Edição integral - Adusp

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Qual projeto?.6Múltiplos impactos sobre a UniversidadeWladimir Pirró e Longo11A reforma conservadora e o projeto da resistênciaAdriano de Oliveira e Paula Mangolin16O futuro da UniversidadeCláudio Lembo21Universidade = Igualdade, a equação insubstituívelFrancisco de OliveiraQue pesquisa queremos?.26Melhorar o ensino médio e aproveitar os talentosIsaías Raw30Desafios na busca do conhecimentoPedro Paulo Funari34O exemplo de Pavan, descobridor incansávelPaulo Marques e Oswaldo Frota-Pessoa40Empresa e Universidade: um namoro à brasileira, visto pelos empresáriosRita FreireQual docência?.46O impacto da mercantilização da educação superiorJoão dos Reis e Valdemar Sguissardi54Caminhos e descaminhos da docênciaCésar Minto, Rubens Camargo e Nobuko KawashitaComo financiar?.62Opção por uma nação soberanaIvan Valente67Sonegação fiscal, reforma tributária e perdasdas universidades estaduais paulistasDernal dos Santos e Juçara BragaDemocracia & Gestão.74Entrevista: Jacques Marcovitch repele o “pessimismo paralisante”e defende o atual modelo de gestão da USP84A Universidade, o possível futuro e um certo passadoRoberto RomanoQual extensão?.88O MST e os sindicatos de trabalhadores urbanos entram em cenaDenise Casatti e Pedro Estevam da Rocha PomarMemória.92Décio de Almeida Prado: antes de tudo, um crítico teatralClovis Garcia95Carlos Chagas Filho: um homem à frente de seu tempoRosa Leal98Cartas


DIRETORIAMarcos Nascimento Magalhães, Márcia Regina Car, Francisco Miraglia Netto,Norberto Luiz Guarinello, Suzana Salém Vasconcelos, Lighia B. Horodynski-Matsushigue,Flávio Finardi Filho, Marcos Sorrentino, João Alberto Negrão, Clarice Sumi KawasakiComissão EditorialAdilson Odair Citelli, Amilton Sinatora, Ciro Teixeira Correia, Flávio Wolff Aguiar,Jair Borin, Luiz Menna-Barreto, Paulo Elias Mangeon, Renato QueirozEditor: Pedro Estevam da Rocha PomarAssistente de redação: Denise CasattiEditor de Arte: Luís Ricardo CâmaraAssistente de produção: Rogério YamamotoSecretaria: Alexandra M. Carillo e Aparecida de Fátima dos R. PaivaDistribuição: Marcelo Chaves e Walter dos AnjosFotolitos: Bureau OESPImpressão: Copy Service Indústria GráficaTiragem: 5 500 exemplares<strong>Adusp</strong> - S. Sind.Av. Prof. Luciano Gualberto, trav. J, 374CEP 05508-900 - Cidade Universitária - São Paulo - SPInternet: http://www.adusp.org.brE-mail: imprensa@adusp.org.brTelefones: (011) 813-5573/818-4465/818-4466Fax: (011) 814-1715A Revista <strong>Adusp</strong> é uma publicação trimestral da Associação dos Docentes da Universidadede São Paulo - S. Sind., destinada aos associados. Os artigos assinados não refletem,necessariamente, o pensamento da diretoria da entidade e são de responsabilidade dosautores. Contribuições serão aceitas, desde que os textos, inéditos, sejam entregues emdisquete e tenham, no mínimo, dez mil e, no máximo, vinte mil caracteres. Os artigos serãoavaliados pela Comissão Editorial, que decidirá sobre seu aproveitamento.


UM DEBATE VITALQual Universidade queremos, às vésperas do terceiro milênio? Qual, dentre os “projetos” de universidade emdisputa no Brasil, estará à altura dos desafios criados por velozes, perturbadoras, crescentemente destrutivas transformaçõescomandadas pelo capitalismo triunfante em escala planetária? Devemos ou não repensar o ensino superior?Nesse contexto, que papel desempenhará a USP, maior universidade do país?Nesta edição, pretendemos avançar nesse debate que não é estranho às páginas da Revista <strong>Adusp</strong>, mas cujosdelineamentos e parâmetros tornaram-se mais ostensivos do que nunca nos últimos anos. O Conselho Editorialdecidiu-se, portanto, pela elaboração de um dossiê que levasse em conta as diferentes e conflitivas visões deuniversidade. E que tratasse de forma mais ou menos sistemática, sem descuidar dos nexos que as unem, asquestões relacionadas à pesquisa, à docência, à extensão, ao financiamento e à gestão.✦✦✦Para realizar tal intento, o Conselho Editorial julgou relevante incluir a argumentação de diferentes correntesde pensamento, a começar pelos representantes dos governos federal e estadual. Oferecemos ao ministro PauloRenato de Souza, da Educação, a oportunidade de publicar dois artigos sobre o projeto de universidade defendidopelo governo, em sistema de réplica e tréplica na mesma edição, no qual ele teria a última palavra. O ministro,porém, recusou-se a escrever, alegando a existência de outros compromissos. A decisão foi comunicada portelefone no dia 7.12.99 e formalizada por e-mail no dia 21.12.99.Sua assessoria sugeriu, então, que a solicitação fosse encaminhada ao secretário de Ensino Superior, AbílioBaeta Neves. No dia 4.1, após contato telefônico, encaminhamos ofício a Baeta Neves formalizando o pedido.No dia 26.1, sua assessoria nos informou que ele não escreveria os artigos.No plano estadual, repetiu-se a atitude do MEC. O secretário estadual da Fazenda, Yoshiaki Nakano, nãoaceitou pedido de artigo sobre o financiamento das universidades estaduais paulistas, por excesso de compromissos.Procuramos então, em janeiro do corrente ano, com a mesma finalidade, o secretário estadual da Ciência eTecnologia, José Aníbal. Sua assessoria prontamente aceitou o convite, com a concordância do secretário, que teriadois meses para redigir o artigo. No entanto, o prazo inicial expirou sem que o texto fosse elaborado. Três novosprazos foram concedidos e superados. Chegou o fechamento da edição, no dia 10.3, e o secretário não cumpriuo compromisso. Em síntese, os homens do poder não querem debater.✦✦✦A presente edição traz, acreditamos, importantes contribuições ao debate sobre o futuro possível ou desejávelda Universidade brasileira. Os textos que abrem essa discussão no presente número contemplam diferentes vertentese setores da comunidade acadêmica. Wladimir Longo, da UFF, e Francisco Oliveira, da USP, trazem emseus artigos reflexões inovadoras sobre os caminhos possíveis do ensino superior, em íntima conexão com aspossibilidades e os problemas colocados pela C&T. Cláudio Lembo, reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie,não se furtou ao debate e adverte contra a redução da universidade à condição de mera prestadora de serviços.Adriano Oliveira e Paula Mangolin, dirigentes da UNE, só vêem perspectivas de mudanças profundas seo atual modelo econômico e político for descartado.A edição conta com textos de Isaias Raw, do Instituto Butantan, e Pedro Paulo Funari, da Unicamp, sobre aquestão (e a paixão) da pesquisa; João dos Reis, da PUC-SP, e Valdemar Sguissardi, da Unimep, sobre o impactoda mercantilização da educação; César Minto e Rubens Camargo, da USP, e Nobuko Kawashita, da Ufscar, sobreas ameaças ao exercício da docência; Roberto Romano, da Unicamp, que comenta a sobrevivência do sistema napoleônicode gestão; Ivan Valente, que discorre sobre a questão do financiamento. O dossiê inclui, ainda, entrevistacom o reitor da USP e reportagens sobre pesquisa, financiamento e extensão. Juntamo-nos à homenagemaos 80 anos do professor Crodowaldo Pavan, ex-presidente da SBPC, publicando o brilhante texto que sobre eleescreveu o professor Oswaldo Frota-Pessoa.✦✦✦Nesta edição, fazemos modesto tributo à memória de Décio de Almeida Prado e Carlos Chagas Filho.O Editor


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>MÚLTIPLOS IMPACTOSSOBRE A UNIVERSIDADEO ensino superior passou a sernegócio de bilhõesde dólares e éaltamentepreocupante que aOrganização Mundial doComércio o tenhaincluído em sua agendade “liberalização de barreiras”.Universidades dos países centraisjá estão invadindo a periferia doplaneta, por meios interativos eem associação com parceiroslocais, gerando colonialismocultural e maior dependênciaWladimir Pirró e LongoProfessor titular da Universidade Federal Fluminense,assessor do Ministério da Ciência e Tecnologia6


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000Em razão da TerceiraRevoluçãoIndustrial, a universidadebrasileirasofre impactosque afetamo ensino superior em nívelmundial e impactos de naturezalocal. No quadro internacional,talvez o mais preocupante para auniversidade brasileira seja o fatode que a educação esteja sendo levadapara a área dos serviços e,portanto, a ser regulada como comércio.Ou seja, a OrganizaçãoMundial doComércio (OMC), assimcomo trouxe parao seu âmbito a propriedadeintelectual,cujo foro apropriadoera a OMPI e cuja baseera o Acordo de Paris,está colocando nasua pauta a liberalizaçãodas barreiras à comercializaçãodos serviçosde educação e detreinamento. O ensino,em geral, é considerado,hoje, um negóciode bilhões de dólares— e os países centrais queremmanter a hegemonia, inclusivevendendo educação. Isso é altamentepreocupante.Enquanto a nova ordem nãodesaba sobre a periferia planetária,despreparada para enfrentaros atuais desafios educacionais emuito menos uma competição oficializadade porte global, as universidadesestrangeiras vão invadindo,pacificamente, os seus territórios.A invasão utiliza meiosinterativos a partir das suas sedes,através de associação com parceiroslocais, ou atua diretamente,através de filiais. Os retardatáriospagarão cada vez mais ao exteriorpelo que já deveriam ter feito, ouseja, oferecer possibilidades deacesso ao conhecimento a todosque o desejassem, até o mais altonível que lhes conviesse ou quepudessem atingir. Muito pior doque isso, a periferia aumentará asua dependência e subordinaçãoaos países hegemônicos, atravésO ethos da ciência mudou brutalmente.Empresas começaram a investir emciência. Dez dos pesquisadores dos BellLaboratories receberam prêmios Nobelde física, mais do que o Japão.Há universidadescorporativas e outras,como a Phoenix, dosEUA, que colocam suas açõesna bolsa de valoresdo pior tipo de colonialismo: o colonialismocultural, não só econômicoe em ciência e tecnologia,mas, também, na própria maneirade pensar, de ser e de agir.A experiência mostra que os paíseshegemônicos sempre ganhamna OMC. Então, temos de estarpreparados para encarar a educaçãocomo comércio e enfrentar aconcorrência externa. Precisamoster força política internacional parafazer face a isso. Devemos, rapidamente,fazer alianças educacionais,científicas e tecnológicas na AméricaLatina, a partir do Mercosul, paraobter maior poder de barganhafrente aos países hegemônicos.Outra grande ameaça é colocadapela transformação da sociedadeem decorrência do progressodas comunicações. A escola perdeuo monopólio do conhecimento.Antigamente o garoto aprendia estruturadamentena escola. Hoje eleaprende caoticamente, de modonão seqüencial. As informações, emesmo os conhecimentos,estão disponíveispor todos os lados: televisão,revistas do tipoGalileu, Ciência Hoje,Internet, joguinhos eletrônicose principalmenteCDs educativos.Aprende-se não somentena escola, masvendo, ouvindo e interagindocom coisas. Éoutro desafio: mudar oprocesso educacional.Para a cultura dos alunosmodernos, é muitoentediante ficar sentadonuma sala um atrásdo outro, ouvindo alguém falar.Outro desafio são as profundas,e cada vez mais freqüentes, mudançassociais resultantes dos avançosda ciência e da tecnologia. Atualmente,empresas são capazes de absorverum conhecimento científico,ou uma invenção tecnológica, etransformá-los em inovação no mercadoem menos tempo do que se levapara formar um engenheiro. Comolidar com isso? O jeito é ensinaro jovem a “aprender a aprender”.7


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>8Adicionalmente, vê-se umamudança no ethos da ciência. Aciência sempre foi o objeto dasuniversidades, quase privilegiadamente.A partir das tecnologias debase científica, as empresas começarama investir em ciência. E começarama ter seus pesquisadoresconcorrendo ao Prêmio Nobel. OsBell Laboratories, da ITT, antesde passarem para o controle daLucent Technologies, publicavammais artigos de física do que asmelhores universidades do mundo.Dez de seus pesquisadoresreceberamprêmios Nobel de física.Mais do que o Japão,que tem oito prêmiosNobel, cinco dosquais de literatura eda paz.Mais ainda: como oensino é um negóciomultibilionário, partecrescente da demandaé atendida por universidadescorporativas epor universidades “forprofit”, para lucro dosseus investidores.Exemplo é a Universityof Phoenix (EUA), cujodesempenho, segundo seus “gerentes”,pode ser aferido pela valorizaçãodas suas ações na bolsa devalores. Consta que trata-se dauniversidade que mais tem crescidono mundo. Uma mudança brutalno ethos acadêmico.Entre os impactos locais, despontaa exclusão do ensino superiora que está sujeita uma grandequantidade de jovens, fato inaceitávelno mundo moderno. Lembrese,por oportuno, que os EUA têm30% da força de trabalho com nívelsuperior. No Brasil, toda a expansãodo ensino de terceiro graufoi praticamente deixada aos cuidadosdo setor privado. As escolaspúblicas estão congeladas: nãocrescem, não podem admitir gente,etc. Que aconteceu? Expandiu-seo ensino superior privado, atravésde centenas de, na sua maioria,“escolões de terceiro grau”. Porémestima-se que elas tenham 600 000vagas não preenchidas. Por quê?É uma questão de decisão políticaexpandir o ensino público de terceirograu não necessariamente ampliando abase física, predial, mas introduzindomeios eletrônicos como facilitadores.Temos que desfazer opreconceito contra o ensinoà distância e considerar umfeito acadêmico colocarmaterial na redePorque quem podia pagar já estavapagando! Um conhecido meu tevedois filhos aprovados numa escolaprivada de engenharia. A mensalidadeé de R$ 800. A família teráque decidir qual dos dois vai estudar.É um crime um garoto quechegou ao fim do segundo graunão ter acesso a mais estudo! Então,ou expandimos o ensino públiconeste País, ou aumentaremos onúmero de excluídos.Não fomos capazes de utilizaros meios interativos, que estão emuso há mais de cem anos, para expandiro ensino público. O Canadáfoi capaz de educar sua populaçãousando correio, rádio e telefone.Hoje temos fax, fitas cassete,Internet, televisão, teleconferência,videoconferência, DVD, CD-ROM, uma miríade de meios interativos,cujo mix pode atender apopulação de cada local destePaís. É uma questão de decisãopolítica: expandir o ensino de terceirograu não necessariamenteampliandoa base física, predialetc., mas introduzindoos meios eletrônicoscomo facilitadores.Assim como o papelimpresso facilitoua comunicação entre oprofessor e o aluno,assim é com a Internethoje. Que acontecepor exemplo na OpenUniversity (Inglaterra),que tem quase 160000 alunos à distância?Tem 1 800 professoresem tempo <strong>integral</strong>,no campus, e paratomar conta desses 160 000 tem13 filiais, 300 salas de estudo ecerca de 8 000 tutores espalhadospela Europa. Para cada 20 alunoshá um tutor. Abre-se um novomercado de trabalho. Na escolatradicional, presencial, numa disciplinapara 40 alunos, um professorfaz tudo sozinho. Na medidaem que tenha 400 alunos, precisará,forçosamente, de 20 auxiliares,ou tutores. O aluno à distância dá


Revista <strong>Adusp</strong>muito trabalho: a interação com oprofessor é por escrito, e este tem,também, que responder por escrito.Qual universidade presencialtem um tutor para cada 20 alunos,em cada disciplina? Não existe.Mas à distância é mandatório. Oaluno não fica totalmente isolado,pois existem as filiais e salas deestudos, onde ele faz provas presenciaise tira dúvidas periodicamentecom os tutores.Em 1968, quando eu fazia doutoradonos EUA, um professor mechamou e disse: “Você vai dar aulade microscopia eletrônica detransmissão na TV Network”. Nãohavia satélite, não havia Internet,e já estavam usando maciçamentenos EUA o ensino à distância, comtelevisão via repetidora e rádio.Numa certa manhã, a câmera mefocalizou e eu fiz a chamada dosalunos, que eram engenheiros daNASA em Cabo Kennedy, daMartin Marietta em Orlando, enfim,gente do setor aeroespacialdentro das fábricas, dos laboratórios,alguns fazendo seus créditospara o mestrado ou doutorado.Todos me viam, e falavam comigopor rádio. No chão de fábricaera possível estudar sem ter queir à universidade a não ser parafazer prova. E o professor nãoacabou, nem o livro.No ensino presencial, oprofessor está dando aula,entusiasmado, os olhosdos alunos estão brilhando,de repente toca a campainha.Acabou a aula: sóna semana que vem. Na semanaque vem, o aluno nemse lembrará mais de ondeMarço 2000parou a aula. Ele terá que “esquentaros motores” de novo, e oprofessor terá de fazer um grandeesforço para, novamente, despertara atenção. Mas, se o aluno estiver“navegando” a mesma auladisponível na Internet, ou em CD-ROM interativo, e estiver gostando,poderá ficar estudando o tempoque quiser. O aluno presencialquase não pergunta de bate-prontona aula. Mas se está em casa,estudando, e se houver Internetcom o chat do professor, ele perguntará.No Rio de Janeiro, o governadorlançou recentemente o CentroUniversitário de Ensino à Distânciado Estado do Rio de Janeiro(Cederj), uma coligação das universidadespúblicas federaise estaduais sediadasno Estado: UFF,UFRJ, Uni-Rio,Rural, Cefet, UERJe UENF. Elas disponibilizarãoseu materialdidático, que teráde ser “empacotado”para ensino à distância(EAD) e “despachado” para osalunos. Essas tarefas é que o governadorvai bancar. Haverá centrosperiféricos, aonde o aluno que nãotem equipamento poderá ir, e ondepoderá fazer as provas. O municípiodeseja ensino superior? A prefeituraterá que arcar com toda ainfra-estrutura material e humana.Quando se oferece o serviço, a sociedadeaumenta a demanda. Expande-seo setor público e atingeseo interior com qualidade.A Faperj, fundação de amparoà pesquisa, concederá uma bolsapara o professor preparar o materialdidático. Depois, quando omaterial dele for ao ar, ele receberáoutra bolsa para supervisionaros tutores. O professor terá um incentivo,como ocorre no exterior.O grande problema do EAD éo preconceito: as experiências noBrasil foram um fracasso. Temosque desfazer isso, e considerar queo professor que coloca seu materialno EAD está conquistando umfeito acadêmico, para não deixardúvidas quanto à qualidade. O primeirocurso a ser disponibilizadono Cederj já terá um sistema rigorosode avaliação.O Cederj começará utilizandovídeo, Internet e papel. Oaluno receberá pelo correio os vídeocassetese muito material produzidopelo centro de “empacotamento”.Toda interação com osalunos será por Internet. Serãooferecidos hyperlinks para acessaro material didático. Eventualmenteserá utilizado o CD-ROM.Quanto à Universidade VirtualPública do Brasil, a Uni-Rede, es-9


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>tamos partindo quase do zero. AUni-Rede propõe-se a atender àsnecessidades globais do País. Quarentae cinco universidades deramforça ao encontro com os ministrosda Ciência e Tecnologia e daEducação. O primeiro tem papelfundamental, pois estão sob suaresponsabilidade a Rede Nacionalde Pesquisa (RNP), a Internet-2 ea Sociedade da Informação, e financiaa produção de softwareeducacional e equipamento interativo.Do segundo dependem, evidentemente,recursos e toda a regulamentaçãoe oapoio da Secretaria doEnsino à Distância.Como funcionaria?Se o material estápronto, e a oferta éoportuna, a Uni-Redepoderá utilizá-lo noâmbito nacional. Oproduto pode ser frutocoletivo de um grupode coligadas. O outrocaminho é o da induçãopela coordenaçãoda Uni-Rede. Esta, comoestá fazendo agora,capta uma necessidadenacional, em seguidaconsulta as 45 universidades coligadasem rede, para levantar o potencialde resposta. Finalmentedecide, com os possíveis parceirosde empreitada, quem faz o quê, equando. Então são dois caminhos,a oferta e a indução.No momento, o planejamentoda Uni-Rede está voltado para aindução. Existe uma demanda nacionaldo MEC para qualificar600 000 professores de primeiro e10Enquanto nos países centrais já é rotinaque o conhecimento gerado dentro dosmuros da universidade transborde parafora, aqui ainda somos incipientes nessa“prestação de serviços”. Há uma facçãocontra, achando que a ligação comas necessidades do setorprodutivo alteraria aessência da universidadesegundo graus. Impossível trazeresse povo todo para a sala de aula.Então as 45 decidiram enfrentar odesafio. Nem todas participarão,porque poderão não ter competênciaou outra razão. Organizar-se-áa grade curricular, o material “empacotado”passará pelos crivos dequalidade e será “despachado”, cadauniversidade tomando contadas suas disciplinas.Outra crise interna é a questãodo relacionamento com o setorprodutivo. Enquanto nos paísescentrais já é uma rotina que o conhecimentogerado dentro dosmuros da universidade transbordepara fora, aqui nós ainda somosincipientes nessa “prestação deserviços”. Há uma facção que écontra, achando que a ligaçãocom as prementes necessidadesdo setor produtivo alteraria a essênciada universidade. O que nãoé verdadeiro no geral, porqueexistem profissões, que se formamdentro da academia, que necessitamter relação com o mundoreal. Áreas como a engenharia emedicina atingem a sua plena realizaçãofazendo algum bem ouproduto ou serviço. Não é só giz equadro negro e nem o seu produtofinal é um belo discurso ou umescrito.Finalmente, a questão públicoversus privado.É mais honesta a Phoenix, quecoloca ações na bolsa, do quemuitas fundações mantenedorastupiniquins, com toda sorte dedesvios bem conhecidos e que dispensamcomentários.Por não serem “escolõesdo terceiro grau”,as universidades públicassão responsáveispela maior parte dapesquisa do País, pelodebate crítico das coisasda sociedade, pelosuprimento de competênciaspara os altosescalões governamentaisetc. São Paulodestaca-se. O Estadocoloca praticamenteR$ 2 bilhões nas suastrês universidades, eainda tem a Fapespcom um aporte mensal de recursosa partir da arrecadação tributária.Isto faz com que o ensino ea pesquisa em São Paulo naveguemplacidamente de barco a velafora da arrebentação, enquantoo sistema federal vai de surfe,equilibrando-se em cima da pranchaem ondas de 15 metros!Alguém já disse, “se errarmosde escola poderemos errar de século”.RA


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000A REFORMACONSERVADORA E OPROJETO DA RESISTÊNCIAO conjunto da comunidadeuniversitária percebe a cada diaque, sem uma mudançasubstancial do modelo, é só aresistência o que lhe resta. Oprojeto de desconstrução doensino público não será sequerreorientado sem a derrota globaldeste governo e do projetoneoliberal em nosso paísAdriano de OliveiraVice-Presidente da UNE, estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal de PelotasPaula Mangolin de BarrosDiretora de Políticas Educacionais da UNE, estudante de Pedagogia da USPFoi durante a ditaduramilitar queacompanhamosuma expansão atéentão nunca vistado ensino superiorno Brasil. Nos marcos da luta e damobilização social? Nem tanto.Foi por força do projeto das elitesmesmo. Naquela época as elites tinhamum projeto concebido queapresentava-se em nome da modernização,da nação e sua soberania:era o “Brasil Potência”, parase amar ou deixar. Ele até pareciaestar dando certo e justificava (naótica das mesmas elites) exilar,perseguir, prender... Todo mundosabe até onde foram. Foi tambémum momento de expansão gigantescado Estado brasileiro, atuandonas mais diversas funções e alavancandomais uma modernizaçãoconservadora em nosso país.A universidade? Que tipo de instituiçãopoderia desenvolver-se nosmarcos do regime? O que vimos foi11


