breve comentário que perpassatodos os temas levantados pelo índice que compõe o documento. Um, dentre os principais temasabordados durante o texto que compõe o Informe/Documento, encontra-se no caso de 6 sobre cidadãosargentinos seqüestrados no exterior. São eles: Horacio Domingos Campligia, Mónica Susana Pinus deBinstock, Noemi Esther Gianeti de Molfino, Julia Inês Santos de Acebal, Julio César Ramires e AldoAlberto Moran.Em particular, a descrição dos casos que envolveram Horacio Domingos Campiglia e MónicaSusana Pinus de Binstock são tratados no documento. Em relação a Horacio Campigli, encontramos oseguinte: “Desaparecido el 12 de marzo de 1980, probablemente en el aeropuerto de Caracas, altrasladarse desde Panamá a Rio de Janeiro, con tránsito en la ciudad antes mencionada. Residía enMéjico” 10 . Quanto ao evento que envolveu o seqüestro de Mónica Susana Pinus de Binstock, odocumento apresentou que Monica foi;Secuestrada junto con el anterior el 12 de marzo de 1980, en las mismas circunstancias.La desaparición se produjo en el trayecto Panamá-Caracas-Rio de Janeiro del vuelo 944de VIASA, que salió de la primera de dichas ciudades el 11 de marzo con hora dellegada a Caracas a las 23 continuando a viaje a Rio de Janeiro con arribo previsto al 12de marzo. También la señora Binstock vivía en Méjico. Estos dos casos han sido678910Sabe-se que, embora a proposta da OEA tenha investigado a situação dos direitos humanos no país e permitiua publicação do relatório da CELS no ano de 1980, o que por si teve seu mérito, ele não foi decisivo para o fimdas situações inerentes à aplicação da política de TDE. Mesmo que as denúncias realizadas através daComissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos tenham provocadouma sensível retração no quadro de detenções/desaparecimentos a partir de 1979, ano em que passou a atuara Comissão que deu amplitude às denúncias dos detidos/desaparecidos, sabe-se que antes mesmo doRelatório este quadro havia mudado sensivelmente, processo provocado pela pressão interna e pelo isolamentorelegado a mudança da política externa estadunidense com o governo de Jimmy Carter e a questão dos direitoshumanos. Esta política, envolta na defesa aos Direitos Humanos, previa, ademais, a estabilização do continenteem bases mais confiáveis para a atuação do imperialismo estadunidense na região descartando, enfim, anecessidade de manutenção das ditaduras latino-americanas.Id. p. 03.Id. p. 10.Segundo o Informe, “Sólo en 18 de los 28 casos de 1980 los familiares han presentado denuncia en la AsambleaPermanente por los Derechos Humanos, y más o menos en el mismo número, han presentado recursos dehábeas corpus. Las respuestas en éstos, han sido negativas”. (Id. p. 10-11).Id. p. 12.47


denunciados a las organizaciones de derechos humanos por familiares de las victimas yel hecho fue publicado en “La Prensa” de Buenos Aires, el 30 de marzo de 1980 11 .Trata-se de casos que remetem ao Plan Condor. Ao continuar o comentário dasdetenções/desaparições, o informe indica que:Los cuatro ciudadanos argentinos precedentemente citados fueron secuestrados, juntocon Federico Guillermo FRIAS ALBERGA 970 – que posteriormente se verifico que fueradetenido en Buenos Aires y conducido al exterior -, en Lima Perú, el 12 de junio de1980. Según denuncias de la prensa y de diversos sectores de la sociedad peruana,difundidas internacionalmente y recogidas por Amnesty Internacional, el hecho habríasido ejecutado por agentes del Gobierno argentino con anuencia de las FuerzasArmadas peruanas 12 .A análise da conexão repressiva entre Argentina e Peru estendeu-se no relato tratando daanuência das forças de segurança peruana em relação à entrada de oficiais argentinos por lá. Segundoo informe, a operação argentina foi acolhida pelos órgãos responsáveis no Peru a partir de umentendimento entre os presidentes em exercício de cada país.A tenor de dichas informaciones, el comandante en Jefe de Ejercito argentino, tenientegeneral Galtieri, habría solicitado a su colega del Perú, general Richter Prada,invocando acuerdos preexistentes, autorización para la entrada a ese país de personalde los servicios de Inteligencia argentinos con el fin de arrestar, interrogar y repatriar avarios ciudadanos de nacionalidad argentina que se encontraban en Perú. El trámiteculminó con la detención de las cinco personas mencionadas 13 .Segundo o comentário apresentado no Informe, havia muitos indícios de que a operação foipossibilitada a partir de uma ação conjunta entre Argentina e Peru. Entretanto, cabe destacar, aocontinuar o comentário acerca das investigações que envolveram a prisão e interrogatório das pessoascitadas, que os meios de comunicação peruanos não ficaram alheios aos acontecimentos.O complemento do comentário acerca dos casos levantados pela Comissão, continua com aseguinte observação, “Según noticias periodísticas, las victimas habrían sido sometidas a torturas en elCentro Recreacional Militar, ubicado en el norte de Lima, denominado Playa Hondable. A consecuenciade ello habrían fallecido FRIAS y MORAN. Las tres restantes habrían sido repatriadas” 14 .Além da alusão aos meios de comunicação peruanos quanto ao evento, o Informe apresenta a posiçãooficial do país andino relacionado às detenções de argentinos praticadas no Peru,Un vocero del Ejército peruano negó esta versión de los hechos, informando en cambioque el 14 de junio de 1980 habrían sido detenidos por fuerzas de seguridad losciudadanos argentinos Julio César Ramírez, Noemí Gianetti de Molfino y Julia dosSantos Acebal y puestos en la frontera con la Bolivia para ser trasladados a la Argentina.Fuentes bolivianas negaron haber intervenido en el operativo 15 .O obscurantismo que demarca as investigações do paradeiro das pessoas seqüestradas,demonstra que a posição das autoridades oficiais, no caso, um porta-voz do Exército peruano, e daBolívia, foi de negar a participação nas detenções. Um traço particular das conexões repressivas queenvolveram autoridades latino-americanas no marco da Operação Condor. Entretanto, a ação não pôdepassar despercebida uma vez que redundou na execução de Noemi Molfino. Segundo informaçõescontidas no documento confeccionado pela CELS, a morte de Molfino se deu em circunstâncias quelevam a acreditar que militares argentinos tenham praticado o crime.La señora MOLFINO apareció muerta el 21 de julio de 1980, en un departamento enMadrid, España. Esto motivó un comunicado del Gobierno argentino destinado a negarlos hechos denunciados por la prensa. La policía española caratuló el sumario como“muerte dudosa”. La prensa del mismo país acusó a las autoridades argentinas de serresponsables del asesinato. En Perú, por decisión del Congreso, luego de una sesiónsecreta con asistencia de autoridades militares, el caso se ha cerrado. En Españaprosigue la investigación, pero no se ha arribado a nada concreto 16 .111213141516Id. Ibid.Id. Ibid.Id. p. 12-13.Id. p. 13.Id. Ibid.Id. Ibid.48


Como podemos observar, o caso não foi investigado em sua plenitude. Por omissão dasautoridades dos países envolvidos na operação, as circunstâncias da morte de Noemi Gianetti deMolfino não foram completamente esclarecidas. Embora houvessem muitas evidências que oficiaisargentinos agiram ilegalmente no caso, como denunciaram os meios de imprensa espanhóis, pouco, ouquase nada foi feito para ampliar as possibilidades de apuração dos fatos. O que ficou claro, neste caso,é que, as operações destinadas a caçar e exterminar argentinos fora do país, só pôde encontrar êxitouma vez que as autoridades locais participassem ativamente dos trabalhos.Ao continuar a apuração acerca do assassinato de argentinos no exterior, o documento da CELSapresenta o caso de desaparecimento de Jorge Oscar Adur 17 . Trata-se de um sacerdote católico queteria desaparecido na fronteira entre a Argentina e o Brasil, na altura de Uruguaiana-RS, no fim de junhode 1980. Segundo as informações da CELS, Adur vajou ao Brasil para formar parte da comissão latinoamericanaque recebeu o Papa João Paulo II quando de sua visita ao Brasil em julho de 1980.Segundo o informe: “La Conferencia Episcopal Brasileña ha denunciado el caso, indicando quese trataría de un secuestro” 18 . Muitas comissões destinadas a apurar os crimes de Terrorismo de Estadose formaram no interior da Igreja Católica no Brasil. Neste sentido, destacamos a participação daComissão Arquidiocesana para os Direitos Humanos do Arcebispado de São Paulo (Clamor) 19 .A Clamor recebeu uma série de testemunhos relacionados aos crimes de lesa-humanidadepraticados na Argentina durante a ditadura. A partir de tais relatos foi possível traçar um itinerário acercade alguns Centros Clandestinos de Detenção (CCDs) na Argentina.Os relatos destinados a cobrir os crimes de TDE recolhidos por Clamor seguem um padrão quecontempla um índice 20 no qual se encontram cerca de 9 pontos que recorrem a descrição dosmecanismos de repressão do TDE na Argentina. Segundo o documento aqui tratado, escrito e assinadopor 8 argentinos 21 que procuraram a Clamor para relatar os crimes cometidos pela ditadura: “La formarepresiva consiste en hacer ‘desaparecer’ a los militantes populares, tiene dos finalidades inmediatas:destruir al militante y a su organización y extender el terror a todo el espectro social” 22 .A introdução do documento desenha um apanhado geral sobre as circunstâncias em que sedefiniu o golpe de março de 1976. Nela os denunciantes tratam de um itinerário sobre a históriaargentina: “La historia de nuestro país está caracterizada por una lucha continua entre las fuerzaspopulares y las clases dominantes, lo que se traduce en una sucesión ininterrumpida de gobiernos civilesy golpes militares” 23 .Apesar de não trazer maiores informações biográficas de cada um dos testemunhantes, o tomdo discurso usado, com informações que perpassam a economia, política e contexto social argentino,levam a crer que se tratavam de militantes de organizações políticas que atuaram previamente ao golpede março de 1976 e que, provavelmente, foram desbaratadas depois do golpe.Segundo o documento/relato, a definição de desaparecido e sua condição de detido é aseguinte:Que es un desaparecido?: es una persona a la cual secuestran, en su casa, en su lugarde trabajo, en la vía pública, en su lugar de estudio y que es llevada a lugaresclandestinos de detención, donde pierde todo el vínculo con el mundo exterior, al cual nollegan ni la luz del sol ni el brazo de la justicia, donde deja de existir, en vida. Nosotros,que estuvimos detenidos en uno de esos centros clandestinos, queremos testimoniarsobre nuestra común experiencia. Lo hacemos como un acto de coherencia militante: nosomos testigos de “accidente” o de un “exceso de la represión” sino parte de los treintamil compañeros desaparecidos y de su misma lucha 24 .1718192021222324No mesmo dia do seqüestro de Adur, pouco tempo depois, o militante montonero Lorenzo Viñas também foidetido e em seguida desapareceu. Ambos os fatos foram relatados quando veio à tona a situação de CentroClandestino de Detenção da fazenda La Polaca, localizado na fronteira entre Brasil e Argentina.Id. Ibid.Os relatos recolhidos por CLAMOR foram conseguidos junto ao arquivo da Asamblea Permanente por losDerechos Humanos de Argentina (APDH). Entretanto, sabe-se que este acervo encontra-se tutelados pela PUC-SP. Tratam-se de aproximadamente 106 caixas e 30 pastas que ainda não encontram-se disponíveis paraconsulta.Basicamente, os pontos arrolados no índice do documento aqui consultado são os seguintes: 1. Introdução; 2.Testemunhos; 3. Nomes de pessoas vista em “LA CACHA”; Grávidas e crianças vistas em “LA CACHA”; 4.Nomes de responsáveis de “LA CACHA”; Características de “LA CACHA”; 6. Características Físicas de “LACACHA” 7. Planos; 8. Interpretação dos Planos; 9. Epílogo.São eles: Nestor Daniel Torrillas; Nelva Mendes de Falcone; Alberto Omar Dissler; Roberto Luján Amerise; AnaMaria Caracoche de Gatica; José Luis Cavaleri; Alcira Rios de Córdoba; Luis Pablo Córdoba.TESTIMONIOS SOBRE “LA CACHA”. 20/10/1983. CCD7.14. p. 04.Id. p. 02.Id. p. 04-05.49


Neste trecho, uma dada visão do contexto repressivo da ditadura, com muita clareza sobre ocaráter prolongado da repressão, observa-se as principais características das condições de detenção. Orelato procura estabelecer a racionalidade da atuação dos órgãos de repressão, sem deixar margem aduvida no que concerne ao seu caráter planificado. Em última instância, rompe com a idéia encampadapelos militares de que se houve mortes e torturas em grande número, estes atos foram isolados etratados de forma arbitrária pelo baixo escalão da corporação militar.Sobre o CCD de “La Cacha”, localizado entre as ruas 191, 196, 47 y 52, ao lado da prisão deOlmos, onde funcionou a antiga “Radio de La Provincia”, La Plata, Buenos Aires, temos as seguintesinformações com relação a condição de detenção e desaparecimento dos signatário do depoimento:Los secuestrados eran llevados a los lugares clandestinos de detención y tortura. Unode estos sitios era “la Cacha”, donde estuvimos; su nombre fue asignado haciendoreferencia a “la bruja Cachavacha” personaje de dibujos animados infantiles que tenía elpoder de hacer desaparecer a la gente. Está situado en la ex-planta transmisora deRadio Provincia, en la localidad de Lisandro Olmos, partido de La Plata, Pcia. DeBuenos Aires 25 .Segundo as informações contidas no documento, além de um local de detenção clandestino, “LaCacha”, foi um centro de tortura que contou com a totalidade dos mecanismos de repressão sobre osquais baseou-se a ditadura de TDE na Argentina. Os mecanismos triviais do interrogatório que contava,ademais, com a participação de civis que aparecem no relato/documento da seguinte forma,con el detenido en su poder encapuchado y esposado, el comando de secuestradoresse dirigía a La Cacha, donde lo sometían a salvajes torturas a través de las cualestrataban de recabar información. Estas torturas consistían en atar al prisionero de pies ymanos a una especie de cama elástica, conocida por el nombre de “parrilla”; golpearlocon garrotas, gomas, alambres, puñetazos y puntapiés; aplicarlo corriente eléctrica conpicanas simultaneas (…); asfixiarlo por inmersión (submarino) o por ahogamientos o porahogamientos por almohadas y bolsas de nylon (submarino por seco) 26 .Na continuação do documento, os depoentes declaram que as sessões de torturas só cessavamcom o desmaio do detido/desaparecido. Os mecanismos de tortura se intercalavam com perguntasrelacionadas à militância desenvolvida por cada um. Os gritos dos companheiros que estavam emsessões semelhantes nas proximidades eram utilizados para intimidar e fazer falar o torturado da vez.Além do envolvido diretamente na tortura, as sessões contavam com ameaças a familiares,onde, por vezes, fotografias de familiares dos torturados eram mostradas nas sessões. A referência aoperíodo é abarcada no depoimento: “El período al cual nos referimos abarca del 9 de marzo de 1977 al 6de septiembre del mismo año, y del 29 de julio de 1978 al 1 de septiembre del mismo año, época en lacual el aparato represivo se encontraba en la plenitud de su funcionamiento y donde se realiza el mayornúmero de secuestros” 27 .ConclusãoO objetivo deste artigo foi o de apresentar algumas situações de violações aos Direitos Humanosque tiveram arregimentação sob o período de Terrorismo de Estado na Argentina. Trata-se também deapresentar algumas questões levantadas durante nossa dissertação de mestrado intitulada “DE PERÓNA VIDELA: revisão histórica e historiográfica do Terrorismo de Estado na Argentina (1973-1978)”defendida no ano de 2009 no programa de pós-graduação em História, nível Mestrado da Unioeste.Mais do que conclusões, buscamos publicizar parte do material que foi discutido durante apesquisa. Algumas questões nos parecem preocupantes do ponto de vista do acesso ao materialpesquisado. Refiro-me ao caso dos arquivos da Clamor. Certamente um conjunto muito rico de fonteshistóricas, que ainda não se encontra acessível a maior parte dos pesquisadores.Por outro lado, o documento aqui analisado nos permite reconhecer algumas trajetórias deresistência às ditaduras latino-americanas. Acessar tais documento/fontes históricas é, antes de muitaspreocupações, adentrar o espaço de resistência intensa a arbitrariedade do Estado. A resignificaçãodeste espaço, com consequente fechamento de canais normativos de sua regulação, proporcionamsoluções definitivas e de longo prazo que atingem um conjunto amplo de situações cujo terror torna-se anormativa.252627Id. p. 05.Id. Ibid.Id. Ibid.50


Referências Bibliográficas:BASCHETTI, Roberto (comp.). Documentos 1970-1973. Volumen I: De la Guerrilla Peronista al GobiernoPopular. La Plata – Bs. As: Campana de Palo, 2004 .CALLONI, Stella e ESQUIVEL, Adolfo Pérez. Los Años del Lobo: Operación Condor. Icaria Editorial,1999.DE RIZ, Liliana de. História Argentina: La política en suspenso 1966/1976. Buenos Aires: Paidós, 2000.Fontes Pesquisadas:Informe sobre la situación de los Derechos Humanos en Argentina, aprobado por dicha Comisión el 11de abril de 1980 y publicado en Washington DC como documento OEA/Ser.L/V/II.49 doc. 19. Bibliotecado Centro de Estaudios Legales y Sociales-CELS.TESTIMONIOS SOBRE “LA CACHA”. 20/10/1983. CCD7.14. Asamblea Permanetnte por los DerechosHumanos de Argentina-APDH.51


Como eleger um ditador: Bolívia 1971 e 1997Luciano Barbian 1Resumo: o general hugo banzer suarez foi ditador da bolívia, governando de 1971 a 1978. Foi um dosmandatos mais extensos de todos os presidentes bolivianos, se caracterizando por realizar um governoditatorial com repressão ao movimento operário, camponês, indígena e a todos os que poderiam setornar um obstáculo a suas políticas. Em 1997, Hugo Banzer retorna ao governo da Bolívia, dessa vezpela via eleitoral e não de um Golpe de Estado, como nos anos 1970. Para buscar seu intento Banzerbuscou ocultar as suas raízes autoritárias, tentando apagar a memória de seu governo ditatorial. Esseartigo busca apresentar algumas das estratégias que Banzer se utilizou para chegar a vitória eleitoral,bem como analisar os contextos da sociedade boliviana e Latino-americana no contexto das Ditadurasde Segurança Nacional nos anos 1960 e 1970, bem como no contexto do chamado neoliberalismo nosanos 1990.Palavras-chave: Bolívia – Ditadura – Hugo Banzer – repressãoAbstract: general hugo banzer suarez was dictator of bolivia, ruling from 1971 to 1978. It was one of themost extensive mandates of all Bolivian presidents, been characterized by a dictatorial government tocarry out repression against the labor movement, peasant, indigenous and all that could become anobstacle to its policies. In 1997, Hugo Banzer returns to the government, this time through elections, not acoup, as in the 1970s. Their intent to seek Banzer sought to conceal its authoritarian roots, trying to erasethe memory of his dictatorial government. This paper aims to present some of the strategies that Banzerwas used to get the electoral victory, as well as analyze the contexts of Bolivian society and the LatinAmerican dictatorships in the context of national security in the years 1960 and 1970, as well as in thecontext of so-called neoliberalism in 1990s.Keywords: Bolivia – Dictatorship – Hugo Banzer – repressionO contexto político e o Golpe de Estado na Bolívia, 1971Em 21 de Agosto de 1971 o então Coronel Hugo Banzer Suárez consegue chegar a presidênciada Bolívia via um Golpe de Estado que derruba o governo do General Juan Jose Torres, que contavacom grande apoio popular, em especial de sindicatos, da COB (Central Obrera Boliviana) e daAssembleia Popular (Comuna de La Paz). Esse apoio se fortaleceu na defesa que esses grupos fizeramao governo contra uma primeira tentativa de Golpe impetrada por Banzer em Janeiro de 1971. Com isso,em 1º de Maio daquele ano os trabalhadores através de seus sindicatos, da COB, os estudantes eorganizações populares se reuniram no prédio do Parlamento boliviano declararam constituída aAssembleia Popular de La Paz.Foram justamente as características populares e progressistas do governo de Torres e o seuesforço por manter o movimento operário atrelado ao seu governo, impondo uma política que atacava aindependência das organizações, que levaram Torres a ser violentamente deposto por Hugo Banzer.Segundo o relatório do Ministro do Interior do governo Torres, Gallardo Lozada, a COB havia solicitadoao governo armas para fazer a defesa contra a ameaça de golpe dos fascistas. Torres em primeiromomento negou esse pedido, temendo que o proletariado, com sua independência política fortalecida earmado pudesse no futuro avançar no desenvolvimento de um processo revolucionário.Com isso o movimento golpista, que se apoiava politicamente numa frágil aliança de trêsagentes políticos, o MNR (Movimiento Nacionalista Revolucionario), a Falange Socialista (fascista) esetores das forças armadas conseguiu alcançar seu intento. E as primeiras medidas de Banzer sevoltaram contra as organizações populares e sua autonomia.As Ditaduras de Segurança Nacional na América Latina.A América Latina, na década de 1970 estava vivendo o desenvolvimento de vários regimesditatoriais que se baseavam na Doutrina da Segurança Nacional e que podem ser classificados como1Secretaria Municipal de Educação (SMED) – Porto Alegre. E-mail: luciano-barbian@hotmail.com.52


Ditaduras de Segurança Nacional. Segundo Comblin 2 :A Segurança Nacional é a capacidade que o Estado dá à Nação para impor seusobjetivos a todas as forças oponentes. Essa capacidade é, naturalmente, uma força.Trata-se portanto da força do Estado, capaz de derrotar todas as forças adversas e defazer triunfar os Objetivos Nacionais.Os Objetivos Nacionais constituem um conjunto bastante vago. Os autores reconhecemque há só um bem, que é a espinha dorsal da segurança nacional e é sempre umobjetivo e deve sempre ser colocado em segurança: a sobrevivência da nação. Noentanto, imediatamente volta a incerteza. É excepcional que a existência física de umanação esteja em perigo. Estende-se portanto a sobrevivência a um certo número deatributos considerados essenciais a sobrevivência: crenças, uma religião, instituiçõespolíticas, etc. E a incerteza volta.Em suma, a segurança nacional não sabe muito bem quais são os bens que devem serpostos em segurança de qualquer maneira, mas sabe muito bem que é preciso colocalosem segurança. Ela quer ardentemente e com todas as forças de seu poder físicoalgo que não sabe muito bem o que é. 3Dessa forma, Comblin afirma que os limites do que seriam os objetivos da Segurança Nacionalsão vagos, os próprios manuais criados nos Estados Unidos para tratar da Doutrina da SegurançaNacional não chegam a especificar o que ela seria: “ela está presente em toda a parte e jamais éexplicada” 4 . Com isso os vários governos ditatoriais se apresentam com uma grande flexibilidade deenquadramento do que seriam os objetivos da Segurança Nacional. E isso ocorre no sentido demanutenção do poder nas mãos das classes dominantes, ou seja, das burguesias nacionais em aliançacom o imperialismo estadunidense, mantendo em segurança os interesses na acumulação capitalista naregião.Dessa forma, como demonstra Comblin, o conceito da Segurança Nacional, apesar de toda asua indefinição, acaba se tornando muito útil e operacional a medida em que estabelece quem é o objetodas políticas de Segurança Nacional, ou seja, quando se estabelece o “inimigo”. Ainda nas palavras deComblin: “ a segurança nacional talvez não saiba muito bem o que está defendendo, mas sabe muitobem contra quem: o comunismo.” 5 Como o “comunismo” é um termo utilizado pelas Ditaduras deSegurança Nacional de uma forma bastante ampla, onde comunistas nãos são apenas aqueles que sereivindicam como tal, o conceito deve se apresentar de forma bastante flexível para que tenhaoperacionalidade. Seria assim esse fenômeno típico do período da Guerra Fria.Outra definição que buscou compreender as Ditaduras da América Latina naquele período foi aelaborada por O’Donnell que utiliza o termo “Estados Burocrático-Autoritários”, ou a sigla BA paradelimitar esse tipo de Estado. E O’Donnell define os Estados BA da seguinte forma:As características que definem o tipo BA são: a) as posições superiores do governocostumam ser ocupadas por pessoas que chegam a elas depois de carreiras bemsucedidasem organizações complexas e altamente burocratizadas – Forças Armadas, opróprio Estado, grandes empresas privadas; b) são sistemas de exclusão política, nosentido de que pretendem fechar os canais de acesso ao Estado do setor popular eseus aliados, assim como desativa-lo politicamente não só pela repressão mas tambémpelo funcionamento de controles verticais (corporativos) por parte do Estado sobre ossindicatos;(...)d) são sistemas despolitizantes, ou seja, pretendem reduzir as questõessociais e políticas públicas a questões “técnicas”, a resolver mediante interações entreas cúpulas das grandes organizações acima mencionadas; e) correspondem a umaetapa de importantes transformações nos mecanismos de acumulação das suassociedades, que por sua vez formam parte de um processo de “aprofundamento” de umcapitalismo periférico e dependente, mas dotado de uma extensa industrialização. 6Percebe-se aqui de uma maneira mais evidente que, para O’Donnell os BA se caracterizam porser uma forma de impedir a organização independente da classe operária e de seus aliados, no sentidode garantir a aplicação de uma política que resguarde os interesses imperialistas na região. E isso semanifestou de uma forma bastante peculiar em toda a América Latina, tornando as Ditaduras de23456COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional – O Poder Militar na América Latina, CivilizaçãoBrasileira, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.COMBLIN, op cit pg 54-55COMBLIN, op cit pg 54Idem, pg 55O’DONNELL, Guillermo. Reflexões sobre os Estados Burocráticos-Autoritários São Paulo: Vértice,1987. Pg 2153


Segurança nacional ou os BA fenômenos políticos típicos daquela situação político-social latinoamericanae da forma como as lutas de classes se manifestam naquele contexto histórico e que aindamantém seus efeitos.No caso da Bolívia, o governo de Banzer em 1971 apresenta políticas típicas das Ditaduras deSegurança Nacional, como é o caso da utilização das políticas repressivas e de Terror de Estado contraaqueles que se colocavam contra o governo e também se percebe de forma clara que a Ditadura naBolívia se enquadra nos BA no que se refere a origem militar de Banzer e nas suas alianças e políticasque visavam atacar os movimentos operário-camponês, como veremos no tópico seguinte.As políticas de Segurança Nacional na Ditadura de Banzer.No governo ditatorial de Banzer a presença de medidas que evidenciam as políticas desegurança nacional pode ser percebida através de seus decretos públicos e também de documentossecretos, que demonstram como o governo articulava suas medidas repressivas e quem eram os alvosdessas medidas, em especial, o movimento operário.Como exemplo de um decreto que atacava o movimento operário boliviano e que podedemonstrar a forma como Banzer articulava suas medidas repressivas está o Decreto de número 11952,de 1974.ARTÍCULO 1.- En tanto se promulgue el Código del Trabajo, el Ministerio de Trabajo,designará Coordinadores Laborales en cada centro de producción, para que cumplanfunciones de vinculación de los trabajadores.ARTÍCULO 2.- Serán funciones de los Coordinadores Laborales:a) Vincular a los trabajadores de las respectivas empresas o entidades en suspeticiones ante los empleadores y los organismos del Estado;b) Organizar Comités compuestos por cuatro trabajadores, cuando las circunstancias loexijan;c) Organizar bajo su responsabilidad, el patrimonio social de los trabajadores. 7Percebe-se no decreto a ação do governo no sentido de atacar a independência política dostrabalhadores já que o governo iria, através do Ministério do Trabalho, impor os Coordenadores queseriam responsáveis por administrar e representar os trabalhadores organizados em sindicatos, ou seja,é uma clara intervenção da Ditadura no meio sindical com o fim de desmobilizar os trabalhadores. Outroartigo, do Decreto 11952, que demonstra a ação de repressão aos sindicatos e as formas de lutas dostrabalhadores é o artigo 7, que diz:ARTÍCULO 7.- Las huelgas, paros, actos de sabotaje y trabajo a desgano, prohibidospor el Decreto Ley Nº 11947 y que se produzcan en las empresas y entidades del SectorPúblico, darán lugar al inmediato despido de los infractores, sin goce de beneficiossociales. En los casos producidos dentro del Sector Privado, se efectuará unaconminatoria previa de retorno al trabajo en el término de 24 horas, vencido el cualserán sancionados con igual despido los trabajadores que no hubiesen acatado estaadvertencia. En este último caso, se requerirá la autorización expresa del Ministerio deTrabajo. 8Esse artigo apresenta de forma mais evidente a repressão pelas vias das leis da ditadura,proibindo a articulação dos trabalhadores e a utilização das greves como uma forma de lutas pelaconquista de direitos.Mas a ditadura de Banzer não tornava públicas todas as suas determinações, como é evidenteem um governo autoritário. Como exemplo dessa situação pode –se observar um documento redigido eassinado por Banzer em nome do Conselho de Segurança Nacional (COSENA), de caráter interno aogoverno e secreto e que demonstra muito bem qual a posição da ditadura boliviana com relação aosorganismos operários e populares e aos opositores, que o governo ditatorial denomina como“subversivos”. Uma análise do mesmo documento demonstra a forma como o governo se coloca frente acontestação e desenha as políticas repressivas, comandadas pelo próprio Banzer.Dessa forma, esse documento denominado Directiva nº72, de março de 1972, se apresentaexpondo os objetivos do governo ditatorial e divide esses objetivos em de ordem psicológica, política emilitar. No texto do decreto secreto, publicado pelo jornalista argentino Martin Sivak 9 , a repressão aos789Decreto consultado em 20/10/2012 em: http://www.derechoteca.com/gacetabolivia/decreto-supremo-11952-del-12-noviembre-1974.htmDecreto consultado em 20/10/2012 em: http://www.derechoteca.com/gacetabolivia/decreto-supremo-11952-del-12-noviembre-1974.htmSIVAK, Martin. El Dictador Elegido. 2ªed La Paz: Plural, 200254


movimentos operário e comunista aparece de forma bastante evidente algumas características comunsdas Ditaduras de Segurança Nacional que foram recorrentes na América Latina no período, ou seja, oanticomunismo, a doutrina do inimigo interno e a defesa do modelo de acumulação capitalista burguêscom a repressão aos movimentos contestadores.De acordo com Sivak, o decreto ditatorial de Banzer pode ser descrito e dividido da seguinteforma:Con el membrete de SECRETO y bajo la órbita del Consejo de Seguridad NacionalBolivia, el documento de cinco carillas está dividido en cinco puntos: FINALIDAD,OBJETIVOS, RESPONSABILIDADES, ORGANIZACIÓN Y TAREAS.El apartado FINALIDAD comienza así: ‘A. Prepararse para enfrentarse a unaorganización cuya misión esencial es imponer su voluntad a la población para instaurarun régimen Castrocomunista. B. La finalidad superior de nuestra organización es lograrel APOYO DE LA POBLACIÓN a la causa nacionalista.’ 10Pode ser revelado no texto do decreto que o governo buscava o respaldo popular a chamada“causa nacionalista”, o que pode levar a conclusão de que o apoio do povo estava mais voltado asorganizações como a COB e aos sindicatos, por isso a conquista do apoio popular aparece comofinalidade do COSENA (Conselho de Segurança Nacional). E isso se daria especialmente através daspolíticas de Terror de Estado exercidas pelo governo.Dentro do quesito OBJETIVOS, o documento apresenta uma subdivisão em objetivospsicológicos, políticos e político-militares. Nos chamados OBJETIVOS PSICOLÓGICOS aparece a lutaideológica contra a “subversão comunista” impondo uma política de colaboração de classes (como noEstado Corporativo Fascista da Itália) onde se fala em “desintoxicar” as mentes e estabelecer a“fraternidade entre os bolivianos”. No caso dos OBJETIVOS POLÍTICOS o documento fala empropagandear o governo através de um conjunto de obras públicas, bem como satisfazer reivindicaçõesimediatas de setores da população e “hacer ver al Pueblo que lograremos el desarrollo (...)simantenemos la estabilidad politica del país.” 11Com relação aos OBJETIVOS POLÍTICO-MILITARES, o texto do documento aborda algumasformas de se alcançar os ditos objetivos. Nesse sentido, orienta os Comités de Seguridad Nacionaltomar algumas medidas, com a orientação de: 1- Destruir a organização político-administrativainsurgente; 2- Aniquilar as forças militares insurgentes e 3- Isolar o território boliviano de ‘países hostis”(controle das fronteiras com o Chile, Peru e Argentina). Em seguida, se elencam asRESPONSABILIDADES, que se dividem em clandestinas (Interferir, anular e destruir as organizaçõesinsurgentes levando ao afastamento do apoio popular aos rebeldes) e as de “luta aberta” onde sebuscava evitar a consolidação popular de organizações revolucionárias, destruição de forças militaresinsurgentes e a atuação nas zonas de influência das organizações guerrilheiras (insurgentes) através daatuação da “Ação Cívica” e de políticas de desenvolvimento regional. Por fim, com relação aORGANIZAÇÃO, o documento lembrava aos setores regionais do COSENA que o mando sobre toda aorganização estava concentrado exclusivamente nas mãos do presidente da República, Hugo Banzer.Dessa forma, na redação desse decreto secreto, que estabelecia e organizava as ações doComitê de Segurança Nacional, pode-se perceber que as ações da Ditadura se colocam dentro dosditames do que se classificou como as Ditaduras de Segurança Nacional na América Latina. E tambémse evidencia a responsabilidade de Banzer sobre as políticas repressivas e pelo Terror de Estado.Hugo Banzer, a Segurança Nacional e a DemocraciaBanzer seguiu tendo uma grande influência política sobre a Bolívia, mesmo após a derrocada deseu período ditatorial nos anos 1970. O ditador manteve sua influência através da atuação política deseu partido, a ADN (Aliança Democrática Nacionalista) conseguindo levar a eleição de Garcia Meza, em1980, seu indicado político.Com isso possibilitou que houvesse a continuidade de seu projeto político eque se afastasse a possibilidade de algum juízo de responsabilidade dos crimes de sua ditadura.Conforme o relato de Sivak 12 , em 1997, durante a disputa eleitoral, Banzer buscou se afastar dequalquer vinculação com o seu período ditatorial. Apesar de ter ocorrido uma abstenção de 28,6%, quefoi maior do que a porcentagem de votos que Banzer obteve (22,2%), o cargo de presidente daRepública da Bolívia foi conquistado pelo ditador. Durante o período da campanha eleitoral o entãocandidato, que buscou por todos os meios evitar abordar os crimes da ditadura, teve que reavaliar emudar a sua estratégia após pressão vinda de algumas organizações de Direitos Humanos e da101112SIVAK, pg 123Idem. Pg 351SIVAK, op cit pg 4455


ASOFAMD (Associação de Familiares de Mortos e Desaparecidos pela Libertação Nacional) que levouao ar, na televisão boliviana, em abril daquele ano, um spot onde levantava as questões deresponsabilidade sobre as vítimas da ditadura.57 asesinados de 1971 a 1978, 33 desaparecidos de 1971 a 1976, 14 asesinados enenero de 1974 en Tolata, três militares asesinados, 37 bolivianos desaparecidos enArgentina, 6 bolivianos asesinados en Argentina, 4 bolivianos desaparecidos en Chile. 13O então candidato Banzer, após sofrer uma violenta queda nas pesquisas de intenção de votos,passou a responder aos seus oponentes, buscando justificar as ações da ditadura. Dessa forma, utilizoucomo argumento a incriminação das suas vítimas jogando sobre elas a responsabilidade pelas açõesrepressivas que sofreram. E dessa forma, Banzer redigiu uma carta, intitulada “Mi palabra para que elpueblo también recuerde” aos eleitores onde reafirmava as políticas da Segurança Nacional, as açõesrepressivas e colocava o argumento de que havia uma “guerra” e que todos teriam responsabilidadespelo que aconteceu naqueles anos, menos ele. Vejamos alguns trechos dessa carta, citada por Sivak 14 :Hace 30 años, América Latina enfrentaba una guerra irregular unas veces conincursiones armadas a poblaciones civiles, otras veces con asaltos, persecuciones,secuestros, y depredaciones de todo género a personas, instituciones y propiedades.Fue un enfrentamiento que nos obligó a elegir entre las libertades alcanzadas, losvalores existentes o, en nombre de una ‘liberación’ extremista, sumarse a la violenciaantinacional y anárquica.(…)Tomé una patriótica decisión para evitar que en el país se produjera posteriormente unenfrentamiento armado mucho mayor, que nos hubiera llevado a una guerra civil de tipoque hemos presenciado en países próximos, donde el precio de vidas fuedolorosamente elevado y sangriento. (…)La grave situación histórica de Bolivia, bajo la acción nociva del extremismo utópico, hizoimperativa la fundación de un sistema de alianza política con capacidad de encaminar ala Nación hacia objetivos concretos que permitiesen superar la grave crisis económicade desajuste social, del vacío político, la inexistencia de la función del Estado que es laautoridad y el riesgo en que se encontraba la misma patria.(…)Mi experiencia de ex gobernante y de jefe político me permiten transitar con solvenciamoral y entrega patriótica, desde los umbrales de la Bolivia de la confrontación y delconflicto en 1971 hasta la Bolivia de la concertación, de la Construcción y de la Unidadpara fortalecer el proceso democrático y participativo de 1997.Dessa forma o ditador Hugo Banzer busca manter a sua inserção na política democrática, o quejá vinha acontecendo através da atuação do partido criado para esse fim, a ADN. Em um primeiromomento, se percebe que existe a busca por justificar o contexto histórico do surgimento da ditadura em1971, retratado como um momento de profunda crise e violência onde Banzer teria tomado uma atitude,optando por utilizar a força, a violência e o autoritarismo por aquilo que seria uma causa justa, poupar aBolívia de uma guerra civil. Na verdade o que existia na Bolívia quando do golpe de Estado em 1971 erao governo do general Torres, que, apesar de seus limites, havia avançado na via da ampliação dedireitos aos trabalhadores e que havia permitido a organização da Assembleia Popular em La Paz, órgãode poder operário inspirado nos soviets da Revolução Russa de 1917 e que surgiu como resultado daorganização de defesa operária contra a agressão fascista ao governo, em janeiro de 1971. De qualquerforma, quando setores do exército, junto dos fascistas da Falange Socialista Boliviana, a burguesia e asoligarquias rurais, principalmente da região de Santa Cruz, começaram a organizar o golpe, a COBsolicitou armas ao governo para defendê-lo da agressão golpista, pedido esse negado por Torres.O que o candidato Banzer, em 1997, denomina de grave situação histórica na Bolívia de 1971pode ser visto de outra forma, ou seja, a situação histórica era grave para aqueles que tinham seusinteresses prejudicados pela atuação dos movimentos operário, indígena e estudantil de formaindependente do governo (de certa forma ameaçando o Pacto Militar-Camponês, instrumento utilizadodesde o governo de Barrientos, no sentido de dividir o movimento camponês, dificultando uma aliançaoperário-camponesa e atrelando os sindicatos de trabalhadores rurais ao governo) e isso levou aformação da aliança, instável, que apoiava o golpe, congregando o MNR, a Falange e setores doexército.Por fim, Banzer se apresenta como um governante experiente e que assume como necessário o1314Id, pg 44Ibid pg 46-4756


autoritarismo e as políticas repressivas de sua ditadura e que isso seria o seu diferencial com relaçãoaos outros candidatos a eleição de 1997. Demonstra que seria o chefe de governo que não hesitaria emutilizar da repressão novamente, no sentido da construção da unidade política em nome de seu projeto,mesmo em um contexto de liberdades eleitorais.Dessa forma, o ditador que governou a Bolívia por sete anos e se utilizou da violência do Terrorde Estado e que jamais foi julgado por isso (mesmo as tentativas de um julgamento político como o deMarcelo Quiroga Santa Cruz, que foi assassinado em 1980 pelo ditador Garcia Meza, não levaram a umjulgamento oficial do Banzerato) pode retornar a presidência da Bolívia em um processo eleitoral em quea sua votação foi menor do que a taxa de abstenção do eleitorado boliviano e onde grande parte dosaptos a votar não tinha sofrido com a ditadura Banzer.Porém mesmo o presidente Banzer, democraticamente eleito, não tardou em demonstrar que arepressão não havia ficado no passado e seu governo se notabilizou por, novamente se utilizar dasações de violência repressiva contra os movimentos sociais, como ficou evidente no massacre deCochabamba, na chamada Guerra da Água em 2000, movimento que protestava contra a privatizaçãodas águas na Bolívia que o governo pretendia realizar, entregando esse recurso nacional indispensável àpopulação para a exploração de empresas multinacionais. Tudo isso era resultado das políticas ditadaspelo Banco Mundial e que para serem aplicadas era necessária a repressão aos movimentos populares.Assim, nesse momento, Banzer demonstrou que a face do ditador não havia desaparecido e, comoresposta aos protestos e mobilizações populares, prendeu dirigentes sindicais ,fazendo com a repressãovítimas que chegaram a 5 mortos.Apesar de a crescente mobilização popular contra seu governo, Banzer não renunciou, tendo seafastado do governo apenas em 2001, quando um câncer veio a vitimá-lo e levá-lo a morte. Com isso seencerrou a vida de um homem que, tendo sido responsável por uma ditadura cruel e repressiva contra ostrabalhadores, jamais foi responsabilizado por seus atos, podendo manipular a política boliviana pordécadas enquanto suas vítimas ainda esperam por justiça.Referências bibliográficas:ANDRADE, Everaldo de Oliveira. A Revolução Boliviana. São Paulo : UNESP, 2007COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional – O Poder Militar na América Latina. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 1978GALLARDO LOZADA, Jorge. De Torres a Banzer – Diez meses de emergencia en Bolivia. BuenosAires: Periferia, 1972GIL, Aldo Durán . Estado Militar e Instabilidade Política na Bolívia (1971-1978), tese de doutorado,Campinas: UNICAMP, 2003BAPTISTA GUMUCIO, Mariano. Breve Historia Contemporánea de Bolivia. México: Fondo de CulturaEconómica, 1996O’DONNELL , Guillermo. Reflexões sobre os Estados Burocrático-Autoritários. São Paulo: Vértice, 1987.SIVAK, Martin. El Dictador Elegido – Biografía no autorizada de Hugo Banzer Suárez.2ªed La Paz:Plural, 2002SITES:http://www.derechoteca.comhttp://www.asofamdbolivia.org/index.php?page=iniciohttp://banzereternodictador.blogspot.com.br57


11 de setembro de 1973: o golpe militar no Chile através do Jornal do Brasil.Nicolas MelloIntroduçãoNo dia 21 de junho de 1970, a nação brasileira vivia em estado de êxtase. Seu selecionado defutebol acabara de conquistar pela terceira vez o campeonato mundial de futebol FIFA, título máximo nacarreira de um jogador de futebol. Pelé era nosso maior jogador, o rei do futebol. Os brasileirosentoavam em coro a marchinha “Pra Frente Brasil”, nada poderia parar o país. Sua economia crescia aextraordinários 10% ao ano. Os empregos aumentavam cada vez mais. Parecia que o país finalmentehavia chegado ao lugar ao qual teria sido destinado desde seu descobrimento pelos portugueses.Estaríamos entre os maiores países.Porém, o preço pago por este progresso foi alto. O rápido crescimento econômico custou nossaliberdade. No ano de 1964, o governo brasileiro sofreu um golpe. Os militares assumiram o poder sob opretexto da Segurança Nacional. Era necessário que se extirpasse o câncer, que era a ameaçacomunista, da sociedade brasileira. Esta era a visão organicista militar sendo repassada a sociedade(O’DONNEL, 1985). O novo governo deveria ser rígido e repressor. E a repressão veio através de atos.No total foram dezessete, sendo o mais importante, o Ato Institucional número 5. Realizado em 1968, elecolocava sob censura prévia a imprensa no Brasil. A imprensa brasileira, que já havia sido reformada nosanos 50, trocando o jornalismo de estilo crítico francês, pelo modelo Norte-americano, que separava anotícia objetiva dos comentários pessoais, teve de se reformular. A autocensura passou a ser a novapalavra de ordem. É isso que iremos ver nas análises posteriores de algumas das edições do Jornal doBrasil.Enquanto isso, um país na costa oeste da América do Sul, elegia como seu presidente umsocialista. As eleições do ano 1970, que levaram o senador Salvador Allende a presidência da Repúblicado Chile, foram vistas como uma ameaça à ordem capitalista. Allende propôs um novo projeto desociedade, ao qual chamou “Via chilena para o socialismo” (AGGIO, 1993).Mundialmente, se vivia a Guerra Fria, que dividiu o mundo em dois projetos distintos, colocandoem diferentes lados EUA e URSS, capitalismo e socialismo. Era, portanto, necessário que dentro de suaárea de influência o governo norte-americano detivesse o controle dos países da América Latina. Após avitória de Allende, em 1970, os EUA e os setores conservadores da classe média, alta e industrial chilenaviram seus piores pesadelos se concretizarem. A única forma de salvar o capitalismo no Chile era ogolpe militar e a instalação de um governo ditatorial.Isto ocorreu no ano de 1973, quando uma junta militar liderada pelo General Augusto Pinochetassumiu o poder no país. Surgiu um novo projeto de sociedade, que se baseava no individualismo, narepressão, no estado de sítio. A economia foi aberta aos capitais estrangeiros e após um período derecessão econômica o país passou a viver seu próprio milagre econômico. Mas as mesmas medidas quepermitiram este milagre econômico causaram também a queda do regime ditatorial.A queda da “Via Chilena para o socialismo”.O Chile do início dos anos 70 encontrava-se dividido politicamente entre três partidos, cada umdestes representando uma camada social. As camadas conservadoras e de nível social mais elevado,grandes empresários e fazendeiros, encontravam-se no Partido Nacional. A classe média apoiava osDemocratas Cristãos. E a classe operaria e grande parte dos intelectuais, estavam representados pelosPartido Comunista e Partido Socialista.Para Alain Rouquié (1984) essa diferenciação ocorreu devido à divisão entre o poder político eeconômico chileno, o que gerou um sistema representativo autônomo, dando maior estabilidade aosistema democrático do Chile. Isto ocorreu a partir da vitória na Guerra do Pacífico, ocorrida entre 1879 e1883, sobre Bolívia e Peru, que concedeu ao Chile a anexação das ricas províncias do norte, ricas emminérios. Esta vitória consolidou a unidade nacional do país, fazendo que ele se inserisse no mercadomundial por meio da exportação de minérios explorados por britânicos, com o apoio da classe dirigenteexportadora nacional.O Nitrato dos desertos do norte passou a ser a fonte da prosperidade nacional. Gerou-se umestado rico, que cobrava impostos e direitos de exploração das sociedades estrangeiras pela exploraçãodo salitre. As classes dominantes também saíram beneficiadas deste processo. Dependia delas o58


transporte do salitre e a estrutura comercial interna que sustentava a exploração do minério. Assim,graças aos investimentos estrangeiros, o governo chileno isentou da maior parte das pressões fiscais asclasses dominantes.No início do século XX o capital americano substituiu o inglês, principalmente após o termino daSegunda Guerra Mundial ocorrida entre 1939 e 1945 (ROUQUIÉ, 1984). Graças a estes investimentos eao crescimento econômico do país ocorreu a expansão dos serviços públicos, integrando a classe médiaà estrutura de poder.É importante termos em vista este quadro, pois nas eleições de 1970 os partidos e movimentosde esquerda uniram-se sob a sigla da Unidade Popular para eleger, com 36,2%, como novo presidenteda república, o senador do Partido Socialista, Salvador Allende. A união entre o Partido Socialista,Partido Comunista e a MAPU * , colocou em tensão o cenário político chileno, caracterizado pelapredominância do estado aristocrático. Allende pretendia implantar em seu governo o Plano Vuskovic,que visava aumento salarial de 55%. Assim o mercado de consumo interno cresceria e,conseqüentemente, as indústrias nacionais também. O plano previa o aumento dos gastos públicos emcerca de 66%. Estas medidas visavam à conquista da classe média, para que a Unidade Popularpudesse se sustentar no poder nas eleições que ocorreram em 1972. Junto a isto, segundo VoltaireSchilling (2002), uniu-se à tomada de certas fábricas por trabalhadores comandados por setoresextremistas do proletariado que não estavam nos planos de estatizações da Unidade Popular. O mesmoocorreu no campo. As invasões ocasionaram a paralisação da agricultura e a alta de preços dos gênerosalimentícios, o que piorou a situação econômica de crise instaurada no Chile, que já havia sofrido o cortede investimentos estrangeiros, desde a eleição de Allende (GUZMAN, 1975). Internamente as classesdominantes passaram a boicotar as entregas de produtos, paralisando, através de greves financiadaspelos EUA, o sistema de transportes. Outra prática era a estocagem para que faltassem produtos nomercado, fazendo com que o preço dos mesmos disparasse ainda mais. O mercado negro ilegalaumentou, se beneficiando da falta de produtos para compra. A crise econômica retirou a já pequenaparcela de apoio que Allende possuía dentro da classe média, que se voltou em massa para as recémunidasdireitas, Partido Nacional e Partido Democrata Cristão.Para chegar à democrática “Via chilena para o socialismo”, Allende nacionalizou a mineração eos setores fundamentais da produção industrial de base. Isto ocasionou o aumento do desgosto deempresas multinacionais, que viram seus investimentos serem solapados por uma medidagovernamental.Os programas da Unidade Popular eram, uma política de maior redistribuição de renda, anacionalização da grande indústria (mineração e cobre), ampliação e expansão da reforma agrária eaproximação diplomática e econômica com países socialistas e comunistas. Para Schilling (2002) foramdiversos os fatores que ocasionaram o fracasso do programa de governo da UP. Como fatores externoso autor cita a Guerra Fria, estabelecida entre EUA e URSS ocorrida logo após o termino da SegundaGuerra Mundial, que opôs dois projetos de sociedade distintas, a capitalista e a socialista. Para os EUA,já preocupados com a Guerra do Vietnã (1959-1975), ter um país na América Latina em vias de se tornarsocialista, era inaceitável. Henry Kissinger, assessor do presidente norte-americano Richard Nixon,aconselhou ao presidente que tomasse medidas frente à clara, “irresponsabilidade do povo chileno”.Para Eric Hobsbawm (1995) a guerra fria tornou os países de terceiro mundo, incluindo ospaíses latino-americanos, focos de instabilidade, o que fez com que o governo norte americano utilizasseuma forte propaganda de apoio ao seu sistema capitalista. No Chile, os inimigos do terceiro mundo eram,a fase pré-capitalista, os interesses locais, representados pela influência estrangeira e o imperialismonorte-americano (Ibid.). A solução era a criação de uma frente popular junto à pequena burguesianacional. Isto foi visto pelo governo da Casa Branca, como uma ameaça comunista, levando mais tardeao golpe de estado realizado no ano de 1973 pelas forças militares chilenas.Os setores de mineração nacionalizados ocasionaram grandes perdas aos investidores norteamericanos.O Chile passou a sofrer um bloqueio econômico informal. Cessaram-se os empréstimosinternacionais e o preço do cobre, principal produto de exportação chileno, sofreu boicote, levando a suaqueda no mercado internacional. O objetivo americano era sufocar a economia chilena para que juntocom a situação de instabilidade interna político-econômica, o golpe pelas forças militares, apoiadas pelosEUA, pudesse ocorrer.Internacionalmente, o Chile recebeu apenas apoio internacional de Cuba. Os outros países daAmérica do Sul já estavam sob regimes militares, caso de Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia, Equador ePeru. Para os setores das classes burguesas, médias e setores do exército, o exemplo da ditadurabrasileira, e principalmente do governo de Médici (1969-1974) e de seu “milagre econômico”, passou aexercer fascínio e um exemplo de estado autoritário, anticomunista e antidemocrático.A situação interna em meados de 1973 era menos favorável ainda. As dificuldades financeiras*Movimiento de Acción Popular Unitária, setor rebelde da Democracia Cristão.59


fizeram à inflação disparar, chegando a 381,1% em 1973 (SCHILLING, 2002). Isso se uniu aodecréscimo do Produto Nacional Bruto e a greves de algumas das bases políticas da Unidade Popular,como os mineiros da mina de El Teniente. Ocorreram também protestos da parte dos universitárioschilenos contra os planos do ministério da educação de criação da Escola Nacional Unificada, que previauma educação voltada para os valores socialistas. Dois movimentos extremistas se opuseram, oMovimiento de la Izquierda Revolucionária (MIR), que contrabandeava armas soviéticas vindas de Cuba,e a extrema direita fascista, representadas pelo movimento “Patria y Libertad”, financiada pela CIA. Asituação era de caos social as vésperas do golpe militar. A CIA aumentou seu apoio aos setores militaresatravés do Projeto Fulbert (Ibid.), que previa derrubada de Allende desde 1970. O Plano previa o apoioestratégico a assassinatos, fomento de greves e o contato entre políticos e militares de direita para que ogolpe fosse articulado.Apesar deste quadro social, nas eleições de 1972, a Unidade Popular conseguiu seu objetivo eadquiriu mais de 1/3 dos votos. Devido a uma cláusula na constituição * chilena, que previa a retirada dopresidente apenas se houvesse consenso de 2/3 dos parlamentares, Allende não poderia ser destituídodo poder. Instaurou-se um embate entre o presidente chileno e o congresso, o que ocasionou ademissão de inúmeros ministros do governo Allende.Como nem presidente e nem povo conseguiam conter o quadro de crise social, foi necessárioque se recorresse a um poder externo as práticas de governo. Os militares passaram a fazer parte daestrutura de governo, dando ao general legalista, Carlos Prats, o Ministério do Interior, responsável pelarepressão, e a chefia das Forças Armadas. Segundo João Quartim de Moraes (2001), a posição dosmilitares, inicialmente, era a da legalidade constitucional. Graças a isto Allende conseguiu conter o“Tancazo”, ocorrido meses antes do Golpe de 11 de Setembro. Foram colocadas na rua tropas legalistascontra tropas golpistas.Porém, quando Carlos Prats foi substituído pelo General Augusto Pinochet no Ministério doInterior, o golpe começou a tomar forma. Pinochet, inicialmente um militar legalista, foi quem em 11 desetembro de 1973 comandou as tropas das forças armadas chilenas no bombardeio ao Palácio de LaMoneda, onde Allende e alguns de seus aliados se trancaram, saindo apenas mortos.A junta militar liderada por Pinochet que assumiu o poder no Chile tinha dois objetivos iniciais,eram eles, o controle da ordem social e a o desenvolvimento de um novo projeto capitalista. O paísdeveria sair da estagnação econômica em que se encontrava. A ditadura militar chilena se inspirou nabrasileira, que vivia o auge do “milagre econômico”. A diferença residiu na repressão. A esquerda chilenaestava mais bem organizada do que em outros países da América Latina (SADER, 1984), portanto, arepressão teve de ser maior. É calculado que cerca de 20.000 pessoas tenham sido mortas ou dadascomo desaparecidas. Os líderes sindicais, políticos contrários ao regime, intelectuais, ativistas emilitantes, foram presos e levados para o Estádio Nacional de Santiago, onde foram identificados,fuzilados, torturados e mutilados (SCHILLING, 2002).Foram instituídos: toque de recolher, estado de sítio, censura de imprensa, proibição de partidosconsiderados marxistas e suspensão dos outros partidos, fechamento do congresso e intervenção nopoder jurídico. A posição dos partidos políticos que apoiaram o golpe foi distinta. O Partido DemocrataCristão, liderado por Eduardo Frei, viu no golpe a oportunidade de retirar a esquerda do poder e emeleições futuras consolidar o poder de seu partido. Já o Partido Nacional se dissolveu, e o movimentoPátria y Libertad deixou de existir.A liberação das remessas de lucro, bem como a redução dos impostos, a exportação e aliberação dos preços foram aprovados como medidas de reativação da economia (SADER, 1984). Essarecuperação econômica foi curta e em 1974 a economia chilena já se encontrava novamente emrecessão.Foram colocadas em prática, as medidas de 1975, entregando aos tecnocratas, “Chicago Boys”,neoliberais instruídos por Milton Friedman da Escola de Economia de Chicago, os rumos da economiado país. Os planos dos tecnocratas eram, o privilégio do capital financeiro nacional e internacional e aexploração das vantagens relativas da produção chilena, privilegiando os ramos mais adequados àexportação, como a mineração do cobre, produção de madeira, indústria do papel, agroindústria e pesca(SADER, 1984).Estas medidas inicialmente sofreram um revés, pois o contexto internacional era de crise. ParaHobsbawm (1995), desde 1973 a economia mundial começou a entrar em crises cíclicas. A falta decontrole dos estados nacionais sobre a economia neoliberal gerava estas anomalias econômicas. Asolução dos governos, era a compra de tempo, esperando que os ciclos de crise passassem. O Chile, aoabrir seu mercado, passou a sofrer as oscilações do mercado internacional. A solução encontrada pelogoverno militar foi à tomada de empréstimos e créditos fornecidos por bancos privados internacionais.Os créditos e empréstimos acabaram substituindo as poupanças internas do governo. O grande*Escrita em 1925 durante a presidência de Arturo Alessandri e aprovada por meio de plebiscito. Suspensa após ogolpe militar.60


problema, é que estes empréstimos, segundo Emir Sader (1984), eram canalizados para o crédito aoconsumo e não eram utilizados para a renovação da estrutura produtiva chilena.Outra política adotada pela ditadura foi à privatização de empresas nacionalizadas anteriormentepela Unidade Popular, diminuído os gastos públicos. As despesas sociais também foram fortementeafetadas pela nova forma de estado mínimo neoliberal. As privatizações das empresas bancárias efinanceiras eram feitas através de créditos cedidos pelo governo a empresários. Isto ocasionou acentralização de propriedades nas mãos de poucos, dando o controle do comércio exterior a estritasempresas. Em 1975 o Chile se retirou do Pacto Andino e adotou uma nova legislação que favorecia ocapital estrangeiro.As mudanças aumentaram ainda mais a recessão. Porém, também realizaram a reciclagem daeconomia. Após algum tempo a inflação começou a diminuir. Estas mudanças, por outro lado,prejudicaram as indústrias tradicionais chilenas, que produziam em sua grande parte para o mercadointerno.Em 1977 já se notava um forte aumento nas exportações chilenas e conseqüentemente oaumento dos créditos e empréstimos externos, gerando a reativação da economia chilena, que a partirde 1979, e até 1982, passou a viver seu próprio “milagre econômico”. O consumo aumentou assim comoo endividamento interno e externo do governo. A dependência externa do Chile era cada vez maior, tantoem financiamento como em tecnologia.A ditadura no Chile, através de seu novo modelo de sociedade, reforçou as leis de mercado etentou eliminar o espírito de solidariedade social, o substituindo pelo individualismo, aumentando asdesigualdades sociais. A nova legislação trabalhista previa tempo máximo de duração das greves de 59dias, após 30 dias, as empresas eram autorizadas a contratar outros trabalhadores para suprir aausência dos funcionários em greve.Foi no ritmo do milagre econômico que foi levada a plebiscito uma nova constituição. AConstituição de 1980 foi realizada em meio ao toque de recolher, ao estado de sítio, a censura deimprensa, a suspensão dos partidos políticos e a proibição de reuniões públicas. Sua aprovaçãoinstitucionalizou a ordem ditatorial e a centralização do poder executivo.A constituição previa um governo de transição de 8 anos que teria como presidente o GeneralPinochet. Ao final destes oito anos uma junta militar se reuniria para a eleição de um novo presidente e arealização de eleições para o congresso, limitado em participação e poder. Ela também confirmou apredominância do poder executivo sobre os poderes legislativo e judiciário, sendo que, apenas o poderexecutivo poderia realizar reformas na constituição. A presidência tomou caráter personalista. Para ocontrole da nação eram utilizados os serviços de informação centralizados, divididos entre o CentroNacional de Informação, futura DINA, e o Conselho Nacional de Segurança. O CNS tinha comorepresentantes, o presidente, os chefes militares da marinha, exército, carabineiros, presidente dosenado e corte suprema.A partir do ano de 1981 o milagre econômico chileno começou a oscilar e dar sinais de crise.Iniciou-se a perda do equilíbrio que havia trazido calmaria à sociedade chilena. Os créditos eempréstimos que antes eram impulsionadores da economia passaram a se tornar seu maior entrave. Oaumento da divida externa e interna, ressaltou a fragilidade da economia chilena frente as crises cíclicasdo mercado internacional. Inúmeras empresas começaram a quebrar e surgiram escândalos deacobertamento de empresas bancárias e de créditos fictícias. Isto gerou a perda de credibilidade nomercado internacional, que por sua vez fez com que os fluxos de empréstimos e créditos externosdiminuíssem. A solução encontrada pelos militares foi recorrer ao FMI. Era necessário renegociar adívida externa chilena, que, devido ao aumento das taxas de juros internacionais, havia quase dobrado.A isto se somou uma forte crise financeira interna. As vendas a prazo fizeram o salário dos trabalhadoresdiminuir em poder de compra e o desemprego aumentar, chegando a atingir 1/3 da força de trabalhochilena.A queda da ditadura militar estava desenhada, o povo passou a estratégia de sobrevivênciacontra a fome, vivendo da caridade de entidades religiosas e de direitos humanos. O ensino, privatizadoanteriormente, encareceu, levando muitos jovens a inatividade. Os setores da classe média, agoradesempregados, começaram a aumentar o número de comerciantes informais nos centros das cidades.No campo, os agricultores começaram a fugir do país ilegalmente, pois não podiam pagar suas dividas. Aprincipal base de apoio militar, os setores burgueses, acabam cindindo. A burguesia média se opôs àfinanceira, pois não podiam pagar os empréstimos anteriormente tomados. A crise social demonstradapelas jornadas de protestos de 1983, mais tarde se tornou política. Em plebiscito realizado em 1988, aditadura militar chilena teve seu período de domínio terminado com a campanha popular do “NO”. Foramprevistas eleições para o ano de 1990, vencidas por Patrício Aylwin.Reforma, censura e ditadura na imprensa brasileira.61


No Brasil, o conturbado ano de 1964 se iniciou diante de uma crise que polarizou o cenáriopolítico nacional. João Goulart, presidente da república, popularmente conhecido como Jango, sofriafortes críticas por seu conjunto de reformas trabalhistas e de base. A UDN, partido de oposição lideradopelo jornalista Carlos Lacerda, bombardeava Jango com críticas ao seu governo. PTB, partido dopresidente, e UDN, brigavam pelo espaço político (FICO, 2001). O país necessitava ser salvo deste caospolítico e da subversão comunista, que representavam as reformas de Jango. Era necessário que umgrupo coeso e com força para tomar as rédeas do Brasil assumisse o poder. Este grupo era o militar.Coeso, disciplinado e anti-comunista, os militares podiam oferecer aquilo que os setores conservadorese liberais do país acreditavam que o país necessitava: ORDEM. O golpe começou a se desenhar. No diada mentira, 1º de abril, os militares assumiram o poder no Brasil. Jango fugiu para o Uruguai e depoispara Argentina, onde acabou falecendo, sem nunca ter voltado a sua terra natal.Com o golpe militar concluído era necessário que se institucionalizasse o novo regime. Os AtosInstitucionais definiram a forma de governo no país, um governo fechado e repressor. Eles foramelaborados entre os anos de 1964 e 1969. O mais importante destes atos foi o de número 5, elaboradoem 1968. Através dele, o presidente poderia fechar o congresso e a imprensa foi colocada sob censuraprévia, demonstrativo do enrijecimento do regime.Coincidentemente, os atos pararam de ser publicados em 1969, ano em que assumiu apresidência do país Emílio Garrastazu Médici, único general de 4 estrelas capaz de manter a união dasForças Armadas na época (SKIDMORE, 1988). O processo de tomada de poder pelos militares haviasido concluído. A atuação do Sistema Nacional de Informação, SNI, passou a ser mais intensa. Arepressão aumentou com a chegada da “linha dura” a presidência da república. Apesar do fim daameaça das guerrilhas de esquerda, já no ano de 1969, os militares acreditavam que a repressãodeveria continuar sendo forte. E assim o fez Médici. Prisões, torturas, exílios, estas eram as palavras nodicionário dos DOI-CODIs pelo país. Nas universidades os estudantes foram calados e a imprensacomeçou a se autocensurar.O ministro da fazenda, Delfim Neto, continuou executando seus planos de rápido crescimento daeconomia brasileira. Em 1970 seus objetivos eram: crescimento do PIB entre 8 e 9%, inflação abaixo dos20% e 100 milhões a mais de dinheiro nas reservas estrangeiras (Ibid.). Esta era a formula mágica dorápido crescimento econômico para o país. A formula também incluía incentivos tributários a grandesempresas, de preferência multinacionais, manipulação do sistema financeiro e redução do custo de mãode-obra.Em outras palavras, congelamento de salários. Os resultados da formula mágica de Delfimforam acima dos esperados. A economia do país crescia a incríveis 10%, a inflação ficou em 17% e asreservas estrangeiras chegaram a 5 bilhões. Médici passou a ser o garoto propaganda do crescimentoeconômico do país. A AERP * utilizava jornalistas, psicólogos e sociólogos para descobrir a melhor formade vender o presidente. Agências de propaganda eram contratadas para a realização de documentáriostransmitidos em televisores e cinemas de todo o Brasil. O filme em cartaz era o progresso econômico dopaís. Os empregos aumentavam, a ameaça guerrilheira de esquerda havia sido eliminada, o Brasil haviaconquistado seu terceiro campeonato mundial de futebol. Tudo estava “as mil maravilhas”. Porém, nosporões da ditadura, os DOI-CODIs trabalhavam a todo vapor. Com a eliminação dos guerrilheiros deesquerda era necessário que se encontrasse outro inimigo. Ele poderia estar nas universidades, noclero, entre os militares expurgados, jornalistas ou artistas. O órgão repressor necessitava justificar seusalário, demonstrado na forma de eficiência no combate a subversão. Sérgio Fleury, delegado do DOPSde São Paulo e anteriormente dirigente do Esquadrão da Morte, estava muito atarefado.No ano de 1972, a censura aos jornais passou a ser exercida pela Polícia Federal, o que nãoagradou seus donos, que se recusaram a conversar com os policiais. Em verdade, a grande maioria daimprensa, integrante dos setores conservadores e liberais da época, apoiaram o golpe de 1964.A partir dos anos 50 o país aumentou seu ritmo de industrialização. O segundo governo deGetúlio Vargas, 1950-1954, e o governo de Juscelino Kubitschek, 1956-1960, colocaram o país emacelerado ritmo industrial. Com isso, o mercado interno de bens de consumo aumentou. Para vendermais, era necessário o investimento em propagandas que atraíssem os consumidores (PACHECO,2010). O meio para alcançar estes objetivos era o anuncio em jornais e rádios. Com o aumento deverbas vindas das propagandas os jornais do país puderam se tornar mais independentes do estado,anteriormente seu maior investidor. Nos anos 50 os periódicos entram em ritmo industrial. As notícias setornam objetivas e separadas dos comentários pessoais, agora realizados através de editoriais. O Jornaldo Brasil liderou a maior reforma dos jornais da época, servindo de exemplo para seus concorrentes. Apartir de 1956 foi criado um Suplemento Dominical que contava com a participação de escritores,pensadores e artistas ligados a movimentos de vanguarda. Foram criados, ainda, o Caderno C,classificados, e o caderno B, para artes teatro e cinema. Em 1962, sob a supervisão de Alberto Dines,preso após a publicação do AI-5, o jornal terminou sua reforma, contendo na época editoriais políticos,*Assessoria Especial de Relações Públicas.62


econômicos, de esportes, de cidades, e internacional (ABREU, 2002). As posições políticas tambémcomeçaram a melhor se delinear nesta época. Jornais partidários ao PTB e PSD se opunham aospartidários a UDN. Por serem empresas independentes do estado, os donos de jornais costumavam terposições liberais e conservadoras. O sacrifício da liberdade de imprensa para que o golpe militar fosserealizado parecia um sacrifício necessário a se pagar diante do caos político e da ameaça comunista queassolavam o país. O que não havia sido previsto era a publicação do Ato Institucional número 5, quedeterminou censura prévia as noticiais de jornais. Os editoriais políticos foram proibidos. A partir daíaumentaram em importância os editoriais econômicos e as notícias internacionais. A economia era aúnica forma de noticiar o que acontecia na vida do país. Como os jornais dependiam das propagandaspara sua sobrevivência, e o estado era o maior propagandista do regime, formou-se uma relação dedependência entre a ditadura e os meios de comunicação, que passaram a contar com os investimentosdo estado para se modernizarem. A palavra de ordem passou a ser a autocensura. Para que nãohouvesse atritos entre investidor, estado, e jornal, era necessário que se estabelecesse um equilíbrioentre demanda e oferta. O casamento foi perfeito. Surgiram conglomerados de comunicação. Dentreeles a Rede Globo, que, tal como uma dona de casa desempregada, necessitava das verbas de seumarido para se sustentar. O casamento durou até o fim do milagre econômico, quando a formula mágicade Delfim Neto começou a demonstrar alguns efeitos colaterais. O bolo, economia, que deveria crescer edepois ser repartido, foi tomado pela gula de alguns poucos. A insatisfação aumentou com a crisemundial do petróleo, de 1973. Em crise o estado não conseguia mais comprar o papel necessário aosjornais. O papel, em sua grande maioria, era importado. Em 1974, foi encontrado morto o jornalistaWladmir Herzog, que supostamente havia cometido suicídio. As críticas ao governo aumentavam, e,após o anuncio do presidente Geisel, em 1974, de uma distenção política lenta e gradual de volta ademocracia, os jornais voltaram a poder falar da política nacional.O golpe militar de 1973 no Chile através do Jornal do Brasil.Consideremos agora, que um cidadão brasileiro, leitor do Jornal do Brasil do Rio de Janeiro, semum conhecimento mais profundo do que acontecia no Chile entre os anos de 1970 a 1973, acordasse demanhã para tomar seu café e abrisse seu jornal, como de costume, e logo na capa de seu habitualperiódico se deparasse com uma estranha notícia sem manchete falando a respeito de um golpe deestado no Chile. Quais as imagens que se formariam em sua cabeça? Qual seu julgamento a respeito doque acontecia no Chile, se sua fonte de informações fossem as notícias do Jornal do Brasil?É esta analise que tentaremos realizar agora, partindo da edição do dia 12 de setembro de 1973do Jornal do Brasil. Nela, é estampado na capa uma notícia sem manchete. Após uma breve apreciaçãoo leitor é informado de forma objetiva a respeito do suicídio de Allende. Segundo o informado, opresidente se matou com um tiro na boca, informações cedidas por jornalistas do “El Mercúrio”, jornalchileno de oposição a Unidade Popular. A notícia ainda esclarece quem são os golpistas e quais seusobjetivos.O movimento militar começou de manhã, em Valparaíso, principal porto chileno, ondeunidades de fuzileiros navais ocuparam a estação de rádio e os pontos chaves dacidade. Logo depois, em Santiago, o General Augusto Pinochet, Ministro da Defesa, oBrigadeiro Gustavo Leigh Guzman, da aeronáutica, o Almirante José Toribio Medina, daMarinha, e o General César Mendonça, do Corpo de Carabineiros, constituíam umajunta militar e exigiam a renúncia de Allende.(...) A Junta Militar justificou o levante: Pôrfim a “gravíssima crise econômica, moral, e social do Chile”, devido a incapacidade dogoverno de conter o caos, o crescimento de grupos armados e organizados por Partidosda coalizão governamental, e ter fortalecido a luta de classes, “uma luta fratricida ànossa formação” (O PRESIDENTE SALVADOR ALLENDE DO CHILE..., 1973)Através do enunciado percebemos algumas informações, como, quem fazia parte da JuntaMilitar, onde se iniciou o levante e qual a justificativa dos insurgentes. A luta entre os grupos MIR e PátriaY Libertad também são ressaltados nas justificativas. Na segunda página do jornal (JORNALISTA DIZQUE ALLENDE SE MATOU A TIRO, 1973), são fornecidas informações mais detalhadas sobre o golpe. Ainformações sobre as últimas horas de Allende no poder, sua renúncia em deixar o cargo, o bombardeioao palácio La Moneda, e sobre outros presidentes que já haviam se suicidado quando depostos, caso deGetúlio Vargas no Brasil.Em reportagem ao pé da página (FORÇAS ARMADAS O ÚLTIMO RECURSO, 1973), osjornalistas descrevem que não é a primeira vez que um levante militar ocorre no Chile, ao contrario doque afirmavam os militares chilenos. Os episódios de 1810, 1890, 1932, 1970 e 1972, provam oconstante uso das forças do exército em atos governamentais. Este último, 1972, gerou a entrada doGeneral Carlos Pratts no Ministério do Interior, sacramentando a união entre estado e exército já nogoverno Allende. Pratts, foi posteriormente substituído por Pinochet, um dos comandantes do golpe. O63


episódio de Pratts é ressaltado na reportagem, que tem um cunho mais pessoal, uma espécie deeditorial, revelando a divisão que já ressaltamos.Curiosamente na reportagem “Um Movimento Para a Libertação” (1973), que versa sobre oultimato realizado pelos militares, é pedido que os familiares permaneçam em seus lugares, dizendo:(...) Neste país já não se aceitam atitudes violentas. Devemos acabar com as atitudesextremistas. Informava também o comunicado “que todos aqueles que não acatassemas ordens militares, ficariam sob a jurisdição das leis militares”.Fato curioso à constatação de atitudes violentas naquele que seria o Regime Militar maisviolento da América Latina. Na mesma página é informado que os membros da Unidade Popular ecolaboracionistas do governo Allende deveriam se apresentar ao Corpo de Carabineiros (Polícia Militar),ou ao exército, sob pena de detenção (JUNTA INTIMA DEPTOS DE ALLENDE, 1973).Na famosa coluna política “Coluna do Castelo” (1973), escrita pelo jornalista Carlos CasteloBranco, é comentado que o governo “antidemocrático” de Allende, não havia conseguido armar suasmilícias para a tomada do poder, restando para ela assumir um compromisso, assinado com o PDC, derespeito às instituições democráticas.As primeiras notícias sobre os acontecimentos de Santiago não permitem uma visãoclara do futuro próximo. Ainda não se sabe se os militares, imbuídos até há pouco deespírito democrático e de respeito pelas instituições civis, convocarão imediatamenteeleições que permitam a revisão popular dos erros cometidos em 1970.A “democracia” do regime militar chileno durou até o ano de 1990. Em seu nome, e em nome daSegurança Nacional, foram assassinadas, torturadas e exiladas milhares de pessoas..A edição também trás as causas da queda de Allende (AQUEDA DE ALLENDE: AS CAUSAS, 1973).Foram destacados a “Via chilena do socialismo”, os projetos de estatizações, e de expansão do mercadointerno de consumo de bens através do aumento salarial dos trabalhadores chilenos. Por outro lado, édemonstrado os insucessos da administração da Unidade Popular, o aumento da inflação e a falta deprodutos nos mercados, além dos boicotes ao cobre chileno por parte do EUA, o que fez com que seupreço caísse no mercado internacional. Apenas não foram noticiados os boicotes dos comerciantes declasse média na venda de produtos, e o mercado negro que se formou devido a esta estratégia.A repercussão internacional apresenta de forma clara os dois projetos de governo opostos nomundo. De um lado EUA e de outro URSS. A reportagem diz:Entretanto, fontes diplomáticas norte-americanas disseram que o reconhecimento daJunta Militar por parte dos Estados Unidos é iminente e se trataria de uma simplesformalidade, uma vez que o novo governo controla a maior parte do país. (...) A agênciasoviética Tass informou de Moscou que tinha ocorrido “um motim militar reacionáriocontra o governo legítimo da República” e afirmou que “os rebeldes pediram a renúnciado presidente Salvador Allende, mas que este expressara sua determinação dedefender o regime democrático a qualquer preço. (EUA AGUARDAM DEFINIÇÃO PARAFALAR, 1973)Os EUA, apoiadores do golpe, viram apenas como uma formalidade o golpe chileno, enquanto ogoverno soviético o viu como um motim ilegítimo (VIZENTINI, 1990).No Caderno B, foi destacado a vida de Allende. Nele encontramos sua infância, seu ingresso nafaculdade de medicina e seu engajamento político desde a vitória no Diretório Estudantil da escola(ALLENDE: UM VIDA DIFÍCIL PELOS CAMINHOS LEGAIS, 1973).Nos dias seguintes foram noticiadas a instalação do Regime Militar no país. A repressão (JUNTACOMEÇA A ESMAGAR OPOSIÇÂO NO CHILE, 1973), e os focos de resistência (EPÍLOGO VIOLENTO,1973), demonstram o derramamento de sangue no Chile. Os setores de resistência são demonstradoscomo um grupo de minoria que mais cedo ou mais tarde tenderiam ao confronto violento para a tomadade poder. A culpa é creditada a Allende, que os teria armado e incitado. Apesar de este sempre defenderos caminhos legais e constitucionais para a Via Chilena do Socialismo. Manifestações contrárias e afavor do golpe pelo mundo também são demonstradas (PROTESTOS PREDOMINAM NA A. LATINA ENA EUROPA, 1973). As relações entre Brasil e Chile, antes frias devido ao governo socialista de Allende,voltaram a esquentar. Até o dia 13 de setembro o governo brasileiro ainda aguardava para reconhecer oRegime Militar chileno. No dia 14 de setembro foi noticiado que a Junta Militar controlava todo o Chile,destacando a reconstrução que aconteceria no país (JUNTA ASSEGURA CONTROLE DA SITUAÇÂONO CHILE, 1973). O cimento a ser usado para essa reconstrução seria a repressão e a abertura demercado aos capitais estrangeiros. O bolo chileno, economia, agora poderia crescer, e, como a exemplodo Brasil, ser aproveitado por alguns poucos, em uma festa de aniversario exclusiva, onde apenas64


convidados ilustres poderiam entrar.ConclusõesRetomando as perguntas realizadas anteriormente com relação ao leitor do Jornal do Brasil noano de 1973: Quais as imagens que se formariam em sua cabeça? Qual seu julgamento a respeito doque acontecia no Chile, se sua fonte de informações fossem as notícias do Jornal do Brasil? Chegamosà conclusão de que o leitor teve possibilidade de avaliar alguns lados da questão.Primeiramente, o suicídio de Allende. As notícias creditadas a sua morte, ajudaram a criar umaaura de mártir no imaginário coletivo da população. Assim como Getúlio Vergas no Brasil em 1954,Allende permanecera no imaginário da América do Sul, como um símbolo da luta a favor da liberdade eda legalidade. Outro ponto a analisarmos, é a vinculação de caráter econômico-político das reportagens.A crise política e econômica foi o principal mote das reportagens, que em momento algum citam asconquistas alcançadas pelos trabalhadores e populações menos favorecidas do Chile. Os apoiadores deAllende são vistos como uma minoria que queria dominar o país. Uma ditadura de uma minoria proletáriae sem organização. O que alimentou, e alimenta, até hoje o imaginário da população a respeito dasdisputas políticas de grupos de esquerda. Ao invés de estas discordâncias serem vistas como umdemonstrativo da democracia, elas são vistas como brigas internas de um grupo sem coesão edesorganizado.Podemos notar, também, que a via do golpe militar chileno, era admitida como uma possibilidadede volta a ordem e estabilidade no Chile. Os salvadores da pátria chilena, exército, estavam ali quandoseu país necessitou. E para o salvar pediam apenas uma coisa em troca, a liberdade de seu povo. Comoum pai que diz a seu filho que lhe obedeça cegamente, pois ele é mais experiente e apto a resolver umadeterminada situação, os militares do Chile tomaram o poder e disseram ao povo chileno que se calassee o obedecesse. Eles tinham o remédio para salvar o país. Porém, o remédio deixou seqüelas sentidasaté hoje. O Chile ainda engatinha no processo de catarse dos fantasmas da ditadura. Um silêncio veladocerca o assunto. A participação do povo, democrática, na política e rumos da nação apenas será atingidadepois que se realize este processo de exorcização dos regimes de Segurança Nacional que assolarama América do Sul a partir da década de 60. A participação política ainda é estranha ao povo depois depassados aproximadamente 20 anos do fim das ditaduras.Referências bibliográficas:A QUEDA DE ALLENDE: AS CAUSAS. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 set. 1973. Disponível em:ALLENDE: UM VIDA DIFÍCIL PELOS CAMINHOS LEGAIS. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 set.1973. Caderno B. Disponível em: ABREU, Alzira Alves de. A modernização da imprensa (1970-2000). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.AGGIO, Alberto. Democracia e socialismo: a experiência chilena. São Paulo: UNESP, 1993.COLUNA DO CASTELO. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 set. 1973. Disponível em: Documentário: A Batalha do Chile, de Patrício Guzmán., 1975, 1977, 1979. 100 min., 90 min., 82 min.EPÍLOGO VIOLENTO. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 set. 1973. Disponível em: EUA AGUARDAM DEFINIÇÃO PARA FALAR. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 set. 1973. Disponívelem: FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001.FORÇAS ARMADAS O ÚLTIMO RECURSO. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 set. 1973. Disponívelem: HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia dasLetras, 1995.65


JORNALISTA DIZ QUE ALLENDE SE MATOU A TIRO. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 set. 1973.Disponível em: JUNTA ASSEGURA CONTROLE DA SITUAÇÂO NO CHILE. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 set.1973. Disponível em: JUNTA COMEÇA A ESMAGAR OPOSIÇÂO NO CHILE. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 set. 1973.Disponível em: JUNTA INTIMA DEPTOS DE ALLENDE. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 set. 1973. Disponível em:MORAES, João Carlos Kfouri Quartim de. Liberalismo e ditadura no cone sul. Campinas: UNICAMP,2001.O PRESIDENTE SALVADOR ALLENDE DO CHILE... Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 set. 1973.Disponível em: O’DONNEL, Guillermo. Contrapontos: autoritarismo e democratização. São Paulo: Vértice, 1986.PACHECO, Diego da Silva. Do Prata à Guanabara: a deposição de Arturo Frondizi e a imprensa do Riode Janeiro (1962). Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,PUCRS, 2009.PROTESTOS PREDOMINAM NA A. LATINA E NA EUROPA. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 set.1973. Disponível em: ROUQUIÉ, Alain. O estado militar na América Latina. São Paulo: Alfa-Omega, 1984.SADER, Emir. Democracia e ditadura no Chile. São Paulo: Brasiliense, 1984.SCHILLING, Voltaire. Chile: a derrubada da democracia (de Allende a Pinochet). Disponível em:http://educaterra.terra.com.br/voltaire/index_mundo.html, 2002.SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.UM MOVIMENTO PARA A LIBERTAÇÃO. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 set. 1973. Disponível em:VIZENTINI, Paulo G. Fagundes. Da Guerra Fria à crise (1945-1989): as relações internacionais do século20. Porto Alegre: UFRGS, 2006.66


II – Memórias e Ditaduras: aproximações dopassado67


A atuação política de oposição em um pequeno município do norte gaúcho durante oregime civil militar: memórias de Arude Gritti.Fernanda Pomorski dos Santos 1 e Gerson Wasen Fraga 2Resumo: O objeto deste artigo reside nas memórias de Arude Gritti, político atuante no município deMariano Moro, norte do estado do Rio Grande do Sul, durante o regime civil-militar brasileiro (1964-1985). Vinculado ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), Arude foi eleito por duas vezes vereadore prefeito, mantendo até hoje inserção na vida pública como militante partidário. Através de suaslembranças, colhidas em entrevista, é possível perceber como a situação do período permeava asrelações pessoais e os espaços de sociabilidade em uma cidade pequena e afastada dos grandescentros urbanos, bem como algumas das estratégias de intimidação política utilizadas por parte doaparato repressivo naquela localidade.Palavras-chave: Memória – Política partidária – Sociabilidade – Município de Mariano MoroAbstract: The object of this paper lies in the memories of Arude Gritti, political operative in the town ofMariano Moro, north of Rio Grande do Sul state, during the Brazilian civil-military regime (1964-1985).Linked to the Brazilian Democratic Movement (MDB), Arude was twice elected alderman and mayor,keeping actually insertion in public life as a militant supporter. Through their memories, gotten in aninterview, you can see how the situation of the period permeated personal relationships and socializingspaces in a small town and away from large urban centers as well as some of the strategies of politicalintimidation used by the apparatus repressive in that locality.Keywords: Memory – Party politics – Sociability – Mariano Moro TownOs fenômenos históricos podem ser percebidos de múltiplas maneiras, conforme a posição doobservador. Com efeito, as impressões individuais escondem e/ou revelam experiências que, inseridasnos grandes processos, apresentam a especificidade de quem guarda na memória o olhar que um diaatravessou – e que certamente ainda atravessa – o “mar agitado da História”. 3Tal travessia por vezes revela os traços remanescentes dos grandes processos históricos,dotados, em cada homem ou mulher, de matizes próprios: a convicção pessoal de quem buscou aliberdade coletiva; o indivíduo isolado em meio à crise social; as marcas distintivas, expressas emcicatrizes físicas ou emocionais. Por vezes, estes signos tomam morada na memória, restando ocultosmesmo ao olhar mais atento. Perdem-se no somatório das coletividades e perecem com o próprioindivíduo ao fim de sua existência física. Não raro, tais memórias, quando instigadas, apresentam oindivíduo diante da macroestrutura, seja do Estado, da economia e/ou dos próprios ditames sociais, semque isto signifique necessariamente a perda da dimensão coletiva.O objeto deste pequeno trabalho reside em um relato de memória, tendo como pano de fundo aditadura civil-militar brasileira. Arude Gritti, político vinculado ao MDB durante o regime de exceção, foivereador e prefeito em um pequeno município do norte gaúcho. Ali, na arena onde todos se conheciame as relações pessoais eram cotidianamente perpassadas por laços de pessoalidade, Arudeexperienciaria, em sua atividade política e em seu cotidiano, a ditadura de uma forma muito particular. Sea distância dos grandes núcleos urbanos minimizava as chances da materialização dos horrorres dasprisões e calabouços, era nas relações pessoais que o quadro político nacional iria se manifestar,levando a um complexo jogo onde os sentidos contrários conviviam com as atividades prosaicas de umhomem do campo, como fazer seu gado compartilhar o mesmo campo de pastagem com o rebanho deseu opositor.Conhecido em sua comunidade por suas posições democráticas, Arude Gritti acabou sendoprocessado. O motivo que desencadeou o processo – mais tarde arquivado – lhe é até hoje umaincógnita. Tal qual na obra de Kafka, o cidadão foi acionado juridicamente pelo Estado, materializaçãomáxima da coletiviadade, sem que lhe fosse esclarecido o real motivo da ação. Arude desconfia de seus123Formação / Instituição: Discente do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal da Fronteira Sul(UFFS), campus Erechim.Formação / Instituição: Doutor em Historia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professordo curso de Licenciatura em História da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Erechim.A expressão é de um poema de Maiakovski.69


pronunciamentos na câmara de vereadores local, embora não tenha certeza. O motivo exato lhepermanece um mistério. Sua filha, professora univesitária de História, busca hoje os autos do processo,sem conseguir encontrá-los. Nada disto, porém, abala sua convicção na justeza de sua causa e de suaatuação política, da qual ainda hoje não se afasta, embora restrito à condição de militante. Em suasmemórias, os nefastos anos da ditadura apresentam uma coloração própria, de um homem ligado à suapequena comunidade e sua família, mas também aos valores universais da liberdade e da democracia.Das condições da entrevista.A entrevista com Arude Griti foi realizada no dia sete de fevereiro de 2013, na residência de suafilha, a professora Isabel Rosa Gritti, e teve a duração aproximada de uma hora. O entrevistado, nestaocasião com setenta e sete anos de idade, teve a companhia da filha e da esposa durante a entrevista,que constantemente serviam como incentivadoras da memória, relembrando temas e passagens de suavida para que este desenvolvesse a narrativa a partir de suas próprias lembranças. A fala de Arudereflete bem sua origem ítalo-gaúcha, com o sotaque carregado típico da região norte do Rio Grande doSul.Algumas das transcrições aqui apresentadas sofreram pequenos ajustes, para uma melhorcompreensão por parte do leitor. Evidentemente, tivemos o cuidado de que estes fossem mínimos, seminterferir no sentido da narrativa. A pedido do entrevistado, alguns nomes foram suprimidos, por setratarem de pessoas ainda vivas.Sabemos que o trabalho com História Oral demanda bem mais do que apenas uma entrevista.Desta forma, alertamos para o fato de que este texto, embora aponte para alguns caminhos conclusivos,deve se integrar futuramente ao desenvolvimento de outras tantas pesquisas sobre a ditadura civil-militarno norte gaúcho, especialmente nos pequenos municípios, onde a estrutura produtiva calcada nominifúndio impunha laços de proximidade pessoal. Não se trata, portanto, de um trabalho que se esgoteem si mesmo, mas de um primeiro passo em direção ao que acreditamos ser um campo de pesquisaainda pouco explorado e que, por trabalhar com a memória de seus protagonistas, demanda certaurgência.O cenário de nossa narrativa.Com a grande demanda de imigrantes europeus que vinham para o Brasil, as antigas colônias,localizadas na região do Rio dos Sinos e de Caxias do Sul, já não comportavam o número crescente depessoas. A solução foi a ocupação da região norte do estado, dando origem à formação de pequenaspropriedades no norte gaúcho no final do século XIX e começo do século XX. Esta foi uma das últimasregiões do estado a ser colonizada, desencadeando conflitos por terras entre colonos migrantes,caboclos e indígenas que já habitavam as terras do Alto Uruguai, local onde mais tarde formar-se-iamcidades de pequeno e médio porte.A colônia Erechim foi uma das últimas a serem ocupadas no estado. Dois motivoscolaboraram para o fato: situar-se mais distante do centro de ocupação – a estância – eda capital – Porto alegre, e por seu relevo ser bastante acidentado, especialmente naporção norte, junto ao vale do rio Uruguai, sendo, assim, pouco atrativa ao latifúndio. 4A cidade de Mariano Moro é um dos pequenos municípios procedentes deste movimentomigratório, junto a inúmeras outras pequenas comunidades, cuja renda e economia derivavamprincipalmente da agricultura e da pecuária, e que também sofreram as coibições pelos anos derepressão.A vida longe dos grandes centros urbanos sempre apresentou peculiaridades, e constantementenos vemos presos a estereótipos ligados ao habitante destas localidades (o “colono” de fala estranha,conservador, com pouca instrução mas esperto para os negócios). Assim, não percebemos que cadapessoa vivencia os acontecimentos do dia a dia de forma única, e que as pequenas mudanças em seucotidiano podem representar as minúcias muitas vezes esquecidas pelas grandes interpretaçõeshistóricas. O contexto político, econômico e social vigente nos anos de repressão repercutem tambémnestes pequenos núcleos urbanos e o cotidiano do homem do campo é alterado, as vezes de maneirasutil, mas sem deixar de ocasionar transformações na sua maneira de pensar e de conviver com seuspares.A força repressora do Estado muitas vezes se fez presente nos locais de convívio. Outras vezes,seus ideais foram assumidos por instituições que operaram como instrumentos de controle social.Preocupada em garantir a legitimidade de suas ideias, a igreja Católica, que assumiu diferentes papeis4ZANELLA, Anacleto. A trajetória do sindicalismo no alto uruguai gaúcho 1937-2003. Passo Fundo: UPF,2004, p 26.70


diante do regime cívico-militar, exercia uma influência muito grande na formação de opinião de seus fieis.Assim, nas pequenas comunidades do interior do Rio Grande do Sul, locais antes destinado a encontroscomunitários, confraternizações e festividades religiosas tornam-se palcos potenciais de disputaspolíticas, de combate à ação comunista (ou àquilo que era percebido como ação comunista) e aocrescimento do movimento de oposição, que deixava as lideranças católicas apreensivas e temerosascom a possibilidade de penetração de novas ideologias. Utilizando-se do prestigio que detinham naspequenas localidades, os padres católicos se valiam de sua autoridade para disseminar suas opiniõespolíticas, geralmente favoráveis ao sistema vigente.É preciso ressaltar também as relações interpessoais existentes nas pequenas comunidades dointerior brasileiro. A proximidade física em meios relativamente isolados faz com que o grau decolaboração entre elas se torne mais forte e significativo em comparação a muitas das relações pessoaisnos grandes centros urbanos. Esta proximidade por vezes coloca lado a lado pessoas com posiçõespolíticas diferentes, sem no entanto causar-lhes constrangimentos ou mesmo apatia.No cenário se enquadra nestas características típicas das pequenas cidades do interior gaúcho.Com cerca de quatro mil habitantes em 1970 (hoje possui pouco mais de dois mil e duzentos) 5 , MarianoMoro emancipou-se em 1966, deixando de fazer parte do município de Erechim. Contudo, a distânciados grandes centros não impediu a formação de lideres políticos capazes de questionar as ordensimpostas pelo regime. Assim como os braços da repressão, as formas de resistência tambémalcançaram todos os níveis sociais, fazendo-se presente nos fatos mais simples do cotidiano urbano ourural.Surgiam assim as lideranças locais, capazes de ver além das limitações sociais e dasdificuldades impostas pela distância dos grandes palcos para o embate político. Para estas figuras, apossibilidade de alcançar melhorias para a comunidade estava na organização coletiva, ondedespontavam figuras que, dentro das particularidades dos pequenos municípios, divididos entre a vidaprivada e pública, procuravam combater os desmandos dos anos de repressão. Esta, por sua vez,também encontraria os caminhos para que seus aparatos de intimidação e vigilância funcionassemnestas pequenas localidades.O relato de Arude Gritti sobre sua experiência política.Arude Gritti nasceu em 1935, filho de um casal de agricultores, em Mariano Moro, então distritode Erechim. A localidade se emanciparia em 1966 e, aos 32 anos, Arude seria um dos primeirosvereadores eleitos no novo município, pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB).A inserção na vida pública não foi obra do acaso. Mesmo com as limitações que um pequenomunicípio recém-emancipado no norte gaúcho impunha em termos de acesso à informação, Arudemantinha-se a par das discussões políticas que então movimentavam o país. Assim, a escolha pelo MDBdentro do sistema bipartidarista imposto pelo Ato Institucional nº 2 (AI-2) seria uma decorrência deadmirações que já trazia desde antes de sua inserção na política local e da consciência quanto ànecessidade de reformas estruturais no país. Em outras palavras, Arude possuía uma leitura do Brasilpara além do espaço a seu redor. “Eu digo que para mim houve o Getúlio e o Jango, que foram osmelhores presidentes, a não ser os atuais agora que estão, né”. 6Esta percepção da realidade nacional ganhava ênfase quando contrastada à ação do grandepalanque que, à época, existia em Mariano Moro: o púlpito da Igreja. De lá, o pároco local, emconsonância com o discurso oficial daqueles anos, alertava seus fieis sobre os riscos que a penetraçãocomunista, barrada pelo regime de exceção, traria para o país.A população do interior, o nosso lugar, muitas vezes tu acompanhava pela própria igreja,o padre, porque o ouvia falar que achava que era comunismo (…). As pessoas compouca instrução, eles acompanhavam o que o padre falava na Igreja, só que eu muitasvezes saía fora da igreja e discutia com a turma, né, que não era isso aí que ele falava.Que eram as reformas de base, que deveriam ser feitas. A gente acompanhava tudo.Perceba-se que, a partir das memórias de nosso entrevistado, não é dificil traçar algunselementos do espaço onde sua história é narrada: uma cidade pequena e afastada dos grandes centrosurbanos, economicamente estruturada sobre a produção familiar, onde os hábitos comunitários e56http://www.marianomoro.rs.gov.br/portal1/demografia/mu_dem_pop_total.asp?iIdMun=100143231,http://www.ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?codmun=431200#. Acessos em 02 de março de 2013.Entrevista com Arude Gritti, cedida a Gerson Wasen Fraga e Fernanda Pomorski dos Santos, no dia sete defevereiro de 2013. A gravação encontra-se sob guarda do Laboratório de História Oral e Linguagens(LABHORAL) da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim. A fim de não sobrecarregar otexto com notas desnecessárias, todas os excertos que se seguem, retirados da fala do entrevistado, remetem aesta entrevista.71


agropastoris ditam o ritmo da vida cotidiana. Um espaço de pessoas simples, onde o altar religioso seconstituía em um importante local de poder. Neste microcosmo, tal qual em outros tantos lugares daAmérica Latina, o conservadorismo religioso, avesso aos novos ventos que soprariam em outras tantasparóquias a partir da Teologia da Libertação, andaria de mãos dadas com as Doutrinas de SegurançaNacional, associando discursivamente o golpe civil militar a um movimento de defesa do cristianismo, dapátria e da propriedade privada, atuando, por extensão, como instrumento de controle social afinado aoregime.Neste espaço onde Arude se inseria na vida pública, também a repressão não tardaria a chegar,ainda que atuando de formas distintas conforme o alvo. Em alguns casos, configurava-se o tradicionalsistema de ameaças e agressões típico dos estados coronelistas.Até o responsável pela Brigada Militar, que era o ...Era uma perseguição forte, era forte.Inclusive nós, que éramos do MDB (…) ele ameaçava até de revólver. A própria polícia,o próprio policial. E isto é triste. Teve gente que apanhou por causa de política,perseguição. Não tinha o que fazer, porque eles tinham tudo na mão. Então nóspassamos uns anos “meio pesadote” lá.Na memória de Arude Gritti, não há o registro de que sua pequena cidade tenha sentido o medoda delação, do desaparecimento forçado ou do assassinato a mando do Estado. Isto, é claro, pode ser oresultado de uma impressão pessoal, construída a partir de seu próprio olhar. Mas também pode serentendido como fruto dos mecanismos que a repressão encontrou ou julgou adequados para aqueleespaço específico. Neste sentido, a própria “cultura repressiva” dos agentes legais poderia encontrar nasagressões toscas – entenda-se sem o “refinamento científico” das torturas – e nas ameaças sua formacotidiana de atuação, o que valeria também para o delito de comunismo.Eu conheço todo mundo, sempre conheci todo mundo (…) tem uns companheiros queapanharam, até que sofreram por causa da... (…) nunca fui a favor da... não vou dizer“revolução”, que para mim foi um golpe, porque não tinha nada de comunismo.Arude, no entanto, não foi agredido. A forma que o aparato repressivo encontrou para lheintimidar foi através de um processo motivado por algo que nunca lhe foi explicado. De certo, apenas adesconfiança de que a peça jurídica seria motivada pela sua atuação política junto à comunidade deMariano Moro. “Veio aqui de Erechim, da Brigada, me entrevistar lá. Nem lembro mais o que aconteceu.(…) Eu não fiz nada de mais. Eu defendi as minhas convicções e pronto!” Este fato nos leva a pensarnos motivos pelos quais um indivíduo receberia, naquele cenário e contexto, uma atenção especial porparte do aparato repressivo. Certamente, pesou o fato de Arude se constituir em uma jovem liderançadentro do município, conhecido por todos e ostentando um matiz político oposicionista. Podemos cogitarainda que sua atuação, em que pese o caráter de oposição à Aliança Nacional Renovadora (ARENA),não ultrapassasse o âmbito local, não representando assim uma ameaça substancialmente visível aoregime de exceção. Contudo, há que se considerar ainda um elemento possível que representaria umdiferencial para Arude: uma certa aura intelectualizada em um meio marcado pelo pouco acesso àinformação. Com efeito, Arude não apenas era um jovem conhecido na política local, mas também era –e ainda é – leitor assíduo de jornais, objeto que, à época, sofria o obstáculo das inúmeras dificuldadesimpostas pelo sistema de transportes.As lembranças de Arude e de sua família indicam que o processo deve ter transcorrido entre1969 e 1972, aproximadamente. Foi Isabel, filha de Arude, que certa vez viu o conjunto dos documentosno fórum de Gaurama, onde fazia pesquisas para seu doutorado. Na pressa de sua pesquisa e, naquelaépoca, sem ter à sua disposição uma máquina fotográfica digital, a pesquisadora resolveu deixar paraver a documentação em outra oportunidade. Alguns anos depois, quando retornou para o Fórum a fimconsultar o processo, descobriu que este não mais se encontrava lá, e que possivelmente havia sidoincinerado. A informação dada à pesquisadora foi a de que este havia sido o destino de uma série deprocessos outrora sob guarda do fórum, nos quais o réu havia sido absolvido.Cria-se assim uma situação em que o agente passivo no processo é privado de, a qualquermomento, poder buscar o registro de sua própria história. Para além disto, os indícios relativos à peçajurídica, colhidos a partir da fala do entrevistado e de sua família, apontam para uma ação arbitrária eintimidatória. A se confirmar, o descarte em tal situação não representa um ato em benefício ao réuabsolvido, mas sim a imposição de novas barreiras para que as arbitrariedades relativas ao período doregime civil militar sejam desveladas pelos historiadores e pelos próprios interessados.Eu não sei porque eu fui processado, porque eu não dei um tapa para ninguém, não fiznada de mal. Só se for o que saiu da câmara, que aquilo é que eu quero ver. Sem issoou aquilo, né. Mas o que tu vai dizer nessas horas. Que bom seria se fosse achar lá,para ver os documentos, para ver qual que foi o motivo que foi. E afinal terminou por72


assim e...A deflagração do regime Civil Militar de 1964 abalaria as estruturas sociais de Mariano Moro,separando vizinhos e amigos que até então desfrutavam de relações comuns. Em um local de poucos etradicionais espaços de sociabilidade, as transformações políticas remetem mesmo ao rompimento depráticas cotidianas. Neste ponto, Arude recorda-se em especial da figura do primeiro interventor domunicípio, nomeado logo após a emancipação em 1966. Em sua narrativa, ambos eram amigos,companheiros de jogos até o momento em que o golpe trouxe para suas relações o ingrediente daoposição política. A partir de então, o convívio social passa a tomar outros rumos, conforme se instituiamas relações de poder.O mais culpado ainda eu acho que era o interventor. Nós ia jogar nossa canastra, nossopontinho, tudo junto. Depois começou... aí era mais difícil. Aí ficou uma relação maistensa e... e não tinha também como, porque, eles queriam intimidar e fazer, e eudefendia meus amigos, meus companheiros, né. Até inclusive um que já morreu, queriasaber porque deram uma surra de laço nele uma época, porque ele era meucompanheiro de... E não sei porque que bateram. Só por causa de política, né, porqueele era meu companheiro, eleitor meu daqueles de... de firme mesmo, que não tinhamedo.O rompimento ou enfraquecimento de relações pessoais, tendo questões políticas como fatordeterminante não é, obviamente, uma exclusividade deste caso. Nos interessa antes perceber que nestasituação específica, o alinhamento à ARENA ou ao MDB poderia muito bem funcionar como umajustificativa para que questões de ordem pessoal fossem resolvidas através da violência. No caso doamigo não identificado, a intimidação pura e simples é seguida pela prática do espancamento,demandando, muito possivelmente, uma ação orquestrada e previamente planejada. Mais uma vez,vemos antigas práticas coronelistas sendo retomadas na região, no bojo do Golpe de 1964. O caráter deação planejada ganha força, no relato, pelo fato de não ter ocorrido dentro da delegacia local, mas simem uma estrada qualquer, envolvendo diversas pessoas em conluio para agredir apenas uma.Como citado anteriormente, Arude passou imune a este tipo de intimidação, em que pese o fatode seus correligionários e eleitores mais próximos tornarem-se vítimas potenciais da violência física dasautoridades da região. Mais uma vez, não há na memória do entrevistado referências a atos de extremaviolência perpetrados diretamente contra sua pessoa. “Que eles queriam me mostrar de dedo sim, masque eles queriam me ameaçar com arma não”. Toma força, desta forma, a hipótese de que Arude erapercebido como um diferencial em relação ao cidadão médio de Mariano Moro, o que lhe servia comoum escudo diante da possibilidade da agressão física. A ameaça legal, escondida sob a forma de umprocesso não devidamente explicado deveria cumprir então esta função, intimidando ou, quiçá,silenciando o jovem político oposicionista.A polarização da política neste cenário afastado atingiria igualmente as relações pessoais queextrapolavam o campo da amizade. Contudo era possível estabelecer acomodações, de forma aestabelecer um limite entre a fidelidade partidária e vida privada. Ao mesmo tempo, hábitos ligados aocotidiano ou à sociabilidade, como o jogo ou apostas, poderiam se imiscuir com as questões políticas. Anarrativa a seguir apresenta vários destes elementos de forma simultânea, possibilitando inclusiveaventarmos a transposição da fidelidade partidária para a (in)fidelidade familiar diante da restrição depossibilidades imposta pelo bipartidarismo.Seu FR. Ele era contra nós. Até nós temos umas terras junto. Ele é casado com umaprima irmã minha. Naquele tempo era no bigode. “Aquela lá é tua”. Nós tínhamos umgado junto cada um. Até tinha umas vacas e uns touros de raça que eram juntos. Naminha eleição e dele, o F. mandou jogar, “Se tu perde eu pago o gado”. E jogamos nosvotos meus e nos votos dele. Só que ele assim, contra mim assim, ele era do outro lado,mas não era... não dá para... Então deu eleição, eu fui o mais votado do MDB, 106votos. Do meu partido fui o mais votado. E ele chegou em último lugar com 53. Dobrei avotação bem certo dele. Porque lá na urna, os tios dele, os cumpadres, os cunhados...tudo para mim, não votavam para ele.Arude lembra ainda de outra forma que foi utilizada para tentar lhe retirar do meio político deMariano Moro: a transferência de sua esposa, professora no município, para alguma outra localidade naredondeza, ou mesmo para escolas mais afastadas. “Eles queriam me mandar embora para mim nãoincomodar mais, que nós temos força. Não tem a criança que eu não conheça”.O exercício da política de oposição ao regime em Mariano Moro, em que pese esta ser umalocalidade de pequeno porte, não era algo a ser feito despreocupadamente, mesmo por uma figurapopular como “seu” Arude. Em épocas de campanha eleitoral, os riscos e ameaças aumentavam,73


exigindo por vezes um certo resguardo estratégico por parte de quem se encontrava na linha de frente.Destes momentos, subsiste ainda na memória a lembrança do sentimento então vivido.Tinha um pouco de medo, porque tu sabe, não é fácil. Tem horas que na campanha, nasúltimas duas ou três noites eu não saía de casa. Os meus companheiros que iam,porque tu sabe como é que é. Sempre tem aquele, né? (…) E um dia, nós, sentados láfora, no bar do Ireno, uma tarde conversando uns com outros, aí então lá conversandoque ele [o irmão do interventor do município] era candidato também. (…) E ele meameaçou, puxou um revólver.As situações de ameaças e confrontos armados em períodos eleitorais são, infelizmente,práticas ainda presentes em muitos dos distantes rincões do Brasil, alicerçadas sobre o poder local epelo sentimento de impunidade. Neste sentido, talvez a lembrança acima citada não devesse causar,necessariamente, surpresa. O que queremos, contudo, é lembrar que tal situação se fazia acompanharpelas especificidades do período em questão, onde o poder do Estado participava do jogo político,podendo o aparato repressivo vir a ser utilizado em qualquer momento. Como seu Arude lembra,retomando o sentimento que constantemente lhe acompanhava na vida política: “não era fácil fazeroposição, porque hoje tu faz oposição sem medo”. O tema acabaria sendo retomado em outra passagemde seu depoimento, explicitando um pouco mais os liames que uniam o poder de Estado e o jogopolítico, mesmo na pequena Mariano Moro.A polícia, a Brigada, porque... acho que nem Polícia Civil tinha lá no começo, a polícia,eles eram do lado deles. Eles cumpriam as ordens deles lá, e tu não tinha o que fazer.Tinha que me cuidar, claro, que não facilitava muito, porque eles para dar um tiro é fácil,depois diz que tu agrediu.Desta forma, a vida política em Mariano Moro refletia, em pequena instância, muitas dasvicissitudes que se manifestavam em nível nacional, adaptando-as contudo as características daquelecenário específico. A intimidação, o medo e as agressões físicas integravam o rol das possibilidades paraaqueles que ousassem participar das disputas eleitorais sob as regras impostas pelo regime civil-militar.E neste cenário, onde mesmo as relações pessoais mais próximas poderiam ser permeadas peloalinhamento à ARENA ou pela opção oposicionista (MDB), a ausência de regras definidas permitia que atentativa de enquadramento aos adversários do aparato governista se revestisse de formas um poucomais refinadas, quando assim fosse necessário. Tal como no processo movido contra o senhor ArudeGritti.Considerações FinaisA passagem dos anos não retirou de Arude Gritti o gosto pela participação na vida políticopartidária.Aos 77 anos, o ex-vereador e ex-prefeito de Mariano Moro pelo MDB milita nas fileiras petistasdo norte gaúcho, muito embora sem ocupar cargos eletivos, uma vez que sua família considera que “elejá fez sua parte”. Da mesma forma, permance em sua memória as lembranças do tempo vivido sob oregime civil-militar, sob o qual não perde o agudo senso crítico: “Esse golpe, essa 'revolução' que dizem,foi o atraso do nosso Brasil. Isto não resta dúvida nenhuma, porque aí calou a ideia de gente nova, quepodia trabalhar, crescer na vida”.Em suas memórias não há espaço para a mágoa. Os dias longes da família, a sensação deinsegurança, as ameaças sofridas por si próprio ou por seus companheiros a reproduzir práticas de umapolítica coronelista, nada disto lhe retira a convicção de que aquela era uma luta necessária, ummomento particular de nossa História diante do qual não havia como permanecer calado, ainda que osespaços para expressar sua opinião de forma livre fossem restritos. “Eu vejo que foi um atraso grandeem tudo. Primeira coisa a liberdade de expressão, que hoje tu pode te expressar que tu tem, e antes tunão tinha”.A lamentar, somente o fato de nunca ter sabido o real motivo pelo qual foi movido um processocontra sua pessoa naquele período. Ainda que o mesmo tenha sido arquivado e que, no fim das contas,não tenha produzido maiores resultados sobre sua vida pública, resta-lhe a sensação de que um direitoelementar lhe tenha sido suprimido.E, ainda, uma certeza: “eu não queria mais voltar naqueles tempos. A grande verdade é esta”.Fontes:74


Entrevista com Arude Gritti, cedida ao Laboratório de História Oral e Linguagens (LABHORAL) daUniversidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim. A gravação encontra-se sob guardadesta instituição.Fontes secundárias (virtuais):http://www.marianomoro.rs.gov.br/portal1/demografia/mu_dem_pop_total.asp?iIdMun=100143231.Acesso em 02 de março de 2013.http://www.ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?codmun=431200#. Acesso em 02 de março de 2013.Referências Bibliográficas:ZANELLA, Anacleto. A trajetória do sindicalismo no alto uruguai gaúcho 1937-2003. Passo Fundo: UPF,2004, p 26.75


O golpe civil-militar e o mundo que se abria: notas e possibilidades do exílio na trajetóriade Flávia Schilling (Brasil – Uruguai 1964-1980)Diego Scherer da SilvaResumo: O presente texto aborda a temática do exílio político (Brasil – Uruguai) a partir da trajetória deFlávia Schilling. Filha do economista e político Paulo Schilling, Flávia acompanhou o exílio de seu pai noUruguai 1964, e lá vivenciou também a situação de exilada. Utilizando como fonte principal osdepoimentos de Flávia, e em segundo plano os documentos do DOPS, o texto que pretende responder,ainda que de forma preliminar, as seguintes questões: De que forma Flávia e sua família enfrentaram oexílio no Uruguai? Como foi a chegada a esse novo país? Quais as memórias de Flávia sobre o exílio?Palavras-chave: Flávia Schilling – Exílio –Uruguai – Ditaduras.Bom, quando... o dia do golpe... se não me engano é o Padre Alípio que deixa umrecado em casa: “O golpe está na rua”. E aí meu pai, ele vai para uma tentativa deresistência, junto com Dagoberto Rodrigues, que ele era coordenador da central decorreios. Havia alguns lugares que de alguma maneira... Porque havia, lembra, a“Frente de Mobilização Popular Nacional”, havia uma organização de alguma maneirase compondo a favor exatamente do governo do João Goulart. Que havia proposto asreformas de base, as famosas reformas de base que, enfim, até hoje estamosesperando por algumas delas. E ele avisa: “O golpe está na rua”. E aí meu pai sai decasa. E eles ficam, um pouco, percebendo os acontecimentos, que não haverápossibilidade de resistência. O João Goulart, ele realmente sai do país rapidamente. Eaí meu pai sempre relata que ele e outros, eles foram, digamos, acolhidos nessemomento: “o que fazemos agora?” “É possível resistir ou não?”, pelo TenórioCavalcante, o homem da capa preta, na baixada fluminense; que os acolhe na casadeles e protege meu pai e outros militantes da época. E lá eles ficam durante, mais oumenos, uma semana. Para perceber a direção do movimento, se é possível resistir, oque fazer. Enfim, quando percebem que isso não é possível, o próprio Tenórioprovidencia um carro para eles e os leva, enfim, até a cercania da embaixada doUruguai. Eles pulam o muro da embaixada e, enfim, solicitando asilo político. Até essemomento a gente não sabia de fato, minha mãe... Enfim, éramos minha mãe e as quatrofilhas morando lá no Leblon. A gente não sabia o que estava acontecendo com o nossopai, o pai. Ficamos sabendo, porque, exatamente, no dia em que ele pede o asilo... eleentra na embaixada do Uruguai, e aí eles pulam porque ela estava cercada. Não é queeles entraram pela porta, ela estava vigiada, então eles pulam o muro. A polícia, oDOPS, vai em casa. E aí sabemos pelo DOPS que ele está exilado. Porque elesestavam obviamente vigiando a casa para ver se ele aparecia para prendê-lo. Ao saberque ele estava exilado, eles vão até nossa casa fazer uma vistoria. [...]. Então a partirdesse momento meu pai está exilado na embaixada. Há mais de uma centena depessoas na embaixada do Uruguai naquele momento esperando o visto para sair dopaís. Enfim, quando ele consegue ir embora para o Uruguai. Nós voltamos para PortoAlegre ainda, para o antigo apartamento de Porto Alegre. Mais ou menos pelo mês deagosto, meu pai já está em Montevidéu, e nós acompanhamos ele indo paraMontevidéu. Vamos para Montevidéu em agosto de [19]64. Então começa a fase doexílio [...] 1 .As palavras acima são de Flávia Schilling, referindo-se a um momento da trajetória de seu pai,Paulo Schilling, na ocasião em que ele sai do Brasil, fugindo do DOPS, e exila-se no Uruguai. Flávia,como vimos em seu depoimento, o acompanha meses depois e também parte para o país vizinho.Sabemos os motivos que levaram Flávia a Montevidéu. Mas como foi a chegada a esse novo país? Deque forma Flávia e sua família enfrentaram o exílio no Uruguai? Quais as memórias de Flávia sobre oexílio? Utilizando como fonte principal os depoimentos de Flávia, e em segundo plano os documentos do1Entrevista concedida por Flávia Schilling às Professoras Carla Rodeghero e Maria Paula Nascimento Araújocomo parte do projeto Marcas da Memória em 18/07/2011 na Faculdade de Educação da USP. Doravante“entrevista 01”.Preferimos apresentar as citações das entrevistas de Flávia, aqui, diferente das normas da ABNT para facilitar asua visualização. Elas serão expostas entre aspas e em itálico.76


DOPS, o texto que segue pretende responder, ainda que de forma preliminar, essas questões.Um pouquinho de história (ou: antecedentes da saída do Brasil)Flávia nasceu no dia 26/04/1953 em Santa Cruz do Sul, e logo em seguida mudou-se paraEncruzilhada do Sul, cidade no interior do Rio Grande do Sul. Filha da dona de casa Ingeborg Schilling edo economista e político Paulo Schilling, viveu os primeiros anos de sua vida em meio as mudanças deendereço de seu pai. Após publicar o livro “A questão do trigo”, Paulo Schilling foi convidado paratrabalhar com Leonel Brizola, então governador do estado do Rio Grande do Sul. Em entrevista recente,Flávia relatou:“A gente sai de Encruzilhada do Sul, vai morar em Porto Alegre. E lá se vive a luta pelalegalidade, a resistência da luta pela Legalidade. Obviamente o Brizola é um dosprotagonistas. Meu pai estava lá no Palácio o tempo todo. É uma situação realmenteforte naquele momento. Enfim, meu pai trabalha nessa condição: ligado ao Brizola. Equando o Brizola se elege deputado federal pelo Rio de Janeiro, meu pai acompanhanovamente o Brizola. E nós vamos pro Rio de Janeiro também. Em final de (19)63.Então a gente vive o golpe de estado no Rio de Janeiro” 2 .É a partir da sua estada no Rio de Janeiro que os relatórios do DOPS 3 começam a apresentarinformações sobre Paulo Schilling. “O cabeça de Brizola”, como aparece nos documentos do DOPS, erasupervisionado, entre outras coisas, pelo seu envolvimento com o “Grupo dos onze”, pelos seus contatofrequente com a figura de Leonel Brizola, além de ser “Superintende do ‘Panfleto’ 4 , órgão de propagandado comunismo. Seu nome figura numa relação de elementos que cooperam ativamente para odesenvolvimento do PCB, tendo publicado um livro na coleção ‘Cadernos do Povo’”, como nos informarelatório do DOPS. 5Paulo parece ter sido seguido bem de perto, como fica visível na sequencia do relatório:Quando alguem bate à sua porta, (mora n’um apto. grande com a familia toda, mulher e4 filhas) êle vem a porta da rua (o apto. está localizado n’um primeiro andar) e com arde importante e misterioso, até falando baixo, diz: Você dá umas voltas por aí e vemdepois, estou n’uma reunião fechada, ou então estou reunido com o “Setor Militar”. Asvezes deixa escapar alguma coisa da tais “reuniões fechadas”, em conversas até debotequim. Muita coisa o informante conseguiu foi exatamente dessas falas. E o homemé considerado da “mais alta responsabilidade”. [...]. Não fala noutra coisa senãorevolução. Várias vezes declarou publicamente diante de pessôas até estranhas noHotel: Vivo a 20 anos por conta de uma Revolução, sendo que a 12 me dedicointeiramente a ela. [...]. 6Logo após o golpe, Paulo busca asilo na embaixada do Uruguai, motivado pela “perseguição aospolíticos ligados ao governo deposto pelo golpe e aos que eram vistos como opositores ao novoregime” 7 . Levando em consideração o dia 1º de abril como data do golpe civil militar, em menos de umasemana, no dia 7 de abril de 1964, segundo relatório do DOPS 8 , Paulo foi procurado em sua residência,momento em que Flávia e sua família ficam sabendo do paradeiro de seu pai – “Ficamos sabendo,porque, exatamente, no dia em que ele pede o asilo [...] a polícia, o DOPS, vai em casa. E aí sabemospelo DOPS que ele está exilado”. Entretanto, a primeira referência que temos a Paulo após o Golpe é dodia 05 de abril, quando é concedido a ele e a mais quatro pessoas asilo no Uruguai. O “Relatório secretodo DOPS sobre os cidadãos brasileiros que solicitaram asilo nas embaixadas ou países SulAmericanos” 9 infelizmente não nos apresenta as datas do salvo conduto e da partida de Paulo, mas, apartir das informações de outros asilados, imaginamos que ele possa ter ficado na Embaixada até ummês após a concessão do asilo.É interessante observar que a supervisão das atividades de Paulo pelas forças repressivas não23456789Entrevista 01.Aqui nos referenciamos aos documentos disponíveis no acervo pessoal de Paulo Schilling. Possivelmente Paulojá era observado anteriormente.O “Panfleto” foi o jornal do grupo nacional-revolucionário brizolista, porta voz da Frente de Mobilização Popular.Um veículo de comunicação produzido pelo brizolismo.Relatório DOPS. Nº 5757, p. 03. Este documento faz parte do Acervo de Paulo Schilling, recentemente doado aoNPH da UFRGS. O acervo esta sendo organizado e em breve estará disponível para consulta.Ibidem. P. 04. A grafia das palavras foi mantida igual ao original.MARQUES,2006, p.19.Ofício DOPS. Rio de Janeiro, 3 de setembro de 1965. P. 02. Acervo Paulo Schilling.Acervo Paulo Schilling.77


cessou com sua saída do Brasil. Mesmo partindo para o Uruguai, ele continuou sendo vigiado peloDOPS, como fica evidente em inúmeras passagens de outros relatórios 10 . Paulo teve, inclusive, doismandados de prisão 11 : foi condenado a dois anos de detenção pela Auditoria da 1ª RM, como incurso noart. 33 nº I e IV do Decreto-lei 314/67, e, na data de 4 de julho de 1967, a nove anos de prisão, pelaAuditoria da 5ª CJM, como incurso no Art. 3º da Lei 1802/53. Após seu retorno ao Brasil, o que veio aocorrer somente no início de 1980, depois da Lei de Anistia, ainda encontramos informações suas nosrelatórios.Nesse sentido, o exílio político pode ser visto como um processo de duas vias: ao mesmo tempoem que garantia um meio de fuga e de preservação da vida para os opositores, era encarado pelogoverno como uma forma de desestabilizar a oposição e servir de exemplo para a população. SegundoMarques, o exílio políticofoi visto pelo novo governo como uma eficiente maneira de desarticular a oposição aoregime, pois objetivava afastar os principais líderes da oposição, e concomitantemente,servir de exemplo àqueles que se propusessem a ingressar na luta contra a DitaduraMilitar. Portanto, o exílio era um dos mecanismos de controle utilizados pelos militares,pois, ao isolar, afastar e segregar opositores, contribuía para a desarticulação dosgrupos de esquerda 12 .Era, enfim, mais um meio de manipular, através do medo, os diferentes grupos sociais e colocálosa favor do governo militar instituído a partir do golpe, ou ao menos não em oposição a ele. Comoindica Marques, “a possibilidade do exílio como uma ameaça àqueles que contestavam o regime militarficou demonstrada na excessiva exposição de slogans como, Brasil: Ame-o ou deixe-o, por meio demúsicas e adesivos em automóveis” 13 .Essa primeira geração de exilados 14 – a segunda viria após os movimentos de luta contra oregime do fim da década de 1960 – escolheu preferencialmente o Uruguai, e, mais especificamente, asua capital como local de residência fora do Brasil 15 . De acordo com Marques 16 , entre 1964 e 1967, asmovimentações políticas de exilados brasileiros no exterior se centralizavam no Uruguai. O declíniodessa concentração começou a partir de 1967, quando Jorge Pacheco Areco assumiu a presidência nopaís e deu início ao combate aos grupos considerados ligados às ideias comunistas.Para Montevidéu foram,entre outros, o presidente deposto, João Goulart; o ex-governador do estado do RioGrande do Sul e deputado pelo Rio de Janeiro, Leonel Brizola; o reitor da Universidadede Brasília e chefe do Gabinete Civil, Darcy Ribeiro; um dos principais assessores deBrizola, Paulo Schilling; e um dos líderes da revolta dos marinheiros, em 1964, oalmirante Cândido Aragão 17 .Mas por que o Uruguai? Por que Montevidéu? Fernandes explica que esse país “possuía umasólida tradição democrática e uma forte solidariedade aos exilados políticos”; além disso,desde a década de 1950, o Uruguai abrigava cidadãos paraguaios exilados desde oestabelecimento da ditadura de Alfredo Stroessner, em 1954, bem como argentinos quefugiram após a queda de Juan Domingo Perón, em 1955. É difícil mensurar o número deexilados brasileiros que foram para Montevidéu, mas estima-se que tenha sido entre500 e 1000 pessoas recebidas pelo governo uruguaio. Esta cidade passou a ser vistacomo sinônimo de lugar de liberdade de expressão política 18 .101112131415161718Para outros exemplos consultar a pasta “Arquivo DOPS” do Acervo Paulo Schilling.Histórico de Paulo Schilling – Departamento de Ordem Política e Social – Divisão de Informação. P.02. “ArquivoDOPS”. Acervo Paulo Schilling.MARQUES, 2006, p.20.IBID., p.21.Primeira geração que, segundo Rollemberg (1999, p. 50), em geral é associada a “aqueles que se identificavamcom os projetos de reforma de base, ligados a sindicatos e partidos políticos legais, como o PTB, ou ilegais,como o PCB”. Ainda sobre essa geração, Marques (2006, p. 21) informa que seus integrantes foram alvo dadenominada “‘Operação Limpeza’, codinome adotado pelos militares para designar este conjunto de medidasadotadas pelo novo governo, para eliminar e afastar os seus opositores, em conformidade com os princípios daDoutrina de Segurança Nacional”.Conforme Fernandes (2009, p. 78), a primeira geração de exilados também buscou refúgio em outros paísescomo México, Chile, Bolívia, Argélia e França, por exemplo.MARQUES, 2006, p. 24.FERNANDES, 2009, p. 78.IBID.78


A historiadora Teresa Marques reforça essa perspectiva e elenca alguns outros elementos quepodem nos ajudar a entender essa escolha por parte dos exilados. Ela expõe que o sistema político doUruguai, visto como uma democracia exemplar na América Latina, e as suas liberdades democráticasconstituíam um dos principais incentivos para que os brasileiros optassem pelo exílio político por lá.Segundo a autora, no Uruguai “um perseguido político obtinha facilmente asilo político, sua populaçãoera considerada avançada cultural e democraticamente, a justiça social era levantada como a maiorbandeira do país, entre diversas outras características [...]” 19 .Outro motivo estava ligado às possibilidades de se entrar e sair do país. Fazendo fronteira com oRio Grande do Sul – estado de origem de Paulo Schilling e outros tantos políticos exilados – sua grandefronteira por terra propiciava rotas para a entrada e saída de pessoas do Brasil para o Uruguai e viceversa.Tal fronteira, entretanto, não era um elemento importante apenas para as organizações deesquerda, ela foi utilizada também pelo aparato repressivo.Nesse sentido, Fernandes 20 explica que a fronteira do Rio Grande do Sul – principalmente agrande extensão de fronteira seca e as cidades “binacionais” (Chuí-Chuy e Santa do Livramento-Rivera)– era constantemente atravessada seja por refugiados ou mesmo cidadãos “comuns” que se sentiamameaçados e desejavam ir para outros países, como também por agentes da repressão brasileira que“usavam esses caminhos, seja em atividades clandestinas ou de colaboração com a repressão uruguaia,a fim de realizarem ações de perseguições e de operações de buscas”.E foi justamente esse o caminho escolhido pelo restante da família Schilling para ingressar nonovo país. Com o exílio de Paulo no Uruguai, Flávia, sua mãe e suas irmãs voltam para Porto Alegre,como nos contou ela em entrevista:“[...] depois disso a minha mãe achou que realmente não dava mais para ficar no Rio, agente não conhecia ninguém e não tinha ninguém, tava tudo muito disperso. [...] Então agente volta para Porto Alegre, pelo menos tinha família próxima, e eu nunca meesqueço, a gente volta de ônibus e claro, há toda a mudança de novo, a gente tinhaacabado de mudar pra lá com tudo e volta com tudo, vem um caminhão voltando. Mas agente vem de ônibus com a mãe [...] 21 ”.Flávia fica morando em Porto Alegre até agosto de 1964, quando ruma para o novo país.Questionada em entrevista sobre a viagem ao Uruguai ela disse:A nossa ida, ela foi cercada de cuidados também. O Ênio Silveira, editor da [editora]“Civilização Brasileira”, ele nos ajudou a sair do país. Enquanto família de um exiladohavia um certo temor que pudéssemos ser parados na fronteira, não é? Então eu melembro que a gente foi com ele até o Chuí, aí depois pegamos um trem para chegar emMontevidéu” 22 .Flávia encontrou lá um ambiente muito diferente do vivido no Brasil: o Uruguai se apresentavaaté então como um lugar com forte experiência democrática, com um ensino de qualidade e gratuito, ecom ideias muito conservadoras em relação aos costumes, o que ocasionou uma espécie de “choquecultural”, como narra a própria Flávia Schilling 23 .Foi nesse ambiente que completou seus estudos e ingressou na militância política. Como relataseu pai, na introdução do livro “Querida Família:” 24 , “no Instituto Alfredo Vasquez Azevedo [Flávia]integrou-se à F.E.R. – Federação dos Estudantes Revolucionários, de orientação Tupamara” 25 para emseguida, após ingressar na Faculdade de Medicina de Montevidéu – a qual abandonou-a ainda noprimeiro ano de graduação –, dedicar-se inteiramente ao Movimento de Libertação Nacional (MLN) 26 .Depois de aproximadamente dois anos de militância 27 , Flávia acabou presa, em 24 de novembrode 1972, aos 18 anos de idade. No momento de sua prisão, foi ferida por um tiro, tendo a bala lhe192021222324252627MARQUES, 2006, p.24.FERNANDES 2009, p. 94/95.Entrevista 01.Entrevista 01.Entrevista disponível na Revista do Movimento do Ministério Público Democrático – Dialógico – ano VI, n. 28,dezembro de 2009, p. 13. Doravante “entrevista 02”.Livro de cartas escritas por Flávia Schilling durante o seu primeiro ano de prisão.SCHILLING, 1972, p.10.Conforme expõe Trindade (2009, p.14) “os Tupamaros surgiram oficialmente em 65, mas desde 62 já vinham seorganizando. O gripo mesclava ideologia socialista com forte apelo aintiimperialista, e contava com apoio degrande parte da sociedade uruguaia”. Entre suas ações percebemos, como relata Padrós (2004, p.54), a“desapropriação de bancos e financeiras, sequestros 'pedagógicos' de autoridades estatais, divulgação dedocumentos sobre corrupção e malversão pública e fugas massivas dos penais”Como relata seu pai, a partir de abril de 1972, após o colapso de quase todas as organizações guerrilheiras edevido à forte repressão, Flávia teve que passar à clandestinidade, vivendo em condições tremendamente duras79


perfurado a laringe e a epiglote, causando séria hemorragia. Submetida a uma cirurgia no hospital militar,acabou sendo salva pela equipe médica.Conforme consta em documento oficial do governo brasileiro, antes de ser removidadefinitivamente para a Penitenciária Feminina de Punta Rieles, a 14 km de Montevidéu, Fláviapermaneceu meses mudando constantemente de prisões: “Submetida a julgamento, foi condenada a 10anos de prisão e mais cinco de medida de segurança, numa decisão em que a pena foi superior à pedidapela promotoria (9 anos)” 28 . Visualiza-se aqui um elemento importante da repressão política uruguaia,que tinha no encarceramento prolongado um dos seus mecanismos relevantes de repressão. Outracaracterística do regime repressivo uruguaio que é observado no caso de Flávia foi a política dos“reféns”, como nos expõe Mariana Joffilly:[...] ademais da estratégia de encarceramento prolongado, foi o caso dos ‘reféns’,conjunto de presos políticos que tiveram um regime de prisão extremamente duro,diferenciado dos demais, e aos quais foi comunicado que qualquer ação realizada porsua organização política redundaria em sua execução imediata. Foram nove homens enove mulheres [sendo uma delas Flávia Schilling] considerados como principaisdirigentes do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros – e isolados pouco depoisdo golpe de Estado em 1973 29 .Flávia continuou presa até abril de 1980. Entretanto, as tentativas e campanhas pela sualibertação começaram muito antes. Foram inúmeros os envolvidos nesse movimento: sua família – queacabou se mudando para a Argentina, ficando apenas a irmã Cláudia no Uruguai –, a imprensa, oscomitês que lutavam por liberdades políticas 30 e até mesmo pelo governo do Brasil. Conformeargumentam Rodeghero, Dienstmann e Trindade, a libertação de Flávia aconteceu quando “o governouruguaio, pressionado interna e externamente, promulgou lei dando liberdade e expulsando a todos osestrangeiros presos no país. Após sete anos e meio, Flávia – acompanhado de outros 36 presosestrangeiros – era, finalmente, posta em liberdade” 31 .Pretendemos na sequencia do texto dar uns passos atrás e discutir as formas como o exílio foivivido e sentido por Flávia, dando ênfase a dois elementos: a ideia do “breve” exílio, ou seja, que ele logose encerraria e todos voltariam ao Brasil e a questão “choque cultural”, enfatizando as possibilidades eas dificuldades de adaptação ao novo país.“O Mundo que se abria” (ou: O Uruguai como país de exílio)Chegamos ao Uruguai em agosto de 1964. Minha irmã e eu odiávamos tudo aquilo, porter deixado os laços já formados – não os do Rio, que não lamentávamos deixar depoisda experiência vivida – mas os de Porto Alegre, para onde voltamos logo após o iníciodo exílio de meu pai. Fomos todas: minha mãe, minhas irmãs. Viajamos de trem,enquanto minha mãe e minhas irmãs foram de carro, por outro caminho, com um amigo,passando pela fronteira do Chuí. Muita expectativa e medo. Medo da polícia, de sermosbarradas na fronteira.Era um rompimento, uma nova fase não desejada. Lamentávamos o que deixávamospara trás. Não que tivéssemos “raízes”: já as tínhamos, em todo caso, “aéreas”, porconta das inúmeras mudanças. As formas de viver essa experiência? Diversas: paraminha mãe, uma coisa; para minhas pequenas irmãs, outra; para minha irmã maisvelha, outra. Pontos de encontro, pontos de alegria e liberdade, pontos de perda e dor.Sempre muito difícil.Depois de alguns anos de fechamento, no grupo dos filhos de exilados, chegamos, defato, ao Uruguai. Pois no começo, tudo era estranho: os costumes, as roupas, asmúsicas, os códigos. Tudo era diferente. Assim conhecemos, na pele, o que significa serexilado. Exilado é aquele que não conhece os códigos, que, muitas vezes sem querer,quebra os códigos. Exige-se, assim, de todas um grande esforço de contenção, deatenção, de alerta. [...]Nunca esquecerei a sensação de “dominó” daqueles tempos; um após outro, nossos28293031(SCHILLING, 1972, p. 10).Caso Flávia Schilling - Relatório. Documento disponível no Arquivo Nacional. Processo GAB nº 100.075.02/02/1979 - 19 folhas/35 páginas. [BR.AN.RIO.TT.0.MCP.PRO.1632] p.15-16.JOFFILLY, 2010, P.122.Foram importantes as atuações, entre outros grupos, do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) e do MovimentoFeminino pela Anistia (MFPA).RODEGHERO, DIENSTMANN E TRINDADE, 2011, P.137.80


países viviam golpes de estado: Brasil, Bolívia, Peru, Uruguai, Argentina, Chile. Foi umtempo duro, de ser “estrangeiro” e estranho, de quebra de códigos. Não havia lugarseguro. O medo e a dor. A dificuldade de sobreviver, meu pai lutando para sustentaruma família grande. Cabe lembrar os trabalhos do meu pai na Editora Diálogo, noSemanário Marcha, cada uma de nós tentando achar um lugar possível para viver.Tempos em que a política dava as cartas, determinava cada momento de nossas vidas”32 .Em seu relato, Flávia apresenta algumas das inúmeras dificuldades e questões que secolocaram para aqueles que tiverem de viver a situação de exilado. Era um desafio. A viagem ao novopaís, o período de adaptação, o estranhamento - momentos que ela compartilhou com inúmerosbrasileiros e latino-americanos que experimentaram a mesma situação nas décadas de 60, 70 e 80. Coma sucessão de golpes civil-militares na América do Sul, sair do país se tornou algo iminente e necessáriopara aqueles que se opunham aos novos governos ou eram considerados inimigos dos mesmos. Nessescasos, o exílio não era um opção. Como aponta Rollemberg:Em muitos casos, a decisão de partir foi tomada diante da ameaça de prisão iminente,da clandestinidade que ia se tornando cada vez mais penosa, perigosa, em meio docerco que se apertava, das quedas, das prisões, das notícias de barbaridadescometidas nas prisões políticas. Sair, ir para o exílio era, então, escapar 33 .É interessante observar, entretanto, que esses pontos podem ser pensados para o caso dePaulo, que estava diretamente envolvido com grupos políticos e apresentava-se como um opositor àsituação instalada pós-golpe no Brasil, mas não para sua mulher e filhas. Elas não tinham umenvolvimento direto nessas questões e assim foram ao exílio acompanhar seu marido e pai. Tal situaçãonão ocorreu apenas com a família Schilling, como aponta Marques:[...] a maioria dos brasileiros da primeira geração de exilados da ditadura militar erampais de família, [assim] diversos são os casos de famílias inteiras exiladas. [...]. Adocumentação sobre mulheres e crianças exiladas no Uruguai é extremamenteescassa, o que explicita mais uma característica predominante da primeira geração deexilados pelo golpe de 1964: as mulheres exiladas da primeira geração em geral nãoeram militantes, ou sequer mantinham algum tipo de vinculação direta com movimentospolíticos. Partiram para o exílio para acompanharem o marido, diferente das exiladas dageração de 1968 34 .Percebe-se que, assim como os motivos que levaram cada pessoa ao exílio são diversos 35 , opróprio exílio não foi algo sentido e vivido igualmente por todos os atingidos, ficando longe de ser umaexperiência homogênea. Entretanto, através da analise dos depoimentos de Flávia e dos trabalhos dashistoriadoras Denise Rollemberg e Teresa Marques, é possível perceber alguns pontos em comum. Paratanto, analisar-se-á agora a ideia do “breve exílio” presente tanto entre o primeiro grupo de exiladoscomo na geração de 1968.Quando Flávia foi questionada sobre como era estar exilada, disse:“Era muito difícil. Significava, de forma metafórica, nunca desfazer as malas. Aexpectativa era de um exílio breve, “em dois anos estaremos de volta”, e durou mais de15 anos! Ser exilado [...] implica em uma situação de violência muito especial, a perdaprogressiva dos laços, não voluntária, o estar rejeitado, perseguido” 36 .3233343536SCHILLING, Flávia. Memorial apresentado para o Concurso de Livre-Docência na Área de Conhecimento deSociologia da Educação, nas disciplinas EDF0113 Sociologia da Educação I, EDF0114 Sociologia da EducaçãoII e EDF0687 Educação e Atualidade, a questão do sujeito, de acordo com o Edital FEUSP 18/2012MemorialUSP. São Paulo, 2012.ROLLEMBERG, 1999, p. 61.MARQUES, 2006, p. 74.Rollemberg (1999, p.52) nos apresenta uma interessante lista das diferentes motivações de partida dosexilados: “Houve os atingidos pelo banimento; houve quem decidiu partir, às vezes até com documentação legal,por rejeitar o clima que se vivia no país; houve quem pessoalmente, não era alvo da polícia política, mas exilouseao acompanhar o cônjuge ou os pais [como no caso de Flávia e do restante de sua família]; houve osdiretamente perseguidos, envolvidos, uns mais, outros menos, no confronto com o regime militar; houve quemfoi morar no exterior por outras razões que não políticas e, através do contato com exilados, integrou-se àscampanhas de denúncia da ditadura e já não podiam voltar com tantas facilidades. Os casos são inúmeros”.Entrevista 02.81


Em uma leitura rápida deste trecho de uma entrevista de Flávia, uma ideia-chave nele contidapode passar despercebida, mas, ao continuar a pesquisa sobre o exílio, a frase “a expectativa era de umexílio breve, em dois anos estaremos de volta” ganha força. Marques entrevistou Cláudia, irmã de Flávia,para a sua dissertação. Ao lermos seu relato podemos constatar que esta ideia também estava presentepara ela:Desde o início vivíamos uma situação de transitoriedade. Quando fomos para lá, aresposta que nos davam era: “temos de ir, mas daqui a um ano a gente volta”. Ninguémesperava que a ditadura tivesse uma tão longa duração. Mas a expectativa era essa,passavam os anos, mas a gente estava “sempre voltando” [...] 37 .Nesse sentido, Rollemberg – ao comentar a ideia inicial de um breve retorno, que com opassar dos tempos acabou ficando claro que não aconteceria tão cedo – nos apresenta umainterpretação que ajuda a entender as memórias das irmãs Schilling. Em suas palavras:Nos dois primeiros anos de regime militar, os exilados acompanhavam com grandeinteresse o que se passava no país [Brasil], mantendo a expectativa quanto àpossibilidade de reversão da conjuntura. Para muitos da geração de 1964, o golpeassemelhava-se a um rearranjo de elites políticas e o exílio a um breve intervalo, deonde observariam os desdobramentos do episódio. No entanto, depois de 1965, jácomeçava a ficar claro que o rápido retorno, no quadro do restabelecimento da ordemdemocrática, não era tão evidente 38 .Constata-se, assim, que tal ideia foi muito presente para aqueles que saíram do Brasil logo apóso golpe civil-militar de 1964. A dificuldade de entender as proporções do que estava acontecendo e de terparamentos para pensar a duração de tudo aquilo fez com que a noção de um breve retorno semantivesse bastante forte nos primeiros anos de exílio 39 .Tudo isso fez parte dos primeiros anos de exílio, quando a ideia de logo voltar ao Brasil estavapresente com muita intensidade. Chega um momento, entretanto, que se intui que tal retorno nãoaconteceria tão cedo 40 . Percebendo que ficariam ali por um bom tempo, parece ter sido necessário umprocesso de integração ao novo país. Era necessário vencer o “choque cultural” inicial, era preciso, comonos disse Flávia, começar a entender os códigos. Mas não foi simples passar pelo primeiro impacto.Quando questionada sobre as dificuldades de adaptação na chegada a Montevidéu, ela disse:“[...] o ‘choque cultural’ foi imenso, porque Rio de Janeiro em [1964] era Beatles,minissaia, uma certa, incrível, liberdade. Os anos sessenta, obviamente depois cortada[a liberdade], em grande parte pelo golpe. E em Montevidéu, o Uruguai, era um paíscompletamente diferente, ainda muito conservador em relação aos costumes. Então nóscausávamos escândalo por usar, inclusive, calça comprida. As mulheres não usavamcalça comprida, imagina, minissaia jamais, os Beatles não tinham chegado... A nossaadolescência já estava marcada por essa tônica, então houve choques em todos ossentidos. Então eu diria assim: o começo foi difícil, o começo foi difícil inclusive […]” 41 .É interessante observar, entretanto, que Alguns elementos parecem ter auxiliado Flávia e outrosexilados a vencer tal choque inicial. Conforme nos diz Marques, para os gaúchos provavelmente foi maisfácil esse processo de assimilação 42 e adaptação. Segundo a autora, a proximidade de determinadaspráticas culturais – mate ou chimarrão, o costume da carne bovina como prato principal, por exemplo – emesmo do clima facilitaram a sua adaptação ao exílio. Paulo, em entrevista ao CooJornal, comentou umpouco sobre essa situação:Nós, os gaúchos, que nos refugiamos no Uruguai e na Argentina fomos privilegiados. Asmudanças não foram demasiadas, inclusive a dieta é fundamentalmente a mesma [...]: ochurrasco e o chimarrão. Estar no Uruguai ou na Argentina é estar com um pé no Brasil:373839404142MARQUES, 2006, p. 26 – entrevista Cláudia Schilling.ROLLEMBERG, 1999, p.54.Podemos assim sugerir que a escolha do Uruguai como país de exílio também estava relacionada à ideia dobreve retono. Sua proximidade com o Brasil, somada à facilidade de se conseguir informações e mesmo de sedeslocar de um país ao outro, podem ter sido elementos levados em consideração na escolha do país platinocomo “capital do exílio”.É possível apontar também como elemento que explica a noção de brevidade do exílio a espera da definiçãodas eleições de 1966 no Brasil, após o fim do mandato oficial de Jango. Além disso, Rollemberg (1999, p. 90)aponta que é após o golpe do Chile, em setembro de 1973, que os exilados entendem que estavam diante deuma etapa duradoura de suas vidas.Entrevista 01.Sobre a noção de assimilação ver SPITZER (2001).82


às 4 da tarde chegam os diários brasileiros, se escuta a Gaúcha e a Guaíba, como sefossem locais, se vê e se fala com brasileiros de “dentro” a cada dia [...] 43 .Essa questão pode ter “facilitado” o processo de assimilação no exílio, assim como a existênciade uma “colônia de brasileiros” exilados no Uruguai. Como citado anteriormente, esse país foi o principalreceptor dos exilados da primeira geração, e tal concentração parece ter sido um elemento positivo paraos recém chegados. A receptividade da sociedade uruguaia era grande, entretanto, em um primeiromomento, percebe-se uma preferência dos exilados em estreitar laços com os próprios brasileiros, paraentão, em seguida, inserirem-se de forma mais clara na sociedade uruguaia. Cláudia Schilling, em seurelato à historiadora Teresa Marques, comentou essa situação:Quando chegamos lá, havia uma grande colônia de exilados brasileiros, cada um delescom sua respectiva família, e assim de repente fazíamos parte de um grande grupo deadolescentes, o que eu adorei, e conservo algumas dessas amizades até hoje. [...]Tirando o contato com os colegas no ginásio, naquela época não houve muito contatocom a “sociedade uruguaia” como tal, porque na verdade meus amigos ficaram sendoos outros filhos de exilados, situação que perdurou pelo menos por uns dois anos, atéque a grande maioria dos exilados começou a voltar para o Brasil ou foi para outroslugares. [...] Portanto, sempre havia laços, e embora com o tempo todos estivéssemosperfeitamente adaptados, nunca deixamos de ser “brasileiros no Uruguai” 44 .Em nenhum momento queremos dizer que o exílio foi algo fácil. Pensando o mesmo como umprocesso de assimilação, um “processo de adaptação e ajustamento continuum” (SPITZER, 2001, p. 41)ao novo meio onde foram obrigados a se inserir, ser gaúcho e a existência da colônia de brasileirospodem ter sido meios de facilitar a integração ao novo espaço. Mas as dificuldades não foram poucas;afinal, “sendo exilado político não havia como escapar da distância do lar, da família, de amigos, enfimda terra natal” (Marques, 2006, p.68). Um exemplo desses desafios foram as dificuldades econômicas ea necessidade de se conseguir emprego e dinheiro para manter a família no exílio, como ressaltam asirmãs Schilling:Flávia complementa:A situação financeira sempre foi muito precária, porque meu pai demorou paraconseguir trabalho, e tinha mulher e quatro filhas. Tínhamos um apartamento no Rio,que foi vendido, e outro em Porto Alegre, e com isso vivemos os primeiros anos. Depoismeu pai começou a trabalhar colaborando com vários jornais do Uruguai e do exterior, ea situação melhorou um pouco, mas nossa vida sempre foi extremamente simples 45 .“[...] a condição do exilado com uma família, com quatro filhos, não é? Sendo queobviamente a nossa família não é uma família de posses, a gente não tinha ingressos.[...] Então há exílios e exílios. Eu sempre comento isso. Então a gente vai, uma famíliade quatro pessoas mais a minha mãe. [...]. Você tem estratos sociais, não é igual aexperiência do exílio para todos. Para alguns foi muito difícil, não é verdade?Dependendo da posição socioeconômica dos exilados, as condições de trabalho” 46 .Esta situação foi contornada por Paulo através de suas atividades como jornalista.Primeiramente trabalhando no periódico “Marcha” e em seguida escrevendo também para a “PrensaLatina” - Agência de Notícias Cubana – e tirando dessas funções o sustendo da família nos primeirosmomentos do exílio.Todavia, não só ruins foram as marcas deixadas pelo período. Nesse sentido, gostaríamos deressaltar uma questão apresentada por Flávia em várias entrevistas que concedeu considerada positivanessa fase de exílio: a possibilidade de estudar no Liceu Uruguaio. A escola pública e mista, diferente desua realidade no Brasil, além das diversas disciplinas que não faziam parte da grade curricular brasileira,são salientadas por Flávia como uma característica marcante de sua formação. Em suas palavras:“[...] Até hoje eu agradeço, eu digo, o meu sucesso escolar, a minha cultura se deve aoginásio... [...]. Ao liceu uruguaio, à escola pública uruguaia. Eu sempre brinco, a gentetinha literatura universal desde a... seria a segunda ou terceira série do ginásio, talvez43444546MARQUES, 2006, p.61 - citando: PEREIRA, Tomás. “Prato feito não!” Coojornal. Porto Alegre-RS. Ano IV. nº. 38.Fevereiro de 1979.MARQUES, 2006, p.62.MARQUES, 2006, p. 69 – entrevista Cláudia Schilling.Entrevista 01.83


sexta, sétima série. E aquela coisa: a gente começava com a Ilíada, não tinhadiscussão. E isso me formou de uma maneira maravilhosa. Até hoje eu agradeço isso. Eeu fiz literatura, a gente estudou literatura até o preparatório, que seria o colegial, entãoa gente tem todo um, a questão da leitura. Filosofia a gente tinha também direto desde asétima série, filosofia mesmo. E tinha francês como língua prioritária, porque na épocaera isso e não o inglês. Depois tinha duas línguas, quer dizer, um nível culturalfantástico. Então essa foi realmente uma experiência muito importante para mim” 47 .E isso não é sublinhado apenas por Flávia. Sua irmã Cláudia relata a mesma sensação ementrevista à historiadora Teresa Marques: “isto [referindo-se ao estudo no Uruguai] me deu asferramentas para ser a tradutora-intérprete que sou até hoje. Por isso sempre repito que ‘o Uruguai medeu régua e compasso’” 48 .Pode-se atribuir, assim, ao Liceu uruguaio – público, misto e de qualidade – uma importânciabastante grande na trajetória de nossa personagem. Percebido como um ambiente politizado, é possívelpensar o Liceu e o ensino como um espaço de libertação, como um elemento de aproximação de Fláviacom o Uruguai, que permitiu a ela “sair” do grupo de exilados e politizar-se com mais autonomia.Observações finaisDiversas outras questões poderiam ser apontadas sobre o exílio ocorrido durante os regimescivil militares na América Latina. Levando em consideração o caráter individual da experiência do exílio,e aqui tomamos o caso da família Schilling e mais especificamente de Flávia como exemplo, tentamosdemonstrar ao longo do texto alguns elementos do primeiro grupo de exilados que saíram do Brasil logoapós o golpe de 1964.O trabalho não se encerra aqui. A pesquisa continua. Além do exílio, a militância política, aclandestinidade, a prisão e as campanhas de libertação por Flávia serão tema de análise. E o próximopasso será entender o início de sua militância, compreender o momento em que Flávia se apaixona peloUruguai, como nos contou em entrevista:“E em algum momento eu me apaixono pelo Uruguai. (risos) Acho que aquele desgostoé superado, e uma paixão se produz de alguma maneira. Inclusive talvez para escaparum pouco daquela situação de ‘vamos voltar já’, eu já sabia que não iríamos ‘voltar já’; ese precisa ter raízes em algum lugar, então a gente se entrega ao lugar onde se está edecide ‘não, eu gosto deste lugar’. Então eu também me apaixono por esse lugar, e eucreio que me apaixono em torno de [19]68 49 ”.Referências bibliográficas:FERNANDES, Ananda Simões. Quando o inimigo ultrapassa a fronteira: as conexões repressivas entre aditadura civil-militar brasileira e o Uruguai (1964-1973). Dissertação (Mestrado em História) – Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.JOFFILY, Mariana. Memória, Gênero e Repressão Política no Cone Sul (1984-1991). In: Tempo eArgumento. Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 111 – 135, jan. / jun. 2010.MAQUES, Teresa C. Schneider. Ditadura, exílio e oposição: Os exilados brasileiros no Uruguai (1964-1967). Dissertação (Mestrado em História) – Pós-Graduação em História, Universidade Federal do MatoGrosso, Cuiabá, 2006.PADRÓS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay... Terror de Estado e segurança nacional: Uruguai(1968-1985): do Pachecato à Ditadura civil-militar. Tese (Doutorado) – Pós-Graduação em História,Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.PORTELLI, Alessandro. História Oral e Poder. In: Mnemosine, Vol. 6, Nº 2, P. 02-13. Rio de Janeiro:2010.RODEGHERO, Carla Simone; DIENSTMANN, Gabriel; TRINDADE, Tatiana. Anistia ampla, geral eirrestrita: história de uma luta inconclusa. Santa Cruz do Sul: Editora da Unisc, 2011.ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999.SCHILLING, Flávia. Querida Família:.Porto Alegre: CooJORNAL, 1978.474849Entrevista 01.MARQUES, 2006, p. 76 – entrevista Cláudia Schilling.Entrevista 01.84


É mais fácil comemorar tragédias do que reconhecer as barbáries da ditadura civil-militarbrasileira: memórias do período no Oeste Paranaense.Marcos Adriani Ferrari de Campos 1Resumo: O presente artigo visa analisar a construção das memórias sobre a ditadura civil-militarbrasileira no oeste Paranaense, a partir dos fatos ocorridos no município de Nova Aurora em 1970, ondea organização de um comando territorial da Var-Palmares formado por um pequeno número de pessoasligadas ao grupo revolucionário desenvolviam suas atividades na região oeste do Paraná, onderealizavam um trabalho de treinamento para a guerrilha, visando o fortalecimento dos grupos deesquerda, para a luta armada contra a ditadura. Todos daquele grupo foram presos em maio de 1970,acusados de terroristas, assalto a bancos e participação em sequestros, sofrendo com as torturas. Oobjetivo aqui é análise dos discursos que tem se propagado na atualidade sobre o regime ditatorialbrasileiro.Palavras-chave: História e memória – torturas- silêncios – esquecimentos.Abstract: This article aims to analyze the construction of memories on the civil-military dictatorship in theWestern Brazilian Paranaense from the events in Nova Aurora in 1970, where the organization of aterritorial command-Var Palmares formed by a small number of people linked to revolutionary groupperformed their activities in western Paraná, where they performed a work training for guerrillas, aiming atthe strengthening of leftist groups for armed struggle against the dictatorship. All of that group wasarrested in May 1970 on charges of terrorism, the banks and jump-involvement in kidnappings, sufferingthe tortures. The goal here is discourse analysis that has spread today on the Brazilian dictatorship.Keywords: History and Memory – torture-silences – forgetfulness.A história da memória está ligada com a preocupação dos pesquisadores de como as sociedadesrecordam seus passados e já que recordam no presente, é importante estudar quais são os “modos deusa-los 2 ”. Embora não se possam mudar os fatos do passado, parece que “o seu sentido forçosamentese transforma ao sabor das intenções, disputas políticas e expectativas 3 ”, trazendo no início do séculoXXI, debates sobre o que lembrar, o que esquecer, ou silenciar, às vezes de maneira voltada para aconstrução de memórias, que tentam harmonizar os fatos através da “reconciliação como objetivo;consenso como programa e esquecimento como instrumento 4 ”, como se isso fosse possível sem passarpela crítica historiográfica. No Brasil, a instauração da “comissão da verdade 5 ” em 2012, sem caráterjudicial, visa esclarecimentos principalmente sobre o período ditatorial, sobre um passado que insiste emnão querer passar. 6De fato, as lacunas continuam e, mesmo quase 28 anos após seu “fim” oficialmente declarado, aditadura causa indagações e discursos nostálgicos da parte de alguns, que acabam negando que ela secaracterizou como uma ditadura de classe 7 . Às vezes somos muito tentados a observar os movimentosde certos personagens e seus movimentos, mas não se deve esquecer do processo histórico pelo qualfluem as lutas de classes, sendo que este processo, ao longo do século XX, foi marcado pelamassificação da classe trabalhadora, sendo destinada a esta, à exploração capitalista e sua exclusãodas principais cenas políticas e econômicas, com plenos ideais do liberalismo econômico, fazendo esteparecer o “caminho certo” a seguir, mesmo que para isso, fosse preciso lançar a mão de violência1234567Mestrando – Formado em história, Unioeste, Marechal Cândido Rondon, no ano de 2006.marcosferrari66@hotmail.com 0xx4599930511. Linha de pesquisa: Estado e Poder.TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar. Lisboa Unipop, 2012.TELES, Janaina de Almeida. As constituições das memórias sobre a repressão da ditadura: o projetoBrasil: Nunca mais e a abertura da Vala de Perus. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, p. 257-292, jul. 2012. p.258.VINYES, Ricard (ed.) El Estado y La memoria: gobiernos y ciudadanos frente a lós traumas de La historia.Barcelona, RBA, 2009. p.23.PROJETO DE LEI 7376, Comissão Nacional da Verdade. Disponível em:http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOSHUMANOS/148111-PROJETO-CRIA – Acessadoem 31/01/2013.TRAVERSO, Op. Cit.FERNANDEZ, Florestan. A ditadura em questão. São Paulo: T.A. Queiroz, 1982.86


institucionalizada e o desenvolvimento do consenso, que resultariam na instauração de ditaduras civilmilitares em vários países da América Latina. Na sociedade brasileira, a burguesia se esforçou de todasas formas para manter seu domínio, sendo que para tal, organizou-se e,aumentou (ou decuplicou suas forças sociais, graças a uma bem trabalhada “psicose deguerra civil”, a um esforço de propaganda contínuo e maciço, do qual participaram todosos órgãos da grande imprensa, todas as grandes revistas, todos os canais de televisão,todas as estações de rádio, com desdobramentos na esfera da educação política e dapregação anticomunista, levadas a efeito pelas lojas maçônicas e por todas asconvicções religiosas – embora com forte saliência católica – a uma manipulaçãoeficiente do “pânico burguês” diante da pretensa república sindicalista) e as classesburguesas unificaram seu potencial de luta de classes como se tivessem completado ocircuito de sua maturação histórica 8 .O trecho do professor Florestan Fernandez, descreve o contexto o qual se encontrava o Brasil umpouco antes do golpe e durante o regime ditatorial sendo que, irônica e paradoxalmente, vai ao encontrodo discurso atual de um deputado federal pelo Estado do Rio de Janeiro, feito no parlamento etransmitido pela TV câmara, no dia 09 de julho de 2009 dizendo que, “os militares em 1964, nãoassumiram o governo porque quiseram, havia uma pressão de toda a mídia, quem tem dúvida é só ir nabiblioteca, toda a imprensa, pedindo que os militares assumissem[...]Havia pressão da igrejacatólica[...] 9 ”. Ele só esqueceu de dizer que era uma pressão articulada pela burguesia que, devido aomedo de uma possível participação popular significativa, nas esferas políticas e econômicas, instala uma“contrarrevolução preventiva 10 “.É impressionante pensar que houve toda uma organização civil-militar, que beira a umaconspiração cinematográfica, onde todos os setores destinados ao lazer, à cultura, à informação e àeducação formal e informal, bem como a violência estatal, estavam a serviço de uma dominação declasse, que veio desembocar no golpe de 1964 e “desatou a contrarrevolução como processoprolongado 11 ”. Para exemplificar, vejamos o envolvimento de grandes “times de futebol” 12 , no movimentoconspirativo do golpe e até mesmo sua manutenção, onde necessariamente a produção de consensoacrescida da violência, manteve a dominação da classe burguesa. Conseguiram parar a história poralgum tempo, ou seja, “a ditadura foi criada para resolver a crise do poder burguês 13 ” e, por um pouco detempo a burguesia viveu um sonho de dominação perfeita, no entanto, aquilo que era temido numpassado recente, voltava a assombrar, pois a classe trabalhadora se reorganizara e os problemas nocampo continuavam, levando os camponeses à reconstrução de movimentos organizados de luta eprotesto. Diante disso, a burguesia se perguntava então; o que fazer com todo o poder burocráticoditatorial militar ultrapassado e todos os seus riscos?De acordo com Renato Lemos, o golpe representou a “implantação de um novo regime político eum formato de Estado ainda inédito na América Latina: uma ditadura burguesa capitaneada pelas forçasarmadas 14 ”. Pois bem, o golpe e a violência serviram para a dominação de classe por algum tempo,esboçando até ares de desenvolvimento com o “milagre econômico”, no entanto, este se desmanchavaassim como o sonho burguês, que era a ilusão de se obter quase uma “escravidão civilizada e oficial,”sobre a classe trabalhadora. Cronicamente falando, sem liberdade de expressão, sem liberdade deescolher os dirigentes, sem poder de pensamento político, o povo brasileiro foi mergulhado numaditadura sanguinária e qualquer contestação era exposta ao “chicote institucional”, o qual levava à prisão,às torturas, ao exílio e até mesmo à morte, Mesmo com a existência dos poderes legislativo e judiciário,estes não atuavam plenamente diante da tirania do executivo, estabelecendo-se a exclusão de forçaspolíticas contrárias, bem como o uso da violência estatal para a contenção de qualquer forma demanifestação, protestos ou organizações, fossem elas de trabalhadores, estudantes ou revolucionários.Sobre pretexto da guerra civil, da ameaça comunista e terrorismo, é que a classe burguesa organiza ogolpe com os militares e assim mantém seu domínio de classe.891011121314Fernandez, Op. Cit. p. 96.Jair Bolsonaro. Discurso parlamentar, 09 de julho de 2009, transmitido pela TV câmara, disponível em:http://www.youtube.com/watch?v=G1zOLnTwCgI. Acessado em 21/01/2013.LEMOS, Renato. Ditadura militar, violência política e anistia. Texto disponível no site:http://ufrj.academia.edu/RenatoLemos. Acessado em 20/12/2012.Fernandez, idem p. 96DREYFUSS, René A. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e o golpe de classe. Petrópolis:Vozes, 1981. ( Capítulo VIII: A ação de classe da elite orgânica: o complexo IPES/IBAD e os militares) p. 361-415. p. 385, 386.FERNANDEZ, Op. Cit. p. 97.LEMOS, Renato. Ditadura militar, violência e anistia. Texto disponível em:http://ufrj.academia.edu/RenatoLemos Acessado em 31/01/2013.87


A ditadura civil-militar no Brasil permanece na atualidade levantando aspectos problemáticos emrelação às visões interpretativas sobre suas reais consequências para a sociedade, sendo que suasmemórias, ou seja, as recordações, os silêncios e os esquecimentos, têm provocado neste início demilênio uma “reviravolta” na história da memória brasileira sobre o regime ditatorial. No ano de 2012,mais especificamente no dia 29 de março, alguns militares se encontraram no clube militar da cidade doRio de Janeiro, para comemorarem a data do golpe de 1964, como se aquilo fosse um grande feito paraa nação brasileira 15 .Silvio Tendler, cineasta e documentarista brasileiro, um pouco antes da data mencionada acima,fez uma convocação através de um vídeo na internet para se reunirem na data e local acimamencionada para protestarem contra o que ele chamou de “festim diabólico,” segundo as suas palavras,“é inadmissível que exista gente que ainda hoje pretenda comemorar o golpe de 1964. É inadmissívelque se use espaços públicos pra comemorar a implantação de uma ditadura que destruiu uma geraçãointeira. 16 ” Mas quais os problemas para escrever história, diante de uma disputa de memórias queenvolvem torturas, assassinatos, ocultação de cadáveres e o uso abusivo da mídia em geral como meiode propagação de aspectos positivos de um regime ditatorial que torturou, matou e fez do povo massasde manobras, com objetivos de dominação de classe?As maneiras de utilizar o passado levam consigo, às vezes, a imposição de determinadasvisões, nem sempre condizente com a “realidade”, sendo que “os atores sociais diversos lutam paraafirmar a legitimidade de sua posição, em face de seus vínculos com o passado, estabelecendocontinuidades ou rupturas com o mesmo 17 ”, construindo interpretações que podem manipular, rotular einculcar determinadas visões inaceitáveis sobre os fatos. No que diz respeito à discussão atual sobrehistória e memória é possível ver claramente uma aproximação entre as duas, certa complementaridadee seria um erro separá-las por completo, já que ambas tem o mesmo propósito, a reconstrução dopassado, embora a memória seja extremamente subjetiva e não muito preocupada com as provas. Ahistória além de ser objetiva, carrega consigo toda uma metodologia e certa “oficialidade” tanto em suasfunções didáticas, quanto sociais, podendo assim também se tornar um problema, ou seja, ser oficial enão crítica. A representação do passado começa com a memória, cabendo à história a capacidade de“ampliar en el tiempo la fuerza de la crítica, en el orden del testimonio, de la explicación y de Lacomprension. 18 ”Em 2009 circulava no congresso nacional um projeto de lei que viria a se concretizar conforme jávisto acima, em uma comissão da verdade, que visa esclarecimentos para a sociedade brasileira, defatos obscuros ocorridos principalmente durante a ditadura civil-militar brasileira. Convém ressaltar que acomissão não terá um apelo judicial, por causa de “negociações” com os militares e setores de direitaextremada que, “saracotearam” de todas as maneiras com discursos estereotipados, com medo derevelações das atrocidades cometidas no período turvo da ditadura. Assim pessoas ou gruposprivilegiados incentivam a construção memorial de acordo com suas ligações com o passado, fazendocom que a memória trabalhe a favor de determinados grupos. Vejamos o exemplo do deputado federalJair Bolsonaro, já citado aqui, sobre a guerrilha do Araguaia, em que traduz a busca de corpos em umapiada cretina, num cartaz enorme pendurado no seu gabinete diz: “desaparecidos do Araguaia, quemprocura osso é cachorro 19 ”.É importante para os militares e a elite, negar o termo ditadura, bem como a negação dainstitucionalização da violência, do terrorismo de Estado com as formas mais cruéis de torturas. Cresce aveiculação de notas em jornais fazendo apologia à ditadura, onde podemos encontrar questionamentossobre a violência daqueles tempos, vejamos: “que tortura é essa da qual tanto reclamam? Aquela que secaracterizava numa bolachada ao lado do ouvido para que o elemento pernicioso que fora presodenunciasse em qual local seria explodida outra bomba que iria matar mais inocentes? 20 ”Dizer que não houve torturas, me parece ingenuidade ou hipocrisia, porque ainda nos anos151617181920No dia 29 de março de 2012, manifestantes protestaram do lado de fora do Clube Militar, no centro do Rio, ondeacontecia uma comemoração pelo aniversário do golpe de 1964. A polícia militar, como de costume, fez fartadistribuição de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e muita truculência. Ex-militares como o tenente-coronelLício Maciel, que participou de operações no Araguaia, e o general Nilton Cerqueira, responsável pela execuçãode Carlos Lamarca, foram escorraçados pelos manifestantes. Vídeo disponível em:http://www.youtube.com/watch?v=pU08Qu2BjTY. Acessado em 13/01/2013.Ato contra a comemoração do golpe de 64. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=1_Io 8tz9WLM.Acessado em 13/01/2013.TELES, op. cit., p. 258.RICOUER, P. La memoire, l’ histoire, l’ oubli, p. 153 capud, CUESTA, Josefina. La odisea de la memoria,historia de La memoria em España siglo XX. Alianza Editorial, S.A., Madrid, 2008, p. 32.Gabinete do deputado federal Jair Bolsonaro (PP/RJ), 27/05/2009). Foto: Rogério Tomaz Jr. Disponível em:http://brasiliamaranhao.wordpress.com/2009/05/27/jair-bolsonaro-sobre-os-mortos-do-araguaia-quem-procuraosso-e-cachorro/.Extraído em 20/01/2013.Jornal Gazeta do Paraná. Tortura ou melancia no pescoço. Paulo Martins. Sábado 21/03/2009.88


1990, é possível encontrar relatos como o de Marcelo Paixão de Araújo que servia como tenente no 12ºRegimento de Infantaria do Exército em Belo Horizonte, dizendo em entrevista que,fiz (as torturas) porque achava que era necessário. É evidente que eu cumpria ordens.Mas aceitei as ordens. Não quero passar a ideia de que era um bitolado. Recebi ordens,diretrizes, mas eu estava pronto para aceitá-las e cumpri-las. Não pense que eu fuiforçado ou envolvido. Nada disso [...] Nessa época, eu tinha 21 anos, mas não eranenhum menino ingênuo (risos). O pau comia mesmo. Quem falar que não havia torturaé um idiota 21 .No Oeste paranaense houve intensa repressão aos movimentos de esquerda, onde váriaspessoas foram presas e torturadas. No município de Nova Aurora, por exemplo, ocorreram prisões devárias pessoas no ano de 1970, que ainda hoje causam polêmicas. Trata-se da prisão de pessoas quefaziam parte de um comando territorial da Var-Palmares, entre eles se encontravam Izabel Fávero, LuizAndréa Fávero, Alberto João Fávero, Gilberto Hélio da Silveira, José Deodato Motta, Adão Pereira Rosae Benedito Osório Bueno 22 . Enfatizaremos por enquanto aqui dois pontos importantes para um debateinicial sobre memórias da ditadura militar no Oeste Paranaense. Primeiro, Izabel Fávero se encontravagrávida no momento da prisão e abortou devido ás torturas conforme relato onde conta que,eram mais ou menos 2 horas da manhã quando chegaram à fazenda dos meus sogrosem Nova Aurora. A cidade era pequena e foi tomada pelo Exército. Mobilizaram cerca desetecentos homens para a operação. Eu, meu companheiro e os pais dele fomostorturados a noite toda ali, um na frente do outro. Era muito choque elétrico. Fomosliteralmente saqueados. Levaram tudo o que tínhamos: as economias do meu sogro, aroupa de cama e até o meu enxoval. No dia seguinte, fomos transferidos para oBatalhão de Fronteira de Foz do Iguaçu, onde eu e meu companheiro fomos torturadospelo capitão Júlio Cerdá Mendes e pelo tenente Mário Expedito Ostrovski. Foi pau-dearara,choques elétricos, jogo de empurrar e, no meu caso, ameaças de estupro. Diasdepois, chegaram dois caras do Dops do Rio, que exibiam um emblema do Esquadrãoda Morte na roupa, para ‘ajudar’ no interrogatório. Eu ficava horas numa sala, entreperguntas e tortura física. Dia e noite. Eu estava grávida de dois meses, e eles estavamsabendo. No quinto dia, depois de muito choque, pau-de-arara, ameaça de estupro einsultos, eu abortei 23 .A pessoa que “comandou” a prisão e as torturas, Mário Expedito Ostrovski é advogado naatualidade e mora em Foz do Iguaçu. Tais fatos da época foram confirmados por um soldado queparticipou daquela operação em uma carta anônima enviada ao jornal folha de Londrina em agosto de2001 24 . O fato de ser uma denúncia sem nome, parece demonstrar aspectos cruéis em relação aoacontecido e provavelmente temendo pela crueldade que poderia acontecer a si próprio, caso viesse ase identificar. Embora o mesmo tenha uma ligação com este passado, ao lado dos torturadores,presenciou os males das torturas e reconhece no presente as injustiças cometidas pelo regime ditatorial.Assim como o relato de Marcelo Paixão de Araújo, as torturas foram ações bizarras durante a ditadura eé estarrecedor que alguns afirmem que não ocorreram tais procedimentos no Brasil apesar de todas asprovas. O segundo caso é de Maria Lucia dos Santos Brandão, filha de Benedito Ozório Bueno, quetambém fazia parte do grupo em questão e que, segundo a comissão especial de indenização aospresos políticos do Estado do Paraná, além das torturas físicas que recebeu sua família também foiameaçada, caso fizesse parte do ocorrido. Com sua prisão a produção agrícola da qual dependiam foiafetada, “depois de recuperar a liberdade, Benedito teve que recorrer à ajuda de amigos para sobreviveraté quando veio a falecer. Ainda hoje suas filhas sofrem necessidades com o ocorrido 25 ”.A filha de Benedito Osório Bueno ainda luta para conseguir uma indenização, mas seu pedido foiindeferido 26 . O grande problema da reparação econômica é o processo de transformação dessaspessoas em vítimas, invisibilizando a luta pela democracia e todos os seus custos. Ora a dor e ahumilhação das torturas permanecerão, sendo que os resquícios e continuações da ditadura também212223242526Entrevista de Marcelo Paixão de Araújo à revista veja de 09/08/1998. Disponível em:http://veja.abril.com.br/091298/p_044.html. Acessado em 22/01/2013.PALMAR, Aluízio. Onde foi que vocês enterraram nossos mortos? Curitiba: Travessa dos Editores, 2006, p.107.Relato de Clari Izabel Fávero, Disponível em: http://www.documentosrevelados.com.br /repressao/forcasarmadas/professora-torturada-na-ditadura-acusa-advogado-de-foz-do-iguacu-de-ser-o-responsavel-pelassevicias-e-aborto/.Acessado em 15/01/2012.PALMAR, Op. Cit. p. 109.Processo de indenização aos presos políticos do Estado do Paraná, 25 de outubro de 2004.Jornal Gazeta do povo de 06 de março de 2005.89


continuam e nos fazem refletir sobre porque, por exemplo, os nomes de ruas de presidentes ditadoresainda continuam escancaradamente pelas cidades brasileiras. Em Nova aurora, por exemplo, temos arua presidente Médici, que “governou” o período mais repressivo do regime e também a rua CasteloBranco, primeiro presidente após o golpe.As pessoas que se mostraram contrárias ao regime, pagaram um preço altíssimo como a prisão,torturas e exílio, sendo que no município em questão, não há menção a eles em lugar algum, nem naprefeitura, biblioteca municipal, jornais ou rádios. A escola Estadual Jorge Nacli, onde a professora IzabelFávero lecionou ainda existe, mas o esquecimento institucional se estabeleceu. Pessoas quepresenciaram toda a mega operação de aproximadamente 700 homens do exército, polícia militar eDOPS em 1970 para prender nove pessoas, falam com timidez sobre o assunto, como é o caso dosenhor Raul Pezenti morador da cidade desde 1954 diz que:estava trabalhando na máquina quando vi os soldados [...] Ninguém falava sobre ocomunismo. Era algo que estava escondido de nós, ninguém sabia sobre isto. Maspouco se falava sobre política, tanto que quando chegaram [os soldados], foi pouca arepercussão sobre o Liberato, ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo e qualera a realidade [...] As coisas estavam por baixo de um pano 27 .Luiz Andréa Fávero, Izabel Fávero, Alberto Fávero e Gilberto Hélio da Silveira estavamestruturando um comando territorial da Var-Palmares, uma “área tática de apoio” 28 pertencendorealmente à organização referida. O restante do “grupo” estava apenas tomando conhecimento e haviamparticipado de algumas reuniões, talvez treinamentos de tiros, mas mesmo assim foram submetidos àprisão e às torturas, resultando em alguns casos, consequências drásticas já relatadas aqui. Essaspessoas eram camponeses descontentes e desejavam mudanças sendo que a falta de justiça emrelação aos casos de torturas e outras ignomínias do regime ditatorial podem provocar discursosnostálgicos e inclusive com caráter de “oficialidade”, nos meios de comunicação, que com certezamistificaram e ainda continuam mascarando as os fatos sobre a ditadura, ou ainda transformá-los emapenas vítimas, ignorando seus valores e sua luta.As lembranças das torturas fazem parte da formação do processo histórico até podendo fazerparte dos custos da democracia, o que se constitui um absurdo, pois se trata de uma violação dosdireitos humanos. No entanto é preciso ter cuidado para não transformar as pessoas em vítimas, sejacom indenizações financeiras ou não, pois assim, coloca-se um ponto final, apagando-se todos os custosda democracia, bem como promovendo a falta de justiça, a “ponto falar muito das “vítimas” e esquecersedos ditadores 29 ”. Segundo o jornalista de Foz do Iguaçu Aluizio Palmar, “não existe ódio em relaçãoaos torturadores, mas sim sequelas 30 ”,sendo necessário que se faça justiça.A promoção de “vítimas” propicia ao Estado ausentar-se de todas as responsabilidades, gerandoum clima de perdão e reparação econômica, apagando assim todos os valores políticos das pessoas quelutaram pela democracia, provocando o esquecimento consciente das causas em que essas pessoas setornaram “vítimas” e o porquê decidiram lutar. Parece uma coisa ao acaso, mas não é, pois se trata delembrar-se das “vítimas” e esquecer aqueles que provocaram a ausência da liberdade, o terrorismo deEstado, sob a lei de segurança nacional, mergulhando o país em anos ditatoriais. Estes estão soltos poraí como Mário Expedito Ostrovski e Marcelo Paixão de Araújo discursando a “vitória” e propagandoagradecimentos aos militares que impediram uma “ditadura do proletariado” e a instauração docomunismo aqui no Brasil, repetindo sempre o mesmo discurso.Este me parece um ponto importante para a discussão, pois “a própria ideia de Revolução écriminalizada, automaticamente remetida para a categoria do comunismo e assim arquivada no capítulo‘totalitarismo’ da história do século XX 31 ”. Tornou-se muito comum a associação direta entre comunismoe Stalinismo, reduzindo toda uma ideia de sociedade igualitária e mais justa ao terrorismo de Estado.Dessa maneira, o capitalismo vai sendo imposto como a forma “ideal” de se viver em sociedade e oliberalismo econômico constitui suas principais regras. Apresentam-se como a solução de todos osproblemas da sociedade e identificado como o sistema social e político “mais democrático” (é claro queisso impostamente) até então na história da humanidade, mas quando a balança da luta de classespareceu pender para o lado da classe trabalhadora, foram necessárias doses gigantescas de violência,2728293031Entrevista concedida em Dezembro de 2012 a Marcos Adriani Ferrari de Campos.Documento da secretaria de Estado de segurança pública, intitulado V.A.R. Palmares, in: Arquivo público doParaná.VINYES, op. cit, p.56.Aluizio Palmar em entrevista: “É preciso que a Comissão da Verdade faça justiça” – Entrevista especial para oQTMD? (Quem tem medo da democracia?). Disponível em: http://quemtemmedodademocracia.com/2011/10/05/aluizio-palmar-e-preciso-que-a-comissao-da-verdade-faca-justica-especial-para-o-qtmd/. Acessadoem 20/01/2013.TRAVERSO, op. Cit. p. 120.90


para manter a ordem burguesa.Nos períodos mais obscuros do século XX, quando a opressão, as desigualdades e a violênciatenham talvez alcançado seu ponto mais descarado, ou seja, a exploração passa a ter um aspecto“oficial”, o comunismo aparecia como o sonho de milhões de pessoas, sendo ideias pelas quais faziasentido lutar. Essas ideias de igualdade e sociedades justas assustam muito as elites, pois se servem daclasse trabalhadora como fonte de exploração e suprimento de suas luxúrias. Deste modo, o comunismopassa a ser expurgado, reprimido e também pregado religiosamente como fonte do mal.No Brasil, durante a ditadura, muitos jovens foram embalados pelos ideais comunistas, mashavia de certa maneira, um exagero de utopia em relação aos ideais comunistas que eram os sonhos demilhões de pessoas, pois quando comparado às ignomínias provocadas pelo capitalismo e o liberalismoocidental, a emancipação dos povos era a esperança de um mundo melhor. Chegado o século XXI, ocomunismo não é mais evocado por aqueles que um dia acreditaram que se poderia construir um mundomelhor. Vejamos o exemplo da atual presidente da república brasileira, Dilma Rousseff, em 2009,quando ainda não ocupava tal cargo, dizendo que: “a gente acreditava sinceramente que iríamos mudaro mundo, que haveria um mundo mais igual, que o Brasil ia ser um país diferente, [...] éramos umageração que discutiu muito, [...] mas sobretudo, queríamos igualdade social 32 ”. Assim parece não ousarsemais, evocar um sistema alternativo de sociedade. Não que seja o “fim da História”, mas criou-se umaforma de consenso tão complexa que às vezes parece até irrefutável, no entanto se analisada de formacoerente suas contradições saltam aos olhos.Um dos conceitos propagados pelos militares em relação à comissão da verdade é o dorevanchismo, já que a lei de 1979 anistiou (apagou) e “pôs um ponto final na história”, mas o fato é queos presos políticos foram condenados, torturados, exilados e em alguns casos mortos e os torturadoresnão foram julgados. A distensão “lenta, segura e gradual”, proposta em 1974 para uma aberturatranquila, tinha em seus custos a garantia de continuações do regime na sociedade, sendo que umaruptura poderia ser prejudicial aos planos da burguesia. A lei da anistia, que em meio a toda a suaambiguidade, excluía a responsabilidade do regime por todas as consequências, inclusive das torturas emortes, sendo assim, perdão a revolucionários e torturadores, igualando as causas de ambos. Segundoa cartilha da comissão da verdade no Brasil.Um dos objetivos que têm causado muita discussão é justamente o da reconciliação edo estabelecimento da paz. Embora seja um objetivo louvável e um corolário dos quepromovem os Direitos Humanos como valor intrínseco à Democracia, deve-sereconhecer que, para as vítimas, promover a reconciliação e a paz só pode ser possívelcom a Justiça e com o reconhecimento oficial das responsabilidades de indivíduos que,a mando do Estado, violaram os direitos mais elementares, prendendo arbitrariamente,torturando e assassinando opositores do regime, muitos deles até hoje desaparecidos 33 .No entanto se pode perceber que esses indivíduos torturadores a serviço do Estado andam poraí impunes e a palavra reconciliação pode muito bem significar esquecimento, já que os mais diversosatores envolvidos nessas tramas de recordações, silêncios e esquecimentos de determinados aspectosdo passado, incorporam a este, os sentidos que melhor se adequarem à ligação que os mesmos têmcom esse passado. É claro que as pessoas que foram torturadas, sentem a necessidade de justiça, poiscarregam em suas mentes lembranças e traumas que guardarão para o resto de suas vidas, pois équase impossível se esquecer de tais experiências.Por outro lado temos as pessoas que sob ordens superiores, realizaram coisas bizarras entre asquais podemos citar, “choques nos testículos, pênis, orelha, língua, tudo isso amarrado no pau dearara 34 ”, além das pressões psicológicas às quais incluíam ameaças veladas de mortes, como no casoda prisão do grupo de Nova Aurora que incluíam voos da morte com helicópteros sobre as cataratas doIguaçu. Apesar de todas as provas, a tortura continua sendo negada, caracterizando assim a impunidadedaqueles que a utilizaram. O caráter não punitivo da comissão da verdade no Brasil salienta algumasreflexões. Em primeiro lugar se manterá intacta a lei de anistia de 1979, com o perdão irrestrito atorturadores e revolucionários, substituindo toda a luta pela democracia e tornando um “benefício” doregime ditatorial ao povo.323334Dilma Rousseff, in: Documentário; Utopia e barbárie. Direção: Silvio Tendler, 2009 Brasil; Idioma do Áudio:Português, Inglês, Espanhol, Francês, Italiano."Utopia e Barbárie" é um road movie histórico que percorreu aotodo 15 países: França, Itália, Espanha, Canadá, EUA, Cuba, Vietnã, Israel, Palestina, Argentina, Chile, México,Uruguai, Venezuela e Brasil. Em cada um desses lugares, Tendler documentou os protagonistas e testemunhasda história do século XX.A Comissão da Verdade no Brasil. Disponível em: http://www.portalmemoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/media/Cartilha%20Comiss%C3%A3o%20da%20Verdade%20-%20N%C3%BAcleo%20Mem%C3%B3ria.pdf. Acessada em 20/01/2013.Entrevista à Alberto Fávero cedida à Marcos Adriani Ferrari de Campos em janeiro de 2010.91


Em segundo lugar, pode-se criar um aspecto de oficialidade, ou seja, “proclamar la memóriacomo um deber 35 ” produzindo uma visão parcial, permitindo a isenção de responsabilidades do Estado,impondo assim interpretações sobre o passado de maneira que haja “reconciliación y consenso 36 ”, comintenção de produzir uma “harmonização histórica”, impedindo as resignificações e fazendo desaparecer,como se tem insistentemente reclamado aqui, a luta pela democracia, perpetrando assim o processo devitimização, renunciando “a explicar la democracia como um bien conquistado com esfuerzo coral ydesde la calle. [...] la que hace que el passado no acabe de trancurrir, no acabe de pasar y se instaureum vacio ético, generando reclamos y creando conflitos 37 .”A reconciliação pode significar também, certas continuidades ditatoriais na sociedade, apenasdeixando o tempo passar, como se fosse trazer a paz, talvez para os torturadores da comemoração noclube militar, que hoje são senhores aposentados, melhor dizendo, torturadores aposentados, ou pelomenos coniventes com a violência da ditadura. De qualquer maneira, espera-se que pelo menos acomissão da verdade, mesmo sem caráter punitivo possa esclarecer e “quebrar” as visões, como aquelado jornal Folha de São Paulo, de que a ditadura não teria sido tão violenta, fazendo com que o termo“Ditabranda 38 ”, não possa circular na mídia de maneira geral, sem escapar da crítica e doreconhecimento de um passado onde as ações ditatoriais foram irreparáveis e “ante ló irreparable, elperdón no tiene sentido.” 39Seria simples dizer que a escrita da história começa pela organização das memórias, e que atémesmo a própria história começa com as memórias, no entanto, o estudo sobre a produçãomemorialística da ditadura civil militar, por exemplo, consiste na análise de recordações, silêncios eesquecimentos, que fazem parte da memória e, portanto da história. As recordações são provocadas poralguma notícia, fotos, pesquisas e podem trazer a tona lembranças de um passado não muito distante,mas o bastante para provocar às vezes sentimentos nostálgicos e às vezes juízo de valor, principalmentesobre a violação dos direitos humanos, tanto a si próprio, quanto de pessoas conhecidas. Asrecordações podem gerar lágrimas ou risos, mas de acordo com as influências ou relações do passadocom o presente de quem lembra, sendo que constantemente pode produzir também o silêncio e oesquecimento.Assim, como já citado aqui, a negação da tortura, constitui-se numa construção, pois, “opresente está impregnado pelo passado 40 ”, sendo que nos anos 90, falar em torturas a presos políticospodia ainda significar comicamente a “vitória, uma conquista para a nação” e a transição sem rupturas,propiciou o desenvolvimento de certas continuidades como nomes de ruas, monumentos e discursosapologéticos sobre o milagre econômico, a segurança, entre outros aspectos, defendidos até hoje pelaburguesia, militares e doutrinados, pois é mais fácil reconstruir o significado do passado, do que assumiras barbáries, frutos do interesse de dominação, baseados numa lei de segurança nacional, que acaboupor distribuir a violência gratuita e a obediência obrigatória.Referências BibliográficasPALMAR, Aluízio. Onde foi que vocês enterraram nossos mortos?Curitiba: Travessa dos Editores, 2006.RICOUER, P. La memoire, l’ histoire, l’ oubli, p. 153, capud, CUESTA, Josefina. La odisea de Lamemoria, historia de La memoria em España siglo XX. Alianza Editorial, S.A., Madrid, 2008.TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar. Lisboa Unipop, 2012.TELES, Janaina de Almeida. As constituições das memórias sobre a repressão da ditadura: o projetoBrasil: Nunca mais e a abertura da Vala de Perus. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, p. 257-292, jul.2012.VINYES, Ricard (ed.) El Estado y La memoria: gobiernos y ciudadanos frente a lós traumas de Lahistoria. Barcelona, RBA, 2009. p.23.353637383940VINYES, op. cit. p. 57.Idem, p. 57.Idem, p. 57.Jornal Folha de São Paulo, 17 de fevereiro de 2009.LEVI, Primo. Capud, VINYES, op. cit. p. 59.CUESTA, op. Cit, p. 61.92


FERNANDEZ, Florestan. A ditadura em questão. São Paulo: T.A. Queiroz, 1982.DREYFUSS, René A. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e o golpe de classe. Petrópolis:Vozes, 1981. ( Capítulo VIII: A ação de classe da elite orgânica: o complexo IPES/IBAD e os militares) p.361-415.Siteshttp://www.youtube.com/watch?v=G1zOLnTwCgIhttp://ufrj.academia.edu/RenatoLemoshttp://www.portalmemoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/media/Cartilha%20Comiss%C3%A3o%20da%20Verdade%20-%20N%C3%BAcleo%20Mem%C3%B3ria.pdfhttp://quemtemmedodademocracia.com/2011/10/05/aluiziopalmar-e-preciso-que-a-comissao-da-verdade-faca-justica-especial-para-o-qtmd/http://brasiliamaranhao.wordpress.com/2009/05/27/jair-bolsonaro-sobre-os-mortos-do-araguaia-quemprocura-osso-e-cachorro/http://www.documentosrevelados.com.br/repressao/forcas-armadas/professora-torturada-na-ditaduraacusa-advogado-de-foz-do-iguacu-de-ser-o-responsavel-pelas-sevicias-e-aborto/http://www.youtube.com/watch?v=pU08Qu2BjTYhttp://www.youtube.com/watch?v=1_Io8tz9WLMhttp://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOSHUMANOS/148111-PROJETO-CRIAhttp://veja.abril.com.br/091298/p_044.htmlFontesEntrevista a Alberto Fávero cedida a Marcos Adriani Ferrari de Campos em janeiro de 2010.Dilma Rousseff. In: Documentário Utopia e barbárie. Direção: Silvio Tendler, 2009, Brasil. Idioma doÁudio: Português, Inglês, Espanhol, Francês, Italiano. "Utopia e Barbárie" é um “road movie” históricoque percorreu ao todo 15 países: França, Itália, Espanha, Canadá, EUA, Cuba, Vietnã, Israel, Palestina,Argentina, Chile, México, Uruguai, Venezuela e Brasil. Em cada um desses lugares, Tendlerdocumentou os protagonistas e testemunhas da história do século XX.Entrevista concedida em Dezembro de 2012 a Marcos Adriani Ferrari de Campos.Documento da secretaria de Estado de segurança pública, intitulado V.A.R. Palmares, in: Arquivopúblico do Paraná.Processo de indenização aos presos políticos do Estado do Paraná, 25 de outubro de 2004.Entrevista de Marcelo Paixão de Araújo à revista veja de 09/08/1998.Jornal Folha de São Paulo, 17 de fevereiro de 2009.Jornal Gazeta do Paraná. 21 de março de 2009.Jornal Gazeta do povo de 06 de março de 2005.93


Índio Vargas e Jorge Fisher Nunes: os referenciais da resistência armada, durante operíodo da Ditadura Militar, vistas a partir das memórias de dois militantes deesquerda que atuaram no Rio Grande do Sul.Nôva Brando 1Resumo: As memórias de Índio Vargas, em Guerra é guerra, dizia o torturador, e de Jorge FischerNunes, em O Riso dos Torturados, estão inseridas dentro do contexto no qual ocorreu a primeira onda depublicações de memórias sobre a Ditadura Militar no Brasil. Nesse período, as lutas pela democratizaçãodo país foram protagonizadas de diferentes formas, dentre as quais a edição de memórias que tornavapúblico a repressão e a violência do Estado dirigidas àqueles que resistiam ao regime. Além dasdenúncias, há uma característica permanentemente presente nessas obras, a reivindicação dereferenciais de luta, desde o local ao geral, que permeavam todo um período de resistência. Asreferências presentes nas memórias de Fischer e de Vargas, neste trabalho, são identificadas ecompreendidas enquanto parte de um referencial pertencente a uma memória coletiva e uma memóriapolítica construídas em meio à resistência armada e construtoras de uma resistência memorialística aoRegime Militar.Palavras-chave: Ditadura Militar – Memórias da Ditadura – Luta ArmadaAbstract: Índio Vargas’ memories in Guera é guerra, dizia o torurador, and Jorge Fischer’s memories inO Riso dos Torturados are inset in the first wave of memories publications about Military Dictatorship inBrazil. In this moment, the democratization’s figth was staring by differents forms and the editions ofmemories was one that publicize the state’s repression and violence against the people that madeopposition by the regime. Besides this denounces, there is a permanently characteristic in this titles: theclaim of referential’s fight, both local and general, that permeated a whole period of resistance. Thereferences presents in Fischer’s and Vargas’ memories, in this work, are identified and understood as apart of a referential that belongs a colective memory and political memory constructed midstream armedresistance and them constructed a memory resistance face to Military Dictatorship.Key-words: Military Dictatorship – Dictatorship’s memories – Armed StruggleIntroduçãoAs obras de Índio Vargas, Guerra é guerra, dizia o torturador, e de Jorge Fischer Nunes, O Risodos Torturados, estariam situadas dentro da primeira onda de memórias revolucionárias (1975-1985), emque a esquerda procurou continuar nas páginas dos livros a luta contra a Ditadura Militar. SegundoCardoso, dentre as diferentes perspectivas na historiografia – e mesmo nos mais variados registroscomo dossiês, diários, entrevistas, biografias, romance político –, os livros de memória ocupariam umlugar particular enquanto instrumento de compreensão do Período da Ditadura. Para a autora, no interiordesse “surto memorialístico”, os livros de memórias seriam instrumentos representativos de grupos queconstruiriam diferentes representações do passado. 2Para Martins, os narradores da esquerda sentiriam obrigação de contar e recontar osacontecimentos que cercam a resistência derrotada, para que mantivessem viva a memória dos anos 60e 70. 3 Isso pareceu tanto um “dever de memória”, no sentido de que seria preciso lembrar do passado123Formação Acadêmica: Graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),graduanda em pedagogia pela UFRGS e especializanda em Ensino da Geografia e da História pelaFACED/UFRGS. Email: nova-brando@sarh.rs.gov.brCARDOSO, Lucileide Costa. Construindo a memória do regime de 64. São Paulo, Revista Brasileira de História,v. 14, n. 27, 1994. p.180. Também nesse artigo, a autora trabalha com memórias dos militares que, segundo ela,podem ser entendidas como uma resposta às memórias dos militantes de esquerda, no mínimo por aquelasterem sido publicadas posteriormente a essas.MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra da memória. A ditadura militar nos depoimentos de militantes emilitares. Belo Horizonte, Varia História, n. 28, p. 178-200, dez. 2002. p.1. O autor, nesse artigo, além deanalisar livros de memórias de militantes de esquerda, analisa a memória dos militares, situando-nas naquiloque denominou como “a guerra da memória”, onde as memórias conflitantes “disputariam” o passado.94


para que ele não se repetisse, quanto para responder uma demanda da esquerda, que começava apassar por um período de avaliação das suas ações durante o período da ditadura. Nesse sentido, essasmemorias, repletas de considerações sobre a resistência, do ponto de vista de quem naquelas fileirasesteve, agora possibilitariam uma aproximação entre os problemas de pesquisa histórica, referentes aosposicionamentos da esquerda naquele período, e o desenvolvimento do conhecimento acerca daqueleperíodo.Tanto Vargas quanto Fischer atuaram na luta armadas no estado do Rio grande do Sul e suasmemórias relatam esse período. Transformadas em obras memorialísticas, suas memórias, nessetrabalho, são entendidas como fontes riquíssimas, como sugerem Cardoso e Martins, para acompreensão das discussões travadas entre a esquerda daquele período, sobretudo aquela que optoupela luta armada.Encontramos dentro das memórias desses militantes que optaram pela luta armada areivindicação de referenciais utilizados como aportes explicativos e de sustentação de uma leituraconjuntural que fazia das ações radicais a única possibilidade real de oposição ao regime naquelemomento em que as vias institucionais foram deliberadamente fechadas. Para trabalharmos com areincidência dessas rememorações é que atentamos para a existência, conforme Hallbwachs 4 , de uma“memória coletiva” e, de acordo com Ecléa Bosi 5 , uma “memória política”, que teriam sido construídas econsolidadas entre os militantes que lutaram contra a Ditadura de 1964.Nas descrições das ações, na crítica e na autocrítica dos projetos armados bem como nosreferenciais por eles reivindicados, os memorialistas, no caso desse trabalho, Vargas e Nunes, por umlado, apoiar-se-iam em uma memória coletiva da esquerda sobre aqueles tempos, percebida nasmenções recorrentes, por exemplo, ao caso do Marighela, ao caso do Lamarca, às discussões teóricas eaos apontamentos das lutas internacionais travadas naquele momento. Por outro lado, haveria umamemória política expressa nessas rememorações, nas quais a presença de juízos de valores edemarcações de posição política estariam fortemente presentes. Portanto, identificar as referênciaspresentes nos relatos memorialísticos dos dois autores e compreende-las enquanto memórias coletivase memórias políticas construídas a partir da resistência e construtoras de uma posterior resistênciamaterializada na publicação de suas obras, é a intencionalidade primordial desse artigo.Breves Considerações – Memórias sobre as organizações e as ações armadasEm um primeiro momento, apresentaremos os autores e descreveremos algumas informações,trazidas por eles em suas memórias, acerca das ações armadas na região metropolitana de PortoAlegre, para que tenhamos noção de qual esquerda e de qual luta armada estamos trabalhando a partirdesses dois livros de memória.Jorge Fischer Nunes, autor de Riso dos torturados 6 , ligado, portanto à luta armada contra oregime militar, em sua obra, além dos recortes que serão explorados e desenvolvidos nesse trabalho,denuncia policiais, militares, autoridades públicas, delatores. Também faz um relato dos períodos em queesteve preso, das torturas e das vivencias nos locais por onde passou. Preso em 1969, e falecido nasegunda metade da década de oitenta, Nunes está presente no rol dos militantes de esquerdaindenizados pelo Estado 7 .Índio Vargas, autor de Guerra é guerra, dizia o torturador 8 , militante ligado ao nacionalismo deesquerda (PTB), narra em sua obra, as experiências políticas vinculadas tanto a Brizola 9 quanto a suaparticipação indireta em ações armadas na região metropolitana de Porto Alegre, que o levariam à torturano Rio Grande do Sul, após sua prisão em 1970, quando foi para a Ilha do Presídio. Assim como Fischer,também foi indenizado pelo Estado nos termos da Lei n.º 11.042/97, completada pela Lei n.º 11.815/02 10 .No ano de 1969, os memorialistas decidiram-se pela luta armada como estratégia de luta paraderrubar a ditadura militar. Os papéis destinados aos autores foram diferenciados. Enquanto Nunesparticiparia direta e ativamente nas atividades das ações armadas, Vargas prestaria apoio logístico45678910HALLBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.NUNES, Jorge Fischer. O riso dos torturados Porto Alegre: PROLETRA, 1982.Informações encontradas em Acervo da Luta contra a Ditadura. Disponível em:http://www.acervoditadura.rs.gov.br/indenizacao.htm Acesso em fev/2013.VARGAS, Índio. Guerra é guerra, dizia o torturador. Rio de Janeiro: CODECRI, 1982.Vargas chegou a ser eleito vereador pela cidade de Porto Alegre durante a Ditadura, tendo seu mandatocassado após vinte dias de sua posse. Em 1979, junto a outros tantos trabalhistas no exílio, assinou a “carta deLisboa” que fundou o Partido Democrático Trabalhista – PDT. Disponível emhttp://www.sul21.com.br/jornal/2011/06/indio-vargas-a-violencia-maior-com-um-preso-e-o-choque-eletrico/ .Acesso em fev/2013.Informações encontradas em Acervo da Luta contra a Ditadura. Disponível em:http://www.acervoditadura.rs.gov.br/indenizacao.htm Acesso em fev/2013.95


como, por exemplo, garantir aparelhos necessários às reuniões, aos militantes clandestinos, aospossíveis sequestros. Nesse mesmo período, teria ocorrido a formação da organização M3-G, sob aliderança de Edmur – militante anteriormente ligado ao Marighela – da qual Nunes era militante orgânicoe Vargas prestava apoio logístico.Desde os primeiros contatos para formar uma organização de luta armada no estado até osmomentos em que os autores caracterizaram as ações em seus detalhes, fica evidente certo otimismoque não encontrava apoio na restrita amplitude das ações, que eram colocadas em prática por umaorganização precária e deficiente 11 . Tratou-se de algumas expropriações bancárias que, longe depatrocinarem a luta direta contra a ditadura, eram destinadas à sobrevivência dos militantes que jáestavam vivendo na clandestinidade. A existência dessa organização não teria durado por muito mais deum ano. Logo após a tentativa de vinculá-la a outras organizações de nível nacional, com maioresrecursos nacionais e humanos, os integrantes do M3-G, começaram a ser identificados, procurados,presos e torturados pelos órgãos de repressão da ditadura 12 .Procuramos, portanto, localizar a militância de Fischer e de Vargas, para entendermos um poucomelhor quem são e o que fizeram os sujeitos que reivindicavam referenciais, parte de uma memóriacoletiva e política da esquerda, que justificassem a luta pela qual optaram.Referências da esquerda presentes nessas memóriasNessa parte do texto, faremos um recorte das obras de Fischer e de Vargas que nos aproximemda possibilidade de identificarmos e de compreendermos quais os referenciais reivindicados pelaesquerda, enquanto construções da resistência no período e enquanto construtores das memóriasdesses militantes.Olívio (nome suposto) era um jovem militante de pouco mais de dezoito anos. Umbrancaleone. Guri com cara de guri, mas com coragem para dar e vender. 13[Edmur] Maneiras polidas, palavra fluente, linguagem característica de um homem deesquerda, entremeando a terminologia dos novos marxismos com o jargão do velhoPartido Comunista. 14Discutíamos [Fischer e Djalma] muito os casos Marighella e Lamarca. O ex-deputadofederal Carlos Marighella, constituinte em 1945 e que, após o golpe, se recusava apermanecer como figura decorativa em um Parlamento amordaçado. Marighella caíra naclandestinidade, organizando rapidamente o grupo de resistência armada Aliança deLibertação Nacional. [...] Lamarca havia desertado do Exército, levando consigo doiscaminhões repletos de armamentos e construído a VPR – Vanguarda PopularRevolucionária, um braço armado contra a ditadura. 15Guevara poderia ter tranquilamente assumido este papel [revolucionário de gabinete,envolvido apenas por suas teorias]. Pertencia à classe média, era um profissionalliberal. Preferiu, no entanto, unir-se ao proletariado. Rompeu todos os laços ideológicos16que o prendiam à sua classe, assumiu a ideologia do proletariado.Edmur continuava imperturbável quando respondeu que a revolução é uma chama quese alastra em proporções geométricas, e que logo seríamos dez, depois vinte, depoiscem. Eu já havia lido qualquer coisa parecida em algum livro de Mao, mas resolvi ficarde bico fechado. A matemática revolucionária nem sempre apresenta alto grau deconfiabilidade. 17Olívio, assim como seus outros companheiros de militância no Colégio Júlio de Castilho,11121314151617Quase todas as ações de assaltos a banco eram cercadas de falhas. O assalto ao banco de Cachoeirinhaexemplifica tais deficiências.IN: NUNES, op cit., 1982.p. 51; VARGAS, op cit., 1982. p.50. Detalhes desseassalto aparecem também no livro de memórias de Garcia e Posenato. GARCIA, J.C. Bona; POSENATO, Júlio.Verás que um filho teu não foge à luta. Porto Alegre: Posenato Arte e Cultura, 1989. p. 29. Outra demonstraçãoda debilidade das organizações armadas da esquerda no estado do Rio Grande do Sul foi a tentativa frustradade sequestro do cônsul norte-americano. Essa ação é identificada pelos autores, embora não tenhamparticipado dela, como sendo a grande responsável pela intensificação da repressão no estado. A partir dela, osmilitantes da esquerda radical foram sendo presos um por um, inclusive Edmur, Vargas e Fischer. IN: NUNES,op cit., 1982.p.57; VARGAS, op cit., 1982. p.52.NUNES, op cit., 1982. p.54-57NUNES, op cit., 1982. p.77VARGAS, op cit., 1982. p.40NUNES, op cit., 1982. p.41Idem, p.138Idem, p.4596


ecebera o nome de brancaleone. 18 A idéia de imaturidade para a luta e das sucessivas trapalhadasdurante as ações lhes renderam tal designação. Entretanto, como sugere Fischer, apesar da poucaidade, esses militantes se opuseram ao regime militar, enfrentando uma opressão disposta a abafarquaisquer sussurros de descontentamento, mais ainda quando viessem de um grupo minimamenteorganizado.Ao destacar as características de um novo marxismo presente naqueles que pegaram em armaspara derrubar a ditadura militar, Vargas nos apresenta Edmur. Já no primeiro contato que teve com oentão futuro dirigente do M3-G, o autor de Guerra é guerra, dizia do torturador nos remete a diversas dascaracterísticas daqueles militantes dos anos de luta armada: uma disponibilidade intelectual aliada ànecessidade de ação imediata.Marighela e Lamarca são os grandes referenciais do período no Brasil. Tanto a Aliança deLibertação Nacional como a Vanguarda Popular Revolucionária representaram os maiores quadros daluta armada nos anos de chumbo, ficando o nome de seus dirigentes registrados em diversas produções,dentre elas as memórias analisadas nesse trabalho.Che Guevara, um dos líderes da Revolução Cubana, e Mao, líder da Revolução Chinesa, sãoamplamente rememorados. Os referencias extrapolam os limites nacionais, estando neles presentesguerrilheiros admirados por uma parcela da esquerda brasileira daquele período. Isso porque essespersonagens construíram e refletiram a ideia da violência revolucionária justa que seria reivindicadapelos militantes que optaram pela luta armada.Muitas são as vitrines da esquerda durante os anos da repressão no país. Os exemplos vãodesde militantes inseridos em lutas mais localizadas, como o caso dos brancaleones, passando pordirigentes de organizações que optaram pela luta armada como Edmur, Marighela e Lamarca, chegandoaos modelos internacionais como Che Guevara e Mão-Tsé-Tung.O apoio de parcela de membros da Igreja progressista, sobretudo de Frei Betto e Frei Tito, ocaso do cabo Anselmo, os episódios dos sequestros de diplomatas e as críticas lançadas ao PartidoComunista Brasileiro formam um outro conjunto de lembranças recorrentes nessas obras:[...] a guerrilha urbana parecia prosperar. No Rio, em São Paulo e em Minas apoiava-seo tripé da luta armada contra a ditadura. Nem o clero se omitia: frei Beto e um punhadode padres da Igreja progressista alinhavam-se ao lado da vanguarda.[Marujo] contou-me a sua história. Servia na Marinha de Guerra quando o cabo Anselmoliderou a famosa “rebelião dos marinheiros”. Além de apoiar o governo João Goulart,Anselmo levantava reivindicações específicas, muito sentidas pelos marinheiros, taiscomo o direito da casar. Como ficou provado mais tarde, o célebre cabo era um espião“infiltrado” no movimento popular. Após o golpe, quando ninguém suspeitava ainda deque ele fosse espião, infiltrou-se em algumas organizações vanguardistas, entregandoinúmeros quadros que terminaram sendo assassinados pelos homens do DOI-CODI, daOBAN, do Cenimar. 19A única dessas ações [armadas], aliás, realizada em São Paulo no dia 10 daquele mêsde março [1970], foi o sequestro do cônsul japonês, cujo objetivo principal era alibertação de Chizuo Sava, conhecido como Mário Japa, que estava preso na OperaçãoBandeirantes e sendo submetido a todo tipo de tortura para abrir o esquema da VPR.Mário Japa e mais quatro pessoas foram trocadas pelo cônsul do Japão, predominandoa rapidez nas negociações entre os sequestradores e o Governo brasileiro. 20[Marighela] Destacou que os erros do Partido Comunista vinham-se acumulando desde1961, quando da renúncia de Jânio Quadros, e que se alguma participação teve naresistência para impedir que a direita tomasse o poder naquela época e impedisse aposse do vice-presidente João Goulart, foi porque aliou-se, com outras organizaçõesdemocráticas, ao então governador Brizola e ao Partido Trabalhista Brasileiro. Maistarde – no período de Jango o PCB insistia nos apelos à greve política, sem apoio doscamponeses. A debilidade do movimento camponês era a falha principal. Havia umarecusa sistemática em dar prioridade ao trabalho do campo, e sem a mobilização docampo seria impossível o avanço da revolução. 2118192021O nome de Brancaleones foi dado por Flávio Koutzi àqueles militantes que nasceram do movimento estudantildo Colégio Júlio de Castilho. Encontramos uma série de informações sobre o movimento estudantil dessa escolano período da ditadura militar na obra de Gutiérrez. IN: GUTIÉRREZ, Cláudio. A guerrilha brancaleone. PortoAlegre: Proletra, 1999.NUNES, op cit.,1982. p.190VARGAS, Índio. op cit., 1982. p.50Idem, p.20-2197


O apoio de Frei Betto e de muitos membros da Igreja Progressista são registros recorrentes nasobras de militantes, ainda mais devido ao apoio à ALN e a forte ligação com Marighela, um dos inimigosmais odiados pelos militares e mais queridos pela repressão. 22Durante conversa com um companheiro na Penitenciaria Estadual do Partenon, Fischer relembrao caso “Cabo Anselmo”, que durante algum tempo também foi visto como um companheiro de luta e,também por tal motivo, foi marcado nas páginas dos livros como o grande delator. Infiltrado em algumasorganizações, serviu de informante para as forças da repressão que por meio de suas declaraçõesmapeou organizações, chegando a um grande número de militantes que foram presos, torturados eassassinados.As tentativas e os sequestros bem-sucedidos ocupam lugares privilegiados nas memórias, sejapor estarem carregados de ações, aspecto tão valorizado por parcela da esquerda atuante do período,seja pelo desfecho, ora trágico, ora bem-sucedido como no caso do sequestro do cônsul japonês quepermitiu a libertação de prisioneiros que estavam sendo torturados como o caso de Mário Japa.Marighela se tornou uma figura conhecida e reconhecida não somente pela sua oposiçãoenfática ao regime militar, mas também pelas severas críticas que esse personagem fez ao PartidoComunista. 23 Elas exemplificam bem os debates que resultaram nas inúmeras dissidências ocorridasdurante a década de sessenta e que fazem parte da memória coletiva das esquerdas. 24Nas mais diversas passagens das memórias de Fischer e de Vargas, encontramos inúmerasalusões do que este trabalho pretende demonstrar como fazendo parte de uma memória coletiva,conforme Hallbwachs 25 , da ditadura militar, que por terem sido vivenciadas por um grande número deindivíduos e por estarem presentes nos mais diversos discursos sobre o período – memórias, romances,ficção, trabalhos acadêmico-científico – compõem um quadro de lembranças e informações de fácilacesso à memória daqueles que viveram e principalmente daqueles que lutaram no período. Essesnomes citados anteriormente, portanto, fazem parte de uma memória coletiva do período da ditadura. 26Na obra de Colling, alguns desses referenciais perpassam diversos depoimentos. CarlosMarighela à frente da ALN, Carlos Lamarca à frente da VPR, Che Guevara, Mão-Tsé-Tung, inserem-sedentro dos modelos capazes de superar o poder estabelecido. 27 Também nas memórias de Garcia ePosenato, a figura de Lamarca é percebida com certa admiração pela sua história. Segundo os autoresos fuzis que trouxe com sua deserção do exército, serviram para fazer muitas ações e dar muito susto noRegime. 28A luta armada, a violência revolucionária, a valorização da ação são outros aspectos presentesnas obras desses dois militantes que compõem a memória coletiva sobre o período da ditadura.Marighella falou da sua divergência quanto à orientação do Comitê Central do PartidoComunista Brasileiro, do qual era um dos membros. Segundo percebi, no curso daconversa, a sua ruptura com a orientação partidária fora determinada pela opção quefizera, depois do golpe de abril de 1964, pela luta armada, única alternativa das massasbrasileiras, apesar de sua desorganização. 292223242526272829Informações sobre as ligações entre a Igreja Progressista e a ALN são encontradas nas memórias de Frei Betto.BETTO, Frei. Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 1982.Segundo Reis Filho e Ferreira, uma das grandes acusações que se fazia ao PCB era a de imobilismo. Osgrupos e organizações dissidentes que se formavam desejavam agir de forma imediata e qualquer retardamentoda ação era visto como um ato de covardia. IN: REIS FILHO, Daniel Aarão & SÁ, Jair Ferreira de. Imagens darevolução; documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. Rio deJaneiro: Marco Zero, 1985. P.41Sobre as organizações de esquerda após 1964 – cisões, pontos em comum e divergências – ver RIDENTE,Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 1993; REIS FILHO, Daniel Aarão. Arevolução faltou ao encontro. Os comunistas no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.Segundo o autor, “[...] se passa a falar de memória coletiva quando evocamos um acontecimento que teve lugarna vida de nosso grupo e que considerávamos; e que consideramos ainda agora, no momento em que noslembramos, do ponto de vista desse grupo.” IN: HALLBWACHS, Maurice. op cit., 1990, p. 36Mesmo que memórias como, por exemplo, de um militante brancaleone esteja presente em poucas obras, queseja revisitada, principalmente, por militantes que atuaram nas proximidades de Porto Alegre, ela não deixa deestar inserida dentro de uma memória sobre a militância estudantil do período, tão bem reprimida. Dados sobrea repressão aos estudantes podem ser encontrados na obra Brasil Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985.COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à Ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1997. p.30. A autora,ao estudar a resistência da mulher à Ditadura Militar no Brasil levanta importantes referenciais da esquerdadaquele momento, principalmente do momento em que diversos militantes optaram pela luta armada, dentreeles, as militantes pesquisadas por ela.GARCIA, J.C. Bona; POSENATO, Júlio. op cit., p.32. Os autores que militaram no POC e posteriormente naVPR, rememoram suas ações, suas práticas com um alto grau de autocrítica.VARGAS, op cit., 1982. p.2098


[...] digamos que o ódio, para o revolucionário, se traduz em termos de assunção daideologia do proletariado. E esta ideologia é essencialmente revolucionária. [...] aviolência revolucionária é sempre uma resposta à violência reacionária; segundo, dafrase de Marx: “A violência é a parteira da História”. 30A partir daí, intensificaram-se as ações policias. Afinal de contas, não era um cidadãocomum que havia sido alvejado, e sim o cônsul da metrópole. A colônia precisava, aqualquer custo, apresentar os culpados. As buscas tornaram-se intensas, o DOPSrecebeu elementos do DOI-CODI (ou OBAN) para dirigir as operações, o major ÁtilaRoszester mandava prender qualquer suspeito e torturar. De vinte elementos torturados,um deveria ter qualquer informação, por mínima que fosse capaz de auxiliar nainvestigação. O mesmo processo utilizado pelos paraquedistas franceses na Argélia:”torturem cem. Um saberá de alguma coisa” – e dê-lhe a queimar criaturas humanas abico de maçarico. 31Ao encontrar Marighella, Vargas ficou sabendo de sua divergência quanto à orientação do comitêCentral do PCB e da sua opção pelo combate armado como meio para derrubar a violência imposta apartir de 1964.Nunes ao travar uma série de críticas àqueles que ele chamou de “revolucionários de gabinete”,ou seja, revolucionários muito mais interessados na teoria e pouco dispostos a praticá-la, lança mão dejustificativas, também teóricas, que embasem a violência revolucionária 32 . Também o autor, ao relembrara tentativa de sequestro do cônsul norte-americano em Porto Alegre e a intensificação da repressão, nosapresenta exemplos internacionais, como o caso da Argélia, que expliquem a validade da violênciarevolucionária no enfrentamento à violência de um regime opressor. 33 Para isso, traz em suas páginasum referencial difundido não somente entre a esquerda brasileira, mas também, por exemplo, aesquerda europeia: a luta contra o colonialismo na África e um de seus maiores expoentes, a luta dosargelinos contra os colonizadores franceses.A partir dessas rememorações, propõe-se que uma das grandes características da esquerda dadécada de sessenta é o desprezo por intermináveis discussões teóricas e a valorização da açãoimediata. Nesse sentido, a luta armada surgia como a grande ferramenta a ser utilizada no combate àopressão, à ditadura. Era tida muito mais do que uma possibilidade de atuação, era tida como o únicomeio de lutar pelo fim de um regime que fechava, principalmente após a edição do Ato Institucionalnúmero cinco de 1968, as portas para qualquer tipo de participação que se opusesse aos seusobjetivos. 34Para a legitimação da luta armada, muitos exemplos foram reivindicados como forma delegitimar a violência revolucionária, a violência “justa”. Segundo Hannah Arendt, a violência “justa”, aviolência do oprimido contra o opressor não se tratava apenas do enaltecimento teórico referente aodireito de defesa de um território invadido ou ocupado como seria o caso do Vietnã e da Argélia, e sim, apartir de tais exemplos e experiências, construir-se-ia uma justificativa teórica para a violência em si –posição amplamente criticada pela autora. 35 Para Araújo: “ela não seria apenas um recurso extremadode defesa, mas um ato valorizado em si próprio – um gesto construtor de identidade, um ato libertador”. 36Os exemplos de caminhos para um amanhã possível são referências indispensáveis. Nessesentido, modelos revolucionários como aqueles propostos por Cuba, Vietnã, China, Argéliadesempenharão um papel de coesão fundamental para aqueles que acreditam na conquista de umanova organização social. Segundo Reis filho:As peripécias do “momento atual” poderão ser desfavoráveis, a realidade poderá sermadrasta, mas o futuro será luminoso. As revoluções vitoriosas provam que o sacrifícionão será vão. Asseguram os militantes na prática e os seguram dentro dasorganizações. Em muitos momentos, desempenharão papel decisivo do que a30313233343536NUNES, op cit.,1982. p.138NUNES, idem, p.57Nunes defendeu a ideia de que mesmo não se tratando de uma experiência vitoriosa, ela contribui para acirraras contradições que levariam à abertura do regime, ainda que tímida no momento da rememoração. IN: NUNES,op cit. p. 10Algo semelhante acontecerá com o sequestro do embaixador pela ANL, que intensificou drasticamente arepressão. IN: GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. 5ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1999. p. 169Há que se lembrar que se por um lado existiam grupos dispostos a pegar em armas, existiam gruposprofundamente contrários a essa concepção como, por exemplo, o Partido Comunista Brasileiro. IN: ARAUJO,Maria Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970.Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. op cit., 2000.ARENDT apud ARAUJO, 2000. p.39.ARAUJO, op cit, 2000, p. 39.99


adequação deste ou daquele programa estratégico ou tático. 37Segundo Tavares, a “globalização” naqueles anos era o exemplo do Vietnã em armas quedesafiava a maior potência militar do mundo, era também a Revolução Cubana em território sobinfluência dos Estados Unidos; era também a figura de Che que aos sair de Cuba foi lutar na África e,mais tarde, na Bolívia. Enfim, segundo o autor a capacidade de indignar-se invadia o globo. 38 Gutiérrezfará referência a Declaração de Havana e a carta de despedida do Che Guevara, lida por Fidel durante aConferência de OLAS como elementos explosivos para aqueles que estavam militando e acreditando napossibilidade de mudanças. 39 A mesma menção dessa Conferência e da influência da figura de CheGuevara, sobretudo após sua morte, aparece nas memórias de Garcia e Posenato. 40Também Rollemberg visualiza em Cuba uma grande referência para muitos que se sentiramfascinados e atraídos por um exemplo concretizado de uma vanguarda que revolucionaria todo um país,além dos acontecimentos na Argélia. 41Segundo Maria Paula Araujo, com o duplo impacto da valorização teórica da violência e dorecrudescimento das guerras anticoloniais na África e na Ásia, parte da esquerda ocidental, nos anossessenta, passou a conceber práticas políticas cada vez mais embasadas na afirmação teórica e naprática da violência. Na América Latina, isso foi expresso pela proliferação de opções de luta armadarural e/ou urbana, que é o caso no qual se inserem os militantes cujas memórias são aqui estudadas. 42A valorização da ação e, por conseguinte, da luta armada também é evidenciada na obra de ReisFilho e Jair Ferreira. Em sua caracterização da esquerda dissidente no Brasil – que em grande parteoptou pela luta armada nos anos sessenta –, destacam também essa sedução pela ação imediata e pelopragmatismo, que representavam expressões maiores de organização, em detrimento dos partidos. 43Portanto, tentamos demonstrar como referenciais, sejam eles indivíduos sejam fatos ocorridos,que representavam a concepção de violência justa reivindicada pela luta armada também compuseramuma memória coletiva do período. Na rememoração de Vargas e de Nunes desses referenciaispertencentes a uma memória coletiva, também, sugerimos que atuava uma memória política 44 . Em Oriso dos torturados, por exemplo, não precisamos recorrer a interpretações das entrelinhas parapercebermos sua validação daquilo que foi chamado de violência justa, mesmo que, como vimosanteriormente, o autor tenha tecido críticas a maneira desorganizada como havia sido implementada. Jáem Guerra é guerra, dizia o torturador, o autor nos pareceu mais distanciado e menos comprometidocom uma análise valorativa dessa violência, prevalecendo muito mais uma memória coletiva nos seusrelatos, que uma memória política no sentido trazido.No contexto dessas reivindicações de referenciais que permeavam todo um período,defendemos a ideia de que essas obras compõem um quadro da memória coletiva, e que foram por eleinfluenciadas. Além disso, que essas memórias, e não poderia ser diferente uma vez que são narrativasde militantes políticos, são imbuídas de valorações, fazendo que uma memória política atue e dêpareceres sobre a memória coletiva, conforme os posicionamentos e atuações políticas dos autores.ConclusãoA partir da decretação do AI-5, o embate entre os grupos de esquerda e o governo militar foramcaracterizados pela opção de luta armada por muitos militantes que formaram diversas organizaçõesradicais e executaram diversas ações que, na visão deles, pudessem abalar a ditadura militar. Essemomento começou a ser explorado pelos memorialistas já no final dos anos setenta com o período de3738394041424344REIS F., Daniel Aarão. op cit., 1990. p.95TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. São Paulo: Globo, 1999. p. 188-189.GUTIÉRREZ, op cit, 1999, p. 42GARCIA, J.C. Bona; POSENATO, Júlio. op cit., p.31ROLLEMBERG, Denise. Nômades, sedentários e metamorfoses: trajetórias de vidas no exílio. IN: REIS, DanielAarão; RIDENTI, Marcelo & SÁ MOTTA, Rodrigo Patto (org). O golpe e a ditadura militar quarenta anos depois(1964 – 2004). . Bauru (SP): Edusc, 2004, p.287-288. Nesse artigo, a autora explora o tema das trajetóriasindividuais no exílio. Segundo ela, na primeira fase do exílio, que inicia em 1964, a Revolução Cubana seriasímbolo para os exilados, bem como o apoio do governo da Argélia àqueles que tiveram de deixar o Brasil.ARAUJO op cit., p.41REIS FILHO, Daniel Aarão & SÁ, Jair Ferreira de. Imagens da revolução; documentos políticos dasorganizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985. Nesse livroencontramos inúmeras informações sobre organizações clandestinas que optaram pela luta armada.Essa “memória política”, que atuaria sobre a construção dos conteúdos e marcaria substantivamente as análisespolíticas realizadas por parte de seus autores. Segundo Ecléa Bosi, “Na memória política, os juízos de valorintervêm com mais insistência. O sujeito não se contenta em narrar como testemunha histórica “neutra”. Elequer também julgar, marcando bem o lado em que estava naquela altura da História, e reafirmando sua posiçãoou matizando-a”. IN: BOSI, Ecléa. op cit,. p. 371-376.100


distensão do Governo Geisel. Desde então, memórias antes “subterrâneas” 45 começaram a serpublicadas, dando, inclusive, continuidade a luta pela redemocratização do país. 46Nesse trabalho, buscamos analisar duas obras de memórias de militantes que se opuseram aoregime militar por meio da adesão a luta armada, que foi caracterizada, no Rio Grande do Sul, como umconjunto de expropriações que visavam levantar fundo para a construção da resistência que derrubaria aditadura militar e construiria uma nova forma de organização social.Caracterizadas as ações armadas, levantamos a existência de referenciais comuns sendoreivindicados por aqueles que aderiram tais ações, tentando inseri-los dentro de um quadro mais geralem um período em que diversos grupos estavam reavaliando seus posicionamentos durante os anos deforte repressão (1968-1974) 47 . Esse quadro mais geral foi nomeado nesse trabalho de memória coletiva,uma vez que entendemos que o conceito de Hallbwacs ajudou-nos a compreender a construção damemória desses autores, a partir da ideia de que existiria uma memória mais ampla dos gruposopositores do regime.No entanto, um sentido valorativo forte foi atribuído pelos autores a diversas situaçõesrememoradas por eles. Por isso, entendemos e procuramos demonstrar a atuação de uma memóriapolítica nos seus relatos, nas considerações sobre opção pela luta armada e os referenciais que adefendiam. Para explorarmos melhor essa intervenção de juízos de valores sobre o conteúdo que estásendo rememorado, achamos que o conceito de memória política de Bosi tenha sido uma importanteferramenta para compreendermos as diferentes leituras sobre o período da luta armada, que se davamconforme posicionamentos políticos mais delimitados.Tentamos elencar alguns personagens e alguns episódios que foram tomados como referenciaispara uma parcela da esquerda. Nesse momento, o conceito de violência justa Arendt, bem como o dememória política de Bosi, nos ajudou a perceber a valorização de indivíduos e de fatos históricosreivindicados por esses autores não apenas com sentimento de admiração, mas também como formasde justificar e legitimar as lutas que haviam empreendido contra um regime arbitrário.Por fim, gostaríamos de enfatizar novamente que as memórias de militantes que atuaram noestado do Rio Grande do Sul possuem um potencial bastante grande de fonte histórica sobre um períodoque vem sendo recentemente explorado nos seus aspectos regionais. Nesse sentido, os livros de cunhomemorialísticos nos fornecem muitas pistas para que cheguemos a outras fontes que venham a servir,futuramente, para a construção de um conhecimento mais profundo sobre o período no estado.Referências Bibliográficas:ARAUJO, Maria Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo nadécada de 1970. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.Brasil Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985.COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à Ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1997.CARDOSO, Lucileide Costa. Construindo a memória do regime de 64. São Paulo, Revista Brasileira deHistória, v. 14, n. 27, p. 179-203, 1994.GARCIA, J.C. Bona; POSENATO, Júlio. Verás que um filho teu não foge à luta. Porto Alegre: PosenatoArte e Cultura, 1989.GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. 5ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1999.GUTIÉRREZ, Cláudio. A guerrilha brancaleone. Porto Alegre: Proletra, 1999.HALLBWACS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra da memória. A ditadura militar nos depoimentos de militantes emilitares. Belo Horizonte, Varia História, n. 28, p. 178-200, dez. 2002.454647POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, 1989.MARTINS FILHO, op cit., 2002.As críticas e autocríticas já haviam começado dentro das organizações, mas é, sobretudo, no momento deabertura política e do final da ditadura que elas são mais amplamente divulgadas como nesse caso nos livros dememórias. Entretanto, segundo Gorender: “o avanço mais significativo do ponto de vista teórico partiu da AlaVermelha, na sua Resolução intitulada Autocrítica, 1967-1974.” Essa resolução teria o mérito de ser o primeirodocumento da esquerda armada que apontou graves erros cometidos pela organização. Ver GORENDER opcit., 1999. p. 204-205101


NUNES, Jorge Fischer. O riso dos torturados Porto Alegre: PROLETRA, 1982.POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV,1989.REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. Os comunistas no Brasil. São Paulo: EditoraBrasiliense, 1990. 200p.REIS FILHO, Daniel Aarão & SÁ, Jair Ferreira de. Imagens da revolução; documentos políticos dasorganizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.RIDENTI, Marcelo. O fantasma da Revolução Brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 1993. 285p.ROLLEMBERG, Denise. Nômades, sedentários e metamorfoses: trajetórias de vidas no exílio. IN: REIS,Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo & SÁ MOTTA, Rodrigo Patto (org). O golpe e a ditadura militar quarentaanos depois (1964 – 2004). . Bauru (SP): Edusc, 2004, p.287-288.TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. São Paulo: Globo, 1999.VARGAS, Índio. Guerra é guerra, dizia o torturador. Rio de Janeiro: CODECRI, 1982.102


A coleção “1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e sua história” e a narrativapositiva da ditadura pelo exército 1 Eduardo dos Santos Chaves 2Resumo: No presente texto pretendo analisar a coleção “1964 – 31 de março: o movimentorevolucionário e a sua história”, publicada pela Editora da Biblioteca do Exército, a Bibliex, entre 2003 e2004, a partir de duas questões que considero importantes na construção da narrativa sobre a ditadurapelo exército: 1) como procuraram narrar e justificar os erros da “Revolução de 1964”; e 2) de que formaentrevistados e entrevistadores entendem a derrota das Forças Armadas na “batalha” pela memória doregime. Cabe destacar que além dessas questões, outras também foram feitas com propósitos dejustiçar a intervenção em março de 1964 e a própria ditadura civil-militar que perdurou até 1985.Palavras-chave: ditadura civil-militar – exército – direitas – memórias – história oral.Abstract: In this paper I analyze the collection "1964 – March 31: the revolutionary movement and itshistory", published by Library Army, the Bibliex between 2003 and 2004 from two issues that I think areimportant in the construction of narrative over dictatorship by the army: 1) how to narrate and sought tojustify the errors of the "Revolution of 1964", and 2) how interviewees and interviewers understand thedefeat of the Armed Forces in the "battle" for the memory of the system. It is noteworthy that in addition tothese issues, were also made with other purposes Justify intervention in March 1964 and the very civilmilitarydictatorship that lasted until 1985.Keywords: civil-military dictatorship – army – right – memories – oral history.IntroduçãoNão é novidade a disputa pela memória da ditadura civil militar 3 . Nessa batalha pela hegemoniade uma memória que se quer como “verdadeira”, o período compreendido entre 1964 e 1985 revela-sediferente para ambos os grupos. Para as esquerdas, além de procurarem saber onde se encontram oscorpos de desaparecidos políticos e insistirem, em alguns casos, na punição de militares envolvidos narepressão, a luta também é em relação à verdade, na qual não aceitarão as “falsificações da história” 4 .Para as Forças Armadas e, particularmente, para o Exército, a verdade dos fatos vem sendo distorcidapor uma parcela de intelectuais que reescrevem a história, falsificada a seu talante 5 .O revanchismo, nesse caso, constitui-se em uma arma na mão de assaltantes, sequestradores,terroristas, desertores, agora, regiamente abonados 6 . Conforme Jarbas Passarinho, os militares “sãoquase mortos-vivos a sofrer o revanchismo dos que, derrotados pelas armas, são vitoriosos pela versãoque destrói os fatos” 7 .O Exército, frente a essa disputa de memórias, produziu a sua “versão” dos fatos, procurandofazer uma avaliação positiva do golpe de 1964 e da ditadura civil-militar. O resultado dessa disputaconstituiu-se de 15 tomos, contabilizando 247 entrevistas com militares e civis que atuaram, colaborarame/ou tiveram alguma participação no regime dos cinco generais presidentes. Com o título “1964 – 31 demarço: o movimento revolucionário e a sua história”, a coleção foi publicada pela Editora da Biblioteca doExército, a Bibliex, entre 2003 e 2004, nas vésperas dos 40 anos do golpe civil-militar de 1964 8 . As12345678Parte deste trabalho é resultado da minha dissertação de mestrado defendida em 2011 pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/UNISINOS, sob o título “Do outro lado dacolina: a narrativa do Exército sobre a ditadura civil-militar”.Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul(PPGH/UFRGS).Em relação às discussões sobre as batalhas de memórias, ver: MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra dememória. A ditadura militar nos depoimentos de militantes e militares. Varia História, UFMG, n.28, dez. 2002.TOLEDO, Caio Navarro de. Crônica política sobre um documento contra a “Ditabranda”. Revista de Sociologia,Curitiba, v.17, n.34, p.209-217, out. 2009.MOTTA, Aricildes de Moraes (Coordenação Geral). 1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e suahistória. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2003. 15 tomos. (Apresentação a todos os tomos)MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 1, p. 27.Ibid., p. 27.A coleção parece ter antecipado às discussões que ocorreram no meio acadêmico, a partir de seminários,103


entrevistas realizadas pelo Exército procuraram levantar um número significativo de militares e civis devárias regiões do país que, conforme seus organizadores, contribuiriam para com a “verdade” dosacontecimentos.No presente texto pretendo analisar duas questões que considero importantes na construção danarrativa sobre a ditadura pelo exército: 1) como procuraram narrar e justificar os erros da “Revolução de1964”; e 2) de que forma entrevistados e entrevistadores entendem a derrota das Forças Armadas na“batalha” pela memória do regime. Cabe destacar que além dessas questões, outras também foramfeitas com propósitos de justiçar a intervenção em março de 1964 e a própria ditadura civil-militar queperdurou até 1985. Nas entrevistas fica claro que entrevistadores e entrevistados parecem estar deacordo com o que deve ser dito a respeito do período.“Os fins justificam os meios”: os “erros” da “Revolução”A coleção, além de apontar os inúmeros benefícios trazidos pela Revolução, como forma deavaliar positivamente os vinte anos de Regime Militar, procurou, também, apontar alguns dos erroscometidos pelos “governos revolucionários”. O propósito com esse questionamento é o de reafirmar que,se houve excessos, estes foram pequenos comparados aos importantes avanços alcançados pelagloriosa “Revolução”. Conforme o General de Exército Ivan de Souza Mendes 9 , “não digo que aRevolução não tenha cometido erros, pois todos somos passíveis de cometê-los [...]. A Revoluçãocometeu alguns erros, mas esses foram irrelevantes em relação aos seus acertos”. Os erros surgemcomo naturais do homem, principalmente, quando se tem que administrar “[...] um País extenso, como éo Brasil, com enorme população [...]”, apontou o General Ferdinando de Carvalho 10 .Os principais erros cometidos, segundo significativa parte dos depoimentos, referem-se àcensura dos meios de comunicação, aos excessos com torturas e perseguições políticas quedesembocaram em exílios ou no desaparecimento de presos políticos, além de outros relacionados aosdescuidos com o sistema de ensino, hoje dominado pelos “revanchistas”, o surgimento dos inúmerospartidos políticos, desligados da “Revolução”, o descuido em não registrar as “dádivas” da “Revolução” eos problemas relacionados à “longevidade” dos “governos revolucionários”.A censura foi apresentada em muitos dos depoimentos como um dos principais erros da“Revolução”. Segundo o General Alacayr Frederico Werner 11 , “toda revolução comete erros e, para mim,o maior deles é silenciar as vozes discordantes. Na Revolução Francesa, a Revolução Comunista, emoutras tantas, no mundo, o silenciar significa matar”.No entanto, da mesma forma em que é destacada como um erro cometido, logo é justificada,como fez o Coronel Luís de Alencar Araripe:Durante os governos dos presidentes militares houve cerceamento da liberdade, emgrau variável, isto é um fato. O cerceamento deve ser avaliado sob dois aspectos.Ninguém conduz uma guerra, principalmente contra a subversão, que envolvia, alémdos militantes engajados na luta armada, elementos de universidades, da imprensa, daIgreja etc., sem realizar um certo controle de opinião. Assim, foi e é em todos os paísesao enfrentarem a subversão 12 .A tortura, quando não explicada, surge como uma falha cometida. Quando justificada, pode figurar comoum “mal necessário”. O Coronel Mário Dias se diz totalmente contra a tortura e narra o seguinte:Eu entendo a tortura, apenas em alguns casos. Vou citar um acontecimento. O meuquartel dava segurança para todos os generais da área. Só aos capitães dava-se esseserviço. Para compensar, os capitães tinham o direito de fazer as refeições em casa.Certa vez, um capitão, de serviço foi atacado por três terroristas que atiraram nele. Porsorte, a bala atingiu de raspão a sua cabeça. Fui avisado e, imediatamente, corri para oMiguel Couto. Consegui uma equipe de neurologistas para operá-lo, mas eles passarama noite procurando fragmentos de ossos localizados no cérebro. Reconheço que essecompanheiro, com quem não tive contato, foi uma vítima daqueles terroristas cretinos.[...] Estou contando esse caso, para dizer que, naquele momento, senti ódio. Se umdaqueles camaradas aparecesse na minha frente, não sei o que faria [...] 13 .As perseguições políticas são apresentadas, assim como outros erros, como casos de excessospor parte do governo em resposta ao radicalismo da oposição. O General Sebastião José Ramos de910111213congressos e palestras, e nas organizações de esquerda, ligadas à Comissão Especial sobre Mortos eDesaparecidos Políticos.MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 36.Ibid., p. 159.MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit. t. 1, p. 74.MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit, t. 2, p. 247.Ibid., p. 315.104


Castro 14 lembra que “também uma certa dose de radicalismo promoveu cassações que de outra formanão seriam necessárias, radicalismo esse manifestado, tanto por parte de setores do Governo, como daOposição”. Ou seja, a cassação de mandatos era uma resposta ao mesmo tempo radical e coerente coma época. Os políticos da oposição “freavam” os avanços da “Revolução”, impedindo o “progresso” dopaís. Segundo as palavras do General Álvaro Nereu Klaus Calazans:É evidente que a escalada revolucionária foi a maneira de a Revolução e dos governosinstitucionalizados se armarem para fazer frente ao terrorismo. Não havia outraalternativa a não ser o fortalecimento do Poder, amparado em atos legais. Essa reaçãodeixa à mostra o caráter legalista dos governos da Revolução 15 .Os atos institucionais, sobretudo o AI-5, para alguns dos depoentes, foram desnecessários,embora entendessem as justificativas que, na época, haviam sido apresentadas. Ou seja, a edição deinstrumentos legais que deram ao presidente amplos poderes por tempo indefinido, é vista de maneiraambígua: percebe-se a edição do ato como desnecessário, mas, ao mesmo tempo, legítima, frente às“ameaças” provocadas pelas esquerdas organizadas, contrárias às arbitrariedades do regime 16 .De acordo com o General Hélio Ibiapina Lima 17 quando questionado sobre os “prejuízos” da“Revolução” para o país, afirma que a “nova republica” freou os avanços obtidos pelos “governosrevolucionários”, como a “[...] quantidade exagerada de partidos políticos” e a entrega do sistema deensino aos “contra-revolucionários”. Desse modo, os erros encontram-se no fato de a “Revolução” terliberado as conquistas obtidas com sacrifícios para que políticos voltados para o “revanchismo”eliminassem ou deturpassem todos esses benefícios. Assim, acredita Hélio Ibiapina Lima 18 que osistema educacional foi “[...] entregue aos opositores do Movimento revolucionário de 1964”, facilitandoque intelectuais de esquerda minassem o meio acadêmico.A educação deveria abranger toda a sociedade brasileira. Uma educação política, em que opovo prestigiasse os benefícios trazidos pela “Revolução”, pois, como ressaltou o Coronel HélioMendes 19 , “[...] as grandes realizações apregoadas pelos Governos da atualidade nada mais são que adestruição, a alienação ou o desvirtuamento dos acertos da Revolução de 1964”.Em relação ao surgimento de outros partidos políticos, após a abertura política, os depoentesafirmam que esse foi um erro bastante grave, pois possibilitou o enfraquecimento dos “legados” da“Revolução”. Os novos partidos não somente ignoravam os legados da “Revolução”, como procuraramestabelecer uma separação entre eles e a ditadura civil-militar. Eram cúmplices amantes que negavamqualquer aproximação com as arbitrariedades do período 20 .Não ter formado quadros políticos para ocupar estrategicamente as instituições democráticaspós-1985 foi outro erro considerado pelos depoimentos. Grande parte dos entrevistados, como o GeneralJosé Antônio Barbosa de Moraes 21 , avalia que os governantes já eram demasiadamente idosos, o quedificultou posteriormente. “Hoje, não temos ninguém daqueles tempos revolucionários, com prestígionacional, porque começamos com homens de bem, sérios, mas pessoas velhas”.A “Revolução” deveria ter criado um partido próprio, através do qual garantiria a sustentaçãopolítica do governo, bem como a formação de novas lideranças políticas, como destacou o Coronel HélioMendes 22 .Muitos consideram ainda como erro a duração do regime, vinte anos. Conforme considera oCoronel Luís de Alencar Araripe 23 , “houve um momento em que se poderia ter desmontado do tigre,durante o Governo Médici, época áurea da Revolução, em termos de prosperidade do País e prestígiopopular do Governo”.Para importante parte dos depoentes, teria sido melhor encerrar a “Revolução” no governo14151617181920212223MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 1, p. 131.MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 8, p. 301.É importante destacar que os atos institucionais anteriores tiveram características autoritárias, promovendo umaverdadeira “caça às bruxas”, como apontou Samantha Viz Quadrat. Conforme destaca a historiadora, somente oAto Institucional nº1, o AI-1, “[...] suspendeu temporariamente a imunidade parlamentar, deu autonomia ao PoderExecutivo nas questões econômicas e suspendeu os direitos políticos de cerca de 100 pessoas, inclusive opróprio ex-presidente João Goulart e quase toda a sua equipe”. Ver: QUADRAT, Samantha Viz. A ditadura civilmilitarem tempo de (in)definições (1964-1968). In: MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.).Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2006.MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 188.Ibid., p.189.MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t.1, p. 264.REIS FILHO, Daniel. Ditadura e Sociedade: as Reconstruções da Memória. In: 1964-2004. 40 anos do golpe.Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 207.MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t.1, p. 264.MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 246.105


Médici, pelo fato de que o Brasil estava passando por um momento “espetacular”. O Coronel Amarcy deCastro e Araújo afirma que se tivesse ocorrido, a “Revolução” não sofreria com ácidas críticas de hoje.Além de ser um governo marcado pelo sucesso econômico, acredita Castro e Araújo que os “terroristas”já haviam sido eliminados, o que proporcionaria tranquilidade:Diria que o término do Governo Médici, teria sido uma boa oportunidade. Sobre isso,penso que existe um consenso bastante amplo, porque o movimento revolucionário deesquerda, tendo no seu bojo a luta armada, tinha sido vencido pelos governos daRevolução. Então, não havia mais a subversão e o terrorismo, urbano e rural, quejustificassem uma repressão muito grande 24 .O longo período da “Revolução”, criticado por muitos depoentes, faz parte das avaliações querealizaram do Regime Militar. Os depoimentos não procuraram desonrar os governos da “Revolução”com as críticas sobre a duração da mesma. A organização da coleção, ao indagar sobre os erros da“Revolução”, buscou, além de interrogar o que já sabia em cada depoente, afirmar essas falhas comonaturais em um processo conflituoso, representado nos depoimentos como um estado de guerra, em queo país estava mergulhado.Quando questionados sobre os erros cometidos pela “Revolução” ou se os governosrevolucionários demoraram no poder, os depoentes não respondem objetivamente às questões eacabam, dessa forma, defendendo a “Revolução”. Ou, igualmente, justificam as medidas adotadas pelamesma, como consta no depoimento de Carlos de Meira Mattos:Julga o senhor que os governos revolucionários demoraram muito no poder?A intenção do Presidente Castello Branco era de que os Atos Institucionais terminassemno seu governo. Queria que seu sucessor saísse de eleições normais e passasse ogoverno para um civil. Inclusive, já tinha alguns nomes. [...] Foram as guerrilhas, asagressões, que, do meu ponto de vista, provocaram o prolongamento dos governosrevolucionários 25 .O General de Brigada Helio Duarte Pereira de Lemos 26 , por exemplo, ao mesmo tempo em queafirma que o combate aos comunistas foi negativo, pelo fato de ter tido um “[...] excessivo rigor policial[...]”, também afirma que foi benéfico ao País, pois se fazia necessário para a tranquilidade da nação. Ouseja, ao mesmo tempo em que foi, de certa forma, errado punir os “comunistas” com um rigor excessivo,tornava-se necessária sua eliminação para a tranquilidade do país. Essa aparente ambiguidade quepersiste em outros depoimentos para explicar os erros que foram cometidos pelos governos militaresexplicita o que, de modo geral, os entrevistadores e os entrevistados buscaram enfatizar: a conquistafinal (eliminação do inimigo) foi maior que os erros cometidos no percurso.Como tentativa de contar a história do Brasil e ser reconhecido fora de seu grupo, o Exército,com a coleção, encontrou uma forma de explicar à sociedade os erros que consideraram menores frenteaos inúmeros acertos enumerados pelos depoentes. Na exposição dos erros, seguem as diversasjustificativas para a adoção de medidas radicais.Nas lembranças dos depoentes não apareceram outros excessos cometidos, como as diversasações repressivas, o número de mortos e desaparecidos, assim como o apoio externo conferido ao golpee ao regime. Quando foram questionados a respeito das influências externas durante o golpe e aditadura, poucos são os depoentes que enfatizam a participação norte-americana na deposição de JoãoGoulart e na continuidade do regime. A maioria dos entrevistados não nega a simpatia que nutriam emrelação aos Estados Unidos, sobretudo no período da Guerra Fria, porém, a montagem da “Revolução” eseus desdobramentos, segundo acreditam, foi obra de brasileiros.Os depoentes da coleção, focados na preocupação com o futuro, investiram suas narrativas na(re) construção de uma memória, que se pretende história. Que se apresentem os “méritos” da“Revolução de 1964”, em contrapartida às “falsificações” das “esquerdas”. Este é o objetivo. Mesmo queas falhas do Regime Militar apareçam pelas palavras de muitos dos colaboradores da “Revolução”, elasestão permeadas propositalmente pelos silenciamentos e pela busca do esquecimento que,conscientemente, são incorporados nas avaliações positivas que se pretendeu fazer do período.A derrota na batalha pela memória e a vitória do “revanchismo”Após o final do Regime Militar, uma produção memorialística ligada às esquerdas cresceuconsideravelmente. Essa produção de memória objetivava, em seu conjunto, divulgar as agruras do242526MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 8, p. 379.MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 1, p. 234.Ibid., p. 248.106


Regime Militar, como uma denúncia contra as práticas de tortura, cassações políticas e outros temasrelacionados.Como denunciar era uma das formas que as esquerdas encontraram para dizer o queacreditavam ser o regime militar, aqueles que estiveram ao lado do governo, colaborando sob diversasmaneiras com a “Revolução”, trataram também de divulgar as suas “versões” sobre os fatos. Diantedessa batalha pela memória, o Exército, ao publicar a coleção, avaliou que foram derrotadosinjustamente e, assim, acreditam que suas lembranças foram omitidas pelo “revanchismo”, que destrói averdade dos fatos.A coleção de depoimentos considera que “os governos revolucionários”, por princípio, deixaramde fazer a devida difusão de seus acertos, assim como a defesa de seus erros. Assim, foram derrotadosna “batalha da comunicação social”, como afirmam os organizadores da coleção a partir das perguntasrealizadas. Alguns dos depoentes, como o Coronel Aluízio de Campos Costa 27 , não se sentem à vontadecom a questão da derrota e afirmam que não executaram, adequadamente, “ações de comunicaçãosocial”. A mídia esquerdista figura como culpada pela omissão dos acertos da “Revolução de 1964”. OGeneral de Exército Sebastião José Ramos de Castro afirma que:A mídia sofre a forte influência da tendência esquerdizante que prepondera nasFaculdades de Comunicação Social. Há, ainda, o fato de que amigos opositoresdesfrutaram de importantes posições nos meios de comunicação social. Os que detêm opoder atualmente receiam que o povo aumente a admiração pelos militares e recorde otempo de paz social, progresso e estabilidade que existiu, quando presidiram osdestinos da Nação 28 .A “batalha da comunicação”, perdida pelos militares, conforme os depoimentos, teve seu iníciona opção que os governos revolucionários fizeram acerca da propaganda política, buscando diferenciarsede períodos anteriores, em que se utilizava estrategicamente da propaganda para promoção política.Muitos deles acreditam que estiveram, em um determinado momento, com a batalha ganha, como narrao Coronel Fracimá de Luna Máximo,Creio que sim. Estávamos com ela ganha no Governo Médici. O processo revolucionáriode longa duração acabou nos fazendo perdê-la. Penso que, se esse processo tivesseterminado com o Governo Médici, o panorama da Comunicação Social seria outro. [...]Mas o próprio governo militar, não sei se por princípios, não gostava de ComunicaçãoSocial – o próprio Castello Branco e outros. Acho que nos omitimos; não queríamosparticipar dessa “batalha” 29 .Os militares, durante os depoimentos, procuram diferenciar-se dos políticos, afirmando que nãoambicionavam postos de comando e que procuraram sempre trazer civis para os governos da“Revolução”. Na tentativa de estabelecer essa diferenciação, também se julgam culpados pela derrota na“batalha”, pois, segundo eles, não tinham visão política. Conforme o Coronel Carlos Alberto Guedes 30 ,“não nos preocupamos em valorizar e divulgar o que fazemos. Cumprimos o nosso dever com exação,humildade e seriedade, sem qualquer espécie de promoção pessoal”.Ao estabelecer uma diferenciação com outros grupos, no caso dos políticos, novamente aparecea questão identitária no grupo, de modo que procuram se representar como homens desapegados dosprivilégios políticos e ligados à defesa da pátria. A identidade, aqui, pode ser verificada no processoatravés do qual o reconhecimento das similitudes e a afirmação das diferenças situam o sujeito históricoem relação aos grupos sociais que o cercam. Os depoimentos dos militares nessa coleção figuram,desta forma, como exemplos da afirmação de identidades sócio-históricas. A memória dos militares,nesse sentido, pode ser, como nos ensinam Fentress e Wickham 31 , uma memória social que identificaum grupo, conferindo sentido ao seu passado e definindo as suas aspirações para o futuro. E ela, quasesempre, faz exigências factuais sobre os acontecimentos passados.Os políticos são aqueles que, conforme o General Geraldo de Araújo Ferreira Braga, alinhadoscom o poder, buscam alianças com indignos homens, em troca de recompensas políticas. De acordocom as considerações de Ferreira Fraga,Entendo que não perdemos a “batalha da comunicação social”, simplesmente porquenunca nos engajamos dela. Tive um colega – não citarei o nome – que disse assim: “A2728293031Ibid., p. 282.Ibid., p. 132.MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 11, p. 211MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 9, p. 275.FENTRESS, James; WICKHAM, Chris. Memória Social: novas perspectivas sobre o passado. São Paulo:Editipo, 1992.107


galinha põe o ovo e canta”, mas não aprendemos isso na Escola Militar. Nós realizamos,porque tempos que realizar, porque é parte do nosso trabalho, porque é parte da nossaprofissão, porque é o nosso ideal, nosso amor ao Exército, porque faz parte do nossoamor à Pátria.Nós não estamos habituados a trabalhar em troca de recompensas. Acredito que agente pense o seguinte: “O meu trabalho, os outros hão de reconhecer”. Assim pensavao Presidente Castello Branco 32 .Segundo os depoentes, a tentativa de se diferenciar dos governantes anteriores, marcados pelaspropagandas que “engrandeciam” as medidas adotadas em diversos contextos, como foi o caso deGetúlio Vargas, fez com que o regime não fosse reconhecido pela população. A imagem da “Revolução”,conforme era recomendação na época, deveria ficar longe da propaganda desenvolvida pelo governo deGetúlio Vargas, como asseguram os depoentes e a própria organização da coleção que atribui aoGoverno Vargas méritos em relação à propaganda 33 . Em uma intervenção, durante o depoimento doCoronel José Tancredo Ramos Jubé, o entrevistador, o General Geraldo Luiz Nery da Silva 34 , reitera daseguinte maneira: “Getúlio Vargas está presente, até hoje, com o nome posto em várias ruas, avenidas efundações, porque, realmente, o DIP funcionou” 35 .A partir do conjunto de depoimentos, verifica-se uma tentativa de responsabilizar algunsgovernantes, sobretudo o ex-presidente Castello Branco, pelo desprendimento com a propaganda emseu governo. Muitos dos depoentes atribuem à falta de propaganda das realizações da “Revolução”, emjornais e em outros meios de comunicação, como uma das razões da derrota na “batalha”, comomencionou anteriormente o General Geraldo de Araujo Ferreira Braga 36 .A perda da “batalha” também é sentida na educação, como lamentou o General Carlos de MeiraMattos.Nós perdemos não só a “guerra da comunicação social”, como também a da educação.Não soubemos, após ocuparmos o governo por vinte e um anos, orientar o SistemaEducacional Brasileiro e perdemos completamente a guerra da comunicação. Se vocêanalisar, em quase todos s institutos de estudos superiores do Brasil, universidades,faculdades, as facções que dominam são as da esquerda, mesmo, em pequenonúmero. Esses elementos dominantes continuam praticando o “revanchismo”, nãodando chances para quem não for do grupo deles, de esquerda 37 .Perder a “batalha da comunicação” significa acusar as “esquerdas”, a “mídia” e os “revanchistas”de agentes contrários à propagação das vitórias da “Revolução”. Dessa forma, são derrotados pela“mentira” ou pela “omissão” utilizada, segundo os depoimentos, pelos inimigos, que tomam acomunicação social como espaço primordial de suas reivindicações. Segundo a narrativa do CoronelHelio Mendes,Esta questão faz parte da educação, em geral, e da educação política, em particular,assinalada como um dos pontos falhos em todas as políticas dos governos daRevolução, desde o inicio do Governo Castello Branco. As universidades e escolascontinuaram tendo a maioria de professores de tendência esquerdista. As livrariasquase que só dispunham de publicações de esquerda – marxista e de outros teores. A323334353637MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 111.Ibid., p. 246.Ibid., p. 340.Carlos Fico, ao examinar a propaganda do Regime Militar, adverte que: “os militares brasileiros, evidentemente,conheciam esses tipos clássicos de propaganda (por isso sempre procuraram negar semelhanças com o DIP –Departamento de Imprensa e Propaganda – de Getúlio Vargas) e, mais do que isso, sabiam da repulsa que elescausavam”. FICO, Carlos. Reinventando o Otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio deJaneiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997. p.18).No entanto, é importante que se aponte o fato de que a propaganda política da ditadura mais conhecida eidentificada com o período de maior repressão esteve nas mãos de militares mais moderados. Criada nogoverno de Costa e Silva, a Assessoria Especial de Relações Públicas (Aerp), teve então seus dias de glória,como destacou Denise Rollemberg. Segundo a autora, por trás da suposta função de relações-públicas, esseórgão atuou de fato em eficientes campanhas nacionais de grande alcance, tais como “Ninguém segura estepaís” e “Este é um país que vai pra frente”, criando uma imagem otimista e grandiosa do Brasil, baseada nopatriotismo. Ver: ROLLEMRG, Denise. A ditadura civil-militar em tempo de radicalização e barbárie (1968-1974).In: MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Ed UERJ,2006. 2006. p.147.MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 1, p. 236.108


Revolução fez muito pouco para conter esta avalanche, em termos de ComunicaçãoSocial 38 .A história ensinada nas salas de aula é preocupante, conforme os depoimentos, visto quecunham as expressões “Anos de Chumbo” e “Ditadura Militar” para caracterizar um governo que osdepoentes acreditam ter sido benéfico ao Brasil. É a partir dessas colocações que surge a coleção,destacam os depoentes. Segundo acredita o General Rubens Bayma Denys, a importância da coletâneade depoimentos reside no fato de oportunizar:[...] para as pessoas que participaram, de uma forma ou de outra, da Revolução de1964, relatarem os fatos dos quais tomaram conhecimento, ou de que, efetivamente,participaram. A verdade registrada para posterior avaliação pelos historiadores. Achoque a isso é muito importante. Espero que, dessa forma, a Revolução ganhe umadocumentação que a retrate com fidelidade; que resgate a verdade histórica 39 .Pensando dessa forma, alguns dos depoentes militares, diferentemente, consideram que nãoperderam a “batalha”, cabendo àqueles que colaboraram com a “Revolução” ou que tiveram apreço pelamesma, lembrar aos demais que os militares eliminaram o perigo comunista, assim como levaram o paísao desenvolvimento. Segundo o General Ivan de Souza Mendes,Muitos dizem que perdemos a “batalha da comunicação social”. Não concordo com aassertiva, porque a batalha está em curso. Nós não iremos perder ou ganhar a “batalha”em momento algum. Nem eles. Na verdade, estamos cumprindo o nosso papel, nesseembate ideológico e cultural 40 .Ainda há aqueles que afirmam que não foram derrotados na batalha e o que houve foi amaximização dos excessos cometidos pelo regime, como assegurou o General Octávio Pereira daCosta.Diria que a “batalha” da comunicação não foi propriamente perdida, pois foi útil naquelascircunstâncias. No entanto, outros fatos negativos que ocorriam no submundo darepressão preponderaram como a imagem que realmente ficou. “Os gramadosdevastados” ou “as sentinelas que responderam mal às senhoras que pediraminformações” ocorreram, aos militares, de forma muito mais cruel. Esses excessoscometidos foram maximizados e se fixaram, afinal, como a imagem definitiva. A“batalha” não foi perdida. Não se perdeu, nem se ganhou. Faz-se o que era possívelfazer 41 .Ou seja, a derrota mencionada pelos depoentes na coleção procura imprimir a ideia de que os“governos revolucionários” foram julgados injustamente pelas esquerdas e pela mídia que noticiam osexcessos cometidos, como cassações, torturas e desaparecimentos, como se tivessem sido rotineiros.Dessa forma, a partir da coleção, os depoentes podem revidar as colocações da mídia e do meioacadêmico que eles consideram esquerdizante. Julgam-se derrotados porque acreditam que a “versão”que perdura em quase todos os meios sociais é daqueles que foram “derrotados nas armas”, conformedestacou Jarbas Passarinho.Muitas vezes temos visto, entre outros, conferencistas civis, da UNICAMP, da ESGtambém, realçarem os sucessos econômicos. Todos se referem, principalmente, àdécada de 1970. Fora desses institutos, entretanto, tais comentários e análises não sãodivulgados, porque, embora vitoriosos na parte militar, perdemos a guerra dacomunicação social [...] 42 .Como pode se constatar, eles se vêem injustiçados pela mídia e pelos intelectuais de esquerda,que se aproveitaram da inabilidade dos governos da “Revolução” e instituíram a propaganda contráriaaos feitos trazidos pelos “governos revolucionários”.Embora se considerem derrotados ou não na “batalha”, os depoentes atribuem culpa àsesquerdas pela manipulação da mídia e, também, a eles próprios que não souberam se utilizar dapropaganda para projetar a “Revolução” como benéfica ao país. Ao culparem-se, procuram, da mesmaforma, estabelecer uma diferença entre eles, os militares, e os políticos, os civis, na qual aparecem como3839404142Ibid., p. 268.Ibid., p. 189-90.MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 36.Ibid., p. 84.MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 5, p. 50.109


homens preocupados com a “ordem” e o “progresso” do país, diferentemente dos políticos, que segundoos militares entrevistados, preocupam-se com eles mesmos. Isto significa que, mesmo reconhecendo aderrota, não admitem a possibilidade de terem cometido erros fundamentais, sem justificá-los comonecessários, que pesam no presente e que são utilizados pelos “inimigos” para julgar o período. Assim,atribuem, sempre que indagados, culpa às “esquerdas” que, de maneira ardilosa, teriam se utilizadopoliticamente do passado para “autopromoção”.Mas os usos do passado são também utilizados pela coleção, que procura avaliar positivamenteo Regime Militar. Nessa tentativa de elogiar a “Revolução”, o passado surge necessariamente comoestratégia que norteia o pensamento dos depoentes. Além do passado, questões do presente, como aspesquisas destacadas nos depoimentos, são também utilizadas para assegurar às Forças Armadasprestígio social.Considerações finaisAs narrativas dos entrevistados procuraram reafirmar o que o Exército acredita ter sido o períodoentre 1964 a 1984. Os depoentes, numa espécie de acordo, contaram quase que a mesma história sobreo período. Nas considerações sobre o governo de João Goulart à abertura política e à lei de anistia, asnarrativas se tornaram repetitivas, parecendo que houve uma espécie de pacto em torno do que deveriaou não ser relembrado. Além disso, muitas entrevistas relatam episódios que algumas vezes em nada sediferenciam do que está registrado em outras fontes também produzidas pelo Exército durante aditadura. Porém, a dimensão da memória, como afirma Montenegro 43 , mesmo quando coincide oureproduz os significados sociais institucionalizados, oferece elementos para reflexão acerca da força dasmarcas das histórias que se tornaram hegemônicas. Essa colocação de Montenegro nos faz pensar naforma como a história sobre a ditadura vem sendo reproduzida e/ou (re)inventada pelo Exército. Muitosdos militares entrevistados lembraram episódios que não dizem respeito à sua história de vida, masàquilo que eles ouviram falar ou leram em livros produzidos pela corporação. Segundo Halbwachs 44 , oque temos mais facilidade em lembrar é do domínio comum e é por podermos nos apoiar na memóriados outros que somos capazes de lembrar.A iniciativa de construir uma coleção com 247 depoimentos partiu do Exército, que acreditavaresponder a uma série de grupos e sujeitos, tais como as esquerdas, a mídia e aos intelectuais que,segundo acreditam, invés de narrar a “verdade” sobre a “Revolução” de 1964, caracterizam esseperíodo como uma ditadura civil militar. Todos que participaram dessa iniciativa, desde o coordenador doprojeto, o General Aricildes de Moraes Motta, os coordenadores regionais e os entrevistados deveriamoferecer subsídios para outra história da ditadura, demonstrando as “verdadeiras” iniciativas do Exército,a “patriótica” defesa da nação pelas lideranças civis e militares que estiveram na luta contra os “inimigosvermelhos”, assim como as ações dos “governos revolucionários” que levaram o país ao sucesso. Essa“versão” da ditadura foi narrada por quase todos os depoentes que formaram as redes de entrevistadosescolhidos pelo Exército. Foram assim selecionados pela trajetória que tiveram durante o regime, pelaamizade que tinham com os coordenadores e, sobretudo, por ainda narrarem positivamente a ditadura.A boa imagem da ditadura, construída ao longo da coleção, é reafirmada pelos depoentes emsuas lembranças. Se falam com sentimento de orgulho a respeito da implementação das arbitrariedadesdo regime não o fazem porque são autoritários por natureza, falam porque acreditam que estavam emuma situação em que era preciso “livrar” o país dos “comunistas”. Durante as entrevistas, ficou visívelque o anticomunismo foi um elemento que permeava o imaginário social daquela época e quepermanece nas representações que fazem a respeito daquele contexto. Não afirmam que o país estavasendo tomado aos poucos pelos “vermelhos” apenas para conseguir legitimar um golpe de estado e ainstauração de uma ditadura. Narraram os acontecimentos dessa forma porque ainda continuamacreditando que o governo estava sendo aos poucos tomado pelos comunistas e que estes pretendiamlevar o Brasil à órbita soviética.O conjunto das entrevistas acabou revelando o interesse da corporação pela batalha dacomunicação social. Ela representa um permanente duelo pela memória, visto que os atores sociaisencontram-se vivos, além das suas instituições permanecerem dispostas em representá-los nessa luta,como fez o Exército na publicação dos depoimentos e em outras atividades.A narrativa que os depoentes fizeram acerca dos acontecimentos fez com que chegássemos àconclusão de que o Exército procurou cristalizar um discurso que servisse inicialmente à corporação e,logo depois, à sociedade civil. Essa narrativa da “revolução” e dos governos dos cinco generaispresidentes deveria, segundo os organizadores, partir da corporação. Eles eram os únicos autorizados afalar com seriedade sobre o que aconteceu naqueles anos, pois representavam a “verdade”.4344MONTENEGRO, Antônio Torres. História oral, caminhos e descaminhos. Revista Brasileira de História. SãoPaulo, v.13, n.25/26, p.56, set. 92/ago. 93.HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.110


Entrevistados e entrevistadores construiriam, dessa forma, uma narrativa positiva e afirmativa daditadura, pois ambos, na maioria das vezes pertencentes do Exército, estavam diante de uma situaçãoem que era imprescindível pautar elogios a ditadura. A escolha da rede de entrevistados levou em conta,certamente, a maneira como o depoente representava, no momento da entrevista, a ditadura civil-militar.Como era importante para o Exército solidificar uma memória sobre o regime, as falas dos entrevistadosdeveriam colaborar com a visão da corporação sobre o período. Assim, foram selecionados homens quese sentiam prestigiados em falar positivamente sobre aquele período. Eram sujeitos que se sentiam naobrigação de falar, não somente porque eram militares ou porque atuaram em algum governo do regime.Falavam porque acreditavam que suas memórias poderiam ser ouvidas e/ou lidas pelos jovens dacorporação e pela sociedade.Referencias Bibliográficas:FENTRESS, James; WICKHAM, Chris. Memória Social: novas perspectivas sobre o passado. SãoPaulo: Editipo, 1992.FICO, Carlos. Reinventando o Otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio deJaneiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra de memória. A ditadura militar nos depoimentos de militantes emilitares. Varia História, UFMG, n.28, dez. 2002.MONTENEGRO, Antônio Torres. História oral, caminhos e descaminhos. Revista Brasileira de História.São Paulo, v.13, n.25/26, p.56, set. 92/ago. 93.MOTTA, Aricildes de Moraes (Coordenação Geral). 1964 – 31 de março: o movimento revolucionário esua história. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2003. 15 tomos.QUADRAT, Samantha Viz. A ditadura civil-militar em tempo de (in)definições (1964-1968). In: Martinho,Francisco Carlos Palomanes (Org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2006.REIS FILHO, Daniel. Ditadura e Sociedade: as Reconstruções da Memória. In: 1964-2004. 40 anos dogolpe. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.ROLLEMRG, Denise. A ditadura civil-militar em tempo de radicalização e barbárie (1968-1974). In:Martinho, Francisco Carlos Palomanes (Org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006. 2006.TOLEDO, Caio Navarro de. Crônica política sobre um documento contra a “Ditabranda”. Revista deSociologia, Curitiba, v.17, n.34, p.209-217, out. 2009.111


O discurso político ideológico militar em torno da guerrilha de 1965Ronaldo Zatta 1Resumo: a intenção deste artigo é oferecer subsídios para discussão da primeira ação armada contra oregime militar no brasil, o episódio que ficou conhecido como a guerrilha do coronel cardim no ano de1965. Valendo-se de uma fonte documental oficial almejou-se empregar a Análise do Discurso comométodo de apreciação deste texto litúrgico/ideológico problematizando as suas finalidades políticasvinculadas ao contexto histórico que perdurou por mais de quatro décadas. Trata-se da narrativa queexpõe a versão institucional, que oculta a sua derradeira utilização em cerimonial militar até o ano de2006, por ocasião do translado dos restos mortais do herói Tenente Camargo, sua última manifestaçãopública.Palavras-chave: Análise do Discurso-Ditadura Militar-Cerimonial.Abstract: the intention of this article and offer subsidies for discussion of the first military action againstthe military regime in brazil, episode that became known as the guerrillas in the coronel cardim in year1965. Relying on a source document official longed to employ Discourse Analysis as a method ofassessment of this liturgical text/ideological questioning their political purposes related to the historicalcontext that has lasted for more than four decades. This is the narrative that exposes the institutionalversion, which hides its ultimate use in ceremonial military by the year 2006, on the occasion of theremains of the hero Lieutenant Camargo, his last public demonstration.Key-words: Discourse Analysis-military dictatorship-ceremonial.Considerações IniciaisEm novembro de 2006 enquanto prestava serviço militarno aquartelamento do Exército Brasileiro sediado na cidade deFrancisco Beltrão no sudoeste paranaense, em específico no 16ºEsquadrão de Cavalaria Mecanizado, por ser acadêmico deHistória fui designado juntamente com outros militares a compora equipe de auxiliares do Curador do Museu Militar TenenteCamargo. Na época o museu estava aguardando autorização doEstado Maior do Exército para funcionamento, no entanto, oacervo se encontrava à amostra para visitantes e interessados.Por motivos ignorados o Estado Maior do Exército jamaisautorizou o funcionamento do museu, tendo a partir de 2010 seuespaço físico ocupado por secções burocráticas militares. Sendoque seu acervo foi acomodado em depósito ou porões, e emalgumas situações mais nobres expostos em salas internas comopeças decorativas.Relevante para esta comunicação é que durante operíodo em que prestei serviço militar fui encarregado de auxiliaro curador do museu nos trabalhos de exumação dos restosFigura 1. Sargento Camargo. Fonte: mortais do herói que deu nome ao museu. Durante estesPintura em Tela–Artista Cândida serviços obtive acesso a um documento/texto/narrativa que relataFerrari–RJ, 2000. Exposto no o episódio em que faleceu o Tenente Camargo, considerado oPavilhão de Comando do 16° herói militar da Operação de Contraguerrilha em 1965. Trata-seEsquadrão de Cavalaria Mecanizado de uma breve biografia do então Sargento Carlos Argemiro deem Francisco Beltrão–PR. Camargo, promovido postumamente ao posto de TenenteCamargo. O documento em anexo é um discreto relato docombate produzido pelos militares em que contam a versão oficial das operações realizadas no sudoeste1Doutorando em História pela UFPR – Universidade Federal do Paraná. E-mail: ronaldozatta@yahoo.com.br.Fone: (49) 8845-3559.112


do Paraná no ano de 1965, por ocasião do confronto com a tropa guerrilheira comandada pelo CoronelJeferson Cardim de Alencar Osório.Este documento foi produzido no ano de 1977 e se tornou um padrão a ser lido anualmente nasformaturas militares em homenagem ao herói. Como visto nas anotações/rasuras no documento quesegue em anexo, com o passar dos anos altera-se o nome da Organização Militar local, a data, mas semantêm o texto/discurso a ser explanado aos civis e militares que presenciavam os cerimoniais. Ou seja,mantêm-se o discurso a ser transmitidos aos ouvintes. Como mencionado, foi em novembro de 2006, porocasião do translado dos restos mortais do Tenente Camargo que se encontravam depositados noCemitério Municipal de Francisco Beltrão para a Praça Tenente Camargo, localizada dentro doaquartelamento daquela cidade, tive a oportunidade de acompanhar o derradeiro uso político destediscurso direcionado ao público interno e externo à caserna.Para se analisar um discurso segundo a perspectiva foucaultiana, deve-se fugir dasinterpretações fáceis, unívocas ou que buscam encontrar o “oculto”, o distorcido, o cheio das “reais”intenções ou conteúdos e/ou representações imediatamente não vistas nos textos. Mas sim, analisar asrelações históricas, concretas e vivas nos textos na perspectiva de uma construção histórica e política,compreendendo a linguagem como constitutiva de práticas sociais. 2Partindo do pressuposto de que “o discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade, masuma história” 3 julga-se necessariamente considerar o caráter histórico dos discursos através de algunsconceitos relacionados ao método de Análise do Discurso.Sem o intuito de discutir uma concepção teórica da Análise do Discurso, muito menos umaprática operacional desta disciplina, segue alguns conceitos selecionados que se apresentam como umatentativa de problematizar o discurso ideológico incutido na narrativa militar que foi lida por mais dequarenta anos no sudoeste paranaense.A Cena do Discurso MilitarNo dia 17 de novembro de 2006, em formatura geral no 16º Esquadrão de CavalariaMecanizado, fora realizado translado dos restos mortais do Tenente Camargo que se encontravam no“ossário” do Cemitério Municipal de Francisco Beltrão até a Praça Tenente Camargo no interior dasinstalações do quartel daquela mesma cidade.O aquartelamento se preparou para receber o herói, sua praça foi limpa, repintada; efetuadostambém alguns serviços de jardinagem e, ao centro do Brasão das Armas onde ficava o fuzil Mausercravado em homenagem ao militar foi remodelado um local pelo Pelotão de Obras para que fosseacondicionada a urna funerária.A urna funerária foi transportada por comboio de blindados militares pelas ruas da cidade deFrancisco Beltrão, sendo prestada ao herói uma série de honrarias militares destinadas aos chefes eheróis históricos, como escolta armada, formação de guarda, lanceiros, toque de silêncio pelo clarim,tiros de salva, entrega da bandeira nacional aos familiares e continências diversas.Um fato que comoveu os presentes no evento foi o pranto de um ex-militar que na chegada dosrestos mortais dirigiu-se a urna, abraçou-a, e em prantos murmurava: “Meu amigo!”. Mais tarde se soubeque este idoso se chamava Sérgio Bonetti, que na função de cabo acompanhou o Pelotão de Infantariana perseguição aos guerrilheiros pelo sudoeste do Paraná em 1965.Quem presencia uma cerimônia militar dificilmente não se sente entrelaçado pela onda detradição que conduz o fato. Tais construções culturais possuem diversos elementos que resgatam opassado. Esta, porém, ainda possuía um quesito ainda mais especial, tratava-se da inumação de ummilitar do “tempo presente” 4 , que possuía parentes, amigos e conhecidos entre os convidados.Identificações sociais, nostalgias, superações, narrações e reproduções de vividos se mesclavam e seritualizavam através da representação presentificada durante o cerimonial de inumação dos restosmortais de Camargo. Costurou-se sobre um eixo simbólico o fato que amparado no tempo/espaço, nasnarrativas e objetos militares da época legitimaram uma trajetória histórica na realização deste eventomilitar, com valorização reconhecida pelo grupo de militares e população civil local. Tal cerimonial deinumação prosseguiu após alguns instantes de comoção.Dando sequência ao evento, o Capitão Lourenço Rômulo Innocêncio Júnior, realizou a leitura da234FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault e a Análise do Discurso em Educação. In: Cadernos de Pesquisa, n.114, p. 197-223, novembro/2001, p. 198 e 199.FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 146.O conceito de história do tempo presente se refere aos acontecimentos das últimas quatro ou cinco décadas,onde atitudes e atores ainda regem influência na sociedade atual e seu estudo “constitui um lugar privilégio parauma reflexão sobre as modalidades e os mecanismos de incorporação do social pelos indivíduos de umamesma formação social”. FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente: desafios. Cultura Vozes,Petrópolis, v.94, nº 3, p.111-124, maio/jun., 2000, p. 122.113


iografia/narrativa do Tenente Camargo, a narrativa produzida em 1977 foi pela derradeira vez utilizadapublicamente para expor a versão militar de um episódio importante, mas tão pouco estudado pelaHistoriografia da Ditadura Militar Brasileira.Esta formatura/cerimonial militar movimentou a seção de Relações Públicas do quartel, qual eraresponsável para mobilizar autoridades civis, jurídicas e militares da região, bem como os meios decomunicação regional, professores de História, alunos do Ensino Fundamental, acadêmicos e osmilitares da reserva que vivenciaram os conflitos da época.Representando a família do militar homenageado compareceram ao evento a Senhora MarinesBósio acompanhada pelo seu filho. Marines é sobrinha do Tenente Camargo, e exerce a profissão deprofessora do Ensino Fundamental na cidade de Francisco Beltrão.Terminada a dobragem da bandeira, esta foi entregue aos familiares e baixada a urna funeráriano centro da Praça. Enquanto esta cena acontecia, a guarda fúnebre composta por seis soldadosexecutava tiros de salva. Era a segunda vez que o herói militar recebia a mesma homenagem, uma em1965 por ocasião de seu sepultamento, e outra naquele instante, quando retornava ao aquartelamento41 anos depois do episódio.A entrega da bandeira aos familiares pode ser pensada como um ritual extremamente simbólico,pois adquire um significado especial para cada indivíduo tendo o poder de evocar lembranças ousentimentos particulares. Como símbolo ela representa “coisas” que são partilhadas pelos membros deum grupo, mascarando diferenciações pelo revestimento ideológico de “comunidade”; os símbolos sãoeficientes por serem imprecisos. 5Findando o evento foi baixada a tampa de concreto construída para obstruir o sepulcro, e sobreela postada uma lápide confeccionada em mármore que contia o seguinte epitáfio: “ORGULHOSOSTRAZEMOS DE VOLTA NOSSO IRMÃO DEARMA. ELE CUMPRIU SEU JURAMENTODEFENDER A PÁTRIA COM O SACRIFÍCIO DAPRÓPRIA VIDA”.Em ato contínuo, fixou-se um fuzilMauser e um capacete de aço sobre o descansodo herói militar. Tanto o capacete, como fuzil,foram utilizados pelo Exército Brasileiro nadécada de 1960; e nesta situação se demudaramem símbolos de um militar que morreu emcombate cumprindo o seu “dever”.Figura .2 Vista parcial do cerimonial militar - 2006. Fonte:Arquivo pessoal do autor.O Contexto do Discurso MilitarAntes de sair do cemitério a solenidadejá estava sendo acompanhada pelos meios decomunicação regionais: rádios e emissoras deTV sucursais. Em nome do Comando daUnidade, o Capitão Rômulo concedeu váriasentrevistas, tanto antes como depois da cerimônia, explanando e relembrando a versãoinstitucional/oficial do contexto que envolvera a morte do militar.Em março de 1965 quando completaria um ano de Ditadura militar instaurada no Brasil, deuinício no Estado do Rio Grande do Sul uma tentativa fracassada de contragolpe em nosso país,comandada pelo ex-Coronel de Artilharia do Exército Jeferson Cardim de Alencar Osório, tendo comoseu principal assessor Albery Vieira dos Santos, ex-Sargento da Brigada Militar do Estado do Rio Grandedo Sul. 6 Vinda do Uruguai a guerrilha seguiu por algumas cidades dos três estados do sul do Brasil.Existe a versão de que o ex-sargento Albery, um dos exilados mais corajosos e radicais,procurou Brizola solicitando dinheiro para realizar a incursão armada e este não forneceu. Encontrandosedepois com Jeferson Cardim de Alencar Osório nasceu o movimento. Cardim era parente remoto deCastelo Branco e ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), veterano militante de esquerda,despertava ódio aos militares do Exército porque quebrara a ética militar casando-se com a mulher deum companheiro e em seguida se amasiando com sua enteada, ou seja, havia perdido o respeito nomeio militar. 7Com rapidez os dois começaram a se articular, mesmo sem apoio de Brizola conseguiram juntar567GUIBERNAU, Monserrat. Nacionalismo: o Estado Nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 1997, p. 92.MITCHELL, José. Segredos à direita e à esquerda na ditadura militar. Porto Alegre: RBS Publicações, 2007,p. 51.ARAÚJO, Maria Celina de; CASTRO, Celso, (Orgs). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997, p. 124.114


mil dólares, três fuzis tchecos semiautomáticos e alguns revólveres. Arrumaram um caminhão e comvinte e três homens entraram no Brasil no dia 19 de março de 1965. 8 Com tal efetivo, em sua maioriareunida em território gaúcho, surgiram as FALN – Forças Armadas de Libertação Nacional. 9 As FALNdominaram algumas unidades da Brigada Militar gaúcha, recolhendo armas e munições destes quartéise fazendo breves proclamações revolucionárias pela rádio local. 10 O grupo então se dirigiu para oSudoeste do Estado do Paraná onde seus integrantes acabaram sendo aprisionados pela OrganizaçãoMilitar que viria a ser conhecida por esta campanha de “Sentinela do Sudoeste”, a 1ª Companhia deInfantaria instalada em Francisco Beltrão.Foi no dia 27 de março de 1965 por volta das 11 horas na região de Santa Lúcia, Município deCapitão Leônidas Marques – Pr, que ao pressentir a aproximação das tropas do Exércitos brasileirosoriundos da cidade de Francisco Beltrão, o grupo guerrilheiro realizou uma emboscada.Esta ação armada produziu uma vítima fatal que mais tarde se transformaria em herói: o 3°Sargento Carlos de Argemiro Camargo, que foi alvejado várias vezes ao desembarcar da viatura. 11 Osguerrilheiros após serem presos foram conduzidos ao 1° Batalhão de Fronteira localizado em Foz doIguaçu julgados e condenados pela Justiça Militar subordinada a 5ª Região Militar com sede em Curitiba– PR. Posteriormente foram favorecidos pela Lei da Anistia e indenizados pelo governo brasileiro.O Enunciador do Discurso MilitarNa manhã do dia 17 de novembro de 2006, o Curador do Museu Tenente Camargo, o CapitãoRômulo Innocêncio Júnior apresentou-se para o púbico da formatura militar onde realizou a leitura dabiografia do herói enfatizando seu ato de bravura e a realização do juramento que todo soldado faz aoassumir o compromisso no “Dia do Soldado”: de “defender a Pátria com o sacrifício da própria vida”.A leitura proferida por este militar não tinha apenas a intenção de divulgar conhecimento sobre o TenenteCamargo, mas sim, estabelecer uma relação entre o passado, representado pelo herói, com o presente.Pois, “a retórica empregada no uso de capital simbólico deriva-se de um conjunto paralelo de retóricasusadas na criação de consciência histórica”. 12Ao mesmo tempo Rômulo estava sendo em 2006 o porta-voz de uma causa política quemobilizou as Forças Armadas do Brasil por um longo período de Guerra Fria, e através de sua linguagema memória estava sendo mais uma vez socializada e evocada.Era um discurso de linguagem engajada, mobilização, de ativismo, de dimensão ufanista,legitimação de ações e de uma memória política que brotava e emergia de testemunhos dentro de umquadro de sociabilidade, que foi capaz de reconstruir fundamentação comum afetivamente entre amemória individual dos soldados e dos pioneiros, pois “o poder quase mágico das palavras resulta doefeito que têm a objectivação e a oficialização de facto que a nomeação pública realiza a vista detodos”. 13 Com o término da leitura a posição de sentido fora tomada pelos militares cumprindo a ordememanada pelo clarim, e com o tom vibrante e altivo, fora cantado o Hino Nacional brasileiro comomaneira de coroar o retorno do herói à caserna.As Condições de Produção do Discurso MilitarCompreendemos que as condições de produção de um discurso estão intimamente ligadas coma questão do sentido literal, ou seja, ela é constitutiva do sentido. Desta forma passam a contar desdedeterminações do contexto mais imediato (ligados ao momento da interlocução) como mais amplos(ligados à ideologia). 14 A bibliografia do Tenente Camargo, a narrativa do episódio e o seu sequenteprocesso de heroicização fizeram parte de uma atividade política institucional que esteve presente nasForças Armadas após 1964. Ainda hoje o Exército como instituição nacional promove e idealiza açõescom o intuito de valorizar e nutrir a memória. Tal memória foi/é fundamental para o sentimento nacional eelaboração de consciência política e identidade comunitária dentro de um pensamento romântico daconstrução de um herói, utilizando para isso uma série de conjuntos simbólicos com fins políticos.O texto em anexo foi produzido em 1977, dentro de um contexto amplo, qual procurava legitimarações através da figura construída de um herói militar, vinculada a um ato tido como heróico (morrer pela891011121314GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 192.USTRA, Carlos Alberto Brilhante. A verdade sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasilconheça. Brasília: Editora Ser, 2006, p. 130 e 140.MITCHELL, Op. Cit.AUGUSTO, Agnaldo Del Nero. A grande mentira. Rio de Janeiro: Bibliex Editora, 2002, p. 169.STRATHERN, Andrew e STEWART, Pamela J. “Global, nacional, local: escalas móveis, temas constantes”. In:BARROS, João Rodrigues (Coord.) Globalização e identidade nacional. São Paulo: Atlas, 1999, p. 56.BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 117.ORLANDI, Eni Pulcinelli. A Linguagem e seu funcionamento. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 149.115


pátria) que por sua vez pertencia a uma ideologia/formação ideológica 15 militar.Num contexto próximo das condições de produção podemos referenciar a política de promoçãodos comandantes nas Forças Armadas através do conceito que premia as ações que valorizem a históriada Instituição Militar. Ações que podem ser exemplificadas como a construção de monumentos,elaboração de pesquisas históricas, nomenclaturas históricas, confecção de estandartes e heroicizaçãode figuras históricas. Ou seja, os comandantes que realizam este tipo de ações estão mais próximos daspromoções seguintes previstas em seu plano de carreira, e futuramente ao generalato.Os Enlaçamentos no Discurso MilitarDominique Maingueneau convenciona o termo “enlaçamento” como os processos pelos quaisum texto de uma formação discursiva reflete sua própria enunciação. 16 Ou seja, a dupla possibilidade deler uma obra: a primeira como um texto doutrinário ligado a uma instituição (define um ideal enunciativo);e a segunda como uma tematização de regras que atuam nas comunidades discursivas ligadas a estainstituição (seus integrantes e comunidade local).A narrativa analisada neste estudo se identifica na classificação dada por Maingueneau comoum texto de “quarto grau”, pois revela uma doutrina institucional dada pelo posicionamento político doExército; descreve um ideal enunciativo da própria instituição para com os seus integrantes e àscomunidades discursivas ligadas ao Exército; e por último, transmite essa doutrina que coincide com adescrição do ideal enunciativo. Ideal enunciativo que se confunde com o percurso/história da InstituiçãoMilitar com a descrição do mundo e a definição do ideal enunciativo do texto.A narrativa voltada a heroicização do Tenente Camargo teve finalidade de proporcionar umatipificação de conduta desejada aos integrantes do Exército, apolítica e comprometida com os deveresmilitares, ou seja, evitar o surgimento de novos “lamarcas”.Ao mesmo tempo, estava voltada para inculcar na população civil a crença de que o Exércitodevia ser visto com o guardião da nação e defensor dos preceitos morais ameaçados pelos guerrilheiroscomunistas. E que está vigilante a isso, sendo necessário para o desenvolvimento saudável da nação. Atrapaça discursiva que segue o percurso temático da “salvação da pátria” foi usada milhares de vezespelos que falavam a palavra do poder depois de 1964. 17 Neste sentido cabe-se reafirmar que o elocrucial entre o fazer e o dizer de uma comunidade representa o ponto cego do discurso. 18As interdições do Discurso MilitarO filósofo Michel Foucault supõe que emtoda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada,organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem a função deconjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar suapesa e temível materialidade. 19Segundo este mesmo autor, o procedimento de exclusão mais conhecido é a interdição, pois nãose tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquerum, enfim, não pode falar de qualquer coisa. 20 Da mesma forma o discurso em forma de narrativa aoTenente Camargo realizado em 2006 passou por um processo de triagem e adequação a situaçãopresentista.Um tópico importante que deve ser ressaltado é que, no ano de 2006, em todas as entrevistas e notas àimprensa foram excluídos os termos “Brizola” e “comunistas”. Houve um pedido do Comandante 16°Esquadrão de Cavalaria Mecanizado, o Major Marcelo Lorenzini Zucco, que não se fizesse referênciasao líder nacionalista da década de 1960, Leonel Brizola. Segundo ele não havia intenção de alimentarantigos conflitos políticos, mas sim relembrar o ato heróico do militar que cumpriu o juramento de“DEFENDER A PÁTRIA, SE PRECISO FOR, COM O SACRIFÍCIO DA PRÓPRIA VIDA!”.Da mesma forma foi excluído na leitura da narrativa em anexo o termo “guerrilheiros”. A narrativalida no cerimonial militar era embasada subjetivamente de aconselhamento e fortalecimento comum,articulada ao sacrifício do militar e recheada de mensagens de identidade cívica e cidadania social queemocionou os presentes. Mas o mais interessante foi adaptação da narrativa ao tempo presente, as151617181920Formação ideológica deve ser compreendida como “uma visão de mundo de uma determinada classe social,isto é, um conjunto de representações, de ideias que revelam a compreensão que uma dada classe tem domundo”. FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Ática, 1988, p. 32.MAIGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1989, p. 69.FIORIN, Op. Cit., p. 41.MAINGUENEAU, Op. Cit., p. 70.FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso. São Paulo: Ed. Loyola, 2010, p. 8.Idem, p. 9.116


exclusões dos termos, como já referenciado: “Brizola” e “comunistas”.Não se trata de uma forma de reconstruir um passado histórico dito “apropriado”, mas sim, de umanova forma de contar o velho e de adaptação do discurso às necessidades do presente e da sociedadecontemporânea. Pois as identidades mudam com as gerações, transformando seu conteúdorepresentativo, muitas vezes afrouxando as suas raízes.A viúva do Tenente Camargo, Maria da Penha de Camargo, foi convidada, mas recusou o convitede participar da cerimônia alegando não estar em condições de saúde para se deslocar de Curitiba paraa cidade de Francisco Beltrão. Também afirmou que pelo trauma que viveu pela viuvez no recémcasamento,preferiu nunca mais retornar a Francisco Beltrão. Seu filho também residente na capital doEstado do Paraná, Carlos Argemiro de Camargo Junior, médico patologista, agradeceu a atitude doComando Militar, mas segundo ele próprio, por motivo de trabalho, não pode comparecer.É evidente que Maria da Penha também possua motivos pessoais para não comparecer aoevento! Pois ela ainda recebe a pensão do falecido, mesmo constituindo união estável, o que não épermitido por lei. Conversas informais afirmam que o receio de perder a pensão de viuvez fez a mesmanão comparecer ao cerimonial. No entanto, esta questão não fez parte do discurso oficial manifestadopela instituição durante o evento.Outro caso de interdição do discurso lido no evento foi a versão de que o tiro que matou o TenenteCamargo fora um “tiro amigo”. Sempre houve relatos dentro do aquartelamento do Exército de FranciscoBeltrão, vindo particularmente dos militares mais antigos, que apresentam a “tese do tiro amigo”.Entretanto, jamais houvera qualquer manifestação formal sobre o assunto, talvez pela complexidade dotema, pois se trata de um caso político que ocorreu durante o Governo Militar, os participantes aindaestão vivos e há o medo de represálias ou punições logo, tudo isso ainda possui reflexo no tempopresente.Evidentemente, acredita-se que se este fato por ventura acorreu, não fora intencional, e tenha sidoum acidente. Mas tens a convicção de que a divulgação de uma ocorrência deste nível seria interditada.Admitir uma notícia (erro) deste porte no contexto de conturbação política em que o país vivia no ano de1965 seria admitir a incompetência das Forças Armadas nas Operações de Contraguerrilha. O que seapresenta aqui são apenas hipóteses baseadas nas conversas informais que perambulavam dentro doaquartelamento de Francisco Beltrão durante o cerimonial militar.Os Efeitos de Sentidos no Discurso MilitarEni Orlandi nos ensina a pensar o discurso não como uma transmissão de informação, mas simcomo efeito de sentidos entre os locutores, e esta é uma questão para realização de uma análise dodiscurso. 21Neste sentido, cabe ajuizar que ainda em 2006 a Instituição Militar continuava realizando apaidéia política regional, utilizando como instrumento de produção o discurso de uma causa política queagitou as Forças Armadas no século passado. Tendo como materialidade a construção simbólica de umherói militar, qual se efetivou como um mecanismo e atividade prática que o Exército brasileiro utilizoupara consolidar através de símbolos materiais e imagéticos a luta contra comunismo no sudoeste doParaná, convinha exemplificar a toda a nação através da institucionalização do herói militar TenenteCamargo.Sabemos que a sociedade aceita algumas instituições e costumes, os quais julgam positivos,selecionam hábitos que consideram bons e os inculcam em seus integrantes. No entanto, nem sempreestes hábitos são produtos do discernimento da consciência de cada um. A formação do cidadão étrabalhada através da formação de consciência histórica e cívica; modelos, vidas exemplares, rituaiscívicos entram nesta formação constituindo um ser nacional, de classe e regional, munido com noçõesde valores, ordem, lei e justiça. 22 Assim ocorre a valorização de uma memória como identidade.Um Interdiscurso no Discurso MilitarTrata-se de interdiscurso a interação que determinadas formações discursivas mantém comoutros textos ou enunciados, abrigando novidades, imitações, mudanças ou continuidades. Interceptaros interdiscursos dentro de um texto seria perceber o seu caráter de complementaridade einterdependência.Para Foucault não háenunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte deuma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se2122ORLANDI, Op. Cit.LOVISOLO, Hugo. A memória e a formação dos homens. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, p. 16-28, 1989, p. 16-23.117


apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo, ondetem sua participação, por ligeira e ínfima que seja. [...] Não há enunciado que nãosuponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo decoexistências. 23Neste sentido, considerar a “interdiscursividade” significa deixar que aflorem as contradições, asdiferenças, inclusive os apagamentos, os esquecimentos; enfim, significa deixar aflorar aheterogeneidade que subjaz a todo discurso”. 24 Torna-se adequado afirmar que um determinado discursoé um espaço de troca entre vários discursos precedentes, ao mesmo instante que um discurso políticoideológico pode ser pensado através do viés de reapropriação.Dentro da narrativa em anexo ao tratar do Tenente Camargo, percebe-se o interdiscursopresente no seguinte trecho:Assim, não devemos esquecer jamais o dignificante gesto do Sargento CARLOSARGEMIRO CAMARGO, pois a esmo encarna a espiritualidade heróica das palavras deum militar brasileiro, no passado:/ SEI QUE MORRO, MAS O MEU SANGUE E DEMEUS COMPANHEIROS, SERVIRÁ DE PROTESTO SOLENE CONTRA A INVASÃODO SOLO DE MINHA PÁTRIA. 25O discurso/narrativa analisada apresenta esta associação de forma não ocasional com a mortedo Tenente Camargo, morto de forma duvidosa no sudoeste do Paraná, com um herói da Guerra doParaguai que se deu em sacrifício. Sendo esta afirmação legitimada pelo dado de que Camargo não foravoluntário para o combate à guerrilha, sendo escalado contra sua vontade, e que tentou se ausentaralegando trabalhos burocráticos acumulados. 26Sabe-se que todas as sociedades instalam seus “guardiões” do sistema e dispõem de certatécnica de manejo das representações e símbolos. 27 O Exército produziu durante o Regime Militar um“sistema de representações” que traduziu e legitimou uma ordem. E neste caso, se utilizou da força doheroísmo, “que tem a finalidade moralista, servindo para avaliar e dirigir capacidades e condutas”. 28Deve ser levado em consideração também que o Estado, durante o Governo Militar, avocou parasi o papel de criador da identidade nacional, responsável simultaneamente por promover o progresso emanter acesa a memória nacional. O que o fez com certo sucesso no que tange o processo deheroicização do Tenente Camargo, que pode ser identificado como uma das maiores construçõessimbólica na luta contra a “subversão” no Brasil militarizado.Considerações finaisNo campo da guerra psicológica, durante a segunda parte do século XX, a instituição militarelaborou a construção de uma memória coletiva com base comum em prol do recém instaurado GovernoMilitar, servindo-se para esta tarefa em âmbito simbólico do culto ao ‘herói’ como forma de educarcivicamente a população em geral em relação à política bipolar da Guerra Fria.Amparado no episódio que envolveu as tropas do Coronel Cardim, o Exército elaborou a maior, etalvez a mais bem-sucedida, edificação simbólica de luta contra a “subversão” no período. E que mesmocom a ameaça comunista extinta, o referido herói militar permanece fazendo parte do cotidiano dapopulação local através dos signos a ele relacionados. Sinal de que a construção de sua tradição foi umobjetivo alcançado em plenitude. Além disso, é no imaginário que ele ainda vai perdurar por muito tempo,pois seguidamente um soldado recruta durante o seu serviço noturno de guarda o quartel, vê vulto ououve ruídos nas proximidades da Praça Tenente Camargo, o onde que por enquanto, é o seu descanso.232425262728FOUCAULT, Op. Cit., 1986, p. 114.FISCHER, Op. Cit., p. 212.O texto supracitado trata-se de uma mensagem enviada pelo Tenente Antônio João Ribeiro, Comandante daColônia Militar de Dourados na Província de Mato Grosso momentos antes de tombar em combate. Emdezembro de 1864 enquanto liderava um efetivo de quinze homens acabaram fuzilados por tropas paraguaiasao defender a colônia. Em sua homenagem foi erguido monumento lhe dado o título de Patrono do QuadroAuxiliar de Oficiais do Exército brasileiro.Entrevista com o Subtenente da Reserva Sessuaf Micessuaf Polanski, Sargento Rádio-operador do Exército naOperação de Contraguerrilha de 1965.FÉLIX, Loiva Otero. A fabricação de carisma: a construção mítico-heroico na memória republicana gaúcha. In:FÉLIX, Loiva Otero; ELMIR, Cláudio P. (Orgs.) Mitos e heróis: construção de imaginários. Porto Alegre: Ed.Universidade /UFRGS, 1998, p. 142.MICELI, Paulo. O mito do herói nacional. São Paulo: Editora Contexto, 1997, p. 10.118


Fontes de primáriasFERRARI, Cândida. Retrato-Sargento Camargo. 2000. 1 original de arte, óleo sobre tela, 50 cm x 40 cm.Pavilhão de Comando do 16° Esquadrão de Cavalaria Mecanizado.LIVRO DE MEMÓRIAS SOBRE O TENENTE CAMARGO. 16° Esquadrão de Cavalaria Mecanizado.Referências BibliográficasARAÚJO, Maria Celina de; CASTRO, Celso (Orgs). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997.AUGUSTO, Agnaldo Del Nero. A grande mentira. Rio de Janeiro: Bibliex Editora, 2002.BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente: desafios. Cultura Vozes, Petrópolis, v.94, nº3, p.111-124, maio/jun., 2000.FÉLIX, Loiva Otero. A fabricação de carisma: a construção mítico-heroico na memória republicanagaúcha. In: FÉLIX, Loiva Otero; ELMIR, Cláudio P. (Orgs.) Mitos e heróis: construção de imaginários.Porto Alegre: Ed. Universidade /UFRGS, 1998.FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault e a Análise do Discurso em Educação. In: Cadernos dePesquisa, n. 114, p. 197-223, novembro/2001.FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1986.FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso. São Paulo: Ed. Loyola, 2010.FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Ática, 1988.GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Cia das Letras, 2002.GUIBERNAU, Monserrat. Nacionalismo: o Estado Nacional e o nacionalismo no século XX. Rio deJaneiro: Jorge Zahar Editor, 1997.LOVISOLO, Hugo. A memória e a formação dos homens. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3,p. 16-28, 1989.MAIGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1989.MICELI, Paulo. O mito do herói nacional. São Paulo: Editora Contexto, 1997.MITCHELL, José. Segredos à direita e à esquerda na ditadura militar. Porto Alegre: RBS Publicações,2007.ORLANDI, Eni Pulcinelli. A Linguagem e seu funcionamento. São Paulo:Brasiliense, 1983.STRATHERN, Andrew e STEWART, Pamela J. “Global, nacional, local: escalas móveis, temasconstantes”. In: BARROS, João Rodrigues (Coord.) Globalização e identidade nacional. São Paulo:Atlas, 1999.USTRA, Carlos Alberto Brilhante. A verdade sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasilconheça. Brasília: Editora Ser, 2006.ANEXO INarrativa sobre o Tenente Camargo. Fonte: Livro de Memória ao Tenente Camargo – 16° Esquadrão deCavalaria Mecanizado – Francisco Beltrão – Pr.119


120


121


122


III – Ditadura e Aparatos Repressivos123


124


Anos de chumbo: uma análise dos aparelhos de repressão na ditadura civil militar e suasinfluências no Maranhão.Wilson Pinheiro Araújo Neto1Resumo: Tomando como estrutura básica a teoria gramsciana, este artigo tem como objetivo analisar oprocesso de montagem e articulação do aparelho repressivo na Ditadura Civil Militar considerandovariadas análises da historiografia que perpassam pelas diversas práticas repressivas nos campospolíticos, social e cultural no Brasil e suas influências no Maranhão. Neste sentido, daremos ênfase Àspráticas de alguns órgãos criados na época e seus desdobramentos no campo das relações culturais,políticas e sociais com base na documentação do departamento de ordem política e social encontrada noArquivo Público do Estado do Maranhão que solidifica e confirma as análises apresentadas pelahistoriografia referentes a macro-organização dos aparelhos de repressão em todo o país.Palavras-chave: teoria gramsciana- repressão- ditadura civil militar- maranhão.Abstract: using the theory of antonio gramsci, this article aims to analyze the assembly process andarticulation of the repressive apparatus in civil military dictatorship considering various analyzes ofhistoriography that move through the various repressive practices in the political, social and culturaldevelopment in brazil and its influences in maranhão. In this regard, we emphasize the practices of somebodies created at the time and its developments in the field of cultural, political and social basis of thedocumentation department of political and social order found in the Public Archives of Maranhão thatsolidifies and confirms the analyzes presented by historiography concerning the macro-organization ofthe apparatus of repression throughout the country.Keywords: theory repression gramscian-civil-military-maranhão dictatorshipthis1. IntroduçãoRepressão: segundo um dicionário virtual, significa um recurso violento empregado oficialmentecontramovimentos sociais, dissidentes, revoltas populares e etc. 2 Este vocábulo, portanto, tem umespaço significativo na história da Ditadura Civil Militar 3 no Brasil. Momento histórico marcado porpráticas que desencadearam, muitas vezes de forma negligente, um duro processo de perseguiçãocontra aqueles que se opunham aos militares, principalmente a partir da implementação do AtoInstitucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968. No entanto, é necessário não datar o processo maisefetivo da repressão somente a partir do AI-5, uma vez que os atos institucionais anteriores e as própriasmedidas tomadas pelos órgãos de repressão, a exemplo do DOPS (departamento de ordem política esocial), tiveram início já no momento imediatamente posterior ao golpe.O historiador Carlos Fico, afirma que é necessário descobrir novas fontes provenientes dogoverno ou em arquivos sigilosos 4·. Neste aspecto, Fico afirma que embora tenhamos, de modo geral,assimilado as notícias de que os militares queimaram ou deram fim a essas fontes, os arquivos dosantigos DOPS nos possibilitam um vasto objeto de análise para pesquisas. No arquivo Público do Estadodo Maranhão (APEM) muita dessas fontes se quer foram tocadas, o que abre um leque de possibilidades1234Graduando do 7° período do curso de História da Universidade Estadual do Maranhão. Membro do NUPEHIC(Núcleo de Pesquisa em História Contemporânea). Bolsista FAPEMA pelo Projeto de Organização, Indexação,Informatização e Publicização do acervo documental sobre História Contemporânea presente no Maranhão, sobcoordenação da prof. Drª Monica Piccolo.Disponível em http://www.dicionarioinformal.com.br.Acessado em 03 de março de 2013.Apropriação do termo de René Dreifuss que aponta a participação da sociedade civil como preponderante paraa concretização do golpe militar. O artigo aqui apresentado, assim, compartilha dessa opção conceitualdefendida por Dreifuss, em sua obra “1664: A Conquista do Estado” que enfatiza a participação dos civis,reunidos no complexo IPES/IBAD, não só na organização do golpe militar de 1964, como também na ossaturamaterial do Estado que se configura a partir de então.FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar emovimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.167-2005.125


para pesquisas e análises acerca da estrutura da ditadura civil militar no Maranhão. Entre o vasto acervodocumental, podem ser encontrados testamentos, dossiês, cartas, publicações de jornais, ofícios desubversão, dentre outros. Os trabalhos desenvolvidos sobre o tema na região nordeste tem sido cadavez mais cobiçados pelos historiadores que se debruçam sobre o regime militar, contemplando osdesejos de Gorender em mergulhar nos fatos isolados e obviamente descentralizar as discussões sobrea repressão no eixo Rio-São Paulo ou na região sul.Neste artigo analisaremos o processo de repressão considerando aspectos determinantes paraentender a Ditadura Civil Militar, como a criação de alguns órgãos pelos militares para “estabelecer aordem”, principalmente no campo cultural; a censura a jornais e movimentos artísticos; as estruturas deespionagem que, segundo Carlos Fico, chegavam a criar situações em volta de um cidadão que poderiasuspeito ou não, que porventura ameaçaria a moral dos militares, sendo considerados subversivos aponto de serem torturados ou até mortos; as propagandas que eram lançadas com a proposta delegitimar um “bem-estar social” e maquiar as sequelas provenientes das repressões do regime militar.Nos Apropriaremos, ao longo do trabalho, do corpo teórico elaborado por Antônio Gramsci,principalmente os conceitos de “batalha cultural” e binômio coerção/consenso no contexto da “operaçãolimpeza desencadeada imediatamente após a deposição de Goulart. A partir destes aspectos,procuraremos entender em determinados momentos o quanto os aspectos culturais no regime militarestiveram inteiramente conectados com a disputa de poder de diferentes grupos que lutavam pelahegemonia. Órgãos a exemplo do IPES/IBAD que eram instituições criadas com a proposta de elaborare publicizar projetos políticos que por sua vez eram defendidos por diferentes classes que almejavamchegar ao poder. Logo, o momento em que são apresentadas organizações com uma estruturaideológica e política, para Gramsci, tornam-se mais prováveis e sólidas as chances de se conquistar ahegemonia. 5Para esta análise utilizaremos uma fonte primária a documentação produzida pelos agentes doDops reunida no Arquivo Público do Estado do Maranhão. Foi realizado O trabalho de mapeamento efotografia de documentos, dossiês, recortes de jornais, fichas de subversivos entre outros. Dentre asdiversas documentações analisadas nos chamou a atenção um caso, ocorrido no Rio Grande do Sul em1966, conhecido como “caso das mãos amarradas”. Foi encontrado no rio Guaíba o corpo do ex-militarManoel Raimundo Soares boiando com as mãos amarradas. No entanto, porque usar como objeto deanálise tal documentação uma vez que a mesma não relata um caso específico no Maranhão? Aresposta será construída ao longo deste artigo sustentando a hipótese que a historiografia recente jáaponta: a existência de um sistema complexo e muito bem organizado contra aqueles que se opunhamao projeto milita. Desta forma notaremos na sustentação de diversos projetos vislumbrados e até mesmoconcretizados pelos militares, está presente a montagem de um aparelho repressivo que não ficou emsegundo plano. Muito antes pelo contrário, a macroestrutura encabeçada pelos militares com a intençãode punir, torturar, privar e até matar em nome da manutenção da ordem do aparelho estatal gerou umclima de tensão na sociedade civil do Brasil durante o regime militar.2. Os militares e a nova ordem socialOs militares da “linha dura”, sob o comando do então Presidente Artur da Costa e Silva,protagonizaram aqueles que podem ser considerados os momentos mais conturbados da História socialdo Brasil em relação à liberdade de expressão e valorização dos direitos humanos. A partir daimplementação do AI-5 estavam estabelecidos os novos parâmetros para uma caracterização de umaordem social. Os militares estavam mobilizados para protegerem-se dos movimentos de contestação quesurgiram com grande efetividade a fim de questionar o regime e suas práticas.Segundo Thomas Skidmore 6 os militares, mesmo depois do golpe, divergiam com os moderadosaté acerca das instâncias que os atos de repressão por parte do governo deveriam ser praticados.Embora os militares da linha dura aparentemente estivessem tentando atuar dentro da legalidade, osatos de repressão contra os subversivos continuavam. Carlos Fico, em um texto intitulado: Espionagem,polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão 7 apresenta alguns motivos queimpulsionaram a instauração do mais famoso dos atos institucionais como os inflamados discursos deMarcio Moreira Alves que defendiam a greve das mulheres dos militares contra seus maridos. Apresentaainda a vontade primária que era fechar a Câmara dos Deputados realizando uma segunda edição da“Operação Limpeza”. No entanto, muito mais do que dissolver a Câmera dos Deputados (fato que opresidente anterior, Castelo Branco, já havia feito) um dos grandes trunfos do AI-5 foi a possibilidade de567COUTINHO, Carlos Nelson, Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989.SKIDMORE, Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.p.165FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar emovimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro: Civilização Brasileira,2003,p167-2005126


cassação de mandatos de alguns políticos, o confisco de bens daqueles que enriqueceram ilicitamente ea redução do poder do habeas corpus. Ainda como inovação e peculiaridade do AI-5, temos a nãodemarcação do tempo em que perduraria o ato institucional. Diferentemente dos outros que tinham “datapra terminar”, o AI-5, por sua vez, não tinha prazo de validade.Nesse contexto de constantes e mudanças por partes dos militares, houve uma amplareordenação dos órgãos governamentais e de seus instrumentos de atuação. Os IPM’s (InquéritosPoliciais Militares), por exemplo, eram vítimas do discurso da ineficiência e de que a “Revolução” nãoestava sendo concretizada devido à demora em julgar os processos; a “Comissão Geral do IPM” erainicialmente de responsabilidade dos policiais civis. Depois do AI-5, entretanto, foi editado um novocódigo de processo penal militar em que todas as delegações e responsabilidades foram passadas aosmilitares, sob o discurso da eficiência e da rapidez. O fato é que os “linhas-duras” organizaram um forteaparelho repressivo muito bem estruturado.Estas análises, portanto, correspondem estrutura Gramsciana de busca pela hegemonia. Este processo,além de ser feito em longo prazo, é realizado somente pela classe que se encontra no poder e que lideraa constituição. As modificações sociais para Gramsci só serão possíveis precedidas de um projetocultural bem articulado, como diz Carlos Nelson Coutinho na sua obra: Gramsci: um estudo sobre seupensamento político. 8Para Gramsci, a cultura seria um meio privilegiado para romper com o individualismo e despertarnos homens uma consciência universal. Esta base cultural, além de gerar uma consciência de valor dasociedade humana (pressuposto ético do socialismo), seria ainda uma sólida construção de base dosocialismo antes da tomada do poder. Neste sentido, percebemos a presença de um projeto cultural porparte dos militares (no contexto gramsciano seria a Sociedade Política 9 ) que se articulara com a criaçãode órgãos, a exemplo da Aerp (Assessoria Especial de Relações Públicas) que foi responsável pormontar todo um aparato de propaganda para sustentar os ideais do projeto militar.3. Uma “superestrutura de repressão”Mediante ao novo momento em que os militares tomam as rédeas do poder, surge anecessidade de criar uma nova estrutura pra combater aqueles que ameaçavam a ordem do País. Nessecontexto, percebemos que alguns órgãos de repressão vão sendo criados a fim de não dar brechas àsconstantes práticas de contestação que consecutivamente também vão se intensificando no período daditadura através dos jornais e as diversas manifestações culturais.Inicialmente, o SNI (Serviço Nacional de Informações) que era a instituição responsável pelasinformações, desde as fases de conspirações anterior ao golpe, foi criado também o Sistema Federal deInformações e Contra-Informações (SFICI) criado por Golbery do Couto e Silva 10Golbery, o ministro Chefe da Casa militar, o general Jayme Portela de Melo e o próprio presidente Costae silva se tornaram figuras essenciais para entender as origens da repressão. Com o passar do tempo,as competências do Conselho de Segurança Nacionais foram somente aumentando. Estava sendomontada no país uma estruturada rede de espionagem para monitorar os subversivos. A criação daAssessoria Especial de Segurança (AESI) se deu bem mais por capricho e pelo prestígio dos seuschefes, ou seja, as AESI’S eram a assessoria de um “órgão macro”, subordinada ao Conselho deSegurança Nacional para auxiliar nas investigações e nas práticas de espionagem.Destaca-se nesse aparato de repressão em construção a elaboração do “Plano Nacional deInformações”, aprovado pelo SNI, que se tratava de uma zona de espionagem que passaria, a partirdaquele momento a fazer parte do conjunto. Outra criação dos linhas-duras foram os falados CODI-DÓIou DÓI-CODI que aliavam a simples prática de colher informações e executar as penas e as torturasdesignadas. Segundo Carlos Fico, o DÓI fazia todo o processo de sondagem e recortes de jornais,ficando encarregados de juntar as provas. Já o CODI punia, torturava e até matava. Havia mais órgãosinternos, como o Centro de Informações do Exército, o CISA (Centro de Informação de Segurança daAeronáutica) e o CENINAR que era o da Marinha (considerado o mais violento dos três). Cabe lembrarque todos esses órgãos específicos foram criados com um objetivo principal que era lutar contra asubversão.No Maranhão, nas fontes disponíveis no Arquivo Público do Estado, se encontram várias listasde cidadãos que eram julgados por militares como “subversivos” e que muitas vezes nem sabiam queeram notificados. A criação deste macroaparelho formado para reprimir os “subversivos” chegou a8910COUTINHO, Carlos Nelson, Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989.GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº 13).Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar emovimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003,p175-2005127


extremos como julgar banalmente qualquer cidadão que vivesse uma rotina um pouco diferente dosdemais. No entanto, se de um lado a vida cotidiana de um trabalhador comum é abalada, os policiaspertencentes a muitos desses órgãos também não poderiam se expor sob o risco de sofrer represarias.Um fato importante de se destacar é que o discurso para legitimar perante a sociedade a atuação demuitos desses órgãos foi o combate à luta armada e às guerrilhas urbanas que, segundo os militares,estavam por vir. Embora se tivesse tais acontecimentos, mesmo depois do fim das “guerrilhas” os órgãoscontinuaram atuando de forma efetiva. O foco, entretanto, é alterado: a disseminação das ideiassocialistas e do comunismo pregados pelos PCB agora seria o novo argumento para legitimar a atuaçãodos órgãos de repressão. Outro aspecto que vale ressaltar foi à criação do Sistema CGI (Comissão geralde investigações) que consistia na punição de homens públicos que se envolviam em escândalos decorrupção e enriquecimento ilícito 11 .No entanto, este funcionou por pouco tempo já que muitos militaresestavam também envolvidos em crimes de corrupção. Logo, este serviu principalmente para intimidar osinimigos a não entrarem na “onda de corrupção”4. Censura: criação ou adaptação?No campo da censura, é importante frisar que esta sempre existiu no Brasil e que nunca foi difícilde difícil execução. Ao pensarmos nas práticas de censuras mais significativas, aquelas realizadas peladitadura civil militar é o maior objeto de estudo por sua intensidade e temporalidade. Assim sendo, nãose trata de uma criação da censura pelos militares no pós 1964, mas sua adequação aos moldes daditadura.No texto Cães de Guarda: entre jornalistas e censores, Beatriz Kushnir define os militares comoagentes intensos na censura no Brasil, focando principalmente nos cruzamentos que se davam entre osjornalistas que eram censores ou vice-versa, em outros casos de jornalistas que eram policiais e tambémcensores. A autora afirma que as empresas jornalísticas poderiam também ser vistas como clãs, feudos,oligarquias partindo do pressuposto que os principais jornais do eixo Rio-São Paulo-Jornal do Brasil, OGlobo, Folha de S. Paulo e o Estado de S. Paulo, são ou foram pelo menos até pouco tempo empresasfamiliares 12 .Destacamos ainda a censura prévia, citada por Carlos Fico, 13 como uma medida de proteção dosmilitares para que não fossem liberadas quaisquer publicações. A censura prévia consistia na análisedas publicações de artigos e matérias que eventualmente poderiam significar uma afronta ao Regimemilitar podendo ser divulgadas ou instantaneamente vetadas. No âmbito musical não foi diferente. Ementrevista ao “Estado de São Paulo”, em 30 de Janeiro de 2005, Odete Lanziotti, funcionária aposentadada polícia federal e ex técnica de censura nos anos 70, relatou situações pelas quais teve que vetarmúsicas ou responder alguns processos por liberação de músicas que supostamente abalariam a moraldo Estado.5. O caso “mãos amarradas”: do rio grande do sul ao maranhãoComo já exposto anteriormente, tanto o Sistema Nacional de informações (SNI) quanto asAESI’s, o SFI, entre outros, foram órgãos criados com o objetivo de obter um sistema unificado que fossecapaz de controlar todo o aparelho de repressão. No Maranhão, a sede do Dops estava localizadaexatamente na Secretaria de Segurança Pública no Estado do Maranhão. Não sabemos ao certo quandoa documentação do caso mãos amarradas deu entrada na Secretaria de Segurança na época doRegime. No entanto, em 1991 esta documentação chegou a Arquivo Público do Maranhão através doProjeto “Memórias Reveladas” apresentando nomes de grandes personalidades do Brasil e doMaranhão.Durante as pesquisas no Arquivo Público do Estado do Maranhão nos deparamos com adocumentação de um caso que ocorrido em outro canto do país. O caso “Mãos Amarradas” ocorreu noRio Grande do Sul. Tratava da morte de um dos líderes do “movimento legalista”, Manoel RaimundoSoares, que apoiava a restituição do Governo João Goulart que fora deposto pelos militares. O Sargentofoi preso o Rio Grande do Sul em 1966. O caso ficou conhecido nacionalmente pela característica de sua111213FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar emovimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.175-2005KUSHNIR, Beatriz, Cães de Guarda: entre jornalistas e censores. In: REIS, Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo,MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O Golpe militar e a ditadura civil militar 40 anos depois(1964-2004) Bauru,SP: Edusc 2004.FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar emovimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.190-2005.128


utalidade. O corpo foi encontrado com as mãos amarradas no Rio Guaíba no dia 24 de agosto 14 .A documentação trata basicamente da solicitação da reabertura das investigações do caso“Mãos Amarradas” pelo reformado militar da Aeronáutica, Mário Ranciaro, que acusava militares do IIIExército pela morte do sargento Manoel Soares e ainda pelo assassinato de Hugo Kretschoer que teriasido o autor do crime. No recorte do Jornal Folha da Tarde, de quatro de janeiro de 1980 (figura 1) foipublicado a solicitação de abertura do processo contra os militares acusados do crime. É importantedestacar que neste momento o AI-5 já fora extinto 15 , que possibilitou a reabertura do processo sem aintervenção dos militares no julgamento dos possíveis culpados 16 . Mesmo com a Lei da Anistia decretadapelo governo Figueiredo em 1979, não seriam isentos de investigações.Em outra documentação, temos um ex-deputado destacando que a reabertura da investigaçãodo caso “Mãos Amarradas” seria de grande importância para a moral do país, (figura 2) destacando adificuldade de investigar a própria polícia.Essa resistência da política em investigar a polícia não é surpresa quando eles estãoenvolvidos. Basta recordar o recente caso do sequestro dos uruguaios Lilian Celibert eUniversindo Dias, até hoje não solucionados. Ex-deputado do MDB Airton Basnarque,Jornal do Brasil 15/01/80Foram encontrados ainda registro das reações dos militares no intuito de reverter o quadro dasinvestigações a seu favor. O tenente Ranciaro seria submetido a um exame de sanidade mental pelaJunta Médica Superior da Aeronáutica. O advogado do tenente, no entanto, entrou com um recurso paraevitar os exames. (figura 3)6. Gramsci no contexto da repressãoDiante do exposto podemos destacar um aspecto importante na Ditadura Civil Militar brasileira:as subdivisões entre os próprios militares, que por sua vez, não se limitaram somente ao início do regime(linhas duras e os moderados), mas depois do cancelamento do AI-5. O fato é que os militares não eramhomogêneos. Havia disputas endógenas e projetos que estavam em disputa pelo controle da ossaturamaterial do Estado. A morte do sargento Manoel Soares, assim, pode ser considerada como um reflexode tais disputas. A morte do sargento Manoel pode ser lida como um a derrota da fração dominada daclasse dominante. No caso específico, a derrota de um determinado projeto de defesa da legalidade e dopoder constituído pelo então presidente, democraticamente eleito, João Goulart.Em uma perspectiva gramsciana, nos primeiros momentos do golpe, predomina a repressãocomo instrumento garantidor do exercício do poder por aqueles que controlavam o Estado Restrito: osmilitares. A “Operação Limpeza” foi, portanto, foi um reflexo do predomínio da repressão na Ditadura CivilMilitar. Ao longo do tempo, na proporção que os níveis de repressão diminuem, inicia-se o movimento detentativa de construção do consenso, exemplificado, por exemplo, pela participação da Aerp (AssessoriaEspecial de Relações Públicas) que foi encarregado de organizar um novo projeto de divulgação dosideais militares. Segundo Carlos Fico, os jargões do “desenvolvimento”, “mobilização da juventude”,“fortalecimento do caráter nacional”, “amor a pátria” entre outros 17 , foram criados na tentativa dedisseminação das novas estratégias do governo de legitimar seus projetos, um quadro bem diferente doinício da ditadura como o exemplo do “ame ou deixe-o”.Segundo Gramsci, um determinado grupo conquista a hegemonia através de dois pilares: um decoação ou dominação e o outro através do direcionamento intelectual ou consenso. Na ditadura civilmilitar brasileira não foi diferente. Quando tivemos um determinado enfraquecimento da repressão comomodo de coação, os militares partem para outro projeto: o consenso a fim de consolidar um determinadoprojeto da classe dominante. 187. ConclusãoA documentação analisada para a produção deste artigo nos despertou o interesse para1415161718Disponível em: http://www.documentosrevelados.com.br/repressao/o-caso-das-maos-amarradas-prisao-e-mortede-um-sargento-nacionalista/;Jornal O estado de São Paulo,12,outubro de 1979, série: Avulsos, Pasta: 12, Cod:07 Fl.125.APEM.Emenda constitucional nº 11 que declara extintos os poderes discricionários estabelecidos pelo AI-5 e demaislegislações repressivas no dia 13 de outubro de 1978 e extinto definitivamente no dia primeiro de janeiro.FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record,2001 p.251FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar emovimentos sociais em fins de século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2003,(p193-195), 2005.GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº 13).Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.129


comprovar a eficiência do projeto de repressão proposto pelos militares. Um fato ocorrido no outro cantodo país chega ao Maranhão podendo ser lido como reflexo da macro organização de punição a quem seopunha ao projeto militar. Foram, portanto, representações de uma “cadeia nacional” montada pelosinstrumentos de repressão no Brasil. Quando citamos Gramsci, estabelecemos uma relação da culturacom a hegemonia. A batalha cultural é pensada como um projeto anterior a conquista do poder. Gramsciobserva na cultura um meio privilegiado de romper com o individualismo 19 . No desfecho da história daditadura civil militar, percebemos que as manifestações culturais foram preponderantes pra aconsolidação das “Diretas já”.A proposta foi apresentar a montagem e as articulações feitas pelos militares para não deixarinvadir pelos movimentos de contestação, perceber ainda que o projeto da ditadura civil militar em si foimuito bem articulado, capaz ainda de sobreviver por 20 anos.8. Imagens* Figura 1. Jornal O Estado de São Paulo s/d ,série: Avulsos, Pasta: 12, Cod: 07 Fl.125.APEM.*Figura 2. Jornal do Brasil Jornal doBrasil. 15/01/80 série: Avulsos, Pasta: 12,Cod: 07 Fl.125.APEM.*Figura 3. Jornal Folha da Tarde, 12,junho de 1979, série: Avulsos,Pasta: 12, Cod: 07 Fl.124.APEM.19Carlos Nelson130


8. Fontes e Referências BibliográficasDocumentação Dops-Arquivo Publico do Estado do Maranhão Avulsos, Pasta: 12, Cod: 07 Fl.124http://www.dicionarioinformal.com.br/repress%C3%A3o/http://www.documentosrevelados.com.br/repressao/o-caso-das-maos-amarradas-prisao-e-morte-de-umsargento-nacionalista/COUTINHO, Carlos Nelson, Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro:Campus, 1989.FICO, Carlos. Além do golpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro:Record, 2004.FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record,2001FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar emovimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro :Civilização Brasileira,2003,p167-2005DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado. Ação politica, poder, e golpe de classe. Rio de janeiro:vozes, 1987.GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº13). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.KUSHNIR, Beatriz, Cães de Guarda: entre jornalistas e censores. In: REIS, Daniel Aarão, RIDENTI,Marcelo, MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O Golpe militar e a ditadura civil militar 40 anos depois(1964-2004) Bauru,SP :Edusc 2004.SKIDMORE, Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.131


Ângelo Cardoso da Silva: Herzog gaúchoGraziane Ortiz RighiResumo: Este artigo tem por objeto apresentar uma nova versão sobre a morte do militante do M3G,Ângelo Cardoso da Silva, que foi declarado pelo regime civil-militar como suicídio. Entretanto devido asevidências localizadas no Inquérito Policial, aberto para investigar a morte, é possível evidenciar que nãose trata de suicídio, mas sim de assassinato. Este questionamento sobre as reais evidências da morte deÂngelo só é possível, pois há precedentes na ditadura civil-militar brasileira e por ainda não termosacesso a toda documentação referente ao período o que possibilita a dúvida.Palavras-chave: golpe civil-militar - resistência - torturaIntroduçãoInício dos anos setenta no Brasil, a repressão do Regime Militar se intensifica, as organizaçõesde esquerda que optaram pela luta armada começam cair uma a uma. No Rio Grande do Sul não édiferente. Um preso político é encontrado morto em sua cela no Presídio Central, nesse período. Suamorte é tratada como suicídio, entretanto as fotos do Inquérito Policial, encontrada no Arquivo JudicialCentralizado do Rio Grande do Sul, questionam essa possibilidade, pois o corpo encontrava-se com umlençol amarrado ao pescoço e com os joelhos dobrados, sem vão-livre para sua queda, o queimpossibilitaria o enforcamento.Segundo informações do Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, Ângelo Cardosoda Silva nasceu em 27 de outubro de 1943 (contava com 26 anos quando morreu), em Santo Antônio daPatrulha (RS), filho de João Cardoso da Silva e Celanira Machado Cardoso. No inquérito policial constacomo nome do pai Oswaldo Cardoso da Silva, o nome da mãe é o mesmo.Ângelo era motorista de táxi. Iniciou seus estudos primários aos 24 anos, quando tambémpassou a se interessar pelas questões políticas do país. Era militante da organização Marx, Mao,Marighella, Guevara, o M3G, que atuava restritamente na região sul do país. Ângelo morreu aos vinte edois dias de abril de 1970, segundo a versão oficial se suicidou com um lençol em sua cela no PresídioCentral.De acordo com o Dossiê Ditadura, o boletim da Anistia Internacional de março de 1974 denunciaa morte de Ângelo como tendo ocorrido em “circunstâncias misteriosas”. O relator do caso (232/96) naCEMDP, general Oswaldo Gomes Pereira, apresentou voto pelo indeferimento do pedido, alegando faltade provas da motivação política de sua prisão. Nilmário Miranda pediu vistas e, em 27 de agosto de1996, apresentou um parecer favorável comprovando sua participação política, sendo o caso aprovadopor unanimidade. O livro Dos filhos deste solo de, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, trata a morte deÂngelo como assassinato, mas também apresenta a versão do estado como suicídio.Sobre a fonte a ser trabalhada, ou seja o Inquérito Policial, é necessário levar em conta, quetudo aquilo que chegou até nós não chegou por acaso. Todo documento envolve saberes, poderes eintencionalidades. Nesse sentido, a objetividade do documento – o qual parecia apresentar-se por simesmo como uma prova histórica para a historiografia tradicional, desde que fosse testada a suaautenticidade – que se opunha à intencionalidade do monumento é uma ideia superada. Sabemos quetoda fonte histórica deve ser vista como um “documento-monumento”, conforme definido por Jacques LeGoff: longe de ser um resíduo imparcial e objetivo do passado, o documento é carregado deintencionalidade; sua produção e sua preservação resultam das relações de força que existiram eexistem nas sociedades que o produziram. Estas premissas se fazem necessárias, principalmente nestadocumentação que vamos trabalhar, pois analisaremos um inquérito policial aberto para simular umpossível assassinato, tratado como suicídio.Outros casos de falso suicídioO questionamento sobre as circunstâncias da morte do militante do M3G, Ângelo Cardoso daSilva, só é plausível, por não se tratar de um caso único. Há precedentes na história da ditadura civilmilitarbrasileira de casos de mortes, geralmente de pessoas que não resistiram a tortura, seremdivulgados pelo governo como suicídio para ludibriar a opinião pública e como tentativa de encobrir seuscrimes. O caso mais emblemático desta situação é a morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, no132


entanto há outros casos de “falso” suicídio como o do metalúrgico Manoel Fiel Filho, militante do PCB,morto no início de 1976 e do tenente da reserva da Polícia Militar de São Paulo, também militante doPCB, José Ferreira de Almeida, morto em 1975.A morte de Vladimir Herzog teve grande repercussão na mídia, por trata-se de um jornalista, etambém entre a população. Seu assassinato foi um dos mais divulgados e documentados do período daditadura, sendo considerado um marco na luta de resistência. 1 Vlado, como era chamado entre osamigos, era secretário do jornal “Hora da Notícia, na TV Cultura de São Paulo, e chegou a diretor dodepartamento de telejornalismo da emissora. Exercia sua profissão movido pela proposta de que aimprensa deveria cumprir sua responsabilidade social. Defendia que a TV Cultura deveria produzir umjornalismo profissional não subserviente ao Estado e que, mais do que educativo ou cultural, fossepúblico. 2 Além disso era professor da Universidade de São Paulo e teatrólogo.De acordo com o Dossiê, agentes do DOI-CODI/SP tentaram prender Herzog na noite de 24 deoutubro de 1975 em sua casa, mas ele não estava lá. Seguiram para a sede da TV Cultura, onde eleestava trabalhando. Lá após algumas negociações entre jornalistas e agentes ficou acertado que Herzogse apresentaria no dia seguinte na sede do DOI-CODI. Como combinado ele compareceu sem escoltapolicial, no dia 25 de outubro de 1975. Era acusado de ligações com o PCB.Sua prisão e morte foi consequência da “Operação Jacarta” que procurava atingir entidadesinfluentes da opinião pública, essa, por sua vez, fazia parte da “Operação Radar”, que objetivava umagrande ofensiva do Exército, iniciada em 1973, para dizimar a direção do PCB.Segundo a versão oficial, Herzog teria se enforcado com o cinto do macacão de presidiário quevestia. A farsa foi desmascarada pelo testemunho de seus companheiros de prisão, Rodolfo Konder eJorge Benigno Jathay Duque Estrada, jornalistas presos na mesma época no DOI-CODI, que foramacareados com Vlado. Logo após, permaneceram próximos à sala onde ele se encontrava sendointerrogado, de onde ouviam com nitidez seus gritos, o barulho de pancadas e as ordens do torturadorpara aplicação de choques. O IPM instaurado para apurar a morte de Herzog concluiu que ele sesuicidara exatamente como noticiado pelo Comando do II Exército.A morte por suicídio foi desmentida pelas próprias contradições existentes nos depoimentos dosmédicos legistas Harry Shibata, Arildo de Toledo Viana e Armando Canger Rodrigues, prestados na açãojudicial movida pela família, cuja decisão foi dada em 27 de outubro de 1978. Essa ação declaratóriaterminou por responsabilizar a União pela prisão, tortura e morte de Vladimir Herzog.A falsidade de seu suicídio ficou flagrante na foto em que aparece nas dependências do DOI-CODI paulista, pendurado nas grades de uma janela, sem vida, com um cinto amarrado ao pescoço ecom os joelhos dobrados, supostamente enforcado, ainda que não houvesse vão-livre para a sua queda.Evidências inquestionáveis da tortura foram, ainda, identificadas pelo comitê funerário judaicoresponsável pela preparação do corpo para o funeral. Por essa razão, Herzog foi enterrado dentro docemitério e não em área separada, como são tratados os suicidas no judaísmo.O sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo lançou um abaixo-assinadocom denúncia pública, questionando a versão oficial de suicídio. Dom Paulo Evaristo Arns dirigiu umculto ecumênico, concelebrado com o rabino Henry Sobel e com o reverendo Jaime Wright. 3Poucos meses depois da morte de Vladimir Herzog, outro preso político que estava sob custódiaDOI-CODI/SP foi morto, mas a versão oficial era de suicídio. Manoel Fiel Filho era operário metalúrgico emilitante do PCB, foi preso em 16 de janeiro de 1976, às 12h, na fábrica onde trabalhava por doishomens que se diziam funcionários da prefeitura. Puseram-no num carro, foram até sua casa, que foivasculhada por eles. Nada encontraram que pudesse incriminar Fiel Filho. Diante de sua mulher –Thereza de Lourdes Martins Fiel – foi levado para a sede do DOI-CODI do II Exército, afirmando que elevoltaria no dia seguinte. Manoel foi torturado e, no dia seguinte, acareado com Sebastião de Almeida, 4preso sob a mesma acusação. 5Posteriormente, os órgãos de segurança emitiram uma nota oficial afirmando que Manoel haviase enforcado em sua cela com as próprias meias, naquele mesmo dia 17, por volta das 13 horas.Contudo, segundo os depoimentos de seus companheiros da Metal Arte, onde ele trabalhava e tinha sidopreso, o calçado que usava era chinelos, sem meias, contrariando a versão oficial. Além disso, seu corpo12345Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão deFamiliares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p 627Idem, p. 626.MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. Mortos e desaparecidos políticos durante aditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. p, 343.Sebastião Almeida, o Deco, vendia bilhetes de loteria na portaria da Metal Arte e era militante do PCB. Distribuíaalguns exemplares do periódico Voz Operária e recolhia contribuições financeiras para o jornal. Informaçõesretiradas de Idem. p, 350.Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão deFamiliares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p, 636.133


apresentava sinais evidentes de torturas, hematomas generalizados, principalmente na região da testa,pulsos e pescoço.Um fato que demonstra a responsabilidade dos órgãos de segurança pela morte de Manoel FielFilho é o afastamento do general Ednardo D’Ávila Mello da chefia do II Exército, ocorrido três dias apóssua divulgação. O mesmo que tinha atuado no caso de Vladimir Herzog, portanto sua imagem já estavabastante desgastada. O presidente da República, general Ernesto Geisel, também tirou da chefia do CIEo general Confúcio Danton de Paula Avelino, acirrando uma crise com o ministro do Exército, SylvioFrota, que foi demitido no ano seguinte.O exame necroscópico, solicitado pelo delegado de polícia Orlando D. Jerônimo, e assinadopelos médicos legistas José Antônio de Mello e José Henrique da Fonseca, confirma a versão oficial. FielFilho foi enterrado por sua família no Cemitério da IV Parada, em São Paulo.O Dossiê de Mortos e Desaparecidos Políticos, organizado pela comissão de familiares,apresenta um documento de 28 de abril de 1976, assinado por Darcy de Araújo Rebello, procuradormilitar, onde pedia o arquivamento do caso alegando queas provas apuradas são suficientes e robustas para nos convencer da hipótese desuicídio de Manoel Fiel Filho, que estava sendo submetido a investigações por crimecontra a segurança nacional [...] Aliás conclusão a que também chegou o ilustreEncarregado do Inquérito Policial Militar. 6Outra fonte sobre o assunto encontra-se no livro A Ditadura Encurralada, de Elio Gaspari, ondehá outras informações sobre o caso. O seguinte relato foi recebido do Serviço Nacional de Informaçõespelo capitão Dias Dourado, assistente do general João Batista Figueiredo, então chefe do SNI:– Nominado [Manoel Fiel Filho] era casado com dois filhos e não há qualquer sinal deviolência no corpo.– foi encontrado estrangulado com uma meia de nylon de homem. Não estácaracterizado suicídio. 7Pelo sétimo dia de morte de Manoel foram celebradas três missas, noticiadas pela imprensa,cujos recortes, com carimbos do Setor de Análise da Delegacia Especializada de Ordem Social, foramencontrados nos arquivos do DOPS/SP, nos quais se lê que uma das missas contou com mais de 400pessoas. Houve manifestação dos religiosos que as celebraram contra as torturas e as prisões. 8A morte de José Ferreira de Almeida também aconteceu de forma obscura, com o estadoafirmando ser suicídio, mas as evidências apontando para assassinato. José era tenente da reserva daPolícia Militar de São Paulo e militante do PCB. Foi preso dia 7 de julho de 1975, aos 64 anos de idade,com outros militantes e vários policiais da PM, acusados de serem membros do PCB. Sua prisão, assimcomo de Vladimir Herzog, foi consequência da “Operação Radar”, que objetivava dizimar a direção doPCB.Passou um mês incomunicável, sofreu torturas físicas e psicológicas. Depois de várias tentativasseu advogado conseguiu visitá-lo, em 7 de agosto, no DEOPS/SP. Pois, após o AI-5 era permitido que asautoridades policiais mantivessem o preso em seu poder por dez dias sem comunicar o fato à JustiçaMilitar, contribuindo para a institucionalização das torturas. 9 Na visita o advogado pôde observar o quantoAlmeida se encontrava abatido, tenso, com sinais bem visíveis de tortura. Ele teria dito ao advogado quetemia ser morto. No dia seguinte, segundo nota do Exército, apareceu morto, enforcado “ao amarrar ocinto do macacão que os presos utilizavam a uma das grades da cela”. 10Seu corpo foi velado no Hospital Cruz Azul da Polícia Militar, com a presença de agentes desegurança do II Exército. O caixão foi aberto pelo advogado e familiares, que puderam constatar astorturas sofridas. Depoimentos em auditorias militares dos presos políticos major Carlos GomesMachado, capitão Manoel Lopes e tenente Atílio Geromin denunciaram as torturas sofridas por JoséFerreira.O atestado de óbito foi assinado pelo mesmo médico-legista Harry Shibata, que atestou as678910Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão deFamiliares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p, 637.Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão deFamiliares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p, 637.Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão deFamiliares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p, 637.MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. Mortos e desaparecidos políticos durante aditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. p, 332.Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão deFamiliares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p. 616.134


farsas de Herzog e Fiel Filho. Shibata atesta como causa da morte asfixia por constrição do pescoço.Assina ainda o atestado de óbito Marcos Almeida. O documento dá a data da morte como 8 de agosto de1975, em hora ignorada. Foi encontrado no arquivo do DOPS/SP um relatório da Enfermaria do IIExército onde se vê que, além das torturas e maus-tratos, José Ferreira de Almeida sofreu com umaúlcera duodenal, sendo atendido nos dias 8,10,14,19 e 20 de julho e 3 de agosto. 11Em A Ditadura Encurralada, de Elio Gaspari, o assunto é tratado:O tenente reformado José Ferreira de Almeida, o Piracaia, tinha 64 anos e mais de vinteanos de militância [...] No princípio de agosto, deitado num colchão da carceragem doDOI, despediu-se de um capitão: “Eu não agüento mais...vou morrer [...] O II Exércitoinformou que no dia 8 de agosto Piracaia se enforcara. Teria amarrado o cinto domacacão à grade da cela, de forma que seu corpo pendeu com as pernas dobradas e ospés no chão. Segundo o SNI, Piracaia se matara “quando havia indícios de que irianomear os prováveis contatos em outras áreas militares”. Oficialmente era 36° preso ase suicidar dentro de uma prisão da ditadura, o 16° enforcado, o sétimo a fazê-lo semvão livre. 12As três mortes relatadas aconteceram todas em São Paulo com pouco tempo de diferença entresi e foram reconhecidas como mortes efetuadas pelos agentes da repressão. A morte de José Ferreirade Almeida ocorreu na mesma cela onde foi “encenado” o suicídio de Vladimir Herzog.Outro fato importante a ser ressaltado é que a morte de Ângelo Cardoso da Silva ocorreu anosantes a esses casos mais divulgados de falso suicídio, o que configura uma prática comum da açãorepressiva.M3GO nosso objeto central de pesquisa neste artigo era militante do M3G, dessa forma algumasinformações sobre a mencionada organização são importantes, para assim compreender o nível deenvolvimento do nosso personagem com o grupo de resistência.A organização Marx, Mao, Marighella e Guevara, conhecido como M3G, foi constituída emmeados de 1969 por Edmur Péricles Camargo. Segundo Fábio André Gonçalves das Chagas, o grupo foiresponsável pelo desencadeamento das ações armadas no Rio Grande do Sul. 13 Edmur havia lutado aolado de Carlos Marighella na Aliança Libertadora Nacional (ALN), em São Paulo, mas também já tinhaatuado no Rio Grande do Sul pelo partido comunista no final dos anos cinquenta e inicio dos anossessenta, regressou ao estado em abril de 1969 por divergir da estratégia postulado por Marighella paraenfrentar a ditadura.No livro Guerra é guerra, dizia o torturador (1981), de Índio Vargas, que fazia parte da lutaarmada do PTB, ele descreve seu encontro com Edmur quando foi procurado por este em sua casa: “umnegro, alto forte, aparentando 50 anos, bem-vestido, [...] cabeça raspada a navalha [...] maneiras polidas,palavra fluente, linguagem característica de um homem de esquerda”. 14 O objetivo de Camargo eraconseguir o apoio de Índio Vargas para suas ações no estado de expropriações para arrecadar fundospara a guerrilha. Em depoimento de Vargas, no Seminário Internacional Carlos Alberto Tejera de Ré, emmaio de 2012, o interlocutor afirma que Edmur Péricles Camargo havia saído de São Paulo, poisacreditava que a linha de combate de Carlos Marighella estava muito “fraca”, que era preciso ações maisfortes para combater o regime, assim ele veio buscar apoio no Rio Grande do Sul.Vargas entrou em contato com seu grupo no PTB e juntos decidiram apoiar Edmur. A ajuda era oempréstimo de um apartamento de Índio, localizado na Avenida Borges de Medeiros, de onde secomeçou a articular contatos com membros de outras organizações, como a Vanguarda PopularRevolucionária (VPR), Vanguarda Armada Revolucionária- Palmares (VAR-Palmares) e o PartidoOperário Comunista (POC). Os militantes do M3G, de forma geral, se aproximavam mais do ideárionacionalista de esquerda do que com o comunismo, devido a influência de Índio Vargas que indicaranomes trabalhistas para compor o grupo. Outros nomes de apoio que compunham o grupo são citadospor Fábio Chagas, como: Jorge Fischer Nunes, João Batista Rita, Paulo Roberto Telles Franck, este comcurso de guerrilha em Cuba e o Tenente Dario Vianna dos Reis, oficial reformado do exército. A chácaradeste ex-oficial era uma importante base de articulações, planejamentos de ações e guarda de11121314MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. Mortos e desaparecidos políticos durante aditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. p, 333.Gaspari, Elio. A Ditadura Encurralada, p. 159 in Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil(1964-1985), organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. P 617.CHAGAS, Fábio André Gonçalves das. A luta armada gaúcha contra a ditadura militar nos anos de 1960-1970.Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História. Rio de Janeiro: UFF, 2007.p, 236VARGAS, Índio. Guerra é guerra, dizia o torturador. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. p, 40.135


armamentos (CHAGAS, 2007, p.242).Davi Ruschel, em sua dissertação de mestrado, afirma que a primeira ação do M3G foi aexpropriação da agência da Caixa Econômica Federal localizada na Rua José do Patrocínio, em 13 dejunho de 1969. A ação foi realizada por Edmur e Jorge Fischer Nunes e obteve sucesso: expropriaram 5mil cruzeiros novos e uma arma “Taurus”, calibre 38, do soldado da Brigada Militar que estava no local.Na época a polícia não viu vínculo político na ação.Outra ação do M3G ocorreu em 23 de julho de 1969, e agora contava com a ajuda direta deÍndio Vargas, o objetivo era expropriar a agência do banco Sulbanco localizada na esquina da AvenidaProtásio Alves com Barão de Amazonas. Nessa ação obtiveram melhor resultado: 18 mil cruzeirosnovos. Novamente a suspeita recaía sobre suspeitos comuns.Após a expropriação, Edmur voltou a São Paulo para restabelecer contato com a ALN, seguindoorientação de Índio Vargas que ressaltava a importância das ações no Rio Grande do Sul contar com oapoio de outra organização. Entretanto, neste ínterim ocorre o assassinato de Carlos Marighella, noinício de novembro de 1969, e toda a cúpula da Aliança Libertadora Nacional entra na totalclandestinidade, dificultando o contato de Edmur, este por sua vez, retorna ao estado decidido acontinuar sua luta armada.Mas O Grupo Armado do PTB e o POC decidiram não apoiar mais as expropriações. Neste mês,devido a morte de Marighella, a situação complica: ocorreram as prisões dos freis que ajudavam osperseguidos políticos saírem do país pela fronteira do Uruguai. O próprio Fleury veio até o Rio Grande doSul interrogar Frei Beto, que estava em um seminário em São Leopoldo.O retorno de Edmur marca a entrada de João Batista Rita, o “Catarina”, no grupo. A partir dessemomento o grupo recebe o nome conhecido: M3G, uma homenagem a pensadores e combatentes deesquerda. As ações continuam, mesmo com a saída de alguns militantes. A organização prepara-seagora para uma expropriação em Cachoeirinha, cidade vizinha da Capital, a ação fica marcada por umaconfusão policial na tentativa de captura dos “assaltantes”. Após a expropriação, realizada com sucesso,o carro utilizado para a fuga estraga, Edmur acaba fugindo com o dinheiro, de ônibus, enquanto osoutros companheiros tentam consertar o carro. Nesse momento a polícia passa pelos militantes, estesestavam decididos a enfrentá-los, mas devido a uma confusão de informações os policiais passaram retocontinuando a perseguição a outro carro. Segundo Ruschel, a polícia teria se enganado quanto ao carroa ser perseguido, além do fato do sargento da Brigada Militar que recebera a informação pelo rádio, portrata-se de um brizolista passou a informação errada, mudando o modelo e a cor do carro. Essasinformações foram obtidas em entrevista realizada pelo autor com o militante Jorge Fischer Nunes queteria encontrado o oficial brizolista, tempos depois na prisão.A próxima ação do grupo contou com a ajuda de Ângelo Cardoso da Silva, este, como já citado,era motorista de táxi e tinha dirigido para o grupo durante a expropriação de um banco no bairro Tristeza,próximo a Sexta Delegacia de Polícia 15 . Fábio André Gonçalves das Chagas, em sua tese de doutorado,afirma que Ângelo já tinha participado de outras ações como motorista e que após essa expropriaçãoteria recebido dinheiro para comprar outro veículo e regulamentar a documentação, o que demonstracerto despreparo do grupo, pois como eles iriam realizar “assaltos” utilizando carro legalmente registradofacilitando, assim, a repressão policial. Ainda nesta ação o grupo deixou afixado no vidro da agência umacarta aberta ao ministro da fazenda Delfim Neto criticando a política econômica do governo. A partirdeste momento a repressão percebeu tratar-se de ações revolucionárias e não apenas assaltosefetuados por bandidos, assim o DOPS passa a conduzir melhor as investigações.Nos meses seguintes outras organizações de esquerda, como a VPR, realizaram ações deexpropriações, enquanto a M3G em associação com a VAR-Palmares e FLN realizaram uma grandeexpropriação no Banco do Brasil de Viamão, localizado ao lado do quartel da Brigada Militar, uma açãobastante arriscada e audaciosa, que obteve sucesso e grande destaque na mídia, a qual já vinhanoticiando essas ações de cunho político estampando a foto do Edmur e ligando os fatos ao CarlosLamarca. Nesta ação, segundo Chagas, Ângelo teria participado. Embora a expropriação tenhainicialmente dado certo, seu desfecho, segundo Jorge Fischer Nunes, foi primordial para a queda dogrupo. As armas utilizadas foram descobertas pela polícia que logo chegaram ao nome do ex-tenenteDario Vianna dos Reis que tinha ajudado na ação. Nunes, como relata em seu livro, logo caiu presotambém.Mas o fato que mais chamou atenção das autoridades para as ações da luta armada no estadofoi a tentativa de seqüestro do cônsul americano, Curly Curtiss Cutter, realizada pela VPR em 4 de abrilde 1970. Uma ação mal planejada que não obteve sucesso e aumentou ainda mais a repercussão namídia dos atos “terroristas”. Nas palavras de Davi Ruschel: “as consequências dessa tentativa deseqüestro se abateriam sobre todos, pois a ação frustrada serviu para alertar os órgãos de repressãopara o que estava ocorrendo em Porto Alegre”. 16 Membros da OBAN, os mais fortes torturadores, vieram1516Jornal Zero Hora, 29 de janeiro de 1970.RUSCHEL, Davi Arenhart. Entre risos e prantos: as memórias acerca da luta armada contra a ditadura no Rio136


para o sul para coordenar as operações de busca dos guerrilheiros, a ordem era prender e torturar.A partir dessa maior profissionalização da repressão, com as prisões e torturassistemáticas, as quedas foram aumentando cada vez mais, e foram sendo desmontadassistematicamente as poucas organizações de luta armada que atuavam no RS, caindonas mãos da ditadura a maior parte dos que haviam optado pelas armas. 17No dia 17 de abril de 1970, o Secretário de Segurança Pública, junto com o comandante daBrigada Militar divulgaram o resultado da operação, com os nomes dos presos “subversivos”, o materialapreendido, as ações descobertas até o momento, a aparelhagem e quais militantes haviam participadode cada ação. Dias depois, no jornal Folha da Tarde de 28 de abril de 1970 são divulgados os nomesdos guerrilheiros presos, entre eles Paulo de Tarso Carneiro e Índio Vargas que afirmam ter divido celacom Ângelo Cardoso da Silva, embora seu nome não conste na famigerada lista, à época da suareclusão no presídio Central que resultou na sua morte.Inquérito Policial: Análise do Processo/DocumentoNo Inquérito Policial as informações de capa constam como delegado responsável, Ben-HurMoreira, do 11° Distrito Policial, da Polícia Civil. Como natureza do fato, suicídio, e o fato ocorrido no dia22 de abril de 1970, às 16h no Presídio Central de Porto Alegre. O inquérito para investigação foi abertono mesmo dia do ocorrido.Desde o início se trabalha com a certeza do suicídio, pois na abertura do inquérito já se afirma ofato de que “[...] o presente inquérito policial foi elaborado em razão de um SUÍCIDIO [...]” (p. 2). Constaque o fato ocorreu na sela 38, do pavilhão A do presídio Central. No processo não há o motivo da prisãode Ângelo e nem quanto tempo estava preso. Há apenas uma referência, no depoimento do policial queencontrou o corpo, sobre o fato de Ângelo tratar-se de preso político, assim como outros presos queestavam no presídio central, há ainda a afirmação que estes presos estavam incomunicáveis uns com osoutros e a disposição do DOPS.Como “testemunhas” do fato foram ouvidas os dois investigadores que faziam a guarda:Aloncio Cardoso de Souza e Osmar Ribeiro da Cruz. Os policiais afirmaram que foram levar café datarde ao preso e o encontraram morto nas dependências sanitárias da cela e ainda que nesse dia,Ângelo, apresentara comportamento normal, quando pela manhã tinha lavado roupa e almoçadonormalmente.Nas palavras de Aloncio, durante seu depoimento:[...] constataram que o mesmo se encontrava enforcado por um lençol, dependurado najanela basculante interna da cela; que a vítima usou seu próprio lençol para enforcar-se;que Ângelo encontrava-se de joelhos no piso, de frente para a parede, as mãos postasno peito [...]Apenas nesse breve trecho podemos salientar indícios que não foi suicídio por enforcamento.Primeiramente, o corpo foi encontrado de joelhos, não havendo altura suficiente para o deslocamento e oconsequente enforcamento. O policial afirma que Ângelo tinha as mãos postas no peito, isto não seriapossível, pois o corpo encontrava-se ajoelhado, com o tronco na vertical, assim, as mãos estavamestendidas ao longo do corpo.Aloncio afirma que não sabia quanto tempo o preso estava recluso, “mas deveria ser mais oumenos um mês” (p. 5), não sabia o motivo da prisão, apenas que o preso estava a disposição do DOPSe mantinha bom comportamento, “que o suicida nunca reclamou de nada, era quieto e pouco falava” (p.5). Ainda neste depoimento, o agente informa que o fato foi logo comunicado, através de rádio, ao diretordo DOPS e que logo em seguida chegou a polícia técnica.No depoimento de Osmar Ribeiro da Cruz, este afirma que foi chamado pelo seu colega,Aloncio, até a cela 38, pois o preso não estava sendo visto e nem tinha respondido ao chamado, ambosachavam que o preso tivesse fugido, quando chegou até a cela a porta já estava aberta e entrou na cela,deparou-se com o corpo de Ângelo Cardoso da Silva “que estava dependurado com um lençol nopescoço [...] e com os joelhos rentes ou encostado no chão; que o suicida amarrou o lençol na janelabasculante que tinha mais ou menos um metro e trinta de altura [...]”. Neste depoimento temos uma novainformação que corrobora com a hipótese de não suicídio: o fato da janela ter apenas um metro e trintade altura, impossibilitando haver altura suficiente para a suspensão do corpo e o consequenteestrangulamento.17Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História. Porto Alegre:UFRGS, 2011. p, 57Idem, p. 58.137


Interessante ressaltar que os depoimentos foram colhidos no dia 22 de novembro de 1973,portanto três anos após o ocorrido, o que configura uma maior dificuldade dos depoentes relembrarem,corretamente, os fatos presenciados em 1970. Além disso, o ano de 1973 é marcado pelo final da lutaarmada no Brasil, quando a esquerda estava praticamente dominada pela repressão, bem diferente docontexto de 1970, principalmente no Rio Grande do Sul, quando as organizações de esquerda e lutaarmada estavam desenvolvendo várias ações contra a ditadura, o que, consequentemente, causou oendurecimento do regime.Após os depoimentos dos policiais foram juntados ao processo o Auto de Necropsia eLevantamento Pericial, aos 29 dias de novembro de 1973. Os peritos responsáveis foram Izaias OrtizPinto (relator) e Carlos B. Koch. O laudo foi realizado dia 23 de abril de 1970. Para este artigo uma novaanálise do laudo foi realizada, pelo médico legista Helio Antonio Rossi de Castro, que apresentouconsiderações importantes que corroboraram com a versão de não suicídio. Abaixo as considerações.A primeira delas refere-se a um detalhe simples da necropsia, mas que no caso chama aatenção é o fato do estômago da vítima conter alimentos em fase inicial de digestão. Por que alguémprestes a cometer um suicídio se alimentaria? Habitualmente há um estado depressivo tão importanteantecedendo a decisão e o ato de se matar, que há perda do apetite alimentar. É um dado semi-objetivoque questiona a hipótese do suicídio.Outra observação se deve a questão de que em “ambos os joelhos (havia) um sulco de fundovioláceo”. Sulcos são lesões provocadas por pressão. Habitualmente referem-se ao pescoço. Talobservação não foi comentada no item Discussão do laudo. De qualquer modo, isso poderia indicar quea vítima permaneceu de joelhos após a morte, o que seria possível resultar tanto de um suicídio como deum homicídio.Na verdade, houve uma asfixia mecânica, por ora considerada como devida a enforcamento ouestrangulamento. A questão resume-se ao tipo de força que constringiu o pescoço e ao mecanismoresponsável por tal constrição. Em tese, a força pode ser da gravidade (peso do corpo – enforcamento),da vítima ou de um agressor (ação externa – estrangulamento). Os mecanismos foram examinados nassituações apresentadas a seguir:a) força da gravidade acionando um nó.O sulco do pescoço não se interrompia. Apresentava apenas “uma área menos precisa à direita”.Tal aspecto não permitia afirmar a existência de uma interrupção do sulco; caso contrário levaria acomprovação da presença de um nó, o que é característico do enforcamento. Por esse critério não havianó. Além disso, a disposição do lençol da fotografia nº 8 permite afirmar categoricamente que o lençolalém de não estar sobreposto à face anterior do pescoço da vítima, encontrava-se entrelaçado (um ladoenlaçado ao outro), o que é típico dos casos de garroteamento (estrangulamento). Além disso, a largurado sulco de “no máximo, 3,5 cm” permite imaginar quanto o lençol foi comprimido devido a sua torçãodurante o processo de garroteamento (quanto maior a torção, menor a largura do lençol e menor alargura do sulco provocado por ele). A imagem da fotografia nº 8, até prova em contrário (manipulaçãodo cadáver após a morte), exclui completamente a hipótese da existência de um nó e confirma ahipótese de garroteamento.b) força da vítima e garroteamentoO garroteamento do pescoço produziria a perda da consciência vítima. Inconsciente, ela largariao lençol o que provocaria a suspensão do garroteamento e da constrição do pescoço antes que essafosse capaz de causar a morte. Logo, é impossível o auto-garroteamento causar o óbito. Noutros termos,não há suicídio por garroteamento.c) força da gravidade e garroteamentoO garroteamento, que de fato existiu, foi produzido pelo lençol entrelaçado. Esse entrelaçamentofoi causado por uma força giratória e perpendicular ao eixo longitudinal do lençol (uma torção do lençol).Para produzir seu efeito (constrição do pescoço) a pressão sobre a extremidade do lençol deveria serconstante.Tal força não poderia ser substituída pela força da gravidade. Apenas uma força externacontínua e adequadamente aplicada sobre ambas as porções do lençol, que estavam entrelaçadas efirmemente apertadas, seria capaz de mantê-las suficientemente comprimidas para que transmitissem talforça de compressão para a constrição do pescoço da vítima causando a morte. Caso houvesse umrelaxamento do lençol, haveria um afrouxamento da constrição do pescoço. No momento em queeventualmente a vítima estivesse providenciando a fixação da extremidade do lençol em algum suportemais alto que o nível do seu pescoço para se enforcar, esse procedimento certamente afrouxaria oentrelaçamento inviabilizando o propósito suicida. Assim, o legista consultado concluiu que a morte não138


decorreu da ação da força da gravidade, isto é, não houve enforcamento.d) força externa e garroteamentoTipicamente uma força externa, através de um laço horizontal e contínuo (sem interrupçãodevido a presença de algum nó) é determinante do que se denomina estrangulamento – uma causahomicida da morte. Isso certamente foi o que aconteceu no presente caso.A ausência de interrupção do sulco do pescoço e a disposição do lençol observada na fotografianº 8 levou o legista a concluir que não havia nó no instrumento causador da asfixia, isto é, no lençol.Poderia afirmar-se simplesmente que, se, no caso, não existe o mecanismo do nó, mas o dogarroteamento para a constrição do pescoço e se esse garroteamento não pode causar a morte quandoauto-infligido ou pela ação da força da gravidade, mas apenas se impulsionado por uma força externa ese essa força externa é, por definição, alheia à vítima, certamente a causa da morte foi o homicídio. Mashá outros elementos que corroboram tal diagnóstico.A pequena escoriação observada na região sub-mandibular (“porção superior da região cervical”)à direita pode muito bem ter sido provocada pelas unhas das mãos da vítima na tentativa de livrar-se dogarrote ou do agressor ao colocá-lo em prática. Seria excepcionalmente rara a ocorrência de tal lesãoem um procedimento suicida com um “lençol”.O sulco estava enfraquecido na face lateral direita do pescoço e nítido na face lateral esquerda.Isso indica que a pressão do lençol foi mais forte à esquerda e que à direita o sulco estava menosevidente na região subjacente ao primeiro entrelaçamento do garrote. O agressor estava posicionado àdireita da vítima. Na verdade, tais aspectos também são compatíveis com a escoriação mencionadaacima. Justamente ali a ação dos dedos das mãos da vítima ou, mais provavelmente, do agressor, entreo lençol e o pescoço, poderiam ter impedido uma pressão homogênea do lençol, produzindo um sulco“menos preciso à direita do pomo de Adão”.O enforcamento é uma asfixia geralmente associada a presença de um sulco oblíquo einterrompido no pescoço. No caso em estudo, as caracterizações que o tipificam são desqualificadaspelo próprio legista. O sulco é “levemente oblíquo” e a área, erradamente datilografada como“interrompida” pelo escrivão (ato falho, pois se tratava de um caso concluído como enforcamento, masnão havia interrupção do sulco), de fato não estava interrompida. Era apenas “menos precisa”, ou seja,não havia nó. Tais qualificativos, por si sós, enfraquecem o argumento do colega. Noutros termos,exatamente aqueles aspectos específicos que poderiam caracterizar o enforcamento estão atenuados,minimizados. De fato, eles não podem ser sustentados como elementos capazes de diagnosticar oenforcamento: as fotografias demonstram que o sulco apresentava uma acentuada tendência ahorizontalidade (compatível com estrangulamento) e decididamente não estava interrompido (outracaracterística do estrangulamento). Os demais sinais apresentados, como as Manchas de Tardieu e acongestão pulmonar, são inespecíficos em relação a quaisquer asfixias mecânicas (enforcamento,estrangulamento, afogamento, soterramento, confinamento, etc.). Estavam presentes porque de fato avítima faleceu por asfixia mecânica.Portanto, diante dos elementos subjetivos e objetivos analisados o médico legista, Hélio Castro,concluiu que foi a ação de uma força externa através do mecanismo de garroteamento com a utilizaçãode um “lençol” que causou a morte da vítima. Não restam dúvidas de que a morte não ocorreu porenforcamento (suicídio), mas por estrangulamento (homicídio).Considerações FinaisÂngelo Cardoso da Silva era um jovem, motorista de táxi e militante do M3G, tinha atuado emalgumas expropriações realizadas pelo grupo e fora preso após um cerco policial contra as ações daesquerda armada no Rio Grande do Sul que estava passando por um momento de expansão,chamando, dessa forma, a atenção da repressão. Segundo a versão oficial teria se suicidado dentro dacela onde estava preso no Presídio Central de Porto Alegre.A descoberta do Inquérito Policial, aberto para investigar a morte de Ângelo Cardoso da Silva, noArquivo Central do Judiciário suscitou a dúvida sobre as reais circunstâncias da morte do militante. Apartir das fotos tiradas no local, que constavam no inquérito, e da nova análise da necropsia (realizadapor um profissional da área) não restam dúvidas que se trata de um falso suicídio para encobrir umassassinato realizado pela repressão.O questionamento sobre a morte de Ângelo só se mostrou plausível, pois há outros casos deassassinatos encobertos por suicídios, como a emblemática morte de Vladimir Herzog, de granderepercussão e que se tornou um símbolo da resistência, contam também a morte do metalúrgico ManoelFiel Filho, poucos meses após a de Herzog e ainda o caso do ex-tenente da PM paulista e militante doPCB, José Ferreira de Almeida. Esse três casos foram posteriormente confirmados comoresponsabilidade do Estado. Assim, essa nova fonte ajudou a esclarecer mais uma história obscura da139


ditadura civil- militar brasileira e indica a possibilidade de outros casos ainda não reconhecidos.AnexosFotografia 8Fotografia 10Fotografia 11140


Referências BibliográficasCHAGAS, Fábio André Gonçalves das. A luta armada gaúcha contra a ditadura militar nos anos de 1960-1970. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História. Rio de Janeiro: UFF,2007.FISCHER, Jorge. O riso dos torturados. Porto Alegre: Proletra, 1982.LE GOFF, Jacques. “Documento/Monumento”. In: ______. História e memória. Campinas: Editora daUnicamp, 1996.MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. Mortos e desaparecidos políticos durantea ditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999.RUSCHEL, Davi Arenhart. Entre risos e prantos: as memórias acerca da luta armada contra a ditadurano Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História.Porto Alegre: UFRGS, 2011.VARGAS, Índio. Guerra é guerra, dizia o torturador. Rio de Janeiro: Codecri, 1981.141


Focos de ação comunistas no Maranhão e Doutrina de Segurança NacionalSarah Fernanda Moraes Gomes 1Resumo: Considerando a lei de acesso à informação, que define como um dos direitos de todo serhumano o caminho a informação, a abertura dos documentos secretos da ditadura se encaixa como umdesses direitos; a comissão da verdade, mal ou bem, tenta satisfazer esta função. Com isso estetrabalho propõe-se a analisar de acordo com fontes documentais, como eram difundidas informaçõesentre os departamentos de ordem política (DOPS) e outras agências de espionagem pelas principaiscidades do Brasil. Como se articulavam e principalmente a quem perseguiam, sem deixar de levar emconsideração o papel do Maranhão naquele contexto e dos momentos finais do Regime.Palavras- chave: Repressão, Espionagem, anticomunismo, DOPS-MA.Abstract: Whereas the law on access to information, which it defines as a right of every human being theway the information, the opening of secret documents from dictatorship fits like one of those rights, thetruth commission, for better or worse, tries to fulfill this function . Therefore this work proposes to analyzeaccording to documentary sources, as were disseminated information among departments of politicalorder (DOPS) and other intelligence agencies by the main cities in Brazil. As articulated and pursuedmainly who, while taking into account the role of Maranhão in that context and the final moments of theRegime.Keywords: Repression, Espionage, anticommunism, DOPS-MA.IntroduçãoA ditadura civil-militar instaurada no Brasil a partir da deposição de João Goulart em 1964 émarcada, até a atualidade, por silêncios que dificultam uma melhor análise aos historiadores e,consequentemente, o desenvolvimento da historiografia sobre o Estado de Exceção então em vigência.O uso da violência em muitos casos era direcionado. Logo, localizar os locais de fala de cada pesquisaque surge se faz necessário para entender o que é e pode vir a ser a memória sobre o regime.Deste modo, temos na historiografia sobre o regime militar alguns eixos centrais de análise queperpassam ou pelo protagonismo e regência das ações golpistas que culminaram no golpe de 1964;sendo que em geral, as teses tratam ou sobre uma perspectiva de subordinação dos militaresentremeados aos pareceres de uma elite civil que primava pela manutenção de seu status quo,rechaçando de qualquer forma a ameaça comunista; ou sobre a primazia dos militares enquantodirigentes conscientes de seu dever de manutenção da ordem nacional apoiados por setoresconservadores da sociedade brasileira.Assim, trabalhos construídos já com o auxilio de documentos recentemente liberados, revelamum compromisso dos historiadores com a sociedade, além de possibilitar a mesma o direito àinformação. O direito a informação faz parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que se fazreconhecida por diversos países inclusive o Brasil; esse direito era negado às famílias e partes dasociedade em geral.Com a abertura dos documentos do DOPS e de outras instituições pertencentes ao Sistema deInformações, acreditamos num avanço em relação à acessibilidade e pesquisa; apesar de sabermos otanto que ainda há de se caminhar para garantir o total acesso às informações sobre aquele período.Este trabalho se inclui no contexto de acessibilidade a informações sigilosas do DOPS,caracterizando-se como uma nova geração de pesquisa sobre História Contemporânea no Brasil,especificamente das ditaduras militares, seguindo um corpo teórico gramsciniano. Desta forma aconstrução deste, objetiva caracterizar os perseguidos pelo DOPS e principalmente seu sistema decirculação de informações. Serão investigados como as delegacias se articulavam nacionalmente eprincipalmente como a delegacia de polícia política do Maranhão se comportava em relação aos centrosde poder político no Brasil. Também será realizada uma breve discussão historiográfica sobre a ditadura1Graduanda em História/ Licenciatura na Universidade Estadual do Maranhão – UEMAIntegrante do Núcleo de Pesquisa em História Contemporânea – NUPEHIC E-mail:sarahmoraesgomes@gmail.com142


Civil- militar no Brasil.Além de tudo que já fora citado, deve-se levar em consideração a incipiência na produção de trabalhossobre ditaduras no Maranhão e parte do Nordeste. Assim o contato com esses documentos incentivanovas criações e estabelece um espaço em meio à pesquisa hegemônica do eixo sul e sudeste.Breve discussão historiográfica sobre o RegimeDiversas são as vertentes historiográficas que analisam o contexto da ditadura civil militar. Apriori, podemos destacar os estudos marxistas que primaram, entre outros aspectos, pelasdeterminações econômico estruturais e os condicionamentos de classe.Nessa linha, um dos primeiros a despontar com proeminência foi Jacob Gorender 2 que foicategórico ao afirmar que no período pré-1964 se engendrara uma real ameaça às classes dominantesbrasileiras e ao imperialismo, as macroestruturas de poder. No livro Combates nas Trevas, o autormencionado sai em defesa da esquerda, porém sem deixar de criticar ou apontar seus erros. Em umaperspectiva histórica, elenca as precipitações das ações do Partido Comunista em várias partes do paísdesde 1935 quando se iniciam os maiores embates com as forças dominantes.Seguindo uma lógica de dualidade de interesses eminentes no cenário nacional, Gorenderafirma que o golpe de 1964 também fora precipitado e que os setores conservadores da sociedade,assim como o exército, não estavam fortemente organizados. Assim, o autor caracteriza o golpe de 1964como uma forma desnecessária de ação por parte da direita.Haja vista, o autor reconhece que os anos anteriores a 1964 havia um grande movimento dasmassas comandado pela esquerda, mas, esta mesma esquerda representada por um partido comunista,não organizou a si e muito menos as massas para uma luta armada. O que não aconteceu com as forçasopositoras conservadoras. Indiretamente reafirmava a ideia de um contragolpe realizado pela direita emvirtude da iminência revolucionária esquerdista.Outra linha marxista, de orientação gramsciana, deixou em segundo plano a questão econômicae seguiu pelo extremo valor dado a associação de grupos civis golpistas em instituições representantesdo interesse das classes dominantes que articularam e lideraram o processo de golpe. René Dreifuss 3destaca sobremaneira a atuação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – IPES – e do InstitutoBrasileiro de Ação Democrática –IBAD – que aglutinariam os interesses conservadores civis e militaresnacionais, além dos setores empresariais internacionais.Este autor, em sua obra de maior destaque “1964: a conquista do Estado, ação política, poder egolpes de classe”, atenta para extrema participação de civis na instauração e manutenção do golpe.Membros da “elite orgânica” (civis) se instauram em cargos estratégicos do governo, utilizando-se dasForças Armadas como “padrão moderador” tornando desta maneira seus objetivos, de cunho burguês,como nacionais. René Dreifuss é o principal defensor da linha teórica que define o regime militar, como“regime civil- militar”, demarcando assim um espaço de destaque na produção sobre o período.Ainda na linha marxista, porém sem o condicionamento excessivo dos civis do IPES e IBAD,temos a interpretação defendida por Daniel Aarão Reis Filho acerca da heterogeneidade da frente sociale política que se reuniu para depor Goulart. O autor defende que tal heterogeneidade inviabilizaria ahipótese de que tantos interesses estivessem aglutinados e orquestrados ao consenso de todos somentenessas duas instituições.Embora se relativize o peso do complexo ipes/ibad na organização do golpe, Reis afirma que nahistoriografia nacional consolidou-se a leitura da ditadura como “apenas militar” subestimando acapacidade dos civis para a orquestração do projeto imposto pelos militares. “É inútil esconder aparticipação de amplos segmentos da população no movimento que auxiliou na implantação do golpe” 4 .Para Reis, assim, o regime político ocorrido de 1964 a 1985 possui um caráter civil- militar equalquer tentativa de desassociar imagem dos civis conservadores com a daquele período, perpassa porum plano político mais abrangente, no caso o esquecimento coletivo da população como um todo 5 .Outro autor considerado de suma importância para os estudos sobre Ditadura Civil-Militarchama-se Jorge Ferreira que ganha destaque no cenário Nacional ao sintetizar vários artigos dediferentes autores em uma única obra, O Brasil Republicano, Vol 4, O tempo da ditadura. Este livro decoautoria de Lucilia de Almeida Neves Delgado faz parte de uma coleção sobre os estudos de Brasil2345Gorender, Jacob. Combate nas Trevas a Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. Ed. Ática,1987. São Paulo.Dreifuss, René. 1964: a conquista do Estado. Ação Política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro: Vozes,1987.Reis, 2012,p33.Podemos citar como exemplo o senador José Sarney, presidente do ARENA no Maranhão durante o regimecívico-militar. Hoje, nega qualquer relação com os generais ressaltando apenas o fato de ter “auxiliado naredemocratização”.143


publicados recentemente.Destacamos também, Francisco Carlos Teixeira da Silva, escritor de um dos artigos inseridos nolivro de Jorge Ferreira. Apesar de seu objeto de estudo ser o processo de “abertura do regime”, nãodeixa de explanar sobre o sistema como um todo.Carlos Teixeira toma como ponto de partida entender a natureza das ditaduras em toda AméricaLatina. Defende a importância para os estudos sobre ditadura, para que haja um esclarecimento deforma justa e verdadeira. Pois, o que permanecerá escrito enquanto concepção de História futuramenteserá delimitado agora. Assim, os historiadores possuem o papel de influenciar neste processo, mas semdeixar de considerar os lugares de fala de cada personagem daquele período.Assim, este autor define como devemos trabalhar com aquele período, delimitando as aberturas 6levando em consideração o papel da violência e do arbítrio no decorrer dos regimes na América Latina etambém como já foi explanado assegurar os lugares de fala e suas multiplicidades (FERREIRA EDELGADO, p. 246). A luta por uma pesquisa mais aprofundada sobre ditaduras, embora esteja nocampo do passado, torna-se uma disputa do presente, pois há um interesse político no esquecimentodaquele período, como já defendera Daniel Arão Reis.Outra linha interpretativa que ganhou projeção foi o chamado “padrão moderador” postulado peloautor Alfred Stepam 7 . Nessa vertente podemos ter uma concepção e entendimento histórico daparticipação gradativa das Forças Armadas nos círculos de poder da política nacional. A instituição militarfuncionaria como um subsistema vigilante e atento às “ameaças” que o aparelho democrático pudessesofrer; é a lógica do “bom guardião”. Os militares então sairiam de seus quartéis com o objetivo único dedepor um governo e transferi-lo para outro “grupo de políticos civis engajados na manutenção do estadode ordem” 8 . Nessa ação, estariam apartados de qualquer anseio de tomada do poder, seriam apenas“bons guardiões”. Mas então, como explicar os desdobramentos de 1964?Para Stepan independente de quem encabeçou o processo golpista, foram às camadaspopulares e As esquerdas um dos princípios ativos para a chamada “Revolução de 1964”. A tese desseautor, apesar de muito relevante, contém alguns aspectos problemáticos no tocante à própria ideia de“padrão moderador”, “já que existiram interferências diretas dos militares na política brasileira antes de1964 e é bastante problemática a visão do ‘subsistema militar como ‘variável dependente’ do sistemapolítico global” 9 . (FICO, 2004, p. 31).Na mesma vertente militarista e com críticas a análises marxistas que tradicionalmenteprivilegiavam as explicações econômicas em detrimento das demais, temos as definições teóricas deGláucio Ary Dillon Soares. Na escrita desse autor, estão presentes elementos comuns aos demais, talcomo o caos administrativo e a desordem política que justificariam uma intervenção militar no intuito dapreservação do regime democrático, vertente explorada por Stepan. Também a ameaça que oscomunistas e a esquerda está presente em todas as teorias de forma direta ou indireta. E no quecompete a instituição militar, destacam-se os ataques à hierarquia e à disciplina.Soares não exclui de modo algum a importância dos setores civis conservadores, mas em seusescritos sobre o golpe militar observamos um ponto de vista totalmente oposto à centralizaçãoconspiratória defendida por Dreifuss. Para ele, houve na verdade um grande “caos conspiratório” porconta da falta de coordenação entre os setores que defendiam uma reação frente a todo um contextoameaçador e de desordem. Haja vista, o próprio desfecho do golpe militar. Assim sendo, ao caosadministrativo e a desordem política justificariam uma intervenção militar no intuito da preservação doregime democrático, soma-se o perigo comunista e esquerdista em geral. Tais elementos, então,constituir-se-iam em variáveis fundamentais para o entendimento do processo de instauração do regimemilitar.Contudo, sem a desestabilização veiculada pelos eixos civis pró-golpe através de propagandasideológicas e suas mobilizações – por exemplo, a emblemática Marcha da Família com Deus pelaLiberdade – o golpe seria bastante difícil. Sem a iniciativa militar, todavia, seria impossível.A rigor, todas as vertentes teóricas deram a sua contribuição para um entendimento macro oumicro estrutural. Nesse sentido, a busca por quem dera o primeiro passo para o golpe de 1964, se civisou militares, torna-se uma questão secundária se atentarmos para o grau de complexidade e interessesimplícitos e explícitos que ambos os lados defendiam. Uma coisa é certa: de fato fora um golpe civilmilitar com contribuições cabais de cada lado para todo o desfecho daquele ano e os vinte que estariampor vir.Por conseguinte, fugindo às macroestruturas explicativas sobre o período ditatorial, temos os6789No texto o autor questiona se ocorreu Abertura do Regime civil-militar ou Aberturas, pois, Aberturas significa ainserção de outros projetos no processo de redemocratização, antes apenas nas mãos dos milicos ou de seuapoiadores.Stepan, Alfred (1975) “Os militares na política”. Rio de Janeiro, Artenova.(FICO, 2004).(FICO, 2004, p. 31).144


novos eixos de estudos que se alicerçaram na “Nova História” para o entendimento do período de modointimista e visceral. Por meio desse viés, grande parte dos crimes de tortura, por exemplo, vieram à tonae expuseram a face nebulosa da atuação repressiva dos militares no poder.Apesar de jugar necessário uma pequena análise historiográfica sobre o golpe, nossa propostavai além. Observaremos o principal sustentáculo de todo o regime civil militar, seu sistema de informaçãoque se pautava na Lei de Segurança nacional 10 .Doutrina de Segurança Nacional: Justificativa para as “investigações”.1. Histórico e ideologiaA Ideologia de Segurança Nacional, segundo Margaret Crahan 11 possui suas raízes no Brasildesde o início do século XX. No contexto de guerra fria apropriou-se de alguns elementos pertencentesao conceito de “guerra total”. Aqui no Brasil e parte da América Latina, tomou a faceta da “segurançainterna” perante a “ação indireta” do comunismo. Assim, como afirma a autora Maria Helena MoreiraAlves na obra, Moreira Alves. O Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). A crescente movimentaçãode contestações populares no começo dos anos de 1960 e expansão da guerra fria insuflaram nas elitesbrasileiras e autoridades o pensamento de crescente “ameaça subversiva interna” e de guerrarevolucionária.No Brasil este pensamento da Segurança Nacional foi teorizado pela Escola Superior de Guerra(ESG) tendo como seu principal intelectual orgânico 12 o general Golbery de Couto e Silva. Difundiu-seentre os civis inseridos no complexo IPES/IBAD uma percepção mais abrangente da segurança nacionalna qual integrava também o desenvolvimento econômico.O IPES e o IBAD contribuíram durante 25 anos com a ESG. O pensamento ratificado por essasduas instituições trata-se de um largo corpo teórico constituído por elementos ideológicos e de diretrizespara infiltração, coleta de informações e planejamento político-econômico de programas governamentais(ALVES,1985). O manual básico da ESG, fundamental para implementação e solidificação dopensamento anticomunista nos anos de 1960 no Brasil em um de seus princípios, estabelece o conceitode Guerra Revolucionária, que consiste em conflito geralmente interno, estimulado ou apoiado por forçasexternas e que visam a conquista do poder, comunista, pelo controle interno da nação 13 .Essas “forças externas” rapidamente eram associadas (ao que seria na época) à introdução docomunismo e suas ações indiretas. Ainda segundo o manual da ESG, guerra revolucionária e a guerraideológica substituem a guerra convencional, entre fronteiras, desenvolvendo-se, assim, a teoria do“inimigo interno”. Desta forma, o avanço comunista, em suas novas estratégias, tomaria a mente dopovo. Aproveitando-se dos descontentamentos existentes, colocando o povo contra a sua própria nação,fazendo com que sejam utilizadas táticas de guerrilhas ou terrorismo.O conceito de guerra revolucionária conclui assim que toda população pode ser colocada comosuspeita. Os chamados “inimigos internos”, deveriam ser devidamente identificados, controlados,perseguidos e eliminados 14 . Esta deveria ser a principal preocupação de uma das “maiores nações deterceiro mundo”, pois esta “tática” do comunismo é considerada o meio mais eficaz da infiltração. Asegurança interna deveria ser mantida, contendo os antagonismos e qualquer outra pressão quecolocasse em questão a integridade do Estado e da Ordem 15 .O Estado historicamente como afirma Henrique Serra Padrós atua, como uma figura moderadorados conflitos de classe, sua eficiência maior ocorreu, quando uma classe se sobrepôs a outra,legalizando o domínio, uso de força e de violência sobre as classes exploradas. (Padrós, 2005). Omovimento iniciado em 1964 no Brasil é o maior exemplo de organização entre Estado e Classesdominantes, pois ao analisarmos o pensamento que rege a Doutrina de Segurança Nacional e como estaengloba também questões econômicas, a violência e todo seu aparato repressivo tornam-se justificáveis.Assim, ao contrário do que afirmam algumas novas correntes historiográficas, a ditadura civil-militar nãose deu como apenas uma questão de causa e consequência.O pensamento da Doutrina de Segurança Nacional se fez prática ao ser ampliada em 1969quando o AI-5 é instaurando. A Lei fornecia sustentação legal à repressão a qualquer pessoa ou grupo101112131415Lei de N° 898, de 29 de setembro de 1969, institui os crimes contra Segurança Nacional e também ordempública e social, assim o devido julgamento p cada crime.Margaret Crahan. In: Alves, Moreira Helena Maria. O Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis, 1985.Conceito Gramsciniano que denomina a pessoa que faz o intermédio entre um partido político ou legenda, e asociedade civil.Manual Básico de treinamento da escola superior de guerra.Manual Básico de treinamento da Escola Superior de Guerra: seção 1: Guerra contemporânea.Stepan, Alfred (1975) “Os militares na política”. Rio de Janeiro: Artenova.145


que se oponha a política do Estado de Segurança Nacional e definiria o que poderia ser um atentandoao Estado:A primeira Lei de Segurança Nacional foi sancionada como Decreto- Lei N° 314 a 13 demarço de 1967, e regulamentada pelo Decreto- Lei N° 510 de 20 de março de 1969. ALei de Segurança Nacional considerava crime “ofender moralmente quem exerçaautoridade, por motivos de faccionismo ou inconformismo político-social”, ofender ahonra e dignidade do presidente da republica, do vice-presidente e outros dignitários;incitar à guerra, à subversão s desobediência às leis coletivas, à animosidade entreforças armadas ou entre estas e as classes sociais ou instituições civis; à luta declasses, à paralização de serviços ou atividades essenciais, ao ódio ou à discriminaçãoracial [...]. Com a Lei de Segurança Nacional de 1969, na realidade, deixaram de existirno Brasil as liberdades de reunião, associação e imprensa. Seus dispositivosconstituíram o principal instrumento da repressão política, tornando-se a própria base dopoder de Estado 16 .Logicamente, as linhas do que era considerado crime ou não, eram tênues e a possibilidade dedesrespeito aos direitos humanos, devido ao estado de “guerra interna” é inegável. Mas, tudo justificado,“para o bem da ordem e da nação...”.1.2 Engrenagem do aparelho RepressivoComo foi visto, a Doutrina de Segurança Nacional guiou a ideologia conservadora além de sercartilha administrativa da chamada “rede de informações” ratificada no decorrer do regime,principalmente em 1968 quando o SNI teve suas fronteiras aumentadas (Fico, 2012).O aparato repressivo da ditadura civil militar, logo, do Estado de Segurança Nacional eracomposto por três elementos integrados entre si, porém distintos de funções. Primeiro, a vasta rede deinformações políticas; segundo órgãos e organizações responsáveis pelas ações repressivas a nível.local e por último os aparatos das Forças Armadas usadas no controle político interno. (Alves, 1985).O aparelho repressivo fora intensificado após 1969 17 quando foram criadas agências de combate“à subversão” e que melhor estruturavam este sistema macro. Nestes incluem o Sistema de SegurançaInterna (SISSEGIN), Sistema Nacional de Informações (SISNI), Divisões de Segurança e Informação(DSI’s), Inquéritos Policiais Militares (IPMs), Assessorias de Segurança e Informação (ASIs),Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), Centro de Operações de Defesa Interna (CODI),Destacamento de Operações e Informações (DOI), Operação Bandeirantes (OBAN) entre outros. Cadaramo das forças armadas possuía um centro de informação: CIEX no exército, CISA na aeronáutica e oCENIMAR na Marinha; todos subordinados ao Serviço Nacional de Informação. Segundo Carlo Fico naobra “Como eles agiam”, apesar de haver posteriormente um acirramento das políticas de censura evigilância das atividades artísticas- culturais espalhadas por praticamente todo o Brasil, foram asatividades de espionagem as grandes causadoras de transtorno a sociedade civil.Segundo Priscila Antunes na obra Ditadura e Democracia na América Latina, desses aparelhoscitados O CIE teria sido o que mais se empenhou no combate a luta armada. Seus agentes compuserama maior parte dos destacamentos de Operações Internas (DOI) e dos de Defesa de Operações internas.Entremeando a estrutura do Ministério do Exército ESTAVAM OS setores interligados, sem deixar degozar de alto grau de autonomia. Foi neste momento de incorporação das PMs que outros setores dasociedade civil passaram a ser perseguidas pela ditadura (classe média).A Lei de Segurança Nacional, como já fora explicitado, define o que pode ser crime contra a“Segurança Nacional” e como seus acusados devem ser julgados, fato que gerou na população umacultura do medo. Mas, ao reportarmos ao serviço de informação, ha uma tendência de caracterizarapenas o SNI como órgão responsável pelas perseguições e tortura nos porões da ditadura. Assim,Priscila Antunes novamente se faz categórica:Embora não fosse “lugar por excelência” das prisões e torturas, os agentes do SNItiveram participação ativa nesses processos de busca e muito provavelmentecolaboraram nos casos de tortura. Entre essas ações que desenvolvia, o SNIinterceptava correspondências, roubava documentos, fazia escuta telefônica eacompanhava a vida das pessoas, fossem adversários políticos e suspeitos desubversão, fossem integrantes da equipe governamental. Infiltrava pessoas tanto nasorganizações clandestinas quanto nos organismos legalizados de oposição ao regime,como no caso do MDB 18 .161718Alves, 1985, p. 158.Ano de instituição do AI-5.Antunes, p. 221.146