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>o “melhor” que poderia ser. Umaestrutura estatal concebida para afunção estrito senso de aparelhoideológico do Estado, cientificista,burocratizada, tecnicista, antidemocrática.Mas, como a contradição navida social parece que teima em nãodeixar extinguir-se por decreto doEstado, esse processo desenvolveusecom muita resistência e luta porparte de seus setores mais avançados,resistência que virou ofensivana crise de modelo posterior, dandocaráter estratégico à disputa desta enesta instituição.A reorganização emobilização do movimentoestudantil, dosprofessores e dos servidorespermitiu conquistasimportantes, fundamentalmenteno campoda democracia. Administraçõesde esquerdae do campo progressista,nomeadas por forçada mobilização, anunciavamna segunda metadedos anos oitenta aperspectiva de um novoprojeto de universidade,no bojo do debateem aberto sobre as possibilidadespara o país frente ao impassedo projeto das elites.O susto foi grande e serviu tambémpara as elites brasileiras repactuaremseu projeto de dominaçãoao limite de seu projeto de universidade.E como é a universidade queestá em pauta, a base para o novomodelo de universidade pública estádeterminada pela inserção subordinadado Brasil no crescente processode internacionalização da12economia e a privatização comoinstrumento de equilíbrio das contaspúblicas e de abertura de novosmercados para a iniciativa privada.O projeto do Banco Mundialpara as universidades vem sendoimplementado no conjunto dospaíses latino-americanos de formaextremamente acelerada e consisteem ajustá-las à nova dinâmica e àlógica do mercado. Seu núcleo eobjetivo fundamental estão alicerçadosnas seguintes diretrizes:1. A manutenção de uma redeO projeto do Banco Mundial consiste emajustar as universidades à lógica domercado, e tem entre suas diretrizes oretorno a um modelo de gestãoautoritário, como tivemos durante aditadura. É o ensino para o mercado,não para formar pessoas críticas.Por isso prefere que areceita seja aplicadapor “governos fortes”enxuta, composta apenas por alguns“centros de excelência”, mantidosem parte por recursos públicos.O princípio de todo o projeto éa redução drástica dos gastos comensino superior. Como conseqüência,haverá uma maior subordinaçãoda produção do conhecimentoaos interesses da iniciativa privada,que se tornaria principal financiadorae beneficiária das pesquisas,bem como das outras atividades.2. O fim do tripé ensino-pesquisa-extensão.Algumas poucas instituiçõesconcentrariam a pesquisa eo restante da rede pública se dedicariaexclusivamente ao ensino, precarizando-sea produção do conhecimento,criando-se assim verdadeiros“escolões de terceiro grau”. A extensãoseria virtualmente extinta,eliminando-se assim um dos poucoscanais de relacionamento entre auniversidade e a sociedade.3. A redução do quadro de pessoale a precarização das relaçõesde trabalho, com o fimda obrigatoriedade dosconcursos públicos e aquebra da estabilidade.4. O retorno a ummodelo de gestão autoritáriocomo o que tivemosdurante a épocada ditadura militar, revertendoas conquistasdemocráticas duramenteconquistadas.O que sobrar de ensinosuperior estataldeve estar sob os parâmetrosde flexibilização,adequação aomercado, fragmentaçãocurricular. Trata-sede formar técnicos qualificados eprofissionais de ponta em algumasfaculdades e universidades — ostais centros de excelência, os quais,em geral localizados nas regiõesmais ricas, deverão cada vez maisdirecionar-se à lógica empresarialtecnocrática.É daí que deve sair a elite depesquisadores, técnicos e burocratas,bem como os reprodutores daideologia dominante e das relações


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000de produção estabelecidas. No restantedeve-se formar, a baixo custo,uma mão-de-obra medianamentequalificada, capaz de atenderàs demandas do setor industriale de serviços integrados à dinâmicada globalização. Neste caso,que se formem os que puderempagar, em cursos de qualidade duvidosae para atuar em alguns setoresmenos desenvolvidos da economia.É o ensino para o mercado,não para formar pessoas críticas,comprometidas com uma nova sociedadee com valoressolidários.Não é por nada queo mesmo Banco Mundialacha prudente quesuas medidas sejamaplicadas por “governosfortes”, fortes osuficiente para golpeara Constituição, reprimiros movimentos sociais,cercear os espaçosdemocráticos duramenteconquistados.Não é por nada tambémque o garoto-propagandade FHC, PauloRenato, saiu diretamentedo alto escalãodo Banco Mundial para coordenaro programa de governo de FHC edepois para o MEC.O Brasil implementou váriasmedidas do receituário do BancoMundial antes do governo atual,como o incentivo ao desenvolvimentodo ensino pago, o corte deverbas de assistência estudantilnas universidades públicas, o achatamentosalarial e o corte de verbasde investimento e custeio. Masfoi com a eleição de FHC queaquela instituição multilateral encontrouo mais fiel seguidor do receituário,completamente coerentecom a visão neoliberal-tucanopefelistade educação.Para esta direita, que segue asordens do Banco Mundial, FMI edos formuladores do Consenso deWashington, educação é mercadoria,que deve ser adquirida porquem pode pagar. O Estado devese envolver o mínimo com educação,deve descentralizar recursosHoje, o governo prepara o mais durogolpe no ensino público superiorbrasileiro através do “Projeto deAutonomia”, uma reformulação pioradada PEC-370/A, agora elaboradana forma de projeto de lei, econtra a qual a comunidadeuniversitária construiu umadas maiores greves deresistência já conhecidas(cada vez mais escassos), deve fazer“parcerias” com a “sociedadecivil” para que esta assuma as escolase universidades públicas.Na verdade, a reforma educacionalimplementada pelo MEC,desde o primeiro mandato deFHC, só tem um objetivo: desmontaro sistema público de ensino superiore aumentar o bolo do ensinoprivado. Não é casual que, nosúltimos anos, tenham aumentadosignificativamente as matrículas noensino privado — juntamentecom as mensalidades e com a quedada qualidade do ensino.A desresponsabilização do Estadocom o ensino público e suavinculação cada vez maior à iniciativaprivada são o norte das reformaseducacionais. O governoaprovou uma série de medidasmudando a Constituição e abrindoterreno para a implantação deseu projeto de universidade. Hoje,prepara o mais duro golpe noensino público superiorbrasileiro atravésdo que chama de “Projetode Autonomia”,uma reformulação pioradada PEC-370/A,agora elaborada naforma de projeto de lei(aprova-se com maioriasimples), e contra aqual a comunidadeuniversitária construiuuma das maiores grevesde resistência jáconhecidas.Apresentado o“Projeto de Autonomia”à “sociedade”,pela primeira vez, emjulho de 1999, o governo recuou desua perspectiva de ingresso e tramitaçãode urgência no Congresso,dada a reação da comunidade universitária,uma vez que todas as categoriasacenaram com greve comoimediata resposta.Também, pudera. O mesmo governoque chamou de “Real” umplano que se baseava na irrealidadedo valor da moeda — até o momentoem que se desfez como um13


Março 2000raio caído de um céu azul para aequipe econômica — define comoprojeto de lei de “Autonomia” umainiciativa completamente anti-autonômicae que nega totalmente oArtigo 207 da Constituição Federal,duramente conquistado pelasociedade brasileira.Seus pontos mais graves são adestruição do plano de carreira nacional,num processo de desresponsabilizaçãoda União com o pagamentode professores e funcionáriostécnico-administrativos; dotaçãoorçamentária definida emlei, com base nos gastos de 1997, esem qualquer mecanismo de correçãoprevisto; poderes absolutos aoPresidente da República para realizarainda mais cortes; contrato degestão transformando a Universidadeem balcão de negociaçãocom o governo federal e intervençãonas reitorias que não seguiremos ditames de FHC.A destruição do sistema públicode ensino superior — através daprivatização e da quebra da autonomia— vem acontecendo de longadata e as últimas ofensivas do governosó vêm acelerar este processo.A privatização não se limita àcobrança de mensalidades, emboraaté isso já seja uma triste realidadeem nosso país. Ela já vem ocorrendode forma muito sutil e nem porisso menos grave. Dá-se pela cadavez maior dependência das universidadesde recursos externos (privados),submetendo o conhecimentoproduzido na universidade a desígniosparticularistas.Atentou-se contra a autonomiacom a Lei 9131/95, que instituiu oProvão, e o Decreto 2026/96, que14impõe as “comissões de especialistas”do MEC, submetendo a universidadea uma avaliação mercantilizada,de quantidade e produto eque desconsidera os processos,seus condicionantes e o caráterqualitativo da avaliação. Limitousea autonomia com a Lei 9192/95,que definiu critérios autoritários,excludentes e antidemocráticos paraa escolha de reitores e a composiçãode órgãos colegiados.Atentou-se novamente contra aautonomia com a Lei 9394/96(LDB- Darcy Ribeiro), subordinandoainda mais a universidadeao modelo econômico e aos interesseshegemônicos nele expressosno, ou pelo Estado. Foi tambémcom a LDB aprovada que rompeu-seo princípio da indissociabilidadeensino-pesquisa-extensãoao criar-se outras modalidades deensino superior extingüindo-se, inclusive,a dedicação exclusiva emalguns casos.Por fim, atentou-se mais umavez contra a autonomia com acriação do novo ente jurídico denominadoorganizações sociais,pessoas jurídicas de direito privado,com a finalidade de acelerar odesmonte do sistema público deensino superior.Já as universidades pagas têmpasse livre do governo para assaltaro bolso dos estudantes commensalidades absurdas, expulsar osque não puderem pagar e abrir acada dia mais e mais cursos quesão verdadeiras fábricas de diplomase dinheiro para os donos deescolas, além de não possuírem ascondições mais elementares paraum ensino de qualidade e ondeRevista <strong>Adusp</strong>pesquisa e extensão são expressõesquase desconhecidas. O recenteescândalo do parecer fraudado paraabertura de curso de uma conhecidainstituição paga, oriundodos computadores do próprio ConselhoNacional de Educação, nosdá uma idéia do “controle” que setem sobre a expansão do ensinopago por parte do governo, bemcomo no que se transformou oatual CNE, espaço de legitimaçãoda reforma educacional conservadorado governo que privilegia aexpansão do ensino pago.Foi justamente no período daabertura e das conquistas democráticasque muitos setores da universidadeimaginavam ser possívela construção de um modelo alternativonos marcos do regime e dosistema. Posteriormente, a impotênciafrente à reforma neoliberalque se iniciava conclamava os combatentesa “deporem as armas” emnome da “oposição propositiva”.Anos de esforços no conjunto dacomunidade educacional brasileirapara elaborar-se uma Lei de Diretrizese Bases para a Educação sãocolocados por terra em alguns mesespor um projeto que o governoencomendou da noite para o dia.Todos os esforços que desembocaramno PNE são secundarizadospelo tal relatório Marchesan.Esses conhecidos esforçosexemplificam movimentos que nãoforam em vão e que certamentedeverão ser seguidos em momentosposteriores, mas o que o conjuntoda comunidade universitáriapercebe a cada dia é que, sem umamudança substancial do modelo, ésó a resistência o que lhe resta. O


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000Nossa proposta de ensino superior estáprofundamente entrelaçada àsnecessárias mudanças que o Brasil exigeno curso de um projeto que democratizeradicalmente a propriedade, arenda e a riqueza no país.Nosso projeto de universidadepressupõe democracia emtodos os níveisprojeto de desconstrução do ensinopúblico não será sequer reorientadosem a derrota global destegoverno e do projeto neoliberalem nosso país.Nossa proposta de ensino superiorestá entrelaçada profundamenteàs necessárias mudançasque o Brasil exige no curso de umprojeto democrático-popular, quedemocratize radicalmente a propriedade,a renda e a riqueza nopaís; que inverta o modelo de desenvolvimentona perspectiva domundo do trabalho,construindo uma novahegemonia nas forçassociais, centralizadanos interesses dos trabalhadores.O modelode universidade públicaque até agora conhecemosnunca foi o quedefendemos, mas nossomodelo incorpora tambémtodos os avançosinscritos na Constituiçãode 1988, hoje duramenteatacados.Nosso projeto sempredeixou claro o horizonte da universalizaçãodo ensino superior eda educação em todos os níveis,mas propõe controle imediato paraa abertura de escolas pagas, com reduçãode mensalidades a um patamarsuportável pelos trabalhadorese que o crédito educativo saia imediatamentedas mãos dos banqueirospara ser financiado, por exemplo,por recursos compulsórios depositadospelos bancos no BancoCentral. Que fique claro: nada deverba pública para o ensino pago.Devem-se garantir planos de carreirapara seus quadros docentes e umpadrão de qualidade socialmentedeterminado como aceitável.Verba pública é para expandir oensino público. O horizonte dauniversalização do ensino deve secompletar na perspectiva do público,gratuito, democrático e sobcontrole social. E é preciso começarcom a imediata abertura de vagascom proporcional ampliaçãodo quadro docente por concursopúblico e das verbas para o conjuntodas Instituições Federais de EnsinoSuperior (IFES), incluindo órgãosde fomento e apoio à pesquisacientífica e tecnológica. OsCEFET's deverão permanecer naestrutura SESu-MEC, compreendidoscomo IFES, autônomos ecom ensino-pesquisa-extensão nainversa lógica do desmonte do ensinotecnológico em curso.Nosso projeto de universidadepressupõe democracia. Eleições dedirigentes democráticas e em todosos níveis, bem como instâncias democráticaspara definir e executarprioridades. Isto é um pressupostoarticulado com nossa concepção deautonomia, na lógica do controlede gestão da universidade pelostrabalhadores da educação, peloconjunto da comunidade universitáriae dos trabalhadores; no eixoda disputa pelo controle do processode trabalho. Democracia paranós é sinônimo de plena liberdadede condições para a produção doconhecimento, da ciência e da cultura,forjados em um espaço concebidocomo privilegiado para a críticaque deve ser orientadora de suadestinação social.A universidade quedefendemos exige a suaavaliação. Não atravésde ridículos mecanismosquantitativos-ranqueadorespara a realizaçãode mais cortes,mas a avaliação de simesma em uma perspectivaverdadeiramentecrítica, orientada peladestinação social desua produção que deveter padrão único dequalidade, entendido oprocesso como a busca de subsídiospara aperfeiçoamento e transformaçãode uma instituição, e nãopara o seu desmonte.Como se percebe, nosso projetode universidade implica, pararealizar-se, a derrota do assimchamado neoliberalismo, projetohegemônico do atual pacto denossas elites. Na disputa para quese reverta a atual correlação deforças na sociedade em prol dos“de baixo”, o caminho da resistênciaé o único que pode ser trilhadocom dignidade. RA15


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>O FUTURO DAUNIVERSIDADEA Universidade, se quiser antever ofuturo, terá que captar o mundo exteriore prestar efetivos serviços à comunidade,e retornar à filosofia e à teologia.A Universidade não pode setransformar, como querem alguns, em merafábrica de profissões ou singelaempresa de consultoria eserviçosCláudio LemboReitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie16


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000Oque é a Universidade?Nestes últimosmil anos, estapergunta ocorreupor toda aparte, no Ocidente.As respostas foram inúmeras ese colocaram, nos primeiros tempos,como sendo a Universidade umamera corporação ora de professorese, vezes outras, de estudantes.Em Bolonha, estasegunda assertivamostrou-se vitoriosa,talvez fundamentadano espírito libertáriodo povo da região,que, em sua ânsia deobter espaços de liberdadepessoal, entendeuque os estudantesdeviam acompanhar eexigir dos professoresboas aulas, evitandodocentes preguiçososou dissolutos.Outros, ainda, indicamas universidadescomo reunião, em torno deum mesmo objetivo, de titularesde conhecimentos diversos, nabusca de transferir a outras pessoaso saber individual acumulado,formar figuras preparadas, particularmente,para as atividades sacerdotaise de governo.Na verdade, ambos os conceitosse mostram exatos.A Universidade, até hoje, seapresenta como uma corporaçãode ofício, onde discípulos e mestresprocuram avançar patamares,no intangível desejo de atingir aplenitude do conhecimento.Certamente, o melhor conceitode Universidade é obtido na análiseda própria palavra que indicaesta instituição, aplaudida e discriminadaatravés dos séculos.A Universidade caracteriza adiversidade na unidade.Sempre foi assim, desde o seunascimento. Múltiplas áreas de conhecimentoconvivendo, a partirde um objetivo comum e universalizante.A Universidade, desde seus primórdios,mostrou-se capaz de agasalhar amploespectro de conhecimentos. EstaUniversidade, por unir muitosconhecimentos e pessoas, em espaçolimitado, sempre se mostrousensível ao novo e jamaisaceitou passivamente a verdadeoutorgada. Jamais silenciouLá, nos seus primórdios, a Universidadeensinava as sete artes liberais:um sistema de noções desenvolvidona Roma tardia e consideradonecessário para fazer dohomem uma pessoa culta.As setes artes incluíam a gramática,a lógica, a retórica (as chamadas“três vias”, trivium) e a aritmética,a geometria, a astronomiae a música (as chamadas “quatrovias”, quadrivium).A lógica e a filosofia, contudo,tornaram-se, desde logo, dominantes,nos primeiros anos dos cursose, nos anos posteriores e finais,acrescia-se o estudo da medicina,do direito e da teologia.Constata-se, pois, que diferentementedo que ocorria no interiordos mosteiros e das escolasepiscopais, anteriores às universidades,não se ofereciam nestasapenas as teses teológicas, massim uma vasta gama de conhecimentos,avançando-se, inclusive,para áreas antes vedadas, como oestudo da medicina e, por via deconseqüência, da própriaanatomia humana.A Universidade, portanto,desde seus primórdios,mostrou-se capazde agasalhar amplosespectros de conhecimentos,afastando-se,apesar dos incríveis sacrifíciospessoais infringidosa docentes e discentes,em virtude dosdogmas impostos pelareligião então dominante,o catolicismo.É esta Universidadeque, por unir muitos conhecimentose pessoas, em espaçolimitado, sempre se mostrou sensívelao novo e jamais aceitou passivamentea verdade outorgada,como axiomática, mas de frágilconstrução.Jamais a Universidade silenciou.A Universidade sempre incomodoua governantes, exigindo reposicionamentosfilosóficos ou depolíticas públicas adotadas, mesmoque, por vezes, as mudanças solicitadasobjetivaram os interesses degrupos na procura de maiores espaçosno vértice político e não dasefetivas necessidades comuns.17


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>18Era e sempre foi a movimentaçãopolítica, no interior das universidades,um fermentar de novospensamentos e uma positiva gestaçãode novas lideranças.A Universidade, por tudo isto,sempre mereceu olhar crítico dosgovernantes.Na Restauração francesa, umdos alvos do bonapartismo foi aUniversidade. Criaram-se escolasisoladas e a elas dirigiram os filhosda burguesia, a quem no futuro seriaoferecida a carreirapolítico-administrativa.Assim aconteceuna Europa, no decorrerdo milênio que sefinda.Não foi diferentena América Espanholanos últimos quinhentosanos.No México e no Peru,logo nos primeirosanos da colonizaçãohispânica, universidadesse instalaram e desenvolveram,sem descontinuidade,a tarefa de formar figurantespara o cenário colonial.Ao norte, as universidades seconstituem com a chegada dos primeirosimigrantes ingleses que, navisão de criar uma nova nação,conceberam, de pronto, universidades,destinadas a gerar lideranças,especialmente no campo teológico.A Universidade norte-americana,imbuída na fé estadunidense pelabusca do amanhã, colaborou,desde cedo, na formação de umacomunidade mais justa e igualitária.Já em 1864, a Universidade deYale autorizou a criação de uma cátedrade “química agrícola e fisiologiaanimal e vegetal”. Neste mesmosentido, importante se afigura a LeiMorril de 1862, posteriormentechamada a Lei de Concessão de Terraspara os Colégios, que permitiu ooferecimento de terras federais acada estado federado e que os lucrosprovenientes das vendas destasmesmas terras fossem destinados ahabilitar as pessoas, por meio dasuniversidades, às atividades agrícolas,dando origem ao que passou aNão devem ser omitidos os trágicosacontecimentos de 1609 em Coimbra,quando, sob a acusação de judaísmo eleitura de Erasmo, professores forampresos e Antônio Homem, lente deCânones, foi garroteado e queimado emLisboa. Outrosprofessores foramafastados de suas cátedrasdenominar-se a revolução agrícola,que conduziu a mecanização daagricultura dos Estados Unidos.Posteriormente, dando continuidadea esta mesma política dirigidaao campo, a Lei Hatch de1887 permitiu a criação de estaçõesexperimentais agrícolas pelasuniversidades, levando aos agricultores,pelo aporte de conhecimentos,a idéia da educação como umafunção democrática para servir aobem comum.Na época, estas experiências foramridicularizadas. Os adversáriosdas novas universidades agrícolaspassaram a chamá-las ironicamentede colégio de vacas.Foram vencidos pela realidadefutura.Dentro desta mesma senda, asuniversidades estadunidenses semprese dedicaram a trabalhos comunitários.Não se isolaram, apesar de algunsnúcleos elitistas existentes emdeterminados centros acadêmicos.As universidades, pelo contrário,sempre se dedicaram às atividadesde caráter social, exigindode professores ede alunos uma constanteinter-relação coma comunidade.Estes os panoramaseuropeu, hispano-americanoe norte-americano.Cabe visão retrospectivasobre o espaçoluso-brasileiro.Em 1209, o PapaNicolau IV autorizou ofuncionamento do EstudoGeral de Lisboa.Os historiadores costumam oferecereste acontecimento como indicadorda criação da primeira Universidadeem solo português.No entanto, há distinção entreas expressões Estudo Geral e Universidade.A primeira indica o próprioedifício onde se encontrammestres e alunos. A Universidade,por sua vez, uma congregação dedocentes e discentes com personalidadejurídica própria.Por despiciendo, no caso presente,o tema merece marginalização,mas não se devem omitir os trágicosacontecimentos de 1609 em Coim-


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000bra, quando, sob a acusação de judaísmoe leitura de Erasmo, professoresforam presos e Antônio Homem,lente de Cânones, foi garroteadoe queimado em Lisboa. Outrosprofessores foram, também,afastados de suas cátedras.Em vão os sofrimentos e as mortes:“Foi um espanto reconhecer-sea diversidade das coisas e a relatividadedas certezas. O que a consciênciados homens perdeu em orgulho,ganhou-o na abertura do espíritoe num sentimentonovo de Humanidade”.Registra-se que,desde 1555 até o períodopombalino, a presençada Companhiade Jesus no ensino portuguêsfoi hegemônica.O rompimento destahegemonia, no entanto,não alterou a visãoda metrópole sobrea educação nos territóriosde além-mar.Ribeiro Sanches,médico português, tidocomo personalidade esclarecida,elaborou um projeto para o ensinoem Portugal e não se esqueceu delançar vistas para o ultramar, afirmandoem suas Cartas: “... uma colôniadeve-se considerar, no Estadopolítico, como uma aldeia a respeitoda capital”. Aí, apenas deve-seadmitir a existência de escolas primárias.“Proíbem-se as escolas deLatim etc. nas colônias, para evitaro sumo prejuízo que causa ao Reino,que nelas os súditos nativos possamadquirir as honras e tal estadoque saiam da classe dos lavradores,mercadores e oficiais”.A Universidade brasileira tornou-sedesestimulante e as práticas políticasdesapareceram de seu interior. Não setrata de nostálgica intenção de ingênuoretorno às lutas ideológicas. Trata-se dequerer a volta da boa práticade se lançar a Universidade àtarefa de refletir sobre asociedade que a envolveEsta visão a respeito das colôniasfoi expressa em 1760. Na últimametade, pois, do século XVIII.Compreende-se, portanto, porqueo Brasil desconheceu escolas— primárias de natureza universalou de outro grau — no decorrer detodo o período colonial português.Havia uma filosofia vigente esua política mereceu implacávelimposição no espaço brasileiro.Oportuno torna-se apontar,neste passo, que se tem “... exageradomuito o alcance dos colégiosjesuíticos para a educação no Brasilquinhentista quando, afinal, sedestinavam fundamentalmente àpreparação de quadros da Companhiapara a catequese de índios.Poucos brancos aprenderam noscolégios deste período”.Os colégios da Companhia deJesus, na verdade, se encontravaminseridos na política colonial portuguesa,indicada expressamentepor Ribeiro Sanches, ainda porqueos jesuítas eram braço longo dopróprio governo e, portanto, aplicadoresde doutrinas que ajudavama plasmar como conselheirosde reis, rainhas e cortesãos.Muito tarde, portanto, surgiramas primeiras escolas superiores noBrasil.Somente após 1808, graças à invasãode Portugal pelas tropasfrancesas e fuga de D. João VI esua corte, implantaram-se escolasdestinadas à formação superiornesta margem do Atlântico Sul.Ora, isto permite compreenderpor quê a Universidade é produtotardio no processo históricobrasileiro.Ainda por quê a curiosaluta intelectual entreliberais e positivistaslevou a um atraso aindamaior na constituiçãode universidades.Os primeiros, os liberais,desejavam desdelogo, uma vez proclamadaa República,instalar universidades.Os positivistas, no entanto,fixados no princípiobonapartista daexcelência das escolas isoladas,ainda porque a Universidade teriaum ranço clerical, obstaram, oquanto puderam, a criação de universidadesno Brasil.Atrasou-se o Brasil.Somente em 1934 surgiram asduas primeiras universidades e estasobtiveram êxito e avançaramaté este fim de século, a Universidadede São Paulo e a UniversidadeFederal do Paraná.Criadas universidades, no Brasil,estas não fugiram da essênciade todas as outras universidadesdifundidas por toda a parte.19


Março 2000Constituíram-se em locus decaptação de conhecimento e transferênciadas experiências acumuladas,sem jamais deixarem de seapresentar como cenário de novascolocações políticas e sociais.A Universidade, concentradorade múltiplas visões do mundo, permitea seus integrantes, docentesou discentes, oferecer novas concepçõese novas atitudes perante arealidade existente.Assim sempre foi. Assim sempredeveria ocorrer.Acontece que a Universidadebrasileira, neste último decênio,tornou-se desestimulante e as práticaspolíticas desapareceram deseu interior.Não se trata de nostálgica intençãode ingênuo retorno às lutasideológicas, onde a palavra valiamais do que a essência.Trata-se, sim, de querer a voltada boa prática de se lançar a Universidadeà tarefa de refletir sobrea sociedade que a envolve e daqual participam seus membros.Há uma letargia em todo o corpouniversitário. É possível diagnosticaralgumas causas desta situaçãodesalentadora.O consumismo em que se afogamjovens e adultos, incapazes deconviver com o simples, mas semprealmejando o “novo”, tornandosemarionetes de um teatro surrealista,que os leva à fragilidade pessoale atitudes inconseqüentes.A massificação da informaçãoque, atirando notícias sobre notícias,não permite a reflexão e a formaçãode opinião pessoal própria.A tecnologia apresentada comopanacéia geral e capaz de resolver20todos os problemas colocados,quando, na verdade, apenas se tratade coleção de instrumentos capazesde oferecer praticidade aocotidiano e eventual nível de excelênciaem algumas atividades.Ocorre que consumismo, notíciamassificada e tecnologia conduzema uma apatia social e a um isolamentoindividual, passando a ser ooutro apenas mais um dado e nãouma pessoa, com vida, expectativase intenções.Aqui se afigura a necessidade dese repensar a Universidade paratorná-la digna de seu passado e aptapara enfrentar o desafio presente.Uma Universidade não podeapenas se manter como mera espectadorados acontecimentos desenvolvidosalém de seus limites.Não pode, ainda, imaginar queas ciências exatas, por mais exaltadasque possam ser, ofereçam respostasàs necessidades subjetivasde cada pessoa.A Universidade, se quiser antevero futuro, terá que captar o mundoexterior e prestar efetivos serviçosà comunidade, sob pena detornar-se desertora, particularmentenesta América Latina, e no seu espaçointerior terá que volver às suasorigens e retornar aos saberes desinteressados,a filosofia e a teologia.A Universidade, como queremalguns, não pode se transformarem mera fábrica de profissões ouem uma singela empresa de consultoriae serviços.O exemplo de muitas Universidadesestrangeiras merece citação.Mesmo que laicas, apresentamcursos de teologia e jamais se afastamda filosofia.Revista <strong>Adusp</strong>E por quê?A sociedade não resistirá à suaautodestruição, mantidas as linhasdo atual processo autofágico a quese lançou.O homem não será apenas o lobodo homem, como doutrinouHobbes. O homem será o exterminadordo homem. Afastar-se-á dobom convívio e expulsará pela forçafísica o que se encontra ao seu lado.Dia a dia, em todas as grandescidades e pequenas urbes, as mortesviolentas ocorrem. A drogasubstitui o hábito de filosofar oupensar no transcendental. É a violênciapela violência.A Universidade não pode abdicarde sua função de centro de reflexãoe atuação efetiva na sociedade,a partir de novas idéias e posicionamentoselevados.Cabe-lhe o papel de difusora dosprincípios éticos e da busca de argumentosque permitam imaginar quehá espaços superiores além dos meroslimites deste pequeno planeta.Se agir em contrário, a Universidadecontinuará em sua insanacaminhada para o vazio, suportadaem vã soberba, própria dos encasteladosem feudos que imaginaminexpugnáveis, mas que desabam,em um átimo, quando as sociedadesque os suportamRAfenecem.BibliografiaDOWLEY, Tim. História do Cristianismo. Venda Nova:Bertrand Editora, 1995.BOYER, Ernest L. Una propuesta para la educación superiordel futuro. México/Azcapotzalco: Fondo de CulturaEconómico e Universidad Autónoma Metropolitana,1997CARVALHO, Rômulo de. História do Ensino em Portugal.Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1996SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Dicionário da História daColonização Portuguesa no Brasil. Lisboa/São Paulo:Verbo, 1994CUNHA, Luiz Antônio. A Universidade Temporã. Rio deJaneiro: Editora Civilização Brasileira, 1980TEIXEIRA, Anísio. Educação e Universidade. Rio de Janeiro:Editora UFRJ, 1998


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000UNIVERSIDADE = IGUALDADE,A EQUAÇÃOINSUBSTITUÍVELCiência e tecnologia não podemmais ser apenas uma questão decientistas e tecnólogos. Ou acidadania interfere ativamentenelas, fecundando-as com oconflito, o diverso, o plural, aautonomia, ou a cidadaniaserá descartável,heterônoma e uma soma de clones.A inversão somente poderá serrealizada se a universidade seampliar em democratização eigualdadeFrancisco de OliveiraProfessor titular (aposentado) doDepartamento de Sociologia da FFLCH-USPe diretor do Centro de Estudos de Cidadania21


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>22Auniversidade temsido, historicamente,um dosprincipais fatoresno longo caminhoda democratizaçãoe da igualdade, apesar de que,em alguns momentos e épocas, elafoi, também, a guardiã da censura,da inquisição e da repressão às liberdades.É através da equaçãodemocratização-igualdade que auniversidade produz conhecimento:desafiando o statusquo, exercendo a liberdadede duvidar, criandoum ambiente emque a liberdade tornaseo princípio ativo dabusca de conhecimento;embora este sejaconsiderado, equivocadamente,o objetivoprimeiro da universidade,para a maioria doscomentadores.No longo percurso,conjuntamente percorridoem interação dialéticaentre a universidade,a liberdade e ademocratização, a formapública-estatal e laica da universidadeganhou lugar crescente,sendo, modernamente, quaseuma redundância. O acesso maisampliado, garantido por sua condiçãode não-paga, reforçou seupapel na formação da igualdade.É fácil contestar uma afirmaçãodesse tipo, recorrendo-se, comosempre, ao chamado “modelo”das universidades norte-americanas,que seriam pagas, nãoestataise em alguns casos confessionais,e constituem-se nas maioresprodutoras de conhecimentoteórico-prático, com suas fantásticasaplicações tecnológicas imediatas.O escândalo recente envolvendouma dessas universidadesnorte-americanas que proibia namorosinter-raciais, preferênciassexuais livres e vetava o acesso apessoas de cor, deveria ensinarmuito aos arautos da privatizaçãoa respeito de universidades privadas,pagas e confessionais.É através da equação democratizaçãoigualdadeque a universidade produzconhecimento: desafiando o status quo,exercendo a liberdade de duvidar, criandoum ambiente em que a liberdade torna-seo princípio ativo da busca deconhecimento; embora este sejaconsiderado, equivocadamente, oobjetivo primeiro da universidade,para a maioria dos comentadoresA verdade, entretanto, é que o“modelo” norte-americano é maismito do que realidade. Em primeirolugar, todos os estados da Uniãonorteamericana patrocinam universidadesem seus âmbitos territoriais-jurídicos,estatais e laicas, comum sistema de bolsas que as tornapraticamente gratuitas. Em segundolugar, as grandes universidadese os institutos de pesquisa que lhessão ligados, cuja lista hoje superade muito o restrito grupo antigamentecomposto pelas “grandes sete”,mantêm-se num regime de autogestão,que não pode ser qualificadode “privado”.Trabalham com orçamentos ancoradosno tripé “grandes fundações-recursospróprios-programase projetos estatais”, o que lhespermite manter um vasto programade bolsas e levar adiante seuscustosíssimos programas de investigaçãocientífica; essa complicadaestrutura as está forçando, desdehá muito, a uma crescentepublicização,sem que haja, entretanto,abertamente,interferência do Estadoem suas administrações,mas a influênciaestatal se dá sobretudona contratação epatrocínio de pesquisasbásicas e sobretudonas aplicadas.Resta, ainda, umcaminho a percorrerpela universidade norte-americanano sentidode ampliar a participaçãoda sociedade,principalmente dosque, aparentemente, nada têmcom ela, no planejamento, direçãoe gestão de suas atividades. Istoestá bastante longe, por certo.Mas mesmo a universidade confessionale privada racista, heterófobae elitista, pivô do recente escândalo,viu-se obrigada a recuar,frente a uma opinião públicaafrontada por suas práticas.O caso brasileiro não podia sermais eloqüente. Provavelmentesomos o país latinoamericano


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000mais tardio em matéria de universidades,e a esse respeito não éindiferente o largo predomíniodas posições da Igreja Católicasobre a questão educacional, aolado, evidentemente, da concepçãoanacrônica das várias classesdominantes ao longo e ao largoda história brasileira, que consideravama educação um ornamentoapropriado para lustrarseus brasões de dominação escravocrata.Mesmo em outros paíseslatinoamericanos nosquais — como em todaa colonização luso-hispânica— a influênciada Igreja Católica foidominante, registraram-seprecoces criaçõesde universidades:São Carlos da Guatemala,para citar umpaís pequeno da constelaçãolatinoamericana,foi fundada no séculoXVI.A universidade brasileiraé uma criaçãotardia da terceira décadade nosso século,embora algumas grandesescolas isoladas, como as famosasfaculdades de Direito doRecife e de São Paulo, sejam dasegunda metade do século XIX, ealgumas de medicina e engenhariatenham vindo à luz no final domesmo século. A universidadebrasileira é uma criação do Estado,e desde logo foi pública, laicae gratuita. Seria dificil exagerar opapel verdadeiramente civilizatórioda universidade numa sociedadetão carola, conservadora eA universidade brasileira écriação do Estado, edesde logo foi pública,laica e gratuita. Seria dificilexagerar o papelverdadeiramente civilizatório dauniversidade numa sociedade tão carola,conservadora e abissalmente desigualcomo a nossa, cujo Estado formou-se, aoseu estilo, sempre “pelo alto”abissalmente desigual como a nossa,cujo Estado, como conformaçãodessa sociedade, formou-se,ao seu estilo, sempre “pelo alto”,recorrendo, sem descontinuidades,às fórmulas autoritárias.Justamente quando o caminhopercorrido até hoje tende a alargar-se,para transformar-se deuma estreita vereda, por ondepassaram apenas poucos cidadãosdas classes e grupos sociais dominados— no que permanece, ainda,uma universidade excludente— para uma ampla avenida democrática,fautora, em conjunto coma ação dos próprios dominados,da virtualidade da igualdade, chegam-nosas ideologias da privatizaçãoda universidade, não tão sutilmenteapregoada numa fictícia“organização social” pública enão-estatal à la Bresser Pereira, emais concretamente, nas centenase provavelmente já no milhar de“universidades” privadas, cujo espectrode ensino resume-se, namaioria dos casos, a “administraçãode empresas, turismo, relaçõese comércio internacional, hotelariae processamento de dados”:vale dizer, colégios técnicos,se muito. Quanto ao espectro depesquisas, uma palavra basta: nada.Enquanto os poderes públicos,em todos os níveis, negam-se aampliar as vagas nas universidadespúblicas. Isto é, o processo deprivatização já começou e vai bemadiantado.Um comentário necessitaser feito, paraevitar mal-entendidos.As universidades chamadasconfessionaisno Brasil situam-se noâmbito da Igreja Católica,predominantemente,e de algumasconfissões protestantes,como a Luterana ea Metodista. Largospassos na transformaçãodessas universidadesconfessionais jáforam dados, desde aaudaz e histórica decisãode D. Paulo EvaristoArns, quando transferiu parao corpus universitário — alunos,professores e funcionários —a escolha do reitor(a) da PontifíciaUniversidade Católica de SãoPaulo, inaugurando uma práticademocrática antes mesmo das universidadespúblicas; como novo sinaldos tempos, a doutora NairKfouri foi o primeiro dirigentemáximo da universidade brasileiraa ser eleito pela sua comunidade.A maioria das universidades23


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>confessionais vêm seguindo esseexemplo, mas ainda há uma tuteladas várias confissões religiosas sobreelas e, sobretudo, dependemmuito dos superiores eclesiásticosno poder. A PUC do Rio, porexemplo, mesmo que se notabilizepela excelência do ensino em algumasáreas — na área de economia,infelizmente, sua notabilidadese dá por ter formado os principaisczares da economia brasileiranos últimos vinte anos — nãoteve, como sua co-irmãde São Paulo, um papeltão notável na democratizaçãoda universidadee da sociedade.Como a arquidiocesedo Rio tradicionalmenteé privativada ala conservadora daIgreja Católica, a PUCdo Rio ressente-se aindade uma tutela vigilantementeconservadorae reacionária. Asassociações de docentes,de funcionários ede alunos têm lutadovigorosamente pelademocratização, comconquistas notáveis, mas resta aindamuito por fazer.O parágrafo anterior vem apropósito de discutir o papel dasmelhores universidades confessionaisna pesquisa acadêmica; este élimitado praticamente à área dasciências humanas, o que não épouco, onde conta muito a excelentequalidade dos docentes epesquisadores das confessionais,que em nada se distinguem daquelesda universidade pública, e,24em alguns campos, podem ser atémelhores; além disso, o intensointercâmbio entre elas, propiciadopelos encontros nacionais e internacionaispromovidos pelas associaçõescientíficas, criaram umuniverso de relações profícuo eexemplar. Mas, nas áreas das outrasciências, a contribuição dasconfessionais é modesta. Isto porque,e aqui vem a questão central,dependendo basicamente dasanuidades pagas pelos alunos, asHoje, ciência etecnologia não sãofatores “auxiliares”:são as próprias forças produtivas.Os laboratórios de pesquisa nãosão apenas decifradores de enigmase solucionadores de problemas de que aprodução capitalista necessitadesesperadamente: eles são as novasfábricas, são o enigma e o problemaconfessionais não podem lançarsea um terreno de pesquisa custoso,incerto, de longo prazo, incompatívelcom a suposta certezado deus Mercúrio, mas irascível,vingativo, volúvel, displicente, indiferente,conjuntural, o contráriodo Deus eterno que inspira os religiososde todas as crenças.Se a ciência é a aventura da incertezae da dúvida, a única basede certeza da qual ela parte paraessa aventura é o consenso dos cidadãosa respeito da necessidadeda incerteza. Mas o deus Mercúrio/Mercadohá muito tempo deixoude ser o lugar da incerteza e daautonomia cidadã: a ciência e a tecnologiacomo atividades produtivasconstituem-se numa desesperadatentativa de respostas acabadas.Voltando ao tema da universidadepública, devido à longa digressãoque se fez necessária paranão confundir as universidadesconfessionais com o saco de gatosdos interesses privadosespúrios, há duas razõesbásicas pelasquais a universidadepública se reafirma comofautora da igualdade,caucionada pelavontade cidadã. A universidadeé, hoje, talvezmais do que nopassado, um lugar porexcelência do conflitosocial, do conflito declasses no sentido precisode crivo insubstituívelpor onde passaa estruturação dasociedade. No passado,quando Marxformulou a teoria mais amplasobre o sistema capitalista,ciência e técnica eram concebidasapenas como fatoresauxiliares da acumulaçãode capital, portanto, da exploraçãoda ampla classeproletária — não apenasno sentido fabril estrito.Hoje, como uma tendênciaque se reafirma desdea máquina a vapor e otear mecânico, ciência e


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000tecnologia não são apenas fatores“auxiliares”: elas são as própriasforças produtivas.Os laboratórios de pesquisa nãosão apenas decifradores de enigmase solucionadores de problemasde que a produção capitalistanecessita desesperadamente: elessão as novas fábricas, eles são oenigma e eles são o problema. Elesmoldam o futuro, como diz a propagandade um grande grupo alemãode ciência e tecnologia pesada.Toda as relações deprodução, a sociabilidade,a cultura, a ética,estão e estarão profundamenteafetadas pelonovo lugar da ciência etecnologia no sistema.Tanto do lado das chamadasreestruturaçõesprodutivas, que estãodeslocando a centralidadedo trabalhador —já que a centralidadedo trabalho não podeser deslocada — da política,privatizando-oscomo se voltassemao simplesestatutode mercadoria, quanto nadecodificação do genoma humano,quanto na invasão microsoftianade qualquer privacidade,o novo lugar da ciência etecnologia não pode, parafraseando-seClemenceau, ser apenasquestão de cientistas e tecnólogos.Ou a cidadania interfereativamente nela, fecundando-acom o conflito, com o diverso, como plural, com a contradição, com aautonomia, ou a cidadania serádescartável, descartada, heterônomae uma soma de clones.Essa inversão somente poderáser realizada se a universidade seampliar em democratização eigualdade. Isto depende basicamentede um ensino que propicieao cidadão o domínio da linguagemcientífica e tecnológica, emais que isso, não apenas comoum instrumental a partir do qualele está dotado de capacidade receptivapassiva, mas a partir doTanto do lado das chamadasreestruturações produtivas, quanto nadecodificação do genoma humano, onovo lugar da ciência e tecnologia nãopode, parafraseando-se Clemenceau, serapenas questão de cientistas etecnólogos. Ou a cidadaniainterfere ativamente nela, ou serádescartável, descartada,heterônoma e uma soma de clonesqual ele elabore, reflexivamente,sobre os caminhos da própriaciência. Isto significa, para voltara Marx outra vez, que o campo deescolhas deverá ser ilimitado, embora,evidentemente, a escolha,até ontologicamente, é sempre“escolha”, autolimitação, autodemarcaçãodo terreno de sua individualidade.Utopia, dirão os realistas.Basta voltar à revolução dainformática, para ver que o homemsimultaneamente pescador,artista, engenheiro, enfermeiro,trabalhador manual e intelectualao mesmo tempo, já existe. Deseu computador pessoal, muitoshoje desenham, pintam, contemplama Mona Lisa, imprimem,conversam, escrevem, pesquisamjuntos e um grupo muito reduzido...especula de Tóquio a Londres,de São Paulo a Nova York.Somente a universidade públicaserá capaz de enfrentar essapromessa. Como o grande economistaKeynes formulouem sua teoria, aquestão não é eliminara incerteza, emblemamaior da própria liberdade:a questão é aumentarradicalmenteos fautores da incerteza.A racionalidadeque substituía o “saltomortal da mercadoria”por uma probabilidadede resultados não estáno terreno da lógica,mas da política: apenasa riqueza públicacauciona a incertezaque está no centro dadúvida moderna, e atransforma numa igualdade deoportunidades. Sem a democratizaçãode todas as linguagens, nãopode haver uma política da igualdade.O Admirável Mundo Novoestá às portas: apenas escutaremossua batida às nossas portas, comono famoso movimento da QuintaSinfonia de Beethoven, ou seremoscapazes de virá-lo pelo avessonum Novo Mundo Admirável? Istotem um nome no léxico clássico:socialismo. RA25


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>MELHORAR O ENSINO MÉDIOIsaiasPresidente da FunTalvez do professorque deu um saltoda bioquímica básicapara a biotecnologia,dirigidopara a recuperaçãode um instituto público, se espereuma receita de como tornar apesquisa relevante e uma fonte deprodutos capaz de atender prioridadesda sociedade. A resposta foirelativamente simples: criar um laboratórioque prioriza a solução deproblemas reais e importantes,atraindo, pela motivação, doutorese doutorandos de alto nível. Jáatendemos a demanda de soros,mais da metade da demanda de vacinaspara crianças e idosos e embarcamosem biofármacos, cujopreços de mercado os torna proibitivospara a maioria da população,aumentando a sobrevida de prematuros,renais e transplantados.A relevância social é que definiua criação e deve definir a sobrevivênciados institutos de pesquisado Estado. Esta relevânciaexige um equilíbrio entre boa pesquisabásica e aplicada, entre pesquisae serviços. Todavianão se aplica à pesquisacientifica como um todo,nem às universidades.Para acelerar nosso desenvolvimento,aumentando o bemestar de nossa população e contribuindopara o progresso do Homem,necessitamos de um forteesforço em ciência e tecnologia.O Ministériode Ciência e Tecnologiaavaliou que o país investe 1,3%do PIB. Os países mais avançadosinvestem 2,4% a 2,8%, mas a diferençaé que o PIB brasileiro é 1/7menor. Nestes recursos o MCT incluiu1/3 da empresa privada, o quenão parece ser realidade. Um indicadorde que a indústria não investe26


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000E APROVEITAR OS TALENTOSRawdação ButantanA indústria emprega um númeroirrisório de doutores. Mais de 600 dasmaiores empresas pesquisadasempregam juntas menos doutores doque as universidades privadas. E nãoinvestem na pesquisa, comopoderiam, até 4% do Impostode Renda devidoem pesquisaé o número irrisóriode doutores que ela emprega.Mais de 600 das maiores empresaspesquisadas empregam juntasmenos doutores do que as universidadesprivadas. Não investemnem transferem, como poderiam,até 4% do Imposto de Renda devido.Já as Universidades privadas,pressionadas pelo MEC, começama empregar doutores que disputamrecursos da Fapesp.Cerca de 50% dos recursosfederais para pesquisa sãoabsorvidos pelos pesquisadorespaulistas, a que se soma outro tantode recursos da Fapesp. A concentraçãoda pesquisa em São Paulo,responsável por 50% da pesquisabásica realizada, contribui com0,8% do avanço do conhecimentomundial.Investir mais, subtraindo osparcos recursos disponíveis paraefeitos imediatos em saúde e educação,seria totalmente inviável.Atingimos, em São Paulo, um financiamentoextraordinário quandocomparado com os países doprimeiro mundo: todos os projetospropostos por um pesquisador combom currículo e com nível adequadosão financiados, contra apenas10% dos bons projetos apresentadosno Estados Unidos.A melhoria do nível de nossaciência depende portanto de umaumento do número de boas propostas,aumentando a competitividade.Para isto precisamos de maispesquisadores. Não dispomos, comoos Estados Unidos, de pósgraduadosatraídos de todo o mundo,inclusive do Brasil. Eles são a27