Deste modo, igualar os aparatos repressivos ou até mesmo subestimá-los enquanto análisehistórica pode nos condicionar a erros grotescos de análise.Uma parte da historiografia atual tenta desacreditar a capacidade de ação e interação doaparelho repressivo presente no Brasil até o começo dos anos de 1990, destacando o despreparo dealguns oficiais, além de discursos no qual, atualmente parecem extremamente esdrúxulos e sem nexo.Mas, como afirma Carlos Fico, o que essas correntes não observam é que estes erros eram exceções eno contexto de “guerra interna” qualquer poderia ser um suspeito levado a interrogatório 19 .1.3 O SNI e o Nordeste, “focos” de ação comunista.Segundo a avaliação da CIA, se houvesse uma revolução no Brasil, ela começaria peloNordeste. Por isso, vários especialistas na luta antiguerrilha já se encontravam no local.Não faltavam denúncias no Brasil e nos Estados Unidos, de que alguns milhares deagentes norte-americanos agiam no Nordeste disfarçados de religiosos, missionários,jornalistas, pesquisadores etc. Só em 1963, cerca de quatro mil cidadãos norteamericanosobtiveram vistos para se fixar na região e outros três mil foram recusado[...]. Depois do golpe de 1964, eles deixaram repentinamente o Nordeste 20 .Apesar de não ser o centro de poder, o Nordeste, por ter movimentos significativos quequestionavam as condições de trabalho local, como as ligas camponesas 21 , consideradas grandes“focos” de introdução comunista, passou a ser vigiado e mantido sobre constante observação durantetodo o regime. Não foi por acaso que no momento de instauração do golpe, houve uma verdadeira“operação limpeza” que resultou no suplício do jovem ativista comunista Gregório Bezerra 22 .O manual da ESG e a Lei de Segurança Nacional, como já mencionado, eram seguidos (ou setentava seguir) à risca. Para o pensamento militar qualquer indício de que o estado estava em “perigo”era motivo de redobrada atenção. Assim é visível observar a organização e dimensão do aparelhorepressivo, quando observamos em documentos secretos que qualquer atividade das oposições, eramanalisadas de forma cautelosa.Qualquer movimento das oposições, mesmo sendo nos anos finais do regime, eram anotados edivulgados por boa parte das agências de espionagem do país. As agências do Nordeste, obviamente,não eram excluídas. Um exemplo trata-se de um documento classificado como reservado, advindo dePorto Alegre- RS, no ano de 1981, que traça uma comparação entre os programas políticos do PC do Be o das oposições.Um Informe da CSI/ SSP-RS analisava uma “persistência do pensamento do Partido Comunista,no novo programa político das oposições” (Pasta 7, Cód. 007. ARPEM). “O Partido Comunista Brasileiro,com persistência e sutileza aproveitando-se da debilidade, e da ausência de uma ideologia definida e dooportunismo de alguns membros dos tradicionais partidos político, impôs seu “programa mínimo” a todaa oposição, que ingenuamente (?) o endossou e o denominou: “Programa para a União de todos””.(Pasta 7, Cód. 007. ARPEM).Naquele momento todas as esquerdas lutavam pelo processo de redemocratização, obviamente,o “Programa para a União de todos” deveria conter elementos de interesses homogêneos. Eram essesinteresses homogêneos como;“eleições diretas em todos os níveis,”” livre organização dos partidos”, “eliminação dosdispositivos antidemocráticos... Lei de Segurança Nacional, Lei da greve e lei daimprensa”, “extinção da tutela do Estado, direito à greve”, “política justa de distribuiçãode renda”, garantia de emprego para todos”, “democratização do poder judiciário,”reduzido o número de grupos financeiros, nacionais, estrangeiros e do Estado”. (Pasta7, Cód. 007. ARPEM)Ao ver estes informes, levando em consideração o contexto político-social que vivemos, não hánada de absurdo nas exigências das oposições e muito menos do Partido Comunista. “Nós, ao termoscontato com o pensamento da comunidade de informações, a primeira reação é riso, pois, apreocupação com “inimigo” parece excessiva. 23Riso ou medo, muitos dos papeis circulados pela comunidade, ao serem reconhecidos,causavam temor. Uma proposta recebida pelo SNI, encaminhada pelo chefe de gabinete1920212223FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record 2001.(Chiavenato, 2007, p. 97).Movimento de trabalhadores do campo que lutavam por reforma agrária. Contendo cerca de 110 miltrabalhadores entre o Norte e o Nordeste no ano de 1964, lutavam também por melhores condições de trabalhono campo.(FERREIRA E DELGADO, p. 170).(FICO, 2001).147


ao Ministro da justiça, afirmava que “todo criminoso, teme a morte violenta e a prisão”,sem capacidade de recuperar a liberdade 24 .Outro “foco” foi à região do Araguaia, onde pessoas morreram violentamente sem se quer sabera razão. Ao contrário do que afirma certos pensamentos historiográficos, a região Nordeste não foraesquecida pelo regime (Infelizmente não), novas pesquisas fundadas na documentação do período, nosmostram justamente o oposto.As duas páginas do Informe (Pasta 07, Cód. 007/DOPS/SSP/RS) contendo o “plano de comparação doprograma político das oposições”. O documento constituído de quatro páginas foi emitido no dia 27 denovembro de 1981, e enviadas aos DOPS das Capitais brasileiras além de todas as secretarias deSegurança Pública do Estado do Maranhão. Documento localizado no Arquivo Público do Estado doMaranhão – AMPEM, série Subversão. (Páginas 1 e 4).ConclusãoComo foi visto a união ente sociedade civil e militares resultou amparados por um pensamentoconservador anticomunista, resultou no Golpe Estado de 1964 que visava frear o suposto “avançocomunista” e ainda estabelecer o domínio de uma classe, sobre as demais classes populares. É claroque a posterior institucionalização do golpe e consequentemente do aparato repressivo não retirou doscivis a sua responsabilidade e colaboração com o Terror de Estado (TDE).O aparto repressivo atuante em todo País, disseminou o medo. É sabido, quem em regiõesperiféricas ao centro de poder como o Nordeste vigilância não tenha sido tão forte durante todo oregime. Mas, ela não deixou de existir. A ação dos PMs e dos agentes de informação presentesprincipalmente nas universidades, não deixou de gerar um clima de tenção nesses ambientes.A pesquisa, para traçar um perfil da atuação do regime no Nordeste e especificamente noMaranhão ainda é muito incipiente. A abertura dos documentos do DOPS deseja-se que o interesse depesquisadores por este episódio da História do Brasil cresça, fato que contribuirá para o esclarecimentoda verdade nesta região.FontesDocumento Arquivo DOPS/MAAs duas páginas do Informe (Pasta 07, Cód. 007/DOPS/SSP/RS) contendo o “plano de comparação doprograma político das oposições”. O documento constituído de quatro páginas foi emitido no dia 27 de24(FICO, 2001).148


novembro de 1981, e enviadas aos DOPS das Capitais brasileiras além de todas as secretarias deSegurança Pública do Estado do Maranhão. Documento localizado no Arquivo Público do Estado doMaranhão – APEM, série Subversão. (Páginas 1 e 4).Referências Bibliográficas:COSTA, Célia Maria Leite. O direito à informação nos arquivos brasileiros. In: FICO, Carlos. Ditadura edemocracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas/ Organizadores Carlos Fico...[et al].- Riode Janeiro: Editora FGV, 2008.REIFUSS, René. 1964: A Conquista do Estado. Ação Política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro,Vozes, 1987.FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record 2001.GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas – A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas à luta armada.São Paulo: Ática, 1987.GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº13). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Editora Vozes, 2°edição,1984.PADRÓS, Enrique Serra. Repressão e violência: segurança nacional e terror de Estado nas ditaduraslatino-americanas. In: FICO, Carlos (org.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico eperspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.Ditaduras Militares e institucionalização dos serviços de informações na Argentina, no Brasil e no Chile.In: FICO, Carlos (org.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Riode Janeiro: Editora FGV, 2008.SKIDMORE, Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.STEPAN, A. C. Os Militares na Política: as mudanças de padrões na vida brasileira. Artenova, 1975.149


Operando Informações (1975-1977): Atuação Repressiva e Evolução das Violações deDireitos Humanos no DOI/CODI/II ExércitoDiego Oliveira de Souza 1Resumo: Este artigo trata da atuação repressiva do Destacamento de Operações de Informações (DOI),do Centro de Operações de Defesa Interna (CODI), do II Exército Brasileiro, no período de 1975-1977 esua relação com a vulnerabilidade dos Direitos Humanos. Para tanto, busca definir o contexto políticosocialdo espaço de atuação do DOI/CODI/II Exército, destacando a existência de conceitos epensamento em comum, na ação dos agentes do DOI-CODI/II Exército, através de sua ofensiva sobre oPartido Comunista Brasileiro (PCB). Utiliza-se de fontes do próprio organismo repressivo, em especialseu levantamento estatístico dos resultados alcançados no combate à dissidência política. Por fim,objetiva comparar, apresentando a simetria ou a assimetria entre os resultados alcançados peloDOI/CODI/II Exército e as informações trazidas no livro-relatório, Direito à Memória e à Verdade, editadopela Secretaria Especial de Direitos Humanos, da Presidência da República.Palavras-chave: Ditadura Civil Militar – Atuação Repressiva – Violações de Direitos Humanos –DOI/CODI/II Exército – Brasil.Abstract: This article deals with the repressive role of Information Operations Detachment (DOI), theOperations Center of Homeland Defense (CODI), the II Brazilian Army, in the period 1975-1977 and itsrelation to the vulnerability of Human Rights. Therefore, it seeks to define the political and social contextof the performance space of the DOI/CODI/II Army, highlights the existence of concepts and thinking incommon, the action of agents DOI-CODI / II Army through its offensive on the Brazilian Communist Party(PCB). It uses the body's own repressive sources, especially his statistical results achieved in combatingpolitical dissent. Finally, compare objectively presenting the symmetry or asymmetry between the resultsachieved by DOI/CODI/II Army and the information brought in the book-report, The Right to Memory andTruth, edited by the Special Rights human, the Presidency.Keywords: Civil-Military Dictatorship; Acting Repressive; Human Rights Violations; DOI/CODI/II Army;Brazyl.IntroduçãoEste artigo trata da atuação repressiva do Destacamento de Operações e Informações do Centrode Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), do II Exército Brasileiro, registrada através de estatísticas,diante do combate à dissidência política da Ditadura Civil-Militar, entre os anos de 1975 e 1977 no Brasil.Essencialmente aborda a produção de lesões e maus-tratos, praticadas por agentes públicos nodesempenho da função pública.Centralizada na cidade de São Paulo, a atuação do organismo repressor é compreendidaatravés das seguintes violações de Direitos Humanos: prisão ilegal, tortura, homicídio, morte, ocultaçãodas reais causas de morte e desaparecimento forçado de cidadãos. A necessidade de se evidenciar aresponsabilidade do Estado brasileiro diante do dever de memória frente a revelação das circunstânciasem que cidadãos foram presos e mortos pelo aparelho repressivo da Ditadura Civil-Militar, assenta ajustificativa desta investigação. Deste modo, objetiva-se analisar os resultados alcançados peloDOI/CODI/II Exército e a vulnerabilidade das violações de Direitos Humanos, no momento da aberturapolítica lenta, gradual e segura, iniciada durante o governo de Ernesto Geisel. De forma complementar,busca-se apresentar a simetria ou a assimetria entre os resultados alcançados pelo organismo repressordo II Exército Brasileiro, quando comparados aos registros trazidos, no mesmo período, no livro-relatórioDireito à Memória e à Verdade, editado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência daRepública.1Técnico Administrativo do Ministério Público Federal (MPF), lotado na Procuradoria da República do Municípiode Santa Maria/RS. Licenciado e Bacharel em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).Mestrando em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Endereço Eletrônico:diego.o.souza@hotmail.com. Telefone: (51) 9238-4574. Orientador: Diorge Alceno Konrad, Professor Adjunto doDepartamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFSM, Doutor em História Social do Trabalhopela UNICAMP. Endereço Eletrônico: gdkonrad@uol.com.br. Telefone: (55) 9971-4703.150


A metodologia utilizada corresponde ao estudo comparativo dos resultados alcançados, nointervalo de 1975-1977, pelo DOI/CODI/II Exército, e as mortes e os desaparecimentos forçados,ocorridos na região de São Paulo, no mesmo período, trazidas no livro-relatório, Direito à Memória e àVerdade. Os dados da análise foram extraídos do Relatório de Estatística do DOI/CODI/II Exército (RPI6/75), do ano de 1975, e da Monografia do Major Freddie Perdigão Pereira, intitulada o “Destacamentode Operações de Informações (DOI). Histórico papel no combate à subversão.”, de 1978.A situação de vulnerabilidade dos Direitos Humanos provocada pela atuação repressiva doDOI/CODI/II Exército poder ser compreendida a partir da produção de atos incompatíveis com as ideiasde Direitos Humanos. Através da perspectiva da Nova História Cultural, Lynn Hunt lembra que os DireitosHumanos possuem uma base emocional que se desloca ao longo do tempo, assim como odesenvolvimento incompleto do reconhecimento [empatia] de que todos os outros são igualmentesenhores de si origina todas as desigualdades de direitos que nos têm preocupado ao longo da história. 2Para atender suas pretensões, este artigo está divido em três momentos. Na primeira parte,apresenta as tratativas iniciais em torno da criação de organismo central para o combate aos crimespolíticos, definindo a Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento como fomento para as açõesde repressão à dissidência política. Na segunda, traz a Diretriz Presidencial de Segurança Interna,elaborada no governo de Emílio Garrastazu Médici, a qual possibilitou a existência dos Destacamentosde Operações de Informações (DOI), em nível federal, destacando, entre os agentes da repressão, aexistência de um ethos repressivo. Na parte final, trata de apresentar o resultado da ofensiva doDOI/CODI/II Exército sobre o Partido Comunista Brasileiro (PCB), durante o período 1975-1976,evidenciado a simulação de suicídio e o desenvolvimento da ocultação das reais causas da morte demilitantes comunistas.O “Teatro de Operações”: DOI/CODI/II ExércitoAntes de partir para o estudo da estrutura repressiva, representada pelos Destacamentos deOperações de Informações (DOI), necessita-se detalhar o contexto político anterior à instituição do“teatro de operações” das violações de Direitos Humanos, baseado no uso da violência eminterrogatórios de militantes políticos, opositores da Ditadura Civil Militar.O contexto histórico da institucionalização da repressão à dissidência política brasileira,notadamente do surgimento do DOI/CODI/II Exército, guarda vinculação com o período anterior àdeflagração do Golpe Civil Militar de 1964. Além disso, as variações da relação entre o Estado de Direitoe o autoritarismo, no Brasil, de acordo com Anthony Pereira, não podem ser explicadas como resultadoda força da oposição enfrentada por cada governo, e sim deve-se observar o consenso, a integração e acooperação entre as elites do Poder Militar e Poder Judiciário. 3Deste modo, a ideia de criar uma estrutura de combate ao crime político e social (atribuiçãopertencente até então às Quartas Delegacias Auxiliares), em nível nacional, se consolida com a criaçãoda Delegacia Especial de Segurança Política e Social (DESPS), em 1933, embrião da futura DOPS. 4 Em1936, quando houve o Congresso de Chefes de Polícia, no Rio de Janeiro, convocado pela Chefia dePolícia do Distrito Federal e do Ministério da Justiça 5 , este aparato é aperfeiçoado. O objetivo do eventoera melhorar as relações entre as polícias estaduais, a fim de aprimorar o combate ao comunismo.Entretanto, a resistência a ideia de federalizar a polícia política, em detrimento do controle dos estados,foi levantada por alguns representantes estaduais, particularmente de São Paulo, que temiam adiminuição da eficiência do trabalho policial.De outro lado, o ativismo político dos militares brasileiros, conforme Maud Chirio, possui ainfluência da queda da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas. Conforme a historiadora francesa,inaugura-se uma era de polarização e mobilização política da sociedade brasileira, cujas ForçasArmadas ocupam lugar central, ocorrendo a participação de oficiais de todas as patentes, sendo que:A principal caixa de ressonância é o Clube Militar, que no pós-guerra recuperou seupapel de foco de agitação política no Exército: ali são asperamente discutidas asgrandes questões que eletrizam a cena política nacional, e ali se enfrentam, às vezesvirulentamente, a facção nacionalista, solidária do campo getulista, e a direita liberal e2345HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma História. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 28.PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e naArgentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 283.Ver mais sobre isto em: KONRAD, Diorge Alceno. O fantasma do medo: o Rio Grande do Sul, a repressãopolicial e os movimentos socios-politicos (1930-1937). Tese de Doutorado Orientada por Michael McDonald Hall.Campinas: IFCH-UNICAMP, 2004.JOFFILY, Mariana. No centro da engrenagem: Os interrogatórios na Operação Bandeirante e no DOI em SãoPaulo (1969-1975). Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008, p. 41.151


anticomunista, aglutinada a partir de 1952 na chapa da Cruzada Democrática. 6Em 1958, ocorreu a II Conferência Nacional de Polícia, na qual surgiu novamente o tema dareestruturação da polícia, com a proposta de se criar uma Polícia Federal, sendo que o modelo norteamericanodo FBI chegou a ser cogitado. Diante disso, a representação de São Paulo se opôsnovamente ao projeto, alegando que a elite paulista não estaria interessada no fortalecimento do poderfederal, do mesmo modo os policiais paulistas contavam com instituições bem aparelhadas como oDepartamento de Ordem Política e Social (DOPS), afastando-se assim a tentativa de criar-se um FBIcaboclo. 7 Ainda assim, a preocupação com o recolhimento de informações ocorreu desde o período pré-1964, tendo em vista que Golbery do Couto e Silva 8 , um dos principais ideólogos da Ditadura deSegurança Nacional no Brasil, reuniu, no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), milhares defichas e dossiês que foram levados posteriormente para o Serviço Nacional de Informações (SNI), órgãoque o referido militar assumiu a chefia, em julho de 1964. 9Dessa maneira, o Serviço Nacional de Informações (SNI) passou a ser o principal órgão doSistema Nacional de Informações (SISNI), criado para subsidiar as atividades da repressão política noperíodo pós-1964. O projeto repressivo, para muitos militares, sustentava a crença de que, via controlepolicial-militar, a sociedade poderia ser moldada de forma estática e desideologizada, assim como seriapossível combater a guerrilha e, numa segunda etapa, fazer um trabalho preventivo de saneamentoideológico. 10A Ditadura Civil Militar, implementada a partir de 1964, possuiu entre seus pilares a ideologia dedominação de classe, compreendida, resumidamente, através do abuso de poder ou da força paraalcançar os objetivos do Estado. Portanto, a Doutrina de Segurança Nacional e de Desenvolvimentotrata-se de variante teórica que, em sua essência, difunde visão de mundo utilizada para moldar asestruturas do Estado Brasileiro, buscando impor formas de controle específicas da sociedade civil, bemcomo delinear um projeto de governo para o Brasil. 11Em outras palavras, a Doutrina Política de Segurança Nacional, elaborada a partir da década de1950, em decorrência do desenvolvimento das atividades da Escola Superior de Guerra (ESG), sofreualteração em sua nomenclatura, inicialmente, de Segurança Nacional no seu conceito mais abrangente,passou a ser, de 1967 em diante, intitulada de Segurança e Desenvolvimento – ou de 'Desenvolvimentoe Segurança' – em decorrência da publicação do Decreto-lei nº. 200, de 25 de fevereiro de 1967. 12A partir de 1961, a Escola das Américas tornou-se modelo de referência para o aprimoramentodos agentes de segurança, ligados aos mecanismos estatais, encarregados de manter a ordem socialdos países latino-americanos. Conforme Joseph Comblin, foi nos Estados Unidos que se formou a ideiade guerra revolucionária, a partir do funcionamento dos colégios militares destinados a preparar osoficiais e soldados na região do Canal do Panamá. 13Em decorrência do desenvolvimento da política externa norte-americana, a partir de 1962,desencadeiam-se diversos Golpes de Estado ou Golpes Civil-Militares na América Latina. Na década de1970, apenas México, Colômbia e Venezuela não haviam apelado para golpes militares como solução678910111213CHIRIO, Maud. A política nos quartéis: revoltas e protestos de oficiais na Ditadura Militar Brasileira. Rio deJaneiro: Zahar, 2012, p. 11.MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O ofício das sombras. In: Revista do Arquivo Público Mineiro: Belo Horizonte, anoXLII, jun. 2006, p. 61-62.A frase “Ficha não se limpa. Informações não se apagam: superpõem-se, como camadas geológicas” é atribuídaao General Golbery do Couto e Silva e foi publicada em uma matéria especial do jornalista Elio Gaspari, naépoca Diretor Adjunto da Veja. Ver: Veja, Edição 602, 19 de março de 1980, p. 29.FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). Brasil Republicano. Livro 4. O tempo daDitadura. Regime Militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003,p. 174-175.D’ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso (orgs.). Os anos de chumbo. Amemória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 7.ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Bauru: EDUSC, 2005, p. 31.FRAGOSO, Augusto. Prefácio, p. X e XIV. In: GURGEL, José Alfredo Amaral. Segurança e democracia: umareflexão política sobre a doutrina da Escola Superior de Guerra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército/JoséOlympio, 1975, p. 27.COMBLIN, Joseph. A ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1980, p. 44. Em relação às discussões em torno do predomínio da influência doutrinárianorte-americana ou francesa sobre o pensamento militar brasileiro, na década de 1960, cabe ressaltar queJosep Comblin foi criticado por ser um dos primeiros a simplificar a noção de Guerra Revolucionária, bem comopor adotar uma interpretação genérica do ideário da Doutrina de Segurança Nacional. Ver: MARTINS FILHO,João Roberto. A influência doutrinária francesa sobre os militares brasileiros nos anos de 1960. In: RevistaBrasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 67. Junho de 2008, p. 40.152


para seus problemas sociais, políticos e econômicos. 14Através da deflagração do Golpe Civil-Militar no Brasil, em 1964, iniciou-se, de forma intensa, aperseguição política aos dissidentes da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento. Comoresultado dos aperfeiçoamentos dos esforços para eliminar a oposição política, surgiram estruturasrepressivas voltadas especialmente para o combate dos cidadãos acusados de violarem os interessesda Segurança Nacional. A seguir, trata-se do surgimento da estrutura repressiva do Destacamento deOperações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, do II Exército brasileiro.O DOI CODI/II Exército: conceitos e pensamento em comumA criação do Departamento de Polícia Federal, com atuação nacional, surgiu somente após oGolpe Civil Militar de 1964. Até 1969, a repressão política era atividade essencialmente desenvolvidapelas Secretarias da Segurança Pública e os DOPS (Departamentos de Ordem Política e Social) de cadaestado. A centralização da repressão à dissidência política ocorreu a partir do nascimento da OperaçãoBandeirante (OBAN), em julho de 1969, definida pela Diretriz para Política de Segurança Interna, doGoverno Costa e Silva. 15A contar dos resultados alcançados através da OBAN, a Ditadura Civil-Militar avançou naconcessão do campo de atuação dos Comandantes Militares de Área (CMA), sendo que, em setembro1970, surgiu nova orientação para o combate à dissidência política no Brasil. Trata-se da DiretrizPresidencial de Segurança Interna, elaborada no governo do general-presidente Médici, a qualpossibilitou a existência dos Destacamentos de Operações de Informações (DOI), em nível federal. O“combate à subversão”, segundo Ustra, foi reorganizado:De acordo com essa Diretriz, em cada Comando de Exército, que hoje se denominaComando Militar de Área, existiria: um Conselho de Defesa Interna (CONDI); um Centrode Operações de Defesa Interna (CODI); um Destacamento de Operações deInformações (DOI); todos sob a coordenação do próprio Comandante de cada Exército. 16No discurso, o governo de Médici seria marcado pela busca da “democracia e dodesenvolvimento”, os quais conforme suas palavras, seriam:“(...) atos de vontade coletiva que cabe aoGoverno coordenar e transformar em autênticos e efetivos objetivos nacionais”. 17 Para auxiliar osesforços do governo, na busca por seus objetivos, o Exército Brasileiro desenvolveu uma linha de açãogenuinamente brasileira que serviu de ensinamento para vários outros países:Isso ocorreu com a criação dos CONDI, dos CODI e dos DOI e com o empenho deapenas 450 homens do seu efetivo, distribuídos aos DOI. O restante do pessoal dos DOIera complementado com os bravos e competentes membros das Polícias Civil e Militardos Estados. O Exército, através dos Generais-de-Exército, Comandantes Militares deÁrea, centralizou, ordenou, comandou e se tornou responsável pela condução daContra-subversão no país. Os DOI eram a força pronta para o combate, diretamente aeles subordinados. 18Importa salientar que a justificativa para o engajamento das Forças Armadas, em especial oExército, no combate aos opositores da Ditadura Civil-Militar, está contida na alegação de que tanto oDepartamento de Polícia Federal, quanto as Secretarias de Segurança Pública, com raras exceções, nãotinham estrutura adequada e nem preparo para cumprir essa tarefa. A centralização do planejamento e aexecução das atividades repressivas no Exército Brasileiro, na visão dos idealizadores do Livro Negro doTerrorismo no Brasil (ORVIL), 19 foram importantes por suprir a falta de um organismo que assegurasse o141516171819GUAZELLI, Cesar Augusto Barcellos. História Contemporânea da América Latina 1960-1990. 2 Ed. PortoAlegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 28-29.PEREIRA, Freddie Perdigão. O Destacamento de Operações de Informações (DOI). Histórico papel nocombate à subversão – Situação atual e perspectivas. Monografia. Escola de Comando e Estado Maior doExército, Rio de Janeiro, 1978, p. 6. Documento Confidencial.USTRA, Carlos Alberto Brilhante. Rompendo o silêncio: OBAN, DOI/CODI. 29set.70-24jan.74. Brasília:Editerra, 1987, p. 67.MÉDICI, Emílio Garrastazu. O jogo da verdade. 2 ed. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1970, p.11.USTRA, Carlos Alberto Brilhante, op. cit., p. 68, grifos nossos.O Livro Negro do Terrorismo do Brasil (Orvil) é resultado da pesquisa e narrativa de ex-integrantes dos serviçosde repressão política no Brasil, autoridades e servidores públicos. Afirma-se que foi escrito, nos anos de 1986 a1988. O ano de 2007 é o período em que o Orvil veio à luz. Calcula-se que apenas quinze cópias tenham sidofeitas do documento, o qual permaneceu guardado durante 19 anos. Para maiores detalhes, ver: FIGUEIREDO,Lucas. Olho por olho: os livros secretos da Ditadura. Rio de Janeiro: Record, 2009, p. 11.153


planejamento integrado e a pronta e eficiente execução nos estados e em nível nacional. 20O processo de assunção do Exército brasileiro da coordenação da repressão política ocasionouo surgimento dos DOI. Com isso, a estrutura repressiva deste órgão repetia o mesmo trabalho da OBAN,constituindo-se em corpo de polícia política dentro das organizações militares do Exército. Na visão deElio Gaspari:Repetia-se no DOI o defeito genético da Oban, misturando-se informações, operações,carceragem e serviços jurídicos. O destacamento formava uma unidade policialautárquica, concebida de forma a preencher todas as necessidades da ação repressivasem depender de outros serviços públicos. Funcionou com diversas estruturas e na suaderradeira versão tinha quatro seções: investigação, informações e análise, busca eapreensão, e administração. Dispunha de uma assessoria jurídica e policial. 21Ademais, nas palavras do primeiro comandante do DOI/CODI/II Exército, observa-se anecessidade de “flexibilidade” no desempenho de suas funções, pois segundo ele, não se conseguia“combater o terrorismo amparado nas leis normais, eficientes para um cidadão comum. Os terroristasnão eram cidadãos comuns”. 22 Há de se notar que este argumento, possivelmente, seja utilizado parajustificar a organização do DOI/CODI Paulista, bem como a prática de diversas violações de DireitosHumanos, no tratamento dos presos políticos. De todo maneira, Carlos Fico avança na visão sobre aflexibilidade do organismo repressivo da Ditadura Civil-Militar, e o define de forma objetiva:Os DOI seriam uma espécie de 'anticorpo mutável', diante da nova 'virose' da guerrilhaurbana. (…) Os 'destacamentos', diferentemente das 'companhias', 'batalhões' ou'regimentos', não possuem, nas organizações militares, uma composição fixa. Assimflexíveis, os DOI podiam movimentar pessoal e material variável, conforme asnecessidades de cada operação, com grande mobilidade e agilidade. 23Para concluir a reflexão sobre a estrutura repressiva do DOI/CODI/II Exército, retoma-se asideias de Carlos Fico acerca do Sistema de Segurança Interna, ao apontar-se a existência de um ethosrepressivo, entre os agentes da repressão. Sua base principal era a memória fundada na noção de'guerra interna', que tendia não apenas a identificar um inimigo interno, mas a superestimar suacapacidade ofensiva. 24 Os agentes do DOI/CODI/II Exército agiam através de um conjunto de costumese hábitos diretamente relacionados à prática sistemática de abusos de Direitos Humanos: prisões ilegais,torturas, desaparecimentos forçados, mortes e ocultação das suas reais causas.Neste contexto, é significativa a entrevista do ex-Sargento do Exército Marival Chaves, Analistade informações do Exército, o qual prestou seus serviços junto ao DOI/CODI/II Exército entre 1970-1976.Para Marival Chaves, o combate à dissidência política era desenvolvido por dois tipos de pessoas, sendoque:O primeiro com vocação para matar, inspirado pelo ódio. O outro não tinha vocaçãopara o crime, mas estava impregnado pela doutrina de segurança nacional. Essesmatavam por achar que estavam salvando o país do comunismo. 25Por fim, o ethos repressivo, dos agentes do Destacamento de Operações de Informações (DOI)de São Paulo, teria sua base jurídico-filosófica estabelecida, em meados de 1968, nos debatespromovidos na ESG, para qual “prender, torturar, matar, tudo é permitido para defender a SegurançaNacional.” 26A Ofensiva do DOI/CODI/II Exército sobre o Partido Comunista Brasileiro (PCB)Para compreender o contexto repressivo, dos anos de 1975 e 1976, no qual ocorre a ofensivafinal do DOI/CODI/II Exército sobre o PCB, é necessário recordar, dentre outros acontecimentos quecontaram com a participação de membros daquele partido, o momento no qual a distensão lenta, graduale segura chega aos presídios. A partir de 1975, nascia o reconhecimento dos opositores à Ditadura Civil-Militar, com a repercussão das lutas que, em todo o País, eram travadas nas prisões, não havendo mais20212223242526O Livro Negro do Terrorismo no Brasil, p. 453. Cópia digitalizada. Disponível em:


como afirmar que no Brasil não existiam presos políticos. 27No período de 1968 a 1974, a repressão policial-militar se concentrou no combate à guerrilha ealvejou menos o PCB. Deste modo, ocorreu na visão de Jacob Gorender, descuidos em relação àsegurança dos membros do PCB, revelando que o Partidoabriu-se em excesso na campanha eleitoral de 1974, quando o MDB alcançou oprimeiro êxito significativo. Os órgãos policiais não tiveram dificuldades para desarticularo Partidão e paralisar sua alta direção. Juntando as quedas dos anos anteriores às de1974-1975, metade do Comitê Central foi parar nas garras do inimigo.(...) Exiladosquase todos os dirigentes em liberdade, o PCB deixou de ter uma direção nacionalatuante no Brasil entre 1975 e 1980. 28Os efeitos da atuação repressiva do DOI/CODI/II Exército sobre o PCB, entre outrasorganizações políticas, podem ser verificadas na Tabela 1, constituída através de registros estatísticosdas Forças Armadas. O DOI/CODI/II Exército, no período de 1975 a 1977 deteve diretamente 224cidadãos. Nesse período, 4 pessoas foram mortos no próprio Destacamento de Operações deInformações (DOI) de São Paulo.Resultados alcançados entre 1975-1977TotalPresos pelo DOI 224Encaminhados ao DOPS para Processo 158Encaminhados a outros Órgãos 9Liberados 59Mortos 4Presos recebidos de outros Órgãos 97Encaminhados ao DOPS para Processo 46Encaminhados a outros Órgãos 43Liberados 8Mortos 0Elementos que prestaram declarações e foramliberadosTotal de cidadãos que passaram pelo DOI/CODI/II 376ExércitoTabela 1 Resultados alcançados pelo DOI/CODI/II Exército 29De outro modo, Elio Gaspari apresenta detalhes da ofensiva do aparelho repressivo estatal sobreos militantes do PCB, ao afirmar que após o aniquilamento dos militantes do Partido Comunista do Brasil(PCdoB), na região do Araguaia, inicia-se também, no ano de 1975, a ofensiva sobre o PCB, nomomento em que:Descobrira-se uma base do Partidão dentro da Polícia Militar paulista. Ela estiverainvicta desde sua montagem, em 1946. Funcionava sob as rígidas normas de segurançado Setor Mil, ligando-se diretamente a um representante pessoal do secretário-geral do55272829SOUSA, Jessie Jane Vieira de. Anistia no Brasil: um processo político em disputa. In: PEYNE, Leigh A.; ABRÃO,Paulo; TORELLY, Marcelo D. (orgs.) A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectivainternacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford: Oxford University, LatinAmerican Centre, 2011, p. 196-197.GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda basileira: das ilusões perdidas à luta armada. 2 ed. SãoPaulo: Ática, 1987, p. 232-233.Tabela elaborada a partir de dados encontrados em dois documentos distintos. O primeiro é de autoria dePEREIRA, Freddie Perdigão, 1978, op. cit. Documento Confidencial. Encartado no Anexo 4 da peça inicial daAção Civil Pública nº 2008.61.00.011414-5, proposta pelo Ministério Público Federal de São Paulo, relativo ao“Caso DOI/CODI/SP”. O segundo documento refere-se ao “Relatório de Estatística” de junho de 1975 pertenceao dossiê 50-Z-9-39702, f. 44, do Arquivo do Estado de São Paulo. Documento Confidencial. Reproduzido noartigo de POMAR, Pedro Estevam da Rocha. Estatísticas do DOI-CODI. In: Revista ADUSP, Maio de 2005, p.74-77. Disponível em: . Acesso em 11 de jul. de 2012.155


PC. Na sua liquidação, prenderam-se 63 policiais. 30A morte do tenente reformado da Polícia Militar de São Paulo, José Ferreira de Almeida, ocorrida em 08de agosto de 1975, fez parte de um conjunto de mortes, de militantes do PCB, bastante semelhantes.Para detalhar a situação envolvendo os abusos de Direitos Humanos, praticados no DOI/CODI de SãoPaulo, contra José Ferreira de Almeida, segue-se o relatório oficial da Presidência da República, Direitoà Memória e à Verdade:O corpo do tenente foi velado no Hospital Cruz Azul da Polícia Militar, sob ostensivavigilância de agentes de segurança do II Exército.(...) Pelo menos três presos políticospertencentes à Polícia Militar, o major Carlos Gomes Machado, o capitão Manoel Lopese o tenente Atílio Geromin, denunciaram na Justiça Militar as torturas sofridas pelotenente. 31A atuação do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, durante o período de 1964-1985, na defesados militantes políticos perseguidos, é bastante importante, pois permite desconstruir a versão dosuicídio, elaborada pelo modus operandi do DOI/CODI/II Exército, no ocultamento das reaiscircunstâncias do homicídio do tenente reformado da Polícia Militar, pois:acompanhado da família de Almeida, da qual era advogado, constatou, quando daabertura do caixão entregue pelo DOI-CODI, a existência de sulcos no pescoço deAlmeida, produzidos com o objetivo de legitimar a versão oficial. O corpo apresentavatambém, no entanto, evidências de tortura, fato que seria corroborado por documentoposteriormente obtido junto ao DEOPS/SP. 32Três meses após a morte do tenente da PM, morria nas dependências do DOI/CODI II Exército esob condições semelhantes, o jornalista Vladimir Herzog. Depois da morte de Herzog, o operáriometalúrgico Manoel Fiel Filho também foi morto, nas mesmas condições e no mesmo local. Essassituações demonstram que no DOI/CODI/II Exército havia um modus operandi, voltado para oocultamento da prática de torturas e assassinatos, o qual entrava em funcionamento quando não seconseguia fazer desaparecer os corpos de prisioneiros políticos. Essa situação evidencia-se namontagem da versão de suicídio, realizado por enforcamento a poucos centímetros do chão, como nocaso de José Ferreira de Almeida, Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho. 33Contudo, a relação de vítimas da atuação repressiva do DOI/CODI/II Exército, resultado daofensiva sobre o PCB, pode ser percebida de forma detalhada no relatório oficial da Presidência daRepública, Direito à Memória e à Verdade. (Tabela 2) Deste modo, o Estado brasileiro registra aexistência de dez casos de mortes ou desaparecimentos forçados, na área de atuação do aparatorepressivo do DOI/CODI de São Paulo, no período de 1975-1976. Além do que, registra também oepisódio conhecido como a Chacina da Lapa, o qual findou com a morte de três componentes do ComitêCentral do PCdoB.Data Condição Nome OrganizaçãoPolítica1 14/01/75 Desaparecido Élson Costa (1913 – 1975) PCB2 15/01/75 Desaparecido Hiran de Lima Pereira (1913 – 1975) PCB3 08/08/75 Morto/Suicídio José Ferreira de Almeida (1911 – 1975) PCB4 29/09/75 Desaparecido José Montenegro de Lima (1943 – 1975) PCB5 25/10/75 Morto/Suicídio Vladimir Herzog (1937 – 1975) PCB30313233GASPARI, Elio. A Ditadura encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 159-160.BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.Direito à Memória e à Verdade. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007, p. 401.MONTENEGRO, Darlan; MOTTA, Luiz Eduardo Perreira. Luiz Eduardo Greenhalgh: um militante dos direitoshumanos. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio (orgs.). Os advogados e a Ditadurade 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010, p. 211.MORAES, Mário Sérgio de. Memória e cidadania: as mortes de Vladimir Herzog, Manuel F. Filho e José F. DeAlmeida. In: SANTOS, Cecília MacDowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida (orgs.) Desarquivando aDitadura: memória e justiça no Brasil. Volume I. São Paulo: Aderaldo e Rothschild Editores, 2009, p. 58.156


6 07/01/76 Morta Neide Alves dos Santos (1944 – 1976) PCB7 17/01/76 Morto/Suicídio Manoel Fiel Filho (1927 – 1976) PCB8 16/12/76 Morto Ângelo Arroyo (1928 – 1976) PCdoB9 16/12/76 Morto João Batista Franco Drumond (1942 –1976)PCdoB10 16/12/76 Morto Pedro Ventura Felipe de Araújo Pomar PCdoB(1913 – 1976)Tabela 2: Mortos e Desaparecidos na área de atuação do DOI/CODI/II Exército 34ConclusãoDos desdobramentos deste trabalho, cabe destacar a defesa da proposta interpretativarepresentada pela atuação repressiva do DOI/CODI/II Exército, durante o período da chamada aberturalenta, gradual e segura, e sua relação com a permanência do quadro de vulnerabilidade dos direitoshumanos, destacando-se nesse caso a ofensiva sobre o PCB.Nos resultados alcançados pelo estudo sobre o DOI/CODI/II Exército, entre o período de 1975 e1977, através de estatísticas elaboradas por membros das Forças Armadas, é possível avaliar a situaçãode vulnerabilidade dos Direitos Humanos. O aumento do número de presos diretamente, pelo próprioorganismo repressor, evidencia a manutenção da produção de vítimas da polícia política da DitaduraCivil-Militar, delimitando a atuação repressiva do DOI/CODI/II Exército, mesmo sob o períodoconsiderado de abertura lenta, gradual e segura.Ademais, as estatísticas dos resultados do DOI/CODI/II Exército, no período de 1975-1977,quando comparadas aos casos de violações de Direitos Humanos, registradas no livro-relatório, Direito àMemória e à Verdade, revelam que há assimetria entre os dados encontrados. O relatório oficial doEstado brasileiro, de 2007, registra dez casos de mortes ou desaparecimentos forçados, na área deatuação do DOI/CODI/II Exército, enquanto que as estatísticas do organismo repressivo apontam apenasquatro mortes.Contudo, a medida necessária para combater o esquecimento das violações de DireitosHumanos, praticadas por agentes públicos, nas dependências do DOI/CODI/II Exército, durante aDitadura Civil-Militar, trata-se da ampla divulgação de documentos do período repressivo. Com isso, ademocratização do acesso às informações acerca da atuação repressiva e da evolução das violações deDireitos Humanos, praticadas naquele organismo repressor, poderá colaborar com o desenvolvimentosocial da empatia, conseqüentemente, fortalecerá as alternativas de se evitar abusos de DireitosHumanos, praticados por agentes de segurança do Estado.Fontes PesquisadasBRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e DesaparecidosPolíticos. Direito à Memória e à Verdade. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007.PEREIRA, Freddie Perdigão. O Destacamento de Operações de Informações (DOI). Histórico papel nocombate à subversão – Situação atual e perspectivas. Monografia. Escola de Comando e Estado Maiordo Exército, Rio de Janeiro, 1978. Documento Confidencial. Encartado no Anexo 4 da peça inicial daAção Civil Pública nº 2008.61.00.011414-5, proposta pelo Ministério Público Federal de São Paulo,relativo ao “Caso DOI/CODI/SP”.Destacamento de Operações de Informações (DOI). II Exército. Relatório de Estatística. Junho de 1975.Dossiê 50-Z-9-39702, f. 44. Arquivo do Estado de São Paulo. Documento Confidencial.Veja, Edição 602, 19 de março de 1980.Veja, Edição 1262, 18 de novembro de 1992.O Livro Negro do Terrorismo no Brasil (ORVIL). Cópia digitalizada. Disponível em:34Tabela elaborada a partir de dados extraídos de BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. ComissãoEspecial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, 2007, op. cit., p. 396-427. Deve-se observar que o livrorelatórioDireito à Memória e à Verdade, contempla apenas uma morte ocorrida no ano de 1977, pelosorganismos repressivos da Ditadura Civil Militar. Trata-se da morte de Lourenço Camelo de Mesquita (1926 –1977), militante do PCB, ocorrida na Cidade do Rio de Janeiro.157


77. Disponível em: . Acesso em 11 de jul. de 2012.SOUSA, Jessie Jane Vieira de. Anistia no Brasil: um processo político em disputa. In: PEYNE, Leigh A.;ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. (orgs.). A anistia na era da responsabilização: o Brasil emperspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford:Oxford University, Latin American Centre, 2011.USTRA, Carlos Alberto Brilhante. Rompendo o silêncio: OBAN, DOI/CODI. 29 Set.70-24 jan.74. Brasília:Editerra, 1987.159


Segurança Pública em dois atos: da polícia de repressão à polícia de aproximaçãoLívio Silva de Oliveira 1Resumo: O objetivo deste trabalho é fazer uma análise comparativa entre (I) os procedimentosempregados na abordagem e produção de criminosos e a reação contra os mesmos pelos aparelhos desegurança do Estado no período da Ditadura Civil-Militar brasileira (1964-1985), e (II) as novasperspectivas de políticas públicas de segurança na democracia, que se apresentam como uma propostapreventiva e mediadora por parte das polícias, com a ideia de segurança cidadã e proximidade. Asdimensões da violência (física, psicológica e simbólica) serão o cerne da análise comparativa entre ospressupostos que baseiam procedimentos de segurança em cada um dos períodos apresentados (I)(II).A metodologia escolhida para essa análise tem como bases teóricas abordagens históricas esociológicas sobre o papel do Estado, no que se refere a distribuição de direitos, e a ação policial e suasespecificidades.Palavras-chave: Violência – procedimentos policiais – militarização – Segurança Pública.Abstract: The objective of this work is to make a comparative analysis of (I) the procedures used inapproach and production of criminals and the reaction against them by the state security apparatusduring the Civil-Military Dictatorship in Brazil (1964-1985), and (II) the new perspectives of political publicsafety in democracy, which are presented as a proposal by the mediator and preventative police, with theidea of citizen security and proximity. The dimensions of violence (physical, psychological and symbolic)are the core of the comparative analysis of the assumptions that underlie the security procedures in eachof the periods presented (I)(II). The methodology chosen for this analysis is theoretical historical andsociological approaches on the role of the state as regards the distribution of rights, and the police actionand its specificities.Keywords: Violence – police’s procedures – Militarization – Public Safety.1. IntroduçãoO texto a seguir é um esforço reflexivo da pesquisa de conclusão de curso de graduação, e dotema de dissertação do curso de Mestrado deste autor.A monografia de Graduação e os textos apresentados em eventos acadêmicos, no ano de 2008,apresentaram o tema “Ditadura e Estado de Direito no Brasil”, a partir de uma análise sobre o AtoInstitucional número 5 (AI-5) e sua influência nos processos políticos, com destaque para osprocedimentos utilizados pelos agentes responsáveis pela segurança pública no período ditatorial (1964-1985), marcados pelo uso da violência em dimensões diversas (física, psicológica, e simbólica) eviolação de direitos que passavam pela integridade física, o da ampla defesa, e até mesmo a livremanifestação e associação política 2 . A metodologia utilizada na referida pesquisa foi a consulta demateriais históricos (documentos, reportagens jornalísticas e produções acadêmicas) referentes aosrecortes temporal e espacial citados, para uma análise sociológica dos acontecimentos.O tema da dissertação de Mestrado é a proposta de segurança pública mais democrática ecidadã, que vem ganhando força nos últimos anos. A ideia de uma polícia de proximidade, maispreventiva e mediadora em relação às ocorrências criminais, em detrimento as reações violentas dapolícia contra os seus suspeitos (muitas vezes com um alto índice de letalidade nessas ações). Há de seobservar que o foco dessa política são as áreas marginalizadas e de baixa renda, remetidas a umhistórico de violência e criminalidade. Além disso, essa nova perspectiva de segurança pública seapresenta como alternativa de inclusão de direitos, já que não se encerra apenas nas ações policiais,englobando os entes federativos (União, Estado e Município) em políticas públicas que se aproxime mais12Formação acadêmica: Mestrando em Sociologia PPGS-UFRGS. Estudante-membro do Grupo de PesquisaViolência e Cidadania (GPVC-UFRGS). Especializado em Sociologia Política e Cultura pela PUC-RIO. Bacharelem Ciências Sociais pelo Instituto de Humanidades – Universidade Candido Mendes.Vínculo institucional:Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IFCH-UFRGS).Endereço eletrônico: liviosilvadeoliveira@yahoo.com.br Telefone: (51) 33086890 – ramal 51/ (51) 98591490.Título da monografia de conclusão de curso: “O AI-5 e o Estado de Direito: Paradoxo de uma relação”. Título doartigo publicado: “Os Militares e a redemocratização no Brasil”.160


dos cidadãos, e, com isso, o debate mais amplo sobre o tema 3 . A metodologia para a pesquisa é otrabalho de campo, que consiste em entrevista com os atores envolvidos neste processo de políticapública de segurança (gestores, policiais e a população), para reflexão por meio de referenciais teóricossociológicos, filosóficos e históricos 4 .A análise comparativa desses dois períodos se faz necessária para compreensão e identificaçãode fatores históricos e sociais contribuíram para a formação atual dos agentes de segurança pública noBrasil, e quais os pressupostos que norteiam a sua conduta, desde o ethos e o habitus policiais. Aproblematização de representações cristalizadas sobre as origens dos procedimentos policiais referentesao período da ditadura civil-militar no Brasil e seu legado no período democrático, desconstruindoalgumas afirmações e analisando a sua continuidade.Na próxima seção serão apresentados e discutidos os contextos históricos referentes ao períododa (I) ditadura brasileira (1964-1985) e o (II) período democrático, no que se refere aos procedimentospoliciais e de segurança pública no país.2. Segurança Pública em dois atos: da polícia de repressão à polícia de aproximação.2.1. Contexto histórico da ditadura civil-militar (1964-1985): O intervencionismo militar comotraço político.O período que antecede o golpe civil-militar de 31 de março de 1964 no Brasil é marcado porintensas e rápidas transformações institucionais no Estado brasileiro, que sofrera influências internas eexternas.Destarte, apresenta-se um contexto global de bipolaridade entre dois blocos ideologicamenteantagônicos e que disputam a hegemonia política e econômica após a segunda grande guerra. De umlado, os Estados Unidos da América (EUA), com sua democracia liberal que tem suas bases econômicascalcadas no capitalismo. Por outro lado, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, ou simplesmenteUnião Soviética; (URSS), com sua formação política de partido único e economia socialista. Estes doisblocos influenciaram movimentos de independência de países na Ásia e na África, o que fez ruir impérioscoloniais europeus, como o caso francês e o caso inglês, dando um novo desenho ao globo. Esteperíodo de bipolaridade é conhecido como “guerra fria”. Os dois blocos jamais entram em conflitoarmado direto um contra o outro em seus territórios, mas disputavam de forma violenta a hegemonia empaíses subdesenvolvidos, financiando e apoiando guerrilhas armadas e/ou governos autoritários naÁfrica, na Ásia e na América Latina (HOBSBAWN, 1996). Com efeito, tanto URSS, quanto EUA tinhamcaracterísticas expansionistas de dominação hegemônica.No caso latino-americano, podemos destacar o caso cubano como emblemático para ocontinente. Em 1959, com a subida ao poder em Havana dos guerrilheiros de Sierra Maestra, sob aliderança de Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara, começou a se formar o primeiro Estado deorientação socialista nas Américas. Devido sua posição estratégica em relação aos EUA, Cuba ganhouapoio político e econômico da URSS, mas ficou sob ameaça constante de Washington. É válido observarque essas efervescências sociais são um traço marcante na América Latina no século XX, mas arevolução cubana foi um divisor de águas para os jovens do continente por se apresentar comopossibilidade efetiva de mudança de um sistema político-institucional através da luta armada. EricHobsbawn se utiliza das afirmações do filósofo alemão da Escola de Frankfurt Herbert Marcuse arespeito do fascínio pela violência por parte da juventude estudantil, que seria o catalisador datransformação para a revolução socialista em detrimento ao operariado numa sociedade industrial, tendoem vista que Castro e Guevara eram homens jovens e de formação universitária (32 anos e advogado, e30 anos e médico, respectivamente) (HOBSBAWN, 1996).Os setores mais conservadores das forças políticas latino-americanas, incluindo o Brasil, semostraram contrárias as possíveis mudanças. O apoio dos Estados Unidos foi fundamental para amanutenção da ordem social vigente, e deter o avanço da esquerda. Na perspectiva de Washington, osmilitares da América Latina seriam o bastião contra os comunistas, lhes seria oferecida ajuda logística etática, chegando a ser proposto, no governo Einsenhower, que as forças armadas tomassem formato deguerrilhas, mais ágeis, para combater o inimigo externo e fazer a segurança pública (FICO, 2008). Oinvestimento na formação de uma elite militar latino-americana, que procedesse de forma condizentecom os projetos expansionistas dos EUA, deu origem da Escola das Américas, na área do canal doPanamá, em 1946. Além disso, a política traçada pelo secretário assistente de Estado para NegóciosInteramericanos, Thomas Mann, batizada de "doutrina Mann", foi explicada num artigo do New YorkTimes do início de março de 1964: "Os Estados Unidos não mais procurariam punir as juntas militarespor derrubarem regimes democráticos", corroborando ao Golpe de 1964 (OLIVEIRA, 2008).34Programas como o PRONASCI e o RS Na Paz são exemplos desta nova mudança.A pesquisa de dissertação de Mestrado se encontra em andamento.161


Os antecedentes internos do Golpe de 1964 são a renúncia de Jânio Quadros a presidência daRepública, e o impedimento por parte dos Ministros militares 5 da posse de seu vice, João Goulart, em1961 (ALMEIDA, 1997; DREIFUSS, 1981). Jango, como era conhecido o vice-presidente João Goulart,estava na China, em missão oficial ao país comunista. Essa aproximação do Brasil a países nãoalinhados, a condecoração de Che Guevara com a ordem do Cruzeiro do Sul em agosto de 1961, foramsignificativos para que as forças políticas conservadoras, inclusive setores militares, identificassem emJango – que tinha origem política no sindicalismo – uma liderança comunista. A posse de Jango foipossível pela resistência liderada pelo então Governador do Estado do Rio Grande do Sul, LeonelBrizola, no levante chamado de “Campanha da legalidade”, em 1961. Brizola se aquartelou no PalácioPiratini, sede do governo estadual, com seus partidários e suas polícias, forçando o III Exército anegociar e, posteriormente, aderir à campanha (ALMEIDA, 1997) 6 .João Goulart tomou posse com poderes esvaziados no ano de 1961. Em 1963, houve umplebiscito que restaurou os seus poderes de presidente da República. Com isso, Jango pode dar inícioaos seus projetos de reformas de base, que causou reações negativas por parte de setoresconservadores. Em 1964, houve a revolta do sindicato dos cabos e marinheiros da Marinha de guerra –liderados pelo Cabo Anselmo – por direitos como o de casar e os direitos políticos, foi condenada peloscomandos militares, porém o presidente, comandante em chefe das forças armadas, foi a favor dosrevoltosos. Essa postura foi encarada pelos comandos militares como uma quebra de hierarquia, umacontradição. A falta de compromisso constitucional dos militares se apresentou latente, aparentementeapenas reconheciam a autoridade das fardas e das patentes, ignorando a legalidade constitucional daautoridade civil. Este acontecimento serviu de pretexto para que setores militares aderissem aosmovimentos políticos civis que resultaram no golpe de Estado em março de 1964.Com efeito, pode-se identificar que o intervencionismo dos militares foi uma marca deste períodode efervescência, tanto social, quanto política. Esta característica teve reflexos na Segurança Pública,acarretando profundas mudanças no período ditatorial.2.2. Polícia repressiva: militarização da segurança pública.O regime de exceção imposto em 1964 acarretou em profundas mudanças sociais e políticas. Amanutenção de um status quo de setores elitistas foi se tornando cada vez mais evidente, e,gradativamente, mais violenta por parte de quem ocupava os cargos de poder no Estado, com acontinuidade da ditadura. As oposições a esse regime eram reprimidas com severidade, muitas vezes deforma violenta. As polícias militares, que até então tinham papel secundário na segurança pública,começaram a atuar nas ruas, desde o controle do tráfego até manifestações públicas indesejadas,incorporando as atribuições das guardas civis, extintas no ano de 1969 7 ; e subordinadas ao Exércitoatravés da Inspetoria Geral das Polícias Militares. A responsabilidade do policiamento preventivo eostensivo se torna exclusivo da polícia, e o combate aos conflitos sociais atendem aos interessespolíticos (NÓBREGA JÚNIOR, 2010).Com o endurecimento do regime contra seus opositores teve o seu ápice no dia 13 de dezembrode 1968, o então Presidente, General Arthur da Costa e Silva, decretou o ato institucional número 5 (AI-5). O AI-5 cassou os direitos políticos e civis, fechou o congresso nacional, institucionalizou a censura,aumentando a repressão contra os opositores do regime. As manifestações públicas de cunho políticoforam consideradas ilegais, passiveis de serem enquadrados no crime de lei de segurança nacional(DREIFUSS, 1981; FICO, 2004). Nesse sentido, as dimensões da violência (física, psicológica, esimbólica) empregadas pelos setores de Segurança Pública na sua abordagem e em seu procedimento,como a prática da tortura, prisões ilegais que se configuravam em sequestros de Estado – sem trâmiteslegais e sem a habeas corpus – e execuções sumárias de opositores, em especial aqueles que aderirama luta armada (OLIVEIRA, 2008). Com efeito, essas práticas foram extensivas às camadas de maispobres da população brasileira, historicamente reprimidas pelas forças policiais, estigmatizadas pelamarginalidade e criminalizadas, diferenciando os métodos, que antes eram as chicotadas (LAGE,MIRANDA, 2007). A afirmação do Sociólogo José Tavares dos Santos sobre a transição do trabalhoescravista para o modo capitalista de trabalho, e o papel da coerção física violenta na relação entre osaparatos repressivos e a população urbana e rural brasileira, remetem a outros períodos além daDitadura civil-militar de 1964-1985:As práticas de tortura exercidas por agentes de diferentes polícias – no caso dos presospolíticos, durante o Estado Novo ou o regime militar, ou dos presos comuns, durante o567Ministros das três Forças Armadas: Marinha, Exército e Aeronáutica.As ordens dadas ao General Machado Lopes, então comandante do III Exército, era de prender o Governador.Caso Brizola não se rendesse, o Piratini seria bombardeado. Nenhuma das ocasiões citadas ocorreu (Almeida,1997).Decreto-Lei federal nº 1.072 de 30 de Dezembro de 1969 (NÓBREGA JÚNIOR, 2010, P.114).162


egime civil da Nova República – indicam uma das facetas deste excesso de poderexercido por agentes da organização policial. Igualmente, as práticas de grupos parapoliciais,dos esquadrões da morte aos justiceiros, desencadeando operações deextermínio contra certos grupos sociais das populações pobres brasileiras, inclusivejovens, apontam a violência difusa nas grandes cidades de nosso país 8 .Pode-se concluir que o excesso do uso da violência física, violência essa que o Estado possuimonopólio legítimo, por parte dos agentes de segurança não foi o resultado da ditadura civil-militar. Osmétodos excessivamente violentos de abordagem e procedimentos policiais são anteriores ao períodocitado, já que o uso violência física é o último recurso que deva ser empregado. Entretanto, aobservação que se faz é a sobre a militarização da Segurança Pública no período da ditadura, que foramdeterminantes para a formação do modelo atual de polícias, que ainda privilegia o sistema repressivocomo conduta (GUERRA CÂMARA, 2012). A hierarquia e a disciplina militares são latentes nas políciasmilitares. Além disso, as polícias civil e militar não são atores cooperativos, por terem atribuiçõesdistintas e não conseguem fechar um ciclo policial completo – que se caracteriza pela prevenção,patrulhamento das ruas, investigação e indiciamento do indivíduo a justiça – o que torna o sistema desegurança pública inoperante para a sociedade (NÓBREGA JÚNIOR, 2010). Segundo Nóbrega Jr.:A estrutura de Segurança Pública brasileira, que deveria ser de natureza civil e com finsde defender os interesses dos cidadãos brasileiros em quaisquer circunstâncias, sepreocupa mais com a defesa dos interesses do Estado que da cidadania, onde oprocesso de militarização dessas instituições é a prova desse hiperdimensionamento doEstado em relação aos cidadãos. 9Porém, identifica-se uma característica corporativista nos setores de Segurança Pública. Comtérmino do período que vigorou o AI-5, em dezembro de 1978, e a posterior lei da anistia 10 , no anoseguinte, os crimes cometidos pelos agentes de segurança do Estado, como tortura e ocultação decadáver, este último com origem em homicídios causados pelos próprios agentes; foram anistiados. A leiabrange os crimes praticados por razão política – seja por parte dos sindicalistas e/ou de gruposguerrilheiros que se opunham ao regime, ou por parte dos agentes do Estado -, e não os crimes comuns,que eram utilizados os mesmos procedimentos de abordagem em todos os casos, de maneira geral, ouseja, a violência física, e até mesmo letal, se torna uma constante nos procedimentos policiais. Alémdisso, os crimes dos agentes não foram individualizados, diferentemente às penalidades aplicadas aosopositores da ditadura, sendo ações institucionais. Crimes de Lesa humanidade como a tortura, que sãoimprescritíveis, foram anistiados.É válido salientar que o corporativismo no Estado brasileiro não é exclusividade dos setores desegurança pública. Como qualquer instituição, as polícias também têm seus próprios interesses declasse, seja qual for sua natureza (OLIVEIRA, 2010). A própria função policial tem especificidades quesingularizam a profissão policial no Brasil, como tomada de decisões rápidas sobre vida e morte no seucotidiano (OLIVEIRA, 2010; TAVARES-DOS-SANTOS, 2009).2.3 Redemocratização e Segurança Pública: violência física na formação do habitus e do ethospolicial no Brasil pós-ditadura (1964-1985).O período de redemocratização do Brasil teve como marco a promulgação da ConstituiçãoFederal de 1988. Os regimes ditatoriais na América Latina, incluindo o Brasil, já não existiam no iníciodos anos de 1990, dando margem a governos civis de ordem neoliberal. O desgaste gerado por regimesque levaram países a recessões econômicas, e crises sociais, como pobreza e aumento dacriminalidade, fez com que as ditaduras perdessem apoio internacional (D’ARAÚJO, 2002; HERMET,2002). Os novos governos democráticos da América Latina encontraram muitas dificuldades paralegitimar sua autoridade, tendo em vista suas ações ineficazes, por herdarem uma estrutura estatalpersonalista. Segundo Paul Ricouer, a autoridade é definida pelo direito de mandar, que caracteriza umarelação de poder assimétrica em que implica uma parte obedecer à outra, em que ele afirma: “Estranhopoder que se assenta num direito, o direito de mandar, que implica numa reivindicação delegitimidade.” 11 . Com isso, essas dificuldades geraram frustrações por parte das populações dos paíseslatino-americanos, que as democracias recentes não conseguiram alcançar as expectativas geradas, noscampos econômicos, social, jurídico e político (HERMET, 2002). Cabe a observação que autoridade nãopode ser sinônimo de autoritarismo. Segundo Hannah Arendt o binômio mandar/obedecer sobre a891011In: TAVARES-DOS-SANTOS, 2009, p. 78.In: NÓBREGA JÚNIOR, 2010, p. 113.Lei nº 6. 683 de 28 de agosto de 1979. Fonte: Sítio do Presidência da República – Casa Civil – Subchefia paraAssuntos Jurídicos: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htmIn: RICOUER, 2008. p. 101.163


autoridade, não é uma questão de persuasão, que colocaria a autoridade em suspenso, e nem deviolência, porque a mesma teria falhado para ser empregada a força, pois Arendt afirma que a autoridadesempre é hierárquica (ARENDT, 1972).Os problemas da pobreza e aumento da criminalidade recaem na Segurança Pública. Como jáfoi dito, há um histórico de repressão dos aparelhos de segurança sobre populações marginalizadas ecriminalizadas. Segundo Howard Becker o crime é um conceito falho nesse sentido, porque há umacorrelação entre crime e pobreza, tendo em vista que os crimes de colarinho branco, por exemplo, poruma questão de prestígio social por parte de quem comete esse crime, com efeito, nesta perspectivaapresentada por Becker, o criminoso age em bando, geralmente, e de maneira violenta – armado ou não-, diferente dos crimes especializados como o de colarinho branco, que podem ser cometidos em umescritório (BECKER, 2007). Estes indivíduos são uma espécie de catálogo de suspeitos, tipos sociaisque se enquadrariam valores depreciativos, que seriam “culpados até que se prove o contrário”, sujeitosa violência física ilegítima – que pode ser socialmente legitimada como método de investigação - e atémesmo subtração de sua vida, por parte dos responsáveis em reprimi-los que pode ocasionar confissõesde delitos por parte deste indivíduo, para que não haja prejuízo da sua integridade física, por possuircaracterísticas que o incriminem a priori, pela sua condição social, jurídica e econômica devulnerabilidade (KANT DE LIMA, 1995, MISSE, 2010; OLIVEIRA, 2010; TAVARES-DOS-SANTOS, 2009).Com isso, a criminalidade é representada e percebida pela maneira violenta que o delito se apresenta, enão pelo seu tipo penal previsto em lei, se configurando um quadro de seletividade jurídica. É válidoobservar que na função policial há a pressão por resultados que sejam apresentados a autoridades euma resposta para a sociedade do papel específico dos agentes de segurança pública, o que podefavorecer procedimentos ilegítimos de violência (OLIVEIRA, 2010).A seletividade jurídica de tipos sociais suspeitos e a modalidade do crime violento influenciam naconstrução da identidade policial, na medida em que se constrói a identidade antagônica do criminoso.Neste sentido, podemos entender que a violência é algo que afeta as ações de quem passa por umcotidiano violento, no qual as populações que vivem em territórios marginalizados se encontram emmaior vulnerabilidade – o que não exclui os agentes de segurança deste cotidiano violento -, e comoessa representação social se apresenta por um viés mais cognitivo do que racional (GAVÍRIA, 2008), nãosendo um mero apanhado de comportamentos individualizados, mas a articulação de ações queacarretam numa ordem social (MACHADO DA SILVA, 2004).Neste processo de enfrentamento entre as forças policiais e os crimes violentos apresenta umaregularidade: a categoria juventude. O jovem tem uma relação ambivalente com a violência: ora ele é oagressor, ora é a vítima; em um contexto onde sua vida é um processo para conviver, ou superar aviolência, além de implicar na transição para vida adulta, período ao qual a agressividade tem apositividade de habilitá-los a se autonomizar e a construir um lugar no espaço social (TAVARES-DOS-SANTOS, 2009). Não são apenas os jovens de classes mais pobres que são vítimas da violência, quereforça a falha do binômio “pobreza e violência”, mas o abandono e a falta de perspectivas podemfavorecer uma lógica de recrutamento para o crime dos jovens mais pobres, fato que pode acarretar emmanifestações como vítimas de processo de exclusão social e vontade de serem reconhecidos comocidadãos (GAVÍRIA, 2008). Com efeito, a categoria juventude não é universal, tendo em vista as diversasrepresentações e significados que variam quando analisadas pelas dimensões econômica, social,jurídica, política e outras mais. Dentro deste quadro se identificam maior incidência dos casos deviolência física, ou até mesmo letal, a outras regularidades: étnicas (negros e pardos), de gênero (sexomasculino) e etárias (entre 15-24 anos).A política de segurança pública de enfrentamento armado contra o crime, por parte do Estado, seapresentou infrutífera. O número crescente de vítimas – tanto do lado policial, quanto do ladomarginalizado – não só no aspecto físico e/ou letal, mas também psicológico da violência não diminuiu onúmero de ocorrências criminais. Sem embargos, outras propostas de políticas públicas de segurançaforam sendo pensadas. A filosofia de prevenção e mediação de conflito para o policiamento comunitário,em especial as populações de territórios marginalizados, com maior proximidade e participação docidadão, o que pode ampliar as políticas de segurança pública para além da ação policial. Polícia de aproximação: prevenção e mediação de conflitos, e participação cidadã naSegurança Pública.Nos anos de 1990 começam a surgir propostas alternativas para o aumento da criminalidade eda sensação de insegurança. Projetos como os Centros Integrados de Cidadania (CIC) 12 , com aproposta de justiça social e aproximação do Estado na formação organizacional da comunidade, seaproximando da promoção de direitos humanos, e criticando o autoritarismo estatal (HADDAD,SINHORETTO, 2004):12Os CIC’s da referência correspondem ao Estado de São Paulo, que funcionaram entre 1996-2001.164


O funcionamento do CIC exigiu das instituições e dos profissionais duas inversões deprioridade: adequação de todos os serviços públicos à realidade dos conflitos (e não ocontrário) e o deslocamento das autoridades no espaço da cidade. (...) Diante da“ausência” do Estado nas periferias, o equipamento deve, segundo o projeto, simbolizara ocupaçãodo “vazio”, mediante oferta de serviços de segurança e justiça em áreascarentes desses equipamentos. A implementação disso exige uma reforma do Estadofundada na descentralização dos serviços. Assim idealizados, esses centros,teoricamente, deverão romper com o tradicionalmente oferecido: autoritarismo,centralização,corporativismo e fragmentação. 13Entretanto, com a incorporação dos CICs ao Governo Federal, 2000, a filosofia quefundamentava o projeto foi desvirtuada, servindo como estratégia de controle social e forma derepressão. A gestão destas ações ficou a cargo do Gabinete Institucional de Segurança, ligado aPresidência da República, cujos cargos são privativos de Oficiais das Forças Armadas (HADDAD,SINHORETTO, 2004). Apesar da intervenção militar, formas alternativas para Segurança Pública,começam a tomar forma e ganhar força nos meios políticos e sociais. Outras experiências semelhantesaos CICs se deram em outras partes do Brasil.A proposta de uma segurança pública cidadã, que não se encerre apenas na ação policial, seapresentou mais sistematizada com o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania(PRONASCI), em 2007, pelo Governo Federal. O PRONASCI vem com a proposta de Estado em redes,articulando os três entes federativos (União, Estado e Município) nas políticas públicas de Segurança,para diretrizes políticas, sociais e jurídicas; formação e capacitação de policiais e guardas municipais; eprojetos de integração de comunidades marginalizadas e estigmatizadas com um histórico de violência ecriminalidade. O PRONASCI também apresenta um foco específico no perfil de jovens descritoanteriormente neste texto:Além dos profissionais de segurança pública, o Pronasci tem também como público-alvojovens de 15 a 24 anos à beira da criminalidade, que se encontram ou já estiveram emconflito com a lei; presos ou egressos do sistema prisional; e ainda os reservistas,passíveis de serem atraídos pelo crime organizado em função do aprendizado emmanejo de armas adquirido durante o serviço militar. 14O PRONASCI possui projetos para a prevenção de delitos e mediação de conflitos. No caso, otexto vai abordar o projeto “Territórios de Paz” que se apresentam como uma nova perspectiva decombate ao crime em áreas periféricas com histórico de violência:São áreas da cidade caracterizadas por elevados índices de violência letal, queenvolvem principalmente os jovens de 15 a 29 anos. O objetivo da identificação dessasáreas na cidade é que estas, por meio de diversas intervenções sociais e implantaçãode policiamento comunitário previstos pelo Pronasci, sejam pacificadas transformandoseem Territórios da Paz. 15 .Com efeito, mudanças estruturais são identificadas nesta proposta de segurança pública,denotando um maior comprometimento de setores civis nestas políticas, que pode transformar apercepção dos atores sobre o combate ao crime. A experiência deste projeto no município de Canoas/RSé considerada modelo pelo trabalho realizado em Guajuviras, de atuação do município no tocante asegurança pública, com investimento em capacitação de sua Guarda Municipal e em tecnologia dos seusaparelhos, com trabalho integrado à comunidade da Brigada Militar e da Polícia Civil do Rio Grande doSul, e projetos sociais de inclusão da comunidade citada, que em dois anos de implantação (2009-2011)viu seus índices de criminalidade reduzidos (redução de 73,6% na taxa de homicídios, no primeirosemestre de 2009), dando visibilidade ao projeto Território da Paz de Guajuviras 16 :“No Território de Paz de Guajuviras, em Canoas, o último homicídio havia sidoregistrado no dia 05 de Maio de 2012. Passaram-se quatro meses e dezenove dias semhomicídios, em um dos bairros considerados mais violentos, antes da implantação doterritório da paz. Somente no dia 24 de setembro do corrente ano, registrou-se outra13141516HADDAD, SINHORETTO, 2004. P. 73.Fonte: http://portal.mj.gov.brFonte: Sítio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Pública de Porto Alegre – RS.http://www2.portoalegre.rs.gov.br/smdhsu/default.php?p_secao=136BOFF, Claudia; MERKER, Marcos. “Canoas comemora dois anos de Territórios de Paz”: In: Diário de Canoas.Canoas: Ed. Online, 08/10/2011. http://www.diariodecanoas.com.br/regiao/346951/canoas-comemora-dois-anosde-territorio-de-paz-no-guajuviras.html165


ocorrência no referido bairro 17 .Entretanto, na própria região metropolitana de Porto Alegre, os mesmos projetos não alcançaramo mesmo destaque que a experiência de Canoas. Além disso, pode ser apresentada a experiência dasUnidades de Polícia Pacificadora (UPP), na cidade do Rio de Janeiro, como ocupação de territórios. AsUPPs ganharam notoriedade midiática pelas suas ocupações espetaculares de favelas marcadas por umhistórico violento, com apoio logístico das Forças Armadas – sendo empregado até carros blindados deGuerra nessas intervenções, e tropas de prontidão. A militarização dos territórios com as UPPs é umponto problemático sobre a proposta dessa política – se ela é inclusiva ou uma forma de controle social?– tendo em vista que, efetivamente, o Estado se faz presente com o emprego do seu aparato desegurança (FLEURY, 2012).A formação do policial é um ponto fundamental para a mudança de abordagem e procedimentosespecíficos da profissão. A formação policial, mais voltada para mediação de conflitos e prevenção docrime, mais voltada para a garantia de Direitos Humanos e Justiça Social, com maior aproximação dapopulação, se apresenta como necessária neste processo de transformação da Segurança Pública.Porém, pode haver controvérsias dentro da própria instituição policial, hierárquico e geracional, quepodem influenciar no nível de comprometimento desses atores nos projetos do PRONASCI. Além disso,o histórico de repressão violenta, intensificados pela militarização da Segurança Pública; pode gerardesconfianças mútuas entre policiais e moradores de localidades marginalizadas e criminalizadas, o quepode se caracterizar numa dificuldade para efetivação dessas políticas públicas de segurança, que sepropõe ser menos policial e mais cidadã.É válido observar que o agente de segurança não é um ser que gravita a margem da sociedade,ele é um ser social que tem origens em uma classe social e econômica e carrega valores pessoais parasua atividade profissional, que fazem parte da sua identidade, sendo uma construção mental passível detransformação.Algumas Conclusões:A análise comparativa dos períodos citados no texto apresenta algumas conclusões sobre oprocesso de mudança dos procedimentos policiais: (I) a militarização da segurança pública e (II) aproposta de transformação da política pública de segurança mais cidadã.Pode-se concluir que o intervencionismo militar na segurança pública no período ditatorial (1964-1985) foi determinante para a institucionalização de práticas violentas como métodos de procedimentospoliciais. O processo de investigação repressiva para presos políticos se estendeu aos presos comuns,marcados por violências físicas e até mesmo letais. Entretanto, a repressão violenta é uma característicahistórica dos aparatos de segurança no Brasil, em especial os suspeitos oriundos de classes maispobres, não sendo uma invenção da ditadura civil-militar, a problemática é a permanência deste modusoperandi no período posterior a promulgação da Constituição de 1988, e sendo até mesmo socialmenteaceita no combate a criminalidade na democracia. Esse emprego da violência física e letal não diminuiuo número de ocorrências criminais, causando perdas de vidas e levando medo a população de maneirageral.A repressão violenta do crime começou a demandar alternativas para segurança pública. Aperspectiva de reação não foi satisfatória, dando espaço à propostas preventivas para o crime. Com isso,as políticas de segurança pública ganham um viés integrado entre os entes federativos, onde a taispolíticas não se encerram em apenas ações policiais, sendo necessária a reformulação da formação eda ação policiais para esta etapa de mudanças. O projeto “Territórios de Paz” sistematizou essasconfluências em sua proposta: policiamento comunitário de aproximação e participação civil naformulação de política pública. Entretanto, a ocupação destes territórios por forças policiais podemsuscitar perguntas se é um projeto inclusivo ou apenas mais uma forma de controle social.Com efeito, a mudança de uma polícia de repressão para uma polícia de aproximação nãodepende apenas das representações sociais dos gestores das políticas públicas de segurança, mastambém, da mudança de mentalidade de como uma sociedade entende por justiça e por vingança, ecomo isso se reflete no trabalho policial.17Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul – Cadernos de Dados Gerenciais porMunicípios (2011-2012). Página 3:http://www.ssp.rs.gov.br/upload/20121029183330caderno_de_dados_gerenciais___setembro_2012_em_29.10.12___municipios.pdf166


Referências Bibliográficas:ALMEIDA, A. A posse de Goulart: emergência da esquerda e solução de compromisso. In: Antropolítica:revista contemporânea de Antropologia e Ciências políticas – n. 2 – Niterói: EDUFF, 1997.ARENDT, H. O que é autoridade?. In.: Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Editora Perspectiva,1972.BECKER, H. Conceitos. In: Segredos e Truques da Pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.D’ARAÚJO, M. Transição democrática e forças armadas na América Latina. In: Antropolítica: revistacontemporânea de Antropologia e Ciências políticas – n. 12/ 13 - Niterói: EDUFF, 2002.DREIFUSS, R. 1964: A conquista do Estado (ação política, poder e golpe de classe). Petrópolis: vozes,1981.FICO, C. O regime militar no Brasil (1964-1985).” 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.FICO, C.; FERREIRA, M. ; ARAUJO, M. ; QUADRAT, S. Ditadura e Democracia na América Latina. 1. ed.Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2008.FLEURY, S. Militarização do social como estratégia de integração - o caso da UPP do Santa Marta. In:Sociologias: Participação, Cultura Política e Cidades, nº 30. Porto Alegre: PPGS-UFRGS, 2012.GAVIRIA, M. Controle Social expresso em representações sociais de violência, insegurança e medo. In:Violências, Medo e Prevenção. Sociologias. Vol. 20. Porto Alegre, 2008.GUERRA CÂMARA, G. Reinserção da Perspectiva Comunitária na Ação Policial Gaúcha: Os Territóriosda Paz, uma nova governamentalidade? Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em CiênciasSociais IFCH-UFRGS. Porto Alegre: 2012.HADDAD, E.; SINHORETTO, J. Centros de Integração da Cidadania: democratização do sistema dejustiça ou o controle da periferia? In: São Paulo em Perspectiva. São Paulo: 2004.HERMET, G. A democratização dos países emergentes e as relações entre o Estado, as OIGs e asONGs. In.: Democracia e Governança Mundial: que regulações para o século XXI? Porto Alegre: Ed.UFRGS, 2002.HOBSBAWM, E. A era dos extremos. História breve do século XX. Ed. Presença. Lisboa: 1996.KANT DE LIMA, R. A Polícia da cidade do Rio de Janeiro: Seus dilemas e paradoxos. 2ª. ed. Rio deJaneiro/RJ: Forense, 1995.LAGE, L.; MIRANDA, A. Da polícia do rei à polícia do cidadão. In: Revista de História da BibliotecaNacional – n. 25 – Rio de Janeiro: SABIN, 2007.MACHADO DA SILVA. L. Sociabilidade Violenta: Por Uma Interpretação da CriminalidadeContemporânea no Brasil Urbano. In: RIBEIRO, L. (Org.). Metrópoles: entre a coesão e a fragmentação,a cooperação e o conflito. São Paulo: Ed. Perseu Abramo, 2004.MISSE, M. Crime, sujeito e sujeição Criminal: aspectos de uma Contribuição analítica sobre a Categoria“bandido”. In.: Lua Nova, nº 79. São Paulo, 2010.NÓBREGA Jr. A Semidemocracia brasileira: autoritarismo ou democracia? In: TAVARES-DOS-SANTOS(org.). Democracia, Poderes e Segurança: reflexões. Sociologias. Vol. 23. Porto Alegre, 2010.OLIVEIRA, A. Policiais podem ser controlados? In: TAVARES DOS SANTOS (org.). Democracia, Poderese Segurança: reflexões. Sociologias. Vol. 23. Porto Alegre, 2010.OLIVEIRA, L. Os militares e a redemocratização no Brasil. In: I Congresso Internacional de Estudos dasAméricas, 2008, Rio de Janeiro - RJ. I Congresso Internacional de Estudos das Américas. Rio deJaneiro: Nucleas-UERJ, 2008.RICOUER, P. O paradoxo da autoridade. In.: O Justo 2: justiça e verdade e outros estudos. São Paulo:WMF Martins Fontes, 2008.TAVARES-DOS-SANTOS, J. Violências e Conflitualidades. Porto Alegre: Tomo, 2009.167


168


IV – Ditaduras e Imprensa169


170


Victor Civita e a Ditadura Civil-Militar Brasileira: a posição da revista VejaEdina Rautenberg 1Resumo: O objetivo deste artigo é problematizar as relações entre imprensa e ditadura, em especialdemonstrar como a revista Veja se posicionou neste período e como atuou no sentido de formardeterminado consenso em torno da ditadura civil militar e dos governos militares. Problematiza como osinteresses de Victor Civita (dono da revista) foram reproduzidos nas páginas de Veja encobertos depreceitos como imparcialidade e neutralidade. Com interesses políticos, sociais e empresariais,somados aos interesses de frações de classe à qual a revista se vincula, Veja foi responsável por criardeterminada memória sobre a ditadura e os governos militares. O artigo se baseia nas reflexões obtidasatravés da análise dos editoriais de Veja durante os oito primeiros anos da revista (1968-1976), e procurademonstrar como a revista atuou durante o período em que esteve sob editoria de Mino Carta.Palavras-chave: Revista Veja – ditadura civil-militar – editoriais – Victor Civita – Mino Carta.Abstract: The purpose of this article is to discuss the relationship between the press and dictatorship, inparticular demonstrate how Veja magazine has positioned in this period and how acted to form someconsensus around the military dictatorship and civil-military governments. Discusses how the interests ofVictor Civita (owner of the magazine) were reproduced in the pages of Veja covert precepts as impartialityand neutrality. With political interests, social and business, together with the interests of class fractionswhich binds the magazine, Veja was responsible for creating specific memory about the dictatorship andmilitary governments. The article is based on the reflections obtained by analyzing the editorials of Vejaduring the first eight years of the magazine (1968-1976), and explains how the magazine acted during theperiod he was under the Mino Carta's editorship.Keywords: Veja magazine – dictatorship and military – editorials – Victor Civita – Mino Carta.Este artigo é parte das reflexões já desenvolvidas 2 em torno da temática Veja e ditadura, e secentra especialmente na análise dos editoriais de Veja nos anos de 1968 a 1976, observando como arevista se constituiu enquanto uma revista semanal de informação e como foi marcando seuposicionamento partidário 3 nos editoriais. Em especial, procuramos demonstrar como a revista demarcousua posição enquanto esteve sob editoria de Mino Carta, e como foi a relação do dono da Editora Abril(Victor Civita) com a ditadura e com a equipe jornalística de Veja. Entendemos que os editoriaispermitem uma visão mais clara do posicionamento da revista, já que é através do editorial que a revistafirma-se enquanto sujeito. A temática já foi abordada por Carla Silva que trabalhou com os editoriais darevista Veja no período de 1989 a 2002. Em seu estudo, Silva buscou apreender o sentido da seção paraa publicação, defendendo que a mesma constitui um espaço privilegiado para a criação discursiva do“sujeito Veja”. Segundo a autora, essa é uma forma de apagar os interesses concretos da revista em suaação enquanto aparelho privado de hegemonia. Como constatou Silva, “nos editoriais percebemos comoa revista busca se construir como intérprete da história atual, ocultando seu papel enquanto parteinteressada nessa mesma história” 4 . Neste sentido, procuramos demonstrar, de maneira geral, comoVeja foi se posicionando partidária e politicamente desde seu lançamento, em 1968.Veja surge exatamente no momento em que o Brasil vivia o chamado “milagre econômicobrasileiro”. A ditadura militar proporcionou a aceleração da acumulação capitalista no Brasil, baseado nabrutal concentração de riqueza e na recuperação das taxas de lucro que se tornaram possíveis atravésda superexploração e do superexcedente arrancado dos trabalhadores. Apesar de uma economia1234Mestre em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. VINCULAÇÃOINSTITUCIONAL: Professora Colaboradora de História na UNIOESTE, campus de Marechal Cândido RondonRefiro-me as minhas pesquisas de iniciação científica, trabalho de conclusão de curso e, principalmente, dadissertação de mestrado em História pela Unioeste, intitulada “A revista Veja e as empresas da construção civil(1968-1978)”.Para compreender o posicionamento partidário nos utilizamos das leituras e reflexões de GRAMSCI, Antonio.Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.SILVA, Carla Luciana Souza. A Carta ao Leitor de Veja: um estudo histórico sobre editoriais. IN: Intercom –Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo, v.32, n.1, jan./jun. 2009. P.89.171


voltada para o consumo não ser um fator novo 5 , é na década de 70 que ocorre um redimensionamentodo mercado consumidor no país. Percebemos então que a Editora Abril investiu na criação de umarevista como Veja exatamente no momento em que se evidenciava a perspectiva de crescentesfaturamentos na “criação de necessidades” 6 , quando o desenvolvimento econômico brasileiro possibilitoua criação de uma nova sociedade de consumo nos centros urbanos do país. Para além de Veja, a Abril jáhavia criado a Revista Quatro Rodas, em 1960, “junto com a implantação da nossa indústriaautomobilística” 7 . Para Jorge Freitas, Veja seria destinada a propagar para as classes médias doscentros urbanos, os benefícios do desenvolvimento econômico 8 .Além de representar um nicho de mercado que precisava ser explorado, o desenvolvimentoeconômico possibilitou também a modernização da revista. No entanto, como aponta Carla Silva, amodernização tecnológica levou à dependência política de Veja tornando “as empresas jornalísticasprogressivamente dependentes do capital externo” 9 . Além disso, para garantir a presença dosanunciantes, é necessário que a linha editorial da revista seja favorável à política de idéias que vemdentro dos produtos anunciados ou de seus anunciantes. Em levantamento realizado por Daniela Villaltanos primeiros quatro números da revista, esta constatou que entre os principais anunciantes nacionaisestavam as empresas estatais Eletrobrás (Centrais Elétricas Brasileiras), Loteria Federal, Plano Nacionalde Habitações, Rede Globo de Televisão (anunciando a novela Passo dos Ventos e a Gata de Vison),Banco do Estado de São Paulo, Viação Cometa, dentre outros. Ou seja, havia a participação também daditadura no apoio publicitário de Veja o que nos ajuda a pensar as relações entre esta publicidade e oque era publicado na revista sobre os governos militares e a própria ditadura.Apesar do projeto ambicioso da Editora Abril ao planejar Veja 10 , a revista não teve a recepçãoesperada 11 . Com uma proposta diferente para os padrões brasileiros (leitores acostumados comsemanários ilustrados e revistas de economia e política), e se propondo a interessar-se por tudo, Vejanão atraiu muitas simpatias 12 . Além disso, assim como os demais órgãos de imprensa, Veja foicensurada durante a ditadura militar. No entanto, por diversas vezes, procurou burlar a censura oudemonstrar que estava sendo censurada 13 . Esta postura acabou favorecendo a imagem da revista juntoaos seus leitores, contribuindo também para que Veja fosse caracterizada enquanto uma revista deresistência à ditadura. No entanto, ao contrário da memória que Veja pretende reconstruir sobre suaatuação no período, o fato de ter sido censurada não representa uma postura de “esquerda” ou decontrariedade à ditadura. Como afirma Carla Silva:5678910111213Como demonstra MENDONÇA, Sonia Regina de. Estado e economia no Brasil: opções de desenvolvimento.Rio de Janeiro: Graal, 1985.Com a criação de novos produtos e da possibilidade de parcelas da sociedade adquirir aqueles produtos,tornou-se necessário estabelecer novas relações sociais. Carla Silva em sua pesquisa nos anos 1990 constatouque grande parte das matérias de Veja de cunho cultural e comportamental traziam novos produtos a seremconsumidos, produtos estes que eram anunciados na própria revista. Segundo Carla Silva, “consome-se oproduto e o estilo de vida que sua publicidade propõe”. SILVA, Carla. Veja: O indispensável partido neoliberal1989-2002. Niterói: UFF, Tese de Doutorado. 2005. P.494.Afirmação de Victor Civita no editorial da primeira edição de Veja. Momento em que o fundador fala daspublicações da Editora Abril. Veja. Ed.01, 11/09/1968.FREITAS, Jorge Roberto Martins. A entrevista nas páginas amarelas da revista Veja: a imagem do milagreeconômico sob o ponto de vista do primeiro newsmagazine brasileiro. Diss. Mestr. UFRJ, 1989. P.13.SILVA, Carla. Imprensa e Ditadura Militar: padrões de qualidade e construção de memória. In: Revista Históriae Luta de Classes. Ano 1 – Edição 1, Abril de 2005. P.44.Além do alto investimento financeiro baseado na impressão de 700.000 exemplares semanais, temos outrosexemplos como a organização de duas festas de lançamento, onde foram convidados personalidades,autoridades e donos das maiores agencias de publicidade de São Paulo e Rio de Janeiro; a campanhapublicitária na imprensa, com investimento de 1 milhão na época; o curso de jornalismo oferecido pela Abril paraformar os profissionais qualificados para o trabalho na revista: Dentre 1800 inscrições, 100 jovens foramselecionados e ficaram hospedados por três meses, custeados pela empresa, para serem engajados em umaespécie de aprendizado rápido; etc. Mais informações sobre o processo de formação da revista podem serencontrados em VILLALTA (1999), ABREU (2001) e SOUZA (1988).Interessante notar que apesar da crise, Veja procurava criar a impressão de ser um sucesso. O editorial daEdição 02, destinado a relatar a recepção de Veja, afirmava “Os telegramas e telex choveram a semana inteira.E todos contavam a mesma história: Veja era um êxito total”. Veja. Ed.02, 18/09/1968.A crise na Abril, resultante do fracasso na criação da revista, é citada e analisada também por Mario Sérgio Conti(1999) e Carmo Chagas(1992). Chagas afirma que Veja teria resistido a “dois anos inteiros de vermelho maisintenso que a mais intensa das hemorragias” (p.70), exigindo a cada semana mais injeção de capital naquela“operação fracassada”. Carla Silva afirma também que “os números do prejuízo aceitos pela editora estão emtorno de US$ 6,5 milhões de dólares (nos anos 1960)”(p.45).Exemplos desta postura de Veja são demonstrados no artigo de Alzira Aves Abreu (1996), “Os anjos e osdemônios da revista Veja. Um discurso contra a censura”; e no livro de Maria Fernanda Lopes Almeida (2009),“Veja sob censura:1968-1976”. Veja se utilizou desta estratégia nas edições 285 a 291.172


O fato de que os principais veículos das imprensas brasileiras foram censurados naditadura não implica em que eles não tenham de diferentes formas apoiado e legitimadoo regime. Além disso, reescreveram sua versão sobre sua própria atuação no processo,querendo se mostrar como críticos da ditadura. No caso de Veja, a revista tem investidoainda em construir uma memória sobre o golpe que procura amenizá-lo, banalizá-lo ejustificá-lo 14 .Acreditamos que a censura contribuiu para que a revista não falisse nos primeiros anos.Segundo Jorge Freitas, Veja “beneficiou-se da censura, porque sem censura seria mais difícil diferenciarsedas outras publicações existentes no país” 15 . Além disso, Veja conseguia – por meio de informaçõesobtidas através de contatos com o governo 16 – diferenciar-se das outras publicações existentes no Brasil.Ao contrário de Maria Fernanda Almeida que defende que o prejuízo de Veja foi bancado com o lucrodas demais publicações da Abril, em especial os quadrinhos e telenovelas 17 , não acreditamos nestaconstatação. Como demonstra Carla Silva, a editora Abril sempre teve suas atividades em várias áreas.O seu parque industrial foi logo aperfeiçoado, permitindo a publicação de listas telefônicas, chegandoaos anos 1970 capacitada a receber trabalhos bastante lucrativos, como a publicação dos livros doMobral. Nos anos 1990, a Abril participou da compra de importantes editoras de livros didáticos, a Ática eScipione, em parceria com o grupo francês Havas 18 . Atualmente a Abril detém 29% do mercado brasileirode livros didáticos. Neste sentido, alegar que as demais revistas teriam sustentado Veja é mera retórica,já que os investimentos vindos do governo constituem parcela majoritária dos investimentos na Abril.Afirmamos que Veja não só não foi contrária ou neutra, como também foi favorável e por vezesdefendeu à ditadura militar, por se beneficiar dos projetos, bem como pelas relações comerciaisestabelecidas entre a Abril e o Governo. Em seu editorial de última edição do ano 1968, assinado porVictor Civita, percebemos Veja apostando que 1969 seria um ano “importante na marcha para odesenvolvimento.Acompanhamos com entusiasmo o progresso já produzido pelas novas rodovias, usinas,indústrias e escolas que brotam no País inteiro” 19 . Os editoriais de Veja deixam claro o apoio da revistaao Governo que levaria o Brasil ao desenvolvimento econômico e, muitas vezes a revista chegou a seutilizar dos jargões de desenvolvimento nacional veiculados pelos órgãos oficiais 20 . “E confiamos em queo trabalho honesto de dezenas de milhões de brasileiros – dentro de um clima de ordem e seriedade –continuará contribuindo para o crescimento da Nação e o bem-estar de todos” 21 . Percebe-se areprodução da ideologia de Desenvolvimento e Segurança, onde o progresso só seria atingido dentro daordem, portanto, todo brasileiro seria responsável de zelar por ela. E, para concluir, “O mundo esperamuito do Brasil e o Brasil, de cada brasileiro. Veja procurará cumprir a sua parte, informando comprecisão, rapidez, imparcialidade e entusiasmo” 22 . Estabelecido o papel dos cidadãos, Veja colocou-secomo cumprindo também o seu papel de vigiar para que realmente aquilo que se espera para o Brasilfosse atingido.Interessante apontar que a crise de aceitação e vendas em Veja chega ao fim justamentequando a ditadura militar inicia uma de suas crises internas. Na sucessão de Costa e Silva, tramadadentro dos quartéis, e com a divisão existente no Alto Comando do Exército, Veja publicou sucessivasentrevistas e perfis de generais. De setembro a dezembro de 1969, Veja trouxe 14 capas com assuntospolíticos. E os editoriais, assinados por Mino Carta, passaram a dar as opiniões de Veja sobre anecessidade da escolha de um líder político.141516171819202122SILVA, Carla. Imprensa e Ditadura Militar: padrões de qualidade e construção de memória. In: Revista Históriae Luta de Classes. Ano 1 – Edição 1, Abril de 2005. P.43. Outro trabalho da mesma autora que nos ajuda apensar a permanente construção de memória sobre a história, em especial a forma como a grande imprensareescreve sua atuação ocultando que apoiaram e sustentaram a ditadura é o artigo: “Ditadura apagada eDemocracia forjada” (2011).FREITAS, Jorge Roberto Martins. Op. Cit. P.151.Devido ao fechamento do sistema político, os militares serviam como fontes de informação para grande parte daimprensa. Neste sentido, Jorge Freitas afirma que o general Golbery do Couto e Silva, constituía-se em fonte deinformação para a revista Veja. Lembramos que este acesso era facilitado pelas relações pessoais estreitas deGolbery com Élio Gaspari, repórter e editor político de Veja desde 1969 até 1973. Gaspari posteriormente usaráeste mesmo “acesso privilegiado” junto à Golbery para publicar sua série de quatro livros sobre a ditaduramilitar.ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. Veja sob censura: 1968-1976. Op. Cit. P.45.SILVA, Carla (2005). Op. Cit. P.51-52.Veja. Carta do Editor. Ed.16 – 25/12/1968.Como exemplo de um estudo sobre a tentativa de legitimação ideológica da ditadura, ver: ALVES, RonaldoSávio Paes. Legitimação, publicidade e dominação ideológica no governo Médici (1969-1974): aparticipação da iniciativa privada no esforço de legitimação. Estudos de inserções publicitárias na mídiaimpressa. Dissertação de Mestrado em História, Niterói, UFF, 2000.Veja. Carta do Editor. Ed.16. Op.Cit.Idem.173


(...) E os acontecimentos da primeira semana de setembro, com o seqüestro doembaixador americano, reforçaram a impressão de que o poder supremo da Naçãodeveria ficar nas mãos de uma única pessoa 23 .(...) Na página 26 está o retrato do novo presidente – não o nome, mas como ele deveser. Veja procura responder à interrogação que domina este começo de semana, maspercebe-a maior do que aparenta ser. É possível que a Revolução, no momento difícil,tenha encontrado força e motivo para cumprir mais firmemente os seus propósitos e quejá se esboce uma revolução dentro da Revolução. 24(...) Foi assim que Veja pode revelar o plano de consultas que o Alto Comando dasForças Armadas decidiu fazer junto aos oficiais-generais de todo o País e oferecer umpanorama completo da situação e do clima em que transcorre o esforço dos chefesmilitares para resolver, da melhor maneira, o problema da sucessão. Furtando-se aespecular, Veja escolheu o caminho mais difícil: ouviu os personagens e anotou dados efatos concretos. Por causa disso, tem certeza de estar cumprindo dignamente o seupapel 25 .Segundo Juliana Gazzotti, as matérias sobre este processo sucessório foram chefiadas peloeditor Raimundo Pereira, que junto com sua equipe, foi responsável pela reportagem de capa desde adoença de Costa e Silva até a posse do general Médici. Com a experiência em torno da sucessãopresidencial, Veja passou a ter domínio na cobertura política e aí desabrochou, deslanchou e ganhouautonomia 26 . No acompanhamento dos editoriais, percebemos que a própria revista procura reconhecereste “novo redirecionamento” voltado para as análises e coberturas políticas. Após as várias previsões eindicações nos editoriais sobre o novo Presidente, General Garrastazu Médici, e os relatos do trabalhodos jornalistas para levar aos leitores de Veja a melhor análise possível, constatamos o argumento darevista: “depois de ter atuado especialmente na área militar, nas últimas cinco semanas, Veja mostravaagora a sua boa forma e rapidez de reflexos, dirigindo-se, no momento certo, para a área política” 27 .Em dezembro de 1969, Veja publicou duas edições seguidas (03/12/1969 e 10/12/1969) sobre oproblema da tortura praticada no Brasil, elaboradas também pelo jornalista Raimundo Pereira.Entretanto, apesar de Veja publicar as duas matérias altamente críticas ao regime, é interessante notarque algumas edições depois o jornalista foi envolvido em imposições por parte do governo 28 , que sugeriuque o mesmo seja retirado de Veja, o que é atendido pela diretoria da revista. Segundo Daniella Villalta:Pode-se então perguntar: não seria uma contradição que o próprio diretor da EditoraAbril estivesse envolvido de perto com o problema da tortura levantado por seuscolaboradores e, ao mesmo tempo, sua diretoria tivesse cedido às pressões do ministrodo Planejamento da ditadura? Sim, as contradições, como já foi dito, permearam todasas relações políticas do período. Ora por questões puramente políticas, ora porinteresses financeiros, ora por uma questão de oportunidade empresarial. No caso daEditora Abril, especificamente com relação ao tratamento dado por Veja aosacontecimentos políticos nacionais em seus primeiros anos, ou enquanto teve MinoCarta como editor-chefe, o problema das baixas em sua redação e da censura sofridapor alguns de seus números esbarrou nas relações políticas que, por sua vez, estavamestreitamente ligadas ao aspecto financeiro 29 .Interessante apontar a dinâmica da revista: é a partir da cobertura política, iniciada através dotrabalho de Pereira junto à cobertura do processo que vai desde a doença de Costa e Silva até a possede Médici, que a revista Veja consegue se estabilizar no mercado. No entanto, quando esta cobertura23242526272829Veja. Carta ao Leitor. Ed.54 – 17/09/1969.Veja. Carta ao Leitor. Ed.55 – 24/09/1969.Veja. Carta ao Leitor. Ed.56 – 01/10/1969.GAZZOTTI, Juliana. Imprensa e ditadura: a revista Veja e os governos militares (1968-1985). Dissertação deMestrado em Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos, 1998. P.71.Veja. Carta ao Leitor. Ed.58 – 15/10/1969.O episódio refere-se há uma matéria intitulada “Velloso e seus grandes impactos”, onde o tema central eram asdiretrizes para o Governo Médici enfrentar o ano de 1970. Raimundo Pereira se utiliza de um tom bastanteirônico para interpretar os fatos, o que desagradou profundamente o ministro e levou a publicação de uma cartadeste desqualificando as informações de Raimundo Pereira. Apesar de Raimundo Pereira insistir que a cartadevesse sair na seção de cartas, a direção decidiu publicá-la na seção de Política, como sugeria o ministroVelloso. Nesta ocasião, Raimundo Pereira pediu dispensa da editoria. Em comunicação interna, Edgard de SilvioFarias (um dos sócios da Abril) escreve para Roberto Civita pedindo a transferência de Raimundo Pereira já queeste teria inspirado um novo endurecimento censório do governo em Veja. Pereira saiu do quadro da Abril emjulho de 1970.VILLALTA, Daniella. Artesanato Industrial na produção jornalística de 1968. Op. Cit. PP.102-103.174


fere os interesses da ditadura, o dono da Abril não titubeia em dispensar parte do seu quadro jornalístico.Esta “troca de favores” é uma constante na revista. Em maio de 1975, após a publicação de uma chargefeita por Millôr Fernandes, mostrando um prisioneiro a ferros e um carcereiro dizendo “Nada consta”, oMinistro da Justiça Armando Falcão determina que Veja seja censurada em Brasília, com o materialmandado para lá até terça-feira à noite. Civita entrou em contato com o general Golbery do Couto eSilva 30 , ministro-chefe da Casa Militar, e lhe mostrou que isto significaria tirar Veja de circulação. Apósdois dias, a exigência é desautorizada e a revista passa a sofrer apenas com a censura prévia. Em troca,Veja esboçava sua “admiração” pelo ministro, como exemplo o editorial de 18 de junho de 1975, quandoa revista fez dele personagem central da reportagem de capa. Frases como “a serenidade está presenteem todas as atitudes do general”; “são qualidades que, aliadas ao bom uso da razão”; “vivaz senhor desorriso arguto e olhos brilhantes diante de raciocínios límpidos e conseqüentes”; “o general Golberydificilmente pode ser surpreendido por novidades talvez porque nunca deixe de procurá-las” 31 etc., fazemparte dos vastos adjetivos que são utilizados para elogiar o general. O mesmo acontece com Mino Carta,levando a sua demissão, como demonstraremos posteriormente.As relações “amistosas” da Editora com o Governo começaram a aparecer de forma mais nítidaem meados de 1970. Um exemplo é a edição 103, quando o editorial trouxe uma foto do então ministroDelfim Netto recebendo uma placa das mãos do editor da Abril ,Victor Civita. A legenda explicava: “OMinistro Delfim Netto, em visita à Editora Abril na semana passada, recebeu de Victor Civita, editor ediretor, o medalhão com sua efígie que foi capa do nº 70 de Veja” 32 . Interessante notar que em nenhummomento do texto presente neste editorial, há referências à foto ou a ação. A foto aparece no ladoesquerdo da página, ocupando um espaço considerável, e só pode ser entendida a partir da legendadescrita acima. A capa do nº 70 à que a legenda se refere, é a edição de 07/01/1970, que traz umamoeda dourada com a cabeça de Delfim como símbolo. O título, “Porque Delfim é otimista”.Delfim Netto esteve no cargo de Ministro da Fazendo entre os anos de 1967 a 1974. Emsetembro de 1970, ele e João Paulo dos Reis Velloso, foram os responsáveis pela elaboração de doisplanos econômicos que levariam o Brasil ao “crescimento econômico”: I PND e “Metas e bases para aAção do governo”, sendo que o último apresentava que “o Brasil precisaria crescer pelo menos 7% aoano, incorporar as tecnologias mais modernas aos segmentos mais dinâmicos da sociedade e integrarsegmentos e regiões atrasados ao núcleo mais moderno da economia” 33 . Já demonstramos em outrostrabalhos 34 o “apreço” de Veja para com Delfim Netto, responsabilizando-o pelos “sucessos” nas políticasde exportação. Também Jorge Freitas constatou em suas análises que Veja ajudou a construir a imagemde alguns personagens importantes dentro do setor econômico e entre eles, destacava-se a figura deDelfim Netto 35 . Lembramos que entre os palestrantes que foram convidados pela Editora Abril paraformar o quadro de jornalistas necessários para a criação de Veja, estava Delfim Netto, por estar entre os“mais importantes em sua área na época” 36 .Para entender o motivo do medalhão entregue por Civita à Delfim Netto, voltamos a edição 70,onde a reportagem de capa (de 10 páginas) narrou “O saldo do Ministro Delfim”. Nela Veja procurou criaruma imagem de Delfim Netto como um homem “bem humorado quando fala de sua política, veementequando responde aos que a criticam. Antes de tudo, um homem satisfeito com os resultados do anopassado” 37 . Segundo a revista Delfim é um homem “seguro por natureza”, ágil e trabalhador. Isto é“comprovado” com o fato de dois jornalistas de Veja terem passado “dois dias ao lado do ministro” 38 ,dando credibilidade as informações repassadas pela revista. Para explicar “porque Delfim é otimista” 39 ,Veja afirma que “o otimismo é um dado necessário à criação de um clima desenvolvimentista” 40 .Relatando a trajetória do ministro e suas iniciativas tomadas no ministério, Veja demonstra concordarcom a forma de condução da economia proposta por Delfim 41 :303132333435363738394041Que como já demonstramos tinha ligações estreitas com Elio Gaspari que trabalhava em Veja.Veja. Carta ao Leitor. Ed.354 – 18/06/1975.Veja. Carta ao Leitor. Ed.103 – 26/08/1970.PRADO, Luiz Carlos Delorme; EARP, Fábio Sá. O ―milagre‖ brasileiro: crescimento acelerado, integraçãointernacional e concentração de renda (1967-1973). IN: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilda de AlmeidaNeves (Org.). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. RJ: CivilizaçãoBrasileira, 2003. p.221.Em especial o trabalho de monografia “A revista Veja e as multinacionais no Brasil (1968-1975)”.FREITAS, Jorge. Op.Cit. p.129.SOUZA, Ulysses Alves. Op. Cit. p.78.Veja. O saldo do ministro Delfim. Ed.70, 07/01/1970. P.42.Idem.p.46.Título da capa.P.50.No plano econômico proposto por Delfim Netto, a redistribuição de renda era reservada para um momentoposterior, quando o crescimento econômico já teria se efetivado. Neste sentido, temos a célebre frase de DelfimNetto, “deixar o bolo crescer para dividir depois”, que é um exemplo clássico desta perspectiva.175


A filosofia do ministro pode ser assim entendida: se a riqueza nacional cresce de 100,não é possível distribuir senão esses 100; daí uma política ter que optar: quem ficarácom essa nova fatia, ou com a maior parte dela? A resposta é esta: o assalariado vaiquerer ganhar mais apenas para consumir; a empresa desejará maiores lucros parainvestir, criar novas fábricas, novos empregos, de que o país precisa – logo, ela temprioridade 42 .Veja procura explicar de maneira didática a “fórmula” de Delfim. Até aí, não aparece de maneiraexplícita a posição da revista já que ela estaria apenas explicando a proposta do ministro. No entanto,logo abaixo Veja afirma que mesmo que, no momento, a fatia maior não seja dos trabalhadores, aproposta do ministro já “deixa grande margem de esperança ao assalariado” 43 . Segundo a revista:Não há mágico que possa fazer o contrário sem simultaneamente produzir inflação,iludindo o próprio assalariado. Aliás, a fórmula de reajuste salarial, já pelo segundo ano,proporcionou reajuste acima do aumento do custo de vida, exatamente porque ogoverno deseja manter a participação dos trabalhadores no produto 44 .Ou seja, ao mesmo tempo em que legítima o fato de que os beneficiados do “desenvolvimento”fossem apenas os empresários, a revista procura criar uma acomodação dos trabalhadores já que osnúmeros demonstravam que também os trabalhadores tiveram um reajuste dos salários. Permanece aquestão em torno dos motivos de Civita da entrega do medalhão à Delfim Netto, mas fica a satisfação dodono de Veja pela proposta econômica do ministro.O argumento de que o desenvolvimento econômico no Brasil só se tornou possível graças àditadura e seus economistas, apareceu também nos editoriais de Veja. Como exemplo o primeiroeditorial de 1974:Para o Brasil, onde o argumento do desenvolvimento é uma bandeira, foi um ano dePNB alto e largas exportações, graças também a fatores políticos capazes de manteragradável a temperatura e esperançosos os ânimos. Assim, o sóbrio e tranqüiloencaminhamento da sucessão presidencial, um episódio que no passado, emfreqüentíssimas ocasiões, produziu abalos de escaladas agitadas, foi certamentedecisivo. Em todo caso, o começo de 1974 traz para a área econômica, aquela sempree sempre saudável nos últimos anos, algumas e graves preocupações 45 .Através da afirmação de uma economia “sempre e sempre saudável nos últimos anos”, a revistapropõe uma continuidade de desenvolvimento e de crescimento econômico proporcionado pela ditaduramilitar. No entanto, demonstra também sua preocupação com os rumos que a economia tomaria após atroca de presidente. O editorial remeteu-se à crise do petróleo, explicando sua reportagem de capa erelatando a preocupação da revista e o trabalho dos jornalistas em “detectar as possíveis implicaçõesque a crise pode ter no comportamento da economia brasileira” 46 . Junto com as entrevistas realizadaspelos jornalistas com personalidades políticas, econômicas e empresariais, Veja chega a um veredictosobre as perspectivas brasileiras em 1974:E, se há nessas manifestações os temores de conseqüências desagradáveis, nem porisso elas estão destituídas de otimismo. Porque nos eventos econômicos, que não sãoregidos pelas leis inflexíveis do mundo físico, sempre se pode fazer algo pela açãoeficiente do engenho e arte do homem 47Na sucessão presidencial, Veja se colocou ao lado de Geisel, elaborando matérias de caráterabertamente geiselista. Entretanto, o suspense e o silêncio em torno das decisões e dos nomes dosfuturos ministros, são fartamente criticados pela revista:(...) Assim, preservar o sigilo em torno dos nomes dos futuros ministros do governo dogeneral Ernesto Geisel somente atiça as especulações que se pretenderiam evitar,embora seja ao mesmo tempo uma demonstração de notável lisura em relação aos que424344454647Veja. O saldo do ministro Delfim. Op. Cit. p.51.Idem.Idem.Veja. Carta ao Leitor. Ed.278 – 02/01/1974.Idem.Idem.176


se preparam a sair. O excesso de precauções, o vaivém das confirmações veladas edos desmentidos apressados e pouco convincentes acabam empurrando para a ribaltauma onda de rumores capazes de encobrir os próprios fatos e de causar um climapropício ao desassossego, além de favorecer a impressão de que a divulgação da listaoficial acabará revelando algumas mentiras (...) 48Segundo o editorial, a revista teria, várias vezes, “engatilhado” uma reportagem de capa sobreos novos ministros e sempre teve de recuar por falta de provas. Neste sentido, por várias vezes Vejareclamou em seus editoriais o mistério que envolvia a política ditatorial. Estas reclamações eramapoiadas na justificativa da responsabilidade social de Veja de informar o seu leitor, reforçando suapretensão de quarto poder no qual a revista se apoiava. Para uma revista como Veja, já famosa por suascoberturas políticas, não poder cobrir um acontecimento importante como a sucessão presidencial,implicava em perder dinheiro e credibilidade junto aos leitores.Pouco antes da posse de Ernesto Geisel, em 15 de março de 1974, e durante os primeiros anosde seu governo, Veja passou a sofrer cortes sistemáticos em suas páginas. A partir deste momento, arevista passou a se utilizar de estratégias para denunciar a censura. Na edição 288, gravuras de anjos edemônios obrigaram Mino e Guzzo a uma visita à Polícia Federal. Por fim, sob ameaças e vetos dacensura, a revista deixou de se utilizar deste artifício. Segundo Almeida, a opção foi também umadecisão da Editora, tendo em vista que com o tempo, os leitores deixariam de comprar uma revista com“espaços em branco” ou com imagens (como anjos e demônios) que nada teriam a ver com a realidade.Acertos entre o governo e Victor Civita fazem com que as “reclamações” e as críticas em relaçãoao silenciamento em torno do novo governo desapareçam dos editoriais. Importante destacar que oseditoriais não refletiam críticas à ditadura, mas, como vimos na edição 283) ao fato da ditadura nãodisponibilizar suas propostas e encaminhamentos para a imprensa. Veja não era contrária a ditadura,afinal, esta havia propiciado um fortalecimento econômico da Editora Abril. Além disso, o“desenvolvimento econômico” proporcionado pela ditadura atenderia os extratos empresariais quesustentavam a revista e dos quais muitas vezes a revista expressava a opinião. A revista se posicionacontra a liberdade de expressão por vezes vetada por esta ditadura. Liberdade esta extremamentenecessária para a continuidade de qualquer órgão de informação. Veja apoiou o governo de Geisel.Especialmente porque ele inicia com a proposta de restabelecer as liberdades democráticas: “1975 é umano-chave para o definitivo e tão esperado encaminhamento de uma fórmula política destinada arestabelecer gradualmente no Brasil plenas liberdades democráticas, segundo os propósitos do governodo general Ernesto Geisel” 49 . Além disso, a relação estreita entre Geisel e Golbery e entre Golbery e aimprensa 50 , cria expectativas de um futuro promissor:Este hábito foi renovado pelo general Golbery no governo Geisel, o que faz dele umafonte preciosa para o claro e livre entendimento do governo – e dos jornalistas,intérpretes dos humores da opinião pública junto ao Gabinete Civil da Presidência. Nummomento em que a imprensa, ou pelo menos parte dela, continua sob suspeita, estesalutar intercâmbio soa como animador sinal de respeito recíproco 51 .A partir do editorial de 20/08/1975 é possível perceber certo descontentamento de Mino Carta.Reclamando da sua equipe, formada por profissionais “arredios e cheio de pudores”, Carta afirma nãohaver relatos interessantes em Veja. Tendo se posicionado criticamente em 1974 em relação ao“encobrimento” das informações realizado pelo novo governo, Mino Carta havia sofrido uma série depressões por parte da ditadura. Com o prosseguimento desta postura, quatro ministros do presidenteGeisel exigiram a saída de Mino Carta da direção da revista 52 . Segundo Nilton Hernandes, nessa épocaVictor Civita queria construir hotéis e os pedidos de empréstimos encalhavam na mesa dos ministros. Emdezembro de 1975, Mino Carta se despede de Veja, segundo ele, para três meses de férias. Ele nuncamais volta à revista. Em 1976, Civita obteve o empréstimo 53 .484950515253Veja. Carta ao Leitor. Ed.283 – 06/02/1974.Veja. Carta ao Leitor. Ed.330 – 01/01/1975.Já evidenciadas anteriormente.Veja. Carta ao Leitor. Ed.354 – 18/06/1975.Como demonstra HERNANDES, Nilton. A revista Veja e o discurso do emprego na globalização: umaanálise semiótica. Salvador: Edufba; Maceió, Edufal, 2004.É claro que estas relações não aparecem na revista. Pelo contrário, a edição de 18/2/1976 é marcado por doiseditoriais: um de Victor Civita e outro de Guzzo e Pompeu, destinado a “registrar o nosso pesar pela perda doamigo e velho colaborador” que teria pedido “demissão” da revista. Veja. Carta do Editor. Ed.389 – 18/02/1976.Esta demissão teria sido por “divergências surgidas com a direção da empresa durante suas férias”. Veja. Cartaao Leitor. Ed.389 – 18/02/1976.177


Não podemos negar que houve censura à imprensa durante o período estudado 54 . Entretanto,não podemos esquecer a existência da auto-censura, ou seja, a obediência às proibições nas redações.Exemplo disso é a análise de Beatriz Kushnir, que analisou os procedimentos censórios no Brasil, do AI-5 à Constituição de 1988, abordando a relação entre censores e jornalistas sob a perspectiva docolaboracionismo, ou da não oposição às medidas repressivas 55 .A revista Veja foi censurada e isto é um fato incontestável. Mas manifestações que reivindicavama necessidade da ditadura também estavam presentes como estamos demonstrando. Além disso, a“troca de favores” entre Civita e a ditadura eram tão fortes a ponto do dono de Veja oferecer a “cabeça”do seu próprio amigo 56 para garantir os interesses da sua revista. Mino Carta havia sido responsável porpraticamente todos os editoriais de 1969 até 1975. Neste tempo, de várias maneiras procurou mostrar asformas de fazer jornalismo, consolidando o “estilo Veja” e angariando credibilidade para a revista 57 . Nãodefendemos uma postura mais à esquerda de Mino Carta como parte da bibliografia parece acreditar.Em junho de 1976 Veja é liberada da censura, levando-nos a acreditar na relação da censura com MinoCarta. Mas convém lembrar que Mino Carta se posicionou criticamente à ditadura quanto esta feriu osinteresses da revista e os seus interesses profissionais. Em outros momentos, Mino Carta apoiou eexaltou o desenvolvimento proporcionado pela ditadura.Com a saída de Mino Carta, o editorial ficou sob responsabilidade de José Roberto Guzzo eSérgio Pompeu. A partir deles, com as influencias diretas de Elio Gaspari, a posição de sintonia com aditadura e seus eixos programáticos ficaram ainda mais claros.Como podemos perceber, Victor Civita se utilizou da revista Veja para angariar da ditaduramilitar, recursos financeiros e outros benefícios. Em troca, reproduziu na revista o discurso e o projetodesenvolvimentista da ditadura, além de atender as exigências propostas por esta (demissão deRaimundo Pereira e Mino Carta). No entanto, este projeto e esta posição não são evidenciadas narevista. Ao contrário, nossa pesquisa demonstrou todo o processo de construção editorial de Veja em sedeclarar enquanto neutra, imparcial e honesta 58 . Apesar das delimitações deste artigo, procuramosdemonstrar que as falas de apoio à ditadura, não vieram apenas de Civita, mas também de Mino Carta, oque desconstrói as afirmações deste ter uma postura contrária a ditadura. Acreditamos na importância dotrabalho com a imprensa durante a ditadura militar, pois a partir destas análises podemos analisar aimportância desta na criação de consenso e de memória que auxiliaram na sustentação de uma ditadurade 21 anos e que constantemente reconstrói seu posicionamento daquele período.FontesAcervo Digital Veja, disponível em http://veja.abril.com.br/acervodigital/Referências bibliográficas:ABREU, Alzira Alves de. Os anjos e os demônios da revista Veja. Um discurso contra a censura. In:MENEZES, Lenan (Org.). História e violência. APuh-RJ/CCS-UERJ. Rio de Janeiro, 1996.ABREU, Alzira Alves de. VEJA. In: Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. Coordenação:Alzira Alves de Abreu. Ed.rev.atual. RJ, EFGV, CPDOC, 2001.5455565758Existem vários trabalhos que se detêm sobre analise da censura à imprensa escrita nesse período. Comoexemplo citamos Paolo Marconi (1980), Gláucio Ary Dillon Soares (1989), Carlos Fico (2004), Maria AparecidaAquino (1990), etc.KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Campinas:UNICAMP, 2001.Em 13/02/1974, em editorial assinado por Victor Civita, o editor relembra o projeto de lançar Veja e asdificuldades enfrentadas por ele e Mino Carta nos primeiros anos da revista, até chegar “á publicação corajosa”.Segundo Civita, “E tudo isso é somente um preâmbulo para informar aos leitores que, em recente reunião dadiretoria da Abril, Mino foi convocado para lutas mais árduas. Além de continuar na direção de Veja, passa aintegrar a diretoria da Editora. É um reconhecimento merecido, que vem acompanhado pelo aplauso unânime daempresa e pelo abraço pessoal de que invadiu este espaço privativo para saudar um excelente jornalista equerido amigo”. Veja. Carta ao Leitor. Ed.284 – 13/02/1974. Ou seja, assim como com Raimundo Pereira, VictorCivita não teve dúvidas ao ter que escolher entre um “bom profissional” e um bom amigo ou um favorecimentoeconômico por parte da ditadura.No editorial de 31/12/1975, quando do anuncio dos três meses de férias, Mino Carta desabafa: “Deixo-a sofridano espírito, porém ainda e sempre esperançosa – e sadia fisicamente, com sua circulação média de 165.000exemplares”.Resultados estes que infelizmente não puderam ser descritos neste texto, mas que podem ser visualizados emnossa dissertação de mestrado.178


ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. Veja sob censura: 1968-1976. São Paulo: Jaboticaba, 2009.ALVES, Ronaldo Sávio Paes. Legitimação, publicidade e dominação ideológica no governo Médici (1969-1974): a participação da iniciativa privada no esforço de legitimação. Estudos de inserções publicitáriasna mídia impressa. Dissertação de Mestrado em História, Niterói, UFF, 2000.CHAGAS, Carmo; MAYRINK, José Maria; PINHEIRO, Luiz Adolfo. Três vezes trinta – os bastidores daimprensa brasileira. São Paulo: Editora Best Seller, 1992.CONTI, Mario Sérgio. Notícias do Planalto – a imprensa e Fernando Collor. São Paulo: Companhia dasLetras, 1999.FREITAS, Jorge Roberto Martins. A entrevista nas páginas amarelas da revista Veja: a imagem domilagre econômico sob o ponto de vista do primeiro newsmagazine brasileiro. Diss. Mestr. UFRJ, 1989.GAZZOTTI, Juliana. Imprensa e ditadura: a revista Veja e os governos militares (1968-1985). Dissertaçãode Mestrado em Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos, 1998.GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol.3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.HERNANDES, Nilton. A revista Veja e o discurso do emprego na globalização: uma análise semiótica.Salvador: Edufba; Maceió, Edufal, 2004.KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Campinas:UNICAMP, 2001.MENDONÇA, Sonia Regina de. Estado e economia no Brasil: opções de desenvolvimento. Rio deJaneiro: Graal, 1985.PRADO, Luiz Carlos Delorme; EARP, Fábio Sá. O ―milagre‖ brasileiro: crescimento acelerado,integração internacional e concentração de renda (1967-1973). IN: FERREIRA, Jorge; DELGADO,Lucilda de Almeida Neves (Org.). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins doséculo XX. RJ: Civilização Brasileira, 2003.RAUTENBERG, Edina. A revista Veja e as empresas da construção civil (1968-1978). Dissertação deMestrado em História pela Unioeste/MCR. Marechal Cândido Rondon, 2011.SILVA, Carla Luciana Souza. A Carta ao Leitor de Veja: um estudo histórico sobre editoriais. IN: Intercom– Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo, v.32, n.1, jan./jun. 2009.SILVA, Carla. Grande imprensa brasileira: Ditadura apagada e Democracia forjada. In: SILVA, Carla;CALIL, Gilberto; CASTELANO, Maria José; Kolling, Paulo José (Org.). Estado e Poder: ditadura edemocracia. Cascavel: Edunioeste, 2011.SILVA, Carla. Imprensa e Ditadura Militar: padrões de qualidade e construção de memória. In: RevistaHistória e Luta de Classes. Ano 1 – Edição 1, Abril de 2005.SILVA, Carla. Veja: O indispensável partido neoliberal 1989-2002. Niterói: UFF, Tese de Doutorado. 2005.SOUZA, Ulysses Alves de. A história secreta de Veja. IN: Revista Imprensa. Ano II, nº 13, setembro de1988.VILLALTA, Daniella. Artesanato industrial na produção jornalística de 1968. O surgimento da Revista Vejano contexto da modernização brasileira. Dissertação de mestrado em Teoria e Ensino da Comunicação.UMESP – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 1999.VILLALTA, Daniella. Reflexos da modernização econômica brasileira no mercado editorial de revistas. IN:Comum – Rio de Janeiro – v.14 – n°31 – p.117 a 143 – julho/dezembro 2008.179


O Tratamento das Revistas Semanais À Abordagem Do PNDH-3 Sobre A Questão daMemória e da VerdadeDiego Airoso da Motta 1Resumo: À luz da teoria da ideologia e do referencial metodológico da hermenêutica de profundidade,propostos por john b. Thompson, o texto busca analisar como a mídia brasileira trabalha a questão damemória histórica presente no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), a partir da formacomo as revistas semanais Veja, Época, IstoÉ e CartaCapital trataram do tema. A escolha destesveículos de comunicação ocorre em função do poder de influência que detêm perante a opiniãopública,seja diretamente sobre seu público leitor, seja sobre as pautas de outros segmentos midiáticos,além de exercer importante ascendência sobre as discussões realizadas no meio político.Palavras-chave: Direitos Humanos. Mídia. Memória. Comissão da Verdade.Abstract: based on the theory of ideology and methodological framework of depth hermeneutics,proposed by john b. Thompson, the text seeks to analyze how the Brazilian media works in issue ofhistorical memory in the 3rd National Program for Human Rights (PNDH-3), from the way the weeklymagazine Veja, Época, IstoÉ and CartaCapital treat the subject. The choice of these media is because ofthe holding power to influence public opinion, either directly on your readership, is on the agendas ofother media segments, and have an important influence over the discussions at the political environment.Key-words: Human Rights. Media. Historical Memory. Truth Commission.ApresentaçãoO presente artigo busca levantar questões sobre as possibilidades e limites dos meios decomunicação como ferramenta de educação em direitos humanos, especialmente no contexto do PlanoNacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), em seu eixo “Educação e Mídia” (BRASIL,2007). Para isso, propõe analisar a abordagem da mídia – precisamente as revistas semanais deinformação geral brasileiras, de significativo poder de influência sobre as classes socioeconômicasmédias e altas, sobretudo A e B, mas também C (BENETTI; HAGEN, 2010) – à questão dareconstituição da memória histórica e da verdade, na forma como tratado no 3º Programa Nacional deDireitos Humanos (PNDH-3).O respeito aos direitos humanos, em sua integridade, só poderá ser um horizonte alcançável namedida em que seu universo conceitual e axiológico for amplamente conhecido e discutido. Nessesentido, a questão da memória e o esclarecimento público sobre as violações de direitos humanos quemarcam a história brasileira, especialmente após o golpe de 1964, adquirem severa relevância.Evidencia-se, assim, que o encobrimento histórico da opressão atenta diretamente contra os direitoshumanos e coloca à prova seu caráter universal e indivisível.Mesmo violando sistematicamente os direitos humanos, o “poder” cinicamente diz defendê-los.As grandes potências, capitaneadas pelos EUA, promovem a guerra e a morte em sua autoatribuídamissão civilizadora, supostamente levando os direitos humanos e a democracia a todos os povos(VIOLA, 2007).À cauda da realidade mundial, no Brasil se processa o que Fonseca (2009, p. 264) chama de“manuseio retórico dos direitos humanos”, vistos como algo que serve a bandidos, discurso gestadodurante o regime militar (ROLIM, 1998; VIOLA, 2007) e que gradualmente passa a ser substituído porversões particularistas mais requintadas, como a que se condensa na expressão “direitos humanos parahumanos direitos” (CARBONARI, 2010) 2 .12Formação acadêmica: Mestre em Ciências Sociais (UNISINOS); Doutorando em Sociologia (UFRGS). Email:diegoairoso@yahoo.com.br Telefone p/ contato: (51) 9271-3734.Estudo promovido em 2010 pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República sobre apercepção dos direitos humanos na opinião pública brasileira aponta que cerca de um terço da população (34%)concorda com a ideia de que “direitos humanos deveriam ser só para pessoas direitas” (VENTURI, 2010, p.249). Ainda que não configure uma maioria, esse percentual é preocupantemente significativo.180


A mídia, sobretudo a comercial, regida pela lógica do capital e da concentração de poder, acabatendo papel imprescindível na reprodução dessa conjuntura de usos dos direitos humanos e reproduçãode valores caros à dominação. Porém, também na mídia pode estar uma importante possibilidade dealteração estrutural desse quadro, disseminando uma cultura de paz, justiça social e protagonismopolítico.Para discutir o lugar da mídia no contexto das demandas por direitos humanos, este textodeverá, após esboçar os aportes metodológicos e teóricos da pesquisa, trazer um breve histórico doPNDH-3, do modo como este abordou o tema da memória e da verdade e da polêmica que o envolveu,analisar, ainda que de forma superficial, qualitativamente os dados obtidos e, por fim, tecer algumasconsiderações sobre a pesquisa.Considerações metodológicas e teóricasO corpus da pesquisa se refere a matérias jornalísticas de revistas semanais de grandeinfluência na opinião pública nacional 3 e cuja orientação editorial, mais ou menos explicitamente, guardaidentificação com diferentes pontos do espectro político-ideológico: Veja, Época, Istoé e CartaCapital.Cabe salientar que as duas primeiras editoras referidas pertencem a grandes conglomerados decomunicação do país: o Grupo Abril, fundado por Victor Civita em São Paulo, em 1950; as OrganizaçõesGlobo 4 , fundadas por Irineu e Roberto Marinho em 1925, no Rio de Janeiro, sendo o maiorconglomerado de mídia da América Latina. As outras duas empresas, a Editora Três – criada em 1972,em São Paulo, por Domingo Alzugaray – e a Editora Confiança – fundada em 2001, também em SãoPaulo, por Mino Carta, diretor de redação e criador de CartaCapital, e Luiz Gonzaga Belluzo, economistae consultor editorial da mesma revista, em 2001, quando passou a publicar a revista em lugar da EditoraCarta Editorial, criada pelo irmão de Mino, Luis Carta, em 1976 – têm uma atuação restrita ao mercadoeditorial de revistas, com oferta de títulos bem menor que suas gigantes concorrentes e tendo comoprincipal produto justamente as semanais.Foram examinadas as edições publicadas entre 20/12/2009 e 29/03/2010 – 3 mesessubsequentes ao lançamento do PNDH-3 – para, assim, apreender a sua repercussão, especialmentequanto à questão da memória e da verdade.Para analisar esses textos, utilizou-se a hermenêutica de profundidade (HP), instrumentalmetodológico proposto por Thompson (1995) para analisar a construção de sentidos presentes nasações e relações cotidianas, o contexto sócio-histórico da produção das formas simbólicas constituintesdeste processo (textos, imagens, falas e ações) e o uso dos sentidos aí produzidos. O método écomumente aplicado à análise da ideologia – vista como um processo de construção de sentidos pormeio de formas simbólicas para produzir e reproduzir relações de poder sistematicamente assimétricas,isto é, relações de dominação.Tendo a ideologia relação com as circunstâncias sociais de sua emissão e recepção, não é difícilprojetar seus efeitos sobre as representações sociais, das quais, no contexto da midiação da culturamoderna, parte considerável, em dado momento de seu desenvolvimento, é manejada e disseminada viacomunicação de massa, um de seus principais vetores.É aí que se torna importante falar em opinião pública e a influência que recebe da opiniãopublicada. Para Thiollent (1983, p. 190), “os meios de comunicação […] contribuem para formar astendências da opinião pública ao divulgar posições ou interpretações de fatos favoráveis oudesfavoráveis ao poder político vigente ou a grupos de interesses”. Controlar a opinião publicada éexercer poder simbólico, já que “o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder demanter a força da ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que aspronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras” (BOURDIEU, 1998, p. 15).As representações sociais envolvem o peso da palavra e o capital simbólico disponível eempenhado por quem as diz e guardam íntima relação com o que o autor chama de habitus, asdisposições historicamente construídas, exteriores e inconscientes aos indivíduos, mas que sãoacessados por eles em suas práticas cotidianas: “O habitus, como indica a palavra, é um conhecimentoadquirido e também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista) o habitus, a34O poder de influência das revistas é corroborado pelos números de circulação que apresentam: segundo oInstituto Verificador de Circulação – IVC, em 2010 a circulação média semanal da revista Veja foi de 1.086.191exemplares; da Época, 408.110; da Istoé, 338.861; da Carta Capital, 30.703, ocupando, respectivamente, o 1º, o2º, o 3º e o 21º lugar no ranking nacional de circulação de revistas semanais de todos os segmentos.Nos anos 60, a Globo firmou ilegalmente acordo com o grupo norte-americano Time-Life, no momento daascensão golpista dos militares ao poder federal, apoiados pelos EUA contra uma suposta ameaça comunistano Brasil. O regime necessitando de legitimidade e a Globo de vista grossa à sua aliança proibida, os interessesse fundiram. A Globo serviu de importante suporte ideológico à ditadura (GUARESCHI, 1999), cuja defesa eraobjeto de matérias e editoriais dos veículos da empresa, como o jornal O Globo, alguns deles assinados por seupróprio presidente, Roberto Marinho (COSTA, 2007).181


hexis, indica a disposição incorporada, quase postural” (BOURDIEU, 1998, p. 61, grifos do autor).A mídia participaria, então, na formação do que se poderia chamar um habitus moderno, onde oconjunto de mensagens que cria e transmite seria tendencialmente aceito como expressão de verdade 5 .O PNDH-3Apesar das persistentes violações de direitos humanos, nas discussões sobre o tema nos fórunsregionais e internacionais o Brasil tem desempenhado importante papel. Bem o atesta a decisivaparticipação da representação brasileira no Comitê de Redação da Declaração e Programa de Açãoadotada na Conferência de Direitos Humanos de Viena, em 1993, aprovada consensualmente por 171países. Com isso, mais do que pelo compromisso diplomático assumido, o Estado brasileiro passou a teruma obrigação moral perante a comunidade internacional em assumir as recomendações da Declaraçãoda qual foi o principal redator.Dentre essas recomendações está o artigo 71, que orienta que “cada Estado considere aconveniência de elaborar um plano nacional de ação identificando medidas com as quais o Estado emquestão possa melhor promover e proteger os direitos humanos”. A edição desses documentos revela ocompromisso dos Estados em efetivar, fortalecer e ampliar no plano interno o respeito aos direitoshumanos com base nas orientações internacionais.Seguindo esta diretriz, o governo federal elaborou o 1º Programa Nacional de Direitos Humanos– PNDH-1 (Decreto n. 1.904/96), tendo sido o Brasil um dos países pioneiros nesse sentido. Suaimplantação, no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso trouxe uma discussãoainda limitada e que enfatizava os direitos civis e políticos (CICONELLO, 2008; SOUSA JÚNIOR;BENEVIDES, 2010).Diante da necessidade do Programa ser revisado e ampliado, ao final da gestão FHC, produz-seo 2º Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-2 (Decreto n. 4.229/02). De sua discussão,iniciada em 2001, participaram órgãos governamentais, sociedade civil e a academia (BRASIL, 2002),gerando um conjunto de 518 proposições que integravam à versão anterior os direitos sociais,econômicos e culturais.Em 2008, o Governo Federal inicia novo processo de atualização do Programa, com vistas aelaborar o PNDH-3, concebendo documentos de referência e promovendo conferências regionais,debates temáticos e, enfim, a 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, que sintetizou asdiscussões que a antecederam e as aprofundou (BRASIL, 2010). Depois do evento, a interlocução com asociedade permaneceu aberta. Conforme Piovesan (2010, p. 12), também os diversos ministérios foramconvidados a participar da revisão do Programa, tendo em vista a “transversalidade e ainterministerialidade de suas diretrizes”. Ao final do processo, coordenado pela Secretaria Especial deDireitos Humanos – então capitaneada por Paulo Vannuchi –, cerca de 14 mil pessoas tinhamparticipado da formulação do novo Programa (SOUSA JÚNIOR; BENEVIDES, 2010).O documento apresentado à sociedade por meio do Decreto n. 7.037/09, contava com 521propostas, refletindo uma agenda contemporânea de direitos humanos e, ao mesmo tempo, sintonizadocom a complexa realidade brasileira ao tratar de temas como “direito ao meio ambiente, direito aodesenvolvimento sustentável, direito à verdade, direitos dos idosos, direito à livre orientação sexual,direito aos avanços tecnológicos, entre outros” (PIOVESAN, 2010, p. 13, grifo nosso). Entre os avançosmais significativos está o Eixo VI, que trata do Direito à Memória e à Verdade, com vistas a esclarecer asviolações de direitos humanos protagonizadas, pelo Estado brasileiro sobretudo no período ditatorial1964-1985.Poucas semanas após o lançamento do PNDH-3, alguns setores sociais de orientaçãoconservadora, minoritários, mas estruturalmente influentes no meio político e econômico, se insurgiramcontra algumas proposições apresentadas. Gerou-se grande celeuma que agitou os espaços dediscussão política nos meios de comunicação de massa e nos fóruns institucionais do país.Seis foram os temas que agitaram os ânimos: a prevenção da violência em conflitos agrários (eurbanos), o reconhecimento de direitos dos homossexuais (união civil, adoção etc.), o apoio àdescriminalização do aborto, a restrição à ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos daUnião, o respeito aos direitos humanos pela mídia e a criação da Comissão Nacional da Verdade pararesgatar a memória das violações de direitos humanos ocorridas no regime militar. Estes temasmobilizaram críticas principalmente dos grandes produtores rurais, de grupos religiosos, dosrepresentantes das empresas de comunicação de massa e de membros das Forças Armadas (SOUSAJÚNIOR; BENEVIDES, 2010.5Atribui-se aqui a qualidade de moderno à expressão de Bourdieu em função da identidade temporal queThompson refere haver entre modernidade e desenvolvimento da comunicação de massa, isto é, dentre asdisposições historicamente incorporadas pelo homem moderno estaria, segundo a tese aqui defendida, a crençana veracidade das formas simbólicas, das mensagens, produzidas pela mídia, ainda que haja margem para acrítica e a contestação dos produtos midiáticos.182


Tal foi a pressão política – em boa parte exercida através da mídia – que, para acalmar osânimos dos descontentes, o governo alterou diversos dispositivos do Programa, o que, por outro lado,gerou protestos dos movimentos sociais, entidades de defesa dos direitos humanos, acadêmicos epartidos políticos que apoiavam o teor original do documento.A questão da Comissão da Verdade e o resgate da memóriaSeveras críticas foram dirigidas às propostas de busca de esclarecimento sobre as violações dedireitos humanos ocorridas no período ditatorial, especialmente as relativas à criação da ComissãoNacional da Verdade 6 e à proibição de denominação de logradouros e prédios públicos em homenagema autores de crimes de lesa-humanidade.Representantes das Forças Armadas, capitaneados pelo então ministro da Defesa, Nelson Jobim(Ministro da Justiça quando do lançamento do PNDH-1), foram as primeiras vozes a se manifestar contrao PNDH-3. O centro da discórdia foi a utilização de certas expressões na redação do Programa, como“no contexto da repressão política”, o que os militares diziam ser uma tentativa de direcionar asinvestigações somente a eles, deixando à parte os crimes cometidos pelos “terroristas de esquerda”.Supostamente, a supressão desses termos teria sido motivo de acordo entre o Ministério da Defesa e aSecretaria de Direitos Humanos quando das discussões internas do governo sobre o documento. Jobimchegou inclusive a pedir demissão ao presidente Lula como forma de protesto ao lançamento doPrograma com o texto censurado pelos militares. Explorou-se, com isso, a ideia de que nem mesmodentro do próprio governo o PNDH-3 contava com apoio unânime. Dias após a manifestação da caserna,seguiuram-se as dos demais grupos divergentes ao PNDH-3, como que se dando conta de que oPrograma continha itens que, se tornados concretos, bateriam contra seus interesses.Imbuídos de um forte corporativismo, os militares queriam evitar a possibilidade de que, a partirda apuração da verdade histórica e do resgate da memória pela referida Comissão, aqueles quepraticaram o terror de Estado entre 1964 e 1985 pudessem ser responsabilizados criminalmente porviolações de direitos humanos então protagonizadas, como prisões arbitrárias, torturas,desaparecimentos, sequestros e homicídios. Os argumentos iam da acusação de revanchismo por partede membros do governo que lutaram na resistência à ditadura até uma dita tentativa de enfraquecimentodas Forças Armadas 7 .Sobre a real importância da memória e da verdade sobre a barbárie, especialmente em um paísfortemente marcado pela violência do aparato de segurança, fala Mezarobba (2010):Assim como aconteceu na Argentina e no Chile, no caso do Brasil, a criação de umacomissão da verdade poderá contribuir não apenas para deslegitimar a ditadura econfirmar a opção nacional pela democracia, mas para reafirmar, de forma categórica, aintrínseca e indispensável relação do (nem tão) novo regime com a promoção e orespeito aos Direitos Humanos e sua impossibilidade de conviver com expedientesainda praticados de forma disseminada, como a tortura e o abuso de poder. Tambémpoderá contribuir para aprofundar a reflexão em torno de um tema que persistecontemporâneo no debate nacional: a impunidade. […] deve ser acolhida pelasociedade como uma oportunidade de melhor definição e aperfeiçoamento do papel deimportantes instituições, como o Judiciário e as forças de segurança (MEZAROBBA,2010, p. 34).A discussão sobre a criação da Comissão da Verdade foi atravessada pela questão da Lei daAnistia de 1979. Segundo o ponto de vista dos críticos ao PNDH-3, o trabalho da Comissão – que em simesmo não tem caráter punitivo – levaria automaticamente a uma, para eles indesejada, revisão da Lei67Segundo Mezzaroba (2010, p. 32), “partindo-se do pressuposto de que os povos têm o ‘direito inalienável’ deconhecer a verdade a respeito de crimes do passado, o que inclui as circunstâncias e os motivos envolvendotais atos de violência, independentemente de processos que possam mover na Justiça, uma comissão daverdade pode ser definida como órgão estabelecido para investigar determinada história de violações de DireitosHumanos”.O Programa não fala em punições e, quando se refere de forma expressa à Lei de Anistia, diz que a Comissãoda Verdade poderia “colaborar com todas as instâncias do Poder Público para a apuração de violações deDireitos Humanos, observadas as disposições da Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979” (grifo nosso), ou seja,a Lei da Anistia. O Programa reafirma-a e não intenta anulá-la, o que talvez devesse ser objeto de crítica porparte das vítimas da repressão militar e não dos militares torturadores. Contudo, há que se destacar que oPrograma propõe ainda “Criar Grupo de Trabalho para acompanhar, discutir e articular, com o CongressoNacional, iniciativas de legislação propondo: revogação de leis remanescentes do período 1964-1985 que sejamcontrárias à garantia dos Direitos Humanos ou tenham dado sustentação a graves violações” (grifo nosso), oque poderia englobar a Lei da Anistia, que isentou de responsabilidade os militares que torturaram e assimpraticaram graves violações de direitos humanos, mas isso não fica claro no texto.183


de Anistia 8 , cujo objetivo teria sido fazer a passagem reconciliadora entre a ditadura e a democracia,pretensamente anistiando ilegalidades de defensores e opositores do regime militar.Há que se destacar, porém, que a referida Lei não parece ter a incondicionalidade que se tentaatribuir-lhe, já que seu caráter autoanistiante – o fato de que leis como essa são elaboradas por agentesque, dentro do Estado, são responsáveis por esmagadora maioria das violações de direitos humanos emperíodos de exceção – é sinônimo de impunidade, como bem mostra Piovesan (2010, p. 13):A jurisprudência internacional reconhece que leis de anistia violam obrigações jurídicasinternacionais no campo dos Direitos Humanos […] perpetuam a impunidade, propiciamuma injustiça continuada, impedem às vítimas e a seus familiares o acesso à Justiça e odireito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente, o queconstituiria uma direta afronta à Convenção Americana [de Direitos Humanos].Além disso, a Lei de Anistia teria de ser relativizada em razão de sua subordinação a certosprincípios e direitos de que a sociedade não deve abrir mão, conforme colocado por Britto (2010, p. 30):Flávia Piovesan e Hélio Bicudo, coerentes defensores dos Direitos Humanos,externaram que “o direito à verdade assegura o direito à construção da identidade, dahistória e da memória coletiva. Serve a um duplo propósito: proteger o direito à memóriadas vítimas e confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a repetição detais práticas”. A este direito não se opôs a Lei de Anistia. E não poderia: a Anistiacumpriu seu papel, propiciou a transição pacífica do regime ditatorial para odemocrático. Isso não quer dizer que impediu que a História venha a ser passada alimpo. Não se trata de revanchismo, nem muito menos de revogá-la. Mas não pode elaser utilizada para impor a amnésia a toda uma sociedade, sobretudo porque só se podepropor esquecimento ao que se conhece.A celeuma em torno desse e de outros pontos teve forte repercussão nas revistas semanais.A análise dos textosA análise dos textos se baseou no exame de seu caráter ideológico. A leitura dos que abordaramo tema da memória e da verdade no PNDH-3 nas revistas semanais foi orientada pelo que Thompson(1995), Guareschi (2000) e Veronese e Guareschi (2006) – com complementações concebidas nodecorrer da pesquisa – revelam sobre os modos mais típicos de operação da ideologia e as estratégiasde construção simbólica que os concretizam.Assim, os escritos que seguem procuram apontar esses elementos nos textos em que foramencontradas abordagens ideológicas, ancorando-os nos aportes teóricos e históricos discutidos etraçando reinterpretações julgadas pertinentes à compreensão dos textos.Em face do elevado número de textos, optou-se por trazer aqui apenas um esboço geral daanálise desenvolvida, a ser discutida um pouco mais enfaticamente nas considerações finais.Entre matérias, editoriais, artigos e cartas de leitor, chegou-se a um total de 24 textos com referência àquestão da memória e da verdade presente no PNDH-3: 10 publicados por Veja, 4 por Época, 2 porIstoÉ e 8 por CartaCapital. Praticamente não houve nuances quanto à presença de textos comabordagens ideológicas a respeito desses pontos: todos os textos de Veja, IstoÉ e Época trataram dotema ideologicamente, reiterando o uso de expressões e juízos que viam a abordagem do Programacomo sinônimo de “revanchismo”, “vingança” ou ainda a tentativa, sempre vista com maus olhos, derevisar a Lei de Anistia. Além disso, em diversas oportunidades, houve a tentativa de vinculação daimagem de Paulo Vanuchi ao terrorismo, ao crime e à barbárie, para, assim, depreciar de arrasto o teordo Programa. CartaCapital, por sua vez, embora sobre um ou outro ponto do PNDH-3 tenha manifestadoposição editorial diferente, abordou o assunto de forma não-ideológica em todos os textos analisados,precisamente porque, nos juízos expressos, propôs o esclarecimento e o resgate da memória como umanecessidade da democracia e opôs-se a posições conservadoras, sobretudo dos militares.Analisados os textos, passa-se às considerações finais, momento em que os dados aquiapresentados serão articulados com as reflexões trazidas nas seções anteriores.8Em 2008, o Conselho Federal da OAB apresentou ao STF a Arguição de Descumprimento de PreceitoFundamental n. 153, propondo nova interpretação ao artigo 1º da Lei de Anistia para que ele não abrangesseagentes do Estado que teriam praticado crimes comuns, e não políticos. Em abril de 2010, por 7 votos a 2, aADPF foi considerada improcedente pela Corte. Sobre a ação fala Britto, (2010, p. 30): “Nela se diz que a Lei deAnistia tratou de crimes políticos e conexos – isto é, decorrentes de um combate político. A lei abrange apenasos lados que combateram. E o torturador não é um combatente: é um criminoso. A tortura ou o assassinato deprisioneiros indefesos, depois de consumada a rendição, configuram crime comum – hediondo e imprescritível,segundo a Constituição –, sem qualquer conteúdo político”.184


Considerações finaisDiversos modos de operação da ideologia estiveram presentes entre os textos avaliados comoideológicos. Entre os modos e as estratégias encontrados nos textos que assim se apresentaram sedestacaram a Legitimação, sobretudo através de racionalizações para justificar a validade da Lei deAnistia; a Reificação, por meio da eternalização, com vistas a convencer de que a referida lei não podeser alterada e a versão histórica vigente não pode ser investigada; a Reestruturação da narrativa, pelouso da simplificação, para persuadir de que a tentativa de esclarecer as violações de direitos humanos émero revanchismo e vontade de vingança; a Unificação, por via da padronização, colocando vítimas eagressores no mesmo plano de forças, e da simbolização da unidade, considerando a Lei de Anistiacomo emblema da suposta igualdade de condições entre ambos; a Fragmentação, através dadiferenciação entre práticas semelhantes produzidas em momentos históricos umbilicalmenteconectados – a repressão da ditadura e a violência policial contemporânea.É de se citar, especialmente pela revista Veja, a utilização da Fragmentação, através do“Expurgo do outro” para atacar principalmente um dos proponentes do PNDH-3 (e por extensão aspropostas do próprio Programa), atrelando sua trajetória de resistência ao regime ditatorial à imagem deum terrorista, criminoso, mal e vingativo, cujo trabalho político objetivaria tão-somente efetivar essascaracterísticas. A crítica sobre quem propõe se imbrica com a crítica sobre o que é proposto, para tentaresvaziar sua legitimidade.Partindo das definições de Wallerstein (2002) e Bobbio (2001) 9 , o PNDH-3 foi elaborado por umgoverno alicerçado em uma aliança política liderada pelo PT, um partido de esquerda, acompanhado poroutras agremiações de mesma orientação, por partidos de centro-esquerda, de centro e um de direita(PT, PC do B, PSB, PDT, PTB, PMDB, PL [depois PR] e PP). A construção do Programa foi conduzidapor Paulo Vannuchi, militante de direitos humanos que se destaca pela atuação partidária e junto asindicatos, mas, mais do que isso, pelo fato de ter participado da resistência armada contra o regimemilitar. Com um perfil supostamente mais confrontador e tendo sua origem partidária em forçasefetivamente de esquerda, sua ação poderia tornar real a possibilidade de concretização direta eimediata das medidas previstas no Programa, algumas delas também frontalmente desfavoráveis àsexpectativas dos grupos conservadores. Por conta de sua luta contra o poder autoritário, este apoiadopor boa parte daquelas mesmas forças conservadoras, a imagem de Vannuchi acabou sendo vinculadaao radicalismo e à contestação. Seu trabalho em relação ao PNDH-3 passou a ser depreciado e acriação da Comissão da Verdade, prevista no Programa, passou a ser vista como revanchista.De certa forma, as abordagens das revistas sobre a questão da memória e da verdade dentro doPNDH-3 também reflete as diferenças que envolvem a díade direita/esquerda, sobretudo ao seconsiderar o passado recente dos posicionamentos políticos expressos pelas revistas. Em 2010, acobertura das eleições presidenciais tornou explícitos esses posicionamentos em relação às forçaspolíticas então em disputa. Se apenas se confirmaram as orientações antipetistas e pró-José Serra porparte de Veja e favoráveis a Lula e Dilma de CartaCapital, a esta juntou-se IstoÉ e àquela uniu-se Época(PEREIRA, 2010).Quanto mais à direita a orientação da revista, mais o Programa foi rechaçado; tantomais à esquerda, maior foi a aceitação do documento (ou menos intensa foi a crítica sobre ele).Embora o intuito principal dessa pesquisa não tenha sido o de manifestar alinhamentos aquaisquer dos “lados políticos” inerentemente envolvidos na discussão, ficou clara a defesa ao conteúdotrazido pelo PNDH-3. Isso se justifica pelo fato de o documento objetivar combater relações dedominação das quais boa parte é defendida nos conteúdos ideológicos identificados na abordagem doPNDH-3, dentre elas o ocultamento e reificação da história e a promoção da violência estatal.A forma como o tema foi apresentado pelas revistas indica seu efeito potencial para a criação derepresentações sociais sobre a questão da memória e da verdade. Essas representações, por sua vez,vão se fazer manifestas à opinião pública por meio da opinião publicada. Dito de outra forma, a opiniãopublicada pelas revistas – com todo o capital simbólico, cultural e econômico que detêm e que se traduzem poder simbólico – traz embutidas as representações que elas querem compartilhar, com seu públicoem particular e com a sociedade em geral. Dotam, assim, essas representações de seu caráter “social”,tornando-as acessíveis à opinião pública.Se, com o peso que tem no contexto de uma crescente midiação da cultura, a opinião publicada9Para Bobbio (2001, p. 111), esquerda e direita se diferenciam pela forma como consideram o “ideal deigualdade, que é, com o ideal da liberdade e o ideal da paz, um dos fins últimos que os homens se propõem aalcançar e pelos quais estão dispostos a lutar”. Segundo o autor, ao pensamento de esquerda importa o que oshomens têm em comum, o que os une, enquanto que a concepção de direita considera relevante politicamente oque os diferencia. Wallerstein (2002) tem definições próximas das de Bobbio, na medida em que, enquanto estese refere à esquerda como defendendo a inclusão, aquele remete essa reivindicação aos que chama de“democratas (ou socialistas)”, que buscariam compatibilizar igualdade e liberdade, em oposição aos “liberais”,que priorizariam a liberdade, sobre a liberdade individual, tomando a igualdade como seu oposto.185


é conformada e apresentada com base em representações propositalmente viciadas por dados falsospara sedimentar ou criar relações de dominação, isto é, de forma ideológica, a opinião pública que delase alimenta toma a sua forma. Assim, o erro na apuração e uso dos dados sobre os temas de que tratamfaz com que as revistas, muitas vezes, atuem na construção de representações sociais que não guardamrelação com a verdade dos fatos.Essas questões revelam aspectos significativamente contraditórios da mídia em geral, além dedenunciar limites às revistas semanais em particular como ferramenta de educação em direitoshumanos, salvo exceções. Como pensar, por exemplo, na efetividade do uso destes espaços paracampanhas em prol dos direitos humanos se, em seus conteúdos jornalísticos, as revistas, sobretudo asde maior alcance de público, jogam contra os valores aí difundidos? Como pensar na concretização doPlano Nacional de Educação em Direitos Humanos, especialmente em seu eixo “Educação e Mídia”,quando o cenário em que esse processo deve se dar é intensamente permeado por desrespeito a essesdireitos?Demonstra-se, com isso, a necessidade de que discussões como a aqui proposta estejam presentes namesa de negociação política entre Estado e instituições midiáticas, a fim de conceber mecanismos deeducação em direitos humanos que tenham na comunicação de massa um de seus locais desedimentação.Referências Bibliográficas:BENETTI, Marcia; HAGEN, Sean. Jornalismo e imagem de si: o discurso institucional das revistassemanais. Estudos em Jornalismo e Mídia, Florianópolis, ano 7, n. 11, jan. a jun. 2010. Disponível em:http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo/article/viewFile/12797/12703. Acesso em: 05 dez.2010.BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. 2. ed. São Paulo:UNESP, 2001. 189 p.BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. 322 p.BRASIL. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de Educação em DireitosHumanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos; Ministério da Educação; Ministério daJustiça; UNESCO, 2007. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/edh/pnedhpor.pdf. Acesso em: 03dez. 2010.______. Ministério da Justiça. Secretaria de Estado dos Direitos Humanos. Programa Nacional deDireitos Humanos: PNDH – II. 2002. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh/pndhII/Texto%20Integral%20 PNDH%20II.pdf. Acesso em: 03 dez. 2010.______. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Programa Nacional deDireitos Humanos (PNDH-3). Brasília: SEDH/PR, 2010. 308 p.BRITTO, Cezar. O direito à memória e à verdade. Revista Direitos Humanos, Brasília, n. 5, p. 28-31, abr.2010. Disponível em: http://www.portalmemoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/media/revistadh5.pdf.Acesso em: 21 dez. 2011.CARBONARI, Paulo César. Caminhos para uma política nacional de direitos humanos: expectativas domovimento nacional com o PNDH-3. Revista Direitos Humanos, Brasília, n. 5, p. 17-21, abr. 2010.Disponível em: http://www.portalmemoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/media/revistadh5.pdf. Acessoem: 21 dez. 2011.CICONELLO, Alexandre. Nota Técnica n. 146. Brasília: INESC, 2008. 8 p. Disponível em:http://www.dhnet.org.br/direitos/indicadores/sistema_br/inesc_nt_%20prog_dh_br_indicadores.pdf.Acesso em: 03 dez. 2010.COSTA, Cristiane. As manchetes do golpe. 11 jul. 2007. Não paginado. Disponível em:http://blogdabrhistoria.blog.uol.com.br/. Acesso em 10 dez. 2011.DUPAS, Gilberto. O conceito hegemônico do progresso e os direitos humanos. In: BITTAR, Eduardo C.B. (org.). Direitos humanos no século XXI: cenários de tensão. Rio de Janeiro: Forense universitária; SãoPaulo: ANDHEP; Brasília: SEDH, 2009. p. 264-282.FONSECA, Paulo Henriques da. Direitos humanos dos pobres: entre a violação e a exclusão. In:BITTAR, Eduardo C. B. (org.). Direitos humanos no século XXI: cenários de tensão. Rio de Janeiro:Forense universitária; São Paulo: ANDHEP; Brasília: SEDH, 2009. p. 264-282.GUARESCHI, Pedrinho A. A banalização da política e do político: uma análise ideológica do Programa186


Casseta & Planeta. In: GUARESCHI, Pedrinho A. (org.). Os construtores da informação: meios decomunicação, ideologia e ética. Petropólis, RJ: Vozes, 2000. p. 317-338.______. Comunicação e Poder: A presença e o papel dos meios de comunicação de massa estrangeirosna América Latina. 12. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.MEZAROBBA, Glenda. Afinal, o que é uma Comissão da Verdade? Revista Direitos Humanos, Brasília,n. 5, p. 32-34, abr. 2010. Disponível em: http://www.portalmemoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/media/revistadh5.pdf. Acesso em: 21 dez. 2011.PEREIRA, Roger. A guerra das revistas semanais no segundo turno. Portal Paraná Online. Nãopaginado. Disponível em: http://www.parana-online.com.br/editoria/politica/news/484051/?noticia=A+GUERRA+DAS+REVISTAS+SEMANAIS+NO+SEGUNDO+TURNO. Acesso em: 05 dez. 2010.PIOVESAN, Flávia. A constitucionalidade do PNDH-3. Revista Direitos Humanos, Brasília, n. 5, p. 12-16,abr. 2010. Disponível em: http://www.portalmemoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/media/revistadh5.pdf. Acesso em: 21 dez. 2011.PRADO, Laís. Rocha Azevedo compra 30% da Editora Confiança. 2011. Disponível em:http://ccsp.com.br/ultimas/noticia.php?id=55519. Acesso em: 09 jan. 2012.ROLIM, Marcos. Atualidade dos Direitos Humanos. In: VIOLA, Solon Annes; RITTER, Paulo (org.).Cidadania e Qualidade de Vida. Canoas: Centro Educacional La Salle de Ensino Superior, 1998. p. 17-26.______. O jornalismo derrotado. Observatório da Imprensa. Não paginado. Disponível em:http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=572CID003. Acesso em 19 dez. 2010.SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de; BENEVIDES, Maria Victoria. O eixo educador do PNDH-3. RevistaDireitos Humanos, Brasília, n. 5, p. 22-25, abr. 2010. Disponível em: http://www.portalmemoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/media/revistadh5.pdf. Acesso em: 03 dez. 2010.THIOLLENT, Michel. Opinião Pública. In: QUEIROZ E SILVA, Roberto P. de. Temas Básicos emComunicações. São Paulo: Paulinas, 1983. p. 189-193.THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicaçãode massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. 427 p.VENTURI, Gustavo (org.). Direitos humanos: percepções da opinião pública: análises da pesquisanacional. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2010. 272 p.VERONESE, Marília V.; GUARESCHI, Pedrinho A. Hermenêutica de Profundidade na pesquisa social.Ciências Sociais Unisinos, 42(2), p. 85-93, maio/ago. 2006.VIOLA, Solon E. A. Direitos Humanos e democracia no Brasil. São Leopoldo: Unisinos, 2007. 220 p.WALLERSTEIN, Imannuel. O fim do mundo como o concebemos: ciência social para o século XXI. Riode Janeiro: Revan, 2002. 320 p.187


"O Arauto do Bem e da Verdade": o Jornal do Comércio (1964-1965) e o apoio à ditaduracivil-militar em Campo GrandeSabrina Rodrigues Marques 1Coautor: Jhonathan Cleyson Silvano ReynaldoResumo: Este artigo é um resultado parcial de uma pesquisa que toma como objeto de estudo o Jornaldo Comércio, durante os dois primeiros anos da ditadura civil-militar em Campo Grande, situado noantigo estado de Mato Grosso. Procura-se definir a postura do jornal como mecanismo político eideológico de legitimação e apoio ao governo ilegítimo instaurado pelo golpe de 31 de Março de 1964, apartir da análise de diversas notícias e fragmentos de publicações do periódico, durante o período de1964-1965. O artigo buscará evidenciar o posicionamento concreto do jornal, elucidando a sustentação àditadura civil-militar por meio de recortes de publicações, matérias, artigos e passagens de teoranticomunista.Palavras-chave: Ditadura civil-militar – Imprensa – Jornal do Comércio – Campo GrandeAbstract: This article is a partial result of a research that takes as its object of study, Jornal do Comércio,during the first two years of the civil-military dictatorship in Campo Grande, located in the former state ofMato Grosso. It seeks to define the position of the newspaper as a mechanism of political and ideologicallegitimacy and support to the ilegitimate government introduced since coup of March 31, 1964, from theanalysis of fragments of various news and periodical publications during the period 1964-1965. The paperwill seek to highlight the specific positioning of the newspaper, elucidating the support to civil-militarydictatorship through clippings of publications, materials, articles and passages of anticommunist content.Keywords: Civil-military dictatorship – Press – Jornal do Comércio – Campo GrandeA Produção Historiográfica e o Jornal do Comércio em Campo GrandeA produção historiográfica sobre o período da ditadura civil-militar de 1964-1985, em MatoGrosso do Sul, encontra-se em "processo embrionário” e restrito a pouquíssimos trabalhos acadêmicosque abordam, sob diferentes ângulos, a temática. Este trabalho é uma primeira aproximação com otema, consequência de debates na graduação, fomentados tanto pela precariedade de fontes regionaisquanto pelos silêncios que pairam sobre o tema.A partir das discussões promovidas por uma disciplina que aborda as relações civis e militares,suas identidades e arcabouço ideológico, assim como, a complexa relação com a respectiva sociedadecivil, dentre outros aspectos, propôs-se a elaboração de uma pesquisa que contemplasse a temática e aprodução local.A necessidade de compreensão dessas abordagens incentivou a busca sobre o conhecimentodo contexto da ditadura de 1964 na cidade de Campo Grande, na época Mato Grosso Uno, levando-nosa encontrar no Instituto Histórico e Geográfico do Mato Grosso do Sul (IHGMS) e no Arquivo Histórico deCampo Grande (ARCA) um jornal de circulação diária que se revelou um interessante objeto de estudo,o Jornal do Comércio, autoconsagrado, “O Arauto do Bem e da Verdade”, como destacava o seu slogan.Fundado em 1921, pelo Dr. Jaime Ferreira de Vasconcelos, Presidente da Associação daImprensa Matogrossense e da Associação Brasileira de Imprensa e membro da AcademiaMatogrossense de Letras, teve como diretor seu próprio fundador e, como Redator-Chefe, o Dr. AmintasMaciel. Deve ser destacado que o jornal se proclamava como sendo um "órgão dedicado exclusivamenteaos interêsses legítimos do comércio e das classes produtoras”.Logo, em seu primeiro número, o Jornal do Comércio traz a seguinte apresentação:[...] trabalhar sem cessar pelos legítimos interêsses do comércio e das classesprodutoras, tal é o nosso principal escopo. Sem ligações ou dependência partidárias quenos obriguem a apoiar incondicionalmente quaisquer administrações ou nos forcem a1Graduanda em História Licenciatura 3º Ano, Bolsista do Programa Institucional de Iniciação à DocênciaUniversidade Federal de Mato Grosso do Sul, Sob orientação do Prof. Dr. Jorge Christian Fernández. E-mail:jhonathan.silvano@gmail.com188


silenciar sôbre quaisquer abusos, procuramos sempre, de acôrdo com essa orientação,dar aos atos dos poderes públicos, municipal ou estadual, a colaboração franca danossa crítica desapaixonada e serena, ou do nosso apoio desinteressado e sincero [...].Sendo o único diário de toda a região Sul de Mato Grosso e o terceiro mais antigo do Estado, nospropomos a analisar este importante veículo de informação destinado aos comerciantes e aos donos dosmeios de produção, em sua atitude frente ao golpe de 1964.Legitimar o ilegítimoEm toda a produção onde o tema é a imprensa e o jornal, é necessário atentar-se ao teortendencioso e subjetivo que possui este veículo de informação, mesmo quando este tenta construir omito da objetividade jornalística, portadora da verdade e proporcionando-nos um relato "verdadeiro" eimparcial dos fatos:[...] As duas posturas são contestáveis. O jornal não é um transmissor imparcial e neutrodos acontecimentos e tampouco uma fonte desprezível porque permeada pelasubjetividade. A imprensa constitui um instrumento de manipulação de interesses eintervenção na vida social [...].A questão da subjetividade e intencionalidade do jornal está relacionada aos interesses pessoaise políticos de seu "dono" e seu caráter partidário, são "meios para organizar e difundir determinadostipos de cultura".O golpe de 1964 empenhou-se, por meio dos jornais e revistas, a legitimação do governoilegítimo, no sentido de que buscou impedir que qualquer crítica negativa fosse publicada.Os meios de comunicação sofreram os efeitos da censura estatal, já que, em quasetodos os casos concretos, uma das primeiras medidas adotadas a partir dos golpes deEstado foi a intervenção (voluntária ou compulsória) de jornais, rádios e canais detelevisão com a finalidade de influir na opinião pública, divulgar a “informação oficial” etransmitir os novos códigos e valores em vigor [...].A maioria da grande imprensa, principalmente nos dois primeiros anos, exultara o governo,contribuindo para a construção de uma imagem positiva do mesmo e seu caráter “democrático” enacional.[...] a preocupação dos governos militares, a partir de 1964, atingiu a outra face damesma moeda do setor de comunicação social: a informação veiculada aos cidadãos.Encarava-se como necessário o controle da informação a ser divulgada, para preservara imagem do regime, num exercício de ocultação que passa, inclusive, pela negação devisibilidade, ao leitor, de suas próprias condições de vida.Ao analisarmos os anos de 1964 e 1965 do Jornal do Comércio observamos a posturaexplicita de apoio ao governo de facto, o cunho legalizador presente em suas matérias euns posicionamentos concretos, empenhados em construir uma pretensa identidadedemocrática da nova ordem implantada pela força.“O Arauto do Bem e da Verdade” e o Golpe de 1964A pesquisa constatou a peculiaridade do jornal ao tratar de forma explicita e clara seuposicionamento político e ideológico contribuindo para a construção de uma imagem positiva do regime.A seguir, examinaremos a forma de como este diário sustentou este apoio, sendo assim necessáriocompreender a organização do periódico.O jornal, no ano de 1964 traz em seu cabeçalho informações editoriais como Diretor e Redator-Chefe o Pe. Félix Zavattaro e Redator-Secretário Herbert de Almeida, endereço, data, telefone, seu valorcomercial, número da edição, o slogan o "Arauto do Bem e da Verdade" sempre acompanhado dapremissa "Órgão de maior penetração em todo o Estado de Mato-Grosso". Já no ano de 1965, há umaalteração na organização do cabeçalho, permanecendo o nome, o valor, data, número da edição comuma nova frase, "De Campo Grande para Mato Grosso".A primeira página, na totalidade das edições analisadas (1964-1965), sempre contem manchetese notícias sobre o governo instituído e os desdobramentos políticos nacionais e regionais. No decorrerdas páginas são encontradas, por exemplo, a seção "Prelúdio", a qual contêm passagens bíblicas ediversas matérias de teor religioso. "Tudo entre vós faça dentro da caridade - (Primeira carta de SãoPaulo aos Coríntios, capítulo 16 versículo 14)".189


Paulo VI abençoa governo Castelo BrancoD. Armando Lombardi, núncio apostólico no Brasil, foi portador ao Marechal CasteloBranco de uma mensagem do Papa Paulo VI, contendo bênção especial ao novopresidente do Brasil, com votos de feliz govêrno, em pról da prosperidade do povo.Tanto essas passagens quanto as publicações de autoria de padres como, Pe. Félix Zavattaro(Diretor e Redator-Chefe) e Pe. Francisco Agreiter (redator de vários artigos) exemplificam a relação einfluência de setores conservadores da Igreja com o jornal, aliados ao Estado, mas esta perspectiva éfoco para outros estudos.Nas mesmas páginas onde estão localizados os "Prelúdios", frequentemente, encontram-segrandes matérias e/ ou artigos de posição anticomunistas que atacam e repudiam quaisquer ações eavanços dos “ideais comunistas”, como se depreende do artigo:Anti-ComunismoUma imensa tarefa impõe-se aos homens de boa vontade: livrar a humanidade daideologia marxista, anti-humana, materialista, anti-teista, histórica, econômica esocialmente superada. [...] uma filosofia que nega o espírito, os valores religiosos, aorigem divina da realidade e do homem [...] O marxismo será vencido por forçasintensamente espirituais e humanas e cristãs. Só homens profundamente impregnadosdos valores cristãos universais e nos quais as qualidades clássicas do homem autênticochegaram à sua maturidade, são "anti-comunistas" eficientes e válidos e legítimos.Todas as edições estão mergulhadas em inúmeros anúncios e propagandas do comércio local.Assim, nas manchetes atrativas de empresas comerciais exibiam publicidade de diversos produtos(máquinas de costura, óculos, pomadas, bicicletas, gás, etc.), A partir dessas especificidades podemosperceber, primordialmente, o financiamento do jornal pelas empresas e casas comerciais privadas.Além disso, o Jornal do Comércio, por destacar-se no antigo estado como um grande veículo deinformação, sendo o único diário de toda a região do Sul de Mato-Grosso, tornou-se importantemecanismo de expressão de opinião pública. Seu papel como imprensa não se restringiu apenas emrelatar os fatos, mas também, a opinar posicionando-se politicamente e influenciando na legitimação dogoverno.[...] Todos os jornais procuram atrair o público e conquistar seus corações e mentes. Ameta é sempre conseguir adeptos para uma causa seja ela empresarial ou política, e osartifícios utilizados para esse fim são múltiplos. Na grande imprensa, onde se mesclaminteresses políticos e de lucro os recursos para a sedução do público são indispensáveis[...].Durante a observação dos exemplares do ano de 1964 notam-se inserções no formato dequadrinhos estrategicamente posicionados entre as matérias, espalhados pelo corpo do jornal, sem umaobrigatoriedade de rotinização. Repetindo-se em várias edições, essas mensagens ideológicas, comodefinimos nomeá-las, constituem-se em propaganda do jornal, preocupado em forjar a imagemdemocrática do governo ditatorial, remetendo-se ao ideal de paz e segurança nacional. Ao atentar-se aesta construção verificamos o posicionamento político do jornal. É evidente este intuito de criação do teordemocrático e nacional do Golpe, na mensagem direta de 23 de abril 1964: "A REVOLUÇÃO não se fêzpara garantir privilégios ou para dar o poder a grupos. Ela é democrática e nacional. Procurará construiro bem coletivo, através de todos os brasileiros”. Podemos inferir da mesma página uma mensagemempenhada na cooptação dos setores civis e militares buscando a idealização de uma coletividade:"Coopere com o Govêrno na tarefa de reconstrução. Economise (sic), produza e pense nos problemascoletivos como pensa nos seus próprios problemas."Demonstramos em seguida alguns exemplos de como isso se dá nas diferentes páginas eedições:Voltaram, ao Brasil, a confiança, a esperança e a ordem. Ajudemos o Govêrno e asForças Armadas a tornar a democracia respeitada e desejada por todos os brasileiros.As reformas que serão feitas pelo atual Govêrno da República não representarão merasfórmulas demagógicas destinadas a impressionar o povo e predispor a aventuracontinuísta. Em lugar de odiar e maldizer a sociedade em que a Providência nos fezviver, tratemos de entendê-la, de servi-la, de curá-la e de amá-la.Como elemento justificador da legitimidade do golpe há, em todo o contexto do periódico,passagens e mensagens diretas contra o "avanço comunista" do governo de João Goulart e sua supostarelação com os ideais marxistas. Também observamos uma aproximação no texto do jornal entre asmatérias que relatam as atitudes do governo frente a "subversão" e as mensagens ideológicas que190


demonstram o posicionamento conservador, aliado as políticas repressivas do governo surgido do golpede 1964.Examinando a construção do texto é indiscutível esta postura do periódico, as noticias ematérias utilizam termos e palavras que remetem a proposta do Estado emanado do Golpe:descomunização, subversão, anticomunismo e expurgo.Gov. Ademar: campanha anti-comunista continuará até seu fimEm declarações prestadas ontem à imprensa paulistana, o governador Ademar deBarros afirmou que a campanha anti-comunista que se processa em todo o país, deveráter continuidade até o fim, com o expurgo total dos elementos esquerdistas, sem o qualperderá tôda a finalidade o movimento vitorioso das forças democráticas nacionais.Prisão de subversivosBrasília, 8 – Foi prêso nas primeiras horas da manhã de hoje Umberto Schettini,presidente do Sindicato dos Empregados da Construção Civil de Brasilia e um dos queconstavam da lista de dois elementos procurados pelas autoridades como responsáveispelos recentes acontecimentos. Também foi preso José Cançado.Material subversivo na GuanabaraA polícia política do Estado da Guanabara já apreendeu até esta data 15 toneladas dematerial subversivo, em vários pontos daquela capital, informa a Secretaria deSegurança. Êsse farto material ficará exposto ao público, para que o povo se aquilate dodesenvolvimento que vinha atingido no país a hidra comunista.DOPS continua expurgo em São PauloNotícias procedentes de S. Paulo, informam que na tarde de ontem foram presos peloDOPS. Luiz Firmino Lima, ex-presidente da Federação dos Texteis e o artista teatralLuiz Campos Vergueiro, conhecidos líderes comunista.Em relação às mensagens ideológicas de teor anticomunista é relevante citarmos os seguintesexemplos:Como não admite a existência de Deus nem da alma, o comunismo não reconhece adignidade do homem e nega que o direito exista. Somente reconhece a fôrça.O antídoto do comunismo é a democracia autêntica e vigilante. Um povo que conhece aliberdade não se conforma em perdê-la.Depreende-se que o jornal apoiava os atos governamentais em consonância com oanticomunismo embasado na Doutrina de Segurança Nacional que inspirava a ditadura civil-militar,abordando uma imagem negativa do movimento comunista, de tal forma que até mesmo ressalva umajustificativa à repressão ao afirmar que:[...] (o) fato da revolução recorrer a poderes excepcionais não lhe desfiguram a naturezanem os propósitos democráticos, pois excepcional é tambem a conjuntura e transitóriosaquêles poderes.Desta forma, o anticomunismo se confunde com a democracia, dentro de uma concepçãototalmente distorcida do que representava um Estado democrático de direito e do próprio conceito dedemocracia em si.Considerações FinaisO estudo parcial do Jornal do Comércio nos permite compreender a sua postura comomecanismo político e ideológico de legitimação e apoio ao governo vigente, ao passo, que nos anosanalisados, o periódico coloca-se como um agente ativo na defesa e propaganda do regime, contribuindopara a construção de uma imagem positiva e de sua pretensa roupagem democrática nacional,chancelando os atos governamentais. Para tal era necessário obter a adesão das classes populares emprol de uma “união nacional”, paradoxalmente baseada na exclusão e eliminação dos opositorespolíticos.Assim, uma suposta harmonia entre o povo e o governo deveria surgir. No entanto, mais do que umacomunhão de interesses o regime pretendia enquadrar, disciplinar e doutrinar a sociedade civil parafacilitar a aceitação de um projeto de Estado autoritário, sob a chancela do capital estrangeiro e daselites locais. Pode-se perceber que, em Campo Grande, esse modelo de Estado encontrou sustentaçãono posicionamento concreto do Jornal do Comércio, um autêntico mecanismo ideológico, o “arauto” das191


classes dominantes da região.Referencias Bibliográficas:AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa e Estado Autoritário (1968-1978). Bauru:EDUSC,1999.CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e história do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988.GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V.2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.Jornal do Comércio (1964); Arquivo Histórico de Campo Grande (ARCA).Jornal do Comércio (1965); Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul (IHGMS).MENDONÇA, Rubens de. História do Jornalismo em Mato-Grosso. [S.l.: s.n.].[195-?].PADRÓS, Enrique Serra. As ditaduras de segurança nacional: Brasil e Cone Sul / org. Enrique SerraPadrós – Porto Alegre: CORAG : Comissão do Acervo da Luta contra a Ditadura, 2006.REINHOLD, O.; RYZHENKO, F. (Orgs.). El anticomunismo moderno. Política. Ideologia. Moscú,Progreso, 1976.WASSERMAN, Claudia; GUAZZELLI, César A. B. (Orgs.). Ditaduras militares na América Latina. PortoAlegre: Editora UFRGS, 2004WASSERMAN, Cláudia. O império da segurança nacional: O golpe militar de 1964 no Brasil. In:WASSERMAN, Claudia; GUAZZELLI, César A. B. (Orgs.). Ditaduras militares na América Latina. PortoAlegre: Editora UFRGS, 2004ROUQUIÉ. Alain. El Estado militar en América Latina. Buenos Aires: Emecé, 1984.SILVA, Carla Luciana . Imprensa e Ditadura militar padrões de qualidade e construção de memória.Revista História & Luta de Classes, N 1º, 2004, p. 43-54.ARAKAKI, Suzana. Dourados: memórias e representações de 1964. Editora UEMS,2008.192