Março 2000As citações dão uma avaliação doimpacto universal. É fundamental queos recursos de pesquisa para projetosnão sejam financiados pela própriauniversidade ou instituto depesquisa, e que estas instituiçõesnão mantenham revistasparoquiais sem impacto naliteratura mundialmassa que produz ciência trabalhando300 horas por mês, sendodescartados para ser substituídospor outros jovens dispostos à mesmadedicação. Cada um deles representouo investimento, de outropaís, superior a 100.000 dólares.Apesar de disponíveis, jamais fizemosum esforço de atrai-los paraacelerar nosso desenvolvimento.Hoje já é um consenso de que sóé possível progredir melhorando onível educacional médio. O sistemade seleção de vestibulares foi agoracomplementado com os exames doMEC. Estes exames não são umaaferição do processo de aprender aaprender, que permite a cada umatingir o seu nível máximo de competência.Todos estes exames cobraminformações freqüentementepouco relevantes, ou inúteis a médioprazo. O problema não é aumentaro número de alunos quedomina esta informação (o quecriou e estimulará os cursinhos),mas a capacitação permanente deidentificar problemas, procurar informaçõese criar novas soluções. Opioneiro vestibulardo Cescemjá haviademonstradoque os melhoresalunos nosvestibulares,capazes de resolverno papelproblemas deredes elétricas,eram incapazesde medira correnteou voltagemnum circuitosimples com pilhas e lâmpadas.Estamos substituíndo o velhoquadro negro pelo computador,sem qualquer inovação outra a nãoser aprender a usar o computador(como nosso avós fizeram com amáquina de escrever, que jamaischegou à escola). Enquanto nãoretornarmos a investigar o que sedeve aprender (não ensinar) naescola média (nos anos 60 o Brasilera considerado um dos principaisinovadores do ensino de ciências),continuaremos a desperdiçar nossostalentos.A formação de pesquisadoresexige alunos motivados no momentodo ingresso nas universidades e asua convivência nos laboratóriosonde a pesquisa estiver acontecendo.Escolas superiores podem formartécnicos, que necessitam dereciclagem periódica, mas semuma importante atividade de pesquisa,não formarão cientistas.A função de uma universidadede alto nível, como as universidadespúblicas do nosso Estado, éformar cientistas e técnicos capazesRevista <strong>Adusp</strong>de buscar novas soluções para osproblemas sob sua responsabilidade.Esta é a função das universidadede pesquisa, que devem ter suasvagas reservadas para aqueles commaior potencial criativo. O vestibulardeve ser capaz de selecioná-los.O que a sociedade paga, retornacom juros no exercício profissional.Este processo só pode ser realizadopor um corpo docente competente,criativo e motivado pelodireito de propor e realizar as pesquisasque concebeu. Para lograrrecursos, apresenta à Fapesp seuprojeto, que é julgado por um corpode especialistas. Sua pesquisadeve resultar não num relatório,mas em manuscritos que são novamentesubmetidos a um corpo deespecialistas, agora internacionais,escolhidos pelos editores das revistas.A avaliação do seu impacto émensurável pela aceitação do artigoe pela repercussão que obteveao ser usado como base em novaspesquisas, que a estendem ou contradizem.As citações dão umaavaliação do impacto universal.Não é pesquisador aquele que nãobusca auxílios para sua pesquisa epublica seus resultados em revistascom um corpo de assessores. É poristo que é fundamental que os recursosde pesquisa para projetosnão sejam financiados pela própriainstituição (universidade ou institutode pesquisa) e que estas instituiçõesnão mantenham revistasparoquiais sem qualquer impactona literatura mundial.A principal compensação que opesquisador tem é a sua independênciade propor pesquisas e ser financiado.A pesquisa deve repre-28


Revista <strong>Adusp</strong>sentar um avanço de conhecimentomundial, que neste processoforma novos pesquisadores.Existe uma pressão da burocraciae da Sociedade leiga para exigirdo pesquisador resultados práticos.Começa a existir uma conivênciade parte dos pesquisadores (em todoo mundo) que procuram justificaro pedido de recursos fazendopromessas irrealizáveis (curar ocâncer ou a moléstia de Chagas, resolvera pseudo-demanda de proteínas).A pesquisa básica é fundamentalpara o avanço científico enão precisa de falsas justificativas.Preencher lacunas de competênciae estimular pesquisas emáreas estratégicas é uma políticaóbvia, tanto para países no nossonível como os mais avançados. Aoenumerar prioridades todos falamem biotecnologia, conservação, estadosólido e produção de energia.A Fapesp foi muito mais inovadoraao criar a rede de laboratórios comequipamentos modernos e competênciapara seqüenciar DNA. Nãoresolveu o problema do amarelinho,mas abriu com isto um fantásticoleque de pesquisas, trazendopara o nível de primeiro mundopesquisadores que atacam problemasde biologia molecular e aplicaçõespara saúde e agronomia. Osinstitutos e empresas que faziampesquisas em agricultura perderama competitividade, tornando o paístotalmente dependente da importaçãode sementes. O domínio dabiologia molecular permitirá recuperara defasagem. Procedimentosde biologia molecular já permitiramao Butantan produzir a vacinacontra hepatite B e talvez em breveA pesquisa tecnológica édiferente dapesquisa básica,exigindo não um artigodescrevendo como foi realizada eMarço 2000as conclusões, mas um processo queresulta num produto disponível para asociedade, e que demandarecursos até cem vezes maior doque a pesquisa básicanovas vacinase biofármacosmodernos.A pesquisatecnológica édiferente dapesquisa básica,exigindonão um artigodescrevendocomo foi realizadaa pesquisae as conclusões,mas umprocesso queresulta numproduto disponívelpara asociedade. É preciso saber comofazer o produto em volume, comqualidade, consistência e preço.Quem desenvolve a tecnologia deprodução precisa de conhecimentosdiferentes dos que caracterizamum pesquisador básico. Oprocesso demanda recursos atécem vezes maior do que a pesquisabásica. Estes investimentos devemsofrer um importante crivo paradefinir prioridades e viabilidade,bem como a garantia de que o processouma vez completado será utilizado.Não absorvidos pelasempresas privadas, o esforçose torna inútil.Na chamadarota 128 (em tornodo MIT eHarvard) e noVale do Silício, foramos pesquisadoresque abandonaramos laboratórios,confiando nas pesquisas que realizaram,e montaram microempresas,transformando pesquisa emproduto. São estas pequenas empresas,com pesquisadores-empresárioscompetentes, que são constantementeabsorvidas pelas grandesmultinacionais, transformandoum sucesso comprovado numaimensa indústria lucrativa.Infelizmente este processo nãoexiste no Brasil, onde empresáriosnacionais não têm formação paraemprendimentos inovadores e ondeempresas multinacionais reservampara suas matrizes as inovações. Paracorrigir esta situação, depoisde uma longa discussão, quedurou anos, a Fapesp passoua financiar desenvolvimentos,estimulandoa parceriaentre laboratóriosepequenasempresas. Certamenteos frutosaparecerão nos próximosanos. RA29


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>DESAFIOS NA BUSCADO CONHECIMENTOPedro Paulo A. FunariProfessor do Departamento de História da Unicamp30


Revista <strong>Adusp</strong>AUniversidade nãopode ser concebidasem a pesquisa,elemento essencialpara a suaprópria definição.“Pesquisa” é uma palavra que se ligaà noção de “busca aprofundada”,mas busca de quê? Naturalmente,do conhecimento, da ciênciaque permite compreender ouniverso, scientia vinces, “com oconhecimento se vence a ignorância”,como no lema da USP. Pesquisaé a quintessência da Universidadee, como bem lembrava MarilenaChauí, ela é, por definição,crítica: “por pesquisa entendemosa investigação de algo que nos lançana interrogação, que nos pedereflexão, crítica, enfrentamentocom o instituído, descoberta, invençãoe criação, o trabalho dopensamento e da linguagem parapensar e dizer o que ainda não foipensado nem dito”. Deve concordar-secom Milton Santos que odever de ofício da Universidade éa crítica, essência da busca empreendidapela pesquisa acadêmica.Nem toda produção intelectualé resultado de pesquisa nem, porisso mesmo, possui um caráter crítico.Pode produzir-se um discursoacadêmico que apenas confirme osenso comum, transcrevendo asidéias correntes em forma de definiçõescientíficas. Tanto maior seráa possibilidade de aceitação dessediscurso quanto mais ele se ativeraos rigores formais da ciência. Já averdadeira pesquisa, aquela querompe com a falsa obviedade ecom a aparente neutralidade dosenso comum acadêmico, semprecorre o risco de parecer o resultadode um ato arbitrário e ser acusada,até mesmo, de manipular osdados para que justifiquem umaposição prévia, ideologicamentefundamentada.Na história da ciência os exemplossão muitos, de Copérnico aGalileu, cujas pesquisas contradiziamo senso comum acadêmico desua época. Em nossa época, talvezo mais célebre exemplo esteja, aocontrário, nos louros conferidos aobiólogo Trofim Lyssenko por darforos de cientificidade às idéias dominantesna União Soviética à épocade Stalin. A verdadeira pesquisa,assim, aquela que deve definir aUniversidade e que nos deve preocupar,como cientistas e cidadãos,em geral, é a busca aprofundada ecrítica do conhecimento.Por seu caráter crítico, a pesquisaimplica em abnegação. Estamosacostumados a reconhecer nopesquisador um homem de possesmodestas, cujos salários são, namelhor das hipóteses, moderados.Isto é verdade tanto no Brasil comono mundo, em geral, pois ospesquisadores universitários emtoda parte são pouco remunerados.Um pesquisador britânico, cujosalário anual gira em torno de17 000 libras, ganha por mês unsR$ 4.500,00, pouco mais do queum empregado manual. No Brasil,tampouco se ganha dinheiro pesquisando.Um professor de escolasmédias privadas pode ganhar detrês a quatro vezes mais do que umpesquisador. Além disso, se a verdadeirapesquisa é crítica, ela nãoserá, necessariamente, bem recebida,nem são muito freqüentesSe a verdadeira pesquisaé crítica, ela não seránecessariamente bemrecebida. No geral,continua válida aobservação de Max Weberde que a pesquisa exigepaixão intensa, sincera eprofunda. Nãoapenas pelaremuneraçãomodesta como,principalmente,pela dedicaçãoque ela exigeoportunidades de ofertas de boasremunerações, com a notável exceçãoda pesquisa aplicada. No geral,contudo, continua válida a observaçãodo sociólogo alemão MaxWeber de que a pesquisa exige paixãointensa, sincera e profunda. Istonão apenas pela remuneraçãocomo, principalmente, pela dedicaçãoque ela exige e que só se tornapossível com a paixão.Como estaria, neste caso, o Brasilno quadro internacional? Segundoum estudo recente, na Universidadeo interesse prioritário pelapesquisa científica concerne 39%dos docentes, mais do que nosEstados Unidos (37%), México(35%) ou Chile (33%),mas bem menos do que no31


Devemosquestionar aprópria concepção de quea precariedade é natural.Japão (72%), Alemanha (66%) ouIsrael (62%). Outro indicador relevantepara determinar o grau dededicação à pesquisa refere-se àpercentagem de professores universitáriosque consideram importantea disciplina científica a que sededicam. Neste caso, os brasileirosdestacam-se, pois 95% consideramnamuito importante, em primeirolugar em um total de 13 países investigados,enquanto na Alemanha(62%), no Japão (69%) e nos EstadosUnidos (77%) essa identificaçãodos investigadores com suaciência é bem menos marcada. Ocontraste entre os dados referentesao interesse pela pesquisa e a importânciaatribuída à ciência demonstra,no que se refere ao Brasil,que deve haver motivos muito concretosque fazem com que 95% dedocentes se interessem por suaciência, mas apenas 39% dêemprioridade à pesquisa.Uma explicação deve encontrar-sena precariedade32Para que serve umpesquisador, sem condiçõesde pesquisar? Haveria quedar condições mínimaspara que os docentespudessem pesquisardas condições de apoioà pesquisa. As condiçõesmateriais são, muitasvezes, insatisfatórias eprecárias, as bibliotecas e oslaboratórios pouco equipados,os gabinetes de trabalho,quando existentes, desaparelhadose infensos ao trabalho intelectual.Nas instituições privadas, raramentese paga pela pesquisa e,nas públicas, remunera-se o docentemas, freqüentemente, não há infraestruturapara permitir sua execuçãominimamente adequada. Asautoridades sempre ressaltam queo país é pobre e, por isso, não sepoderia dispensar verbas substanciaispara pesquisa. Contudo, outrospaíses aplicam em pesquisa,percentualmente, muito mais doque o Brasil. Talvez ainda mais importanteseja o questionamento daprópria concepção de que a precariedadeé natural. Afinal, para queserve um pesquisador, sem condiçõesde pesquisar? Em outros termos,haveria que dar condiçõesmínimas para que os docentes pudessempesquisar.Em termos institucionais, asfundações estaduais de amparo àpesquisa têm tido um papel de destaque,à frente a Fapesp, no sentidode financiar a investigação acadêmicaa partir de critérios de méritoe com fundos ingentes. No entanto,na maioria dos Estados da federaçãoisso não ocorre, seja pela debilidadeda economia local, seja,principalmente, pela não liberaçãodos recursos orçamentários que deveriamser destinados à fundaçãoestadual. Os órgãos federais, porsua parte, nem sempre se guiamRevista <strong>Adusp</strong>por critérios científicos nas concessõese possuem, ainda, políticasmuito tímidas naquilo que deveriaser sua principal missão: a diminuiçãodas diferenças entre as unidadesda Federação.A vocação das instituições federaisestá em programas como osMestrados Interinstitucionais, quevisam a titulação e estímulo à pesquisanas universidades periféricas.Em 1997, 55% das bolsas de pósgraduaçãodo CNPq não resultaramem defesas de teses, pois o controledas bolsas não se dava com a necessáriaproximidade e rigor. Esse desperdíciode recursos põe em risco aprópria dedicação à pesquisa e a solução,como tudo que se refere àpesquisa, está em tornar prioritárioo julgamento de mérito. Fundamentoda dedicação é a certeza deque há igualdade de oportunidadese de condições, como lembraChauí, algo que não ocorre hoje.Para que isto ocorra, além defundações estaduais fortes, autônomase baseadas em critérios de mérito,de instituições federais que,além disso, se voltem para a diminuiçãodas desigualdades regionais,há que incrementar os fundos deapoio à pesquisa em cada universidade.Este apoio não se restringe àinfraestrutura, tão precária em todaparte, nem aos projetos específicos,mas deve abranger o universodos jovens pesquisadores em formação.Embora as pesquisas de iniciaçãocientífica, mestrado e doutoradotenham aumentado de formaespetacular, em todo o Brasil, aindahaveria que expandir muito aformação de pesquisadores. Amaior universidade do país, a USP,


Revista <strong>Adusp</strong>teve 1 276 teses de doutoramentodefendidas em 1997, com um totalde 8 990 doutorandos, no mesmoano. Não são números pequenos,mas seria possível expandir muito,se considerarmos que havia 3,9 graduandospor doutorando, enquantona Unicamp, por exemplo, havia2,6 graduandos por doutorando; naUnesp havia 7,6 graduandos pordoutorando. Se este é o quadro nasuniversidades que mais pesquisamno país, pode-se supor que alhuresa situação seja menos favorável.Os jovens pesquisadores necessitamde bolsas. Ao contrário do quedizem os que defendem a privatizaçãodas universidades públicas, seusalunos não são ricos. Em 1998,constatou-se, após um estudo coordenadopor Carlos José de Lima sobreo perfil socioeconômico dos alunosdas instituições federais de ensinosuperior (IFES), que a maiorianão poderia arcar com uma mensalidade,por menor que fosse. Nasuniversidades mais concorridas, comoa USP e a Unicamp, o quadronão é muito diferente. Nesta última,com o maior número de candidatospor vaga, em 1999, 52,8% dos ingressantesprovinham de famíliascom renda até R$ 2.600,00, sendoque 7,3% viviam em famílias comrenda familiar entre R$ 130,00 e R$650,00. Neste contexto, a viabilizaçãodas vocações para a pesquisapassa, necessariamente, pela bolsade iniciação científica e, depois, depós-graduação. Neste sentido, a políticadas agências financiadoras delimitarem o valor das bolsas e, aomesmo tempo, exigirem dedicaçãoexclusiva tem sido questionada pordiversos analistas.Os jovens pesquisadoresnecessitam de bolsas. Aocontrário do que dizem osdefensores daprivatização dasuniversidades públicas,seus alunos não são ricos.Neste sentido, a políticadas agênciasfinanciadoras delimitarem o valor dasbolsas e, ao mesmotempo, exigiremdedicação exclusivatem sido questionadapor diversos analistasO professor Júlio César Voltarelli(Clínica Médica, USP de RibeirãoPreto) defendia, já em1997, que houvesse a permissãoda concomitância de outras funçõesremuneradas. A pesquisa, seanalisada pelo mérito apenas, nãopoderia exigir do bolsista dedicaçãoexclusiva, pois os resultadosobjetivos deveriam bastar paraavaliar se a concessão da bolsa estásendo pertinente. Não é à toaque bolsas sem um sistema deavaliação eficaz, mas com exigênciade dedicação <strong>integral</strong>, não resultemem teses, como vimos acima,enquanto muitas teses sãodefendidas por pesquisadores querecebem remuneração. Isto se explica,justamente, porque é a dedicaçãodo pesquisador que geraresultados e, muitas vezes, as atividadesremuneradas contribuempara que o pesquisador adquiraconhecimentos mais amplos úteis,ainda que indiretamente, parasua pesquisa.Elói Garcia, da Academia Brasileirade Ciências, ressaltava, hápouco, que países que negligenciama importância do investimentoem pesquisa amargam uma perenecondição periférica. O Brasiljá tem sofrido, como outros paísesem situação semelhante, um braindrain, com a perda de grandes pesquisadoresque se instalam no exterior.Como já se disse, não sãotanto os salários a atrair nossospesquisadores, mas as condiçõesde trabalho. O futuro da nação depende,também, da existência deuma pesquisa que esteja em condiçõesde integrar-se àquela universal.Tampouco podemos nos contentarcom um arremedo de pesquisa,“descobrindo a pólvora”, comose existisse uma pesquisa deponta que pudesse prescindir dainserção na ciência internacional.Paroquialismo não se coadunacom pesquisa: se italianos ou japonesestêm que publicar e, até mesmo,apresentar seus projetos depesquisa, em seus países, em inglês,não há por que ser diferente noBrasil. Os desafios da pesquisa universitáriano Brasil são, pois, muitos.A reflexão crítica, a dedicaçãoà ciência, a luta por mais adequadascondições de trabalhosão tarefas mais necessáriasdo que nunca, mas o essencialjá possuímos: a paixão. RA33


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>O EXEMPLO DE PAVAN,DESCOBRIDOR INCANSÁVELPaulo MarquesPesquisador do Centro de História da CiênciaOswaldo José dos Santos/Agência USPNNuma época como a atual, em que auniversidade pública está sendo colocadaliteralmente no pelourinhotanto pelos veículos da mass mediacomo pelo lobby montado para defendero interesse das instituiçõesprivadas de ensino superior, nada mais oportuno quepromover um simpósio para debater a questão tendocomo personagem central o professor Crodowaldo Pavan,ferrenho defensor do ensino superior gratuito edo sistema de pesquisas patrocinado pelo poder público.Esta foi a principal motivação encontrada pelo diretordo Centro Interunidade de História da Ciência(CHC), Shozo Motoyama, para liderar o rol das entidadespromotoras do simpósio “Universidade, Pesquisae Globalização — o caso do Brasil em uma perspectivahistórica”, montado em homenagem aos 80 anosdo professor Pavan e realizado em dezembro de 1999.34


Revista <strong>Adusp</strong>As demais organizações co-promotorasdo evento acadêmico foram a Associaçãodos Docentes (<strong>Adusp</strong>), a Academiade Ciências do Estado de São Paulo(Aciesp), o Departamento de Jornalismoda ECA-USP, o Instituto de Biociênciasda USP, a Sociedade Brasileira deGenética (SBG) e a Sociedade Brasileirapara o Progresso da Ciência (SBPC).Contou, ainda, com o apoio das pró-reitoriasde Pesquisa e de Cultura e Extensão,ambas da USP, e, também, da Fundaçãode Pesquisa Científica de RibeirãoPreto (Funpec).“Além de o simpósio ter contribuídocom o aporte de importantes depoimentosacerca dos temas tratados, o CHCpôde, igualmente, prestar uma homenagemao professor Pavan, geneticista brilhantee homem público de vida pregressaexemplar, com atuação expressiva nasáreas de política científica e tecnológicado País, sobretudo através de suas atuaçõescomo dirigente de alto escalão juntoà Fapesp, à SBPC e ao CNPq. O que,aliás, converge com a filosofia de atuaçãodo CHC que tem procurado homenagearcientistas não apenas por suasbrilhantes carreiras acadêmicas, mas porseus relevantes trabalhos em prol da divulgaçãoe da difusão do papel social daCiência, como já fizemos num passadorecente com os professores José LeiteLopes, Milton Vargas e Milton Santos”,argumenta Motoyama.A homenagem expressa a Pavan ocorreuna quarta e última conferência dosimpósio, “Crodowaldo Pavan, o homeme o cientista”, presidida pelo presidenteda SBG, João Stenghel Morgante e tendocomo conferencista o professor eméritoda USP, Oswaldo Frota-Pessoa. Ao finaldos trabalhos, o próprio homenageadorelatou sua vida, de modo apaixonadoe bem-humorado.CRODOWALDO PAVANSEGUNDO FROTA-PESSOAMarço 2000“VIDA GRANDIOSA”Publicamos, a seguir, excertos da primorosa conferênciado professor Oswaldo Frota-Pessoa sobreCrodowaldo Pavan, pronunciada no simpósio do CHC.pNasce um bebê: quem se atreve a prever seu destino? Os augúriossão sempre favoráveis, mas, com freqüência, exagerados.pSó na terceira ou quarta idade podemos rever nossa trajetóriae assinar em baixo, com orgulho, arrependimento, ou filosóficaindiferença. Valeu a pena?pAgora sabemos que a vida do Pavan tem sido grandiosa. Elea dedicou toda ao desenvolvimento da ciência, no Brasil e noestrangeiro, fazendo excelente pesquisa, ensinando discípulos afazê-la e propiciando meios para que ainda outros seguissemseu exemplo. Mas tudo isso não surgiu do nada. O sucesso navida científica é multifatorial: depende dos genes e do ambiente.Quanto aos genes do Pavan, não precisamos recorrer ao estudodo DNA para pronunciá-los como excelentes, pois elespassaram pelo teste da vida e saíram vitoriosos.pPavan foi sempre leal, sincero, seguro, direto, enfático, polêmico,solidário, otimista. Nunca temeu competição, em parteporque sempre aprendeu a vencer, sem vaidade, mas tambémporque cultivou espontaneamente o gosto em ajudar colegas ediscípulos.Pavan: como companheiro de caminhada, vim dar-lhe a mãopara conduzí-lo ao lado de cá dos oitenta anos. O nicho ecológicodos velhos tem recantos aprazíveis, para aqueles, como você,que vieram, viram e venceram.pPavan nasceu para a ciência em uma época em que a juventudeculta se empolgava com a mística da pesquisa. Isso porque,no começo do século, tinham florescido os estudos brasileirossobre as endemias infecciosas e parasitárias e as campanhasbem-sucedidas para combatê-las.35