O Jornal A Razão e o discurso anticomunistaSilvania RubertResumo: Neste trabalho buscou-se, através da análise das notícias e editoriais veiculados no jornal ARazão, durante o contexto sócio-histórico estruturado da iminência da intervenção militar de 1964,visualizar, partindo da análise da metodologia para interpretação da ideologia, proposta por Jhon B.Thompson, as formas como o jornal A Razão colaborou para construir, no contexto regional, umpanorama ideológico legitimador da ruptura institucional ocorrida a nível nacional, bem como da ordemautoritária surgida a partir desta ruptura, através, também, de um forte discurso anticomunista.Palavras-chave: Jornal A Razão – ditadura militar – anticomunismo – imprensa – ideologia.Abstract: In this study we sought, through the analysis of the news and newspaper editorials broadcaston A Razão for the socio-historical context of structured imminent military intervention of 1964, viewing,analyzing the methodology for interpretation of ideology, proposed by Jhon B . Thompson, forms like thenewspaper A Razão collaborated to build, in the regional context, an overview of the ideologicallegitimating institutional rupture occurred at the national level as well as the authoritarian order arisingfrom this break through, too, a strong anticommunist discourse.Key-words: newspaper A razão - military dictatorship - anticommunist - press - ideology.IntroduçãoEste trabalho objetiva analisar o conteúdo do discurso construído pelo jornal A Razão, a partir daanálise de seus editoriais, dentro do contexto sócio-histórico estruturado da iminência do golpe militar de1964 e imediatamente posterior à ruptura institucional. Aqui se entenda o conceito de discurso naperspectiva do método de análise da ideologia proposto por Thompson (1995, p.371) como sendo“instâncias de comunicação correntemente presentes”.O diário A Razão foi fundado em 1934, na cidade de Santa Maria, localizada na região central do estadodo Rio Grande do Sul. Em poucos anos, tornou-se o maior jornal da região, graças à organização de umsólido departamento comercial e do emprego dos serviços ferroviários como meio de distribuição, quelhe permitiram conquistar mais da metade do mercado regional, suplantando a concorrência 1 . Em 1941,Assis Chateaubriand comprou o jornal A Razão e o submeteu a diversas reformas gráficas.A presente análise tem como embasamento teórico a metodologia da interpretação, referencialque evidencia o fato de que o objeto de análise é uma construção simbólica significativa, que exige umainterpretação, no caso o jornal A Razão. Esse referencial metodológico foi proposto por Jhon B.Thompson, em sua célebre obra Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios decomunicação de massa, mais especificamente, a teoria da hermenêutica de profundidade usada para aanálise da ideologia.Thompson enquadra a interpretação da ideologia como uma forma específica de hermenêuticade profundidade. Para o autor, interpretar a ideologia é explicitar a conexão entre o sentido mobilizadopelas formas simbólicas e as relações de dominação que este sentido ajuda a estabelecer e sustentar.Estudar a ideologia exige a indagação acerca de se o sentido construído e usado pelas formassimbólicas serve, ou não, para manter relações de poder sistematicamente assimétricas, sendo que,após reformular o conceito de ideologia, Thompson (1995, p.79) o definiu como:as maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecere sustentar relações de dominação: estabelecer, querendo significar que o sentido podecriar ativamente e instituir relações de dominação; sustentar querendo significar que osentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação através de umcontínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas.Por “formas simbólicas”, Thompson (1995, p.79) entende “um amplo espectro de ações e falas,imagens e textos, que são produzidos por sujeitos e reconhecidos por eles e outros como constructos1A respeito do estudo dos antigos jornais do Rio grande do Sul, ver: RUDIGER, Francisco. Tendências dojornalismo. Porto Alegre: EDIUFRGS, 1993.193


significativos”.Os modos de operação da ideologia propostos por Thompson, bem como as estratégias deconstruções simbólicas serão os pontos norteadores da estruturação da análise, tendo em vista quedeles advém a tônica e as especificidades do discurso construído, a fim de que, a partir destes dados, sepossa identificar as formas como o sentido estaria sendo mobilizado para estabelecer ou justificarrelações de dominação. Ao longo do trabalho será utilizado, principalmente, a legitimação, onde“relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas, pelo fato de serem apresentadas comolegítimas, isto é, justas e dignas de apoio”, cujas construções simbólicas vislumbram-se a partir daestratégia da racionalização, onde “o produtor de uma forma simbólica constrói uma cadeia de raciocínioque procura defender, ou justificar, um conjunto de relações, ou instituições sociais, e com isso persuadiruma audiência de que isso é digno de apoio”; e da universalização, onde “interesses de algunsindivíduos são apresentados como servindo aos interesses de todos” 2 .Outra categoria de análise utilizada será a dissimulação, onde “o ocultamento, negação ouobscurecimento de relações de dominação, são apresentadas de uma maneira que desvia nossaatenção, ou passa por cima de relações e processos existentes”; como modo geral de operação daideologia e como estratégia de construção simbólica o deslocamento – que se visualiza quando “umtermo usado para se referir a um determinado objeto ou pessoa é usado para se referir a um outro, ecom isso conotações positivas ou negativas do termo são transferidas para o outro”, e a eufemização –“ações, instituições ou relações sociais são descritas ou redescritas de modo a despertar uma valoraçãopositiva”, como estratégias de construção simbólica.A estratégia da unificação também foi utilizada e pode ser identificada onde “relações dedominação podem ser estabelecidas e sustentadas através da construção, no nível simbólico, de umaforma de unidade que interliga os indivíduos numa identidade coletiva”.A última categoria foi a fragmentação, que é divulgada a partir da estratégia de expurgo do outro– “construção de um inimigo, seja ele interno ou externo, que é retratado como mau e perigoso, contra oqual os indivíduos são chamados a resistir coletivamente ou a expurgá-lo”.Dentro do jornal, optou-se por trabalhar, prioritariamente, com os editoriais, todavia, tambémserão utilizadas manchetes, crônicas e reportagens distribuídas na capa e na contra capa do jornal, ondesituavam-se as matérias de ordem política.1. Contexto local: Santa MariaDurante as décadas de 1950 e 1960, a política municipalista santamariense baseava-se muitonos programas políticos e ideológicos de cada partido em nível nacional. Na década de 1950, SantaMaria era uma cidade de pequeno porte. Não tinha uma forte produção industrial devido à falta deinfraestrutura, com uma precária prestação dos serviços ferroviários, que já estavam em largadecadência. Nesta década, a influência da União Democrática Nacionalista era fraca e existia uma fortealiança da oficialidade militar com o Partido Trabalhista Brasileiro 3 , em nível local.Em janeiro de 1964, o então prefeito Paulo Devanier Lauda, seu vice Adelmo Simas Genro, edemais vereadores eleitos no pleito de 1963, tomaram posse. No dia da ruptura institucional, o prefeitoestava afastado do cargo, sob licença pessoal, só retornando ao comando do município em 14 de abril.O prefeito em exercício era o vice. Este fato se repetiria diversas vezes ao longo dos meses em queestiveram na prefeitura.Logo começaram a surgir as notícias de alterações nas estruturas políticas e sociais em nívellocal. A exemplo, a nomeação de interventores para a Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea,para a Coordenadoria Regional dos Correios e Telégrafos, para o Serviço de Repressão aoContrabando, para a União Santamariense dos Estudantes e para a Inspetoria Seccional do Ensino.Para a ocupação destes cargos, foram designados superiores do Exército tanto da ativa, como dareserva.Em 10 de maio sai o primeiro de vários relatórios realizados pelos interventores recém-nomeados:Relatório da intervenção federal na Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea:Através dos desmandos praticados pela administração oposta, quer pela irregular ecriminosa condução dos negócios sociais, quer pelo livre e ostensivo trabalhosubversivo, contra a ordem constituída e de um agressivo processo de comunização,inspirado e dirigido pelos próprios administradores, a cooperativa tornou-se uma dasmaiores células subversivas, da cidade, onde comunistas e inocentes úteis se23Os modos gerais de operação da ideologia, bem como suas respectivas estratégias de construção simbólica seencontram em Thompson, 1995, p. 82-88.Sobre a política local na década de 1960, ver a monografia: FAVARIN, Magale. A política em Santa Mariadurante o segundo governo de Vargas- 1951-54, defendida no curso de Especialização em História do Brasilda Universidade Federal de Santa Maria, em março de 1999.194


irmanavam, para transformar a meritória instituição, em foco de alta periculosidade.Em 17 de abril, os representantes dos setores vitoriosos em 31 de março organizaram a “Marchado agradecimento”, manifestação de homenagem à ação das Forças Armadas. Este ato movimentou acidade, inclusive com a decretação de ponto facultativo nos órgãos públicos.No início do mês de maio, a Divisão de Infantaria revelou os nomes das primeiras pessoasdetidas. Nesta, o prefeito e o vice ainda seriam poupados. Em 8 de maio de 1964, o A Razão anunciaque Lauda e Genro sairiam da prefeitura e a Câmara de Vereadores elegeria - de forma indireta- opróximo prefeito. O presidente da Câmara –Waldir Aita Mozzaquatro - assumiu interinamente aprefeitura, escolhendo seus novos secretários e nomeando os novos subprefeitos. Enquanto isso, oreitor da Universidade de Santa Maria viajava seguidas vezes para os Estados Unidos, a fim de angariarverbas para o ano de 1965.Em 15 de maio, a Câmara de vereadores de Santa Maria elegeu para prefeito Miguel Meirelles,médico, 62 anos, que representava a seguinte coligação: PSD, PDC, PL e MTR. Para vice, FranciscoAlvares Pereira.Em 10 de setembro, o diário informa que teria sido decretada a prisão de Adelmo Genro, PauloLauda e outros, inclusos na lei de Segurança Nacional, e continuavam sob auditoria os outros inquéritosrealizados no setor estudantil, inclusive com uma lista com nomes como João Gilberto Lucas Coelho eRenan Kurtz. Os professores da rede estadual de ensino também não escaparam dos inquéritos e daspunições. Muitos foram aposentados e outros simplesmente afastados do exercício do magistério.Em outubro o A Razão notícia: “Expurgo de professor da USM” 4 — Paulo Lauda, acusado deorganizador do Grupo dos Onze e Eduardo Martins de Oliveira Rolim, acusado de atos contrários aoregime democrático (ambos da Faculdade de Medicina) foram demitidos de seus cargos. Além de perdero cargo de prefeito, Paulo Lauda também teve que deixar de ser professor. O mesmo aconteceu comseu vice, Adelmo genro, que era professor da rede pública estadual e foi demitido pelo regime militar. Nodia 10 do mesmo mês, saiu a lista com os nomes dos servidores que teriam aposentadoria forçada eoutros que foram absolvidos, num total de 150 processos apreciados pela comissão Especial deInvestigações instituída pelo governo do estado.O primeiro aniversário da Revolução foi comemorado festivamente na cidade, através de umagrande parada cívico-militar, que teria tomado conta das ruas centrais, e da aprovação pela Câmara localde congratulações pelo primeiro aniversário da Revolução.2. A comunização e a cubanização-sovietização – a construção do comunismo como “inimigointerno”Em editorial de 1964, o jornal A Razão classifica o comunismo como um “regime despótico,inumano, anticristão” 5 .A fragmentação, onde relações de dominação podem ser mantidas, não unificando, massegmentando indivíduos ou grupos que possam ser capazes de se transformar num desafio real aosgrupos dominantes, dirigindo forças de oposição potencial a estes, é o modo de operação da ideologiaque se destaca, quando analisada a sustentação, por parte do jornal, da suposta comunização,cubanização ou sovietização dos rumos políticos brasileiros. O ícone representativo desse modusoperandis da ideologia pode ser vislumbrado na criação de um inimigo interno ou externo: o comunismodentro do país e o comunismo internacional – ambos sendo retratados como maus e perigosos, contraos quais os “verdadeiros brasileiros” são chamados a lutar. No caso do Brasil, pode-se analisar apresença destes dois inimigos, que foram criados e, constantemente, alimentados pela difusão simbólicado discurso construído pelo jornal A Razão.Essa construção simbólica que Thompson, em sua hermenêutica de profundidade parainterpretação da ideologia, classifica como expurgo do outro, aparece estampada claramente naspáginas do jornal A Razão. Salientando-se que, a racionalização como uma estratégia de construçãosimbólica, está presente ao longo de todo o material analisado. Cabe aqui esclarecer, também, que ostermos bolchevização, cubanização e sovietização, utilizados ao longo do discurso, inserem-se dentro domodo de operação da ideologia da dissimulação, com ênfase no deslocamento 6 , onde termos de umcontexto são transportados para outro.Em editorial, o jornal critica a posição de apoio a Cuba, sustentada pelo chanceler Araújo deCastro, em declarações prestadas à imprensa em Brasília:Disse que não mudou o pensamento do Brasil em relação a Cuba e que, na próxima45609/10/1964, Agência Meridional, Rio de Janeiro, capa.04/01/1964, “O muro e a brecha”, editorial.Op. Cit., p.83.195


eunião do Conselho de Segurança da OEA, a nossa posição será contrária a qualquermedida punitiva contra a ditadura castrista [...]. Fidel Castro reiterou, no aniversário darevolução, que nada afastará Cuba, dos princípios do marxismo-leninismo. Só istobastaria para que o Brasil se desinteressasse pela sorte de Cuba, por fidelidade aosprincípios cristãos e democráticos que estão arraigados na consciência da esmagadoramaioria do seu povo. 7Embasando-se no pressuposto de que, as ditaduras comunistas se configuram como estadostotalitários, cujas respectivas populações viveriam privadas de liberdades individuais, o jornal constrói aideia – oposta – de mundo livre, do qual fariam parte os países capitalistas e onde a liberdade e odesenvolvimento, supostamente, alimentam-se mutuamente. Neste, ponto racionalização e expurgo dooutro aparecem como possibilidades de análise e fortalecem-se na construção do discurso ideológicolegitimador.A economia no mundo livre registrou, em 1963, uma notável expansão, a contrastar comas aperturas em que se viram e veem os Estados totalitários, melhor dizendo, os paísesdo bloco comunista. À parte algumas nações da América Latina, os demais Estadosdemocráticos tiveram um ano propício, com execuções orçamentárias regularmenteprocedidas e ingressos apreciáveis, suficientes para o correto atendimento doscompromissos e do custeio da máquina administrativa. 8Racionalização e expurgo do outro, novamente, se complementam, no intuito de racionalizarpara legitimar, expurgar para fragmentar, visando, em última instância, a legitimação da ruptura políticoeconômicaque o Brasil viveria no ano de 1964. Ao mesmo tempo em que o discurso construído pelojornal A Razão apresenta uma imagem unificada do ocidente, e de um suposto mundo livre, o inimigoseria representado pelo comunismo totalitário. E segue:Na área que tem como centro político e econômico a União Soviética, as coisascorreram pessimamente, a tal ponto, que os chefes vermelhos, pondo o orgulho de lado,confessaram de público o malogro de seus milaborantes planos e dirigiram patéticosapelos ao detestado “mundo capitalista”, pois sem o pão desse mundo passariam ajejuar.Seria o mundo capitalista ocidental, em imagem unificadora, que estaria “matando a fome” domundo comunista oriental. Elaborar uma imagem negativa -e unificada- dos países que aderiram àideologia comunista, bem como das pessoas que a professam, mesmo em países democráticas ecapitalistas, fazia parte do processo de criação e alimentação do “monstro” do comunismo, através dadifusão da simbolização do diferente como perigoso e, portanto, como um inimigo comum ao, tambémunificado através do discurso, “mundo livre”.Pode-se interpretar, no mesmo sentido:Os devaneios continuístas e ditatoriais que tumultuam o cenário político nacionalgeralmente sob inspiração extracontinental, certamente estão verificando que seuprograma de subversão da ordem pública é impraticável: a consciência democráticabrasileira vem demonstrando capacidade magnífica para reagir às ações destinadas adestruir o regime de liberdades individuais vigentes no País. [...] É preciso lembrar,também, que a liberdade – que os comunistas reclamam para pregar a dissolução dademocracia – não existe na sua pátria intelectual, a União Soviética. 9Segundo a cadeia de racionalização proposta pelo diário A Razão, ao longo do períodopesquisado, pode-se analisar que, os termos ditadura, comunismo e falta de liberdade estão geralmenteatrelados, ressaltando a ideia recorrente de que um golpe comunista desferido pelo presidente daRepública João Goulart e seus assessores privaria os brasileiros de suas liberdades individuais.Nessa perspectiva, a possibilidade da decretação de um golpe seria atribuída apenas ao governo e seus“assessores comunistas”. Se a intervenção viesse por parte das Forças Armadas não poderia serclassificada como golpe, pois segundo o jornal, seria uma “intervenção defensiva”.Sob o título “Ninho de ratos vermelhos” o editorial de 29 de janeiro de 1964 trata da “infiltraçãocomunista” na Petrobrás, fato este que teria trazido consequências prejudiciais ao país, já que muitodinheiro, segundo o jornal, teria sido roubado dos cofres públicos pelos comunistas, instalados nesteórgão federal:78909/01/1964, “Apoio à OEA”, editorial.15/01/1964, “Prosperidade no mundo livre”, editorial.25/03/1964, “Devaneios”, editorial.196


O período em que esteve entregue ao sr. Francisco Mangabeira marcou o início daanarquia na Petrobrás, caracterizada pelo predomínio dos grupos comunistas que ali seinstalaram, com o propósito indisfarçável de bater moeda fácil e abundante. [...] Milhõese milhões de cruzeiros são despendidos para benefício gáudio dos comunistas queestão aboletados em cargos de comando, sob o amparo dos sindicatos. [...] Ninguémignora que as autarquias e os organismos paraestatais constituem, hoje, os maisdescalibrados centros de corrupção da história administrativa do Brasil. A maioria dessasentidades está sendo dirigida por espertalhões tirados das fileiras do PTB, com aaprovação do Partido Comunista que, segundo se afirma leva para os seus cofres umaparte considerável da roubalheira praticada. Podem roubar, contanto que deem umapercentagem do roubo à caixinha vermelha.Note-se que a fonte da informação foi velada, pois o trecho “segundo se afirma” não possibilitaao leitor vislumbrar quem estava afirmando a respeito dessa “roubalheira” na Petrobrás. Esse recurso deomissão do sujeito torna-se possível quando os verbos são colocados na voz passiva, e representa umaestratégia de construção simbólica, pertencente ao modo geral de operação da ideologia classificado porThompson como reificação. “Os acontecimentos são apresentados sem um sujeito responsável pelofato”. 10 Pode-se inferir que o resultado desta construção simbólica seria a descontextualização do fatonoticiado.Ao associar a tática de Hitler à mesma utilizada por Fidel Castro em Cuba, constrói-se umaracionalização que objetiva construir uma imagem negativa do comunismo, bem como dos países que orepresentavam.É, como se vê, uma ameaça igual as que têm por objetivo sustentar, em Havana, odetestado traidor de Sierra Maestra, igual também as que Adolf Hitler proferia aos berrospara preparar os seus crimes, os seus latrocínios políticos, conseguindo com essasameaças manter a distância os que eram jurídica e moralmente obrigados a opor-se ásua prepotência. 11Os trechos que seguem procuram desqualificar a teoria comunista desenvolvida no Brasil, cujabase vem do continente europeu:Mas, limitadamente aberto ou inteiramente fechado, o “Muro da Vergonha”, com a suaruptura, foi significativamente condenado pelos autores. Pode impedir que osinconformados com a sua condição de prisioneiros do detestado regime fujam dastrevas para a plena luz”. 12A parte do globo que aderiu ao comunismo representava as trevas, que obscurecem o mundotodo. Já a parte capitalista seria a luz, que poderia nortear os rumos com clareza e sem obscuridade. Ametáfora criada explicita bem a cadeia de raciocínio defendida constantemente nas páginas do A Razão- onde o capitalismo seria a melhor ou única saída viável para as nações, já que somente dentro desseregime o desenvolvimento poderia ser alavancado de forma plena.O comício realizado dia 13 de março de 1964, na Guanabara, foi configurado e desconfiguradopelo jornal, sob vários aspectos. O que permanece constante nos comentários é a associação direta aocomunismo como mentor intelectual, e do governo brasileiro – João Goulart – como o patrocinador oficialdo acontecimento que alcançou imensurável projeção no contexto da época e que teria sido classificadocomo o estopim da deflagração do golpe.No comício da Praça Cristiano Otoni falou-se mais ou menos em português, mas osubconsciente foi russo, um russo superado porque a própria União Soviética, farta detantos malogros causados pela estatização, ensaia a volta aos métodos que fazem agrandeza dos povos livres, os povos que fornecem o pão que os próprios comunistascomem. 13Novamente, a racionalização defende que seriam os países capitalistas que alimentariam omundo socialista, enaltecendo a “função social” do ocidente e o “atraso social” do oriente comunista.10111213Op. Cit., p.81.25/01/1964, “O inimigo comanda a fortaleza”, editorial.04/01/1964, “O muro e a brecha”, editorial.19/03/1964, “um carnaval na quaresma”, editorial.197


3. Desenvolvimento da mentalidade de revoltaEm diversos momentos, em maior ou menor grau, o jornal lançava questões pertinentes aodesfecho que o contexto em estudo viria a ter. O discurso construído pelo jornal A Razão, objetivavacontribuir para a legitimação da ruptura institucional. Paulatinamente, trabalharia com temas e incutiriaconceitos que, posteriormente, seriam utilizados pelo regime militar, a exemplo ditadura e intervençãodas Forças Armadas. Esses conceitos são construídos sob a égide da racionalização visando àlegitimação, do expurgo do outro visando à fragmentação, da simbolização da unidade visando àunificação. Desta forma, estas simbologias constituem e corporificam o discurso ideológico legitimadordo jornal A Razão.Estamos vivendo momentos de indisfarçável gravidade. A sensação do perigo está emtodos os espíritos. E o fato de as forças democráticas se virem na contingência de sairàs ruas para defender o nosso regime de liberdades individuais é uma amostra de que,continuasse a omissão, os totalitários já teriam sepultado a democracia brasileira.Felizmente esta possui vitalidade suficiente para sobreviver mesmo aos maioresembates. 14O jornal expõe a sua linguagem de maneira clara e direta. As palavras são articuladas de formaa gerar um sentimento de revolta no leitor. O próximo passo seria transformar essa revolta emarticulação para a luta contra a causa maior dos problemas brasileiros, como fica claramente visível notrecho a seguir:Precisamos, isso sim, desenvolver o quanto antes a mentalidade de guerra, preconizadapelo Deputado João Calmon. Guerra à baderna, guerra sem tréguas aos conspiradoresdo “paredón”, aos torvos autores da “revolução com data marcada”, denunciada pelogovernador Ildo Meneghetti. Mas, sobretudo, guerra implacável ao arqui-inimigo à vista:a inflação. Essa deve ser a palavra de ordem, a flama nacional para 1964. 15Deste modo, lutar contra a inflação, que seria a causadora de tantos males à economia do país,significaria lutar contra os maus governantes, que não teriam conseguido deter seus avanços. Ao sedeclarar “guerra à inflação”, também se declararia guerra ao governo de Jango. Essa mentalidade derevolta foi divulgada, insistentemente, pelo jornal A Razão no período em estudo.O ano de 1964 deve, assim ser para o Brasil o ano da luta sem quartel contra a inflação,em defesa do desenvolvimento econômico, da paz social e da sobrevivência do regime.[...] Há uma questão por demais séria para as atuais gerações – os destinos da Nação –que não tolera transigências nem acomodações com o mal inflacionário. Devemosrepelir os engodos da demagogia e os passes de mágica dos falsos líderes dopassionalismo caboclo. 16Ao evocar a “sobrevivência” do regime, o jornal tenta mobilizar, ideologicamente, a população etambém as Forças Armadas, incitando os “democratas” e defensores dos “verdadeiros interesses daNação”, a lutar contra a infiltração do inimigo. Mas, mesmo assim, “ninguém de bom senso pensa emarrebatar o poder das mãos do presidente da República, embora todos vejam e saibam que o estáexercendo em detrimento dos mais sagrados interesses do Brasil”. 17Ao se intitular porta-voz das Forças Armadas, o jornal emitiu, em tom de comunicado, como ossetores das três armas estariam se articulando diante do contexto de turbulências políticas. Cita-se acrônica de Oscar de Andrade, intitulada “A consciência militar”, onde pode-se analisar, com maiorclareza, qual seria a possível posição tomada:Podemos afirmar a todos os brasileiros que existe uma consciência firmada dentro dosquartéis, de absoluta respeito à lei. Comandantes e comandados comungam com omesmo pensamento de acatar a autoridade constituída, mas nunca estar a serviço dequem quer que seja para ferir à Carta Magna. Consideramos isso o amadurecimento deconsciências que não se deixam empolgar por paixões. O soldado de hoje é umesclarecido, Não pode nem deve cumprir ordens contrárias à sua missão, tão bemdefinida nos regulamentos e no próprio compromisso que assumiu quando ingressounas classes armadas. 181415161718“O inimigo comanda a fortaleza”, editorial.03/03/1964, “A flama para 1964”, editorial.03/01/1964, “A flama de 1964”, editorial.24/01/1964, “Petulância vermelha”, editorial.23/01/1964, “A consciência militar”, Oscar de Andrade, crônica, contracapa.198


Exaltando o dever sagrado das Forças Armadas de salvaguardar a unidade nacional, a crônicaesclarece que isso não fará das três armas fantoches nas mãos de propósitos contrários ao bem do país.Ou seja, mesmo respeitando o presidente da República como chefe supremo da nação, se este vier acometer atos ilícitos que representassem desrespeito à Constituição, seria impedido, pois acima dasvontades do presidente estaria o bem maior da nação, identificado através da manutenção da unidadenacional. A sociedade civil começaria a se organizar, criando movimentos de revide às manobrasgovernamentais. Desses movimentos emanariam manifestações diversas, como por exemplo, a Marchada Família realizada em São Paulo.A democracia vale a luta, o sacrifício e esforço que cada homem ou mulher fizer parapreservá-la. Todos devem prezar a liberdade pois só os que têm vocação para a fraudea menosprezam. Juntemos as mãos sem ódio, mas sem covardia para que a nossapátria continue livre. O objetivo do movimento não é o combate histérico ao comunismo,[...] pois as reformas são necessárias também para o bem-estar do povo brasileiro. Oque será apregoado são as reformas dentro da justiça social e através do clima deliberdade e da democracia. 19Mais e mais acusações são expostas nas páginas do jornal A Razão, no intuito de não deixardúvidas na população de que governo brasileiro estaria cada vez mais perto do desfecho deste períodode dúvidas e “trevas”. A ruptura institucional estaria próxima.Considerações finaisA análise do jornal A Razão baseou-se na busca das construções simbólicas e de seus possíveissignificados, dentro da estruturação do discurso, sendo que entendemos o discurso como uma forma decomunicação, que, por sua vez, objetiva divulgar uma ideia que pode representar os interesses do órgãocomunicador e/ou de quem o representa.Como afirmou Motter (1990, p.58): “o poder lhe confere a palavra e a palavra lhe assegura opoder”. Nesse sentido, a manipulação das informações se transforma em manipulação da realidade, hajavista a dimensão alcançada pelos veículos de comunicação principalmente a partir do século passado. Ojornal também participa do fazer da História, podendo frear ou estimular movimentos sociais. Naatualidade, os veículos de comunicação se apresentam como sujeitos constituídos, pois possuem umstatus, um nicho e uma atuação que já se incorporou à vida moderna. Um jornal não existe deslocado deum contexto histórico-ideológico. A História nos traz diversos exemplos de momentos em que jornais erevistas atuaram como agentes ativos, formadores de opiniões, padrões culturais, políticos e sociais.O jornal, utilizando-se de sua função de comunicador, tendo como espaço de visibilidade asociedade interiorana do Rio grande do Sul, particularmente Santa Maria, empreendeu a criação dediversas formas expositivas da legitimação pretendida. Essas formas, analisadas á luz da metodologiade interpretação de Jhon Thompson, nos permitiram concluir que, o jornal A Razão contribuiu,ideologicamente, para legitimar a ruptura institucional de 1964 e referendar o Estado militar que veio aseguir.Não existe uma rigidez na estrutura dos discursos. A conduta é definida pela circunstância.Assim, os meios de comunicação de massa tornaram-se mais eficientes não na criação de novos valoresou padrões de comportamento, mas no reforço dos existentes e aceitos na sociedade. O conteúdodessas mensagens buscou, sobretudo, não impossibilitar ao indivíduo a auto-compreensão de seu papelenquanto sujeito histórico, mas sim, construir uma dada versão do contexto em questão, a fim de que apartir deste, pudesse delinear quais seriam as aspirações deste sujeitos.O jornal A Razão classificou os fatos de 31 de março como uma Revolução cívica, contrariando oconceito de ditadura militar. O estudo da ideologia, empreendido neste trabalho, exige que perguntemosse o sentido construído e usado pelas formas simbólicas serve ou não para manter relações de podersistematicamente assimétricas. No caso do jornal A Razão, o sentido mobilizado pelo discurso contribuiupara legitimar, no campo ideológico, a Revolução cívica e a nova ordem organizacional do país surgida apartir desta.Referências Bibliográficas:ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,1931/01/1964, “Rede da Democracia – Sobrevivência do regime exige de todos a vigilância e o sacrifício”, AgênciaMeridional, Rio de Janeiro, crônica, contracapa.199


2003.ALVES, Maria Helena. Estado e oposição no Brasil (1964-1987). Petrópolis: Vozes, 1984.BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1995.BEBER, Cirilo Costa. Santa Maria 200 anos – História da economia do município. Santa Maria: Pallotti,1998.CAPELATO, Maria Helena. A imprensa e história do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1998.FILHO, José M. da Rocha. Universidade para o desenvolvimento. 1973.GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. São Paulo: Ática, 1999.LABIN, Suzanne. Em Cima da Hora – A Conquista Sem Guerra. Rio de Janeiro: Record, 1963.MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984.MOTTER, Maria Lourdes. História e imprensa. In: Revista Comunicação e Artes, Ano 15, n.24, set/dez,1990.RUDIGER, Francisco. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993.TAVARES, José Antônio Giusti. A estrutura do autoritarismo brasileiro. Porto Alegre: Mercado Aberto,1982.THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicaçãode massa. Petrópolis: Vozes, 1995.__________. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.Jornal utilizado: Jornal A Razão – de 1/1/1964 a 30/4/1965.200


V – Recursos discursivos e discussão conceitualacerca da Ditadura


O discurso da Ditadura na obra de Elio GaspariCarla Luciana Silva *Resumo: O texto trata da concepção de Ditadura presente na obra de Elio Gaspari, especialmente ADitadura Escancarada. Busca mostrar a forma como os movimentos de resistência à ditadura sãomostrados, de forma desqualificadora. Mostra como o uso de determinados recursos discursivospermitem a construção de sentido não apenas para o projeto da ditadura como para o projeto dosresistentes, sempre vistos como “terroristas”.Neste texto busco apontar elementos sobre as relações da grande imprensa brasileira com aDitadura brasileira, tanto as empresas de comunicação, como os jornalistas. Nesse sentido vem sendodesenvolvidas pesquisas sobre a revista Veja, a revista Visão, a revista Isto É e o jornal Folha de SãoPaulo. A partir do referencial gramsciano, buscamos perceber a imprensa na sua complexidade: umaempresa capitalista; um agente concreto do processo político, podendo ser um aparelho privado dehegemonia ou mesmo tendo atuação como partido. Cada caso em estudo é diverso e precisa serestudado nas suas especificidades.Recentemente publicamos uma leitura sobre o jornalista Alexandre Garcia, mostrando suasvinculações com a Ditadura e também seu apoio incondicional à mesma, mesmo depois do seu fim. 1Contribui o jornalista para a afirmação no senso comum da idéia de que a Ditadura brasileira foi “branda”,ou seja, coadunando com a defesa da “ditabranda”, termo usado em 2009 pelo jornal Folha de SãoPaulo, conceito que estamos buscando definir à luz do seu uso histórico.O objeto desse texto específico é o trabalho do jornalista Elio Gaspari, mais propriamente sua obraA Ditadura Escancarada. 2 Na leitura busco a forma como a Ditadura é interpretada, e mais propriamente,a forma como a luta armada é tratada.Algumas questões servem de guia na problematização do livro. Em primeiro lugar, a visão queGaspari está buscando consolidar sobre o que foi a ditadura, mais propriamente sua tese de que aditadura foi uma grande “anarquia”. Em segundo lugar, o seu papel ideológico, e a forma específica comque faz uso do discurso, dando sentido às expressões próprias da ditadura, mas não apenas, também àsexpressões e significados da própria esquerda, a partir de seu próprio (de Gaspari) referente. Por fim, opróprio sentido das ações da luta armada e da possibilidade concreta de reação à ditadura e de umprojeto revolucionário no Brasil. Transcende-se portanto à luta armada, pensando as formas distintas deresistência.Sobre a obra de Elio GaspariNão é necessário atestar a importância do texto de Gaspari, porque mesmo aqueles que nãogostam dele se vêem obrigados a ler e discuti-lo. Tem se tornado uma referência na historiografia quetem aceitado esse tipo de texto de forma acrítica, em nome de um “texto bem escrito”, fácil de ler. Éinteressante que o texto de Gaspari é uma metanarrativa, busca interpretar ao seu modo a históriarecente do Brasil. Mas ele é recuperado na onda editorial que o coloca como um texto “leve”, sem amarca explicativa dos historiadores preocupados com a totalidade.É necessário lembrar que Elio Gaspari escreve dentro de um contexto, e esteve desde sempreenvolvido com o próprio regime militar por escolha própria. Jornalista da editora Abril, optou por tornar-seamigo de suas fontes, ganhar delas confiança e nelas confiar. Assim conseguiu chegar em ErnestoGeisel e em Golbery do Couto e Silva, as grandes fontes inspiradoras de sua obra. Há aqui doisproblemas, um deles é a relação que um profissional de imprensa estabelece com as fontes e com arealidade política, os possíveis favorecimentos que podem daí advir para si e para sua empresa. O outroé o fato de que os documentos históricos aos quais teve acesso no seu trabalho foram privilégiosrecebidos diretamente dos seus produtores. Fontes históricas, sobre a história política e pública queforam transformadas em material de uso particular. Mesmo que os livros tenham sido publicadosefetivamente nos anos 2000, seria equívoco achar que não foi fruto da relação do autor com as fontes*12Docente do Curso de História e do Programa de Pós Graduação em História da UNIOESTE.SILVA, Carla. Imprensa e ditadura: a trajetória intelectual de Alexandre Garcia. Antíteses. Goiania. N. 10, 2011,Issn 1808-9194, p. 106-124.GASPARI, Elio. A Ditadura escancarada. As ilusões armadas. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.203


ainda durante a ditadura, “uma amizade de quase trinta anos”. 3Por fim cabe dizer que, de fato, sua obra é relevante, é necessário estudá-la, seja pelasinterpretações que propõe, pelos documentos que traz ou ainda pelo fato de que está se tornandoreferência historiográfica e para o ensino de história, mesmo que o autor tenha alertado que sua intençãonão era escrever uma história geral da ditadura:Em nenhum momento passou pela minha cabeça escrever uma história da ditadura. Faltaao trabalho a abrangência que o assunto exige, e há nele uma preponderância de doispersonagens (Geisel e Golbery) que não corresponde ao peso histórico que tiveram nos21 anos de regime militar. O que eu queria contar era a história do estratagema quemarcou suas vidas. Fizeram a ditadura e acabaram com ela. 4Ora, aqui uma incoerência. Se não tiveram tal preponderância, porque são a inspiração e o guia deleitura, pelo menos dos dois primeiros volumes de sua obra? Há aqui também uma questão relevante,que nos mostra a tese que Gaspari desenvolve ao longo de todos os seus quatro livros: a de que aditadura terminou por obra e dedicação dos próprios ditadores, chegando a afirmar que Geisel “acaboucom a ditadura”, 5 o que é um absurdo insustentável, mas parte da lógica de que ele teria amenizado aditadura acabando com o AI-5, e que “acabara com a censura à imprensa e com a tortura de presospolíticos, pilares do regime desde 1968”. 6 Essa fala em primeiro lugar faz de conta que a Ditadura nãocomeçara em 1964, e desconsidera o fato do Pacote de Abril ter decretado recesso no Congresso ealterado significativamente as regras da sucessão presidencial, mantendo a ditadura por ainda maistempo. 7 E sem falar ainda da permanência da Lei de Segurança Nacional que mantinha os poderes daDitadura através da Doutrina de Segurança Nacional, questão que é também questionada por ElioGaspari. 8 O que se dirá do fato de que a tortura teria “acabado” durante o período Geisel, sendo que opróprio general admitia a tortura?O que foi a ditaduraA forma que Gaspari qualifica a ditadura tem a ver com a forma que constrói uma interpretaçãopara o seu fim. Mas há um detalhe tangenciado pelo autor, que é a existência de projetos sociais contrahegemônicosdistintos, tanto no início da ditadura como no seu final. Há uma sistemática insistência emdesqualificar o que foi o governo de João Goulart e os projetos sociais ali colocados, 9 ao mesmo tempoem que posteriormente se desqualifica o conteúdo das lutas sociais pelo fim da ditadura.O argumento de que “Jango era um fraco” e que seu governo era uma completa desordem apreceem Gaspari, o que já discutimos em outro momento. Mesmo assim, costura-se um argumento de quehavia uma revolução em curso e que portanto o golpe foi um “contra-golpe”, justificando a ditadura. Mas,depois, quando vai explicar a luta armada, será insistente em dizer que a contestação à ditadura erainexistente e que aqueles que lutaram não tinham qualquer projeto válido, que colocar a pauta darevolução no debate era uma esquizofrenia “esquerdista”. Quando, no processo social que levou ao fimda ditadura se recoloca o problema da revolução, o debate “socialismo ou democracia”, esse debateserá apagado por obras como a de Gaspari. Ou seja, o que se está construindo é uma versão falsa quenega que tenha havido pensamento revolucionário no Brasil pré-64; desqualifica e mostra oaniquilamento que as forças de repressão impuseram aos que lutaram contra a ditadura; ignora que aslutas sociais dos anos 1980 colocavam na pauta uma alternativa socialista. É a negação da luta declasses e apassivação dos conflitos reais. Segundo Gaspari,A Doutrina de Segurança Nacional serviu também de conduto para racionalizar tudo oque aconteceu de ruim na ditadura. Quando essa mesma ditadura começou a se retrair,jogou-se fora a demonologia militar e entronizou-se a beatificação das massas. Cadarecuo do regime foi entendido como consequências de uma pressão de forças libertáriasda sociedade. A fé em que ‘o povo unido jamais será vencido’ é insuficiente para explicar3GASPARI, Elio. A Ditadura envergonhada. As ilusões armadas. São Paulo, Companhia das Letras, 2002. p. 15.4Idem, p. 20.5Idem, p. 35.6Idem, p. 36.7MACIEL, David. A argamassa da ordem: da ditadura militar à Nova República. 1974-1985. São Paulo, Xamã,2004, p. 149.8GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. Op; cit, p. 39.9Para uma visão crítica da crise dos anos 1960 e do governo de Jango, ver: MELO, Demian Bezerra. Criseorgânica e açõa política da classe trabalhadora brasileira: a primeira greve geral nacional (5/7/1962). Tese deDoutorado. UFF, Niterói. 2013.204


mudanças ocorridas antes que aparecessem, como tais, as pressões. 10Trata-se, obviamente de optar por um motor histórico, as lutas sociais ou a vontade de um ou doishomens iluminados. Mais que isso, Gaspari reitera que o regime se desfez por inépcia dos militares:“Para quem quiser cortar caminho na busca do motivo por que Geisel e Golbery desmontaram aditadura, a resposta é simples: porque o regime militar, outorgando-se o monopólio da desordem, erauma grande bagunça”. 11 Para sustentar esse argumento será fundamental uma utilização específica dodiscurso histórico, construindo sentidos para seu projeto de hegemonia, e como tal, atribuindo sentidospara qualquer projeto de contra-hegemonia que se colocar no caminho.O discurso e a ideologiaElio Gaspari não deixa qualquer dúvida sobre o papel da tortura na Ditadura, que inclusive elecoloca como um pilar do regime (embora diga que Geisel tenha acabado com ela), negando a tese deque “a tortura era produto da atividade de agentes desautorizados e passíveis de punição”. 12 Segundoele, “a tortura envenenou a conduta dos encarregados da segurança pública, desvirtuou a atividade dosmilitares da época, e impôs constrangimentos, limites e fantasias aos próprios governos ditatoriais”. 13 Nolivro especialmente dedicado ao contexto da repressão, Gaspari quando fala do contexto da torturaintitula “a praga”, portanto algo fora de controle, algo natural, fruto da reprodução indesejada de algumser vivo que ameaça e destrói. A dúvida é qual seria a praga, se a existência da tortura ou daquilo que ajustifica sob a lógica da ditadura, ou seja, de opositores do regime. Isso porque o foco do seu texto não éa tortura em si, mas a sua existência, a estrutura que lhe permitia existir, sempre se referindo àsameaças: “a ação policial da ditadura foi rotineiramente defendida como resposta adequada e necessáriaà ameaça terrorista”. 14 Ao deixar claro, de forma irrefutável a tortura, Gaspari traz junto como natural queela se opunha ao “terrorismo”, sempre associado aos opositores do regime. É uma forma sutil de atribuirum sentido à ação dos torturadores, afinal, haviam “terroristas”, sobretudo publicando seu livro nummomento histórico em que o termo terrorista estava no auge do debate público com o atentados dasTorres Gêmeas de Nova Iorque em 2001. Há, segundo Gaspari um certo exagero: “no caso brasileiro,faltou ao surto terrorista a dimensão que lhe foi atribuída”, 15 ou seja, o problema fica apenas no exageroda tortura e alem disso, de novo, o surto terrorista existiu, na sua reprodução da fala oficial.Uma característica do discurso ideológico hegemônico é a sua negação enquanto ideologia,atribuindo ao discurso opositor a pecha de ideológico. O capitalismo se coloca como vencedor histórico,livre de ideologia, mas contestações a ele são mostradas como delírios ideológicos.Gaspari ouve defensores e torturadores. Mostra que há uma rede social de apoio à tortura, nãonega de forma alguma sua existência. No entanto, quando fala de torturados não faz qualquer distinçãoentre o tipo de ação cometida que leva à tortura, são simplesmente “terroristas”. Por isso traz váriaspáginas sobre o caso da Argélia, como a tortura foi utilizada para debelar a guerrilha, lá “o pau cantou, eo terrorismo sumiu”. 16Gaspari deixa clara a lógica:O que torna a tortura atraente é o fato de que ela funciona. O preso não quer falar,apanha e fala. É sobre essa simples constatação que se edifica a complexa justificativada tortura pela funcionalidade. O que há de terrível nela é a sua verdade. 17Portanto, está concluído, é terrível mas... funciona. E o problema, segundo ele, é que “os militantessão treinados para resistir aos interrogatórios, para dar tempo a que seus companheiros se ponham emsegurança”, 18 citando Jarbas Passarinho. E, nas palavras do próprio Gaspari, mostra como a esquerda,mais propriamente o PCB teve um papel nesse processo: “expulsou diversos dirigentes que, uma vezcapturados, contaram aos seus torturadores segredos da organização”, citando Jacob Gorender: “sãomais aptos a resistir à tortura os militantes que interiorizaram a ideologia socialista e fizeram dela suanorma moral”. Há, dessa forma, uma divisão de responsabilidade. Além do torturador seria responsável opartido que ensina a resistir e daquele militante que obedece, que aceita uma dada moral. Se falassemlogo seria mais fácil e menos “dolorido”. O passo seguinte é apresentar a lógica dos que defendem a101112131415161718Idem, p. 40.Idem, 41.GASPARI, Elio. A ditadura escancarada, p. 285.Idem, p. 13.Idem, p. 17.Idem, p. 18Idem, p. 31.Idem, p. 37.Idem, p. 38.205


tortura:A proposição é curta: imagine-se um avião cheio de crianças no qual se saber que háuma bomba. Ela explodirá dentro de duas horas, e acaba de ser preso o terrorista quecom quase toda a certeza sabe onde ela foi escondida. Ele se recusa a falar. (...) parecepreferível tortura-lo. 19Ele conclui a questão dizendo que se houvesse de fato a bomba, “poucos seriam os tribunais domundo capazes de condenar o torturador”. Ora, é uma falácia esse argumento, porque se a tortura fosseautorizada, ela seria desde logo, legal, portanto nenhum torturador iria a julgamento por isso. Há,portanto, uma apropriação de discursos e uma disputa de sentidos que mistura tudo e faz tudo parecerlógico e possível, inclusive a tortura, inclusive a ditadura.A luta armadaQuando passa a apresentar mais claramente os casos de tortura, Gaspari vai adentrando nocampo da luta armada, utilizando de bibliografia historiográfica e criando um quadro de “vitórias” e“derrotas” dos militantes. Chega inclusive a narrar algumas mortes. Mas não dá voz ao projeto, não dávoz ao que justificava a ação, usa para isso a expressão militar “guerra revolucionária”, dentro da lógicada Segurança Nacional.São incontáveis as vezes que Gaspari fala em “terrorismo” e “surto terrorista”. Quando fala de umrefluxo do movimento, é sarcástico: “os combatentes refluíram para lamber as feridas”. 20 Ora, quemlambe ferida é cachorro, animal, guerrilheiro. Terrorismo, portanto aparece como uma palavra natural. Já“expropriações”, nas poucas vezes que aparece está entre aspas. 21Se não há motivo, não há projeto que embase a ação de resistência, a solução é romantiza-la.Assim define Gaspari:Ao longo de 1969 as organizações esquerdistas brasileiras que se lançaram em atosterroristas foram submetidas ao primeiro grande teste que a existência lhes reservava. Nainfância de sua formação, qualquer grupo revolucionário beneficia-se da falta deinformações da polícia, da capacidade de surpreender seus alvos e do apoio de uma redede militantes suja fidelidade é proporcional à segurança que lhe faculta a mística dosegredo da organização. É uma fase de esplendor, na qual o romantismo dos primeirostiros se confunde com a sensação de onipotência oferecida pela perplexidade do inimigo.Parece ser a prova factual da clarividência da opção política. 22Depois disso, reorganizada a repressão, “já não se organizam como a revolução precisa, mascomo a repressão condiciona, produzindo uma rotina de gato-e-rato”. Há uma permanentedescaracterização e desrespeito à posição da luta armada enquanto uma tentativa de resistência contrahegemônica.Após mostrar alguns intentos de sucessos da resistência, quando Gaspari é impiedoso com aineficiência da repressão, falando do seqüestro do embaixador Elbrick, Gaspari conclui: “a tigradamiou”. 23 A ação é considerada espetacular, desmoralizante para o regime, humilhante. É portanto, umaquestão quase sentimental. O passo seguinte é descaracterizar os resistentes, que estariam apenas“lutando pela sobrevivência”, sem conseguir ampliar suas bases ou avançar posições.O texto é rico em citações advindas da imprensa, sobretudo da revista Veja. São citadas comofonte, sem questionamento. Mostra, de forma indubitável a crescente de mortes dos “esquerdistas”, outrotermo usado como natural e que é profundamente preconceituoso. O mais intrigante é que Gaspariinsiste em dizer que o que gerou o aumento da repressão, da tortura e das mortes é a “anarquia” e“desordem” militar, quando tudo o que ele mostra aponta o contrário, para um sistema ordenado,orquestrado e assumido internamente.Quando fala de Carlos Marighella, Gaspari torna mais clara sua posição sobre a guerrilha. Para oautor, Marighella era mais que nada um propagandista, que “em declínio” usava de todos os meios paraparecer forte, mas que era um incompetente a julgar pela apresentação que ele faz do Manual doguerrilheiro urbano, considerado pelo autor um “documento triunfalista, desordenado. Suagrandiloqüência escondia uma concepção primária de organização”. Sua figura é sintetizada como um“personagem radical, mistura de escoteiro e agente secreto, era um adereço propagandístico”, cheio de1920212223Idem, p. 43.Idem, p. 49.Idem, p.56.Idem, p. 57.Idem, p. 97.206


“erros e omissões incompreensíveis”. 24 Aqui percebemos uma outra característica ideológica do discursode Elio Gaspari: ele avalia os atos da esquerda, aponta erros, critica opções, como se fosse ele parteautorizada por esse mesmo projeto para dar opinião. No fundo, é como se tratasse de uma guerra emque todos tinham a mesma intencionalidade:As organizações de esquerda e a máquina repressiva do governo tinham um interessecomum: assegurar a continuidade da ameaça terrorista negando que a morte deMarighella fosse resultado do abalo da estrutura da ALN. Senão, uns ficariam semevolução e os outros, sem ocupação. 25Era como se fosse uma retroalimentação, guerrilheiros e repressores precisam um do outro, oresto não existe, não há sociedade nem interesses políticos. Do ponto de vista da guerrilha seria apenasobra do “mestre da propaganda”, Marighella. 26O presente texto buscou apresentar, ainda que brevemente, a interpretação de Elio Gaspari sobrea ditadura, seus condicionantes, seus sujeitos e seu projeto. Gaspari foi escolhido como objeto daanálise pela importância de sua obra, lida e vista por muitos como uma “nova forma” de fazer história.Buscamos mostrar que a concepção de Gaspari sobre a ditadura reproduz a lógica da própria ditadura.Ele trata de forma desigual suas fontes, reproduzindo como verdade o discurso dos generais equestionando a intencionalidade das falas resistentes. Há muito ainda a ser pesquisado sobre asrelações entre os jornalistas, a imprensa e a ditadura brasileira. Mas está muito claro que boa partedessas relações foram de franco colaboracionismo, seja por afinidade ideológica seja por interessesmarcadamente econômicos.242526Gaspari, A ditadura escancarada, op. Cit. P. 144.Idem, p. 156Marighella foi ostensivamente retratado na revista Veja, e sua morte estampada e comemorada pela grandeimprensa.207


Entre Civis e Militares: Conceitos e Versões do Golpe e da Ditadura Pós-1964 no Brasil.Yuri Rosa de Carvalho 1Diorge Alceno Konrad 2Resumo: Este artigo tem a finalidade de discutir as diferentes conceituações e caracterizações sobre oGolpe e a Ditadura iniciada em 31 de março de 1964. Para além de uma discussão meramenteterminológica, que vise apenas identificar as diferentes representações presentes nos discursos ao longodo tempo, temos o objetivo de entender qual conceito sintetiza melhor a essência do Golpe e daDitadura, sua expressão de dominação política de classe, sua relação com o o capital estadunidense,sua conexão com outras ditaduras do Cone Sul; em todas suas contradições. Este esforço se dá nosentido de melhor identificar a intensa disputa ideológica do presente pela memória sobre o período,quando diferentes grupos sociais ou buscam legitimar seu status quo ou questionar a falta de respeitoaos Direitos Humanos praticado na época.Palavras-chave: Ditadura Brasileira – Golpe Civil-Militar – Classes Social.Abstract: This article aims to discuss the different conceptualizations and characterizations about theCoup and the Dictatorship started in March 31 of 1964. To beyond a purely terminological discussion, thatseeks only identifying different representations present on the speeches over time, our objective is tounderstand which concept best summarizes the essence of the Coup and the Dictatorship, its expressionof political class domination, their relationship with the U.S. capital, its connection with other dictatorshipsof the South Cone, in all its contradictions. This effort takes place in order to better identify the intenseideological struggle that takes place in the present by memory on the period where different social groupsor seek to legitimize their status quo or question the lack of respect for human rights practiced at the time.Keywords: Brazilian Dictatorship – Civil-Military Coup – Social Class.IntroduçãoTem-se acalorado recentemente o debate em torno do caráter da Ditadura que se iniciou no dia31 de março de 1964 e acabado, como convencionalmente tem-se dito, no ano 1985. Isso se devegraças ao novo fato político criado pela presidente Dilma Roussef ao oficializar em novembro de 2011 aComissão Nacional da Verdade, a qual, recentemente, teve seus membros indicados, visando investigarviolações de direitos humanos no período por parte dos agentes de Estado.Logo, esta Comissão tem sido questionada por diversos setores da sociedade brasileira, muitospróximos daqueles que tiveram algum tipo de participação nos crimes cometidos naquela época,principalmente os militares. De outro lado, faz-se pressão de setores populares comprometidos com aluta pelos Direitos Humanos para que o caráter da Comissão seja o de punição aos agentesrelacionados com torturas, assassinatos, sequestros, estupros e etc.Nessa luta pela memória do período, vemos todo tipo de caracterização, tanto do sistemapolítico compreendido naquele tempo, como das próprias relações de poder que se deram a partir doEstado. Por isso, a elaboração conceitual que defina o pós-1964 é uma questão política, e dependendodo lado em que apareciam as forças sociais no espectro político da época, diferentes nuances podem seapresentar hoje.Podem-se perceber várias definições e debates em tornos delas: foi uma Ditadura ou não? Umsistema autoritário? Um “regime brando” que, em pontos específicos, como na repressão política, seexcedeu? Uma burocracia tecnocrata que impôs um projeto autoritário, mas modernizante? Que outraspossibilidades existem?O papel do historiador no atual contexto é buscar atualizar, se assim for necessário, os conceitosque por ventura estejam socialmente defasados, ou por não responderem mais ao processo histórico aque se refere (em decorrência do surgimento de novas fontes, por exemplo), ou resgatar, se for o caso,interpretações feitas à época que, por alguma razão, não vingaram historiograficamente, mas que, hoje,12Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria. Pesquisarealizada com o auxílio da bolsa CAPES. Contato: yuri.rc@gmail.com (55)9654-6905.Professor Doutor em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas, atualmente éProfessor Associado do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria. Contato:gdkonrad@uol.com.br, (55) 9971-4703208


havendo o distanciamento temporal possam responder o que até agora não se conseguiu resolver demaneira satisfatória.Esta não é meramente uma discussão linguística. Não pretende-se fazer aqui uma síntese dasdiferentes formas utilizadas nos discursos ao longo do tempo para caracterizar o estado de coisas quese deu no pós-1964. O objetivo é demonstrar como os diferentes conceitos correspondem a diferentesposições político-ideológicas, evidenciando aproximações e distanciamentos, buscando a melhor chaveexplicatória que defina a essência da formação social brasileira, em suas contradições.Autoritarismo e EufemismosAo se tratar do processo político iniciado em 31 de março de 1964, com o Golpe articulado pormilitares, setores civis conservadores e a pressão/articulação do capital estadunidense, nos deparamoscom vários conceitos interpretativos.O que permeia grande parte das discussões é o conceito de “autoritarismo”. Este conceito semostra ardiloso, pois tem sido base para uma gama de definições que reproduzem ideologicamenteposições dos interlocutores que se utilizam desse recurso.José Antônio Giusti Tavares (1982) defende a hipótese de uma estrutura autoritária tipicamentebrasileira. Para ele, 1964 é a continuação de um processo iniciado com a crise da República Velha, naqual o Estado, enquanto potência burocrática racional legal, se forma sob o que ele chama de “RepúblicaAutoritária Populista”, se colocando acima dos conflitos sociais e fazendo o que historicamente aburguesia deveria fazer: impor um “padrão nacional burguês de sociedade”, desenvolvendo ocapitalismo.Para o autor, um processo notadamente “bismarckiano”, pois repetiria um modelo criado noprocesso de unificação alemã na segunda metade do século XIX, no qual o Estado substitui a burguesiano seu papel histórico, desenvolvendo as forças produtivas capitalistas. Esta via “bismarckiana” levariaconsigo a gênese do autoritarismo político moderno no Brasil, uma estrutura que se ergueu com areorganização do Estado no pós-1930, e que novamente se fazia presente com os militares de 1964.Além disso, uma segunda corrente, a via “bonapartista” também se mostraria presente no casobrasileiro. Frente à crise das classes dominantes hegemônicas de se sustentar seu projeto político,criando um “vazio de poder”, crescentemente pressionado por um proletariado cada vez maisrevolucionário frente as fissuras desse sistema e a contínua fragmentação das coalizões entre asclasses e frações de classe; levam ao poder uma ditadura autoritária tanto no caso dos Bonaparte, naFrança de Napoleão e seu sobrinho Luís, quanto no Brasil de João Goulart.Consolidado o novo “regime”, assim como na França, houve um forte incentivo industrial ecrescimento econômico, segundo Tavares, apesar do claro “recuo” político que as classes dominantespermitiram ao se suicidar politicamente pra garantir de maneira autoritária seus interesses.Ainda, de acordo com o autor, os militares em 1964 viam-se como “pretores” da sociedade, moderando-ade acordo com o que entendiam ser os interesses da Nação, rompendo este padrão, como pensado porAlfred Stepan (1974), por entenderem que, frente ao contexto de “estatismo autoritário” da deposta“República Populista”, deviam rever seu papel político e não intervir de maneira pontual, maspermanente, mesmo que isso contrariasse uma suposta postura liberal do primeiro Ditador a frente doexecutivo, General Castelo Branco, como afirma Tavares.O poder instituído teria se orientado por um “pragmatismo autoritário”, se legitimando pelaeficácia, na “competência tecnocrática” daqueles que seriam a elite política no comando.Apesar de não ter tido muito eco no mundo acadêmico, José Tavares sintetiza amplo pensamento socialsobre o período, se detendo a modelos pré-concebidos de orientação sobretudo de referência teóricaweberiana e seus tipos ideais e elementos aparentes. Aqui, o papel dos militares se destaca e oautoritarismo aparece quase como suis generis brasileiro. Esteve presente desde a origem, para o autor,com o Movimento de 1930.Assim, há uma suposta tradição histórica autoritária do Estado brasileiro e, inerentemente, da“sociedade brasileira como um todo”. Esta “cultura política autoritária por natureza”, pretensamentehistórica, acaba por ignorar as resistências e aspectos singulares da dominação política do período.Por esse viés, “Regime Militar” será o conceito chave amplamente favorecido, pois ocultapráticas ditatoriais, pulverizando o golpismo em padrões deste “autoritarismo” naturalizado. Desta forma,Tavares referencia o período do pós-1964 como “Autoritarismo Burocrático-Militar”.“Autoritarismo” passa ser amplamente enfatizado não só na historiografia como de maneira geralpela imprensa brasileira. O entendimento é que o “regime militar” foi autoritário e que o Ato InstitucionalNº 5, de 13 de dezembro de 1968, que fechou o Congresso e retirou direitos jurídicos civis, um golpe demilitares mais radicais, um processo comumente chamado de “golpe dentro do golpe”, no qual o uso datortura, o assassinato de opositores políticos e o aprofundamento da censura passaram a ser maisintensificados e abrangentes. Assim, em 1979, com a Lei da Anistia, já ter-se-ia um processo deredemocratização em andamento e novamente uma relativização do “autoritarismo exacerbado”.209


Alguns autores de destaque flertam com estas definições. O jornalista Elio Gaspari (2002),reconhece o autoritarismo político dos militares e acompanha a definição mais comum desde o processode redemocratização: Ditadura Militar. Há uma condenação em sua obra dos “excessos” que estesteriam cometido no poder, mas ao mesmo tempo o protagonismo nos mesmos, inclusive em suaderrocada, arquitetado por Ernesto Geisel, ditador do período de 1974 e 1979, e o general GolberyCouto e Silva, uma das principais figuras políticas dos altos escalões militares.De maneira mais refinada e mais profunda, o historiador Carlos Fico (2001) analisa as entranhasdo sistema repressivo e de informação, evidenciando e reforçando o caráter ditatorial do governo daépoca. Mesmo percebendo a articulação de um golpe com participação de civis, o historiador salienta opapel dos militares e seu projeto particular de desenvolvimento conservador. Para o autor, que defendeque o Golpe é Civil-Militar, mas a Ditadura é apenas Militar, este é o conceito chave, amplamenteutilizado em sua obra.Este conceito se demonstra apenas parcialmente correto, pois não evidencia o papel de civis naDitadura, se mostra simples ao se resumir a questão aparente, de que militares detiveram o poder entre1964 e 1985. Para esta definição, não há dúvidas quanto ao fim da Ditadura: quando José Sarney,mesmo que indiretamente assume o Executivo, no início de 1985, não dever-se-ia mais falar emDitadura, mas já em Democracia. Assim, pelo menos a concepção de “Ditadura” é utilizada parademonstrar o caráter repressivo e antidemocrático, diferente do editorial da Folha de São Paulo, de 17de fevereiro de 2009, que qualifica o Brasil entre 1964 e 1985 de “Ditabranda” 3 , dando a entender quenão houve grande repressão ou violação dos Direitos Humanos no Brasil”.Tangenciando o número de vítimas assassinadas e desaparecidas do período (considerado baixo frentea outras ditaduras), principalmente depois do Ato Institucional Nº 5, chamados por esta corrente como“anos de chumbo”; para o editorial da Folha, nem Ditadura deveria ser usado para definir o pós-1964.Nada estranho pra empresa que fornecia veículos de entrega de jornal para a Operação Bandeirantes –organização paramilitar de repressão que contava com financiamento e apoio empresarial – realizar suasações ditas “brandas” (KUSHNIR, 2004).De qualquer maneira, a utilização de Regime Militar ou Ditadura Militar, apesar de evidenciaremesta nuance, em absoluto sintetizam ou compreendem todo o complexo fenômeno histórico iniciado em31 de março de 1964. Tampouco, tornar o autoritarismo político algo inerente ao Brasil auxilia noaprofundamento do conhecimento sobre o tema.Ao se naturalizar o autoritarismo em toda a História nacional, se eufemiza as ditaduras, tanto ade Getúlio Vargas quanto a do pós-1964, afinal, se sempre fomos autoritários por excelência, qual adiferença de um período um pouco mais autoritário? Fica-se com a questão apenas aparente, osmilitares, e perde-se a essência, o papel que cumpriram e seus aliados civis, uma visão liberal queesconde o caráter de classe do Estado.Aqueles que tentaram compreender a Ditadura como uma articulação mais complexa, profunda ede classe, entre civis e militares, que não inicia em 1964, mas é construída com seguidas tentativas degolpe desde o suicídio de Getúlio Vargas, estimulada e financiada pela política externa estadunidense,no contexto da chamada “Guerra Fria”, sem dúvida nenhuma deram um salto de qualidade naconceituação teórica relativa à Ditadura.Civis e Militares: A Ordem dos Fatores Altera o Resultado?Talvez o primeiro a ter cunhado o termo Ditadura Civil-Militar, e expressar conceitualmente aarticulação que existiu entre civis e militares, tanto para o Golpe que depôs o governo eleito de JoãoGoulart, tanto para legitimar e operacionalizar a Ditadura, tenha sido René Dreifuss (1981).Seu trabalho clássico 1964: A conquista do Estado ainda hoje é um dos principais referenciais napesquisa sobre financiamento empresarial classista da oposição ao governo Jango, e como searticularam interesses político econômicos do governo estadunidense e setores oposicionistas naconstrução do golpe que o depôs.Principalmente, através da criação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais(IPES), criado em1961, órgão que deveria ser responsável por pesquisa e produção científica oposicionista; e o InstitutoBrasileiro de Ação Democrática (IBAD), o qual, apesar do nome, deveria fazer o contrário, construir entrea sociedade um forte sentimento contrário à permanência de Jango no poder.Sabe-se do intenso esforço que a burguesia brasileira e seus aliados capitalistas externos moveram paradesestabilizar o governo João Goulart. As “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”, contando comamplo apoio das classes médias, sob influência do complexo IPES/IBAD, foram um exemplo desteesforço golpista. Consumado o Golpe, a movimentação intensa de setores conservadores para legitimar3A passagem do editorial é a seguinte: “(...) Mas, se as chamadas "ditabrandas" - caso do Brasil entre 1964 e1985 – partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputapolítica e acesso à Justiça – (...)”. Cf. Limites a Chavez. Disponível em:http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm. Acesso em 17 fev, de 2013.210


e justificar a ação militar como “vontade geral da nação”, travestindo-a de um discurso que os ditadoresdiriam até o fim: tratava-se de uma “democracia”.Esta articulação entre civis e militares, uma vez colocada às claras, reforça o conceito deDitadura Civil-Militar. O Golpe e o que se deu depois dele, uma Ditadura, foram arquitetados, executadose levados a adiante por militares e civis. Os militares eram a ponta de lança de um bloco no poder muitomaior, contendo frações e classes sociais dominantes, sendo a manutenção de seus interesses a razãoda existência deste “regime de exceção capitalista”.Outro autor que mais contemporaneamente vem defendendo o conceito de Ditadura Civil-Militaré o historiador Daniel Aarão Reis Filho (2004). Nele encontramos o esforço pela desmistificação nocampo da memória a cerca dos acontecimentos em tempo de Ditadura.Para o historiador, na época da redemocratização, especialmente durante as “Diretas Já”, em 1984,neste amplo movimento nacional que pedia eleições diretas, unificou-se a agenda política de diversossetores, inclusive aqueles que construíram o Golpe e apoiaram a Ditadura, tornando-os todos“democratas”, como se sempre o tivessem sido.A Ditadura Civil-Militar se esgotava e nenhum apoiador ia restando. Logo, a redemocratizaçãoparecia como o lugar certo para se ir, e nada mais natural no campo da memória do que mistificaçõesque legitimem viradas de posições. Tanto à direita e à esquerda, apontando o autor para o fato de que,parte da esquerda revolucionária, ao autocriticar sua estratégia de luta armada, se colocar como umaluta “democrática”, no sentido liberal da palavra.O problema presente na obra de Reis Filho é a tentativa de evidenciar em demasia o amploapoio social aos militares, equalizando a participação de civis no Golpe, legitimando, mesmo sem teressa intenção, o discurso oficial dos próprios golpistas, os quais justificavam sua “Revolução”, poratender um suposto chamado da sociedade civil.Civis e militares articularam um Golpe e erigiram uma Ditadura que governaram até a década de1980. Pelo menos politicamente, a questão é: qual foi o papel que coube historicamente a cada umdestes grupos? De um lado, os militares, a categoria social secular com projeto próprio de País e, deoutro lado, frações de classe e classes dominantes que se debatiam para recuperar a hegemoniapolítico-social perdida e questionada em tempos de Jango. Qual o peso de cada uma nesta Ditadura?Foram iguais?O sociólogo Marcelo Ridenti (2010) acredita que não. No posfácio da segunda edição de seutambém clássico O fantasma da Revolução Brasileira, de 2010, o autor levanta o debate sobre o pesodos militares, tanto no Golpe, quanto na Ditadura em si.Para o autor, por mais que esta complexa articulação de civis fosse extremamente importante, e no finaldas contas, fundamentalmente estivessem protegendo seus interesses, os militares impuseram o seupróprio projeto conservador modernizante ao País eliminando qualquer oposição política ameaçadora, àrevelia de seus aliados, os empresários civis. Pelo menos até a década de 1980 os militares nuncavacilaram sobre quem deteria o poder institucional central. Tanto é que, aliados de primeira hora comoCarlos Lacerda, político conservador, e Jucelino Kubitschek, ex-presidente do Brasil, mudaram suasposições logo nos primeiros anos, quando perceberam que não se tratava de apenas uma intervençãopara destituir Jango e repassar o poder aos civis.Não houve retorno do poder aos civis, até pelo menos 1985, quando, já enfrentando seuderradeiro fim, a Ditadura, no seu processo de abertura política, lenta e gradual, que garantisse aimpunidade de seus atos, elegeu José Sarney, político maranhense historicamente ligado aos militares.Para Ridenti, a definição que melhor corresponde ao passado histórico é “Ditadura Militar-Civil” 4 ,pois expressa tanto a articulação de civis e militares, mas demonstra o papel preponderante que estesúltimos tiveram praticamente toda a Ditadura. Aqui o fim desse processo histórico não pode serentendido como antes de 1988, quando a nova Constituição é feita, e prepara eleições, daí sim, livrespara o ano seguinte.De qualquer maneira, se entendermos que o Golpe e a Ditadura como alianças entre categoriassociais, frações de classe e classes dominantes, que não só em regime de exceção preservaram seusinteresses capitalistas, mas se articulando internacionalmente com outras Ditaduras, como as do ConeSul, em um movimento mais amplo no contexto de Guerra Fria, apoiando e garantindo a falência dasdemocracias eleitorais na região; podemos então ficar satisfeitos também com estes conceitos deDitadura Civil-Militar ou Militar-Civil?Não seria interessante buscar um conceito que entenda esse amplo processo social maisprofundamente, sem perder de vista a relação com a geopolítica da América Latina? Podemos pensar4Yuri de Carvalho (2010) também utilizou esta conceituação na monografia de conclusão de graduação, porentender na época ser o conceito que melhor respondia, ou pelo menos problematizava o conceito de DitaduraCivil-Militar hegemonicamente usado pela historiografia, mas pensado há 30 anos. De maneira provocativa, oautor pensava em utilizar o espaço pra fomentar o debate necessário sobre a definição da Ditadura do pós-1964.211


algo assim para o Brasil ou temos especificidades tamanhas que não podemos em absoluto sercomparados com qualquer outro país da região?Seria possível novamente um salto de qualidade em termos de conceituação?Ditaduras de Segurança Nacional e FascismoEntende-se que, no esforço de compreender o processo histórico brasileiro, os estudiosos temse esmerado mais em fazer sobressair às diferenças históricas com outros países e menos assemelhanças com as ditaduras vizinhas, como Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile.Essa negação a priori de semelhanças, na tentativa de colocar o Brasil como um país acima dosdemais, e cuja compreensão só se dá nele mesmo, acaba por atrapalhar um possível salto nacompreensão de um fenômeno permeado de conexões, que ajudou a moldar tanto a nossa, quanto asDitaduras vizinhas.Buscando-se uma compreensão mais ampla do processo, como um fenômeno latino-americano,o historiador Enrique Padrós organizou, em 2006, uma coleção que levava o sugestivo nome AsDitaduras de Segurança Nacional: o Brasil e o Cone Sul.A definição de Ditadura de Segurança Nacional busca justamente demonstrar a semelhança econexão entre as Ditaduras do Cone Sul e, ao mesmo tempo, expressar parte da ideologia desses“regimes de exceção”, a política da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), oriunda da Escola dasAméricas estadunidense e da experiência francesa na Guerra de Independência da Argélia, elegendo oinimigo interno a ser combatido e eliminado.Nos anos 1960, os governos estadunidenses passaram a fomentar as oposições políticas que sealinhavam ideologicamente, apoiada pelas classes proprietárias dependente de sua economia, incitandoa derrubada de governos independentes pelo subcontinente sul-americano. Com isto, ditadurascomeçavam a brotar pelo Cone Sul.Em todos os casos, em maior ou menor grau, se instalaram ditaduras civil-militares baseadas naDSN, tendo como principais características um anticomunismo militante, a identificação do inimigointerno, a execução da guerra interna (contrainsurreição), a imposição do papel político das ForçasArmadas e a definição de fronteiras ideológicas. Além disso, essas ditaduras colocaram em práticaprogramas econômicos desnacionalizadores e privatistas, os quais iniciaram a abertura ao capitalinternacional e geraram o abismo social a partir da concentração de riqueza. 5A primeira tese a defender o uso do termo é a de Caroline Bauer, apresentada à UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul e à Universitat de Barcelona, em 2011. Intitulada Um estudo comparativodas práticas de desaparecimento nas ditaduras civil militares argentina e brasileira e a elaboração depolíticas de memória em ambos os países, Bauer vai chamar as ditaduras brasileira e argentina de“Ditaduras Civil-Militares de Segurança Nacional”, demonstrando como as duas têm práticas culturaisrepressivas em comum.No livro, resultado desta tese de doutorado, Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos epolíticas de memória, de 2012, a historiadora parte de aspectos subjetivos, como medo e terror, paraentender como se desenvolveu o que chama de “cultura do medo”, base do Terrorismo de Estado,disseminado pelas Ditaduras latino-americanas:As estratégias usadas para disseminar o medo como forma de dominação política daspopulações basearam-se em métodos refinados de terror físico, ideológico e psicológico,assimilados de outras experiências e do desenvolvimento de doutrinas regionaispróprias. As práticas que compõe essas estratégias variaram em intensidade eextensão, de acordo com os casos. Porém, todas possuem um núcleo comum,caracterizado pela produção de informações a partir da “lógica de suspeição”; pelosequestro como forma de detenção; pela censura e desinformação; pela realização dointerrogatório e a tradição inquisitorial das práticas policias; pela presença de torturasfísicas e psicológicas; pela censura e desinformação; e, principalmente, pela prática dodesaparecimento forçado de pessoas, característica específica da repressão dessesregimes. Acredita-se que, nesse período, desapareceram aproximadamente 90 milpessoas, entre argentinos, chilenos, uruguaios e brasileiros. A consequência foi aformação de uma “cultura do medo” como condição necessária e o resultado estratégicoesperado. 6Apesar da formalização DSN se dar a partir dos exércitos estadunidense e francês, antes já56PADRÓS, Enrique Serra. Conexão repressiva internacional: o Rio Grande do Sul e o Brasil na rota do Condor.In. PADRÓS, Enrique Serra; BARBOSA,Vânia M.; LOPEZ,Vanessa Albertinence; FERNANDES, Ananda Simões(orgs). Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e memória. – 2. ed., rev.e ampl. – Porto Alegre : CORAG, 2010. – v. 3, p. 56.BAUER, Caroline. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. Porto Alegre:Medianiz, 2012, p. 29.212


haviam opositores enquadrados em leis de “Segurança Nacional”. A ocupação nazista na Tcheco-Eslováquia, depois de um atentado contra um quadro do Partido Nacional Socialista, “mobilizou 450 milpoliciais, que detiveram e revistaram 4.750 milhões de pessoas, das quais 13.119 acabaram indicadasem processo por crime contra a segurança nacional” (KONDER, 2009). No próprio Brasil, a partir da Leise Segurança Nacional de abril de 1935 e, sobretudo, depois da Insurreição Nacional-Libertadora, emnovembro do mesmo ano, a maioria dos integrantes da Aliança Nacional Libertadora (ANL) foramenquadrados em “crimes de Segurança Nacional” (KONRAD, 1994).Na historiografia, o fascismo é reduzido hegemonicamente a um simbolismo sociológico (MANN,2008), tornando-se fascistas apenas grupos que se adequarem a um modelo pré-concebido e fechadonos moldes do Partido Nazista ou do exemplo clássico da Itália. Assim, nada fora do eixo Roma–Berlinda década de 1930 pode ser considerado fascista ou com influência nítida deste.O filósofo grego Nico Poulantzas já alertava, em 1971, que o fascismo não era um fato históricoestanque, mas um fenômeno intrínseco às crises capitalistas, portanto, fadado a ressurgir sempre que ocapitalismo estivesse em perigo. Segundo Poulantzas:Quanto à atualidade da questão do fascismo, digamos simplesmente que os fascismos– como, aliás, os outros regimes de exceção – não são fenômenos limitados ao tempo.Podem muito bem ressurgir atualmente, mesmo nos países de área europeia, namedida em que se assiste a uma crise grave do imperialismo, crise que atinge o seupróprio centro. O ressurgimento, pois, do fascismo continua possível, sobretudo hoje –mesmo que, provavelmente não se revista agora exatamente das mesmas formashistóricas de que revestiu no passado. 7O fascismo não seria resumido a aspectos aparentes, mas a uma essência tanto econômicaquanto política e cultural. Como aponta Poulantzas, “no processo de fascização e do fascismo, nenhumaclasse ou fração de classe dominante parece ser capaz de impor”, seja “pelos seus próprios meios deorganização política, seja pelo intermédio do Estado ‘democrático-parlamentar’”, a sua direção às outrasclasses e frações do bloco no poder (POULANTZAS, 1978, p. 77).Desta maneira, quando em uma crise política leva à desestabilização do bloco no poder, há umrearranjo de categorias sociais, frações de classe, e classes sociais para garantir a continuidade docapitalismo e sua hegemonia. Ceder espaço político para um destes atuar em regime de exceção paragarantir os interesses destes grupos, constitui economicamente e politicamente o fascismo.João Goulart e o projeto de seu governo pelas Reformas de Base são justamente a crise política queameaçou socialmente o bloco dominante no poder. O rearranjo das frações de classe e classesdominantes articuladas com a categoria social dos militares levou ao Golpe de 1964 no Brasil. Estesgovernaram para garantir a hegemonia das classes dominantes e garantir a perpetuação do capitalismo.Em julho de 1965, Theotônio Júnior publicou, na Revista Civilização Brasileira, um artigochamado Ideologia fascista no Brasil, no qual tentava analisar se no Brasil havia condições históricaspara o desenvolvimento do fascismo. Para ele, o País ainda não era “maduro” o suficiente no estágioque o capitalismo se encontrava para desenvolver relações tipicamente fascistas. No entanto, percebiaque havia um “germe” fascista presente, mas que encontraria limitações.Não imaginava o autor os desdobramentos que a Ditadura teria; que o AI-5 permitiria toda arepressão possível, e ao mesmo tempo, a injeção de empréstimos estrangeiros e crédito facilitadocriariam a bolha do chamado “milagre econômico”, ajudando na tentativa de legitimação e respaldandodiscursivamente o que era dito oficialmente.No fim, profeticamente, Júnior faz um apelo para união de forças para barrar o crescimento dofascismo no Brasil, não “cometendo erros passados”, para não enfraquecer o movimento popular, epedindo uma posição ofensiva nesse enfrentamento.Mas se Poulantzas e Júnior possam ser tomados como corretos então não houve realmente umaespécie de processo bismarckiano/bonapartista, como colocara Tavares? Houve apenas umarearticulação de frações e classes dominantes em um regime de exceção?A diferença aqui é a reprodução de práticas culturais repressivas, se não inauguradas, pelomenos transformada em política de Estado com o nazifascismo durante os anos de 1930. Adesumanização do outro, do “inimigo interno”, não serve só como dispositivo de legitimação discursiva,mas naturaliza a eliminação da oposição política com respaldo de parte da população.Quando o Estado, e aqui se entende aquelas classes sociais que o controlam, tem a prerrogativada morte, e a polícia se torna política, a vida se torna descartável, e o descarte tem uso político(AGANBEN, 2002).Como a recente descoberta da cremação de corpos de pelo menos dez guerrilheiros na décadade 1970, incinerados em uma usina de açúcar de um ex-governador do Rio de Janeiro, por um grupo de7POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura. São Paulo: Martins Fontes, 1978, p. 10.213


extermínio do Exército, liderados por Cláudio Guerra (GUERRA; NETTO; MEDEIROS, 2012). Fora o usoda nomenclatura “terrorista” como conceituação deste inimigo interno, já sem identidade, desumanizado,que sobre o qual todo tipo de força deveria ser utilizada para ser erradicado.Há aqui um duplo sentido nas práticas repressivas inauguradas no nazifascismo e reproduzidasnas Ditaduras da América Latina. O primeiro é relativo à função central na implantação do terror comoforma de dominação política, como exemplifica Bauer:Por “estratégia de implantação do terror” entende-se o conjunto das práticas desequestro, tortura, morte e desaparecimento, assim como a censura e a desinformaçãoe suas consequências, principalmente a formação da “cultura do medo”. Essa estratégiapode ser entendida como “projetos”, em seu sentido consciente e racional, pois o terror,como forma de dominação política, foi uma “opção” dos civis e militares responsáveispelas ditaduras e não uma “fatalidade” ou “imposição” conjunturais. 8Em segundo lugar, estas estratégias de implantação do terror, principalmente através da políticados desaparecimentos, tem como objetivo, além de consolidar essa “cultura do medo”, garantir umamemória oficial, hegemônica e sem oposição. Como explicita Gagnebin:Os arquivos dos campos de concentração foram queimados nos últimos dias da guerra,"os nazistas explodiram as câmaras de gás e os fornos crematórios de Auschwitz".Depois da derrota de Estalingrado, isto é,quando se torna claro que o Reich alemão nãoseria o vencedor e que, portanto, ele não poderia "ser também o mestre da verdade"futura, os prisioneiros dos campos foram obrigados a desenterrar os milhares decadáveres de seus camaradas (agora já em decomposição) que haviam sidoexecutados e jogados em valas comuns, para queimá-los em gigantescas fogueiras: nãopoderia restar nenhum rastro desses mortos, nem seus nomes, nem seus ossos. 9Assim, reforça-se a compreensão de que não só a Ditadura Civil-Militar de Segurança Nacionalno Brasil, mas também as outras ditaduras de segurança-nacional no resto da América Latina foramfundamentalmente ditaduras de classe. O objetivo último destas ditaduras foram fundamentalmentegarantir a reprodução do Capital, a exploração dos trabalhadores, a manutenção da propriedade privadae das classes governantes, incapazes de se garantir no controle do Estado sem exacerbar a ditaduracapitalista. Daí a proximidade destas experiências históricas, não só em aspectos culturais e ideológicos,com os fascismos mundo a fora.As classes trabalhadoras não foram, obviamente, as únicas atingidas pela implantação doEstado de Terror imposto no Brasil a partir de 1964; outras categorias e camadas sociais também oforam, principalmente quando se colocaram frontalmente contra a dominação política dos setoresgolpistas, como parte de estudantes e militares legalistas, por exemplo.Contudo, não resta dúvida que a deflagração do movimento grevista do grande ABCD paulista no finaldos anos 1970, entre metalúrgicos do setor da indústria automobilística, do qual a figura de Luis InácioLula da Silva ganhou projeção nacional, significou uma clara demarcação de ruptura no processo dedistensão política que vinha sem sobressaltos até então, demonstrando que foi a classe operária quemais sofreu com o peso da Ditadura Civil-Militar de Segurança Nacional, ao contrário das classesmédias, cujo apoio aos grupos golpistas flutuou durante todo o período.Assim, o uso do conceito de Ditadura Civil-Militar de Segurança Nacional é o que mais consegueexpressar a essência do processo histórico brasileiro a partir de 1964, até pelo menos 1988,evidenciando as conexões existentes entre as outras ditaduras latino-americanas, além da sua influênciaideológica doutrinária da DSN, ligando-as ao quadro maior do imperialismo capitalista estadunidense daépoca, tanto em relação às condições objetivas, quanto às subjetivas.Aqui, é possível perceber, também, como a crise de hegemonia no bloco no poder, areorganização das classes dominantes alicerçando-se na categoria social dos militares para garantir areprodução do capital e seus interesses, assim como as práticas repressivas que erigiram o Estado deTerror, a partir da cultura do medo, são características fundamentalmente fascistas. Como bemdemonstra Rosa Cavalari (1999), “a participação [...] de ex-dirigentes integralistas em posições dedestaque na conspiração e no golpe militar de 64, na liderança do Congresso e no primeiro escalão dopoder executivo durante a ditadura”, levou Plínio Salgado, chefe do grupo brasileiro mais nitidamentefascista dos anos 1930, a declarar que “os Integralistas estavam no poder”.Fontes89BAUER, Caroline, op. cit., p. 31.GAGNEBIN, J. Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: ed. 34, 2006, p.46.214


LIMITES a Chavez. In. Folha de São Paulo [editorial] Disponível em:http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm. Acesso em 17 fev, de 2013.Referências Bibliográficas:AGABEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.BAUER, Caroline. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. Porto Alegre:Medianiz, 2012_______. Um estudo comparativo das práticas de desaparecimento nas ditaduras civil-militares argentinae brasileira e a elaboração de políticas de memória em ambos os países. 2011. 445f. Tese (Doutoradoem História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.CARVALHO, Yuri Rosa de. A classe operária e a resistência armada à Ditadura Militar-Civil (1964-1985).2010. 93f. Monografia – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2010.CAVALARI, Rosa Maria Feitosa. Integralismo: ideologia e organização de um partido de massas noBrasil (1932-1937). Bauru: Edusc, 1999.DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981.FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política. Riode Janeiro: Record, 2001.GAGNEBIN, J. Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.GASPARI, Elio. As ilusões armadas. A Ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.GUERRA, Cláudio; NETTO, Marcelo; MEDEIROS, Rogério. Memórias de uma guerra suja. Rio deJaneiro: Topbooks, 2012.JÚNIOR, Theotônio. A ideologia fascista no Brasil. In. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, ano1, n. 3, jul. 1965, p. 51,.KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. São Paulo: Expressão Popular, 2009KONRAD, Diorge Alceno. 1935: a Aliança Nacional Libertadora no Rio Grande do Sul. 390f. Dissertação(Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1994.KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda. Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo:Boitempo, 2004.MANN, Michael. Fascistas. Rio de Janeiro: Record, 2008.PADRÓS, Enrique. Conexão repressiva internacional: o Rio Grande do Sul e o Brasil na rota do CondorIn. PADRÓS, Enrique Serra; BARBOSA,Vânia M.; LOPEZ,Vanessa Albertinence; FERNANDES, AnandaSimões (orgs). Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e memória. –2. ed., rev. e ampl. Porto Alegre : CORAG, 2010.PADRÓS, Enrique Serra; BARBOSA,Vânia M.; LOPEZ,Vanessa Albertinence; FERNANDES, AnandaSimões (orgs). Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e memória. –2. ed., rev. e ampl. 4 vols. Porto Alegre : CORAG, 2010.POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura. São Paulo: Martins Fontes, 1978.RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. 2. ed. São Paulo: UNESP, 2010.REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In. REIS FILHO, DanielAarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Orgs.). O Golpe e a Ditadura Militar. 40 anosdepois (1964-2004). Bauru: EDUSC, 2004.STEPAN, Alfred. Os militares na política. Rio de Janeiro: Artenova, 1975.TAVARES, José Antônio Giusti. A estrutura do autoritarismo brasileiro. Porto Alegre: Mercado Aberto:1982.215


Segurança Nacional: Uma Discussão ConceitualAline Aparecida Faé Inocenti 1Resumo: este artigo tem a intenção de discutir a conceitualização da segurança nacional dentro dosistema de implantação do regime cívico-militar no brasil. Esse conceito vai ao encontro da articulaçãopolítica executada pelos militares que tiveram sua formação aos moldes americanos, introduzindo nopaís a Doutrina de Segurança Nacional fundamentada nas ideias estadunidenses de “defesa doterritório” e o “inimigo interno e externo do sistema”.Palavras-chave: Conceito – Segurança Nacional – Regime cívico-militar.Abstract: this article has the intention to discuss the conceptualization of national security within thesystem of deployment of civic – military regime in brazil. This concept goes to meet of the policyarticulation implemented by the military that had their education to the American mold, introducing thecountry´s National Security Doctrine based on American ideas of “homeland defense” and the “enemywithin and outside the system”.Key-Words: Concept – National Security – civic – military regime.Introdução: Inserção dos Conceitos na Sociedade“De acordo com uma conhecida frase de Epiteto, não são os fatos que abalam os homens, massim o que se escreve sobre eles”. 2A frase citada acima faz parte de uma antiga tradição que se ocupa da relação entre as palavrase as coisas, entre linguagem e o mundo, focalizando a discussão no mundo conceitual e social. ReinhartKoselleck, ao citar essa frase em uma das suas obras – Futuro Passado – faz nos lembrar do poder queas palavras possuem na relação de transmissão sobre fatos e ideias.Neste sentido, pode-se considerar que o uso de tais palavras ou expressões na sociedadepodem servir tanto para se comunicar, quanto para ressaltar seu poderio frente a grupos sociais. Com opassar do tempo estas palavras adquirem um caráter de conceito, de ideia formada, ou de uma tradiçãose transformando em um costume que passa a ser seguido.Esses conceitos adquiridos por uma determinada ordem social devem ser parcialmente aceitospor um grupo de indivíduos, para assim formar e formatar os sistemas políticos e ideológicos. Comoexemplo disso, pode-se utilizar a efetivação do golpe cívico-militar no Brasil, que foi incorporado pelogrupo dos militares e de alguns civis do país, possibilitando o estabelecimento do regime.Este golpe se utilizou de conceitos que advinham de outras sociedades, onde desempenhavampoder dominante sobre a população. Voltados para o conceito de Segurança e de Defesa contra o queacreditavam serem inimigos, o grupo organizou-se e inseriu essas ideias na estrutura social e política doBrasil.Durante toda a trajetória da humanidade, pode-se visualizar a utilização de conceitos paradeterminar e compreender certas relações e conflitos. Os acontecimentos de relevância social sempre seutilizam de palavras de significação para caracterizar o fato ocorrido. Pode-se aqui citar a questão doconceito de “guerra fria”, que muito mais do que diz as palavras carrega significados abundantes, oprincipal deles é o confronto ideológico entre capitalismo e socialismo.Assim, considera-se que “[...] os conceitos não servem mais para apreender os fatos de tal ou talmaneira, eles apontam para o futuro” 3 . Nesta dinâmica, pode-se entender que os conceitos surgidos emuma determinada época, carregada de algumas simbologias, não servem apenas para retratar arealidade presente, mas sim para modificar os fatores que estavam envolvidos no acontecimento ou ofato passado.Assim, cabe ao historiador compreender os conflitos sociais, políticos e ideológicos do passadopor meio das delimitações conceituais para se ter uma conclusão, ou uma interpretação do presente,dando ênfase para as mudanças sociais e culturais durante o passar dos anos.Portanto, a história dos conceitos é, em primeiro lugar, um método especializado da123Programa de Pós-graduação em História – Mestrado em História. fone: (49) 35530278 / (49) 99713185KOSELLECK, 2006, P.97.KOSELLECK, 2006, P. 102.216


crítica de fontes que atenta para o emprego de termos relevantes do ponto de vistasocial e político e que analisa com particular empenho expressões fundamentais deconteúdo social ou político. 4Existem conceitos que permanecem por entre os tempos, entretanto, outros sofrem modificaçõesestruturais em longo prazo dependendo da realidade de cada época e do olhar humano sobre tal termo,levando em consideração toda a camada de sentido estruturado em cada interpretação.Assim o campo da história dos conceitos necessita atentar para todos os conteúdos semânticosde cada palavra conceitual, entendidos em diferentes épocas históricas. Os processos de mudança epermanência de tais conceitualizações, portanto, podem ser analisados após uma longa série designificados e do uso desses termos na sociedade. Pode-se considerar então, que cada conceitodepende da época e da sociedade vivenciada, refletindo a partir do significado dado a ele pelosindivíduos.Cada conceito é preso a uma ou mais palavras, mas nem toda palavra pode ser consideradaconceito social, político ou ideológico. Eles dependem de uma exigência de generalização na sociedade.Para que uma determinada palavra se torne conceito, é necessária a homogeneização da mesma nospreceitos sociais, dependendo sempre dos elementos associados a ela.Para Koselleck 5 “[...] uma palavra se torna um conceito se a totalidade das circunstânciaspolítico-sociais e empíricas, nas quais e para as quais essa palavra é usada, se agrega a ela”. Assim, osconceitos são vocábulos que concentram diversos e abundantes significados. Pode assim, reunir adiversidade da experiência histórica ou ser analisado através de uma única circunstância.Uma história dos conceitos deve sempre considerar os acontecimentos e as situações políticas esociais que já tenham sido compreendidos e também os resultados obtidos por uma pesquisa destesdeterminados eventos na sociedade, para poder compreender seus elementos constitutivos.Através do trabalho da história dos conceitos, a problematização e as premissas históricas podem seravaliadas a curto, médio e longo tempo. Ela consegue confrontar mudanças e permanências dessesconceitos por entre os anos e fatos sociais decorridos deles.Dentro deste parâmetro, este artigo busca discutir o conceito de Segurança Nacional, e suarecepção e aplicação no Brasil durante os anos da ditadura cívico-militar (1964 a 1985), apontando suasorigens e sua manutenção durante os anos, e os fatos surgidos com tal acontecimento que modificaramos moldes políticos e sociais do país.“Traçar a história dos conceitos significa identificar as continuidades e transformações que,dentro da perspectiva de uma imersão definitiva do mundo moderno, constituem os eixos de longaduração da experiência política do Ocidente” 6 .Neste sentido, a análise proposta neste trabalho se baseia no conceito de Segurança Nacional esua articulação na sociedade durante os anos da ditadura cívico-militar no país, delimitado entre 1964 e1985. A Doutrina de Segurança Nacional advinda das características propostas pelos Estados Unidosproporciona transformações na esfera política, econômica e social do Brasil.Assim, primeiramente será delimitada a origem deste conceito e sua estruturação e meio a estecontexto histórico, seguindo com a análise da Doutrina de Segurança Nacional e sua caracterização.Origens do Conceito de Segurança Nacional.Entre os anos de 1964 e 1985, o Brasil viveu a ditadura cívico-militar, anos estes que secaracterizaram pela inserção da política de segurança nacional e a busca pela erradicação do chamado“inimigo interno”. Neste período o grupo militar, dividido internamente entre os radicais de direita e osmilitares moderados controlaram as decisões do país e governaram á partir das ideias da SegurançaNacional, de maneira a defender os “interesses do país”, mantendo a ordem e a paz.Este fato originário do regime da ditadura cívico-militar, apesar de suas várias interpretações,teve origem na tentativa de erradicar governos de cunho esquerdista no país, por meio das ideiasadvindas da ideologia da Segurança Nacional.“A Segurança Nacional é a capacidade que o Estado dá à Nação para impor seus objetivos atodas as forças oponentes” 7 . É através da aplicação dessa Segurança, que o Estado defende os ideaisque acredita ser o melhor para a nação, utilizando qualquer forma, sendo esta violenta ou não. Para issoos militares fizeram uso de um aparato legal que sustentava todas as decisões e ações, denominadoaqui no Brasil de Atos Institucionais.A origem do conceito de Segurança Nacional advém dos Estados Unidos com a sua política dedefesa contra o comunismo, considerado para eles o “inimigo”. Após o término da Segunda Guerra4567KOSSELECK, 2006, P. 103KOSSELECK, 2006, P. 109.(CHIGNOLA, apud FERES JUNIOR, 2007, p.112).COMBLIN, 1978, P. 54217


Mundial, os estadunidenses reformularam sua política ideológica a fim de reestruturar as bases de seunovo plano político voltado para a defesa da ideologia de Segurança Nacional e para a proteção de seusinteresses.Os Estados Unidos dentro desse contexto buscava cumprir sua meta, que era delimitada como avitória frente a nova guerra que se aproximara (Guerra Fria). Para isto os objetivos que necessitavam,eram de deter o poder absoluto frente às nações aliadas, para conseguir assim se defender do queestava por vir. “[...] desse modo parece-lhes normal que a segurança – um bem absoluto e ilimitado –seja a meta da guerra, a meta da guerra fria e a meta de sua política externa” 8 .Dentro do contexto da Guerra Fria, a política norte-americana pautada no objetivo de SegurançaNacional, passou a ser marcada pelo acentuado anticomunismo iniciando assim, uma forte influênciafrente às nações que estavam ameaçadas pelo chamado “inimigo”. Seu objetivo era assegurar osmercados tradicionais e os novos que estavam abrindo devido o processo de descolonização de antigosimpérios.Assim, os Estados Unidos organizaram dois planos visando fortalecer o regime capitalistaliderado por eles. Primeiro o Plano Marshall, “elaborado para reconstruiu a economia europeia, visandobarrar o avanço do comunismo [...]”. Segundo, a Doutrina Trumann “e a sua política de contenção,através da qual os Estados Unidos se comprometiam a enviar forças militares a qualquer país do mundoameaçado pela União Soviética [...]”. 9Esses dois projetos criados pelos Estados Unidos acabaram por “influenciar” em toda asociedade, modificando as metas políticas de defesa dos interesses nacionais, tanto nos paísesinfluenciados pelo capitalismo que deveriam seguir os ideais norte-americanos, quanto para os paísessocialistas que necessitavam elaborar assim, um projeto econômico e político a fim de se desenvolverem meio a essa conjuntura.Toda essa concepção intelectual, frente à disputa entre capitalismo e socialismo, estáfundamentada no conceito de “interesse nacional”. Esse conceito vai muito além do que se pode pensarem ser do interesse social, pois dentro de cada nação há divergências de ideias na questão do queconsiderar interesse, e o sobre o que deve se defender.Consequentemente, a meta de toda política nacional é a defesa do interesse nacional.O conceito de interesse nacional é muito pouco claro em si mesmo. Assim que se tentadefinir lhe o conteúdo, torna-se vago e inapreensível. No entanto é muito enfatizado:nele se vê, acima de tudo, a recusa de qualquer finalidade ideal abstrata 10 . (COMBLIN,1978,P. 109).No Brasil, este conceito sempre esteve presente na sociedade, com o intuito de proteger oterritório nacional contra os inimigos internos, ou contra a ameaça externa. Entretanto, mais recente eobjeto desse estudo, é dado ênfase ao período cívico-militar, onde as forças governamentais utilizavamdessa conceitualização para explicar toda e qualquer ação desempenhada por eles.“a segurança nacional é eminentemente política e, portanto, ideológica; é uma dasmodalidades de que se reveste a política geral de um país. Seu conteúdo não éestático, mas historicamente variável. Um mesmo país terá políticos de segurançanacional diferentes, conforme as etapas de seu desenvolvimento.A partir desse período, com esses ideais muito fortemente ligados à política interna e externa dopaís, a Segurança Nacional passa a ser uma regra para a Nação poder se desenvolver e se proteger. Eque para todos os objetivos entendidos para o desenvolvimento do país sejam alcançados é necessárioa implementação dessa Doutrina nos âmbitos sociais e políticos.Com o fundamento de bem-estar social ligado ao conceito, a sociedade inicia a implementação dascaracterísticas da Segurança Nacional como sendo a única maneira na época (Golpe Militar – 1964) depoder assegurar sua economia e sua política nacional, sem correr riscos de ser atacados ou serinfluenciados pelo “maléfico” comunismo. Constituindo assim o aparato legal que regia a sociedade - Leide Segurança Nacional e Atos Institucionais – a partir da influência exercida pelos Estados Unidos sobreos militares que se preparavam nos colégios ou escolas de guerra.A preparação direta para o novo regime militar brasileiro foi a Escola Superior deGuerra, fundada em 1949. Porém os homens que fundaram a Escola Superior deGuerra para imitar o National War College de Washington e introduzir suas doutrinas no8910COMBLIN, 1978, P. 108.FERNANDES, Antíteses, 2009, p.832.REZNIK, 2004,P. 36 apud Ramos, 1957.218


Brasil não partiram do nada 11 .O National War College, fundado em 1946 pelos Estados Unidos, teve como objetivo a criaçãode um centro coordenado para estudar e aprimorar a política externa dentro do contexto da Guerra Fria,visando a segurança do território e da nação. Ele também foi responsável pela criação da Doutrina deSegurança Nacional, que mais tarde foi difundida pelos países da América Latina.Após a Revolução Cubana, com a disseminação da ideia do avanço comunista, foram realizadosprogramas militares que ensinavam sobre a proteção contra esse novo modelo político-econômico,considerando por alguns grupos “um modelo maléfico” para a sociedade. Os primeiros treinamentosforam realizados na zona de ocupação do canal do Panamá e estendidos para os militares de toda aAmérica Latina, orientando sobre a estratégica de contensão da expansão desse regime, iniciando adefesa pela segurança interna.Dessa forma, a enorme rede de comunicação criada pelos Estados Unidos com os países daAmérica Latina a partir de centros de instrução e de missões militares, acabou por reforçar ainda mais aideologia do conceito de Segurança Nacional e sua aplicação pelos militares, que no momento eram aspessoas treinadas e indicadas para tal situação. Assim, mais uma vez fortificava a ideia que somente umgoverno militar conseguiria organizar e recuperar o desenvolvimento de um país que passava por umacrise econômica ou devido a existência de um governo com abertura para os ideais comunistas 12 .Assim, sob a influência dessa instituição, os países latinos americanos fundaram suas própriasescolas de guerra, tendo a mesma finalidade: a segurança e proteção de sua nação.No Brasil foi fundada a Escola Superior de Guerra, a qual determinou a aproximação de setores civis emilitares, uma campanha que já vinha se estruturando na sociedade brasileira a muito tempo. EstaEscola, mais tarde vai recepcionar a Doutrina de Segurança Nacional teorizando o conteúdo ideológicopara a aplicação manutenção do golpe militar em 1964.A Escola Superior de Guerra teve suas origens remotas em 1922, época de despertar nacionalem vários setores e anos também do modernismo nacional. Neste mesmo período um pequeno grupo detenentes se organizou e ocupou por algumas horas o Forte de Copacabana querendo o poder, esseepisódio é conhecido pelo movimento do Tenentismo. Essa tentativa fracassou no momento, mais serviude ponto inicial para a organização dos militares enquanto grupo para protagonizar a política do país.Desse modo, dentro de uma linha evolutiva o exército passou a ter participação ativa na política doEstado, aonde em 1964 chega ao poder, a partir de uma estruturação ideológica, baseada nametodologia desenvolvida pelas suas instituições de guerra e proteção.Além de toda a influência norte americana, os objetos de análise desse grupo sefundamentaram no pensamento positivista: progresso, ciência e indústria; no novo nacionalismo, onde sedestaca a busca por um Brasil grande e poderoso; nas ideias políticas pautadas no novo liberalismoeconômico, argumentando que o país ainda não estava suficientemente maduro ou organizado para ademocracia, sendo necessário um autoritarismo político centrado na importância da geopolítica, quepassa a ser o elemento necessário para o país cumprir seu destino em ser potência mundial.A Escola Superior de Guerra é uma instituição de “próprio gênero”, sendo independente doExército, da Marinha e da Aeronáutica. Ela destina-se a formar uma classe dirigente de civis e militares 13 .Desde o início está, formulou conceitos fundamentais esquematizando a Doutrina de objetivos nacionais,segurança nacional, poder nacional e estratégia nacional.Até 1964, os teóricos da ESG 14 , são pouco explícitos quanto aos seus objetivos em relação aoregime político do país, não colocando em ação a Doutrina de Segurança Nacional no estado, defendidopor eles. Com o golpe cívico-militar a oportunidade de se colocar em prática todos os seu ideais se tornapossível.Desse modo, a Doutrina de Segurança Nacional, através dos militares apoiados pela elite civil,foi adotada pela política brasileira com pouca reação adversa, pois o movimento reacionista não possuíano momento força para se contrapor, se comparado ao aparato que possuíam os militares.A Doutrina de Segurança Nacional no Brasil.O golpe cívico-militar e a manutenção desse regime sofreu influência direta da Doutrina de11121314COMBLIN, 1978.P. 151).No caso o governo citado aqui, seria o governo de Jânio Quadros e depois de João Goulart, que por disseminarideias de reforma agrária e reformulações sociais, acabaram por ser considerados governos pré-comunistas poralguns grupos políticos brasileiros.COMBLIN, Pe J. A Ideologia da Segurança Nacional. O poder militar na América Latina. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1978, P. 153.ESG: Escola Superior de Guerra.219


Segurança Nacional, como já citado anteriormente. Ela forneceu inerentemente a estrutura necessáriapara a instalação e a manutenção de um estado forte com uma determinada ordem social.“Objetivamente, a Doutrina de Segurança Nacional é a manifestação de uma ideologia querepousa sobre uma concepção de guerra permanente e total entre o comunismo e os paísesocidentais” 15 .Essa Doutrina pode ser assim considerada como o esqueleto teórico que fundamentou osregimes cívico-militares com justificativas na emergência das Forças Armadas assumirem o conturbadocenário político dos anos 60. Ela foi disseminada através de academias e escolas de guerra, formandoquadros de profissionais especializados na área com os preceitos de bipolaridade, delimitação de zonasde influências, caracterização do inimigo e consequentemente sua derrota frente aos combates e aintrodução de proteção do Estado e da nação (organismos passíveis de contaminação) contra ocomunismo.Dessa maneira, os teóricos do período aproximaram as ideias de necessidade de segurançacom a doutrina de contrarrevolução 16 . Ou seja, além de reforçar os aportes teóricos de proteção e dadisseminação do ideário de Segurança era necessário também buscar introduzir políticas queconfrontassem os “inimigos” e os mostrasse incapazes perante o poderio capitalista ou anticomunista.Os fundamentos dessa Doutrina de Segurança Nacional se modificam perante o cenáriomundial, configurando-se na noção de segurança coletiva, de uma segurança hemisférica, ampliando anoção desde a Doutrina Monroe 17 . Essa segurança considerada neste momento coletiva, se configuroufrente a ameaça comunista que “obrigou” os Estados Unidos a lançaram um programa de assistênciamilitar em vários países americanos, inclusive no Brasil.O clima de Guerra Fria faz entender o conceito de guerra em todos os seus parâmetros, primeirofazendo apelo a todas as formas de participação, eliminado de seu caráter a neutralidade ou aambiguidade. Segundo a ideia de guerra total, é possível identificar o conflito dentro e fora das fronteirasnacionais, podendo este ser gerado tanto no exterior quanto no interior, criando aqui o conceito de“inimigo interno e inimigo externo”.A formulação dessa Doutrina de Segurança Nacional passa por diversas etapas, desde a suafundação até a colocação em prática de seus objetos políticos no meio social. Apesar das mudanças, oelemento fundamental – considerado o conflito ideológico – se mantém, possibilitando assim uma guerratotal entre Ocidente e Oriente.Além do conflito ideológico, outro elemento de importância a se considerar é a geopolítica naconjuntura internacional. Segundo alguns pensadores brasileiros, que estudaram a origem da palavra(geo = terra, política=arte de governar) o objetivo dessa pode estar em tentar dar teoria a uma marcapolítica e não apenas ou somente geográfica.A geopolítica, dentro dessa caracterização se apresenta como uma teoria do e para o Estado,mas para um Estado de características militares, com uma teoria de Estado absoluto, de poderio. De umEstado que se caracteriza pela vontade de um líder ditador ou de um grupo coletivo ditatorial, como é ocaso das Forças Armadas, modelando-se a partir da vontade de poucos e articulando estas à vida socialde uma sociedade inteira.Essa geopolítica se fundamenta no conceito de ditadura soberana, elaborada por um juristaalemão chamado Karl Schmidt. A base desse conceito se articula do ideário de que o direito, ou conjuntode regras que rege a sociedade não se baseia somente em normas gerais e sim no regimento demúltiplas situações, podendo estas serem individuais ou coletivas 18 .Assim, o governo passaria a ser absoluto e encarregado de tomar todas as decisões, sendoestas em momentos de crise ou não. Podendo ainda suspender ou criar constituições legais, a fim deseguir seus preceitos.“A ditadura soberana se caracteriza não somente pela usurpação do poder (golpe militar), mastambém pela concentração em suas mãos de todos os poderes e funções do Estado (a manutenção doregime)” 19 .Desse modo, foi a partir dessa concepção de geopolítica, ligado a Segurança Nacional e aoconceito de ditadura soberana que o grupo cívico-militar toma a liderança do governo em 1964, se1516171819BORGES, 2003, p. 24PADRÓS, Henrique Serra. Como el Uruguay no hay...Terror de Estado e Segurança Nacional - Uruguai (1968-1985): do Pachecato a Ditadura Cívico-Militar. 2005. 876 f. Tese (Doutorado - Programa de Pós-Graduação emHistória do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005, p. 184A Doutrina Monroe foi proferida pelo presidente James Monroe no dia 02 de dezembro de 1823, no Congressonorte-americano.BORGES, Nilson. A Doutrina da Segurança Nacional e os governos militares. In: DELGADO, Lucilia de AlmeidaNeves, FERREIRA, Jorge. O Brasil republicano: o tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais emfins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. P.26,BORGES, 2003, p. 27220


utilizando do poder de governar e concentrando de forma considerada legal pelos “olhos da lei”, ou seja,com todo o aparato de Atos, Leis, Constituições conseguem se manter no poder por mais de 15 anos,sem surgir nesse meio tempo um grupo forte capaz de derrubar o governo e instaurar um modelo políticodemocrático.Além de todas as características já citadas, a geopolítica dentro dos países latino-americanos noperíodo trabalha com as chamadas “fronteiras ideológicas”. Estas não delimitam um território nacional dooutro separando os Estados-Nação, e sim separa os povos dentro das nações, devido os divergentesmodelos ideológicos existentes. Desse modo, os militares se colocam em pontos estratégicos dentro dasnações, aonde podem controlar através de ações civis, toda a sociedade.Nos governos militares, surgidos nos anos 60 dentro da América Latina, a geopolítica sefundamenta na concepção bélica e se sobrepõe na ciência política, ou seja, o sentimento de defesa, deguerra, de luta, torna-se de maior importância se comparado ao sentimento político. Pois a política passaa ser absorvida pelas estratégias criadas pelos militares. Assim;Neste contexto denominado arte militar 20 , a política torna-se o elemento fundamental para amanutenção do poder por parte dos participantes da instauração do golpe. Assim a guerra interna com abusca e a eliminação incessante do inimigo interno passa a ser uma estratégia imposta para impor achamada segurança nacional no país.Com estreita ligação entre a manutenção do poder militar e a Doutrina de Segurança, a obtençãodos objetivos nacionais passam a ser realizados pelo desenvolvimento da competição política que surgecom o novo cenário global, pautado nas novas estratégias de guerra e de luta interna, transformandoassim o país em um cenário de luta política que não abre espaços para novas negociações.A guerra interna é, pois, uma guerra total e permanente, o que vai atribuir um fortepapel, na sociedade civil, aos aparelhos de segurança e informações que agem,preferencialmente, pela violência, com suas táticas de guerra e métodos desumanos(tortura física) 21 .A guerra total, que foi o contexto institucionalizado durante a manutenção da política da Doutrinade Segurança Nacional, defende a ideia de que as ações tomadas frente a população não são somentemilitares, mas também psicológicas, que definem a forma de agir das lideranças governamentais do país.Essas ações psicológicas são necessárias à Doutrina para que seu projeto seja incorporado edesempenhado, pois nessa guerra tratava-se de aniquilar moralmente os inimigos e de assegurar queessa oposição não se colocasse contra a projeção política da Doutrina de Segurança Nacional.Essa guerra psicológica se fundamenta na ideia de terror de Estado, utilizado diretamente com ofim de intimidar o inimigo e evitar que os indecisos partam para o lado contrário dos militares. O Estadoassim se configurou como um elemento repressivo, que varia o grau de violência, tendo como marcacomum a supressão das instituições democráticas.[...] o Estado, que deveria ser uma estrutura de mediação e de proteção da sociedade,agindo como fiador da segurança das pessoas, foi utilizado, de forma geral, em toda aregião, como um mecanismo que devia enfrentar e derrotar o “inimigo interno” 22 .Cada país que adotou o regime fundamentado nas ideias militares efetivaram sua interpretaçãoindividual da Doutrina de Segurança e aplicaram a partir de um aparato estatal que de certa formaextrapolou os limites constitucionais, transformando a política em um sistema de terror de Estado.Esse terror de estado se constitui como um instrumento de análise da realidade dos governosmilitares que se basearam no conceito de Segurança Nacional e nos objetos políticos da Doutrina.Enrique Serra Padrós (2005), defende que a política do Terror de Estado implementada pelosgovernos civil-militares, foi o mecanismo utilizado para aplicar as premissas da Doutrina de SegurançaNacional. Segundo ele esse Terror de Estado se fundamenta como uma modalidade de terrorismo.Além desta linha de discussão sobre o terrorismo, outra linha de interpretação surge dentro docontexto de governo militar e da Doutrina de Segurança Nacional, que coloca os chamados “inimigosinternos”, ou seja, os adeptos ou simpatizantes do comunismo, como os protagonistas desse terrorismo.A partir das colocações sobre o conceito de Terror de Estado, de guerra, pode-se começar atraçar um dos objetivos ou talvez uma justificativa da Doutrina de Segurança Nacional em não realizar aescolha dos dirigentes da população através da eleição popular. Pois segundo essa Doutrina, o inimigo eo próprio ato de agressão surgem do grau de entendimento político e socioeconômico do povo, esomente as pessoas que atingem um “certo patamar”, considerado por eles um grau de preparação e202122Arte Militar: a expressão neste sentido quer se relacionar ao poderio militar durante os anos da ditadura nocenário político brasileiro.BORGES, 2003, p. 28.PADRÓS, 2005, p.58.221


experiência, possuindo os saberes militares de como agir, podem ter legitimidade do poder no país.Assim, esses dirigentes nomeados pelo corpo militar precisam impor sua autoridade perante anação. Para isso estes se utilizam de meios concretos, sendo estes a política e a censura, visado seremorganizados em vista de ações repressivas mantendo a ordem pública e impedindo ações subversivascontra o governo.A Doutrina de Segurança Nacional trabalha com quatro conceitos principais: os objetivosnacionais, que se dividem em permanentes e atuais [...]; o poder nacional [...]; aestratégia nacional [...]; segurança nacional [...]. É pois, em torno desses conceitos,adaptados às características estruturais e conjunturais de cada país, que gira aDoutrina 23 .Esses quatro conceitos estão descritos na política dessa Doutrina de Segurança Nacional, mas oque merece mais atenção, sem dúvida são os objetivos nacionais. Na prática eles são a teorização dosinteresses, das aspirações e das regras de uma nação inspirada nesses conceitos.No Brasil, a Doutrina serviu como base ideológica do regime militar implantado em 1964 econtribuiu para a formação do aparato de informações da nova ordem constitucional do país. O ServiçoNacional de Informações (SNI) foi criado logo após a efetivação do golpe, no governo de Castelo Brancoe foi a forma criada pelos militares para tentar controlar os “inimigos internos”.Esse Serviço de Informações passa a concentrar dentro do país todo e qualquer tipo deinformação e de tratar de assuntos internos e externos. O grupo assim passa a assumir umasuperioridade no bloco do poder, tendo em vista a função de coletar, analisar e julgar as informaçõespertinentes para a contenção dos inimigos do regime.Assim, na medida em que a Doutrina era difundida pela sociedade, o governo militar articulavauma estrutura jurídica forte e fundamentada nos preceitos de defesa da nação, impondo para todas assuas ideias e regimentos, perseguindo os chamados “inimigos”, fundamentado nos aparatos do Terrorcriado pelo Estado.Considerações FinaisA Doutrina de Segurança Nacional, baseada no conceito de segurança Nacional e disseminadana sociedade pela política de defesa dos Estados Unidos, fundamentou todos os governos militaressurgidos na América Latina. Esses governos surgiam com o objetivo de ordenar o país, protegendo todaa nação contra o inimigo, considerado por essa política; os adeptos ao comunismo.Esse modelo político instaurado chegou às forças governamentais através da instrução dada aosmilitares através das Escolas de guerra que eram ministradas pelos norte americanos. No caso brasileirofoi a Escola Superior de Guerra a responsável pela orientação dada aos militares e civis que mais tardevão ser os protagonistas do golpe de 1964.No Brasil, a permanência do regime militar no país se deve a duas características: primeira; aexistência de uma ideologia que ultrapassa as particulares nacionais e mantém a estrutura e coerênciapolítica através da base constitucional criada para manter os militares no governo brasileiro. Segunda; autilização da política do Terror do Estado, que advinha do uso de torturas psicológicas e também físicas,causando medo da população em geral.Dentro da estruturação política dos militares brasileiros, a Doutrina de Segurança serviu paraabolir dois princípios fundamentais do regime democrático: a subordinação dos militares ao poder civil,pois agora eles estavam no alto patamar governamental; e a não intervenção no processo político, poisagora a política estava toda fundamentada no conceito de segurança contra os inimigos submetidos aosmilitares.Assim, a base ideológica do regime militar decorrem várias ações que afetam distintos setoressociais, pois, a prática das eleições indiretas para presidente, e a de nomeação para governadores,prefeitos de capitais e prefeitos das Áreas de Interesse de Segurança Nacional, era uma forma de dizerque o povo brasileiro não sabia escolher seu representante. Disseminado a ideia de que isso era umaforma de se defender contra os “inimigos internos” que poderiam chegar ao poder.Durante todo o governo militar e a manutenção da Doutrina de Segurança, os direitos civis epolíticos foram os que mais sofreram com a ação dos governantes militares. Pois além do povo nãopoder escolher seus representantes, a manutenção do sentimento de terror, através das torturas eperseguições faziam com que a maioria dos brasileiros aceitassem as determinações sem se manifestarcontra.Dessa maneira, o objeto de estudo desse artigo que era analisar a trajetória e fundamentação daDoutrina de Segurança Nacional foi discutido, utilizando como foco de discussão o golpe militarbrasileiro. Portanto, o que de fato precisa ser levado em consideração é a forma como o poder foi23BORGES, 2003, p. 30.222


manipulado e controlado pelos militares, e a não efetivação dos direitos legais do povo brasileiro, quenão teve opção de escolha política durante os anos analisados.Referências Bibliográficas:BORGES, Nilson. A Doutrina da Segurança Nacional e os governos militares. In: DELGADO, Lucilia deAlmeida Neves, FERREIRA, Jorge. O Brasil republicano: o tempo da ditadura – regime militar emovimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.COMBLIN, Pe. J. A Ideologia da Segurança Nacional. O poder militar na América Latina. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1978.pg. 103 á 149.FERNANDES, Ananda Simões. A reformulação da Doutrina de Segurança nacional pela Escola Superiorde Guerra no Brasil: a geopolítica de Golbery do Couto e Silva. Antíteses, vol. 2, n. 4, jul-dez. de 2009,pp. 831-856. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php;antiteses.JASMIN. Marcelo Gantus & FERES Jr.. João. História dos Conceitos: dois momentos de um encontrointelectual. IN: Jasmin, Marcelo Gantus & FERES Jr,. João (org). História dos Conceitos; debates eperspectivas. Rio de Janeiro: Editora PUC – Rio: Edições Loyola: IUPERJ, 2006. (p. 9-38).KOSELLECK, Reinhardt. História dos conceitos e história social. \\\ “Espaço de experiência” \\\ e \\\“horizonte de expectativa”\\\: duas categorias históricas. In: Futuro passado. Contribuição à semânticados tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC – Rio, 2006.PADRÓS, Henrique Serra. Como el Uruguay no hay...Terror de Estado e Segurança Nacional – Uruguai(1968-1985): do Pachecato a Ditadura Cívico-Militar. 2005. 876 f. Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do RioGrande do Sul) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.REZNIK, Luís. Democracia e Segurança Nacional: a polícia política no pós-guerra – Rio de Janeiro:Editora FGV, 2004.188p.TAPIA, 1981, p. 161; In, BORGES, Nilson. A Doutrina da Segurança Nacional e os governos militares. In:DELGADO, Lucilia de Almeida Neves, FERREIRA, Jorge. O Brasil republicano: o tempo da ditadura –regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.223


224


VI – Ditaduras: Arte, Cultura e Censura225


A Memória da Censura durante a Ditadura Civil Militar em Campo Grande/MS.Mariana Duenha Rodrigues 1Resumo: O presente artigo tem como objeto de pesquisa, a repressão política, com foco na cesura, nacidade de Campo Grande/MS, durante os anos de 1964-1985, marcados pela Ditadura Civil Militar noBrasil. Levantando a discussão de como foi esses 21 anos em cidades interioranas, e até então, tidoscomo “pacatas”, que historiograficamente pouco se conhece. Utilizando como, principal fonte depesquisa, a História Oral, com entrevistas e vídeo documentário.Palavras-chave: MT/MS – Ditadura – Repressão – Censura.Mato Grosso do Sul localiza-se no Centro-oeste do Brasil, fazendo fronteira com a Bolívia eParaguai. Estado conhecido pelas riquezas naturais, grandes rebanhos, e agricultura, que foi criado emmeio ao caos que o país passava, enfrentando um governo ditatorial de extrema repressão política eideológica, que teve de sua história, ainda jovem, uma parte abafada. O Estado “interiorano” não era tãocalmo assim, o governo de opressão e o Terror de Estado deixaram suas marcas.Entretanto, historiograficamente, pouco se fala da ditadura civil-militar no Estado de Mato Grossodo Sul, o que torna ainda mais intrigante o porquê de tanto silêncio. A escolha da metodologia, HistóriaOral, deu-se a partir desses silêncios, não apenas por se mostrar uma fonte de pesquisa viável, masprincipalmente por se tratar da memória individual e coletiva de diferentes grupos e pessoas queestiveram envolvidas, diretamente ou indiretamente, nos anos de chumbo, principalmente entre os anosde 1969 a 1985 na cidade de Campo Grande.Em entrevista ao documentário “Gritos do Mato” 2 da Jornalista Tainara Rebelo, a professoraMaria da Glória Sá Rosa 3 diz,Campo Grande e a Censura“Chamada de “Revolução”, em 1964, tinha como lema combater a corrupção e asubversão. Então tudo aquilo que podia ferir a moral e os bons costumes, eramproibidos, (...) em todos os níveis, havia aqueles olhos arregalados da censura, dospseudos “defensores” da moral e dos bons costumes, tentando cortar o que pudessefazer mal as consciências.” (Maria da Glória Sá Rosa, Gritos do Mato, 2009)Na virada da década de 1960-1970, Campo Grande era uma cidade “pacata” dos imigrantesparaguaios, portugueses, japoneses e sírio-libaneses, além da presença indígena, expressiva, queconstituiu parte de sua cultura. Com a criação de Mato Grosso do Sul, em 1977, tornou-se a capital donovo Estado. Perfilava-se como uma cidade em grande desenvolvimento e abrigava diferentes posiçõespolíticas do Mato Grosso. Mas, apesar de sua aparente “calmaria”, não se livrou da “mão pesada” daditadura civil-militar no Brasil. Entretanto, a proporção e a intensidade em que se era “aplicada” os meiosrepressivos pareciam variar de acordo com o Estado da federação. Segundo Paulo Simões 4 , o fato deCampo Grande ser considerada uma cidade calma, favorecia para que qualquer comportamento“diferente” fosse logo repreendido.“Além do fato de Campo grande ser uma cidade do interior, uma cidade, relativamente,“provinciana” na época. Ao mesmo tempo o clima era de censura, de medo, de restriçãode liberdade. Qualquer coisa que destoasse, era vista com muito mais preocupação.”1234Email: mariduenha@uol.com.br Telefone: (67)9150-6033 Graduada em História/UFMS.Graduada em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Artigo realizado a partir doTrabalho de Conclusão de Curso, sob orientação do Professor Dr. Jorge Christian Fernandez. (2012) REBELO,T. P. 2009. “Gritos do Mato – a contracultura – expressão artística – no período da Ditadura Militar em CampoGrande.”Maria da Glória Sá Rosa – também conhecida como “Glorinha” - Professora aposentada da UniversidadeFederal de Mato grosso do Sul (UFMS), onde lecionou, por 26 anos, Literaturas de Língua Portuguesa e Históriada Arte. Fundadora da Revista Estudos Universitários (FUCMAT) o Teatro Universitário Campo-grandense (TUC)e o Cine Clube de Campo Grande. Responsável por diferentes movimentos culturais na cidade de CampoGrande/MS. Atualmente compõe a Academia Sul-Mato-Grossense de Letras. Disponível em:http://www.acletrasms.com.br/membro.asp ?IDMCad=37, (Acessado em 02/07/2012).Paulo Simões- Músico e Jornalista.227


(Paulo Simões, Gritos do Mato, 2009)Em entrevista, ao ser questionado sobre a ditadura ter sido “branda” no estado de MatoGrosso/Mato Grosso do Sul, Américo Calheiros 5 diz:Sob a mesma pergunta Celito Espindola 6 diz:“Obviamente nós aqui no Estado de Mato Grosso do Sul, não tivemos aquela... Nãochegamos a ver com muita projeção, como aconteceu em outros lugares do Brasil, nosgrandes centros, Rio, São Paulo, aqui não houve uma manifestação publica a exemplode Rio São Paulo, né? (...) à medida que a gente foi crescendo foi entendo a força dosAtos Institucionais, o de 68 (AI-5), por exemplo, foi muito visível já por que a genteestava compreendendo melhor o que estava acontecendo. Sabia noticias de pessoasque tinham... de políticos que tinha sido cassados aqui, de acontecimentos envolvendohomens públicos, prisão, cassação, etc... Tudo isso começou a transparecer.” (AméricoCalheiros, entrevista realizada pelo autor em 21/03/2012)“Pelo que a gente tem conhecimento, do ponto de vista nacional, chegou de uma formamais branda, nós conhecemos história de pessoas que foram torturadas, presas, demaneira bem forte mesmo, mas aqui, eu percebo eventos dessa repressão física. Algunsfatos.” (Celito Espindola, entrevista realizada pelo autor em 15 de março de 2012)Na década de 1960, os movimentos culturais efervesciam em todo o mundo. A onda “paz eamor”, e os movimentos nacionais como tropicalismo, influenciaram os artistas regionais, queimpulsionados pela vontade de criar, deram vida, a partir de companhias de teatro, festivais músicas eapresentações, a uma cidade que se abria para uma nova vertente cultural.Em 1968, iniciava-se em Campo Grande um Festival de música regional, coordenado pelaProfessora Maria da Glória Sá Rosa, conhecida como Professora Glorinha, e que foi palco de muitacensura, já que o festival teve seu nascimento no mesmo ano que se institucionalizou o AI-5.Segundo Glorinha, a censura agiu desde o primeiro festival, quando vetou uma música docompositor Paulo Simões, que em seus versos continha uma frase em inglês, e naquela época não sepodia fazer qualquer referência que fosse ligada ao “estrangeiro”. No segundo festival, a censura vetouum texto de José Otavio Guizzo, intitulado “Zé Galo, costureiro e matador”, argumentando que se travade um texto contra a polícia e que estava atacando os “valores” da polícia. Nesse trecho da entrevista,Glorinha fala de como acontecia o processo de análise da censura:“A gente tinha que apresentar as letras em três copias para censura, ela analisava,cortava as coisas, e aquilo irritava profundamente as pessoas que assistiam,né?”(Maria da Glória Sá Rosa, Gritos do Mato, 2009)Diversos músicos tiveram problemas com a censura regional, Celito Espíndola teve a música“Alice” censurada, e só pode tocá-la no festival após fazer alterações na letra. O músico e compositorGeraldo Espindola conta que também teve duas músicas censuradas,“Eu cheguei a ter músicas censuradas, pela ditadura, como “muito sacana”, que é umacritica sobre o império norte americano, na época não era de “bom tom” se criticar ogoverno aliado, os Estados Unidos. (...) Teve também uma musica, que eu ganhei umfestival com ela, chamada, “ponha na sua cabeça”, que nós tivemos que mudar, por quetinha palavras muito agressivas, tive que mudar e mexer em toda letra, por que ogoverno também não permitia que se falassem palavras pesadas. Talvez porconsciência pesada.” (Geraldo Espíndola, Gritos do Mato, 2009)A indefinição da censura gerava conflito dentro do próprio sistema de repressão, desaprovandoem meios regionais, e aprovando na censura nacional, Paulo Simões e Geraldo Roca, compositores deumas das canções mais conhecidas do estado de Mato Grosso do Sul, “Trem do Pantanal”, viveram napele essa realidade.“Foi enorme a nossa surpresa, quando a censura local, regional, vetou a musica “Tremdo Pantanal”, eu tenho inclusive a cópia com o carimbo VETADO, não era censurado,era vetado. Lá fomos nós, eu e o Roca, discutimos com a censura da época, mas euconfesso que eu não resisti a ser um pouco mais duro e eu disse: “- Escuta, essa aqui56Américo Calheiros – Professor, teatrista e criador do Grupo Teatral Amador Campo-Grandense (GUTAC).Atualmente assume o cargo de Presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul.Celito Espindola - Professor, Produtor e Compositor.228


tudo bem que ali a gente coloca estojo, faz um negocio, agora Trem do pantanal,francamente, o que é que você viu aí de tão perigoso?”,ela falou: “- A primeira aqui, aprimeira estrofe: “Mas um fugitivo da guerra”, que guerra é essa?”(...) Mas, eu volteipara o Rio de Janeiro, com o Roca, e nós mandamos para a censura de lá, que era umacensura de peso nacional, a daqui tinha peso apenas regional. Foiabsolutamente aprovada, até por que não foi entendida.” (Paulo Simões, Gritos do Mato,2009).Eram também realizados festivais de teatro, e segundo a professora Glorinha, a censura noteatro foi ainda mais expressiva. Diversas peças foram censuradas, algumas delas totalmente impedidasde serem apresentadas como a peça “Arena contra zumbi”. Outra peça que foi vista com maus olhospela censura foi à peça: “O outro lado, do lado de cá, visto do lado de lá dos lados”, também conhecidapor “A estupefaciente conclusão que se chegou da discussão que teve lugar, entre Sargento X e RecrutaY, no país da nuvem azul”, de Paulo Simões e Cândido Fonseca, peça essa que ganhou o festival deteatro, e se tratava de um monólogo entre dois soldados que tinham morrido, mas não sabiam quetinham morrido.Outra peça que foi censurada, do grupo de Teatro Universitario Campograndense (TUC), foi apeça “Liberdade, Liberdade”, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel. Professora Glorinha conta queprecisou ir pessoalmente a Brasília para conseguir o aval da censura para apresentar essa peça, emesmo assim a peça veio toda cortada, com várias partes censuradas. Porém essa peça fez grandesucesso, sendo levada até Cuiabá, Três Lagoas e interior do Estado. Na apresentação em Três Lagoas,um dos atores da peça, desafiabdo a censura disse: “Atenção pessoal, se continuarmos a defender osprincípios da liberdade, se continuarmos a levar a efeito peças como essa, com tudo que a gente disse eainda vai dizer, eu acho que nós vamos cair numa democracia.”, após esse fato, Glorinha relata:“Quando eu voltei com o grupo para Campo Grande, o chefe da censura, veio aqui emcasa, e disse que eles não iriam mais deixar a peça ser levada em frente, por queestávamos desobedecendo, os atores falando texto que a censura tinha proibido. Ai eudisse: “-Mas eu não posso colocar um esparadrapo na boca dos atores!”no final, acabouai aceitando.” (Maria da Glória Sá Rosa, Gritos do Mato, 2009)Em 1971 fora criado em Campo Grande o Grupo Teatral Amador Campo-Grandense (GUTAC),por Américo Calheiros. O GUTAC teve grande participação em festivais, e Américo Calheiros teve umapeça totalmente censurada, chamada “Nada é Grátis”. Em entrevista, Américo conta sobre a censura,“Para nós, jovens daquela época, e para mim especificamente, a censura oriunda daditadura passou influenciar, diretamente, a minha e a nossa vida, a partir damanifestação de arte e cultura que a gente decidiu realizar, então eu tive uma peça deteatro minha proibida, literalmente, o texto todo, uma peça que se chamava Nada égrátis, da minha autoria e foi o último texto de teatro que eu escrevi, a gente já tavaensaiando, estávamos bastante animados, era uma peça que tinha toda umasimbologia, mas incompreensivelmente , quer dizer, ela foi proibida, censurada. (...)Eudisse na ocasião que esse tipo de coisa não ia afetar a minha capacidade criativa, masfoi o último texto de teatro que eu escrevi, de uma certa forma, eu senti com o passardos anos, que foi uma marca, uma castração, né?” (Américo Calheiros, entrevistarealizada pelo autor em 21/03/2012).Em outro trecho, ao perguntar sobre como acontecia os processos de censura, relatou:“Todos os textos de teatro tinham que passar pela censura Federal, não apenas o texto,que você tinha que mandar por antecedência, mas também você tinha que fazer umensaio final, antes de apresentar o espetáculo, para uma pessoa que representava aPolícia Federal, nessa área especifica de censura de espetáculos, como se fosse já oespetáculo no dia. Com roupa, com iluminação, com música, com todos os detalhespossíveis para que houvesse, fidedignamente, uma amostra do que você apresentaria ea pessoa ficava assistindo com o texto na mão acompanhando letra por letra, fala porfala, pausa por pausa, que tinha que obviamente estar de acordo com a censura quehavia sido previamente feito no texto que você tinha enviado para censura Federal.”(Américo Calheiros, entrevista realizada pelo autor em 21/03/2012)Américo levanta uma questão importante em sua fala, que são as marcas que a repressão doEstado, neste caso a censura, deixou em todos os que sofreram com o governo opressor. Ainda diz queo GUTAC não teve sua formação para “atingir” a ditadura, mas que na medida em que o tempo passava,e eles se davam conta do que a ditadura representava, os textos mais “politizados” foram surgindo,escritos, principalmente, pela Cristina Matogrosso. Sobre essa “castração” feita pela censura, Cristina229


Mato Grosso lembra:“O teatro para o povo, a arte para o povo, ela praticamente não chegava ao povo, daforma que ela deveria ser, na essência, no âmago do povo, entende? Não havia umaparticipação, era algo de elite para o povo. Então era algo que, existia uma pretensão,existia um ideal, existia uma plataforma disso ai tudo, só que ela não chegou a atingir.Ela poderia ter atingido, ela poderia ter avançado, nesse sentido, só que ouve o golpemilitar e o sonho acabou. Ai nasce o movimento de Campo Grande, quando o sonhoacabou.” (Cristina Mato Grosso, Gritos do Mato, 2009).A aproximação com outros Estados, também facilitou essa abertura e real dimensão darepressão, sobre isso, Américo diz:“Começamos a conhecer pessoas e grupos e... tinham posturas muito claras contra aquestão da censura no país. O país de uma certa forma também, na medida que acensura... que a ditadura foi ganhando mais anos, digamos assim, no país... foi trazendopor meio intelectual, do meio político, e de grande parte da classe artística nacional, todauma consciência e um nível de participação muito forte e com muita clareza com o quese pretendia. E o que se pretendia realmente era acabar com a Ditadura pelo Brasil.”(Américo Calheiros, entrevista realizada pelo autor em 21/03/2012)Com parte da imprensa manipulada pelo AI-5, também passou por momentos de forte repressão,o Jornalista José Ramos de Almeida 7 , conhecido como “Zeca do Trombone”, conta que passou porapuros durante a ditadura e que existia também nas redações de Campo Grande um censor que permitiaou não a publicação das matérias:“Então, você imagina, a dificuldade que era para um jornal diário fechar. Para um boçalqualquer, ficar tendo que ler tudo aquilo, para dar o aval. Nós sabíamos que ali naredação, tinha um censor, mas nem ver a cara do “fulano” não via, por que era umaquestão de “segurança”, né?” (Zeca Do Trambone, Gritos do Mato, 2009).Não se podia falar em miséria e pobreza do povo, que era considerado grande afronta aoEstado, assim como não podia publicar nada que incentivasse a revolta, ou “difamasse” o Estado. Zecado Trombone conta que em meados de 1973, fez um artigo questionando sobre a votação do novodiretor da União Campo-Grandensse de Estudantes (UCE), já que após a saída do então presidente,ninguém teve coragem de se candidatar:“E eu fiz um artigo, simplesmente dizendo: “Mas como que isso pode acontecer?!”, sorteque eu não assinei. Mas, houve o seguinte, tava na redação, e chegou um comunicadodo Comandante, do General, não sei quem era, não lembro, acho que era governo do“Garrastazu”, convocando toda a imprensa no seu gabinete. Rapaz! Todos os jornalistasapareceram lá, e pareciam tudo cordeirinhos, sabe? E o aparato militar era incrível, né?Os caras tudo lá... Ai, então entramos na sala do General, e o General praguejava: “- Eunão vou permitir uma coisa dessas, incitação a baderna”, e pegou o artigo e mostrou,“Isso aqui não pode acontecer, isso aqui se eu pegar o responsável, ele vai para cadeia”,E era eu! [Risos]” (Zeca Do Trambone, Gritos do Mato, 2009)Outro caso de repressão aconteceu na redação do jornal “O Democrata”, localizado na Rua Maracajuesquina com a Rua Calógeras, região central de Campo Grande. Segundo Lairson Palermo 8 , em 1964 ojornal “O Democrata” foi invadido pelos militares, que retirou o dono do jornal a força, atirou todo omaquinário e arquivo do jornal na rua e destruiu. O jornal “O Democrata” era financiado por comunistas,logo, sua destruição foi “justificada” como: “Ameaça aos interesses do país.” Abaixo, matéria vinculadano Jornal Correio do Estado.78José Ramos de Almeida -“Zeca do Trombobe”: Músico e Jornalista.Advogado Lairson Palermo em entrevista ao Jornalista Celso Bejarano, para o Jornal Correio do Estado.Disponível em: http://flip.siteseguro.ws/pub/correiodoestado/index.jsp?ipg=56328, (Acessado em: 02/07/2012)230


Figura 1. Matéria: “Arquivos de jornal foram destruídos pelos militares”, (AcervoCorreio do Estado, Maio 2012)Observa-se que os entrevistados tiveram melhores lembranças dos acontecimentos, entre osanos de 1969 a 1985, principalmente no governo do militar, Emilio Garrastazu Médici. Momento degrande repressão em todo o Brasil. Observa-se também que os entrevistados, embora fizessem algumareferência ao longo das entrevistas, não falaram em prisões e torturas no meio artístico, o que leva aacreditar que essas medidas eram tomadas em Mato Grosso do Sul, principalmente, em militantesengajados nas causas de Reforma de Bases. Nesse trecho da entrevista, nota-se o cuidado com osilêncio que a ditadura tinha:P – Você teve, ou conheceu alguém, que teve algum problema com a repressão, alémda censura(prisões, cassações, torturas)?Américo: A gente ouvia falar, de políticos que foram cassados, o Nelson Trad, a famíliaNeder também teve pessoas que foram aprisionadas, a gente ouvia falar...P – Mais voltado para política?Américo: É! Mais voltado para política, mas era tudo muito, como se diz? Tudo muitovelado. Doutor Wilson Barbosa Martins também foi cassado.(Entrevista realizada pelo autor em 21/03/2012)Entretanto, não se pode anular a possibilidade de artistas – músicos, atores, radialistas,escritores, jornalistas – locais, terem sido vítimas de prisões e torturas. Os silêncios causados peladitadura ainda são muitos. Isso fica evidente no receio que as pessoas ainda têm de falar sobre os “anosde chumbo”.Considerações finaisMuitas pessoas que estiveram envolvidas em movimentos contra o regime, em Campo Grande,parecem se recusar a falar e a relembrar os acontecimentos. Assim, podemos considerar que o “nãodito” 9 , exerce papel fundamental para o entendimento de como todo esse processo aconteceu. SegundoMichael Pollak, (1989, p.7) “Essa tipologia de discursos, de silêncios, e também de alusões e metáforas,é moldada pela angustia de não encontrar uma escuta, de ser punido por aquilo que se diz, ou, aomenos de se expor a mal-entendidos.”As marcas deixadas pelos 21 anos de governo militar, na cidade de Campo Grande, parecem sermaiores do que se pode imaginar e talvez a maior evidência disso seja a “falta” de evidências sobre aexistência da repressão no Estado de Mato Grosso/Mato Grosso do Sul. O que nos leva a pensar quetalvez seja mais cômodo acreditar que o Estado de Mato Grosso/Mato Grosso do Sul, não tenha sofridocom o Terror de Estado. Dessa forma:9POLLAK, Michael. Memória Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989, p. 3-15.231


“A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, emnossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou degrupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem queuma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor.” (POLLACK, 1989, p.6)O que levanta as seguintes duvidas: as pessoas envolvidas não querem mesmo falar, ou oEstado que não quer ouvir!? O terror das lembranças dos fatos, causados pela ditadura e a falta deinteresse do Estado, talvez esteja impedindo que a história seja, de fato, escrita.Referências BibliográficasBITTAR, Marisa. MATO GROSSO DO SUL a construção de um estado, volume I: regionalismo edivisionismo no sul de Mato Grosso/ Marisa Bittar. – Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2009.BITTAR, Marisa. MATO GROSSO DO SUL a construção de um estado, volume II: poder político e elitesdirigentes sul-mato-grossenses/ Marisa Bittar. – Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2009.DUENHA, Aline. Do palco à academia: arena de conflitos em mão na luva, de Oduvaldo Vianna Filho,2011.LEITE, Eudes Fernandes. Aquidauana: A baioneta, a toga e a utopia nos entremeios de uma pretensarevolução. / Eudes Fernandes Leite. – Dourados, MS: Editora da UFGD, 2009.MOREIRA ALVES, Maria H. Estado e Oposição no Brasil (1964- 1984). Petrópolis: Vozes, 1989.POLLAK, Michael. Memória Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.3,1989, p. 3-15.POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos históricos. Rio de Janeiro, v.5, n.10, 1992.PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História. São Paulo: PUC/SP. N. 14,fev. 1997.VideodocumentárioREBELO, T. P.“Gritos do Mato – a contracultura – expressão artística – no período da Ditadura Militar emCampo Grande.” 2009.232


Memórias da ditadura nos Cinemas Latino-americanos contemporâneosRosângela Fachel de Medeiros 1Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar e analisar algumas obras cinematográficas de umageração de cineastas latino-americanos que eram crianças durante a ditadura de seus países e que, dediferentes maneiras, trouxeram essas memórias para sua produção cinematográfica.Palavras-chave: Cinema – América Latina – Ditadura – Memória.Abstract: The objective of this work is to present and analyze some films by a generation of LatinAmericans filmmakers who were children during the dictatorship in their countries and that, in differentways, brought those memories to his cinematographic production.Keywords: Cinema – Latin America – Dictatorship – MemoryObserva-se uma tendência nos Cinemas Latino-americanos contemporâneos a enfocarem emsuas narrativas, direta ou indiretamente, as ditaduras vividas nos países da região. Tal fato contribui, porexemplo, para que dentre as indicações dos países Latino-americanos à pré-seleção para o Oscar 2013na categoria de Melhor Filme Estrangeiro estivessem duas produções que abordam diretamente o tema:o chileno, No – 2012, de Pablo Larraín, e o argentino, Infância Clandestina – 2011, de Benjamín Ávila. Ofilme de Larraín acabou ficando entre os cinco concorrentes finais à premiação. Vale lembrar que oprimeiro filme argentino a receber o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro foi A história oficial (La historiaoficial – 1985), de Luis Puenso, que aborda a delicada questão das crianças que eram retiradas de seuspais, presos políticos que seriam executados, e entregues em adoção a famílias de militares ou decolaboradores da ditadura. E O segredo de seus olhos (El secreto de sus ojos – 2010), de Juan JoséCampanella, que recebeu o segundo Oscar para o cinema argentino, trata do passado obscuro préditadurade 1976. Além disso, outras recentes indicações de países Latino-americanos ao Oscarabordavam as ditaduras da região: o argentino Kamchatka (2002), de Marcelo Piñeyro; o chilenoMachuca (2004), de Andrés Wood e o brasileiro O Ano em que meus pais saíram de férias (2006), deCao Hamburger. Essas indicações ao prêmio mais cobiçado da indústria cinematográfica, bem como asdemais premiações recebidas por esses filmes em festivais ao redor do mundo não apenas corroborama qualidade cinematográfica dessas obras, mas também sinalizam o interesse internacional pela revisãocinematográfica e artística desse período e das questões sociais, culturais, políticas e econômicas a elerelacionadas. É interessante destacar que Argentina e Chile são os países latino-americanos que maisproduzem filmes sobre o tema. 2E considerando que os Cinemas Latino-americanos são quase totalmente realizados graças aacordos de coprodução, multi ou binacionais, e são dependentes de políticas públicas de incentivo,sendo os projetos submetidos a editais que visam promover e desenvolver os cinemas nacionais, bemcomo preservar e incentivar a cultura dessas nações e da região através de obras que apresentemcomprometimento com questões culturas e identintárias; não é ao acaso que muitos de seus filmesabordem o período das ditaduras direta ou indiretamente. 3O historiador Marc Ferro (1992) propõe duas vias de leitura do cinema em relação à história: a“leitura histórica do filme” e a “leitura cinematográfica da história”. A primeira lê o filme em relação aoperíodo em que foi produzido, o filme é lido através da história; e a segunda lê o filme enquanto discursosobre o passado, a história é lida através do cinema e, em particular, dos "filmes históricos". O intuitodesse artigo, apesar de sua brevidade, é combinar essas duas formas de leitura para analisar os filmes123É graduada em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) epossui mestrado e doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFGRS), participa como pesquisadora do grupo Cinema Latino-americano da Universidade Federal Fluminense(UFF).O site argentino Memoria Abierta possui uma página onde é possível encontrar informações sobre os filmesnacionais que abordam a ditadura, La Dictadura em el Cine:http://www.memoriaabierta.org.ar/ladictaduraenelcine/index.htmlSobre a questão da coprodução nos Cinemas Latino-americanos proponho a leitura de meus textos: “Cinemaslatino-americanos: do Nacional ao Transnacional” e “Cinemas do Mercosul: políticas de incentivo, coproduções eidentidade cultural”.233


enquanto discursos sobre o passado ditatorial, mas também como testemunhos sobre o presente.Os cineastas e seus filmes: o cinema como memória reconstruídaO cineasta chileno Pablo Larraín, filho do senador Hernán Larraín (que era defensor da ditadurade Augusto Pinochet), nasceu em 1976, três anos após o golpe militar que colocou Pinochet napresidência do Chile. Larraín era criança enquanto os crimes contra os direitos humanos eramperpetrados pelos militares chilenos e tinha quatorze anos, em 1990, quando a ditadura terminou, dandolugar à democracia. É justamente o processo de transição instaurado pelo plebiscito de 1988, queresultou no afastamento de Pinochet da presidência e permitiu o regresso do país ao regimedemocrático, o tema de No, seu filme mais recente e de maior repercussão.No, coproduzido por Chile, Estados Unidos e França, trata de fatos reais relativos à realizaçãoda campanha publicitária ao voto pelo “não” no Plebiscito Nacional de 1988 no Chile em que a populaçãovotaria “sim” ou “não” à permanência de Pinochet no poder por mais oito anos. O roteiro do filme foiescrito por Pedro Peirano a partir da peça El plebiscito (nunca encenada), de Antonio Skármeta, e de umprocesso de pesquisa e de entrevistas a respeito da realização da campanha publicitária. O filmeacompanha René Saavedra, um publicitário que viveu um exílio no México e agora trabalha em umagrande agência de publicidade. Procurado pelos opositores ao governo de para comandar a campanhado “não”, Saavedra precisa harmonizar as forças e os conceitos da oposição, o que consegue aospoucos impondo sua racionalidade publicitária aos políticos e afastando os mais radicais. Com poucosrecursos e sob a constante observação dos agentes do governo, sua estratégia é usar a alegria e aesperança associadas a técnicas de propaganda e marketing para vender o “não” como se fosse umproduto. Seu chefe, Lucho Guzmán, que é envolvido com a ditadura, acaba ficando a cargo dacampanha pelo “sim”. No entanto, esse antagonismo não representa um rompimento entre eles queseguem trabalhando juntos e a vitória do “não” acaba sendo um trunfo para agência.A fim de reproduzir a definição das imagens apresentadas pela televisão na década de 1980,que habitam sua memória, Larraín optou por rodar o filme em suporte de vídeo U-matic 3/4, o mesmousado na época. Pois para o cineasta, realizar o filme com a tecnologia atual, em película ou comcâmeras digitais de alta definição, geraria um distanciamento em relação ao imaginário da época(LARRAÍN, 18/05/2012). Desta forma, as imagens ficcionais apresentam as mesmas texturas e coresdas imagens da época que são exibidas no filme, fazendo com que o ficcional amalgama-seimageticamente ao arquivo, borrando os limites entre o documental e o ficcional.Com No Larraín encerra a trilogia, que não havia planejado, sobre a ditadura chilena, compostaainda por: Tony Manero e Post Mortem. No entanto, No é o único dentre os três filmes em que a ditaduraé o tema central da trama, nos anteriores a ditadura é a força motriz não nominada, mas onipresente,que transforma não apenas a vida, mas a própria identidade dos protagonistas.Tony Manero – 2008, foi escrito em coautoria por Larraín, Mateo Iribarren e Alfredo Castro, e foicoproduzido por Chile e Brasil. A narrativa se passa em Santiago, Chile, no ano 1978, durante a ditadurade Pinochet. Raul Peralta é um homem de meia idade que vive no submundo chileno. Obcecado pelopersonagem Tony Manero, interpretado por John Travolta, de Embalos de sábado à noite (Saturday NightFever – 1977, de John Badham), ele passa seus dias ensaiando os passos de dança do personagempara um concurso televisivo e ensaiando os números de dança do filme com um grupo de parceiros comos quais se apresenta na mesma pocilga em que moram. Indiferente à ditadura que aflige seu país, elesabe como agir para manter-se à margem. As ações dos militares (as rondas, as perseguições, asinvasões e os espancamentos) são vista apenas como situações a serem evitadas. Amoral, Peralta nãotem escrúpulos para obter o que deseja. Mas sucumbe emocionalmente frente à derrota no programa detelevisão.Ao apropriar-se do personagem Tony Manero e de cenas do filme, Laraín não apenas constróium perverso discurso intertextual através da transculturação, 4 mas também estabelece um paraleloalegórico entre a situação cultural do Chile no período, dominada pela cultura hollywoodiana, e o apoioda CIA ao regime de Pinochet.Post Mortem – 2010, escrito e dirigido por Larraín, foi coproduzido por Chile, México eAlemanha. A trama está ambientada em setembro de 1973, em Santiago, Chile. Mario Cornejo trabalhano Instituto Médico Legal, sendo o encarregado de redigir as descrições referentes às autópsias. Com ogolpe de estado que derruba Salvador Allende, Cornejo tem de trabalhar com os militares nasnumerosas autópsias dos executados e inclusive na do ex-presidente (em uma cena que corrobora ateoria de que a morte de Allende não foi um suicídio). Mesmo assim, Cornejo mostra pouco envolvimentoou preocupação com o que está acontecendo a sua volta, seu único e real interesse é sua vizinha, uma4Sobre a questão da transculturação nos Cinemas Latino-americanos proponho a leitura de meu texto: “Atransculturação como estética dos Cinemas latino-americanos”.234


dançarina de cabaré, Nancy Puelma. Após a vitória de Pinochet, que nunca é referida na película, a casade Nancy, reduto de reuniões de sindicalistas organizadas por seu pai, é assolada pelos militares. Afamília da bailarina desaparece e ela foge. Cornejo a procura e descobre que ela se escondera em suaprópria casa, passando então a protegê-la até descobrir que ela trouxera o amante para o seuesconderijo.A trilogia de Larraín não segue a ordem cronológica dos acontecimentos, mas é reconstruída emum sentido decrescente de intensidade: o primeiro filme, Tony Manero, está ambientado no momentomais intenso e violento com a ditadura já instaurada; o segundo, Post Mortem, transcorre no início quaseabsurdo do período de ditadura; e o terceiro, No, apresenta o encerramento da ditadura de Pinochet.Larraín não vivenciou as agruras da ditadura, não há em seus filmes referências a sua infância, ou amemórias pessoais:Mis primeros recuerdos son de los últimos años de la dictadura (...) No viví eso, realicémi propio juicio a partir de recuerdos de otras personas, pero es algo que no he resueltototalmente ni he entendido aún y eso es lo que me lleva a este tema (LARRAIN,05/09/2010).Mas, se Larraín se apropria de memórias para desconstruir uma memória idealizada propagadapelo poder, outros cineastas latino-americanos da mesma geração utilizam as memórias da própriainfância para revisitar e reconstruir as memórias coletivas sobre a ditadura. É o caso de Machuca (2004),de Andrés Wood; O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006), de Cao Hamburger, Andrés noquiere dormir la siesta (2009), de Daniel Bustamante, El premio – 2011, de Paula Markovitch, e Infânciaclandestina – 2011, de Benjamín Ávila. E mesmo que a presença das memórias infantis não tenha umobjetivo biográfico, todos os filmes estão centrados em protagonistas infantis que são também o foconarrativo dessas obras, sendo, de certa forma, “alter egos” dos cineastas. Esses filmes narram históriasíntimas de conflitos individuais (na família, na escola, entre os amigos) que se articulam à históriacoletiva. E, nesse aspecto, se aproximam ao Romance de Formação, caracterizado por apresentar oprocesso de desenvolvimento interior (moral, psicológico, social e/ou político) de um personagem,geralmente a partir de sua infância, no confronto aos acontecimentos exteriores.Mas, antes de passarmos a esses filmes, é relevante apresentar Kamchatka – 2002, de MarceloPiñeyro, coprodução Argentina, Espanha e Itália, que não faz parte do corpus selecionado, pois Piñeyropertence a uma geração anterior, que já era adulta à época da ultima ditadura argentina. No entanto,Kamchatka, roteiro original escrito por Piñeyro e Marcelo Figueira, pode ser visto como o fundador dessalinhagem de filmes sobre a ditadura narrados a partir do olhar infantil. A história, ambientada naArgentina, em 1976, no início da última ditadura do país, é contada pelo foco narrativo de um menino,Harry, cuja voz em off narra situações e revela pensamentos. Harry é o nome escolhido pelo menino, emalusão a Harry Houdini, que precisa ocultar a sua verdadeira identidade. O desaparecimento de vizinhose amigos faz com que os pais de Harry decidam fugir com os filhos para uma “quinta” retirada de BuenosAires. Guiado pelo olhar de Harry, o espectador pouco sabe sobre a vida dos pais “fora” de casa, que é o“fora de campo”, e sobre os motivos da fuga. São poucas as referências à ditadura e à realidade do país,mas a tensão referente ao “pior”, que pode acontecer a qualquer momento, é constante, principalmente,para o espectador que traz para o filme suas referências e memórias. No entanto, quando algo ruimacontece é longe dos olhos do menino e, por conseguinte, dos do espectador.Ao contar essa história vivida na ditadura através do foco narrativo de um menino, Piñeyro evocaas crianças que viveram aquele período a contarem a sua versão da história. A resposta dessa geração,ao assumir a voz narrativa, provou que o olhar infantil não é ingênuo.Machuca, coproduzido por Chile, Espanha, Inglaterra e França, escrito a quatro mãos por:Andrés Wood, Eliseo Altunaga, Roberto Brodsky e Mamoun Hassan; conta a histórias da amizade, cheiade emoções e descobertas, de dois meninos de onze anos, Gonzalo Infante e Pedro Machuca emSantiago, Chile. Eles se conhecem em 1973 alguns meses antes do golpe que derrubaria Allende. Declasses sociais diferentes; Infante vive em um bonito bairro de classe alta e Machuca em uma vila ilegalda periferia. A amizade entre eles nasce da ação do padre McEnroe, diretor de um colégio renomado eexclusivo, que decide admitir gratuitamente alunos de famílias pobres. Juntos, Infante e Machuca,experimentam o surgimento do desejo pelas meninas e conhecem o mundo das mentiras, traições ecompromissos em que vivem os adultos e serão testemunhas da chegada da ditadura e de suasconseqüências.Wood recorreu às memórias do tempo de escola para construir sua narrativa. De classe média,ele estudou em uma escola particular renomada e participou de um programa de integração semelhanteao que apresenta em seu filme até que em 1973 seu colégio foi tomado pelos militares e os padres foramexpulsos. Assim a escolha de Infante como foco narrativo revela a identificação entre opersonagem e as memórias do cineasta. No entanto, Wood faz questão de dizer que seu filme estábaseado en la memoria subjetiva, en el relato oral y también en libros, diarios y documentales (WOOD,235


sd). Contando então os roteiristas com material advindo de pesquisas realizadas em arquivos e deentrevistas para escreverem sua história. Além disso, o filme apresenta imagens televisivas da época, deAllende e Pinochet, que são imbricadas à narrativa ficcional, sendo assistidas pelas personagens.O ano em que meus pais saíram de férias, roteiro escrito por Cao Hamburger, Cláudio Galperin,Bráulio Mantovani e Anna Muylaert, se passa em 1970, quando os pais de Mauro, um garoto de dozeanos, saem de férias de uma forma inesperada e abrupta. Militantes de esquerda, os pais do meninoprecisam fugir da perseguição militar e decidem deixá-lo com o avô paterno. No entanto, no mesmo diaque Mauro chega a São Paulo seu avô morre e ele acaba ficando aos cuidados de seu vizinho, Shlomo,um solitário senhor judeu. Enquanto espera por um contato dos pais, Mauro tem que aprender alidar com uma nova realidade que combina momentos de tristeza, por sua situação, e de alegria, pelodesempenho da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1970. A solidão vivida por Mauro ao serafastado da família e ir viver com um “estrangeiro” é usada como uma metáfora do exílio vivido poraqueles que precisaram fugir do Brasil durante a ditadura. A relação antagônica entre o estado repressorde ditadura e o júbilo pela vitória da Copa de 1970 subjaz à narrativa na inocência de Mauro.Hamburger recorreu às suas memórias e a elementos pessoais para compor sua narrativa,assim como seu protagonista, ele gosta de futebol e jogava na posição de goleiro. Hamburger tinha oitoanos quando seus pais, o casal de físicos, Ernst e Amélia Hamburger, desapareceram, ficando diasafastados da família. E, nesse período, ele e os irmãos ficaram aos cuidados das avós, uma judia e outracatólica. Mas, apesar das similaridades, para o cineasta esse não é um filme autobiográfico. E emboraseja uma obra de ficção, o filme utiliza imagens reais dos jogos do Brasil na Copa de 1970, as quais sãoassistidas pelos personagens, passando então a fazer parte do universo diegético da narrativa.El premio, escrito e dirigido por Paula Markovitch, coproduzido por México, França, Alemanha ePolônia, conta a história de Ceci, uma menina de sete anos que durante a ditadura vive com a mãe emuma casa defronte ao mar em San Clemente del Tuyú enquanto o pai mora em Buenos Aires. Elas estãovivendo quase na clandestinidade e por temor à repressão militar a menina precisa manter segredos.Para proteger a vida de sua família, ela não pode repetir na escola o que escuta em casa e nem revelara ninguém sua verdadeira identidade. Os problemas aparecem quando Ceci começa a questionar-se arespeito do que está ocultando e do que deve ou não dizer. O filme trata ainda da relação estabelecidana época entre a escola e o regime militar: livros são enterrados na praia e professoras argumentam emfavor da delação. O título do filme se refere ao prêmio recebido por Ceci em um concurso escolar parapropagandas do regime militar. Assim como em O ano em que meus pais saíram de férias novamenteestamos diante de uma criança “exilada” por conta da ditadura.El premio nasceu das memórias de infância de Markovitch que, assim como sua protagonistas,viveu sua infância em uma casa defronte ao mar em San Clemente del Tuyú, freqüentou a mesmaescola que mostra no filme e muitas das situações apresentadas na narrativa foram vividas por ela. Alémdisso, assim como sua protagonista, Markovitch viveu vários períodos de angustiante ausência paterna.Uma vez que seus pais eram artistas e ativistas políticos e ajudaram a muitos clandestinos.Andrés no quiere dormir la siesta é uma produção independente e foi escrita e dirigida porDaniel Bustamante. A trama transcorre na cidade argentina de Santa Fé em 1977. Andrés e seu irmãovivem com a mãe, que ninguém sabe ser uma militante política, seus pais estão separados e a relaçãoentre eles não é boa. Com a morte repentina da mãe, os meninos vão morar com o pai e a avó, DonaOlga. A vida no bairro é tranqüila apenas na superfície, pois em uma casa vizinha ao lugar onde osmeninos jogam bola funciona um centro clandestino de detenção, um segredo que todos conhecem, massobre o qual não se fala. A relação entre o pai e os meninos é rígida, mas é entre Andrés e sua avó quese estabelece uma guerra pelo poder. O clima opressivo dos anos de chumbo está por todos os lados,da sala de aula à mesa de jantar. E no transcorrer de um ano, em que Andrés acaba vendo o que nãodevia ser visto, ele se torna um menino perverso.Justamente, assim como seu protagonista, é santafesino e era menino durante os anos daditadura, ele recorre as suas memórias daquela época e daquele lugar para construir o universo infantilde Andrés e seus amigos. A inspiração para o roteiro, no entanto, nasceu de um documentário assistidopelo cineasta, em que uma ex-prisioneira de um centro de detenção em Santa Fé contou quediferenciava o dia da noite através dos sons das crianças em uma escola próxima a seu lugar dedetenção, justamente a escola que ele freqüentara na época. Ao dar-se conta da proximidade queestivera do terror da ditadura durante a sua infância, Bustamante “imagina” filmicamente como seria seuma das crianças que estavam por ali se interasse do que estava acontecendo, criando uma memóriaimaginada possível da própria infância. Assim como em Machuca, em Andrés no quiere dormir la siestaas memórias infantis são recriadas e ressignificadas a partir de conhecimentos e entendimentos que ocineasta obtém na vida adulta.Infância clandestina, coprodução Argentina, Brasil e Espanha, foi escrito por Benjamín Ávila emparceria com o brasileiro Marcelo Müller e produzido por Luis Puenso (diretor de A história oficial). Ofilme conta a história de Juan, um menino de doze anos, que, após um exílio em Cuba, regressa comsua família para a Argentina em 1979. O país ainda vive a mesma ditadura militar que os obrigou a236


partirem. Juan testemunha a luta e os debates ideológicos de seus pais, mas tenta levar uma vidanormal apesar de precisar viver sob uma falsa identidade, com o novo nome que escolheu: Hernesto (emhomenagem a Che Guevara). Juan/Hernesto tem como aliado o tio Beto que entende que os ideais e aluta não devem suplantar os prazeres da vida. Mas a dupla vida do menino se complica quando ele seapaixonando por uma colega de escola. E após a morte de seu tio em combate, ele decide abandonar afamília para viver seu amor infantil. Mas após a fuga frustrada, ele regressa para sua família que nesseponto já está sob a vigilância dos militares que acabam invadindo a casa. Ele e a irmã menor sãoseparados da família, mas, enquanto Juan/Hernesto é interrogado e torturado psicologicamente paraposteriormente ser deixado em frente à porta da casa de sua avó, o paradeiro da irmã é desconhecido.Apesar de Infância Clandestina, conforme afirmar Ávila, não ser autobiográfico, é, assim como Elpremio, uma história que apresenta muitos elementos literais da infância do diretor. Filho de umamilitante dos Montoneros, cujo parceiro era um dos líderes da organização, Ávila viveu um período noexílio com a família e, após o regresso à Argentina, teve de conviver com o desaparecimento da mãe edo irmão menor, que tinha então nove meses, em 1979. Seu irmão foi recuperado em 1984, sendo umdos primeiros netos a ser restituído pelas Abuelas de La Plaza de Mayo. Seu primeiro trabalho, odocumentário Nietos (identidad y Memoria) – 2004, conta justamente histórias de crianças que foramretiradas de seus pais militantes para serem criadas por outras famílias, mas que posteriormente foramrestituídas às suas famílias e às suas identidades. Ávila reconstrói as próprias memórias da infância naintimidade dos Motoneros, em um jogo entre realidade e ficção, mas sem se abster de umcomprometimento histórico, como ele declara: No fue fácil enfrentarme a mi propia vida, a mis propiosfantasmas, a mis propias obligaciones históricas, etcétera (ÁVILA in: RANZANI, 20/05, 2012).Infância Clandestina difere de seus predecessores por ser uma obra que, apesar de ser contadaatravés do foco narrativo de uma criança (Juan/Ernesto), é politicamente engajada. Também é diferenteao escolher usar a animação para construir o foco narrativo de Juan/Ernesto em relação às cenas deviolência, que se tornam menos terríveis, mas não menos dramáticas. A animação é a forma encontradapara representar o absurdo que a violência insere no universo infantil, instaurando outro tempo/espaçonarrativo no interior do filme. Esse artifício narrativo é um dos aspectos mais efetivos da obra pelamaneira com imbrica a forma e o conteúdo, criando uma cena em que a dramaticidade é traduzida pelo epara o olhar infantil. Além disso, a escolha pela animação revela a interferência do presente sobre anarrativa do passado, na escolha por artifícios (tecnológicos e narrativos) contemporâneos. Justamente oinverso do que faz Larraín em No, que no afã de reproduzir a definição (de baixa qualidade) da televisãodos anos 1980, utiliza a mesma tecnologia imagética da época, o que, no entanto, é igualmente umamarca do presente.História, memória e ficção: a metaficção historiográficaAo serem obras realizadas por cineastas que eram criança durante as ditaduras latinoamericanase que recorrem a memórias (pessoais e/ou coletivas) para confeccionar seus enredos, essesfilmes se aproximam da chamada literatura de testemunho; a qual está arraigada à memória egeralmente narra uma experiência-limite vivida no passado para um leitor no presente. Além disso, aorealizarem pesquisas e entrevistas para a escritura de seus roteiros esses artistas trazem para suasnarrativas outras memórias, midiáticas e pessoais, que transformam a suas obras também emtestemunho daquela época.No entanto, nem mesmo as obras que trazem mais literalmente as memórias pessoais de seusrealizadores, como Infância clandestina e El premio, podem ser consideradas autobiográficas, pois comobem observa Markovitch: cualquier relato es ficticio, ya que, (incluso los recuerdos que aparecen sólo ennuestra mente), reflejan una idea distorsionada de lo que pasó realmente (MARKOVITCH, 19/09/2011).Havendo para a cineasta um paralelo entre a memória e a ficção, idéia que parece sercompartilhada por Larraín:Yo siento que la memoria, en general, es mucho más desordenada y caótica, y que losrecuerdos se van organizando a partir de cómo uno quiere que sea el presente. O cómouno quiere que se recuerde eso. Tal vez ahí está lo que produce fricción entre mi trabajoy algunas personas (LARRAÍN, 20/01/2013).Realidade e ficção, memória e esquecimento, fala e silêncio articulam-se na construção dessasnarrativas, que buscam rearticular esse passado traumático, mostrando que a memória está sempre naarticulação entre a lembrança, o esquecimento e a imaginação. E que o passado, como declara PaulRicoeur (2008), é uma construção narrativa na qual também participa o trabalho da imaginação.Já ao trazerem o fato histórico, a ditadura, para a narrativa ficcional, esses cineastas transpõempara o contexto fílmico a estrutura do romance histórico, o qual, conforme Michel Vanoosthuyse (1996), éum gênero híbrido por articular a ficção, do romance, com o verídico, do discurso histórico. No entanto,eles não apenas ambientam suas narrativas no período das ditaduras, eles propõem a releitura desse237


momento, recontando a história por novos pontos de vista. E ao proporem essas releituras do passado edas memórias eles confluem com a produção literária pós-moderna latino-americana, que, conformeCarlos Rincón (1995), está alicerçada na metaficção, na intertextuadalide e na reescritura da história.Desta forma, esses cineastas realizam em linguagem cinematográfica o mesmo processonarrativo do romance histórico pós-moderno ou, como Linda Hutcheon (1991) prefere denominar, da“metaficção historiográfica”: que ao incorporar os domínios da literatura, da história e da teoria, traz umaautoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas, que passa a ser base para orepensar e a reelaboração das formas e dos conteúdos do passado. A “metaficção historiográfica”reconhece os limites entre literatura e história para em seguida desafiá-los: “estabelece a ordemtotalizante, só para contestá-la, com sua provisoriedade, sua intertextualidade e, muitas vezes, suafragmentação radicais” (HUTCHEON, 1991, p. 155). Para Linda Hutcheon: “reescrever ou reapresentar opassado na ficção e na história é – em ambos os casos – revelá-lo ao presente, impedi-lo de serconclusivo e teleológico” (HUTCHEON, 1991, p. 147). No contexto cinematográfico diríamos então que ametaficção historiográfica incorpora os domínios do cinema (ficção), da história (documentário) e dateoria, compreendendo que tanto a história quanto a ficção são criações humanas, que atuam norepensar e na reelaboração das formas e dos conteúdos do passado. A metaficção historiográfica nocinema questiona então os limites entre a realidade e a ficção, entre o documental e o ficcional; se nutrede outras narrativas (cinematográficas, midiáticas, literárias e musicais) através da intertextualidade;experimenta novos focos narrativos e novas linguagens; e é auto-reflexiva. O que faz com que essecinema seja, simultaneamente, fictício, histórico e discursivo.Ao se apropria de imagens de arquivo da televisão da época (“imagens reais”), como emMachuca, Tony Manero, O ano em que meus pais saíram de férias e No, esses filmes infringem o limiteentre o ficcional e o documental, entre a realidade e a ficção, conferindo credibilidade às narrativas. Pois,como diz José Carlos Avellar: “os fragmentos de cinejornais colados na ponta de ficção, ajudam mesmoé a levar o espectador a aceitar a ficção como se ela fosse também um registro do real” (AVELLAR,1982, p. 57). Essas imagens de arquivo do passado, que estavam mortas e congeladas em seu tempo,ganham vida na narrativa ficcional, que as resignificam para recontar a história no presente. Em umprocesso que vai ao encontro da noção de arquivo, proposta por Jacques Derrida, como um material quepor organizar e conter itens do passado "deveria por em questão a chegada do futuro" (DERRIDA, 2001,p.48), ou seja, rearticular o passado no presente para o futuro.Esses filmes rearticulam também os imaginários referentes à ditadura construídosmidiaticamente como, por exemplo, as memórias de outras produções cinematográficas, com as quaisdialogam. Isso fica evidente no comentário de Ávila acerca da relação de seu filme com o filme dePuenso, pois estando ambos diegeticamente no mesmo período, a irmã menor de Juan levada pelosmilitares no final de Infância Clandestina poderia ser Gaby, a menina adotada por Alícia e Roberto em Ahistória oficial, que se descobre ser possivelmente a filha de prisioneiros políticos executados.Inversamente à cronologia da realização das obras, Infância Clandestina seria então o prelúdio do filmede Puenso. Essa construção metaficcional se revela também na referência a outras obrascinematográficas levada ao extremo em Tony Manero, na auto-reflexão sobre o fazer midiáticoapresentada em No, bem como no imbricamento de diferentes linguagens realizado em InfânciaClandestina. E, em concordância a Jean François Lyotard (1993) que vê a condição pós-moderna comoa representação da desconfiança frente as narrativas-mestras, a cena da autópsia de Allende, em PostMortem, desconstrói a versão oficial sobre sua morte.De maneiras variadas, confluentes ou dissonantes, as narrativas fílmicas aqui analisadasprovocam o questionamento sobre o passado histórico ditatorial da região a partir do passado e atravésda (meta)ficção.E quando os países Latino-americanos se unem em coproduções para contar essas históriasimbricam-se não apenas incentivos econômicos, mas também memórias, em uma integração que, aoinverso da Operação Condor, propõe o desvelamento das ditaduras. E filmes como Tony Manero eInfância Clandestina, ao terem o Brasil como coprodutor são considerados também filmes brasileiros,condição que lhes é conferida quando agraciados pelos editais, passando então a receberem tratamentoigual às demais obras nacionais e chegando assim às salas de cinema brasileiras. Dentre as produçõesaqui apresentadas, apenas duas não são coproduções internacionais: O ano em que meus pais saíramde casa e Andrés no quiere dormir la siesta; o primeiro realizado graças ao trabalho conjunto de trêsprodutoras brasileiras, tendo a Globo Filmes como coprodutora, e o segundo realizado de formaindependente por duas produtoras argentinas.Realizados por cineastas/roteiristas que viveram a infância durante a ditadura, esses filmesrevelam um desejo de compreender o passado nebuloso que assombra ou paira sobre suas memóriasde infância, oferecendo novos olhares sobre um tema que, apesar de já recorrente nas cinematografiasLatino-americanas, eles provam que necessita ser revisitado por outras perspectivas. E aoreapresentarem e ressignificarem o passado a partir de suas memórias, de suas experiências e de seusintertextos, eles reelaboraram no âmbito fílmico discursos incompletos ou silenciados a respeito das238


ditaduras latino-americanas. E, mais que isso, sugerem que cada época fará a sua revisão dessepassado, buscando responder os seus próprios questionamentos.Esses filmes participam então na composição das memórias e das identidades da maioria deseus espectadores, que não viveram as ditaduras, incidindo ainda sobre o imaginário referente à próprianação. Cientes do poder do cinema e de seus filmes na rearticulação das memórias nacionais, essescineastas não vêm explicar ou responder, mas sim questionar e problematizar, convocando a umconstante repensar sobre esse período histórico. Em um momento em que ainda lutamos pela aberturados arquivos da ditadura, a busca das produções cinematográficas pela reinterpretação do passado dávoz e força a essa resistência frente ao desejo do poder de fechar o extenso e dramático capítulo doterrorismo imposto pelas ditaduras militares na América Latina. Assim sendo, esses filmes têm muitomais a ver como o presente do que com o passado, pois ao representarem o passado, eles traduzem opresente.Referências Bibliográficas:AVELLAR, José Carlos. Imagem e som, imagem e ação, imaginação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.HUTCHEON, L. Poética do pós-podernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.HUYSSEN, Andreas. “Pretéritos presentes: medios, política, amnésia”. In: Em busca del futuro perdido:cultura y memoria em tiempos de globalización. Fondo de Cultura Económica, Goethe Institut. México,2002. PP. 13-40.LARRAÍN, Pablo. In: “Película Post Mortem relata romance durante golpe de estado en Chile”(entrevista). América Econômica. 05/09/2010. Disponível em: http://www.americaeconomia.com/politicasociedad/cultura-y-espectaculos/filme-post-mortem-relata-romance-durante-golpe-de-estado-enAcessado em 25 jan 2013.LARRAÍN, Pablo. In: CHERIN, Andrew. “Entendiendo a Pablo Larraín” (entrevista). Cultura. La tercera.Chile. 20/01/2013. Disponível em: http://www.latercera.com/noticia/cultura/2013/01/1453-504671-9-entendiendo-a--pablo-larrain.shtml Acessado em 24 jan 2013.LARRAÍN, Pablo. In: Película chilena sobre el plebiscito de 1988 es aclamada en Cannes (Entrevista).Cultura. La tercera. Chile. 18/05/2012. Disponível em: http://www.latercera.com/noticia/cultura/2012/05/1453-461597-9-pelicula-chilena-sobre-el-plebiscito-de-1988-es-aclamada-en-cannes.shtmlAcessado em: 24 jan. 2013.LYOTARD, Jean François. O Pós-Moderno. José Olímpio Editora: Rio de Janeiro, RJ, 1993.MARKOVITCH, Paula. In: Festival de Lima 2011: Entrevista a Paula Markovitch, directora de “El premio”.Cine Encuentro. Peru. 19/09/2011 Disponível em:http://www.cinencuentro.com/2011/08/19/festival-lima-2011-entrevista-paula-markovitch-el-premio/Acessado em: 20 jan. 2013.MEDEIROS, Rosângela Fachel. : “A transculturação como estética dos Cinemas latino-americanos”.Imagofagia. Argentina, Nº 6, 2012. Disponível em: http://www.asaeca.org/imagofagia/sitio/index.php?option=com_content&view=article&id=240%3Aa-transculturacao-como-estetica-dos-cinemas-latinoamericanos&catid=48&Itemid=132Acessado em: 11 fev. 2013._________. Cinemas latino-americanos: do Nacional ao Transnacional”. In: III Congresso Internacionaldo Núcleo de Estudos das Américas, 2012, Rio de Janeiro. Anais: NUCLEAS, 2012, CD ROM._________.“Cinemas do Mercosul: políticas de incentivo, coproduções e identidade cultural”. Mouseion,Canoas, nº 13, 2012. Disponível em: http://www.revistas.unilasalle.edu.br/index.php/Mouseion/article/view/687/757 Acessado em: 11 fev. 2013.RANZANI, Oscar. “Cannes Benjamin Ávila, diretor de Infância Clandestina”. Pagina 12. Argentina,20/05/2012. Disponível em: http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/espectaculos/2-25270-2012-05-20.html Acessado em: 26 jan. 2013.RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Ed. Unicamp, 2008RINCÓN, Carlos. La no simultaneidad de lo simultáneo: postmodernidad, globalización y culturas enAmérica Latina. 2. ed. Bogotá: Editorial Universidad Nacional, 1995.VANOOSTHUYSE, M. Le Roman historique: Mann, Brecht, Döblin. Paris: Presses Universitaires deFrance, 1996.239


WOOD, Andrés. “Andrés Wood”. In: Portal del Cine y el Audiovisual Latinoamericano y Caribeño.Disponível em: http://www.cinelatinoamericano.cult.cu/cineasta.aspx?cod=525 Acessado em: 01 fev.2013.240


O malabarista, a farda e o nanquim: o governo Jango e golpe nas charges de Sampaulopublicadas no jornal Diário de Notícias em março e abril de 1964Dante Guimaraens Guazzelli 1Resumo: Este artigo analisa as charges de Sampaulo publicadas no jornal portoalegrense Diário deNotícias em março e abril de 1964, buscando ver como foi retratado o fim do Governo de João Goulart eo início da Ditadura Civil-Militar. São apresentadas as formas como o artista retratou os grupos políticosenvolvidos, dando especial atenção ao Golpe Civil-Militar e suas consequências. Além disso, este artigopretende apontar as possibilidades que o estudo das charges pode trazer para o conhecimento histórico.Palavras-chave: Governo João Goulart – Golpe de 1964 – Ditadura Civil-Militar – Charges – Imprensa.Abstract: This paper analyzes the cartoons of sampaulo published in the newspaper of porto alegrediário de noticias in march and april 1964, showing how was presented the end of the government of joãogoulart and early civil-military dictatorship. Forms are presented as the artist portrayed the political groupsinvolved, paying particular attention to the Civil-Military Coup and its aftermath. Furthermore, this articlepoints to the possibility that the study of the cartoons can bring historical knowledge.Keywords: government goulart – coup of 1964 – civil-military dictatorship – charges – press.No dia 1º de abril de 1964, o centro de Porto Alegre encontrava-se em ebulição: diante da notíciade que havia um golpe de estado ocorrendo no país, grupos de partidários do Governo de João Goulartdecidiram tomar a frente e defender o governo legitimamente instituído. 2 E já tinham um alvo empotencial: o governador Ildo Meneghetti: a massa rumava em direção ao Palácio Piratini, sede dogoverno estadual, com o intuito de depor Meneghetti. Frente a isso, o governador, que fazia parte daconspiração golpista, pôs a Polícia Civil e a Brigada Militar em prontidão e requisitou as emissoras derádio e televisão da cidade. Essas medidas, ao mesmo tempo em que buscavam proteger Meneghetti daturba, tinham como objetivo evitar a reedição da Campanha da Legalidade. Para evitar o confronto, oprefeito da cidade, Sereno Chaise, que era do partido do presidente, PTB, clamou a população queaguardasse o desenlace dos acontecimentos em frente à Prefeitura. Com a possibilidade de embateentre os golpistas e os resistentes, o governador decidiu pôr em prática a Operação Farroupilha etransferiu a sede do governo para a cidade de Passo Fundo. 3Em 25 de agosto de 1961, após a renúncia do presidente Jânio Quadros, os ministros militaresvetaram a posse do vice, João Goulart, que estava em viagem oficial a China. 4 Para garantir a posse,Brizola lançou a Campanha da Legalidade, mobilizou a população, principalmente através da chamadaRede da Legalidade, cadeia de emissoras de rádio que difundiu a resistência democrática por todo país.Após obter grande apoio popular, a Campanha da Legalidade foi vitoriosa, devido ao apoio dos militares,que seguiram a postura legalista do comandante do III Exército, o Gal. Machado Lopes. Ao desembarcarem Porto Alegre, no dia 1º de abril de 1964, Brizola reuniu-se com Sereno Chaise e o novo comandantedo III Exército, Gal. Ladário Pereira Telles, com o objetivo de novamente transformar a capital gaúcha nobastião da democracia nacional.Esses acontecimentos foram a culminância da disputa que existia no Brasil entre dois projetospolíticos concorrentes. 5 De um lado haviam os nacionalistas, formados por setores populares, movimento12345Doutorando em História/UFRGS. E-mail: dante.guimaraens@gmail.comPADRÓS, Enrique Serra; LAMEIRA, Rafael Fantinel. “Introdução – 1964: O Rio Grande do Sul no furacão”. In:In: PADRÓS, Enrique Serra ET all. A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul(1964-1985):História e Memória. Volume 1: Da Campanha d a Legalidade ao Golpe de 1964. Porto Alegre, Corag, 2009, pp.33-50; WASSERMAN, Claudia. “O Golpe de 1964: Rio Grande do Sul, ‘celeiro’ do Brasil”. In: PADRÓS, EnriqueSerra ET all. Op. cit. , pp. 51-70.ZARDO, Murilo Erpen. Operação farroupilha: a transferência do governo estadual do Rio Grande do Sul paraPasso Fundo durante os dias do golpe civil-militar de 1964. Porto Alegre, UFRGS, 2010. Monografia deconclusão de curso de HistóriaFERREIRA, Jorge. A Legalidade Traída: os Dias Sombrios de Agosto e Setembro de 1961. Revista Tempo, Riode Janeiro, Vol. 2, nº 3, 1997.RODEGHERO, Carla Simone. Regime militar e oposição no Rio Grande do Sul. In: GERTZ, René (Org.).História Geral do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Méritos, vol. 4, 2007241


estudantil, movimento sindical, sem-terra, grupos progressistas das Forças Armadas e da Igreja, o PTB eo PCB, que buscavam diminuir as diferenças sociais, econômicas e culturais existentes na populaçãobrasileira. Já do outro lado, havia os conservadores, que eram os latifundiários, os grandes empresários,militares de direita, que eram liderados pela UDN e tinham como maior representante o jornalista epolítico Carlos Lacerda.Nos veículos de comunicação vemos os embates entre estes projetos. A maior parte da grandeimprensa estava contra o projeto nacionalista, demonstrando seu comprometimento com os setoresconservadores. Durante o Governo de Jango, os conservadores utilizavam manchetes e artigos nosgrandes jornais para apresentar o presidente como alguém que subverteria a ordem legal e levaria o paísao caos e ao comunismo. No Rio Grande do Sul os jornais do grupo Caldas Junior, o Correio do Povo ea Folha da Tarde, e o representante gaúcho dos Diários Associados, o Diário de Noticias, eram osprincipais representantes disto: nas páginas destes periódicos vemos nos dias e meses queantecederam o golpe uma campanha de desmoralização tremenda. Do outro lado, estava o tabloideÚltima Hora, que pertencia a Samuel Weiman e estava afinado com o projeto e rumos que o governoestava tomando e a linha do jornal refletia isto. Desta forma, uma pessoa que passasse por uma bancade jornal durante o Governo Jango podia ver nas manchetes as mesmas palavras, mas que se referiama grupos diferentes: enquanto que o Correio do Povo, a Folha da Tarde e o Diário de Noticias acusavamo governo de querer subverter a ordem legal, a Última Hora fazia as mesmas denúncias à oposição. Noentanto, o que se percebe é que, se em agosto/setembro de 1961 os nacionalistas foram bem-sucedidosem impor suas imagens, em março/abril de 1964 foram os conservadores os vitoriosos na batalha dossímbolos.Pretendo, neste artigo, analisar como foi retratado este embate entre estes projetos nas chargesdo artista Sampaulo publicadas no jornal Diário de Notícias nos meses de março e abril de 1964. Omaterial apresentado aqui é fruto da pesquisa Memória Visual da Ditadura no Rio Grande do Sul, projetodo Centro de Assessoria Multi-Profissional (CAMP) com financiamento da Comissão da Anistia doMinistério da Justiça. 6 Este projeto tem como objetivo a publicação de um livro com imagens produzidasno estado durante a ditadura civil-militar, acompanhadas de textos que sintetizam a produção acadêmicamais recente, que será distribuído na rede de ensino estadual. Assim, este projeto busca levar oconhecimento acadêmico mais recente sobre o período no estado para os professores, que poderãotrabalhar em sala de aula estas questões partindo de imagens que mostram como foi representado esteperíodo por fotógrafos e artistas. Ao mesmo tempo, ao dar espaço para a produção dos chargistasgaúchos, salientamos a característica do Rio Grande do Sul como um “celeiro” de artistas gráficos:segundo o pesquisador Joaquim da Fonseca, há, no Rio Grande do Sul, mais artistas gráficos do queespaço para publicação de seus trabalhos, mostrando que o estado é um “celeiro” de cartunistas,chargistas, quadrinistas, etc. 7Um dos um desses representantes é o chargista e cartunista Paulo Sampaio, que era conhecidocomo Sampaulo: ele nasceu em Uruguaiana-RS em 1939 e atuou entre 1954 até sua morte em 1999,em Porto Alegre. Ele, que iniciou na carreira a exemplo de seu irmão o cartunista Sampaio, trabalhounos jornais Clarim, A Hora, Diário de Noticias, Folha da Tarde, Folha Esportiva, Correio do Povo, Folhada Manhã e Zero Hora, além de contribuir com revistas como a Revista do Globo. Lançou diversos livros,tanto individuais quanto coletivos. Sampaulo foi reconhecido internacionalmente, ganhando prêmios noBrasil e em outros países. As charges analisadas aqui foram pesquisadas das edições do Diário deNoticias, de março e abril de 1964, encontradas no Museu de Comunicação Hipólito José da Costa eretratam o momento da crise e queda do governo de Joçao Goulart e a institucionalização da ditaduracivil-militar.A expressão charge (que vem do francês charger, ou seja, carregar, exagerar) refere-se auma representação pictórica de caráter burlesco e caricatural(...) em que se satiriza umfato específico , tal como uma idéia, um acontecimento, situação ou pessoa, em geralde caráter político, que seja de conhecimento público. 8678Este projeto não seria possível sem a disposição e ajuda de fotógrafos e artistas e seus familiares que abriramsuas casas e seus acervos para os pesquisadores. Gostaria de agradecer, principalmente, a Maria LuciaSampaio, sobrinha de Sampaulo, que fez tudo para contribuir com a pesquisa. Para mais informações sobreeste acervo visitar sampaulocartunista.blogspot.com.br/ .FONSECA, Joaquim da. Caricatura – a imagem gráfica do humor. Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1999, p. 271.Idem, p. 26. A charge se distingue do cartum pelo caráter específico do acontecimento tratado: assim, o cartumtrata de temas mais genéricos, atemporais, até “universais”. Uma distinção mais complexa é a da charge e dacaricatura: segundo Joaquim da Fonseca, a caricatura é um termo que abarca a charge, o cartum, o desenho dehumor, a tira cômica, a história em quadrinhos de humor e a caricatura pessoal. Por esta razão, alguns autores,como Rodrigo Patto Sá Motta, preferem se referir ao desenho de humor editorial como caricatura e não charge.Optei por utilizar o termo charge e não caricatura, pois penso que este termo acaba se referindo mais a obrasque focam-se em personalidades, a chamada caricatura pessoal. Prefiro utilizar o termo charge, já que tratarei242


A charge tem como objetivo fustigar a sociedade: por esta razão muitas vezes existe umarelação tensa entre chargistas e os donos do poder. A charge pode ser uma arma contra aquele que estásendo retratado, ou melhor, satirizado. Isto se dá porque é uma expressão visual, podendo obter umefeito superior ao discurso verbal, fixando imagens na sociedade. A chargeajuda a traduzir os eventos, conflitos e grandes personagens políticos para a linguagempopular, tornando tais temas mais palatáveis para indivíduos iletrados e/ou socialmenteexcluídos. (...) Ela contribui para desmitificar e dessacralizar o poder, mostrando líderese chefes de Estado como seres falíveis e, eventualmente, ridículos. Ao mesmo tempo,torna os assuntos políticos menos misteriosos e mais próximos do universo decompreensão do povo. 9Um exemplo disso é a Figura 1, publicada no Clarim, jornal vinculado ao PTB, durante a eleiçãopara prefeito de Porto Alegre em 1955: ela mostra o então prefeito, Walter Peracchi Barcellos, mostrandopontos turísticos a seu candidato, Euclides Triches que havia se transferido recentemente a capital. Aoser transformada em imagem, a ideia por traz dela, que Triches não conhecia a cidade que queriagovernar, ganhou força e, segundo alguns autores, mudou os rumos de uma eleição: a esta charge éatribuída a vitória eleitoral de Brizola. 10Figura 1 – Charge de Sampaulo publicada no Jornal Clarim, em 1955. Acervo de Maria Lucia Sampaio.Desde o século XIX a charge tem importante papel dentro de um jornal, tomando a forma de umeditorial no qual o jornal expressa seu ponto de vista, ilustrando a posição política do jornal. 11 Assim, ascharges e caricaturas constituem documentos muito ricos para o conhecimento histórico, já que podemser vistas como crônica e interpretação, mostrando a visão que um grupo tem de um acontecimento. 12Isto serve para analisarmos as charges exibidas aqui: elas são de autoria de Sampaulo, masdizem tanto sobre sua visão quanto sobre a visão que seu jornal, o Diário de Noticias, queria passar. Otrabalho de Sampaulo foi, no início de sua carreira muito marcado pela política: ele – que era filho dodesembargador João Pereira Sampaio, que concorreu ao governo do estado em 1954 pelo PSB,apoiado pelo PCB – surgiu publicando no periódico Clarim, vinculado a Brizola, e trabalhou no Comitê deResistência, durante a Legalidade. Por outro lado, seu jornal havia assumido o projeto conservador. Ascharges que ele publicou durante este período podem ser vistas sobre este prisma da dualidade: aomesmo tempo que atacam os conservadores, criticam posturas dos nacionalistas.Durante o ápice da disputa entre os dois projetos políticos são realizados grandes eventos, tantopor aqueles que apoiavam Jango, quanto pelos que queriam sua deposição: destacam-se entre asmanifestações de apoio, os comícios de 9 de março em Porto Alegre e o de 13 de março na Central doBrasil; entre as da oposição, a Marcha da Família Com Deus pela Liberdade, resposta ao comício daCentral, organizado em São Paulo em 19 de março.9101112aqui de obras que tratam de situações e acontecimentos e não pessoas específicas. Além disso, penso que estetermo é mais genérico, e, desta forma, de melhor utilização.MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o Golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p.18FONSECA. Op. cit., p. 12.MOTTA, Op. cit, p. 19.Idem, p. 23.243


Figura 2: Charge de Sampaulo – Diário de Notícias 13/3/1964No dia do Comício da Central foi publicada no Diário de Notícias a Figura 2: nela vemos doispersonagens representando o homem comum (o que fica claro através da linguagem coloquial utilizada)falando, com certo temor, do Comício que ocorreria naquele dia no Rio de Janeiro. É interessante ver aforma como o Comício da Central foi visto por Sampaulo: em sua charge ele brinca que a primeirareforma (já que a manifestação era em prol das reformas de base) deveria ser do dia em que serealizaria. Era uma sexta-feira 13, um dia mal assombrado. É digno de nota o fato de que outros doiseventos marcantes da história pregressa haviam ocorrido em épocas agourentas: tanto o suicídio deGetúlio Vargas quanto a tentativa de Golpe em 1961 deram-se no mês de agosto, um mês assombradosegundo crenças populares. Pode-se pensar que ao mencionar o mau-agouro que havia no dia,Sampaulo estava fazendo referência a estes eventos.Em março de 1964 a disputa entre os nacionalistas e os conservadores chega ao limite: os setorespopulares pressionavam o governo pelas reformas, enquanto os setores conservadores brandiam contrao governo e suas medidas que refletiam, para eles, o plano de implantação do comunismo no Brasil. Istoé evidenciado nas Figuras 3 e 4: na primeira vemos Jango acuado sentado em uma cadeira(representação da presidência da república), enquanto o “Congresso” afirma que está com vontade defazer uma “desapropriaçãozinha”, isto é, retirar o presidente de seu lugar. Na forma como Jango é vistopor Sampaulo são ressaltadas algumas características físicas, como sua calvície incipiente, seu narizproeminente e seu rosto rechonchudo, além de ser apontado um certo retraimento, ou timidez: esteselementos também foram utilizados por outros chargistas para retratar o político. 1313MOTTA. Op. cit., pp. 43-4.244


Figura 3 – Charge de Sampaulo- Diário de Notícias 18/3/1964Mas o que é mais claro na charge é a insatisfação do Congresso em relação ao presidente.Podemos ver aqui uma indicação do posicionamento dúbio que as charges de Sampaulo tinham nestemomento: por um lado, ela apresenta que o todo o Congresso, ou seja, todos os representantes do povobrasileiro, estava contrário a Jango. Isto é uma distorção, já que, mesmo que fossem minoria, haviacongressistas favoráveis a Jango e suas medidas reformistas enviadas no início do ano, como a reformaagrária mencionada na palavra “desapropriação”. Por outro lado, a forma como são retratados os doispersonagens nos permite outra leitura: Jango, o vice-presidente eleito legitimamente, está intimidado porum “Congresso” que quer se impor: ele está sussurrando seus planos, o que denota uma conspiração.Já na Figura 4, é feita uma metáfora da situação política tomando como base os personagens dedesenho animado, Frajola e Piu-piu: o Gato/Governo deseja matar o Pássaro/Constituição, que está noalto, protegido por uma gaiola. O que não está dito são as razões do governo: as mudanças que queriafazer na Constituição visavam permitir as reformas que buscava trazer ao país, as reformas de base, queeram as reformas urbana, política, econômica, agrária, de ensino, e sindical. Esta metáfora, que poderiaser compreendida até por uma criança, mostra uma forma como Jango era visto pela imprensaconservadora: ele seguia os passos de seu “mestre” Getúlio Vargas e queria implantar uma ditadura noBrasil. Ao utilizar esta metáfora, o artista faz ironia, já que Frajola, por mais elaborados que sejam seusplanos, nunca consegue comer o Piu-piu: de acordo com a charge, a Constituição não era um alvo tãofácil como pensava o Governo.Figura 4 – Charge de Sampaulo 24/3/1964Já a Figura 5, publicada poucos dias antes do golpe, mostra o “malabarista” Jango tentandoequilibrar diversos tijolos: estão representadas as refinarias de Ipiranga, Capuava e Manguinhos, alémda destilaria Rio-Grandense, que eram particulares e haviam sido encampadas pelo governo federal.Além disso, Goulart tem em sua posse também outro tijolo chamado “Terras”, que se refere aomovimento que o governo estava fazendo no sentido de desapropriar terras para a Reforma Agrária.Estas medidas haviam sido tomadas e anunciadas no Comício da Central. Os próximos “malabares” aserem utilizados eram “Papel”, “TV” e “Rádio”: estes eram referências a intenção do Governo decontrolar o monopólio do papel. 14 Segundo os temores da grande imprensa, Jango se utilizaria domonopólio do papel para reprimir e controlar a imprensa.14Idem, pp. 152-3.245


Figura 5 – Charge de Sampaulo – Diário de Notícias 25/3/1964Desta forma, esta charge mostra que Jango buscava controlar todas as esferas da vidaeconômica e política em suas mãos, instalando assim uma ditadura totalitária. Por esta razão ele queriaequilibrar também a “Propaganda”: se iniciaria no Brasil um regime que, assim como no Estado Novo,além de cercear a imprensa e a iniciativa privada, buscaria impor sua visão de mundo através de umaforte política de propaganda. Nesta charge, Sampaulo retrata Goulart como alguém que, ao mesmotempo em que tem uma aparência simpática e agradável, aparentemente não sabe o que está fazendo:esta era uma visão muito difundida entre os chargistas da época, que viam o presidente “como políticodesastrado, que promovia eventos e alianças que fugiam ao seu controle, agindo como uma espécie deaprendiz de feiticeiro”. 15A partir do dia 25 de março, com uma manifestação de marinheiros, a crise política vai crescendoem ritmo acelerado, especialmente a relação do presidente com os oficiais conservadores. Elespressionavam cada vez mais o presidente para reprimir militares subalternos revoltosos; em reposta,Jango atacou os oficiais golpistas no dia 30 em uma reunião com 5 mil sargentos e suboficiais da PolíciaMilitar da Guanabara no Automóvel Clube. Este evento fortaleceu a união do grupo pró-reformas, masaumentou o temor dos oficiais das Forças Armadas. Após este evento, em Minas Gerais o comandantedo IV Exército, General Olympio Mourão Filho, com o apoio do governador Magalhães Pinto, insurgiu-secontra o governo estabelecido em 31 de março, recebendo apoio de outros conspiradores, como osgovernadores de São Paulo, Adhemar de Barros, e da Guanabara, Carlos Lacerda, o que levou atomada do poder em um golpe de estado no dia 1º de abril.Após o Golpe, o presidente deposto viajou a Porto Alegre na madrugada do dia 1º para o dia 2,sendo recebido por uma parcela da população de Porto Alegre, formada tanto por civis quanto pormilitares, que estava disposta a resistir ao Golpe. Apesar destas mobilizações, Jango chegou a PortoAlegre decidido a não provocar derramamento de sangue; no final da manhã do mesmo dia, Jangodecidiu ir para o exílio no Uruguai, recusando-se a distribuir armas para a população e ampliar aresistência. Ele nunca mais voltou com vida ao seu país.Os acontecimentos ocorridos imediatamente após o Golpe Civil-Militar são retratados nasFiguras 6 e 7. Na primeira vemos Jango e Brizola, que também buscou exílio no Uruguai, saindo doPrédio/Brasil vestindo somente um barril: eles haviam perdido suas roupas em um jogo, possivelmentepôquer. Jango fala para o cunhado que não era possível blefar (“passar o cachorro”) duas vezes namesma mesa. A situação é vista sob a metáfora do jogo: a crise política é vista como um pôquer, em queos golpistas e os governistas estavam disputando o Brasil, sendo que o primeiro blefe seria a Campanhada Legalidade e o segundo a tentativa de resistência em 1964.15Idem, p. 56.246


Figura 6 – Charge de Sampaulo – Diário de Notícias 7/4/1964É digno de nota a forma como são representados os políticos: enquanto Jango está entre aconstrangimento e a conformação, Brizola está irritado. Sampaulo apresenta o político de forma similar aoutros artistas do país: é ressaltado seu “perfil radical, que transparece na composição das feições,quase sempre agressivas(...)”. 16 Assim, enquanto um cunhado é mostrado como passivo e conformado,o outro é radical e indignado.Figura 7 – Charge de Sampaulo – Diário de Notícias 8/4/1964Imediatamente após o Golpe ser bem-sucedido, inicia-se a repressão: em Porto Alegre osprimeiros alvos são os civis que encontravam-se em frente à prefeitura dispostos a resistir e que, já natarde do dia 2, foram brutalmente reprimidos pelos golpistas. Posteriormente, são expedidos mandadosde prisões a diversos líderes da resistência, tanto civis quanto militares, em especial o prefeito SerenoChaise, que não havia ido imediatamente para o exílio. Isto é retratado na charge de Sampaulo do dia 8de abril (Figura 7), que mostra Sereno Chaise representando a expressão popular “ficou agarrado nopincel”: ele cai após duas figuras (possivelmente Jango e Brizola) levarem sua escada. A mensagem dacharge é clara, já que ele é o único entre os líderes nacionalistas que é preso nos dias seguintes aoGolpe.No dia seguinte foi baixado o Ato Institucional que representou “a necessidade deinstitucionalizar um novo aparato que apoiasse a ‘revolução’”. 17 Este aparato, que permitiu a OperaçãoLimpeza, dizia respeito a medidas punitivas aos apoiadores do regime anterior: ele “visava a erradicar1617Idem, p. 37.ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil: 1964-1984. Bauru: EDUSC, 2005, p.65.247


ameaças potenciais a algo que era definido como segurança nacional”. 18 Além disso, fortalecia o poderdo Executivo, em detrimento do legislativo. Com este dipositivo, foi ampliada a repressão, que se deuatravés de prisões e expurgos.Figura 8 – Charge de Sampaulo – Diário de Noticias 18/4/1964É esta situação que é descrita na charge do dia 18 de abril: um homem está a comemorar o fatode não estar presente na lista das pessoas presas pela Ditadura em função de vinculação com o governodeposto. Ainda há a menção a outra lista, a dos novos ministros. Pode-se dizer que o artista retrata osprimeiros dias do novo regime como um dia do juízo final: algumas pessoas eram abençoadas com oparaíso (uma participação no novo governo) ou amaldiçoadas ao inferno (sendo encarceradas ereprimidas).Neste momento também se iniciam os expurgos, através dos quais a ditadura afastou todosaqueles que tinham relação com o governo anterior. Foram instauradas comissões de expurgos emórgãos dos governos federal, estadual e municipal e além de empresas estatais e de economia mista.Após o expurgo, a pessoa via-se privada de sua fonte de renda, sendo obrigada a modificar radicalmenteseus planos de vida.Figura 9 – Charge de Sampaulo – Diário de Notícias 23-4-1964Este foi o caso dos expurgados da Brigada Militar, já que havia muitos apoiadores do governoJango nesta instituição. Isso é mostrado na Figura 9: nesta charge Sampaulo mostra alguns brigadianossaindo do Prédio/Brigada Militar sob as ordens do Oficial/Ato Institucional. O que chama a atenção naimagem é a agressividade do “Oficial”, que se impõe aos brigadianos, que estão com ar triste edesesperançoso.Assim, analisamos a forma como os acontecimentos políticos de março e abril de 1964 foram18PEREIRA, Anthony W.. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e naArgentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 117.248


etratados pelo chargista Sampaulo: da mesma forma que criticava os nacionalistas, ele atacava osconservadores. As imagens escolhidas aqui foram as que sintetizaram melhor esta postura dúbia doartista. O que ficou esboçado aqui é que, com a institucionalização da ditadura civil-militar este artista vaiproduzir mais obras que apontam as arbitrariedades do novo regime. Ao mesmo tempo, ficou clara agrande contribuição que a charge pode trazer ao conhecimento histórico: através de um desenhopodemos ver a forma como um indivíduo ou grupo posicionou-se frente a um acontecimento.Fontes pesquisadasEdições do Jornal Diário de Noticias de Porto Alegre, de março e abril de 1964 . Setor de Imprensa doMuseu da Comunicação Hipólito José da Costa.http://sampaulocartunista.blogspot.com.br/Referências Bibliográficas:ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil: 1964-1984. Bauru: EDUSC, 2005.FERREIRA, Jorge. A Legalidade Traída: os Dias Sombrios de Agosto e Setembro de 1961. In: RevistaTempo, Rio de Janeiro, Vol. 2, nº 3, 1997.FONSECA, Joaquim da. Caricatura – a imagem gráfica do humor. Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1999.MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o Golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,2006, p. 18PADRÓS, Enrique Serra; LAMEIRA, Rafael Fantinel. “Introdução – 1964: O Rio Grande do Sul nofuracão”. In: PADRÓS, Enrique Serra ET all. A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande doSul(1964-1985): História e Memória. Volume 1: Da Campanha d a Legalidade ao Golpe de 1964. PortoAlegre, Corag, 2009.PEREIRA, Anthony W.. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile ena Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 117.RODEGHERO, Carla Simone. “Regime militar e oposição no Rio Grande do Sul”. In: GERTZ, René(Org.). História Geral do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Méritos, vol. 4, 2007.WASSERMAN, Claudia. “O Golpe de 1964: Rio Grande do Sul, ‘celeiro’ do Brasil”. In: PADRÓS, EnriqueSerra ET all A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul(1964-1985): História e Memória.Volume 1: Da Campanha d a Legalidade ao Golpe de 1964. Porto Alegre, Corag, 2009.ZARDO, Murilo Erpen. Operação farroupilha: a transferência do governo estadual do Rio Grande do Sulpara Passo Fundo durante os dias do golpe civil-militar de 1964. Porto Alegre, UFRGS, 2010. Monografiade conclusão de curso de História.249


250


VII – Ditaduras em arquivo: documentos darepressão e da resistência


Análise do Processo Descritivo Como Produção de Conhecimento Arquivístico: o casodas oitivas de familiares de uruguaios desaparecidos na ditadura militar.Anna Luiza de Moura Saldanha 1Resumo: O presente artigo visa demonstrar a forma como os processos descritivos amplos econtextualizados historicamente servem como ponto de produção de conhecimento arquivístico,demonstrando o papel de pesquisador do arquivista nos acervos documentais, através da análise dadescrição feita nas unidades documentais “oitivas de familiares de uruguaios desaparecidos”, constantesna série 3 – terrorismo de estado nas ditaduras do cone sul, do fundo documental movimento de justiça edireitos humanos.Palavras-chave: Descrição Arquivística – Movimento de Justiça e Direitos Humanos - Ditaduras doCone SulAbstract: The present article aims to demonstrate how the processes descriptive contextualizedhistorically serve as a point of producing archival knowledge, demonstrating the role of the archivist asresearcher on documentary collections, by examining the description given in units documentary"hearings of family of uruguayans disappeared" appearing in the series 3 – state terrorism in the southerncone dictatorships, the fund documentary movement for justice and human rights.Keywords: Archival Description – Movement for Justice and Human Rights -dictatorshipsSouthern ConeIntroduçãoOs regimes militares na América Latina produziram diversos documentos que identificavam oscidadãos contrários ao sistema que vigorava. Além disso, estratégias de ação como capturas, torturas edesaparecimentos de opositores geraram uma infinidade de registros escritos que atualmente setransformam nas principais provas das violações cometidas pelo próprio Estado.De suma importância, o acervo do Movimento de Justiça e Direitos Humanos possui grandefuncionalidade para a história da humanidade, por ser detentor de fontes que contém retratos da luta,resistência e resgate dos Direitos Humanos.O arquivo do Movimento de Justiça e Direitos Humanos se constitui por um acervo que possuicomo fundo documental esse mesmo nome. Dentro deste fundo existem 6 séries, com suas subséries,que retratam sua história de luta, resistência, resgate e respeito aos direitos fundamentais do homem,revelando a história da repressão militar no Rio Grande do Sul, no Brasil e na América Latina –identificando personagens e redes de solidariedade na luta contra a ditadura.A problemática que se definirá ao longo do trabalho é a forma como os processos descritivosamplos e contextualizados historicamente servem como ponto de produção de conhecimentoarquivístico, demonstrando o papel de pesquisador do arquivista no acervo, a partir da análise doprocesso de descrição dos itens documentais “Oitivas de Familiares de Uruguaios Desaparecidos” quese encontram arquivados na série Terrorismo de Estado no Período da Ditadura no Cone Sul do Fundodo Movimento de Justiça e Direitos Humanos.Descrição arquivística e representação informacionalA descrição arquivística é uma das tarefas primordiais no tratamento dos acervos, visandogarantir o acesso às informações contidas nos documentos. Antônia Heredia (1997, p. 299) defende quea descrição: “[…] es el analisis realizado por el archivero sobre los fondos y los documentos de archivoagrupados natural o artificialmente, a fin de sintetizar y condensar la información en ellos contenida paraoferecerla a los interesados.” Para ela, a análise aplicada aos documentos de arquivo devem ser feitascom subjetividade, e que os arquivistas devem se limitar a representar os documentos, condensando ousubstituindo o mais fiel possível as informações de um documento. Em seguida, ela diz que a descriçãodeve ser:1Arquivista e historiadora. Telefone para contato: 51-99007717. Cursando especialização em Gestão em ArquivosEAD pela UFSM/UAB253


Exacta: en cuanto que os documentos no son algo impreciso, sino testimonios únicos yconcretos.Suficiente: par la unidad que se está informando (archivo, fondo, serie o documento), sinofrecer más de lo necesario, por exceso o por defecto,Oportuna: en cuanto que ha de reflejar una programación que marque una jerarquía dela información. (HEREDIA, 1997, p.301).Dessa forma, a autora acredita que a descrição arquivística pode facilitar o controle do arquivistae dar informação aos demais (usuários). Ainda, Heredia (1997) fala que a obtenção dos dados dadescrição pelo arquivista não é uma “explotação” das informações dos documentos em benefício próprio,como pode ser a atividade de um historiador, e sim, que este trabalho é encaminhado a “dar a conhecer”a informação indispensável a quem a solicite.Na abordagem pós-custodial ou funcional desenvolvida pelos canadenses, os princípiosarquivísticos são reformulados de acordo com os novos paradigmas da sociedade contemporânea.Dessa forma, o princípio da proveniência dos documentos é visto por essa corrente não mais baseadona estrutura física dos documentos e da instituição que os criou, mas sim, no contexto de produção, naherança documental e no valor social da informação (TOGNOLI e GUIMARÃES, 2010). Comoconseqüência desta reformulação, os conceitos de arranjo e descrição são desenvolvidos mais dentro deum entendimento contextual das relações do documento, do que na entidade física documental. (2012,p.30). Para Cook (apud TOGNOLI, 2012, p.30):A descrição pós-moderna refletiria as pesquisas contextuais sustentadaspelosarquivistas na história dos documentos e de seus criadores, e produzira descriçõesem constante-mudança, uma vez que a criação dos documentos e a própria históriacustodial nunca termina. A descrição é continuamente reinventada, reconstruída,renascida. Adescrição pós-moderna, focando-se dessa maneira na história dodocumento, refletiria uma maior nuance no contexto, o que abriria uma riqueza deconteúdo informacional. (COOK, 2007a, p.34)Para que se garanta amplo acesso, na visão pós-custodial, a descrição é feita através de umametodologia escolhida pelo arquivista com base nas políticas que envolvem o arquivo, o contexto no qualos documentos foram criados e as atividades a que eles serviram.Sobre o conceito de representação, ainda Hagen (1998, p. 3) faz considerações citando Cook 2 :A descrição tem como base a teoria da representação: “a teoria da representação é a deque enquanto os arquivos originais devem ser necessariamente armazenados naestante numa determinada ordem e localização física (normalmente em embalagensfechadas), as representações dos originais podem ser multiplicadas e armazenadas emqualquer ordem e em qualquer lugar que seja considerado útil.Hagen (1998) analisa as características da teoria da representação que os originais não tem,dizendo que são duas: a primeira é que podem ser distribuídas para fora do arquivo, podendo se tornarpúblicas de forma impressa ou pelo suporte digital, para atender os usuários; a segunda é que elaspodem ser organizadas internamente para facilitar a busca de informações pelos usuários.O processo descritivo no acervo do MJDH – O quadro de arranjo, as séries documentais e areconstrução do contexto arquivísticoA preocupação em dar acesso aos documentos de um acervo é uma função primordial dosarquivistas. Sendo assim, seu trabalho na organização dos arquivos – o arranjo e a descrição –pressupõe a compreensão da origem dos documentos, de quem foram seus produtores, suas funçõessociais e o papel que ocuparam perante a sociedade. Dessa forma, o arquivista, em seu trabalho depesquisa, produz conhecimento ao iniciar um programa descritivo com metodologia própria daArquivologia, objetivando difundir acervo que está organizando.Os documentos de organizações de direitos humanos foram os testemunhos da atuaçãorepressiva do Estado e a prova da existência de mortos, desaparecidos, perseguidos ou torturados porordem deste. Posteriormente, foram constituídos como acervos, não perdendo o seu papel de denúncia,agregando em sua valoração a construção e preservação da memória da luta contra a ditadura esistemas repressivos.Estes acervos foram tema de debate durante o Fórum Social Mundial de 2005. A partir daí, surge2COOK, Michael. Information Manegement and archival data. London: Library Association Publishing, 1993,apud HAGEN, 1998, p.3.254


uma ação da Archiveros Sin Fronteras, aqui Arquivistas Sem Fronteiras, de formar grupos de trabalhopara localizar e intervir em acervos da luta contra a ditadura civil-militar no Cone Sul. No Rio Grande doSul, sob a coordenação do arquivista Jorge Enriquez Vivar, em conjunto com a pró-reitoria de extensãoda Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é montado um grupo de trabalho para recuperar oacervo do MJDH.Segundo o arquivista Jorge Vivar, em entrevista cedida para este trabalho, encontravam-semisturados documentos sobre a Operação Condor no Brasil, informes da polícia de inteligência deBuenos Aires, documentos simbólicos sobre tortura, prisão e perseguição de lideranças políticas,sindicais, estudantis e sociais, entre vários outros.É recorrente compreender os conceitos arquivísticos dentro do trabalho de organização de umacervo, pois para que se chegue à atividade descritiva é necessário percorrer um longo caminho deanálise e entendimento dos documentos, as relações deles entre si, com sua origem e seus produtores ea pertinência com as atividades e funções da instituição que os abriga. Assim, o arquivista determina otipo de acervo a ser organizado, e inicia o processo de organização e conhecimento do acervo,aplicando a metodologia própria da arquivística, através dos seus principais conceitos.O quadro de arranjo do MJDH foi construído sob a concepção de que um arquivista não deve ser neutroou imparcial ao aplicar a teoria arquivística em seu trabalho. Segundo o arquivista Jorge Vivar, ao falarsobre a Série 3 “Terrorismo de Estado no período da Ditadura no Cone Sul”, diz que a reflexão naelaboração do quadro de arranjo da instituição foi feita a partir dessa perspectiva. Para ele:Havia uma outra discussão na arquivística sobre a neutralidade, a imparcialidade doarquivista..não existe isso né...todos nós, seres humanos, temos, a ver, isso que sechama ideologia também, todos nós temos...princípios, temos ideais, temos éticas, eelas estão associadas àquilo que nós pensamos, do ser humano, da vida e dasociedade. Então não existe isso de uma arquivista ser um neutro, um profissionalimparcial. (VIVAR, 2012)Para Cook e Schwartz (2004): “[...] os arquivistas são artífices da política de identidade” (p.26) e,com isso, exercem poder sobre a construção do conhecimento histórico e sobre como nos conhecemoscomo indivíduos, grupos e sociedades. Dado o fato de o acervo ser constituído por uma instituição quecombate as violações aos direitos humanos, seu quadro de arranjo reflete sua política e visão de mundo.A série 1 – organização e funcionamento – como toda instituição contem documentos sobre afundação do MJDH, o regimento e estatuto, bem como documentação administrativa, fiscal e de recursoshumanos.A série 2 – Promoção e intervenção na defesa dos direitos humanos – é constituída porsubséries que abarcam documentos sobre a defesa das violações cometidos pelo poder público noperíodo democrático da história do país e do mundo. As subséries são denominadas a partir dasintervenções feitas pelo MJDH na saúde e segurança pública, nas questões agrárias e de moradiaurbana – com grande participação no nascimento do Movimento dos Sem-Terra -, questões de xenofobiae discriminação social, as parcerias feitas entre o MJDH e organizações internacionais, como a UITA, e asubsérie que demonstra as ações feitas pela instituição na educação pelos Direitos Humanos.A série 3 – Terrorismo de Estado no período da Ditadura no Cone Sul – que dentro do quadro dearranjo, pode ser visualizada no anexo A deste trabalho, aborda as intervenções feitas pelo Movimentoentre 1964 e 1984, desde sua clandestinidade na luta contra os órgãos repressores na América Latina.Contém documentos que denunciam torturas, prisões arbitrárias, desaparecimento de pessoas, além doauxílio dado aos refugiados e às famílias de mortos e desaparecidos políticos.A série 4 – Transição política no Cone Sul – que trata das questões de abertura democrática ede como ela foi promovida nos países latino-americanos que sofreram o golpe militar. Há documentos,panfletos, recortes, correspondências sobre as interferências e ações do Movimentos nas discussõessobre as questões de anistia, abertura de arquivos do Estado e reparação e indenização de vítimas efamiliares.A série 5 – Prêmio de Justiça e Direitos Humanos – traz toda a documentação do eventopromovido pelo MJDH há 29 anos, que premia jornalistas dos mais variados meios que cobrem asnotícias de violação ou premiação dos direitos humanos.Finalmente, a série 6 traz os clippings de jornais sobre as ações às quais o MJDH esteveenvolvido e que foram coletados desde o inicio de suas ações. Nesta série optou-se por classificar osdocumentos de acordo com o quadro de arranjo, ou seja, traz como subséries as séries anteriores aesta, porque noticiam as ações da instituição.A função da pesquisa na descrição arquivísticaO acervo do MJDH, como pudemos ver, demonstra ter uma peculiaridade ímpar no que dizrespeito à origem e organicidade de seus documentos, e o conteúdo que carrega. Na identificação de255


usuários, percebeu-se que os documentos tem sido solicitados principalmente para a elaboração deartigos, dissertações e teses nas áreas das Ciências Humanas - História, Sociologia - e também áreasde Comunicação, como o Jornalismo.Diante desse quadro, optou-se por maximizar o conteúdo da descrição, procurando obterreferências com os seus produtores e o contexto no qual eles foram criados. Assim, a documentaçãoobtida através da atividade descritiva torna-se um complemento à fonte de pesquisa, ampliando aousuário informações que antes poderiam ser ignoradas, conforme se posiciona BELLOTTO (2007):Cabe, portanto, ao elaborador da descrição apreender, identificar, condensar e,sem distorções, apresentar todas as possibilidades de uso e aplicações dadocumentação por ele descrita. Se o historiador deve submeter-se àscoordenadas que limitam seu trabalho, isto é, à existência de documentosutilizáveis e à lógica de sua própria análise, interpretação e síntese, oarquivista, por seu conhecimento do acervo e por sua técnica de descrição,indexação e resumo, pode fornecer-lhe elementos que, muitas vezes,permaneceriam para sempre ignorados, gerando lacunas, distorções graves oumesmo fatais para a historiografia. (p.177)Nesse sentido, o que pode-se perceber é que se procurou desenvolver um minucioso trabalhode pesquisa, de forma a reconstruir o contexto arquivístico do acervo do MJDH. Para isso, a atividadedescritiva partiu das seguintes etapas:a) Identificação dos membros do Movimento de Justiça e Direitos Humanos;b) Identificação de personagens e eventos mais recorrentes na documentação do acervo entreativistas do próprio MJDH, vítimas e agentes de violações aos Direitos Humanos;c) Elaboração de cronologia com base na documentação e em fontes bibliográficas;d) Pesquisa em fontes bibliográficas sobre os personagens, os eventos e os fatos históricosrecorrentes no acervo;e) Entrevistas com membros do MJDH e com personagens da história da instituição, através doProjeto Marcas da Memória;f) Construção do quadro de arranjo.Para Velloso (2010), a descrição documental é o trabalho intelectual do arquivista, é onde se dá aprodução de conhecimento de um arquivo. Segundo ela:A compreensão da descrição arquivística como processo de pesquisa redimensiona oseu próprio lugar na Arquivologia. Tradicionalmente entendida como atividade voltada àelaboração de instrumentos de pesquisa, perdeu-se sua dimensão científica e foireforçada sua perspectiva prática até chegarmos a ponto da produção de modelos de“confecção” de descrição. (VELLOSO, 2010, p.53).De importante conteúdo no que se refere às ações do Movimento e Justiça e Direitos Humanose das Ditaduras Militares no Cone Sul, as Oitivas de familiares de Uruguaios Desaparecidos forneceramamplo auxílio para a construção do contexto arquivístico da instituição. Utilizada como produto de umaanálise, sua descrição pode ser encontrada no anexo deste trabalho. A descrição deste item documentalé visto no anexo C deste trabalho.A importância deste item documental, e a sua procura por pesquisadores fizeram com que se optassepela elaboração de um catálogo, seguindo uma descrição analítica para a sua disponibilização econsulta. Antonia Heredia (1991) o define como:Catálogo es el instrumento que describe ordenadamente y de forma individualizada laspiezas documentales o las unidades archivistitas de una serie o de un conjuntodocumental que guardan entre ellas una relación o unidad tipológica, temática oinstitucional. (p.360)O catálogo geralmente é utilizado em descrições de unidades ou itens documentais, em respostaaos interesses relativos à política da instituição ou à demanda de pesquisa – determinado esse valor, ficajustificada sua elaboração.O catálogo analítico imprime uma possibilidade maior de demonstrar o instrumento de pesquisacomo produção de conhecimento. A relevância do valor histórico desses itens documentais faz com queo arquivista possa elaborar uma pesquisa minuciosa sobre determinado tema, e sendo o itemdocumental uma composição de uma série e de um fundo, maior será a compreensão do arquivo e docontexto ao qual ele faz parte.256


No período repressivo, a ONU, através de sua subcomissão de Direitos Humanos, propôs arealização de audiências para as oitivas de familiares de desaparecidos uruguaios, ao preocupar-se comas violações aos Direitos do Homem pelas ditaduras do Conesul.Em setembro de 1979, a OEA (Organização dos Estados Americanos) enviou funcionários a BuenosAires, a fim de investigar e inspecionar o Estado buscando denúncias dos crimes cometidos por estecontra cidadãos comuns que conforme Eric Nepomuceno, em seu artigo na revista Carta Maior:Imunes a tudo isso, na porta do prédio onde funcionava a representação daOEA, na Avenida de Mayo, havia filas de gente disposta a falar, apesar dosriscos, apesar do medo. Na verdade, desde 1975 a OEA recebia denúncias deviolações dos direitos fundamentais. Mas depois do golpe de março de 1976,essas denúncias viraram uma torrente. (2011, documento on-line. 3 )O relatório foi finalizado em abril de 1980 e proibido de circular na Argentina, sob imposição doregime ditatorial latino-americano. Essa campanha resultou em repercussão negativa para a ditaduraargentina, fazendo com que a regime uruguaio não aceitasse o pedido da OEA para fazer um processoigual em seu território. No entanto, a investigação na Argentina já havia registrado denúncias de parentesde desaparecidos políticos uruguaios, e a OEA fez com que a existência de desaparecidos uruguaios e anegativa do regime militar de realizar as oitivas em solo uruguaio se tornasse amplamente conhecida,chamando a atenção de outras entidades de luta pelos Direitos Humanos.Nessa mesma conjuntura, foi criada em Paris a A.F.U.D.E. (Agrupación de Familiares deUruguayos Desaparecidos), uma associação semelhante à da Madres da Plaza de Mayo, o queproporcionou maior organização na busca e maior registro de denúncias de desaparecimentos políticosuruguaios.Tamanha repercussão chamou a atenção da Subcomissão de Direitos Humanos da ONU, queatravés da A.F.U.DE. negociou a oitiva desses familiares de uruguaios desaparecidos, com audiências aserem realizadas no Brasil, que nesse momento vivia sua fase de “transição democrática”.A seqüência de oitivas e o andamento do processo fizeram com que 130 casos dedesaparecidos uruguaios fossem conhecidos e investigados e aliado a isso, escancarou a tensão vividano território uruguaio sob a égide do regime militar. Além disso, a operação ter sido realizada em PortoAlegre facilitou sua realização, pela proximidade com o Uruguai, e deu mais base para a luta daA.F.U.DE., que ganhou novos membros, pois muitos familiares se conheceram através da oitiva noBrasil.Michael Cook (2007b, p. 126) enfatiza a importância do aspecto da pesquisa no processo descritivo:[...] há muito que afirmo que a pesquisa é uma característica fundamental denosso trabalho profissional. Mas, geralmente, essa pesquisa tem sidodirecionada para a analise da estrutura e dos métodos da organizaçãoprodutora dos documentos, ao invés de ser voltada para a produção de uminstrumento de pesquisa. Se adotarmos o último ponto de vista (uma idéiarelativamente nova), podemos rapidamente ver que nossa pesquisa pode serconduzida de forma útil – de fato necessária – para criar o que Mc Neil chamade ‘texto cultural’. Nossas descrições são interpretativas, e não simplesmentesistemas neutros de indicativos.Para ele, algo deveria ter sido pensado, no que se refere às discussões sobre descriçãoarquivística, para a inclusão de resultados de pesquisa visando a interpretação de materiais, e nãosomente às referências de produção e transmissão de dados. Quando cita Mc Neil (2007), 4 dizendo queo trabalho de descrição, finalizado com um instrumento de pesquisa é visto como um texto cultural, serefere a que os arquivistas neste trabalho fazem tanto um trabalho de pesquisa quanto de interpretação.Bellotto (2007, p. 174) acredita que:[...] os instrumentos de pesquisa são vitais para o processo historiográfico. Escolhido umtema e aventadas as hipóteses de trabalho, o historiador passa ao como e ao aonde.Diante de um sem-número de fontes utilizáveis, a primeira providência, pela própriaessência do método histórico, é a localização dos testemunhos. Para tanto, farão o seupapel as referências documentais em trabalhos publicados, o “colégio invisível” e opróprio conhecimento dos arquivos: as diferentes tipologias das instituições já definem34NEPOMUCENO, Eric. A memória encaixotada sai das trevas. Carta Maior, São Paulo, 29 nov. 2011. Disponívelem: . Acesso em: 03 jun. 2012.MC NEIL. Heather. Recent Trends in archival description: the finding aid as cultural text. Paper to the ARMEeNworkshop. Londres: University College London, 2007, apud COOK, 2007b.257


as espécies documentais que guardam e possibilitam desenhar o perfil das informaçõescontidas. Ir da análise crítica do material documentário até a síntese e a interpretação éo caminho a seguir.Nesse paradigma, o uso de outras fontes que contemplem e completem o material documentáriopossibilitam a reconstrução do contexto arquivístico e a ampliação da descrição documental.Segundo o Professor Jorge Vivar, a principal metodologia empregada na pesquisa e reconstrução docontexto dos documentos do acervo do MJDH – além da pesquisa na própria documentação e no acervobibliográfico - foi a de História Oral. Na entrevista concedida, ele diz que:Para a organização do acervo evidentemente nós utilizamos a metodologia da HistóriaOral. Entrevistamos os atores dessa história do Movimento que, evidentemente os quese conseguiram localizar. [...] a partir desses depoimentos passou-se entender essadocumentação e sua informação e, na medida em que procedia com sua organização,solicitávamos a presença deles quando as dúvidas faziam-se presentes. Exemplos: derepente nos deparávamos com um pedaço de folha escrita com anotações quecontinham informações aparentemente insignificantes e inorgânicas, entre aspas não?Porém esse pedaço de papel junto a outro documento e a informação do depoentelegitimava a informação. A partir daí optamos por não eliminar absolutamente nada, esim encontrar a organicidade dos documentos e o significado disto e, evidentementepara isto, tínhamos que trabalhar em conjunto com os produtores. Neste caso, muitonos ajudou Jair Krischke, quase nesse processo todo, quase que diariamente... desde oinício. Diria que esta foi a metodologia adotada. Claro, evidentemente que somada eesta, foi necessária a pesquisa em fontes bibliográficas, procurando encontrar diferentessignificados e aprendizados relacionados aos direito humanos, ditaduras, históriarecente, terrorismo de Estado no Mercosul, bibliografia a respeito disto...tudo o que agente encontrasse. Muito útil nos foi o próprio acervo bibliográfico que se tem lá. Muitasteses, dissertações em fim, muitas indicações a respeito deste período. (VIVAR, 2012)O uso da História Oral é usado como mecanismo de resgate de possíveis esquecimentos dentroda pesquisa arquivística, de ver o contexto ao qual o documento ou o acervo pertence, sob outro pontode vista. Para Favier et. al. (2003, p; 48),Nuestra época, sin embargo, ha agregado a los archivos que yo calificariacomo espontáneamente formados, los archivos orales, que son creados demanera deliberada. Aquí nos encontramos con la memoria. Su interés radicaen que permiten conservar un rastro de testimonios de gente que nunca haescrito ni escribirá nada, por ejemplo, las confidencias de un ex diplomático queno tiene la intención de escribir sus memórias, pero que puede aportar muchorespecto a los pormenores de una negociación o sobre la evolución del ámbitoen que trabajó, o los recuerdos de un antiguo artesano ou obrero atinentes auna herramienta que inventó o a un oficio que desempeñó y que ahora ya noexiste, o, en fin, las apreciaciones de un particular respecto a un cima socialque él conoció bien. El término “archivo” quizá no sea del todo exacto en estoscasos, pero tales ‘archivos orales’ llenan ostensibles vacios de los archivosescritos.Assim, na História Oral resultam narrativas dos protagonistas, que assumem a condição defontes à pesquisa histórica, e dentro da Arquivologia permite que o arquivista conheça profundamente oarquivo em que está trabalhando, no que diz respeito ao seu acervo e ao contexto ao qual se insere.Outro aspecto salientado na questão do processo descritivo como produção de conhecimento éa visão crítica do arquivista ao pesquisar e elaborar uma descrição arquivística.Cook e Schwartz (2004) ressaltam que por muito tempo o arquivista era considerado e seconsiderava como neutro, objetivo e imparcial – onde apenas recebiam documentos de entidades edisponibilizavam ao pesquisador. Não imprimia o seu trabalho de construção do acervo e sua visão demundo em relação ao contexto histórico do arquivo. Em seu artigo “Arquivos, Documentos e Poder: aconstrução da memória moderna”, os autores apontam a tomada de consciência dos arquivistas sobre areflexão crítica nos acervos documentais. Para eles:Os arquivos – como registros – exercem poder sobre a construção doconhecimento histórico, da memória coletiva e da identidade nacional, sobrecomo nós nos conhecemos como indivíduos, grupos e sociedade. E, por fim,na busca de suas responsabilidades profissionais, os arquivistas – comogestores de arquivos o detêm o poder sobre os próprios documentos258


essenciais à formação da memória e da identidade, por meio da gestão ativados registros antes deles se tornarem arquivos, de sua avaliação e seleçãocomo arquivos e, posteriormente, de sua descrição, preservação e uso empermanente evolução enquanto fonte histórica. (COOK; SCHWARTZ, 2004,p.15).Na análise feita nas descrições das oitivas de familiares de uruguaios desaparecidos na ditaduramilitar podemos ver essa idéia refletida. O grupo de trabalho formado pelos Arquivistas sem Fronteiras(AsF) estava em pleno acordo com a história e política do MJDH – este, defensor dos direitos humanos eprincipalmente, denunciante das violações cometidas pelo Estado durante a ditadura militar na AméricaLatina. Dessa forma, o processo de descrição arquivística para a difusão do acervo é uma forma derepresentação da história contida dentro dos documentos e de seu contexto de criação.A reconstrução do contexto arquivístico através da organização do acervo, a análise dosdocumentos, a pesquisa feita interna e externamente através da história oral, o posicionamento doarquivista ao refletir sobre o contexto onde os documentos foram criados, e a escolha de umametodologia de trabalho própria da Arquivologia, isso tudo converge para que haja uma descriçãoarquivística bem fundamentada, que represente o contexto histórico do acervo, o contexto de origem dosdocumentos e as atividades que levaram à sua criação, tornando-se, dessa forma, uma produção deconhecimento arquivístico, facilitando o entendimento do que é o arquivo e todo o seu conteúdoinformacional.Considerações FinaisDiante da análise do trabalho feito para o arranjo e descrição do acervo do MJDH, foi importanteperceber a forma e a metodologia de trabalho escolhida pelos Arquivistas sem Fronteiras nestaintervenção. De características singulares, pois se tratava de um arquivo privado de uma organizaçãosocial que desenvolveu seu trabalho em ações na defesa dos direitos humanos, os arquivistas tiveramdificuldades em perceber as relações entre os documentos, os personagens identificados neles e asatividades às quais eles faziam parte. A partir disso, o exercício de identificação dessas relaçõesproporcionou a busca por uma metodologia arquivística que esclarecesse a organicidade dosdocumentos, e a utilização de métodos combinados de pesquisa, para que fosse possível obter, nomomento de sua descrição, a representação da complexidade do conteúdo deste acervo. Assim, apesquisa do contexto histórico da atuação do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, passou pelainterpretação do quadro de arranjo, pela análise dos documentos e da busca de suas relações, e apesquisa bibliográfica sobre os principais conceitos que moveram a instituição a atuar em prol de seusobjetivos. Aliada à pesquisa bibliográfica, o uso da metodologia de História Oral foi determinante paraque os documentos fossem entendidos como um conjunto documental, além de proporcionar ao trabalhode arranjo e descrição a interpretação do lugar que os documentos ocupam nas ações de defesa dosdireitos humanos.Consequentemente, o arcabouço teórico que a pesquisa traz ao trabalho de arranjo e descrição,fornece ao arquivista um amplo conhecimento dessas relações entre os documentos e seuspersonagens, e assim, possibilita a inclusão de sua reflexão crítica em relação ao contexto histórico doarquivo, levando em consideração a função social da instituição e os usuários do mesmo.Como vemos, a organização de um acervo arquivístico fundamentado através da busca porfontes de pesquisa que possam embasar a escolha de uma metodologia arquivística, além da percepçãodo arquivista como pesquisador e produtor de conhecimento, trazem a possibilidade de elaborar umprograma de descrição arquivística amplo e contextualizado historicamente, onde o usuário, ao se utilizardeste produto para o acesso à informação, encontrará não só a localização desta, mas também seusentido enquanto informação pertencente ao arquivo que a abriga.No arquivo do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, é possível perceber e demonstrar aousuário o acervo como marco interpretativo das ditaduras do Cone Sul, contendo uma memóriaemblemática com os objetivos de legitimar a história das pessoas afetadas pelo regime de repressão econscientizar a sociedade a razão da luta por verdade e justiça.Fontes Pesquisadas:Quadro de Arranjo do Fundo Documental Movimento de Justiça e Direitos Humanos - Projeto deOrganização do Acervo do Movimentos de Justiça e Direitos Humanos. Coordenação e elaboração Prof.Jorge Eduardo Enriquez Vivar. Disponível na sede do arquivo de MJDH.Catálogo analítico do item documental “Oitivas de Familiares de Uruguaios Desaparecidos”. Disponívelna sede do arquivo do MJDH.259


Item documental “Oitivas de Familiares de Uruguaios Desaparecidos”. Série 3 “Terrorismo de Estado noPeríodo da Ditadura no Cone Sul”. Fundo Documental Movimento de Justiça e Direitos Humanos.Disponível na sede do arquivo do MJDH.VIVAR, Jorge. O acervo do MJDH. [2012]. Porto Alegre. Entrevista concedida para este trabalho.Referências Bibliográficas:BELLOTTO, Heloisa. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: FGV, 2007.COOK, Michael. Desenvolvimentos na descrição arquivística: algumas sugestões para o futuro. RevistaAcervo, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1-2, p. 125-132, jan./dez. 2007.COOK, Terry. SCHWARTZ, Joan. Arquivos, Documentos e Poder: a construção da memória moderna.Registro: Revista do Arquivo Público Municipal de Indaiatuba/Fundação Pró-Memória de Indaiatuba,Indaiatuba, v. 3 n.3, p.15-30, jul. 2004. Disponível em: . Acesso em: 28 maio 2012.FAVIER, Jean et. al. Memória y archivos. In: RICOEUR, Paul. Por qué recordar? Barcelona: Granica,2003.HAGEN, Acácia Maria Maduro. Algumas considerações a partir do processo de padronização dadescrição arquivística. Ciência da Informação, Brasília, DF, v. 27, n. 3, 1998. Disponível em:. Acesso em: 28 maio 2012.HEREDIA, Antonia. Archivística general: teoria y practica. Sevilla: Diputación de Sevilla, 1997.NEPOMUCENO, Eric. A memória encaixotada sai das trevas. Carta Maior, São Paulo, 29 nov. 2011.Disponível em: . Acessoem: 03 jun. 2012.TOGNOLI, Natália B. GUIMARÃES, José Augusto C. Arquivística Pós-Moderna, Diplomática Arquivísticae Arquivística Integrada: novas abordagens de organização para a construção de uma disciplinacontemporânea. In: ENCONTRO NACIONAL Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação, 11.,2010, Rio de Janeiro. Comunicação Oral. Rio de Janeiro: IBICT/MCT, 2010. Disponível em: Acesso em: 14 nov. 2012.VIVAR, Jorge. O acervo do MJDH. [2012]. Porto Alegre. Entrevista concedida para este trabalho.VELLOSO, Lucia Maria. Modelagem e status científico da descrição arquivística no campo de arquivospessoais. 2010. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.260


O DOPS e os arquivos da repressão: as atribuições da Delegacia de Ordem Política eSocial no Maranhão.Manoel Afonso Ferreira Cunha 1Resumo: Este trabalho tem por objetivo buscar compreender a vigilância institucionalizada sob a formade atribuições identificadas em ofício da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS-MA) em São Luísdo Maranhão, na segunda metade da década de 1970, tendo por base os documentos produzidos e/ouarquivados pela mesma instituição (DOPS-MA) e que atualmente se encontram disponibilizados parapesquisa no Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM). Antes se faz necessário salientar aimportância da História do Tempo Presente,das principais perspectivas de entendimento do golpe militar,da atuação da polícia política (DOPS), da Doutrina de Segurança Nacional e da funcionalidade dosarquivos como alternativa para o estudo da História Contemporânea brasileira.Palavras-chave: Ditadura – DOPS – Polícia – Segurança Nacional–Atribuições.Abstract: This paper aims at seeking to understand surveillance institutionalized in the form ofassignments identified in a letter from the Department of Political and Social Order (DOPS-MA) in SãoLuís do Maranhão, in the second half of the 1970s, based on the documents produced and / or archivedfrom the same institution (DOPS-MA), and that are currently available for research in the Public Archivesof the State of Maranhão (Ampem). Before it is necessary to stress the importance of the History of thePresent Time, the main perspectives of understanding of the military coup, the role of the political police(DOPS), the National Security Doctrine, and the functionality of the files as an alternative to the study ofContemporary History Brazilian.Keywords Dictatorship – DOPS – Police – National Security – Assignments.1. IntroduçãoO estudo da História do Tempo Presente no Brasil é algo ainda bastante delicado e suscetível ainúmeras críticas, haja vista que investigar determinados assuntos e traçar qualquer tipo de análise,levando em consideração o aspecto inquietante de lidarmos com problemas do nosso dia a dia, detrabalharmos temas históricos em que diversos atores de grande relevância ainda estão vivos, torna-seum interessante desafio para a História e para aqueles que desejam desenvolver estudos nesta área.Há uma forte tendência da historiografia atual em se trabalhar com objetos relativos àcontemporaneidade, construir um novo modo de pensar as relações entre passado e presente, seguindoo movimento de abandono da noção de um passado estático e acabado. Assim, o processo derenovação da História Contemporânea está conseguindo responder de maneira positiva a questõesreferentes às disponibilidades de fontes, antes tidas como raras (inacessíveis e enclausuradas emarquivos que há tempos atrás tolhiam a pesquisa acadêmica) e abundantes (maior quantidade ediversidade) ao mesmo tempo. Como prova disso, vimos surgir, em contraposição aos tradicionaiscentros de pesquisas e produções históricas, institutos paralelos que universalizam a noção dehistoricidade, democratização e dilatação da História. Exemplos disso são o Instituto de EstudosPolíticos e o Instituto de História do Tempo Presente.Dentro desse contexto de abordagem histórica do Tempo Presente, encontramos os estudosrelacionados à ditadura civilmilitar no Brasil, ao golpe que deu início a um regime que durou 21 anos emarcou de maneira funesta a história do nosso país. Logo, devemos atentar para o compromisso que aspesquisas de História Contemporânea devem trazer tanto para a academia quanto para a sociedadebrasileira. Para isso, vale destacar a importância da análise da trajetória de estudos e pesquisas sobre otema.Diferentemente de outros períodos da história brasileira, a ditaduracivil militar conheceu naciência política seu pioneiro instrumento de estudo. Essa perspectiva começa a se modificar na década1Graduando do 7° período do curso de História da Universidade Estadual do Maranhão. Membro do NUPEHIC(Núcleo de Pesquisa em História Contemporânea). Bolsista FAPEMA pelo Projeto de Organização, Indexação,Informatização e Publicização do acervo documental sobre História Contemporânea presente no Maranhão, sobcoordenação da prof. Drª Monica Piccolo.261


de 1970 (coincidentemente o período mais duro do regime) quando ocorre a reforma universitária esistematiza-se aprofissionalização da pesquisa histórica em terras brasileiras, o que acaba, nos anosseguintes, proporcionando a difusão de programas de pós-graduação por todo o país. 2Nessa atmosfera de sigilo, de escassez documental estimulada por membros envolvidos noprocesso, que os brasilianistas vão ganhar destaque nas pesquisas históricas sobre a ditadura militar.Historiadores de outras nacionalidades, em sua maioria norte-americana, terão acesso privilegiado adeterminados documentos que pesquisadores brasileiros não tiveram na época, dentre esses podemosdestacar Alfred Stepan, com a obra “Os Militares na Política”, publicada originalmente em 1975.2. O golpe em diferentes perspectivasA inovação da pesquisa histórica republicana, com objetivo de romper com o passado, baseadano forte interesse pela trajetória nacional mais recente, tem suas vantagens, mas nem por isso se livroudas amarras do tradicionalismo. Ao analisar algumas das principais obras sobre a ditadura militar,podemos perceber que ainda existe uma tendência que busca personalizar a história do regime.É comum identificar tanto na direita (que via no Goulart um demagogo e corrupto) quanto naesquerda (a qual apontava Jango como um burguês de massa vacilante) a avaliação exclusiva docomportamento e da personalidade de João Goulart para explicar o golpe de 1964. Assim, partindo deum panorama tradicionalista, o regime instaurado na década de 1960 “teria ocorrido devido à falta detalento de um único indivíduo.” 3Além dessas explicações, temos também interpretações voltadas para as grandes estruturas epara a “grande conspiração”. Como afirmam Luís Carlos Prado e Fábio Sá Earp 4 , a primeira compreendeo golpe enquanto consequência do colapso do Populismo. Seus principais representantes são OctávioIanni, Guilherme O`Donnel e Fernando Henrique Cardoso. Estes apontam, respectivamente, que o golperesultou da crise do modelo agroexportador e os modelos de desenvolvimento nacionalista em aliançacom as empresas estrangeiras; a aproximação entre industrialização e autoritarismo; e a necessidade degestões autoritárias para coordenar esse processo de acumulação de capital.A segunda, referente às grandes conspirações 5 , tem um importante enfoque nos arranjos feitospelos grupos sociais conservadores brasileiros, com influencia externa norte – americana que, paramuitos, teria sido o fator primordial para a eclosão do processo golpista em 1964. No entanto esse tipode interpretação desconsidera o papel dos grupos sociais que atuaram de forma litigiosa dentro do país,tendo como resultado o deslocamento externo do protagonismo da história do Brasil. O caráter militarPodemos notar outras versões interpretativas do que os próprios militares chamaram de“Revolução”. Existemtrabalhos de historiadores e cientistas políticos que atribuem um caráterestritamente militar para a tomada de poder após o fim do governo Goulart. Entretanto, existempesquisasque discordem dessa análise e apontem a forte presença civil no processo de desgaste da presidênciade João Goulart e da instauração do regime militar. Acreditamos, portanto, ser de total necessidade,trazer luz, de maneira sintetizada, alguns desses pontos de vista sobre o golpe militar de 1964.A interpretação que confere caráter predominantemente militar ao golpe de 1964 enfatiza odesempenho dos militares no processo de tomada de poder, sustentado pelo fechamento de partidospolíticos, do enfraquecimento exacerbado do congresso nacional, do arrocho salarial e das práticas derepressão em todos os níveis.Carlos Fico afirmar em Além do Golpe que “se a preparação do golpe foide fato civil-militar, no golpe, propriamente, sobressaiu o papel dos militares” 6 , visto que ocorreu umaintensa militarização a partir da progressiva institucionalização dos aparatos repressivos, inserindodiretamente os militares nas ações de polícia política.Partindo de análises que seguem a mesma linha anteriormente citada, temos ainda dois23456FICO, Carlos. Além do Golpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro:Record, 2004, p. 21.FERREIRA, Jorge. O Governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Licília(orgs) O Brasil Republicano. O tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpecivil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 346.PRADO, Luís Carlos; SÁ EARP, Fábio. O “milagre” brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional econcentração de renda (1967-1973). In FERREIRA, Jorge; DELGADO, Licília (orgs) O Brasil Republicano. Otempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2003, p. 210.DELGADO, Lucília de Almedida Neves. 1964: temporalidades e interpretações. In REIS, Daniel Aarão; RIDENTI,Marcelo e MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs). O Golpe e a Ditadura Militar: quarenta anos depois. Bauru, SP:Edusc, 2004, p. 22.FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record,2004, p.38.262


importantes historiadores: Jacob Gorender, autor de Combate nas Trevas, e Carlos Werneck Sodré,História Militar do Brasil. O primeiro afirma que “a consciência de classe de crescentes contingentes detrabalhadores” estava “cada vez menos compatível com a expressão populista” 7 , intensificaram osconflitos no âmbito da sociedade civil.Em consonância como fortalecimento das disputas sociais, a industrialização adquire, nessaépoca, feições nacionalistas, incomodando os setores conservadores, que estavam bastante receososda influência comunista dentro do Brasil. A partir do objetivo de estudar a esquerda e a luta armada nocontexto ditatorial, Gorender, na mesma obra, afirma que essa efervescência trabalhista se produziu, aosolhos da direita, numa ameaça a classe dominante e ao imperialismo.Para Werneck Sodré, a atuação das forças armadas jamais poderia ser interpretadaisoladamente, desvinculada das outras esferas da sociedade. Ao corroborar com o discurso que defendeo cunho militar ao golpe de 64 seu caráter militar em sua exteriorização e político em sua essência.. 8Alfred Stepan em Os Militares na Política: as mudanças de padrões na vida brasileira tambémaponta o protagonismo militar na articulação e execução do golpe de 1964, o destaque de sua análise setrata da quebra do padrão moderador. Ou seja, em diversos momentos da história do Brasil, os militaresassumiam o poder para resgatar a ordem e depois voltavam para os quartéis, no entanto, em 1964, essapostura é modificada. A singularidade estava no fato de que, na década de 1960, os militares se sentiamprofundamente ameaçados pela ineficiência das instituições civis.2.2 Os civis no golpeAfastando-se da tendência bastante valorativa do papel dos militares no golpe de 1964, temosinterpretações que defendam uma forte participação civil na “revolução” 9 , levando em consideração aideia de que se a ditadura militar não tivesse uma ampla aceitação das bases sociais internas do Brasil,o golpe não teria sido efetivado.Nessa linha temos René Dreifuss 10 e sua obra 1964: a conquista do Estado, na qualé trabalhadaa participação central do complexo IPES/IBAD como explicação para o processo de derrocada dogoverno Goulart, e da instauração do regime civil – militar. O perfeito trabalho empírico, mostrandoclaramente os membros que atuavam nessas agências, e que fariam posteriormente parte da ossaturamaterial doEstado restrito 11 .Com isso, pode ser comprovado que os ativistas desse complexo acabaram por capitanear oprocesso de formulação de diretrizes, além de constituírem papel central nas decisões a seremtomadas, já que esses colaboradores moldaram o sistema financeiro e assumiram as principais pastasdo governo e os maiores órgão públicos administrativos. Portanto, assumiram a função social deintelectuais orgânicos 12 dentro de um instituto que, na concepção gramsciniana, exercia o papel departido político, ou seja, de organizador da vontade coletiva.Outro historiador já citadoque trabalha nessa linha do golpe civil – militar é o brasiliniasta, denacionalidade norte – americana, Thomas Skidmore, em sua obra Brasil de Castelo a Tancredo ficabastante clara essa opinião, já queos conspiradores militares e civis que depuseram João Goulart emmarço de 1964 tinham dois objetivos: frustrar o plano comunista e estabelecer a ordem de modo que sepudessem executar reformas legais. 13Há de se concordar, levando em consideração as perspectivas discutidas anteriormente, que oregime autoritário nascido em 1964 não se sustentaria sem elaborar, um consolidado sistema deinformações, espionagem e repressão, legitimados por atos e decretos que faziam parte de um grandeprojeto de proteção dos interesses da fração dominante da classe dominante que se encontrava no78910111213GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas – A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas à luta armada.São Paulo: Ática, 1987, p. 16.SODRÉ, Nelson Werneck. A História Militar do Brasil. Editora Expressão popular, 2010.BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: EditoraUniversidade de Brasília, 1ª ed., 1998. Vol.1, p. 1122.DREIFUSS, René. 1964: A Conquista do Estado. Ação Política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro,Vozes, 1987, p. 455.O conceito de Estado para Gramsci sofre a chamada “renovação e superação dialética” frente à obra de Marx eLênin já que não é visto somente como um aparelho que garante a dominação da classe burguesa. Para ointelectual sardo, o Estado possui uma dupla dimensão: sociedade civil (Portadora material da figura social dahegemonia) e sociedade política (Estado em sentido Restrito ou Estado Coerção). Para maiores detalhes, verGRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº 13).Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.Intelectual que, na concepção moderna de Gramsci, além de elaborar discursos, também organizaria as práticassociais, e seriam gerados dentro da própria classe, exprimindo as experiências e os sentimentos que as massasnão poderiam exprimir. Cadernos do Cárcere, vo. 2, ,vol. 2, . Os intelectuais e a Organização da Cultura. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 2004.SKIDMORE, Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 45.263


controle do Estado Restrito.A doutrina de Segurança Nacional, os Direitos Humanos e as informações nos arquivos deEstado.3.1 A doutrina de Segurança NacionalCom o advento da ditadura militar no Brasil, e em nome da Segurança Nacional, instalou-se umcomplexo sistema repressivo para combater a subversão e, ao mesmo tempo, reprimir preventivamentequalquer atividade considerada suspeita por se afigurar como potencialmente perturbadora da ordem: 14Crahan identificou as origens da ideologia de segurança nacional na América Latina jáno século XIX, no Brasil, e no início do século XX, na Argentina e no Chile. Elasvinculam-se então a teorias geopolíticas, ao antimarxismo e às tendênciasconservadoras do pensamento social católico, expressas por organizações como aOpus Dei, na Espanha, e a ActionFrançaise. 15A Escola Superior de Guerra foi esteve incumbida de elaborar e difundiras diretrizes da Doutrinade Segurança Nacional. Houve, na sua formulação, a participação do complexo IPES/ IBAD, existindoem seu interior, um corpo de intelectuais de formação técnica que, no campo da sociedade civil,contribuíram na formulação de diretrizes para a busca do consenso, já que métodos de coerção setornariam ineficientes a médio e longo prazo.Dentro da DSN, destaca Márcia Moreira Alves, havia o conceito de guerra total que se baseavana estratégia militar da Guerra Fria que definia a guerra moderna como total e absoluta, entrando emconflito com a ação revolucionária de esquerda, pautada esta no conflito interno, visando o controle danação sem abrir mão de apoio externo, no caso países comunistas (URSS, Cuba e China), com intuitode angariar mentes descontentes com a ordem vigente.Enquanto elemento importante da DSN, temos a função geopolítica exercida pelo Brasil nocontexto latino-americano. Tanto os militares, quanto o governo norte- americano acreditavam que oBrasil era a grande potência da América do sul, e que se transformara na prioridade da luta contra a“subversão” comunista na região, visto que a Revolução Cubana de 1959 abrira os olhos das direitas nocontinente.Havia, portanto,a estreita relação entre Segurança Nacional e desenvolvimento econômico. OBrasil, por ser um Estado de modelo capitalista, demandaria a proteção e legitimação da aliança entredas frações dominantes da classe dominantee o capital externo. Para isto, tinha-se a necessidade deintervenção no meio político e social visando atender as exigências dos interesses internacionais,deslocando do âmbito social a prioridade do Estado, que não mais se colocava na função de provedor daelevação do padrão de vida da maioria da população.A repressão, característica dos governos de segurança nacional, decorrente das pressões docapital externo e das elites locais que ansiavam por um novo modelo de acumulação de capital, fezsurgir o que se chama de Terror de Estado, o uso da violência estatal na “defesa” da democracia. 16·. Epara que existisse pleno desenvolvimento dos interesses da Doutrina de segurança Nacional, se fazianecessária atuação de uma polícia política que objetivasse a manutenção da ordem, o estabelecimentoda vigilância e da repressão daqueles que contestassem a ordem vigente.Nesse contexto, ocorre o remodelamento da Delegacia Política de Ordem Social, o DOPS,criada em 1924, e que juntamente com o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações –Centro de Operações de Defesa Interna) e o SNI (Sistema Nacional de Informações), formariam um dospilares de sustentação da ditadura no Brasil.3.2 A luta pela informação e direitos humanosAs primeiras intenções voltadas para a publicização de informações classificadas como secretas,e das preocupações referentes aos direitos humanos datam do período medieval, ao analisarmos a141516MAGALHÃES, Marionildes Dias Brehpol de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos a épocada ditadura militar no Brasil.MOREIRA ALVES, Márcia Helena. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Rio de Janeiro: Editora Vozes,2°edição, 1984, p.33.PADRÓS, Enrique Serra. Repressão e violência: segurança nacional e terror de Estado nas ditaduras latinoamericanas.In:FICO, Carlos (org.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico eperspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, p. 141 a 176.264


trajetória de luta pela informação e da gênese do debate sobre o que são direitos humanos, destacamosa Declaração das Cortes de Leão, em 1188, na península ibérica; e a Magna Carta inglesa de 1215.No entanto, é apenas no final do século XVIII que se formulará o conceito moderno de direitos humanos,com dois documentos de grande repercussão na história ocidental: a Declaração de Virgínia, de 1766,no contexto da Independência dos Estados Unidos da América; e a famosa Declaração dos Homens edos Cidadãos, de 1789, durante a Revolução Francesa.Contudo, vai ser na Renascença que se dará a conceitualização do termo “privado”. Ao longo doséculo XIX o termo ganha dimensão nacional, já que o surgimento dos Estados Nacionais modernosdifundirá os debates sobreas questões relativas aointeresse público e privado, como também sobre osassuntos classificados como segredos de Estado.Com o pós-guerra, exatamente em 1948, na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU)ocorrerá a universalização da temática relacionada aos direitos humanos, com isso abre-se a discussãosobre o direito a liberdade de assuntos de âmbito privado e da valoração das informações presentes nosarquivos de Estado.No Brasil, desenvolveu-se a Comissão Nacional da Verdade visando a apurar graves violaçõesaos direitos humanos no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988. Criada a partir daLei 12.528, a comissão foi instalada em 16 de março de 2012 com prazo de dois anos para depurar astransgressões anteriormente citadas. Os trabalhos estão divididos em três subcomissões (Pesquisa,Relações com a sociedade e Informação), todas estas fragmentadas em grupos temáticos. 17Logo, as questões relativas aos direitos humanos e divulgação de informações antes inerentesao Estado, acaba por atribuir grande importância às pesquisas executadas nos arquivos públicos,através das fontes documentais provenientes dos arquivos da polícia política, nesse caso o DOPS.Assim, a divulgação desses documentos pode denunciar práticas nocivas à sociedade (tortura),tornando-se de interesse público. 183.3 Os arquivos da polícia política brasileiraAo pesquisarmos os arquivos da polícia política, temos a oportunidade de analisar os conteúdosinseridos presente nos documentos apreendidos e/ou elaborados dentro da Delegacia de Ordem Políticae Social(DOPS), reconstituindo e identificando o discurso deordem, genuinamente repressivo, comotambém avaliar a função daqueles que enfrentaram o autoritarismo.A partir das vastas fontes documentais, existe a possibilidade de pesquisa, para aqueles queestudam a História do Brasil Contemporâneo, de como era exercido o poder pelas instituições públicas,especialmente o órgão de polícia política. Porém, não podemos esquecer que essa variedade dearquivos expressacoexistência de diversos discursos: o discurso polícia (ou da ordem), o do delator ouda imprensa (parte da imprensa em convergência com Estado de exceção)e o da resistência 19 ou“desordem”.Por conseguinte, livros, jornais, fichas, relatórios, panfletos, ofícios, todos estes materiais, que seencontram arquivados pelos DOPS de todo o país, trazem discursos que sofreram algum tipo demanipulação e/ ou gerenciamento, expressando certas condutas e práticas previamente estabelecidaspelo organismo policial. ” 20 Notamos assim, que a vastidão de fontesdocumentais relativas a policiapolítica brasileira oferece a possibilidade deestudos em diferentes aspectos.Podemos avaliá-las do ponto de vista cultural, identificado no corpus documental destainstituição valores e preconceitos arraigados no imaginário coletivo do período; do prisma organizacionaldesse órgão, que por muitos anos disfarçou sua essência ditatória; e sobre o panorama exclusivamentedocumental, visto que os documentos possam ter sido alvo de manipulação.As atribuições do DOPS no MaranhãoA fonte analisada para o desenvolvimento deste trabalho trata de atribuições da Delegacia deOrdem Política e Social (DOPS) enviadas em ofício para a Secretaria de Segurança do Estado doMaranhão. As orientações estão contidas em dossiê inserido na série intitulada “Subversão” e servem17181920Ver melhor sobre a Comissão da Verdade em http://www.cnv.gov.br.COSTA, Célia Maria Leite. O direito à informação nos arquivos brasileiros. In: FICO, Carlos (org.)Ditadura edemocracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, p.20.“Assim, para usar o termo com propriedade a fim de pensar a resistência brasileira, importa mais o significadodo combate à ditadura do que o de ofensiva revolucionária”. RIDENTI, Marcelo. Resistência e mistificação daresistência armada contra a ditadura: armadilha para pesquisadores. In REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo eMOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs). O Golpe e a Ditadura Militar: quarenta anos depois. Bauru, SP: Edusc,2004, p. 54.CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Os arquivos da polícia política brasileira – uma alternativa para os estudosdo Brasil Contemporâneo. ProIn, Arquivo Público do Estado e Universidade de São Paulo. S/d disponível emhttp://www.usp.br/proin/download/artigo/artigo_arquivos_policia_politica.pdf. Acessado em 03 de março de 2012.265


para esclarecer como estas diretrizes, provenientes da Doutrina de Segurança Nacional, foramdifundidas por todos os setores de segurança pública em todas as regiões do país. Essas tarefas, aosserem propagadas explicitam a intenção de obstar as disparidades de pensamento existentes no país.Aos pesquisarmos os acervos do DOPS no Estado do Maranhão, identificamos a atuaçãode umórgão com intento de coibir a disseminação de ideias revolucionárias, em um claro exemplo depredomínio da estratégia de coerção e não da busca do consenso.A organização desses arquivos estavaa critério das próprias autoridades policiais, explicitando uma simbologia representativa dos preceitos dasegurança nacional.A fonte primária deste trabalho nos permite problematizar, de maneira geral, os valorespresentes no discurso de ordem do Departamento de Polícia e Ordem Social contra qualquer tipo deameaça a ordem social em solo maranhense.Assim, identificamosum ofício da Delegacia de OrdemSocial e Política, destinado a Secretária de segurança pública do Estado do Maranhão, contendo lista deatribuições que deveriam orientar o setor de segurança pública do Estado no ano de 1977.O ofício assinado pelo delegado do DOPS-MA Francisco Florimar de Almeida, e enviado aosecretário de segurança pública do Estado do Maranhão traz atribuições relativas ao controle e vigilânciacontra atentados a ordem política e social. As onze orientações basicamente se referem àmissão demanter osecretário de segurança informado a respeito de tudo que tenha relação à ordem política esocial.As duas primeiras páginas do Ofício 0142/SI/DOPS/SSP/MA contendo todas as onze atribuições do DOPS/MA.Documento constituído de quatro páginas, assinadas por Francisco Florimar de Almeida, delegado do DOPS na datade 03 de Novembro de 1977, e enviadas ao Secretário de Segurança Pública do Estado do Maranhão. Documentolocalizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão – APEM, série Subversão. (Páginas 1,2, respectivamente)Afirma-se em tal ofício que a Polícia de Ordem Política e Social (DOPS-MA) não abriria mão deempregar de meios policiais para prevenção, repressão e controle de atividades “subversivas” e crimesde natureza comum, organizar os serviços de informação, além de solicitar, junto a Secretaria deSegurança, materiais e equipamentos necessários para a execução de tais atribuições.Neste caso, como afirma Tucci Carneiro no texto acima trabalhado, a autoridade policial se põena função de construtor de uma história oficial, produzindo realidades a partir do uso da violência e docontrole exercido pelo DOPS. Estas “verdades” ao serem disseminadas nas instancias superiores(Secretária de Segurança Pública do Maranhão) e difundidas na grande imprensa, tornam-se diretrizesmorais que, aliadas ao domínio pela força, acabam por objetivar o consenso, constituindo a supremaciado grupo social dominante e legitimando a repressão.Portanto, a ação da polícia faz transparecer a atuação repressiva de um Estado de tipo Ocidental266


21 no qual a sociedade civil é complexa e maior do que a sociedade políticaque então busca enfrentarseus inimigos através da repressão direcionada e de uma legislação de segurança nacional. Logo, aatuação das instituições jurídicas e da polícia política (DOPS) representa, segundo Gramsci, aperspectiva negativa desta sociedade civil. Percebe-se, então, a legitimação da repressão, da suspeiçãoe de todas as formas de violência em detrimento das liberdades civis, de expressão e dos ideaisdemocráticos.O crime político passava a ter estrita ligação com aqueles que se tornavam suspeitos porcontestarem a ordem, ou até mesmo por si manterem neutros às problemáticas existentes no período daditadura.Ao recolher informações de indivíduos suspeitos aos olhos da repressão, constrói-se umaimagem negativa de inúmeras pessoas, o discurso da ordem passa a ter um caráter inquisitório. Essaprática, durante a ditadura, assumiu proporções elevadas visando à derrubada da ameaça comunista,sustentando mitos como o da nacionalidade, e que como vemos nas atribuições do DOPS-MA,chegaram até a cidade de São Luís.O DOPS se constitui no Maranhão, assim como na grande maioria do Brasil, através de suasprisões, interrogatórios, torturas, num elemento formulador de diretrizes do interesse da classedominante, e também do autocontrole na sociedade civil (a esfera da vida privada e do consentimento).Procurava-se exaltar a imagem negativa dos indiciados, e transformar o discurso da ordem num caráterhumanitário de defesa do povo e pátria.Considerações FinaisPara finalizar, podemos compreender que os estudos históricos sobre o período da ditaduramilitar no Brasil atendem as inúmeras exigências e indagações provenientes da abordagem referente àhistória do tempo presente. Portanto, é bastante louvável analisar a produção historiográfica sobreperíodo, enfatizando suas nuances, diferenças e peculiaridades que, livres das amarras dotradicionalismo, dos preconceitos ideológicos, poderão trazer ainda muitos frutos para a históriacontemporânea de nosso país.Com a decorrente democratização das fontes provenientes dos acervos da polícia política, cabea nós historiadores, sabermos problematizar de maneira competente todos os discursos ali presentesdireta ou indiretamente, já que “fazer História do Brasil Contemporâneo a partir de documentos policiais,implica uma maneira de ler esses registros, avaliando-os no sentido inverso ao do raciocínio policial” 22 .A partir desse novo olhar sobre documentos ainda não investigados e explorados, importantesabordagens históricas a serem reveladas trarão novos olhares e debates tanto no âmbito da academiaquanto da sociedade. Democratizar os acervos da polícia política, e esmiuçá-los em todas as suasperspectivas, identificado os erros de um período tão nefasto da história contemporânea brasileira,servirão de exemplo para que as falhas do passado não mais se repitam e jamais se esqueçam.Referências Bibliográficas:I. Documentação Arquivos DOPS/MAOfício 0142/SI/DOPS/SSP/MA contendo todas as onze atribuições do DOPS/MA. Documento constituídode quatro páginas, assinadas por Francisco Florimar de Almeida, delegado do DOPS na data de 03 deNovembro de 1977, e enviadas ao Secretário de Segurança Pública do Estado do Maranhão.Documento localizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM), na série Subversão.II. Obras GeraisBOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. trad.Carmen C,Varriale et ai.; coord. trad. João Ferreira; rev.geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília :Editora Universidade de Brasília, 1 la ed., 1998. Vol.1.2122A partir da dupla dimensão do Estado (sociedade civil e sociedade política), Gramsci identifica o dois tipos deEstado: Oriental (sociedade civil fraca e predomínio do Estado Coerção com uma sociedade política forte emque deve predominar a Guerra de Movimento) e Ocidental (sociedade civil forte e complexa, em equilíbrio com asociedade política; deve predominar a Guerra de Movimento como estratégia revolucionária). O Brasil aparececomo uma formação de tipo Ocidental, em função da complexização de sua sociedade civil.Para maioresdetalhes, ver GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno(caderno nº 13). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Os arquivos da polícia política brasileira – uma alternativa para os estudosdo Brasil Contemporâneo. ProIn, Arquivo Público do Estado e Universidade de São Paulo. S/d disponível emhttp://www.usp.br/proin/download/artigo/artigo_arquivos_policia_politica.pdf..267


CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Os arquivos da polícia política brasileira – uma alternativa para osestudos do Brasil Contemporâneo. ProIn, Arquivo Público do Estado e Universidade de São Paulo. S/ddisponível em http://www.usp.br/proin/download/artigo/artigo_arquivos_policia_politica.pdf.COSTA, Célia Maria Leite. O direito à informação nos arquivos brasileiros. In: FICO, Carlos. Ditadura edemocracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas/ Organizadores Carlos Fico...[et al].- Riode Janeiro: Editora FGV, 2008.DREIFUSS, René. 1964: A Conquista do Estado. Ação Política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro,Vozes, 1987.FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro:Record, 2004.GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas – A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas à luta armada.São Paulo: Ática, 1987.GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº13). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.MAGALHÃES, Marionildes Dias Brehpol de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos aépoca da ditadura militar no Brasil.MOREIRA ALVES, Márcia Helena. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Editora Vozes, 2°edição,1984.PADRÓS, Enrique Serra. Repressão e violência: segurança nacional e terror de Estado nas ditaduraslatino-americanas.In: FICO, Carlos (org.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico eperspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.SKIDMORE, Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.SODRÉ, Nelson Werneck. A História Militar do Brasil. Editora Expressão popular, São Paulo, 2010.STEPAN, A. C. Os Militares na Política: as mudanças de padrões na vida brasileira. Artenova, 1975.268


Arquivos Repressivos da Polícia Política: o caso do Departamento de Ordem Política eSocial do Rio Grande do SulAnanda Simões Fernandes 1Resumo: O presente artigo pretende abordar a discussão sobre a abertura, o acesso e a utilização doschamados arquivos repressivos produzidos pelos aparatos de segurança e informação do Estadoditatorial brasileiro. Para tanto, será analisada a documentação da polícia política do estado do RioGrande do Sul, do Departamento de Ordem Política e Social do estado do Rio Grande do Sul, ao qualestavam atribuídas as funções de polícia política.Palavras-chave: ditadura brasileira – arquivos repressivos – polícia política – Departamento de Ordem ePolítica Social do Rio Grande do SulAbstract: This article intends to address the debate on openness, access and use of the named filesproduced by repressive apparatuses of security information and the Brazilian dictatorial rule. Therefore,we will analyze the documentation of the political police of the state of Rio Grande do Sul, Department ofPolitical and Social Order in the state of Rio Grande do Sul, to which were assigned the roles of politicalpolice.Keywords: Brazilian dictatorship – repressive files – political police – Department of Political and SocialOrder of Rio Grande do SulOs arquivos repressivosO tratamento dado aos “arquivos repressivos” caracteriza-se como um dos assuntos centrais dosprocessos de investigação dos crimes cometidos pelo Estado durante a vigência das ditaduras deSegurança Nacional no Cone Sul. Pouco se fez para avançar na abertura desses arquivos, e mesmo nospaíses onde há leis específicas para essa questão (caso do Brasil, 2 por exemplo), não há uma políticaarquivística específica para esse tipo de documentação. Para Gerardo Caetano, o tratamento a estesarquivos ainda não foi compreendido a partir da lógica da questão dos direitos humanos. 3A reflexão sobre a abertura dos arquivos repressivos e a sua utilização na construção históricados regimes de exceção insere-se nos debates referentes à História do Tempo Presente (ou HistoriaReciente). Vertente da chamada Nova História Política, após muitas discussões teórico-metodológicos, 4foi inserida definitivamente como um campo do saber histórico.Os historiadores europeus consideram o marco para o início da abrangência da história recenteo fim da Segunda Guerra Mundial. Entretanto, os autores concordam que a História do Tempo Presentenão é um período demarcado cronologicamente. Assim, é importante destacar a transposição da Históriado Tempo Presente para o caso específico das ditaduras da região. Pode-se afirmar, então, que “en elCono Sur latino-americano, fue la experiencia de las últimas dictaduras militares, que asumieronmodalidades inéditas en estados criminales y terroristas, el punto de ruptura que ha promovido losestudios sobre el passado cercano”. 5A História do Tempo Presente nos traz mais interrogativas do que respostas, conforme constataBruno Groppo, que alerta para o fato de que o discurso sobre o passado ditatorial dos países do ConeSul se mantenha aberto. Para ele, em cada país “la dictadura marcó una ruptura cuyo balance queda por12345E-mail: anandasfernandes@gmail.com Telefone: (51) 9135-2046 Formação acadêmica: Doutoranda emHistória/UFRGS Instituição: Técnica em Assuntos Culturais do Arquivo Histórico do RSBRASIL. Lei nº. 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIIIdo art. 5 o , no inciso II do § 3 o do art. 37 e no § 2 o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei n o 8.112, de 11de dezembro de 1990; revoga a Lei n o 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei n o 8.159, de 8 dejaneiro de 1991; e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 2 ago. 2012.CAETANO, Gerardo. Los archivos represivos en los procesos de “justicia transicional”: una cuestión dederechos. Perfiles Latinoamericanos, Ciudad de México, n. 37, p. 9-32, ene./jun. 2011.CHAVEAU, Agnès; TÉTART, Philippe (orgs.). Questões para a história do presente. Bauru/SP: EDUSC, 1999.FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia (comps.). Historia reciente: perspectivas y desafíos para un campo enconstrucción. Buenos Aires: Paidós, 2007. p. 15.269


hacer, un balance que interrogue por sus causas, sus consecuencias y su significado. Mientras estetrabajo no se realice, el pasado seguirá estando presente”. 6Os chamados arquivos da repressão (ou repressivos) são conjuntos documentais produzidos eacumulados em decorrência de atividades de controle, vigilância e punição pela rede do sistemarepressivo durante a vigência das ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul. Compõem-se por umamplo conjunto de documentos que inclui, entre outros, prontuários, dossiês, fichas criminais, relatóriossobre possíveis agentes “subversivos”, documentos e objetos pessoais apreendidos em buscaspoliciais. 7 Estes arquivos se apresentam como um caso paradigmático, porque afetam grande parte dasociedade da qual foram recuperados, desde o Estado e seus agentes até as vítimas e seu entorno.Na utilização dessas fontes, é necessário realizar uma análise apurada dos arquivos darepressão, pois se trata de fontes oficiais do aparelho repressivo que têm como qualidade intrínseca ofato de carregarem consigo a marca impressa das instituições que as produziram. Ana Maria Camargo 8distingue entre os conceitos de autenticidade – o documento de arquivo constitui uma prova do processoque o gerou – e de veracidade – elemento o qual, independentemente da origem do documento, precisaser buscado num universo que ultrapasse o seu horizonte. Além disso, é importante também chamar aatenção para o fato de que muitas das fontes produzidas pelos agentes da repressão permitem “ver oque eles [agentes secretos] viam”. De acordo com Beatriz Kushnir, estas fontesSe por um lado, tem como objetivo identificar o “fichado” no mundo, por outro, trata-sede um arquivo que explicita o universo do outro a partir da lógica interna do seu titular,ou seja, da perspectiva da Polícia. Assim, seu acervo permite tanto reconstituir umahistória do “fichado”, a partir da perspectiva do agente policial, como a do “fichador”;mas a óptica que deve dirigir a consulta deve ser a do “fichador”. 9No momento de sua confecção, esses documentos representavam o resultado funcional de umaatividade cotidiana, e não um procedimento clandestino. Sua preservação deve-se justamente ao fato deser o interrogatório uma operação realizada dentro de uma engrenagem instituída pelo Estado, aindaque nem todas as suas atividades estivessem inscritas no plano da legalidade. Assim, o cotejamentoentre outras fontes e a produção historiográfica é imprescindível.A eficácia das medidas de reparação às vítimas das ditaduras, assim como a apuração dasresponsabilidades dos agentes envolvidos nos crimes de Estado ficam, em grande parte, condicionadaspelo uso dos documentos produzidos e armazenados pelas instituições repressivas daquele período.Esses arquivos facilitam vários direitos à população, tanto no nível individual quanto no coletivo.Na questão individual podem-se elencar diversos direitos, entre eles: direito dos familiares desaber onde estão os restos mortais dos desaparecidos; direito de conhecer os dados existentes sobrequalquer pessoa nos arquivos repressivos; direito à anistia para presos e perseguidos políticos; direito àreparação por danos sofridos pelas vítimas da repressão; direito à restituição de bens confiscados;direito à investigação histórica e científica.Já na questão dos direitos coletivos, os arquivos repressivos facilitam: o direito à integridade damemória escrita dos povos; o direito à verdade; o direito de conhecer os responsáveis de crimes contraos direitos humanos; o direito dos povos e nações de escolher a sua própria transição política.Nesta última questão, levanta-se a efetividade da instalação das comissões da verdade,efetuadas durante o período da chamada justiça de transição, e que experiências em diversos países jádemonstraram que variam muito de acordo com a disponibilidade ou não de se ter acesso àdocumentação repressiva.Por fim, é importante trazer à tona a reflexão de Ludmila da Silva Catela, que expõe quatroelementos centrais referentes à organização, preservação e difusão dos arquivos repressivos. 10 Em678910GROPPO, Bruno. Traumatismos de la memoria e imposibilidad de olvido em los países delConoSur. In: ______;FLIER, Patricia (comps.). La imposibilidad del olvido: recorridos de la memoria en Argentina, Chile y Uruguai. LaPlata: Al Margen, 2001. p. 21.Já os arquivos sobre a repressão são acervos que se originaram em decorrência da própria demanda social poresclarecimentos, pela verdade e pela justiça. Também podem ser considerados arquivos constituídos pelospróprios indivíduos ou famílias em decorrência das atividades que desempenharam no contexto dos regimesrepressivos, assim como documentos que se constituíram com o objetivo de preservação da memória e contatambém com fontes diversas de informações, principalmente depoimentos pessoais. Cf. GONZÁLEZQUINTANA, Antonio. Los archivos de la seguridad del Estado de los desaparecidos regímenes represivos. Paris:UNESCO, [1995?]. Disponível em: . Acesso em: 27 mar. 2009.CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Os arquivos da polícia política como fonte. Registro, Indaiatuba/SP, n. 1, p.7-17, jul. 2002.KUSHNIR, Beatriz. Pelo buraco da fechadura: o acesso à informação e às fontes (os arquivos do DOPS – RJ eSP). In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias silenciadas. História da Censura no Brasil. São Paulo:Ed. da USP, 2002. p. 567.SILVA CATELA, Ludmila da. El mundo de los archivos. In: ______; JELÍN, Elisabeth (comps.). Los archivos de la270


primeiro lugar, os documentos que formam os acervos provenientes dos aparatos repressivos servem nopresente para uma ação diametralmente oposta da sua origem. Produzidos na lógica da suspeição e dainculpação, são utilizados agora para compensar as vítimas que tiveram seus direitos violados duranteesse período de exceção (o chamado “efeito bumerangue”). Em segundo lugar, servem para identificaros responsáveis pelos crimes cometidos pelo Estado, constituindo-se como provas. Em terceiro lugar,esses documentos são fontes para a investigação científica, permitindo à sociedade a escrita da suahistória. Por conseguinte, em quarto lugar, geram ações pedagógicas e educativas sobre a intolerância,a tortura, entre outros fatores tão presentes nas ditaduras civil-militares do Cone Sul.A estrutura da polícia política no Rio Grande do SulO Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (DOPS/RS), vinculado àSecretaria de Segurança Pública e localizado em Porto Alegre, tinha por função exercer as ações depolícia política neste estado. A este órgão competia a coleta de informações e a repressão dos “inimigosinternos” do regime ditatorial, traduzindo-se em prisões arbitrárias, sequestros, torturas, assassinatos edesaparecimentos. Embora o DOPS/RS tenha sido criado em 1937, foi com a instalação da ditadura de1964 que suas diretrizes passaram a acompanhar as premissas da Doutrina de Segurança Nacional. 11Essa nova orientação pode ser percebida na primeira circular expedida pelo órgão, após o golpe deEstado, com as determinações que as delegacias regionais deveriam seguir, intitulada “Instruções paraas delegacias de Política do Interior do Estado, no que se refere à ordem política e social”:MODELODELEGACIA DE POLÍCIA DE:RELATÓRIO DE INFORMAÇÕESÓrgão: (Delegacia de Polícia)Período: x/xx/xx a X/XX/XXReferência: Plano de Busca nº. 1/64-DOPS1. ARTICULAÇÃO DE ELEMENTOS ESQUERDISTAS (comunistas e comunobrizolistas)1.1 Reuniões – registrar as que tiverem sido constatadas, dando hora, data e local, casade quem; citar nomes, filiação e residência, a periodicidade das reuniões; como sãopreparadas ou convocadas; quem lidera; assunto tratado (exato ou presumido, etc).1.2 Chegadas – elementos esquerdistas ou suspeitos de o serem que chegam aomunicípio. Nomes, filiação, tipos físicos. Datas de chegada e saída. Meio utilizado parachegar e sair. Local onde ficam hospedados (endereço). Em companhia de quemchegaram, com quem partiram. Com quem entraram em contato, quem os procurou?Onde? De onde vieram, para onde foram? Participaram de reunião? Quais seusobjetivos (exato ou presumido)?1.3 Saídas – elementos esquerdistas que tenham viajado: nomes, filiação e residências.Datas de saídas e de chegadas. Com quem viajaram? Com quem voltaram? Datas.Destino da viagem? De onde retornaram? Meios que utilizaram para ir e vir? Objetivos?Etc.1.4 Atuação Suspeita – nomes e filiação dos elementos esquerdistas que têm tido aatuação suspeita. O que têm praticado? Quando? Como? Onde? Etc. Contatos – locais,horários, etc.1.5 Outras Informações – citar outras informações julgadas importantes e úteis, dentrodo assunto geral e que não tenham sido enquadradas dentro dos itens acima. 12Os órgãos de repressão, nessa nova conjuntura proporcionada pelo golpe de Estado,necessitaram de reformulação e reestruturação, pois, além das novas orientações impostas pelaDoutrina de Segurança Nacional, havia a necessidade de se ajustarem aos sistemas de segurança e deinformação organizados em nível federal. O Secretário de Segurança Pública do Estado deixou de serum civil, assim como outros cargos vinculados a esta secretaria começaram a ser ocupados pormilitares.No contexto das comemorações dos 20 anos da decretação da Lei da Anistia, em 1999, foicriada uma comissão de representantes, escolhidos em vários segmentos organizados que outrora1112represión: documentos, memoria y verdad. Madrid: Siglo XXI, 2002. p. 195-221.Para uma análise das ações do DOPS/RS durante o período da ditadura brasileira, ver BAUER, CarolineSilveira. Avenida João Pessoa, 2050 – 3º andar: terrorismo de Estado e ação de polícia política doDepartamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (1964-1982). Dissertação (Mestrado emHistória). Porto Alegre: UFRGS, 2006.Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de SegurançaPública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Santo Ângelo.SOPS/SA – 4.-.136.12.1. Porto Alegre, 1964.271


estiveram envolvidos na luta armada e em movimentos de direitos humanos contra a ditadura militar,para assumir a responsabilidade de gerir os documentos produzidos pelos órgãos de repressão doestado do Rio Grande do Sul durante este período. O grupo recebeu a denominação oficial de“Comissão do Acervo da Luta contra a Ditadura”. A iniciativa integrava o processo de políticasreparatórias do estado gaúcho, fortalecendo os trabalhos da Comissão que trabalhou na busca,organização, ordenação e divulgação do acervo que conseguiu reunir.No entanto, havia uma lacuna importante no acervo histórico do período. Tratava-se da quaseinexistência de remanescentes da vida material do DOPS/RS, pois praticamente toda a suadocumentação foi queimada em ato público por iniciativa do governador Amaral de Souza, quando daextinção do órgão repressivo. No dia 27 de maio de 1982, quatro caminhões levaram toneladas dedocumentos do DOPS/RS para uma olaria da Brigada Militar em Gravataí (município da Grande PortoAlegre), onde demoraram oito horas para serem queimados.Porém, apesar da destruição física destes documentos, é possível rastrear a sua rede deinformações, no que se refere à produção, circulação e difusão. A polícia política do rio Grade do Sul seestendia para o interior do estado através das chamadas Seções de Ordem Política e Social (SOPS). 13Estas funcionavam como filiais do DOPS divididas nas regiões do interior, que recebiam e expediaminformações diárias a este departamento. O Rio Grande do Sul estava dividido em 24 regiões policiais,sendo que em cada delegacia-sede havia uma sala destinada à SOPS. 14 Entretanto, somente foramencontrados e recolhidos ao Acervo da Luta contra a Ditadura documentos de dez SOPS, localizadasnos seguintes municípios: Alegrete, Cachoeira do Sul, Caxias do Sul, Cruz Alta, Erechim, Lajeado, LagoaVermelha, Osório, Rio Grande e Santo Ângelo.Assim, o DOPS remitia ordens e instruções (como ordens de busca, por exemplo) às diversasSOPS do Rio Grande do Sul, recebendo, em contrapartida, informações. Estas seções deveriamcomunicar-se diariamente com o DOPS, conforme pode ser percebido no radiograma de caráter urgenteenviado por este departamento às delegacias:Solicito se digne informar este DOPS, diariamente, via rádio, pela manhã e pela tarde,situação político social dessa região, bem como qualquer fato relevante. Estesradiogramas deverão ser passados mesmo que se limitem a informar que nada ocorreude anormal. Esta determinação visa atender determinação Senhor SecretárioSegurança Pública. 15Os documentos que integram o Fundo Secretaria de Segurança Pública, composto de 85 caixas,são os únicos que sobreviveram à queima da documentação do DOPS/RS, em 1982, quando da suaextinção. Apesar de não se constituir em um volume documental grande, sua importância é singular, poisé o único registro da atuação da polícia política no Rio Grande do Sul, o DOPS/RS, e a sua rede deSOPS.De maneira específica, constituem o Fundo Secretaria de Segurança Pública: fichas nominais,fichas datiloscópicas, prontuários de presos, processos e resoluções, relações de pessoas queinteressavam aos organismos de informação, listas de indivíduos citados em processos da políciapolítica, listas de indivíduos enquadrados na Lei de Segurança Nacional, entre outros.O Fundo Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul demonstra padrõesde coleta, codificação, organização e difusão da informação. Assim, há a possibilidade de se reconstituir,em parte, a lógica do funcionamento do sistema repressivo brasileiro, os diferentes órgãos participantes,sua metodologia de atuação e os seus principais interesses, assim como a lógica da distribuição e dadifusão da informação. Entretanto, a informação contida na documentação do Fundo Secretaria deSegurança Pública não está restrita à dimensão regional ou nacional, pois ultrapassa as dimensões das131415Para uma análise das ações das SOPS durante o período da ditadura brasileira, ver LIEBERKNECHT, Vanessa.“Conhece teu inimigo mas não deixa ele te conhecer”: as Seções de Ordem Política e Social (SOPS): 1964-1982. Dissertação (Mestrado em História). Porto Alegre: PUCRS, 2011.De acordo com o Art. 389 do Decreto Nº. 19.998, de 1º de dezembro de 1969, a área do interior do Estadoficava organizada em 24 Regiões Policiais, com uma Delegacia Regional de Polícia em cada uma, nasseguintes localidades: 1ª Região Policial, sede em São Leopoldo; 2ª, Taquara; 3ª, Santa Maria; 4ª, Alegrete; 5ª,Cruz Alta; 6ª, Passo Fundo; 7ª, Rio Grande; 8ª, Caxias do Sul; 9ª, Bagé; 10ª, Santa Rosa; 11ª, Erechim; 12ª,Livramento; 13ª, Santo Ângelo; 14ª, Palmeira das Missões; 15ª, Lagoa Vermelha; 16ª, Santa Cruz do Sul; 17ª,São Jerônimo; 18ª, Pelotas; 19ª, Lajeado; 20ª, Cachoeira do Sul; 21ª, Santiago; 22ª, Três Passos; 23ª, Osório;24ª, Soledade. RIO GRANDE DO SUL. Decreto Nº. 19.998, de 1º de dezembro de 1969.Estabelece a Estrutura e o Regulamento Geral da Polícia Civil da Secretaria da Segurança Pública e dá outrasprovidências. Disponível em: . Acesso em: 31 out. 2012.Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de SegurançaPública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Cachoeira do Sul.SOPS/CS – 1.-.32.1.1B. Porto Alegre, 1 set. 1969.272


próprias fronteiras nacionais. Desse modo, este fundo confirma a rede de informações no âmbito doCone Sul nas décadas de 1960 a 1980.Atualmente, o Fundo Documental Secretaria de Segurança Pública é formado peladocumentação da SOPS, dos prontuários do DOPS e das fichas informacionais e datiloscópicas doInstituto de Identificação. Constitui-se de ofícios, relatórios, correspondências, bilhetes, memorandos,dossiês, ordens de busca e demais documentos.Essa massa documental reveste-se de imensa importância para os pesquisadores e para asociedade brasileira, na medida em que o período ditatorial pode ser mapeado e discutido através deordens de instâncias superiores e sua recepção e execução no interior do estado do Rio Grande do Sul edemais cidades do Brasil e, inclusive, de outros países, destacadamente, os do Cone Sul.Os arquivos repressivos do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul eseus registros durante a ditadura brasileiraO estado do Rio Grande do Sul, devido à sua localização geográfica, adquire uma importânciaímpar durante a ditadura brasileira, pois é a única unidade administrativa da federação que possuisimultaneamente fronteiras com a Argentina e o Uruguai. Esta informação é fundamental, porque explicao trânsito quase incessante, durante duas décadas, de refugiados, perseguidos políticos, integrantes daluta armada e de órgãos de segurança de ambos os lados da fronteira.A primeira geração de exilados, a partir de 1964, se concentra em território uruguaio, o que setransforma em motivo de preocupação para a nascente ditadura. O monitoramento que o Brasil fará emrelação ao Uruguai se deve, inicialmente, à presença de uma forte oposição política exilada: JoãoGoulart, Leonel Brizola, Paulo Schilling, Darcy Ribeiro, Cândido Aragão, etc. Esta vigilância da políciapolítica do Rio Grande do Sul – que inclusive desconheceu fronteiras políticas – está atestada nadocumentação, assim como o monitoramento dos acontecimentos internos do país vizinho,especialmente quando da maior atuação da luta armada e da coalizão de esquerdas da Frente Ampla,no Uruguai.Considerando sua importância geopolítica, a região do Rio Grande do Sul converteu-se em áreade segurança nacional, principalmente suas fronteiras com a Argentina e o Uruguai, e os municípios compresença intensa de militares e zonas portuárias.No contexto regional, destacam-se algumas conjunturas específicas: em 1964, a perseguiçãopolítica contra os simpatizantes do ex-governador Leonel Brizola – principalmente os chamados Gruposdos Onze – e os militantes do Partido Trabalhista Brasileiro; entre 1964-1967, o controle das redes locaisque mantém contato com os grupos de exilados no Uruguai; em 1967-1968, a perseguição aomovimento estudantil; de 1968 a 1970, a repressão aos grupos da luta armada; na década de 1970, apercepção do recrudescimento do regime, através do controle cotidiano, como a censura, o controlepolicial; já o final dos anos 1970 são marcados pela vigilância sobre estrangeiros que pudessem estarem território gaúcho (inclusive utilizando-se da Operação Condor para isso, como foi o caso dosequestro dos uruguaios em Porto Alegre, em 1978) e as tentativas de impedir a crescente articulaçãopartidária, sindical e de grupos de direitos humanos.É interessante observar como os órgãos brasileiros não se restringiam a obter informaçõessomente de atividades ocorridas no Rio Grande do Sul. A amplitude dessa rede sofisticada chegava atéos países vizinhos. Pela ótica da vigilância do “inimigo interno” (mesmo que em outro país) e das“fronteiras ideológicas” isso era plenamente aceitável, dir-se-ia até, imprescindível. A averiguação dasações dos exilados brasileiros pode ser observada na ordem de busca enviada pela Secretaria deSegurança Pública para a SOPS de Lagoa Vermelha:1 – INFORME:Há vários dias que o asilado PAULO MELO BASTOS não é visto circulando nacidade de MONTEVIDÉU (ROU).Acredita-se que MELO BASTOS tenha viajado clandestinamente para o Brasil oupara algum país da órbita socialista.2 – PROVIDÊNCIAS SOLICITADAS:Observar e informar qualquer movimento de asilados no interior do RGS, assimcomo qualquer assunto relativo aos mesmos, que por ventura seja comentada nasáreas regionais. 16A presença do ex-governador Leonel Brizola no Uruguai era um fato alarmante para asautoridades brasileiras. Além de manter contato constante com políticos e militantes que ficaram no16Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil.Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Lagoa Vermelha. SOPS/LV – 1.2.894.10.4. PortoAlegre, 24 abr. 1967.273


Brasil, através dos seus “pombos-correio”, foi um dos responsáveis pela criação do MovimentoNacionalista Revolucionário (MNR), em 1965. O nome de Brizola também estava vinculado aoschamados “Grupos dos Onze”, considerados como possíveis baluartes de resistência contra a ditadura,logo após o golpe de Estado.Os “grupos dos onze” foram organizados antes da deflagração do golpe, em 1963, surgindo damobilização popular liderada por Leonel Brizola a fim de que as reformas de base fossem realizadas;para tanto, esses vários grupos de “onze companheiros” deveriam pressionar o Congresso e opresidente João Goulart. Também deveriam resistir ao golpe que os setores conservadores estavamorganizando (na concepção de Brizola, o golpe de Estado encontrava-se em gestação).Os setores conservadores, na época do chamamento de Brizola para a formação dos “gruposdos onze”, utilizaram-se muito desses grupos de pressão para fomentar a campanha anticomunistaestabelecida contra o presidente João Goulart, mas também contra Leonel Brizola, alegando que aexistência desses grupos era prova cabal de que a “guerra revolucionária” (na concepção da EscolaSuperior de Guerra) estava prestes a ser deflagrada. Essa visão, que beneficiava a ditadura civil-militarbrasileira, persistiu após o golpe de 1964, segundo demonstra a ordem de busca emitida pelo DOPS, decaráter secreto:ORDEM DE BUSCA1. FATO: BRENO ARAÚJO, irmão de JAYME ARAÚJO, é viajante e reside em IJUÍ, àrua 13 de Maio; consta que sua progenitora, ALCÍDIA ARAÚJO, possui indústria emCACHOEIRA DO SUL e reside à rua Bento Gonçalves, 340 naquela cidade. Esta viajaseguidamente ao URUGUAI, sendo JAIME ARAÚJO elemento ligado e pertencente ao“GRUPO DOS ONZE”, tendo auxiliado a ELIZEU TORRES a exilar-se no Uruguai.2. PROVIDÊNCIAS:a) Verificar a veracidade do informe;b) Antecedentes políticos dos nominados;c) Viagens, atividades políticas dos nominados;d) Enviar relatório ao DOPS. 17É interessante observar que a maior parte da documentação das SOPS encontrada no Acervoda Luta Contra a Ditadura no período imediato à instauração da ditadura faz referência a possíveisatuações dos “grupos dos onze”, constando muitos interrogatórios de pessoas que assinaram as listaspara integrá-lo. Os números divergem: desde 20 mil a 70 mil “grupos dos onze” teriam sido criados. 18Cabe destacar que os “grupos dos onze” não eram grupos guerrilheiros, mas, sim, grupos de pressão àsreformas de base. Possivelmente, esses grupos se constituiriam em núcleos de um futuro partidorevolucionário (em realidade, reformista) sob a liderança de Leonel Brizola. Eles possuíam umaorientação de defesa da legalidade, e não uma postura de deflagração de guerra, caso os setoresconservadores arquitetassem um golpe contra a democracia.Outro elemento que pode ser encontrado nos documentos da polícia política é a aplicação depráticas que configuraram a ditadura brasileira como detentora do terrorismo de Estado. A aplicação daspremissas da Doutrina de Segurança Nacional arrastou consigo a violência, o terror e o medo. Dessamaneira, associada a ela, manifestou-se o terrorismo de Estado, pois, para sua eficácia e a de seusinstrumentos ideológicos nos locais onde necessitava ser instalada, o terrorismo advinha comoconsequência.A imposição do medo entre a população é elemento central no terrorismo de Estado. Utilizandosede um conjunto de instrumentos que visava “educar” (pela força e pela alienação) a sociedade – a“pedagogia do medo” – a ditadura brasileira pôde estabelecer a denominada “cultura do medo”. Osinstrumentos “pedagógicos” do terrorismo de Estado objetivavam impactar os cidadãos, “ensinando-os”,através do “efeito demonstrativo”, como deveriam agir no Estado de Segurança Nacional. Ou seja, a“pedagogia do medo” era a aplicação direta das práticas coercitivas sobre a população, constantementelembrando de que as faltas seriam castigadas. Já a utilização sistemática das práticas do terrorismo deEstado levava à construção dessa “cultura do medo”, “um cenário com um clima de tons cinzas eopacos, no qual predomina o silêncio, pois uns calam porque lhes falta a voz e outros por medo depunição exemplar”. 19171819Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de SegurançaPública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Cachoeira do Sul.SOPS/CS – 1.2.1282.17.5. Porto Alegre, 4 jan. 1966.Para maiores informações sobre os “grupos dos onze”, ver BALDISSERA, Marli de. Onde estão os grupos deonze?:os comandos nacionalistas na região Alto Uruguai – RS. Dissertação (Mestrado em História). PassoFundo/RS: UPF, 2003.PADRÓS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay… Terror de Estado e Segurança Nacional. Uruguai (1968-1985): do Pachecato à ditadura civil-militar. 2 v. Tese (Doutorado em História). Porto Alegre: UFRGS, 2005. p.97.274


Durante os “anos de chumbo” da ditadura brasileira, o principal “inimigo interno” da ditadura foi aluta armada. Esta situação, entretanto, não excluía que qualquer cidadão fosse um inimigo em potencial;na realidade, isso era desejável, pois ampliava o alcance do leque de terror. Esta definição do “inimigopotencial” amplificava o terror e o arbítrio porque o “universo das vítimas potenciais jamais é claramentedefinido de antemão” e isto dá então “ao impacto subjetivo da ameaça um lugar totalmente particular”. 20O caráter da imprevisibilidade é o que gera sua maior eficiência. Atos considerados simples etriviais, em outros tempos, poderiam ser considerados perigosos e passíveis de punição. Isso gerava a“cultura do medo”, baseada em um medo estrutural, ou seja, decorrente das práticas produzidas pelopróprio Estado, e disseminadas para a população. Instalava-se um “terror permanente”, que atingia assituações mais corriqueiras do cotidiano, percebido no olhar autoritário do policial, no medo de expressaropiniões, de escutar determinadas músicas, de ler determinados livros, entre outros, conforme sedepreende do documento a seguir:Pedido de busca nº 441/72 / DCI/SSP/RS1 – Dados conhecidos:1.1 – No dia 06/10/72 foi detido nessa cidade o estudante de nome ERWIN ROMMELDOS SANTOS.1.2 – O nominado é filho de LOURIVAL CÂNDIDO DOS SANTOS e LUCI CÂNDIDODOS SANTOS.1.3 – Quando de sua detenção o nominado trazia consigo um livro intitulado “COMOTORNAR-SE UM BOM COMUNISTA”, de Wayko. 21Uma das principais especificidades do território gaúcho é a questão da fronteira simultânea comArgentina e Uruguai. Assim, o Rio Grande do Sul exerceu um papel de baluarte da defesa nacional daditadura brasileira, utilizando-se intensamente do seu aparato repressivo para tal. Paradoxalmente, paraa oposição e para as vítimas da Doutrina de Segurança Nacional, era praticamente uma rota obrigatóriapara conexão com o exterior. O Rio Grande do Sul, inclusive, foi palco de operativos da Condor. O Brasilhavia se tornado local de encontros e de rota de saída e de entrada de organizações estrangeiras emfunção de, no final da década de 1970 e início da década de 1980, apontar caminhos para a abertura,como a liberdade de imprensa, a reorganização do movimento sindical e a oposição partidária, entreoutros. Entretanto, a máquina repressiva da ditadura brasileira não havia sido desmontada, e tampoucoestava desconectada da realidade global do Cone Sul, como se observa no documento abaixo:Pedido de busca nº 23-1015/76/DCI/SSP/RSDados conhecidos:1. Terroristas argentinos integrantes das organizações “EXÉRCITO REVOLUCIONÁRIODO POVO – ERP” e “MONTONEROS” receberam orientação de seus chefes paraprocurarem homiziar-se em território brasileiro.Aqui, aguardariam a diminuição da pressão anti-subversiva na REPÚBLICAARGENTINA, para onde regressariam quando a situação fosse menos desfavorável.No momento, a identificação do combate contínuo à subversão empreendido pelasFFAA e de SEGURANÇA argentinas impondo contínuos revezes às principaisorganizações terroristas, tem forçado um retraimento geral.2. Em consequência, os terroristas argentinos poderão penetrar em nosso territórioatravés de diversos pontos e utilizando os mais diferentes meios de transportes,explorando os atuais tratados recíprocos que facilitam o trânsito dos respectivosnacionais.DADOS SOLICITADOS:a) Manter rígido controle sobre a permanência de argentinos em nosso territóriocoibindo qualquer situação irregular.b) Deter e identificar todo o estrangeiro encontrado em situação irregular no País,encaminhando-o para o SR/DPF (DPF) para a observância estrita [...].c) Caso ocorra tal detenção, informar a este Departamento. 22Por fim, apesar de a documentação do DOPS/RS ter sido oficialmente destruída em 1982, aindaé possível averiguar a sua rede de atuação, por meio de diversos outros órgãos que integravam acomunidade de segurança e informação. Entretanto, essas ações não se dão na totalidade: o que se202122CARDOSO, Irene. Para uma crítica do presente. São Paulo: Ed. 34, 2001. p. 190.Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de SegurançaPública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Lagoa Vermelha.SOPS/LV – 1.2.1118.13.5. Porto Alegre, 9 out. 1972.Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de SegurançaPública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Lagoa Vermelha.SOPS/LV – 1.1.792.8.3. Porto Alegre, 15 dez. 1976.275


consegue são juntar algumas peças para tentar-se chegar a uma dinâmica e metodologia próprias desteórgão repressivo. Assim, é importante destacar que a documentação sob a guarda do Arquivo Históricodo Rio Grande do Sul foi totalmente preservada e tem caráter único, não possuindo originais em outroslugares. Somente esse conjunto documental demonstra a atuação da polícia política do estado do RioGrande do Sul. Os documentos têm acesso irrestrito, sendo intensamente acessados, tanto parapesquisas de cunho histórico, como para subsidiar processos de reparação judicial.Fontes Consultadas:Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul – Acervo da Luta Contra a Ditadura – Porto Alegre, Rio Grandedo Sul, BrasilFundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior.Delegacia Regional de Santo Ângelo. SOPS/SA – 4.-.136.12.1. Porto Alegre, 1964.Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior.Delegacia Regional de Cachoeira do Sul. SOPS/CS – 1.-.32.1.1B. Porto Alegre, 1 set. 1969.Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior.Delegacia Regional de Cachoeira do Sul. SOPS/CS – 1.2.1282.17.5. Porto Alegre, 4 jan. 1966.Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior.Delegacia Regional de Lagoa Vermelha. SOPS/LV – 1.1.792.8.3. Porto Alegre, 15 dez. 1976.Referências Bibliográficas:AQUINO, Maria Aparecida de et al (orgs.). A alimentação do leviatã nos planos regional e nacional:mudanças no DEOPS/SP no pós 1964. Família 50. São Paulo: Arquivo do Estado de SãoPaulo/Imprensa Oficial, 2002.BALDISSERA, Marli de. Onde estão os grupos de onze?:os comandos nacionalistas na região AltoUruguai – RS. Dissertação (Mestrado em História). Passo Fundo/RS: UPF, 2003.BAUER, Caroline Silveira. Avenida João Pessoa, 2050 – 3º andar: terrorismo de Estado e ação de políciapolítica do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (1964-1982). Dissertação(Mestrado em História). Porto Alegre: UFRGS, 2006.BRASIL. Lei nº. 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no incisoXXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Leino 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos daLei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Disponível em:. Acesso em: 2 ago. 2012.CAETANO, Gerardo. Los archivos represivos em los procesos de “justicia transicional”: una cuestión dederechos. Perfiles Latinoamericanos, Ciudad de México, n. 37, p. 9-32, ene./jun. 2011.CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Os arquivos da polícia política como fonte. Registro, Indaiatuba/SP,n. 1, p. 7-17, jul. 2002.CARDOSO, Irene. Para uma crítica do presente. São Paulo: Ed. 34, 2001.CHAVEAU, Agnès; TÉTART, Philippe (orgs.). Questões para a história do presente. Bauru/SP: EDUSC,1999.FERNANDES, Ananda Simões. Quando o inimigo ultrapassa a fronteira: as conexões repressivas entre aditadura civil-militar brasileira e o Uruguai (1964-1973). Dissertação (Mestrado em História). Porto Alegre:UFRGS, 2009.JOFFILY, Mariana. No centro da engrenagem: os interrogatórios na Operação Bandeirante e no DOI deSão Paulo (1969-1975). Tese (Doutorado em História). São Paulo: USP, 2008.GONZÁLEZ QUINTANA, Antonio. Los archivos de la seguridad del Estado de los desaparecidosregímenes represivos. Paris: UNESCO, [1995?].Disponível em: . Acesso em: 27mar. 2009.KUSHNIR, Beatriz. Pelo buraco da fechadura: o acesso à informação e às fontes (os arquivos do DOPS– RJ e SP). In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias silenciadas. História da Censura no Brasil.São Paulo: Ed. da USP, 2002.LIEBERKNECHT, Vanessa. “Conhece teu inimigo mas não deixa ele te conhecer”: as Seções de OrdemPolítica e Social (SOPS): 1964-1982. Dissertação (Mestrado em História). Porto Alegre: PUCRS, 2011.276


PADRÓS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay… Terror de Estado e Segurança Nacional. Uruguai(1968-1985): do Pachecato à ditadura civil-militar. 2 v. Tese (Doutorado em História). Porto Alegre:UFRGS, 2005.PADRÓS, Enrique Serra; BARBOSA, Vânia M.; LOPEZ, Vanessa Albertinence; FERNANDES, AnandaSimões. A ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul(1964-1985): história e memória. 2. ed.rev. Porto Alegre: Corag, 2010. 4 v.RIO GRANDE DO SUL. Decreto Nº. 19.998, de 1º de dezembro de 1969.Estabelece a Estrutura e o Regulamento Geral da Polícia Civil da Secretaria da Segurança Pública e dáoutras providências. Disponível em: . Acesso em: 31 out.2012.SILVA, Shirlene Linny da. Construindo o direito de acesso aos arquivos da repressão: o caso doDepartamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais. Dissertação (Mestrado em Ciência daInformação). Belo Horizonte: UFMG, 2007.SILVA CATELA, Ludmila da. El mundo de los archivos. In: ______; JELÍN, Elisabeth (comps.). Losarchivos de la represión: documentos, memoria y verdad. Madrid: Siglo XXI, 2002. p. 195-221.277


278


VIII - Debates sobre ditaduras no campo jurídico279


280


Uma luta inconclusa: reflexões sobre a Lei da Anistia (L. 6.683/79) e o processo deredemocratização no BrasilDébora Strieder Kreuz 1Resumo: O presente trabalho objetiva refletir sobre o processo de criação da Lei 6.683/79, conhecidacomo a Lei da Anistia, bem como sobre seus aspectos jurídicos mais polêmicos, e ainda sobre osreflexos de tal regramento na sociedade brasileira atual. Dessa forma, pretende-se contribuir para odebate que se acentua cada dia mais, tendo em vista o seu crescimento na sociedade, incitado,sobretudo, pela nomeação, em 2012 da Comissão Nacional da Verdade. Ressalte-se que a referida lei éuma afronta explícita à legislação internacional da qual o Brasil é signatário, tendo em vista a supostaproteção que oferece aqueles que violaram direitos fundamentais dos que se opuseram àsarbitrariedades do governo.Palavras-chave: Ditadura Civil-Militar – Anistia – Direitos HumanosAbstract: This paper aims to reflect on the process of creation of the Law 6.683/79, known as theAmnesty Law, as well as its most controversial legal issues, and even on the reflections of such rules inbrazilian society today. Thereby, we intend to contribute to the debate that has increased more each day,given the growth in Brazilian society about the theme, urged especially by the nomination in 2012 of the“National Commission of Truth”. It should be noted that this law is an explicit affront to international law towhich Brazil is a signatory, in view of the supposed protection it offers those who violated the fundamentalrights of those who opposed the arbitrariness of government.Key words: Civil-Military Dictatorship - Amnesty - Human RightsIntroduçãoDurante cerca de 20 anos o Brasil viveu uma Ditadura Civil-Militar, a qual foi implantada com ogolpe de 1964 e perdurou até 1985, com a eleição, mesmo que indireta, de um presidente civil. Nesseespaço de tempo, o país esteve imerso em um regime político que prendia, torturava, matava edesaparecia com aqueles que se opusessem de qualquer forma às arbitrariedades cometidas.Em 1979, ainda sob a vigência de tal governo, foi promulgada a Lei da Anistia (Lei 6.683/79), aqual foi um marco muito importante no processo de retorno ao regime democrático. Após a suapromulgação grande parte dos exilados políticos puderam retornar ao país e auxiliar em tal momento detransição.Contudo, a referida lei possui inúmeros pontos controversos, pois, na percepção militar e dealguns setores conservadores da comunidade jurídica e da sociedade, instituiu-se a anistia para osmilitares que comandavam práticas que atentam os direitos fundamentais mínimos, como a tortura.Deve-se ressaltar que essa foi uma política de estado vigente no período ditatorial, ou seja, não foiapenas “excesso” de alguns, como muitas vezes é argumentado.Após o retorno ao regime democrático, assuntos referentes à Ditadura Civil-Militar, como atortura, desaparecimentos forçados e julgamentos de militares que praticaram tais atos e que violaramdireitos básicos foram colocados no esquecimento, tendo em vista a suposta “reconciliação” entretorturadores e torturados. Deve-se ressaltar que tal argumento é equivocado, pois, para que realmentehaja a reconciliação nacional, deve-se promover políticas públicas que busquem o resgate de memóriado período, a análise de como os fatos ocorreram - pois muitos deles, inclusive mortes edesaparecimentos foram forjados pelos agentes da repressão, de forma a se isentarem deresponsabilidade - e o julgamento daqueles que perpetraram tais práticas. 2 Tais medidas, em nosso país,andam a passos lentos.O argumento principal daqueles que defendem o silêncio ante tal período é o de que a Lei daAnistia colocou um ponto final em tais questionamentos. Contudo, acredita-se que o equívoco ante tal12Graduação em História pela Universidade Federal de Pelotas – UFPel. Acadêmica do curso de Direito damesma instituição. Email: debora_kreuz@yahoo.com.br. Tel: (55) 8122-9659Esses são os fundamentos da chamada Justiça de Transição. Conforme: MEZAROBBA, Glenda. Danecessidade de discutir a anistia. Disponível em: http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2008/jusp840/ pag02.htm.Acesso em: 02/01/13.281


afirmativa deve ser esclarecido, pois, muitas são as confusões daí derivadas. E esse será o foco dopresente trabalho, ao qual nos deteremos a partir de agora.A Ditadura Civil-Militar e o contexto de surgimento da Lei da AnistiaA imersão a que foi submetido o país ao regime autoritário a partir de 1964 foi quase que total.Muitas das garantias existentes naquele momento foram suprimidas, tendo em vista a concentração depoderes nas mãos dos comandantes militares, muitas vezes em detrimento, inclusive, do poder doCongresso Nacional. Os ditadores poderiam, dessa forma, legislar sem serem submetidos ao poder defato competente para tal. O meio utilizado para levar a cabo tal empreitada foram os chamados AtosInstitucionais, os quais se sucederam no decorrer do regime.Em 1965, com a promulgação do Ato Institucional nº2: “que acaba com todos os partidospolíticos e permite ao Executivo fechar o Congresso Nacional quando bem entender; torna indiretas aseleições para presidente da República e estende aos civis a abrangência da Justiça Militar.” 3 , teve-se adimensão do quão afetadas poderiam ser as garantias individuais, pois, todo aquele que fosseprocessado por algum crime previsto nos decretos-leis 314 e 898, de 1967 e 69, definidos pelos militarescomo sendo contra a segurança nacional passou a ser julgado pela justiça militar, ferindo assim, aclássica separação de competências garantida em um estado democrático de direito. Também foramextintos todos os partidos políticos, passando a existir, legalmente, somente a oposição consentida,representada pelo Movimento Democrático Brasileiro – MDB, sendo que, aqueles que não concordavamcom as suas diretrizes, passaram a atuar na clandestinidade.Em dezembro de 1968, a situação tornou-se ainda mais grave, tendo em vista a promulgação doAto Institucional nº 5, o qual dava ao presidente:[...] em caráter excepcional e, portanto, sem apreciação judicial, a: decretar o recesso doCongresso Nacional; intervir nos estados e municípios; cassar mandatos parlamentares;suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão; decretar o confiscode bens considerados ilícitos; e suspender a garantia do habeas-corpus. 4Ou seja, além de serem julgados por um tribunal militar, os opositores tiveram uma das principaisgarantias contra a prisão arbitrária – o habeas corpus – extinto. Dessa forma, e com os métodos queutilizavam os agentes da repressão, toda a qualquer forma de contestação passou a ser duramentereprimida, inclusive com a tortura, a morte e o desaparecimento de inúmeras pessoas 5 . Para Mezarobba:Marcada pela inexistência de estado de direito e, portanto pelo constante desrespeito aprincípios jurídicos fundamentais e pela ampla margem de arbítrio de que dispunham asautoridades policiais, a realidade imposta pela doutrina de segurança nacional contavacom a ajuda da Justiça Militar para manter-se. 6Até 1975, foram praticamente aniquiladas todas aquelas organizações que, de forma armada ounão, opuseram-se as arbitrariedades dos governos. 7 O exílio foi o caminho dos que não foram presos oumortos e, de lá, que se iniciou o movimento de denúncia das atrocidades que estavam sendo cometidaspelo governo brasileiro.Já em 1974, o general Ernesto Geisel assumiu o governo com a proposta de realizar a aberturapolítica “lenta, gradual e segura”, ou seja, a transição democrática deveria realizar-se seminconveniências para o regime militar. Tal processo derivou da grande crise econômica enfrentada pelopaís, bem como com o aumento da oposição interna e externa. A transição foi realmente lenta, de formaa terminar somente em 1985.Em 1979 foi promulgada a Lei da Anistia, a qual, mesmo sendo fruto de uma luta intensa deamplos setores da sociedade civil, não contemplou todas as suas demandas. O que se almejava era aanistia “ampla, geral e irrestrita”, ou seja, que abrangesse a todos os perseguidos políticos e condenadospela ditadura, o que não ocorreu, tendo em vista que os condenados pelos chamados “crimes desangue” não foram beneficiados pela mesma. Dessa forma, cabe já salientar, que o argumento de que a34567ARNS, D. Paulo Evaristo. Brasil Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985.Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/AI5. Acesso em: 28/02/13.Até hoje, não sabemos ao certo o número de pessoas que foram torturadas naquele período. Estãodesaparecidos 138 indivíduos e mortos 357. Contudo, tal número pode ser muito maior, em virtude do silêncioque ainda impera em inúmeras regiões. Fonte: Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortose Desaparecidos Políticos / Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos - - Brasília : SecretariaEspecial dos Direitos Humanos, 2007MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências – um estudo do casobrasileiro. Dissertação de mestrado em Ciência Política. Universidade de São Paulo: 2003.GORENDER, Jacob. O combate nas trevas. São Paulo: Ática, 2003, 6ª ed.282


anistia foi negociada entre os todos os setores envolvidos no processo não procede, pois, mesmo cominúmeras propostas da sociedade civil, o texto que foi aprovado, num Congresso Nacional aindadominado pelo medo, foi a proposta enviada por João Figueiredo, general que estava no poder.Discussão sobre os aspectos jurídicos mais polêmicos da AnistiaInicialmente, cabe destacar que um dos pontos mais polêmicos da lei ora em comento seencontra no seu artigo 1º e também no inciso 1º:Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 desetembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo comestes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aosservidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poderpúblico, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aosdirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais eComplementares.§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer naturezarelacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. 8Ressalte-se que a redação de tais dispositivos, obviamente dúbia e obscura, foi proposital, tendoem vista o interesse do governo autoritário de se incluir na proteção concedida e garantir, dessa forma, asua total tranquilidade após o término do regime. Cabe destacar, nesse sentido, que a autoanistia écondenada, tendo em vista que a mesma impede que aqueles que prenderam arbitrariamente,torturaram e mataram sequer possam ser investigados, diferentemente dos perseguidos, que foramprocessados, muitas vezes, inclusive, sem respeito às mínimas garantias processuais.A interpretação que prevaleceu já naquele momento, não sem críticas, foi a de que os agentesda repressão que, supostamente, cometeram crimes conexos com os dos guerrilheiros também foramabrigados pela lei ora em comento. Tal posicionamento, desde o início, foi atacado por inúmeros juristas,como se pode depreender da afirmação de Nilo Batista:A tortura e o homicídio de um preso não são crimes políticos, nem são crimes conexos acrimes políticos, objetiva ou subjetivamente. São crimes comuns, são repugnantescrimes comuns, que estão a merecer - até quando? - processo e julgamento. 9Tal entendimento também é presente na atualidade. De acordo com Soares:A constituição de 1988, bem como a Convenção Interamericana de Direitos Humanos ea Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou PenasCruéis reconhecem a tortura como crime contra a humanidade, sendo assimimprescritível e não sujeito à graça ou anistia. O próprio texto na lei de anistia nãoconcede anistia a crimes contra a humanidade, mas apenas a crimes políticos. 10Nesse sentido, é importante ressaltar que inúmeras leis de autoanistia já foram condenadas porTribunais Internacionais. Cita-se o exemplo da Lei existente no Peru, que foi declarada incompatível comos Tratados de Direitos Humanos assinados pelo país pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.Para Trindade: “[...] as leis de auto-anistia estão viciadas de nulidade ex tunc, de nulidade ab initio,carecendo portanto de todo e qualquer efeito jurídico.” 11 No comento de Piovesan:Conclui a Corte que as leis de “autoanistia” perpetuam a impunidade, propiciam umainjustiça continuada, impedem às vítimas e aos seus familiares o acesso à justiça e odireito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente, o queconstituiria uma manifesta afronta à Convenção Americana. 1289101112BRASIL. Lei nº 6.683/79. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm. Acesso em:25/02/13.BATISTA, Nilo. Aspectos jurídicos-penais da anistia. Revista de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, nº26. Jul-Dez 1979. Pg 33-42.SOARES, Adalgisa Bozi. Lei de (Auto) Anistia no Brasil: Obstrução da Justiça e da Verdade. Disponível em:http://mundorama.net/2008/11/21/lei-de-auto-anistia-no-brasil-obstrucao-da-justica-e-da-verdade-por-adalgisabozi-soares/.Acesso em: 25/02/13.TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O fim das “leis” de auto-anistia. Disponível em:http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=2394&Itemid=2. Acesso em: 26/02/13.PIOVESAN, Flávia. Direito Internacional dos direitos humanos e lei de anistia: o caso brasileiro. In: TELES,Edson; SAFATLE, Vladimir (coord). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.Pg. 91-107.283


*******Faz-se também necessária a discussão no referente a questão dos crimes conexosmencionados no artigo 1º supra mencionado. De acordo com Bicudo:Nos crimes conexos, um crime é pressuposto do outro. A unidade delitiva que semanifesta pela unidade do fato é o fundamento do instituto. Fora daí não existem crimesconexos, mas independentes, porque palmilham caminhos diferentes e perseguemobjetivos que não se confundem. 13Dessa forma, não é possível que delitos cometidos por lados que se opunham completamentenaquele momento sejam considerados conexos uns com os outros. Contudo, o Supremo TribunalFederal, na sentença da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF153, propostapela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB em 2008, afirma que a conexidade dos crimes faz-sepresente, fato que, acredita-se, é um equívoco, tendo em vista toda a doutrina, que fala no sentidooposto, que envolve tal instituto. Para Piovesan: “Não se pode falar em conexidade entre os fatospraticados pelo delinquente e pelas ações de sua vítima. A anistia perdoou a estas e não àqueles;perdoou as vítimas e não os que delinquem em nome do Estado.” 14*******Também se deve comentar que, para que exista anistia, é necessário que haja um processo,onde exista a menção da prática do delito pelo sujeito. Os militantes de esquerda foram, mesmo quesem as garantias básicas, processados e punidos, o que não ocorreu com os agentes do governo. Estessequer foram denunciados pela prática de ilícitos penais. 15 Dessa forma, se não existiu a denúncia, deforma alguma poderiam ser anistiados, afinal, não houve o reconhecimento da prática do delito.********Os argumentos acima citados são de ordem interna, ou seja, já no ordenamento jurídico nacionalexistem incompatibilidades inadmissíveis. Em nome da segurança jurídica e para que o respeito aosprincípios democráticos seja garantido, tais aberrações não poderiam ocorrer. Outros tantos problemaspodemos encontrar se analisarmos a Lei de Anistia brasileira face ao Direito Internacional, especialmenteno tocante aos Direitos Humanos, os quais são, nas palavras de Piovesan o “mínimo ético irredutível” 16 .Inúmeras são as convenções assinadas pelo Brasil que proíbem toda e qualquer forma detratamento degradante ao indivíduo, especialmente a tortura. Em nenhum momento esta pode seradmitida. Contudo, sabe-se que a mesma foi aplicada sistematicamente pelos agentes da repressãopara que todas as informações possíveis fossem colhidas. Para citar apenas alguns regramentosinternacionais que fazem referência à temática ora em comento, ratificados pelo Brasil temos aDeclaração Universal de Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aConvenção contra a Tortura e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Piovesen, fazendo umasíntese de tais regramentos, dispõe que:Ao direito de não ser submetido à tortura somam-se o direito à proteção judicial, o direitoà verdade e o direito à prestação jurisdicional efetiva, na hipótese de violação a direitoshumanos. [...] Também é dever do Estado assegurar o direito à verdade, em sua dupladimensão – individual e coletiva – em prol do direito da vítima e de seus familiares (oque compreende o direito ao luto) e em prol da sociedade à construção da memória eidentidade coletivas. 17Para finalizar tal momento, menciona-se também que a Constituição Federal, no seu artigo 5º, éenfática quando trata de crimes contra a humanidade, como a tortura:5º:[...]XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a práticada tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos1314151617BICUDO, Helio. Lei da Anistia e crimes conexos. In: TELES, Janaína (org). Mortos e desaparecidos políticos:reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001. 2ª Ed. Pgs. 85-7.PIOVESAN. Flávia. Op. Cit.Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/970/anistia-graca-e-indulto-renuncia-e-perdao-decadencia-eprescricao.Acesso em: 25/02/13PIOVESAN, Flavia. Op. Cit.PIOVESAN. Op Cit.284


como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que,podendo evitá-los, se omitirem; 18Assim, percebe-se que as falhas jurídicas da lei são inúmeras. A obscuridade é marca presente,pois, como já mencionado, interessava aos agentes do governo autoritário saírem ilesos das prováveisconsequências de seus atos.O lento caminhar brasileiroDesde a promulgação da anistia a luta para que a história do período autoritário não sejaapagada continua. Mesmo com o processo de esquecimento a qual foi submetida a sociedade brasileira,com a suposta “reconciliação” entre os lados opostos, especialmente os familiares de mortos edesaparecidos políticos e os que lutam pela causa dos direitos humanos não deixaram que a amnésiacoletiva prevalecesse.Sua luta teve uma das primeiras conquistas em 1995, quando foi aprovada a Lei 9.140/95,também conhecida como Lei dos Desaparecidos. Por meio dela, o Estado brasileiro “[...] reconheceucomo mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, ematividades políticas no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.” 19 Ou seja, houve oreconhecimento, por parte do estado brasileiro, de que opositores foram mortos em razão da suamilitância. Contudo, não existiu nenhum esforço, por parte desse mesmo estado em punir aqueles queexecutaram tais atos, com o argumento de que a Lei da Anistia seria ferida. Os familiares puderamapenas requerer atestados de óbito de seus entes e requerer indenizações, sendo que os responsáveispelo seu desaparecimento continuaram impunes. Para Mezarobba:Se não há dúvidas de que a Lei 9.140 representou um avanço [...], seus termos nãoforam suficientes, na interpretação dos parentes das vítimas, entre outros motivos, pelofato de a iniciativa desobrigar o Estado a identificar e responsabilizar os que estiveramdiretamente envolvidos na prática dos crimes e pelo ônus da prova ter sido deixado aospróprios familiares. 20Nessa sequência, em 2001, foi criada, por Medida Provisória, a Comissão da Anistia, a qual “[...]está analisando os pedidos de indenização formulados pelas pessoas que foram impedidas de exerceratividades econômicas por motivação exclusivamente política desde 18 de setembro de 1946 até cincode outubro de 1988.” 21 Até o momento, já foram encaminhados para a comissão mais de 50 milrequerimentos. A partir desse número, pode-se ter uma pequena noção de como a ditadura afetou a vidade milhares de pessoas. Para dar visibilidade a tal temática, são promovidas por todo o país aschamadas Caravanas da Anistia, onde alguns requerimentos são analisados de forma pública.Em 2008, uma das famílias atingidas pela repressão, protocolou Ação Declaratória contra ocoronel do Exército, Carlos Brilhante Ustra, de forma a poder chamá-lo de torturador. Já na primeirainstância, em 2010 foi julgada procedente e, em sede de recurso, no ano de 2012, também. Embora nãopossua efeitos penais, a sentença demonstra que o judiciário, em certos setores, encontra-se maisaberto a discutir tais questões e, novamente, tais questões ganham visibilidade perante a sociedade.A sentença do “Caso Gomes Lund e outros versus Brasil”, proferida em 2010 foi emblemática,tendo em vista a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, por inúmerosfatos, como a não persecução penal daqueles que violaram os direitos humanos, em contraposição aoassinado pelo país nas convenções internacionais, a ausência de informações sobre os desaparecidos,dentre inúmeros outros aspectos.Uma das recomendações ao país era de que fosse criada uma Comissão da Verdade, com oobjetivo de esclarecer as violações de direitos ocorridas no período, bem como promover políticas deresgate da memória e também a punição dos repressores. Em 2011 foi criada a lei que instituiu aComissão Nacional da Verdade – Lei 12.528/11 –, como forma de cumprir parte da sentença. Emboranão tenha o poder de punir penalmente e com o tempo de atuação muito curto – apenas dois anos - veiocomo meio de fazer conhecer a verdade sobre o período e dar visibilidade a demandas que há décadasperturbam parte da sociedade.Assim, faz-se importante a quebra de um argumento utilizado, que menciona que o “remexer nas18192021BRASIL. Constituição Federal. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 25/02/13.BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos. Mortos e desaparecidos políticos. Disponível em:http://www.sedh.gov.br/mortosedesap. Acesso em: 26/02/13.MEZAROBBA, Glenda. O processo de acerto de contas e a lógica do arbítrio. In: TELES, Edson; SAFATLE,Vladimir (coord). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. Pg. 109-119.Disponível em: http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJABFF735EITEMID48C923D22C804143AB475A47E582E1D8PTBRIE.htm. Acesso em: 26/02/13.285


feridas faria mal a sociedade”:O esquecimento e a negação da memória têm sido um traço marcante nocomportamento das elites brasileiras. O passado é visto como uma presença incômodaque deve ser soterrada em nome da tranqüilidade do presente. Tranqüilidade paraquem?, deve-se perguntar. Uma pessoa, uma cidade, um povo ou um país quedesconhece sua história e esquece seu passado caminha sem rumo para o futuro. 22ConclusãoMuito se avançou no tocante às questões ainda abertas da Ditadura Civil-Militar. Porém, muitomais se tem a avançar. A recente condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos,no caso referente à Guerrilha do Araguaia, demonstra o quanto algumas questões polêmicas devem serobjeto de análise com a busca de soluções, especialmente no que se refere aos desaparecimentospolíticos, a elucidação de como, de fato, as mortes ocorreram e também o julgamento/punição daquelesque violaram os direitos mais fundamentais.Sabe-se que a impunidade dos agentes da repressão não contribui para a efetivação de umregime democrático, como menciona Herzog:Não há nada que justifique a tentativa de pôr um ponto final na questão sem esclarecero que ocorreu, negando-se a apurar a circunstâncias das mortes e torturas. Oconhecimento desses fatos não abala a democracia brasileira. Ao contrário, é quandonão prevalece a justiça que os princípios democráticos são enfraquecidos. 23Assim, acredita-se que, para além do conformismo jurídico existente, o Judiciário, impulsionadotambém pela sociedade civil organizada deve cumprir seu papel de protetor da coletividade. ParaMoreira:Nessa ótica, é imprescindível ao desenvolvimento de uma democracia que ela possaconfrontar-se com o seu passado de barbárie e repressão política, demarcandoclaramente a diferença que guarda deste passado obscuro e sinalizando fortementepara uma nova direção, na qual o respeito aos direitos humanos e a manutenção dasliberdades públicas sejam pilares inegociáveis e inexpugnáveis. 24Dessa forma, pretendeu-se apresentar os argumentos mais utilizados em defesa da Lei daAnistia, demonstrando o quão inadmissíveis os mesmos são, tanto no tocante ao direito interno quandoao direito internacional. Acredita-se que o Estado brasileiro caminha em direção à efetiva garantia dosdireitos humanos, mas, enquanto as lacunas de tal momento ainda persistirem, não há que se falar em“passado”, pois, os questionamentos estão presentes e a sociedade precisa de respostas.Referências Bibliográficas:ARNS, D. Paulo Evaristo. Brasil Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985.BATISTA, Nilo. Aspectos jurídicos-penais da anistia. Revista de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense,nº26. Jul-Dez 1979. Pg 33-42.BICUDO, Helio. Lei da Anistia e crimes conexos. In: TELES, Janaína (org). Mortos e desaparecidospolíticos: reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001. 2ª Ed. Pgs. 85-7.BRASIL. Constituição Federal. Disponível em:222324PALMAR, Aluízio. Onde foi que vocês enterraram nossos mortos? Curitiba: Travessa dos Editores, 2012, 4ªedição.HERZOG. André. Anistia não é lei do silêncio. In: In: TELES, Janaína (org). Mortos e desaparecidos políticos:reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001. 2ª Ed. Pgs 81-3.MOREIRA, José Carlos. O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada TransiçãoDemocrática Brasileira. In: PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virginia Prado (coords.). Direito aodesenvolvimento. São Paulo: Fórum, 2010.286


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.BRASIL. Lei 6.689/79. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm.BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos. Mortos e desaparecidos políticos. Disponível em:http://www.sedh.gov.br/mortosedesapHERZOG. André. Anistia não é lei do silêncio. In: In: TELES, Janaína (org). Mortos e desaparecidospolíticos: reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001. 2ª Ed. Pgs 81-3.GORENDER, Jacob. O combate nas trevas. São Paulo: Ática, 2003, 6ª ed.MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências – um estudodo caso brasileiro. Dissertação de mestrado em Ciência Política. Universidade de São Paulo: 2003._______________. O processo de acerto de contas e a lógica do arbítrio. In: TELES, Edson; SAFATLE,Vladimir (coord). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. Pg. 109-119.________________. Da necessidade de discutir a anistia. Disponível em:http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2008/jusp840/pag02.htmMOREIRA, José Carlos. O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a InacabadaTransição Democrática Brasileira. In: PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virginia Prado (coords.). Direitoao desenvolvimento. São Paulo: Fórum, 2010PALMAR, Aluízio. Onde foi que vocês enterraram nossos mortos? Curitiba: Travessa dos Editores, 2012,4ª ediçãoPIOVESAN, Flavia. Direito Internacional dos direitos humanos e lei de anistia: o caso brasileiro. In:TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (coord). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo:Boitempo, 2010. Pg. 91-107SOARES, Adalgisa Bozi. Lei de (Auto) Anistia no Brasil: Obstrução da Justiça e da Verdade. Disponívelem: http://mundorama.net/2008/11/21/lei-de-auto-anistia-no-brasil-obstrucao-da-justica-e-da-verdadepor-adalgisa-bozi-soares/.Acesso em:TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O fim das “leis” de auto-anistia. Disponívelem:http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=2394&Itemid=2.287


Bourdieu e o campo jurídico: debate sobre a autonomia do Supremo Tribunal Federaldurante a ditadura militar brasileira (1964-1979)Mateus Gamba Torres 1Resumo: Conforme explica Pierre Bourdieu, em seu livro O Poder Simbólico, em seu capítulo VIIIintitulado A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico, os juristas e historiadoresdo direito concebem a história do direito como a história do desenvolvimento interno dos seus conceitose dos seus métodos, que somente podem ser compreendidos através de sua dinâmica interna,concebendo-o como um sistema fechado e autônomo. A intensão de Kelsen em sua “teoria pura dodireito” foi de construir um campo de doutrinas e regras que fossem totalmente independentes dosconstrangimentos e das pressões sociais, tendo nele mesmo seu próprio fundamento. Durante a ditaduramilitar brasileira de 1964 a 1979, o Supremo Tribunal Federal sofreu diversas intervenções peloExecutivo golpista e sofreu pressões vindas do mundo social tanto conservadoras como contestadoras,por isso a pesquisa se baseia no conceito de autonomia do campo jurídico de Bourdieu e como isso fazparte de um poder simbólico atribuído a este campo que muitas vezes se adapta as situações depressões advindas de outros poderes ou outros setores da sociedade.Palavras-chave: Bourdieu, Ditadura Militar, Supremo Tribunal FederalDias após o golpe civil-militar de 1964, acontecimentos referentes às esferas de poder faziamnotícias explodirem nos jornais em letras garrafais. Eram muitos os acontecimentos, uma “revolução”estava acontecendo, segundo os militares, para reestabelecer a ordem. Para isso acontecer, oPresidente da República João Goulart, foi deposto e o Congresso Nacional declarou vaga a Presidênciada República. Assume o Presidente da Câmara Ranieri Mazzili, porém havia um aparato constitucionalao menos teoricamente a cumprir. Esse aparato, porém, que não previa golpes de estado que depunhampresidentes, e que não dava respostas legais para se resolver o impasse: quem iria posteriormenteassumir a Presidência da República e de que forma?A Constituição de 1946 previa que naquele caso, na ausência definitiva do Presidente daRepública e do Vice-Presidente da República, assumiria o Presidente da Câmara dos Deputados e seconvocariam em 30 dias eleições indiretas para presidente, na qual os eleitores seriam os membros docongresso nacional. (BRASIL, 1946)Nesse contexto, vários políticos que apoiaram o golpe de estado se lançaram candidatos:General Kruel, Eurico Gaspar Dutra (ex-presidente) e o próprio Presidente da Câmara Ranieri Mazzili.(FOLHA DE SÃO PAULO, 1964). Porém o “Candidato” escolhido foi o General Humberto CasteloBranco, militar que foi um dos conspiradores do golpe. (FOLHA DE SÃO PAULO, 1964)Porém, a solução “Constitucional” pelo visto parecia democrática demais. No dia 09 de abril de1964, após a aprovação de uma lei que regulamentava a eleição indireta para Presidente da República,o Comando Militar, com o intuito de “institucionalizar” a “revolução”, como já mencionado pelo entãoMinistro da Guerra Costa e Silva, decreta o primeiro de muitos outros “Atos Institucionais”.(FOLHA DESÃO PAULO, 1964)Mas, o que seria um Ato Institucional? Uma lei emergencial? Uma reforma constitucional? Qualera o discurso oficial sobre a natureza do Ato Institucional? À época algumas explicações foram dadas.Segundo o Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Medeiros Silva,sem o Ato Institucional, não teria havido uma Revolução, mas um golpe de estado, ouuma revolta, destinados a substituir pessoas dos altos postos do Governo, conservando,porém, as mesmas regras jurídicas, os mesmos métodos de governo, políticos eadministrativos, que provocaram a deterioração do poder e a sua perda.(1964)Temos então a opinião de um jurista reconhecido pelo seu notório saber jurídico. 2 Um Ministro doSupremo explica que, sem mudança na estrutura legal brasileira, o movimento de 1964 seria apenas um12Doutorando em História – UFRGS, Professor Assistente – UFFS. Email: mateustorres@ig.com.br.O notório saber jurídico era um dos requisitos da Constituição Federal de 1946 para que um jurista fossenomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal. Conforme: BRASIL. Constituição dos Estados Unidos doBrasil de 1946. Disponível em: . Acesso em: 5 jun. 2012.288


golpe ou uma revolta. No raciocínio do Ministro, a mudança legal após uma tomada de poder não só sejustifica como também se faz necessária, sob pena de o movimento ser considerado apenas umamudança de postos administrativos no alto escalão do governo. Mesmo assim, não é uma explicaçãoconceitual do ato ou de sua natureza. Nesse artigo percebe-se que o ministro se esforça para explicar asituação vigente do ponto de vista jurídico, porém, analisando as palavras do Ministro, percebe-se queeste apenas deu-se ao trabalho de plagiar formalmente o que já está escrito no próprio Ato Institucional.Tais explicações, retiradas de um artigo “científico”, foram dadas apenas dois dias após a publicação doAto. O próprio Ministro afirma que está estabelecendo apenas uma leitura rápida do Ato Institucional.Mas 20 dias depois, o Ministro já parecia ter as respostas necessárias, os conceitos jurídicosnecessários para internalizar na linguagem jurídica este acontecimento no mundo social explicajuridicamente o que ocorreu e porque tudo aquilo era perfeitamente aceitável.O Ato Institucional de 09 de abril de 1964, é uma lei constitucional temporária, cujavigência, iniciada na sua data, terminará em 31 de janeiro de 1966. No período limitado,que corresponde ao Mandato do Presidente da República, eleito pela forma neleestabelecida, alguns preceitos da Constituição de 1946 deixarão de vigorar, porqueoutros também de natureza constitucional inscritos no próprio ato, sobre aquelesprevalecerão. (SILVA, 1964)Essas medidas judicias tomadas no Brasil, após o golpe de 1964, o governo ditatorial possuem oobjetivo de interferir no funcionamento do poder judiciário e consequentemente do campo judiciário comoum todo.Todavia, o ato institucional nº 1 não modificou a estrutura judiciária brasileira, mas determinava ainvestigação sumária através de inquéritos administrativos que tinham o objetivo de apurar aresponsabilidade de servidores públicos na prática de crimes contra o Estado ou o seu patrimônio econtra a ordem política e social. Estes poderiam ser demitidos, dispensados, postos em disponibilidade,aposentados, transferidos para a reserva ou reformados por decreto do Presidente da República ouGovernador do Estado, sem prejuízo das sanções penais a que estivessem sujeitos. Cabia ao judiciárioapenas apreciar as formalidades extrínsecas, ou seja, se o “procedimento” adotado pelas comissões deinquérito eram corretos. (BRASIL, 1964)Devido à grande quantidade de Habeas Corpus 3 e outros instrumentos jurídicos pelos por meiodos quais o judiciário interveio no funcionamento dessas comissões de inquérito, revisandoprocedimentos, revertendo decisões, soltando presos políticos, etc., o Ato Institucional nº 2 interveio deforma direta no funcionamento do Poder Judiciário (BRASIL, 1965):1) mudou a composição do Supremo Tribunal Federal de 11 para 16 ministros, visto que estes eramnomeados pelo Presidente da República.2) transferiu para a competência da Justiça Militar os processos e julgamentos de crimes previstosna Lei de Segurança Nacional de 1953.(BRASIL, 1953)3) Passou o julgamento de Governadores e de Secretários de Estado passou para o SuperiorTribunal Militar.Assim, o governo teria mais certeza de que as decisões judiciais seriam favoráveis ao regime,pois tirou a atribuição da justiça comum no julgamento de civis, para que estes fossem julgados porjuízes ou ministros dos tribunais militares e aumentou o número de ministros do Supremo, de nomeaçãodireta pelo Presidente da República; restava como possibilidade de recorrer à justiça comum,diretamente ao Supremo Tribunal Federal, para o julgamento de Habeas Corpus e de Recurso Ordinárioem caso de “crimes políticos”. O Habeas Corpus é um pedido que podia ser feito diretamente ao STF nocaso de prisão ilegal, independentemente de haver processo já instaurado contra o réu; tinha o objetivode ser célere, fazendo com que o STF tivesse ciência da ilegalidade da prisão e diretamentedeterminasse a soltura do réu caso aquela fosse comprovada. Já o Recurso Ordinário pressupunha umadecisão anterior do Poder Judiciária sobre um crime que estava sendo imputado ao acusado, e sob cujadecisão deveria se pronunciar o Supremo Tribunal Federal 4 .Após a outorga da Constituição de 1967, ocorreu a manutenção do direito de Habeas Corpusbem como o julgamento por parte do STF de recurso ordinário relacionado a decisões do Superior34É medida judicial destinada a garantir e proteger a liberdade de quem está preso ou ameaçado de prisão. Ohabeas corpus serve, também, para reparação de qualquer constrangimento em processo penal, pois oprocesso penal, podendo resultar em pena privativa de liberdade, é ameaça ao ir e vir. O nome, em latim,significa, tome o corpo. Disponível em < http://www.esmpu.gov.br> Acesso em: 22 mar. 2012.Conforme a Constituição Federal de 1946 o recurso ordinário era julgado pelo Supremo Tribunal Federal emcaso de crimes políticos. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm. Acesso em 22 mar 2012.289


Tribunal Militar em crimes contra a segurança nacional 5 . Ou seja, a Constituição especificamentedeterminava a existência desse recurso no qual a decisão final cabe ao STF. (BRASIL, 1967)Após o Ato Institucional nº 5 de 13 de dezembro de 1968, no entanto, fica suspensa a garantiade Habeas Corpus em caso de crime político, contra a segurança nacional, a ordem econômica e aeconomia popular. Além disso, o STF sofre um golpe direto. Os Ministros Victor Nunes Leal, HermesLima e Evandro Lins e Silva são cassados. Dois ministros se aposentaram em solidariedade: AntônioGonçalves de Oliveira e Carlos Lafaiete de Andrade. (MATTOS, 2002). Após a saída destes cincoministros, com o sexto ato institucional, o regime diminui o número de Ministros do STF de 16 para 11,aproveitando o fato de que praticamente todos os membros do colegiado tinham sido nomeados peladitadura.(BRASIL, 1969)Após o ato institucional nº 6, de 1º de fevereiro de 1969, o recurso ordinário ao STF passouapenas a ser admitido no caso do parágrafo 2º do artigo 122, ou seja, somente no de julgamento deGovernadores de Estado e seus Secretários. Os civis acusados de crime contra a segurança nacionalseriam julgados pela justiça militar, sendo o único recurso passível ao STF o Extraordinário. Por esteexpediente, o Supremo não revisaria as provas colhidas contra os acusados, nem ao menos se foicorreta ou não a condenação de acordo com a Lei de Segurança Nacional; ficaria responsável somentepor verificar se a Constituição de 1967 foi devidamente aplicada. Isto faria com que o nenhum tribunalcivil apreciasse as provas existentes nos processos contra acusados de crime contra a SegurançaNacional, fazendo com que apenas os militares, através de sua justiça, fizessem um juízo de validadedas provas dos autos, decidindo se condenavam ou não os réus.Porém tal determinação, mesmo demonstrando a vontade existente de dominação por parte daJustiça Militar de tudo o que fosse relacionado a crimes contra a segurança nacional, foi revogada 10meses depois. Com a Emenda Constitucional nº 1 de 17 de outubro de 1969, é restabelecida apossibilidade de Recurso Ordinário ao STF, nos casos do artigo 119 da Constituição, bem como com osparágrafos 1º e 2º do artigo 129, que tinham a seguinte redação:Art. 119. Compete ao Supremo Tribunal Federal:II – Julgar em Recurso Ordináriob) os casos previstos no artigo 129,§ 1 e 2º.(...)Art. 129. À Justiça Militar compete processar e julgar, nos crimes militares definidos emlei, os militares e as pessoas que lhes são assemelhadas.§ 1º Êsse fôro especial estender-se-á aos civis, nos casos expressos em lei, pararepressão de crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares.§ 2º Compete originariamente ao Superior Tribunal Militar processar e julgar osGovernadores de Estado e seus Secretários, nos crimes de que trata o § 1º. (BRASIL,1967)Voltam assim a ter direito de interpor Recurso Ordinário ao STF os condenados pelo STM nocaso de crimes contra a segurança nacional. O STF poderia modificar todos os aspectos da decisão doSTM, inclusive revisar provas e procedimentos, determinar novas perícias, ou seja, o STF voltou, nessecaso, a ser um Tribunal revisor das decisões do STM. E foi assim até a revogação do AI-5. O RecursoOrdinário ao STF continuou sendo a única possibilidade de um cidadão ter revisada a sua sentença porum tribunal civil. O Supremo verificaria ao menos se a decisão respeitava ou não a legislação estipuladapela ditadura, e se foi dada com base nas provas presentes nos autos, mesmo nas condições adversasque existiam durante a sua coleta.Ao interporem tais Recursos Ordinários ao STF, os advogados de presos políticos ou osProcuradores Militares poderiam requerer uma revisão integral do acórdão julgado pelo Superior TribunalMilitar. Assim, ficava o STF com a obrigação de confeccionar um novo acórdão, analisando todos osaspectos da decisão do STM. Os Ministros do STF decidiam conforme o que tenha sido requerido peloadvogado do réu ou em alguns casos pelo Ministério Público Militar. Todo Recurso é um instrumento derevisão de uma decisão e, caso seja interposto, é porque uma das partes, acusação ou defesa,necessariamente não ficou satisfeita com o resultado da demanda. Da interposição destes recursos,resultou a confecção de acórdãos desde o ano de 1964 até o ano de 1979, nos casos de crime contra asegurança nacional. Este material é uma rica fonte de pesquisa sobre o judiciário durante a ditadura. Osacórdãos dão a dimensão de como o STF se movia em relação a legislação, ao executivo, as pressõessociais. São parte de um processo histórico, de um acordo entre uma elite militar e judiciária no sentido5Conforme Pedro Lenza em razão do autoritarismo implantado pelo Comando Militar da Revolução, nãopossuindo o Congresso Nacional liberdade para alterar substancialmente o novo Estado que se instaurava, épreferível considera-la como outorgada unilateralmente (apesar de formalmente votado, aprovado e“promulgado”) pelo regime ditatorial militar implantado. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado.São Paulo: Saraiva, 2008. P.26290


de se estabelecer um regime repressivo, estando a disposição para consulta pública no site do SupremoTribunal Federal.Conforme explica Pierre Bourdieu, em seu livro O Poder Simbólico, em seu capítulo VIIIintitulado A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico, os juristas e historiadoresdo direito vislumbram a história do direito como a história do desenvolvimento interno dos seus conceitose dos seus métodos, que somente podem ser compreendidos através de sua dinâmica interna,concebendo-o como um sistema fechado e autônomo. A intensão de Kelsen em sua “teoria pura dodireito” foi de construir um campo de doutrinas e regras que fossem totalmente independentes dosconstrangimentos e das pressões sociais, tendo nele mesmo seu próprio fundamento. (BOURDIEU,2010)Em contraposição, Bourdieu propõe que a prática dos agentes encarregados de produzir odireito ou de aplicá-lo em um determinado caso judicial, deve muito às afinidades ideológicas,econômicas e até culturais que unem os detentores por excelência desta forma de poder simbólico aosdetentores do poder temporal, político ou econômico. Com interesses próximos e, sobretudo, a afinidadedo habitus ligada a formações familiares e escolares semelhantes, as visões do mundo da classedominante e dos membros do corpo jurídico não se diferenciam. Segue-se aqui que as escolhas que osintegrantes da classe jurídica devem fazer em cada momento, entre interesses, valores, visões domundo diferentes ou antagonistas, destoantes do que está estabelecido na ideologia da classedominante, têm poucas probabilidades de desfavorecê-los. De tal modo o ethos dos agentes jurídicos,que é invocado tanto para justificar seus atos como para os inspirar, está adequado aos interesses, aosvalores e à visão de mundo dos dominantes. A pertença dos magistrados à classe dominante estáatestada em toda a parte.(BOURDIEU, 2010)Para Bourdieu, a função de manutenção da ordem simbólica que é assegurada pela contribuiçãodo campo jurídico é– como a função de reprodução do próprio campo jurídico, das suas divisões e das suashierarquias, e do princípio de visão e de divisão que está no seu fundamento – produtode inúmeras ações que não têm como fim a realização desta função e que podemmesmo se inspirar, em intenções opostas, como os trabalhos subversivos dasvanguardas, os quais contribuem, definitivamente, para determinar a adaptação dodireito e do campo jurídico ao novo estado das relações sociais e para garantir assim alegitimação da forma estabelecida dessas relações. É a estrutura do jogo e não umsimples efeito de agregação mecânica, que está na origem da transcendência, reveladapelos casos de inversão das instituições, do efeito objetivo e coletivo das açõesacumuladas. (BOURDIEU, 2010)Como acima mencionado, Bourdieu aponta como característica do campo jurídico a suaconstante afirmação de autonomia, essa, formadora de sua própria identidade como campo. O campojurídico, caracterizado pelas leis, técnicas e linguagens trabalhadas pelos profissionais da área,considera-se um mundo diferenciado do restante da sociedade. Mesmo fazendo parte dela e nelaatuando, os agentes do campo jurídico consideram-se autônomos no sentido de não aceitar pressõessociais externas, daquilo que consideram estar fora de seu próprio campo. Seus membros trabalhariamrelacionando-se exclusivamente com as legislações, doutrinas e jurisprudências, colocando-se comoaplicadores das técnicas judiciais, sem levar em conta os acontecimentos políticos, sociais eeconômicos, ocorridos no mundo social que consideram apartados do judicial.O campo jurídico afirma-se autônomo em relação a tudo que não é jurídico, judicial, e seusmembros procuram afirmar essa diferenciação através de símbolos que consideram próprios do campo:linguagens, indumentária, técnicas de trabalho e procedimentos para a aplicação da justiça que,segundo seus profissionais, são completamente imparciais e neutros em relação a tudo que não seja aaplicação da lei. Essa neutralidade e imparcialidade os diferenciam dos outros poderes instituídos(executivo, legislativo), bem como de instrumentos de reivindicação social (movimentos sociais,imprensa, ideologias), pois ambos não teriam a aura da imparcialidade (tomariam partido, dependeriamde voto, precisariam de eleitores, expressariam opiniões), do Judiciário.Dentre os aspectos que querem revelar a autonomia e imparcialidade do campo jurídicoencontra-se na linguagem jurídica, uma retórica de impessoalidade e de neutralidade. Dois efeitos sãogerados na utilização desta linguagem: neutralidade e universalização. A neutralidade é obtida peloconjunto de características sintáticas tais como o predomínio de construções passivas e das frasesimpessoais. A universalização é obtida por meio de vários processos convergentes: utilização de verbosno indicativo para enunciar normas (aliciar, subverter), a utilização de verbos na terceira pessoa dosingular ou do passado composto, (compromete-se, declarou); o uso dos indefinidos (todo o condenado),o presente intemporal ou o futuro jurídico, para exprimirem a generalidade e a omnitemporalidade daregra do direito; as referências a fatores transubjetivos, que pressupõem a existência de um consensoético, fórmulas lapidares e formas fixas. (BOURDIEU, 2010)291


O poder judiciário, órgão do Estado definido pelo campo jurídico como detentor do poder dedecisão sobre as demandas propostas, somente pode ser provocado e instado a decidir por umprofissional também do campo jurídico (advogado ou promotor de justiça), sendo que nisso o cidadão éobrigado, por não estar inserido no campo jurídico, a tacitamente renunciar a qualquer possibilidade dese expressar pessoalmente frente ao Estado. Ocorrida esta renúncia tácita, a autonomia do campo seestabelece, excluindo qualquer mudança ou subversão do que está posto e já previamente estabelecidocomo única possibilidade de aplicação da justiça na sociedade.O campo jurídico se apresenta e é reconhecido como tendo um poder autônomo em relação àsociedade, com um funcionamento específico e um corpus jurídico relativamente independente deconstrangimentos externos. Então, a ilusão da autonomia não diz respeito apenas à relação entre ojudiciário e os poderes instituídos (executivo e legislativo), também diz respeito: à demarcação de quemtem autoridade e competência para interpretar a lei; à posição do juiz na estrutura da distribuição docapital específico de autoridade jurídica; ao vocabulário utilizado para impor noções de universalidade ede neutralidade; ao controle das divergências possíveis entre os “intérpretes autorizados”; àhierarquização das instâncias decisórias, divididas em juízes de primeira instância, e os Tribunais, queirão, através dos recursos interpostos, revisar as decisões dos juízes de primeira instância.Referências Bibliográficas:ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil: 1964-1984. Bauru, SP: Edusc, 2005. p.67BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 13ª ed. 2010. P. 209BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946. Disponível em:. Acesso em: 9 jun. 2012.BRASIL. Ato Institucional nº 1, de 9 abril 1964. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-01-64.htm>. Acesso em: 5 nov. 2007BRASIL. Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965. Disponível em:. Acesso em: 5 nov. 2007.BRASIL. Lei nº 1802, de 5 de janeiro de 1953. Disponível em: . Acesso em: 19dez. 2007.BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em:. Acesso em: 2 jul. 2008.BRASIL. Ato institucional n° 6 de 1 de fevereiro de 1969. Disponível em. Acesso em: 10 mar 2012.BRASIL. Constituição do Brasil de 1967. Disponível em . Acesso em 30 jul 2011.COSTA e Silva Desejamos que o povo confie em nós. Folha de São Paulo, São Paulo, 10 abr. 1964. p.1.Disponível em . Acesso em 01 jun. 2012.DUTRA também é candidato. Folha de São Paulo, São Paulo, 09 abr. 1964. p.1. Disponível em. Acesso em 01 jun. 2012.LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2008. P.26MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de. Em nome da Segurança _acional: os processos da JustiçaMilitar contra a Ação Libertadora Nacional (ALN), 1969-1972. São Paulo: Universidade de São Paulo,2002. Dissertação de Mestrado em História.p.25 e 26.SILVA, Carlos Medeiros. Observações sobre o ato institucional. Revista de Direito Administrativo, n. 76,p. 473-475, abr./jun. 1964.SILVA, Carlos Medeiros. O ato institucional e a elaboração legislativa. Revista dos Tribunais, v. 53, n.347, p. 7-17, set. 1964.292


As vozes da contemporaneidade e a questão da imprescritibilidade dos crimes de torturaperpetrados na ditadura civil-militar no BrasilFabiano Negreiros 1Resumo: O presente artigo é elaborado no intuito de contribuir com a fundamentação acerca daimprescritibilidade dos crimes de tortura praticados pela ditadura civil-militar no brasil durante o períodode 1964 a meados de 1980, partindo da premissa de que em relação a esses delitos jamais pode restardúvida quanto à sua inafastabilidade do campo jurisdicional por institutos como a prescrição, uma vezque se enquadram nos crimes de lesa-humanidade. O método escolhido para a elaboração destapesquisa foi entrevistas com especialistas na matéria, buscando uma análise jurídica com um recortehistórico relacionando a pesquisa de campo como principal instrumento, haja vista o intuito de abordar oproblema à luz da prática. Assim, pode-se observar uma gama de profícuos argumentos no que tange aocontrole jurisdicional dos crimes de tortura; compreensão que se coaduna com a doutrina ejurisprudência internacional, que não deixam dúvidas quanto à imprescindível responsabilização dosagentes públicos.Palavras-chave: Imprescritibilidade – Tortura – Ditadura civil-militar – Direitos Humanos – DireitoInternacional.Abstract: This article is elaborated in order to contribute with the grounding related with theimprescriptibility of the crimes of torture committed by the civil-military dictatorship in Brazil during theperiod of 1964 until the middle of 1980, starting with the premise that there isn’t have any doubt about theexclusion of these delicts of the institutes as an example the prescription, because they are crimesagainst humanity. The method chose for this research was interviews with specialists in this content,combining a juridical analysis with a historical view using the field research as a principal instrument, inorder to attend the problem in a practical way. It can be observed a lot of arguments related withjurisdictional control about the crimes of torture; comprehension that incorporate the doctrine andinternational jurisprudence: they don’t let any doubts about the necessary punishment of the publicagents.Keywords: Imprescriptibility – Torture – Civil-military dictatorship – Human Rights – International Law.IntroduçãoO Brasil teve um dos maiores períodos de ruptura constitucional da América Latina, a partir de1964, quando da deposição do presidente João Goulart, interregno que deixou marcas profundas nasociedade brasileira, com consequências que até hoje são sentidas.O presente artigo aborda esse capítulo da história brasileira, mais especificamente os crimes detortura praticados pelos “agentes de segurança do Estado” que, em “nome do País”, aprisionaram,torturaram e mataram pessoas que sequer tinham possibilidades de se defender ante um Estadoopressor e violador de preceitos fundamentais que, hoje, inclusive, fundamentam a vigente ConstituiçãoFederal.Será usada a expressão ditadura civil-militar, uma vez que houve direta intervenção desegmentos da sociedade civil 2 no processo de organização e consolidação da cisão da democracia em1964.A tortura é de tamanha afronta à dignidade humana que, principalmente, desde o pós-2ª Guerra,toda a construção do Direito Internacional em relação aos Direitos Humanos vem estabelecendo uminequívoco consenso: em hipótese alguma o homem deve ser violentado na sua identidade mais íntimade ser humano, que é a sua dignidade. Por isso, é pacífico no cenário internacional o dever dos Estadosde promoverem todas as ações possíveis a fim de erradicar esses crimes. Com o objetivo deconsubstanciar a imprescritibilidade da tortura, buscou-se pareceres de especialistas no intuito deoferecer uma abordagem contemporânea fundada no conhecimento empírico dos mesmos.12Advogado liberd@bol.com.br (51) 9242-5075O documentário Cidadão Boilesen joga luzes acerca da participação de setores influentes da sociedadebrasileira no governo inconstitucional de 1964.293


Jogar a “sujeira para debaixo do tapete” é se condenar a uma alienação equivalente à dos anosde chumbo, mantendo a sociedade em uma constante situação de perigo. Pois, se não se tem onecessário discernimento da história com a devida consequência de imputação de responsabilidadeàqueles que torturaram, corre-se o risco de a qualquer momento, a partir de rompantes de efêmeradesilusão, relativizar-se valores tão caros à humanidade, como o reconhecimento da pessoa em suacondição de inviolabilidade, e sentir “saudades” de um tempo que, oxalá, jamais volte.1. Os Crimes Contra a HumanidadeAntes de se aprofundar na análise trazida pelo presente artigo, entende-se como de granderelevância um resgate das primeiras considerações acerca dos crimes contra a humanidade, comenfoque na tortura, pois compreender tais ilícitos sob o contexto histórico contribui no discernimento dosmesmos.A partir dessa premissa, segundo Santos (2010), é preciso remontar à 1ª Guerra Mundial, maisespecificamente “após o massacre da minoria Armênia na Turquia”. Conforme o autor, o “Tratado deSèvres, firmado entre a Turquia e as potências aliadas vencedoras da 1ª Guerra Mundial, trouxe oembrião da responsabilidade internacional de crimes praticados por agentes de um Estado contraminorias internas” (p. 103).Já no âmbito da 2ª Grande Guerra, conforme Santos (2010), os crimes cometidos pelaAlemanha Nazista contra sua própria população não se subzumiam aos “crimes de guerra”, uma vez que“não havia precedente na história das guerras a expulsão, a deportação e o extermínio levados a cabopor um país contra seus próprios nacionais”. Por isso, a fim de que tais delitos não ficassem impunes, oconceito de crimes contra a humanidade foi delineado (p. 103). O autor ainda destaca que oentendimento sobre os crimes de lesa-humanidade se desenvolveu consubstanciando os Estatutos doTribunal Penal Internacional para ex-Iugoslávia (artigo 5º) e para Ruanda (artigo 3º); Estatuto do TribunalEspecial para Serra Leoa (artigo 2º); Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (artigo. 7º); ejulgados dos tribunais penais internacionais. Em suma, os crimes de lesa-humanidade podem sercaracterizados:(i) são ofensas particularmente repulsivas, no sentido de que constituem um sérioataque à dignidade humana, uma grave humilhação ou degradação de seres humanos;(ii) não são eventos isolados ou esporádicos, mas sim parte de uma política de governoou de uma prática sistemática e frequente de atrocidades que são toleradas, perdoadasou incentivadas por um governante ou pela autoridade de fato; (iii) são atos proibidos epodem ser consequentemente punidos, independente se tenham sidos perpetrados emtempos de guerra ou de paz; (iv) as vítimas do crime devem ser civis, ou no caso decrimes cometidos durante um conflito armado, pessoas que não tenham tomado partenas hostilidades. (CASSESE, 2005 apud SANTOS, 2010, p. 109-110).Segundo Gomes e Mazzuoli (2011), a primeira definição acerca dos crimes contra humanidadese deu “com toda a clareza” a partir do Acordo de Londres de 8 de agosto de 1945, que instaurou oTribunal de Nuremberg. Os julgamentos que ali aconteceram, tais como de réus nazistas que, com suapolítica de extermínio de seus próprios cidadãos (somente crianças judias mataram um milhão e meio 3 ),tiveram como principais fundamentos o costume internacional e o jus cogens – “direito cogente devalidade universal” (p. 88).Na visão de Weichert (2008), em relação aos crimes contra a humanidade, “o que os caracterizaé a especificidade do contexto e da motivação com que praticados”. O autor afirma que, à luz do DireitoInternacional, o crime de lesa-humanidade “é aquele praticado dentro de um padrão amplo e repetitivode perseguição a determinado grupo (ou grupos) da sociedade civil, por qualquer razão (política,religiosa ou racial e étnica)” (p. 174).No Brasil, sobre os crimes (torturas, sequestros, assassinatos, etc.) praticados pela ditadura civilmilitar,Weichert (2008) é expresso em caracterizá-los como crimes de lesa-humanidade, tendo em vistaque “foram consumados dentro de um padrão sistemático e generalizado de atos violentos praticadoscontra a população civil por agentes do Estado brasileiro sob o comando de oficiais do Exército” (p. 181).1.1 A Tortura, Um Instrumento que Anula a PersonalidadeO crime de tortura vem sendo constantemente objeto de estudo, tanto no âmbito nacional quantono cenário internacional, inclusive sendo positivado nos mais variados ordenamentos jurídicos. Todavia,antes de adentrar em tal campo do conhecimento, é mister fazer, em breves palavras, um recortehistórico dos referidos ilícitos.3Número segundo a ONU. Disponível em: < http://www.onu.org.br/dia-internacional-em-memoria-das-vitimas-doholocausto-27-de-janeiro-de-2012>.Acesso em: 15 jan. 2013.294


Dessa forma, como bem refere Ramella (1987, p. 70 e 71):Desde antigamente se tem praticado a tortura ou o tormento como um meio legal paraobter a confissão do réu. Na Grécia assim se agia, Isócrates afirmava: “Nada maisseguro do que o tormento para se saber a verdade”. Demóstenes participava dessepensamento. Em Roma usava-se o potro (instrumento de tortura) para os escravos egladiadores. Tito disse que se aplicava também a todos os cidadãos. A Lex Juliamajestatis ordenava que se devia aplicar a tortura aos cidadãos incursos em acusaçõesde lesa-majestade. Na Alemanha de admitiu a tortura vários séculos depois docristianismo: a lei Carolina previa tormentos. O mesmo nos Países Baixos e Inglaterra.Igualmente na Rússia. Como nesta nação ninguém podia ser condenado se nãoconfessasse um delito, mesmo que houvesse testemunhas do fato, era autorizado otormento a fim de que se obtivesse a confissão. O tormento foi abolido por Catarina II,em 1769. Na Suécia, onde era considerado legal, foi ele abolido em fins do século XVIIIpelo rei Gustavo III. Na França, a Ordenança de 1670 estabelecia as normas para ostormentos. Foram abolidos pela lei de 9 de outubro de 1789. Na Espanha, a Partida 7ª,título 3º, continha nove leis dedicadas a definir o que é tormento, a determinar aspessoas que podiam aplicá-lo e aqueles a quem se deviam infligir. Aboliu-se por decretoda Corte de 22 de abril de 1811.Nessa esteira, o autor destaca o entendimento da Corte Europeia de Direitos Humanos no CasoGrécia 4 , acerca da tortura: “Denota um tratamento desumano que tem um propósito, tal como a obtençãode informações ou uma confissão, ou a inflição de um castigo, e é geralmente uma forma agravada detratamento desumano” (p. 72).Marques (2011, p. 143) ressalta o artigo 7º do Estatuto de Roma, que é taxativo ao dispor sobreo conceito de tortura:Ato por meio do qual uma dor ou sofrimento agudos, físicos ou mentais sãointencionalmente causados a uma pessoa que esteja sob a custódia ou o controle doacusado; este termo não compreende a dor ou os sofrimentos resultantes unicamentede sanções legais, inerentes a essas sanções ou por elas ocasionadas.Assim, conclui o autor: os crimes cometidos pelas ditaduras que se subsumem aos delitos acimadescritos por força dos tratados internacionais (Estatuto do Tribunal Penal Internacional) e decisõesinternacionais, vide a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Guerrilha doAraguaia, são crimes contra a humanidade, logo são insuscetíveis de serem fulminados pelo instituto daprescrição (p. 144).Segundo a Convenção Interamericana para Prevenir a Tortura 5 , essa se entende comotodo o ato realizado intencionalmente pelo qual se inflija a uma pessoa penas ousofrimentos físicos e/ou mentais, com fins de investigação criminal, como meiointimidatório, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou comqualquer outro fim. Se entenderá (sic) também como tortura a aplicação sobre umapessoa de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima ou a diminuir suacapacidade física ou mental, ainda que não cause dor física ou angústia psíquica.Baldi (2011) destaca a lição de Marilena Chauí acerca da tortura como uma significativacontradição a partir do pressuposto de que se destrói um ser humano a fim de que seja humanizado ecomplementa:Tem como correspondente as técnicas de simulacro e de teatralização da violência: nãosomente pela atuação de papéis, mas pelo aparato técnico da tortura que só operaquando exibido, mas uma exibição, porém, que é clandestina. Não só porque se operaem porões, mas também porque “torturados e torturadores não tem nome nemidentidade”: e que, portanto, possibilita que os torturados se sintam “sem direitos”, masque os torturadores se confessem “sem poderes” (CHAUÍ, 1987, p. 34-35 apud BALDI,2011, p. 164).De profunda lucidez as palavras de Maria Rita Kehl, citadas por Baldi (2011), acerca da45Segundo o Centro di Documentazione su Carcere, devianza e Marginalità, historicamente, foi a ComissãoEuropeia de Direitos Humanos (CEDH) o primeiro órgão internacional a enfrentar o desafio de definir o crime detortura, diferenciando-o dos demais tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, quando da análise do CasoGrego (Greek Case), de 1967-1969. Disponível em:. Acesso em: 14 jan. 2013.Disponível em:< http://www.cidh.oas.org/basicos/basicos6.htm>. Acesso em: 14 jan. 2013.295


conivência da sociedade: “A tortura somente existe porque a sociedade, explícita ou implicitamente, aadmite”. Segundo a autora, “não se pode considerar a tortura desumana”, mas humana, “porque nãoconhecemos nenhuma espécie animal capaz de instrumentalizar o corpo do indivíduo da mesmaespécie, e além disso gozar com isso, a pretexto de certo amor à ‘verdade’”. Ainda ela: um corpoviolentado é um “corpo roubado ao seu próprio controle; corpo dissociado de um sujeito, transformadoem objeto nas mãos poderosas de outro – seja o Estado ou um criminoso comum” (KEHL, 2010, p. 130 e131 apud BALDI, 2011, p. 165).Já, para Mello (2010), a tortura representa a total dissonância axiológica em face dos preceitosconstitucionais. Em suas palavras: “Eis, pois, que não pode padecer a mais remota, a mais insignificantedúvida de que a tortura representa a antítese dos valores básicos que a Constituição Brasileira professaenfaticamente” (p. 94).A tortura causa consequências psicológicas tão graves que muitas vezes deixa a vítima numaespécie de limbo temporal em que sua memória é esfacelada pelos traumas sofridos. Segundo Kolker(2012):Para evitar o contato com a experiência da dor e do desamparo, as marcas psíquicas daviolência são encapsuladas e dissociadas, e, no lugar da vivência traumática, o quesubsiste são bolhas de tempo, zonas de silêncio, fragmentos de vida que não podemser integrados aos demais.Saavedra (2008) destaca a abstenção cognitiva do torturador em relação à identidade humanada vítima como pressuposto da plena concretização de seus atos. Ensina: “Para que alguém se torne umtorturador, é necessário que ele primeiro passe por um processo de aprendizagem negativo. Ele precisaaprender a perder essa capacidade, essa percepção do sofrimento do outro, de sofrer-com, decompaixão” (p. 98). Para o autor (p.98), ele precisa aprender “a não se ver mais no outro. Ele precisaaprender a não ser mais humano” (grifo do autor).A fim de demonstrar toda a repercussão dos efeitos da tortura no comportamento da vítima,Alvarez (2008) menciona a lição de Sussman:A tortura não apenas prejudica ou danifica a capacidade de agir da vítima mas antescoloca essa capacidade contra si mesma, ao forçar a vítima a experimentar-se comodesamparada e ainda cúmplice de sua própria violação. Não é apenas um assalto ouuma violação da autonomia da vítima mas também uma perversão dessa autonomia,uma espécie de escárnio sistemático das relações morais básicas que um indivíduoestabelece tanto com os outros quanto consigo mesmo. Talvez seja por isso que atortura pareça qualitativamente pior que outras formas de brutalidade e crueldade(SUSSMAN, 2005, p. 30 apud ALVAREZ, 2008, p. 278).Ante o exposto, não resta dúvida acerca da inexorável violência da tortura contra as vítimas quepadeceram sob a força daqueles que instrumentalizaram os crimes contra a humanidade com o aparatodo Estado brasileiro, causando ofensas que atingiram a esfera mais íntima da pessoa, a partir daviolação de seu corpo e mente. Entender esses atos como inaceitáveis e insuscetíveis de qualquerbenesse, por parte do Estado, é pressuposto a uma sociedade que pretenda pautar o seudesenvolvimento por valores humanistas que, no caso brasileiro, são expressos em sua CartaConstitucional, esta por sua vez em consonância com as normas internacionais.2. Vozes da ContemporaneidadeEntende-se de relevância decisiva para este artigo a pesquisa de campo. A partir da busca defontes empíricas pode-se vislumbrar um estudo crítico à luz de percepções práticas que enfrentam taltemática totalmente vinculadas à realidade. Acredita-se que, dessa forma, seja possível oferecer umângulo diferenciado do problema.2.1 A Imprescritibilidade da Tortura Sob a Ótica da PráxisO ativista de Direitos Humanos e advogado Jair Krischke 6 ressalta que a imprescritibilidade doscrimes de tortura e outros considerados como crimes contra a humanidade são incorporados comonorma internacional a partir de 1950, visto que seu conceito começa a ser delineado pelo Tribunal deNuremberg alguns anos antes de sua aplicação como regra cogente. No mesmo sentido, o advogadoJosé Carlos Moreira da Silva Filho 7 entende que a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidadederiva da própria essência de tais crimes e também devido a uma importante fonte de Direito67Em entrevista ao autor.Em entrevista ao autor.296


Internacional, que é o direito costumeiro. Nas suas palavras:É claro que nesse momento não houve uma explicitação no texto do tratado (deNuremberg) de que esses crimes seriam imprescritíveis, porém, pela própria definiçãodo que esses crimes são, e por uma fonte de direito que é extremamente importante noDireito Internacional Público, que é o costume. [...].O procurador da República Ivan Marx 8 ressalta que, embora a tortura não constasse de formaexpressa nos Princípios de Nuremberg, ela era plenamente dedutível a partir dos atos inumanosconstantes naqueles princípios. Em suas palavras: “A tortura, com esses termos, não está colocada lá,mas ela pode ser claramente interpretada como outros atos desumanos, que está previsto tanto emNuremberg como em Tóquio também”.Krischke reconhece o pleno desenvolvimento desses conceitos a partir da intensa deferência, noque tange à sua fundamentação, pelas convenções internacionais não só admitidas pela ONU, mastambém pela Organização dos Estados Americanos (OEA), assim como a ampla jurisprudênciainternacional consoante à imprescritibilidade de tais delitos. Silva Filho também destaca que:[...] esse entendimento de que a imprescritibilidade é parcela inerente da definição decrimes contra a humanidade se apresentou em uma série de documentos da ONU, emmemorandos, em assembleias, em comunicados tão bem documentados quemencionam essa característica.Para o historiador Enrique Padrós 9 , tal compreensão do Direito Internacional denota umaverdadeira e inafastável evolução histórica: “Isso torna, digamos assim, um avanço civilizatório do qual agente não deve abrir mão”.O historiador ainda lembra acerca da tortura em relação ao seu momento de caracterização:A tortura começa quando a pessoa é detida e imediatamente colocam um capuz na suacabeça e ela perde o controle sensorial de tudo aquilo que diz respeito ao seu entorno,aos seus movimentos, e de qualquer certeza do que a partir dali possa lhe ocorrer.Nessa esteira, à luz do direito comparado, Krischke destaca a “lei de obediência devida” naArgentina, que visava, a exemplo do Brasil, à impunidade dos agentes estatais perpetradores de crimescontra a humanidade. Silva Filho ressalta que na Argentina se enfrentou a questão da imprescritibilidadedos crimes contra a humanidade a partir do entendimento de que, independentemente de qualquerpositivação no ordenamento internacional, esse princípio já detinha força cogente. Ele entende que talinterpretação é aplicável no Brasil. Na sua lição: “A Suprema Corte Argentina evoca um argumento deque a imprescritibilidade desses crimes não precisa estar escrita para que só a partir desse momento elapudesse ser considerada”.Para Silva Filho, há outra fundamentação de grande relevância no que diz respeito àimprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, que é a norma imperativa de direito jus cogens eque, a seu juízo, não é devidamente observada pelo “pessoal do Direito Penal” quando da análise dapresente matéria, uma vez que se tem apenas uma visão interna em prejuízo de um campo de análisemais amplo, ou seja, em “termos internacionais ou macropolíticos”.No mesmo sentido, acerca das normas imperativas como instrumento de afastamento da anista,pondera Marx: “Então, pelo direito imperativo internacional, jus cogens, esses crimes seriamimprescritíveis e deles também podem retirar a insuscetibilidade da anistia por uma previsão cogenteinternacional que se aplicaria”.Conforme Silva Filho, o direito consuetudinário detém mais força inclusive em relação aostratados internacionais. Nas suas palavras:Tem muito mais peso no cenário internacional a construção de um conjunto de práticas,de convicções e de costumes internacionais que demoram muito mais tempo paraserem sedimentados e que têm muito mais densidade jurídica, segurança jurídica, doque os próprios tratados internacionais, que, muitas vezes, podem ser alterados, podemser denunciados ou podem simplesmente não obter a adesão de uma série de países.Para ele, o costume internacional vincula os países independentemente de sua adesão formal,assim não restando aos Estados outra alternativa senão respeitarem os entendimentos da comunidadeinternacional no que tange à compreensão dos Direitos Humanos e a melhor forma de tutela dos89Em entrevista ao autor.Em entrevista ao autor.297


cidadãos em relação ao Estado. Ainda sobre a gravidade desse tipo de crime, é taxativo: “É quaseincestuoso”.Ainda que se compreendesse possível uma eventual contagem do prazo prescricional doscrimes de tortura cometidos pela ditadura civil-militar, Silva Filho entende como impossível de se contartais prazos a partir do seu efetivo cometimento, visto que era o próprio Estado que os cometia numcontexto de perseguição à população civil. Assim, enfatiza: “A gente não vivia numa democracia, comovocê pode querer contar um prazo prescricional de um crime num contexto onde era impossível iniciaruma investigação desse crime, impossível porque o Estado não dava condições para isso”.Portanto, conclui: ainda que se quisesse efetuar qualquer contagem prescricional, serianecessário ter como marco temporal inicial a promulgação da presente Constituição. Ensina: “Pelomenos deveríamos arguir a possibilidade do início da contagem prescricional desses atos só depois daConstituição de 88 porque até lá não havia condição nenhuma para investigação”. É claro oentendimento de Marx ao citar um contexto de completa omissão do Estado: “Quando o Estadorealmente não quer fazer e deixa esse prazo correr, então se poderia entender que a prescrição nãocorre”.Para o procurador, a fim de fundamentar a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidadecometidos no Brasil durante o período de exceção, cabe fazer uma análise acerca de elementos quecaracterizam tais crimes. Dessa forma, não deixando dúvidas sobre o efetivo cometimento dessesilícitos. Ensina ele: “Então você precisa um ataque generalizado e sistemático contra a população civil ecom conhecimento desse ataque”. Segundo o procurador, era o que acontecia naquele período: “Então,a ditadura militar brasileira fazia uma perseguição sistemática e generalizada? Sim”. Ele ainda refere oscrimes contra a humanidade a partir da teoria de Luban, na qual o indivíduo, que é um “animal político”,se organiza em sociedade, abrindo mão, em parte, da autotutela para o Estado, que, em troca, lheoferece proteção. “O ser humano se organiza em sociedade e entrega a parcela do seu poder, digamosassim, pelas teorias contratualistas, para um governo que tem por obrigação garantir a sua segurança.”Por isso, segundo Marx, quando o Estado falha no seu papel de proteção aos indivíduos, quebraesse “pacto”. Esse rompimento se torna ainda mais dramático quando é o próprio Estado que cometeesses crimes. Assim, defende Marx:Esse tipo de violação fere o ser humano como um animal político. Ele está entregue aocriminoso, que é justamente quem deveria protegê-lo. Então, quando esse Estado, quetem esse poder e essa obrigação, fere os direitos e faz um ataque generalizado,sistemático contra essa população civil, por isso, o conceito de população civil, não é,porque é um inocente que está ali e deveria ser protegido, ele pratica crime contra ahumanidade, contra esse ser político.O ativista de Direitos Humanos Krishke não deixa de mencionar o reconhecimento do indivíduona sua condição individual de inviolabilidade inerente à compreensão de humanidade. “Ou nósconseguimos entender que quando apenas um homem tem os seus direitos violados toda a humanidadefoi violada, é disso que se trata.” Nesse mesmo sentido, ele afirma: “Alguém já disse na questão doTribunal de Nuremberg que o Holocausto foi a morte de um judeu, apenas um judeu, os outros cincomilhões novecentos e noventa e nove mil são decorrência, mas apenas um seria suficiente [...]”.Segundo o advogado, é essa compreensão que coloca a sociedade num processo de desenvolvimento eevolução histórica. “E esse entendimento que é importante, isso é que vai nos dando fóruns decivilidade, é o avanço do homem, o homem saindo da barbárie, saindo da caverna e crescendo. Então,por isso que esses crimes não podem ser anistiáveis, não podem ser de forma alguma.”O procurador Ivan Marx faz uma análise do instituto da prescrição e da anistia em relação aocomportamento estatal. Segundo ele:Enquanto a prescrição acontece por uma inação do Estado, ou seja, o Estado praticacrimes e não pune por inação, a anistia é uma atitude positiva do Estado, ou seja, eledeixa correr a prescrição porque não age e ainda assim ele vai lá e toma uma atitude nosentido de proteger melhor ainda esses crimes, vai lá e diz que esses crimes estãoanistiados.Lembra ainda, acerca das várias discussões internacionais no que tange à repulsa à prescriçãodos crimes contra a humanidade, e que acontece o mesmo com a anistia, uma vez que iria de encontroao “princípio de justiça”. Assim pondera: “Isso também não é aceito pela mesma lógica, ou seja, se existeuma pressão internacional de dar uma resposta a esses crimes, também não pode ser aceita a anistia”.Conclusão298


Desde o pós-2ª Guerra, a preocupação em limitar as ações estatais em relação ao cometimentode crimes de lesa-humanidade se tornou uma tônica nas deliberações das organizações internacionais.Sempre com o intuito de evitar que perseguições à população civil voltassem a acontecer.Essas decisões inegavelmente adquiriram uma força cogente que contribui para uma aceitaçãocada vez mais pacífica no que tange às normas imperativas de direito, isto é, o jus cogens. Essaevolução fica nítida ao se observar as decisões de tribunais internacionais que reafirmamconstantemente o dever de respeito, pelos Estados, acerca de tais normas.Os crimes de tortura foram cometidos no Brasil dentro de uma lógica de Estado, na qual asagressões se deram de forma sistematizada, em que seus agentes contaram com todo o aparatogovernamental, causando uma verdadeira perseguição contra a sociedade civil. Essa situação tevecomo consequência a tortura como uma marca desse período histórico.Pode-se observar uma sintonia no que tange a uma inequívoca aversão em relação a qualquerpossibilidade de afastamento da persecução penal sobre aqueles agentes do Estado que cometeramcrimes contra a humanidade. No caso em estudo, a tortura. Nota-se uma construção doutrinária ejurisprudencial que caminha no mesmo sentido: repulsa a qualquer impunidade que coloque em xequeos preceitos oriundos do Direito Internacional, que detém em seu escopo a tutela dos Direitos Humanos.Nesse sentido, cabe aos Estados respeitarem não só os tratados internacionais de que sãosignatários, mas principalmente todos os princípios internacionais imperativos de direito que guardamrelação com a temática de Direitos Humanos. Assim, não resta ao Brasil outra alternativa senão respeitaros princípios internacionais regidos pela proteção do indivíduo na sua condição inafastável de serhumano, sob pena de enquadrar-se como um país violador não só de tratados internacionais pelos quaissoberanamente manifestou adesão, mas pelas normas imperativas de direito.Uma cultura democrática passa necessariamente pela total repulsa ao cometimento de crimescontra a humanidade que alcança uma unanimidade no plano internacional há muitos anos. Essacompreensão exige um amadurecimento tanto do Estado quanto da sociedade que têm como corolário odiscernimento exato dos caminhos a serem percorridos sem chance de retrocessos. Para que issoocorra, o Direito não pode ser instrumentalizado com o intuito de obscurecer tais premissas, baseandosenuma hermenêutica jurídica que tem como plano de fundo o cultivo à impunidade.Por fim, ter a coragem de olhar para a história sob um ponto de vista crítico viabiliza uma maiorcompreensão das mazelas que assolam as nossas relações sociais no presente. Não há como negar opeso de mais de duas décadas de violações sistemáticas sobre um povo, e, por isso, o exercício damemória é imprescindível numa dimensão pedagógica em que a autocrítica é mister a uma melhorcompreensão dos fatos históricos, aliada ao comprometimento de justiça inerente à pacificação social.Assim, para se vislumbrar um futuro avesso a valores antidemocráticos se faz necessária a promoção deações que cauterizem as feridas abertas e possibilitem o desenvolvimento da sociedade guiada tãosomentepela carga axiológica emanada da Constituição Federal de 1988.Referências Bibliográficas:ALVAREZ, Marcos César Alvarez. Tortura, história e sociedade: algumas reflexões. Revista Brasileira deCiências Criminais, São Paulo, v.16, nº 72, maio. jun. 2008, p. 275-294.BALDI, César Augusto. Guerrilha do Araguaia e Direitos Humanos: considerações sobre a decisão daCorte Interamericana. In: GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Orgs.). Crimes daditadura militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 154-173.BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2004.CONVENCIÓN Interamericana para Prevenir y Sancionar La Tortura. Comisión Interamericana deDerechos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 31mar. 2012.DIA Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto – 27 de janeiro de 2012, 26 jan. 2012.Organização das Nações Unidas. Disponível em .Acesso em: 15 jan. 2015.GOMES, Luiz Flávio Gomes; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Condenação internacional do Brasil e odever de investigar os crimes da ditadura. 3 jan. 2011. Disponível em: .Acesso em: 15 jul. 2012.KOLKER, Tania. Tortura e impunidade: danos psicológicos e efeitos de subjetivação. In: Coordenação-Geral de Combate à Tortura (Org.). Tortura. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2010. Disponívelem:


%20TORTURA.pdf>. Acesso em: 14 set. 2012.L’ALTRO diritto. Centro di documentazione su carcere, devianza e marginalità. Do surgimento daproibição de infligir um tratamento cruel, desumano e degradante. Disponível em:. Acesso em: 25 ago. 2012.MARQUES, Ivan Luís. O princípio da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e sua aplicaçãono Brasil. In: GOMES, Luiz Flávio Gomes; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Orgs.). Crimes da ditaduramilitar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. SãoPaulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 135-153.MELLO, Celso Antônio Bandeira. Imprescritibilidade dos crimes de tortura. A & C Revista de DireitoAdministrativo & Constitucional, edição especial 10 anos, Belo Horizonte, ano 10, nº 40, abril jun. 2010,p. 93-98.RAMELLA, Pablo A. Crimes contra a humanidade. Rio de Janeiro: Forense, 1987. 90SAAVEDRA, Giovani. Segurança vs. dignidade: o problema da tortura revisitado pela criminologia doreconhecimento. Veritas: Revista trimestral de Filosofia da PUCRS, Porto Alegre, v.53, nº 2, abr. jun.2008, p. 90-106.SANTOS, Roberto Lima. Crimes da ditadura militar: Responsabilidade internacional do estado brasileiropor violação dos direitos humanos. Porto Alegre: Núria Fabris Editora, 2010.WEICHERT, Marlon Alberto. Crimes contra a humanidade perpetrados no Brasil. Lei de Anistia eprescrição penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 16, nº 74, set. out. 2008, p.170-229.300