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>Os grandes heróis dessa batalha eram AdolfoLutz e Emílio Ribas, em São Paulo, e, no Rio, OswaldoCruz e Carlos Chagas. Eles deixaram grandesdiscípulos, que beneficiaram o ensino biológico emédico. A opinião corrente no Rio, de que a “Faculdadede Medicina não é feita para pesquisas”, foi revertidaquando Carlos Chagas Filho, empossado porconcurso na década de 30, fundou, em sua cátedra, oInstituto de Biofísica. Em 1907, o Instituto de Manguinhos(hoje Fundação Oswaldo Cruz) ganhou oprimeiro prêmio, entre 123 competidores, no CongressoInternacional de Higiene. Em 1912, CarlosChagas recebeu o prêmioSchaudinn por terdescoberto o protozoárioTrypanosoma cruzi,e elucidado seu cicloevolutivo. Miguel Ozóriode Almeida recebeu,na França, o PrêmioSicard, em 1936.Ele e seu irmão Álvarotinham inaugurado aspesquisas de Fisiologiaexperimental no Brasil,à força de entusiasmo,no porão da casa deseus pais. Esse laboratórioesteve ativo até1932 e foi freqüentadopor estudantes e cientistas, inclusive André Dreyfus,o fundador do Departamento de Biologia da USP.Visitaram-no fisiologistas franceses e celebridadesde outras ciências, como Mme. Curie e Einstein.A USP foi fundada em 1934 e a do Distrito Federal(UDF) no ano seguinte. Ambas acolhiam jovensfascinados pela aventura de descobrir. Podemosfalar a respeito, Pavan e eu, porque tivemos iniciaçõesparalelas. De minha parte, lembro-me decomo Anísio Teixeira, fundador da UDF, fez questãode contratar, para cada cadeira, o melhor pesquisadorbrasileiro na área, mesmo que nunca tivessedado uma aula. Nos casos em que o melhor nãoDeparei com Pavan e TheodosiusDobzhansky, o jovem entusiasta e opesquisador eminente, que tinhapublicado Genetics and the origin ofspecies, o livro que Darwin gostaria deassinar, se tivesse vivido mais cem anos.Os dois, nos seus microscópiosbinoculares, trocavam idéias sobre asdrosófilas, como crianças comentandoseu brinquedo favoritoera suficientemente bom, ele mandava buscar o catedráticona Europa.O resultado foi que a maioria dos professores tinhauma noção incomum sobre ensino. Como pesquisaera o que sabiam fazer melhor, eles nos puseramna pesquisa a partir do primeiro dia de aula.Nossa atividade principal era fazer excursões, coletare estudar material e consultar bibliografia, para desenvolvernossos projetos.Em 1943, penetrei em uma pequena sala da USP,na Alameda Glete, a convite de Dreyfus, para passarquinze dias usando chaves de classificação das mosquinhasdrosófilas. Éque seus autores queriamque elas fossemtestadas por entomologistasbisonhos, paraver se estavam claras erigorosas, antes da publicação.Na sala, depareicom os autores, Pavane TheodosiusDobzhansky, o jovementusiasta e o pesquisadoreminente, que tinhapublicado Genetics andthe origin of species, o livroque Darwin gostariade assinar, se tivessevivido mais cem anos.Os dois, nos seus microscópios binoculares, trocavamidéias sobre as drosófilas, como crianças comentandoseu brinquedo favorito. A acolhida foi simples e amiga.O que eu não poderia prever é que aquele encontroselaria a trajetória da minha vida: eu tinha sidoabsorvido pelo redemoinho científico inaugurado porDreyfus e conduzido até hoje por Pavan.A liderança que assumiu desde cedo o coloca comoo ampliador da obra de André Dreyfus na construçãodo Departamento de Biologia. Ele se situa nopináculo de um cone, que se amplia com as gerações,como pai, avô ou bisavô cultural de dezenas dedocentes aposentados ou ativos do nosso Departa-36


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000mento, além de muitos discípulos vindos de outrasplagas. São também seus afilhados centenas de cientistasque puderam formar-se com bolsas do CNPqque ele, como seu presidente, multiplicou e estendeutambém a jovens dedicados às ciências humanas. Aconsolidação econômica da Fapesp muito deveu aele, como diretor-presidente do seu Conselho Técnico-Administrativo.Pavan adora a natureza,pois ela é o repositóriode fatos novos, embusca dos quais ele passaa vida. Sua primeira realizaçãocientífica foi elucidaro caso dos peixescegos das cavernas deIporanga. Eles pareciamilustrar um caso de lamarckismo,mas o casofoi interpretado por Pavan,depois de persistentetrabalho experimental,de maneira mais meticulosa.Essa inauguraçãosintetiza bem a vida deum pesquisador quesempre buscou métodosoriginais para elucidarproblemas evolutivos,com técnicas de campo ede laboratório, atravésda genética.Sua interação comDobzhansky decorreudo interesse de Dreyfusde tornar o Departamentode Biologia um grande centro de pesquisas.Ele e Harry M. Miller Jr., da Fundação Rockefeller,aproveitaram o interesse de Dobzhansky em compararas drosófilas tropicais com as dos Estados Unidos,que ele já conhecia bem. Nasceu, assim, umgrande projeto internacional, com sede em São Paulo,que foi dirigido principalmente por Pavan, e visavaa esclarecer temas evolutivos por meio de estudosexperimentais com drosófilas. O que não se previaé que os aprofundamentos que Pavan teria de fazerlhe deram oportunidade para descobertas fundamentaisem diversas áreas.Antes que tudo, era preciso catalogar as numerosasespécies brasileiras do gênero Drosophila, aCecília Bastos/Agência USP maioria ainda desconhecidapara a ciência.Pavan tornou-se,então, um exímio taxonomistae descreveuvárias espécies novas.Muitas espécies dedrosófilas se reproduzemno laboratório.Isso permitiu que asdetalhadas descriçõesde Pavan e seu grupofossem baseadas emmuitos indivíduos garantidamenteda mesmaespécie, por seremoriundos de uma únicafêmea colhida nanatureza. Por outrolado, coletas abundantespermitiamcomparar variantesdentro da mesma espécieou de espéciespróximas que, contudo,não se cruzam.Com a colaboraçãode Martha ErpsBreuer, Pavan completavaa caracterização das espécies com o desenhoda genitália masculina, um excelente traço paradistinguir espécies próximas, e o estudo dos cromossomostanto diplóides como politênicos (cromossomosgigantes das larvas).O segundo objetivo era o estudo da distribuiçãogeográfica das principais espécies, imbricadamentePavan adora a natureza, pois ela é orepositório de fatos novos, em buscados quais ele passa a vida.Freqüentemente, descobriu maneirasde atacar temas novos e tirar delesresultados memoráveis.37


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>com sua ecologia.Para isso, Pavanfez coletas em todosos ecossistemasbrasileiros eregistrou dadosde comportamento,como tipo dealimento preferido,hora de maiorconcentração nasiscas e taxa dedispersão, na natureza,de moscasmarcadas.Outro notávelaspecto do estudodas drosófilas emque Pavan se envolveufoi a genéticade populações. Seugrupo demonstrou umaenorme variação genéticadentro de certas espéciesde drosófilas e a relacionoucom o tamanhodas populações. Suasconclusões são extrapoláveispara qualquer espécie de reprodução cruzada.O professor emérito Antonio Brito da Cunha, colaboradorde Pavan e seu melhor biógrafo, resumemagistralmente esta fase do trabalho, no seguinteparágrafo (Rev. Bras. Genética 12 (4) 685, 1989):“A partir de 1957, o Prof. C. Pavan dirigiu e participouna execução de um longo e importante planode pesquisa sobre o comportamento de genes letais,naturais e induzidos por radiações, em populaçõesnaturais e de laboratório […]. Foi mostrado pela primeiravez nessas experiências que: (a) genes letaisnaturais e genes letais induzidos por radiação têmcomportamentos semelhantes nas populações naturais;(b) os genes letais não são completamente recessivos;(c) a intensidade da seleção contra os genesDe sua interação com Dobzhanskynasceu um grande projetointernacional que visava a esclarecertemas evolutivos por meio de estudosexperimentais com drosófilasOswaldo José dos Santos/Agência USPletais não é constante,variando com as condiçõesambientais; (d) a taxade eliminação de genesletais depende dapresença de genes supressores;(e) a taxa deaparecimento de novosletais é muito superior à taxa de mutação; (f) o fatoobservado em (e) é devido à taxa muito grande deocorrência de letais sintéticos, isto é, cromossomosletais produzidos pela recombinação entre cromossomosnormais. Muitos desses fatos foram observadospela primeira vez na literatura e são importantíssimospara a compreensão, não só da evolução daspopulações naturais, mas também dos efeitos das radiaçõesnas populações.”Freqüentemente, em sua carreira, Pavan descobriumaneiras de atacar temas novos e tirar delesresultados memoráveis. Um dia, andando atrás dasdrosófilas, ele notou um montinho de fios móveisenovelados: eram larvas do inseto Rhynchosciara,que nascem gêmeas e evoluem em conjunto. Pavan38


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000Francisco Emolo/Agência USPpercebeu que, dissecandouma larva a cada poucosdias, era como seguir omesmo indivíduo até ficaradulto. Aquilo pareciaum prêmio. Ele já trabalhavacom os cromossomos politênicos das larvasde drosófilas brasileiras, como Dobzhansky tinhafeito no caso das norte-americanas, mas nada eratão fantástico como os cromossomos politênicos deRhynchosciara.pCom a colaboração de discípulos e colegas, comoo professor Francisco J. S. Lara, Pavan estudoubactérias fixadoras de nitrogênio,no ICB-USP, como professorvisitante voluntáriofenômenos bioquímicos correlatos ao funcionamentocromossômico. Com a técnica da autorradiografia,em que, por exemplo, o DNA ou o RNAsão marcados com elementos radioativos, exploroua ação das radiações ionizantes no funcionamentodos cromossomos.Pavan e seus colaboradores, principalmente AntonioBrito da Cunha, investigaram o efeito assombrosode certos microorganismos no tamanho econstituição das células que parasitam. Os cromossomospolitênicos se tornam “gigantíssimos” (sechamarmos de gigantes os das células não infectadas),chegando alguns a serem visíveis a olho nu.As novidades reveladas por Pavan e seu gruposobre o funcionamentoQuem quiser dos cromossomos foramtão fundamentais quefalar de ciênciaBrito da Cunha concluiu:com o professor “O conjunto das pesquisasrealizadas comPavan poderá Rhynchosciara constitui amais importante contribuiçãojá feita à ciênciaencontrá-lotrabalhando em biológica por um cientistabrasileiro”.seu mais recenteptema deTerminada esta festa,quem quiser falar deestimação, as ciência com o professorPavan poderá encontrá-lotrabalhando em seu maisrecente tema de estimação,as bactérias fixadorasde nitrogênio, no Institutode Ciências Biomédicasda USP, como professor visitante voluntário epesquisador sênior; ou no Núcleo José Reis, da Escolade Comunicações e Artes da USP, onde promoveincentivos à divulgação científica, inclusivecolaborando nos boletins e livros publicados peloNúcleo.Quanto a mim, estarei às ordens para relatar suasfuturas descobertas na festa de seus 90 anos. RA39


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>EMPRESA, UNamoro à brasileira,RitaJorAurgênciaem promovervínculosproveitosose menorestranhamento entre osistema produtivo e a universidade,inseridos aí osinstitutos de pesquisa e organismosde interface, é tidapor empresários brasileiroscomo procedente.Está no elenco de prioridadesque eles tentam traçarpara enfrentar, de um lado,novos paradigmas de desenvolvimento,que apontampara uma relação complexaentre conhecimento,produção e consumo; e, deoutro lado, uma pragmáticarealidade de mercadoque se move em função devantagens competitivas(associadas geral-40


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000NIVERSIDADEvisto por empresáriosFreirenalistamente à capacidade de inovação)que as indústrias puderemagregar aos seus processose produtos.“Há pouco desenvolvimentotecnológico nos produtosbrasileiros”, diz o empresárioOzires Silva, fundadore ex-presidente da Embraer,empresa estatal privatizadaem 1994 e que, sob suagestão (1970-1986), logrouinserir no mercado internacionalaeronaves mais leves,com tecnologia desenvolvidaem conjuntocom o Instituto Tecnológicoda Aeronáutica (ITA). Tenente-coronelaviador reformado,no governo Collor eledirigiu a Petrobras e o Ministérioda Infraestrutura(1990-91), voltando depois àEmbraer, dedicando-se àprivatização da empresa,e saindo em 1995.41


Março 2000Ozires refere-se ao fato deque, das exportações brasileiras,cerca de 30% são produtos básicos,15% semi-manufaturados e55% manufaturados, mas em suamaior parte com baixo valor tecnológicoagregado. A saída requerpesquisa e desenvolvimento(P&D), parceria portanto.Da priorização à prática do namoro,as coisas não são tão claras.“Tudo ainda está por fazer. Imagineo que é possível na área deconstrução civil com novos materiais,na área de biotecnologia coma nossa riqueza amazônica, naagricultura com o nosso imensoterritório”, especula o presidenteda Federação das Indústrias doEstado de São Paulo (Fiesp), HorácioLafer, sem esconder um certootimismo.“Há uma série de relacionamentosacontecendo. Minha expectativaé a de que cresçam mais rapidamente,inclusive com a terceirizaçãodas áreas de pesquisa e desenvolvimentopara as universidades,sem contar o espaço para o adensamentode trabalho com estagiários.Acredito que o Brasil tenha possibilidadede construir modelos alternativosextremamente originais”.São relacionamentos novos,não muito fáceis. “Durante muitotempo, empresários e acadêmicosse comportaram como água e óleo,nunca se misturando”, diz o dirigenteda Fiesp. Hoje, observa, agilidadee tecnologia são fundamentaispara atuar no chamado mundoglobalizado. “Se não estivermostrabalhando juntos, a exemplo dospaíses desenvolvidos, sempre faltaráuma das 'pernas da cadeira' e,conseqüentemente, não conseguiremosalcançar os níveis de competitividadee qualidade de nossosconcorrentes internacionais”.“É uma interação vital para asobrevivência de todo o sistema”,garante Sergio Haberfeld, sócio daDixie Toga e presidente da AssociaçãoBrasileira de Embalagens(ABRE), para quem é necessárioaproximar o ensino e a intelectualidadedas demandas concretas dosmeios produtivos, investindo especialmenteem talentos e recursoshumanos. Um modelo que, paraele, indica caminhos que essa relaçãodeve seguir é adotado pelaFundação Dom Cabral, instituiçãode interface que investe prioritariamentena inteligência da empresa.Acusações de cautelaexcessiva e o debateda divisão de papéisQue o lugar de criação e desenvolvimentode processos ou produtosseja a empresa, com apoio dasinstituições de pesquisa, já é quaseum consenso, sustenta o professorGuilherme Ary Plonski, coordenadorda Cecae-USP e da Rede Ibero-Americanada Gestão de CooperaçãoEmpresa-Universidade.Uma vez que as diferenças sãomuitas, é sobre o consenso que asrelações podem ser trabalhadas,opina Horácio Lafer Piva: “A pesquisapura deve ser financiada e ficarnas mãos da academia, a pesquisaaplicada deve ser trabalhadaem conjunto, assimcomo o desenvolvimentode produtos ea operação dia-a-diado negócio, é claro,é dos próprios empresários”.Ozires Silva, porseu turno, entendeque a divisão de papéisainda precisa ficarmais clara. “NoBrasil, quando se fa-Arquivo pessoalRevista <strong>Adusp</strong>Ozires Silva“Há pouco desenvolvimento tecnológiconos produtos brasileiros”42


Daniel GarciaRevista <strong>Adusp</strong>“O diálogo não é fácil. Fui a umencontro e senti que falávamoslínguas diferentes”SergioHaberfeldla em P&D com a participação dauniversidade, tem que se falar naempresa. A pesquisa própria dauniversidade deve relacionar-secom desenvolvimentos mais profundos”,defende.É voz corrente entre os empresáriosdedicados ao tema que, nosmeios acadêmicos, a busca de parceriasé exageradamente cautelosa.Tentam-se formas de viabilizar pesquisasque não agridam a autonomiada universidade e a proteçãodo conhecimento. O excesso decautela estaria afastando pesquisadoresdo território industrial e explicariaprojetos de P&D que nãoultrapassam os limites acadêmicos.“A universidade tem muita gentedesenvolvendo pesquisas internas,mas o resultadodepois nem chega àfase de produção,porque não se adequaa uma real necessidadedo mercadoou interesses industriais.Este é umconhecimento e umespaço criativo queestá na empresa”, asseguraOzires.No Brasil, quequase não logra patentear inovações,pouco mais de 10% dos cientistase engenheiros envolvidos emP&D estão atuando dentro das empresas.Em países que assinam novidadesno mercado mundial, o índicesalta. Beira os 80% nos EUA e55% na Coréia.Para correção de rumos, o empresárioaponta o modelo posto emprática pela Fundação de Amparoà Pesquisa do Estado de São Paulo(Fapesp), que executa dois programasorientados pelo pressupostode que a pesquisa de inovação tecnológicatem na empresa seu grandelaboratório: o Parceria para InovaçãoTecnológica (PITE) e o Programade Inovação Tecnológica emPequenas Empresas (PIPE).Março 2000Inserção da empresano contexto social,um fator de parceriaUm fator de parceria seria o imperativode inserir a empresa numcontexto ético e social cada vezmais exigente de conhecimentos eresponsabilidades, por exemplo,frente ao meio ambiente e aos direitosdo consumidor. Essa demandapode ser detectada no exemploapontado por Haberfeld, de cooperaçãoque interessa a segmentos daindústria de embalagens.“É a pesquisa de um tipo deplástico capaz de substituir matériasprimas agressivas ao ambiente”,explica o empresário. Refereseao projeto que reúne a USP, oInstituto de Pesquisas Tecnológicas(IPT) e a Copersucar, e queestuda uma bactéria capaz de produzirum polímero que dá origema um plástico biodegradável. Umausina piloto já em operação temcapacidade de produzir 60 toneladaspor ano.O segmento das embalagensenvolve uma cadeia complexa, cujosíndices de produção e impactoambiental são considerados indicadoreseconômicos dos níveis deconsumo e desenvolvimento dequalquer país industrializado. Emoutras palavras, inovações nestesegmento repercutem muito alémde suas fronteiras.É o caso de pesquisas queapontam para acondicionadores deprodutos que resultem em menordesperdício de alimentos, problemasério no Brasil. “São interessesque não dependem apenas dos empresários”,diz Haberfeld, apon-43


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>tando para a carência de políticasgovernamentais que amparem apromoção do binômio P&D.Riscos da inovaçãoe a incômoda questãodos incentivos fiscais“O lugar de criação de processose produtos é a empresa”Ary PlonskiAssusta os empresários aidéia de lidar, sozinhos, com osriscos intrínsecos a uma inovação.“A empresa tem dois caminhospara lançar um produto novo: importarknow-how ou criar. Quandoa empresa importa uma coisapronta, o dono da marca que vendeuo know-how não vai permitirque ela exporte um produto similar,que dispute mercado fora.Mas é mais seguro seguir este caminhodo que correr o risco delançar um produto criado por elae que depois tenha problemas.Em outros países, que conseguempatentear mais produtos, há mecanismosde apoio prevendo osriscos. Como no Brasil é mais fácilcomprar know-how, então oempresário não tem por que pensarem aproximar-se da universidade”,analisa Ozires.Lembrando que nenhuma empresafunciona sob a presidênciado diretor financeiro, o ex-presidenteda Embraer atribui a faltade uma estratégia adequada parareduzir o fosso que separa o Brasilde países desenvolvidos a uma visãoestreita dos governantes: “Opaís é dirigido apenas pela ótica doMinistério da Fazenda”, alfineta.Uma particularidade da legislaçãobrasileira que incomoda parcelado empresariado é a relação44quase compulsóriacom a universidade.“A empresa deveriapoder buscar na academiaapenas os elementosque ela nãotem para melhorar oproduto”, reclamaOzires.É uma crítica àparceria induzidapela Lei 8.349/91, deInformática, que expirouem outubro de 1999, masvem sendo mantida por medidasprovisórias. Juntamente com a Lei8.661/93, de Incentivo à Pesquisa eDesenvolvimento Tecnológico, Industriale Agropecuário, ela explicitaa política de fomentos do governoà parceria.“Para gozar de incentivos, principalmentena isenção do IPI, asempresas da área de informática etelecomunicações devem investir5% em pesquisa e desenvolvimentotecnológico, sendo 2% gastoscom instituições de ensino e pesquisa.A lei está sendo mudada e orateio deve prever uma parte desses5% para um fundo de pesquisado governo, mas o vínculo compulsóriocontinua”, diz Ary Plonski.Os mecanismos de apoio ao desenvolvimentotecnológico sãopouco utilizados pelos empresários.Uma pesquisa feita em SãoPaulo pela Fiesp, em 1999, indicouque 77% das indústrias desconhecema legislação em vigor. E poucomais de 2% beneficiaram-se da leide incentivo.Por isso, além de tentar ampliaros mecanismos de fomento, compropostas de aprimoramento, entidadescomo a Associação Brasileiradas Instituições de Pesquisa Tecnológica(Abipti), a AssociaçãoNacional de Pesquisa e Desenvolvimentodas Empresas Industriais(Anpei) e a Associação Nacionaldas Entidades Promotoras de Empreendimentosde TecnologiaCecília Bastos/Agência USP


Revista <strong>Adusp</strong>Avançada (Anprotec) decidiramdivulgar massivamente, numa açãoconjunta, os mecanismos que existem,mas poucos usam.Olhares recíprocos,línguas diferentes epreconceitos a superarMarço 2000Cada vez com maior frequência,empresários têm sido chamadospara conversar com acadêmicos,porque os recursos e as chancesde transformar pesquisa embens tecnológicos seriam igualmenteacalentados pela universidade.A forma de tratamento pareceser um problema. “Queremos umarelação igualitária e não professoralcom a empresa”, define Ozires.“O diálogo não é fácil”, relataHaberfeld. “Fui chamado a umdesses encontros, mas saí com asensação de que falávamos línguasdiferentes”. Sua queixa não está nafalta de interesse na aproximação,mas de conhecimento mútuo.“Também queremos saber o queuniversidade precisa, e como financiarpesquisas comuns. Mas osacadêmicos precisam conhecermelhor como funcionamos. Nesseencontro, nada sabiam de como sedá a cadeia produtiva do setor comque iriam se entender. Mas sem isso,como conversar?”Analisar e opinar sobre “o outrolado”, a universidade, traz o risco deque o empresário seja visto comoestranho no ninho, como observa oerudito industrial José Mindlin, exproprietárioda Metal Leve. Masele, em especial, confessa não resistirà tentação. Convidado por acadêmicos,compareceu a um encontroe discorreu sobre as falhas daeducação de 1º e 2º grau, seus reflexosno desempenho da universidade,e o reconhecimento que começaa surgir, no meio empresarial, depapéis da universidade que não serestringem à formação de profissionaisqualificados. “Onde ficariam asassim chamadas ciências exatas eciências humanas? Onde ficaria oastrônomo, ou o antropólogo?”O olhar recíproco, no entenderdo empresário, passar por enfrentarpreconceitos antigos, que ele, com“proposital exagero”, aponta. “Háquem veja no meio empresarial opropósito de se aproveitar da universidadeem seu benefício, considerandocomo função precípua, senão exclusiva da universidade, aformação de mão-de-obra qualificadapara a indústria, o comércio, aagricultura ou os serviços”. Boaparte do meio empresarial, por suavez, vê no acadêmico “um sonhadordesligado das realidades do dia adia, desconhecendo os problemasda produção e do mercado, das relaçõesentre o capital e o trabalho,e mais preocupado com sua carreirae com as abstrações próprias deuma imaginação criativa, do quecom os problemas reais do país”.Mas o empresário enxerga sinaispromissores no horizonte. “Aaceitação da legitimidade do movimentosindical, a responsabilidadepela preservação do meio ambiente,assim como do patrimônio históricoe cultural, a defesa da necessidadede melhor e mais equitativadistribuição de renda, o respeitoaos direitos do consumidor,são todas facetas novas do empresáriomoderno, a ele estranhas nopassado, e que tenho esperança dever reconhecidas pela comunidadeacadêmica”, elenca Mindlin.O interesse em relacionar-se,acrescenta ele, obriga o empresariadoa ampliar o olhar para as funçõesmais amplas da universidade na formaçãode docentes e pesquisadoresenvolvidos com o gerar, adquirir,manter ou transmitir conhecimentosde que a sociedade precisa, preservare enriquecer o patrimôniocultural do país, criar um ambienteque favoreça a crítica e a transformaçãoda própria sociedade.As premências são para ontem,dizem todos. Mas a conversa, admitem,mal começou. RA45


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>O IMPACTO DAMERCANTILIZAÇÃODA EDUCAÇÃO SUPERIORJoão dos Reis Silva JúniorProfessor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação da PUC-SPeValdemar SguissardiProfessor da Universidade Metodista de Piracicaba46


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000A reconfiguração da educação superior brasileira éparte de um processo de reformas, no interior de radicalmovimento de transformações político-econômicasmundiais, reformas as quais, se concretizadas, terãoconseqüências inevitáveis para a identidadeinstitucional da universidade. Suas diretrizes, emanadasde organismos como o Banco Mundial (BIRD), são emgeral bem traduzidas domesticamente pelosresponsáveis oficiais pela reforma do Estado e daEducação Superior em nosso país. Este artigo apresentaos principais argumentos presentes nos três primeiroscapítulos do livro Novas Faces da Educação Superiorno Brasil — reforma do Estado e mudança naprodução (Bragança Paulista:Edusf, 1999), que é resultado depesquisa sobre o processode desmonte, pelogoverno, do sistemapúblico deeducação47


Março 2000AAcrise e reforma doEstado e da educaçãosuperiornão são fenômenosexclusivos doBrasil, mas umarealidade comum à maioria dospaíses de todas as dimensões egraus de desenvolvimento, a partirdos anos 60 e 70. As novas e atuaisfaces do Estado e dos sistemas deeducação superior em cada país decorremde um conjunto de fatores,entre os quais os avanços sócio-políticosdos direitos de cidadania e,no caso da educação superior, o estágiode desenvolvimentodesses sistemas.Os ajustesestruturais e fiscaise as reformasorientadas para omercado têm ocupadopolíticos eeconomistas dospaíses centrais (eperiféricos) e dosorganismos multilateraisespecialmentea partir dosanos 80. A preocupação desses organismosem relação aos países doTerceiro Mundo revelava-se em algunseixos de sua concepção de desenvolvimento,que, nos termos dochamado Consenso de Washington,assim se traduziam: 1) equilíbrioorçamentário, sobretudo mediantea redução dos gastos públicos; 2)abertura comercial, pela reduçãodas tarifas de importação e eliminaçãodas barreiras não-tarifárias;3) liberalização financeira, pela reformulaçãodas normas que restringemo ingresso de capital estrangei-48Assumidas pelo MEC, as propostas do BIRDrevelam-se até no projeto da Lei deAutonomia das Universidades: constituiçãode dois tipos de instituições, as de pesquisae as de ensino; fim da unidade salariale de carreira; autonomia financeira em lugarde autonomia de gestão financeiraRevista <strong>Adusp</strong>ro; 4) desregulamentação dos mercadosdomésticos, pela eliminaçãodos instrumentos de intervenção doEstado; 5) privatização das empresase dos serviços públicos (Soares,1996: 23, grifos nossos).Esse processo de liberalizaçãoeconômica, que se inicia sob os governosThatcher, Kohl e Reagan,desencadeia-se no Brasil em tornode 1990. Além do incremento à integraçãocom a economia mundial,enfatiza-se o papel do mercado naalocação de recursos e a diminuiçãodo papel do Estado, acenandose,como horizonte, para um crescimentorápido e sem os percalçosdos modelos anteriores (Baer eMaloney, 1997: 39). As medidas recomendadas:ajuste fiscal, privatização,liberação/ajuste de preços,desregulamentação financeira, liberaçãodo comércio, incentivo ao investimentoexterno, reforma do sistemade previdência/seguridade sociale reforma do mercado de trabalho.No Brasil, em meio ao ajusteestrutural receitado, deu-se ênfaseà denominada “reforma doaparelho do Estado”. No âmbitodessa reforma situam-se a estratégiae as ações oficiais de reformada educação superior. Suas idéiascentrais: a modernização ou aumentode eficiência da administraçãopública mediante complexoprojeto de reforma, que visa fortalecera administração pública direta— núcleo estratégico do Estado— e promover sua descentralizaçãocom a implantação de “agênciasexecutivas” e de “organizaçõessociais” vinculadas a contratos degestão. A partir da idéia da existênciade quatro setores dentro do Estado(núcleo estratégico, atividadesexclusivas, serviços não exclusivosou competitivos, eprodução de bense serviços para omercado), as universidades,escolastécnicas, centrosde pesquisa etc.são enquadradoscomo serviços nãoexclusivos de Estado,devendo sertransformados emum “tipo especialde entidade não-estatal,as organizações sociais. A idéiaé transformá-los, voluntariamente,em 'organizações sociais', ou seja,em entidades que celebrem um contratode gestão com o Poder Executivoe contem com a autorização doParlamento para participar do orçamentopúblico” (Bresser Pereira,1996: 286, grifo nosso).As propostas do BIRD — maiordiferenciação institucional e privatização;diversificação de fontes de financiamento(inclusive fim da gratuidade)e vinculação do financiamentooficial a resultados; redefini-


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000ção do papel do governo no ensinosuperior (BIRD, 1994: 4) — e asorientações da reforma do aparelhode Estado são assumidas pelo Ministérioda Educação (MEC) quandode suas propostas de reformadesse nível de ensino. Essas diretrizesrevelam-se nos termos da Leide Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional aprovada em dezembrode 1996, no contingenciamento derecursos de custeio e capital, nocongelamento de salários há cincoanos e até nos projetos de uma Leide Autonomia das Universidades.Propõem-se uma diferenciação institucional,com aconstituição oficialde dois tipos deinstituições universitárias,as de pesquisae as de ensino;o fim da unidadesalarial e decarreira; a autonomiafinanceira emlugar de autonomiade gestão financeira.A reforma daeducação superior em curso orienta-sepela mesma matriz teórica epolítica a reger a reforma do Estadobrasileiro, que se origina notrânsito do fordismo ao presentedo capitalismo, e sua expressão noBrasil. O fordismo pode ser brevementecaracterizado pela sua rigidezprodutiva e econômica, legitimadopor uma cultura com grandeinfluência da dimensão política, emface da centralidade ocupada peloEstado de Bem-Estar Social. A esferapública é uma das principaisinstituidoras das relações sociais; oassociativismo em sindicatos e partidospolíticos é, em termos, um corolárioda força do público, distoresultando políticas públicas voltadaspara as demandas sociais, particularmentepara a esfera educacional.A crise fordista foi uma crisede superprodução de capital, nasua forma financeira, e impôs aosgestores da economia mundial abusca de materialidade na produçãode capital produtivo, obrigandoa internacionalização do capital nasua forma produtiva, processo denominadopor Chesnais (1995) de“mundialização do capital”.Trata-se de introduzir na educação superiora racionalidade gerencial capitalistae privada, reduzindo-se a esfera pública.Modifica-se a natureza das instituiçõesuniversitárias, que tendem a responderprioritariamente às demandas do mercadoTal processo, no final deste século,faz-se necessária e articuladamentecom a redefinição da hierarquiapolítica mundial, e põe emmovimento em grande parte doplaneta reformas do Estado em direçãoà restrição e desregulamentaçãoda esfera pública e proporcionalalargamento da esfera privada.Isto influencia o redesenhodos espaços sociaisorientados pela lógica pública,particularmente aeducação. Essas redefiniçõespossibilitaram a entrada do capitalem tais espaços sociais, num contextode Estado reformado, e, comsua entrada, a reorganização segundoa lógica privada, provocandotransformações culturais e identitáriasnas instituições educacionais,em particular nas de nível superior.No Brasil, essas mudanças ganhamconcreticidade a partir demeados dos anos 90, quando, fundadoem uma aliança política, o governode Fernando Henrique Cardosopõe em movimento a traduçãobrasileira da mundialização docapital, com graves conseqüênciaspara a economia (que se desnacionalizae se desindustrializa),para ademocracia e paraas esferas sociaisde atividade humana,que passama se organizar fortementepela lógicamercantil. Noque toca à educaçãotal processoverificou-se nas reformasde todos osníveis de ensino. Opropósito do então ministro BresserPereira torna-se explícito nessalógica da reforma do Estado em re-49


Março 2000lação à esfera pública: trata-se deintroduzir, na educação superiorpública, a racionalidade gerencialcapitalista e privada, que se traduzna redução da esfera pública ou naexpansão do capital e sua racionalidadeorganizativa.Ocorre presentemente um processode tecnificação da política,conduzido por um Poder Executivode ilimitados poderes. A educaçãoem geral, mas especialmente a educaçãosuperior, passa pelo mesmoprocesso. Por um lado, mercadorizaseao extremo, e, por outro, na suaespecificidade, acentua-se o movimentode redefinição da esfera pública,ao mesmo tempo em que sedissemina a crítica de sua antiga naturezae constroem-se os pilares deum novo espaço, em cujo centro seencontra a racionalidade da produçãocapitalista. A meta é a reorganizaçãodesse espaço social segundo alógica do mercado: modifica-se anatureza das instituições universitárias,que tendem a responder prioritariamenteàs demandas do mercado,assemelhando-se, assim, aqualquer empresa, com prejuízosevidentes para sua natureza e identidadetradicionais. Esse reordenamentoconduz à redefinição, nesseâmbito, das esferas pública e privada,e possibilita a identificação, defundo ideológico liberal, de uma supostaexistência de outros espaçosintermediários entre o público e oprivado: o semipúblico ou o semiprivado.Isso impõe uma adequada reflexãosobre o significado dos conceitosde “público” e de “privado”,para a melhor compreensão de comotais dimensões se movimentam,ambiguamente, criando a ilusão da50Revista <strong>Adusp</strong>emergência de tais espaços, quando,de fato, o que ocorre é uma clararedefinição dessas duas esferasdiante da necessidade estrutural deexpansão própria do capital.Apesar do muito que se tem escritoacerca dos conceitos “público”e “privado” e da realidade dessesespaços, sua compreensão mostraseainda insuficiente. Talvez umbom itinerário de análise seja buscaros pressupostos filosóficos dessesconceitos, que estão na origemda ideologia liberal. Tentar compreendercomo, historicamente,têm contribuído para a instituiçãodesses espaços, legitimando-os aolongo da existência do modo de produçãocapitalista, pode ser uma boamaneira de entendimento das mudançasque se verificam no âmbitodo Estado, da sociedade civil e daeducação superior brasileira, semcorrer o risco de, a partir de umacrítica que vá à raiz, sermos desqualificadoscomo “ideológicos”. Emmuitas obras sobre a ideologia liberalpode-se notar a ênfase nos direitosinalienáveis à vida, à igualdadee à propriedade dos indivíduos emsociedade, como instituidores doEstado, para garantia desses direitos,e, portanto, para garantiados homens. Muitos pensadorescombateram o absolutismoe o inatismo das idéias e, obviamente,do poder. No entanto,parecem-nos mais marcantes asidéias de John Locke (1632-1704), presentesemduas obraspublicadas em1690: Ensaio Acercado Entendimento Humano e o SegundoTratado sobre o Governo Civil.Locke escreve, como um dosprincípios do Segundo Tratado:Considero, portanto, poder políticoo direito de fazer leis compena de morte e, conseqüentemente,todas as penalidades menorespara regular e preservar apropriedade, e de empregar a forçada comunidade na execuçãode tais leis e na defesa da comunidadede dano exterior; e tudotão-só em prol do bem público.(Locke, 1991: 216, grifo nosso)Para Locke, toda idéia teria suaorigem na percepção e nos sentidos,não sendo, portanto, imanenteao homem ou inata. Segundo ele,Consiste numa opinião estabelecidaentre alguns homens que oentendimento comporta certosprincípios inatos, certas noçõesprimárias, koinai`énoiai, caracteres,os quais estariam estampadosna mente do homem, cujaalma os recebera em seu ser primordiale os transportara consigopara o mundo. Seria suficientepara convencer os leitores sempreconceito da falsidade desta hipótesese pudesse apenas mostrar(...) como os homens, simplesmentepelo


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000uso de suas faculdades naturais,podem adquirir todo conhecimentoque possuem sem a ajudade quaisquer impressões inatas epodem alcançar a certeza semquaisquer destas noções ou princípiosoriginais.(Locke, 1991: 13)O filósofo combaterá a partirdessa tese todos os defensores doinatismo das idéias, e, no âmbitoda política, todo poder inato. Todopoder político teria passado a existira partir de um momento histórico,quando os homens fizeram umpacto para organizar a forma deconvivência; desse pacto derivariao poder político, esuas formas derealização, constituindo-seo Estadoem sua estruturamáxima. Combase nesses argumentos,Locke desenvolveusuasidéias liberais.No estado natural,para Locke,todos nascemiguais, racionais eem liberdade; as leis da naturezaencontrar-se-iam igualmente nasmãos dos indivíduos, não existindo,ainda, o espaço comunal. Os homensestabeleceriam sua identidadepor meio da razão, com vistas àpreservação da paz e dos direitosdos outros. No entanto, no estadonatural, os direitos de igualdade, liberdadee propriedade poderiamser ameaçados, dado que algunshomens favoreceriam mais a si e aseus amigos, provocando, a partirde então, um estado de guerra. Istocontrariaria o estado natural, bemcomo esses direitos; disso deduzLocke a necessidade de superação,pelo homem, desse estado natural.Para Locke, o estatal é derivado do públicoe a ele submetido. Assim, o público sóse faz na conjugação com o Estado,ainda que este último derive do primeiro.Não há sentido em se falar de públicona ausência do Estado, e vice-versaNesse momento os homens teriamfeito um pacto social e criadoa sociedade política para a preservaçãodos direitos naturais (deigualdade, liberdade e propriedade)de qualquer indivíduo, independentementede suas condições naturais.Não há renúncia dos direitos naturaisem favor dos governantes, comoo queria, por exemplo, Hobbes:há um pacto para a preservação detais direitos a todo cidadão. O poderdos governantes, portanto, derivariada sociedade, da qual o receberiam(Locke, 1991: 225).As atividades executivas e legislativasdo indivíduo em estado naturaltransferir-se-iam para a sociedade.Esta, portanto, é a base eo limite do poder político dos governantes,isto é, o processo decriação do pacto social e de criaçãodo poder político, como transferênciado ato de governar, poroutorga da sociedade, constitui-seem espaço comunal construídopor esse pacto social.O público e o estatal põem-se,assim, como realidades distintas paraLocke. O estatal é derivado dopúblico e, ao mesmo tempo, a elesubmetido, razãopela qual o homem,por meio dopacto social, constituiu-seem sociedade.Assim, o públicosó se faz naconjugação com oEstado, ainda queeste último derivedo primeiro e aele se submeta.Não há, portanto,sentido em se falarde público na ausência do Estado evice-versa (Locke, 1991, p. 268).O privado, portanto, como coroláriodo exposto acima, estariacircunscrito ao âmbito das possibilidadesde ação dos indivíduos singularesou considerados como coletivo,porém, em conformidadecom o poder legislativo, por suavez derivado do público e a elesubmetido. Somente dessa forma opacto social e a constituição dospoderes estariam garantidos; comeles, os direitos naturais de igualdade,liberdade e propriedade. Po-51


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>52de-se concluir que o que não é estatalé necessariamente público, istoé, está no âmbito da sociedade.Sob tal arrazoado teórico-político,os pressupostos da ideologia liberalancorar-se-iam na diferenciaçãoentre o público (inerente à sociedade)e o estatal (referente aogoverno), que se legitima ou nãoconforme a natureza de suas açõescontrarie ou não o interesse público(sociedade). A diferença entre asinstituições do público(sociedade)deve tomar comoreferência suaspróprias especificidadese não suasrelações com o Estado(governo),uma vez que, na relaçãocom o Estado,todas as instituiçõesda sociedadesão iguais. Istoé, na acepção deLocke, nenhuma instituição públicapode reivindicar a condição de estatal,pois não faz sentido reivindicála.No entanto, na linguagem corrente,por inspiração de autoresque hoje refletem sobre as relaçõesentre Estado e sociedade, sociedadepolítica e sociedade civil, o conceitode público é tomado como sinônimodo conceito de estatal, depertença ao aparelho de Estado,responsável pela administração pública.Em decorrência, o que é privado,ou seja, do âmbito da sociedadecivil, jamais poderá ser público,isto é, do âmbito do aparelho doEstado. Não há lugar, conseqüentemente,para um espaço social misto,constituído de elementos públicose privados. Por outro lado, nenhumainstituição privada pode reivindicaro título de estatal ou denão estatal, pois, tratando-se de instituiçõesda sociedade civil, serãotodas iguais perante o Estado.As transformações na educaçãosuperior têm como pano de fundoas mudanças na produção e expansãodo capital, onde de fato se efetivamas redefinições das esferas públicae privada. Na reconfiguraçãoAs novas faces da educação superior noBrasil não parecem fadadas a garantir umavanço significativo da educação pública e dainclusão social; ao contrário, tendem aaprofundar a apartação social entre aminoria incluída e a maioria excluídadesse nível de ensino destaca-se arestrição daquela esfera e expansãodesta. Mediante uma espécie deideologia transitória, como diriaGramsci, do surgimento de espaçossemipúblicos e semiprivados, e umprocesso de extremada diferenciaçãoinstitucional e diversificação defontes de recursos, verifica-se que aeducação superior no Brasil caminhacélere para constituir-se de fatoe formalmente como um sistemadual: as instituições exclusivamentede ensino e as de pesquisa. Aquelassomariam aproximadamente 90%do total das IES, em sua maioria denatureza privada e não-universitária,e estas somariam aproximadamente10%, e, em sua maioria, seriamuniversidades de natureza públicaou semipública ou semiprivada,isto é, organizadas segundo uma racionalidadeprivada.As novas faces da educação superiorno Brasil não parecem fadadasa garantir um avanço significativoda educação pública e da inclusãosocial; ao contrário, tendem aaprofundar a apartação social entrea minoria incluída e a maioria doscada vez mais excluídos da sociedadeda informação.Nesse contexto,as tendências dereconfiguração daeducação superiorbrasileira são fortementetensionadasna direção desua efetiva concretização,que trariaconseqüênciasprofundas para aesfera educacional,para a própriaidentidade institucional universitária,e em especial para a formaçãodo docente universitário no exercíciode sua ação docente, de pesquisaou extensão.A autonomia universitária estariasubordinada ao setor produtivo(face aos recursos daí advindos apartir da prestação de serviços e assessorias)e ao Estado — face aoscontratos de gestão, no caso dasIFES, e à legislação, no caso de outrostipos de instituições. Sobre elasrestaria pequeno espaço de influênciada sociedade em geral e das comunidadescom as quais se relacionam.O financiamento da educaçãosuperior efetivar-se-ia de diferentesformas, especialmente em função


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000da extrema diferenciação institucionala que se chegaria como conseqüênciadireta das reformas emcurso, indutoras potenciais de umamiríade de novas formas de IES. Osrecursos para o setor privado originar-se-iamdas anuidades e eventualmentedo Estado (em funçãodo “mérito” atribuído pelo sistemade avaliação oficial); para o setorcomunitário, das anuidades e tambémdo Estado; e para o setor estatal,do Estado, dasanuidades e, crescentemente,do mercado.Por outro lado, o movimentodocente, importantecrítico daspolíticas oficiais, e responsável,entre outrosatores, pelo esforço dedemocratização (e pelabusca da excelência)da educação superior,tenderá a sersubstantivamente enfraquecidoem decorrência da diferenciaçãoinstitucional propiciadapor distintas estruturas, formas deorganização e gestão das instituições,carreira acadêmica e níveis salariais,que marcariam o conjuntodas IES brasileiras.A previsível transformação amédio prazo das IFES em organizaçõessociais, relacionadas com o Estadopor meio do contrato de gestão,com parte de seu financiamentooriundo do mercado; a acentuaçãodas característicasdas instituiçõescomunitárias(filosofias educacionaisproclamadamentepúblicas, porémcom estatuto privado); e aconsolidação do setor privado, parecemindicar profundas alteraçõesnas esferas públicas e privadas. Astransformações das esferas públicae privada fazem-se com prejuízo doestatuto público estatal, indicandoque as instituições públicas tendemao desaparecimento no médio prazo.A maior conseqüência de tudoisso: as mudanças que irão incidirsobre a identidade da instituiçãoA produção de conhecimento tende a sersubstituída pela administração de dadose informações para assessoramentoao mercado, impondo sensível perdada capacidade de reflexão e críticae assemelhando a universidadea empresas prestadoras de serviçosuniversitária. A produção de conhecimentotende a ser substituídapela administração de dados e informaçõesem um processo de assessoramentoao mercado, o queimpõe sensível perda da capacidadede reflexão e crítica, característicahistórica da universidade. Esseprocesso assemelharia a instituiçãouniversitária a empresas prestadorasde serviços.Destaque-se igualmente a questãoda formação do educador, até omomento uma função da educaçãosuperior. As transformações que seimpõem, inclusive em relação à própriaidentidade do conjunto dasIES, tendem a retirar tal funçãodesse nível de ensino e, talvez, daesfera educacional.As IESorganizar-seiammais parao atendimentodas demandasdo mercado doque para a preparaçãodas futurasgeraçõesde educadorese abririam espaço,no âmbitoda sociedadecivil, a entidades não ligadas diretamenteà educação para o exercíciodesta tarefa, com sérias e bastanteóbvias conseqüências na esfera educacionalcomo umRAtodo.BibliografiaBAER, V. e MALONEY, W. (1997). Neoliberalismo edistribuição de renda na América Latina. Revista deEconomia Política. V.17, n.3-67, p. 39-61, jul./set.BIRD (1994). La Enseñanza Superior: las lecciones derivadasde la experiencia (El Desarrollo en la práctica).Washington, D.C.: BIRD.BRESSER PEREIRA, L. C. (1996). Crise econômica e reformado Estado no Brasil - para uma nova interpretaçãoda América Latina. São Paulo : Editora 34.CHESNAIS, F. (1996). A mundialização do capital. SãoPaulo: Editora Xamã.GRAMSCI, A. (1991) Concepção dialética da história. Riode Janeiro: Editora Civilização Brasileira.SILVA JR, João dos Reis e SGUISSARDI, Valdemar.Novas faces da educação superior no Brasil. BragançaPaulista: Edusf, 1999.SOARES, M. C. C.. Banco Mundial: políticas e reformas.Em: DE TOMASI, L., WARDE, M. J. e HADDAD,S. (Org.). (1996). O Banco Mundial e as Políticas Educacionais.São Paulo : Cortez Ed.; PUC-SP; AçãoEducativa. p. 15-41.53


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>CAMINHOSE DESCAMINHOSDA DOCÊNCIACésar Augusto MintoProfessor EDA-FEUSPNobuko KawashitaProfessora (aposentada) DEd-CECH-UFSCarRubens Barbosa de CamargoProfessor EDA-FEUSPA privatização crescente ameaça descaracterizar aformação e o exercício docente, na medida em queo professor tende a tornar-se “privatizado”, porcumplicidade com o modelo privatizante ou pelabusca de saídas individualistas. Como explicar aproliferação de “fundações” no interior dasuniversidades públicas? O quadro dedesmantelamento do ensino superior público, eincitação do privado, não comprometeria apesquisa, e, no limite, a própria soberania do país?54