A atuação do Poder Judiciário na Argentina frente aos crimes de lesa humanidadeperpetrados pela Ditadura de Segurança Nacional (1976-1983).Patrícia da Costa Machado 1Resumo: o presente artigo pretende analisar a reivindicação ao direito à memória e à justiça no âmbitoda jurisdição argentina, buscando compreender os mecanismos que permitem a concretização destesdireitos relacionados ao período da ditadura civil-militar (1976-1983).Palavras-chave: Direito à Memória. – Justiça – Ditadura Civil-Militar Argentina – Julgamentos Crimes deLesa HumanidadeIntroduçãoFrente ao irreparável, o perdão carece de sentido. Estas célebres palavras, atribuídas a PrimoLevi, podem ajudar-nos a compreender a importância que a realização de justiça pode ter em umasociedade herdeira de um passado autoritário.Justiça, contudo, não se confunde com o direito, tampouco com a lei. Também não se confundecom aqueles que a aplicam. É algo mais complexo, difícil de delimitar ou conceituar de maneira objetiva.Do ponto de vista filosófico, o sentimento de justiça é intrínseco à consciência humana, do homemdotado de discernimento entre o certo e o errado, o justo e o injusto. Através dos tempos, desdeAristóteles e São Tomás de Aquino, passando por Hobbes, Montesquieu e Rousseau, se sustenta quecabe à lei definir o que é justo e injusto. Justo é o que está permitido em lei, e injusto o que está proibido.No passado esta concepção tinha um fundamento, que era o de acreditar que jamais o governanteusaria do poder para prejudicar o bem comum. Modernamente, não se admite isso depois que ofascismo mostrou o que é possível fazer em uma sociedade usando o poder legislativo de formailegítima.Os recentes acontecimentos desencadeados na Argentina, contudo, tem se tornado exemplo naconcretização de uma justiça plena. Porque no país vizinho foi desencadeado um processo,aparentemente irreversível, de confronto com o passado autoritário? Porque lá a justiça de transição temse tornado cada vez mais presente e eficaz?Primeiramente, importante compreender que a noção de justiça de transição abrange o conjuntode processos e mecanismos associados às tentativas de uma sociedade em chegar a um acordo quantoao legado de abusos cometidos no passado, a fim de assegurar que os responsáveis prestem contas deseus atos, que seja feita a justiça e se conquiste a reconciliação. Tais mecanismos, que podem serjudiciais ou extrajudiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou nenhum), abarcam ojuízo de processos individuais, reparações, busca da verdade, reforma institucional, ou a combinação detodos esses procedimentos. 2 Com base neste conceito, e conforme veremos neste breve artigo,podemos afirmar que a Argentina tem obtido sucesso nesta busca por justiça nos últimos anos.Para compreendermos o longo caminho percorrido e o atual estágio em que se encontra o paísplatino no que diz respeito aos julgamentos por crimes de lesa humanidade cometidos durante a últimaditadura civil-militar, será necessário compreender, primeiramente, o significado de crimes contra ahumanidade. 3A experiência nazista impulsionou o surgimento da figura dos crimes contra a humanidade nocenário internacional, quando foi constatada a possibilidade de que o Estado poderia voltar-se contraseus próprios cidadãos. Sua primeira conceituação legal está no Acordo de Londres, de 1945, queinstituiu o Tribunal de Nuremberg. Ao contrário dos crimes de guerra convencionais, os crimes de lesahumanidade pressupõem um absoluto desequilíbrio – a ausência total de reciprocidade, a negação davítima como pessoa, sua anulação completa seja pela tortura, seja pela sua inclusão em um campo deconcentração.123Mestranda em História Universidade Federal do Rio Grande do Sul Email: patydcm@hotmail.comEndereço: Rua Tomaz Flores 60/31, POA/RS Telefone: (51) 99628889NAÇÕES UNIDAS – Conselho de Segurança. O Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades emconflito ou pós-conflito. Relatório do Secretario Geral S/2004/616. In: Revista Anistia Política e Justiça deTransição, Brasília, 2009, n.1. p.320-351.Para fins deste artigo, crimes contra a humanidade e delitos de lesa humanidade serão utilizados comosinônimos.301


Trinta anos após o fim da segunda guerra, as sociedades latino-americanas experimentariam opeso da violência sistemática cometida em nome, não mais da pureza genética ou da conquista doespaço vital, mas da segurança nacional. A ditadura argentina é comumente apontada como a mais ferozdas ditaduras de segurança nacional latino-americanas. De fato, o regime do país vizinho dispensouqualquer tipo de estratégia legal, engajando-se, entre os anos de 1976 a 1983, em uma guerra total eimplacável contra os supostos agentes da subversão.Esta realidade avassaladora afetou –e ainda afeta- profundamente os argentinos. Odesaparecimento assegurou não somente o assassinato físico e simbólico de pessoas desvinculadas dequalquer militância, opositores políticos e integrantes de grupos guerrilheiros, como também foi um fatordeterminante para a intimidação e a submissão de setores da sociedade, atingidos direta ouindiretamente pela multiplicação de seus efeitos.Para ilustrar a dimensão do ocorrido no país platino, de acordo com dados do relatório NuncaMás, 62% das vítimas de desaparecimentos foram retiradas de suas próprias casas. Outras 24,6% foramsequestradas na rua, e apenas 7% e 6%, respectivamente, foram detidas no trabalho ou na escola.Apenas 0,4% dos desaparecidos estavam legalmente detidos em estabelecimentos militares, penais oupoliciais, sugerindo que esse reconhecimento legal conferia proteção aos presos e que, de modoinverso, os sequestros clandestinos acobertavam as execuções praticadas pelas autoridades. 4As feridas decorrentes dessa política sistemática de eliminação, tão presentes na sociedadeargentina atual, somada às intensas lutas protagonizadas por diversos atores sociais (organizações defamiliares de mortos e desaparecidos, sobreviventes, instituições defensoras de direitos humanos), alçoua Argentina como exemplo mundial no que diz respeito à concretização da justiça frente a impunidade deum regime autoritário. A revogação das chamadas leis de impunidade (Lei do Ponto Final e Lei daObediência Devida), em 2003, a mudança de paradigma da jurisprudência argentina e as decisõesemanadas pela Corte Interamericana de Justiça da OEA resultaram em uma drástica alteração no rumoda luta ao direito à verdade, à memória e à justiça naquela nação.Feitas estas observações iniciais, o presente artigo pretende analisar brevemente o contexto quepossibilitou a retomada dos julgamentos criminais por violações aos direitos humanos ocorridos naditadura civil-militar 5 argentina de 1976-1983.1. A ditadura civil-militar argentina e o terrorismo de estado: sínteseEm 24 de março de 1976, um golpe militar derrubou o governo civil de María Estela Martínez dePerón e instaurou o regime autoritário mais repressivo da história argentina. Como conseqüência dogolpe de Estado, a Junta Militar se transformou na principal entidade política de Estado e tomou para siuma ampla gama de faculdades governamentais que a Constituição atribuía aos Poderes Executivo eLegislativo. Esse regime compartilhava algo em comum com as outras ditaduras instauradas na região:se sustentava na Doutrina de Segurança Nacional que, sinteticamente, pregava que o inimigo estavadentro do país e que deveria ser procurado entre o povo. Para defender o estado de segurança,justificava-se a violação aos direitos humanos e constitucionais.O golpe de Estado substituiu o governo representativo pela ditadura militar, o que implicava, porconseqüência, no desaparecimento do Legislativo. A partir disso, as leis não emanariam dos legisladoreseleitos democraticamente, mas sim do poder militar com a assistência de civis, selecionados entre oselementos mais conservadores e reacionários que davam o necessário suporte social ao novo regime.Entre 1976 e 1983, quatro juntas militares governaram a Argentina. Ainda que se tratasse de ummandato conjunto, o representante do Exército era considerado o Presidente da Nação durante ogoverno de cada junta. Cinco foram os presidentes de fato.Para compreender os acontecimentos deste contexto histórico, é de suma importância entendero conceito de Terrorismo de Estado, que é a idéia de que o Estado pode, em períodos extraordinários,governar mediante a intimidação, utilizando-se, para tanto, do monopólio da violência. Nesse sentido,explica Enrique Padrós queo Terrorismo de Estado (TDE) configura-se como modalidade essencialmente distinta doterrorismo individual ou de grupos extremados não-estatais. Enquanto este éresponsabilidade de indivíduos que utilizam a violência de forma indiscriminada paraatingir e desestabilizar o Estado e a sociedade, o TDE se fundamenta na lógica degovernar mediante a intimidação. Em suma, é um sistema de governo que emprega oterror para enquadrar a sociedade que conta com o respaldo dos setores dominantes,45PEREIRA, Anthony. W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, Chile e Argentina.São Paulo: Paz e Terra, 2010. p.202-203.Para fins deste trabalho, consideramos a nomenclatura “ditadura civil-militar”. Contudo, utilizaremos sinônimoscomo “regime militar”, “ditadura argentina” e “regime autoritário”, para fins semânticos.302


mostrando a vinculação intrínseca entre Estado, governo e aparelho repressivo. 6Durante o denominado Processo de Reorganização Nacional (ou simplesmente Proceso), osmilitares argentinos definiram o conceito de subversão de maneira propositadamente ampla: todo aqueleque não estivesse aliado com as pautas dos golpistas era subversivo, o que incluía, obviamente, grandeparte da população.Segundo Ricardo Lorenzetti e Alfredo Kraut 7, dentro do marco ideológico do golpe de Estado, oconceito de nacionalidade excluía qualquer forma de heterogeneidade possível. Esta busca dehomogeneidade da sociedade marginalizava as minorias, tomando em conta, por exemplo, suas raízes,sua orientação sexual e sua identidade de gênero, ou suas crenças religiosas além, é claro, de suaideologia.O plano de extermínio e perseguição era sistemático. Se, por um lado, seqüestros, torturas eassassinatos por razões políticas foram cometidos por outras ditaduras militares da América Latina e doresto do mundo, nem todas produziram um dispositivo como o desaparecimento de pessoas e asupressão das provas dos crimes, como fez a Argentina.Para conseguir esses propósitos, os militares estabeleceram uma rede de centros de detençãoclandestinos. Nesses campos de concentração, as pessoas desaparecidas eram submetidas ainterrogatórios mediante tortura feroz, que em muitos casos levava a morte das pessoas. De acordocom Lorenzetti e Kraut 8 , se dividiu o país em 50 zonas, 19 subzonas e 117 áreas. Em uma das zonas, ocomandante regional tinha plena autonomia sobre as coerções clandestinas. Ao mesmo tempo, dentrode cada zona militar, oficiais de médio escalão e agentes de segurança intervinham nos seqüestros dossupostos subversivos.Eram freqüentes os fuzilamentos em simulações de enfrentamentos. Ainda nos anos 1974 e1975, foram realizadas numerosas detenções, principalmente de militantes de organizações políticas quehaviam sido declaradas ilegais por parte do governo de “Isabel” Perón. Muitos dos que estavam detidosforam colocados em cárceres comuns e ficaram a disposição da justiça, pois eram presos legais.Contudo, logo após o golpe, foram transferidos para prisões “especiais”, despojados de todos os direitosconstitucionais. Como essas detenções eram “legais”, existiam registros delas, o que levou aorganização repressora a implementar, em muitos casos, a chamada “lei de fuga”. Desta maneira, osdetidos eram transladados de uma unidade penitenciária para outra, e eram fuzilados no caminho, sob opretexto de tentativa de fuga.Segundo pesquisa desenvolvida por Anthony Pereira, a judicialização da repressãodesempenhou papel importantíssimo para compreender os regimes autoritários instaurados no Conesul.Segundo este autor, as diferentes características dos sistemas legais são moldadas, em parte, pelahistória de cooperação e do antagonismo existente entre duas organizações estatais: alto oficialato dasForças Armadas e poder judiciário. 9 Quanto maior a cooperação entre estes setores, maior o grau deinterferência do judiciário nas atividades repressivas.Ao contrário do Brasil, que manteve a maior parte do aparato judicial de tempos de paz durante oregime militar e o utilizou para processar dissidentes políticos, na Argentina a opção foi pela “guerrasuja”. Como bem demonstra Pereira, a matriz institucional argentina foi a mais drástica de todas asditaduras da região. Lá, grande parte dos tribunais não se envolvia no regime repressivo exceto paranegar pedidos de habeas corpus e para servir como camuflagem do terror estatal.Segundo Pereira 10 , o papel político dos militares argentinos era muito mais conservador do queem outros países. Isso ocorreria devido a fatores estruturais próprios daquela sociedade, como apolarização profunda entre um movimento de trabalhadores industriais forte e altamente militante e umaclasse dominante rica e intransigente, dominada por interesses agrários e financeiros. Nesses confrontosideológicos, o uso da força direta dos militares quase sempre acabava por prevalecer e a cooperaçãoentre civis e militares era muito menor quando comparados com outros países, como o Brasil.A Argentina, portanto, representa um caminho extremo, radical e extrajudicial. A violência políticaargentina nasceu numa sociedade polarizada entre os partidários e os opositores do ex-presidente JuanDomingo Perón, e cresceu de modo gradual, após o golpe militar de 1955, que o depôs. Uma esquerdaarmada surgiu no país em inícios da década de 1960, e o golpe de 1966 levou ao poder um novo regimemilitar. Em fins da década de 1960, as ações armadas dirigidas contra pessoal militar por forças de678910PADRÓS, Enrique Serra. Como El Uruguay no hay...Terror de Estado e Segurança Nacional Uruguai (1965-1985): do Pachecato à ditadura civil-militar. Porto Alegre: UFRGS, 2005. Tese (Doutorado em História) –Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal doRio Grande do Sul, Porto Alegre 2005. p.64.LORENZETTI, Ricardo Luis; KRAUT, Alfredo Jorge. Derechos Humanos: justicia e reparación. La experiência delos juicios en la Argentina. Crimines de Lesa Humanidad. 2ª ed. Buenos Aires: Sudamericana, 2011. p.80.LORENZETTI, Ricardo Luis; KRAUT, Alfredo Jorge Op.cit, p.81.PEREIRA, Anthony.Op.cit.p.26.Ibid. p.100.303


guerrilha, como os Montoneros, converteram-se numa preocupação central do governo. 11Quando o regime militar deixou o poder em 1973, permitindo a restauração de um governoperonista, a repressão intensificou-se. Durante a presidência de Isabel Perón, o grupo paramilitar Triplo A(Alianza Anticomunista Argentina) deslanchou uma guerra suja contra a esquerda armada. A ofensivaacabou tomando maiores proporções, até se transformar numa grande operação militar comandada peloExército na província de Tucumán, em 1975. Como bem afirma Pereira, diferentemente de Brasil e Chile,na Argentina, a repressão começou antes, e não depois do estabelecimento do regime militar. 12Em 1983, o governo de fato seu viu obrigado a convocar eleições livres, celebradas em outubrodaquele ano, decisão tomada frente a um acúmulo de motivos, como o crescente número de história deviolações aos direitos humanos que apareciam em organismos internacionais, e o desfecho desastrosoda Guerra das Malvinas. Nestas eleições, resultou vencedor o candidato da União Cívica Radical, RaúlRicardo Alfonsín, que tomou posse em dezembro do mesmo ano. O novo presidente defendia ainvestigação e julgamento de chefes militares pelos crimes cometidos, mas pregava que fossemexcluídos os delitos cometidos por subalternos, que teoricamente cumpririam seu dever legal deobediência. Entre suas primeiras decisões – que irão ter papel fundamental no contexto atual do país noque diz respeito aos julgamentos – ratificou as principais convenções internacionais de direitos humanose suprimiu a jurisdição militar por delitos cometidos por membros das Forças Armadas em relação a atosde serviço. 132. O retorno democrático, as leis de impunidade e os indultos presidenciais.Poucos dias após tomar posse, Alfonsín emitiu um decreto pelo qual ordenava a detenção e ojulgamento do Conselho Supremo das Forças Armadas. Antes disso, contudo, foi necessário declararnula a lei de autoanistia aprovada pelo governo militar, decisão que posteriormente foi ratificada pelaSuprema Corte argentina. 14O julgamento das Juntas Militares iniciou em 22 de abril de 1985 e durou 8 meses. Foramprocessados os comandantes das três armas (Exército, Marinha e Aeronáutica) que haviam integrado ogoverno de fato. Em 9 de dezembro de 1985, a Câmara Federal da Capital promulgou a sentençadefinitiva. O tribunal se pronunciou sobre 700 casos emblemáticos de desaparecidos, previamenteselecionados pelos fiscais de acordo com as provas. Dos nove comandantes julgados, cinco foramcondenados por privação de liberdade qualificada por violência e ameaça. Esta sentença, que continhamais de 1000 páginas, não tinha precedentes na América Latina e colocou a Argentina no centro dasatenções da imprensa e da comunidade internacional. 15Contudo, um setor importante dos militares se opunha aos julgamentos. Sob pressão, em 1987 ogoverno apresentou um projeto de lei ao Congresso conhecido como “Lei do Ponto Final”, que foiaprovado pela Lei nº. 23.492 e que fixou um prazo de 60 dias para apresentação de novas denúncias pordelitos cometidos durante a ditadura militar. Alguns meses mais tarde, o Congresso aprovou a “Lei deObediência Devida”, buscando acabar com as revoltas existentes – e cada vez mais numerosas – dentrodas Forças Armadas. Esta lei estabeleceu uma presunção absoluta no sentido de que oficiais de médio ebaixo escalão haviam atuado seguindo ordens e, em conseqüência disso, não poderiam ser punidos.Meses depois, a Suprema Corte argentina afastaria a inconstitucionalidade dessas leis, que semantiveram vigentes até 2003. 16Nos anos de 1989 e 1990, o então presidente Carlos Menem emitiu um total de dez decretosconcedendo indultos a militares e civis que haviam sido condenados ou que estavam sendo julgados porfeitos ocorridos durante a ditadura. Assim, os oficiais excluídos da Lei de Obediência Devida e oscomandantes das Juntas condenados foram indultados.A Argentina, portanto, enfrentou um caminho tortuoso desde o final da ditadura civil-militar. Aomesmo tempo em que se fizeram avanços importantes, como os julgamentos das Juntas e o informe daConadep (o Nunca Mais Argentino), existiram retrocessos e limites, como as leis acima citadas e osindultos.Contudo, algo curioso ocorreu no país vizinho: nenhuma das chamadas leis de impunidadeincluíram os delitos de subtração e ocultação de menores. Isso porque, a época dos julgamentos dasJuntas, apenas dois casos de apropriação de crianças e supressão de suas identidades haviam sidoregistrados. A ideia de que se tratava de uma prática sistemática exercida pelo Estado não existia, o quepermitiu que casos de subtração de menores pudessem ser investigados criminalmente. Segundo dadosfornecidos pelas Abuelas de Plaza de Mayo, mais de 500 crianças foram seqüestradas junto com seus111213141516PEREIRA. Op.cit.,p.61.Idem p.62.LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo.Op.cit. p.84.Idem.p.86.LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo.Op.cit. p.90.LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo.Op.cit. p.97304


pais ou nasceram em cativeiro.Durante a década de 90 e inicio dos anos 2000, a maioria dos casos que chegaram aos tribunaisversavam sobre essa matéria. Simultaneamente com o processo de ex-militares pro subtração, ocultaçãoe substituição da identidade civil de menores, o Estado começou a compilar informações sobre bebêsnascidos em centros clandestinos de detenção que foram apropriados ou dados a adoção ao pessoaldas Forças Armadas ou seus conhecidos. Em 1992, Menem criou a Comissão Nacional pelo Direito aIdentidade (CONADI). 17Entretanto, o retorno dessas crianças a sua famílias biológicas está cercada de váriosproblemas. Alguns dessas crianças (hoje adultos) não querem expor a família que os adotou e por isso,não procuram informações e muitos se negam a realizar os exames, mesmo quando há evidências deseu seqüestro. O conflito entre o direito individual a intimidade e o direito coletivo a verdade gerou – eainda gera – muita discussão. Há em trâmite no Congresso Argentino um projeto de lei que visapossibilitar a extração compulsiva de material genético de pessoas sobre as quais existam dúvidasconvincentes de que se trata de filho de desaparecido. 18 No entanto, as implicações dessa questãofogem ao recorte deste artigo.De acordo com Guillermo Yacobucci 19 , a reforma constitucional de 1994, denominada “Pacto deOlivos”, culminou com uma mudança constitucional no que concerne aos instrumentos internacionais dedireitos humanos firmados pela República Argentina. O artigo 75, inciso II da nova Carta Magna,incorporou, entre outros, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose) e elevou ostratados internacionais de direitos humanos a categoria de norma constitucional. Isso significou umamudança de paradigma quanto à compreensão da ordem jurídica argentina e impulsionou umatransformação de sua cultura legal, pois colocou as obrigações do Estado argentino frente à gravesviolações de direitos humanos em primeiro plano, abrindo o caminho para a revisão das leis de anistia eindultos.3. A retomada dos processos envolvendo crimes de lesa humanidadeA discussão jurídica que permitiu a mudança radical no entendimento da Suprema CorteArgentina frente à questão dos crimes cometidos pelo regime militar, baseia-se, em linhas gerais, em umconfronto entre normas de direito interno e internacional.. A existência da prescrição (instituto que visaregular a perda do direito de acionar judicialmente, devido ao decurso de determinado período detempo), da coisa julgada (que é a qualidade conferida a sentença judicial contra a qual não cabem maisrecursos, tornando-a imutável e indiscutível) e princípios como o da legalidade (não há crime sem leianterior que o defina), da presunção de inocência e da irretroatividade da lei (qualidade de não ser válidono passado, mas sim a partir de sua elaboração ou publicação) são os pilares de um Estado de Direitopois estabelecem que o Estado deve se submeter ao império da lei, afastando a insegurança egarantindo que a sociedade não está presa às vontades particulares daquele que governa.Os fundamentos jurídicos para a reabertura dos processos penais, impossibilitados de seremlevados adiante em razão das leis e indultos citados, implicam a superação de um marco de legalidadeformal. Essa legalidade, como visto acima, se expressa no princípio que dita que não há crime sem leianterior que o defina nem pena sem previsão legal. Dentro dessa lógica, os crimes cometidos antes daratificação dos tratados internacionais que versam sobre imprescritibilidade de crimes de lesahumanidade (dentre eles o assassinato, o genocídio, a tortura e o desaparecimento forçado), nãopoderiam ser levados a julgamento pela inexistência legal e legitima de previsão desses crimes à épocade seu cometimento.De acordo com Lorenzetti e Kraut 20 , contudo, não haveria uma violação ao princípio dalegalidade na medida em que os crimes de lesa humanidade sempre estiveram previstos peloordenamento jurídico argentino, mesmo antes da reforma constitucional de 1994 e das ratificações dostratados de direitos humanos, ocorridas no governo Alfonsín. Como bem aponta o jurista argentino:Las garantias e los derechos constitucionales – verdaderas trabas a la persecuciónpenal por parte del Estado – con los que cuenta cualquier persona (derechos delimputado), son conquistas del Estado de Derecho logradas trabajosamente a traves deltiempo. Sin embargo, cuando se trata de crimines perpetrados por agencias estatales17181920Ibid. p.105.Disponível no link http://www1.hcdn.gov.ar/proyxml/expediente.asp?fundamentos=si&numexp=2730-D-2007.Visualizado em 12.07.2012.YACOBUCCI, Guillermo. J. El juzgamiento de las graves violaciones de los derechos humanos en la Argentina.In: Crimes da ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de direitoshumanos: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. GOMES, Luis Flavio e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira(organizadores). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p.28.LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo. Op.cit. p.42305


por fuera del próprio aparato – delitos cometidos contra la humanidad – la respuesta queproporciona el diseno constitucional penal tradicional empieza a tornar-se imprecisa o, almenos, dudosa. Em efecto, en estos casos se plantearon diversos problemasprocesales y doctrinales: la prescripción de la acción penal, el principio de legalidad, lavalidez constitucional de las llamadas leyes de impunidad y los indultos dictados porCarlos Saul Menem, la cosa juzgada, entre otros. 21Nesse sentido, a jurisprudência da Suprema Corte argentina formulada entre 2000 e 2004 marcauma evolução cujos fundamentos tem permitido aos tribunais inferiores investigar, instruir eeventualmente sancionar graves violações dos direitos humanos. A mudança contextual iniciou-se em2003, quando se outorgou hierarquia constitucional a adesão à Convenção sobre Imprescritibilidade doscrimes de guerra e dos crimes de lesa humanidade, aprovada pela Lei nº. 24.584 de 1995.Conjuntamente, no mesmo ano o Congresso revogou as leis de Obediência Devida e de Ponto Final (Leinº. 25.779, promulgada em 2 de setembro de 2003).Importantíssima, também, a evolução da jurisprudência da Corte Interamericana sobre DireitosHumanos (OEA), que especificava o dever dos Estados de investigar, sancionar os responsáveis ereparar as vitimas pelo dano causado por feitos aberrantes cometidos durante as décadas de 60/70.Com base nessas modificações, a Suprema Corte entendeu que era possível encarar os processos einvestigações acerca dos delitos de lesa humanidade cometidos.Três decisões são encaradas como emblemáticas e serviram de suporte a todas as modificaçõessociais e jurídicas que a Argentina presenciou e ainda presencia. O caso “Arancibia Clavel”, o caso“Simón” e o caso “Mazzeo”.No primeiro caso, o tribunal supremo decidiu acerca da aplicação do princípio daimprescritibilidade dos delitos de lesa humanidade, não importando a data do cometimento dos crimes.Entre março de 1974 e novembro de 1978, o réu Arancibia Clavel integrou uma associação ilícita chilenaconhecida como DINA, cuja atividade consistia na perseguição de opositores políticos do regime dePinochet que se encontravam na Argentina. Ele foi acusado, dentre outros crimes, de participar noatentado a bomba que provocou a morte do General chileno Carlos Prats e sua esposa Sofia Cuthbert,em Buenos Aires no ano de 1974. Foi condenado à prisão perpétua. O acórdão (decisão judicial tomadapelos tribunais) estabeleceu que a conduta imputada era um crime de lesa humanidade e, porconseqüência, imprescritível, o que não violaria o principio da legalidade formal frente a adesão aConvenção sobre Imprescritibilidade dos crimes de guerra e de lesa humanidade.No segundo caso, a Corte enfrentou o problema da inconstitucionalidade das leis de Ponto Finale de Obediência Devida. Em 1978, o cidadão chileno Jose Poblete e sua esposa argentina GertrudisMarta Hlaczik formavam parte do grupo “Cristianos por la Liberación”. Foram seqüestrados pelo Exercitoargentino e conduzidos ao centro clandestino “El Olimpo”. Foram torturados e a filha deles, de apenasoito meses, foi subtraída dos pais. Entre aqueles que participaram do seqüestro, estavam Julian Simón eJuan Antonio del Cerro, que utilizaram como defesa as Leis de Ponto Final e Obediência Devida. Nesteprecedente, a Corte fixou que as leis – revogadas e anuladas – não poderiam ser aplicadas em virtudedo caso em pauta configurar delitos de lesa humanidade. Esta foi a grande importância desta decisão:por maioria, a Suprema Corte declarou a validade constitucional de Lei nº. 25.779 – que anulou as Leisde Ponto Final e Obediência Devida – e declarou sem efeito qualquer ato fundado nelas que pudessemobstar o avanço dos processos e julgamentos de responsáveis por crimes de lesa humanidade. 22No terceiro caso, a Corte se pronunciou sobre a inconstitucionalidade dos indultos, concluindoque nenhum tipo de perdão pode opor-se e deixar sem efeito a persecução penal e a condenação decrimes de lesa humanidade. Em 2004, a Liga Argentina pelos Direitos Humanos ingressou com ação deinconstitucionalidade, buscando a anulação do indulto concedido, em 1989, a Santiago Omar Riveros,que era investigado por participação, junto com outros agentes das Forças Armadas, em diversoshomicídios, privações ilegais de liberdade, torturas, lesões e violações de domicilio. Por maioria, aSuprema Corte declarou inconstitucional os indultos, por entender que este ato de governo resultava narenuncia a verdade, à investigação, a comprovação de feitos, a identificação de autores e adesarticulação dos meios e recursos eficazes para evitar a impunidade, violando, assim, não só aConstituição nacional mas a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional deDireitos Civis e Políticos 23 .Muitos dos delitos ocorridos a partir do golpe de 1976, com seu saldo de desaparecimentosforçados, detenções arbitrárias em centros clandestinos de detenção, mortes, apropriação de crianças ebebês e milhares de exilados, dentre outros crimes, foram e seguem sendo julgados na atualidade. Estapolítica de julgamentos reconhece uma forte pressão social e uma luta incansável dos organismos dedireitos humanos e de muitos atores sociais, em busca da verdade, justiça e reparação. Nesse contexto,212223LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo. Op.cit p.130.Ibid.p.147-148.Ibid. p.160-161.306


as decisões da Suprema Corte possibilitaram as condições para que se levassem adiante asinvestigações jurisdicionais. 24Segundo Lorenzetti e Kraut 25 , a Suprema Corte criou uma unidade especial para coordenar asmedidas necessárias para levar a cabo os ajuizamentos de todos os casos de supostas violações aosdireitos humanos causadas pelo Terrorismo de Estado. Criada em 2007, a “Unidade de Assistência eSeguimento das causas penais nas quais se investiga o desaparecimento forçado de pessoas ocorridoantes de 10 de dezembro de 1983”, a fim de ajudar os tribunais federais que atualmente levam adianteos julgamentos.Muitos julgamentos estão ocorrendo nas jurisdições federais argentinas. Alguns já foramfinalizados e muitos responsáveis foram condenados. Devido a grande quantidade de delitos ocorridosnos diversos centros de detenção clandestinas existentes naquele período, muitos processos reúnemdiversos réus e vítimas, como o caso da ESMA (Escuela de Mecánica de la Armada), que reúne mais de5000 vítimas e, ao menos, 1000 autores, e o caso “Plán Condor”, no qual se investiga casos dedesaparecimentos e mortes oriundos da operação coordenada entra as Forças Armadas da Argentina,Brasil, Bolívia, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai. 26De acordo com dados da Unidade Fiscal de Coordenação e Seguimento de causas porviolações aos direitos humanos, da Procuradoria-geral da Nação, até o momento, 273 pessoas foramcondenadas por delitos de lesa humanidade cometidos durante o terrorismo de estado; 875 pessoasestão sendo processadas; 15 julgamentos (orais e escritos) estão em andamento; 7 novos julgamentosorais já tem data para iniciar. 27 Números expressivos que demonstram a irreversibilidade deste processoem busca de uma justiça contra os arbítrios cometidos pelo terrorismo de estado argentino.Considerações FinaisComo se pode ver, a Argentina é o país que mais avançou na América Latina na tarefa dejulgamento dos crimes cometidos durante o período ditatorial que assolou o continente. Nesta busca pelaverdade, pela reconstrução da memória e pela construção da justiça, nossos vizinhos inovaram – eseguem inovando – em matéria de direito civil, penal e constitucional. Pactos e tratados internacionais dedireitos humanos, subscritos e ratificados pelo país, foram incorporados à Constituição, possibilitandosua utilização para superar os obstáculos jurídicos internos, que proibiam a responsabilização dosvioladores de direitos humanos.Além disso, segundo entrevista concedida pelo deputado nacional Remo Carlotto à revista CartaMaior, na Argentina, tem-se discutido a responsabilização de civis e grupos empresariais queparticiparam ativamente do golpe e da repressão, como verificamos no trecho abaixo:A empresa Ford que manteve, em sua fábrica situada nos arredores de Buenos Aires,um centro clandestino de detenção, onde os delegados sindicais dessa fábrica foramtorturados. O mesmo ocorreu com a empresa Mercedes Benz e com a principalempresa açucareira argentina, Ledesma, que utilizou a estrutura da empresa para oseqüestro de mais de 300 pessoas. Há processos judiciais em curso onderepresentantes dessas empresas estão diretamente envolvidos. O diário maisimportante da Argentina, o Clarín, adquiriu, junto com outro jornal importante, La Nacion,a empresa Papel Prensa, a partir do seqüestro e da tortura dos proprietários dessaempresa que produz papel para jornais. 28Os processos de conhecimento da verdade, de construção da memória e da justiça sãoprocessos inexoráveis para qualquer sociedade com um passado autoritário. Os instrumentosinternacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana deDireitos Humanos tem um papel de suma importância nesse sentido, pois suas recomendações não sãoapenas morais ou políticas, ao contrário do que muitos afirmam. Ao subscrever e ratificar um tratadointernacional, o Estado assume uma responsabilidade perante esses organismos. Essa consciência, queinfelizmente não existe no Brasil, é uma das responsáveis por reverter o processo de impunidade nomarco estrito da justiça.A importância destes processos não reside somente na penalização dos responsáveis, mastambém em seu legado para o futuro. A garantia de que não haverá lei nem perdão para aqueles quecometem atos de perseguição política e que, mais cedo ou mais tarde, aqueles que cometem crimes2425262728LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo.Op.cit. p.169.Ibid. p.241.Ibid. p.297.Disponível em http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/subnotas/190350-58358-2012-03-24.html. Visualizadoem 12.07.2012.Disponível no link: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19916. Visualizadoem 12.07.2012.307


horrendos serão levados a justiça, constitui um forte incentivo institucional que ajuda a prevenir oterrorismo de estado. Como bem aponta Ricardo Lorenzetti:Aunque el olvido sea imposible, debemos ejercitar la memória, reactivar el pasado,perseverar em la búsqueda de justicia y reparación. Sin memória y justicia no haypresente, no hay futuro. 29A esperança, para o restante da América Latina reside no fato de que o primeiro passo é a buscapela verdade. Havendo a preocupação em não esquecer, procurando compreender os fatos ocorridos nopassado e não deixando a memória se esvair, pode-se continuar lutando em busca da justiça.Referências Bibliográficas:BAUER, Caroline Silveira. Um estudo comparativo das práticas de desaparecimento nas ditaduras civilmilitaresargentina e brasileira e a elaboração de políticas de memória em ambos os países. PortoAlegre: UFRGS, 2011. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.LORENZETTI, Ricardo Luis; KRAUT, Alfredo Jorge. Derechos Humanos: justicia e reparación. Laexperiencia de los juicios en la Argentina: Crímenes de Lesa Humanidad. 2ª ed. Buenos Aires:Sudamericana, 2011.NAÇÕES UNIDAS – Conselho de Segurança. O Estado de Direito e a justiça de transição emsociedades em conflito ou pós-conflito. Relatório do Secretario Geral S/2004/616. In: Revista AnistiaPolítica e Justiça de Transição, Brasília, 2009, n.1.PADRÓS, Enrique Serra. Como El Uruguay no hay...Terror de Estado e Segurança Nacional Uruguai(1965-1985): do Pachecato à ditadura civil-militar. Porto Alegre: UFRGS, 2005. Tese (Doutorado emHistória) – Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre 2005.PEREIRA, Anthony. W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, Chile eArgentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010.YACOBUCCI, Guillermo. J. El juzgamiento de las graves violaciones de los derechos humanos en laArgentina. In: Crimes da ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da CorteInteramericana de direitos humanos: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. GOMES, Luis Flavio eMAZZUOLI, Valerio de Oliveira (organizadores). Crimes da ditadura militar: uma análise à luz dajurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2011.29LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo.op.cit.p.307.308


A Comissão Nacional da Verdade e a Ausência de Função JurisdicionalGabriela Goergen de Oliveira 1Resumo: foi instaurada no brasil, em maio de 2012, a comissão nacional da verdade, responsável pelaapuração das violações aos direitos humanos praticadas por agentes públicos ou pessoas a seu serviçodurante o período de 18 de setembro de 1946 até 05 de outubro de 1988, tendo como foco central dostrabalhos o período que corresponde ao regime militar (1964-1985). A maior polêmica em torno da CNVé o fato de que não irá punir, ao final dos trabalhos, qualquer investigado. O presente artigo analisará afigura de uma comissão da verdade e a característica de não possuir função jurisdicional. O objetivo é oesclarecimento de que independentemente de não ter função judicial, os trabalhos de uma comissão daverdade podem contribuir, mesmo que de forma indireta, porém significativamente, na responsabilizaçãocriminal dos investigados.Palavras-chave: Direitos Humanos – Justiça de Transição – ditadura militar – comissão da verdade –justiça.Abstract: it was instaured in brazil, in may 2012, the national comission of truth (comissão nacional daverdade), responsible for the calculation of human rights practiced by public agents or people working forit during the period of september 18, 1946 until october 5, 1988, having as main focus of the works thecorresponding period of the military regime (1964-1985). The major controversy among CNV is the factthat it will not punish, in the end of the works, the ones investigated. The main purpose is to clarify that,independently of not having a judiciary function, the works of a truth comission can contribute, evenindirectly, but meaningfully, in the criminal responsability of the investigated.Keywords: human right – transiction justice – military dictatorship – truth comission, justice – criminalresponsability.IntroduçãoVinte e oito anos após o fim de um regime civil-militar está em funcionamento, no Brasil, umaComissão da Verdade. A Comissão Nacional da Verdade, instalada em maio de 2012, surgiu em meio aum complicado cenário.O processo de transição no Brasil é ambíguo e segue em andamento desde o final do regimemilitar. Em comparação a América Latina, por exemplo, ao mesmo tempo em que está atrasado emalguns aspectos, encontra-se adiantado em outros. Dessa forma, no âmbito da verdade e memória,assim como da reparação (material e simbólica), o Brasil já realizou consideráveis avanços. No entanto,no que se refere à punições das violações aos direitos humanos ocorridas no decorrer do regime militar,o Brasil pouco – ou nada – evoluiu. Os vizinhos latino-americanos que também enfrentaram regimes deexceção durante o século XX, principalmente em relação a seus vizinhos latino-americanos, que,reconhecendo e respeitando o direito internacional, já implementaram e seguem a tomar medidas nosentido dos crimes cometidos não restarem impunes.Existe, por fim, porém não menos importante, o desconhecimento a respeito da figura da“comissão da verdade”, assim como do tema “Justiça de Transição”. A falta de conhecimento sobre otema pode gerar equívocos que, já enraizados na opinião pública, dificilmente podem ser revertidos.No Brasil, tudo que é público já nasce desacreditado, e não foi diferente com a CNV – criadapelo Estado, mais especificamente pela Casa Civil. A opinião pública já sentenciou que a ComissãoNacional da Verdade “já nasceu derrotada”, sob o argumento de que os militares responsáveis pormortes, desaparecimentos, torturas e demais crimes não serão julgados, condenados e presos. Como severá no decorrer do presente estudo, a Comissão Nacional da Verdade não tem poder punitivo. Não setrata de uma característica da Comissão brasileira, mas sim das mais de quarenta Comissões daVerdade já instaladas em todo o mundo.Dessa forma, o presente artigo pretende analisar a figura de uma comissão da verdade e acaracterística de não possuir função jurisdicional, para então esclarecer que, independentemente de nãoter função judicial, os trabalhos de uma comissão da verdade podem contribuir, mesmo que de forma1Acadêmica do curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.Contato: gabrielagoergen@hotmail.com309


indireta, na responsabilização criminal dos investigados.1. Comissões da VerdadeAs comissões da verdade correspondem a um dos diversos mecanismos que compõem aJustiça de Transição 2 , normalmente aplicadas em países emergentes de regimes autoritários ou deguerras civis.O principal objetivo dessas comissões é descobrir, esclarecer e reconhecer os abusos ocorridosno passado, dando voz às vítimas, e, quando isso não for possível pelo fato de estarem mortas oudesaparecidas, através de seus familiares. Somente entrevistando livremente os que foram sujeitos aabusos e dando voz aos que permanecem em silêncio é que se poderá constituir a “história silenciada”do período. 3O direito de particulares de conhecer a verdade acerca da sorte que tiveram as pessoasdesaparecida ou de receber informações sobre outros abusos cometidos no passado foi confirmadopelos órgãos criados em virtude de tratados internacionais, tribunais regionais, internacionais enacionais. 4As comissões são órgãos temporários, e, analisando algumas das comissões já instaladas nomundo, os mandados que lhes são atribuídos para que possam desempenhar suas funções valem porum lapso de tempo que varia entre seis meses e três anos, sendo que a maioria atua por cerca de dois.Não existe um molde exato a partir do qual as medidas de Justiça de Transição, assim como ascomissões da verdade devam ser criadas e realizadas. O que existem são parâmetros, medidas quemais proporcionam resultados positivos, as quais são costumeiramente seguidas e aplicadas.2. Sobre o surgimento e a instalação da comissão nacional da verdadeNão se trata de uma questão recente.Em outubro de 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil ingressou no Supremo Tribunal Federalcom uma Arguição de Descumprimento de Princípio Fundamental, então chamada de ADPF n.º 153,questionando a interpretação da Lei da Anistia. Segundo a ADPF, em seu §1º do artigo 1º 5 , a Lei teriaanistiado os agentes públicos que promoveram torturas, desaparecimentos e outras violações aosdireitos humanos durante a ditadura militar. A OAB requereu ao STF uma interpretação da Lei conformea Constituição Federal, de modo a declarar-se que a Lei da Anistia não atinge os crimes comunspraticados por agentes da repressão. Nesta Ação Constitucional, a OAB afirma que o §1º não pode serrecepcionado pela Carta de 1988, pois esta, no inciso XLIII do artigo 5º, reputa o crime de tortura comoinsuscetível de anistia ou graça. A inicial ressalta, ainda, o fato da Lei ter sido votada durante a vigênciaplena do regime militar, em um Congresso amordaçado pelos militares e, inclusive, composto peloschamados “senadores biônicos”, e, ainda, ter sido sancionada por um presidente da república militar, nãoeleito pelo povo.Em 2009, quando o governo brasileiro publicou o Plano Nacional de Direitos Humanos 3 (oPNDH-3) 6 . O Eixo Orientador VI tratou o Direito à Memória e à Verdade, fez remissão ao período daditadura militar e evocou o dever por parte do Estado de resgatar a história do período de repressãopolítica visando a erradicação de políticas violentas, como a tortura, “ainda persistente no cotidianobrasileiro” (Secretaria, 2009, p. 170). Dessa forma, o PNDH-3 previu a criação de uma Comissão da23456O processo de transição após experiências autoritárias compõe-se de pelo menos quatro dimensõesfundamentais: (i) reparação, (ii) o fornecimento da verdade e construção da memória, (iii) a regularização dajustiça e reestabelecimento da igualdade perante à lei e (iv) a reforma das instituições perpetradoras dasviolações contra os direitos humanos. ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Justiça de transição e eficácia dalei de anistia no Brasil: alternativas para a verdade e justiça. In: Direitos Humanos – justiça, verdade ememória. ASSY, Bethania; MELO, Carolina de Campos; DORNELLES, João Ricardo; GÓMES, José Maria(coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.BRASIL. A Comissão da Verdade no Brasil: Por quê, o que é, o que temos de fazer? Org.: Núcleo dePreservação da Memória Política. São Paulo: 2012, p. 08.Nações Unidas: Gabinete do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.Instrumentos do Estado de Direito para sociedades que tenham saído de um conflito. Comissões daVerdade. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da Justiça – N. 5 (jan. / jun. 2011). –Brasília: Ministério da Justiça, 2012, p. 295.§1º do artigo 1º da Lei n.º 6.683/79: “Consideram-se conexos, para os efeitos desse artigo, os crimes dequalquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.”O PNDH é um programa plurianual do Governo Federal elaborado por setores da Sociedade Civil, movimentossociais e entidades de classe, que propõe diretrizes e metas a serem implementadas em políticas públicasvoltadas para a consolidação dos direitos humanos. O programa, em si, não é auto-executável. Para aspropostas ou temas de debate sugeridos pelo PNDH entrem em vigor é necessária a aprovação pelo CongressoNacional. O PNDH-1 e PNDH-2 foram publicados durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, e o último emais polêmico, o PNDH-3, no Governo Lula.310


Verdade com o objetivo de apurar os crimes e demais violações aos direitos humanos ocorridos noperíodo ditatorial. A polêmica estava lançada: militares ameaçaram pedir demissão, a ponto doPresidente Lula chegar a fazer modificações no Plano. Foi criado um Grupo de Trabalho formado porrepresentantes da Casa Civil, do Ministério da Justiça, do Ministério da Defesa, da Secretaria de DireitosHumanos e da Sociedade Civil, a fim de que fosse elaborado um projeto de Lei que instituísse umaComissão da Verdade.O julgamento da ADPF 153 ocorreu em 28 de abril de 2010, quando o Supremo Tribunal Federaljulgou improcedente a Ação, deliberando pela eficácia da Lei da Anistia àqueles que violaram os direitoshumanos durante o regime militar.Ainda em 2010, em novembro, após o julgamento da ADPF, o Brasil foi condenado pela CorteInteramericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund x Brasil (Caso Guerrilha do Araguaia), emação provocada pela resistente militância de familiares de mortos e desaparecidos na Guerrilha doAraguaia. O pedido foi a condenação do Estado brasileiro pela não abertura dos arquivos e pela nãorevelação do paradeiro dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia. A Corte declarou o Brasil culpadopela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, á vida, à integridade pessoal e àliberdade pessoal das pessoas indicadas na denúncia. Na Ação, ainda, foi solicitado à CIDH queordenasse o Brasil a criação de uma comissão da verdade. Na sentença, a Corte não condenouobjetivamente o País à criação de uma comissão. A CIDH considerou que a criação de uma comissão setrata de um mecanismo importante no sentido do Estado brasileiro cumprir a obrigação de garantir odireito da sociedade a conhecer a verdade sobre o ocorrido. Assim, o Tribunal valorou a iniciativa decriação de uma Comissão Nacional da Verdade e exortou o Brasil a implementá-la. Sobreresponsabilizações individuais dos crimes cometidos, a Corte foi clara:A Corte julga pertinente, no entanto, destacar que não substituem a obrigação doEstado de estabelecer a verdade e assegurar a determinação judicial deresponsabilidades individuais, através dos processos judiciais penais. 7O Projeto de Lei n.º 7.376/10 foi assinado pelo Presidente Lula e enviado ao CongressoNacional, que, através da Lei n.º 12.528/12, criou, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República,a Comissão Nacional da Verdade, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promovera reconciliação nacional. A Comissão foi instalada em 16 de maio de 2012 e terá prazo de dois anos paraapurar as violações aos direitos humanos praticadas por agentes públicos, pessoas a seu serviço, comapoio ou no interesse do Estado entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988.3. As comissões da verdade e a relação com a justiçaA Comissão Nacional da Verdade tem quatro finalidades principais: promover o direito àmemória; efetivar a verdade histórica, promover a reconciliação nacional e recomendar reformas noaparato institucional. A promoção do direito à memória e à verdade são típicas de uma comissão daverdade e integram o rol de medidas de justiça transicional. Relativamente ao modo de operação, emtermos gerais, as comissões possuem caráter consultivo, explicativo, que dispensa qualquer tipo deprocedimento legal ou julgamento.De acordo com a essência do papel de uma comissão da verdade, a Lei n.º 12.528/12 nãoatribuiu à Comissão brasileira tarefa jurisdicional ou persecutória, atividade que somente pode serrealizada por iniciativa do Ministério Público 8 . A Lei da Anistia, que até hoje foi o empecilho para apunição dos agentes do Estado que cometeram crimes durante o regime militar, é um “fato” que aComissão Nacional da Verdade não tem o poder de questionar. Da mesma forma, como já referido, afalta de poder jurisdicional não se trata de característica exclusiva da Comissão brasileira: nenhumacomissão da verdade instaurada no mundo até hoje teve, em seus mandatos, o poder de punir qualquerindivíduo.E é na relação entre verdade e justiça que se concentra a maior polêmica em torno da ComissãoNacional da Verdade: a falta de conhecimento no que se refere à Justiça de Transição e seusmecanismos (nos quais as comissões da verdade se incluem) e o fato da Comissão brasileira nãopossuir tarefa jurisdicional acabou por resultar no equívoco de que, “pelo fato de não ter poder depunição, ela não terá efetividade, sendo apenas de uma comissão de fachada”. Trata-se de um malentendidoque deve ser esclarecido o quanto antes, afinal não são poucos os que já sentenciaram a sua“derrota” justamente por não promover a responsabilização dos perpetradores de violações aos direitos78CORTEIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund y otros (Caso Guerrilha doAraguaia). Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de noviembre de 2010.Disponível em: . Acesso em 15 de fevereiro de 2013, p. 107.Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, naforma da lei.311


humanos.As comissões da verdade tratam de muitos fatos que poderiam ser também sujeitos a processoslegais, e, por não possuírem caráter judicial, a relação delas com o sistema judiciário é muitas vezes malcompreendida. O fato de não terem poder persecutório pode causar, muitas vezes, equívocos, os quaisdevem ser sanados o mais breve possível. Daí a importância de um estudo, mesmo que breve, dasatribuições de seus mandatos.As expectativas com relação às comissões da verdade muitas vezes são exageradas namente dos cidadãos, por isso, é importante manipular devidamente essas expectativas,mantê-las dentro do razoável e descrever com franqueza desde o princípio o que umacomissão da verdade pode oferecer. 9Até o momento, já foram instauradas em todo o mundo cerca de quarenta comissões daverdade, e uma característica comum entre todas foi o fato de nenhuma possuir função jurisdicional.Nenhuma pessoa foi denunciada, processada, julgada e condenada por uma. Em muitos países, não éincomum a dificuldade ou a impossibilidade de empreender a acusação por crimes massivos, aliado àfalta de capacidade do sistema judicial ou de uma anistia de fato ou de direito. Diante de taisdificuldades, mesmo não sendo um substituto da ação judicial, através das comissões da verdade éoferecida certa possibilidade de explicar o passado. O resultado do seu trabalho é apontado comorevelação da “verdade histórica”, em contraponto àquela que surge de um processo judicial, identificadacomo “verdade judicial”. 10Embora as relações entre comissões da verdade e a instância legal tenham variado dependendodo país e das condições políticas específicas, não resta dúvida de que a maioria delas teve a intençãode contribuir no sentido do fortalecimento do processamento civil e/ou criminal dos mandantes eexecutores de violências e crimes praticados. De fato, para a Comissão Interamericana de DireitosHumanos, uma comissão da verdade “não substitui a obrigação do Estado de estabelecera a verdade eassegurar a determinação judicial de responsabilidades individuais, através de processos penais”. 11Independente de não possuírem poder de punição, as comissões não são aceitas, atualmente,pelo direito internacional dos direitos humanos, como substitutivas dos órgãos judiciários deinvestigação. E tampouco suprimem a necessidade de promoção da responsabilidade penal. O trabalhode uma comissão da verdade pode impulsionar ou reforçar uma acusação a ser instalada no futuro.Ao final dos mandados, a missão das comissões é a produção de um relatório final, o qualdeverá constituir-se na postura oficial do Estado, sendo por ele assumido e amplamente divulgado. Alémde proporcionar à sociedade o conhecimento da verdade sobre o regime que oprimiu e violou direitos egarantias fundamentais, a grande maioria das comissões recomenda, em seu relatório final, ainstauração de ações penais (ou investigações judiciais que levem a possíveis processos) pelos fatosque foram por elas documentados. As comissões não podem processar ninguém, mas sim recorrer aosistema judicial para que seja dado início a processos penais.A recomendação pode se referir a pessoas específicas ou tratar-se de uma recomendação geralpara que sejam realizadas mais investigações além daquelas já realizadas e que seja dado andamentono sentido da responsabilização dos crimes cometidos no passado. É possível, ainda, mas menoscomum, que as informações obtidas pelas comissões sejam entregues ao Ministério Público no decorrerdos seus trabalhos. Sobre a atuação do Ministério Público Federal, Weichert afirmaque o órgão, em especial, atua nesta matéria tanto na seara criminal (para a promoçãoda persecução penal) como na cível, onde busca a promoção do direito à verdade, àinformação e à memória, bem como o aperfeiçoamento do aparato estatal de segurançapública. Em ambos os campos é recomendável a sinergia, sem prejuízo da maiorafinidade entre os objetivos da Comissão Nacional da Verdade e as funçõesconstitucionais do Ministério Público na promoção dos direitos fundamentais doscidadãos. 12Diante disso, o que se pode concluir é que a CNV, mesmo não tendo caráter jurisdicional, podeimpulsionar, ao seu término, a instauração de processos civis e criminais no sentido daresponsabilização daqueles que cometeram assassinatos, tortura e demais violações aos direitos9101112Nações Unidas (2012), op. cit., p. 296.WEICHERT, Marlon Alberto. A Comissão Nacional da Verdade. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da;TORELLY, Marcelo Dalmás; ABRÃO, Paulo (Orgs.). Justiça de Transição nas Américas – olharesinterdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Fórum, 2013.CORTEIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund y otros (Caso Guerrilha doAraguaia). Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de noviembre de 2010.Disponível em: . Acesso em 06 de fevereiro de 2013, p. 106.WEICHERT (2013), op. cit., p. 14.312


humanos durante a ditadura militar.Além disso, em muitos casos as comissões não somente determinam a responsabilidade doEstado e de suas várias instituições na consecução de práticas repressivas – fossem estas oriundas deforças públicas ou militares –, mas também responsabilizam, em seus relatórios, o Judiciário por suaomissão e até mesmo por sua conivência.No relatório final, as comissões também apresentam recomendações que visam oaprimoramento de determinadas instituições estatais que devem ser reformadas ou extintas, no sentidode contribuir para uma política de não repetição. Quando não for o caso de sugestão de eliminação,trata-se da apresentação de propostas que visem a reforma do mandato, a capacitação, assim como dasoperações das instituições específicas (principalmente àquelas relacionadas à segurança pública) a fimde garantir a sua operação efetiva, no sentido da proteção – e não de violação e desrespeito – dosdireitos humanos.A Comissão Nacional da Verdade instaurada no Brasil foi criada a partir das características detodas as demais Comissões que já funcionaram no mundo. Como já referido, nenhuma delas teve opoder de punição – assim como a brasileira também não possui. A CNV desempenhará, mesmo deforma indireta, relevante papel no sentido de uma possível responsabilização criminal, assim como civil,dos responsáveis pelo cometimento de violações aos direitos humanos durante o regime militarbrasileiro.A impunidade corrói as bases do Estado de Direito e afeta a essência da democracia.É necessário discorrer sobre a importância e sobre o significado do acesso ao “direito àjustiça” para entender a concretização dos processos de transição política econsolidação da democracia. O cumprimento desse direito assegura aresponsabilização, além de ter uma função pedagógica. 13A instauração de processos e consequentes julgamentos e condenações contribuemsignificativamente para o restabelecimento da confiança dos cidadãos para com o Estado e suasinstituições, no sentido de afirmar que o objetivo principal é a proteção do cidadão e de seus direitos egarantias fundamentais, e não do próprio Estado.Os julgamentos não devem ser vistos somente como expressões de um anseio socialde retribuição, dado que também desempenham uma função vital quando reafirmampublicamente normas e valores essenciais cuja violação implica sanções. Os processostambém podem auxiliar a restabelecer a confiança entre os cidadãos e o Estadodemonstrando àqueles cujos direitos foram violados que as instituições estatais buscamproteger e não violar seus direitos. 14No Brasil, até o momento, há um esforço por parte do Poder Executivo federal e certaparticipação do Poder Legislativo (no que tange à promulgação de leis relativas a reparações ereconhecimentos de mortos e desaparecidos visando à efetivação da transição brasileira). O Judiciário,por sua vez, ainda não contribuiu positivamente neste processo transicional. A Lei de Anistia de 1979 temsido o maior obstáculo para o processamento de responsáveis pelas violações de direitos humanos,sobretudo após a decisão do STF que, ao decidir pela improcedência da ADPF n.º 153, só reforçou asua postura inerte e até mesmo conivente com os crimes cometidos ao longo do regime militar.ConclusãoA “derrota” da Comissão Nacional da Verdade parece ter sido, por muitos, anunciada: baseadono caráter não punitivo da CNV, o ceticismo acerca dos seus trabalhos é uma realidade. Afinal, “de queadianta uma comissão da verdade se nenhum torturador será preso”? Não é de se surpreender comtamanha falta de otimismo. No país do carnaval, tudo o que é ou vem do público já nasce desacreditado.E isso não foi causado pelos militares – talvez por eles somente reafirmado. Trata-se de uma herança deuma Coroa e de toda a sua Corte que aqui firmaram residência em 1808, dando início ao carnaval noqual dançamos até hoje.Além da falta de credibilidade daquilo que publico é, aliado a posição de retaguarda do Brasil emcomparação com demais países no que se refere a implementação das medidas de justiça transicional,os perpetradores de graves violações aos direitos humanos durante o regime militar não foram sequerprocessados, muito menos punidos pelos seus crimes. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal ratificou a1314BAUER, Caroline Silveira. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. PortoAlegre: Medianiz, 2012, p. 176.VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflito. In: Justiça de Transição:manual para a América Latina. Félix Reátegui (Coord.) – Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça;Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011, p. 35.313


postura conservadora do Judiciário brasileiro e sua inércia diante dos crimes ocorridos durante o regimemilitar. Afrontou os compromissos internacionais assumidos pelo País, como o Pacto de São José daCosta Rica (a Convenção Interamericana de Direitos Humanos). Ignorou o fato dos vizinhos latinoamericanos,em respeito ao entendimento da Corte Interamericana em considerar nulas as auto-anistias,estarem anulando as suas próprias leis de anistia, como o caso da Argentina, que anulou a sua em 2005.No entanto, mesmo diante desse quadro, já existe uma movimentação no meio jurídico paratentar contornar as barreiras impostas pela Lei da Anistia. Antes mesmo do debate em torno da validadeda Lei de 1979 vir à tona, uma ação cível foi impetrada, em 2005, na 23ª Vara Cível da Comarca de SãoPaulo contra o Coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra. Com a sentença, de eficáciameramente declaratória, o Coronel passou a ser declarado como torturador. Atualmente, o MinistérioPúblico Federal tem entrado com ações em varas federais requerendo a abertura de investigações decrimes de desaparecimentos ocorridos durante o regime militar. Em agosto de 2012, por exemplo, aJustiça Federal do Marabá recebeu denúncias do Ministério Público Federal contra o Coronel SebastiãoCurió Rodrigues e contra o Major Lício Augusto Maciel, acusados de seqüestro qualificado de militantescapturados durante a repressão à Guerrilha do Araguaia. Em São Paulo também foram recebidas emagosto de 2012 denúncias pelo crime de seqüestro qualificado contra o Coronel Ustra, Alcides Singillo eCarlos Alberto Augusto (“Carlinhos Metralha”), estes dois últimos delegados da Polícia Civil. Ainterpretação dos promotores é a de que não poderia haver um marco temporal nesses casos, pois nãotendo sido encontrado o corpo, este seria um crime permanente, ou seja, ainda em vigor, e, assim, forado período estabelecido pela Lei da Anistia.O ponto causador de maior polêmica em torno da CNV é a ausência de caráter judicial. De fato:a punição é, sem dúvida, o maior anseio das vítimas, de seus familiares e, por que não, da sociedadeem geral. Representa a certeza de que aqueles que proporcionaram sofrimento e dor por um crimepaguem por aquilo que fizeram. As expectativas em relação aos resultados dos trabalhos da Comissãonão poderiam ser menores: embora se diga que o objetivo da CNV é levantar a “história silenciada” doPaís, a pressão popular e política será – e se espera que seja – mais forte quando responsáveis mortese torturas passarem a ser indicados.Ao final de dois anos, os membros da CNV deverão apresentar um relatório elaborado a partir daanálise de documentos, muitos deles sigilosos, e depoimentos. No entanto, ainda que identifiqueenvolvidos e responsáveis por torturas, assassinatos ou desaparecimentos de opositores do regimemilitar, uma possível punição poderá esbarrar nos limites estabelecidos pela Lei da Anistia.Ocorre que a idéia de que anistias e violações aos direitos humanos ocorridas durante regimesautoritários bloqueiam a possibilidade de julgamentos já é passado na maior parte da América Latina.Com o tempo, essa noção está passando a ser suprimida a partir de casos como o da Argentina, em quegrupos conseguiram driblar a Lei da Anistia sugerindo interpretações criativas ou explorando brechas.Engana-se quem pensa que não existe mais razão para a instauração de uma comissão daverdade, sob o argumento de que a mesma não terá poder de punição. Sociedades que não superaramas barbáries históricas cometidas por governos autoritários impregnaram em seu tecido social e na suacultura práticas que neutralizam as violências e o autoritarismo.O Brasil ainda não concluiu a transição à democracia e convive até hoje com a herança doregime militar. Órgãos responsáveis pela segurança pública seguem como enclaves contrários a certosvalores democráticos adotados pela Constituição de 1988, até hoje desrespeitando e/ou ignorandocompletamente os direitos humanos: matando, torturando e cometendo as mais diversas barbáries. Oresultado de tamanho descaso é o estímulo à violência sistemática, à cultura da impunidade, da falta deinformação e da falta de espírito crítico da sociedade.Mesmo que tardiamente, com o advento de uma comissão da verdade o Brasil vivencia grandesdesafios – ou melhor, grandes oportunidades – que, se bem aproveitadas, permitirão prósperos avançosna consolidação da democracia e na superação do estado de transição. Trata-se de uma oportunidadeímpar tanto para a investigação dos crimes cometidos durante a ditadura militar como para aprofundarum exame sobre as causas e principalmente das consequências do regime instaurado em 1964 – estasúltimas até hoje presentes.O papel primordial de uma comissão da verdade é, sem dúvida, levantar a história do períodoautoritário ocorrido em um Estado. Da mesma forma, é também o de alimentar um debate na sociedadesobre o que ocorreu no passado. Isso, em muitos casos, favoreceu a abertura de julgamentos paraestabelecer responsabilidades criminais. Nesses casos, a função das comissões da verdade foi ajudar amunir advogados e Ministério Público com evidências para a abertura de processos. Nesse cenário,passa a ser criado um clima favorável para a ocorrência de decisões judiciais favoráveis à flexibilizaçãodas anistias.Passados quase trinta anos do final da ditadura militar, ainda há muitos que gostariam de manterembaixo do tapete verdades que virão à tona a partir dos trabalhos da CNV. Para tanto, o ideal é que asociedade desconheça a real importância de uma comissão da verdade e desacredite em seus trabalhospelo fato de não ter o poder de punir os responsáveis pelos crimes ocorridos.314


A instauração de uma Comissão da Verdade é de suma importância no sentido de uma rupturacom o passado autoritário e seu legado – o qual perdura até hoje. Como já esclarecido, a CNV não teráo poder de punir qualquer investigado. No entanto, ao final de seus trabalhos e a partir do relatório queserá elaborado é que as denúncias podem começar a surgir.Julgamentos podem dar fim à impunidade e fortalecer a democracia e o respeito aos direitoshumanos.Amanhã vai ser outro dia.Referências Bibliográficas:ASSY, Bethania; MELO, Carolina de Campos; DORNELLES, João Ricardo; GÓMES, José Maria(coordenadores). Direitos Humanos: justiça, verdade e memória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.BAUER, Caroline Silveira. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. PortoAlegre: Medianiz, 2012.BRASIL. A Comissão da Verdade no Brasil: Por quê, o que é, o que temos de fazer? Org.: Núcleo dePreservação da Memória Política. São Paulo: 2012.BRASIL. Justiça de Transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (Coordenação) – Brasília:Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça deTransição, 2011.BRASIL. Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da Justiça – N. 2 (jul. / dez. 2009). –Brasília: Ministério da Justiça, 2009.BRASIL. Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da Justiça – N. 5 (jan. / jun. 2011). –Brasília: Ministério da Justiça, 2012.SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; TORELLY, Marcelo Dalmás; ABRÃO, Paulo (Orgs.). Justiça deTransição nas Américas – olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. BeloHorizonte: Fórum, 2013.315


316


IX - Resistências e redes de solidariedade nasDitaduras do Cone Sul317


318


Los tortuosos caminos: a fuga dos argentinos para o Brasil, no marco temporal dasditaduras civis-militares de Segurança NacionalJorge Christian Fernandez 1IntroduçãoA travessia de uma fronteira internacional costuma provocar nas pessoas certa tensão enervosismo, em maior ou menor grau. Mesmo em condições político-institucionais “normais”, ou seja,quando o “império das leis” rege as ações normativas do Estado. Isso depende de uma multiplicidade defatores que incluem desde a estabilidade emocional do sujeito que está cruzando a fronteira e passandopela formação e a habilidade dos agentes do Estado encarregados de efetuar os controles migratórios,alfandegários, etc. E, sem esquecer o contexto histórico específico no qual se insere o processo queenvolve o atravessar uma fronteira entre dois países.Pode até dizer-se que a natureza da travessia já encerra um componente de constrangimento. Oatravessar uma fronteira é um fato complexo que envolve verificação de documentos, um escrutínio dotransporte empregado, da bagagem pessoal e, por vezes, se submete o indivíduo à revista corporal, oque acarreta uma humilhação, tanto seja por sentir-se “alvo” de suspeita ou discriminado, quanto pelaviolação do espaço íntimo pessoal.Ou seja, a tensão da travessia é geralmente composta por um caleidoscópio de sensações queincluem apreensão, insegurança, desconhecimento, desamparo e medo. Em grande parte, essessentimentos começam a ser construídos com antecedência ao ato de partir da “sua” zona de conforto eadentrar em um terreno desconhecido, os domínios do “outro”. Ao desconforto de índole psicológica,ainda podem-se adicionar entraves objetivos, como a barreira da língua associada à corriqueira ausênciaou a áspera negativa de informação por parte das autoridades fronteiriças. Uma situação quenormalmente se agrava quando o estrangeiro prestes a cruzar a fronteira é inexperiente ou com baixonível de instrução escolar. A reação do indivíduo perante essas regras burocráticas com as quais nãopossui familiaridade e códigos sociais desconhecidos também causa muito estresse.Imagine-se então o que representava passar a fronteira Argentina–Brasil nos anos 1970-1980,em um contexto repressivo, onde as garantias constitucionais e o respeito pelos direitos humanosexistiam de modo figurativo, como no Brasil, ou simplesmente inexistiam, como na Argentina. Nessequadro de horror, pânico e insegurança, pessoas das mais diversas origens sociais, desde militantespolíticos ou sociais, estudantes, operários ou profissionais liberais, não somente de “esquerda”, mas simdos mais variados matizes e militâncias, procuraram um lugar de refúgio. Para alguns, esse refúgio seriaapenas temporário, na espera da mudança dos instáveis ventos da política; para outros seria umapassagem em direção a um terceiro lugar, geralmente além-mar e considerado mais seguro, longe doshorrores que haviam padecido em seu próprio lar. Nessa conjuntura, o Brasil se apresentou como umadas poucas possibilidades plausíveis de sobrevivência. No entanto, atravessar a linha de fronteira podiase transformar em algo tão temerário e perigoso quanto permanecer no país de origem. Pois o Brasilainda era governado por um regime ditatorial análogo ao da Argentina (embora em processo dedistensão) e, paradoxalmente, ao intentar fugir do terrorismo de Estado (TDE) implantado na Argentinapodia cair-se nas experientes garras do TDE brasileiro, em um momento histórico onde as fronteirasideológicas tornaram fluidas as fronteiras entre os Estados nacionais do Cone Sul 2 , favorecendo acolaboração repressiva.Independente de todos esses perigos, muitos perseguidos políticos ousaram fazer a travessia aolongo daqueles anos. Uma travessia dramática que, em muitos casos, adquiriu contornos quase quecinematográficos, como veremos.A Fuga: Como e Por Onde Sair da Argentina?Para aqueles que tiveram que sair da Argentina com a sensação, real ou presumida, de que arepressão estava no seu encalço, o processo de abandono do país podia adquirir contornosverdadeiramente dramáticos. Todos os meios de transporte eram válidos: aéreos, terrestres e fluviais. O1Professor UFMS. E-mail: intbrig@yahoo.com.br2PADRÓS, Enrique S.; MARÇAL, Fabio A. O Rio Grande do Sul no Cenário da Coordenação Repressiva deSegurança Nacional. In: PADRÓS, Enrique S.; BARBOSA, Vânia M.; LOPEZ, Vanessa A.; FERNANDES, Ananda, S.(Org.). Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Corag, 2009. v.3, p. 47.319


ônibus e o trem eram opções bastante comuns além de serem mais populares; o avião e o automóvelnão eram acessíveis para a maioria, de escassos recursos financeiros. Muitas vezes combinavam-se osmeios de forma variada, intercalando um e outro no sentido de despistar um possível monitoramento. Emgrande parte desses processos de fuga foi essencial à intervenção ou a participação solidaria de amigose parentes que, ao ajudar das mais diferentes formas, muitas vezes arriscaram suas próprias vidas como objetivo de salvar a vida de um terceiro.Mesmo no auge da repressão política, durante a década de 1970, tratados internacionaisrecíprocos garantiam e amparavam a liberdade de trânsito em ambos os sentidos da fronteira Brasil –Argentina. Essa prerrogativa legal possibilitou a fuga de muitos perseguidos, especialmente em períodosde férias escolares quando a circulação de pessoas aumentava vertiginosamente dificultando oscontroles nos principais pontos de fronteiras onde existia concentração de intenso fluxo de turistas, comoUruguaiana-Paso de los Libres. Mas, para poder cruzá-la, primeiro era necessário chegar até a fronteira.E nesse sentido atingir o Brasil, por via terrestre, partindo de qualquer cidade argentina de grande portenão era uma tarefa muito fácil, dada a quantidade de controles policiais existentes nas rodovias do ladoargentino. 3Um de nossos entrevistados se recorda do contraste entre a vigilância do lado brasileiro e a dolado argentino: Los caminos de acá (Porto Alegre) hasta Uruguaiana no te paraba ni un “tero” y allá, acada veinte kilómetros, más o menos, un puesto de gendarmería, o cosa por el estilo, parándome a cadarato. 4Mas não se precisava ser um opositor ou “subversivo” para ser maltratado ou se sentirameaçado pelas forças de segurança, pois o caráter horizontal 5 da repressão na Argentina via o conjuntoda população com suspeição. Residentes argentinos no Brasil, sem motivo político aparente, relataramter passado por experiências desagradáveis nas mãos de militares e policiais quando estavam de retornoao país natal.Um de nossos entrevistados, Carlos P., relatou momentos de tensão vividos durante umasimples viagem de férias para visitar a família:Una vez, en un viaje (…) me desvié del camino y tuve que entrar por Curuzú Cuatiá,cosa que yo no quería y no dio otra: entre por una calle que justamente estaba uncuartel. Me pararon y me llevaron para adentro. Y nosotros estábamos viajando de aquípara allá con mi mujer y las dos criaturas… los tuve que dejar en el auto y ahí mellevaron a hablar con el “capo general”… y el tipo me hizo unas preguntas, que se yoque, me demoró no sé cuánto tiempo. Yo, bien, por las dudas, quieto. Yo sentí el olor delpeligro. 6Foi similar o caso de Ernesto, quem residia no Brasil desde 1975, mas tinha de se deslocar paraa Argentina com frequencia, o que não lhe agradava. Ele recorda-se em especial de uma destas viagensem que foi alvo de um destes controles ameaçadores e perdeu a calma ao ver a intimidade da suafamília vulnerada pelos agentes do Estado:(depois do Golpe) Empezaban a revisar el auto. Una vez, con mi nena chiquita, en lazona de Entre Ríos, me agarró un ataque de nervios… Mi mujer es toda higiénica,lavaba y hervía los pañales… Nos abrieron las valijas y los gendarmes suciosempezaron a meter las manos en ropa, y aparte es prohibido: “¡no, que está hervido, esde la nena! Y me agarró un ataque de nervios… (…) no me fusilaron porque… (...) Erauna cosa muy tensa, no fue fácil. 7Cruzando o Rio UruguaiPara aqueles que eram perseguidos, a travessia do Rio Uruguai não se constituía em uma3Uma viagem de campo exploratória realizada pelo autor, em 2009, permitiu observar que mesmo nos dias atuais,o controle sobre os veículos e pessoas que circulam nas estradas argentinas é bastante rigoroso. Somentetrafegando pela Ruta Nacional 14, no trecho de Paso de los Libres até Zárate (divisa da província de Entre Rios coma província de Buenos Aires), o autor contabilizou, além do controle aduaneiro na fronteira, mais treze postos daGendarmeria (espécie de guarda de fronteira) e cinco da polícia provincial de Entre Rios e Corrientes. Em quasetodos estes postos podiam ver-se veículos e documentação sendo examinados. Pode-se deduzir que no período daditadura civil-militar este controle de tráfego interno era, provavelmente, ainda mais minucioso e obviamenteagressivo e intimidador.4Tero: o pássaro “quero-quero”. Entrevista com C. P. realizada em Porto Alegre, 07/08/2008.5ABOS, Álvaro. La racionalidad del Terror. El Viejo Topo, Barcelona, n° 39, dic. 1979.67Idem.Segunda entrevista com E.T. realizada em Porto Alegre - 08/08/2008.320


empresa simples. Por um lado porque, a exceção de Paso de Los Libres, as outras cidades costeirasargentinas não contavam com pontes que fizessem a ligação. Por outro, porque estas cidades nãopassavam (e não passam ainda) de pequenos povoados onde a simples presença de um indivíduo (ouum grupo) desconhecido seria facilmente notada pela população podendo ser denunciada asautoridades do local. Especialmente se este “visitante” tivesse um sotaque diferenciado (portenho oucordobés, por exemplo) aliado a uma aparência física de tipo europeu caucasiano, a qual tambémcontrastaria com certa homogeneidade do biótipo físico dos nativos da região correntina e misionera,onde é marcante a ascendência étnica indígena. Além do mais, por ser região de fronteira, cada umdestes povoados conta com unidades militares geralmente desproporcionais ao tamanho das localidadesonde estão assentadas.Um memorando secreto do Ministério das Relações Exteriores brasileiro ao Conselho deSegurança Nacional, datado de fevereiro de 1982, destacava o elevado grau de controle da margemargentina do Rio Uruguai:Sob o comando de oficiais, com recursos humanos e material apropriado existiriaminstalações de “Prefectura Naval Argentina” em Monte Caseros, Paso de los Libres,Yapeyú, La Cruz, Alvear, Santo Tomé, Garruchos e San Javier. A partir desta últimacidade até Monteagudo, na província de Misiones, a vigilância do Rio Uruguai seria feitapela “Gendarmeria Nacional” que disporia de uma infra-estrutura bem montada. 8Mesmo assim, ainda havia a possibilidade de atravessar o Rio Uruguai em pontos inóspitos.Entretanto, para realizar a travessia atalhando campos e mata era necessário que a pessoa tivesse umconhecimento prévio da região, ou que contasse com o suporte de algum nativo que servisse de guia.Ou seja, um mateiro, pescador ou até mesmo um contrabandista, para saber exatamente os pontos ondea passagem poderia ser facilitada por acidentes geográficos que estreitassem as margens, pela poucaprofundidade do leito do rio ou pela simples ausência de controle em determinada parte e determinadohorário. Assim, a passagem da fronteira pelo rio poderia ser realizada com uma pequena lancha, boteou, dependendo da qualificação e da capacidade física do “fugitivo”, até mesmo a nado. Eis um possívelexemplo deste tipo de fuga. Em um documento confidencial da Polícia Federal e difundido ao ExércitoBrasileiro, à Brigada Militar e à Polícia Civil do Rio Grande do Sul, em 08 de dezembro de 1977, pedia-sea localização e captura de[...]a. Pedro Mancias, 38 anos, moreno, forte, cerca de 1,75m, gordo, cabelos brancos,é ex-oficial da Polícia de Misiones/RA.b. O nominado atravessou a fronteira para o Brasil, na região do Canal Torto, no dia 04de outubro de 77. Elementos do Exército Argentino que se encontravam em AlbaPosse, solicitaram a colaboração da Polícia Federal para localizar e capturar onominado.c. Segundo informações colhidas junto aos militares argentinos, Pedro Mancias possuientre outros cursos, o de guerrilha urbana, além de ser técnico em explosivos. 9Logo, este tipo de saída se adequava mais aos paisanos da região (provavelmente o caso deMancias), acostumados desde sempre a cruzar a fronteira de um lado para o outro, geralmenteignorando os controles migratórios, uma característica típica da particular dinâmica de zona fronteiriça,onde é frequente o contato próximo entre os habitantes dos dois lados. Também é bem claro nodocumento o tipo de colaboração direta e sem maiores impedimentos exercida na faixa de fronteira entreas forças repressivas de ambos os países.8Memorando (Secreto). DAM-1/DF/SCDL/36/24 (B46) (B29) Brasil – Argentina. Patrulhamento do trechocompartilhado do Rio Uruguai. N° 013/82 - 29/01/1982, p.426. Cx. 008-D2, Fundo CSN, Arquivo Nacional - Brasília.9DOPS/RS: Pedido de Busca - PB 086 - S2/77 de 08/12/77 - SOPS/RG 1.1.341.3.1 – Acervo da Luta Contra aDitadura - Porto Alegre321


Figura 1. Região do Alto Uruguai (divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina) detalhe da parte central dafronteira Brasil - Argentina. Cabe destacar que, em determinados pontos desta região, as margens do Rio Uruguai seestreitam facilitando a sua travessia apesar da ausência de pontes. Além disso, a faixa de fronteira conta comcentros urbanos de menor índice populacional, uma malha rodoviária bastante precária e descontínua (mesmoatualmente) e vastas áreas inóspitas ou de difícil acesso, o que dificultava o controle desta zona (Fonte:http://info.lncc.br/wrmkkk/aruru2.html).Por outro lado, uma vez em território brasileiro, a fiscalização da movimentação de pessoasdiminuía consideravelmente. A extensão de nossas fronteiras e a falta de pessoal das forças desegurança encarregado para exercer a vigilância na faixa de fronteira sempre foi um dos problemasapontados pela administração pública brasileira:A insuficiência da fiscalização da margem brasileira do Rio Uruguai é clara, ao longodos aproximadamente 700 km que separam a localidade brasileira de Barra do Quarai(...) do Alto Uruguai, constituindo-se pequenas exceções às áreas frente às cidades deUruguaiana, Itaqui e São Borja.Na parte brasileira, da Barra do Quarai até Santo Ângelo, a Policia Federal contaria comum efetivo de aproximadamente 80 homens, voltados mais para a segurança interna, ea Delegacia da Capitania dos Portos, em Uruguaiana, disporia de dois oficiais edezesseis praças, além de um capataz em São Borja, um em Porto Lucena, um emPorto Mauá e outro em Alto Uruguai. 10Portanto, esta linha imaginária, que separa o Rio Grande do Sul das províncias argentinas deCorrientes e Misiones era um dos pontos mais vulneráveis da fronteira, apesar da barreira naturaloferecida pelo Rio Uruguai. Assim, esta longa e pouco controlada fronteira fluvial (pelo menos do ladobrasileiro) se tornou, em um primeiro momento, uma “porta de entrada” 11 ( e posteriormente uma espéciede “corredor”) para guerrilheiros e militantes perseguidos, além do histórico contrabando de gado e demercadorias, e também do então incipiente tráfico de entorpecentes. Aliás, os agentes do Estadofrequentemente também atribuíam estas duas últimas atividades criminosas, de um modo genérico, aoschamados “subversivos”, como podemos ver neste documento:Pedido de busca N° 728/75/DCBI/DOPS/RSDADOS CONHECIDOS:CONCEPCIÓN NOEMI DIAZ MARTINEZ, Argentina, antropóloga, portadora da cédulade identidade argentina/ n°6.795.547 (expedida pela Polícia Federal), seria ligada a10Memorando (Secreto). DAM-1/DF/SCDL/36/24 (B46) (B29) Brasil – Argentina. Patrulhamento do trechocompartilhado do Rio Uruguai. N° 013/82 - 01/02/1982, p. 428. Cx. 008-D2, Fundo CSN, Arquivo Nacional - Brasília.11Posteriormente seria um ponto de reingresso clandestino ao território argentino.322


JUAN CARLOS PERALTA, recentemente preso na Argentina, por tráfico de tóxicos eatividades subversivas, desenvolvidas naquele país.Segundo as autoridades argentinas, a nominada estaria presa no Brasil, onde teriachegado proveniente de MISIONES/RA. 12Via UruguaianaUruguaiana era uma das principais portas de entrada ao Brasil e uma das principais rotas usadaspelos refugiados e militantes em fuga. Por um lado, eram conhecidos os perigos da zona fronteiriça e setemia a fluida conexão repressiva entre os dois países. Porem, em contrapartida, como toda passagemde fronteiras de porte, o considerável e constante trafego de veículos comerciais, particulares e pessoas,cujo fluxo crescia enormemente na temporada de férias e especialmente no verão, dificultava a eficiênciado controle pretendido pelas forças de segurança. 13 Era essencial desenvolver estratégias de mimetismopara sobreviver. Portanto, aproveitando-se da estação do ano muitos refugiados conseguiram escapar daArgentina, mesclados na avalanche de turistas ávidos por fazer compras em um ou outro país, de acordocom a oscilação cambial da época. Desta forma, só o PRT/ERP conseguiu retirar em torno de umacentena de militantes pelo Brasil, segundo afirmam Anguita e Caparrós:La mayoría de los militantes del PRT salía por Paso de los Libres,(...) además el veranoresultaba ideal: el flujo de turistas complicaba los controles de Gendarmería, desdefines de año anterior (verão 1975-1976) que estaban mandando gente por ahí, ytodavía no había caído nadie 14 .No entanto, em certos períodos o controle aduaneiro era reforçado. Por exemplo, no dia doGolpe de Março de 1976, a Argentina bloqueou as saídas de todas suas fronteiras: aéreas, marítimas eterrestres. Alguns dias depois, a Gendarmeria reabriu a fronteira, porém impediu que os táxis brasileirostransportassem mais de três passageiros para Paso de los Libres e proibia que os mesmos retornassempara o Brasil com passageiros, o que suscitou protestos dos motoristas brasileiros perante asautoridades de ambos os países 15 , o que nos dá uma idéia do controle exercido na fronteira. Para osmilitares, este controle sobre os táxis tinha sua razão de ser.12DOPS/RS: Pedido de Busca - PB n° 728/ 75/ DCBI/ DOPS/ RS - 09/12/75 - SOPS/CX 1.1.31.2.1– Acervo da LutaContra a Ditadura - Porto Alegre13ANGUITA, Eduardo & CAPARRÓS, Martín. ANGUITA, Eduardo; CAPARRÓS, Martín. La voluntad. Una historiade la militancia revolucionaria en Argentina. V Tomos, Buenos Aires: Booket, 2006, p.356-357 e 466-467.14ANGUITA, Eduardo & CAPARRÓS, Martín. op. cit., p.356-357 e 466-467.15Zero Hora, 7/4/76 p.30 e 8/4/76 p.29. Arquivo Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa – PortoAlegre.323


Figura 2. Detalhe da bacia hidrográfica do Rio Uruguai entre as cidades de São Borja e Uruguaiana (RS), pelo ladobrasileiro, e Santo Tomé e Paso de los Libres (Província de Corrientes) pelo lado argentino. Na década de 1970-1980 a ligação entre os centros urbanos da margem ocidental e oriental do Rio Uruguai era ainda muito precáriasendo feita por balsa ou outro meio fluvial. A exceção ficava por conta de Uruguaiana e Paso de los Libres, ondeestava à única ponte que ligava fisicamente Brasil e Argentina, a Ponte Internacional Getúlio Vargas-Agustín P. Justoconstruída na década de 1940. Apenas em 1998 foi inaugurada uma segunda ponte sobre o Rio Uruguai, a que ligaSão Borja e Santo Tomé, mas as outras cidades costeiras (como Itaqui e Alvear) continuam aguardando suasrespectivas pontes que são reivindicações de longa data (Fonte: http://info.lncc.br/wrmkkk/aruru1.html).Cabe explicar que a travessia por meio de táxis era algo muito comum para quem chegava aPaso de los Libres por ônibus intermunicipal ou trem e se constituiu em um expediente bastanteempregado pelos refugiados. Acontece que os táxis, cujos motoristas ou donos eram conhecidos naregião, costumavam não ser muito controlados na fronteira, seja por algum tipo de relação pessoal comos guardas ou por simples corrupção: pequeno contrabando, câmbio ilegal de moeda, etc.Daniel de Santis, quadro do ERP, foi um dos que atravessou a ponte de táxi. Acompanhado nafuga por uma companheira que se passava por sua mulher, Disse a companheira: Tratemos de salir hoymismo para Porto Alegre. Acá (em Uruguaiana) podemos terminar en manos del DOPS 16 , consciente doperigo que o acossava na cidade fronteiriça. Um de nossos entrevistados afirmou conhecer uma rede detaxistas encarregados de fazer esse translado clandestino entre as duas cidades, mediante o pagamentode uma “taxa extra”. Ele nos contou como diversos conhecidos seus fizeram o trajeto:P- ¿Y Ud. Sabe como venían?Si, y totalmente en negro, no hacían ingreso al país, nada. Clandestinos, totalmente.Corrían el riesgo de quedar ‘enganchados’ en la frontera. Y… iban a la fronteratomaban un taxi, o venían por Uruguay, siempre había maneras. Se tomaba un taxi,arreglabas con el tachero, le dabas 50 mangos en un taxi de Paso de los Libres y tepasaba del otro lado… en el otro (lado) te tomabas otro y así…era así. Había uncontrol, pero no tanto…de la parte brasilera era así. 17Todavia, outros refugiados acabariam entrando no Brasil dentro de automóveis particulares,geralmente conduzidos por parentes, companheiros ou amigos, apesar dos enormes riscos que esta1617ANGUITA, Eduardo & CAPARRÓS, Martín. op. cit., Tomo 5, p.376.Segunda entrevista com E. T. realizada em Porto Alegre - 08/08/2008.324


ação envolvia. Ricardo, quem fugiu em 1979, após ser ameaçado de morte em Buenos Aires, lembrabem como foi feita sua retirada às pressas da Argentina. Inclusive ele contou com a ajuda de umainsuspeita “escolta militar” no carro que o trouxe até o Brasil:La vez que rajé para venirme a Brasil (…) vino un muchacho que es ingeniero, peroque llegó a capitán de fragata de la Armada argentina. (…) El vino con mi hermano;entonces yo me tiré en el asiento de atrás… era de noche, muy tarde. Mi hermano y elcapitán, este con su cédula militar, pese a que retirado, ¿no? Presentó la cédula…claro, capitán de la Armada… y pasamos. 18Já Juan, ex-funcionário público e combatente montonero, encontrava-se na clandestinidadedesde 1976 na cidade de Córdoba, onde continuava a militar, em meio ao perigo da repressão e asinúmeras quedas dos seus colegas de armas e militância. Em março de 1977, segundo o entrevistado,foi expedida contra ele uma “ordem de execução” dada pelo comandante militar da região. Issosignificava que deveria tentar fugir urgentemente e permanecer era equivalente a cometer suicídio. Umaarriscada travessia de 950 km entre Córdoba e Uruguaiana foi feita a bordo do automóvel de um familiar.Ou seja, o processo todo teve de ser feito na mais absoluta clandestinidade para poder aumentar aschances de sucesso da fuga e sobreviver. Explicou-nos melhor o narrador:(...) ¡orden de fusilamiento! Y si, a mi me dieron la orden, entonces el 5 de marzo estoypasando la frontera. (...) yo salí de Córdoba escondido en un auto hasta la frontera.Pasé (a fronteira) escondido y estuve un año clandestino acá (em Porto Alegre). 19Também as linhas de ônibus internacionais, usadas comumente por turistas, foram igualmenteutilizadas pelos exilados em fuga. Mas, tal como outros métodos já descritos, a fuga utilizando otransporte rodoviário apresentava alto risco, pois a repressão conhecia de antemão estes estratagemas.Por exemplo, um informe do Centro de Informações do Exército (CIEx), de março de 1975 já alertavaaos órgãos de segurança pública sobre o uso do transporte rodoviário pelos “subversivos”:Consta que elementos subversivos argentinos estariam ingressando no Brasil, com afinalidade de descansar ou de se ocultar por algum tempo das autoridades argentinas.O ingresso seria feito por Uruguaiana/RS, na qualidade de turistas, utilizando-se decarros particulares ou de ônibus da empresa Pluma-Conforto e Turismo e ExpressoAmericano, que fazem a linha Buenos Aires - Rio de Janeiro. 20A escalada da violência paramilitar na Argentina durante 1975 e a intensa e sistemáticarepressão estatal logo após o Golpe, que provocou uma verdadeira debandada humana, colocou emestado de prontidão as forças de segurança nas fronteiras brasileiras. Na concepção dos militares,[...]Em conseqüência [da repressão] os terroristas argentinos poderão penetrar emnosso território através de diversos pontos e utilizando os mais diferentes meios detransportes, explorando os atuais tratados recíprocos que facilitam o transito dosrespectivos nacionais.3. É pois de máxima conveniência para a SEGURANÇA NACIONAL manter um rígidocontrole sobre a permanência de argentinos em nosso território coibindo qualquersituação irregular, face a legislação existente. 21O governo brasileiro temia que o Brasil pudesse oferecer, devido a sua imensidão territorial, umespaço de refúgio e/ou articulação para os grupos guerrilheiros da Argentina e/ou de outros paísesvizinhos, sem falar numa possível “contaminação ideológica” advinda de uma suposta conexãointernacional entre as esquerdas. E embora esta última pudesse ser hiper-dimensionada (já que muitodela era alimentada pela paranóia da Guerra Fria) era, no entanto, funcional ao servir de principaljustificativa para a cooperação entre os governos militares na região.Não obstante os perigos inerentes, a viagem pela fronteira terrestre utilizando-se da malharodoviária ou ferroviária foi um recurso muito utilizado. Foi esse o método utilizado pelos irmãos Diego eGabriel ao sair da Argentina. Em agosto de 1976, eles viajaram em ônibus de linha comercial, direto deBuenos Aires a Porto Alegre. E, apesar de ser familiarmente vinculados à chefia dos Montoneros, o que18Entrevista com R. A. realizada em Porto Alegre - 17/03/2008.19Entrevista com J. P. realizada em Porto Alegre – 09/08/2008.20DEOPS/SP: CIE: Entrada de Subversivos Argentinos no Brasil, 12/03/75 - Dossiê DEOPS 50-E- 016 – 175.Arquivo do Estado de São Paulo (AESP) – São Paulo.21DOPS/RS: INFO 41/EM/2 de 29/11/76 - SOPS/CX 1.1.20.2.1 – Acervo da Luta Contra a Ditadura – Porto Alegre.325


obviamente implicava em maiores riscos, eles conseguiram atravessar a fronteira utilizando seuspróprios documentos. 22Mas o fato é que Uruguaiana era um lugar muito perigoso e, evidentemente, nem todos tiveram amesma sorte dos entrevistados acima. Em junho de 1977, dois supostos montoneros, José MariaRodriguez e Jorge Alfredo Iturburo, foram presos na Estação Ferroviária de Uruguaiana, quandointentavam adquirir passagens no “trem húngaro”, composição que fazia regularmente o trajetoUruguaiana - Porto Alegre. De acordo com o noticiado nos jornais da épocaOs dois homens, sem documento, (...) foram detidos pela Brigada Militar, em cujasdependências confessaram sua condição de terroristas especializados na “montagemde armas”, segundo informações fornecidas às rádios Charrúa e São Miguel porelementos da corporação. Na Policia Federal, para onde foram encaminhados pelaPolícia Militar, José Maria Rodriguez e Jorge Alfredo Iturburo negaram pertencer àquelaorganização e se identificaram como comerciantes de Buenos Aires. Sobre o caso, odelegado Marco Pólo, da Policia Federal, disse que “existem suspeitas de que sejammesmo montoneros, pois suas histórias são contraditórias. As autoridades argentinasinvestigarão o caso, o qual vamos acompanhar”. 23Segundo a polícia, eles não haviam cruzado pela Ponte da Amizade, mas sim pelo Rio Uruguai.No dia 30 de junho, a Polícia Federal removeu os dois homens e os entregou a uma unidade do ExércitoArgentino em Paso de los Libres. A partir daí seus rastros se perdem.Cabe destacar que é na região de Uruguaiana onde se concentra a maioria dos diversos casosde prisões, sequestros e desaparecimentos efetuados no marco da colaboração repressiva transnacionalentre as ditaduras civis-militares, alguns dos quais não resolvidos ainda hoje. E não só de argentinos.Em março de 1974, o dirigente do PCB, David Capistrano da Costa, ex-militar e veterano da Guerra CivilEspanhola, desapareceu por essa região junto com o motorista que guiava o Fusca que os transportava,José Roman. Seus corpos nunca foram encontrados. 24Sobre algumas das vítimas não se sabe quase nada, como Gregorio Bregstein, argentinosupostamente desaparecido em Uruguaiana em janeiro de 1975; ou Cristina Glória Fiori de Vina, quemfoi sequestrada por policiais civis do Rio Grande do Sul a mando de um policia federal argentino. 25Também ocorreu na região de Uruguaiana, em junho de 1980, os sequestros de Jorge OscarAdur e Lorenzo Ismael Viñas, militantes da organização Montoneros que viajavam desde a Argentina emônibus de linha internacional, quando foram interceptados e capturados, e desaparecendo a seguir.Via UruguaiOutra forma de sair da Argentina para chegar ao Brasil era pelo Uruguai. Entretanto, este paístambém estava sob uma ditadura civil-militar análoga e colaboradora dos regimes vizinhos. Assim, cruzaro Rio da Prata, por via fluvial ou aérea, representava um enorme risco dado à vigilância constante, nãosó no porto e nos aeroportos de Buenos Aires, mas também do outro lado, onde os serviços deinformação argentinos tinham agentes e “marcadores” ou “dedos”, ex-militantes quebrados que(geralmente após serem reduzidos a farrapos humanos graças à tortura) se convertiam em delatorespara identificar aqueles que tentavam escapar. 26 Por via terrestre, a opção era atravessar pelas pontessobre o Rio Uruguai que ligam cidades da Argentina e do Uruguai, respectivamente: Gualeguaychú -Fray Bentos, Colón – Paysandu e Concórdia - Salto. Segundo Bonasso, pelo menos em Salto, haviaespiões e “dedos” a espreita dos fugitivos. 27 As vantagens residiriam principalmente em encurtar uns 100km o trajeto a fronteira brasileira, assim como o tempo de viagem. Todavia os riscos eram dobrados, poishavia que atravessar duas alfândegas, a uruguaia e a brasileira. Apesar disso, alguns se arriscaram poreste caminho de solitárias e intermináveis estradas cortando o pampa oriental. O fato de a região serescassamente povoada talvez aumentasse psicologicamente a sensação de segurança nos refugiados.Um entrevistado nos contou um episódio onde ele e um amigo brasileiro foram à Argentina,supostamente a passeio, mas na verdade a “missão” era trazer na volta para o Brasil uma jovemargentina perseguida na sua cidade.22Entrevista com Diego Martinez Agüero realizada em Porto Alegre - 21/08/2010.23Correio do Povo, 30/06/1977, p. 5. Arquivo Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa – Porto Alegre.24COMISSÃO DE FAMILIARES DE MORTOS E DESAPARECIDOS POLITICOS; INSTITUTO DE ESTUDOSSOBRE A VIOLÊNCIA DE ESTADO. Dossiê Ditadura: Mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985). SãoPaulo: IEVE/Imprensa Oficial, 2009, p. 546-550.25Ambos os casos constam nos registros da CONADEP: Gregorio Bregstein – Actor 5918; Gloria Cristina Fiori deViña – Actor 6561.26BONASSO, Miguel. Recuerdo de la muerte. Buenos Aires: Brugera, 1984, p. 373-375.27Idem.326


Un día, me dice un amigo: “bah, está fea la cosa. Ya le reventaron la casa, si no seva…”Y fuimos a pasear con un amigo a La Plata y a la vuelta, en la ruta cerca deGualeguaychú, me la pasaron de un auto para el mío y pasamos la frontera… ¡Queirresponsabilidad! Y mi amigo brasilero, el pobre no entendía nada (…) era un tipobuenísimo, si supiera…La pusimos en el auto brasilero (…) entré por Fray Bentos y enUruguay ni se dieron cuenta que estaba en el auto, sentada, cuando hicimos lostrámites. Ni preguntaron. Y fuimos y la largamos en Passo Fundo y de ahí se fue aSuecia. 28Destaca-se a solidariedade dos que já estavam no Brasil como um elemento importante com oqual podiam contar aqueles que precisavam fugir da Argentina. O caso acima também é exemplar pornos revelar a articulação de redes solidarias que não necessariamente se vinculavam à militância, masque seriam impensáveis sem a existência de profundos laços de amizade e diversas identidades emcomum.Via AéreaEmpresas de transporte aéreo também foram empregadas para retirar pessoas da Argentina,embora menos utilizado em função do custo elevado das passagens aéreas na época. Como todos osoutros métodos descritos anteriormente, a fuga utilizando o transporte de linha internacional apresentavaigualmente um alto risco, devido à estrita vigilância nos aeroportos e a presença de delatores nosmesmos. Em março de 1980, Horacio Domingo Campiglia e Monica Pinus de Bistock foram detidos logoao desembarcar no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro.Pelo menos um de nossos entrevistados havia escolhido este meio convencional para sair doseu país. A travessia de Carlos para o Brasil, em outubro de 1976, foi feita em diversas escalas para nãochamar a atenção, como se fosse uma viagem de negócios qualquer: (...) había un vuelo de Aerolíneasque salía de Aeroparque a Iguazú, o Formosa, y de ahí a São Paulo. 29 Antes de deixar a Argentina, naúltima escala, apresentou um “convite” de um suposto congresso para poder justificar a continuação daviagem para o exterior. Como ele mesmo colocou: (…) así pude salir, seguro que fue un riesgo terrible...el ’76. Pero, todavía no habían empezado a hacer ‘dedo’ en la frontera. 30De fato, embora a fuga de Carlos tenha ocorrido durante o auge da repressão, por outra parte,ele teve a sorte que nos primeiros meses de 1976 o regime argentino ainda não havia começado autilizar-se dos tais “marcadores”.Via Foz do IguaçuOutro ponto bastante utilizado para sair da Argentina era a fronteira Puerto Iguazú–Foz doIguaçu, no Paraná. Devido ao grande fluxo de turistas internacionais na região durante a maior parte doano devido às Cataratas do Iguaçu, o controle migratório tornava-se aqui muito dificultoso para asautoridades fronteiriças, mesmo que naquele tempo a travessia ainda era feita por balsa. Daí em dianteseguia-se geralmente para São Paulo, Rio de Janeiro ou descia-se ao Rio Grande do Sul, poispermanecer em qualquer zona de fronteira era muito arriscado.Foz do Iguaçu também foi palco das trágicas mortes de Liliana Goldemberg e EduardoEscabosa. No dia 02 de agosto de 1980, o casal de militantes montoneros suicidou-se ingerindocápsulas de cianureto, pouco antes de ser entregue a militares argentinos. 3128Segunda entrevista com E. T. realizada em Porto Alegre - 08/08/2008.29Entrevista com Carlos Claret realizada em Foz do Iguaçu - 18/09/2009. CLARET, Carlos A. Requerimento Certidãode Inteiro Teor, Estocolmo, 05/02/2009, p.1. Acervo Movimento Justiça e Direitos Humanos (MJDH) – Porto Alegre.30Entrevista com Carlos Claret realizada em Foz do Iguaçu - 18/09/2009.31Clamor, Dez de 1980, p. 48-49, APOF, cx. 1 - Acervo da Luta Contra a Ditadura - Porto Alegre.327


Figura 3. Detalhe da zona da tríplice fronteira Brasil, Paraguai e Argentina. Esta região parece ter sido uma dasrotas de fuga prediletas dos perseguidos políticos argentinos. O intenso tráfego de turistas, praticamente durante oano todo, facilitava o mimetismo dos exilados entre a massa de visitantes das Cataratas e do Parque Nacional doIguaçu. Na época, a travessia ainda era feita por balsas, já que a ponte somente seria inaugurada em 1985 (Fonte:http://www2.mre.gov.br/daa/puertigua.htm).Um de nossos entrevistados, militante no Partido Socialista de los Trabajadores (PST) havia feitoesse mesmo trajeto, apenas alguns meses antes. Jose e sua companheira atravessaram a fronteirautilizando-se do pretexto de “conhecer as cataratas” do lado brasileiro 32 . Ele estava preocupado que asautoridades detectassem seu documento de identidade adulterado. Mas, ironicamente, o que salvou oentrevistado foi levar na bagagem um inusitado florete de esgrima. O guarda se encantou tanto com apeça e com a conversa de Jose sobre esgrima que sequer prestou atenção ao documento, liberando apassagem do casal. Tentando controlar o nervosismo, para dar verossimilhança ao seu papel de turista,eles embarcaram na balsa. José descreveu intensamente o momento gravado na lembrança:(…) la sensación de estar en la mitad del río, viste, que vas llegando, vas llegando...¡te da un ataque de euforia! (...) el clima (...) ¡nunca había sentido tanto calor en mivida! Yo estaba muy nervioso, con bronca, con rabia. Me sentía como si me hubierandado una patada en el culo. Todo me parecía feo (...) Brasil era maravilloso, pero yoestaba tenso, muy tenso... 33 .Sua abalada estrutura emocional e psíquica distorcia as imagens reais e lhe produziasensações contraditórias. O Brasil que ele via era “outro”, não era “normal” e sequer parecia ser real.Mais se assemelhava a um cenário de filme de terror, apesar de perceber que estava rodeado por umanatureza exuberante. Doía-lhe quase fisicamente a terrível sensação de haver sido arrancado, expulsoda sua terra, e jogado numa dimensão incógnita a qual teve de enfrentar para poder continuar a viver.3233Entrevista com J. V. realizada em Porto Alegre - 20/06/2007.Entrevista com J. V. realizada em Porto Alegre - 20/06/2007.328


Considerações finaisAs narrativas e a documentação aqui analisada nos oferecem uma mostra, mesmo que emescala reduzida, do que foi o complexo e diverso processo de saída da Argentina em função da brutalrepressão, iniciada antes do Golpe de 24 de março de 1976, mas exacerbada e ilimitada após a tomadado poder pela junta militar.Em virtude do descompasso temporal entre ambas as ditaduras, o Brasil costumou ser percebidopelos argentinos como um “mal menor”, se comparado aos outros países vizinhos, onde a repressãoainda estava na ordem do dia. Assim, o Brasil da “Anistia, lenta gradual e restrita” de Geisel oferecia-se,aparentemente, como um “corredor” ou “trampolim” para os refugiados. No entanto, o Estado brasileiro(que desde 1969 já tinha uma política xenófoba, discriminatória e intolerante contra os estrangeiros emgeral assentada nas bases da Segurança Nacional) reforçou um comportamento discriminatórioespecificamente direcionado aos argentinos. Desse modo, para os militares brasileiros, ao emigrado“argentino” cabia normalmente, na melhor das hipóteses, o adjetivo “suspeito”; quando não “terrorista” ou“subversivo”, somente por sua condição de origem nacional. Ou seja, para a ditadura civil-militarbrasileira, os argentinos que circulassem ou estivessem no Brasil deveriam ser monitorados de perto,pois a vigilância específica deste grupo nacional (dadas suas peculiares características e contexto domovimento migratório) se inseria na própria dinâmica da chamada Doutrina de Segurança Nacional.329


Mortos e desaparecidos políticos no Brasil, no Chile e no Uruguai: notas sobre a atuaçãodos seus familiaresCarlos Artur Gallo 1Resumo: O presente trabalho analisa as formas como os familiares de mortos e desaparecidos políticosno Brasil, no Chile e no Uruguai se organizaram para reivindicar a elucidação das circunstâncias doscrimes cometidos pelo aparato repressivo, a responsabilização dos culpados e a preservação damemória sobre o período. Dividido em duas seções, na primeira é realizado um breve panoramahistórico sobre o período autoritário em cada um dos países mencionados. Na sequência, apresenta-seos principais fatos referentes à trajetória destas associações.Palavras-chave: Direito à Memória e à Verdade – Direitos Humanos – Ditaduras de Segurança Nacional– Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.Abstract: This work analyzes the ways in which the families of dead and disappeared political activists inBrazil, Chile and Uruguay have organized themselves to demand the clarification of the circumstances ofthe crimes committed by the repressive apparatus, the accountability of perpetrators and preserving thememory of the period. Divided into two sections, at the first we do a brief historical overview of theauthoritarian period in each countrie. Finally, we present the main facts concerning the history of theseassociations.Keywords: Human Rights – Families of the Dead and Disappeared Political Activists – Right to Memoryand the Truth – Security National Dictatorships.IntroduçãoA partir das ditaduras de Segurança Nacional instauradas no Cone Sul entre as décadas de 1950e 1970, muitos indivíduos que eram considerados inimigos do Estado de acordo com a Doutrina deSegurança Nacional – DSN foram perseguidos e presos pelo aparato repressivo, sendo, nas situaçõesextremas, mortos ou desaparecidos 2 . O presente estudo foca nas estratégias utilizadas por familiares demortos e desaparecidos políticos durante a Ditadura Civil-Militar brasileira (1964-1985), chilena (1973-1990) e uruguaia (1973-1985) para tratar da questão. Dividido em duas partes, na primeira apresenta-sealgumas informações sobre o período autoritário em cada um dos países referidos; na segunda parte doestudo, são analisadas as principais políticas públicas elaboradas para dar conta do saldo da repressãoreferente aos mortos e/ou desaparecidos políticos nestes países 3 .A Ditadura Civil-Militar no Brasil, no Chile e no UruguaiA ditadura civil-militar brasileira foi instaurada entre os dias 31 de março e 1º de abril de 1964,123Formação acadêmica: Doutorando em Ciência Política, Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.e-mail: galloadv@gmail.comAMNISTÍA INTERNACIONAL. Desapariciones. Madrid: Editorial Fundamentos, 1983; _____. Crímenes sincastigo: homicidios políticos y desapariciones forzadas. Madrid: EDAI, 1993; ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO.Brasil: nunca mais. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1985; BRASIL; Secretaria Especial de Direitos Humanos; ComissãoEspecial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à memória e direito à verdade. Brasília: SEDH,2007; _____; Secretaria de Direitos Humanos. Habeas Corpus: que se apresente o corpo: a busca dosdesaparecidos políticos no Brasil. Brasília: SDH, 2010.Salienta-se que, embora o uso das expressões desaparição forçada, desaparecimentos e desaparecidos tenhaadquirido novos contornos no cenário internacional a partir das experiências repressivas vivenciadas naGuatemala, no Chile e na Argentina (AMNISTÍA INTERNACIONAL. Desapariciones. Madrid: EditorialFundamentos, 1983. p. 7-8), tais situações não se tratam, contudo, de uma novidade criada pelas ditaduraslatino-americanas. Neste sentido, as origens do desaparecimento de opositores civis como uma políticarepressiva específica de um Estado autoritário podem ser encontradas na doutrina contrarrevolucionáriafrancesa, na Alemanha nazista e na Espanha franquista (PADRÓS, Enrique Serra. Como el Uruguay, no hay...Terror de Estado e Segurança Nacional Uruguai (1968-1985): do pachecato à ditadura civil-militar. 874f. [2v.].Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do RioGrande do Sul, Porto Alegre, 2005. p. 613-614).330


estando o seu acontecimento intimamente relacionado, além das motivações econômicas emarcadamente anticomunistas, à desestabilização política vivenciada no país desde agosto de 1961,quando ocorrera a renúncia do presidente Jânio Quadros 4 . Naquele momento, para que ocorresse aposse do vice João Goulart na Presidência da República, foram necessárias, além de uma transaçãopolítica que adotou temporariamente o parlamentarismo para o país, ampla mobilização popularencabeçada, no Rio Grande do Sul, pelo governador Leonel Brizola, que criou a “Rede da Legalidade”.Garantida a posse do presidente João Goulart, retardou-se o golpe por pouco mais de dois anos e meio.Em 1964, os mesmos setores das Forças Armadas que em 1961 tentaram impedir a posse deJoão Goulart por verem nas suas ações tendências comunistas, mas, desta vez contando com o apoiode elites, efetivam o golpe frustrado anteriormente, iniciando no país um período de 21 anosautoritarismo. Na sua vigência, entretanto, foi criado um sistema político bipartidário dividido entreARENA (Aliança da Renovação Nacional, partido governista) e MDB (Movimento Democrático Brasileiro,abrangendo a oposição consentida), sendo realizadas eleições periódicas e regulares para os cargosdos poderes legislativos municipal, estadual e federal.De acordo com Carlos H. Acuña e Catalina Smulovitz 5 :As estratégias políticas dos militares de início foram eficazes, mas, [...] de 1968 a 1974,a sistemática exclusão política e econômica que caracterizava as políticas do regimemilitar levou a um aprofundamento do conflito com a oposição que não estava integradano jogo bipartidário. A taxa média de crescimento anual, que entre 1962-1967 foi de3,7%, subiu para 10,1% durante o período de 1968-1974. Este processo foiacompanhado por uma exclusão distributiva consistente: a renda da metade mais pobreda população caiu em relação à renda nacional total de 17%, em 1960, para 14,9% em1970, e 12,6% em 1980, enquanto a renda dos dez por cento mais ricos da populaçãocresceu, nesses anos, de 39,6% para 46,7% e 50,9%, respectivamente.Em 1974, época em que o regime ainda colhia os frutos do crescimento econômico e aneutralização dos opositores que atuavam fora do sistema partidário atingia seu auge, Ernesto Geisel(ditador-presidente entre 1974 e 1979) formata e inicia, de dentro do próprio governo, um projeto detransição “lenta, gradual e segura” que se estenderia até 1985. Altamente pactuado e controlado aolongo da sua trajetória, o processo de transição no Brasil garantiu que os envolvidos com a repressãonão fossem punidos pelas violações aos direitos humanos praticadas, garantindo ainda aos setores daelite civil diretamente relacionados à ditadura sua sobrevivência enquanto atores relevantes no novocenário político 6 .Os golpes de Estado no Chile e no Uruguai ocorreram em 27 de junho e em 11 de setembro de1973, respectivamente. Se as Forças Armadas uruguaias não intervinham diretamente na política internado país desde 1890, quando se deu o golpe de Estado no Uruguai, a situação foi diversa 7 . Decorrente deuma crise política que teria iniciado em 1967, quando houve a radicalização de grupos de esquerda e ogoverno de Pacheco Areco (1967-1972) declarou-lhes ilegais, na consolidação do Estado de exceção, eapesar da interferência direta dos militares, o país esteve sob a presidência do civil Juan MaríaBordaberry, que fechou o Congresso e criou um Conselho de Estado para assumir as funçõeslegislativas.A transição no país começou em julho de 1981, em virtude da detrioração do prestígio dosmilitares junto à sociedade. A proposta feita pelas Forças Armadas para alguns dirigentes políticos emdireção à abertura, consistiu em quatro pontos: 1º) ela seria realizada em três anos e contando com aparticipação de membros partidários em um Conselho de Estado; 2º) seria organizado um estatuto paracriação de partidos políticos; 3º) haveria uma reforma constitucional; 4º) seriam realizadas eleiçõesdiretas 8 . Em 1984, quando foi concretizado o último item referido, iniciou-se o último ato da ditadurauruguaia, que se encerraria em 1985, com a posse do presidente eleito, Juan María Sanguinetti, doPartido Colorado.O golpe no Chile, embora também tenha sido levado a cabo no mesmo contexto internacional45678MARTINS, Luciano. A “liberalização” do regime autoritário no Brasil. In: O’DONNELL, Guillermo; SCHMITTER,Philippe C.; WHITEHEAD, Laurence (Org.). Transições do regime autoritário: América Latina. São Paulo:Vértice / Revista dos Tribunais, 1988; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: oanticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva/Fapesp, 2002.ACUÑA, Carlos H.; SMULOVITZ, Catalina. O ajuste das Forças Armadas à democracia: sucessos, fracassos eambigüidades no Cone Sul. In: JELIN, Elizabeth; HERSHBERG, Eric (Org.). Construindo a democracia:direitos humanos, cidadania e sociedade na América Latina. São Paulo: EDUSP / NEV, 2006. p. 47.ARTURI, Carlos S. O debate teórico sobre mudança de regime político: o caso brasileiro. Revista deSociologia e Política, n.17, Curitiba, nov. 2001. p. 11-12.VILLALOBOS, Marco Antônio Vargas. Uruguai: autoritarismo e ditadura. In: PADRÓS, Enrique Serra (Org.). Asditaduras de Segurança Nacional: Brasil e Cone Sul. Porto Alegre: Corag, 2006. p. 23.VILLALOBOS, Marco Antônio Vargas. Op. cit. p. 29.331


que os demais, deu-se em um ambiente político-institucional diferente do caso brasileiro e uruguaio, umavez que neste país já existia um sistema partidário consolidado pelo menos desde a década de 1930,quando havia sido estabelecido um “Estado de Compromisso” que garantia a estabilidade 9 . O golpe foipossível porque a partir de 1964, quando a Democracia Cristã chilena obteve ampla maioria, o pactopolítico que vinha sendo respeitado desde 1932 começou a ser deteriorado, sendo a crise agravada coma eleição do socialista Salvador Allende.No que diz respeito à transição chilena, a mesma se deu de forma organizada. A realização deeleições presidenciais, que ocorreriam em 1989, foi prevista na Constituição Federal promulgada em1980. Em 1988, em um plebiscito que, também previsto na nova Constituição, seria realizado para que opovo decidisse se o ditador-presidente Augusto Pinochet continuaria no poder por mais 8 anos, votarampelo “não”, e, no ano seguinte, elejeram seu novo presidente.Sobre a transição no Chile, Francisco Rojas Aravena 10 salienta que:Após o triunfo do “não”, iniciou-se um processo de transição que partiu de um pontomuito diferente daquele de outras transições latino-americanas. No caso chileno, asForças Armadas não foram derrotadas militarmente. Não estavam divididas emantinham parcelas significativas de poder e autonomia. O projeto e o contextoconstitucional não foi negado, apenas sofreu ajustes parciais. Finalmente, uma questãomuito importante, as Forças Armadas deixavam o poder com uma auto-estima muitoelevada. Além disso, cabe lembrar, a coalizão militar-civil que governou o país até 1990obteve 43% dos votos no plebiscito.Notas sobre a luta dos familiares brasileiros, chilenos e uruguaios. 11Iniciada na vigência do próprio regime autoritário de forma quase que instintiva, uma vez que abusca de informações sobre seus familiares começava a partir do momento em que havia a falta total denotícias dos militantes, em alguns casos, ou a descoberta das suas prisões, em outros, a luta dosfamiliares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil ganha força na década de 1970. Foi nestaépoca, por exemplo, que, rompendo com as barreiras da própria repressão e contando com o apoio dosgrupos de defensores dos direitos humanos que se estruturavam, foram organizadas, atreladas àscerimônias religiosas em memória de algumas vítimas do aparato repressivo, manifestações públicas derepúdio ao regime e à violência de Estado por ele praticada desde 1964.Mas, se na clara tentativa de tornar público uma situação dramática que era muitas vezesnegada ou minimizada pelos porta-vozes do Governo ditatorial, e, com frequência, adulterada ouignorada pelos meios de comunicação silenciados pela censura, a demanda dos familiares ía tomandoforma e fortalecendo-se com a organização de manifestações quase que artesanais, um ponto deinflexão nesta trajetória pode ser encontrado na campanha pela Anistia. Saindo de uma atuação aindaembrionária e integrando-se às mobilizações em prol da anistia, os familiares potencializaram o alcancede suas demandas, que, se num primeiro momento estiveram fragmentadas pela própria força darepressão e da censura, encontraram junto aos Comitês Brasileiros pela Anistia (CBA’s) um ambientepropício à sua apresentação, através de uma causa compartilhada coletivamente.A luta pela anistia não teve o alcance pretendido pelos movimentos organizados em torno dosCBA’s, embora possa ser interpretada como uma conquista parcial. Como resultado, foi editada uma leique não libertou todos os presos políticos, não legislou a respeito da situação dos mortos edesaparecidos, limitando-se a possibilitar aos seus familiares a obtenção de um atestado de paradeiroignorado já previsto na legislação civil vigente à época, e, lançando as bases para que a punição dosagentes da repressão não ocorresse, consolidou uma política de esquecimento junto à sociedade emnome da reconciliação nacional 12 .9101112ACUÑA, Carlos H.; SMULOVITZ, Catalina. Op. cit. p. 54-55.ROJAS ARAVENA, Francisco. A detenção do general Pinochet e as relações civis-militares. In: D’ARAÚJO,Maria Celina; CASTRO, Celso (Org.). Democracia e Forças Armadas no Cone Sul. Rio de Janeiro: EditoraFGV, 2000, p. 133-134.Parte dos dados que apresento sobre a trajetória dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasilforam extraídos de minha dissertação de mestrado, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em CiênciaPolítica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em março de 2012. Para maiores informações, consultar:GALLO, Carlos Artur. Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça: um estudo sobre o trabalhoda Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil. 117f. Dissertação (Mestrado emCiência Política). Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências: um estudo docaso brasileiro. 213f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Programa de Pós-Graduação em CiênciaPolítica da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003; _____. Anistia de 1979: o que restou da lei forjada peloarbítrio? In: SANTOS, Cecília MacDowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida (Org.). Desarquivando aditadura: memória e justiça no Brasil. v.2. São Paulo: HUCITEC, 2009.332


Repercutindo diretamente na organização dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, ofim das mobilizações a favor de uma anistia “ampla, geral e irrestrita” e, consequentemente, dadesarticulação dos CBA’s, representou para este segmento não só o fim de um momento de lutacompartilhada em torno de uma causa geral, mas também o início de uma nova reestruturação natrajetória da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (CFMDP). É no períodoimediatamente posterior a agosto de 1979, que, enfrentado inicialmente a desmobilização de seusparticipantes, a Comissão toma sua forma atual, constituindo-se como uma organização autônoma, que,composta por familiares e/ou pessoas próximas às vítimas fatais da repressão, engaja-se na luta pelaelucidação das circunstâncias das mortes e dos desaparecimentos ocorridos, pela identificação epunição dos envolvidos e pelo resgate dos seus restos mortais.Caracterizada por uma baixa organicidade, os integrantes da Comissão nunca chegaram, emmais de 30 anos de atividades, a constituir uma estrutura organizacional interna real 13 , estando a suaatuação, inclusive, marcada por uma grande informalidade. Inicialmente melhor organizados em SãoPaulo e no Rio de Janeiro, ao longo da década de 1980 integrantes da CFMDP assistiram, além daformação de outras entidades vinculadas à causa dos direitos humanos – caso dos Grupos TorturaNunca Mais –, o retorno de lideranças políticas que estavam exiladas, o fim do sistema bipartidário, osurgimento de novos partidos políticos, o movimento Diretas Já e a derrocada do regime autoritário.No que diz respeito às estratégias postas em prática pela Comissão, e, uma vez que suasdemandas foram preteridas quando da edição da Lei de Anistia, coube aos familiares, pouco a pouco,angariar apoio político à causa e, dentro do possível, legitimá-la publicamente. Até o início dos anos de1990, quando ocorreu a abertura da Vala de Perus (onde ocorreram sepultamentos clandestinos devítimas da repressão), a criação de uma CPI na Câmara Municipal de São Paulo e de uma Comissão deInvestigação para busca das ossadas de militantes mortos e desaparecidos, a CFMDP passou pormomentos delicados, nos quais, para persistir na luta pelo reconhecimento das suas demandas, foramenfrentados, além da falta de apoio dos parlamentares e das dificuldades de veiculação das suashistórias na opinião pública, problemas diretamente relacionados à falta de recursos, que limitava aspossibilidades concretas de ação dos seus integrantes 14 .Em 1995, após mais de vinte anos de luta, e, no governo de Fernando Henrique Cardoso, foiaprovada a Lei nº 9.140 (chamada de Lei dos Mortos e Desaparecidos), na qual o Estado brasileiroassumiu a sua responsabilidade pelas mortes e desaparecimentos de 136 pessoas. Ademais, a partir daedição da lei foi criada a CEMDP 15 , que, vinculada à Secretaria Especial de Direitos Humanos daPresidência da República desde 2003, passou a analisar e julgar os casos de morte e dedesaparecimento de militantes políticos e a fixar indenizações aos familiares, sendo reconhecidos 221casos em quase 11 anos de trabalho 16 .Ainda que a Lei tenha possibilitado inegáveis avanços, a CFMDP aponta os seguintes problemasdecorrentes da sua aprovação: 1º) eximiu o Estado de identificar e responsabilizar os agentes envolvidosnos crimes ocorridos durante a ditadura; 2º) legou o ônus da prova aos familiares; 3º) não obrigou oEstado brasileiro a localizar os corpos dos desaparecidos; 4º) excluiu a possibilidade de outrosinteressados ingressassem com o pedido de reconhecimento das mortes e/ou desaparecimentos,reforçando, com isto, a ideia de que os interessados são única e exclusivamente parentes das vítimas,algo que nega o caráter público da questão 17 .Posteriormente, os familiares obtiveram outras duas conquistas no âmbito legislativo. Em 2002,com a Lei nº 10.536, o período de responsabilidade do Estado brasileiro, inicialmente compreendidoentre 1961 e 79, foi ampliado até 1988. Em 2004, com a Lei nº 10.875, foram consideradas mortespassíveis de responsabilização do Estado e fixação de indenização aquelas que se deram em1314151617Em 1993 foi criada uma instituição, o Instituto de Estudos Sobre a Violência do Estado, com sede em São Paulo,para representar formalmente a causa da CFMDP. Suzana K. Lisbôa refere (In: Entrevista, Porto Alegre, 16 dejunho de 2011) que, na prática, sua criação não acarretou nenhuma alteração na atuação dos familiares, sendoa sua estrutura interna, inclusive, uma mera formalidade cumprida para que eles, caso fosse necessário,tivessem uma personalidade jurídica à disposição.Entrevista com Suzana K. Lisbôa, Porto Alegre, 16 de junho de 2011.Em 2007, o trabalho desenvolvido pela CEMDP desde a sua criação até 2006 foi publicado em um livrorelatório,intitulado Direito à memória e direito à verdade, contando, na sua elaboração, com a participação deintegrantes da CFMDP e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, que, sendouma publicação oficial, além de ter procedido à apresentação de um histórico da Comissão e do seu trabalho,fez um resgate da história política brasileira a partir dos anos de 1960, reconhecendo a responsabilidade doEstado pelas mortes e desaparecimentos, e, ainda, apresentando a listagem e o resumo dos casos analisados ejulgados. Esta publicação encontra-se disponível em: .BRASIL; Secretaria Especial de Direitos Humanos; Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.Direito à memória e direito à verdade. Brasília: SEDH, 2007. p. 17-18, 41.ALMEIDA, Criméia Schmidt de; et al. Dossiê ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985).2.ed. revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. p. 33-34.333


manifestação pública mediante repressão policial, bem como os casos de pessoas que cometeramsuicídio para evitar prisão ou devido às sequelas da tortura 18 .Com o início dos trabalhos da “Comissão Nacional da Verdade” (CNV) em 2012, novasperspectivas com vistas ao esclarecimento das circunstâncias desses casos, além da averiguação doslocais de sepultamento e dos envolvidos nos crimes, despontaram como algo a ser realizado pelosmembros da Comissão. Na prática, as possibilidades de efetivação das expectativas dos familiares paracom a CNV restam reduzidas por que, além de ter sua atuação atrelada-limitada à interpretação daanistia recíproca 19 , e, consequentemente não visar a realização da Justiça, vê-se pelos menos outrostrês fatores limitadores: 1º) o fato de a Lei que cria a CNV estender o lapso temporal a ser investigadopara o período compreendido entre 1946 e 1988, ou seja, um período que, embora abranja os 21 anosde ditadura, é extenso demais; 2º) o prazo de funcionamento da Comissão, que terá 2 anos parainvestigar situações ocorridas em um país do tamanho do Brasil; 3º) o número reduzido de integrantesda CNV, limitado a 7 membros.No que se relaciona à organização dos familiares de mortos e desaparecidos políticos noUruguai e no Chile, observa-se que a mesma não é muito diferente da trajetória dos familiares no Brasil,uma vez que as demandas que canalizariam a formação de grupos de familiares teve início, nos doispaíses analisados, no exato momento em que as violações aos direitos humanos dos opositores daditadura ocorriam, valendo-se, para tanto, de todos os meios possíveis (como a realização de passeatase de denúncia para organismos internacionais).Começando na segunda metade da década de 1970, a formulação das demandas dos familiaresdos “detenidos desaparecidos” no Uruguai, contudo, difere do ocorrido com os familiares no Brasilporque, conforme visto, os familiares brasileiros centralizaram sua atuação em torno de uma estruturaúnica saída dos CBA´s: a CFMDP. No Uruguai, até que a causa fosse centralizada em torno do grupo“Madres y Familiares de Uruguayos Detenidos Desaparecidos” (MFUDD), no ano de 1983, existiram pelomenos três grupos que tratavam, de forma fragmentada e independente, da questão: a “Asociación deFamiliares de Uruguayos Desaparecidos” (AFUDE), formada por exilados políticos uruguaios vivendo naEuropa; o grupo de “Familiares de Uruguayos Detenidos Desaparecidos en Argentina”, atuante desde1977; e os “Familiares de Uruguayos Detenidos Desaparecidos em Uruguay”, criado em 1982 20 .Basicamente, como objetivo da sua luta, os familiares uruguaios buscam:[...] conocer la suerta de estas personas, procurar la verdad y la justicia y la noreiteración de estos crímenes. Familiares ees El lugar donde se busca asesoramiento,se piensa cada situación política, se evalúa y se decide, se logran y se organizan losapoyos 21 .No que diz respeito às políticas da memória formuladas e implementadas no Uruguai após atransição à democracia, e buscando atender, ainda que de forma pouco exitosa, as demandas dosfamiliares, parece importante destacar que:En el caso de las experiencias de violaciones sistemáticas desarrolladas durante ladictadura uruguaya, esta lucha por la memoria fue un largo proceso que lentamenterompió los cercos de las experiencias privadas de las víctimas, sus familiares ycompañeros de militancia. En primer término se debió superar la indiferencia o negaciónmayoritaria de la sociedad uruguaya, hasta constituir, con el advenimiento de loscompañeros de las víctimas al gobierno, un discurso también oficial pero que pretendeconsagrar una visión posible de los hechos. El periplo histórico uruguayo referido a lasviolaciones sistemáticas de los derechos humanos perpetrados por los agentes delEstado muestra un conflicto pretendido de historias oficiales o puntos finales queprocuran de algún modo establecer de manera totalizadora una verdad definitiva sobrelos hechos 22 .Embora o processo de rememoração-resgate-reflexão possa ser referido como lento, note-seque, no Uruguai, políticas da memória começaram a ser postas em prática logo após o final do período1819202122ALMEIDA, Criméia Schmidt de; et al. Op. cit. p. 35-36.A interpretação da anistia recíproca foi reforçada no Brasil, em abril de 2010, com o julgamento da ADPF nº 153.Nesse julgamento, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, a mais alta Corte do Judiciário no país, decidiram,por maioria dos votos dos seus membros, que a Lei da Anistia de 1979 era válida, e que a interpretaçãocorrente, de que agentes da repressão foram anistiados sem sequer serem levados a julgamento, devia sermantida em nome da reconciliação nacional.Ver site do MFUDD: .Ver Histórico dos Familiares em: http://www.desaparecidos.org.uy/>.MIRANDA, Javier (Coord.). Itinerários de los derechos humanos en el Uruguay 1985-2007: temas, actores yvisibilidad pública. Montevideo: Fundación Konrad-Adenauer-Stiftung / CLAEH, 2009. p. 25.334


autoritário 23 . Ainda em 1985, foi criada a “Comissão Investigadora sobre a Situação de PessoasDesaparecidas e Fatos que a Motivaram”. Passados seis meses desde o início dos seus trabalhos, aComissão apresentou um relatório à Suprema Corte uruguaia, relatando que 160 pessoas haviammorrido devido à violência estatal perpertrada durante a ditadura. O alcance do relatório, embora tenhase tratado de uma política implementada em âmbito nacional, foi pequeno, visto que os trabalhosrealizados por seus membros dedicaram-se exclusivamente à questão da identificação de desaparecidospolíticos.Ainda no Uruguai pós-ditadura, duas leis foram editadas para tratar das violações: a Lei deAnistia (Lei nº 15.737 de 1985) e a Lei de Caducidade (Lei nº 15.848 de 1986). A anistia uruguaiaanistiara todos militantes envolvidos em crimes políticos, comuns e militares cometidos no país a partirde 1962. A Lei de Caducidade, destinada aos setores que sustentaram o golpe, e, dentre eles, dosagentes da repressão, declarou que, em nome da transição e da ordem, caducara o direito de punirestas pessoas. Duas tentativas de revogar esta Lei foram implementadas, sem sucesso, em 1986 e2009. Apesar de não terem sido vitoriosos com os plebiscitos de 1986 e 2009, os setores que eramfavoráveis à punição dos responsáveis pela repressão têm obtido certo êxito no Poder Judiciáriouruguaio, onde, como consequência da absorção da normativa internacional de proteção aos direitoshumanos, foram julgados e condenados alguns dos seus ex-ditadores.Em 2000, outra medida implementada e que parece despontar como ponto de inflexão natratamento do tema no Uruguai foi a criação, pelo presidente Jorge Batlle, de uma Comissão da Verdade,chamada oficialmente de “Comissão para a Paz”. Vindo na esteira das tentativas do Governo esclarecero caso “Gelman” 24 , a Comissão foi criada através de um decreto onde estabeleceu-se que:Se entiende necesario para consolidar la pacificacion nacional y sellar para siempre lapaz entre los uruguayos, dar los pasos posibles para determinar la situación de losdetenidos desaparecidos durante el régimen de facto, así como de los menoresdesaparecidos en similares condiciones 25 .Com duração inicialmente prevista para atuar durante o período de 120 dias, a Comissão teveseu prazo de funcionamento ampliado. Quando chegou ao final do seu mandato, em abril de 2003, seusmembros realizaram um novo e detalhado relatório sobre os casos de presos desaparecidos no país enele sugeriram ao governo que revisasse sua legislação de forma que os crimes de tortura, genocídio edesaparecimento forçado fossem integrados à legislação nacional uruguaia 26 . Ainda que estas medidaspossam ter sido identificadas como saldo positivo da atuação da Comissão uruguaia, é possível,contudo, apontar limitações em seus resultados.Nesse sentido, ao tentar avaliar os resultados dos mecanismos adotados no Uruguai para tratarda questão da violência praticada durante e em nome do regime autoritário, Pablo Galain Palermo 27constata que:Con la creación de la Comisión para la Paz [...] se procura “la paz del alma” y sepretende ofrecer información verídica y oficial a las víctimas para cumplir con losprincipios del derecho a la verdad y a la reparación, así como reconstruir la memoriacolectiva. Sin embargo, esa información se limitó a los casos de desapariciones forzadasy no hizo referencia a los sistemáticos crímenes de tortura practicadosindiscriminadamente a todos los detenidos durante la dictadura. Además, la Comisiónpara la Paz no tuvo potestades para determinar responsabilidades ni para investigar, por2324252627BRASIL; Secretaria de Direitos Humanos. Habeas Corpus: que se apresente o corpo: a busca dosdesaparecidos políticos no Brasil. Brasília: SDH, 2010. p. 49-52; PALERMO, Pablo Galain. Justicia de transición:informes nacionales (Uruguay). In: AMBOS, Kai; MALARINO, Ezequiel; ELSNER, Gisela (Edit.). Justicia deTransición: con informes de América Latina, Alemania, Italia y España. Montevideo: Fundación Konrad-Adenauer-Stiftung, 2009. p. 391-414.O caso “Gelman” relaciona-se ao processamento, junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), docaso de sequestro, morte e desaparecimento da militante política argentina María Claudia García de Gelman,nora do poeta argentino Juan Gelman. Sequestrada nos marcos da Operação Condor em Buenos Aires em1976 e grávida de sete meses, María Claudia foi levada para Montevidéu, onde teve a filha María Macarena, e,pouco tempo depois de dar à luz à criança, desapareceu. Sua filha, María Macarena foi adotada ilegalmente ecriada por uma família de oficiais uruguaios, tendo sua verdadeira identidade restabelecida somente no ano2000. Em março de 2011 a CIDH condenou o Estado uruguaio a esclarecer as circunstâncias da morte edesaparição e a atribuir as devidas responsabilidades aos oficiais envolvidos no crime. Em março de 2012, opresidente do Uruguai, José Mujica, em cumprimento à determinação da sentença da CIDH reconheceupublicamente a responsabilidade do Estado uruguaio e pediu desculpas oficias pelos crimes cometidos contra afamília de Macarena.MIRANDA, Javier. Op. cit. p. 33.BRASIL; Secretaria de Direitos Humanos. Habeas Corpus: que se apresente o corpo: a busca dosdesaparecidos políticos no Brasil. Brasília: SDH, 2010. p. 50-51.PALERMO, Pablo Galain. Op. cit. p. 411.335


lo que la verdad oficial recabada es parcial y no tiene por ende capacidad para cerrar latransición.No que diz respeito aos primeiros anos de atuação e organização da causa dos familiares noChile, familiares chilenos foram apoiados por organizações religiosas, como a “Vicaría de Solidaridad”,sendo grande parte deste apoio obtido com o surgimento, fortalecimento e/ou ampliação dosmovimentos em defesa dos direitos humanos na América Latina. De acordo com Kathryn Sikkink 28 :O golpe de 1973, no Chile, foi um divisor de águas na criação da rede de direitoshumanos na América Latina. [...] Em resposta ao golpe chileno, aumentaram osmembros das organizações existentes de direitos humanos, tais como a AnistiaInternacional (tanto na Europa como nos Estados Unidos), e novas organizações foramcriadas, inclusive o Washington Office on Latin America [Escritório de Washington para aAmérica Latina] e o Council on Hemispheric Affairs [Conselho sobre AssuntosHemisféricos]. As organizações chilenas que se formaram para enfrentar a repressão dogoverno, especialmente o Comitê pela Paz (depois conhecido como Vicaría deSolidaridad), tornaram-se modelos para os grupos de direitos humanos em toda aAmérica Latina assim como fontes de informação e inspiração para os ativistas dedireitos humanos nos Estados Unidos e na Europa.Verifica-se a existência de uma diferença na organização da causa por parte dos familiares noBrasil e no Chile quando observa-se que, enquanto no Brasil as demandas dos familiares de mortos edesaparecidos políticos foi centralizada em uma organização específica, a CFMDP, no Chile a questãotambém foi trabalhada de forma fragmentada. Isto é, foram criadas organizações para tratar dosinteresses doa familiares dos mortos, a Agrupación de Familiares de Ejecutados Políticos 29 en Chile(AFEP), e outra para dar conta das famílias de desaparecidos, a Agrupación de Familiares de DetenidosDesaparecidos 30 (AFDD).A ditadura chilena terminou em março de 1990. Em abril, quando foi criada a “ComissãoNacional de Verdade e Reconciliação”, começou a ser trilhado o caminho das políticas da memórianaquele país 31 , fato este que permite, portanto, que se diga que falar nos caminhos do Direito à Memóriae à Verdade no Chile é falar sobre os resultados do trabalho da Comissão da Verdade. Tambémconhecida como “Comissão Rettig”, por ter sido presidida pelo advogado Raúl Rettig Guissen, aComissão da Verdade chilena produziu um relatório sobre as maiores violações aos direitos humanosocorridas entre 1973 e 1990 no Chile, e teve uma vigência de nove meses. Apesar de serem enfrentadosproblemas referentes à aceitação do relatório por parte das Forças Armadas e do Judiciário 32 , comodecorrência da implementação dessa primeira política de larga escala para recomposição-enfrentamentoda memória do período autoritário chileno, encontra-se, em 1992, a criação da “Comissão Nacional deReparação e Reconciliação”.Desde a sua criação, a Comissão Nacional de Reparação e Reconciliação reparou familiares demortos e desaparecidos políticos, realizou programas de apoio social e legal à estas famílias; organizoucentros de documentação sobre o período; promoveu a busca dos cadáveres das vítimas do aparatorepressivo estatal; além de ter empreendido uma série de políticas educacionais voltadas para aconsolidação do respeito aos direitos humanos. A partir de 2003, uma nova comissão (“ComissãoNacional sobre Prisão Política e Tortura”) também passou a reparar pessoas que foram presas e/outorturadas pela ditadura. Quando o relatório produzido na primeira etapa de trabalhos desta novacomissão estava para ser publicado, em novembro de 2004, o Comandante-Chefe das Forças Armadaschilenas reconheceu publicamente a responsabilidade das Forças Armadas pelos crimes cometidos.Sobre a atuação das Comissões chilenas José Luis Guzmán Dalbora 33 diz:Tanto la Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación como la Comisión Nacionalsobre Prisión Política y Tortura dieron cima a sus informes con un conjunto depropuestas de reparación, reconciliación y prevención. No todas, ni siquiera la mayoría,282930313233SIKKINK, Kathryn. A emergência, efetividade e evolução da Rede de Direitos Humanos da América Latina. In:JELIN, Elizabeth; HERSHBERG, Eric (Org.). Construindo a democracia: direitos humanos, cidadania esociedade na América Latina. São Paulo: EDUSP / NEV, 2006. p. 102-103.Para mais informações sobre o trabalho da AFEP, ver: .Para mais informações sobre o trabalho da AFDD, ver: .BRASIL; Secretaria de Direitos Humanos. Habeas Corpus: que se apresente o corpo: a busca dosdesaparecidos políticos no Brasil. Brasília: SDH, 2010. p. 44-49; GUZMÁN DALBORA, José Luis. Justicia detransición: informes nacionales (Chile). In: AMBOS, Kai; MALARINO, Ezequiel; ELSNER, Gisela (Edit.). Justiciade Transición: con informes de América Latina, Alemania, Italia y España. Montevideo: Fundación Konrad-Adenauer-Stiftung, 2009. p. 201-234.GUZMÁN DALBORA, José Luis. Op. cit. p. 226.GUZMÁN DALBORA, José Luis. Op. cit. p. 219.336


se han incorporado formalmente al ordenamiento jurídico. Las leyes aprobadas hasta elmomento tratan del asunto más urgente, la reparación de las víctimas y sus familias. Encambio, no se divisan aún las modificaciones que demanda el ordenamiento jurídicopara adecuarlo al derecho internacional de los derechos fundamentales, imprimir en elentero aparato público las valoraciones resultantes y sancionar convenientemente losatentados más graves contra los bienes jurídicos respectivos.Apesar dessas críticas e de a Lei de Anistia chilena não ter sido revogada ou revista até aatualidade, processos judiciais baseados na normativa internacional, que compreende os crimes detortura, morte e desaparecimento de pessoas como crimes contra a humanidade, têm permitido quealguns agentes sejam processados. Pinochet, entretanto, faleceu em 2006 sem ter sido definitivamentejulgado em nenhum dos mais de 200 processos que tramitavam contra ele na Justiça chilena.Comparado às experiências ditatoriais de países vizinhos como a Argentina e o Chile, o saldo darepressão relativo aos mortos e desaparecidos políticos no Brasil é menos impactante. Enquanto naArgentina estima-se em aproximadamente 30 mil o número de desaparecidos, e, no Chile, este cálculofica em torno de 5 mil ocorrências, no Brasil foram identificados pela CFMDP, até a atualidade, 436casos de mortes e/ou desaparecimentos políticos 34 . O baixo saldo de vítimas fatais da repressãobrasileira comparada à argentina e chilena, contudo, não deve servir como fundamento à deslegitimaçãoda causa dos familiares de uma país ante os demais, afinal, o que deve ser levado em conta não é onúmero de casos, mas sim a existência ou não desta modalidade de crime político.Considerações finaisAinda que o período autoritário nos países estudados contenha particularidades evidentes noque diz respeito ao momento do golpe, à duração da ditadura e ao processo de transição, como aspectosemelhante no saldo da repressão praticada verifica-se a existência de mortos e desaparecidos políticos.Como é possível depreender da exposição, encontra-se no Brasil, Chile e Uruguai uma série deavanços e limitações atrelados à forma como a memória do período foi trabalhada a partir da transição àdemocracia. Mecanismos jurídicos para que as demandas dos familiares das vítimas sejam atendidas,existem. O que persiste, no entanto, é uma dificuldade – visivelmente maior no caso brasileiro – de seenfrentar-refletir pública e coletivamente sobre a questão. As possibilidades são muitas, mas, semdebater o tema e resgatar essas memórias, as mesmas continuarão sendo tão limitadas quanto aspolíticas elaboradas em cada país.Referências Bibliográficas:ACUÑA, Carlos H.; SMULOVITZ, Catalina. O ajuste das Forças Armadas à democracia: sucessos,fracassos e ambigüidades no Cone Sul. In: JELIN, Elizabeth; HERSHBERG, Eric (Org.). Construindo ademocracia: direitos humanos, cidadania e sociedade na América Latina. São Paulo: EDUSP / NEV,2006. p. 35-69.ALMEIDA, Criméia Schmidt de; et al. (2009). Dossiê ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil(1964-1985). 2.ed. revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.AMNISTÍA INTERNACIONAL. (1983). Desapariciones. Madrid: Editorial Fundamentos._____. (1993). Crímenes sin castigo: homicidios políticos y desapariciones forzadas. Madrid: EDAI.ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. (1985). Brasil: nunca mais. 4.ed. Petrópolis: Vozes.ARTURI, Carlos S. (2001). O debate teórico sobre mudança de regime político: o caso brasileiro. Revistade Sociologia e Política, n.17, Curitiba, nov. 2001, p. 11-31.BRASIL; Secretaria Especial de Direitos Humanos; Comissão Especial sobre Mortos e DesaparecidosPolíticos. (2007). Direito à memória e direito à verdade. Brasília: SEDH._____; Secretaria de Direitos Humanos. (2010). Habeas Corpus: que se apresente o corpo: a busca dosdesaparecidos políticos no Brasil. Brasília: SDH.GALLO, Carlos Artur. (2012). Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça: um estudo sobreo trabalho da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil. 117f. Dissertação(Mestrado em Ciência Política). Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Instituto de Filosofia eCiências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Versão eletrônicadisponível em: .34ALMEIDA, Criméia Schmidt de; et al. Op. cit.337


GUZMÁN DALBORA, José Luis. (2009). Justicia de transición: informes nacionales (Chile). In: AMBOS,Kai; MALARINO, Ezequiel; ELSNER, Gisela (Edit.). Justicia de Transición: con informes de AméricaLatina, Alemania, Italia y España. Montevideo: Fundación Konrad-Adenauer-Stiftung. p. 201-234.MARTINS, Luciano. (1988). A “liberalização” do regime autoritário no Brasil. In: O’DONNELL, Guillermo;SCHMITTER, Philippe C.; WHITEHEAD, Laurence (Org.). Transições do regime autoritário: AméricaLatina. São Paulo: Vértice / Revista dos Tribunais. p. 108-139.MEZAROBBA, Glenda. (2003). Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências: umestudo do caso brasileiro. 213f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de São Paulo, São Paulo._____. (2009). Anistia de 1979: o que restou da lei forjada pelo arbítrio? In: SANTOS, Cecília MacDowell;TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida (Org.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça noBrasil. v.2. São Paulo: HUCITEC. p. 372-385.MIRANDA, Javier (Coord.). (2009). Itinerários de los derechos humanos en el Uruguay 1985-2007:temas, actors y visibilidad pública. Montevideo: Fundación Konrad-Adenauer-Stiftung / CLAEH.MOTTA, Rodrigo Patto Sá. (2002). Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil(1917-1964). São Paulo: Perspectiva/Fapesp.PADRÓS, Enrique Serra. (2005). Como el Uruguay, no hay... Terror de Estado e Segurança NacionalUruguai (1968-1985): do pachecato à ditadura civil-militar. 874f. [2v.]. Tese (Doutorado em História) –Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.PALERMO, Pablo Galain. (2009). Justicia de transición: informes nacionales (Uruguay). In: AMBOS, Kai;MALARINO, Ezequiel; ELSNER, Gisela (Edit.). Justicia de Transición: con informes de América Latina,Alemania, Italia y España. Montevideo: Fundación Konrad-Adenauer-Stiftung. p. 391-414.ROJAS ARAVENA, Francisco. A detenção do general Pinochet e as relações civis-militares. In:D’ARAÚJO, Maria Celina; CASTRO, Celso (Org.). Democracia e Forças Armadas no Cone Sul. Rio deJaneiro: Editora FGV. p. 125-157.SIKKINK, Kathryn. A emergência, efetividade e evolução da Rede de Direitos Humanos da AméricaLatina. In: JELIN, Elizabeth; HERSHBERG, Eric (Org.). Construindo a democracia: direitos humanos,cidadania e sociedade na América Latina. São Paulo: EDUSP / NEV, 2006. p. 102-103.VILLALOBOS, Marco Antônio Vargas. (2006). Uruguai: autoritarismo e ditadura. In: PADRÓS, EnriqueSerra (Org.). As ditaduras de Segurança Nacional: Brasil e Cone Sul. Porto Alegre: Corag. p. 23-31.338


A ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul e a formação de redes desolidariedade na fronteira Brasil-UruguaiMarla Barbosa Assumpção 1Resumo: O artigo se propõe a analisar a formação de redes de solidariedade e resistência na fronteiraentre o Brasil e o Uruguai, desencadeadas a partir da deflagração do golpe de Estado em 1964. Com ainstauração de uma ditadura civil-militar, a fronteira do Rio Grande do Sul assume um papel de destaqueno cenário nacional e internacional em função de sua localização privilegiada, tanto do ponto de vista darepressão como da resistência. Nesse contexto, o Uruguai se destacou como o principal endereçodaqueles que foram impelidos a deixar o Brasil e a fronteira terrestre entre ambos os países – sobretudoas cidades de Santana do Livramento e Rivera – foi a rota de saída mais utilizada. Ademais de seconstituir como uma região de passagem, ela se configurou enquanto local de permanência para muitosmilitantes que se deslocaram para o outro lado da linha divisória, fato este que desencadeou a formaçãodas mencionadas redes.Palavras-chave: ditadura civil-militar – fronteira – redes de solidariedadeAbstract: The article aims to analyze the formation of solidarity and resistance networks on the borderbetween Brazil and Uruguay, unleashed by the deflagration of the coup d'etat in 1964. With theestablishment of a civil-military dictatorship, the border of Rio Grande do Sul assumes a prominent role inthe national and international scene due to its prime location, both from the point of view of repressionand resistance. In this context, Uruguay stood out as the main address of those who were compelled toleave Brazil and the land border between the two countries - especially the cities of Rivera and Santanado Livramento - was the most used exit route. In addition to constitute itself as a region of passage, it wasconfigured as a place of residence for many activists who have moved to the other side of the dividingline, a fact that prompted the formation of the mentioned networks.Keywords: civil-military dictatorship – border – solidarity networksO presente artigo objetiva analisar as dinâmicas diferenciadas atravessadas pelo Rio Grande doSul, tendo em vista a sua configuração fronteiriça, no contexto desencadeado com a deflagração dogolpe de Estado no Brasil, em 31 de março de 1964. Nesse momento, o estado era uma rota quaseobrigatória de passagem para os demais países do Cone Sul, despertando a preocupação dasautoridades brasileiras, que almejavam por fim ao fluxo de pessoas que atravessavam a fronteira gaúcharumo aos territórios vizinhos – sobretudo em direção ao Uruguai, nos primeiros anos que se seguiram aogolpe – ou que reingressavam no Brasil, na tentativa, muitas vezes, de conectar o exílio com umadebilitada resistência interna. Nesse sentido, percebe-se que o Rio Grande do Sul configurou-se comoum estado-chave no mapa da mobilidade tanto da repressão quanto da resistência.Tendo em vista os mencionados aspectos, o presente trabalho analisará a constituição de redesde solidariedade na fronteira entre o Brasil e o Uruguai, destacadamente em Santana do Livramento eRivera, que auxiliaram na passagem e, inclusive, na permanência de diversas pessoas que foram, diretaou indiretamente, impelidas a deixar o território brasileiro no contexto supracitado. Com esse intuito,acredita-se ser de suma importância discutir as dinâmicas específicas características do ambientefronteiriço para, em seguida, analisar a estruturação das mencionadas redes.O intercâmbio político entre os agentes fronteiriços de Brasil-UruguaiPrimeiramente, é importante destacar que a noção de fronteira, que constitui um dos cernes dapresente análise, apresenta um caráter, aparentemente, contraditório, mas que lhe é inerente, qual seja,sendo o limite entre objetos ou fenômenos, ela tanto separa, quanto os põe em contato. Em outraspalavras, conforme afirmaram Adriana Dorfman e Gladys Rosés, “a fronteira é uma característica dequalquer objeto ou fenômeno, cuja existência possua extensão e fim. O fim, ou fronteira, representarátambém o contato, caso haja um objeto ou fenômeno de igual natureza adjacente ao primeiro.” 212Licenciada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestranda com bolsa CNPqdo Programa de Pós-Graduação em História/UFRGS. E-mail: marlalua@yahoo.com.brDORFMAN, Adriana; ROSÉS, Gladys. Regionalismo fronteiriço e o “Acordo para os nacionais fronteiriços339


Ainda que noções como limite e fronteira sejam antigas, esses termos passaram a sersistematicamente utilizados e alcançaram acentuada relevância para os campos da Geografia Política,Ciência Política, entre outros, sobretudo com o desenvolvimento do sistema de estados nacionais. Apartir de então, noções como a de limite internacional tornaram-se centrais nas análises que versamsobre esse tema. Segundo Lia Osório Machado,O limite internacional foi estabelecido como conceito jurídico associado ao Estadoterritorial no sentido de delimitar espaços mutuamente excludentes e definir o perímetromáximo de controle soberano exercido por um Estado central. Apesar de não ter vidaprópria nem existência material (por definição, a linha é abstrata e não pertence anenhum dos lados) o limite internacional não é uma ficção e sim uma realidadegeográfica que gera outras realidades. 3A noção de fronteira internacional, por sua vez, refere-se a uma realidade mais complexa do queaquela encerrada pelo limite, já queo conceito de fronteira internacional se refere a uma área indefinida, uma zonapercorrida pelo limite internacional e que se aproxima da noção geográfica de região. Noentanto, na realidade o ambiente geográfico de fronteira é mais complexo do que aquelesimbolizado pelo limite, pois se faz pela territorialização de grupos humanos e de redesde circulação e intercâmbio, unidos pela permeabilidade dos limites estatais através dacomunicação entre populações pertencentes a diferentes sistemas de poder territorial. 4A posição geográfica singular, responsável por marcar o começo e o fim do estado nacional,confere à fronteira uma territorialização definida pela proximidade entre populações separadas, aindaque, muitas vezes, apenas formalmente, pelo limite internacional. Tal noção de zona de fronteira referesea um espaço relacional e não dicotômico. E é justamente a partir dessa concepção relacional que nãoconstitui um paradoxo o fato de a zona de fronteira ser ao mesmo tempo lugar de comunicação e troca etambém de tensão e conflito, visto ser intrínseco à fronteira reunir noções aparentemente contraditórias.Nesse sentido, no que concerne à fronteira internacional, percebe-se um espaço onde se entrelaçam asinfluências dos estados em contato, a partir do compartilhamento de diversas práticas no âmbito social,econômico, político e cultural. Assim, ao mesmo tempo em que distingue os territórios estatais, afronteira não os torna estanques, uma vez que o fluxo de pessoas, objetos, práticas, informações, entreoutros, cruza permanentemente o limite.Em síntese, em relação às noções elencadas anteriormente, pode-se dizer queenquanto a fronteira pode ser um fator de integração, na medida que for uma zona deinterpenetração mútua e de constante manipulação de estruturas sócio-políticas eculturais distintas, o limite é um fator de separação, pois separa unidades políticassoberanas e permanece como um obstáculo fixo, não importando a presença de certosfatores comuns, físico-gegráficos ou culturais. 5 (grifos da autora)No tocante ao estado do Rio Grande do Sul e, mais especificamente, à sua região fronteiriça,foco da presente análise, pode-se dizer que este constitui um espaço diferenciado em relação aoscentros – políticos e econômicos – do país. Nesse sentido, vale destacar que a região de fronteira émarcada poruma sobreposição de dinâmicas sócio-econômicas diversas que a tornam uma difusazona de transição que acaba diferindo das características nacionais dos países emcontato. [...] Conseqüentemente, forma-se um novo espaço que contém territórios dospaíses em contato e que sofre, além dos influxos das economias nacionais, umadinâmica própria resultante da interação social dos agentes fronteiriços. 63456brasileiros e uruguaios”. In: OLIVEIRA, Tito Carlos Machado de (Org.). Território sem Limites: estudos sobrefronteiras. Campo Grande: Editora UFMS, 2005. p. 196.MACHADO, Lia Osório. Cidades na fronteira internacional: conceitos e tipologia. In: NÚÑEZ, Ángel; PADOIN,Maria Medianeira; OLIVEIRA, Tito Carlos Machado de (Org.). Dilemas e diálogos platinos: fronteiras. Dourados:Ed. UFGD, 2010. p. 60-61.Ibid., p. 62-63.MACHADO, Lia Osório. Limites, Fronteiras, Redes. In: STROHAECKER, Tânia Marques; DAMIANI, Anelisa;SCHÄFFER, Neiva Otero; BLAUTH, Nely; DUTRA, Viviane Saad (Org.). Fronteiras e espaço global. PortoAlegre: Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Porto Alegre, 1998. p. 42.PADRÓS, Enrique. Fronteiras e Integração Fronteiriça: elementos para uma abordagem conceitual. Humanas:Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, Porto Alegre, v. 17, n. 1/2, jan./dez. 1994. p.69.340


O mencionado estado possui uma linha divisória internacional com a Argentina e o Uruguai deaproximadamente 1700 Km de extensão, dos quais 1003 Km de divisa com a Banda Oriental. 7 É válidoressaltar, ainda, que o Rio Grande do Sul é o único estado brasileiro a fazer fronteira com o Uruguai. Aolongo desse limite, com o passar do tempo, estabeleceram-se pares de centros urbanos entre aspopulações orientais e suas contrapartes brasileiras, que se tornaram “áreas privilegiadas de contato eentrelaçamento político” 8 .Ao se trabalhar com um espaço singular, como é o caso das cidades de fronteira – foco dopresente trabalho –, é importante levar em consideração que nem todas as interações que conformam asdinâmicas locais possuem respaldo institucional. Trata-se, muitas vezes, de práticas originárias dedemandas que não são legitimadas juridicamente, mas que são características do cotidiano fronteiriço. 9Ainda que um panorama histórico de formação da fronteira aqui analisada esteja além dospropósitos do presente trabalho, acredita-se ser importante destacar que, a despeito dos conflitos serema tônica da região quando de seu delineamento, este espaço, desde muito cedo, foi marcado porrelações de troca que forjavam uma história com elementos em comum. 10 Nesse sentido, constituiu-se,com o passar dos anos, uma situação de cooperação, chave para o entendimento das relaçõestraçadas entre os agentes fronteiriços desde então:La realidad espacial de contacto e integración de hecho, genera un espacio fronterizosingular, son verdaderos territorios diferenciados con códigos comunes que le dansentido. Ese espacio fronterizo de interrelaciones de profundidad histórica, de cotidianosque construyen el presente, escapa a limitaciones políticamente impuestas, haciaconstrucciones comunes y específicas. 11Cabe ainda destacar que a fronteira analisada configura o que muitos autores chamam decidades-gêmeas, ou seja, “núcleos localizados de um lado e outro do limite internacional, cujainterdependência é com freqüência maior do que de cada cidade com sua região ou com o próprioterritório nacional.” 12 Essas aglomerações próximas ao limite internacional – dentre as quais destacamseas mencionadas cidades geminadas – possuem potencial acentuado de atuarem como nódulosarticuladores de redes locais, regionais, nacionais e transnacionais. Vale ainda ressaltar que, a despeitode operarem, em maior ou menor grau, em todo território nacional, “essas redes encontram um ambienteque favorece o estabelecimento de nódulos de articulação transnacionais nas cidades de fronteira,particularmente nas cidades situadas na divisa internacional – o ambiente fronteiriço.” 13Conforme se pode observar pelos aspectos supracitados, nesse espaço singular, as relaçõestravadas perpassam as mais variadas esferas da sociedade. Sendo assim, essa região era e éimpactada pelos fatos ocorridos em ambos os lados da linha demarcatória: “os acontecimentos políticosdaqui repercutiam lá e vice-versa. Isto é, na esfera política igualmente se manifestou a interaçãointer-regional já anteriormente percebida nas imbricações socioeconômicas e culturaisantecedentes.” 14 No tocante ao intercâmbio político nessa região de fronteira, vale destacar que esteremonta às primeiras tentativas de apropriação desse espaço. E esse entrelaçamento político, registradohistoricamente, chega até o presente momento. 15É válido ressaltar também que a forte atração exercida pela região fronteiriça, e o decorrentetrânsito bilateral, era fonte de preocupação para as autoridades constituídas, especialmente emconjunturas de conturbação política, quando a fronteira acabava atraindo os grupos sublevados:“También en el plano político, la frontera se asume como ‘refugio’: Movimientos revolucionarios ydictaduras han movilizado la búsqueda del ‘otro lado’ en ese sentido.” 16 Este recurso foi historicamenteutilizado em diferentes contextos, sendo válido também em relação ao período abarcado pelo presente78910111213141516SCHÄFFER, Neiva Otero. A especificidade funcional da urbanização na fronteira meridional do Estado. HistóriaDebates e Tendências: Revista do PPGH, Passo Fundo, V. 3, n. 2, dez. 2002. p. 136.DORMAN; ROSÉS. In: OLIVEIRA, op. cit, p. 201.OLIVEIRA, Tito Carlos Machado de. Tipologia das relações fronteiriças: elementos para o debate teóricopráticos.In: ______ (Org.), op. cit., p. 378.SOUZA, Suzana Bleil et al. (Org.). Práticas de integração nas fronteiras: temas para o Mercosul. Porto Alegre:Ed. UFRGS / Instituto Goethe, 1995. p. 155.BENTANCOR, Gladys Teresa. Las fronteras en un contexto de cambios: la vida cotidiana en ciudades gemelas -Rivera (Uruguay) y Sant’Ana do Livramento (Brasil). Revista Ateliê Geográfico, Goiânia, v. 2, n. 3, maio de 2008.p. 24.MACHADO, Lia Osório.Cidades na fronteira internacional... p. 66.Ibid., p. 71.RECKZIEGEL, Ana Luiza. A fronteira como marco das conexões políticas inter-regionais. História Debates eTendências: Revista do PPGH, Passo Fundo, V. 3, n. 2, dez. 2002. p. 29.BENTANCOR, op. cit, p. 28.Ibid,, p. 35-36.341


trabalho. Nesse sentido,Ao longo do século XX, foi prática comum na política do Cone Sul a brusca mudança naordem do poder, com a substituição dos líderes e a perseguição dos derrotados. Comoconsequência, sucederam-se os exílios, tendo como destino frequente a áreafronteiriça do país vizinho, lugar de asilo e proteção sem distanciamento, facilitado pelafamiliaridade cultural e proximidade geográfica, e possibilitando a continuidade daslutas. Esse foi o caso de Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola, entre muitosoutros. Da mesma forma, a repressão política durante o período ditatorial no Cone Suldesconsiderou os limites nacionais e criou a região de ação do Plano Condor. 17Assim, em 31 de março de 1964, com a deflagração do golpe de Estado no Brasil e a decorrenteinstauração de uma ditadura de Segurança Nacional, o estado do Rio Grande do Sul – e, sobretudo, asua região fronteiriça – assume um papel de destaque, dentre outros motivos, em função de sualocalização privilegiada, tanto do ponto de vista da repressão como da resistência. Nesse contexto, oUruguai – que possuía uma longa tradição democrática e profunda solidariedade na acolhida aosasilados políticos – se destacou como o principal endereço da primeira geração de exilados. Por essasquestões, possivelmente aliadas a outros motivos, o mencionado estado, ao possuir uma extensa eimportante faixa de fronteira com os países do Prata, torna-se central nesse contexto, despertando aatenção dos agentes da repressão brasileira, que monitoravam a região no intuito, principalmente, depôr fim ao fluxo de pessoas que a atravessavam rumo, sobretudo, ao Uruguai, mas que tambémprocuravam reingressar no país, na tentativa, muitas vezes, de articular o exílio com uma debilitadaresistência interna. Tais elementos, somados a tantos outros, contribuíram para o clima de efervescênciapolítica e, possivelmente, concorreram para que a região fronteiriça gaúcha sofresse um processo deintervenção, por parte do Conselho de Segurança Nacional, em 1968.Redes de solidariedade na fronteira de Santana do Livramento e RiveraA ditadura civil-militar brasileira, desencadeada com o golpe de Estado em 1964, já em umprimeiro momento, repercutiu na fronteira de Santana do Livramento e Rivera. Nesse sentido, valedestacar que o então prefeito petebista de Livramento, Sérgio Fuentes, criou um foco de resistência naPrefeitura do Município com vistas a defender a ordem democrática e a apoiar o presidente deposto. Épatente, nesse momento, a participação e a solidariedade dos riverenses com os brasileiros de Santanado Livramento, fruto, possivelmente, dos já citados vínculos existentes entre ambos os lados. Essaregião possuía forte influência do trabalhismo – um dos “inimigos internos” a ser combatido pelo novoregime, segundo premissas da Doutrina de Segurança Nacional. De acordo com Marlon Assef,[...] com o golpe já em andamento, nos primeiros momentos do dia 1º de abril, SérgioFuentes decide dispor a Prefeitura Municipal como sede da resistência. No saguão doprédio é instalado um transmissor de rádio, doado por militantes comunistas de Rivera.Para lá se dirigem representantes sindicais, jornalistas, ativistas políticos esimpatizantes do governo deposto. 18Contudo, a percepção da efetivação do golpe, ainda nos primeiros dias de abril de 1964,produziu forte impacto sobre a dinâmica fronteiriça e sobre os atores locais. Assim,para os envolvidos diretamente com os partidos opositores e líderes sindicais, a saídaemergencial foi um breve resguardo em Rivera, à espera dos acontecimentos. Amovimentação dos atores políticos perseguidos e autoexilados começava a aumentardia a dia, conferindo outro perfil político à fronteira, renovando um ciclo que mais umavez abraçaria a região. 19Dessa forma, o fluxo de pessoas proveniente de Livramento, e que se resguardou em Rivera,assim como daqueles que vieram de diferentes regiões do país, e que atravessaram para o Uruguai, foiaumentando paulatinamente. Para aqueles que optavam pelas mencionadas cidades gêmeas enquantorota de saída, a sobrevivência exigia uma carga de informações que incluía, dentre outras coisas, oconhecimento do sinuoso traçado entre os dois países. E para ingressar no país vizinho era necessáriotambém burlar os complexos mecanismos de vigilância da fronteira.Dentre aquelas famílias que se estabeleceram na fronteira Brasil-Uruguai após 1964, algumas já171819DORFMAN; ROSÉS. In: OLIVEIRA, op. cit., p. 206.ASSEF, Marlon. Retratos do exílio: solidariedade e resistência na fronteira. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2009.p. 65.Ibid., p. 72.342


possuíam laços de parentesco em Livramento e Rivera, o que certamente facilitou, em alguma medida, oestabelecimento na região. Não obstante, outras pessoas lá chegaram com pouca ou nenhumareferência. Em ambos os casos, a constituição de redes de solidariedade locais se mostrou defundamental importância para aqueles que lá se instalavam.Assim, o êxito da passagem para o país vizinho dependia da conexão realizada, através demilitantes políticos, entre aqueles que almejam deixar o país e a base de apoio na cidade fronteiriça.Inicialmente, o núcleo santanense do Partido Comunista Brasileiro (PCB), acostumado à clandestinidadedos anos precedentes, assumiu a recepção aos que buscavam refúgio na região de fronteira. Valedestacar que o PCB, justamente por estar na clandestinidade, reunia-se, muitas vezes, do lado uruguaio,mesmo antes do golpe de Estado de 1964, conforme destacou Sérgio Alves Perez, filho de comunistabrasileiro exilado em 1950, em função do massacre responsável pela morte de militantes comunistas,ocorrido na Praça Internacional situada na fronteira em questão. É válido ressaltar que o PartidoComunista Uruguaio (PCU) também auxiliou aquelas pessoas que, por diversas razões, foram impelidas,direta ou indiretamente, a deixar o território brasileiro, saindo pela fronteira estudada. Nas palavras dopróprio Sérgio, “o PCU cumpriu um papel fundamental em toda essa história, porque [...] se encarregoude ajudar todas essas pessoas que passavam para o outro lado.” 20 Essa ajuda, segundo relata, envolviadesde a obtenção de comida até um lugar para se dormir. Estoecel Santana destaca também, em seudepoimento, a participação de cidadãos uruguaios na constituição dessas redes locais: “Nóstínhamos muito apoio dos uruguaios e de cidadãos brasileiros que moravam aqui [...] e do PartidoComunista do Uruguai, que nos deu um grande apoio.” 21A marcante atuação do PCB e do PCU se conjugava com a ação de diversos outros grupospartidários ou não, como, por exemplo, religiosos e funcionários públicos locais de ambos os lados dafronteira, assim como de diversas famílias. Além disso, estabeleceu-se uma rede de informações, queenvolvia contatos da polícia brasileira e uruguaia, assim como eram obtidos dados privilegiados dopróprio Exército, conseguidos, muitas vezes, através de redes de parentesco e amizades. SegundoEdair Machado Pujol, “aqui na fronteira as pessoas eram solidárias. Às vezes, não eram nem políticos,mas ajudavam. Não estavam nem envolvidas com política e ajudavam.” 22 Assim, a colaboração decidadãos sem um histórico de envolvimento político – e, portanto, longe dos olhos da polícia – comaquelas pessoas que necessitavam de auxílio para atravessar para o país vizinho foi de extremaimportância. O mencionado auxílio aos que se encontravam exilados na fronteira ou que a utilizavamcomo rota de passagem ia desde a obtenção de algum emprego até algo para se comer, um lugar parase dormir, etc. Conforme relatou América Ineu Chaves,Na minha casa passaram inúmeros exilados. Tem uns que marcam a gente. Teve umrapaz, Armênio, que era de São Paulo, de Santos. Era ele e uma irmã. E ele apareceuna minha casa com os pés em carne viva. Ele veio de carona até Rosário. Eleconseguiu carona com um caminhão. E de Rosário até chegar aqui em Rivera, ele veiopor dentro dos campos, para poder não passar nos controles. Chegou praticamente sócom a roupa do corpo, de pés descalços. E eu fiquei chocada de ver o estado dele. Eera um menino também. [...] e daí eu fui conseguir com um sobrinho do Santana [...]roupa. Daí ele me levou roupa, levou calçado. 23É importante lembrar que, normalmente, os exilados tinham o seu nível social rebaixado, dadasas difíceis condições em que se encontravam em uma terra desconhecida: “Em geral, trata-se de umprocesso penoso, agravado pelas carências materiais, pelo descontentamento da língua, da culturae dos trâmites burocráticos, pela falta de documentos, pela não rara impossibilidade de exercer aprofissão de origem.” 24 Assim, a ajuda prestada por Estoecel Santana aos que lá chegavam semcondições materiais de sobreviver foi fundamental. Estoecel empregava algumas pessoas comoprofessores no curso que fundara para conseguir permanecer na fronteira.A partir dos relatos de Estoecel, pode-se perceber também que, a despeito de alguns militares epoliciais colaborarem com os exilados, segundo assinalado anteriormente, a vigilância era permanente:E aí, por incrível que pareça, este é um fato interessante: os milicos passaram a estudarlá [no curso fundado por ele]. Os militares, para fazer a escola militar. [...] Eu não podiaentrar aqui [Santana do Livramento], mas eles iam para lá [Rivera] [...] Aí, era gente queestudava na polícia, e tinham também os que eram investigadores, que iam para aula2021222324Entrevista concedida por Sérgio Alves Perez, 62 anos, em Santana do Livramento, em 18 de dezembro de 2012.Entrevista concedida por Estoecel Ribeiro Santana, 72 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de2010.Entrevista concedida por Edair Machado Pujol, 67 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de 2010.Entrevista concedida por América Ineu Chaves, 73 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de 2010.ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 28.343


para observar. 25A movimentação política na fronteira era intensa, a despeito da permanente vigilância a queestavam sujeitos os que por lá passavam ou viviam. Antônio Apoitia Neto assinalou alguns dosestratagemas utilizados para burlar esse controle:[...] quando havia uma reunião importante, que era uma reunião secreta, com pessoasque estavam foragidas da polícia, nós a fazíamos em um carro, dentro do automóvel, denoite. [...] E a gente discutia uma série de coisas sobre política, pra tomar algumadecisão sobre a passagem de algum fulano. E tinha um que ficava encarregado deconseguir um papel da polícia uruguaia. [...] Havia muita gente [que ajudava], tinhagente do Exército. [...] E isso era muito comum por aqui. E políticos passaram poraqui, gente do governo federal. É a natureza da fronteira, não é? Atravessa a rua e estádo outro lado. Com documento falso, que tinha gente aqui que fazia. 26Além de todo o auxílio prestado aos que necessitavam cruzar a fronteira ou que ali buscavamabrigo, podemos notar os vínculos políticos que conectavam Montevidéu – conhecida, nesse momento,como a “capital dos exilados” – a Porto Alegre, e vice-versa, assim como a atuação dos agentesfronteiriços nessa empreitada. Nesse sentido, a partir dos relatos de Apoitia Neto, pode-se perceber aconexão realizada entre o exílio daqueles que estavam em Montevidéu com a fronteira e, inclusive, coma capital gaúcha:Vim para Rivera, daí tirei a cidadania uruguaia e passei a ir freqüentemente aMontevidéu. [...] Eu tinha a certidão de identidade com outro nome e eu viajavafreqüentemente a Montevidéu. Tive contato com o Brizola, com o Jango, com o MinistroAmaury Silva [...] que estavam exilados lá, e com vários subversivos e exilados. E euusava documento falso. Eu usava outra identidade. E vivia indo de Rivera a Montevidéu.E Porto Alegre também. Fazia documentos, passava pessoas. Eu era muito ativonesse sentido. [...] Eu era subversivo, inimigo do regime, da ditadura. 27E acrescenta ainda: “a gente conseguia no Uruguai muito material político que fazia chegar atéPorto Alegre. Levava aquilo clandestinamente. Material de gente como o Jango, o Amaury, o Brizolaque estavam lá. Às vezes, correspondência.” 28 Esses vínculos entre o lado uruguaio e brasileiro,sobretudo no que concerne ao estado do Rio Grande do Sul, são patentes no relato de VladimirFagúndez, que tece comentários acerca dessa peculiaridade de um exílio vivido sem que houvesse umamarcante distância cultural, visto a proximidade espacial, social e cultural de ambos os países,principalmente entre os uruguaios e os sul rio-grandenses. 29A título de conclusão, torna-se necessário, ainda, tecer alguns comentários sobre a noção derede, que auxilia na compreensão de elementos que conectavam e possibilitavam a cooperação entreaqueles que necessitavam sair do país ou também reingressar em território nacional, no contextosupracitado, e os agentes fronteiriços que auxiliavam nesta empreitada. Para tanto, acredita-se quealguns aspectos referentes às análises de redes de migração possam ser úteis à compreensão dadinâmica estudada no presente trabalho, ainda que se trate de lógicas e processos, em muitos sentidos,distintos.Ao analisar a incorporação da abordagem das redes sociais às pesquisas de migraçãointernacional, no final da década de 1980, Gislene Santos afirma que os trabalhos que possuem omencionado enfoque evidenciaram que[...] a migração internacional ocorre ancorada nos laços das redes pessoais de relações,as quais, por sua vez, propiciam a circulação de informações e de pessoas, aliciando,amenizando e facultando a travessia e o alojamento do migrante desde o seu lugar deorigem até o país de destino. Táticas e estratégias são acionadas entre os membros darede, possibilitando que pessoas circulem e habitem em diferentes lugares, fundandoum uso do território que não se conforma aos limites físicos das fronteiras nacionais. 30252627282930Entrevista concedida por Estoecel Ribeiro Santana, 72 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de2010.Entrevista concedida por Antônio Apoitia Neto, 75 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de 2010.Entrevista concedida por Antônio Apoitia Neto, 75 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de 2010.Entrevista concedida por Antônio Apoitia Neto, 75 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de 2010.Entrevista concedida por Vladimir Fagúndez, 61 anos, em Santana do Livramento, em 18 de dezembro de 2012.SANTOS, Gislene Aparecida dos. Redes e território: reflexões sobre a migração. In: DIAS, Leila Christina;SILVEIRA, Rogério Leandro Lima da (Org.). Redes, sociedades e territórios. Santa Cruz do Sul: EDUNISC,2005. p. 53.344


A autora conclui também, ao analisar estudos que focalizam a maneira como se operacionalizamprocessos de migração, e assentada em argumentos presentes nesses trabalhos, que “a rede social damigração formou-se a partir de redes pessoais que existiam antes da ação migratória.” 31 Nesse sentido,no tocante à presente pesquisa, podemos inferir que os laços sociais existentes antes da eclosão dogolpe de 1964 mostraram-se de fundamental importância para a estruturação das redes de solidariedadena fronteira estudada, que contaram com a participação de cidadãos brasileiros e uruguaios, tendo emvista os já mencionados contatos existentes nas cidades geminadas.Diferentes relações são experimentadas pelos membros que se conectam através da rede,dentre as quais se destacam as relações de amizade e parentesco 32 . Em relação a esta última, conformesustenta Douglas Massey, “são uma das mais importantes bases da organização social da migração e asconexões familiares são um dos mais seguros laços dentro da rede.” 33 Conforme se pode perceber,através da análise das dinâmicas das redes de solidariedade na fronteira, as relações pessoais, dentreelas as familiares, tiveram um papel de suma importância no auxílio prestado aos que ali buscavamabrigo.Seguindo ainda os referenciados estudos, Gislene Santos conclui que “pertencer à rede socialimplica oportunizar recursos e informações, o que permite ao migrante amenizar as dificuldades de suatravessia, desde a sua partida até a hospedagem no local de destino e a garantia do emprego.” 34 Nessesentido, o auxílio prestado seja na passagem para o Uruguai, na acolhida de militantes em moradias nacidade de Rivera, seja ainda na obtenção de um emprego – conforme relatado por Estoecel Santana –evidencia a importância do papel desempenhado por essas redes fronteiriças de solidariedade. Sob essaótica, é emblemática a tentativa de Claudio Gutiérrez – que teve que sair do país, em função dacondenação pelo Superior Tribunal Militar, da qual foi vítima em outubro de 1969 – ao tentar criar umarede de apoio na fronteira Livramento-Rivera em 1972:Estabelecer-me em Rivera, construir uma infra-estrutura para permitir a passagem demilitantes, sem nenhum contato e sem dinheiro, revelou-se uma tarefa impossível. Porvolta de junho, me convenci da inviabilidade de minha missão naquelas condições eretornei a Montevidéu. 35No relato supracitado, é patente a importância das mencionadas redes, uma vez que a atuaçãosolitária mostrava-se, muitas vezes, de difícil execução. Percebe-se, pois, a importância dos agentesfronteiriços nesse contexto, que, de acordo com suas possibilidades, resistiram e burlaram osmecanismos de vigilância e repressão da ditadura, seja através de uma postura de enfrentamento maisexplícita, seja através do auxílio aos que necessitavam.Considerações finaisNo presente artigo, buscou-se evidenciar que o Rio Grande do Sul, por ser um estado queapresenta uma situação excepcional, acabava exigindo um permanente alerta e acompanhamento porparte das forças de segurança. Nesse sentido, desde a deflagração do golpe de Estado, a fronteirabrasileira passou a ser vigiada, principalmente na divisa com o Uruguai, já que muitos daqueles queforam perseguidos ou ameaçados pelo novo regime solicitaram asilo político neste país, ingressando nomesmo através da fronteira gaúcha. Vale destacar que a atuação dos agentes fronteiriços de ambos ospaíses, tanto no tocante ao auxílio aos que por lá passavam, quanto na obtenção de recursos para queesses permanecessem na fronteira, foi de vital importância diante da nova conjuntura políticaatravessada pelo país. Nesse sentido, acredita-se que, para uma adequada compreensão desseprocesso, é necessário atentar para os mencionados vínculos característicos do ambiente fronteiriço emquestão, que datam já dos momentos iniciais em que ocorreu o delineamento dessa fronteira.Por fim, vale destacar que a região de fronteira do estado gaúcho, que era um espaço-chave nomapa da mobilidade de militantes e, como decorrência, do aparato repressivo brasileiro, gradualmente,passou a ter as suas contrapartes fronteiriças marcadas pelo clima de insegurança, resultante dapaulatina deterioração da democracia uruguaia, que culminou, em 1973, com o golpe de Estado no paísvizinho.Referências Bibliográficas:3132333435Ibid., p. 54.Ibid., p. 67.MASSEY, Douglas et al. Return to aztlan. Los Angeles: University of California Press, 1987. apud SANTOS. In:DIAS; SILVEIRA, op. cit.,p. 53-54.SANTOS. In: DIAS; SILVEIRA, op. cit., p. 55.GUTIÉRREZ, Claudio. A guerrilha Brancaleone. Porto Alegre: Proletra, 1999. p. 98.345


ASSEF, Marlon. Retratos do exílio: solidariedade e resistência na fronteira. Santa Cruz do Sul:EDUNISC, 2009.BENTANCOR, Gladys Teresa. Las fronteras en un contexto de cambios: la vida cotidiana en ciudadesgemelas - Rivera (Uruguay) y Sant’Ana do Livramento (Brasil). Revista Ateliê Geográfico, Goiânia, v. 2, n.3, maio de 2008.DIAS, Leila Christina; SILVEIRA, Rogério Leandro Lima da (Org.). Redes, sociedades e territórios. SantaCruz do Sul: EDUNISC, 2005.FERNANDES, Ananda. Quando o inimigo ultrapassa a fronteira: as conexões repressivas entre aditadura civil-militar brasileira e o Uruguai (1964-1973). Dissertação (Mestrado em História) - PPGH,UFRGS, Porto Alegre, 2009.GUTIÉRREZ, Claudio. A guerrilha Brancaleone. Porto Alegre: Proletra, 1999.MACHADO, Lia Osório. Cidades na fronteira internacional: conceitos e tipologia. In: NÚÑEZ, Ángel;PADOIN, Maria Medianeira; OLIVEIRA, Tito Carlos Machado de (Org.). Dilemas e diálogos platinos:fronteiras. Dourados: Ed. UFGD, 2010.MACHADO, Lia Osório. Limites, Fronteiras, Redes. In: STROHAECKER, Tânia Marques; DAMIANI,Anelisa; SCHÄFFER, Neiva Otero; BLAUTH, Nely; DUTRA, Viviane Saad (Org.). Fronteiras e espaçoglobal. Porto Alegre: Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Porto Alegre, 1998.MARQUES, Teresa. Ditadura, Exílio e Oposição: os exilados brasileiros no Uruguai (1964-1967).Dissertação (Mestrado em História) – PPGH, UFMT, Cuiabá, 2006.OLIVEIRA, Tito Carlos de (Org.). Território sem Limites: estudos sobre fronteiras. Campo Grande: EditoraUFMS, 2005.PADRÓS, Enrique. Fronteiras e Integração Fronteiriça: elementos para uma abordagem conceitual.Humanas: Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, Porto Alegre, v. 17, n. 1/2,jan./dez. 1994.PADRÓS, Enrique et al. (Org.). A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985):História e Memória. Porto Alegre: Corag, 2010. 4 v.RECKZIEGEL, Ana Luiza. A fronteira como marco das conexões políticas inter-regionais. HistóriaDebates e Tendências: Revista do PPGH, Passo Fundo, V. 3, n. 2, dez. 2002.ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999.SCHÄFFER, Neiva Otero. A especificidade funcional da urbanização na fronteira meridional do Estado.História Debates e Tendências: Revista do PPGH, Passo Fundo, V. 3, n. 2, dez. 2002.SOUZA, Suzana Bleil et al. (Org.). Práticas de integração nas fronteiras: temas para o Mercosul. PortoAlegre: Ed. UFRGS / Instituto Goethe, 1995.346


Madres de Plaza de Mayo: o movimento que enfraqueceu o regime militar argentino(1976 – 1983)Arianne Chiogna 1Bruna Cardoso 2Resumo: O presente artigo tem como finalidade abordar a segunda fase da ditadura militar na Argentina.Iniciando desde o contexto chave desencadeador da repressão contra o comunismo que foi a GuerraFria. O foco deste artigo é a formação do grupo Madres e Abuelas da Plaza de Mayo, onde as mães dosdesaparecidos tiveram repercussão internacional na busca dos seus entes queridos e como auxiliaramno enfraquecimento do regime militar argentino.Palavras–chave: Madres e Abuelas da Plaza de Mayo – Terrorismo de Estado – Argentina – SegurançaNacional.Em 1945, após seis anos de morte e destruição resultados na Segunda Guerra Mundial, aGrande aliança (os EUA, a Grã-Bretanha e a URSS) conseguiu por fim derrotar as forças do Eixo(Alemanha, Itália e Japão). Com o mundo abaixo de escombros no pós-guerra, restaram apenas doispaíses em pé: os Estados Unidos da América e a União Soviética, as chamadas superpotências.Pouco antes de deixar o cargo em julho de 1945, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill,proferiu um discurso em Missouri, acompanhado pelo presidente dos Estados Unidos, Harry Truman.Direcionado ao público americano e a opinião pública, Churchill dizia falar em nome pessoal e não emposição oficial. Seu discurso simbolizaria a troca de mãos do centro imperial ao mesmo tempo em que,impulsionava a transição no caminho da Guerra Fria 3 .Uma sombra desceu sobre o cenário até bem pouco iluminado pela vitória aliada.Ninguém sabe o que a Rússia Soviética e sua organização comunista internacionalpretendem fazer no futuro imediato, ou quais os limites, se há, de suas tendênciasexpansionistas e de proselitismo. ... De Stettin, no Bálico, até Trieste, no Adriático, umacortina de ferro foi baixada por meio do continente Europeu. Atrás delas estão ascapitais dos antigos Estados da Europa Central e Oriental. Varsóvia, Berlim, Praga,Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sofia, todas essas famosas cidades e aspopulações a volta delas estão na esfera soviética, mas um controle intenso e cada vezmais forte de Moscou. Só Atenas, com suas glórias imortais, é livre de decidir seu futuronuma eleição observada pelos britânicos, americanos e franceses. ... Quaisquer quesejam as conclusões que possam tirar desses fatos, e fatos realmente são, sem dúvidanão estará entre elas a de que essa é a Europa libertada que lutamos para conseguir,nem que encerre os elementos essenciais de uma paz permanente 4 .De acordo com Magnoli, com seu discurso, Churchill ajudaria a dar um novo foco à políticainternacional das nações ocidentais e a mudança do inimigo, que antes era o nazismo alemão e ofascismo italiano, para ser a partir de então a União Soviética e os países aliados. Em fevereiro de 1947,o embaixador britânico nos EUA comunicava, em Washington, a suspensão de ajuda inglesa para osgovernos pró-ocidentais da Turquia e Grécia e solicitava que os EUA assumissem a sustentação daquelaposição estratégica na política balcânica. A Grã-Bretanha começava a sair de cena para dar espaço aosEUA e a URSS no sistema de poder internacionalO discurso também ajudou a criar o imaginário que a URSS e a organização comunistainternacional tinham “tendência expansionista” derivado de um antagonismo inconciliável com o mundo1234Graduanda do 7º semestre da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).ari.chiogna@gmail.com (51) 93445005Graduanda do 7º semestre da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).bruucardoso@gmail.com (51) 94587863PASCUAL, Alejandra Leonor, Terrorismo de Estado. Brasília: Editora UnB. 2004. p.36.MAGNOLI apud PASCUAL. Op. Cit., p. 36.347


capitalista. Em março de 1947 na Conferência Interamericana para Manutenção da Paz e Segurança noContinente, o presidente Truman proclamava a doutrina que levou seu nome e consistia na contenção doexpansionismo soviético e comunista 5 .Conforme a doutrina Truman, os EUA deveriam auxiliar as nações a se manter livres e mantersuas instituições políticas quando ameaçadas pelas tentativas de agressão, sobretudo por governostotalitários 6 . A doutrina é considerada o início das disputas geopolíticas da Guerra Fria, e foi aprofundadocom o anúncio do secretário de Estado, George Marshall, de um plano que visava o apoio econômico emilitar dos EUA à Grécia e à Turquia, bem como outros países europeus – tal apoio foi denominado deplano Marshall 7 .A expressão Guerra Fria foi usada para refletir uma confrontação múltipla (econômica, política,diplomática, cultural, de propaganda) entre as duas potências, que questionavam a maneira incessante adistribuição mundial dos fluxos de influência e de poder 8 .Para reforçar a política anticomunista americana foi importante para o país se basear nasegurança nacional para conter a ideologia inimiga. De acordo com Pascual, a segurança nacional talveznão soubesse muito bem o que estava defendendo, mas sabia muito bem de quem estava sedefendendo: do comunismo internacional. O comunismo estava onipresente e para lutar contra ele, eranecessário um conceito flexível; assim em qualquer lugar onde se descobrisse aparente manifestaçãocomunista, o Estado estaria presente para intervir na defesa da segurança nacional 9 .Os EUA atribuíam-se a missão de defender o mundo livre contra o comunismo, como já haviamfeito contra o nazismo e o fascismo; consideravam que existia uma ameaça comunista em qualquer paísque deixasse de ser favorável a eles. Transmitiam aos demais países a ideia de sua incapacidade de sedefenderem sozinhos do comunismo e a necessidade de se aliarem ao plano de segurança americano,pois a sua segurança e a segurança dos EUA eram inseparáveis. Era necessário que aceitassem aconcepção de que o mundo estava dividido em dois blocos: o mundo comunista e o mundo das naçõeslivres do Ocidente; deviam acreditar que o destino do país estava associado ao destino americano 10 .A Doutrina de Segurança Nacional teve grande influência ideológica e teórica no fundamentodos regimes cívico-militares na América Latina, justificando a emergência e o protagonismo das ForçasArmadas no cenário político latino-americano dos anos 60 em diante. Refletindo a lógica bipolar daGuerra Fria e as novas estratégias de dominação dos EUA sobre a América Latina, a Doutrina deSegurança Nacional se disseminou através das Academias e Escolas de Guerra, formando quadrosespecializados a partir de preceitos básicos: a lógica da bipolaridade, a delimitação de zonas deinfluência pelas superpotências, a satanização do inimigo, a introdução da ideia de que o Estado e anação correm riscos com o comunismo e necessitam agir de acordo com a política anticomunista 11 . Paraas ditaduras de Segurança Nacional, a identificação de um “inimigo interno” é a justificativa para explicaros fracassos políticos governamentais, prejudiciais pela necessidade de combater a subversão. O queresulta na restrição da liberdade e dos direitos individuais e sociais. Sendo assim, a militarização doEstado se apresenta como a única forma de resistir a um “império do mal” crescente na Ásia, África eameaçador na América. A melhor forma de obter eficiência ao combater a subversão seria ampliar aação e o controle sobre a sociedade. O controle ao “mal maior” explicava muitas coisas. As críticas feitaspela oposição eram consideradas como antipatrióticas e atenuava contra os “interesses da nação”. Logoum Estado forte, autoritário, estável e militarizado era considerado o melhor contra os inimigoscomunistas. A segurança na América Latina foi fortemente vinculada à segurança norte-americana econstituíram uma guerra contra revolucionária iniciada nos anos 60, emoldurada pela Doutrina deSegurança Nacional e implementadas através de políticas de terrorismo de Estado, particularmente emditaduras emergentes no Brasil (1964), Uruguai (1973), Chile (1973), Argentina (1976), além da Bolívia edo Paraguai 12 .A partir da administração Kennedy, a Doutrina de Segurança Nacional passou a ter umaincidência especial sobre o continente latino americano. Coincidiu essa orientação, com o processo56789101112MAGNOLI apud PASCUAL. Op. Cit., p. 37.PASCUAL. Op. Cit. p. 38.XAVIER, Fernanda Ollé. Episódios da Guerra Fria: seu início meio e fim. In: Revista Diálogo e interação. V. 04,2010. p. 06.MAGNOLI apud PASCUAL. Op. Cit., p. 39.PASCUAL. Op. Cit., p. 39.COMBLIM apud PASCUAL. Op. Cit., p. 40.PÁDROS, Enrique Serra. Como El Uruguay no hay: terror de Estado e segurança nacional no Uruguai (1968-1985): do pachecato à ditadura civil-militar. Tese (Doutorado em História) Universidade Federal do Rio Grandedo Sul, 2005. p. 184.PÁDROS. Op. Cit., p. 186.348


evolucionário cubano e a identificação do avanço do inimigo comunista na região, bem como peloaprofundamento das contradições socioeconômicas do decorrente aumento das tensões sociais e dacontestação do status quo. Durante a administração Johnson, Nixon e Ford a ênfase na segurançase tornou o objetivo central e se impôs em detrimento das práticas democráticas, reforçando oautoritarismo e a mecanismos repressivos considerados mais eficientes para impedir o avanço do“inimigo interno/externo” estabelecendo as coordenadas de enquadramento social e político necessáriopara o alinhamento da nova ordem econômica adequada ao reordenamento capitalista do pós-guerra. Oadvento, consolidação e extensão da Guerra Fria combinados com o crescimento dos movimentos delibertação nacional na América Latina e, especialmente, com a Revolução Cubana (sobretudo após aincorporação de Cuba ao bloco soviético) fizeram com que os Estados Unidos considerassem a AméricaLatina em estado de alerta 13 .De acordo com Fernando Henrique Cardoso, o fato da reorganização dos países segundo aideologia de Segurança Nacional se caracteriza como um regime autoritário burocrático, onde ainstituição militar como um todo assume poder para reestruturar a sociedade e o Estado. O regimeautoritário burocrático, também se difere das ditaduras de Vargas e Perón, onde o poder é tomado paramanter um ditador à frente do Estado. 14 .Entre as ditaduras de Vargas e Perón seguem interessantes comparações no âmbito populista.Ambos tinham os mesmos inimigos (oligarquias da cada país), as mesmas ameaças (o comunismo),uma base política estabelecida por um Pacto Social com a burguesia detentora dos meios de produção eo proletariado, dono da força produtiva. Nacionalismo, estatização e leis trabalhistas também podem serpontos comparativos entre os dois ditadores 15 . Já o autoritarismo burocrático, como tipo de regime queimpõe regras de exclusão política em benefício do setor privado da economia. Os interesses econômicospredominantes favorecem a acumulação de capital através do controle de força de trabalho, para umdesenvolvimento capitalista bem-sucedido e urgente, passando rapidamente pela fase inicial de“decolagem” econômica na qual, segundo estratégias contrarrevolucionárias de W. W. Rostow há umapossibilidade maior de ocorrer à revolução social 16 .A Argentina da década de 1970 encontrava-se em grande instabilidade política. Com o retornode Juan Domingo Perón do exílio em 20 de junho de 1973, era visto por alguns setores populares como“a volta dos bons tempos” para o país. Com a renúncia do presidente Héctor José Cámpora nestemesmo ano, foram convocadas e realizadas eleições presidenciais. A chapa Perón-Perón com J. D.Perón candidato a presidência e sua esposa Isabelita Perón como vice, venceu as eleições com 62%dos votos. Perón, no poder, tentou realizar alianças e apoios políticos em alguns setores – o queconseguiu em partes. Porém sua presidência foi breve, com sua morte em 1º de julho de 1974, Isabelassumiu a presidência da Argentina. Em 1975 o país continuava com graves problemas econômicos esociais. A confederação Geral Trabalhista negociava um aumento digno aos sindicatos. Nesse momentoassumia o cargo de Ministro da Economia, Celestino Rodrigo, que agravou a frágil situação econômica,denominada “rodrigazo”. Assim, o país viu uma inflação acelerada dia após dia, e o rodrigazo dizimaraaumento de 40% que os sindicatos haviam tido naquele ano 17A presidente Isabel acabou por romper algumas importantes alianças que Perón tinhaconstruído, tendo assim, em sua base de sustentação poucos aliados incondicionais. No entanto aoposição articulava-se de forma considerável. Entre os grandes opositores estava o general Jorge RafaelVidela, nomeado pela presidente como novo comandante-chefe do exército, que além de não apoiar àsucessão de Perón por Isabel, impunha prazos para o final da crise política e econômica culminada norodrigazo. Além de Videla, os comandantes da marinha e da aeronáutica também se posicionavamcontra a presidente 18 .Em março de 1976, os militares argentinos deram um golpe na presidente Isabel Perón, que foipresa pelos comandantes militares que usaram a afirmação de que tinham sido forçados a dar o golpepara defender a nação argentina 19 . De acordo com a mensagem da Junta de Comandantes das Forças13141516171819PADRÓS Op. Cit., p. 188CARDOSO, Fernando Henrique. Os regimes autoritários na América Latina. In. COLLIER, David (Coord.). ONovo Autoritarismo na América Latina. Tradução de Marina Teixeira Viriato de Medeiros. Rio de Janeiro. Paz eTerra, 1982. p. 43.GLIK, Monica Sol. Ordem e Progresso, Civilização e Barbárie. Perón, Vargas e Positivismo. (Argentina-Brasil,1930-1955). In Revista PerCursos. V. 07. N. 2. Santa Catarina. 2006. p. 4CARDOSO, Op. Cit., p. 50.FREITAS, Bruno Cordeiro Nojosa; SOUZA, Francisco Iderlan Meneses. O coro dos descontes: O ato decontestar e resistir na ditadura militar argentina. Revista Ameríndia. V. 04. Curitiba. 2007. p. 01.FREITAS;SOUZA, Op. Cit, p. 02.PASCUAL, Op. Cit., p. 49.349