Revista <strong>Adusp</strong>Março 200055


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>Apresentamos nestetexto algumaspreocupações referentessobretudoà docência,provocadas sejapelo que está apontado pelas políticaspúblicas em vigor, seja peloque consideramos ideal. Faremosuma breve contextualização do tratamentodispensado à formação deprofessores e ao exercício da docênciaapós a ConstituiçãoFederal de 1988(CF/88), vale dizer, após onovo “contrato social”. Oquadro aqui traçado já deveser bem conhecido,mas é relembrado com oobjetivo de pensar alternativaspara alguns problemase identificar aspectosde suas raízes. Atentativa é a de desvelarintenções que encobreminteresses e razões das reformaseducacionais implementadaspelos governosbrasileiros, por iniciativaprópria e ou pororientação direta daUnited States Agencyfor International Development(Usaid), nas décadasde 60 e 70, e do Banco Mundial(BIRD), nos dias atuais.A educação, apesar de oficialmentealardeada como prioritária,nunca deixou de ser tratada comoapêndice e a reboque de políticaseconômicas que privilegiam interessesdas elites. Por estar nessacondição é que, por exemplo, todavez que se alega a necessidade decontenção de recursos públicos, as56áreas sociais são ainda mais sacrificadas.A própria criação das universidadesreflete a concretizaçãode um projeto de parcela das elites;desde o nascedouro, nossauniversidade pouco se caracterizoupela preocupação com a sociedade,apesar de sempre ter havidoindivíduos ou grupos que secontrapuseram a isso, inclusivenos momentos de autoritarismomais atroz.A obstinação em formar docentescom referência no modelo elitista deuniversidade vai continuarproduzindo profissionais semcompromisso com a função social daeducação superior, transmissores eexecutores acríticos deconteúdos jáconsignados emmanuais e pragmáticoscom formação aligeirada,utilitaristaA insistência em manter essemodelo elitista interfere tanto nacondução das políticas de governopara a educação superior como nointerior de suas instituições. Nestasúltimas, alguns reflexos podem seridentificados por dirigentes, docentes,funcionários e estudantes,pela forma como se estabelecemdicotomias e ou hierarquizaçõesentre pesquisa e ensino, teoria eprática, bacharelado e licenciatura,carreiras “nobres” e “populares”,entre outras. Trata-se de naturalizara idéia de prestígios diferenciadosentre atividades, produçõesacadêmicas, cursos e carreiras, comose esses não devessem ser tratadosde forma intrinsecamentecomplementar, indissociada e socialmentenecessária.Do ponto de vista mais amplo,a decorrência mais direta disso seconsubstancia na diferenciaçãooperacionalizada no ambienteuniversitário entreo pensar e o fazer, o construire o reproduzir, ocriar e o consumir. Taisconcepções, no limite, explicitama tentativa (deliberadaou não) de fazerprevalecer a subordinaçãoao invés da soberania, aheteronomia ao invés daautonomia, a dependênciaao invés da liberdade, oprivilégio ao invés da democracia.Do ponto devista mais restrito, a conseqüênciamais clara éadotar como eixo da produçãoacadêmica a racionalidadetecnoburocráticasubordinada apenas aosinteresses do mercado, em vez deelucidar o desconhecido na perspectivade universalizar os direitoscivis, políticos e sociais.A obstinação em formar docentes(e também não-docentes) comreferência nesse modelo elitista vaicontinuar produzindo profissionais:1) sem compromisso com afunção social da educação superior;2) não formuladores de novosconhecimentos e tecnologias que


Revista <strong>Adusp</strong>contribuam para a solução de velhose novos problemas; 3) apenastransmissores e ou executores acríticosde conteúdos já consignadosem manuais e 4) pragmáticos comformação aligeirada, utilitarista,em lugar de formação sólida, deboa qualidade, voltada para os interessessociais.Tanto as reformas políticas maisamplas como as específicas da árearedundam em desvalorização dadocência em todos os níveis. Forteindicadora disso é a precarizaçãodas condições de vida e trabalhodos profissionais em educação: osbaixos salários a que vêm sendosubmetidos ao longo de décadas; aausência sistemática de concursospúblicos e de planos de carreira; ainexistência de mecanismos deaperfeiçoamento e atualização; aimputação de jornadas exaustivas eitinerantes para providenciar a sobrevivência.Tal adversidade temocasionado crescente deterioraçãodo exercício da docência, dificultandoa formulação de projetospolítico-pedagógicos que, por meioda integração de ações individuaise coletivas, garantam um melhordesempenho de unidades e sistemasescolares.Nessas condições, a formação eo exercício da docência colocamnoso desafio de vislumbrar se asmazelas constatadas serãoenfrentadas pelas reformas,sobretudoapós aMarço 2000CF/88, pelas autoridades públicasque deveriam atender aos interessesda população. A resposta parecenegativa, na medida em que taismazelas refletem, mas também nãodeixam de ser instrumentos de auto-reprodução.A formação e o exercício docentesofrem os impactos provocadosnão só pelas políticas da área,mas por todas as ações de governo,sobretudo pela reforma do Estadolevada a cabo pela gestão BresserPereira no Ministério da Administraçãoe da Reforma do Estado(MARE). Arrolaremos alguns instrumentosdessas políticas, tentandopensar o cenário educacionalque está sendo construído, pois éurgente vislumbrar alternativasque criem chances de um exercícioprofissional consciencioso, o quepressupõe uma formação de qualidadesocial que, segundo o PlanoNacional de Educação — Propostada Sociedade Brasileira, “implicaprovidenciar educação escolar compadrões de excelência e adequaçãoaos interesses da maioria da população”(ver Revista da Andes n° 15,1998, e o site da <strong>Adusp</strong>).Entre os instrumentos de implementaçãodessas políticaspodemos citar: a EmendaConstitucional (EC) nº 14/96, queinstitui o Fundo de Manutenção eDesenvolvimento do Ensino Fundamentale de Valorização do Magistério(Fundef); a EC nº 19/98,que trata das normas da AdministraçãoPública; a EC nº 20/98, quemodifica o sistema de previdênciasocial; a política econômica do governo,que visa em especial à estabilizaçãoda moeda e ao corte dodéficit público; a Lei nº 9.394/96,de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional — LDB; o Decreto nº2.306/97, que regulamenta a organizaçãoe o funcionamento dasInstituições de Ensino Superior(IES); a Lei nº 9.131/95, que instituio Conselho Nacional de Educação,o Exame Nacional de Cursos(“provão”) e as Diretrizes Curricularespara os cursos de graduação;o documento “A Política paraas Instituições Federais de EnsinoSuperior” (MEC, 1995), que anunciaum “novo modelo de financiamento”para uma “verdadeira revolução”na relação entre o poderpúblico e as universidades; o ProjetoOrganizações Sociais (MA-RE, 1997), que pretende substituirinstituições públicas, fundacionaisou autárquicas, por pessoas jurídicasde direito privado sem fins lucrativos;o Decreto nº 2.026/96,que estabelece procedimentosde avaliaçãodos cursos e57


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>58A LDB explicita o projeto deprivatização e negação do modelo deuniversidade pautado naindissociabilidade das atividades deensino, pesquisa e extensão. Paraesse projeto, a formação deprofessores prescinde dapesquisa. Alega-se que omodelo de formação queconsidera a tríadeensino, pesquisa e extensão émuito onerosoinstituições de ensino superior; oDecreto nº 3.276/99, que dispõesobre a formação de professorespara atuar na educação infantil enas séries iniciais do ensino fundamental;a Portaria nº 438/98, queinstitui o Exame Nacional do EnsinoMédio (ENEM), permitindouma forma alternativa de seleçãopara ingresso no ensino superior;a Lei nº 9.678/98, que institui a“Gratificação de Estímulo à Docência”(GED) nas InstituiçõesFederais de EnsinoSuperior (IFES); oPlano Nacional de Educação- Proposta do Executivoao Congresso Nacional(PNE-MEC, 1998).Assim como não citamostodos os instrumentosda fúria legiferante dogoverno, não nos deteremosna análise de cadaum deles, embora consideremosessencial o estabelecimentode nexos entreas políticas neles consolidadase seus impactosna formação e no exercícioda docência.A LDB e as demaisleis sobre a educação superiorexplicitam o projetoadotado pelos governantes: aprivatização, já sinalizada em legislaçõesanteriores, e a negação domodelo de universidade pautadona indissociabilidade entre as atividadesde ensino, pesquisa e extensãode serviços à comunidade. Talprojeto traduz e aprofunda diretrizesdos organismos internacionais:desresponsabilização do Estado,privatização generalizada, privilégioda racionalidade técnica, restriçãoda democracia, exclusão social.Para esse projeto, a formação deprofessores prescinde da pesquisa.Alega-se que o modelo de formaçãode profissionais que consideraa tríade ensino, pesquisa e extensão(sequer consolidado no país) émuito oneroso. Esse pressuposto,que também interfere no exercícioda docência, é utilizado para justificar:1) o não investimento de recursospúblicos, 2) a necessidadede buscar outras fontes de financiamentoe 3) a oferta de formasdiferenciadas de educação superior.Daí algumas conseqüênciasque se desdobram em cascata.O não investimento na educaçãosuperior pública tem implicadoo contingenciamento de verbas, oachatamento salarial e a diminuiçãode docentes e funcionários.Qual docente não tem se deparadocom a falta ou deterioração de materiaise equipamentos imprescindíveisao seu trabalho? Com asprecárias condições de salas de aula,laboratórios, bibliotecas e outrosrecursos? Quantos docentesnão têm-se defrontado com a indignaçãoe a desmotivação diantedo deliberado e crescente aviltamentosalarial? Quantos não estãosendo obrigados a abandonar aprofissão ou a aposentar-se, buscandoum patamar maisdigno de vida? Quem entrenós ainda não se deparoucom a sobrecarga detrabalho devido à insuficiênciae ou à falta de pessoal,docente ou não?Quem não se viu tolhidoda realização de seus projetos,assoberbado, sejapela excessiva burocracia,seja pela redução de verbaspara pesquisa, bolsasde iniciação científica, demestrado, entre outras,que propiciam a construçãodo conhecimento esua disponibilização paraa sociedade?Buscar outras fontesde financiamento impõe oassédio gradual à iniciativa privada,a cobrança de taxas e serviçosprestados nas instituições públicase a extinção progressiva do ensinosuperior gratuito. Quais seriam asdecorrências da delegação crescentedesse ensino aos setores particulares?Seu desenvolvimento não sesubordinaria apenas aos interessesda iniciativa privada, descaracterizandoa natureza, a identidade e asfunções sociais das instituições de


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000ensino superior? O pagamento detaxas e serviços não significariareincidência, injustiça e ilegalidade?Não se constituiria em duplapenalização daqueles aos quais oensino público e gratuito significaoportunidade única de acesso? Aprivatização crescente não descaracterizariaa formação e o exercíciodocente, na medida em que oprofessor — fragilizado pelo fimda dedicação exclusiva, daestabilidade, da autonomiapedagógica — tenderiaa tornar-se “privatizado”,seja por cumplicidadecom o modelo privatizante,seja pela busca desaídas individualistas?Como explicar a proliferaçãode “fundações” nointerior das universidadespúblicas? Tal quadro nãocomprometeria a pesquisa,sobretudo a básica, e,no limite, a própria soberaniado país?A oferta de formas diferenciadasde educaçãosuperior — universidades,centros universitários,faculdades integradas,faculdades, institutos superioresou escolas superiores (artigo8º do Decreto nº 2.306/97) — tentaprivilegiar a “flexibilização” daformação, o aligeiramento e afragmentação dos saberes veiculados,obscurecendo os reais objetivosdas reformas educacionais emcurso: o barateamento e a subserviênciaàs regras do mercado. Senão, o que significariam tais instituições,hierarquizadas, mas sequerclaramente definidas? Suasfunções corresponderiam à ofertade cursos para ricos e treinamentoprofissional específico e aligeiradopara pobres?A quem beneficiariam, de umlado, o uso indiscriminado da educaçãoà distância com o objetivo deformar docentes e, de outro, o usointensivo de tecnologias — Internet,vídeos, redes locais (LANs),CD-ROM, tele-conferências, entreO combate governamental àindissociabilidade entre ensino,pesquisa e extensão encobre aintenção de desmantelar o ensinosuperior público. As razões ficammais claras quando se percebe opotencial desse mercadopromissor parainvestimentos de capital.Afinal, não seria o lucroa vocação peculiar eprimeira da empresa-escola?outras — com objetivo de substituircursos presenciais? À semelhançadas “curtas” licenciaturas,os cursos seqüenciais (autorizamegressos de quaisquer cursos superioresa lecionar após breve complementaçãopedagógica) não contribuiriampara comprometer aindamais a educação básica, com reflexosnegativos na superior, colaborandopara a manutenção de umciclo vicioso e excludente?É fundamental perceber que ocombate governamental à indissociabilidadeentre ensino, pesquisae extensão (supostamente para racionalizarrecursos, melhorar aprodutividade acadêmica e ampliaro acesso) encobre a intenção dedesmantelar o ensino superior públicoe incitar o privado. As razõesficam ainda mais claras quando sepercebe o potencial desse nível deensino enquanto mercadopromissor para investimentosinternos e ou externosde capital. Afinal,não seria o lucro a vocaçãopeculiar e primeira daempresa-escola?Pois bem, segundo osCensos do Ensino Superior(MEC, 1994 e 1998),entre 1994 e 1998 houveum aumento de 67,7%nas matrículas do ensinosuperior no setor privado(de 787 801 para 1 321 229),enquanto que, no setorpúblico (federal, estaduaise municipais), observouseum aumento de16,6% (de 690 450 para804 729). O númerode universidades particularessaltou de 59 para76, enquanto que as do setor públicopassaram de 68 para 76. Tais dadosrevelam a privatização em cursono país.Todavia, observe-se que o númerode concluintes em 1993 e1997, no setor privado, foi de155 387 e 168 302, respectivamente,constituindo um aumento de8,3%, enquanto que, no público,foi de 84 882 e 106 082, respectiva-59


Março 200060mente, um aumento de 25%. Assim,mesmo sob um olhar mais tecnocrático,portanto sem entrar nomérito da qualidade de ambos, pode-seignorar uma maior “produtividade”do setor público?Ademais, ao adotar a prática deavaliação externa exclusivamentepor meio do “provão”, o governopermite que instituições privadassem escrúpulos potencializem lucros,tanto por meio da criação de“cursinhos” para melhorar o desempenhode seus egressos no“provão”, quanto da utilização dosresultados deste como mais ummecanismo de marketing! Setentam desqualificar o ensinopúblico paraalavancar o particular,confirma-seo melhor desempenhodos egressosdas escolas públicas.Enfim, nunca houvetanto controle político,administrativo, financeiroe pedagógico naeducação superior pública.Isto significa que não hásaída? Não necessariamente.Setores organizados da sociedadecivil e parcelas da sociedade política,que defendem a construção deuma sociedade mais democrática,justa e igualitária, concebendo aeducação como um dos instrumentosde transformação social e deformação para a cidadania, têmum projeto que se contrapõe a esseprojeto elitista oficial.Estamos diante de um embatede projetos que apontam para cenáriosdistintos: o do governo, querepresenta os interesses dos setoresdominantes, expresso no PNE-MEC, já em franco processo deimplantação; e o Plano Nacionalde Educação — Proposta da SociedadeBrasileira, cujos defensoresapostam na construção de uma novahegemonia, tentando fomentara adoção do todo ou parte de seuideário nos Estados e Municípios.Na perspectiva do Plano Nacionalde Educação — Proposta daSociedade Brasileira (1997:59), asuniversidades constituem-se numpatrimônio social e são caracterizadaspor um padrão unitário dequalidade, a partir da indissociabilidadeentre ensino, pesquisa e extensãoe pela universalidadena produção e transmissãode conhecimentos e experiênciasem todas as suasdimensões (artística, científica, cultural,tecnológica etc). Assim concebidas,as universidades serão elementosconstitutivos de qualquerprocesso estratégico e de construçãode identidade social.“Assim entendida, a universidadepode também contribuir para aadequação das estruturas do Estadoàs aspirações democráticas em cursona vida política nacional e internacionale, em especial, ser elementoativo de intervenção democráticana vida da sociedade brasileira. ParaRevista <strong>Adusp</strong>realizar tais tarefas, permanecem,ainda atuais, os desafios de democratizaçãoe autonomia da estruturauniversitária, para garantir o desempenhoda universidade enquantoinstituição estratégica da sociedade.A ela caberá a clarificação dos diversosprojetos e viabilizar soluçõespara a complexidade dramática deuma sociedade que é caracterizadapor elevados índices de concentraçãode renda, de baixos salários e defome” (idem, p. 59).Respeitadas as suas especificidades,todos os pressupostos mencionadoscom relação às universidadesdeverão orientar tambémas demais Instituições deEnsino Superior(IES), públicas ouprivadas.Portanto, há“uma dimensão públicanas instituições de ensinosuperior que se efetiva simultaneamentepela suacapacidade de representaçãosocial, cultural,intelectual e científica.E a condição básica parao desenvolvimento dessa representatividadeé a capacidade deassegurar uma produção de conhecimentoinovador e crítico, queexige respeito à diversidade e aopluralismo. Dessa forma, não lhecabe apenas preencher uma funçãode reprodução de estruturas, relaçõese valores, mas acolher os maisdiversos elementos que possamconstituir questionamentos críticos,indispensáveis para configurálacomo um dos fatores dinâmicosna evolução histórica da sociedade”(ibidem, p. 59).


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000O governo FHC utiliza-sedo jogo de mídia para buscara adesão de amplos setoressociais, inclusive a de intelectuaisoutrora insuspeitos, quese mimetizam para serviraos governantes de plantão,evocando a imagemde funcionárioscamaleões.Enfrentarum cenário desses exigeorganização e perseverançaBibliografiaAs IES assim concebidas devemassegurar “o aperfeiçoamentoda formação cultural do ser humano,a proposta de capacitá-lopara o exercício de uma profissãoe de prepará-lo para a reflexãocrítica e a participação na produção,sistematização e superaçãodo saber, cabendo ao Estado aresponsabilidade de assegurar oacesso a esse direito social a todosos cidadãos, inclusive deforma gratuita, oferecidopelas Instituições de EnsinoSuperior públicas”(ibidem, p. 59).Sobre formação eexercício docente, qualquerprognóstico responsável,do ponto de vistatécnico e ou político, revelaráo quanto será precisofazer, se a perspectiva fora de garantir, para todos,uma educação de boaqualidade. Faz-se necessárioadotar políticas queaumentem a probabilidadede assegurar formaçãoampla e sólida, humanista,comprometida com aemancipação da maioriaexcluída e com a formação de profissionaisaptos a contribuir noquestionamento de velhos conhecimentose na produção de saberesnovos para solucionar problemasque dificultam o desenvolvimentonacional. Políticas que valorizem adocência, por meio de condiçõesde trabalho adequadas ao desempenhoprofissional, salários dignos(com piso salarial profissional),planos de carreira, concursos públicosde provas e títulos sistemáticos,aperfeiçoamento contínuo,conforme o artigo 206 da CF/88.Vale dizer: cidadãos-profissionaisque atuem para construir um projetoinclusivo e de qualidade socialpara o país.Os argumentos alinhavadosneste texto permitem antever osrumos antidemocráticos da educaçãosuperior — em especial, daformação e do exercício docente— pretendidos pelos setores sociaishoje representados no governoFernando Henrique Cardosoque, na tentativa de legitimá-los,utiliza-se do jogo de mídia parabuscar a adesão de amplos setoressociais, inclusive a de intelectuaisoutrora insuspeitos, que se mimetizampara servir aos governantes deplantão, evocando a imagem defuncionários-camaleões. Enfrentarum cenário desses exigeorganização e perseverança,pois o que está em jogoé a recuperação do papeldo Estado como provedorde direitos civis, políticose sociais, das instituiçõesde ensino superiora serviço da sociedade, e,em especial, da universidadeenquanto nicho deprodução de conhecimentose de crítica aos governose às políticas que nãocontemplam os interessesda maioria da população.Para vencer esses desafiosé essencial a contribuiçãode todos osprofessores universitários!RABANCO MUNDIAL. La enseñanza superior: las lecciones derivadas de la experiencia. Washington, 1995.CATANI, A. M. e OLIVEIRA, J. F. de. A Gratificação de Estímulo à Docência (GED): alterações no trabalho acadêmicoe no padrão de gestão das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES). In: DOURADO, L. F. e CA-TANI, A. M. (orgs.). Universidade Pública: políticas e identidade institucional. Campinas/SP: Autores Associados;Goiânia: Editora da UFG, 1999. p. 65-74.CHAUÍ, M. A universidade hoje. In: Revista Praga: estudos marxistas n.º 6, São Paulo: Hucitec, setembro de 1998, p.23-32.MINTO, C. A.. A educação nos tempos do “Dama de Ferro”. In: Revista Universidade e Sociedade nº 18, março de1999, Andes/SN, p. 103-107 e In: Formação de educador e avaliação educacional: conferências, mesas-redondas, v.1. Organizadores: Maria Aparecida Viggiani Bicudo e Celestino Alves da Silva Júnior. São Paulo: EditoraUnesp, 1999. - (Seminários e Debates). p. 53-66.MOREIRA ALVES, Márcio. Beabá dos MEC/USAID, Rio de Janeiro, Edições Gernasa, 1968.MURANAKA, M. A. S. e MINTO, C. A. O capítulo “Da Educação Superior” na LDB - uma análise. In: Revista Universidadee Sociedade nº 15, Andes-SN, Brasília, fevereiro de 1998, p. 65-75.SILVA JR, J. R. e SGUISSARDI, V. Novas faces da Educação Superior no Brasil - Reforma do Estado e mudanças naprodução. Bragança Paulista: Edusf, 1999.III Congresso Nacional de Educação (III CONED). Carta de Porto Alegre, aprovada na plenária final, Porto Alegre, 5de dezembro de 1999.61


OPÇÃO POR UMA NMarço 2000Revista <strong>Adusp</strong>Montou-se uma gigantesca mistificação em torno da idéiade que o sistema educacional brasileiro consome seusmíseros recursos para sustentar as caras universidadespúblicas, quando o conjunto das IFES absorve, naverdade, pouco mais de 10% do gasto público total comeducação. É escandalosa a constatação de que o paísgastou, em 1999, 130 bilhões de reais para pagarjuros da dívida pública (externa e interna),enquanto o orçamento do MEC para operíodo foi de apenas 9 bilhões de reais. Osucateamento dasuniversidades ecentros públicos depesquisas nãodecorre da “escassezde recursos”, mas deuma orientaçãopolítica que operasegundo uma lógicaneocolonial62


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000AÇÃO SOBERANAIvan ValenteEx-Deputado Federal, ex-coordenador daFrente de C&T no Congresso Nacional63