Armadas para a população em 29 de março de 1976, os militares se validaram na ideologia deSegurança Nacional para validar o golpe.Esgotadas todas as instâncias de mecanismos constitucionais, superada a possibilidadede retificação dentro do marco das instituições... a impossibilidade da recuperação deum processo por suas vias naturais, chega ao fim uma situação que lesa a nação ecompromete seu futuro... Nosso povo tem sofrido uma nova frustração. Perante umvazio de poder e a falta de uma estratégia global que, dirigida pelo poder político,combatesse a subversão: a carência de soluções para problemas básicos da nação,cuja consequência tem sido o incremento permanente de todos extremismos; [...] Tendose traduzido numa irreparável perda de grandeza e fé; as Forças Armadas, nocumprimento de uma obrigação irrenunciável, assumiram a condução do Estado [...]Esta decisão tem o objetivo de acabar com o desgoverno, a corrupção e o flagelosubversivo e está dirigido unicamente contra quem tem delinquido ou cometido abusosde poder. É uma decisão pela pátria 20.Sob a vigência da Segurança Nacional, para erradicar a subversão e suas causas, foi instauradoa ideia de que teria sido deflagrada a terceira guerra mundial – guerra contra o comunismo internacional-, que determinou toda a ação aplicada na Argentina de 1976 a 1983 21 .Após o golpe, grande parte da população recebeu como alívio a intervenção militar, acreditandonas afirmações dos líderes no sentido em que o objetivo do golpe era de fato o reestabelecimento daordem e da democracia no país e que atuariam respeitando as normas vigentes.O plano executado pelas Forças Armadas fundava-se na repressão clandestina, na negação deinformações, no terror e na apresentação de uma fachada de respeitabilidade e paz, numa tentativa decriar uma máscara enquanto eram usados métodos repressores clandestinos à margem da lei 22 .A caça às bruxas ao comunismo se intensificou logo após o golpe. Durante o regime não houvedeterminação precisa sobre o que é ser subversivo em normas específicas. O significado deveria serbuscado nos discursos dos próprios militares quando falavam sobre os inimigos. Os termos maisutilizados eram: ser inimigo ideológico, ser de esquerda, ser não argentino, ser judeu, ou um serirrecuperável 23 .O trato da repressão contra os subversivos pode ser notado também em números, de acordocom os arquivos da Comissão Nacional Sobre Desaparecimento de Pessoas na Argentina (CONADEP),constam denúncias de aproximadamente 600 pessoas desaparecidas antes de 1976. Contudo foi a partirdo golpe que o sequestro foi “institucionalizado” como forma de ação dasForças Armadas. Desde então milhares de pessoas foram ilegitimamente privadas da liberdade em todoo país 24 .Em 1979, a Assemblea Permanente por los Derechos Humanos registrou 5.818 casosdocumentados. O Ministério do Interior contava com 3.447 denúncias até o mesmo ano. A ComissãoInteramericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) em visita àArgentina, em setembro de 1979, recebeu 5.580 denúncias, das quais muitas não estavam incluídas emlistas anteriores. Já a CONADEP recebeu 8.960 reclamações. Nenhuma das pessoas em que o nomeconstava nessas listas foi vista novamente com vida. Contudo organizações dos direitos humanoscalculam que o número seja infinitamente maior, podendo chegar a 30 mil desaparecimentos, se fossemincluídas pessoas que após sair do cativeiro se omitiram ao realizar denuncias 25 .O método de desaparecimento forçado de pessoas era usado de forma indiscriminada,foram sequestrados e torturados tanto membros de grupos armados como seusfamiliares, amigos, colegas, militantes de partidos políticos, sacerdotes ou laicoscomprometidos com os problemas dos pobres, ativistas, estudantes, sindicalistas... mastambém um grande número de pessoas sem nenhuma ligação a práticas sindicais oupolíticas. Houve casos de pessoas sequestradas porque seu nome constava em algumaagenda telefônica de um dos desaparecidos 26 .Houve também um caso de um grupo de doze adolescentes de dezesseis anos da Escuela20212223242526PASCUAL, Op. Cit., p. 48.PASCUAL, Op. Cit., p. 49.PASCUAL, Op. CIt., p. 58.PASCUAL, Op. Cit., p. 50.COMISSIÓN apud PASCUAL, Op. Cit., p. 64.MIGNONE apud PASCUAL, Op. Cit., p. 64.PASCUAL, Op, Cit., p. 69.350


Nacional de Educación Técnica Nº 1, foram sequestrados e enviados a um centro clandestino dedetenção e torturados por causa de um incidente com um professor que também era oficial da Marinha.Com o término das aulas, havia um clima de alegria na escola, o citado professorreclamou pelo barulho e os alunos não se submeteram as suas ordens, sendo expulsosda escola. Os pais dos alunos protestaram perante as autoridades militares, pedindo areintegração dos estudantes. As autoridades ‘advertiram’ que finalizassem com seuspedidos ou ‘se arrependeriam’. Dias depois, grupos de encapuzados, fortementearmados, sequestraram estudantes em seus domicílios 27 .A tortura foi um elemento comum na metodologia empregada. Segundo a CONADEP quase natotalidade das denúncias recebidas pela Comissão, mencionam-se atos de tortura. Nos relatos estãorefletidos os terríveis sofrimentos psíquicos e físicos das vítimas, como relata Miguel D’Agostino, caso Nº3901: “Se ao sair do cativeiro me tivessem perguntado: Torturaram-te muito? Teria respondido: sim, ostrês meses sem parar... Se a pergunta me é formulada hoje posso lhes dizer que logo completarei seteanos de tortura 28 ”.As torturas em feitas na maioria das vezes nos Centros Clandestinos de Detenção que existiramaproximadamente 340 ao longo do território Argentino e constituíram na base material indispensável paraa política de desaparecimentos. Foi nesses Centros Clandestinos que mulheres e homens foramilegitimamente privados da sua liberdade em estadias que duraram anos ou então nunca maisretornaram 29 . Aos poucos foram circulando notícias de desaparecimento de amigos, familiares, vizinhosque tinham sido levados de suas casas ou local de trabalho por um grupo de pessoas armadas edesconhecidas e que sua família não conseguia achá-los. As autoridades negavam tê-lo detido eafirmavam desconhecer o paradeiro do sequestrado. As poucas pessoas que retornavam normalmentenão faziam nenhum tipo de comentário sobre as experiências durante o cativeiro e se mantinham emsilêncio absoluto 30 .Esta onda de repressão brutal invade a Argentina na década de setenta e termina de paralisar asestruturas legais que poderiam ter auxiliado na diminuição do impacto causado a população pelaviolação dos direitos humanos. Contudo, em meio aos conflitos formaram-se grupos de direitos humanosbuscando frear as violações cometidas aos direitos do homem. Inicialmente dentro destes “grupos”,todos colaboravam inclusive com outros organismos ao mesmo tempo, existia uma grande solidariedadeentre os grupos. Entretanto havia diferentes formas de manifestações: “La diferencia entre organismosse Manifestaba em la elección de la estrategia a seguir: cuánta prudência em la denuncia y la difusion?Qué demandar ou reclamar? Com quem Hablar? 31 ”Nesta situação, com base em manifestações públicas o movimento “Madres de Plaza de Mayo”ganhou grande destaque na Argentina, bem como em todo o cone sul e consequentemente umarepercussão mundial. Mais tarde deste grupo sairá outro movimento conhecido como “Abuelas da Plazade Mayo”.A grande questão que unia todas essas mulheres era o grande vazio político deixado pelodesaparecimento de seus entes queridos. Na busca por resposta uniram-se, indo contra o regime earriscando suas próprias vidas. Inicialmente todas já tinham feito a tradicional busca pelos despachosnos organismos oficiais, contudo não encontravam maiores esclarecimentos. Azucena Villaflor De Vicentiuma das mães do movimento, certa vez diante da falta de informações declarou:Madres, así no conseguimos nada. Nos mientem em todas partes, nos cierram todas laspuertas. Tenemos que salir de este laberinto infernal que nos lleva a recorrer inútilmentedespachos oficiales, cuarteles, Iglesias y juzgados. Tenemos que ir directamente a LaPlaza de mayo y quedarnos allí hasta que nos den una respuesta. Tenemos que llegar acien, doscientas, mil madres, hasta que nos vean, hasta que todos se entern y El proprioVidela se vea obligado a recerbirnos y darnos una respuesta 32 .As reuniões familiares tiveram inicio um pouco antes do golpe de estado, em fevereiro de 1976,272829303132SÁBATO, Ernesto. Nunca Mais: informe da Comissão Nacional sobre o desaparecimento de pessoas naArgentina. L&PM. Porto Alegre. 1984. p. 244.SÁBATO, Op, Cit., p. 16.SÁBATO, Op, Cit., p. 41.PASCUAL, Op, Cit., p. 59.JELIN, Elizabeth. Víctimas, familiares y ciudadanos/as: las luchas por la legitimidad de la palabra. CadernosPagu, v. 29. 2007. p. 37.GORINI apud GUERIN, Mariángeles. Memória e conformação da identidade nos integrantes dos movimentos de“Madres y Abuelas de Plaza de Mayo”. Dissertação (Mestrado em História), UnB. Brasília. 2010. p.68.351


contudo sua concorrência só foi aumentando ao decorrer da repressão. Muito antes de fazerem parte domovimento de Madres da Plaza de Mayo, algumas mulheres chegaram a participar de encontros deoutras organizações familiares de desaparecidos políticos, porém algumas “Madres” sentiam-seincomodadas, pois mesmo existindo uma discussão de tarefas a serem levadas adiante, as questõesprincipais seguiam apenas nas mãos de um grupo da comissão. Esta “diferenciação” no trato daspolíticas administrativas se é assim que podemos chamar, fomentou a necessidade de realizar algodiferente por parte das mães 33 . Sendo assim surge um novo grupo com diferentes manifestações queserviram para diferenciar as “Madres” dos outros movimentos de direitos humanos, mais que isso,auxiliando na identificação do grupo aos olhos da sociedade. A primeira iniciativa do grupo foi a marchaao redor da pirâmide da Plaza de Mayo, consequentemente mais tarde esta atividade marcaria aidentidade o nome do movimento até os dias atuais. Assim como assinalou Gorini, a decisão de realizaro encontro na praça foi exclusiva do grupo de mulheres. No inicio das atividades a praça era usada comolugar de encontro para trocar informações obtidas e organizar as atividades 34 .Mais tarde, em consequência do estado de sítio que viria impossibilitar reuniões de mais de trêspessoas em áreas públicas, as “Madres” deixaram de ficar sentadas nos bancos da praça e marcharam.Inicialmente esta marcha não tinha o significado que o protesto iria adquirir, começaram a fazer achamada ronda para poder continuar se reunindo na Plaza de Mayo. As reuniões na praça era umaforma de chamar atenção do governo e da sociedade para a questão dos desaparecidos, esperava quese fazendo presentes o governo fosse ouvir as questões e poderiam trazer alguma resposta 35 .Para os militares, a aparição das “Madres” não só os surpreendeu como também colocou emdúvida as suas representações, segundo eles a única explicação possível era que o surgimento destegrupo fosse uma tática ou uma nova estratégia política do grupo considerado subversivo. Logo osmilitares demoraram em compreender o erro de acreditar que donas de casa não poderiam formar estetipo de movimento 36 . Sendo assim, na quinta-feira de 18 de agosto de 1977 as Madres começaram suaprimeira marcha de protesto ao redor da pirâmide da Plaza de Mayo, o que inicialmente era um espaçopara troca de informações e “desabafos”, virou um local simbólico, onde recordavam e manifestavam ador da ausência de seus filhos 37 .Intencionalmente ou não, o grupo de mães tinha uma identidade em comum, pois chegaram adefinir e encarnar a uma comunidade de oposição aoestado ditatorial como também a própria máquina estatal. As mães foram recebendo mais consciência eperceberam que o fato de serem vistas ajudava muito em suas reivindicações, a partir desta novamentalidade procuraram por se fazer mais visíveis, como consequência surgiu mais um novo símbolopara a identidade do grupo: “los pañuelos”, enquanto se organizavam para assistir como grupo àperegrinação anual à Basílica de Guadalupe surgiu a ideia de lenços, mais como uma ideia dediferenciação, assim criaram um novo elemento que marcaria o grupo 38 .Após a consolidação do grupo, o número de mães que buscavam seus filhos e netos cresciacada vez mais, e foi chegado o momento de separação devido a quantidade de integrantes que havia nogrupo. Sendo assim ficou decidido que as “Abuelas” ficariam encarregadas de procurar os netos – que aestimativa fica em cerca de 500 crianças desaparecidas 39 -, enquanto as “Madres” seguiram com oobjetivo inicial de buscar por seus filhos. Porém o vínculo que ainda unia tanto “Madres” quanto“Abuelas” era bem intenso, pois a luta tinha iniciado no grupo das Madres.Os objetivos do grupo foram modificando-se no decorrer das diversas lutas, e como,consequência direta das mudanças do contexto. Durante o período de transição da ditadura para ademocracia, a questão dos detidos desaparecidos apresentou-se novamente como um problema para aconsecução dos objetivos das Forças Armadas. Onde os militares tentaram garantir a não revisão judicialdas ações levadas adiante, durante a guerra contra la subversión, portanto procuraram oestabelecimento de acordos com partidos políticos que se tinham agrupado na multipartidária, agora umaoutra questão começava-se a questionar “o que iam fazer o grupo de Madres e Abuelas no contextodemocrático? 40 ” Dentro desse sentido as Madres decidiram fazer pública sua posição naquilo que dizrespeito à continuação da luta pela democracia.Tendo em vista o estudo realizado, podemos concluir que a segunda fase da repressão militar na3334353637383940GORINI apud GUERIN, Op. Cit., p. 60.GORINI apud GUERIN, Op. Cit., p. 67.GORINI apud GUERIN, Op. Cit p. 68.GORINI apud GUERIN, Op. Cit p. 70.GORINI apud GUERIN, Op. Cit p. 71.GORINI apud GUERIN, Op. Cit p. 73.PADRÓS, Op. Cit., p. 638.GORINI apud GUERIN, Op. Cit p. 80.352


Argentina foi a mais violenta do cone sul, em termos de terrorismo de Estado, se apoiando na ideologiade Segurança Nacional contra o inimigo interno/externo do comunismo. Nesta luta os militares argentinosnão tiveram receio em abusar dos poderes que passaram a possuir pós-golpe. Dando inicio a uma sériede violências e atentados, o principal deles contra a liberdade e os direitos humanos. Deixando feridasmal cicatrizadas até hoje na sociedade Argentina. Em tempo onde o paradeiro dos subversivos eranegado pelas autoridades, um grupo de mães unidas pela ausência de seus filhos e de respostas sobreo destino dos mesmos. Decidiram assim, unir-se para buscar informações, surgindo o Madres de Plazade Mayo , um movimento encabeçado por mulheres que compartilhavam da mesma dor e não tiverammedo de arriscar suas vidas nas mãos do regime. Nesta procura, muitas mães sofreram agressões outambém desapareceram. A repercussão internacional do movimento foi um dos motivos peloenfraquecimento do regime.Mesmo com a chegada da democracia, muitas Madres e Abuelas continuaram atuantes eviraram referência internacional na luta por justiça e na busca contínua dos direitos humanos,esquecidos durante a ditadura na América Latina.Referências Bibliográficas:CARDOSO, Fernando Henrique. Os regimes autoritários na América Latina. In. COLLIER, David(Coord.). O Novo Autoritarismo na América Latina. Tradução de Marina Teixeira Viriato de Medeiros. Riode Janeiro: Paz e Terra, 1982.FREITAS, Bruno Cordeiro Nojosa; SOUZA, Francisco Iderlan Meneses. O coro dos descontes: O ato decontestar e resistir na ditadura militar argentina. Revista Ameríndia. v. 04. Curitiba, 2007.GLIK, Monica Sol. Ordem e Progresso, Civilização e Barbárie. Perón, Vargas e Positivismo. (Argentina-Brasil, 1930-1955). In Revista PerCursos. v. 07. n. 2. Santa Catarina, 2006.GUERIN, Mariángles. Memória e conformação da identidade nos integrantes dos movimentos de“Madres y Abuelas de Plaza de Mayo”. Dissertação (Mestrado em História). UnB, 2009.JELIN, Elizabeth .Víctimas, familiares y ciudadanos/as: las luchas por la legitimidad de la palabra.Cadernos Pagu, v. 29, julho-dezembro, pp. 37-60, 2007.PÁDROS, Enrique Serra. Como El Uruguay no hay: terror de Estado e segurança nacional no Uruguai(1968-1985): do pachecato à ditadura civil-militar. Tese (Doutorado em História) Universidade Federal doRio Grande do Sul, 2005.PASCUAL, Alejandra Leonor. Terrorismo de Estado. Brasília: Editora UnB. 2004.SÁBATO, Ernesto. Nunca Mais: informe da Comissão Nacional sobre o desaparecimento de pessoas naArgentina. Porto Alegre. L&PM, 1984.XAVIER, Fernanda Ollé. Episódios da Guerra Fria: seu início meio e fim. In: Revista Diálogo e interação.V. 04, 2010.353


O Grupo Clamor e a atuação em redes na defesa dos Direitos Humanos frente asditaduras do Cone SulGuilherme Barboza de Fraga 1Resumo: O presente artigo visa analisar a constituição de uma rede integrada de defesa dos direitoshumanos no final da década de 1970 a partir do estudo da documentação do Clamor. O grupo atuou de1978 a 1991 com os seguintes objetivos: denunciar as arbitrariedades cometidas pelas ditaduras deSegurança Nacional, dar abrigo aos refugiados e auxiliar na localização de desaparecidos políticos.Assim, apresenta-se a rede composta a partir dos contatos do grupo e analisa-se como a ação do grupocom outros organismos congêneres constituiu forte resistência ao aparelho repressivo das ditaduras doCone Sul por meio de uma atuação além-fronteiras.Palavras-chave: Clamor – ditaduras – rede – direitos humanos.Abstract: This article aims to analyze the creation of an integrated network of human rights in the late1970s from the study of documentation Clamor. The group acted from 1978 to 1991 with the followingobjectives: to denounce the arbitrarinesses committed by the dictatorships of National Security, to giveshelter to refugees and assist in locating missing politicians. Thus, presents the network of contacts fromthe group and analyzes as a group action with other bodies congeners was strong resistance to therepressive apparatus of the dictatorships of the Southern Cone through a cross-border operation.Key-words: Clamor – dictatorships – Network – human rights.Este texto analisa a constituição de uma rede integrada de defesa dos direitos humanos a partirda análise dos documentos e da trajetória do grupo Clamor. Diferente do artigo apresentado na I Jornadade Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos que faz uma apresentação do grupo a partir de açõesempreendidas ao longo de sua existência, o presente trabalho amplia a análise percebendo a ação doClamor dentro de uma atuação conjunta com organismos congêneres com o objetivo de por fim aoTerrorismo de Estado vigente nas ditaduras do Cone Sul. Para tanto, este artigo apresenta,primeiramente, o grupo Clamor e, logo depois, a rede constituída a partir do grupo para, em seguida,abordar como se deu a relação com outras entidades pela análise do Seminário promovido pelo Clamorem 1985 e por ações empreendidas no exterior em parceria com outras organizações.Inclinando os ouvidos aos clamores contra a repressãoEm 1978, ano de início das atividades do grupo Clamor, os países do Cone Sul eramgovernados por ditaduras militares. Em um cenário de Guerra Fria, tais ditaduras apoiaram-se naspremissas da Doutrina de Segurança Nacional percebendo a política como um conflito planetário, umaverdadeira guerra, cujo fim seria a destruição total e permanente do adversário. Para tanto, recorreramao Terrorismo de Estado, um modo de governar mediante o uso da intimidação. Torturas,desaparecimentos forçados, exílios, desterros, banimentos, utilização de pressões, chantagens,demissões laborais, intervenção nos meios de comunicação de massa 2 com o uso da censura e depropaganda sistemática do regime foram alguns métodos utilizados na difusão de uma cultura do medo ecriação de um cenário de silêncio, desconfiança, alienação e terror permanente, evitando ou limitandomanifestações contestatórias.Nessa conjuntura, diversos grupos, entidades, organizações e indivíduos passaram a denunciaras violações dos direitos humanos cometidas por esses regimes repressivos e a dar apoio aosperseguidos políticos. No Brasil, ganhou destaque uma ala progressista da Igreja Católica buscando sera voz daqueles que tiveram sua voz silenciada. A atuação engajada desse clero progressista teveinfluência das mudanças promovidas pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), das Conferências Episcopais12Graduado em História (Licenciatura) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul –guilhermebarbozadefraga@hotmail.comEm todos os países do Cone Sul, os golpes de Estado que impuseram as ditaduras de Segurança Nacionalforam apoiados por importantes meios de comunicação.354


Latino-americanas de Medellín (1968) e de Puebla (1979) 3 , do surgimento e difusão da Teologia daLibertação, da criação da CNBB 4 e do início dos trabalhos das Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s).Desde a nomeação de dom Paulo Evaristo Arns, a Arquidiocese de São Paulo passou a ser estruturadana tentativa de acolher os que não tinham mais a quem recorrer em busca de asilo político. E o númerode refugiados estrangeiros só aumentou em meados da década de 1970 com o aumento doautoritarismo nos países vizinhos.Foi nesse momento que surgiu o CLAMOR (Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para ospaíses do Cone Sul). As reuniões de estruturação do grupo – ocorridas após solicitações de exiladosargentinos – foram organizadas pelos três membros fundadores: Jan Rocha, Luiz Eduardo Greenhalgh eJaime Wright.A jornalista inglesa Jan Rocha morava no Brasil desde 1969, era correspondente internacionaldo jornal The Guardian e da rádio BBC de Londres e casada com o advogado brasileiro Plauto Tuiuti daRocha. O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh era referência entre os familiares de presos políticosbrasileiros e também militava na luta pelos direitos humanos. 5 O pastor presbiteriano Jaime Wright viverade perto a violência do sistema repressivo brasileiro – em setembro de 1973, seu irmão Paulo StuartWright foi desaparecido pelo regime. Wright era filho de missionários estadunidenses, sempre esteveengajado na defesa dos direitos humanos e foi companheiro de dom Paulo Evaristo Arns em diversosprojetos.Assim, a jornalista, o advogado e o pastor engajados em causas solidárias, usaram sua atividadeprofissional como militância em prol dos direitos humanos. Desde o início, perceberam a necessidade dearticular-se com a Igreja Católica, que funcionaria como “guarda-chuva institucional” 6 garantindoproteção ao grupo. Desse modo, Greenhalgh, Rocha e Wright procuraram o cardeal-arcebispo de SãoPaulo e famoso pela atuação a favor dos direitos humanos em sua arquidiocese. O projeto do Clamorencaixava-se perfeitamente na estrutura solidária montada em sua arquidiocese. Assim, o Clamor foiincorporado à Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados, criada em1976, tornando-se um anexo da Comissão com intuito de cuidar da grande quantidade de estrangeirosque acorriam à Cúria Metropolitana em busca do amparo do cardeal-arcebispo.O nome Clamor surgiu nas primeiras reuniões e foi escolhido por ser forte, mobilizador e ter omesmo significado em português, inglês e espanhol, por conter a palavra amor e as letras L e A, deAmérica Latina. O nome fez o pastor lembrar um texto bíblico, o salmo 88, que se tornou lema do grupo:“Inclina os teus ouvidos ao meu clamor.” O símbolo do Clamor – uma vela acesa atrás das grades – veiode um cartão de Natal recebido por Greenhalgh do preso político Manuel Cirilo de Oliveira Neto esimbolizava a busca de esperança aos prisioneiros e perseguidos pelos sistemas repressores.Os objetivos do grupo foram estabelecidos: dar assistência aos refugiados que buscavam auxíliona Cúria e não eram reconhecidos pelo ACNUR 7 ; divulgar as denúncias recebidas após confirmação desua veracidade 8 ; e o estabelecimento de contatos com entidades nacionais e internacionais de defesados direitos humanos para a formação de uma rede:CLAMOR tem por objetivo a defesa dos direitos humanos na América Latina,especialmente nos países do Cone Sul.(...) É interesse do CLAMOR estreitar vínculos com órgãos congêneres para cooperaçãomútua.A perspectiva do CLAMOR é cristã, ecumênica, sem filiação partidária e seus objetivossão humanitários. 9A presença do pastor Jaime Wright no grupo garantiu a concessão de uma verba periódica juntoao Conselho Mundial de Igrejas (CMI) que agrupava, à época, cerca de 500 milhões de fiéis de igrejasprotestantes, ortodoxas e anglicanas e tinha um setor específico de direitos humanos para a AméricaLatina.3456789As duas Conferências tiveram importante papel para ajustar o discurso do Concílio Vaticano II à realidade latinoamericanade capitalismo dependente com a confirmação da “opção preferencial pelos pobres” e a tendência deuma teologia centrada na libertação social e não mais na salvação eterna individual. Cf. SALEM, Helena (Org.).A Igreja dos oprimidos. São Paulo: Brasil Debates, 1981. p. 39 a 42.Criada em outubro de 1952, a Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) foi promovida e inspirada pordom Hélder Câmara, um dos bispos mais famosos da “ala progressista” da Igreja.Ao lidar com clientes torturados e presos de forma arbitrária, o trabalho do advogado tinha um caráter afetivo,pois desempenhava uma função humanitária e estabelecia uma ligação entre os presos e suas famílias.LIMA, Samarone. Clamor: a vitória de uma conspiração brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. p. 35.O comissariado da ONU não acolhia, por exemplo, militantes envolvidos na luta armada.O meio utilizado para difundir tais denúncias foi a publicação de boletins não periódicos distribuídos em trêsidiomas: português, espanhol e inglês. Cerca de 1.500 boletins eram distribuídos a cada edição, sendo 500 emcada língua.CLAMOR, nº 1, Ano I, junho de 1978, capa.355


Dada a grande quantidade de trabalho, logo o grupo recebeu dois reforços oriundos daComissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados de São Paulo: a freiraestadunidense Michael Mary Nolan 10 e o padre canadense Roberto Grand-Maison, então coordenadorda Pastoral de Direitos Humanos da Comissão e engajado na Ação Católica Operária (ACO) e naJuventude Operária Católica (JOC). Com o aumento da demanda de trabalho, em 1979, o quadro devoluntários precisou ser ampliado e mais dois integrantes da Comissão Arquidiocesana foram recrutadospara o Comitê: o advogado Fermino Fecchio e a química Thereza Brandão 11 .Após um desentendimento interno, que levou à saída de Jaime Wright do grupo em abril de1984, foram incorporadas ao grupo: a psicóloga e psicanalista Maria Auxiliadora Arantes, ex-presapolítica; Maria Aparecida Horta, ex-presa política e esposa de Luiz Eduardo Greenhalgh; e Inge Schilling,mãe de Flávia Schilling, brasileira que foi prisioneira política no Uruguai de 1972 a 1980. Os dois últimosreforços do grupo foram a leiga católica Lilian Azevedo e o frei maltês João Xerri.Além desses membros já nominados, cabe ressaltar a importância da participação dos familiaresdos integrantes do Clamor em seu apoio estratégico ao grupo. Merecem destaque a missionáriapresbiteriana Alma Jane Wright, esposa do pastor, e Plauto Tuyuty Rocha, esposo da jornalista JanRocha.É importante salientar que, durante a ditadura brasileira, alguns grupos sociais utilizaram asbrechas legais para fazer oposição ao regime, entre eles advogados, jornalistas, familiares de presospolíticos, militantes de esquerda, leigos e religiosos católicos e protestantes. Esses grupos de oposiçãotinham no Clamor seus representantes, pois nele havia uma jornalista (Jan Rocha), advogados (LuizEduardo Greenhalgh, Fermino Fecchio e Plauto Rocha), familiares de presos políticos (Jaime Wright eInge Schilling), militantes de esquerda (Cida Horta e Maria Auxiliadora Arantes), leigos católicos (TherezaBrandão e Lilian Azevedo), religiosos católicos (dom Paulo, Pe. Roberto, Ir. Michael e Frei João) ereligiosos protestantes (Jaime e Alma Wright). Ou seja, o Clamor foi, ao mesmo tempo, uma reaçãocidadã aos excessos cometidos pelos governos ditatoriais e um reflexo da oposição existente na ditadurabrasileira engajada na causa solidária de defesa dos direitos humanos nos países vizinhos que, damesma forma, sofriam dura repressão.A rede integrada de defesa dos direitos humanosTendo entre seus integrantes representantes de diferentes grupos que se opuseram à ditadura, oClamor atuou na tentativa de impedir e denunciar o avanço da repressão estatal (e multinacional) sobre apopulação que procurava refúgio. Sua atuação foi possível graças a um trabalho conjunto comorganismos congêneres para colaboração mútua, união capaz de garantir eficácia às ações de um grupopequeno e dotado de uma estrutura bastante simples. A articulação entre grupos, entidades e ativistasinteressados em denunciar as arbitrariedades dos regimes de Segurança Nacional e em garantir auxílioaos exilados políticos culminou na criação, provavelmente involuntária, de uma espécie de rede informale internacional de defesa dos direitos humanos.Em uma concepção simples, porém eficaz, rede pode ser definida como a “identificação desujeitos coletivos em torno de valores, objetivos ou projetos em comum.” 12 Assim, a identificação desujeitos interessados na defesa dos direitos humanos, articulando em prol desse objetivo, indica aformação de uma rede. Ela se estabelece a partir de relações ou ligações sociais entre um conjunto deindivíduos ou entidades – os quais podem nunca ter se encontrado pessoalmente, mas estabelecemcontatos com relativa frequência – que possuem uma mesma situação sistêmica antagônica a sercombatida e transformada: a situação de repressão vigente nos países do Cone Sul. O principal motivoda articulação em rede está na necessidade de “ganhar visibilidade, produzir impacto na esfera pública eobter conquistas para a cidadania.” 13Portanto, o sucesso do Clamor está diretamente relacionado à rede na qual o grupo inseriu-se eajudou a constituir. Por meio dos boletins, atas de conferências, correspondências, relatórios de ações einformações prestadas pelos membros do grupo Clamor foi possível reconstituir a rede integrada de10111213Graduada em Administração de Empresas e Ciências Sociais pela Saint Mary´s College cf.Acesso em 28/03/2012.O engajamento de Thereza e sua família fez sua casa ser “visitada” pelos agentes do Cenimar (Centro deInformações da Marinha), em abril de 1964, por oferecer refúgio a duas amigas cariocas procuradas pelarepressão. Desde 1975, atuou na Comissão de Justiça e Paz e poucos anos depois se tornou a representanteda Igreja Católica junto ao CBA (Comitê Brasileiro pela Anistia). Cf. MAUÉS, Flamarion; ABRAMO, Zilah Wendel(orgs.). Pela democracia, contra o arbítrio. A oposição democrática do golpe de 1964 à campanha das Diretas já.São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. p. 286-287.SCHERER-WARREN, Ilse. Das mobilizações às redes de movimentos sociais. Sociedade e Estado, Brasília, v.21, n.1, p. 109-130, jan./abr. 2006. p. 113.Idem.356


direitos humanos responsáveis por tantas denúncias de arbitrariedades cometidas pelos militares nasditaduras da América Latina, por garantir asilo a perseguidos políticos de diversos países e por auxiliarna busca por desaparecidos e seus filhos.Caracterizar e reconstruir uma rede corresponde a um trabalho que lida com inevitáveisimprecisões. No caso dessa pesquisa, a situação não é diferente, pois a reconstituição completa da rededa qual fazia parte o Clamor é tarefa de difícil execução dado o grande espaço de atuação do grupo esua longa duração. Além disso, o fato de o grupo ter encerrado suas atividades há mais de vinte anostraz a possibilidade de caírem no esquecimento grupos ou indivíduos que estabeleceram poucoscontatos ou contatos pontuais com o Comitê. Da mesma forma, nem todas as entidades e colaboradoresdo grupo podem estar contemplados na documentação seja por sigilo, cautela, omissão, esquecimentoou outros motivos.A partir da pesquisa realizada é possível reconstituir, mesmo com alguma cautela, a redeintegrada de direitos humanos na qual o Clamor estava inserido 14 :14Autoria de Guilherme Barboza de Fraga.357


Vale ressaltar que essa rede representa aquela na qual o Clamor inseriu-se e com quem o grupointeragiu ao longo de toda a sua trajetória – a figura pode não incluir todos os elos possíveis, mascorresponde aos elos identificáveis nas fontes consultadas. Assim, a rede ora apresentada faz alusão aoconjunto de organismos que estabeleceu contatos com o Clamor garantindo o sucesso de suas ações,não dando conta, necessariamente, da totalidade de instituições atuantes na defesa dos direitoshumanos para os países do Cone Sul nas décadas de 1970 e 1980.Essa rede integrada, constituída de maneira informal, permitiu localizar crianças, filhas demilitantes políticos presos e/ou assassinados pelas ditaduras latino-americanas. 15 A atuação em redepermitiu, também, difundir campanhas pela libertação de presos políticos, como ocorreu com o caso dosFlávios brasileiros – Flávio Koutzii, Flávia Schilling e Flávio Tavares – que se encontravam presos pelasditaduras argentina e uruguaia.Rompendo o círculo vicioso da violênciaCorrespondências, contatos telefônicos, viagens coletivas, seminários e congressosinternacionais estão entre as atividades realizadas coletivamente pelas entidades que integraram a redede defesa dos direitos humanos.15Entre os casos mais conhecidos nos quais o Clamor interviu estão a localização de Mariana Zaffaroni Islas e dosirmãos Anatole e Victoria Julien Grisonas. Tais casos e outras denúncias apresentadas pelo Clamor foramabordados no artigo publicado na 1ª Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos: “A solidariedadenão tem fronteiras: o grupo Clamor e a busca por desaparecidos políticos no Cone Sul”. O presente artigo,utilizando novas fontes, busca apresentar a ação do Clamor no contato com outras entidades de defesa dosdireitos humanos optando por valorizar a atuação coletiva em detrimento da análise de casos específicos.358


Preocupado em estabelecer um contato bem próximo com outros organismos de direitoshumanos para debater sobre o papel e atuação desses, o Clamor organizou o “Seminário sobre o Papeldas Entidades de Direitos Humanos na Atual Conjuntura Política, Social e Econômica dos Países doCone Sul”, em São Paulo, entre os dias 22 e 25 de fevereiro de 1985. 16O Seminário reforçou o interesse em manter a articulação em rede como forma de continuaratingindo os objetivos de defender os direitos humanos frente ao terrorismo de Estado, além de analisarnovos problemas como a questão da impunidade dos responsáveis pela aplicação da política repressivae a necessária educação para os direitos humanos como forma de impedir a repetição dessas práticas.Dom Paulo, em sua intervenção, ressaltou a exigência de lembrar e registrar o que aconteceu para evitaro esquecimento: “Deve-se publicar tudo o que passou, termos programas escolares de direitos humanosfundamentais. Se não, nós, da América Latina, vamos de uma ditadura a outra, e cada geração, menosde uma geração, se esquece do que aconteceu...” 17Expressando reivindicações políticas concretas num período em que partidos políticos emovimentos sociais eram silenciados em suas manifestações públicas, as entidades de defesa dosdireitos humanos exerceram o papel de oposição possível, sendo alternativa de contestação dentro dasociedade civil. Foi por meio de um serviço à causa popular e democrática praticando a solidariedade afavor dos reprimidos pelo regime ditatorial que o Clamor e a rede representaram uma resistência aosistema repressivo. Por utilizar ações públicas destinadas a revelar as atuações mais repudiáveis esecretas implementadas pelo regime e por defender valores humanitários de caráter universal quetranscendiam posições políticas particulares 18 , as entidades contribuíram para o desgaste moral dasditaduras de Segurança Nacional por meio de um discurso de solidariedade capaz de atingir amplascamadas da sociedade.No caso específico do Clamor, sua composição explicitou a ação cidadã/civil das diversascamadas da sociedade brasileira que demonstrou publicamente seu descontentamento com o regime nafigura de jornalistas, advogados, familiares de vítimas, militantes de esquerda, religiosos católicos eprotestantes. Na prática, as organizações de defesa dos direitos humanos substituíram os partidos –limitados em sua ação política – desenvolvendo, contudo, suficiente autonomia em relação a seusobjetivos. Elas apareceram como a resposta possível em um período no qual as instituiçõesdemocráticas tiveram sua atividade restringida. Além disso, sua ação enfatiza a legitimidade dos meiospacíficos na luta política. 19 Para Mario López Martínez, a ação decidida e constante das organizaçõesnão-governamentais de direitos humanos e sua forma de trabalho fundamentado em metodologias nãoviolentasacabaram por causar grande dano a muitas ditaduras devido a sua influência maior sobre asociedade do que outras formas de resistência. 20 O objetivo da não-violência é romper o “círculo vicioso”da violência com um “círculo virtuoso” dando origem a uma sociedade democrática que saiba resolverseus conflitos de forma pacífica, sem o uso da violência. 21 Por isso mesmo,la no violencia se nutre de personas – no ingenuas – sino resueltas, empreendedoras einquietas, (...) sujetos que obedezcan a la voz de su conciencia, gentes que ejerzan supoder para cambiar las injusticias del mundo, personas empoderadas que seandesobedientes frente a la abyección, objetores de conciencia respecto del mal, que no161718192021Participaram do Seminário diversas entidades argentinas (Abuelas, Asociación Madres de Plaza de Mayo,Asamblea Permanente por los Derechos Humanos, Comisión de Familiares de Detenidos Desaparecidos yPresos por Razones Políticas, Liga Argentina por los Derechos del Hombre, Movimiento Ecuménico por losDerechos Humanos e SERPAJ), chilenas (Agrupación de Familiares de Detenidos Desaparecidos, FASIC,SERPAJ e Vicaría de la Solidariedad), uruguaias (Comisión Paz y Bien, Familiares de uruguayos desaparecidosen Argentina e SERPAJ), paraguaias (CIPAE e Comisión Permanente de Familiares de Desaparecidos yAsesinados), brasileiras (CBS, CJP-SP, Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos eMarginalizados de São Paulo e Movimento de Justiça e Direitos Humanos), a Asamblea Permanente deDerechos Humanos da Bolívia e o grupo Vivir do Peru. Também estiveram presentes dom Paulo Evaristo Arns,Belela Herrera do ACNUR e representantes da FEDEFAM, SIJAU e AALA. Além dessas organizações, váriasoutras, impossibilitadas de enviarem representantes, deixaram sua mensagem de adesão e apoio ao Semináriocomo a Anistia Internacional, Comissão Chilena de Direitos Humanos, Comisión Episcopal de Acción Social(CEAS), Fundação Lelio Basso, Madres y Familiares de Procesados por la Justicia Militar del Uruguay eWashington Office on Latin America (WOLA). Após o Seminário, o Clamor lançou um editorial de imprensa comuma síntese das discussões e conclusões do encontro. Cf. CLAMOR, Editorial, [s.d.], p. 2-3 e 11.Ibid., p. 2.EHRLICH, Hugo Frühling. Represion politica y defensa de los derechos humanos. Chile: Chile y America:CESOC, 1986. p. 18.Ibid., p. 33.LÓPEZ MARTINEZ, Mario. Transiciones y reconciliaciones: cambios necesarios en el mundo actual. In:RODRÍGUEZ ALCÁZAR, Francisco Javier [ed.]. Cultivar la paz. Granada: Universidad de Granada, 2000. p. 61.Ibid., p. 98-99.359


Sem fronteiras para a ação solidáriacrean en la “obediencia debida” (por simple obediencia). 22Questionado por intervir, pessoalmente ou por meio do Clamor, em casos de violações dosdireitos humanos nos países vizinhos, dom Paulo respondia que a solidariedade não tem fronteiras. Masa repressão também não respeitava limites territoriais e atingia mesmo quem utilizava métodos nãoviolentoscomo instrumento de resistência. Não ter fronteiras para a repressão faz caracterizar comoameaça todo indivíduo que divergir das crenças, instituições, religião e valores apregoados pelacivilização ocidental. Não ter fronteiras para a solidariedade indica prestar ajuda humanitáriaindependente de crenças, instituições, religião e valores.Assim como a repressão, as ações solidárias do Clamor e das entidades que atuaram emconjunto com o grupo não limitaram sua atuação às fronteiras definidas, conforme balanço realizado pelogrupo em seu quinquenário:“Solidariedade não tem fronteiras” foi a frase que transformamos em “slogan” paramostrar que se por um lado as forças da repressão não respeitavam fronteiras,invadindo países vizinhos para violar direitos humanos, então porque não deveria asolidariedade fazer a mesma coisa na defesa dos mesmos direitos? A frase temsignificado bem mais amplo, na verdade, porquanto também significa que – além dasfronteiras geográficas – a solidariedade não pode ser limitada por barreiras políticas,religiosas, ideológicas, raciais, sociais, econômicas e linguísticas. 23A solidariedade sem fronteiras praticada pelo Clamor sempre ocorrer com máxima cautela, pois,mesmo com o guarda-chuva institucional da Igreja Católica, qualquer atitude equivocada poderia pôr aperder outras conquistas, contribuindo, inclusive, para o recrudescimento da repressão. Por isso, asações foram executadas em sigilo até o momento correto de expor a denúncia. Essa estratégia erachamada pelo grupo de “teologia das brechas” 24 ou, ainda, de acordo com o Pe. Roberto Grand-Maison,de “pastoral da sanfona” 25 , pois a ousadia do grupo aumentava e diminuía de acordo com as “brechas”permitidas em cada momento específico da repressão. E foi em meio a essas brechas, sempre com oapoio firme de dom Paulo, que o grupo participou de ações no exterior, quase sempre em conjunto comoutras organizações.Em outubro de 1979, o Clamor recebeu a denúncia da detenção clandestina de Sigifredo AlbertoArostegui Valdez, preso na divisa do Brasil com a Argentina, no dia 21. Sigifredo era um uruguaioresidente na Argentina que havia colaborado com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos daOEA fornecendo dados de cidadãos uruguaios desaparecidos na Argentina. 26 As autoridades da fronteiranegavam a detenção. Sabedores do quanto obter informações sobre uma detenção era garantia deevitar o desaparecimento permanente do indivíduo, o grupo enviou Plauto Rocha à região para descobriro paradeiro de Sigifredo. O advogado do Clamor localizou o rapaz preso no Regimento das ForçasArmadas em Posadas, na Argentina. Com posse da informação, dom Paulo apelou junto ao embaixadorsuíço em Buenos Aires visto Sigifredo estar sob a proteção do ACNUR. 27 A Anistia Internacional tambémparticipou da intensa campanha pela libertação do uruguaio que só ocorreu no dia 3 de setembro de1980. 28 Em janeiro de 1987, o Clamor realizou uma viagem ao Chile em conjunto com a Comissão deJustiça e Paz de São Paulo (CJP-SP) e o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) de PortoAlegre e articulada com a Vicaría de la Solidariedad e grupos de familiares de presos, mortos edesaparecidos políticos chilenos. Participaram da viagem: Fermino Fecchio pelo Clamor; Belisário dosSantos Júnior, Margarida Genevois e Márcia Jaime pela CJP-SP; Jair Kirschke e Augustino Veit peloMJDH. Os representantes de entidades foram recepcionados, no Chile, pelo embaixador brasileiro,Jorge Ribeiro, que havia preparado uma reunião na embaixada com diversos membros da oposição aPinochet. 29 O embaixador brasileiro organizou, ainda, um encontro da comitiva brasileira com o Ministrodo Interior chileno a quem foram levadas denúncias de agressão a ativistas de direitos humanos do país.Depois disso, os brasileiros visitaram presos condenados à morte 30 , grupos de familiares de222324252627282930Ibid., p. 99-100.CLAMOR, nº 15, dezembro de 1983, p. 5.Ibid., p. 7.Informações prestadas em entrevista concedida ao autor em 08/07/2011.CLAMOR, nº 9, Ano II, março de 1980, p. 2.Ibid., p. 4.CLAMOR, nº 12, Ano III, dezembro de 1980, p. 17.Diferentemente do início da década de 1970, quando o golpe de Estado foi gestado na embaixada brasileira, oatual embaixador chegou a abrir os portões da embaixada para manifestantes perseguidos pela polícia.O motivo da condenação à morte foi o envolvimento no atentado contra Pinochet.360


presos e de desaparecidos políticos e a prisão feminina Cárcere San Miguel. Nos relatos, Jair Krischkerecorda de uma jovem prisioneira de 19 anos que trazia nos braços um bebê, fruto de um estuprodurante as sessões de torturas. Chamou a atenção de Krischke o nome da criança, inscrito no babador:Pablo Salvador. “Pablo por Neruda e Salvador por Allende”, exaltava a presa política mostrandoresistência mesmo em situação tão delicada. A saída dos ativistas brasileiros da prisão, após apurar asituação das presas e levar-lhes mensagens de ânimo, foi acompanhada por canções da Unidad Popularcantadas pelas prisioneiras. O último dia da visita contou com uma homenagem aos que haviam sidomortos. Os representantes brasileiros reuniram-se com familiares das vítimas em frente ao EstádioNacional de Santiago – importante centro de detenção e tortura da ditadura chilena – para uma rápidamanifestação logo desbaratada pelas forças de repressão. 31Considerações finaisAo encerrar suas atividades, o grupo fez um balanço positivo de seu trabalho:A história do CLAMOR prova uma coisa: pessoas que se unem em torno de um objetivoclaro, definido, e que põem todas as suas energias a serviço desta causa tão nobrequanto a dignidade e a integridade da pessoa humana podem remover as montanhasdo medo, da indiferença e da opressão. Nosso grupo soube superar dificuldades paramanter o ideal à altura das necessidades da solidariedade. 32O Clamor surgiu sem a pretensão de ser uma entidade permanente. Ao contrário, desde o início,o trabalho do grupo era visto como uma atividade temporária, para ocorrer apenas enquanto a atuaçãodas demais entidades existentes no Cone Sul tivessem suas funções limitadas pela repressão. Ou seja,nascido em um país que vivenciava sua longa e contraditória abertura política, o Clamor preencheu umalacuna em caráter emergencial, buscando garantir o suporte ao trabalho dos organismos congêneres.Depois de atingidos seus objetivos, o grupo encerrou suas atividades em 1991, propositalmente, no dia10 de dezembro, dia internacional dos direitos humanos. Naquele ano, mesmo as duradouras ditaduraschilena e paraguaia já haviam devolvido o poder aos civis e o grupo, após organizar toda a sua extensadocumentação, decidiu que havia chegado a hora de parar. Com a democracia em vigor no Cone Sul, asentidades de defesa dos direitos humanos recuperaram o espaço perdido e não precisavam mais doClamor como porta-voz. Poderiam, agora, trabalhar sozinhas, sem medo de sofrer represálias.À repressão, o Clamor respondeu com solidariedade. Enquanto as ditaduras unidas ocuparamsecom o uso da força e da violência para aniquilar adversários, o Clamor e demais grupos trabalharamem conjunto para denunciar a opressão, oferecer resistência e restituir identidades e memórias mutiladaspelos regimes repressores. Ao invés de utilizar o conflito para enfrentar o regime repressivo, o apelo àsolidariedade foi o recurso para mobilizar e angariar apoios. E, se houve uma operação internacional derepressão existiu, também, uma rede internacional de defesa dos direitos fundamentais da pessoahumana na qual o Clamor representou um importante e decisivo elo.FontesArquivo do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul. Disponível no Centrode Documentação e Informação Científica – CEDIC / PUC-SP.Entrevistas com Jan Rocha, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, Thereza Brandão, FerminoFecchio, Luiz Eduardo Greenhalgh, Pe. Roberto Graind-Maison e Jair Krischke.Fundo Omar Ferri. Disponível no Acervo da Luta contra a Ditadura no Arquivo Histórico do Rio Grandedo Sul.Referências bibliográficasANDRADE, Ana Célia Navarro de. Descrição do Fundo Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para osPaíses do Cone Sul. Dissertação (Mestrado em História). São Paulo: FFLCH/USP, 2000.BAUER, Caroline Silveira. As ditaduras de Segurança Nacional do Cone Sul e o conceito de “fronteirasideológicas”. In: GUAZZELLI, César Augusto Barcellos; THOMPSON FLORES, Mariana Flores daCunha; AVILA; Arthur Lima de. (Org.). Fronteiras Americanas: teoria e práticas de pesquisas. PortoAlegre: Editora Suliani, 2009.3132As informações sobre a visita ao Chile, em janeiro de 1987, foram prestadas por Jair Krischke em entrevista aoautor no dia 18 de abril de 2012.CLAMOR, Clamor: uma história de solidariedade, 10 de dezembro de 199, p. 5-6.361


BRASIL. Presidência da República. Direito à Memória e à Verdade: histórias de meninos e meninasmarcados pela ditadura. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2009.CARLOS, Juliana de Oliveira. A Anistia e a luta pelos direitos humanos no Brasil. Cad. AEL, v. 13, n.24/25, 2008.EHRLICH, Hugo Frühling. Represion politica y defensa de los derechos humanos. Chile: Chile y America:CESOC, 1986.FRAGA, Guilherme Barboza de. A solidariedade não tem fronteiras: o grupo Clamor e a busca pordesaparecidos políticos no Cone Sul. Anais da Jornada de estudos sobre ditaduras e direitos humanos.(1: 2011: 02 a 30 abr.: Porto Alegre, RS). Porto Alegre: APERS, 2011.GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos; WASSERMAN, Claudia. Ditaduras militares na América Latina.Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2004.LIMA, Samarone. Clamor: a vitória de uma conspiração brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003._____________. Clamor: la colcha de retazos de la memoria. In: CATELA, Ludmila da Silva; JELIN,Elizabeth. (comps.). Memorias de la represión. Los archivos de la represión: Documentos, memoria yverdad. Madrid, Siglo Veintiuno, 2002.LÓPEZ MARTINEZ, Mario. Transiciones y reconciliaciones: cambios necesarios en el mundo actual. In:RODRÍGUEZ ALCÁZAR, Francisco Javier [ed.]. Cultivar la paz. Granada: Universidad de Granada, 2000.MAUÉS, Flamarion; ABRAMO, Zilah Wendel (orgs.). Pela democracia, contra o arbítrio. A oposiçãodemocrática do golpe de 1964 à campanha das Diretas já. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.PADRÓS, Enrique Serra. As ditaduras de segurança nacional Brasil e Cone Sul. Porto Alegre: CORAG,2006.___________; NUNES, Carmen Lúcia da Silveira; LOPEZ, Vanessa Albertinence; FERNANDES, AnandaSimões (Orgs.). Memória, verdade e justiça: as marcas das ditaduras do Cone Sul. Porto Alegre:Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2011.QUADRAT, Samantha Viz. Solidariedade no exílio: os laços entre argentinos e brasileiros. Trabalhoapresentado na IV Jornada de Historia Reciente – Universidade Nacional de Rosario – Argentina – Maiode 2008.RIQUELME, Horacio (org). Era de névoas: direitos humanos, terrorismo de Estado e saúde psicossocialna América Latina. São Paulo: EDUC, 1993.SALEM, Helena (Org.). A Igreja dos oprimidos. São Paulo: Brasil Debates, 1981.SCHERER-WARREN, Ilse. Das mobilizações às redes de movimentos sociais. Sociedade e Estado,Brasília, v. 21, n.1, p. 109-130, jan./abr. 2006.___________. Redes sociales y de movimientos en la sociedad de la información. Nueva Sociedad,Venezuela, n. 196, p. 77-92, mar. abr. 2005.SERBIN, Kernl Kenneth. Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2001.362


X – Outras experiências de repressão e resistênciaà ditadura363


364


A democracia brasileira não foi doada: a resistência na ditadura civil militar brasileiraDiorge Alceno Konrad *(...) Por isso cuidado meu bemHá perigo na esquinaEles venceram e o sinalEstá fechado prá nós...(Como nossos pais, Belchior)A Princesa Isabel já figurou em nossos livros de História como “A Redentora”, aquela que, por terassinado a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, “libertou” os escravos brasileiros. Quando seu papelprotagonista na abolição foi sendo questionado, sobretudo pelos movimentos negros e “desde queZumbi passou a ser reconhecido como símbolo da luta antiescravista brasileira, foi reconsiderada partede nossa visão de história, não feita por heróis, mas tendo o Quilombo dos Palmares comopersonificação e síntese da luta dos negros”, levando-se em consideração “os mais de 300 anos deescravidão em nosso País” e “500 anos de luta pela liberdade e contra o preconceito” 1 .A retomada da defesa de Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzagade Bragança Bourbon e Orléans em papel de destaque para a liberdade dos escravos, em historiografiaque retoma a importância da princesa no processo abolicionista tem como exemplo a obra de EduardoSilva. Na “crise final da escravidão”, através de um “quilombo abolicionista”, se restaura a imagem daPrincesa Isabel com um novo tipo de liderança do processo, “com documentação civil em dia e,principalmente, muito bem articulados politicamente. Não mais os poderosos guerreiros do modeloanterior, mas um tipo novo de liderança, uma espécie de instância de intermediação entre a comunidadede fugitivos e a sociedade envolvente”. 2 Para o historiador, o quilombo do Leblon, que tinha comoidealizador o português José de Seixas Magalhães, “ajudava os fugitivos e os escondia na chácara doLeblon com a cumplicidade dos principais abolicionistas da capital do Império, muitos deles membrosproeminentes da Confederação Abolicionista”, contando com “contava a proteção da própria PrincesaIsabel”, a qual “também protegia fugitivos em Petrópolis”, pois “todo o esquema de promoção de fugas ealojamento de escravos foi montado pela própria Princesa Isabel”, participando do “ jogo político datransição” 3 .Aqui, não se trata de negar o abolicionismo, cujos interessados maiores eram os própriosescravos, em luta por sua liberdade muito antes do nascimento sejam de caifazes, sejam de liberais,seja da própria Princesa. O historiador Mário Maestri, em mais de uma obra, defendeu que “foi aabolição da escravatura, não a ação republicana que pôs fim à Monarquia”, através da “conjunção domovimento abolicionistra radicalizado com as massas servis”m caracterizando a abolição como umaRevolução 4 .Muito antes da Princesa Isabel ter retomado seu papel ativo na abolição, ao menos em parte dahistoriografia, nossa “ciência social” defendeu outros protagonistas que saíam da seara individual: osinteresses imperialistas ingleses pelo fim do tráfico com a intenção de ex-escravos tornarem-seconsumidores de suas mercadorias “made in England”; os “progressistas” fazendeiros do Oeste Paulista,incentivadores da mão de obra imigrante, especialmente a italiana.Na primeira assertiva, Nelson Werneck Sodré chegou a destacar que “uma das condições queinfluíram no nascimento e no desenvolvimento da burguesia brasileira – a condição essencial – foi oaparecimento do imperialismo”. Assim, para o historiador, “desde a abertura dos portos, com o fim doregime do monopólio comercial, a economia brasileira estava integrada na economia mundial e omercado interno estava, a partir de então, ligado ao mercado externo”, gerando efeitos no Brasil, amedida que o século XIX avançava: “na sua primeira metade, dependentes da economia inglesa, éramos*Professor Associado do Departamento e Programa de Pós-Graduação em História da UFSM, Doutor emHistória Social do Trabalho pela UNICAMP.1Esta hipótese já foi desenvolvida em KONRAD, Diorge Alceno. Na senzala a resistência, no quilombo aliberdade: a obra de Clóvis Moura. In. QUEVEDO, Júlio; DUTRA, Marua Rita Py (orgs.). Nas trilhas da negritude:consciência e afirmação. Discutindo a Lei 10.639/3. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2007, p. 116.2Ver: SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura. Disponível em:http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/o-z/FCRB_EduardoSilva_Camelias_Leblon_abolicao_escravatura.pdf. Acesso em 15 set. 2013.3Idem.4Cf. Uma história do Rio Grande do Sul: República Velha. Vol. 3. Passo Fundo: Ed. da UPF, 2001, p. 10.365


clientes de seus banqueiros; na segunda metade, não apenas isso, também área de aplicação de seuscapitais”. Assim, Sodré desenvolverá a questão, demonstrando o fim da escravidão e a introdução daimigração como parte deste processo de desenvolvimento capitalista no Brasil 5 .Em relação ao protagonismo dos fazendeiros do Oeste Paulista, Antonio Carlos Galdinosintetizou em sua tese de doutorado as principais defesas presentes na historiografia, em passagem deRaízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, desenvolvida pelo artigo “O movimento republicano deItu: os fazendeiros do Oeste Paulista e os pródromos do movimento republicano” de Emília Viotti daCosta (Revista de História, n. 20, 1954), bem como “a significativa produção historiográfica e sociológicanas décadas de 1960 e 70, que consagrou ‘os fazendeiros do Oeste Paulista’ como um objeto depesquisa autônomo em relação ao problema específico do republicanismo”, reforçando a tese da“suposta mentalidade mais progressista dos cafeicultores do Oeste Paulista em relação aos escravos eimigrantes europeus”, conduzindo, assim, “inúmeras pesquisas e debates”. Galdino elenca ainda, entreoutros, na defesa desta tese, o artigo “Condições sociais da industrialização em São Paulo”, escrito porFernando Henrique Cardoso e publicado na Revista Brasiliense (n. 28, 1960) 6 .A historiografia, mesmo que ainda oculte e a academia reforce esta obliteração, já sabe hátempos da obra de Clóvis Moura, falecido em 2003. Foi o historiador, sociólogo, jornalista e poeta, umdos que mais no ensinou sobre a relação entre a escravidão em nosso passado histórico e a relaçãocom o racismo contemporâneo 7 .Em seu clássico e pioneiro Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas, cujaprimeira edição foi publicada em 1959, Clóvis Moura afirma que o quilombo foi a unidade básica deresistência do escravo, enquanto, o quilombola“era o elemento que, como sujeito do próprio regimeescravocrata, negava-o material e socialmente, solapando o tipo de trabalho que existia e dinamizava aestratificação social existente” 8 .Sabemos que o fim da escravidão no Brasil perpetuou a dominação de uma classe dominante demaioria branca que se metamorfoseou de senhor de escravo para uma incipiente burguesia agrária, quetransformou o trabalho assalariado, um avanço histórico, em novas formas de discriminação, colocandoos descendentes de escravos nos salários mais baixos, quando tiveram acesso a ele, no desemprego,no subemprego. Esta é a herança mais perversa do "medo branco" (termo apropriadamente referendadopela historiadora Célia Marinho de Azevedo 9 ), em relação à maioria negra do Brasil, a fim de que estanão tivesse, com o fim da escravidão, a igualdade social, econômica, política e cultural.Em Rebeliões da Senzala Clóvis Moura afirma: “as revoltas dos escravos, como apresentamosneste livro, formaram um dos termos de antinomia dessa sociedade”. Ou seja, não há como entender adominação do modo de produção escravista no Brasil sem estudar o seu antônimo, a resistência declasse perpetrada pelos próprios escravos. Para Moura, que alarga esse entendimento mais ainda, asrevoltas não foram apenas um dos termos dessa antinomia. Pelo contrário, “foram um dos seuselementos mais dinâmicos, porque contribuíram para solapar as bases econômicas desse tipo desociedade”, criando “as premissas para que, no seu lugar, surgisse outro tipo” de sociedade. Assim,completa o autor, “as lutas dos escravos, ao invés de consolidar, enfraqueceram aquele regime detrabalho, fato que, aliado a outros fatores, levou o mesmo a ser substituído pelo trabalho livre” 10 .Em Rebeliões de senzala, Clóvis Moura mostrou as diversas formas dessa resistência que, parao autor, vistas em seu conjunto, representaram a luta de classes fundamental para se entender adestruição da escravidão, fundamentalmente, pela ação histórica dos próprios escravos. Evidentemente,neste processo de luta contra a escravidão, a luta escrava, bem explica o autor, não se deu apenas pelaresistência escrava, mas foi ela que dinamizou as outras formas e contradições que puseram fim aomodo de produção.Ao fazer a resistência, mesmo que inconscientemente, os escravos criavam as condições para aprojeção de um novo modo de produção assentado em uma forma em que o trabalhador não era mais5Ver. SODRÉ, Nelson Werneck. História da burguesia brasileira. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 134 a 153,especialmente 134-135.6Galdino mostra que Emília Viotti reveria esta posição mais tarde, em Da senzala à Colônia, quando “passoua sustentar a existência de uma diferença entre os fazendeiros do Oeste paulista e do Vale do Paraíba em termos decomportamento e não de mentalidade, particularmente nos seus trabalhos sobre o tema da escravidão e a transiçãopara o trabalho livre em São Paulo”. Ver: GALDINO, Antonio Carlos. Campinas, uma cidade republicana: política eeleições no Oeste Paulista (1870-1889). Tese de Doutorado. Campinas: IFCH-UNICAMP, p. 5-6.7As passagens a seguir encontram-se de forma ampliada em KONRAD, 2007, op. cit., p. 117, passim.8Estas considerações conclusivas não são apresentadas na primeira edição de Rebeliões de senzala,lançada peal Edições Zumbi, em 1959. Conferi-las em MOURA, Clóvis. Rebeliões de senzala: quilombos,insurreições e guerrilhas. 4 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p. 269 e 271.9Cf. AZEVEDO, Célia Marinho M. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX.Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.10Grifos nossos. As considerações acima se encontram em MOURA, Clóvis, Rebeliões da Senzala. 4 ed.Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p. 269.366


sim uma simples mercadoria. Vendedor da sua força de trabalho em forma de trabalho assalariado.Dessa forma, continua Clóvis Moura, o escravo rebelde possibilitava os novos níveis de desajuste, pois,ao retardar o processo de produção, criava condições para o desenvolvimento de pólos intermediáriosque empurravam toda a sociedade para novas formas de convivência social, cultural e econômica.Somam-se a isso as contradições geradas pelas formas coloniais de produção e de intercâmbio daeconomia mundial, o que contribuía para acelerar a pressão internacional para o término de formas deprodução colonial e escravista. Afinal, o mercado capitalista em expansão necessitava a ampliação donúmero de consumidores de seus produtos. Assim o quilombola não era um termo morto ou negativo,mas, fundamentalmente, ativo e dinâmico, influenciando também o movimento abolicionista em suasdiversas matizes, a fim de que o Brasil transitasse da mão-de-obra escrava para a assalariada.É justamente esta a inovação central da obra de Clóvis Moura, em contraposição a umahistoriografia tradicional que apenas apresenta o escravo como elemento positivo da sociedadeescravista, no qual o escravo aceitou passivamente a sujeição que lhe era imposta pelos senhores deescravos. Para Moura, mesmo quando a resistência era passiva, ela contribuía, no geral, para a lutacontra a própria escravidão.Para Clóvis Moura, esta resistência veio de várias formas: as formas passivas: a) o suicídio, adepressão psicológica (o banzo); b) o assassínio dos próprios filhos ou de outros elementos escravos; c)a fuga tradicional; d) a fuga coletiva; e e) a organização de quilombos longes das cidades; as formasativas: 1) as revoltas cotidianas pela tomada do poder; 2) as guerrilhas nas matas e estradas; 3) aparticipação em movimentos não escravos; 4) a resistência armada dos quilombos às invasõesrepressoras; e 5) a violência pessoal ou coletiva contra senhores ou feitores 11 .Não se trata de, então, de desperceber a Princesa Isabel, os interesses do imperialismo inglêsou os fazendeiros do Oeste Paulista no fim da escravidão, muito menos do abolicionismo, mas entendero eixo principal do processo de lutas de classes antiescravista. Se os ex-escravos não se constituíramem poder político e governo após a abolição, este sim ainda é um problema a ser mais bem explicadopela historiografia. Mas negar seu protagonismo na luta antiescravista ainda tem sido a marca maiscontundente de nossa historiografia, outro silenciamento dos vencidos, parafraseando o que já disseEdgard de Decca há alguns anos em torno de outros projetos de revolução presentes em 1930 12 .A Resistência Também é HistoriográficaComo é difícil acordar caladoSe na calada da noite eu me danoQuero lançar um grito desumanoQue é uma maneira de ser escutado(Cálice – Chico Buarque)Dissemos tudo isto até aqui, para compararmos com outro momento do processo históricobrasileiro, sem corrermos o risco do anacronismo: a resistência durante toda a Ditadura Civil-Militar noBrasil.Desde que o ditador Errnesto Geisel passou a ser “protagonista” da “distensão”, e outro ditador,João Baptista Figueiredo foi alçado como artífice da “abertura”, se reforça a ideia de “transição pelo alto”entre a Ditadura e a Democracia pós-1985 em nosso País. Isto é, o Golpe de 1964 instaurou a Ditadurae nossas classes dominantes e as Forças Armadas golpistas e os generais de plantão, quando lhes foiconveniente, “decidiram” terminar com o Terrorismo de Estado. Desta “transação política, resultou ogoverno da “Nova República” e de José Sarney (1985-1990), antigo líder no Congresso do PartidoDemocrático Social, o PDS, nascido com o DNA da ARENA.Assim, a resistência à Ditadura e o processo da luta de classes, nesta estratégia argumentativa,são deslocados da História, transformando em elementos principais outros “fatores” históricos queexplicam o fim da Ditadura de Segurança Nacional. Assim, o “Regime Militar”, termo eufemísticocunhado pelos próprios ditadores, numa das vertentes argumentativas, vai ter os personagens de Geisele Figueiredo, somando-se com a “eminência parda” Golbery do Couto e Silva e os “sorbonnistas”, comoaqueles que decidiram realizar a transição, como se a História continuasse a ser a ação de indivíduosque tomam ou mudam de posição conforme os seus desejos políticos e individuais; na outra ponta,aparece a oposição consentida, nucleada no Movimento Democrático Brasileiro, o MDB, transformadoem Partido com a volta do pluripartidarismo restrito de 1980.Muitos dirão que resgatar a luta de classes e os conflitos sócio-políticos para entender a o fim daDitadura Civil-Militar pós-1964 é uma “história militante”. Mesmo que ainda seja preferível, no caso deste11Idem, p. 273.12Ver: DECCA, Edgar de. 1930: o silêncio dos vencidos. Memória, história e revolução. 5 ed. São Paulo:Brasiliense, 1992367


artigo, uma “história militante”, não se trata, por obviedade de reforçar tal “reducionismo”. A “história vistade baixo” quando não percebe as formas de dominação e de poder, também oblitera o processo, sendotão problemática quanto uma história de heróis ou uma construção histórica que dá ao “Estado” o papelde sujeito do processo, neste caso, transformando o aparato jurídico-político em personificação social, talcomo sempre fez a historiografia de fundo liberal.Evidenciar os movimentos sociais e políticos que resistiram à Ditadura Civil-Militar no Brasil(1964-1985) é colocar em patamar diferente aquilo que já foi adiantado por Caio Navarro de Toledo,quando argumentou que o Golpe de 1964 foi um Golpe contra a incipiente democracia política brasileira,contra as reformas políticas e sociais em debate durante o Governo de João Goulart; contra a politizaçãodas organizações dos trabalhadores, camponeses e estudantes e contra o rico debate cultural eintelectual que vivia o país. Para levar adiante um golpe de direita contra as reformas de base e ademocracia e uma ditadura das classes dominantes, e seus ideólogos, civis ou militares, como já disse oautor, foi preciso destruir as organizações políticas e reprimir os movimentos sociais de esquerda eprogressistas 13 .Aqui, sem negar-se a priori, a complexidade da luta de classes durante a Ditadura, a qualevidencia as contradições mais profundas do processo de Golpe, da Ditadura em si e da “transiçãodemocrática”, dar prioridade ao tema da resistência é deslocar do eixo secundário para o eixo principal aexplicação sobre nossos 21 anos de Terrorismo de Estado perpetrado pelas nossas classes dominantesem aliança com o capital estrangeiro e, sobremaneira, com os interesses norte-americanos em nossoPaís.Trata-se de dizer mais sobre Caparaó e as primeiras tentativas de resistência guerrilheira aoarbítrio; de entender o significado mais profundo do descontentamento da chamada classe médiareadicalizada que marcha na passeata dos Cem Mil, em 1968; de se aprofundar o significado daGuerrilha do Araguaia e da tática política do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) no mais longevomovimento armado de resistência à Ditadura, bem como perceber a luta de outras organizações como aAção Libertadora Nacional (ALN), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o MovimentoRevolucionário 8 de Outubro (MR-8), o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), oMovimento Revolucionário Tiradentes (MRT), o Partido Operário Comunista (POC), a VAL-PALMARES, oComando de Libertação Nacional (Colina), a Ala Vermelha do PCdoB e tantas outras organizações daluta armada, bem como a resistência pacífica e institucional, seja do Partido Comunista Brasileiro (PCB),seja do MDB e, no final da Ditadura, no Partido dos Trabalhadores (PT), do Partido DemocráticoTrabalhista (PDT) ou do próprio PMDB, entre outros.A Ditadura Civil-Militar brasileira, sempre é bom reforçar, foi marcada pela Doutrina deSegurança Nacional e pelo Terrorismo de Estado, Suas marcas foram a “Operação Limpeza” contra osmovimentos sociais camponeses e sindicais, sobretudo no imediato pós-Golpe, mas insuficiente paraaplacar a resistência, necessitando-se do Ato Institucional nº 5 (AI-5) de 13 de dezembro de 1968, bemcomo dos aparelhos de terror como o Destacamento de Operações de Informações-Centro deOperações de Defesa Interna (DOI-CODI), o Centro de Informações do Exército (CIE), Centro deInformações da Marinha (CENIMAR), o Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), a OperaçãoBandeirantes (OBAN), o Serviço Nacional de Informações (SNI) e os Departamento de Ordem Política eSocial (DOPS), assim como a Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP), tudo coordenado peloSistema de Segurança Interna (SISSEGIN) 14 .Este amplo aparato do Terrorismo de Estado resultou nas prisões, na tortura, na censura, noexílio, nos assassinatos e nos desaparecimentos, exemplificados pelo extermínio da Luta Armada e pelamorte de muitos que não partilhavam desta estratégia, como Vladimir Herzog e Manuel Filho, ou pelaChacina da Lapa, em 1976, assim como os atentados terroristas que explodiram bancas de revista e quelevaram a carta-bomba que vitimou a secretária da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), LydiaMonteiro da Silva, além do enigmático atentado do Riocentro. Somou-se a isso a Operação Condor, mastodas elas ineficientes para impedir a crise da política econômica da Ditadura que levou ao fim do“milagre econômico”, assim como ao fim da censura; a crise política e a vitória do MDB em 1974; masespecialmente a volta dos movimentos sociais e políticos através das Comunidades Eclesiais de Base(CEBs), da luta pela moradia e pela terra (CONAM e MST), bem como a mobilização nas ruas deestudantes, das greves operárias do ABC e de tantas outras categorias de trabalhadores, todas elas noprocesso de luta Pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita, na Luta pela Constituinte Livre e Soberana e na13Ver: TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In. REIS FILHO, DanielAarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O Golpe e a Ditadura Militar. 40 anos depois (1964-2004). Bauru: Ed. da USC, 2004, p. 67-68; do mesmo autor, cf. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia”.In. Revista Brasileira de História. Dossiê Brasil: do ensaio ao golpe (1954-1964), v. 24, n. 47. São Paulo: ANPUH-CNPQ, jan. a jun. de 2004, p. 13-2814Ver mais sobre isso em: FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionageme polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001.368


luta pelas “Diretas Já”.Se a historiografia não evidenciar tudo isso e a própria resistência, aí sim abrirá mão de entenderas contradições mais profundas da Ditadura Pós-1964, não deixando, portanto, de fazer uma “históriamilitante”.A Resistência contra a Ditadura Civil-Militar Brasileira(...) Cai o rei de EspadasCai o rei de OurosCai o rei de PausCai, não fica nada.(A Cartomante - Ivan Lins)A resistência a Ditadura já começou imediatamente após o Golpe e qualquer levantamentofactual responde a isso. Se na conjuntura de início de 1964, quando o Governo João Goulartregulamentava a lei de remessa de lucros e realizava Comício da Central do Brasil , contraposto pelaação político-ideológica dos Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais-Instituto Brasileiro de AçãoDemocrática (IPES-IBAD), pelas marchas da Família, com Deus, pela Liberdade e pelo próprio GolpeCivil-Militar de março, as lutas sociais e políticas já demonstravam o avanço da luta de classes no Brasil,não seria apenas o 31 de março que poria fim a elas, mesmo que a tentativa de uma nova rede delegalidade, a exemplo de 1961, tenha sido derrotada 15 .Em 9 de abril, foi Decretado o Ato Institucional, o qual conferiu ao presidente da Repúblicapoderes discricionários para cassar mandatos eletivos e suspender direitos políticos. Um dia depois, asede da União Nacional dos Estudantes (UNE), entidade que seria declarada extinta em outubro, foisimbolicamente incendiada por defensores da Ditadura. Em 9 de novembro, por sua vez, foi sancionadaa Lei n. 4.464 (Lei Suplicy) proibindo atividades políticas estudantis. De imediato, a resistência dosestudantes se iniciou, com a UNE e as Uniões Estaduais passando a atuar na clandestinidade. Ainda emdezembro de 1964, Nara Leão, Zé Keti e João do Vale denunciavam no show Opinião o aumento daescalada de arbítrio, somando-se a líderes partidários e dos movimentos sociais e políticos, os maisperseguidos nos meses que se seguiram ao Golpe.1965 iniciou com os Ato Institucional número 2, extinguindo os partidos existentes e conferindoao Ditador de plantão, naquele momento Castelo Branco, poderes para cassar mandatos eletivos esuspender direitos políticos, e número 3, estabelecendo eleição indireta para governadores e terminou,em outubro, com o decreto de recesso do Congresso Nacional, ainda em outubro. Mas, asmanifestações e o início da guerrilha anunciava o que os ditadores iriam enfrentar. Ainda em março,enquanto Castelo Branco era vaiado em aula inaugural na Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ), protestos anti-ditadura ocorriam na Universidade de Brasília (UnB) e no Fundão, também no Riode Janeiro, somando-se a tentativa guerrilheira comandada pelo coronel Jeferson Cardim, quando 23homens tomaram a cidade de Três Passos, no Rio Grande do Sul 16 .No ano seguinte, a Ditadura passou a perseguir alguns de seus apoiadores de 1964. Em junho,Ademar de Barros foi afastado do governo de São Paulo e cassado, ao mesmo tempo em que o MDBdecidiu não apoiar a "eleição presidencial indireta", ação que colocava por terra a esperada eleição de1966 que, segundo a esperança de alguns, devolveria o poder aos civis. Da eleição indireta, em outubro,saiu o Ditador Costa e Silva, somando-se com a cassação dos mandatos de vários deputados federaismais um recesso do Congresso. A resposta, no mesmo mês, foi o lançamento da Frente Ampla,antiditadura, unindo João Goulart, Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek, estes dois últimos, defensoresdo Golpe de 1964. Antes disso, ocorrera o 28º Congresso da UNE, já o segundo na ilegalidade, numconvento em Belo Horizonte e o protesto nacional estudantil se setembro, o que fez a UNE eleger o dia22 como o Dia Nacional de Luta contra a Ditadura. Como resultado, a polícia invadiu a Faculdade deMedicina da UFRJ e expulsou os estudantes com extrema violência, no episódio conhecido como oMassacre da Praia Vermelha.Em 1967, quando foi outorgada a Constituição da Ditadura e sancionada a lei de censura daimprensa e a nova Lei de Segurança Nacional (LSN), logo jornalistas e artistas passaram a denunciar oaumento do controle e da repressão, tanto que, em novembro, a Confederação Nacional dos Bispos doBrasil (CNBB), apoiadora do Golpe de 1964, condenou as prisões de clérigos que se opunham à15Em relação ao Rio Grande do Sul, no processo histórico de 1961 a 1964, abordando a luta de classes entrea Legalidade e o Golpe, ver: KONRAD, Diorge Alceno; LAMEIRA, Rafael Fantinel. Campanha da Legalidade, luta declasses e Golpe de Estado no Rio Grande do Sul (1961-1964). In. Anos 90. Porto Alegre: UFRGS, 2011. Disponívelem:http://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/23249/18242.16Sobre a tomada de Três Passos e a ação comandada por Cardim, consultar: SILVA, José Wilson da. Otenente vermelho. 3 ed. Porto Alegre, Tchê, 1987.369


Ditadura e que se manifestaram contra a repressão ainda em agosto.Um ano depois, a Ditadura, não conseguindo impedir a resistência e os protestos, começa aconstruir o Golpe dentro do Golpe. Ainda em abril, foi extinta a Frente Ampla e 68 municípios sãoenquadrados como territórios de segurança nacional. Em 21 de junho, no Rio de Janeiro, a repressãodesencadeia a “Sexta-Feira Sangrenta’, quando a Polícia Militar reprimiu a passeata por mais verbas noRio. Depois de várias horas de luta de rua, o saldo foram 28 mortos.Além disso, a atitude do Terrorismo de Estado estimular os grupos para-militares, como oComando de Caça aos Comunistas (CCC) que, em São Paulo, depredou o teatro onde era apresentadaa peça Roda Viva, de Chico Buarque, agredindo diversos artistas. Somou-se a isso, em julho, o atentadoa bomba contra a sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), bem como, a bomba na livrariaCivilização Brasileira, engajada na oposição, em setembro, o atentado, em Recife, à casa de D. HelderCâmara, vitimando seu secretário e a bomba no Teatro Opinião, Rio de Janeiro, em dezembro.Como reação a repressão, em 1968, estudantes ampliaram seus espaços de manifestaçãopública. Ainda em março, quando o secundarista Édson Luís de Lima Souto foi morto pela Polícia Militarno restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, 50 mil pessoas compareceram ao enterro, enquanto aUNE decretou greve geral. O resultado foram os protestos estudantis por todo o País, momento em quea repressão matou mais três, no Rio e em Goiânia. O 4º aniversário do Golpe resulta em 30 feridos,quando o Exército ocupou o Centro do Rio, já no início de abril.No dia seguinte à “Sexta-Feira Sangrenta”, intelectuais fizeram passeata de protesto,estimulando para que, no dia 26, ocorresse a Passeata dos 100 mil, a maior manifestação de rua atéentão contra a Ditadura. Em 4 de junho, nova passeata estudantil reuniu 30 mil no Rio de Janeiro. Comoresposta, o general Eurico Garrastazu Médici, então chefe do SNI, sugeriu um novo Ato Institucional paraaumentar a repressão. Ainda, em 19 de julho, a 9ª assembléia da CNBB condenou a falta de liberdadeno Brasil. Em São Paulo, em 2 de outubro, ocorreu a Batalha da Maria Antonia, confronto entre alunosda Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e grupos de extrema-direita e armados daUniversidade Mackenzie, ocasião em que o secundarista José Guimarães foi morto pela Polícia Militar. Aluta estudantil de 1968 ainda culminaria com o Congresso da UNE de Ibiúna, no interior de São Paulo,quando cerca de 1.240 estudantes de todo o País foram presos, quando participavam do 30º Congressoda clandestina entidade. Depois da prisão, aumentaram os protestos por todo o Brasil, com a palavra-deordem"A UNE somos nós, nossa força, nossa voz!", com passeatas estudantis em diversas cidades.As manifestações de rua de 1968 também foram a senha para novas greves operárias. Em 16 deabril, 15 mil metalúrgicos de Contagem, em Minas Gerais, iniciam a greve por aumento de 10% nossalários. Três meses depois, em 17 de julho, a greve atingirá metalúrgicas de Osasco, em São Paulo,com ocupação da Cobrasma, quando os operários deixam a fábrica sob a mira de metralhadoras doExército. Neste meio tempo, no Primeiro de Maio, em São Paulo, trabalhadores jogaram pedras nogovernador e apoiador da Ditadura, Abreu Sodré, tomando o palanque da Praça da Sé e fazem um dosprotesto mais simbólicos contra a Ditadura. Depois das greves operárias de Minas Gerais e São Paulo,em outubro, ocorreu a Greve do Cabo, em Pernambuco, com cerca de 10 mil canavieiros parados.A Ditadura de Segurança Nacional não poderia tolerar tanta resistência ao seu projeto. Opretexto para maior fechamento da Ditadura (ainda em novembro, no dia 22, o governo criou o ConselhoSuperior de Censura), que não continha as manifestações de rua veio com o discurso antimilitarista dodeputado do MDB, Márcio Moreira Alves, contra a invasão recém ocorrida da UnB. No dia 13 dedezembro, a Câmara dos Deputados rejeitou por 216 votos a 141 o pedido de licença para processar odeputado. O AI-5 será decretado neste mesmo dia, com nova onda de cassação de mandatos eampliação da censura. Como resultado imediato, no dia 22, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outrosmúsicos são presos na Boate Sucata, Rio de Janeiro, enquanto no dia 30, saía a primeira lista decassações, encabeçada por Márcio Moreira Alves. Findava o ano que não terminou 17 .Mas não bastava o AI-5. Em 1969, o Ato Institucional nº 10, por exemplo, imporá aposentadoriapara professores universitários por todo o Brasil, enquanto o AI-14 estabeleceu a pena de morte e oDecreto-Lei n. 898 fixou o "inimigo interno" como alvo da "Segurança nacional". Não bastasse isso, aDitadura cassou mais trinta e três mandatos de deputados, suspendeu as eleições (no AI-7, aindadurante o Governo do Ditador Costa e Silva), estabeleceu a censura prévia de livros e revistas pelodecreto-lei n. 1.077, em 1970, bem como a edição dos “decretos reservados”, a partir de novembro de1971. O AI-5, assim, abriu guarida para a criação do CIE e do CISA, em 20 de maio, e a criação daOBAN, também o gérmen da consolidação do Terrorismo de Estado do “sistema CODI-DOI”, o qual seconsolidará com o decreto n. 68.447 , de 30 de março de 1971, o qual reorganizou o CENIMAR. Somousea isso a inauguração da Escola Nacional de informações, já em 1972, bem como a Lei 5.786, quetornou mais repressiva a Lei de Segurança Nacional, decretada em 27 de junho de 1972.O golpe dentro do golpe era a senha também para o auge da Ditadura Civil-Militar no Brasil,17Sobre 1968 como o ano que não terminou, ver: VENTURA, Zuenir. 1968 - O ano que não terminou. 14 ed.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.370


simbolizada pela posse do ditador Emílio Garrastazu Médici, em 30 de outubro de 1970. Com Médici nalinha de frente, a repressão esmagará a guerrilha urbana e iniciará o combate à Guerrilha do Araguaia,comandado pelo PC do B, terminando com os últimos focos de resistência apenas em 1975, já noGoverno do Ditador Ernesto Geisel, mesmo que, em dezembro de 1973, a Ditadura já tivesse obtido asua maior vitória, desarticulando a coluna vertebral dos três destacamento de resistência do maiormovimento de resistência armada.O AI-5 não veio sem resistência e ela foi intensa, especialmente pelas diversas estratégias deluta armada. Pouco mais de um mês depois da sua decretação, Carlos Lamarca, capitão do Exército, emais três militares levaram para a guerrilha da VPR um caminhão de armas, do quartel de Quitaúna, emSão Paulo, seguida da primeira ação armada de Lamarca na VPR, com a expropriação de duasagências bancárias em, também em São Paulo, em 9 de maio de 1969. A ação da VPR será seguida, em15 de agosto de 1969, através da reação da ALN, com a tomada da Rádio Nacional, em São Paulo, e aleitura do manifesto contra a Ditadura. A resistência armada à Ditadura, nos meses seguintes àdecretação do AI-5 não arrefeceu. Em 18 de abril de 1970, cinco mil soldados realizam ação no Vale doRibeira, em São Paulo, contra o foco guerrilheiro dirigido pela VPR e por Carlos Lamarca 18 . Numa açãoousada, os guerrilheiros romperam o cerco de vinte dias, seguindo em direção à capital.Menos de um mês depois, um comando do MR-8 e da ALN sequestrou o embaixador norteamericanoCharles Elbrick, sendo trocado por quinze presos políticos, com repercussão intensa einternacional. Somaram-se a eles, em 1970, os sequestros do cônsul japonês Nobuo Okushi (trocado porcinco presos políticos), do embaixador alemão Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben (trocadopor quarenta presos políticos) e do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher (trocado por setentapresos políticos). A reação da Ditadura será imediata, antes de terminar setembro, a OBAN captura eassina na tortura Virgílio Gomes da Silva, o “Jonas” da ALN, um dos comandantes militares do sequestrode Elbrick. Alguns dias depois, em 4 de novembro, Carlos Marighela, dirigente da ALN foi executado pelaação do delegado Sérgio Fleury, na alameda Casa Branca, em São Paulo. A Ditadura não pouparáesforços para derrotar a resistência armada e, em 16 de janeiro de 1970, nas dependências do DOI-CODI do Rio de Janeiro, trucida com empalamento o jornalista e dirigente comunista do PCBR, MárioAlves. Uma semana depois será preso Joaquim Câmara Ferreira, novo comandante da ALN. Em um sítioclandestino, comandado pelo delegado Fleury, depois de intensa tortura, morreu no mesmo dia. Ainda nofinal de 1970, Eduardo Leite, o Bacuri, da ALN, também é executado pela equipe de Fleury, tendo asorelhas decepadas, os olhos vazados e os dentes arrancados na tortura 19 . A ação para a eliminaçãofísica dos seus oponentes não tinha limites: em 20 de janeiro de 1971, o deputado cassado RubensPaiva foi sequestrado e desaparecido no Rio de Janeiro, depois de passar pelo DOI-CODI.A resposta da resistência também será dada. Em 15 de abril de 1971, foi executado, em SãoPaulo, o presidente da ULTRAGÁS, Albert Boilesen, financiador da tortura na OBAN, com o costume deassistir as próprias sessões de tortura 20 . A execução de Boilesen foi uma resposta ao assassinato dooperário Devanir José de Carvalho, então ex-militante da Ala Vermelha do PCdoB e dirigente do MRT,ocorrido em 7 de abril de 1971, depois de ser metralhado e imobilizado dois dias antes na rua Cruzeiro,no bairro Tremembé, em São Paulo, e levado para o DEOPS e torturado pessoalmente pelo delegadoFleury e sua equipe.A execução de Boilesen fará com que a Ditadura não dê trégua a perseguição, prisões, torturas,mortes e desaparecimentos. Em 14 de maio de 1971, foi preso Stuart Angel, jovem militante do MR-8,assassinado exatamente quatro meses depois de intensas torturas no CISA, na base aérea do aeroportodo Galeão, no Rio de Janeiro 21 . As ações de um oficial do Exército na resistência armada à Ditaduraeram intoleráveis. Assim, 17 de setembro de 1971, após perseguição intensa, a Ditadura executará, emIpupiara, no sertão baiano, Carlos Lamarca, juntamente com o operário José Campos Barreto, oZequinha, ambos já militando no MR-8.O recrudescimento da repressão à luta armada também terá consequenecias nos gruposguerrilheiros. Se ainda em janeiro de 1969, logo após o AI-5, a direção do PCdoB elaborará o18A VPR será destroçada definitivamente em 05 de janeiro de 1973, com o Massacre da Chácara São Bento,quando a equipe do delegado Fleury ataca a organização em Paulista, Pernambuco, com o auxílio do agenteinfiltrado cabo Anselmo.19A ALN será derrotada aos poucos pela repressão, culminando, entre outros: com a execução de doestudante de Geologia da USP, Alexandre Vanuchi Leme, morto em 17 de março de 1973, após 24 horas de torturasno DOI-CODI de São Paulo; assassinato de Ronaldo Mouthr Queiroz, também em São Paulo, em 6 de abril domesmo ano; eliminação, sob torturas, no DOI-CODI paulista, Luís José da Cunha, em 13 de julho; assassinato deHelber Gomes Goulart, em 18 de julho de 1973.20Sobre este momento histórico da Ditadura, recomenda-se o filme Cidadão Boilesen, dirigido por ChaimLitewski. Brasil, 2009, 92’.21Sobre a trajetória de Stuart Angel, bem como a busca de sua mãe pelo corpo do filho, resultando noassassinato de sua progenitora, ver o filme Zuzu Angel, dirigido por Sérgio Rezende. Brasil, 2006, 110’371


documento “Guerra Popular, caminho da luta armada no Brasil” 22 , definindo a sua tática de resistênciaarmada contra a Ditadura, estabelecendo o movimento rural armado de resistência, pois o Partido jáconcentrava parte de sua militância há cerca de três anos, no Bico do Papagaio, região entre os estadosde Maranhão, Pará e atual Tocantins.Como resposta do Terrorismo de Estado, ainda 12 de abril de 1972, cerca de cinco mil soldadosdo Exército, Aeronáutica e Polícia Militar atacaram moradores do sul do Pará, local da área da baseguerrilheira, levando os militantes do PCdoB à resistência em armadas, começa a Guerrilha do Araguaia,a qual enfrentará a ditadura por mais de três anos. Como resultado, três meses depois, foi presa eexecutada pelo Exército, com uma bala na cabeça, aos 22 anos, a militante Maria Lúcia Petit 23 . O PCdoBtambém será atacado nas cidades: em 25 de dezembro de 1972, o dirigente partidário e ex-deputadoestadual Lincoln Cordeiro Oest, preso cinco dias antes pelo DOI-CODI, foi executado no Rio de Janeiro;para não ficar atrás, em 31 de dezembro, após quatro dias de tortura, no o DOI-CODI de São Pauloassassina Carlos Danieli. O objetivo óbvio da repressão era desarticular as ligações do Partido com abase guerrilheira no Araguaia.Em 1973, com o aprofundamento da crise do “Milagre Econômico”, resultando em rearticulaçãosocial da Igreja Católica, através da organização das CEBs em oposição à Ditadura e aumento da açãoda oposição consentida, através do MDB, ainda o Terrorismo de Estado fará a ação mais intensa paraderrotar a Guerrilha do Araguaia. Após duas expedições fracassadas em dois anos de ação na região,em sete de outubro, o Exército iniciou a terceira e última campanha contra a Guerrilha do Araguaia, como lema “sem uniformes e sem prisioneiros”. A repressão terá seu momento culminante no natal dessemesmo ano, quando os três destacamentos guerrilheiros foram desarticulados 24 . Dois anos depois, emPrimeiro de janeiro de 1975, reconhecendo a derrota no Araguaia, o Comitê Central do PCdoB aprovaráa “Mensagem aos Brasileiros”, propondo a Constituinte livremente eleita, a abolição de todos os atos eleis de exceção e a Anistia geral. A estratégia principal na luta contra a Ditadura mudará para a açãoinstitucional 25 .As torturas, praticadas no Brasil desde os primeiros dias do Golpe e negadas pela Ditaduracomeçam a repercutir em nível internacional. Em 21 de junho de 1970, o Brasil ganha o tricampeonatode futebol no Méxixo, revertendo em propaganda política e ideológica para Médici e as marcas de“Brasil: ame ou deixe-o” e “Ninguém segura esta Nação!”, mas, um mês depois, a ComissãoInternacional de Juristas, em Genebra, denunciou para a Organização dos Estados Americanos (OEA),as torturas praticadas no Brasil. As denúncias de tortura, que naquele momento já eram feitas pelaAnistia Internacional, serão fundamentais para que a CNBB começasse a sua crítica à Ditadura queapoiava até então. Em 13 de fevereiro de 1971, Dom Aloísio Lorsheider e Dom Ivo Lorsheiter forameleitos presidente e secretário-geral da CNBB, colocando uma ala francamente progressista na direçãoda maior entidade dos católicos do Brasil.Como resultado político maior da crise econômica, em 1974, ocorreu a vitória do MDB naseleições, tendo como resposta da Ditadura a chamada “Distensão”, já no governo do Ditador ErnestoGeisel. Porém, a distensão na acaba com a repressão. 18 de março, Davi Capistrano, dirigente do PCBfoi morto sob tortura. Em 26 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado nasdependências do II Exército, em São Paulo, desencadeando ampla mobilização social na missa desétimo dia, reunindo cerca de oito mil pessoas e resultando no rompimento da censura da imprensa.Somou-se a isto, 19 de agosto de 1975, o lançamento de bombas pela Aliança Anticomunista Brasileira(AAB) na OAB e ABI do Rio de Janeiro, e no Centro de Estudos Brasileiros (CEBRAP), em São Paulo.Não satisfeita, a Ditadura ainda eliminará o operário Manuel Fiel Filho, no mesmo local, em 17 de janeirodo ano seguinte, enquanto no Massacre da Lapa, ação coordenada pelo II Exército de São Paulo, sãofuzilados integrantes do Comitê Central do PCdoB, como Pedro Pomar e Ângelo Arroio, em 16 dedezembro, depois matando na prisão João Batista Drumond, bem como a posterior prisão e tortura de22Este documento será reforçado por outro, “Proclamação da União pela Liberdade e Pelos Direitos doPovo”, distribuído para a população camponesa da região.23Em 1996, Maria Lúcia será a primeira guerrilheirado Araguaia a ter seu corpo identificado. Jaime e LúcioPetir, seus irmãos, também foram mortos na Guerrilha.24Nessa ação e nos meses seguintes, são presos e posteriormente executados os seguintes guerrilheirosoriundos do Rio Grande do Sul: o estudante Cilon Cunha Brum, Simão ou Comprido, nascido em São Sepé; ooperário José Humberto Bronca, o Zeca Fogoió, nascido em Porto Alegre; Paulo Mendes Rodrigues o Paulo,nascido em Cruz Alta. João Carlos Haas Sobrinho, o Juca, nascido em São Leopoldo, comandante médico-militarhavia sido morto em combate, em 30 de setembro de 1972 e também se encontra como desaparecido político atéhoje. Sobre os gaúchos no Araguaia, ver: SOUZA, Deusa Maria de Caminhos cruzados: trajetória edesaparecimento de quatro guerrilheiros gaúchos no Araguaia. Dissertação de Mestrado. São Leopoldo: UNISINOS,2006. Da mesma autora, cf. Lágrimas e lutas: a reconstrução do mundo de familiares de desaparecidos políticos doAraguaia. Tese de Doutorado. Florianópolis: UFSC, 2011.25Três meses depois, no aniversário do Golpe de 1964, o ditador Geisel fará a primeira referência pública àGuerrilha do Araguaia.372


Elza Monnerat, Haroldo Lima, Aldo Arantes, Joaquim de Lima e Maria Trindade, a caseira da Lapa, 26 . ODitador Geisel ainda terá no currículo de seu governo o recesso do Congresso Nacional, em Primeiro deabril de 1977, somando-se com a edição do “pacote de abril”.Nada isso impedirá a continuidade da resistência à Ditadura, mesmo que por outras formas quenão a luta armada, haja vista a derrota histórica e final desta, já em 1975. Em 7 de julho de1975, aparece o semanário Movimento (O Pasquim já vinha fazendo sua crítica política à Ditadura desde1969 27 ), desde o início sofrendo forte censura, por defender as lutas democráticas, antiimperialistas epopulares, sobretudo por abordar temas como a Constituinte e a dívida externa. Em 9 de janeiro de1977, o 4º Congresso Brasileiro de Magistrados fará apelo pró-Estado de direito, enquanto que em 8 defevereiro do mesmo ano, a 15ª assembléia da CNBB divulgará texto crítico à Ditadura. Em 28 de abrilserá a vez da assembléia geral da ABI pedir anistia geral.A conjuntura destas mobilizações e os atos repressivos do ditador Ernesto Geisel estimularão aretomada dos movimentos sociais e o retorno dos mesmos às ruas. Em 19 de maio de 1977, no dianacional de luta estudantil pela Anistia, as punições cotidianas na UNB, deflagram uma greve estudantil.Pouco depois, 4 de junho, quando a repressão desencadeou-se sobre o 3º Encontro Nacional dosEstudantes, em Belo Horizonte, Minas Gerias, prendendo oitocentos, jornalistas da ABI assinaram porliberdade de informação, crítica e opinião.No mês seguinte, o 29º Congresso da Sociedade Brasileira da Proteção à Ciência (SBPC),também se manifestará contra a repressão aos estudantes, pois a Polícia Militar de Brasília haviaprendido duzentos estudantes na UnB. A repressão em Brasília estimulará a greve dos estudantes daUSP, no início de agosto, enquanto Goffredo da Silva Teles, professor de direito da mesma Universidade,lerá a “Carta aos Brasileiros”, clamando pelo estado de direito e defendendo a Constituinte. Em 20 desetembro, a Polícia Militar de São Paulo, comandada pelo coronel Erasmo Dais, bloqueou o campus daUSP para impedir o 3º Encontro Nacional dos Estudantes e, dois dias depois, invadiu a PUC-SP,prendendo oitocentos estudantes e queimando gravemente duas universitárias, levantando o protesto docardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Depois disso, não há mais como segurar boa parte dosestudantes brasileiros na resistência: ainda em 23 de agosto, acontecerá o Dia Nacional de Luta dosmesmos contra a Ditadura. Ainda em setembro, como resultado, a Convenção extraordinária do MDBdefenderá a Constituinte Ampla e a Anistia.Em 1978, que iniciou com 1º Congresso da Mulher Metalúrgica de São Bernardo, em 12 demarço, na Assembléia popular de sete mil pessoas, foi criada em São Paulo, o Movimento do Custo deVida, chamado depois de Movimento Contra a Carestia, um marco dos movimentos sociais urbanos epopulares na resistência à Ditadura 28 . O País verá o auge do movimento pela Anistia iniciado ainda em1975 29 , o que também estimulará os operários e o movimento sindical retornar as greves, pois o arrochosalarial imposto aos trabalhadores desde 1973, bem como um período de aumento rápido da inflação,acarretará em greves econômico-políticas. Em 12 de maio, explode a greve de mil e seiscentosoperários da Saab-Scania, em São Bernardo do Campo, por aumento de 20% nos salários. Quatro diasdepois a greve chega à Volkswagen do ABC Paulista, a maior fábrica do país, com 46 mil operários,fazendo o Tribunal Regional do Trabalho declará-las ilegais. O efeito será contrário: elas se alastrarãoaté a capital do estado. Depois de quase um mês de luta sindical, várias empresas do ABC darão a seusempregados aumentos de 5 a 15%.Em junho de 1978, no dia 7, em São Paulo foi fundado em São Paulo, o Movimento NegroUnificado (MNU), um marcos do Movimento Negro em resistência à Ditadura 30 . Quatro dias depois, asgreves que atingiam até então o sindicalismo privado, chegará nos Hospital das Clínicas de São Paulo,paralisando sete mil trabalhadores da área da saúde. Em agosto, os professores estaduais de São26Também ainda não estão esclarecidas estão as razões das mortes de dois dos líderes da Frente Ampla,todas ocorridas em momentos próximos, entre 1975 e 1976: Juscelino Kubitschek morreu em acidente de carro, navia Dutra, em circunstâncias misteriosas, em 22 de agosto do ano seguinte. Seu sepultamento terá uma silenciosamanifestação contra a Ditadura, com presença de cerca de trinta mil presentes; em 6 de dezembro do mesmo ano,morreu de ataque cardíaco, na Argentina, João Goulart, o único Ex-Presidente a morrer no exílio em nossa História.O enterro em São Borja, também terá trinta mil presentes. Ambos os casos são investigados sob a suspeita defazerem parte da Operação Condor.27Outro semanário importante foi Opinião, que, censurado pela Ditadura, deixou de circular em 23 de abril de1977.28Em 27 de agosto de 1978, o Movimento do Custo de Vida reunirádez mil pessoas na Praça da Sé, em SãoPaulo, após coletar 1,3 milhão de assinaturas. O protesto resultará em intensa repressão na capital.29Em 2 de novembro, ocorreu o Congresso pela Anistia, em São Paulo, resultando no Comitê Brasileiro pelaAnistia (CBA). Rapidamente, formam-se CBAs na maioria dos estados, organizados por bairros, escolas ecategorias profissionais, transformando a Luta pela Anistia em campanha nacional.30Como resultado, em 20 de novembro, o Movimento Negro elegerá a data da morte de Zumbi dos Palmares,como Dia Nacional da Consciência Negra. Para o Movimento, o 13 de Maio e a Princesa Isabel não serão maisdatas simbólicas de sua redenção.373


Paulo, iniciarão vinte e três dias de greve, a primeira após 1964, enquanto em setembro, no dia primeiro,será a vez dos bancários de São Paulo, com sua primeira greve geral desde o Golpe. A Ditadura tentaimpedir as greves através da Portaria nº 3.337, visando proibir as articulações intersindicais e a Lei Antigrevede três de outubro, mas no dia, quando o industrial Cássio Scatena, ex-integrante do Comando deCaça aos Comunistas (CCC), assassinou o operário Nélson de Jesus, na indústria Alfa, em São Paulo,por reclamar do salário, a fábrica iniciou outra greve, agora de protesto.A mudança da “distensão’ de Geisel para a “abertura” de Figueiredo, que tomará posse em 15 demarço de 1979, não resultará em doações democráticas do ditador. Pelo contrário: a pressão do CBA edas centenas de comitês pelo Brasil afora, além dos comitês de exilados, é que levará ao decreto daAnistia, em 28 de agosto. A pressão pela volta à democracia resultará no decreto que porá fim aobipartidarismo, ainda que a Ditadura impeça a legalidade dos partidos comunistas, como o PCdoB e oPCB. Muito menos a Ditadura de Figueiredo deixará de lado a repressão, sendo enigmática a frase doDitador: “Quem for contra a Abertura, eu prendo e arrebento!”. Em 27 de agosto de 1980, uma cartabombaexplodirá na sede da OAB, no Rio de Janeiro, matando a secretária Lydia Monteiro. Desde oinício daquele ano, diversas bombas explodiram no País, sobretudo atingindo bancas que vendiamjornais e revistas de oposição. Os grupos terroristas e paramilitares de direita, sem ação efetiva contraeles por parte da Ditadura, agiam aberta e/ou clandestinamente contra a redemocratização. Em 1981,em 30 de abril, integrantes do DOI-CODI do I Exército explodiram acidentalmente a bomba dentro doautomóvel, antes do planejado atentado para o show de música alusivo ao Primeiro de Maio, no RioCentro, no Rio de Janeiro. A “armação” da Ditadura para responsabilizar a esquerda logo se mostroucomo um grande farsa. Depois disso, a Ditadura tratou de buscar apenas a eleição de seus candidatos,como nas eleições para governadores, em 1982 31 , bem como impedir as Diretas para Presidente,respondendo aos movimentos políticos iniciados em 1983. Como resposta, a Emenda das “Diretas Já”foi derrotada no Congresso, um ano depois, em 25 de abril.A vitória das eleições indiretas, em 1984, entretanto, não impediu a derrota da Ditadura e otérmino dos vinte e um anos de terrorismo de Estado no Brasil. E isto é o mais significativo naqueleprocesso histórico de resistência, iniciado ainda nos primeiros dias de 1964. E coube papel decisivonesse processo ao protagonismo dos movimentos sociais e políticos de oposição que foram seconstruindo ao longo dos anos, os quais se ampliaram na fase final da Ditadura, especialmente a partirde 1979.Foi naquele ano, com a ampliação das greves, de diversos tipos e categorias, que uma boa partedos brasileiros reencontrou o caminho para a reivindicação de direitos e de ampliação das mobilizações.Com quase cem participantes, entre o Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Fortaleza, a greve de fome depresos políticos contra a Anistia limitada, iniciada em 22 de julho de 1979, durou 23 dias e resultou nacondenação da OAB ao projeto de anistia do ditador Figueiredo. Foi a senha para que, em 14 de agosto,vinte mil fossem às ruas no Rio pela anistia ampla, geral e irrestrita, mas ainda mobilização insuficientepara a Anistia ampla, geral e irrestrita. Ainda em agosto, Figueiredo sancionou a Anistia, parcial, limitadae recíproca, uma conquista importante, mas limitada, haja vista que colocou no mesmo pacote a isençãodos ditadores, torturadores e do Estado brasileiro em relação aos crimes praticados até então. Dequalquer forma, parte dos presos políticos conquistou a liberdade, enquanto os exilados voltaram para oPaís e a militância clandestina retornou à atuação política legal. Finalmente, João Amazonas, Luiz CarlosPrestes, Leonel Brizola, Miguel Arraes e tantos outros poderão continuar sua luta oposicionista emterritório nacional.A luta política pela anistia tinha correspondência nas lutas econômicas contra a Ditadura, pois ostrabalhadores foram os principais responsáveis para pagar a conta da política econômica, mais aindacom a crise decorrente, sobretudo a partir de 1973. Em 30 de julho de 1979, a greve de oitenta miloperários da construção civil de Belo Horizonte, resultou em um morto e cinquenta feridos. Uma semanadepois, os professores estaduais da Bahia também pararam o trabalho, sendo seguidos, depois de maissete dias pelos bancários de Belo Horizonte, MG e pela greve nos canaviais de Pernambuco, em 2 desetembro, a primeira da categoria em onze anos. No meio delas, ocorreu, em 31 de agosto, o 1ºCongresso da Mulher Metalúrgica de São Paulo.A ampliação dos movimentos grevistas vai se transformando rapidamente em greves políticascontra a Ditadura, pois era assim que a Ditadura tratava os diversos movimentos. E os trabalhadores nãopoderiam ficar restritos à compreensão de que faziam apenas greves econômicas: não havia mais comoderrotar a política econômica da Ditadura de Segurança Nacional no Brasil, sem derrotar a própriaDitadura. Em finais de outubro 1979, a greve dos metalúrgicos de Belo Horizonte, de Contagem e deBetim, em Minas Gerais será seguida pela parede dos metalúrgicos de São Paulo e Guarulhos,31Nas eleições de 15 de novembro de 1982, a oposição, em conjunto, conquista a maioria na Câmara dosdeputados, mesmo que não tenha conseguido eleger a maioria dos governadores, excetuando-se alguns estados deoposição, como o Rio de Janeiro, que elegerá 15/11 - A oposição, em conjunto, conquista maioria na Câmara dosdeputados Leonel Brizola.374


declarada ilegal pelo governo Figueiredo. A repressão não cedia e, em um piquete na metalúrgicaSylvania, em São Paulo, a Polícia Militar matou a tiros o líder operário católico Santo Dias da Silva,resultando em um protesto de mais de 10 mil no enterro. Ainda em setembro, a greve metalúrgica atingenove cidades do Rio de Janeiro. Cada vez mais mobilizada, os metalúrgicos de várias partes do Paíscontinuarão fazendo greves, como em outubro, na greve metalúrgica da Belgo-Mineira e na greve dedoze mil, na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, no Rio de Janeiro.No final de 1979, outra categoria que volta ativa às greves foi a dos bancários. Em 5 desetembro, os bancos de Porto Alegre são fechados pela greve que resulta na intervenção no Sindicato eem cinco prisões. Ali, nascia a liderança política de Olívio Dutra. A greve de Porto Alegre levou osbancários a pararem o trabalho no Rio de Janeiro e em São Paulo, também com novas intervenções nossindicatos, prática recorrente desde o Golpe de 1964. Mas a Ditadura não tinha mais como evitar asmanifestações cada vez mais massivas nas ruas do País: em 5 de dezembro, os quebra-quebras detrens no Rio de Janeiro e São Paulo, que seriam repetidos em 10 de abril de 1980, contra os trens naZona Leste de São Paulo, demonstravam as péssimas condições da mobilidade urbana nos grandescentros populacionais brasileiros.1979 também terá outra marca: em 29 de novembro, ocorreu a tomada simbólica da sede daUNE, no Rio de Janeiro. Um dia depois, os estudantes enfrentaram o ditador Figueiredo, emFlorianópolis. Tudo isto no contexto da primeira eleição direta na UNE, ocorrida dias antes, em 3 deoutubro. Dali em diante, a Ditadura não conseguirá mais tirar a maioria dos estudantes brasileiros dasruas, como no ano seguinte, em 21 de março, com o protesto contra a decisão da Ditadura em demolir asede histórica da UNE, no prédio incendiado pelos golpistas, ainda em 1964. A mobilização estudantilsomente se ampliará. No ano seguinte, em 13 de outubro, ocorrerá o 32º Congresso da UNE, emPiracicaba, em São Paulo. No encontro, será eleito como presidente Aldo Rebelo. Dois anos depois, em30 de setembro, após a gestão de Javier Alfaya, o 34º Congresso da UNE, realizado em Piracicaba, SãoPaulo, elegeu uma mulher, Clara Araújo, como presidente da entidade máxima dos estudantes do Brasil.A conjuntura dês greves não mudará no início da década. Em 16 de março de 1980, inicioua greve dos portuários de Santos, em São Paulo. Duas semanas depois, começou a grande greve detrezentos e trinta mil metalúrgicos no ABC paulista, além de outras quinze cidades de São Paulo. EmSão Bernardo, durante quarenta e um dias. O movimento grevista conseguirá o feito político de pautar apolítica brasileira. No décimo sétimo dia da greve, o Ministério do Trabalho interviu nos sindicatos, masnão conseguiu terminar com a greve. Nessa conjuntura, se tornava cada vez mais nacional a liderançapolítica de Luíz Inácio ”Lula” da Silva, operário que, ainda em 10 de fevereiro, junto com outrossindicalistas, intelectuais, líderes rurais e religiosos, havia criado, no colégio Sion, em São Paulo, o PT.Em 19 de abril, treze líderes grevistas do ABC, entre eles Lula, foram presos e enquadrados na LSN 32 .Como a greve não terminava, uma semana depois, novas prisões de líderes grevistas aconteceram noABC. A repressão gera o seu contrário, o aumento da resistência. Em Primeiro de Maio, em SãoBernardo, centro e vinte mil trabalhadores foram para a greve, no contexto de ocupação da Polícia Militardo centro da cidade. Após muita tensão e pressão, o governo foi derrotado e uma manifestaçãogigantesca ocorre, antecedendo a histórica concentração no estádio da Vila Euclides. Em 5 demaio, terminou, após trinta e cinco dias, a greve dos metalúrgicos em Santo André. Apenas seis diasdepois, depois de diversos choques entre piqueteiros e a Polícia Militar, os metalúrgicos de SãoBernardo voltaram ao trabalho, após a greve de um mês e onze dias, no movimento que desafiou aDitadura de Segurança Nacional. Alguns meses depois, 24 de novembro, por sua vez, foi a vez dos desete mil operários Greve pararem as obras da usina de Tubarão, no Espírito Santo.Em 1980, os trabalhadores rurais e os movimentos indígenas também ampliaram suasresistências, alguns deles sendo assassinados pela repressão. Em 29 de maio daquele ano,foi assassinado Raimundo Ferreira, o Gringo, líder dos posseiros de Conceição do Araguaia, no Sul doPará. A ação dos grileiros levou quatro mil pessoas a um ato de protesto no enterro 33 . Em 6 de junho de1980, foi morto José Ribeiro, líder dos indígenas Apuriña. Em 8 de novembro, posseiros da glebaMarabá, também no Pará, mataram nove jagunços que tentavam expulsá-los da terra. A ampliação daluta pela terra levou à celebração, no Recife, da Missa dos Quilombos, com versos de Dom PedroCasaldáliga e a música de Milton Nascimento, em 22 de novembro. Seis dias depois, Mário Juruna,cacique Xavante, viajou à Holanda para presidir o juri do Tribunal Bertrand Russel, abordando o32Em 25 de fevereiro de 1981, a Justiça Militar condenou Lula e mais dez sindicalistas do ABC. Mais tarde, aspenas serão revogadas. Em 7 de agosto, após quinze meses, terminou a intervenção no Sindicato, quando JairMenegueli foi eleito presidente.33No ano seguinte, em 13 agosto, ocorrerá o choque de posseiros de São Geraldo do Araguaia, no Pará, comagentes da Polícia Federal. Já em 1982, em 16 de abril, posseiros ocuparam a fazenda Santa Cruz, em Conceiçãodo Araguaia, resultando em um morto e vinte e quatro feridos. Em 3 de novembro, em outro choque, dessa vez entreposseiros e pistoleiros, novamente em Conceição do Araguaia, quatro trabalhadores rurais foram mortos e mais dezficaram feridos, transformando a região em uma das principais áreas de conflitos agrários do País. A região doAraguaia retomava as lutas pela terra, uma das heranças políticas deixadas pela Guerrilha, uma década antes.375


genocídio indígena 34 . Uma semana antes do natal de 1980, flagelados saquearam a Feira de PedraBranca, no Ceará. A fome também se tornava, cada vez mais, motivo pra protestos contra a Ditadura,como quase dois anos depois, em 20 de agosto, quando dois mil flagelados saquearam SenadorPompeu, também no Ceará. No mesmo ano, em 20 de dezembro, será a vez de quatro mil flagelados daseca saquearem comida em Campo Alegre, na Bahia. No ano seguinte, em 4 de abril, no Largo 13 deMaio, na periferia de São Paulo, uma passeata de desempregados terminou em saque desupermercado. Foi o início de uma onda de centenas de ações similares que se estenderá até o Rio deJaneiro, como em 11 de abril, quando dezenas de desempregados saquearam caminhão de comida, noCentro do Rio. Em 1983, em 12 de agosto, foi a vez de cem famílias flageladas da seca invadirem oPalácio da Luz, sede do governo cearense. Dois dias depois, mil flagelados da seca saquearam comidade posto da COBAL, em Canindé, também no Ceará, seguida por outros saques em Quixeramobim, nomesmo estado e em Mossoró, no Rio Grande do Norte. No estado potiaguar, em 20 de setembro, duasmil mulheres 35 , impedidas de se alistar nas frentes de trabalho, levaram dez toneladas de alimentos, emSão Miguel. Uma semana depois, flagelados da seca saquearam armazém em Jardim das Piranhas, nomesmo estado, prenúncio da grande greve de 45 mil canavieiros, iniciada 4 de outubro. Depois disso, jáem 1984, em 11 de fevereiro, flagelados atacaram a Feira de Ibimirim, em Pernambuco, em 14 defevereiro, dois mil flagelados atacaram armazém em Senador Pompeu, no Ceará, enquanto em Icó, nomesmo estado, ocorreu enfrentamento com a Polícia Militar. Poucos dias depois, ainda em fevereiro, emPernambuco, uma passeata de cinco mil flagelados, em Afogados da Ingazeira, mobilizou trabalhadorese pequenos agricultores por recebimento de salários nas frentes de trabalho e, em Águas Claras,duzentos flagelados da seca levam vinte toneladas de comida, enquanto que, em 8 de março, três milflagelados saquearam o comércio de Arapiraca, em AlagoasNessa conjuntura de final da Ditadura, o movimento grevista não cederá, Ainda, em 28 de abrilde 1981, ocorreu a greve de sessenta mil médicos, no Dia Nacional de Protesto da categoria. Doismeses depois, a greve dos médicos do Rio de Janeiro resultará na intervenção no Sindicato, com prisãode seu presidente. As mobilizações sociais serão de todas as ordens. Antes dos médicos, os conflitosurbanos já haviam marcado o novo ano, como no novo quebra-quebra dos trens suburbanos da Zonaleste de São Paulo, em 6 de fevereiro. Em 9 de abril, os quebra-quebras se repetirão em São Paulo. Em20 de agosto, foi a vez de quebra-quebras de setecentos e cinquenta ônibus, em Salvador, após atocontra alta da tarifa 36 . Ainda em fevereiro de 1981, em Campinas, São Paulo, no Congresso deprofessores do ensino superior, foi criada a Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior(ANDES), depois da mobilização nacional da categoria 37 .O operariado brasileiro também continuará mobilizado, sobretudo na conjuntura de ampliação dacrise econômica. Em 4 de maio de 1981, a greve na Fiat do Rio barrou centenas de demissõesanunciadas. Em 6 de julho será a vez da greve de nove mil trabalhadores contra quatrocentasdemissões na fábrica na Ford do ABC paulista. Como resultado da greve, a categoria conquistou acomissão de fábrica. Em 10 de agosto, a Mercedes Benz demitiu cinco mil e duzentos trabalhadores emum dia. Indignados, os operários arrombaram o portão da fábrica. Em 4 de março de 1982, a greve decinco mil trabalhadores contra demissões no estaleiro Mauá, em Niterói, no Rio de Janeiro, marcou oinício do novo ano. No dia 10, inicia a Greve na COFERRAZ, fábrica de Santo André, em São Paulo,que fechou sem pagar os operários. O movimento resultará na ocupação da fábrica pelos trabalhadores,em 6 de abril. Ainda em abril, alguns dias depois, iniciou a greve em seis estaleiros navais de Niterói.Em 7 de junho, milhares de garimpeiros de Serra pelada, no Pará, rebelaram-se contra a interrupção dalavra manual de ouro, invadindo o garimpo, bloqueando estradas e tomando armas após invadiremdelegacias. Cinco dias depois, reconquistaram o direito à lavra.A ampliação da reorganização da classe trabalhadora resultará, em 21 de agosto de 1982, emPraia Grande, São Paulo, com cinco mil delegados de 1.126 entidades, na realização da ConferênciaNacional das Classes Trabalhadoras (CONCLAT), a qual elegeu a Comissão Pró- CUT. Um ano depois,também em agosto, no dia 26, ocorrerá o início do Congresso de fundação da Central Única dosTrabalhadores (CUT), em São Bernardo, o qual deliberará, no dia 31, na fundação da Central de34Em 7 de junho de 1982, ocorrerá a Primeira Assembléia Nacional das Nações Indígenas, em Brasília, coma participação de duzentos delegados. Outra mobilização indígena importante se dará em 27 de março de 1984,quando os Txukahamãe, liderados pelo cacique Raoni, bloquearam a BR-80 e fizeram m doze reféns, exigindo seuterritório ao norte do Parque do Xingu, no Mato Grosso. Em 2 de maio, este levante dos Txukahamãe derrubará opresidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI).35A luta das mulheres brasileiras no final da Ditadura, resultou, em 25 de novembro de 1983, no PrimeiroEncontro Nacional da Mulher, em Belo Horizonte. Minas Gerais.36Depois disso, em 28 de outubro de 1983, outro quebra-quebra destruirá vários trens em São Paulo, bemcomo outro ocorrerá em 30 de janeiro de 1984.37Em 18 de novembro de 1982, iniciou a greve nacional de um mês de professores e funcionários dasuniversidades federais, um marco da reorganização dos docentes e técnico-administrativos das Instituições Federaisde Ensino Superior (IFES) contra a Ditadura.376


trabalhadores mais ativa e de oposição nos anos finais da Ditadura.Ainda em 1982, a luta pela moradia, que continuou durante toda a Ditadura, entrará em novopatamar para a organização dos movimentos sociais urbanos e populares. Em 17 de janeiro, em S.Paulo, ocorrerá o Congresso de fundação da Confederação Nacional das Associações de Moradores(CONAM). 16 de julho, sem-tetos ocuparam quase seis casas no Centreville, em Santo André, em SãoPaulo, demonstrando o vigor da luta pela moradia no Brasil. Em paralelo, a luta pela terra não davatréguas à Ditadura. Em 12 de março, os sem-terra de Encruzilhada Natalino, no Rio Grande do Sul,deixaram seu acampamento no rumo da conquista de um assentamento. Dali em diante, a repressãonão conseguirá mais impedir a mobilização dos sem-terra para sua organização política. Tanto que, emde 21 a 24 de janeiro de 1984, no Encontro Nacional de Cascavel, no Paraná, foi fundado o Movimentodos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), acúmulo maior da luta pela reforma agrária contra aDitadura 38 . Neste mesmo ano, em 13 de maio, ainda ocorrerá a greve de quatro mil canavieiros, naregião de Rio Verde, sul de Goiás e, dois dias depois, na greve de dez mil bóias-frias, em Guariba, SãoPaulo, iniciando três meses de lutas nas áreas de plantação de cana e de laranja entre a região paulistae mineira, resultando em violentos choques com a repressão e diversos incêndios de canaviais. Em 18de maio, a onda grevista chegou aos doze mil bóias-frias de Sertãozinho, também em são Paulo, a maiorregião produtora de açúcar do País. Muitos outros movimentos se seguiriam na luta de resistência doscamponeses brasileiros: em 30 de julho, os canavieiros de Campos, no Rio de Janeiro entraram emgreve; em 10 de agosto mais uma vez os canavieiros de Sertãozinho paralisaram; em 16 de setembro,ocorrerá a primeira greve geral dos canavieiros de Pernambuco após 1964, reunindo duzentos equarenta mil trabalhadores, seguidos por trinta mil do Rio Grande do Norte e centro e vinte mil daParaíba, no mesmo mês e em outubro 39 . O renascimento sindical dos trabalhadores do campo, atravésda Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) estava consolidado. A mobilizaçãocamponesa e dos sem-terras, por sua vez, terá marco simbólico com o “Grito do Campo”, realizado noRio Grande do Sul em 2 de outubro, e que reunirá quarenta mil pessoas contra a política agrícola daDitadura.Nas cidades, as lutas e as resistências dos trabalhadores urbanos também não arrefeceram nosanos finais da Ditadura. Ainda, em 1983, já no terceiro dia do ano, iniciou a greve dos quarenta e oito milservidores federais do Rio Grande do Sul. Em 27 de abril será a vez da greve dos metalúrgicos daGrande Porto Alegre, sobretudo parando as fábricas de Canoas, cidade operária importante da regiãometropolitana. Em 31 de maio, a greve na saúde pública de São Paulo paralisará totalmente a área emvinte e nove cidades e parcialmente em mais cinquenta. Em 17 de junho, o protesto de funcionários deestatais no Rio, reunindo seis mil trabalhadores, se ampliará para o Rio Grande do Sul, para o Pará, paraSão Paulo e para o Distrito Federal. Todo esse acúmulo de mobilizações e greves de trabalhadoresresultará, em 21 de julho, na primeira greve geral nacional após o Golpe de 1964, obtendo êxito parcial econtando com forte repressão da Ditadura, tendo como exemplos as intervenções nos sindicatos dosMetroviários e Bancários de São Paulo. No final do ano, em 6 de novembro, será a vez da greve de vintemil mil sapateiros de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, bem como, dois dias depois, de nova grevedos metalúrgicos do ABC paulista, paralisando sessenta mil operários da categoria 40 . No ano seguinte,outras greves mobilização o movimento sindical brasileiro, como: em 15 de maio, com a greve de trinta esete mil professores das universidades, com duração de oitenta e quatro dias; em 4 de junho, ocorreua greve de trinta mil professores de Pernambuco; em 18 de junho, a greve dos trabalhadores naPrevidência Social paralisou o atendimento em Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Goiás e RioGrande do Sul; em 19 de junho, se realizou a segunda greve história da CSN contra a Ditadura,ocorrendo a ocupação simbólica da usina; em 29 de julho, iniciou a greve de sete mil na SiderúrgicaACESITA, em Timóteo, Minas Gerais; em 9 de agosto, sete mil grevistas ocuparam a EMBRAER, emSão José dos Campos; em 22 de agosto, começou a greve dos motoristas e cobradores de ônibus queparou Porto Alegre, no Rio Grande do Sul; dois dias depois, a greve de petroquímicos paralisouCamaçari, na Bahia; em 17 de setembro, onze mil metalúrgicos da COSIPA ocuparam a usina, emCubatão, São Paulo; em 7 de dezembro, a Greve Geral nacional de vinte e quatro horas parou o Bancodo Brasil em todo o País. Por fim, já nos estertores da Ditadura, em 1º de fevereiro de 1985, se realizoua greve de vinte e dois mil nas indústrias de calçados de Franca, em São Paulo, com intervenção nosindicato, resultando em oitenta feridos pela ação repressiva da Polícia Militar, enquanto que, quatro diasdepois, vinte e oito mil vigilantes de São Paulo paralisaram seus trabalhos.A luta operária e do movimento sindical, dos movimentos sociais e populares, não poderia deixarde resultar em nova retomada de luta política contra a Ditadura. Em 27 de novembro de 1983, ocorreu38De 29 a 31 de janeiro de1985, o MST realizou seu 1º Congresso Nacional, em Curitiba, Paraná39Os canavieiros de Ribeirão Preto, ainda farão greve de vinte e oito mil na região, em mobilização iniciadaem 4 de janeiro de 1985, a última da Ditadura.40Em 2 de abril de 1984, dez mil metalúrgicos de São José dos Campos, em São Paulo também entraramem greve, na principal paralisação do último ano da Ditadura.377


o primeiro comício pró-diretas, reunindo 10 mil pessoas no Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Em 12de janeiro do ano seguinte, em um comício que reuniu sessenta mil em Curitiba, oficialmente iniciou aCampanha das “Diretas-Já” e o uso do amarelo como sua cor-símbolo. A resposta da Ditadura foi olançamento da candidatura a presidente de Paulo Maluf. A resposta da oposição foi o comício que reuniutrezentas mil pessoas, na Praça da Sé, em São Paulo, em 25 de janeiro 41 . São Paulo dará exemplo parao resto dom Brasil. Outro comício pró-Diretas, reuniu duzentas e cinquenta mil pessoas em BeloHorizonte, em 2 de fevereiro; em 21 de março, uma passeata de trezentos mil se realizará no Rio deJaneiro; uma prévia para o 10 de abril, quando o comício de um milhão e duzentas mil pessoas pelasdefenderão as Diretas-Já, na Candelária; em 12 de abril, aconteceu o comício pró-Diretas, em Goiânia,reunindo duzentas e cinquenta mil pessoas; mas, o maior deles ainda viriam no mesmo mês: no dia 16,um milhão e milhão setecentas mil pessoas se reuniram no Anhangabaú, em São Paulo. Era o auge doMovimento pelas Diretas-Já. Tanto que, dois dias depois, o ditador Figueiredo decretou estado deemergência no Distrito Federal. A maior mobilização de rua desde o início da Ditadura, e que reuniumilhões de brasileiros (como no panelaço ocorrido em várias cidades na véspera da votação da emendadas Diretas, em 24 de abril), entretanto, não resultou em vitória da emenda das Diretas, que não passouna Câmara dos Deputados, pois, com 298 votos a favor, 65 contra e 112 ausências, obteve 22 votos amenos que os dois terços exigidos. Dialeticamente, a Ditadura saía vencedora, pois impedia as eleiçõesdiretas para presidente, mas saía derrotada politicamente do episódio 42 .ConclusãoA Ditadura terminará em 15 de março de 1985, não sem antes ocorrer uma vitória parcial dasclasses dominantes. A derrota das “Diretas Já’, o maior movimento de massas desde o Golpe de 1964no Brasil, foi um prenúncio que levou, em 15 de janeiro de 1985, a eleição indireta para a Presidência deTancredo Neves e José Sarney (ex-líder do PDS, embrionário da ARENA, no Congresso e articulador doGolpe que depôs Jango) no Colégio Eleitoral, vencendo o candidato da Ditadura, Paulo Maluf.A partir de então, os partidos comunistas, a UNE e as centrais sindicais conquistariam alegalidade. Ao menos institucional e politicamente a Ditadura estava derrota.Apesar disso tudo e da resistência intensa, através da ação e mobilização dos movimentossociais e populares de oposição à Ditadura, tal qual o protagonismo dos escravos cem anos antes, acorrelação de forças impediu que tais movimentos se transformassem em pode político para chegar aoExecutivo do País, em 1985. A “Nova República”, com Sarney a frente, neste aspecto, como diziaFlorestan Fernandes na época, foi uma “transição pelo alto”. Assim, como fora a República de 1889, comFloriano Peixoto a frente. Marcas das nossas “metamorfoses” políticas ao longo da História da formaçãosócio-econômica brasileira 43 .41Este comício ganhou notoriedade internacional, haja vista que aTV Globo ignorou o que se passava,situação que logo mudará.42Ainda em 27 de junho, um comício no Rio de Janeiro tentou relançar a luta pelas Diretas já, mas a Ditaduraseria derrotada de forma indireta, com a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985,por quatrocentos e oitenta votos, contra cento e oitenta votos para Paulo Maluf e dezessete abstenções.43A ideia de ‘metamorfoses” nas transformações históricas, na dialética de continuidades e rupturas, a partirdo sociólogo francês Robert Castel, foi defendida pelo autor sobre 1930, em sua tese de doutorado. Cf. O fantasmado medo: o Rio Grande do Sul, a repressão policial e os movimentos sócio-políticos (1930-1937). Campinas: IFCH-Unicamp, 2004.378


Mulheres vítimas da Ditadura Militar: luta e afirmação de gênero e os Direitos HumanosGiselda Siqueira da Silva Schneider 1Resumo: O presente artigo visa analisar a história das mulheres durante a Ditadura Militar no Brasil,através da consideração de como tais foram vítimas: mulheres desaparecidas e mulheres mães nabusca pelos seus filhos, e se seria possível uma comparação com as Mães da Praça de Maio naArgentina. Verificar o que oficialmente construiu-se acerca dessa história, como tais mulheresmanifestaram-se diante dessa situação. O que pretende-se é verificar como a história dessas mulheresfoi retratada, e quais avanços houve em relação a consolidação dos direitos humanos.Palavras-chave: Gênero – História das Mulheres – Ditadura Militar – Direitos Humanos.Abstract: This article aims to analyze the history of women during the military dictatorship in Brazil,through the consideration of how these victims were: women missing women and mothers in the searchfor their children, and whether it would be possible to compare with the Mothers of the Plaza de Mayo inArgentina. Check what officially was constructed about this story, such as women expressed themselvesin this situation. What is intended is to see how the story was portrayed these women, and whatadvances there have regarding the consolidation of human rights.Keywords: Gender - Women's History - Military Dictatorship - Human Rights.O intento de trabalhar com a história das mulheres “pressupõe o domínio de categoriasanalíticas para o entendimento das relações de gênero, perpassadas por relações de poder.” 2 E aoanalisar essa história das mulheres, sua participação nos grupos de oposição às ditaduras militares,essas categorias multiplicam-se em importância.Certamente as representações acerca da mulher atravessaram os tempos e estabeleceram opensamento simbólico da diferença entre os sexos, hierarquizando a diferença, transformando-a emdesigualdade. “Determinou-se aos homens o espaço público, político, onde se centraliza o poder”, deoutra forma, “à mulher o privado e seu coração, o santuário do lar”. 3 Tais limites em relação àfeminilidade, sem dúvida, foram determinados pelos homens.Essa distinção entre o público e o privado vem a estabelecer a separação do poder. Estesilêncio sobre a história das mulheres advém de sua não participação na arena pública, espaço dapolítica por excelência. E por isso que a história da repressão durante o período da ditadura militar é umahistória de homens, tendo a mulher militante política sido excluída do jogo de poder, pois não foiencarada como sujeito histórico.Exatamente diante disso que pretende-se pautar a discussão acerca da história das mulheresvítimas da ditadura militar, as desaparecidas e às que viveram em busca de seus filhos desaparecidos. Efinalmente, verificar como os direitos humanos veio a pautar tal situação.1. A Ditadura Militar no Brasil: contexto históricoA Ditadura Militar foi o período da política brasileira em que os militares governaram o país, entre1964 a 1985. Essa condução política teve como características: a falta de democracia, a supressão dedireitos constitucionais, a censura, a perseguição política e a repressão àqueles que se colocavam numaposição contrária ao regime militar.Esse período ditatorial inicia-se com a tomada o poder pelos militares que depuseram o entãopresidente João Goulart. Em 9 de abril foi decretado o Ato Institucional Número 1 (AI-1), que cassamandatos políticos de opositores ao regime militar e tira a estabilidade de funcionários públicos.Estiveram ainda no poder nesse período, Castelo Branco (1964 a 1967), Costa e Silva (1967 a 1969),Médici (1969 a 1974), Geisel (1974 a 1979) e Figueiredo (1979 a 1985).No poder os militares tomaram medidas autoritárias, ou seja, limitaram as várias formas deliberdade dos brasileiros e reprimiram as manifestações e lutas a favor da democracia. Iniciando então a123Mestranda do PPGH/UPF, sob a linha de pesquisa Política e Cultura, bolsista Capes. Especialista em Direito doTrabalho e Previdenciário pela Uniritter. Bacharel em Direito pela PUCRS.COLLING, Ana Maria. As mulheres e a ditadura militar no Brasil. História em Revista, Pelotas, v. 10, p. 1-10, dez,2004, p. 1.Ibidem.379


perseguição a qualquer pessoa que se opusesse as determinações do regime, por meio de diferentesmecanismos: prisões, exílios, torturas e morte. 4Pode-se afirmar que como regra geral, as ditaduras buscaram estreitar, no plano econômico, aassociação com seus aliados do capital externo, sob tutela militar nacional, e incorporaram plenamente aestratégia norte-americana de contenção do comunismo, sintetizada na Doutrina de Segurança Nacional.Essa doutrina, idealizada no Brasil especialmente pelo general Golbery do Couto e Silva, principalteórico do regime, assentava-se na tese de que o inimigo da pátria não era mais externo, e sim interno.Para enfrentar esse novo desafio, era urgente estruturar um novo aparato repressivo por meio daintegração completa dos organismos de segurança 5 .Por isso foi montada em São Paulo em 1969, a Operação Bandeirante (Oban), composta porefetivos do Exército, Marinha, Aeronáutica, Delegacias Estaduais de Ordem Política e Social (Dops),Departamento de Polícia Federal, Força Pública, Guarda Civil e até por civis paramilitares.Tal experiência foi aprovada pelo regime, que resolveu estender seu formato a todo o país, nascendoentão o Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna, o temívelDOI-Codi. Este, com dotações orçamentárias próprias e chefiado por um alto oficial do Exército, o órgãoassumiu o primeiro posto na repressão política no país.Porém, os Dops e as delegacias regionais da Polícia Federal, bem como o Centro deInformações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) e o Centro de Informações da Marinha (Cenimar)mantiveram ações repressivas independentes, prendendo, torturando e eliminando opositores.Com base nessa Doutrina de Segurança Nacional, a ditadura militar brasileira decretou sucessivas Leisde Segurança Nacional sob a forma de Decretos-Leis (DL, uma em 1967 (DL 314) e duas em 1969 (DL510 e DL 898), de conteúdo draconiano, que funcionaram como pretenso marco legal para dar coberturajurídica à escalada repressiva. De maneira geral dessas três versões da Lei de Segurança Nacionalindicava que o país não podia tolerar antagonismos internos e identificava a vontade da nação e doEstado com a vontade do regime. 6A ditadura militar no Brasil atravessou pelo menos três fases distintas:A primeira estendeu-se do golpe de Estado, em abril de 1964, à consolidação do novoregime. A segunda começou em dezembro de 1968, com a decretação do AtoInstitucional no 5 (AI-5), e desdobrou-se nos chamados anos de chumbo, quando arepressão atingiu seu mais alto grau. A terceira e última fase abriu-se com a posse dogeneral Ernesto Geisel, em 1974, que iniciou uma lenta abertura política, mantidadurante o governo Figueiredo até o fim do período de exceção, em 1985. 7No entanto, ao longo dos 21 anos de regime, em nenhum momento a sociedade brasileiradeixou de manifestar seu sentimento de oposição. Houve resistência, como a luta das organizações deesquerda que foi marcada pela clandestinidade e perseguição, ademais houveram várias organizaçõesque aos poucos foram sendo desarticuladas pela ditadura. Vejamos como foi isso em relação àsmulheres.2. A ditadura militar e as Mulheres“Falar sobre mulheres significa falar das relações de poder entre homens e mulheres” 8 . E paraidentificá-las como sujeitos políticos é necessário analisar as intrincadas ralações de gênero, de classe,de raça e de geração, além de falar do desmerecimento feminino, pois se, historicamente, o feminino éentendido como subalterno e deixado de fora da história, pois que sua presença não fora registrada.Numa perspectiva lógica, libertar a história é então, falar de homens e mulheres numa relação igualitária.Importa considerarmos gênero na perspectiva de Joan Scott,Por gênero me refiro ao discurso da diferença dos sexos. Ele não se relacionasimplesmente ás idéias, mas também às instituições, às estruturas, as práticascotidianas, como os rituais, e tudo o que constitui as relações sociais. O discurso é oinstrumento de entrada na ordem do mundo, mesmo não sendo anterior à organizaçãosocial, é dela inseparável. Segue-se, então, que o gênero é a organização social dadiferença sexual. Ele não reflete a realidade biológica primeira, mas ele constrói osentido desta realidade. A diferença sexual não é causa originária da qual a organização45678WASSERMAN, Claudia e GUAZZELLI, César Augusto Barcelos (Org.). Ditaduras Militares na América Latina.Porto Alegre: Ed. Ufrgs, 2004, p. 34.MERLINO, Tatiana; OJEDA, Igor (Org.). Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino. São Paulo:Caros, 2010, p. 20.Ibidem.Ibidem.FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 23. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007, p. 137.380


social poderia derivar: ele é antes, uma estrutura social móvel que deve ser analisadanos seus diferentes contextos históricos. 9Dessa forma, falar de mulheres não é somente relatar os fatos em que elas estiveram presentes,mas reconhecer o processo histórico de exclusão de sujeitos. Conforme Michel Foucault, “é fazer umaarqueologia do feminino; desconstruir a história da história feminina para reconstruí-la em bases maisreais e igualitárias, analisar as práticas discursivas e não discursivas que representam o feminino”. 10Nessa análise assevera Ana Maria Colling,2.1 Mulheres desaparecidasA história da repressão durante a ditadura militar e assim como a oposição a ela é umahistória masculina, assim como toda a história política, basta que olhemos a literaturaexistente sobre o período. As relações de gênero estão aí excluídas, apesar desabermos que tantas mulheres, juntamente com os homens, lutaram pelaredemocratização do país.Ousar adentrar o espaço público, político, masculino, porexcelência foi o que fizeram estas mulheres ao se engajarem nas diversas organizaçõesclandestinas existentes no país durante a ditadura militar. 11O golpe militar de 1° de abril de 1964, institucionalizou a detenção, a prisão e o sequestro, obanimento, a tortura, o assassinato e o desaparecimento, deixando um legado sinistro: entre mortos edesaparecidos políticos, uma legião incontável de militantes (homens, mulheres), presos e torturados ehistórias de vida truncadas.A política de repressão é praticada quando o poder político, aliado ao poder policial emilitar, outorga-se o direito sobre o corpo, a mente, a vida e a morte dos cidadãos.Exercer continuadamente atos que sustentam essa política é um gesto que, aos poucos,torna-se sobre-humanamente desumano, e apaga, devagar, a repugnância inata aocrime. 12Embora pouco evidenciado salientado, ao longo da história do Brasil, a luta de resistência dasmulheres foi recorrente. E dessa maneira também durante a ditadura civil-militar, implantada com o golpede 1964, as mulheres também foram protagonistas, como militantes da resistência e como organizadorasda sociedade civil para o retorno do país à democracia.A obra Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino, com a finalidade dehomenagear mulheres brasileiras que resistiram à tirania do poder e o enfrentaram, resgata a memóriade mulheres vítimas da ditadura militar brasileira. 13A publicação conta com o registro da vida e morte de 45 mulheres brasileiras que lutaram contraa ditadura, este livro inclui o testemunho de 27 sobreviventes que narram com impressionante coragemas brutalidades das quais foram alvo, incluindo quase sempre torturas no âmbito sexual, alguns casos departos na prisão e até episódios de aborto.A Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR)responsável por tal publicação, expressa que abrir os arquivos da ditadura que assolou o nosso paísentre 1964 e 1985, e dando voz às suas vítimas e construindo um relato alternativo ao "oficial" sobre operíodo, concretiza uma atitude de justiça histórica.Fazer esse exercício de forma a garantir espaço às vozes femininas que lá estiveram énão apenas se comprometer com a construção de uma narrativa histórica maiscompleta e complexa possível, mas principalmente reconhecer o fundamental papelfeminino nas lutas de resistência à ditadura. 14Infelizmente o corpo feminino, sempre objeto de curiosidade, tornou-se presa do desejo malignodo torturador e ficou à deriva em suas mãos. Com a autorização de seus superiores e mandantes atorturar, o servidor torturador incorporou ingredientes próprios e piores ao ato que, por delegação, lhe foisolicitado e previamente permitido, diante da desculpa do cumprir ordens.A mulher foi destituida de seu lugar feminino, de mulher, de mãe, não encontrando nos porõesda ditadura qualquer trégua. O lugar de cuidadora e de mãe foi vulnerado com a ameaça permanente91011121314SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação & Realidade. Porto Alegre: UFRGS,1990, p. 15.FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1979.COLLING, Op. Cit., p. 6.Idem, p. 28-29MERLINO;OJEDA, Op. Cit., 2010.MERLINO; OJEDA, Op. Cit., 2010.381


aos filhos também presos ou sob o risco de serem encontrados onde estivessem escondidos. Nãobastasse, o aviltamento da mulher que acalentava sonhos futuros de maternidade foi usado pelostorturadores com implacável vingança, questionando-lhe a fertilidade após sevícias e estupros. Semdúvida, a devastação da tortura não tem parâmetros materiais. E tais testemunhos tem o propósitopermitir que se saiba o que ocorreu em nosso país, para que não volte a ocorrer.2.2 Mulheres Mães de filhos desaparecidosE nesse contexto de resistências surge um importante movimento, denominado Guerrilha doAraguaia entre os anos 1972 a 1975, na região do Araguaia, no Bico-do-Papagaio, que situava-se entreos estados do Tocantins, Pará e Maranhão. A orientação e direção do movimento ficou por conta do PCdo B, o Partido Comunista do Brasil.Importa que desse episódio, houveram muitos desaparecidos políticos brasileiros, entre elesJosé Huberto Bronca, militante guerrilheiro gaúcho, filho de Ermelinda Mazzeferro Bronca. Essa mulher emãe lutou até seus últimos dias de vida a procura do corpo de seu filho desaparecido.O jornal Zero Hora do dia 14 de dezembro de 2003, na seção de Anúncios Fúnebres eReligiosos um obituário em especial chamava atenção, relatava a vida de uma mulher falecida no dia 10de dezembro de 2003 aos 97 anos: Ermelinda Mazzaferro Bronca. O obituário de quase meia páginadescrevia uma mãe que dedicou mais de vinte anos de sua vida na busca do corpo do filho morto naGuerrilha do Araguaia, episódio sangrento da Ditadura Militar do Brasil.[...] Ermelinda Mazzaferro Bronca, uma mãe que se tornou símbolo da busca pordesaparecidos do regime militar, morreu no dia 10, aos 97 anos, 20 dos quais dedicadosa encontrar o corpo do seu filho [...] Ermelinda lutava pelo direito de sepultar seu filhodesde 1979 [...]. 15Ao fim do obituário a frase: “morreu sem realizar seu grande sonho”, ou seja, o sonho de daruma sepultura digna a seu filho José Huberto Bronca, o “Zé”, que foi militante guerrilheiro no Araguaia,tendo sua provável morte ocorrido em 1974. Ermelinda viu seu filho pela última vez em abril de 1966,depois disso em 1970 por ocasião da morte de seu marido Huberto Átteo Bronca, Ermelinda recebe umacarta do filho lamentando a morte do pai, depois disso nunca mais Ermelinda obteve contato com o filho.Dona Ermelinda só vai obter novas notícias do filho em 1979 pela Revista História Imediata 16 , por ondetoma conhecimento de que José Huberto Bronca esteve presente na Guerrilha do Araguaia.Ermelinda foi uma mulher que rompe paradigmas e adentra no espaço público por meio da luta euso da palavra. A palavra pública, como fator de poder, que até aquele momento não fazia parte de seucotidiano começa a ganhar forma através de depoimentos prestados a entidades e organismosinternacionais em Defesa aos Direitos Humanos; em discussões realizadas nas viagens feitas a SãoPaulo e Rio de Janeiro juntamente com as outras mães e familiares de desaparecidos; e ao postularrepresentada pelo advogado Luis Eduardo Greenhalgh, processo judicial contra o estado pelaresponsabilização dos desaparecimentos de seu filho na Guerrilha do Araguaia.Sua luta pode ser resumida: a pedidos de ajuda a políticos e entidades para que intercedessema seu favor na busca pelo seu filho; tentativas judicialmente documentadas; correspondências enviadase recebidas de Guerrilheiros que sobreviveram a Guerrilha do Araguaia; e as correspondências trocadasentre as mães do Araguaia.Através da documentação deixada por Ermelinda e em cartas com outras mães pode-seperceber que essas mulheres travaram uma longa e árdua luta na busca por qualquer que fosse oresquício de informações deixado por seus filhos, e na certeza da morte, exigiam os respectivos corpos,todas sem exceção suplicavam pelo corpo, pelo direito de enterrar os filhos.Em todas cartas, jornais, petições a justiça, cartões, declarações o pedido é o mesmo,“queremos dar uma sepultura digna a nossos filhos”. A preocupação com a questão do corpo perpassaqualquer discussão a respeito dos mortos e desaparecidos políticos na ditadura militar. O quecontemporaneamente vem sendo discutido e analisado, além de temas como indenizações, abertura dearquivos, punição ou revanchismo todos interligados à questão do corpo.As ações empreendidas por tais mães começam a ter forma através de depoimentos prestados adiversas entidades e organismos internacionais em Defesa aos Direitos Humanos, ou ainda emdiscussões realizadas entre os familiares dos desaparecidos com mães de todo o território brasileiro.Como resultado disso tudo fora um processo judicial contra o estado pela responsabilização dos filhosdesaparecidos na Guerrilha do Araguaia.As cartas solicitando ajuda aos políticos, entidades ou pessoas com alguma influência se tornouum hábito. E entre as mãe isso estabeleceu um circuito de informações a respeito do Araguaia e da1516Trecho extraído da Zero-Hora de 14 de dezembro de 2003, da Seção Anúncios Fúnebres e Religiosos.DÓRIA, Palmério, et ali. História Imediata. A Guerrilha do Araguaia. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979.382


usca pelos filhos: enviavam e recebiam entre si jornais, panfletos cartazes, notícias sobre o processojudicial. Pelas cartas fica evidente que agiam em grupo mesmo em estados diferentes, não tinham aPraça de Maio, para protestarem unidas, protestaram então documentamente (cartas).Essas mães demonstraram a luta por igualdade e exercício da cidadania, com um agir político, apartir de uma característica estritamente feminina, a maternidade, muito utilizada como argumento dedominação às mulheres. A história de Ermelinda e outras tantas mães como protagonistas no palcopolítico da história da ditadura militar.2.3 Um estudo comparado: Mães da Praça de MaioAs Mães da Praça de Maio foram inseridas na luta quando seus filhos e netos, ativistas na lutacontra a ditadura na Argentina, começaram a desaparecer. Eram donas de casa, se ocupavam dosafazeres do lar e, em sua grande maioria, não compreendiam em profundidade o motivo da luta de seusfilhos. Elas iam à delegacia e não obtinham respostas e na igreja, ouviam dos padres que eram seusfilhos e netos os próprios culpados pelos desaparecimentos.As ausências foram ficando cada vez mais constantes, mais filhos sumiam, mais mãeschoravam. No dia 26 de abril de 1976, sábado, as mães se uniram para chorarem juntas na “Plaza deMayo”, centro de Buenos Aires. Os filhos deixaram de pertencer a apenas uma mãe, a maternidade foisocializada.Como a concentração de pessoas era proibida, passível de prisão, o país estava sob umaditadura, então a polícia as dispersou. As mães se foram, mas retornaram numa quinta-feira. Já que nãopodiam ficar paradas, começaram a circular em torno da praça. Inacreditavelmente, essa manifestaçãocircular perdura até os dias de hoje. Toda quinta-feira essas mães se reúnem e circulam. Não existe, porparte delas, a esperança de reencontrarem seus filhos e netos com vida. O que permanece é o espíritode luta por justiça.3. Na perspectiva dos Direitos humanosHistoricamente foi com o surgimento da Organização das Nações Unidas em 1945, e daconsequente aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, que o DireitoInternacional dos Direitos Humanos começa a aflorar e a solidificar-se de forma definitiva, gerando, porconsequência, a adoção de inúmeros tratados internacionais destinados a proteger os direitosfundamentais dos indivíduos.Trata-se de uma época considerada como verdadeiro marco divisor do processo deinternacionalização dos direitos humanos. Pois, antes disso a proteção aos direitos do homem estavamais ou menos restrita apenas a algumas legislações internas dos países, como a inglesa de 1684, aamericana de 1778 e a francesa de 1789.Mais especificamente no caso brasileiro, o processo de incorporação do Direito Internacional dosDireitos Humanos e de seus importantes instrumentos é conseqüência do processo de democratização.O marco inicial do processo de incorporação de tratados internacionais de direitos humanos pelo Direitobrasileiro foi a ratificação, em 1º de fevereiro de 1984, da Convenção sobre a Eliminação de todas asformas de Discriminação contra a Mulher. A partir dessa ratificação, inúmeros outros relevantesinstrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos foram também incorporados pelo DireitoBrasileiro, sob a égide da Constituição Federal de 1988.Assim, a partir da Carta de 1988, importantes tratados internacionais de direitos humanos foramratificados pelo Brasil, dentre eles:Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989; aConvenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes,em 28 de setembro de 1989; a Convenção sobre os Direitos da Criança, em 24 desetembro de 1990; o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em 24 de janeirode 1992; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 24 dejaneiro de 1992; a Convenção Americana de Direitos Humanos, em 25 de setembro de1992; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra aMulher, em 27 de novembro de 1995. 17Vemos assim que o processo de democratização possibilitou, a reinserção do Brasil na arenainternacional de proteção dos direitos humanos, embora relevantes medidas ainda necessitem seradotadas pelo Estado brasileiro para o completo alinhamento do país à causa da plena vigência dosdireitos humanos.No tocante a questão de gênero, com o objetivo de dar voz às mulheres, abrir espaço naparticipação política direta ou por meio de representação real é que surgiram os movimentos feministas.17PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos no ensino superior, 2001, p. 1.383


As ações desses movimentos são entendidas como lutas, por reconhecimento, pela reorganização daliberdade conscientizada e desconstrução das estereotipações de gênero.O papel ativo das mulheres se dá especialmente em relação à legitimidade e necessidade daluta feminista por direitos humanos. Tal luta não é pontual, se dá em várias esferas, seja dentro dafamília, nas relações econômicas e, especialmente, no aprimoramento da participação cidadã, tratandotanto do protagonismo das mulheres nas decisões coletivamente vinculantes quanto da democratizaçãode todos os espaços sociais.Apesar dos avanços conquistados pelos movimentos feministas na luta pelo direito de seremdiferentes quando a igualdade as descaracteriza, mas de serem iguais quando a diferença as inferioriza,percebemos que ainda há muito a se avançar. Dados mostram que a desigualdade entre homens emulheres persiste nos mais diversos espaços, ainda tão resistentes à ocupação feminina. Portanto a lutapor uma história das mulheres, na ótica de gênero, só terá significado a partir da constante participaçãodemocrática das mulheres em defesa dos seus próprios direitos.Considerações finaisNa tentativa de dar visibilidade à história da mulher, constata-se que as relações entre feminino emasculino são socialmente construídas, portanto culturais e históricas. E, por consequência não se podefalar da mulher sem falar nas relações entre homens e mulheres.Na ditadura militar brasileira, a mulher militante não era apenas uma opositora ao regime, eratambém uma presença que subvertia os valores estabelecidos, que não atribuíam à mulher espaço paraa participação política.Para uma história das mulheres é necessário que a história seja entendida como resultado deinterpretações que têm como fundo relações de poder, pois esse caráter de construção da história nospermite desconstruir e reinventar a história, inclusive o papel dos homens e das mulheres na sociedade.Assim a história passa a ser vista como um campo de possibilidades para vários sujeitos historicamenteconstituídos, lugar de lutas e de resistências.Contar essas histórias favorece a ampliação da participação feminina em todas as dimensões dasociedade e, assim contribui para o fortalecimento da igualdade entre os sexos e da democracia emnosso país.Fontes consultadasAcervo Pessoal de Ermelinda Mazzaferro Bronca, depositado no AHRS: Arquivo Histórico do Rio Grandedo Sul. Doado em 2005 por Maria Helena Mazzaferro Bronca filha de Ermelinda. Consultado em 2012.Referências Bibliográficas:COLLING, Ana Maria. As mulheres e a ditadura militar no Brasil. História em Revista, Pelotas, v. 10, p. 1-10, dez, 2004.______. A resistência da mulher à Ditadura Militar no Brasil. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.BOURDIEU, Pierre. Observações sobre a história das mulheres. In: DUBY, G.Mulheres e História. Lisboa: Dom Quixote, 1995.DÓRIA, Palmério, et ali. História Imediata. A Guerrilha do Araguaia. São Paulo:Alfa-Ômega, 1979.384PERROT, Michelle. AsFOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1979.______. Microfísica do poder. 23. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007.PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos no ensino superior, 2001. Disponível em:http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan_dh_ensino_superior.pdf. Acesso emfev de 2013.MATOS, Maria Izilda S. de. Por uma história da mulher. Bauru, SP: Edusc, 2000.MERLINO, Tatiana; OJEDA, Igor (Org.). Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino. SãoPaulo: Caros, 2010.PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: Unesp, 1998.SOUSA. Deusa Maria. Caminhos Cruzados: Trajetória de e desaparecimento dequatro guerrilheiros gaúchos no Araguaia. Dissertação de Mestrado, Unisinos, 2006.SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação & Realidade. Porto Alegre:UFRGS, 1990.


VAINFAS, Ronaldo. Os Protagonistas Anônimos da História: Micro- História. Rio de Janeiro: Campus,2002.WASSERMAN, Claudia e GUAZZELLI, César Augusto Barcelos (Org.).DitadurasMilitares na América Latina. Porto Alegre: Ed.UFRGS, 2004.WOOLF, Virgínia. Kew gardens; O status intelectual da mulher; Um toque feminino na ficção; Profissõespara mulheres. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.385


Uma Visão sobre a Ação Popular (AP): do Socialismo Humanista ao Maoísmo.Cleverton Luis Freitas de Oliveira 1Resumo: Este trabalho tem o objetivo de compreender os aspectos internos e externos à Ação Popular(AP) que levaram às transformações pelas quais passou a organização durante sua trajetória. Buscamosentender o surgimento da AP em seu contexto (1962-1963), a partir da Juventude Universitária Católica(JUC), e as transformações sofridas durante a ditadura civil-militar, até sua identificação com o maoísmoe a incorporação da maioria de seus membros ao PCdoB (1973). Além disso, buscamos traçar, sempreque possível, um paralelo entre os níveis nacional e estadual da organização. Para isso, primeiramenteanalisaremos o contexto de surgimento da AP e sua ideologia, denominada socialismo humanista,formulada em seu Documento-Base (Lima, 1979). Em seguida, trataremos das modificações ocorridasno país em decorrência do Golpe Civil-Militar de 1964, e como a AP reagiu a tais modificações. Por fim,trataremos das últimas discussões internas da AP em torno da incorporação ao PC do B.Palavras-chave: Ação Popular – Ditadura Civil-Militar – Socialismo Humanista.Abstract: This study aims to understand the internal and external aspects of Popular Action (PA) that ledto transformations which has the organization during his career. We seek to understand the emergence ofthe PA in its context (1962-1963), from the Catholic University Youth (CUY), and the transformationsduring the civil-military dictatorship until his identification with Maoism, and the incorporation of most of itsmembers the PCdoB (1973). Furthermore, we seek to bring, where possible, a parallel between theNational and State levels of the organization. For this, first we analyze the context of the emergence ofthe PA and its ideology, called humanistic socialism, formulated in its Document-Base (Lima, 1979). Thentreat the changes occurring in the country due to the Civil-Military Coup of 1964, and as the PA reacted tosuch changes. Finally, we will discuss the latest internal discussions of the PA, about the merger of thePCdoB.Keywords: Popular Action, Civil-Military Dictatorship – Humanist Socialism.Radicalização da JUC e formação da APO surgimento da Ação Popular (AP), em 1962, está fortemente ligado ao processo deradicalização política e ideológica pelo qual passavam os militantes da Juventude Universitária Católica(JUC). Esta organização fazia parte da Ação Católica (AC), criada no Brasil em 1935. A AC, em sua faseinicial, defendia um nacionalismo de direita, tendo alguns líderes oriundos da Ação Integralista Brasileira.A JUC foi organizada nacionalmente por volta de 1950, tendo como ideal a criação de uma eliteacadêmica católica que espalharia as doutrinas da Igreja. Percebe-se que, na sua formação, a JUCcentrava-se em uma concepção bastante conservadora da Igreja Católica e da Sociedade, bem como doseu papel nestes espaços. Segundo Ridenti, “a predisposição seria valorizar a ordem e a harmoniasocial, acatar as estruturas e as instituições existentes, cujos eventuais problemas estariam nas falhasdas pessoas que as compõem” 2 .A JUC, porém, passou por um processo de transformação. Influenciados por pensadores comoJacques Maritain e pelo pontificado do Papa João XXIII. Confrontando-se com as desigualdades sociaisgritantes no Brasil e com o aumento na mobilização política dos trabalhadores, seus militantes passarama questionar suas posições de passividade. Já no início da década de 1960, alguns militantes da JUCcomeçaram a formular ideias que levavam à construção de uma terceira via, negando o capitalismodesigual e a inércia dos cristãos diante dele, mas também o comunismo, tido como anticristão erepresentado principalmente pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Neste sentido, vitóriascomo a Revolução Cubana em 1959 e, mais tarde, a independência da Argélia (1962), influenciaramtambém esta ala da JUC que se formava.Paulatinamente, setores da JUC se voltavam para os problemas temporais e “os destinatários dasalvação passavam a ser as massas humanas, cuja plena realização estaria obstruída pelas estruturaseconômicas, sociais e políticas existentes, que urgia modificar” 3 . Herbert José de Souza, conhecido123Graduando em História Bacharelado na Universidade Federal do Rio Grande – FURG.RIDENTI, 2002, p. 3.Ibid., p. 5.386


como Betinho, militante da JUC e fundador da Ação Popular, proferiu em 1962, portanto, pouco antes dafundação da AP, um documento intitulado Juventude cristã hoje:Há, no entanto uma outra atitude fundamental de nossa geração: a adesão ao drama dohomem, de todos os homens, a luta pela universalização concreta da Redençãocolocada, não no plano de uma visão dualista, mas de uma concepção do homem comoum todo, indissociável, organicamente definido. Quebramos definitivamente aperspectiva aristocrática e classista da Salvação e nos voltamos à perspectiva universaldo Cristianismo: todos os homens e o homem todo são objeto de amor e da Salvação. OCristianismo é incompatível com qualquer perspectiva que de qualquer forma faça umhomem senhor e outro escravo [...]. 4Neste trecho, percebe-se claramente a visão humanista que predominava neste setor da JUC deconcepção mais à esquerda frente a ala mais tradicional deste setor. Porém, como destaca Ridenti, estehumanismo “já não era apenas cristão, vinha mesclado com um esboço de análise das classes deinspiração marxista [...]” 5 . Este pensamento constituía a gênese da ideologia da AP em sua fase inicial,que ficou conhecida como Socialismo Humanista da Ação Popular. Esta ideologia, formulada noDocumento-Base da AP, será discutida adiante. Ao perceber o desenvolvimento desta radicalização deum determinado setor da JUC, o episcopado reagiu limitando as possibilidades de ação política dosmilitantes e, até mesmo, expulsando alguns membros mais radicais. Frente a essa situação, eimpulsionados também pelos movimentos sociais – em especial o movimento estudantil, no qual a JUCtinha amplo engajamento – estes setores à esquerda da JUC formaram, juntamente com outras forçasnão católicas, a Ação Popular, com o objetivo de ampliar sua atuação política para além dos limitesimpostos pela hierarquia católica.Surgimento da Ação Popular e o Socialismo Humanista:A Ação Popular surge, então, a partir da confluência entre grupos à esquerda da JUC, militantesde igrejas protestantes e, ainda, os chamados “independentes”, que na sua maioria eram jovens nãocristãos voltados ao pensamento socialista. Já no seu início a AP tinha como base principal o movimentoestudantil. Esta característica a organização herdou principalmente da esquerda da JUC, que na décadade 1960 já participava, segundo Arantes e Lima, das convenções das esquerdas para a indicação denomes para concorrer à presidência da União Nacional dos Estudantes (UNE) 6 . Porém, desde o início aorganização já realizava contatos com os movimentos operário e camponês, revelando suas intençõesrevolucionárias e uma leitura socialista que fazia da Revolução Brasileira.No ano de 1963, em seu primeiro Congresso, foi aprovado o Documento-Base da AP, no qual osmilitantes expunham a ideologia que a organização adotava. Esta ideologia ficou conhecida comoSocialismo Humanista da Ação Popular, muito claramente por apresentar uma junção entre aspectos dohumanismo cristão, herdado da JUC, e de alguns conceitos oriundos do pensamento marxista.A análise deste Documento-Base traz informações importantes para a compreensão da AP nestafase. A AP assumia, com esse escrito, um “combate pelo homem” 7 , e afirmava:Nesse sentido, quando falamos de capitalismo e socialismo, não nos interessa umsistema abstrato de relações econômicas, mas uma possibilidade concreta de realizaçãodo homem dentro do processo de socialização em cujo sentido a históriainelutavelmente se move. 8Neste trecho é possível identificar a influência do pensamento humanista cristão, na ideia derealização do homem. Porém, também é possível perceber uma influência socialista, quando se fala doprocesso de socialização em que a história se move inelutavelmente. Mais adiante, o Documento afirmacategoricamente esta influência socialista quando assume a perspectiva do socialismo comohumanismo, enquanto crítica de uma alienação capitalista e do movimento real de sua superação. A AP,portanto, rejeitava a necessidade da ditadura do proletariado, alegando que, quando aplicada pelaRevolução de Outubro de 1917, ela teria mostrado “suas limitações e seus riscos” 9 . Da mesma forma,negava a chamada “concepção materialista da ‘consciência-reflexo’” 10 e a “concepção idealista que45678910In LIMA, 1979, p, 108, 109.RIDENTI, 2002, p. 10.LIMA e ARANTES, 1984, p. 34.In LIMA, 1979, p. 118.Ibid., p. 120.Ibid., p. 126.Ibid., p. 129.387


atraiçoa as responsabilidades históricas concretas pela fuga para o abstrato” 11 . Assumia, assim, umaterceira via denominada “concepção realista da consciência” 12 .Com esse discurso, a AP fazia a crítica à política da URSS, representada no Brasil pelorevisionista Partido Comunista Brasileiro, e demonstrava solidariedade às tentativas autônomas deconstrução do socialismo, principalmente à Revolução Cubana de 1959.Por fim, a AP fez uma opção prática por uma política de preparação revolucionária que consistia,basicamente, em uma “mobilização do povo, na base de desenvolvimento de seus níveis de consciênciae organização [...]” 13 , firmada na luta contra a dupla dominação: capitalista (nacional e internacional) efeudal. Além disso, assume a prioridade do trabalho com as organizações operárias e camponesas. Combase nesta política de preparação revolucionária, a AP atuou no Movimento de Educação de Base(MEB), projeto da Igreja Católica e do Ministério de Educação que visava principalmente a alfabetizaçãode agricultores. Nesse setor, alguns membros da AP atuaram também no sistema de alfabetizaçãodesenvolvido no Recife pelo educador Paulo Freire. A organização atuou ainda na fundação daConfederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), em 1963, o que a aproximou aindamais de setores camponeses. Embora a AP continuasse sendo predominantemente formada porestudantes, estas aproximações contribuíram para a diversificação de seus quadros, caso, por exemplo,de Manoel Conceição dos Santos, aluno do MEB, que se tornou líder camponês e, mais tarde, dirigenteda AP 14 .As ligações da AP com o MEB, com a CONTAG e, ainda, com a Superintendência para aReforma Agrária (SUPRA), revelam que, apesar do seu discurso revolucionário, a organização integrouos esforços reformistas do Governo João Goulart, acompanhando as tendências dos movimentos demassas da época. Na realidade, a AP via nos projetos reformistas do governo – representadosprincipalmente pelas reformas de base – uma alternativa para desenvolver sua política de preparaçãorevolucionária.No Rio Grande do Sul, nessa fase em questão, a AP atuava principalmente na defesa dasReformas de Base e no movimento estudantil, exercendo hegemonia na União Estadual dos Estudantes(UEE) e em parte dos centros acadêmicos da UFRGS. Ademais, a AP atuou na alfabetização de adultosem Porto Alegre através do método Paulo Freire e do Movimento de Educação de Base 15 .Com o Golpe Civil-Militar de 31 de Março de 1964 a situação da AP iria mudar drasticamente.Como organização de esquerda, automaticamente passaria à ilegalidade e, sistematicamente, aperseguição às suas lideranças aumentaria.O significado do Golpe Civil-Militar para a APO Golpe Civil-Militar que ocorreu no Brasil em março de 1964 tem, entre vários aspectos, umsentido geopolítico e outro econômico. O primeiro, porque se insere em um contexto de Guerra Fria, e osegundo, porque é também um golpe de classe. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, ganha força apolarização mundial, onde os Estados Unidos da América representam o mundo capitalista e a União dasRepúblicas Socialistas Soviéticas representam o mundo “comunista”. Com o tempo, a Guerra Friadefinia-se muito mais como uma guerra de influências, e os EUA tratavam de garantir sua dominaçãoimperialista em todo o território latino-americano. Ficava claro, na ótica dos Estados Unidos, que “ocontrole da segurança interna equivalia ao controle da ‘subversão comunista’” 16 . Para efetivar estecontrole, desenvolveu-se nas escolas de guerra norte-americanas a Doutrina de Segurança Nacional, elogo esta foi incorporada e incrementada pela Escola Superior de Guerra do Brasil. Com isso, comodestaca Wasserman, o exército “se colocava como protagonista de objetivos determinados (fins),estratégias definidas (meios) e iluminado por uma ideologia, a Segurança Nacional” 17 . Deste modo, oGolpe Civil-Militar, que implantou a Ditadura de Segurança Nacional, tinha um caráter de classe,antipopular.O Golpe, porém, não foi um feito exclusivo dos militares. Nele tiveram participação ativa variadossetores civis, desde grandes empresas transnacionais até setores leigos da direita católica. O principalnúcleo por meio do qual os empresários participaram da conspiração contra João Goulart foi o complexoconstituído pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto de Ação Democrática(IBAD). Por meio dessas instituições, cujas direções participavam civis e militares, empresários nacionaise estrangeiros financiaram a propaganda política que vinculava João Goulart ao comunismointernacional e contribuía para difundir o medo do socialismo. Segundo Wasserman, empresas como a11121314151617Ibid., p. 132.Ibid., p. 132.Ibid., p. 142.RIDENTI, 2002, p. 21.Ver: DIAS, 2011.WASSEMAN, 2004, p. 29.Ibid., p. 30.388


Coca-Cola, IBM, Esso, General Motors, além de diversas empresas nacionais como a Varig e aindasetores da Igreja, contribuíram diretamente, por meio de financiamento, para as conspirações contraGoulart e os movimentos sociais do Brasil 18 . Deste modo, se reafirma o caráter classista e antipopular doGolpe.A Ação Popular, assim como qualquer organização política de esquerda do período, sofreuprofundas crises e transformações com o Golpe Civil-Militar. Esta situação foi agravada ainda pelosfortes vínculos que a organização mantinha, em certas áreas, com o Governo de João Goulart. Mas a APiniciou sua reorganização ainda em 1964, e no ano seguinte aprovou a Resolução Política de 1965, queenfatizava a necessidade da luta armada revolucionária, aproximando a AP da visão cubana. Na suaprimeira fase de atuação, entre 1962 e 1964, a AP havia se organizado em um sistema decoordenações, demonstrando forte influencia cristã. Em 1965, a AP passa a organizar-se em comandos,o que ressalta o fortalecimento da influencia da Revolução Cubana sobre a organização após o Golpe 19 .Apesar de assumir a necessidade da luta armada, a AP não tomou iniciativas formais nestesentido, a não ser por um atentado contra a vida de Costa e Silva em 1966, na época Ministro da Guerrae indicado pelo regime como sucessor de Castelo Brando na Presidência da República. Este atentado,todavia, teria sido realizado sem o conhecimento da Direção Nacional, e acabou colaborando, conformecita Ridenti, para o questionamento da influência cubana sobre a organização 20 .No Rio Grande do Sul, neste período, a AP passou também por cisões internas, acompanhandoo processo que a organização vivia em nível nacional. Porém, permaneceu atuando, principalmente, naorganização de passeatas e protestos contra o regime e os acordos entre o Ministério da Educação e aAgência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, conhecidos como MEC-USAID 21 .A Ação Popular, destarte, havia sobrevivido ao Golpe Civil-Militar, mas a nova condição declandestinidade já causava profundas modificações na organização. Tais mudanças significaram arelativa perda da influência cristã sobre a AP, e a intensificação do debate acerca da adesão aomarxismo-leninismo. Além disso, com o atentado ocorrido em 1966, aprofundou-se a contraposição entresetores foquistas 22 , que influenciados pela Revolução Cubana acreditavam na possibilidade de iniciar arevolução a partir de grupos armados localizados em regiões rurais, com o apoio essencial doscamponeses, e setores que defendiam a guerra popular prolongada, influenciados pelo pensamento deMao Tsé Tung e pela Revolução Cultural Chinesa.O Debate Teórico e Ideológico e a predominância do MaoísmoSistematicamente foi ocorrendo, no seio da AP, um processo de polarização ideológica.Formaram-se então duas correntes: a Corrente 1, que defendia a guerra popular prolongada einfluenciada pela Revolução Chinesa, e a Corrente 2, resistente ao maoísmo, e que era categorizadacomo foquista. A primeira corrente tinha como principal líder Jair Ferreira de Sá, e a segunda, ViníciusCaldeira Brant e Altino Dantas 23 . A Corrente 1 elaborou seus princípios em um documento denominadoEsquema dos Seis Pontos. Em torno desta questão, foram elaborados textos para o debate dosmilitantes, que se aprofundavam no conhecimento do marxismo e de suas diversas correntes.Quando a Corrente 1 obteve maioria na organização, porém, o debate foi cortado pela expulsãodas principais lideranças da Corrente 2. Lima e Arantes narram esta decisão, tomada pelo plenário daReunião Ampliada, como prejudiciais ao amadurecimento da AP, pois com isso a organização não pôdebeneficiar-se “do aprofundamento e do confronto das ideias, inclusive de algumas críticas corretas queeram feitas ao “Esquema dos Seis Pontos” pela “Corrente 2” 24 .Com a vitória teórica interna, a Corrente 1 reorganizou a AP em comitês, coerentemente comsua orientação maoísta, e colocou em prática a política de integração dos militantes. Tal política quetinha como objetivo o início de uma guerra popular prolongada a partir de militantes infiltrados nasfábricas e zonas rurais, de onde estes se encarregariam de organizar as lutas de operários ecamponeses. Esta política ganhou ainda mais força e organização após a decretação do Ato Institucionalnúmero cinco, em Dezembro de 1968, que concluía o processo de institucionalização da Ditadura deSegurança Nacional e aumentava ainda mais a repressão a todo tipo de oposição.18192021222324Ibid., p. 33,34.RIDENTI, 2002, p. 19.Ibid., p. 24.DIAS, 2011, p. 86.Foquismo é como ficou conhecida teorização a respeito da prática revolucionária cubana, e consiste na ideia deque é possível desencadear a revolução a partir de grupos armados localizados em regiões rurais, com o apoioindispensável dos camponeses. Também é caracterizada por defender a submissão do aspecto político aomilitar dentro da organização revolucionária. (Ver: GUEVARA, Ernesto. A Guerra de Guerrilhas. São Paulo:Edições Populares, 1982).RIDENTI, 2002, p. 26.LIMA e ARANTES, 1984, p. 72.389


A Integração na ProduçãoO movimento de Integração na Produção foi iniciado sistematicamente pela AP no ano de 1969.Além de organizar os operários e camponeses e iniciar a guerra popular prolongada, o movimento tinhao objetivo de proletarizar os militantes. Isso se daria a partir do convívio direto e diário destes comoperários e camponeses. Ridenti ressalta que esta política condizia com os três preceitos de Ho ChiMinh: viver junto, comer junto e trabalhar junto 25 . Por meio desta política, a AP tentava extinguir suasheranças pequeno-burguesas, pois acreditava que seria necessário, para dirigir a guerra popularprolongada, tornar-se uma organização predominantemente operário-camponesa.Há muitas discordâncias em relação à política de integração na produção. Contudo, cabe afirmarque há aqueles que a consideram boa, ou necessária no momento, e há os que a consideram, comoHerbert José de Souza, um retrocesso 26 .Após a decretação do AI-5, ocorreram diversas prisões de militantes da AP em todo o país, e emvárias regiões a organização ficou bastante desarticulada em decorrência dessa prática. Foramenviados, então, militantes de outros Estados para as regiões desarticuladas, com a missão de integrarseà produção e rearticular o trabalho da AP. O Rio Grande do Sul foi uma das regiões que ficoudesarticulada e, por isso, foram enviados para o Estado Antônio Ramos Gomes e Nilce AzevedoCardoso, militantes da AP de São Paulo. Nilce descreve a integração na produção, que viveu no ABCpaulista e em Porto Alegre, como uma fase de grandes aprendizados para sua vida. Relata, por exemplo,que no ABC era comum a morte de bebês, e que no RS os riscos de acidentes e mutilações eramconstantes 27 . Em depoimento à Cristiane Dias, Nilce afirma que:A integração na produção foi uma excelente política adotada pela AP, pois [...] osmilitantes iam estar ao lado dos trabalhadores, porque os intelectuais dão a direção domovimento, mas quem faz a revolução são os operários e camponeses! 28 .A partir deste depoimento, reafirma-se a duplicidade na qualificação da política de integração naprodução. Apesar disto, a política de integração na produção foi mantida pela organização, quecaminhava cada vez mais na direção do Maoísmo. Isto a aproximava também do Partido Comunista doBrasil, caracterizado por sua linha maoísta e suas aproximações com a China. Como forma dedemonstrar o avanço de posições marxista-leninistas de linha maoísta na organização, a AP passa a sechamar, no ano de 1971, Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil (APML do B). A incorporação de fatoda maioria dos militantes da AP ao PCdoB aconteceria em 1973. Porém, antes disso, a AP no RioGrande do Sul foi praticamente dissolvida, dada a intensidade da repressão que se abateu sobre seusmilitantes.A atuação repressiva à AP no RSO ano de 1972 marca, no Rio Grande do Sul, a desarticulação quase completa da Ação Popular.Já reorganizada em 1969 com a ajuda de militantes de outras regiões, a AP no RS não resistiu àsucessão de prisões feitas pela polícia política da ditadura, o DOPS.No dia 11 de Abril de 1972 foi presa, em um ponto secreto delatado por outro preso, NilceAzevedo Cardoso, militante transferida de São Paulo para o RS após o AI-5, e que se encarregava doscontatos com os operários pertencentes à organização. Nilce foi fortemente torturada por agentes doDOPS em Porto Alegre e da Operação Bandeirantes em São Paulo 29 , e suas memórias encontram-se noRelatório Azul de 2011 da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do RioGrande do Sul, assim como em diversos outros materiais. Neste depoimento publicado pelo RelatórioAzul de 2011, Nilce relata que, apesar de serem presos quase todos os integrantes da AP no Rio Grandedo Sul em 1972, nenhum operário da organização foi preso:Tinha muita gente da Ação Popular sendo presa no sul. A maior queda no sul ocorreuem 1972. Bom, aí foram caindo um por um. E aí caiu todo mundo, menos os operários,nenhum deles foi preso, pois só eu sabia como encontrá-los.No ano de 1972, o Departamento Central de Informações da Secretaria de Segurança Pública doEstado do Rio Grande do Sul elaborou um documento intitulado “Atividades da APML do B no Rio2526272829RIDENTI, 2002, p. 30.Ibid., p. 32.In VIOLA e PIRES, 2011, p. 154-156.In DIAS, 2011, p. 166.In VIOLA e PIRES, 2011, p. 11-22 (complemento que acompanha a edição de 2011 do Relatório Azul, ondehouve erros na impressão do depoimento de Nilce).390


Grande do Sul”, como forma de fazer uma “relação dos elementos que, de uma maneira ou de outra,estabeleceram sua participação na organização subversiva APML do B [...] em nosso Estado” 30 . No total,o documento apresenta 77 nomes de envolvidos nas ações da AP no Estado, desde dirigentes regionaise nacionais, até profissionais liberais que contribuíram financeira e logisticamente para a organização.Como se vê, o esforço dispendido na repressão aos militantes da AP no RS foi grandioso, o querevela por si só a importância que adquiriam os trabalhos da organização diante das instituiçõesrepressivas, e o grande poder repressivo do qual dispunha o Estado de Segurança Nacional.A Incorporação da APML do B ao PCdoBNo início da década de 1970, as discussões em torno da incorporação ou não da AP ao PC do Bse intensificaram e, pela última vez, a organização passou por um processo de debate teórico e cisão.Desta vez a luta interna se organizou em torno de uma maioria, identificada ideologicamente com o PCdo B, e uma minoria, resistente à tal fusão. A maioria, porém, decidiu em Congresso pela incorporaçãoao PC do B. Segundo Ridenti, a luta em torno da questão prosseguiu e, no início de 1973, havia duasorganizações que reivindicavam a sigla APML. A primeira era a antiga minoria, expulsa da organização. Asegunda era constituída pela antiga maioria, que caminhava para a incorporação completa ao PC do B.Em maio de 1973, foi divulgada uma circular denominada “incorporemo-nos ao PCdoB”, e a APMLfinalmente se uniu ao Partido Comunista do Brasil. Mesmo assim, a antiga minoria seguiu os esforçospara reorganizar a APML, que resistiu até 1981 como entidade nacional, embora muito enfraquecida 31 .Considerações finaisNeste trabalho, foi possível analisar as transformações pelas quais passou a Ação Popular,desde sua fundação em 1962 até seu completo desaparecimento em 1981, sempre que possívelestabelecendo paralelos entre a organização nacional e a AP do Rio Grande do Sul. Também foi possívelcompreender a abrangência da ação repressiva do Estado de Segurança Nacional sobre asorganizações de oposição, por meio da análise desta repressão sobre a AP. Obviamente, este trabalhonão abrange, nem tem esta intenção, toda a história da AP no Brasil ou mesmo no Rio Grande do Sul.Processos importantes, como o Esquema de Fronteira no RS, não foram abordados pelo fato de que oobjetivo central do trabalho era observar as transformações pelas quais a AP passou durante suatrajetória, e os aspectos internos e externos à organização que influenciaram estas transformações, bemcomo traçar um paralelo entre os níveis nacional e estadual da organização.Fontes pesquisadas:Acervo documental da Secretaria de Segurança Pública, disponível no Arquivo Histórico do Rio Grandedo Sul. Em especial, o documento “atividades da APML do B no Rio Grande do Sul”, localizado no FundoSecretaria de Segurança Pública, Subfundo Departamento Central de Informações.Documento-Base da Ação Popular, publicado em anexo ao livro de LIMA, Luiz Gonzaga de Souza.Evolução Política dos Católicos e da Igreja no Brasil: hipóteses para uma interpretação. Petrópolis:Vozes, 1979, p. 118-144.Documento produzido por Herbert José de Souza em 1962, publicado em anexo ao livro de LIMA, LuizGonzaga de Souza. Evolução Política dos Católicos e da Igreja no Brasil: hipóteses para umainterpretação. Petrópolis: Vozes, 1979, p.108-117.Depoimento de Nilce Azevedo Cardoso, publicado na edição da COMISSÃO DE CIDADANIA EDIREITOS HUMANOS DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.Relatório Azul 2011. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2011, p. 147-158(acompanha complemento com o depoimento completo contido entre as páginas 3 e 27).Referências Bibliográficas:DIAS, Cristiane Medianeira Ávila. Ação Popular (AP) no Rio Grande do Sul: 1962-1972. 2011,Dissertação de Mestrado, PPGH, Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo.GUEVARA, Ernesto. A Guerra de Guerrilhas. São Paulo: Edições Populares, 1982.LIMA, Haroldo; ARANTES, Aldo. História da Ação Popular: da JUC ao PC do B. São Paulo: Alfa-Omega,1984.3031Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul / Fundo: Secretaria da Segurança Pública / Subfundo: DepartamentoCentral de Informações / Atividades da APML do B no Rio Grande do Sul.RIDENTI, 2002, p. 39-42.391


LIMA, Luiz Gonzaga de Souza. Evolução Política dos Católicos e da Igreja no Brasil: Hipóteses para umainterpretação. Petrópolis: Vozes, 1979.RIDENTI, Marcelo. Ação Popular: cristianismo e marxismo. In REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI,Marcelo (orgs.) História do marxismo no Brasil, 5. Partidos e organizações dos anos 20 aos 60.Campinas: ed. Da UNICAMP, 2002, p. 213-282.WASSERMAN, Claudia. O império da Segurança Nacional: O golpe militar de 1964 no Brasil. InWASSERMAN, Claudia; GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos (orgs.). Ditaduras militares na AméricaLatina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.VIOLA, Ion Eduardo Annes; PIRES, Thiago Vieira. Nilce Azevedo Cardoso: relembrar é preciso. InCOMISSÃO DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO RIOGRANDE DO SUL. Relatório Azul 2011. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul,2011, p. 147-158 (3-27 do complemento anexo ao relatório).392


A mudança de posicionamento da Igreja na Ditadura e a Repressão a Padres em SãoLuís- MA.Marcos Paulo Teixeira 1Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar os principais fatos que desencadearam a Ditadura CivilMilitar no Brasil, bem como a mudança de posicionamento e o aumento da repressão contra a IgrejaCatólica. Por fim analisar o enquadramento de alguns padres nas leis de segurança nacional.Palavras-chave: Ditadura Civil Militar – Igreja Católica – Leis de Segurança Nacional.Abstract: This article aims to analyze the main events that triggered the Civil-Military Dictatorship inBrazil, as well as the change of positioning and increased repression against the Catholic Church. Finallyanalyze the framework of some priests in national security laws.Keywords: Civil-Military Dictatorship – Catholic Church – National Security Laws.IntroduçãoEm 1964, o Brasil assistiu a uma das mais dramáticas crises em sua história republicanaquando, em março do mesmo ano, os militares, com apoio de civis, depuseram o então presidente JoãoGoulart. O país entraria num dos períodos mais conturbados de sua história política. O papel principaldos militares é sempre colocado em pauta. Nas discussões historiográficas recentes, podemos perceberuma mudança no que confere a participação dos civis na composição do Golpe. O certo é que mesmonum primeiro momento, com o apoio da classe média, Igreja Católica e setores conservadores,observamos num momento posterior que esses mesmos grupos começam a fazer uma oposição aoRegime. Ao analisarmos a dinâmica repressiva dos militares, é possível identificar que mesmo setoresque apoiaram a “Revolução”, num segundo momento chegam a sofrer repressões do mesmo regime queajudaram a legitimar.Prelúdios do GolpeVárias correntes analisam o Golpe por diferentes óticas. Algumas levantam questões principaisdos acontecimentos Pré-Golpe, alicerçando as pesquisas nas frustradas tentativas de tomada de poderpelos militares e pela direta. Jorge Ferreira (2001) pontua três momentos específicos dessas crises.Começando pelo ano de 1954, quando por uma forte pressão da direita encabeçada pela UDN e porsetores militares , levou o então presidente, Getúlio Vargas a cometer suicídio. Com esse ato há umrecuo das forças que defendiam o golpe, tendo em vista a comoção nacional diante do acontecido. 2Em 1955, a candidatura de Juscelino Kubitschek a presidência recebeu varias criticas, a principalera a respeito da aliança de seu partido com o PTB partido de seu futuro vice João Goulart, ex-ministrodo trabalho de Vargas. Mais uma vez os protestos eram encabeçados pela UDN, apoiando até mesmoum boicote às eleições de 1955. As eleições acabaram acontecendo e foram vencidas por Juscelino,sendo eleito também João Goulart para a vice-presidência. Mesmo com a vitória, criara-se um impasse ea possibilidade real de Juscelino não assumir o cargo. Vários setores queriam que a constituição fosseseguida, respeitando o resultado das eleições. Porém, a direita juntamente com alguns setores doexército tramavam um golpe. Diante de uma crise militar e um possível golpe, um grupo ligado aogeneral Henrique Teixeira Lott, Ministro de guerra, juntamente com outros generais, que defendiam aposse de Juscelino, interviram no processo politico 3 garantindo através do contragolpe a defesa da123Graduando do 7° período do curso de História da Universidade Estadual do Maranhão. Membro do NUPEHIC(Núcleo de Pesquisa em História Contemporânea). Bolsista FAPEMA pelo Projeto de Organização, Indexação,Informatização e Publicização do acervo documental sobre História Contemporânea presente no Maranhão, sobcoordenação da prof. Drª Monica Piccolo.Para uma análise mais aprofundada sobre o momento das crises de 1954, 1955, 1961, consultar, FERREIRA,Jorge. Crises da Republica: 1954, 1955, 1961. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves. O BrasilRepublicano. O tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964.Jorge Ferreira aponta que neste momento houve uma preocupação em promover uma saída legal ao golpe; oGeneral Henrique Teixeira Lott chama então, o vice-presidente do senado e o presidente da câmara, indicandoassim outro civil para ocupar a presidência.393


legalidade e a posse do então presidente eleito.Outro momento analisado pelo autor foi à crise gerada pelo renúncia de Jânio Quadros. Aseleições para a presidência e a vice, não ocorriam de maneira casada; candidatos de ambos os cargosconcorriam separadamente. Jânio foi eleito presidente e João Goulart vice. O problema é que o país seencontrava numa situação financeira complicada. De fato Jânio tentou lidar com as pressões do cargo,porém como pontua André Villela (2005), sua renúncia estaria ligada a falta de base parlamentar no seugoverno e a coloca como um dos “gestos mais dramáticos da história do país, pelos efeitos políticosimediatos e de longo prazo”. 4 No contexto da renúncia de Jânio Quadros surge novo impasse pelossetores conservadores, juntamente com o exército, por não aprovarem a posse do vice, João Goulart,gerando assim uma nova crise, que acabou desembocando na “campanha da legalidade”. Para aresolução do problema foi encontrada uma solução de compromisso, uma emenda na constituição;colocando o sistema parlamentarista em vigência no país, garantindo assim a posse de Jango, atuandocom poderes reduzidos, tendo como primeiro-ministro Tancredo Neves. Esse enfraquecimento geradopelo parlamentarismo permaneceria em seu governo. Até mesmo quando Jango consegue a antecipaçãodo plebiscito para restaurar o sistema presidencialista, acabaria por não deixa-lo realizar seus principaisplanos.Para alguns autores as reformas sociais propostas por Jango poderiam de certa formareformular o desenvolvimento brasileiro no sentido de construir uma sociedade menos desigual.Segundo André Villela (2005), Jango quis implementar uma politica que tinha como ponto central trêsobjetivos principais: conciliar crescimento econômico aliado a reformas sociais e o combate a inflação. 5Durante todo seu governo um ponto importante que chama a atenção foi à participação doamovimentos populares, todos eles segundo Daniel A. Reis (2001), dotaram-se de um programa emcomum, a luta pelas Reformas de Base. O problema colocado pelo mesmo autor foi que todas essasreformas acabaram por ir de encontro a outros interesses que não eram os dos trabalhadores e sim deuma elite conservadora que já havia dado vários sinais de que não apoiaria certas reformas. Assimquando Jango anuncia que pretende realizar suas reformas de base, tendo como principal levante areforma agrária, dentro dos quartéis já se ensaiava o golpe que se anunciava. Toda a estruturação épercebida em torno do governo de João Goulart, tanto da direita e às vezes da própria esquerda, aspressões foram enormes, a sua posição ideológica e os rumos que ele está disposto a tomar fizeramcom que as forças armadas assumissem uma postura diferente das outras ocasiões. A última cartadacontra a Democracia foi dada em março de 1964. Com elementos diferentes de outras oportunidades, asforças conservadores alinhavam-se ao exército e creditando a esses agora o papel de defensores dalegalidade, da constituição e da ordem.Inicio da RepressãoNo Brasil, desde os primeiros dias após o golpe, a repressão foi incessante por parte dosmilitares, principalmente por quem representasse uma “ameaça”, por menor que fosse ou de fato nemexistisse para a “segurança da nação”, eram tidos como subversivos, criminosos. Alguns setores dasociedade brasileira apoiaram o regime; classe média, empresários, técnicos, Igreja Católica, algunstrabalhos, como o de Dreifuss, mostram o quão foram importantes às participações dos civis para o“sucesso” da imposição do regime.O medo por parte de alguns setores nacionais e até mesmo internacionais de uma ameaçacomunista representou um papel importante na composição do golpe, tendo em vista que muitas vezesutilizou-se desse “medo” para desestabilizar o governo de João Goulart. Vários foram os interesses dedeterminados setores por essa “repulsa” a ameaça vermelha e uma possível revolução no país. OExército, principal elemento no golpe, detinha um interesse principalmente no que confere a suaessência; a direita, na figura da UDN, demonstrava a muito o desejo pelo fim do mandato de Jango.Uma importante discussão sobre a participação dos civis no golpe está presente na obra deRené Dreifuss (1987). O historiador uruguaio destaca a presença notável de civis, reunidos e atuandonos complexos (IPES/IBAD) 6 , que foram responsáveis pela desestabilização do governo Joao Goulart.Eram os chamados técnicos; mostra ainda o papel dos empresários e tecno-empresários que após ogolpe ocuparam posições chaves nas administrações e ministérios, concluindo assim uma participaçãobastante efetiva de setores civis. 74567VILLELA, André. Dos anos Dourados de JK à Crise não resolvida (1956-1963). In: GIAMBIAGI, Fábio.Economia Brasileira Contemporânea (1954-2004). Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.VILLELA, André. Dos anos Dourados de JK à Crise não resolvida (1956-1963). In: GIAMBIAGI, Fábio. EconomiaBrasileira Contemporânea (1954-2004). Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.O IPES, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais e o IBAD, Instituto Brasileiro da Ação Democrática; constituemum complexo responsável pela campanha de desestabilização do governo de João Goulart. Com a imposiçãodo Regime vária de seus principais empresários ocuparam cargos chaves no governo.Em sua obra, “1964: a conquista do Estado. Ação politica, poder e golpe de classe”. René Dreifuss analisa a394


Logo nos primeiros dias do golpe ficou demonstrada uma divisão dentro do próprio Exército.Existiam dois pontos de vista a respeito da “Revolução”, como aponta Thomas Skidmore (1988). Duasfrações com projetos distintos dentro do exército: a chamada linha de “Sorbonne”, uma linha mais"moderada”, encabeçado pelo primeiro presidente do golpe Castelo Branco:Oficiais estreitamente ligados à Escola Superior de Guerra (ESG), instituiçãopatrocinada pelos militares, cujos cursos de um ano atraíam igual número da elite militare civil. Outros conhecidos oficiais da Sorbonne eram os generais Golbery do Couto eSilva, Cordeiro de Farias, Ernesto Geisel e Jurandir de Bizarria Mamede. Este grupo,mais moderado do que a linha dura, defendia a livre iniciativa (embora considerandotambém necessária a existência de um governo forte), uma política externaanticomunista, a adoção preferencialmente de soluções técnicas e fidelidade àdemocracia, achando, no entanto, que a curto prazo o governo arbitrário se impunhacomo uma necessidade. A coesão desses oficiais da Sorbonne resultou dasexperiências comuns que viveram na FEB, durante a Segunda Guerra Mundial; na ESG(não só como estagiários, mas, sobretudo como professores); e em cursos eminstituições militares do exterior, especialmente nos Estados Unidos. Esses oficiaisficaram mais tarde conhecidos como castelistas e desempenhariam importante papel emsubseqüentes governos militares. 8Em defesa de ideais contrários à linha de Sorbonne, a chamada “Linha Dura” era encabeçadapelo militar que chefiou as primeiras semanas do golpe, Costa e Silva, que viria a ser o segundopresidente do regime, como pontua Ronaldo Costa Colto (1999):Eles não querem apenas o papel de mero moderador do passado recente, o ciclointervenção militar-substituição de governantes-volta aos quarteis. Como na crise darenuncia de Jânio Quadros, por exemplo, que resultou em parlamentarismo e Goulartpresidente. Agora querem o poder político e a permanência do movimento. Queremgovernar. Governo forte autoritário. É a “Linha Dura”, direita da direita militar, cujadisputa com os moderados vai permear todo o longo ciclo autoritário. 9O Brasil atravessava um momento de intensa atividade politica. Setores de esquerdademonstravam descontentamento e anseio de mudanças na conjuntura do país. Como essas mudançasse processariam era a duvida que pairava sobre a população. Todas essas melhorias e transformaçõesestavam contidas nas Reformas de Base 10 , que tomaram conta do momento politico anteriores ao golpe.Grande era a pressão pelas reformas, uma principal chamava bastante atenção, tanto de setoresconservadores quanto os da esquerda, a Reforma Agraria que tinha como fundamento básico distribuir aterra de maneira menos injusta, fazendo com que fosse utilizada por uma parcela maior da população. Oproblema residia na questão da terra pertencer a grandes latifundiários que acabavam influenciandodiretamente na politica nacional; não somente Reforma Agraria entrou em pauta, varias outras reformasforam exigidas por setores sociais almejando um país menos injusto. Exemplo disso era a ReformaUniversitária numa espécie de democratização desse direito e colocando a mesma a favor de interessesnacionais. Neste contexto das reformas a participação efetiva dos trabalhadores assustou muito asparcelas conservadoras e a classe média, como aponta Daniel Aarão Reis (2001):As camadas médias percebiam que um processo radical de distribuição de renda epoder por certo afetariam suas tradicionais posições e seus relativos privilégios naquelasociedade brutalmente desigual. Disseminava-se assim uma sensação de que o mundopoderia virar de ponta a cabeça: um campo fecundo para todo tipo de agitaçãoconservadora. 11Podemos verificar o forte peso que as campanhas de desestabilização causaram no governo deJoão Goulart, um papel especial é dedicado ao complexo IPES/IBAD, duas instituições que segundoRené Dreifuss (1987), deteve um papel importante na deposição de Jango. Estes dois complexos eramresponsáveis pela campanha anticomunista e por fortes denúncias direcionadas ao governo de Jango,como pontua Jorge Ferreira (2003):891011participação dos civis tanto na conjuntura da deposição do presidente João Goulart, como também na ocupaçãode cargos chaves no governo Militar.SKIDMORE, Thomas E. Brasil: De Castelo A Tancredo 1964 – 1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.COUTO, Ronaldo Costa. Historia indiscreta da ditadura e da abertura. Rio de Janeiro: Record, 1999.Um conjunto de medidas que visavam a alteração em diversas estruturas no país, afim de garantir um maiordesenvolvimento, juntamente com justiça social.REIS, Daniel Aarão. O Colapso do colapso do populismo ou a proposito de uma herança maldita. In:FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2001.395


Ao mesmo tempo, grupos políticos, empresariais e militares articulavam-se eminstituições para conspirarem contra o governo de maneira mais organizada. A primeiradela foi o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o IPES. Fundado no inicio de 1962,inicialmente, publicava livretos, patrocinava palestras, financiava viagens de estudantesaos Estados unidos e ajudava a sustentar organizações estudantis, femininas eoperárias conservadoras. Em finais do mesmo ano, grupos mais conservadoresreorientaram o órgão no sentido de derrubar o governo... Outra organização era oInstituto Brasileiro de Ação Democrática, o IBAD. Igualmente sob orientação da CIA,subvencionou diretamente candidaturas conservadoras nas eleições de 1962, todascomprometidas em defender o capital estrangeiro, condenar a reforma agrária e recusara politica externa independente. 12Segundo o autor Daniel Aarão Reis (2001), no governo de Joao Goulart, pode-se observar que aestrutura montada pela direita foi precisa no sentido de desestabilizar seu governo, pois ao observarmosas propostas tanto no Plano Trienal quanto nas Reformas de Base, observa-se uma tentativa de garantirum desenvolvimento de maneira mais justa, o que o Jango não contava era com o aparato que já estavasendo gestado para que seu mandato fosse interrompido. Interessante é mostrar o papel desempenhadopelos trabalhadores nas reinvindicações por melhorias na condição de vida.Esse processo acabou fazendo com que a burguesia, ligada ao capital internacional, Direita,Militares, Igreja Católica e classe média ficassem receosas das mudanças oriundas dessas possíveisReformas. Tanto o exercito como as forças conservadoras estavam agora com a legitimidade, eramagora defensores da legalidade, levando assim ao Golpe Civil-Militar; pautado no autoritarismo,repressão, cassações de direitos políticos, desaparecimento de presos, torturas e até mesmo mortesdentro das instituições criadas pelo próprio regime.“Sorbornne” e “Linha Dura”: disputas pelo controle do Regime e da Repressão.Ao analisarmos a linha sucessória dentro do regime militar é possível identificar as mudançasocorridas na “Revolução” em virtude dos dois principais grupos do exército. Como já foi citada, arepressão começou desde os primeiros dias depois de instaurado o golpe, num primeiro momentotentou-se impedir uma resistência maior por parte tanto dos sindicatos como por pessoas queexercessem cargos políticos ou influencia nesse campo. Começava assim um dos períodos mais durosde repressão no Brasil. Os órgãos foram sendo criados sistematicamente para garantir que a lei e aordem, segundo os preceitos da Exercito, fossem respeitadas a qualquer custo e preço. Toda a ossaturada repressão foi sendo montada no sentido de garantir que alguns órgãos fossem responsáveis pelocontrole das atividades contra o regime.Na obra de Carlos fico (2003) fica evidente que a repressão não começou somente depois do AI-5. O que os militares, principalmente aos ligados a linha Dura, almejavam já algum tempo eram maiorespoderes para fazê-la de modo mais sistematizado. Demonstra também a dificuldade na desmontagem detodo esse aparato na “abertura” politica. O ponto central de sua obra insere-se no contexto daorganização dos aparelhos repressores, numa conjuntura bem complexa:O SNI, as DSIs e todos os demais órgãos de informação compunham a comunidade deinformações, isto é, dados sobre quaisquer questões ou pessoas de interesse doregime. A produção de tais informações supunha uma rotina bastante regulamentada,que impunha classificações quanto a fidedignidade e veracidade das fontes normasrígidas de sigilo. Quase todo documento produzido pela comunidade recebia umaclassificação de sigilo: “reservado”, “confidencial” ou “secreto”. 13A crítica maior do autor acima citado é com relação à maneira com que esses documentos erampreparados, tendo em vista que a maioria desses aparelhos foi criada para vigiar e fazer fichasapontando a posição ideológica, quando na verdade muitas vezes não passava de suposição. O simplesfato de certa pessoa participar de uma reunião, já a colocava como suspeita. O que o autor pontua comotécnicas de suspeição, levantando ainda que dentro desse contexto é fácil imaginar que todas essasfichas com falsas informações poderiam ser utilizados para impugnar candidaturas de desafetos doRegime. A Doutrina de Segurança Nacional balizou toda a estruturação do golpe, como aponta Nilson1213FERREIRA, Jorge. O Governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, LuciliaNeves (orgs). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins doséculo XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.FICO, Carlos. Espionagem, polícia politica, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves (orgs). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militare movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.396


Borges (2009), “a Doutrina de Segurança Nacional serviu como base ideológica do sistema implantadoem 1964 e contribuiu para a formação do aparato de informações da nova ordem institucional” 14 . Natransição do governo Castelo branco para o do segundo general do Regime, Costa e Silva, há umamudança significativa na efetivação da Doutrina de Segurança Nacional, como aponta Nilson Borges(2009):Em 13 de dezembro de 1968, o general-presidente Costa e Silva baixa o ato institucionalnº 5, resultado de uma crise entre câmara dos deputados e o próprio governo, cujasmedidas consolidam a Doutrina de Segurança Nacional e transformam o Brasil numEstado de segurança interna absoluta. No período subsequente, soba égide do AI-5 ecomo o General Médici na presidência da republica, a dinâmica do regime será violentamediante a articulação dos diversos aparatos repressivos disponíveis e a serviço doterrorismo estatal. 15A conjuntura de transição na presidência de Castelo à Costa e silva e, em virtude da doença doúltimo, para Médici, colocou a frente do país forças que creditavam num maior aumento da repressãocontra a subversão uma saída para continuidade do Regime. Neste sentido o aumento da repressão fazsenos anos subsequentes. AI-5 representou o ápice da repressão por parte do Regime Militar, asdenúncias se multiplicavam, porém, nenhuma resposta era dada a sociedade sobre essesacontecimentos; o que o autor Padrós classifica ao falar das Doutrinas de Segurança Nacional, quantodo Terror de Estado:Em nome da defesa da civilização ocidental e do sistema democrático, a DSN procuroudesviar atenções sobre o crescente mal- estar de uma população cada vez maisatingida pelo crescente desequilíbrio da distribuição de renda. Diante dos primeirossinais de resistência contra esse quadro, a DSN legitimou, em nome do capitalinternacional e dos seus aliados locais, o uso do Terror de Estado. Tudo justificado como discurso da defesa da ordem, da estabilidade político-social, da nação ameaçada pelo“comunismo”, das liberdades e da civilização ocidental. 16O medo imposto tanto pela DSN quanto o TED balizaram toda a conjuntura do golpe. Impondomedo e receio na sociedade com o objetivo de desestabilizar qualquer reação por parte da mesma.Igreja Católica: do apoio ao Golpe a critica ao Regime MilitarA relação da Igreja com o Regime foi significativa. O principal elemento de seu posicionamentoobservou-se nas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” 17 , ainda na campanha dedesestabilização do presidente João Goulart. Dois autores num ensaio conjunto analisam as mudançaspelas quais a Igreja passou durante o Regime. Lucilia de Almeida Neves Delgado e Mauro Passos(2009) abordam a colocação das lutas pelos direitos humanos e sociais como fatores principais dessasmudanças ocorridas na igreja.A igreja não constitui um bloco hegemônico nele existentes diversos movimentos que sedivergem e praticas que são influenciadas pelas ligações de seus membros com diferentes classessociais. No contexto do golpe a Igreja esta inserida principalmente na luta contra o comunismo, pelaordem e pelas autoridades constituídas, isso explica o fato de seu apoio ao golpe.Dois eventos principais mudaram o posicionamento da Igreja com relação às questões sócias eprincipalmente os direitos humanos. No Brasil, o ano de 1968 é apontado como a virada da relação daIgreja Católica com o regime como aponta a obra “Brasil: Nunca mais” (1985):O ano de 1968 pode ser apontado como marco dessa virada por inúmeras razões: foium momento de manifestações de protestos e repressão policial condenada peloscristãos; foi o ano da decretação do AI-5; foi o período em que se iniciaram as primeirasexperiências de constituição das comunidades eclesiais de base; e também foi o ano deMedellín. Naquela conferencia do episcopado latino-americano (CELAM), as injustiças14151617BORGES, Nilson. A doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO,Lucilia Neves. (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura-Regime militar e movimentos sociais em fins doséculo XX. Rio de janeiro: civilização brasileira, 2003.p.31.BORGES, Nilson. A doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO,Lucilia Neves. (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura-Regime militar e movimentos sociais em fins doséculo XX. Rio de janeiro: civilização brasileira, 2003.p.39,40.PADRÓS, Enrique Serra. (2007). América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado. RevistaHistoria e Lutas de Classe, ano 3- edição nº 4. Pag.49.Mobilização organizada pela Igreja Católica com a participação da classe média a fim de criticar a“radicalização” e uma possível Revolução Comunista no Brasil, rezavam em nome lei ordem, família.397


sociais cada vez mais graves, que se faziam presentes em todos os paísesrepresentados, levaram os bispos a afirmar, na resolução final: “não basta refletir, obtermaior clareza e falar. É preciso agir. Esta não deixou de ser a hora da palavra, mastornou-se, com dramática urgência, a hora da ação.” 18O projeto “Brasil: nunca mais” é alicerçado principalmente em processos do Superior TribunalMilitar e caracteriza-se como uma obra de denúncia aos direitos humanos e contra a tortura empregadafortemente nos anos do regime. Com a escalada da repressão nos anos de 1968, a decretação do AI-5,a Igreja passa também a ser perseguida, principalmente pelas criticas feitas pelos clérigos contra oRegime. No mesmo livro é possível identificar vários processos pelos quais clérigos foram acusados decrimes contra a Segurança Nacional.As fichas do DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), um dos aparelhos repressores naditadura, constituem um elemento de grande relevância na pesquisa sobre esse tema, tendo em vistaque as mesmas eram utilizadas para obter e registrar informações a respeito de pessoas “suspeitas”. NoAPEM (Arquivo Público do Estado do Maranhão) encontram-se boa parte dessas documentações.A respeito da Igreja, foram encontrados documentos que destacam a participação de algunspadres envolvidos, aos olhos dos militares, em questões da Segurança Nacional. Em virtude de suasatividades, alguns tiveram seus nomes relacionados a fichas no Dops e também chegaram a enfrentarprocessos na justiça. Como ainda não foram catalogados, muitos ainda estão em caixas “avulsas”, comofoi o caso das fichas do Dops em que se encontram os nomes de cinco padres e oito civis.Entre a relação das fichas que envolvem os padres, existe uma que trata do fato de que LadislauPapp, de nacionalidade húngara, estaria utilizando-se de um jornal da cidade para tecer criticas contra oRegime, bem como de praticar atos subversivos, como consta na ficha do mesmo: “ANOTAÇÕES:escreveu vários artigos no Jornal Pequeno 19 , procurando fazer agitação, no que muitas vezes conseguiuseu intento.” 20Os outros documentos, tanto os relacionados aos clérigos quanto aos civis, aponta o nome deoutro padre, infelizmente não há indícios de sua ficha; Daniel Constant Jouffe foi o responsável pelainvestigação a todos os outros, tudo está relacionado a ele. Em primeiro porque os nomes foram citadospor conta de uma lista de endereços encontrados em sua residência e ainda é acusado de subversão.Ainda na documentação a respeito dos padres, duas fichas chamam atenção, pois as mesmascontem os respectivos crimes aos quais eles foram submetidos a julgamento. Foram os casos de XavierGilles de Maupou, de nacionalidade francesa, este chega a ter duas fichas, uma com informações bemdetalhadas, a outra, porém está incompleta e Antônio Monteiro Xavier, que tem somente uma ficha,possuindo as duas uma ligação. Os dois padres em questão são acusados de cometer os mesmoscrimes, vejamos a “OCORRÊNCIA” descrita na ficha de Antônio Monteiro Xavier:Incursos nos artigos 23, 25, 39, incisos I, V e 45, incisos I, II decreto lei de Nº 898 de29/09/79. Pela subdelegacia da policia federal do estado. Inquérito iniciado em 04.08.70terminado em 18/08/70 quando foi encaminhada a auditoria militar. O sacerdote em telafoi julgado e absolvido, juntamente com o Pe. X.G. M, sendo que ambos eram vigáriosde São Benedito do Rio Preto local onde foram acusados de praticar os crimes jácitados. 21Ao analisarmos o decreto-lei Nº 898, os artigos e os incisos que os clérigos foram acusados,pode-se observar que são todos crimes contra a Lei de Segurança Nacional, como o artigo 23: “Art. 23.Tentar subverter a ordem ou estrutura político-social vigente no Brasil, com o fim de estabelecer ditadurade classe, de partido político, de grupo ou indivíduo. Pena: reclusão, de 8 a 20 anos.” 22 ; como também o“Art. 25. Praticar atos destinados a provocar guerra revolucionária ou subversiva. Pena: reclusão, de 5 a15 anos. Parágrafo único.Se, em virtude deles, a guerra sobrevém. Pena: prisão perpétua, em grau mínimo, e morte, emgrau máximo. ” 23O último padre, Rogério Dubois, tem em sua ocorrência apenas a questão de seu endereço tersido encontrado com o Pe. D.C.J., igualmente a ficha de cinco dois oito civis. Sobre estes, todos são181920212223ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.p.148.Jornal da Ilha de São Luís- MA. Não há mais nenhuma referência?Caixa avulsos DOPS (APEM), SÉRIE- DOCUMENTOS AVULSOS. Nº do dossiê nº6, Relações nominais defichário do DOPS. Cx. 148-Est. 07-Prat. 03.Caixa avulsos DOPS (APEM), SÉRIE- DOCUMENTOS AVULSOS. Nº do dossiê nº6, Relações nominais defichário do DOPS. Cx. 148-Est. 07-Prat. 03.Decreto-lei Nº 898, De 29 De Setembro De 1969. Define os Crimes Contra a Segurança Nacional, a OrdemPolitica e Social Estabelecem Seu Processo e Julgamento e da Outras Providencias.Decreto-lei Nº 898, De 29 De Setembro De 1969. Define os Crimes Contra a Segurança Nacional, a OrdemPolítica e Social Estabelecem Seu Processo e Julgamento e da Outras Providencias.398


professores e alguns chegam a ter como complemento na ficha o status universitário. Nas fichas doscinco consta o seguinte texto, como também na do padre Rogério Dubois; “ANOTAÇÕES: este nomeconsta na relação de endereções do Pe D.C.J, suspeito de exercer atividades subversivas.” 24 Todosdatam de 1971, e alguns apresentam um complemento, tratando de alguns terem seguido para a (EDAL)Equipe de Docentes para a América Latina.Através da documentação é possível observar de que maneira alguns clérigos demonstram seudescontentamento com o Regime. Do outro lado percebe-se uma única resposta, a repressão. Semprecategorizada pelos aparelhos criados para este fim demonstra a organização que os militares tiverampara criar e pôr em prática a Doutrina de Segurança Nacional.ConclusãoÉ necessário observar como o golpe de 1964 foi sendo projetado. Quais atores políticosdetinham o poder no país? Pela primeira vez poderíamos sonhar com um país menos injusto, em algunsaspectos, ou pelo menos que caminhasse a passos largos neste sentido. Em março de 1964, o Exército,juntamente com foras conservadoras e apoio de alguns setores civis, em nome de uma radicalizaçãofantasiosa, mergulharia o país em dias de plena escuridão. Deixando a democracia de lado, váriossetores da sociedade sofreram com as prisões, torturas e desmandos de um Regime que se baseava naLei de Segurança Nacional, a guerra agora era contra um inimigo que poderia ser qualquer pessoa quetentasse contra os militares. A igreja que apoiara o golpe, em nome principalmente da ordem e da moral,num segundo momento vê a real situação critica do país, mergulhado em um caos social imenso. Aopassar a criticar as condições sociais e politicas, passa a criticar o próprio regime e passa a sofrer com aperseguição, seus clérigos também são atingidos por prisões, perseguições e ate mesmo torturas. Oregime mostrava sua verdadeira face, deixando o país marcado por elevados índices de concentraçãode renda e uma sociedade marcada pelo desrespeito com os direitos comuns ao cidadão num Estadodemocrático.Referências Documentais:Documentação Arquivos DOPS/MA. Documento localizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão(APEM); SÉRIE- DOCUMENTOS AVULSOS. Nº do dossiê nº6, Relações nominais de fichário do DOPS.Cx. 148-Est. 07-Prat. 03.Referências Bibliográficas:ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.BORGES, Nilson. A doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge;DELGADO, Lucilia Neves. (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura-Regime militar emovimentos sociais em fins do século XX. Rio de janeiro: civilização brasileira, 2003.COUTO, Ronaldo Costa. Historia indiscreta da ditadura e da abertura. Rio de Janeiro: Record, 1999.DELGADO, Lucilia Neves. PASSOS, Mauro. Catolicismo: direitos sociais e direitos humanos (1960-1970) In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves. O Brasil Republicano. O tempo da ditadura-Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de janeiro: civilização brasileira, 2003.DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado. Ação politica, poder, e golpe de classe. Rio de janeiro:vozes, 1987.FERREIRA, Jorge. O Governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO,Lucilia Neves (orgs). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociaisem fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.FERREIRA, Jorge. Crises da Republica: 1954, 1955, 1961. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, LuciliaNeves. O Brasil Republicano. O tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpecivil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.FICO, Carlos. Espionagem, polícia politica, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves (orgs). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regimemilitar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.FICO, Carlos. Além do golpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro:24Caixa avulsos DOPS (APEM). SÉRIE- DOCUMENTOS AVULSOS. Nº do dossiê nº6, Relações nominais defichário do DOPS. Cx. 148-Est. 07-Prat. 03.399


Record, 2004.PADRÓS, Enrique Serra. (2007). América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado.Revista Historia e Lutas de Classe, ano 3- edição nº 4. pag.49.REIS, Daniel Aarão. O Colapso do colapso do populismo ou a propósito de uma herança maldita. In:FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: civilização Brasileira,2001.SKIDMORE, Thomas E. Brasil: De Castelo A Tancredo 1964 – 1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.VILLELA, André. Dos anos Dourados de JK à Crise não resolvida (1956-1963). In: GIAMBIAGI, Fábio.Economia Brasileira Contemporânea (1954-2004). Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.400


De Ditadura em Ditadura: o jogo duro das elites dominantes sobre o cidadão comum(1930-1964)Adriana Picheco Rolim 1Resumo: As similaridades e continuidades das ditaduras Vargas e civil-militar de 1964, cujaperseguição, prisão e tortura pelos órgãos de repressão de ambos os governos, ao militante CarlosMarighella, deputado eleito pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro) em 1945 e cassado em 1947 expõealgumas das similaridades do interstício ditatorial do Estado brasileiro; fato analisado nas próximaslinhas juntamente com o esforço de construir a “imagem marginal” de um dos mais importantesrepresentantes dos movimentos populares ao longo do século.Palavras-chave: Carlos Marighella, Revolução de 30, Ditaduras Vargas e civil-militar de 1964.Abstract: The similarities and continuities of dictatorships Vargas and civil-military of 1964, whosepersecution, imprisonment and torture by law enforcement agencies of both Governments, the militantCarlos Marighella, Member elected by the PCB (Brazilian Communist Party) in 1945 and impeached in1947 some of the exposed by similarities of dictatorial Brazilian State interstice; actually parsed in nextlines together with the effort to build the "marginal image" of one of the most important representatives ofpopular movements throughout the century.Keywords: Carlos Marighella, Revolution 30, dictatorships Vargas and civil-military of 1964.IntroduçãoO cenário político, por vezes, apresenta-se como um teatro de marionetes, manipulando por fios,ao gosto do manipulador, toda uma sociedade, seja por um interesse claro em defesa própria ou porobjetivos protecionistas e inerentes ao bem comum, “uma pessoa que se entregou à política, já não sepertence a si própria e tem de obedecer a outras que não as santas leis de sua natureza” (ZWEIG, 1946,pag.27) 2 . O jogo de informações referentes aos diversos movimentos revolucionários sejam os de lutasde classes, de diferenças ideológicas ou da luta armada, movimento contra a ditadura civil-militar de1964, etc., são tão complexos quanto às informações conhecidas sobre seus protagonistas, sempreenvoltos em discussões diversas, oscilando entre o banditismo e o heroísmo. A memória da luta e dadedicação idealista em que muitos sujeitos viveram em determinados períodos de nossa história,devotando suas vidas, seja ao partido comunista ou a causa operária, por acreditar em uma mudançaefetiva no cenário político, pautada por ideais, é que torna justificável a busca do entendimento acercade tais movimentos e seus personagens. Sufocados e/ou impedidos, sejam por interesse estrangeiros,no caso estadunidense como a “caça as bruxas”, o Marcathismo 3 , em relação com o comunismosoviético, ou por maquinações nacionais ligadas a interesses de poder, é que retardou a possibilidade depopularização de ideias socialistas em determinadas épocas e porque não, o seu próprio entendimentocomo ideal.A apresentação deste artigo como tentativa de análise sobre as permanências e rupturas dosideais revolucionárias e seu tratamento por parte das autoridades governantes, nas ditaduras de GetúlioVargas, a partir do golpe de 1930 e na ditadura civil-militar instaurada a partir de 1964, enquanto forçalegitimada no combate aos inimigos do regime, ocultando a luta pelos direitos do homem e de suacidadania. Um olhar sobre estes estados ditatoriais e suas faces pode vislumbrar a trajetória do militanteCarlos Marighella, o dito "inimigo n° 1 da ditadura militar” e “velho conhecido da ditadura Vargas” quelutou e resistiu às prisões e perseguições a que foi submetido e a construção do mito de "marginal"construído pela propaganda de direita para ser combatido. Militante dedicado ao Partido Comunistaesteve praticamente toda a sua vida política (1935-1969) 4 na clandestinidade. Sua participação desde aintentona comunista de 1935 até a ruptura com o PCB e a fundação da ALN (Aliança Libertadora1234Graduanda em História – 6° semestre. Universidade Norte do Paraná- UNOPAR. Modalidade EAD.Maria Stuart, Stefan Zweig, 1946, pág.27Política iniciada em 1951, em decorrência da Guerra Fria, entre EUA e URSS, pelo senador norte-americanoJoseph McCarthy, cujo intuíto era perseguir pessoas favoráveis ao comunismo.Com a ANL de Luis Carlos Prestes, mesmo que não explicitamente, com o PCB em 1936 e a ALN em1968(Edson Teixeira da Silva Júnior em “Carlos, a Face Oculta de Marighella”).401


Nacional) demonstra a sua persistência para lutar contra às injustiças sociais e às políticas cominfluência autoritária e imperialista.Sobre as lutas de classes desde 1930Mesmo as épocas de opressão são dignas de respeito, pois são a obra, não doshomens, mas da humanidade, e portanto da natureza criadora, que pode ser dura, masnunca é absurda. Se a época que vivemos é dura, temos o dever de amá-la ainda mais,de penetrá-la com nosso amor, até que tenhamos afastado as enormes montanhas quedissimulam a luz que há para além delas. (PAUWELS E BERGIER, 1946 pag.8). 5O golpe de 1930, ou “Revolução de 1930”, atribuído em parte pela historiografia, apoiou-se nasagitações do tumultuado final dos anos 20, com greves em muitos setores da indústria e serviços, frutodo descontentamento dos trabalhadores e da agitação de velhos anarquistas 6 , de novos comunistas edas condições sócio-históricas, impulsionando a busca por seus direitos embasados nas massaspopulares. A Lei Celerada 7 , lei dos “combates ideológicos”, que proibiu reuniões, censurou a imprensa ecalou a voz da oposição, além de colocar o PCB (Partido Comunista Brasileiro) na ilegalidade.Longa e controversa é a trajetória da luta de classes no Brasil, questões sociais são complexas etendem a não serem levadas a sério por diversos governos. Delimitar os anseios das classestrabalhadoras diante do patronato, que ora reivindica melhorias, ora os apoia é um tanto curiosa.Interessante esta dualidade dentro do movimento operário que por diversas vezes esteve perto dearticular-se como classe e não o fez, entre outros, pela aparente falta de compreensão intelectual e/ou aausência de próprias lideranças e ainda pela inabilidade às massas e seus interesses.A velha questão de patrões em busca de mão de obra barata, tendo em vista o lucro e dostrabalhadores em busca de melhores condições de vida e trabalho, atravessou gerações desde oadvento do capitalismo nascido sob a bandeira da revolução industrial. Vozes não foram ouvidas alémdos muros das fábricas, nem como uma forma de sobrevivência social e intelectual, nem onde acidadania se efetiva através da reivindicação da condição humana, da condição como trabalhador, queparticipa do contexto de produção, apoderando-se assim do seu próprio trabalho e vivenciando suaprópria estrutura. Sem a articulação das massas e suas lideranças, o movimento operário não poderiatranscender às suas ideias nem ganhar as ruas com a força necessária. Sua existência sempre foi deluta e enfrentamento às várias políticas e policias que não compreendiam a complexidade do movimento,como sendo de cunho não apenas político, mas também social. Confundido muitas vezes comodesordem, foi tratado como tal, como caso de polícia, que culminou em repressões e uso de forçasabusivas, por parte de governos apavorados com o “terror vermelho”.“Terra, pão e liberdade”..., com este lema a Aliança Nacional Libertadora 8 lançou sua políticaproletária para dominar a cena política do país. Apoiada por militares, uma classe burguesa com ideiasde esquerda, porém sem o total apoio e organização do campesinato e do operariado, lançaram-se noque culminou na Intentona Comunista de 1935, contra o Partido Integralista 9 , de aspirações fascistas elema moralista, “Deus, pátria e família”.Carlos Marighella assistiu a este episódio e a outros que viriam depois. Comunista convictopassou por duas ditaduras, com prisões, que o perseguiram furiosamente, até acabar assassinado pelodelegado do DEOPS, Sérgio Fernando Paranhos Fleury, após as prisões dos freis dominicanos 10 , numaemboscada covarde, cujo intuito não era fazer de Marighella prisioneiro. “Na noite de terça-feira dasemana passada, surpreendido numa armadilha, cercado por quase quarenta policiais, Marighella nãose rendeu. E foi aniquilado...” (VEJA, 1969, pg.22) 11 . Pode-se notar claramente, que a intenção não erade capturar Marighella, e sim matar o mito da guerrilha urbana, cujo objetivo era produzir oenfraquecimento dos grupos de esquerda, no intuito de desarticular os mesmos.O perseguido da Era Vargas (1930-1945) e “inimigo n° 1” da ditadura civil-militar (1964-1985)parece ser uma imagem construída no interesse em combater os inimigos do regime e os grupos deesquerda, por parte da elite militar no poder, que transformaram a vida e a militância de Carlos567891011“O Despertar dos Mágicos: Introdução ao realismo Fantástico”, Louis Pauwels e Jacques Bergier,1947, pag.8.As ideias anarquistas vieram na bagagem de muitos imigrantes europeus no início do século XX, mormente ositalianos.Lei criada em 1927, no governo de Washington Luís, a fim de reprimir movimentos do bloco operário, suprimindoos direitos de organização de classe ou representação social, tornado possível à repressão aos movimentossociais e reivindicatórios, como exemplo o movimento da baixa oficialidade conhecido por “tenentismo”.ANL, partido criado no Rio de Janeiro em 1935, tendo Luís Carlos Prestes como presidente honorário.Ação Integralista Brasileira, partido de tendência fascista fundado em abril de 1933.Para as prisões dos freis Fernando de Brito, Yves do Amaral Lebauspin, entre outros, ver Jacob Gorender em“Combate nas trevas”, pag. 172 e 174.Revista Veja, Acervo Digital, reportagem de capa, 12 de novembro de 1969, pag. 22 a 31. Disponível em:http.://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx402


Marighella em uma “vida bandida”. Um olhar mais atento sobre a vida do personagem, despido daspossíveis bases de preconceito, intolerância e rancor, possibilitam vislumbrar um líder, que poderia terseguido uma militância pacífica. Fez a opção pela luta armada, diante das condições históricas impostaspelo Estado e pela sociedade; refletindo, também, ao que parece ser mais uma particularidade de suapersonalidade ou a falta de uma perspectiva conciliatória, que a clandestinidade lhe deu de presente.Para o povo, trabalhador descontente ou para aqueles que vislumbravam uma sociedade maisigualitária, a imagem de Marighella poderia transformá-lo em um mito popular e consequentemente,despertar interesses maiores sobre suas reivindicações e, talvez, popularizá-lo. O resgate dosdepoimentos de pessoas próximas a Marighella, companheiros de militância e familiares, pode-secompreender o homem comum com suas atitudes e convicções. De sua infância e adolescência, naBahia, ao seu despertar para os problemas sociais, vivenciados no bairro em que cresceu, sejaauxiliando vizinhos com problemas do dia a dia ou crianças com problemas de aprendizado até a suapopularidade entre os presos na organização do dia a dia do “Coletivo” 12 nas prisões de Fernando deNoronha e da Ilha Grande. Disciplinado e extremamente engajado em seus ideais na luta por um Brasilmelhor, era visto por seus companheiros como o "melhor comunista" 13 . A trajetória deste homem que sefizera militante comunista em 1934, simpático a ANL de Luís Carlos Prestes, no levante de 1935, aruptura com o PCB em 1968, a fundação da ALN até a sua morte em 1969, abre a possibilidade de sevislumbrar um Mariguella forjado pela convicção de lutar.O PCBNo decorrer da história do homem, desde a servidão passando pela escravidão até a RevoluçãoIndustrial, pouca coisa mudou para o trabalhador, acrescentaram-se alguns trocados a menos aqui ealgumas horas a mais acolá, porém as mentalidades acerca das relações trabalhistas permanecem.Restou revolta e protestos, mal traduzidos, nas lutas que se seguiram durante anos, ou através deles,perdidos ou mal representados.,O PCB 14 foi fundado no Brasil no ano de 1922, após o triunfo da revolução proletária na URSS 15 ,e como partido novo, com intenções voltadas às classes trabalhadoras e camponesas, aspirando formaruma organização operária politicamente unida, objetivando ter a adesão total das massas para chegarao poder, desestruturando o velho sistema, para horror da sociedade burguesa, efetivando assim, arevolução do proletariado.O fantasma do comunismo não tinha o aspecto sinistro e capiroto que a grandeimprensa e o governo pintavam. O PCB era uma organização incipiente, que tentavaassumir o controle do movimento operário, ainda sob a combalida liderança dosanarcossindicalistas. (MEIRELLES, 2005 pag. 75) 16 .Não constitui tarefa demasiadamente pesada compreender o assombro causado a umasociedade, pautada por modelos moralistas, católicos, em regra baseada em uma cultura europeia,ligada ao capital estrangeiro, diante das ideias “novas” que propuseram divisão de bens e dos lucros deforma igualitária; capaz de garantir diferentes empoderamentos, mormente com o ganho de espaçosocial e adeptos.O Partido Comunista Brasileiro, de legalidade curta, formou-se na ilegalidade, com suas açõessendo vigiadas e reprimidas pelos órgãos de segurança. O movimento não efetivou lutas operárias comapoio total das massas, devido a vários fatores, um deles, de grande relevância, foi o fato da classeoperária não ter plena consciência e instrução suficiente para marcar a sua própria identidade, muitasvezes não compreendendo o que significava ser “comunista” ou o que o movimento significava e até suaprópria inserção nele. Em meados da década de 1930 esta causa foi encabeçada por liderançasoperárias, trazendo em suas vozes, os clamores da insatisfação dos trabalhadores. Formaram-selideranças dentro do meio operário, que logo foram absorvidas por intelectuais simpáticos ao movimento.No Rio, os sindicatos mais bem estruturados continuavam sob controle anarquista, masera visível o crescimento e a popularidade dos comunistas. Além de se espelharemnuma experiência bem-sucedida, a Revolução Russa de 1917, ainda contavam com oapoio psicológico e material de uma nação empenhada em exportar para outros paísesseu vitorioso modelo político. (MEIRELLES, 2005 pg. 75) 17 .121314151617Organização implantada nas prisões de Fernando de Noronha e Ilha Grande, de um conjunto de regras e tarefaspara a convivência e militância dos presos políticos.Como disse Noé Gertel em depoimento a Edson Teixeira da Silva no livro “Carlos, a face oculta de Marighella”,2009, pag. 384.Partido Comunista Brasileiro.Bloco de países comunistas da antiga União Soviética.“1930: Os Órfãos da Revolução”, Domingos Meirelles, 29005, pag. 75.“1930: Os Órfãos da Revolução”, Domingos Meirelles, 2005, pag.75403


O quadro da vitória proletária na Revolução Russa 18 trouxe a visão de que a revolução socialistapoderia trazer novos ventos ao cenário político-social, muitos estrangeiros, imigrantes europeus,trabalhadores com mais qualificação e engajamento político que os trabalhadores brasileiros,desembarcaram no Brasil, como mão de obra para as fábricas, e trouxeram na bagagem ideáriosrevolucionários. Estes voltados para reformas de base, agrária e social. Há revoluções em nome dopovo, para o povo e pelo povo, quando deveria ser com o povo ou de total apoio do povo, isto podeconfundir a identidade dos movimentos sociais. O partido comunista recebia recursos externos, a nívelmonetário e intelectual; em teoria o PCB seria o braço do partido soviético no Brasil, com um modelo deliderança proletária, que inspirava ser capaz de efetivar a causa operária brasileira. Foram precisosalguns anos entre legalidades breves e clandestinidade longeva, em desafio às coragens, valores econceitos das principais lideranças, para que se questionassem o real valor deste modelo soviético parao Brasil. Superar estes interesses para passar a outras mãos significaria não efetivar assim, umaadaptação do pensamento marxista, para transformá-lo em poder político, voltado aos problemas einteresses da sociedade brasileira? Será que seríamos subjugados a outro país cuja situação estariadistante do contexto da sociedade do período supracitado? Sem uma adaptação clara, por parte do PCB,da doutrina marxista, para uma solução brasileira em termos de conscientização operária, instrução eorganização social e política, o PCB continuaria um partido distante, sem a adesão das massas,possivelmente atendendo a ideais soviéticos, sem uma nacionalidade brasileira, ou legitimação nacional.Com a chamada “Guerra Fria” (1946/1989), a causa proletária soviética e o imperialismoestadunidense entraram em conflito, na tentativa de se firmarem como potências, hostilidade esta que seinicia com o fim da 2° Grande Guerra, em busca de favorecimento dos interesses de cada um. Do PCBe a sua estruturação e sustentação, podemos dizer que seus membros contribuíam monetariamente como partido, em complementação ao que era enviado pela URSS 19 . Os membros do partido viajavam paraChina, Cuba ou URSS, entre outros lugares, para treinamento, aperfeiçoamento e para partilharem suasexperiências de militância, em intercâmbio cultural-ideológico.Sobre 1964Há muitos debates envolvendo este período controverso, debates estes que são parte pertinentepara a tentativa de reconstrução dos fatos e acontecimentos. Após o golpe civil-militar de 1964, com aperseguição aos inimigos do regime, estudantes politicamente engajados, lideranças operárias epartidárias, simpatizantes da causa, que militavam contra o regime, entendiam que mudanças eramnecessárias dentro do seio da sociedade. Imbuído de práticas, engajamento e idealismo, muito em vogaà época, e de certa impetuosidade, própria àqueles tempos, panfletaram e picharam. Foram presos,foram expulsos de universidades e diretórios acadêmicos, foram despedidos, cassados e empurradospara a clandestinidade; acabaram “tragados”, “consumidos”, até desaparecerem da cena social.No grande turbilhão das ebulições culturais à época, com mudanças de caráter cultural e decostumes no mundo a fora, a procura por quebrar ou subverter regras vigentes era de todo sedutora. Naluta por mudanças sociais e melhor distribuição da riqueza e em nome da construção de um país melhor,acabaram por aderirem ao socialismo, pelo operariado e sob lideranças mais experientes nosmovimentos de esquerda, aderiram à luta armada pela revolução, após o golpe de 1964.Operariado e campesinato não eram, em sua totalidade, efetivamente de esquerda oucomunista, clamavam por melhores condições de vida, trabalho e renda, o que vinha de encontro com adoutrina comunista e de seus disseminadores, com melhor distribuição da riqueza produzida e, quiçá,com base na doutrina marxista, o povo no poder.Revoluções para tomada de poder há muito são conhecidas, as de 1930 com a tomada de poderpor Getúlio Vargas e sua política populista, e a de 1964 com uma junta militar, amparada por parte dasociedade brasileira ante ao pavor do comunismo, uma epidemia, propaganda desencadeada pelapolítica estadunidense, são exemplos. Com o apoio de governos e capital estrangeiros, que brigavampor território longe de suas fronteiras, o governo brasileiro esqueceu-se das liberdades e, aparentementede seus próprios direitos, de soberania e autonomia, lançando mão da força em demasia, lutando contrauma condição que na verdade deveriam defender, em nome da cidadania.Sendo 1935, uma revolta de cunho comunista e contingente militar tenentista 20 , para aimplantação de ideias socialistas em solo brasileiro, os golpes de 1930 e de 1964 tem em comum o fatode serem revoluções em nome dos rumos políticos do país, envolvendo militares e a ameaça do181920Revolução socialista em 1917, com a participação das massas operárias, camponesas e lideranças queimplantou o sistema comunista na Rússia do czar.Para o envio de dinheiro soviético, “Marighella: O Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo”, Mário Magalhães, pag.270 e 271.Sobre o Brasil ser o país latino-americano de maior contingente comunista nos quartéis, “Marighella: OGuerrilheiro Que Incendiou o Mundo”, Mário Magalhães, pag. 81.404


comunismo. Desde antes de 1930 tanto socialistas, anarquistas e comunistas, não se apaziguaram emuma união, ou criaram uma frente forte, nem mesmo com o BOC 21 , em que o operariado e ocampesinato, fossem a voz como movimento, totalizando seus ideais numa melhor estruturação dasociedade como um todo. A esquerda e seus componentes foram presos, nestes contextos, empurradospara a ilegalidade, para a marginalidade, ludibriando o direito de existir.As elites sempre viram o tempo como antídoto para certos males. Com o passar dosanos, riquezas de má origem eram contempladas com a graça da purificação. Todossabiam que a impunidade e o esquecimento transformava dinheiro sujo em dinheirobom" ( MEIRELLES,2005, pag. 139) 22 .A perda de memória de uma sociedade é tão antiga quanto sua história. Ela absolve governos,apaga testemunhos e enaltece interesses no instante vivido. Quanto mais passa o tempo, menos seguardam na memória os vícios de maus governos que representaram interesses de uma minoria e nadaofereceram para a maioria. Oposição de outrora, situação de hoje e vice-versa. Muda-se de ideal tãorápido, que os fatos ocorridos e os males produzidos à sociedade, tornam-se controversos. Nos idos de1964, a luta da esquerda parecia algo muito isolado, tão isolado quanto suas vidas nos aparelhos. Foitão combatida e perseguida como "luta bandida" que não obteve tempo de crescer, amadurecer eefetivar-se na luta pelo socialismo, naquele momento. Parece difícil divulgar ideias às escondidas, apropaganda acaba por circular em seu próprio meio, criar seus críticos entre vizinhos, não expandindoideais além das fronteiras dos aparelhos.As propagandas governamentais entravam nos lares da classe média pelos televisores eperiódicos, alcançando uns cem números de pessoas, estavam diretamente em seus lares. Ninguémqueria ser sequestrado, nem morto, nem roubado por um grupo de jovens liderados por “comunistasfanáticos”, neste domínio de propaganda, também experimentado por Vargas com o DIP 23 , podia-sedeterminar o que divulgar, alterar datas e lugares, nomes e profissões, e pior, pensamentos e opiniões,afim de doutrinar.A “propaganda militar” de 64, que talvez prevaleça ainda nos dias atuais, propõe que a lutaarmada era composta de jovens estudantes de classe média-alta, “mimados”, que não tinham o quefazer somente abalar a ordem e estabelecer a anarquia no país. Esta propaganda omitiu o fato de estesjovens assumiram uma luta política em nome do povo, seguindo lideranças que há muito faziam partedeste contexto, e que em decorrência de uma vida quase sempre ilegal, pressupunham uma situaçãoque lhes dava a condição de se mobilizar em tempos difíceis.Carlos Marighella, comunistaAs elites, que governaram o nosso país nos golpes 1930 e 1964, voltaram-se sempre para o tãoperseguido Partido Comunista e seus quadros, que mesmo acostumados na ilegalidade e confinados emvelhos jargões encabeçados por propagandas por parte de governos, lutavam com unhas e dentes paraimplantar sua política e inserir-se no contexto político vigente. A sociedade civil, que agregou o pavor aocomunismo, ao medo de perder suas posições, apoiou regimes de exceções ou ditadores, quedefendiam a moral e os bons costumes, disfarçando interesse caudilhos, evitando por muitos meiosludibriar a articulação política de vários segmentos desta mesma sociedade.Carlos Marighella, líder revolucionário, comunista e controverso, não era um operário, seu paisim, mais tarde montou uma oficina mecânica, “dono de seu ofício”, trabalhava em casa, sua mãe eradona de casa, “trabalhadora do lar”, e dos filhos, Carlos foi o que mergulhou nos livros do conhecimento,transcendeu a visão da classe operária e tornou-se um intelectual comunista.Se buscarmos entender a complexa trajetória do homem “comum” em seu tempo e no espaço,senhor de sua época, não podemos, neste caso, dispensar a participação efetiva dos militantes do PCB,a articulação e dedicação por parte de seus integrantes, filiados ou simpatizantes, que na sua maioria“vestiram a camisa” da doutrina comunista, incorporando às suas vidas a disciplina dos conceitos,engajados e organizados até no seio familiar, sendo que havia famílias inteiras, comunistas. O fato delançar-se em lideranças políticas, para a propagação de sua diretriz, não deixa de significar quealmejavam transpor os muros da doutrina, e fazer parte da vida pública.Em seu tempo, Marighella dedicou sua vida ao PCB, na convicção de, e tinha muita, construirum país mais justo, acreditou firme neste propósito. Queria justiça e divisão de riquezas, queria estudo edignidade ao povo. Como deputado estadual em 1946 propôs mudanças que para a época eramrevolucionárias. Propôs “livre exercício dos cultos religiosos”, criticou o artigo da constituição onde o212223Bloco Operário camponês.“1930: Os Órfãos da Revolução”, Domingos Meirelles, pag.39.Departamento de Imprensa e Propaganda, criado em 1939, órgão público servia para a fabricação da imagemde Getúlio Vargas e de órgão censurador de manifestações contrárias a ele.405


matrimônio contava “vínculo indissolúvel”, lamentou a falta de mulheres na constituinte 24 , entre outros, eclaro, não foi ouvido. Anseios tão recorrentes naqueles períodos, de 1930 e 1964, onde o socialismo eraevidente, como triunfo sobre as mazelas do povo, ou do trabalhador. Passou pelas prisões do EstadoNovo, sofreu torturas, que provavelmente o moldaram em suas convicções, foi perseguido pela ditaduracivil-militar de 1964, sem nunca perder a força de lutar, levou isto ao pé da letra, optou pela luta armadae morreu com este ideário.A trajetória deste personagem, que começou sua vida partidária cedo, foi preso, resistiu aosseus inquisidores, viveu, quase sempre, uma rotina clandestina, rompeu com o partido comunista pordivergir com o engessamento do mesmo, é que nos dá compreensão dos fatos históricos, tão obscuropara a maioria ainda perambulando por estereótipos projetados, no intuito de resguardar interessespessoais e frear a evolução natural de acontecimentos, para a construção e vivência da democracia pelopovo brasileiro. A ruptura com o PCB deu-se no entendimento de Marighella, quando o partido assumiuuma posição conservadora, de não aderir à luta armada, ao qual Mariguella acreditava ser o caminho.Figura respeitada, por sua dedicação ao partido, é que neste “racha”, agruparam-se junto a ele, velhoscomunistas, na procura de uma forma efetiva e real de inverter o quadro político.Seu engajamento na militância política anterior a sua entrada no partido, fruto da vontade demudar o contexto social e inerente ao ser humano é que coloca sua fé em um ideal. Na prisão, CarlosMarighella já mostrara sua liderança, organizou o Coletivo, um conjunto de regras com o intuito deorganizar o dia a dia dos presos, sem perder suas convicções ou se distanciar do ideai revolucionário. Amilitância não o tornou um cego, ele vislumbrou, antes, a necessidade do PCB se preocupar mais com aconjuntura política e problemas de ordem social brasileiros, quando sugeriu que o partido mudasse onome de Partido Comunista Brasileiro para Partido Comunista do Brasil 25 , distanciando-se do modelosoviético, em uma aproximação maior com a realidade do povo brasileiro. Previu também o golpe de1964, e temia que o partido não estivesse preparado, estava certo (SILVA JÚNIOR, 2009, pag. 114).Antevera o suicídio de Vargas, onde novamente, o PCB não percebeu a realidade da situação (SILVAJÚNIOR, 2009, pag.95), acreditando que seu sucessor pudesse dar carta branca a existência e militânciado Partido Comunista.A partir da morte de Stálin e da divulgação de seus crimes, que abalaram profundamenteMarighella e os membros do PCB, ocorreu uma busca de identidades, como o “partidão” não acreditavaem pegar nas armas para derrubar o governo militar, Marighella, defendia ser esta a única saída, foiexpulso do partido por suas divergências, criando uma dissidência, o Agrupamento Comunista,mostrando que seus ideais não mudaram e sim suas ações, levando junto outros simpatizantes, eposteriormente este agrupamento tornou-se a ALN (Aliança Libertadora Nacional), em alusão com a ANLde 1935, que definitivamente fizeram a opção pelas armas e por “ações terroristas”. Marighella foi umherói para a esquerda e o inimigo forte para a ditadura civil-militar de 1964. Sua morte em 1969, comalgumas versões que ainda se discute quando surgem novos debates, é unânime, foi covarde e mostra oquanto os órgãos de repressão temiam o homem, o possível mito que poderia vir a se tornar. Não tevetempo de se defender, foi assassinado pela polícia, numa emboscada atrapalhada, que deveria protegerseus direitos como preso, quebrando o frágil o elo que separa o ato legal do ilegal.Considerações FinaisNos dois processos históricos, de 1930 e 1964, pode-se notar a continuidade de manter umregime pela força, ao qual a democracia não se faz plena. Ignorando-se o clamor popular e vestindovelhos costumes com a roupagem necessária a se manter a ordem vigente, ao qual somente poucos seprivilegiam das leis em vigor. O passar dos anos, que produzem distanciamento dos episódios, nãogarantem a possibilidade de compreensão dos fatos e da herança legada por estas duas ditaduras- avarguista e a civil-militar de 1964- que se instauraram como ordem suprema, consumindo ou“desaparecendo” com os direitos do cidadão. Getúlio Vargas, no intuito de quebrar a política do “cafécom leite”, cuja base assentava-se nas alianças capitaneadas por Minas Gerais e São Paulo, privoudiversos grupos de suas manifestações de cidadania, utilizou-se da supressão de direitos, da tortura,impondo uma ditadura disfarçada. Em 1964, após o golpe militar, na equivocada tentativa de se mantera ordem na sociedade, repete-se o episódio de abuso de autoridade sobre o cidadão comum e seudireito de ser contra a imposição de outra ditadura, com perseguições e assassinatos legalizados peloEstado. Foi o que ocorreu em 1930 e em 1964: legaram à morte de diversos cidadãos, graças a umapropaganda governamental, que buscou marginalizar parte da sociedade. Atualmente ainda se colhemos frutos; com uma cultura coxa, humilhada em termos de nacionalidade e que cultiva o péssimo hábitode esquecer seus algozes.2425“Marighella: O Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo”, Mário Magalhães, pag.173 e 174.O PCB adotava uma linha mais vinculada a doutrina soviética. Somente após a morte de Stálin é que algunsmovimentos de esquerda adotaram a linha maoista e cubana.406


Buscamos consolidar nossa democracia, sendo preciso, ainda, muita coragem para encararnosso passado e nos reconciliarmos com ele. Para tal devemos ressuscitar os mortos, sem que estesofendam os vivos. Sendo um dever encararmos nossa história para a construção do futuro. Oesclarecimento de fatos e a desmistificação de mocinhos e bandidos como necessidade de consolidaçãoexpositiva daqueles tempos tão obscuros darão- assim acreditamos- a luz ao palco dos verdadeirosheróis; que florescem através dos debates, sobre “mitos e homens comuns”. Por ser através do diálogofundamentado, despido de “pré-conceitos”, a construção possível de determinadas trajetórias, ou de todauma geração que de alguma forma, seja na derrota ou na forma vitoriosa de resistência, interferiu nosfatos e concretizou suas lutas e reivindicações, que aos quartéis, delegacias e ramificações 26 ,representavam a fuga à ordem e justiça, capitaneadas pelos representantes do Estado de plantão.Fontes Pesquisadas:ESTRATÉGIA PARA O TERROR, Revista Veja/Acervo Digital, São Paulo, 12 de novembro de 1969, vol.Semanal, n°62, pag.22 a 31. Disponível em: http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Revisãobibliográfica: acesso em 07/08/2012.MORTO O CHEFE DA GUERRILHA MARIGUELA, Folha de São Paulo/ Acervo Folha, São Paulo, 05 denovembro de 1969, Primeiro Caderno, pag1. Disponível em: http://acervo.folha.com.br/fsp/1969/11/05/2/EXPOSIÇÃO DE ACERVO DO GUERILHEIRO REVOLUCIONÁRIO CARLOS MARIGHELLA, Memorialda Resistência, São Paulo, visita em 08/03/2010.Referencias Bibliográficas:ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. 12° reimpressão. Rio de Janeiro: Editora Graal,2012.ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges. História da Vida Privada: Vol. 5.2° edição. São Paulo: EditoraCompanhia das Letras, o, 1987.ARNS, Dom Paulo Evaristo. Prefácio Projeto Brasil Nunca Mais- Um relato para a História. 11° edição.Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1985.BUENO, Eduardo. Brasil: Uma História, Cinco séculos de um país em construção. São Paulo: editoraLeya, 2010.DOSSIÊ DITADURA, Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985). Comissão de Familiaresde Mortos e Desaparecidos Políticos. 2°. edição São Paulo, IEVE- imprensa oficial, 2009.GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.MAGALHÃES, Mário. Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo. 1° edição. São Paulo: EditoraCompanhia das Letras, 2012.MEIRELLES, Domingos. 1930- Os órfãos da revolução. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005.MIRANDA, Nilmário e Tibúrcio, Carlos. Dos Filhos Deste Solo: Mortos e desaparecidos políticos durantea ditadura militar: a responsabilidade do Estado. 2° edição. São Paulo: Editora Fundação PerseuAbramo, 2008.SILVA Junior, Edson Teixeira da. Carlos, A Face Oculta de Marighella.1° edição.São Paulo: EditoraExpressão Popular, 2009.PAUWELS, Louis e BERGIER, Jacques. O Despertar dos Mágicos- Introdução ao realismo fantástico.São Paulo: Editora Difusão Européia do Livro, 1969.ZWEIG, Stefan. Maria Stuart. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1946.26Dos órgãos de segurança nacionais, casa de detenção, quartéis, delegacias, sítios usados pela repressão.“Brasil Nunca Mais”, Don Paulo Evaristo Arns,1985.407


408


XI – Políticas de memória e Justiça de Transição409


410


Direito de memória e perpetração da violência: o papel da identificação e ressignificaçãodos espaços de tortura e resistência na justiça de transiçãoChristine Rondon Teixeira 1Resumo: As identificações públicas das estruturas da repressão onde houve violação de DireitosHumanos são estratégicas para a realização do direito à memória, que integra um dos quatro eixoscentrais da Justiça de Transição. A investigação dos limites e perspectivas de tais identificações mostraque a ressignificação destes espaços – que são de memória por excelência – pode criar condições parao desenvolvimento de uma consciência coletiva que auxilie nos avanços necessários em prol dademocracia. No bojo desta transformação, situa-se a ciência de que as violências e os autoritarismosinstitucionais estão fortemente vinculados ao restolho ditatorial que a desmemória e a impunidadeajudam a perpetrar.Palavras-chave: ditadura – democracia – memória – violência – espaço público.IntroduçãoA falta ou a perda da memória coletiva nos povos e nações pode gerar perturbações graves daidentidade coletiva 2 e determinar os rumos de toda uma sociedade. Por isso a memória passou a ser uminteresse de classe e um objeto de disputa. Com as memórias da ditadura civil-militar brasileira ocorre omesmo: de um lado, existem ainda hoje forças interessadas na manutenção da impunidade e naadministração vantajosa do entulho ditatorial; de outro, forças comprometidas com a realização dademocracia e com a Justiça de Transição.Quanto mais nos afastamos temporalmente dos fatos históricos que compuseram o quadrobrasileiro de 64 a 85, mais turva fica a memória coletiva da repressão e mais difícil parece sercorrelacionar os problemas de nossa democracia incompleta com a ausência de uma efetiva justiçatransicional. A questão da violência institucional, por exemplo, jamais é abordada de forma relacionadacom as heranças ditatoriais, com nossa cultura política militarizada e com as posturas autoritárias dedesrespeito aos Direitos Humanos.A referida Justiça de Transição é compreendida pela ONU como o conjunto de abordagens,mecanismos e estratégias, jurídicas e não jurídicas, destinadas a enfrentar o legado de violência dosregimes autoritários 3 . Para tanto, centrada principalmente nos elementos da memória e da verdade, elase alicerça em quatro pilares: a reparação das vítimas; a responsabilização dos agentes públicos quecometeram crimes de lesa-humanidade; a reforma das instituições que colaboraram com as violações dedireitos no regime e a garantia do direito à memória e à verdade 4 .As identificações e publicizações dos espaços onde houve tortura e resistência são estratégicospara a realização do direito à memória e, portanto, para a efetivação da justiça transicional. Asexperiências levadas a cabo especialmente por setores da sociedade organizados na pauta da memória,verdade e justiça 5 dão conta de que o georreferenciamento possui o condão de despertar a curiosidade ea consciência das pessoas para a concretude do nosso passado autoritário e de seus efeitos presentes.A possibilidade de ressignificação destes espaços, que outrora representavam estruturas da repressão,criam ambientes propícios à apropriação crítica do lugar e da história.O exercício da memória auxilia na luta pela superação das violências que atravessaram o marcodemocrático e reforça o compromisso do Estado e da sociedade com os valores da democracia. Aconstrução de memoriais em locais que serviram à repressão para violação de Direitos Humanosultrapassa a conhecida dimensão museológica comumente centrada na ideia de simples coleções. Estes12345Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS – Coordenadora do Comitê Carlos de Ré – da Verdadee da Justiça / RS - Assessora Jurídica Popular na ONG Acesso- Cidadania e Direitos Humanos. E-mail:chrisrondon@yahoo.com.brGOFF, Jacques Le. História e Memória. 5ed. São Paulo: Unicamp, 2003. p. 421.Conforme documento “UN Security Council- The rule of law and transitional justice in conflict and postconflictsocieties. Report Secretary-General”, produzido pelo Conselho de Segurança da ONU - S/2004/616.ANNAN, Kofi. O Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-conflito.O Comite Carlos de Ré, a exemplo de outros comitês distribuídos por todo o país, que se organizam em redenacional, promove a identificação pública sistemática de aparelhos utilizados pela repressão na época daditadura civil-militar brasileira na cidade de Porto Alegre.411


espaços, que já são de memória por excelência, cumprem importante papel na revelação de processossociais e, por consequência, na construção da nossa memória coletiva e de nossa cultura política.Não é por acaso que o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH3) definiu aidentificação e a publicização das estruturas utilizadas para a prática de violações de Direitos Humanoscomo objetivo estratégico para a realização do direito à memória. Se de um lado é sabido que nãoapenas o presente resulta do passado, mas também o passado depende parcialmente do presente, namedida em que é apreendido no presente e responde a seus interesses 6 ; de outro, há que se concluirpela indispensabilidade de uma disputa pela narrativa histórica para que possamos, de forma consciente,superar o restolho ditatorial incrustado em nossa cultura política e instituições frouxamente democráticas.As identificações públicas e os processos de ressignificação, longe de esgotarem estes objetivospróprios de qualquer transição democrática, constituem uma política de memória importante para aconstrução de uma memória e de uma identidade coletivas. A ausência de uma transição efetiva,alicerçada na memória e na verdade, traz prejuízos que extrapolam o recorte temporal do regime civilmilitarbrasileiro e geram novas formas de opressão, que são percebidas com maiores contrastes noscentros urbanosDireito à memória e crimes do estadoMuitos dos esforços engendrados no sentido de efetivar a Justiça de Transição vêm sendotachados de revanchistas. Inobstante às graves violações de direitos humanos cometidas na época – eseus efeitos ainda presentes na memória das vítimas e no cotidiano do povo brasileiro – o que maischama a atenção é a repercussão negativa que o levantamento destes fatos vem tendo junto à opiniãopública, o que já demonstra a necessidade de ampliação dos debates referentes à justiça transicional eao direito à memória e à verdade.Não foram poucos os que acusaram estudiosos e militantes que atuam em defesa daconsolidação de nossa democracia de passadistas. Neste ponto, é mais do que oportuna a respostaoferecida por Maria Rita Kehel, que atualmente integra a Comissão Nacional da Verdade:O Brasil é passadista sim. Não por culpa dos poucos que ainda lutam para terminar devez com as mazelas herdadas de 21 anos de ditadura militar. É passadista porque temeromper com o passado. A complacência e o descaso com a política nos impedem deseguir em frente. Em frente. Livres das irregularidades, dos abusos e da conivênciasilenciosa com a parcela ilegal e criminosa que ainda toleramos, dentro de nosso Estadofrouxamente democratizado 7 .Para além da passividade do povo, chama a atenção a quantidade de pessoas que vêm sededicando a combater o chamado discurso “revanchista”. Esta é mais uma forma de expressão da nossademocratização incompleta. Tal postura pode ser atribuída à baixa, ou quase nula, quantidade deinformações concretas da época ditatorial disponível à população. Além disso, a criação de esteriótiposdo novo inimigo social, as constantes tentativas de vincular nossos medos e insatisfações a causasrasas e imediatistas, aliada à banalização da violência, sempre apresentada de forma desvinculada dasinstituições oficiais do Estado, aumentam a imagem de um completo isolamento histórico do passadoautoritário do nosso país com os problemas do nosso cotidiano.Esta anestesia, reforçada por uma Lei de Anistia pactuada entre as elites vinculadas ao regime,mas que imprime uma falsa aparência de acordo bilateral e de superação, amortece todas as criticassobre o restolho ditatorial ainda presente em nossa realidade. Os valores e práticas que alicerçaram aditadura civil-militar brasileira estão assustadoramente presentes nas estruturas oficiais do Estado,incluindo o Poder Judiciário, que mantém muitos dos privilégios impostos naquele tempo, e na açãopolicial, truculenta e impregnada de práticas antidemocráticas.Isso sem mencionar a perseguição de movimentos sociais erigida na lógica da extermínio dospensamentos, ideologias e projetos que destoam da lógica dominante. Da mesma forma estudantes queprotestaram na USP em 2010 foram expulsos da universidade com base em um decreto da época daDitadura 8 , dirigentes do MST são comumente acusados (e condenados) por supostas operações que678GOFF, Jacques Le. História e Memória. 5ed. São paulo: Unicamp, 2003. p. 51KEHL, Maria Rita. Tortura, por que não? O Estado de São Paulo. Em 31 de maio de 2010.Em 2010, seis estudantes da USP que protestaram contra a falta de vagas na moradia estudantil e, conformedeliberação em assembleia, revezaram a ocupação de uma sala usada para fins administrativos, foram expulsosda Universidade com base em um decreto de 1972, criada, portando, à época da ditadura civil-militar brasileira,mas ainda vigente no Regimento Geral da USP. O despacho administrativo publicado no Diário Oficial da Uniãopode ser conferido no seguinte link: http://uspemgreve.blogspot.com.br/2011/12/rodas-expulsa-6-estudantes-dausp.html412


integram um plano maior de dominação 9 . São criados os novos perigos a combater. A ação policialviolenta também costuma escolher seus alvos, vitimando especialmente os grupos sociais que carregamo esteriótipo do “inimigo social” reforçado pela grande mídia e pelos grupos que lhe dão sustenção.Conforme o professor José Carlos Moreira da Silva Filho, a atuação violenta das forças desegurança pública hoje está relacionada à ausência de políticas de memória e de responsabilização dosagentes públicos que cometeram crimes de violação de Direitos Humanos durante a ditadura civil-militar.A inexistência de julgamentos ajuda a fortalecer a imutabilidade da cultura organizacional que alimenta apactuação silenciosa com a perpetração destas violações dentro do marco democrático. In verbis:A possibilidade de julgamento de agentes públicos por violações de direitos humanos,inclusive por violações praticadas em regimes democráticos, é fundamental para amudança da cultura organizacional do Estado. Os julgamentos contribuem para reforçaros valores que não compactuam com as práticas criminosas do estado e para inibir astradicionais neutralizações. O papel preventivo do julgamento e da responsabilizaçãodesses crimes vai muito além da prevenção nos crimes comuns, pois no crimes doestado as motivações e as ações dos agentes individuais não se separam dasmotivações e neutralizações presentes na instituição estatal.Outro ponto importante de conexão entre o tema da justiça de transição e dos crimes doEstado está na relação existente entre a atuação violenta e letal das forças desegurança pública e a ausência de políticas de memória, de publicização dedocumentos públicos, de transparência das instituições públicas e de responsabilizaçãodos agentes que cometeram crimes do Estado 10 .A prevalência de uma história oficial que ignora as graves violações de direitos cometidasdurante o regime civil-militar – violações que ainda lançam seus efeitos em nossa sociedade einstituições – nos anestesia e nos impede de compreender a importância das medidas de transição.Neste contexto, o resgate da memória se mostra indispensável para superação da cultura políticaautoritária que está no cerne dos crimes do Estado. O crescente apoio popular às posturas truculentasda polícia dá o alerta:O apoio popular aos abusos da polícia sugere a existência não de uma simplesdisfunção institucional, mas de um padrão cultural muito difundido e incontestado queidentifica a ordem e a autoridade ao uso da violência. 11Este padrão cultural, que se alimenta da desmemória, culminou na alarmante situação com aqual nos deparamos hoje no Brasil: “estamos imersos em uma cultura política caracterizada pela poucaadesão da população aos valores democráticos e às instituições políticas” 12 . A forte resistência àdemocratização e à expansão da cidadania se manifesta pela inércia social, pela falta de participação navida pública e pela complacência com métodos violentos que deveriam ser estranhos a um regimedemocrático.Em estudo comparado, Antony Pereira destacou que no Brasil, no Chile e na Argentina osdiferentes processos de transição para a democracia produziram diferentes legados autoritários 13 .Portanto, as práticas autoritárias que sobreviveram em nossa democracia devem ser estudadas e910111213Em agosto de 2011, o júri popular condenou os dirigentes do MST Valdecir de Oliveira, José Cenci e AntônioCosserin de Oliveira a 15 anos de prisão por conta do assassinato de Pedro Milton da Luz Pedroso, morto porum tiro de espingarda disparado na presença de sua mulher e do filho que, à época (em 2001), contava com 12anos de idade. O tiro, contudo, foi disparado por um quarto integrante do movimento, na ausência doscondenados acima arrolados, já falecido, e, conforme relatos das próprias testemunhas, foi precedido de umadiscussão de cunho pessoal, configurando motivação que sequer se relaciona com o MST. Todavia, apromotoria sustentou que, por se tratar de um dia de ação engendrada pelo conjunto do movimento pararetomada de lotes do assentamento de Jóia que foram indevidamente comprados por pessoas que jamaispertenceram ao movimento, cabia aos dirigentes a responsabilidade por qualquer acontecimento ocorridonaquele lapso temporal, ainda que tal fato fosse complemente desvinculado dos objetivos centrais da ação. Apromotoria insinuou, ainda, que enquanto dirigentes do MST os três réus são perigosos. Incitou o júri a temê-los,uma vez que estão fortemente articulados em um plano maior de tomada de poder que desrespeita os valoresda propriedade e da família.FILHO, José Carlos Moreira da Silva. Crimes do Estado e Justiça de Transição. Criminologia e SistemasJurídico-penais Contemporâneos. P 61e 62. porto alegre: Edipucrs, 2012.CALDEIRA. Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania e São Paulo. P 133.ARTURI, Carlos Schmidt. A Cultura Política da Linha-Dura Militar: Os “Ideiais Traídos” do general Sylvio Frota inBAQUERO, Marcello (org). Cultura(s) Política(s) e Democracia no Século XXI na América Latina. Porto Alegre:Editora da UFRGS, 2011. p. 245.PEREIRA, Antony P. Ditadura e Pressão. O Autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e naArgentina. São Paulo: Paz e terra, 2010. p. 239413


enfrentadas à luz das análises históricas pertinentes e em atenção a esta cultura política de repressãoque vem sendo reforçada desde o regime civil-militar brasileiro.A forte ligação entre os crimes do Estado cometidos hoje e falta de informações – reforçada pelaimpunidade – referente às violações de direitos humanos do nosso passado ditatorial remetem àimportância da Justiça de Transição para a consolidação da democracia. Resta, então, saber em quemedida das identificações públicas das estruturas da repressão, enquanto política estratégica dememória, podem auxiliar nesta tarefa.Espaço e MemóriaO papel que as imagens espaciais desempenham na memória coletiva é explicado por MauriceHalbwachs através da relação existente entre os espaços e a (re)construção dos pensamentos. Osespaços físicos desafiam a temporalidade na medida em que guardam impressões, apreendem e criammemória. A representação do lugar se alicerça no fato de que não há memória coletiva que não aconteçaem um contexto espacial. Nas exatas palavras de Halbwachs:[...] o espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem umas àsoutras, nada permanece em nosso espírito e não compreenderíamos que seja possívelretomar o passado se ele não estivesse conservado no ambiente material que noscircunda. É ao espaço, ao nosso espaço – espaço que ocupamos, por onde passamosmuitas vezes, a que sempre temos acesso e que, de qualquer maneira, nossaimaginação ou nosso pensamento a cada instante é capaz de reconstruir – quedevemos voltar nossa atenção, é nele que nosso pensamente tem de se fixar para queessa ou aquela categoria de lembranças reapareça. 14Estando o espaço impregnado de memória e de dispositivos para reativação de determinadascategorias de lembranças, os signos do lugar assumem importante papel na manutenção ou alteraçãodo estado de coisas existente, influenciando no comportamento dos grupos sociais que experimentam ocontato com suas representações materiais. As homenagens espaciais a personalidades responsáveispor crimes de Estado são formas de perpetrar a cultura autoritária, impedindo sua completa superação.Como bem refere Halbwachs, em seguimento ao raciocínio supra esposado, “a memória que garante apermanência desta situação se baseia na permanência do espaço [...]” 15 .A intensa relação existente entre a memória coletiva e as representações espaciais do passadoé inegável. Com relação à época da ditadura, que é o foco de nossa análise, muitas são as referênciassimbólicas espalhadas pelas cidades no sentido de exaltar nossos ditadores, divorciando suas imagensda repressão que protagonizaram no passado recente do país. Gerações que não viveram diretamenteas atrocidades do período tiveram – e continuam tendo – suas rotinas marcadas pelas inúmeras vezesque cruzaram maquinalmente por estas ruas, escolas e praças, privados de análises mais acuradassobre a história de seu país.A significação negativa de espaços é uma tentativa bem-sucedida de heroificar os agentesrepressores e passar uma borracha nas violações de direitos humanos que, em sua maioria, ainda nãoforam apuradas e levadas a conhecimento público. A completa inversão de valores está representadanas placas que nomeiam ruas, praças e escolas. Está impressa nos convites anuais para acomemoração da “revolução de 64”. Não são raras as avenidas “Castelo Branco”, as praças “Geisel” eos monumentos públicos erguidos para homenagear, quase que saudosamente, os ditadores de ontem,que parecem estar vivos no cimento destas construções, como se a qualquer momento pudessem voltare subverter nossa ordem para tornar-nos subversivos.Os veículos de comunicação e os espaços públicos têm o poder fomentar o processo dealienação, pacificação e neutralização da sociedade diante das violações de direitos humanos queatravessaram o marco democrático. São estes, aliás, efeitos comuns da desmemória e da deturpação dopassado resultante de uma disputa de narrativa que ainda privilegia a chamada versão dos vencedores.Por outro lado, estes mesmos instrumentos podem auxiliar no processo de democratização da memória,ampliando o espectro de contato social com as ressignificações necessárias à compreensão do períododa repressão, identificação do restolho ditatorial e enfrentamento das violências de hoje.As mesmas pessoas diariamente bombardeadas por notícias que conduzem à banalização daviolência e ao rechaçamento de medidas transicionais, apresentadas como revanchitas e atentatórias àLei de Anistia, não possuem acesso a informações efetivas do período da ditadura. Não raro duvidam daveracidade de fatos. A falta de informação traz confusões comuns que impossibilitam a qualificação dosdebates referentes ao tema.A exemplo, inobstante às inúmeras críticas repetidas pelos opositores com relação à instauração1415HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2006. p. 170.Ibidem. p. 172.414


de uma Comissão Nacional da Verdade, parece estar pouco claro à população qual é o verdadeiroobjetivo desta Comissão. Também não se trata de revanchismo. Não se trata de uma comissão deJustiça para julgamento daqueles que cometeram crimes em nome do Estado na época da ditadura.Cuida-se, isso sim, de um instrumento que possibilitará a efetivação do direito à verdade. Nas palavrasde Paulo Abrão e Marcelo Torelly:Talvez, através da Comissão da Verdade seja possível a efetivação do direito pleno àverdade histórica, com a apuração, localização e abertura dos arquivos específicos doscentros de investigação e repressão ligados diretamente aos centros de comandosmilitares: o CISA (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica); e CIE (Centrode Informações do Exército) e o CENIMAR (Centro de Informações da Marinha). Paraque, assim, sejam identificadas e tornadas públicas as estruturas utilizadas para aprática de violações aos direitos humanos, suas ramificações nos diversos aparelhos deEstados e outras instâncias da sociedade, e sejam discriminadas as práticas de tortura,morte e desaparecimento, para encaminhamento das informações aos órgãoscompetentes 16 .Nós, brasileiros, não temos ideia do exato funcionamento ou mesmo das simples localização dosaparelhos repressores do Estado. A identificação do espaço físico tem importante papel no resgate dahistória real do período – que vem sendo reiteradamente negada ao nosso povo brasileiro.Nas palavras do professor José Carlos Moreira da Silva Filhos, “a justiça só pode ser feitaatravés de uma política de memória, de um projeto que reconheça nas injustiças do passado, quandoconfrontadas, a base segura de uma cultura democrática” 17 . Portanto, não há exagero na afirmação deque a Justiça de Transição, através, principalmente, do exercício da memória, é um caminho essencialpara a realização de nosso Estado Democrático de Direito. Ao fazer esta relação, Gabriel Merheb Petrusdestacou que:[...] o direito à memória e à verdade apresenta-se como uma chave dialética que abre,ao mesmo tempo, duas portas aparentemente opostas. Conecta com o passado, namedida em que constitui, como preceitua a Comissão Interamericana de DireitosHumanos, um “direito de caráter coletivo que permite à sociedade ter acesso àinformação essencial para o desenvolvimento dos sistemas democráticos”. Mas tambémrompe com o passado, medida que possibilitaria às instituições do estado que seenvolveram na repressão converterem-se de fato à democracia [...]. 18A citação atribuída à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) diz respeito ao “casoIgnacio Ellacuría y Otros”, no qual foi destacado que o direito à memória e à verdade possui carátercoletivo e é essencial para o desenvolvimento dos sistemas democráticos 19 . Não há dúvidas de que odireito à memória e à verdade é internacionalmente reconhecido, sendo invocado, inclusive, nas razõesde julgamento da CIDH.Os espaços públicos não podem ser construídos ou signifcados a partir da violação do direito àmemória e à verdade. Se as figuras que se tornaram públicas em razão das atrocidades que cometeramdevem ser lembradas, isso deve ser feito em atenção ao verdadeiro histórico que construíram. Ahomenagem aos ditadores, na contramão do que se proclama através de medidas transicionais, tende aapagar o desconforto que seus nomes deveriam evocar à população, que continua sofrendo cegamenteos efeitos da repressão e do autoritarismo ainda não superado.Ao tratar das simbologias urbanas através das modulações espaciais, Manuel Castells afirmou16171819ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição no Brasil: a dimensão da reparação. In: SANTOS,Boaventura de Sousa; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília Macdwell; TORELLY, Marcelo (Orgs.). Repressão eMemória Política no Contexto Ibero-Brasileiro. Estudos Sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru ePortugal. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de Coimbra, Centro deEstudos Sociais, 2010. p. 39.FILHO, José Carlos Moreira da. Dever de memória e a construção da história viva: a atuação da Comissão deAnistia do Brasil na concretização do direito à memória e à verdade. In: Repressão e Memória Política noContexto Ibero-Brasileiro. Estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. SANTOS,Boaventura de Souza; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília MacDowell; TORELLY, Marcelo D. Brasília: Ministérioda Justiça, Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010. p. 212.PETRUS, Gabriel Merheb. A Justiça de Transição como Realização do Estado Democrático de Direito:Caminhos para a Desconstrução Político-Jurídica do Legado Autoritário no Brasil. In: Revista Anistia Política eJustiça de Transição. jan./jul. 2010. TORELLY, Marcelo D. (Coord.). Brasília: Ministério da Justiça, Comissãode Anistia, 2010. p. 282.Comissão Interamericana de Direitos humanos. Caso Ignacio Ellacuría y otros. Informe 126/99 de 22 dedezembro de 1999. p. 224.415


que “o espaço está carregado de sentido” 20 . Conclui, a partir desta constatação, que as estruturassimbólicas exercem influência sobre as práticas sociais 21 . De forma mais relacionada aos objetivos dopresente estudo, o professor José Carlos Moreira da Silva Filho ressalta que “a memória não diz respeitoapenas ao tempo, mas também ao espaço” 22 , constatação que nos remete, mais uma vez, aosensinamento de Maurice Halbswachs:Não é somente a relação entre o homem e a coisa, é o próprio homem quesupomos ser imóvel e não mudar, quando pensamos nos direitos dos homenssobre as coisas. 23As estruturas espaciais, enquanto receptoras e transmissoras de práticas ideológicas 24 , devemser utilizadas a favor da realização do direito à memória e à verdade. Por isso, a identificação deestruturas relacionadas ao nosso passado autoritário e a ressigificação dos espaços utilizados paraexaltar as práticas repressivas que buscamos superar deve ser conscientemente pensada no sentido darforças à consolidação da democracia.É precisamente nisso que reside a importância de destacar que o Programa Nacional de DireitosHumanos 3 (PNDH3) definiu a identificação e a publicização das estruturas utilizadas para a prática deviolações de Direitos Humanos como objetivo estratégico para a realização do direito à memória. O valordas identificações públicas foi amplamente reconhecido neste documento enquanto política estratégicade proteção aos Direitos Humanos.Partindo da premissa de que não há memória coletiva que não aconteça em um contextoespacial 25 e considerando a estreita relação entre a falta de uma efetiva transição democrática e aperpetração da violência institucional – bem como da conivência da sociedade com tal realidade –, passaa ser possível desenhar uma forte conurbação entre esta violência e a necessidade de identificaçãopública dos espaços que foram palco de violações de direitos humanos durante a repressão. Isso porqueo objetivo da justiça transicional de secar as raízes da violência institucional e incentivar a construção deuma memória histórica que auxilie na efetiva superação das mazelas herdadas de nossa ditadura civilmilitarpassa pela realização de políticas de memória.As identificações públicas e os processos de ressignificação, longe de esgotarem estes objetivospróprios de qualquer transição democrática, constituem uma política de memória importante para aconstrução de uma memória e de uma identidade coletivas. O reconhecimento do potencial benefício dautilização destes espaços para a conscientização da sociedade e consolidação da democracia auxilia noargumento de que é necessário aumentar este tipo de ação em todo o país.A identificação pública dos espaços de tortura e resistência como política de memória: asexperiências do comitê Carlos de Ré e do memorial de resistência de São PauloVisto que é preciso consolidar políticas de memória para romper com o forte movimento massivode pactuação com as violências institucionais de hoje e para superar o abismo que a falta deinformações cria entre os problemas de nossa democracia inconclusa e a falta de uma efetiva justiçatransicional, passamos a defender algumas estratégias práticas para auxiliar neste processo. A partir dajá esposada importância dos espaços e representações espaciais no processo de formação daidentidade e da memória coletiva, deve-se pensar nos lugares de memória por excelência como pontosradiadores de valores e ideologias, capazes de fornecer elementos indispensáveis para a apreensãocrítica da história.Apesar de a responsabilidade pela realização destas identificações ter sido declinada no PNDH-3 à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, à Casa Civil da Presidênciada República, ao Ministério da Justiça e à Secretaria de Relações Institucionais da Presidência daRepública, o que vemos, na prática, é que tais iniciativas vêm sendo protagonizadas por setoresorganizados da sociedade civil. Dois grandes exemplos de identificações que criaram possibilidadeseducativas e culturais a partir da publicização e da ressignificação de estruturas são os atos públicos202122232425CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009. p. 304.CASTELLS, loc. cit.FILHO, José Carlos Moreira da Silva. Dever de memória e a construção da história viva: a atuação daComissão de Anistia do Brasil na concretização do direito à memória e à verdade. In: Repressão e MemóriaPolítica no Contexto Ibero-Brasileiro. Estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal.SANTOS, Boaventura de Souza; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília MacDowell; TORELLY, Marcelo D. Brasília:Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais,2010. p. 201.HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2006. p. 173.CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009. p.307.HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Editora Centauro, 2006. p. 170416


sistemáticos realizados pelo Comitê Carlos de Ré- da Verdade e da Justiça 26 e a construção do Memorialda Resistência de São Paulo.Em 2007, a partir da mobilização em torno da renovada defesa de uma justiça de transiçãoefetiva e verdadeira, grupos militantes de São Paulo, especialmente o Forum Permanente de ex-Presose Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo, se voltaram para a ressignificação do prédio ondeantigamente funcionava o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo –DEOPS/SP 27 . Ampliando a função preservacionista anteriormente destinada ao espaço, o projeto incluiua ocupação da estrutura com atividades de referência em memória, como coleta permanente detestemunhos, exposições e visitações guiadas para estudantes.A inciativa, apoiada pelo Governo do Estado de São Paulo, criou um verdadeiro centro dememória viva que é referência para todo o país. Além de georreferenciar uma estrutura da repressão,que permite dizer que o memorial é, por sua própria identificação, um lugar de memória por excelência, oprojeto ultrapassou a perspectiva tradicional de museologia se transformou em um centro de memóriaviva em constante diálogo com a população:O novo projeto museológico do Memorial da Resistência de São Paulo foi inauguradoem 24 de janeiro de 2009, e sua principal característica está na articulação entre autilização de um lugar de memória por excelência (o edifício que pertenceu aoDEOPS/SP), o potencial educativo com a musealização desse lugar (a exposição delonga duração e demais programas) e as memórias de cidadãos que foramperseguidos,presos e torturados nesse lugar por sua militância política (a resistência).[…] O fato de o Memorial ocupar parte do espaço prisional – a carceragem,quatro celas,o corredor principal e o corredor para banho de sol – permite ao visitante o contato diretocom um local extremamente simbólico e carregado de signiicados. Para Pierre Nora(1984),os lugares de memória são lugares materiais (e imateriais) onde a memóriasocial se apoia e pode ser captada pelos sentidos; são lugares uncionais onde se apoiaessa memória coletiva, e são simbólicos, onde a memória coletiva se revela. Esseslugares – documentos/monumentos – são construções históricas e coletivas que têm apotencialidade de revelar processos sociais. Porém,entendemos que para que oslugares de memória – como o DEOPS/SP – exerçam uma função social contemporânea,precisam ser trabalhados sob uma perspectiva museológica processual.Os efeitos positivos do projeto bem sucedido são destacados por alguns de seus coordenadores:A importância dessas atividades está em sua capacidade de possibilitar o tratamento detemas muito diversos, envolvendo desdobramentos da exposição de longa duração paraoutras propostas relacionadas ao controle, repressão e resistência nos mais diferentessuportes; têm atraído públicos bastante diversificados e ainda vêm transformando opúblico em visitante assíduo, que participa das inúmeras atividades educativas eculturais realizadas pelo Memorial da Resistência com regularidade.Contribuir para a formação de cidadãos conhecedores e críticos em relação à história doBrasil republicano, promovendo a sensibilização e a conscientização sobre aimportância do exercício da cidadania, da democracia e dos direitos humanos, é odesafio cotidiano do Programa de Ação Educativa do Memorial da Resistência 28 .Na mesma linha, confrontado com a premente necessidade de ampliar, democratizar einstrumentalizar os debates sobre as violações de Direitos Humanos cometidas em nome do regime civilmilitarbrasileiro, bem como de despertar a consciência das pessoas no sentido da não repetição destescrimes, empoderando-as de seu passado e reforçando nosso compromisso com a democracia, o ComitêCarlos de Ré realizou a identificação de diferentes locais de tortura utilizados pela repressão na cidadede Porto Alegre. O primeiro local a ser identificado foi a antiga sede da Dopinha, sito na Rua SantoAntônio, nº 600, onde funcionava uma estrutura clandestina do DOPS.A Dopinha, que outrora foi um aparelho clandestino da ditadura civil-militar, onde houve,comprovadamente, tortura e morte, assim como a antiga sede do DEOPS em São Paulo, é um local dememória por excelência. O conhecido “Casarão da Santo Antônio” ganhou notoriedade em razão datortura e do assassinato do Sargento Manoel Raimundo Soares, que mais tarde ficou conhecido como262728O Comitê Carlos de Ré é o comitê gaúcho da memória, verdade e justiça. Fundado em junho de 2011, congregapessoas e organizações, partidários e não-partidárias, no objetivo de unir esforços para disputar a consciênciada sociedade atentando para a importância da justiça de transição no processo de construção da democracia ede superação dos valores autoritários perpetrados por instituições oficiais do Estado.ARAÚJO, Marcelo Mattos; NEVES, Kátia Regina Felipini; MENEZES, Caroline Grassi Franco. O Memorial daResistência de São Paulo e os desafios Comunicacionais in Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério daJustiça. – N. 3(jan. / jun. 2010). – Brasília : Ministério da Justiça , 2010. p. 234.Ibidem. P. 239.417


“caso das mãos amarradas” 29 . Após a identificação pública, com adesivagem que denunciava as antigasfunções do local, o Comitê Carlos de Ré apresentou publicamente o projeto de construção do “MemorialIco Lisboa”, um centro de memória viva que em seu nome resgata a história e presta homenagem aolutador Luiz Eurico Tejera Lisboa, que foi o primeiro desaparecido político que teve seu corpo encontradono país 30 .A identificação da Penitenciária Feminina Madre Pelletier, por sua vez, além de promover esteimportante georreferenciamento, criou diversos espaços de conscientização do papel das mulheres naresistência, especialmente por ter sido construído coletivamente com as mulheres em situação de prisãohoje e com a Coordenadoria Penitenciária de Mulheres da Susep. O processo de oficinas preparatóriaspara o ato promoveu uma interlocução entre diferentes grupos de mulheres que, em diferentesmomentos históricos, foram desafiadas a superar o machismo para exercer protagonismo. Oreconhecimento mútuo não apenas aproximou, mas auxiliou no processo de conscientização de umgrupo para a crueldade da realidade do outro.Muitas apenadas atuais, em conversas com ex-presas políticas que estiveram no Madre Pelletierdurante a ditadura civil-militar, tiveram seu primeiro contato com a temática da repressão graças àiniciativa de identificação do lugar. Narraram experiências próprias e situações atuais de tortura queremontam a práticas incompatíveis com os valores democráticos. Tomando consciência da importânciade resgatar esta história, escreveram de próprio punho, após algumas assembleias internas, um projetode ressignificação das celas antigamente utilizadas para as presas políticas, onde atualmente funcionaum canil da Brigada Militar.A partir destes exemplos percebe-se que, enquanto política de memória, as identificaçõespúblicas e os processos de ressignificação têm valor ainda não mensurado, ou mesmo imensurável naconcretização da Justiça de Transição. Da mesma forma que são reconhecidos os efeitos nefastos daexaltação de agentes da repressão através de homenagens em nomes de ruas e monumentos públicos,está cada vez mais forte a demonstração do potencial benefício da utilização destes espaços para aconscientização da sociedade.ConclusãoO exercício da memória, através do conhecimento dos fatos históricos que marcaram o períododa repressão, auxilia na luta pela superação das violências institucionais perpetradas ao longo destesanos e reforça o compromisso do Estado e da sociedade com os valores democráticos. O incentivo apolíticas de memória que permitam a referenciação geográfica da história e sua captura cinestésicapotencializa as possibilidades transformadoras da ocupação educativa e criativa dos lugares.O espaço “é sempre uma conjuntura histórica e uma forma social que recebe seu sentido dosprocessos sociais que se exprimem através dele” 31 e, mesmo por isso, ele não apenas reflete certaconjuntura histórica, mas também produz efeitos específicos sobre as demais estruturas da organizaçãosocial. Não é por acaso qu a produção dos espaços geralmente é pensada a partir de determinadosinteresses hegemônicos. A disputa pela história é uma das facetas deste jogo, não restando a menordúvida de que há muitos interesses ocultos sob o véu do esquecimento e das “verdades oficiais”cunhadas sobre ele.A superação de todas as heranças da ditadura civil-militar que são incompatíveis com os valoresdemocráticos, especialmente da violência do Estado, depende de ações comprometidas com aefetivação da Justiça de Transição. Dentro disso, a identificação pública e a ressignificação dasestruturas onde houve violação de Direitos Humanos por parte da repressão contribui para a realizaçãodo direito à verdade e à memória. Definitivamente, os efeitos dos lugares podem tanto influenciarpositivamente na consolidação das estruturas democráticas quanto negativamente no processo de293031ROSA, Susel Oliveira. A Biopolítica e a Vida “Que se Pode Deixar Morrer”. Jundiaí: Paco Editorial, 2012. p. 88-117.O projeto, que propõe uma gestão compartilhada entre comitês da sociedade civil, universidades gaúchas eSecretarias de Direitos Humanos do Município, Estado e Federação, já conta com importantes apoios. Emdiferentes reuniões realizadas com a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, com o Governo do Estado do RioGrande do Sul e com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República surgiu a proposta deformalização de um convênio para desapropriação do Casarão da Rua Santo Antônio nos seguintes moldes: ficao jurídico de desapropriação por conta da Prefeitura, que também arcará com 50% dos custos provenientes,cabendo os 50% restantes ao Governo do Estado do RS e reforma e manutenção do prédio por conta daSecretaria de Direitos Humanos da Presidênca da República. O compromisso da prefeitura já foi publicamenteassumido pelo então prefeito, Sr. José Fortunati, diante da imprensa, em reunião com o Comitê Carlos de Ré.Os compromissos do Governo do Rio Grande do Sul e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência daRepública foi manifestado em reuniões reservadas com o Comitê Carlos de Ré, que tratou diretamente com oGovernador Tarso Genro e com a Ministra Maria do Rosário.CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 539.418


deturpação e de esquecimento do passado.Referências Bibliográficas:ABRÃO, Paulo; SANTOS, Boaventura de Sousa; SANTOS, Cecília Macdwell; TORELLY, Marcelo(Orgs.). Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro. Estudos Sobre Brasil, Guatemala,Moçambique, Peru e Portugal. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal:Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010.ALFONSIN, Betânia (Org.); FERNANDES, Edésio (org.). Direito Urbanístico. Estudos Brasileiros eInternacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.BAQUERO, Marcello (org). Cultura(s) Política(s) e Democracia no Século XXI na América Latina. PortoAlegre: Editora da UFRGS, 2011.ANNAN, Kofi. O Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-conflito.BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001._______, Zygmunt. Confiança e Medo na Cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.CALDEIRA. Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania e São Paulo. P 133.CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009.Comissão Interamericana de Direitos humanos. Caso Ignacio Ellacuría y otros. Informe 126/99 de 22 dedezembro de 1999.GARAPON, Antoine. Crimes que Não se Podem Punir nem Perdoar. Para uma Justiça Internacional.Lisboa: Instituto Piaget, 2002.GOFF, Jacques Le. História e Memória. 5. ed. São Paulo: Editora Unicamp., 2003.HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2006.HARVEY, David. A Produção Capitalista do Espaço. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2005.KEHL, Maria Rita. Tortura, por que não? O Estado de São Paulo. Em 31 de maio de 2010.LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2001.PEREIRA, Antony P. Ditadura e Pressão. O Autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e naArgentina. São Paulo: Paz e terra, 2010.ROSA, Susel Oliveira. A Biopolítica e a Vida “Que se Pode Deixar Morrer”. Jundiaí: Paco Editorial, 2012.TORELLY, Marcelo D. (Coord.). Revista Anistia Política e Justiça de Transição. jan./jul. 2010. Brasília:Ministério da Justiça, Comissão de Anistia, 2010.SAULE JR., Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Ordenamento Constitucionalda Política Urbana. Aplicação e Eficácia do Plano Diretor. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,1997.419


Inicio de la Política Reparatoria como Política PúblicaMaría Teresa Piñero 1Resumen: Las principales leyes reparatorias argentinas se gestaron a principios de la década del 90,durante el gobierno de Carlos Menem. Un gobierno que llevó adelante políticas neoliberales y otorgóindultos a los jefes militares presos por crímenes de lesa humanidad. Sin embargo, esta política ha sidoexitosa y se ha caracterizado por su generosidad y amplitud. El objetivo de esta ponencia es explicar enqué consiste dicha política. Primero se pasa revista a las leyes 24.043, 24.411 y 25.914 que otorgaronuna indemnización económica a las víctimas de las violaciones a los derechos humanos cometidas porlas fuerzas armadas y de seguridad.Luego se define a la política reparatoria como política pública y seanaliza cómo logró tener éxito pese a un contexto incierto y complicado. Se examinan sus diferentesetapas en tanto política pública no tradicional. Para ello, se utilizaron fuentes primarias, entrevistas aprotagonistas y beneficiarios. Se consultó también a autores que han analizado las políticas públicas.Palabras-clave: Reparación – Indemnización - violaciones a los derechos humanos – Desaparecidos -Presos políticosAbstract: The main Argentine reparatory laws started at the beginning of the 90’, during Carlos Menem’sgovernment. This government implemented neoliberal policies and indulted the military junta leadersconvicted for crimes against humanity. Nevertheless, this policy has been successful and is known by itsextent and generosity. The purpose of this paper is to explain what the reparatory policy is. First, 24.043,24.411 and 25.914 laws granting monetary compensation to victims of human rights violations committedby armed and security forces are described. Then, the reparatory policy is defined as a public policy. It isanalyzed how it has been a successful policy although a complicated and uncertain context. Its differentstages are examined as a non-traditional public policy. For this paper, primary sources, as interviews toactors and beneficiaries, are employed. Also authors studying public policies have been consulted.Keywords: Reparation - monetary compensation - human rights violations - disappeared-politicalprisonersI. IntroducciónEste trabajo se propone examinar cómo se inició en Argentina la política reparatoria en tantopolítica pública. Las principales leyes reparatorias se gestaron a principios de la década del 90, duranteel gobierno de Carlos Menem. Fue este gobierno el que llevó adelante políticas neoliberales quecompletaron las políticas iniciadas durante el gobierno militar. Fue ese mismo gobierno el que otorgóindultos a los jefes militares presos por crímenes de lesa humanidad. Pese a ello, esa política ha sidoexitosa y se caracteriza por su generosidad y amplitud.La política reparatoria abarca una serie de medidas, no sólo económicas, que procurandesagraviar, reparar los daños perpetrados por las graves violaciones a los derechos humanoscometidas por el gobierno militar (1976-1983) y los grupos paramilitares, y atender las necesidades queellas originaron. En este trabajo nos referiremos sólo a las leyes que han otorgado indemnizaciones.La política reparatoria, es decir, las leyes 24.043, 24.411, 25.914 y su aplicación, otorgaron unaindemnización económica a las víctimas de las violaciones a los derechos humanos cometidas entre1974 y 1983.Se considera que una política pública es el conjunto de objetivos, decisiones y acciones quelleva a cabo un gobierno para solucionar los problemas que en un momento determinado los ciudadanosy el propio gobierno considera prioritarios 2 .En este sentido, la política reparatoria del Gobierno Nacional puede considerarse una política12Como viuda de Angel Georgiadis, asesinado en 1977 por la dictadura en la cárcel de La Plata, me correspondióel beneficio de la ley 24.043. Cuando se sancionó la ley 24.411, destinada a familiares de desaparecidos yasesinados por el gobierno militar, la Dirección de DDHH me notificó que mi expediente había pasado para elbeneficio de ley 24.411 (no se suma). Previamente, en el gobierno de Alfonsín recibí el benefició de la ley23.466. Por lo tanto, hablo desde el conocimiento de los beneficiarios.Tamayo Sáez, Manuel. “El análisis de las políticas públicas”, en Bañón, Rafael y Carrillo, Ernesto (comps.) La nuevaAdministración Pública, Alianza Universidad, Madrid, 1997.420


pública, cuyos resultados han ido retroalimentado el proceso reparatorio. Cada paso permitió el pasosubsiguiente: Causa Birt, Decreto 70, Ley 24.043, Ley 24.411.En la primera parte de este trabajo se pasa revista a las leyes que instituyeron indemnizacionesa las víctimas o a sus familiares y en la segunda, se analiza la implementación de esas leyes comopolítica pública.Para este trabajo, se ha recurrido a fuentes primarias, tanto a entrevistas a integrantes de laSecretaría de Derechos Humanos de esos años, como a beneficiarios de las leyes. Se ha consultadotambién bibliografía de autores que han reflexionado sobre el tema y sobre las políticas públicas.II. Política Reparatoria1. AntecedentesLa Comisión Nacional sobre Desaparición de Personas (CONADEP) creada en diciembre de1983 con la finalidad de realizar “investigaciones sobre desaparecidos y violaciones a los derechoshumanos” recomendó en su informe final:…que se dicten las normas necesarias para que los hijos y/o familiares de personasdesaparecidas durante la represión reciban asistencia económica: becas para estudio;asistencia social; puestos de trabajo. Asimismo que se sancionen las medidas que seestimen convenientes y que concurran a paliar los diversos problemas familiares ysociales emergentes de la desaparición forzada de personas 3 .El gobierno de Alfonsín dictó una serie de normas de carácter reparatorio vinculadas al ámbitolaboral a fin de reintegrar a trabajadores despedidos por causas políticas o gremiales. Algunas de estasleyes fueron: la ley 23.053 (reincorporación al servicio exterior de la Nación), la 23.117 (reincorporación aempresas del Estado), la 23.238 (reincorporación de docentes), la 23.523 (reincorporación de bancarios)y la 23.278 (para efectos previsionales). Todas esas leyes no fueron fruto de la planificación del gobiernonacional, sino producto de la presión que ejercieron los afectados.La Ley 23.466 instituyó una pensión no contributiva para los familiares de personasdesaparecidas en situación forzada entre el 24 de marzo de 1976 y el 10 de diciembre de 1983.Asimismo, la ley No 23.852 4 del 27 de septiembre de 1990 eximió de del servicio militar obligatorio aquienes hubieran experimentado la desaparición de padres o hermanos, con anterioridad al 10 dediciembre de 1983.2. Decreto 70/91El Código Civil argentino establece la obligación de reparar económicamente y mide en dinero nola vida o la libertad, sino las consecuencias o el valor del perjuicio sufrido. Por ello, muchas personas queestuvieron detenidas a disposición del PEN iniciaron demandas. Algunas fueron resueltassatisfactoriamente en tribunales de primera instancia, como fue el caso del expresidente Carlos Menem,preso durante el gobierno militar, y otras fueron rechazadas. Estos afectados recurrieron a la SupremaCorte, que automáticamente las denegó por aplicarles el instituto de la prescripción.En 1989, un grupo de personas que no tuvieron satisfacción a sus demandas de reparaciónelevaron su reclamo ante la Comisión Interamericana de Derechos Humanos (caso Birt), invocando elderecho de acceso a la Justicia. En ese contexto, se logró una solución amistosa que reconoció elderecho a una reparación por parte del Estado Argentino y el 10 de enero de 1991 el Poder Ejecutivodictó el Decreto 70 por el que adoptó la decisión de reparar a aquellas personas detenidas a disposicióndel P.E.N. hasta el 10 de diciembre de 1983, hubieran iniciado juicio para indemnización daños yperjuicios antes del 10 de diciembre de 1985 y hubiera sido declarada prescripta la acción por sentenciafirme. El Gobierno advertía que, de no adoptarse esta medida, el país podría ser sancionadointernacionalmente, lo que autorizaba al PEN a dictar normas de sustancia legislativa. Establecía que laautoridad de aplicación era el Ministerio del Interior, que debía comprobar en forma sumarísima elcumplimiento de los recaudos legales exigidos. El beneficio se debía abonar en efectivo.3. Ley 24.043Pocos meses después, el 27 de noviembre de 1991 se sancionó la ley 24.043 (véase Anexo) queotorgaba un beneficio a las personas que hubieran estado a disposición del Poder Ejecutivo Nacionaldurante la vigencia del estado de sitio, o siendo civiles hubiesen sufrido detención en virtud de actos34Informe Nunca Más. Comisión Nacional sobre Desaparición de Personas, Editorial Eudeba, 2ªedición, BuenosAires, 1984.En la actualidad, esta medida ha perdido vigencia por la abolición del servicio militar obligatorio.421


emanados de tribunales militares.Esta Ley había estado gestándose a lo largo de más de un año. Elaboró el proyecto de la Ley24.043 el Dr. Rodolfo Ojea Quintana, ex abogado del MEDH y asesor del Diputado López Arias, de Salta,quien presentó el proyecto de Ley. El debate parlamentario fue evitado intencionalmente para evitar quela discusión entre las distintas fuerzas políticas trabara su aprobación.4. Ley 24.321La Ley de Ausencia por Desaparición Forzada (véase Anexo), sancionada el 11 de mayo de1994, faculta la declaración de ausencia por desaparición forzada de toda aquella persona que hasta el10 de diciembre de 1983 hubiera desaparecido involuntariamente del lugar de su domicilio o residenciasin que se tenga noticia de su paradero. La Secretaría de Derechos Humanos emite el certificado quedeja constancia de la existencia de la presentación de la denuncia sobre la desaparición forzada de unadeterminada persona. Esta Ley creó la figura de “ausente por desaparición forzada” y fue consensuadacon los organismos de derechos humanos, a fin de para poder sancionar la Ley 24.411, ya que losorganismos se oponían a declarar la presunción de fallecimiento.Alicia Pierini describe: “No había antecedentes en la legislación nacional ni en el derechocomparado, entonces había que crear la figura desde cero” 5 . Esta Ley es innovadora, pues es la primerade este tipo en el mundo, y abrió el camino para la Convención Internacional contra la DesapariciónForzada de Personas, aprobada en diciembre de 2006.5. Ley 24.411Promulgada a fines de 1994, la Ley 24.411 (véase Anexo) establece un beneficio a loscausahabientes de las personas desaparecidas o fallecidas como consecuencia del accionar represivocon anterioridad al 10 de diciembre de 1983. También el Dr. Ojea Quintana redactó el proyecto de estaLey. Prácticamente no tuvo debate parlamentario, ni divulgación.Esta Ley provocó un gran debate. Los organismos de derechos humanos y algunos familiaresde los detenidos-desaparecidos se resistieron a cobrar una indemnización en el marco de la ausencia deverdad y justicia, pues parecía que se estuviese comprando su silencio y resignación. De hecho, laAsociación Madres de Plaza de Mayo, conducida por Hebe de Bonafini, equiparó el cobro de laindemnización a prostituirse. Actualmente, el debate ha desaparecido y casi todos los familiares hancobrado la indemnización. Años después, la Ley 24.823 (véase Anexo) modificó y complementó laslagunas de la Ley 24.411.6. Ley 25.914La ley 25.914, llamada “ley de hijos”, fue sancionada en 2004, impulsada por el PresidenteKirchner. Está destinada a las personas nacidas durante la privación de la libertad de sus madres, ohubiesen permanecido detenidas en relación a sus padres, siempre que cualquiera de éstos hubieseestado detenido y/o desaparecido por razones políticas.El beneficio consiste en el pago de una suma equivalente a veinte veces la remuneraciónmensual de los agentes Nivel A, Grado 8. Prevé también a los hijos que fueron apropiados.III. La política reparatoria como política pública1. Actores Intervinientes1.1. Secretaría de Derechos HumanosLa Ley establecía que la autoridad de aplicación era la Dirección de Derechos Humanosdependiente del Ministerio del Interior, continuación de la Subsecretaría de Derechos Humanos creadainmediatamente después de la presentación del Informe “Nunca Más” y de la disolución de la CONADEP.Con la Reforma del Estado de 1990, la Subsecretaría había bajado de rango, a Dirección de DerechosHumanos, razón por la cual había renunciado el Dr. Frugoni Rey. Luego, la Dirección quedó a cargo deun director que no tenía ni antecedentes, ni interés en derechos humanos.En febrero de 1991 asumió la Dirección la Dra. Alicia Pierini 6 , quien había sido defensora depresos políticos durante los años 70, y tuvo a su cargo la implementación del decreto 70/91.56Guembe, María José. La experiencia argentina de reparación económica de graves violaciones a los derechoshumanos. Buenos Aires, 2004 (mimeo) (Publicado actualmente por Oxford University Press.Alicia Pierini se desempeñaba, al momento de su designación, como abogada en el Ministerio de Justicia, acargo de un programa de Atención Jurídica Gratuita. Previamente, había sido responsable de Programa delMovimiento Ecuménico por los Derechos Humanos.422


1.2. Otros actoresEl Presidente de la Nación tomó la decisión de llegar a una solución amistosa y abonar lasindemnizaciones.La Dirección de Derechos Humanos del Ministerio de Relaciones Exteriores, llevaba adelante larelación con la CIDH. En ese momento estaba a cargo de Zelmira Regazzoli. Se debe destacar el papeldesempeñado por Regazzoli, que también había sido presa política y tenía una mirada desde losderechos humanos. Facilitó la decisión por su empuje y su relación personal y partidaria con elPresidente.El Ministerio del Interior, a través de la Dirección de Derechos Humanos, era la autoridad deaplicación y debía aprobar los expedientes.El Ministerio de Economía, por otra parte, debía autorizar los pagos.Los proyectos de leyes y su posterior sanción fue obra del Poder Legislativo: la Cámara deDiputados y la de Senadores.Otros actores que intervinieron fueron los organismos de derechos humanos, algunos aprobaronla política, otros la cuestionaron y todos reclamaron que los detenidos-desaparecidos tuvieran untratamiento jurídico diferente al establecido.2. La toma de decisiónDurante 1990 el Gobierno no había formulado ninguna política de derechos humanos. En enerode 1991 esa situación cambió ante el reclamo de la CIDH. Si bien había varias opciones: demorar, aducirprescripción, etc., el Gobierno adoptó la decisión de reconocer la demanda. Menem apoyó la decisión dellevar adelante un programa amplio de reparación a presos políticos. Esta decisión fue una decisión deraíz en dos aspectos. En primer lugar, fue una decisión política que no tuvo en cuenta ningún estudio defactibilidad y se basó principalmente en el registro de la experiencia personal del Presidente ya que,como preso político, había logrado beneficiarse con la reparación a la que consideraba justa y legítima.No se puede dejar de señalar también que en 1989 habían tenido lugar los polémicos indultosque otorgó el Presidente Menem a los jefes de las Juntas Militares condenados por la Cámara Federal.Esos indultos suscitaron la reprobación de buena parte de la población y, sobre todo, de las víctimas delas violaciones a los derechos humanos, algunas de las cuales resultaban beneficiados con estas leyes.De alguna manera, se compensaban así perjuicios y beneficios.Asimismo puede decirse que la decisión de acceder a la reparación fue una decisión de raíz,sobre la cual se fue construyendo toda la Política Reparatoria posterior. El Presidente tomó una decisióny estableció un objetivo.3. Análisis de FactibilidadPara analizar la factibilidad de una política se han de identificar todas las restricciones reales opotenciales, separarlas de los obstáculos ficticios, evaluar su importancia para diferentes estrategias deejecución y estimar los costos y beneficios del relajamiento de las restricciones que no seanabsolutamente fijas. 7Sin embargo, para decidir el Decreto 70 no se llevó a cabo ningún estudio de factibilidad, nitampoco para las Leyes 24.043 y 24.411.Por lo que se refiere a la factibilidad económica, no se consultó al Ministerio de Economía. Nadiehabía analizado tampoco qué cantidad de recursos financieros eran necesarios para solventar los pagosdel Decreto 70 y la Ley 24.043, porque no se sabía cuántos eran los posibles beneficiarios. El Gobiernoiba a enfrentar un problema desconocido por la cantidad de potenciales beneficiarios, nuevo, con un altogrado de incertidumbre sobre su desarrollo posterior, los costos de las acciones para afrontarlo, elcompromiso de recursos futuros y los resultados de la intervención.4. Implementación de la política reparatoriaCuando ingresó la Dra. Pierini en la Dirección, encontró una Dirección degradada, con 22personas, muchas de ellas castigadas y con sumarios internos y otro grupo pequeño que provenía deltrabajo de la CONADEP.La Dirección no tenía ninguna política y estaba en proceso de desguase. Funcionaba en el ex-Nuevo Banco Italiano, un local con principio de desalojo. En 1991 la Dirección de DDHH no teníaestructura, ni edificio, ni personal capacitado, ni el mínimo equipamiento. No contaba con caja chica.Empezó sin nada, para la Ley 24.043 no había decreto reglamentario, ni circuito administrativo.7Majone, Giandomenico Evidencia, argumentación y persuasión en la formulación de políticas, Fondo de CulturaEconómica, México, 1997.423


La situación objetiva mostraba que había una omnipresencia de restricciones: económicas,políticas, institucionales, administrativas, tecnológicas. Existían limitaciones de espacio, de recursoshumanos, de información. Era necesaria una sucesión de actividades para ensamblar los distintoselementos: recursos financieros, recursos humanos, normas, decisiones y capacidades administrativas.Todos estos elementos estaban en manos de diferentes actores relativamente independientes entre sí.Había que poner en marcha una decisión, es decir, se debía realizar un proceso donde se debía tomarmultitud de decisiones.Si bien se había adoptado un objetivo claro –la reparación–, no se había tenido en cuenta lacomplejidad del problema que se debía encarar.La decisión inicial no fue más que el pistoletazo que marcó el inicio del juego. Debido a esacomplejidad la implementación fue avanzando de manera incrementalista, gradualmente, con granesfuerzo y voluntad política de ir sorteando los obstáculos. El primer obstáculo sorteado fue obtener unespacio en el edificio de la calle Moreno 711, en el quinto piso y un sector del sexto.Para conseguir personal idóneo que estuviera en condiciones de atender a los posiblesbeneficiarios, se recurrió a los organismos de derechos humanos, como el MEDH y Familiares.Asimismo, Emilio Mignone, del CELS, envió a una abogada, con alta motivación pues su hermanoestaba desaparecido.Muchos inconvenientes se resolvieron en forma pragmática. Uno de ellos fue la carencia de cajachica para gastos menores, absolutamente necesarios para el desenvolvimiento de la actividad cotidiana.Con alguien de suma confianza, se fingió un contrato laboral y el monto mensual se derivaba a los pagosmenudos. No era la solución óptima, pero era la viable, que exigió creatividad y una fuerte decisión dealcanzar la meta. No se aceptó la restricción y se buscó la forma de sortearla.La falta de información, es decir, el desconocimiento del listado de los presos a disposición delPEN, se obtuvo por el interés y compromiso de empleados del Ministerio del Interior que habíancompartido la militancia política con la Dra Pierini. En ese momento se supo cabalmente que los presos adisposición del PEN habían sido 10000. Por lo que se refiere a la Ley 24.411, fue de fundamentalimportancia la colaboración también de funcionarios del Ministerio del Interior que encontraron losbiblioratos de 18000 hábeas corpus. Esto facilitó la prueba.Se necesitaba gestionar intergubernamentalmente, es decir, conseguir el apoyo de algunosactores políticos y burocráticos para resolver los problemas que se iban presentando. La gestión tuvoéxito gracias a la capacidad de la Directora de llegar a acuerdos con determinados actores para que losllevasen a efecto.Así la Directora convenció y motivó a diferentes actores a que participaran en el proceso. Porejemplo, consiguió que prestaran computadoras otras dependencias del gobierno, ya que a cargo deellos estaban funcionarios con quienes había relación personal, o bien habían estado presos, o bienhabían luchado contra el gobierno militar.Para obtener recursos para pagar al personal, Claudia Bello, que había pasado a ser Secretariade la Función Pública, colaboró pagando al personal de la Dirección con horas cátedra del InstitutoNacional de Administración Pública.La estructura de funcionamiento la armaron los administradores gubernamentales, quienesayudaron también a conseguir algunos contratos.El decreto reglamentario fue redactado en la Dirección y se tardó un año para que lo firmase elMinistro del Interior 8 y la Dirección de Asuntos Jurídicos. El 24 de junio de 1992 se reglamentó medianteel decreto 1023/92, que establecía que la solicitud del beneficio se debía presentar en la DirecciónNacional de Derechos Humanos del Ministerio del Interior y debía contener una declaración juradafirmada por el beneficiario o sus derecho–habientes en la que se manifestase que había sido privado desu libertad por disposición del PEN, o en razón de actos emanados de tribunales militares durante elperíodo comprendido entre el 6 de noviembre de 1974 y el 10 de diciembre de 1983. Se creó unformulario para los peticionantes.Para la Dirección representó un salto de calidad institucional el encuentro de la AsociaciónAbuelas de Plaza de Mayo con el Presidente, gestionado por la misma Dirección con la colaboración deClaudia Bello. En ese encuentro las Abuelas pidieron al Presidente que otorgara mayor jerarquía a laDirección, lo que permitió contar con una estructura diferente. Así, en agosto de 1992 Pierini asumiócomo Subsecretaria y en noviembre se creó la Comisión Nacional por el Derecho a la Identidad(CONADI). Con esa nueva estructura, se organizó la Unidad Ejecutora de la 24.043 y se pudo incorporara otro administrador gubernamental para que se hiciera cargo de dicha Unidad.Un punto de veto tiene lugar cuando se necesita que un actor individual dé su consentimiento auna acción. Ello ocurrió cuando Gustavo Béliz fue Ministro del Interior (de diciembre de 1992 a agosto de1993), ya que el Ministro del Interior debía firmar el trámite administrativo para habilitar el pago y Béliz se8En ese momento, José Luis Manzano.424


negó a firmar. Ese año significó un año de parálisis, de retraso, no se avanzó y nadie logró cobrar laindemnización.No se obtuvo el consenso de uno de los actores principales y el proceso de implementación nopudo seguir adelante. Se interrumpió. La intervención del Ministro Béliz era indispensable para queavanzara la política. El resultado de su falta de colaboración podría haber equivalido al fracaso, pero sólosignificó un retraso considerable.En 1994 asumió Carlos Ruckauf 9 como Ministro del Interior, pero Ruckauf tampoco quería firmarsalvo que hubiera una resolución conjunta con el Ministerio de Economía acordando un circuito mixto.Armar el circuito administrativo fue sumamente dificultoso.Por pedido de Claudia Bello también, a fines de 1993, el Dr. Horacio Liendo, del Ministerio deEconomía, se ocupó del tema y resolvió que el pago de la Ley 24.043 se podía efectuar en bonos.Asimismo Liendo creó el circuito administrativo, que terminaba en la Caja de Valores. Explicó que nohabía que preocuparse por el presupuesto nacional porque los bonos no formaban parte de él.Para Alicia Pierini, en ese momento el retraso representaba el fracaso del programa. Tomó ladecisión de que, si para fines de 1994 ningún beneficiario llegaba a completar el trámite y cobrar,renunciaría, por lo cual encaró las dificultades con decisión e inventiva.Ruckauf fue entonces el primer ministro que firmó los pagos. Cabe mencionar que el mismoMinistro, que también había estado preso, había cobrado su indemnización.El primer pago de la Ley 24.043 se pudo realizar entre junio y diciembre de 1994, después deque se hubiese establecido la resolución conjunta.Para analizar las restricciones que tuvo que hacer frente la Política Reparatoria, se debe incluirla dimensión del tiempo. Transcurrió suficiente tiempo, desde 1991 hasta diciembre de 1994, para lograreliminar los obstáculos y restricciones.Para que todos los beneficiarios aprovechasen las infaltables recomendaciones, se inventaronlos “paquetes” llamados globales. Para pasar al Ministerio de Economía se hacía en grupos de 25 casos,así si existía un recomendado, arrastraba a 24 casos más. Este procedimiento fue idea de unadministrador gubernamental.Por otra parte, las diferentes situaciones llevaron a ampliar por vía de interpretación el campo decuestiones que se fueron reparando. Una de esas situaciones fue la de quienes habían estadodetenidos-desaparecidos en campos clandestinos de detención. Su tratamiento significó un enormeesfuerzo para hallar la prueba pertinente. Por razones de equidad y recomendaciones de forosinternacionales, debían equipararse por vía analógica esas situaciones a las contempladas en la Ley24.043. Sin embargo, se encontraron resistencias en la Unidad de Auditoría Interna y en AsuntosJurídicos porque consideraban que no estaban suficientemente probados los delitos. Pero habíacambiado la situación de la Dirección, contaba con reconocimiento y contratos para el personal.Las leyes reparatorias tuvieron varias prórrogas: la Ley 24.436, la 24.906 y la 24.499. Por otraparte, la Ley 23.823 es aclaratoria de la 24.411.Los problemas más complejos, las políticas más ambiciosas están en manos de personal deventanilla, que debe resolver, en cada caso concreto, los defectos de la formulación de la Ley, lavaguedad y la imprecisión de la información. Pero el personal de la Subsecretaría son, en su mayorparte, militantes de derechos humanos, por lo que suelen atender a los solicitantes de manerapersonalizada y cuidadosa y de igual forma buscan resolver cada trámite y búsqueda de pruebas.Las medidas de desempeño señalan cómo se está actuando, es decir, cuáles son las destrezasy dónde se necesita mejorar. Si bien en septiembre de 2002 se presentó la Carta Compromiso con elCiudadano, donde se explican las características de las diferentes políticas de la Secretaría, los serviciosque prestan, los atributos medidos y los estándares, dentro de la Secretaría hay resistencia a dichasmediciones. En una entrevista con personal de la Secretaría, manifestaron que no hay ningunaevaluación de desempeño, ya que se prioriza el aspecto cualitativo y no el desempeño. Tampocoencontramos medidas de carga de trabajo. Pero, sí habría una medida tácita de eficacia, relacionada conla calidad del desempeño, con el efecto deseado, desde el punto de vista de los beneficiarios. Lamedición de desempeño es parte de un proceso más amplio de evaluación.Alicia Pierini 10 dio algunas cifras. Explicó que para la Ley 24.043 se habían presentado a la fechadel Informe 9840 personas, de los cuales ya se habían abonado 7423 casos y 830 se habían denegado.Los restantes 1587 solicitudes estaban en espera de documentación o en trámite de pago. A partir de laprórroga se presentaron 2792 casos más. El Estado había pagado más de 700 millones de dólares.Más de mil millones de dólares han sido invertidos por el Estado Nacional para indemnizar a losex presos políticos y perseguidos por la dictadura, si se suman los montos que recibieron losbeneficiarios del decreto 70/91, de la ley 24.043, sus prórrogas, equiparaciones, y los pagos que porcumplimiento de sentencias judiciales se hicieron en otros casos.910Ruckauf fue ministro del Interior desde agosto de 1993 a enero de 1995.Pierini, Alicia. 1989-1999 Diez Años de Derechos Humanos. Ministerio del Interior, Buenos Aires.425


5. Evaluación de la política reparatoriaLa evaluación forma parte de la vida de cualquier organización, aunque suceda de manera tácita,y consiste en que sus integrantes y los sectores sociales afectados por esa política, identifiquen y midanlos efectos de las acciones individuales y del conjunto.En lo que se refiere a la política reparatoria, se puede observar una resistencia a efectuarevaluaciones en forma expresa. Es posible que esa resistencia esté relacionada con las dificultades quetiene la sociedad argentina de analizar el pasado reciente y, en particular, la clase política para afrontarese debate, seguramente como consecuencia de la actuación de cada fuerza política durante ladictadura y el gobierno de Isabel Perón, y de la rendición de cuentas no realizada. Últimamente seobserva que esta situación empieza a mostrar signos de cambio.Sin embargo, la retroalimentación de la política reparatoria y las sucesivas prórrogas a las leyesse pueden considerar una evaluación implícita. La política pública reparatoria no sólo ha continuado, sinose ha incrementado. Se extendió a los sucesos de José León Suárez, los fusilamientos de 1956, a losasesinatos de Trelew, las víctimas del Plan Cóndor, los menores víctimas del terrorismo de Estado, lospresos del CONINTES, etc. Además, varias provincias han instituido pensiones para los ex detenidospolíticos.Otra evaluación implícita es también el fortalecimiento institucional que ha registrado la actualSecretaría de Derechos Humanos. Posee un edificio nuevo, un presupuesto propio y un organismodesconcentrado, el Archivo Nacional de la Memoria, que depende de la Secretaría. Tiene más personalcon mayor especialización y capacitación. Se han creado tres direcciones nacionales y dossubsecretarías de Estado.Por lo que se refiere a los sectores sociales afectados, hay una demanda importante por parte delas personas que debieron exiliarse durante el gobierno militar de que se sancione la ley del exilio.Tamayo Saez nos habla de un proceso cíclico donde la evaluación es la última fase del procesode la política pública y también la primera, ya que el análisis de los resultados puede iniciar una nuevapolítica. Los tipos de evaluación, anticipativa, de la evaluabilidad de la política, de necesidades, decontexto, de implantación de procesos, de la eficacia/impacto, de la calidad, que propone son difíciles deaplicar al contexto de la política reparatoria, porque es evidente el vacío de información.Ante esta ausencia de material, hemos tratado de medir el grado de eficacia de la políticareparatoria, es decir, si produjo el efecto deseado en los beneficiarios. La eficacia es la capacidad dehacer concretas o reales las metas programadas. Para lo cual, hemos recogido los juicios de algunos deellos.Una ex-presa manifestó que la indemnización significó una verdadera reparación y también unreconocimiento del Estado, por la privación de su libertad y por su militancia.Una hija de una persona asesinada por el gobierno militar explicó que de ningún modo era unareparación, porque nada podía reparar la muerte de su padre. Pero consideraba que esa indemnizaciónera una presencia de su padre, porque si él hubiera estado vivo, seguramente su presencia la hubieraayudado de varias maneras.Una hija de una detenida-desaparecida contó que su familia no conocía ningún referente queestuviera interiorizado de las alternativas de las reparaciones, ni tampoco tenían contacto con ningunaorganización de derechos humanos para pedir apoyo. Sin embargo, logró beneficiarse con la reparacióndespués de 10 años de trámites, a través de profesionales que ya estaban a cargo de otros casos másdifíciles de probar. Gracias a la compensación que recibió pudo estabilizar un poco su vida, pese a querecibió bonos post default que se cobran mensualmente y no como los demás beneficiarios que pudieroncobrar el total en un solo pago si así lo deseaban.Todos los entrevistados, tanto beneficiarios como Alicia Pierini y el personal de la Secretaría,estuvieron de acuerdo en que la reparación no puede reparar la pérdida, pero es un reconocimiento delEstado a las víctimas y al dolor y sufrimiento de sus familias.Por otra parte, se ha de señalar que la política reparatoria argentina ha marcado un hito por laenvergadura y la extensión de la cobertura. La experiencia argentina constituye un referente a nivelmundial en esta materia.IV. ConclusionesLos cuatro pilares con que el gobierno define a su política de derechos humanos son: memoria,verdad, justicia y reparación. Los tres primeros fueron la demanda de la sociedad civil, de los afectados yde sus familiares desde que comenzaron las violaciones a los derechos humanos. El cuarto, lareparación, es producto, sobre todo, de la respuesta que dio el Estado.En la Política Reparatoria se combinaron lo mejor de la decisión inicial y lo mejor de la iniciativade ventanilla. El éxito del inicio de la Política Reparatoria se debió, en gran medida, a la adaptación426


mutua entre el plan de acción generado por la conducción –la Directora y los administradoresgubernamentales– y las condiciones y capacidades del personal. Existió una “implementaciónadaptativa”.El diseño de la Política Reparatoria se fue haciendo sobre la marcha, en el transcurso de laimplementación, ya que no se había previsto la secuencia de acciones necesarias. Pese a ello, se puededecir que fue y sigue siendo una política exitosa. Como termina Marjone, podemos citar a Max Weberque recuerda que, a lo largo de la historia, “el hombre no habría alcanzado lo posible, si una y otra vezno hubiese buscado lo imposible” 11 . Como finaliza, para el éxito de esta política fue necesario el análisisfrío y la persuasión, tanto la pasión, como la perspectiva. Ambas estuvieron presentes.BibliografíaSubirats, Joan, Análisis de políticas públicas y eficacia de la administración, Madrid, Ministerio para lasAdministraciones Públicas, 1994.Bardach, Eugene, “Problemas de la definición de problemas en el análisis de políticas”, en AguilarVillanueva, Luis (comp.) Problemas Públicos y Agenda de Gobierno, Miguel Angel Porrua, México, 1993Comisión Nacional sobre Desaparición de Personas. Informe Nunca Más. Editorial Eudeba, 2ªedición,Buenos Aires, 1984.Lindblom, Charles “La ciencia de ‘salir del paso’”, en Aguilar Villanueva, Luis (comp.) La Hechura de lasPolíticas, Miguel Angel Porrua, México, 1992Majone, Giandomenico Evidencia, argumentación y persuasión en la formulación de políticas, Fondo deCultura Económica, México, 1997.Lowi, Theodore (1992) “Políticas públicas, estudio de caso y teoría política”, en Aguilar Villanueva, Luis(comp.) La hechura de las políticas, Miguel Angel Porrua, México.BID, (1997), Evaluación: una herramienta de gestión para mejorar el desempeño de los proyectos,Oficina de Evaluación (existe versión electrónica disponible).Torgerson, Douglas, “Entre el conocimiento y la política: tres caras del análisis de políticas”, en AguilarVillanueva, Luis (comp.) El estudio de las políticas públicas, Miguel Angel Porrua, México, 1992.Pierini, Alicia. 1989-1999 Diez Años de Derechos Humanos. Ministerio del Interior, Buenos Aires.Bertranou, Julián, “El desempeño del gobierno. Análisis de los aportes a la definición teórica de losconceptos”, Revista Política y Gestión, Vol. 2, Buenos Aires, 2001Tobelem, Alain Sistema de Análisis y Desarrollo de la Capacidad Institucional (SADCI). Manual deProcedimientos, 1992.Tamayo Sáez, Manuel. “El análisis de las políticas públicas”, en Bañón, Rafael y Carrillo, Ernesto(comps.) La nueva Administración Pública, Alianza Universidad, Madrid, 1997.Guembe, María José. La experiencia argentina de reparación econòmica de graves violaciones a losderechos humanos. Buenos Aires, 2004 (mimeo) (Publicado actualmente por Oxford University Press.Aguilar Villanueva, Luis “Estudio Introductorio”, en Aguilar Villanueva, Luis (comp.) La Implementación delas Políticas, Miguel Angel Porrua, México, 1993.Ammons, David, “Medidas de desempeño en los gobiernos estatales y locales”, en Losada i Marrodán(ed.), ¿De Burócratas a Gerentes? Las ciencias de la gestión aplicadas a la administración del Estado,BID, Washington, 1999.Guerrero Amparán, Juan Pablo, “La evaluación de políticas públicas: enfoques teóricos y realidades ennueve países desarrollados”, Gestión y Política Pública, Vol. IV, Nº 1, México, primer semestre, 1995.Nirenberg, Olga et al., Evaluar para la transformación. Innovaciones en la evaluación de programas yproyectos sociales, Paidós, Buenos Aires, 2000.11“Politics as a Vocation”, en H.H. Gerth y C. Wright Mills (comps), From Max Weber, Oxford University Press,Nueva York, 1946, p.128.427


Memória política ou políticas da memória?Memória, verdade e justiça a trinta anos do fim da ditadura na Argentina (1983-2013)Nicholas Rauschenberg 1Resumo: O presente trabalho busca discutir, a partir de uma breve reconstrução histórica dos dois ciclosde justiça transicional na Argentina, alguns posicionamentos sobre a atualidade do debate sobrememória política. O primeiro ciclo, logo depois do término da ditadura (1976-1983), se refere àelaboração do informe Nunca Más (1984) e ao julgamento público à junta militar (1985). O segundo ciclotem início em 1997 com os “juízos pela verdade”, com a anulação das leis de indulto em 2003 e com aretomada dos julgamentos que se estendem até a atualidade com as chamadas “megacausas”. Porém,não faltaram opiniões contrárias à retomada da justiça penal: entre elas, Beatriz Sarlo acusa o governode forjar um metarrelato histórico-político, e Claudia Hilb acusa que o excesso de justiça inibe a verdadee a reconciliação. Procuramos defender que a justiça não só contribui para a verdade, senão também àexemplaridade (Todorov).IntroduçãoComo explica Iván Orozco (2005, p. 19), “a justiça transicional vem a ser um campo de batalha enegociação entre razões memoriosas e razões esquecidiças (olvidadizas)”. Sempre com o foco doconflito em como olhar o passado a partir do presente, a justiça transicional envolve inúmeros atoressociais com demandas e perspectivas diferentes: de vítimas, criminosos, advogados e juízes atéjornalistas e políticos. A justiça transicional é o lugar onde se confrontam o universalismo dos direitoshumanos e o relativismo das éticas contextuais sempre “oportunamente” resgatadas por atiçadasdefesas prontas para justificar atos boçais. Também é o lugar das normas abstratas e das medidasconcretas das políticas para a paz e reconciliação, por um lado, e a justiça penal, por outro. A pesar dehaver muitas definições de justiça transicional, é inegável que seu objetivo é a passagem de um estadode exceção a um estado democrático, onde este deve exigir a melhor aplicação de verdade e justiçapossível. Para González, existem dois caminhos que aparentemente são excludentes: por um lado, ocaminho do direito penal com julgamentos e devidas punições, por outro, o caminho do que ele chamade “justiça transicional” que parece restrita às estratégias públicas de reconciliação, mas que excluem ocaminho pelo direito penal (González 2012, p. 131). No entanto, no caso argentino, ambas formas secombinaram gerando inúmeros debates e desentendimentos.É possível dividir o caso argentino de justiça transicional em dois ciclos. O primeiro se refere aoesforço do governo de Alfonsin que, uma vez terminada a ditadura (1976-1983), articulou uma comissãoda verdade, a Conadep, com claros fins de levar os chefes do fracassado regime militar à justiça penalcomum. O relatório final da Conadep, conhecido como Informe Nunca Más (CONADEP 2012), foipublicado massivamente já em 1984 e distribuído em todas as escolas e centros comunitários. Até embancas de jornal era possível comprá-lo. Esse informe foi utilizado como prova nos julgamentos à juntamilitar no ano seguinte. A principal polêmica em relação ao uso do informe Nunca Más como prova, foi osilenciamento do pertencimento político dos sobreviventes e testemunhas, mostrando um clarodirecionamento do testemunho a uma finalidade: refutar a “teoria dos dois demônios” que defendia quehouve uma guerra onde os fins justificavam os meios, quer dizer, os militares defendiam sua “guerrasuja” através de uma suposta e improvável equiparação de forças com o “inimigo”. Uma vez refutadaessa teoria, cinco dos nove acusados, entre eles Videla, foram severamente condenados à prisão (verVezzetti 2002 e Crenzel 2008).O segundo siclo não teve um início notoriamente marcado por uma iniciativa política. Foramsetores da sociedade civil que exigiram do poder público o conhecimento do paradeiro dosdesaparecidos e o esclarecimento sobre os crimes do terrorismo de estado. Os assim chamados “juízospela verdade” iniciados em 1997 foram fruto do trabalho coletivo de diversas pessoas, familiares dedesaparecidos políticos e organizações de direitos humanos que usaram a justiça para investigar oparadeiro das vítimas, mesmo sem a possibilidade de julgar os culpáveis.A partir de 1998 descobriu-se uma verdadeira brecha nas leis de impunidade: o sequestro dosbebes nascidos em cativeiro não estava contemplado nas disposições da anistia” (Filippini 2011, p. 25), oque permitiu aos ativistas de direitos humanos desenvolver novas estratégias que pudessem passar damera averiguação da verdade a uma instância penal. Em 2001 foram declaradas por um juiz1UNLP/UBA – nicholasrauschenberg@yahoo.com.br428


improcedentes as leis de impunidade sancionadas entre 1987 e 1990, mas ainda houve rearranjosjudiciais que impediam o acesso à justiça penal para julgar e condenar repressores. Foi só em 21 deagosto 2003, dois meses depois da assunção do Presidente Nestor Kirchner, que foi promulgada a lei25.779 que declara nulas as leis de Obediência Devida e Ponto Final. Depois de 2006, impulsado pelopoder executivo, os juízos se intensificaram, abarcando cada vez mais repressores.Diferentemente do Julgamento à Junta Militar nos anos 1980, o foco dos julgamentos atuais,embora abranja centralmente militares e agentes de segurança, progressivamente tem sido ainvestigação também de “muitos civis que participaram de modos diversos, como sacerdotes, juízes eex-ministros” (Filippini 2011, p. 26). Ou seja, a cumplicidade civil passou a ser sistematicamente alvo deinvestigações da justiça neste segundo ciclo de justiça transicional. Neste sentido, um casoparadigmático foi a condenação do ex-ministro de economia do regime militar, José Alfredo Martínez deHoz. Empresário de uma tradicional família oligárquica, Martínez de Hoz foi um dos grandesresponsáveis pela destruição do patrimônio público, debilitamento do setor trabalhista com forteconcentração de poucas empresas privilegiadas ligadas a grupos próximos ao governo ditatorial,estatização de dívidas privadas e transferência de grandes margens de lucro a favor de certos bancos egrupos financeiros nacionais e extrangeiros (ver Castellani 2009, p. 111 e Yanzón 2011, p. 148). Aacusação penal que recai sobre ele e seu ex-vice-ministro Albano Harguindeguy, contudo, remetepontualmente ao sequestro extorsivo que durou mais de cinco meses dos empresários algodoeirosFederico Gutheim e seu filho Miguel que foram obrigados a assinar contratos de exportação comcomerciantes ingleses e chineses residentes em Hong Kong que beneficiavam negócios privadosvinculados a agentes da ditadura. Essa condenação abriu caminho para processar os civis cúmplices doregime cívico-militar. 2 Além dessa domesticação da política e economia pelo terror, a aliança entremilitares e grupos econômicos se fez ainda mais nítida quando se descobriu que “eram os própriosempresários das grandes companhias que solicitavam o ‘serviço’ da ditadura para erradicar dirigentes oudelegados gremiais de seus estabelecimentos” (Shapiro 2002, p. 366).Outra diferença entre o processo dos anos 1980 e o atual é a ampliação dos conceitos jurídicosde tormento e tortura, ambos considerados crimes de lesa humanidade. No primeiro período, o tormentoera o “submarino” (afogamento) ou a aplicação de picana elétrica (normalmente no sexo do prisioneiro),ou golpes (com paus etc.), violência sexual etc. Hoje em dia, contudo, é possível falar de um conceitoamplo de tortura, que inclui também as condições de detenção (ver Rafecas 2010 e Versky 2012). Outramudança considerada um avanço da nova fase processual a partir de 2003 foi a ênfase colocada naviolência sexual que, acredita-se, foi aplicada contra todos os prisioneiros, especialmente sobre asmulheres, muitas das quais foram tidas como escravas sexuais. Nos novos julgamentos, muitasmulheres se animaram a contar em audiências públicas os abusos sexuais e as diversas violênciasperpetradas pela condição de gênero (Yanzon 2011, p. 151). A violência de gênero e os delitos contra aintegridade sexual relatados por diversas testemunhas, ao serem considerados como crimes de lesahumanidade devido à sistematicidade de seu uso como modo de tortura, abrem diversas possibilidadesde processamentos e condenações a perpetradores que ficariam impunes (Varsky 2012, p. 83). Noentanto, a mudança primordial do primeiro ao segundo ciclo foi a centralidade da testemunha para provaros atos criminosos. Sem dúvida havia outras provas sempre que possível, mas os relatos erampraticamente a condição de existência de um processo. Por isso, passou-se a destacar os relatos emprimeira pessoa e não mais aqueles relatos que comprovavam os fatos da sistematicidade do terrorismode Estado, predominantemente em terceira pessoa (ver Varsky 2011).A partir de 2003, as causas judiciais abertas foram atomizadas em razão das atividades de umdeterminado centro clandestino de detenção, a partir do qual operavam diversos atores, de diferentesforças de segurança e hierarquias. Deste modo, os acusados são submetidos a juízo oral e público,coletivamente, ou seja: um juízo oral pode envolver várias causas judiciais contra vários imputados. Ajunção de várias causas num único julgamento público centralizado chama-se “megacausa”. O total deacusados em todas as causas gira em torno de mil e trezentos. Durante o processo da “megacausa”conhecida como “Primeiro Corpo do Exército”, por exemplo, foram reconhecidas judicialmenteaproximadamente mil vítimas e foram condenados quase cem dos acusados, entre eles, “militares doExército e da Força Aérea, integrantes de forças de segurança, inteligência e serviços penitenciários,desde o chefe máximo, o ex-ditador Rafael Videla, até os torturadores” (Rafecas 2011. p. 165). Outrascausas conhecidas como “Club Atlético”, “El Banco” y “El Olimpo” abarcam em torno de trezentas vítimase vinte acusados. O juízo oral mais abarcativo é a “megacausa” ESMA, com cinquenta acusados eseiscentas e cinquenta vítimas (idem). Outra megacausa, mas na província de Córdoba, conhecida como“La Perla”, ainda em julgamento público, tem quarenta e quatro acusados 3 . Esta megacausa estácomposta por outras dezoito causas judiciais, conta com novecentas e oitenta e três testemunhas, einvestiga-se o ocorrido a quatrocentas e quinze vítimas.23Jornal Página 12, 28 de abril de 2010, link: http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-144762-2010-04-28.htmlVer Jornal Página 12 de 24/12/2012, link: http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-210521-2012-12-24.html429


Essas “megacausas” só puderam e podem ser preparadas com a providencial preparação dastestemunhas. Como o processo abrange, como já foi mencionado, além de civis que colaboraram com arepressão, também militares e agentes de segurança de hierarquia inferior, com raras exceções, a únicaprova que resta são os depoimentos de diversas testemunhas que sobreviveram ou que vêm lutando porjustiça de parentes desaparecidos. Infelizmente, os agentes de menor hierarquia no aparato repressor,muitas vezes, tinham documentação falsa ou simplesmente usavam apelidos em suas tarefas ilegais, oque dificulta sua identificação por parte da justiça penal (Yasón, 2011, p. 152). A preparação dastestemunhas implica orientá-las e fornecer-lhe previamente elementos diante do momento inusual de terde declarar num julgamento público. Além de eventual ajuda psicológica e de proteção policial, atestemunha recebe quase sempre suas próprias declarações anteriores, por exemplo, aquelasdeclaradas na Conadep ou em causas anteriores em que também testemunhou. Com o avanço semprecedentes das causas julgadas atualmente, é comum surgirem novas testemunhas durante os debatespúblicos ou em declarações diante da promotoria. Um exemplo se deu no julgamento da causaconhecida como “Massacre de Fátima”, que constitui a megacausa “Primeiro Corpo do Exército” daCapital Federal, onde se analisa o fuzilamento de um grupo de prisioneiros políticos. Nesta causa foipreciso recorrer ao testemunho de um sobrevivente que havia sido citado em muitos relatos, mas cujaconfirmação era imprescindível (ver Varsky 2011).Negacionismo subterrâneo. Verdade versus justiça?No caso argentino, parece que a década menemista (1989-1999) com a impunidade arepressores e continuísmos em política econômica com a ditadura militar potencializou o que MichaelPollak (1989) chamou “memória coletiva subterrânea” que se opõe a uma memória organizada que,mesmo sendo coletiva, é “enquadrada”, isto é, direcionada para um determinado fim num certo contexto,prevalecendo nela um recorte arbitrário devidamente justificado. Essas memórias subterrâneas tendem aser “guardadas em estruturas de comunicação informais e passam desapercebidas pela sociedadeenglobante” (Pollak 1989, p. 8). Se, por um lado, com os “juízos pela verdade” iniciados em meados dosanos 1990, pôde-se ver um modo de “enquadramento” e elaboração da memória (Adorno 1962) quevisavam mesmo num longo prazo objetivamente a justiça, outro setor da sociedade parece surpreso comos desdobramentos dos julgamentos atuais. Se analisarmos os discursos que se contrapõe à política damemória na Argentina atual, desconfiaremos da intencionalidade política que eles possam esconder.Antes que memória subterrânea, poderíamos chamar esses fenômenos de “esquecimento subterrâneo”:é a repulsa a lembrar e, quando não resta outra alternativa, lembrar sem lembrar dos avanços emmatéria de justiça transicional. O que quero chamar aqui de “esquecimento subterrâneo” é uma forma denegacionismo de certa forma “ilustrado”, já que provém inclusive de celebridades intelectuais comoBeatriz Sarlo e inúmeros jornalistas dos grandes grupos midiáticos. Esse negacionismo subterrâneosempre acusa a memória oponente de estar impregnada de “esquecimento” (intencional), de ser“ideológica” e parcial. Esse negacionismo parece no fundo querer ignorar que houve um genocídio einsiste em comparar e equiparar a ação militar à ação armada insurgente. Em Os abusos da memória,Todorov (2000) explica que a memória é necessariamente uma seleção. Contudo, o que implicaria umabuso da memória ou do esquecimento senão uma justificação ou a acusação de uma justificaçãoindevida? Como veremos, comparar para justificar e exemplificar pode trazer armadilhas.No dia oito de novembro de 2012, Alejandro Katz, dono da prestigiosa editora Katz, publicou umartigo 4 no jornal La Nación, terceiro principal em circulação na Argentina, intitulado Políticas de lamemória que más bien buscan el olvido. No artigo, Katz questiona a política em torno da memória doterrorismo de Estado nos anos 1970 levada adiante pelo atual governo desde 2003. No mesmíssimo 8de novembro (o famoso 8N), organizações de direita convocaram seus simpatizantes (ao todocompareceram no Obelisco da capital portenha cerca de 20.000 pessoas brancas e bem vestidas 5 ) paraum panelaço ou “cacerolazo” contra o governo de Cristina Kirchner, reivindicando a não reforma daconstituição (re-reeleição, “liberdade” para comprar dólares e “não” à Lei de Meios Audiovisuais queregula o setor limitando monopólios), o que contou com inúmeras agressões a jornalistas que nãorepresentavam os interesses dos organizadores dessa marcha. O único grupo de imprensa não agredidose limitou aos jornalistas do assim chamado – e poderoso – Grupo Clarín, que vive uma batalha judicial,como vimos, e uma disputa midiática contra o atual governo que desembocou na elaboração epromulgação da “Lei de Meios”, ou Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual em 2009. A lei, que éreferência para a multiplicidade de vozes e um estímulo sem precedentes para produções audiovisuais45Para ler o artigo, acessar: http://www.lanacion.com.ar/1524456-politicas-de-la-memoria-que-mas-bien-buscan-elolvido(Todas as traduções do espanhol ao português são minhas).Como antropólogo fui à marcha e o cântico que mais se ouvia dessas pessoas enfurecidas era: “el que no saltaes negro K!”, ou seja, “aquele que não pula é um negro kirchnerista”. Sobre o racismo argentino ver Ratier(1972), Margulis e Urreti (1998), Solomianski (2003) e Belvedere (2007).430


locais (ver Baranchuk 2011), tem um artigo, o 161, que prevê o fim dos monopólios. Isso irrita, claro, oGrupo Clarín, que também possui o jornal La Nación onde Alejandro Katz publicou seu artigo, já queesse grupo de multimeios detém mais de 300 meios, sendo destes mais de 240 canais de televisãoatravés do absoluto monopólio da TV a cabo (empresa Cablevisión). Por tanto, o clima do 8N, eraalimentado por uma consigna de “liberdade” de mercado alentada por um monopólio comunicativo quevê na Lei de Meios, juntamente com uma série de políticas do atual governo, entre elas, as políticas damemória por meio da justiça penal e de redistribuição através de políticas sociais, seus interesses maisconsolidados desmoronarem. Não surpreende que, nesse clima aguerrido, os jornalistas desse grupo,juntos com seus sócios da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), se digam perseguidos pelogoverno, afirmando que sua liberdade de imprensa (ou de empresa) está ameaçada.Em seu provocador artigo, ao denunciar o governo atual de fazer uma política da memória que,por um lado, glorifica a militância do passado e, por outro, julga e condena os repressores (militares,civis, eclesiásticos, etc.), além de espalhar monumentos à memória e ao terrorismo de estado pelo país,Katz quer fazer crer que, com isso, a intenção do governo é produzir um “relato” (ou “metarelato”), querdizer, uma versão única da história que, orientada por um imperativo moral vitimizante, estabeleça o beme o mal numa perspectiva histórica, vista do presente, e sirva de referência para um juízo políticoideológicoda cidadania comum. Assim, para Katz, relembrar ou rememorar significa selecionar eventoscuja carga semântica só é possível de entender se nos detivermos em sua intenção meramente políticae ideológica. Aquilo que ficou excluído da “seleção” de fatos memoráveis se deve a uma manipulaçãopolítica maniqueísta estimulada exclusivamente pelo governo, que cria seu “relato”, ou seja, sua históriaoficial com apelo moral para se legitimar no poder. O alvo de suas críticas é o fato de o governo não terprocessado também, além dos militares, os assim chamados terroristas, tanto os Montoneros quanto osdo ERP. É como se o governo ocultasse intencionalmente as ações ilegais de violência que os gruposguerrilheiros tinham perpetrado. Contudo, como cimos acima, ambas guerrilhas já haviam sidomassacradas e desmanteladas antes do início da ditadura de 1976 (ver Anguita e Caparrós 2006, eNovaro e Palermo 2010), a pesar da famosa contra-ofensiva montonera de 1978 que foi duramentereprimida (ver Gillespie 2008). Para Alejandro Katz, a política da memória “oficial” se converteu “no lugardo gozo que proporciona a cólera de quem não esquece”, atribuindo ao governo uma intenção derevanchismo e vingança, dada sua suposta continuidade com o projeto político peronista. O rancorprovocaria, assim, um desapego em relação à justiça, que se transforma, longe da verdade, emcontinuadora do conflito que se arrasta pela história. Deste modo, conclui Katz, essa política facciosa dorememorar é, antes, uma política do esquecimento a partir da qual o governo quer consolidar a suahegemonia retórica. Portanto, de acordo com Katz, há esquecimento onde o relato da memória aspira àexaltação do próprio sofrimento e do sofrimento daqueles que são semelhantes, à celebração doirrecuperável, à glorificação de um passado de suposto sacrifício compartilhado: “a memória da desgraçaé a memória do ódio”. O lugar do discurso de Katz pressupõe um governo autoritário, ao qual semdúvida ele fervorosamente se opõe. No entanto, como é possível constatar em vários âmbitos deprodução de conhecimento, é o próprio governo que conforma e estimula a maior diversidade dediscursos, seja com espaços de discussão, bolsas de pesquisa, congresos acadêmicos, filmes, TV digitalaberta etc. Basta ir numa livraria, das muitas que há na cidade de Buenos Aires, por exemplo, ecomparar a grande diversidade de posicionamentos teóricos e políticos em relação à história recente. Onegacionismo subterrâneo de Katz carrega exemplarmente o ódio da direita atual que segue presa àvelha argumentação militar sustentada pela teoria dos dois demônios e que ignora as vantagens enormativas da justiça penal transicional.Seguindo o mesmo tom “opositor” de Alejandro Katz, o politólogo e colunista ultraconservador dojornal La Nación, Emilio Cárdenas 6 , publicou um artigo que ilustra bem como um “abuso da memória”pode servir de justificativa. Tal como Katz, Cárdenas é contra a retomada dos julgamentos aosrepressores da última ditadura. O argumento de Cárdenas retoma o caso do pós-guerra alemão, onde osjulgamentos dos crimes do nazismo geraram um desentendimento entre soviéticos, por um lado, efranceses, ingleses e norte-americanos, por outro. Para estes deveria haver, apesar de tudo, um “devidoprocesso penal”, com a presunção de inocência garantida caso não fosse possível provar crimes paraum determinado imputado. No entanto, para os soviéticos, os julgamentos seriam uma mera formalidadepara constatar o que “todos” já deveriam saber: os líderes alemães são culpados. Se os primeirosdemandavam uma corte imparcial e separada da política, os soviéticos viram no julgamento umapossibilidade de legitimar sua propaganda política, usando as atrocidades nazistas para ocultar seuspróprios campos de concentração e execuções de inimigos políticos. O que quer advertir Cárdenas éque a retomada da justiça transitória na Argentina desde 2003, além de revanchista, não cumpre regrasbásicas do assim chamado “devido processo” pela via penal ao não considerar a presunção de inocênciados acusados, insinuando que os novos processos são persecutórios e têm uma intenção política e6Para ver o artigo de Cárdenas de 24/01/2013: http://www.lanacion.com.ar/1548408-los-delitos-de-lesahumanidad-deben-ser-probados431


ideológica definida de antemão. Como vimos, muitos réus que são processados são absolvidos que nãose prova o envolvimento, além do fato que as condenações ponderam as penas quando se prova aparticipação secundária. Mas a argumentação de cárdenas por meio da comparação tendenciosa é típicada oposição argentina atual que ora chama o governo de ditadura, ora de nazista ou ora de stalinista.Longe de impressionar, elas só mostram como opera o negacionismo já mencionado: só um governoautoritário pode fazer um julgamento sumário para legitimar uma ideologia, e esse governo foi a ditadurade Videla que entregou a empresa Papel Prensa ao Grupo Clarín.Um terceiro caso de colunista desse jornal que assume uma postura opositora ao governo atualé Beatriz Sarlo. Em 2005 publicou Tiempo pasado. Cultura de la memória y giro subjetivo, onde seconstrói, talvez pela primeira vez, a questão do “relato kirchnerista” da história com base na política damemória. Como vimos acima, se no primeiro ciclo de justiça transicional deu-se ênfase nos discursostestemunhais em terceira pessoa para constatar os fatos da repressão e provar a sistematicidade deexcessos permanentes de violência estatal, no segundo ciclo, depois de mais de vinte anos de terminadaa ditadura, a repetição e reelaboração do discurso de vítimas e testemunhas deslocou a ênfase daterceira para a primeira pessoa. Esta “primeira pessoa” já não precisa esconder ou omitir seupertencimento político, já que a “teoria dos dois demônios” ficou claramente refutada, pelo menos porparte da justiça e boa pate da opinião pública. A esse giro “testemunhal” deve somar-se a ampliação doconceito de tortura, como exposto acima, e a responsabilidade dos relatos que passaram a ser a provaprimordial, juntamente com uma série de documentos e investigações. Dito isto, o que Sarlo pretende éuma “desmitificação” do discurso testemunhal. Essa preminência da primeira pessoa é chamada porSarlo de “retórica testemunhal”, e se baseia em sua interpretação particular de Walter Benjamin que dizque “o presente da enunciação é o tempo base do discurso”, o que “implica ao narrador em sua históriae a inscreve em uma retórica da persuasão” (Sarlo 2005, p. 64). Para Sarlo, isso rompe a cristalizaçãoinabordável (encantada moralmente) dos discursos testemunhais: são discursos.Essas narrações testemunhais (militantes, intelectuais, políticas etc.) não seriam, segundo Sarlo,a única fonte de conhecimento: “só uma fetichização da verdade testemunhal poderia outorgar-lhes umpeso superior ao de outros documentos. [...] Só uma confiança ingênua na primeira pessoa e nalembrança do vivido pretenderia estabelecer uma ordem presidida pelo testemunhal” (ibid, p. 62). Essaingenuidade consiste em como essa ordem discursiva, especificamente testemunhal e, claro, emprimeira pessoa, se move “pelo impulso de fechar os sentidos que se escapam; não só se articulamcontra o esquecimento, mas também lutam por um significado que unifique a interpretação” (ibid, p. 67).Essa acumulação de detalhes dada através da multiplicidade de “eus testemunhas” tende a unificar osentido da história em questão. Essa unificação, que de certa forma não deixa de ser uma consciênciahistórica ao estilo de um Sartre, é denominada por Sarlo “modo realista-romântico”. Este “modo”encontra sua veracidade no sentido colectivo de sua enunciação. Nessa retórica da memória, o quemostra Sarlo é que o detalhe individual tende a reforçar o “relato teleológico”: “se a história tem umobjetivo estabelecido de antemão, os detalhes se acomodam a essa direção” (ibid, p. 74).Sarlo não está disposta a concordar com Benjamin em relação a seu messianismo. Benjamin, aonegar certa vertente positivista e relativa da ciência histórica, se inclinaria por uma história que liberasse“o passado de sua reificação, redimindo-o em um ato presente de memória”, que primaria por certo tipode continuidade (ibid, p. 78). Para Sarlo, esse errôneo messianismo é apenas um duplo anacronismo:por um lado, haveria uma dimensão ética e, por outro, haveria uma clara contraposição ao fetichismodocumental do positivismo histórico: “olhar o passado com os olhos daqueles que o viveram, para podercaptar ali o sofrimento e as ruínas” (ibid, p. 78). Quer dizer: em vez de “fortalecer o anacronismo”, oargumento de Benjamin, antes, buscaria dissolvê-lo (ibid, p. 79). Assim, para Sarlo, “a história não podesimplesmente cultivar o anacronismo por livre opção, porque se trata de uma contingência que a golpeiasem interrupções e está mantida por um processo de enunciação que, como se viu, é sempre presente”(ibid, p. 79). É neste sentido que Sarlo se questiona a respeito de como pensavam os militantes em1970. Seria necessário evitar se limitar somente à lembrança “que eles têm agora de como eram e comoatuavam”, já que se abandonaria a “pretensão reificante da subjetividade” que quer “expulsar asubjetividade da história” (ibid, p. 83). Isso quer dizer, para Sarlo, que a “verdade” não é o resultado dese submeter “a uma perspectiva memorialística que tem limites e nem, muito menos, a suas operaçõestáticas” (idem). Quem recorda hoje em dia de modo algum está retirado “da luta política contemporânea.[...] As memórias se colocam deliberadamente no cenário dos conflitos atuais e pretendem atuar nele”(idem). Através de uma crítica ao continuísmo messiânico Benjamin, portanto, Sarlo quer limitar o tipo decontinuidade que está em jogo no que ela chama de “retórica memorialística”: é uma construçãoteleológica da história que só pode ser entendida analisando o presente dada sua naturezaexclusivamente discursiva. Ao rechaçar o messianismo benjaminiano que busca uma empatia com osoprimidos, Sarlo adverte sobre os perigos da vitimização de certo uso intencionado presente no discursohistórico. O exemplo que culmina esse raciocínio seria: “a ideia de direitos humanos não existia nasdécadas de 1960 e 1970 dentro dos movimentos revolucionários. E se é impossível (e indesejável)432


extirpá-la do presente, tampouco é possível projetá-la ao passado” (ibid, p. 82). Este argumento eramuito usado na defesa militar em 1985 quando afirmava que os “subversivos” trocaram a luta armadapelos direitos humanos para se vingar dos militares. Vezzetti (2002) e Crenzel (2008) observaram bemesse giro na opinião pública: de uma ênfase na confrontação durante os anos de chumbo a umaformação do discurso humanitário já a partir dos últimos anos do regime. Sem dúvida os processosdevem ser vistos pela justiça atual e devem desidealizar o passado para investigar crimes; contudo,defender que a “retórica testemunhal” quer reviver ou “continuar” o passado é idealizar o presente.A argumentação de Sarlo, sem dúvida muito mais elaborada que a de seus colegas de jornalAlejandro Katz e Emilio Cárdenas, não seria tão insuficiente se ignorássemos o fato de que o debatesobre a memória não é só histórico-filosófico, senão também jurídico e político. Sarlo parecedesconhecer as vantagens e contribuições da justiça transicional no marco do direito internacional àprópria história sobre o tempo sombrio da ditadura. E para isso ela desenvolve uma crítica da ideologiado testemunho, elemento central dos julgamentos atuais. No entanto, ao tentar revelar o “caráter político”das políticas da memória atual como contingência a ser superada, Sarlo parece querer hipostasiar certocaráter literal da memória, só que restringindo esta, por um lado, a um plano exclusivamente discursivocujo pressuposto é uma idealização por parte de Sarlo em relação à realidade política da Argentina ondea reconciliação pareceria ser total, mas onde o governo parece querer fazer um uso forçado dessamemória para obter benefícios políticos e, por outro, esse mesmo governo encarnaria uma claracontinuação com o projeto político do passado. Referindo-se à geração política dos anos 1970, Sarlosugere que uma pós-memória, ou seja, uma memória da memória (ou vicaria) seria uma “correçãodecidida da memória” (ibid, p. 145) para evitar que o mal nunca se repita, e não a tentativa de uma“trabalhosa reconstrução” através da política. Portanto, Sarlo sugere uma continuidade clara entre apolítica memorial atual, que inclui a justiça transicional, e a geração vítima do terrorismo estatal. Mas, sea memória é dependente do presente, como ela pode constituir um projeto do passado? Para Sarlo, ogoverno atual usa o passado em favor de fundamentar um discurso político para o qual a retóricatestemunhal dos direitos humanos é essencial, o que a meu ver remete a um maniqueísmo rudimentar. Éevidente que Sarlo se opõe ao governo e busca modos sofisticados de exercer sua posição e opiniãopolíticas, o que é legítimo. Mas considerar que há um duplo “uso da memória” (uma dupla literalidade),principalmente considerando as posições da oposição em relação à justiça transicional que pregam atotal cancelação desse processo, desalenta o leitor que busca na memória política um modo deexemplaridade, como Todorov.Em vez de procurar na construção de um suposto “metarrelato” da história por parte do governoatual uma “metaintencionalidade política”, como quer problematizar Sarlo, a meu ver a pergunta deveriaser: “existe um modo para distinguir de antemão os bons e os maus usos do passado” (Todorov 2000, p.29), tendo em vista a inevitável contingência da seleção de fatos da memória? Como sugere Todorov(ibid, p. 31), o acontecimento recuperado pela memória pode ser lido de duas formas: a literal ou aexemplar. Como modo de continuidade, a memória literal é limitada já que situa os fatos relembradoscomo contíguos ao presente, onde é essencial conhecer as causas e as consequências desseacontecimento. A literalidade não significa necessariamente a verdadeira revelação dos fatos, já queestes podem permanecer intransitivos, não conduzindo para além de si mesmos (Todorov 2002, p. 30).Por sua vez, a memória exemplar não dispensa a singularidade de determinado fato recuperado, já que,como uma manifestação entre outras de uma categoria mais geral, serve de modelo para compreendersituações novas, permitindo ressalvas críticas situadas. Para Todorov, a memória literal, se levadaadiante de modo extremo, pode ser perigosa, devido a que os fatos rememorados são incomparáveisentre si, enquanto que a memória exemplar é potencialmente liberadora (ibid, p. 31). O uso literal quetorna um velho acontecimento insuperável deriva numa submissão do presente ao passado, enquantoque “o uso exemplar, ao contrário, permite utilizar o passado com vistas ao presente, aproveitando aslições das injustiças para lutar contra as que se produzem hoje em dia” (Todorov 2002, p. 32). Todorovconsidera que a justiça nasce da generalização de uma acusação particular, mas que é amplificada pelaexemplaridade do fato e suas consequências: “é a des-individualização o que permite o advento da lei”(ibid. p. 33).Pensando em comparações que servem de apoio a justificações em contextos de contingênciada memória política, Huyssen retoma de Paul Ricoeur (2004) as categorias de memória manipulada eesquecimento comandado. Huyssen (2004) sugere uma comparação pontual entre a Argentina pósditadurae a Alemanha do pós-guerra. Tendo como referência do caso argentino somente o primeiro ciclode justiça transicional (principalmente Vezzetti 2002), Huyssen destaca o papel do Estado argentino naformação da memória pública (memória manipulada, na interpretação de Huyssen), mesmo que tenhasido às custas de uma memória mais elaborada e com consequências judiciais em relação ao terrorismoinsurgente (esquecimento comandado, ou seja, referindo-se a omissão de pertencimento político dasvítimas e testemunhas no julgamento à junta militar). Sem dúvida, é possível discutir à exaustão comHuyssen esta simplificação esquemática que, como mostramos acima, é mais complexa. Contudo,433


embora considerando que o Holocausto se mantenha por si só como “marco zero em muitos estudossobre os traumas contemporâneos”, objetivo de Huyssen é discutir um episódio da história alemã queparecia ter ficado na mais escura penumbra do esquecimento: os bombardeios aliados sobre 131cidades alemãs no final da Segunda Guerra, com um saldo de 600.000 civis mortos e 3,5 milhões demoradias destruídas.Durante muito tempo, falar da guerra aérea parecia querer relativizar os crimes do Holocausto.Se nos anos 1950 a direita alemã falava sobre o bombardeio de Dresden e da expulsão e deportação doleste de volta à Alemanha, onde morreram milhares de alemães refugiados depois da guerra, a esquerdafalava de Auschwitz e do genocídio administrado. Como lembra Huyssen, os argumentos da esquerdaeram politicamente legítimos. A vitimização da Alemanha, vinculada a um discurso nacionalistaduradouro, era fundamentalmente reacionária e devia ser combatida para que o país chegasse a umnovo consenso em relação ao passado alemão. Desta vez, o preço político a pagar por essa vitóriadiscursiva foi o esquecimento da guerra aérea, o esquecimento de uma experiência traumática nacional(ver Huyssen 2004, p. 12). No entanto, na última década, no contexto do repúdio da comunidadeinternacional ao bombardeio norte-americano sobre o Iraque, o assunto da Luftkrieg (guerra aérea)ganhou uma notoriedade pública, tanto através da literatura quanto dos meios de comunicação. Assim,em termos de memória política, se no primeiro ciclo de justiça transicional argentino preferiu-se silenciaro pertencimento político das vítimas da ditadura, na Alemanha do pós-guerra, os crimes contra apopulação civil pareciam “justificados” pela política genocida nazista. Mas hoje, diante de umainquestionável sedimentação desde diversas áreas do conhecimento e tendências políticas sobre oHolocausto, deixou de ser um incômodo tabu resgatar e elaborar a experiência de horror dosbombardeios.O amadurecimento geral tanto da sociedade civil quanto do poder judiciário também puderamrevelar, no segundo ciclo argentino, que as “justificações” que articulavam o primeiro ciclo poderiam serdeixadas de lado, já que já não há uma ameaça latente de retorno da ditadura, como em 1985, e averdade mais abrangente e detalhada passa a ser de interesse geral e da justiça, dado que esta sebaseia em critérios universais e internacionais amplamente reconhecidos. A própria violência insurgentedos anos 1970, que nunca deixou de ser considerada como tendo um caráter criminal, embora nãosejam crimes de lesa humanidade, vem sendo abordada em diversos estudos e filmes. Alguns exemplossão o filme documentário de David Blaustein, Caçadores de utopias (2004), sobre os Montoneros, e oslivros Soldados de Perón. Uma história crítica sobre os Montoneros, de Richasd Gillespie (2008), Sobrea violência revolucionária, de Hugo Vezzetti (2009), e Um inimigo para a nação, de Marina Franco(2012), entre outros. Estes trabalhos revelam uma outra dimensão do imaginário daqueles anos quenada têm a ver com a pretendida continuidade sugerida por Sarlo e Katz.A partir do exemplo de Huyssen é possível afirmar que a comparação ilumina o entendimento docaso alemão e de certa forma também o caso argentino, especialmente se observamos astransformações do primeiro ciclo em relação ao segundo. No entanto, comparar pode revelar aspectosde um negacionismo, especialmente aquele indicado acima: o negacionismo subterrâneo. É o caso dapolitóloga argentina Claudia Hilb (2010). Autodenominada como pertencente à “geração dos 70”, mascom todos seus estudos feitos na França, Hilb sugere, a partir de uma comparação com o processo detransição da África do Sul, uma nova forma de política da memória que não seja “tão” voltada para ajustiça, embora ela reconheça claramente as vantagens de que haja devido julgamento, especialmenteem relação a crimes contra a humanidade. Sua tese se apoia numa articulação entre as noções deperdão e reconciliação de Hannah Arendt. Segundo sua leitura, se o banal funcionário do mal, pensandoem Eichmann, não é passível de ser perdoado, é porque não pode propriamente ser considerado umator, já que demonstrou ser incapaz de se insertar no mundo comum através da ação livre. Somenteaqueles que “não sabem o que fazem” devido a que as consequências de seus atos excedem suacapacidade de controlá-los e, assim, poderíamos acreditar que diante das consequências de seus atos,queiram poder desfazê-las, só esses é que são suscetíveis de ser perdoados (Hilb 2010, p. 9). Areconciliação tende a ser indissociável da compreensão. Somos capazes de nos reconciliar com omundo desde que o compreendamos. “Compreender é se reconciliar em ato”, diz Arendt (1953, DiárioFilosófico, apud Hilb 2010, p. 4). No entanto, compreender não é necessariamente perdoar, e perdoarnão tem porquê ser o oposto à reconciliação. Assim, explica Hilb, o perdão “é essa capacidade humana,essa ação aparentemente impossível, ao alcance daqueles que compreendem e, compreendendo,podem se reconciliar com o mundo e, então, eventualmente perdoar” (ibid, p. 4).Como já mencionado, a intenção de Hilb é esboçar uma comparação entre o já conhecido casoargentino e o caso sul-africano, a saber, os crimes atrozes do apartheid que tiveram ampla impunidade ea formação de uma Comissão da Verdade e Reconciliação, em 1995. Se pensarmos nos três conceitosfundamentais – memória, verdade e justiça – que perpassam a problemática da memória das justiçastransicionais, em ambos casos, segundo Hilb, verdade e justiça se excluem mutuamente. Na África doSul, a Comissão da Verdade e Reconciliação ficou responsável por recolher os relatos tanto de vítimas434


quanto de vitimários. As vítimas de abusos, conta Hilb, que assim o demandassem, seriam ouvidas epoderiam obter reparação. Aqueles perpetradores que voluntariamente solicitassem dentro de um prazoestabelecido expor seus crimes à Comissão “seriam anistiados em caso de proceder à ‘plena exposição’de seus crimes, desde que pudessem demonstrar que estes crimes estavam vinculados a algum objetivopolítico” (Hilb 2010, p. 12). O que surpreendeu Hilb foi que “os principais interessados em falar a verdadeeram os próprios criminais” (idem). A anistia contemplava todas as graves violações de direitos humanosdesde 1960 até maio de 1994. “Durante 1888 dias e em 267 lugares diferentes, com cobertura mediáticapermanente, a população sul-africana pôde conhecer, na voz e nas múltiplas línguas de vítimas evitimários, as histórias mais terríveis sob seus olhos” (idem). Seguindo sua leitura de Arendt, ainterpretação desse caso proposta por Hilb é que se instala com isso “uma economia do perdão”: osvitimários tiveram de se expor em detalhes para ser anistiados. “Nem o mero arrependimento nem operdão [privado] foram condição para a anistia” (idem), senão o ato de reconhecer publicamente oscrimes.Voltando à Argentina, Hilb cita o famoso caso do capitão Adolfo Scilingo que, depois de declarana justiça, havia sido entrevistado por sua própria vontade pelo jornalista do diário Página 12, HoracioVerbinsky, onde revelou que muitos dos presos políticos desapareciam jogados sedados ao mar duranteos famosos “voos da morte” (ver Verbinsky 1995). Uma vez na Espanha para declarar voluntariamentediante do juiz Baltazar Garzón, foi detido e condenado a 640 anos de prisão por crimes de lesahumanidade. Segundo Hilb, isso teria inibido por razões óbvias outros perpetradores a falar. Assim, naArgentina, a ação da justiça teria provocado uma inibição na revelação da verdade já que os vitimáriosse sentiram intimidados e não se apresentaram voluntariamente, deixando, claro, de contar detalhessobre as crianças nascidas nas prisões clandestinas que foram roubadas ou sobre o paradeiro dosdesaparecidos. Contudo, como vimos acima, Scilingo foi muito mais perseguido pelos militares que sesentiam ameaçados chegando a ser preso através de uma causa inventada restando-lhe como últimorecurso, depois de ter sua pensão cancelada e de ser ameaçado permanentemente, migrar à Espanha,onde foi julgado e condenado pelos crimes vinculados ao terrorismo de estado. O governo do expresidenteMenem não o protegeu como testemunha e nem estimulou outros arrependidos a falar. Ajustiça nesse momento lhes garantia plena impunidade se outros quisessem ter falado ou inclusivepublicado o que sabiam. Não é possível encontrar semelhanças válidas com o caso sul-africano: tanto otrabalho da Conadep quanto dos “juízos pela verdade” podem ser considerados como “comissões daverdade”, mas sem a versão dos perpetradores que preferiram omitir seu relato. Em ambas havia de fatoa intensão de encontrar a verdade dos fatos com clara esperança, contudo, de que houvesse justiça. Nocaso sul-africano a justiça estava praticamente descartada de antemão, e o objetivo da comissão eraritualizar publicamente o ato do perdão diante do relato do crime.Na África do Sul, graças à ação da Comissão, explica Hilb, foi possível o começo da “novacomunidade multiracial”, reconciliada. Infelizmente Hilb parece ter ignorado livros, relatos e artigos comoo de Fiona Ross (2006) sobre o silêncio irremediável das inúmeras vítimas de estupro e HIV-positivo,mulheres que além de submetidas a violências físicas brutais e morais, se viam obrigadascorajosamente a manter o silêncio “pelo bem e interesse da comunidade”. Para Ross, a Comissão deVerdade e Reconciliação estava muito mais preocupada em individualizar seus 22.000 casos em vez derever, processar e julgar os crimes do Apartheid. O que Hilb chama “economia do perdão”, para Rossseria uma “economia do negacionismo”. É muito ingênuo pensar que “a verdade” dos fatos, como querHilb, seria contada sem esbarrar no negacionismo possibilitado tanto pela garantia de impunidade, porum lado, quanto pelo terror das vítimas. Se considerarmos, seguindo Todorov, que o próprio ato derememorar é seletivo, quê economia linguística estaria em jogo nesses relatos que não poderiamquestionar a lógica profunda das atrocidades, dados os evidentes continuísmos presentes e persistentesno estado racista? As “verdades” a que se refere Hilb só podem servir num processo de reconciliaçãoonde a opção pela justiça penal é impossível. A literalidade dos relatos acabam gerando uma“exemplaridade” parcial e inclusive negativa, dado que a ordem social ainda privilegia a injustiça, sejasocioeconômica ou jurídica.O uso da verdade sem justiça pode inclusive ser considerado pior que o público conhecimentodos fatos porque não só garante a impunidade, mas também transforma a situação numa “nova ofensapara a vítima” (Varsky 2011, p. 74). Para Carolina Varsky, o procedimento africano é totalmente imoral, jáque consiste numa troca da verdade pela impunidade (idem). Outro texto que mostra a quase ineficiênciadas comissões de verdade e reconciliação é o artigo de Bosire (2006). A autora discute, em perspectivacomparada com os países da África Subsaariana, tanto o fraco efeito reconciliador das comissões daverdade quanto o fracasso da intervenção de qualquer tentativa de implementar uma política de direitoshumanos, o que garante uma total predominância de impunidade. Um dos motivos desse fracasso, alémda grande desigualdade socioeconômica, se deve à continuidade dos perpetradores, na maioria doscasos, em posições de poder, seja em estados com democracias frágeis quanto em grandes empresascom vínculos estruturais com o estado.435


Nesse sentido, o filósofo argentino Diego Tatián, em resposta à Claudia Hilb, procura refazer apergunta que orienta a argumentação da politóloga: “como fundar uma comunidade depois do crime?”.Para Tatián (2012, p. 3), essa pergunta, considerando as evidentes diferenças entre os casos argentino esul-africano, deveria ser:Quais ações jurídicas, políticas e narrativas é necessário que a sociedade argentina leveadiante para compensar os efeitos do Terror que danificam – de modo irreversivelmenteprofundo – os corpos, os vínculos e a própria vida de muitos de seus membros, tendoem conta uma história específica de impunidades, de modo a criar as condições depossibilidade de uma democracia mais extensa e mais intensa, ininterrompida no futuro,ou seja, para impedir tanto como for possível o ressurgimento do Terror exercido desdeo Estado?Para Tatián o processo judicial de modo algum obstrui a verdade, nem a compreensão e nem oarrependimento. Tampouco o caminho da justiça impede que tanto repressores quanto guerrilheirospossam rever sua própria ação; muito menos pode responsabilizar-se a justiça pelo fato de não seconhecer o destino das vítimas desaparecidas. Se conhecer a verdade sem a devida ação da justiçafosse uma solução realmente eficiente para criar uma comunidade, então, por que não adotar essaestratégia política (a “economia do perdão”) para lidar com crimes comuns? E como teria reagidoHannah Arendt ou a corte israelense que o condenou a morrer enforcado se Eichmann tivesse mostradoarrependimento verdadeiro pelos crimes que cometeu no nazismo? Se existissem atos imperdoáveis,seus perpetradores só poderiam obter perdão numa dimensão ética ou religiosa, mas não jurídica. ParaTatián, o que diferencia a impunidade da anistia é a externalidade do perdão jurídico: se for uma vontadedaquele que porta o prejuízo será anistia, se for somente uma imposição do estado, será impunidade.Referências Bibliográficas:ADORNO (1962). Was bedeutet: Aufarbeitung der Vergangenheit. Theoder W. Adorno: GesammelteSchriften, GS 10.2, S. 555. Suhrkamp, Frankfurt am Main.ANGUITA, Eduardo y CAPARRÓS, Martín (2006). La voluntad. Una historia de la militanciarevolucionaria en la Argentina 1966-1978. Editorial Planeta, Buenos Aires.BALARDINI, Lorena, OBERLIN, Ana y SOBREDO, Laura (2011). Violência de gênero y abusos sexualesen los centros clandestinos de detención. Em: Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS). CentroInternacional para la Justicia Transicional. Siglo XXI Editores.BARANCHUK, Mariana (2011). Ley 26.522 de Servicios de Comunicación Audiovisual: Una normativaencuadrada en el paradigma de los Derechos Humanos. In: Mora (B. Aires), vol 17, n. 2.BELVEDERE, Carlos (2007). Racismo y discurso: una semblanza de la situación argentina. In: DIJK,Teun A. Van (org.), Racismo y discurso em América Latina. Gedisa Editorial, Barcelona.CONADEP (2012). Nunca Más. Informe de la Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas.Eudeba, Buenos Aires, 8. edición, 4. reimpresión, marzo de 2012.BOSIRE, Lydiah Kemunto (2006). Grandes promessas, pequenas realizações: justiça transicional naÁfrica Subsaariana. Em: Revista SUR de Direitos Humanos, n. 5, ano 3.CASTELLANI, Ana (2009). Estado empresas y empresarios. La construcción de ámbitos privilegiados deacumulación entre 1966 y 1989. Ed. Prometeo, Buenos Aires.CRENZEL, Emilio (2008). La historia política del Nunca Más: La memoria de las desapariciones en laArgentina. Buenos Aires, Siglo XXI Editores.FILIPPINI, Leonardo (2011). La persecución penal en la búsqueda de justicia. Em: Centro de EstudiosLegales y Sociales (CELS). Centro Internacional para la Justicia Transicional. Siglo XXI Editores.FRANCO, Marina (2012). Un enemigo para la nación. Orden interno, violencia y “subversión”, 1973-1976. Fondo de Cultura Económica, Buenos Aires.GILLESPIE, Richard (2008). Soldados de Perón. Una historia crítica sobre los Montoneros. Ed.Sudamericana, Buenos Aires.GONZÁLEZ, Rodrigo Stumpf (2012). Qual será a verdade do jeitinho brasileiro? Perspectivas sobre aComissão Nacional da Verdade do Brasil. In: Revista de Ciências Sociais da Unisinos, São Leopoldo,436


48(2), pp. 130-138.HILB, Claudia (2010). Cómo fundar una comunidad después del crimen? Una reflexión sobre el carácterpolítico del perdón y la reconciliación a la luz de los Juicios a las Juntas en Argentina y de la Comisión dela Verdade y la Reconciliación en Sudáfrica. Ponencia presentada en el Simposio Hannah Arendt, IIICongreso Colombiano de Filosofía, Cali, octubre del 2010.HUYSSEN, Andreas (2004). Resistencia a la memoria: los usos y abusos del olvido público. Conferênciaapresentada na INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação,XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, PUC-RS, Porto Alegre.MARGULIS, Mario e URRESTI, Marcelo y otros (1998). La segregación negada. Cultura y discriminaciónsocial. Editorial Biblos, Buenos Aires.NOVARO, Marcos e PALERMO, Vicente (2010). Historia Argentina 9. Dictadura militar 1976-1983. Ed.Paidós, Buenos Aires.OROZCO, Iván. (2005). Sobre los límites de la conciencia humanitaria. Dilemas de la paz y la justicia enAmérica Latina. Bogotá: Temis.POLLAK, Michael (1989). Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2,n°3.RAFECAS, Daniel (2011). La reapertura de los procesos judiciales por crímenes de lesa humanidad en laArgentina. Em: ADREOZZI, G. (coord.) Juicios por Crímenes de lesa humanidad en Argentina. Ed. Atuel,Buenos Aires.RAFECAS, Daniel (2010). La tortura y otras prácticas ilegales a detenidos. Ed. Del Puerto, Bs As.RATIER, Hugo (1972). El cabecita negra. Buenos Aires, Centro Editor de América Latina.RICOEUR, Paul (2004). La historia, la memoria, el olvido. FCE, Buenos Aires.ROSS, Fiona (2006). La elaboración de una Memoria Nacional: la Comisión de verdad y reconciliaciónde Sudáfrica. In: Cuadernos de Antropología Social n. 24, pp. 51-68, FFyL, Universidad de Buenos Aires.SHAPIRO, Hernán (2002). Surgimiento por los “juicios por la verdad” en la Argentina de los noventa. En:El vuelo de Ícaro, n. 2 y 3, 2001-2002, pp. 359-401.SARLO, Beatriz (2005). Tiempo pasado. Cultura de la memoria y giro subjetivo. Una discusión. DeBratriz Sarlo. Editorial Sigo XXI, Buenos Aires.SOLOMIANSKI, Alejandro (2003). Identidades secretas: la negritud argentina. Rosario, Ed. BeatrizViterbo.TATIÁN, Diego (2012). Fundar una comunidad después del crimen? Anotacionaes a un texto de ClaudiaHilb. Manuscrito ainda não publicado.TODOROV, Tzvetan (2000). Los abusos de la memoria. Ed. Paidós, Buenos Aires.VARSKY, Carolina (2011). El testimonio como prueba en procesos penales por lesa humanidad. Algunasreflexiones sobre su importancia en el proceso de justicia argentino. Em: Centro de Estudios Legales ySociales (CELS). Centro Internacional para la Justicia Transicional. Siglo XXI Editores.VERBISKY, Horacio (2005). El vuelo. Editorial Planeta, Buenos Aires.VEZZETTI, Hugo (2002). Pasado y presente. Guerra, dictadura y sociedad en la Argentina. Siglo XXIEditores, Buenos Aires.YANZÓN, Rodolfo (2011). Los juicios desde el fin de la dictadura hasta hoy. Em: ADREOZZI, G. (coord.)Juicios por Crímenes de lesa humanidad en Argentina. Ed. Atuel, Buenos Aires.437


438

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!