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>Em particular, duranteo governoFHC tem-se discutidobastanteem nosso país aquestão do financiamentoda educação e, em especial,da Universidade pública. Oque nem sempre tem ficado claropara a sociedade é que esta é umadiscussão que não se circunscreve abuscar identificar como alocar damaneira mais eficaz e justa possívelos recursos públicos. Éum debate em que asdiversas posições epráticas políticas a elecomparecem afirmando,cada uma por seulado, um determinadoprojeto de país. Ou ditode outra forma, odebate sobre o financiamentoda universidade,do ensino, dapesquisa, da extensãode serviços à comunidadeé um espaço que possibilitaevidenciar o projeto de nação quecada ator propugna.O governo federal, por exemplo,através do ministro da Educação,Paulo Renato Souza, considera,segundo a revista Exame (nº614, 10/07/96), que a ênfase no ensinouniversitário teria sido umacaracterística de um modelo de desenvolvimentoauto-sustentado,desplugado da economia internacionale hoje em estado de agoniaterminal. “Para mantê-lo, era necessáriocriar uma pesquisa e tecnologiapróprias. Com a abertura eglobalização, a coisa muda de figura”.O acesso ao conhecimento fica64Compreende-se a lógica do regime de“desidratação financeira” que temgarroteado o ensino superior público e asatividades voltadas à produção de C&T noBrasil. É possível perceber o nexo quevincula a privatização de empresas estataisestratégicas às medidas de desmonte dochamado sistema nacional de C&Tfacilitado, as associações joint-venturesse encarregariam de prover asempresas de países como o Brasildo know-how de que necessitam.“Alguns países, como a Coréia, chegarammesmo a ‘terceirizar’ a universidade.Seus melhores quadrosvão estudar em escolas dos EstadosUnidos e Europa. Faz mais sentidodo ponto de vista econômico” (todasas aspas são de Exame).Colocadas as coisas nestes termos,torna-se fácil, então, entender,de um lado, a desqualificaçãosistemática empreendida pelos“formadores de opinião” e o verdadeirolinchamento editorial aque a universidade pública e asinstituições de pesquisa têm sidosubmetidas, particularmente nestestempos em que o neoliberalismotem sido a voga dos dirigentes empresariaise políticos do país.É que para a coligação conservadorano poder, em associação comos organismos como Banco Mundiale FMI, países como o Brasilnão são propriamente países, sãoantes “espaço econômico”, mercado,do qual emanam “leis” que devemregular todas as dimensões davida. Segundo essa ótica, qualqueresforço tendente a fazer do Brasiluma comunidade humana histórica,cultural e politicamente determinada,com objetivos próprios, bem comoas próprias idéias de autodeterminaçãoe soberania nacional configurariampreocupações de um pensamento“caipira”, “neobobo” oumesmo “jurássico”. Sob esse pontode vista, não faz sentido pensar etratar a universidade e todo o acervocientífico e tecnológico construídopelo esforço de geraçõese gerações de brasileiroscomo algo estratégicopara o desenvolvimentodo país e para aconstrução do Brasil comonação soberana.Por outro lado, tornasemais inteligível a lógicaque orienta o regimede “desidratação financeira”que tem garroteadoo ensino superior públicoe as atividades estataisvoltadas para a produção deciência e tecnologia no Brasil.Ademais, essa problemática vincula-sediretamente a ocorrênciascomo as que, por exemplo, levaramao desmonte do aparato de pesquisae desenvolvimento do SistemaTelebrás. Nesse sentido, é possívelperceber o nexo que vincula a políticaque se orienta para a privatizaçãode empresas estatais estratégicase as medidas que se voltam parao sucateamento e o desmonte doque poderíamos chamar de sistemanacional de ciência e tecnologia.É dessa compreensão mais globalque decorre uma outra tese(muito esgrimida) no tocante ao fi-


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000Os segmentos e movimentos sociais quetomaram a si a tarefa de elaborar umPlano Nacional de Educaçãorepresentativo da sociedade civilapontam outro horizonte para o país e,portanto, para o ensino superior,negando à instância mercado acondição de juiz supremonanciamento da educação: a do“cobertor curto”. Busca-se, medianteestridente repetição, firmaruma espécie de senso comum deque não temos um problema dedispêndio público em educação;teríamos um problema gerencial.Além do fato de sermos um paíspobre (digo, “em desenvolvimento”)e, portanto, com recursos limitados,fundamentalmente não teríamosum gasto público pequeno,gastaríamos mal tais recursos: teríamosuniversidadesperdulárias (com gastoaluno/ano acima dos padrõesaceitáveis nos paísesmais desenvolvidos,além de serem elas mesmasalgo assim como cidadelasinexpugnáveisàs camadas mais empobrecidasda população),não privilegiaríamos oensino básico (em geral,tratado como as sériesiniciais do ensino fundamental),os governos municipais eestaduais desviariam os recursosde educação etc. etc.Desse ponto de vista, torna-seiairrelevante o Brasil vir aparecendocomo um dos países de menorgasto público em educação (sempreequivalente a menos de 4% doPIB), significativamente atrás dospaíses vizinhos ou mesmo de Estadosafricanos como Argélia e Tunísia.Não, o problema residiria na“irracionalidade” do “sistema”educacional brasileiro, que privilegiariao gasto na universidade, emdetrimento do “ensino elementar”.Desse modo, acacianamente, numquadro de parcos recursos, colocarse-iaa necessidade do estabelecimentode uma prioridade: o ensinofundamental. Eis que, nessa linha,tornam-se inúteis os avançados dispositivosda Constituição de 1988sobre o tema educação. Por issoimpõe-se a emenda constitucional14 (que, entre outras medidas, derrogao dispositivo — o artigo 60das disposições transitórias — quedeterminava a expansão das vagasno ensino superior público) e a lei9.424/96, com o famigerado Fundef;joga-se pesado na aprovaçãode uma LDB que, além de funcionalà visão dominante, nada tem adizer sobre o financiamento dapós-graduação; o que quer dizer,sobre ciência e tecnologia.Ironicamente, nessa teoria, emgeral, passa-se ao largo da origem eda efetiva repartição dos recursospúblicos em educação. No mais dasvezes, abstrai-se o fato de que sobretudo,com o advento da últimaCarta, do gasto público global comeducação, a União — como se sabeo ente federativo que responde pelamanutenção e desenvolvimentoda maioria das universidades públicas— contribui para o conjuntodas despesas com manutenção edesenvolvimento do ensino commenos de ¼. Em 1997, por exemplo,esta parcela correspondeu a23,6% (ver, a propósito, o RelatórioNelson Marchesan sobre o PlanoNacional de Educação, pág.101), no contexto de um dispêndiototal calculado em R$ 40,8 bilhões.Se estimarmos que o gastoanual total da União com as InstituiçõesFederais de Ensino Superior(aí incluídos os vultosos e crescentesdispêndios comos hospitais universitários)em 50% das suasdespesas com educação,teremos, então, aidéia da gigantescamistificação construídaem torno da idéia deque o sistema educacionalbrasileiro consumiriaseus míseros recursospara sustentaras caras universidadespúblicas. De fato, oconjunto das IFES consome poucomais de 10% do gasto público totalcom educação no Brasil.Mas a trilha seguida pelo governoestá longe de ser o único caminho.Os segmentos e movimentossociais que, por exemplo, tomarama si a tarefa de elaborar um PlanoNacional de Educação representativode um posicionamento da sociedadecivil apontam um outrohorizonte para o país e, portanto,para o ensino superior.Aqui, parte-se da reivindicaçãodos homens e mulheres comoconstrutores da história e do destinodeste país, negando à instânciamercado a condição de juiz supre-65


Março 2000mo do justo, racional e eficaz social,política e economicamente.Considera-se muito baixa a proporçãoestudantes do ensino superior/populaçãodo Brasil, comparativamente,seja aos países vizinhos,seja aos desenvolvidos: segundo oStatistical Yearbook, 1995, Unesco,a relação estudantes do ensino superior/100mil habitantes era, porexemplo, em 1992, Argentina3.323, Chile 2.369, Canadá, 6.980,EUA 5.611, Brasil 1.080 (ver PL4.155/98, p. 69).Constata-se que são as universidadese outros organismos públicosresponsáveis pela quase totalidadeda produção de ciência e tecnologiano Brasil. Mas, sobretudo,toma-se como possível e justo queos trabalhadores e o povo brasileirosconstruam o Brasil como umanação soberana.Ora, tal ponto de vista requerque se aborde o problema da produçãode conhecimento, a pesquisa,o ensino superior fora do esquadroimposto pela lógica da centralizaçãoe monopolização dessetipo de atividade nos e pelos paísesdesenvolvidos. Quer dizer,toma-se a questão da ciênciae tecnologia como umproblema estratégico para opaís e para seu povo.Consideramos que, tal comoestá proposto no PL 4.155/98(Plano Nacional de Educaçãoelaborado pela sociedade civil),é perfeitamente razoável estabelecermoscomo meta que o paíspasse imediatamente a dispender1,2% do PIB com a manutenção edesenvolvimento das atividades dasuniversidades públicas, fixando66Revista <strong>Adusp</strong>em 2,7% do PIB o nível de gasto aser atingindo ao final dos próximosdez anos, de tal modo a atingir umpatamar de 40% da população nafaixa etária de 18 a 24 anos cursandoo ensino superior. É igualmentefactível retomar o gasto públicoimediato de, no mínimo, 0,9% doPIB em pesquisa junto aos organismosestatais de fomento, de formaa preservar os núcleos de pesquisa ea continuidade de suas atividades.Este ponto nos remete à questãoda origem dos recursos. Sobre isso épreciso, em primeiro lugar, não perdermosde vista as perdas que aeducação e a pesquisa em nossopaís têm sofrido em função dos durose irresponsáveis cortes e regimesde contingenciamento que a área financeirado executivo tem imposto.Não bastasse isso, temos o famigeradoFEF, agora batizado de DRU,que tantos recursos tem desviado defunções fundamentais do Estado emfunção da lógica hegemônica depriorizar o pagamento dos encargosfinanceiros da dívida em detrimentodos gastos e necessidades sociais. Atais desvios, agreguem-se aquelesendogenamente alimentados pelosplanos de estabilização impostos pelasagências multilaterais.A despeito disso, há espaço parao crescimento das receitas vinculadasà educação. Em primeirolugar, é preciso ter claro que navinculação prevista no artigo 212da Constituição Federal (18% noplano da União e 25% para estadose municípios) não estão incluídastaxas e contribuições. Lembremosque, por exemplo, a CMPF,que tornou-se um tributo permanente,em nada contribui para educaçãoe muito menos para a saúde.Em segundo lugar, além da reformatributária, que deveria estruturar-secom base nos impostosdiretos, não podemos deixar demencionar a enorme permissividadeda legislação e das práticas governamentaispara com a sonegaçãoe as diversas formas de evasãofiscal. Sabe-se que o próprio secretárioda Receita Federal, EverardoMaciel, estimou que este fenômenoem nosso país incide sobre afantástica base de R$ 280 bilhões,o equivalente a quase um terço doPIB anual. Escandalosa, também,é a constatação de que o país gastou,em 1999, R$ 130 bilhões parapagar juros da dívida pública (externae interna), enquanto o orçamentodo MEC para o período foide apenas R$ 9 bilhões.Porém, além da afirmação de umcaminho factível e necessário para ofinanciamento do ensino superiorpúblico em nosso país, o que restademonstrado é que este não é umproblema financeiro e muito menosesgota-se nos números dispostos segundovariadas perspectivas contábeis.O que fica claro é que osucateamentodas universidadese dos centrospúblicos depesquisas não decorrede um problemade “escassez de recursos”,mas de uma orientaçãopolítica que desdenha dapossibilidade de fazer destepaís uma nação soberanae opera segundouma lógica claramenteneocolonial. RA


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000SONEGAÇÃO, REFORMATRIBUTÁRIA E PERDASDernal Santos e Juçara BragaJornalistasA arrecadação, em 1999, de R$ 26 bilhões oriundos do Imposto sobreCirculação de Mercadorias (ICMS) e o Orçamento total de R$ 36 bilhõesconfirmam São Paulo como o Estado mais rico da Federação. Nestemesmo ano, o Estado gerou quase um terço do Produto Interno Bruto(PIB) brasileiro, ou seja, a fatia nada desprezível de R$ 324 bilhões, num“bolo” que chegou a R$ 1 trilhão, de acordo com o Banco Central.A performance paulista na arrecadação de impostos é a melhor de todos osestados, segundo os especialistas. Contudo, estima-se que a sonegaçãofiscal corresponda a algo entre 20% e 24% de sua receita.Esse prejuízo, que compromete todos os investimentos públicos, atingediretamente as universidades estaduais, cujas verbas correspondem, por lei,a 9,57% da arrecadação anual do ICMS, após o desconto de 25% para oFundo de Participação dos Municípios. Daquele percentual, 5,0295% sãodestinados à USP, 2,3447% à UNESP e 2,1958% à Unicamp. Nessestempos de verbas escassas, uma melhora na arrecadação do ICMS influiriapositivamente nas contas das universidades paulistas.Ocorre que a reforma tributária em tramitação no Congresso Nacionalinstituirá mudanças na cobrança do ICMS estadual, com impacto sobre aarrecadação dos estados que não se sabe, ainda, se será positivo ounegativo. O relatório da comissão especial encarregada de analisar aproposta de emenda constitucional (PEC 175/95) está nas mãos dopresidente da Câmara dos Deputados, mas duvida-se das chances reais devotação da reforma, pois o governo federal não se mostra interessado nela.67


Março 2000Em tese de mestradoconcluídaem 1996, o pesquisador-visitanteFernandoBlanco, do Institutode Pesquisa Econômica Aplicada(IPEA), identificou uma perdade receita com sonegação fiscalno Estado de São Paulo, no ano de1990, da ordem de 24%. Tomando-seo Brasil como um todo, asestimativas de sonegação variammuito. O secretário da Receita Federal,Everardo Maciel, afirmaque a cada real arrecadado correspondeum real sonegado. Já ocoordenador de AdministraçãoTributária da Secretaria da Fazendade São Paulo, Clóvis Panzarini,acredita que a sonegação não supere20% da receita obtida, podendoaté ser bem inferior a essacifra: “Se pegarmos o PIB tributadodo setor industrial e aplicarmosalíquotas médias de arrecadação,o valor obtido não fica muito distantedo que se arrecada hoje”.O pecado dessa fórmula, reconhecePanzarini, está precisamenteem que no PIB consideradonão aparece a parte sonegada.Sua conclusão: é muito difícil saber-seo grau de sonegação fiscal,simplesmente porque “o que é sonegadonão existe no mundo formal,e o que não existe na formalidadenão é mensurável”. O presidentedo Sindicato dos AgentesFiscais de Renda do Estado deRevista <strong>Adusp</strong>São Paulo (Sinafresp), David Torres,confirma a dificuldade, mascomunga com a opinião de Maciel:“No Brasil, até 50% de todosos tributos são sonegados”. Elegarante que a fiscalização em SãoPaulo é eficiente.Outro diretor do Sinafresp,Luiz Antônio Moroni Amorim,observa que São Paulo tem 1 milhãode contribuintes e é o Estadomelhor aparelhado em todo opaís, no que se refere à fiscalização.Mas pondera que, com o númerode fiscais que há hoje,3 800, a fiscalização só pode serfeita por amostragem. O ideal,segundo ele, seria cobrir todo ouniverso passível de tributação.Como isso não acontece, utiliza-PROLETARIZAÇÃO DO CORPO DOCENTEA compressão de verbas e saláriosvem resultando na precarizaçãodo ensino público em todosos níveis. Na USP, esse processoadquiriu proporções preocupantespara um numeroso contigentede professores. “O professor entrounum processo de proletarizaçãonos últimos anos. Aviltar ossalários significa, no futuro, teruma mão-de-obra desqualificada”,fustiga Annateresa Fabris,professora de História da ArteContemporânea, aposentada em1996. Para ela, porém, isto não sedeve somente à ação do governo.“A mentalidade brasileira nãopercebe a educação como um valorprioritário. Uma greve de professores,por exemplo, não é encaradacom o devido impacto pelasociedade”.Há, no seu entender, umacampanha sistemática contra auniversidade, “inclusive por partedos governantes que, com isso,encaminham o ensino público parao processo de privatização”.Atualmente colaborando na pósgraduação,Annateresa, na USPdesde 1971, só evita uma quedamais acentuada em seu padrão devida porque recebe uma verba doCNPq. “Dinheiro que deveria serinvestido em atualização e qualificaçãoprofissional, uso paracomplementar despesa de casa”.Para ela, o professor, atualmente,está em pior situação do que nadécada de 70. “Naquela épocaconsegui montar minha biblioteca.Hoje não consigo, sequer,bancar minhas viagens para estudose pesquisas”.Também aposentado, o professorde odontologia Aldo DécioPancera consegue manter o padrãode vida anterior porque possuia sua própria clínica. “Há umadécada recebia o equivalente atrês mil dólares por mês na USP.Hoje, ganho menos de dois mildólares”, cita. Afastado da ativahá três anos, Pancera observa quehá um desânimo generalizado.Ele está convencido de que a responsabilidadepor esta situação68


Revista <strong>Adusp</strong>se o critério da seleção: “A fiscalizaçãoé feita em segmentos comalto grau de sonegação já comprovado,como os setores industriaisde açúcar e pneus”. São selecionados,assim, os contribuintes“com maior expressão econômicae reconhecida incidênciacomo sonegadores”.Panzarini, por seu turno, informaque o índice de informatizaçãodo sistema já chega a 90%,mas admite que o número de fiscaisé insuficiente para atenderàs necessidades do Estado. E doque se precisa para chegar ao númeronecessário (4 500, segundoele) é a realização de um concurso,para o qual falta a aprovaçãodo governador Mário Covas.Panzarini, visão otimista da arrecadaçãoMarço 2000Daniel GarciaAnnateresa, salários aviltadosDaniel Garciacabe tanto ao governo quanto àprópria reitoria.No corpo docente da USP,resignação e revolta misturamse.Existem, por certo, casoscomo o do professor Joel BarbujianiSigolo, da Geologia,que atribui à “politicagem” osprotestos contra os baixos salários.Ele acha que a remuneraçãoé das melhores. É uma opiniãorara.“Para quem vive só do salárioda USP a situação está muitodifícil”, afirma o professor demúsica Lorenzo Mammi, da Escolade Comunicações e Artes.Na sua avaliação, o problemamaior na Universidade é a faltade pessoal e de estrutura paralecionar adequadamente. “Depoisque a USP passou a incentivarcursos para a comunidade comoforma de arrecadar recursos,houve uma dispersão muito grande,ficou difícil preparar as aulase o aperfeiçoamento profissionaltornou-se quase inviável”, observaLorenzo, que complementasua renda com artigos que escrevepara jornais.Jesuína Almeida Pacca ratificaa afirmação do colega quanto àcarência de recursos humanos emateriais. “Tudo isso, mais os baixossalários, sobretudo para quemestá começando, afeta a qualidadede ensino.” Professora de Física,ela observa que a falta de incentivopara trazer novos professoresfaz com que a USP, hoje, tenhaum corpo docente envelhecido,pois além de não pagar bemtambém não contrata.69


Março 2000Fernando Blanco consideraque um forte estímulo à sonegaçãoé o aumento no valor dos tributos.Ele acredita na possibilidadede chegar-se ao índice zerode perda na arrecadação, mas adverteque isso exige um conjuntode medidas que passam necessariamentepelo aperfeiçoamentodo sistema fiscalizador e pelo aumentodo efetivo de fiscais. Outrosproblemas precisam ser enfrentados,por exemplo, a chamada“elisão fiscal” — ação de empresasque aproveitam-se dacomplexidade da legislação ou delacunas existentes nas leis, contratambons consultores e advogadose conseguem livrar-se decertos tributos ou pagar muitopouco.“Não existem estatísticas confiáveis.A sonegação de ICMScertamente é muito mais do que‘um para um’, é um dos tributosmais sonegados, porque muitacoisa é vendida sem nota fiscal”,resume a economista Maria EmíliaPureza, assessora da bancadado Partido dos Trabalhadores naCâmara Federal, comentando aconhecida declaração de EverardoMaciel.Crise x tributosDe modo geral, a conjunturaeconômica brasileira tem oferecidoterreno fértil para a perda dereceita tributária. O economistaAmir Khair, secretário de Finançasdo município de São Paulo nagestão de Luiza Erundina, atualmentecoordenador do Grupo de70Financiamento Público e Orçamentodo Instituto Florestan Fernandes,observa que “a sonegaçãoé constante no Brasil, e é tantomaior quanto pior é a situaçãodo País, pois as empresas, se estãoem dificuldades, priorizam opagamento de salários e de matéria-prima”.Na esteira dessas dificuldades,as empresas procuram driblar orecolhimento de impostos de todasas formas possíveis. Na avaliaçãode Panzarini, as isençõesfiscais são as mais danosas para oEstado: benefícios que privilegiam,indiscriminadamente, setoresda indústria, comércio e inclusivepessoas físicas de diferentesfaixas de renda. Panzarini defendea alíquota única e antecipaque esse nó deverá ser desfeitocom a aprovação da reforma tributáriaque tramita no CongressoNacional. “As pressões políticassão grandes, mas não deve haverexceções, mesmo que sejam meritórias”,opina, destacando a títulode exemplo a isenção concedidaaos portadores de deficiênciafísica na compra de automóvel. Oimposto deve ser “neutro”, naopinião do coordenador de Tributosda Fazenda.Quanto às perdas geradas pelaeconomia informal, Panzariniconsidera-as irrelevantes. Eleavalia que, nesse caso, não se podefalar em sonegação, mas simem infração formal, pois, se o informallegalizar-se, transforma-seem microempresa, com direito àisenção de impostos. Ou seja, dequalquer forma não recolheria otributo. O especialista consideraRevista <strong>Adusp</strong>VIRTUDES EO ICMS foi mantido no textosubstitutivo da PEC 175/95resultante dos trabalhos da ComissãoEspecial da Câmara dosDeputados, e o Imposto sobreValor Agregado (IVA), que osubstituiria, foi descartado. Otexto garante autonomia tributáriaaos Estados e traz algunsavanços em relação à legislaçãoanterior, no tocante à simplificaçãodo sistema e ao combateà guerra fiscal, impondo padronizaçãoe uniformidade na cobrançadesse imposto pelos diferentesEstados.De acordo com a proposta, oICMS será instituído por lei estadual,que ratificará as normasa serem estabelecidas em leicomplementar;não será cumulativo;e pertencerá“ao Estadoou DistritoFederalde localizaçãodo destinatáriodamercadoria ouserviço”.Suas alíquotasserão“fixadaspelo Se-Pe


Revista <strong>Adusp</strong>VÍCIOS DO “NOVO” ICMSdro Estevam da Rocha PomarEditor da Revista <strong>Adusp</strong>nado, mediante resolução aprovadapor dois terços de seusmembros, de iniciativa privativade um terço dos senadores ou deum terço dos governadores dosEstados e do Distrito Federal, euniformes em todo o territórionacional por mercadoria ou serviço,vedada a distinção entreoperações e prestações internas,interestaduais e de importação”,ressalvados os casos em que a leiestadual poderá aumentar em até20% as alíquotas aplicáveis àsoperações e prestações internas ede importação.A lei complementar determinaráas regras de organização docolegiado que administrará oICMS, composto por um representantede cada unidade da federaçãoe que terá como atribuiçãoelaborar um “regulamento”com essa finalidade.O “novo” ICMS, contudo, incorporaantigos vícios, pois o textocria uma classe de alíquotasespeciais, as quais concedem tratamentofavorecido (menorespercentuais) não apenas aos gênerosalimentícios de primeiranecessidade, o que é correto,mas também à prestação de serviçosde navegação aérea e marítimae de educação. Isso abrechance para que o lobby do ensinoprivado mantenha suas vantagensfiscais, quando da regulamentaçãodesse dispositivo na leicomplementar.Além disso, e mais grave, otexto isenta de cobrança “os serviçosde radiodifusão sonora e detransmissão de sons e imagens,de recepçãolivree gratuita”,concedendocom issoum odiosoprivilégio àsempresas quemonopolizam acomunicação demassa no Brasil,em especial aRede Globo.Março 2000um erro a isenção concedida àsmicroempresas e informa queexistem, em São Paulo, 400 milempresas classificadas como “micros”que, se pagassem impostos,elevariam em 5% a receita tributáriado Estado.A inadimplência, segundoPanzarini, equivale a 7% da receitaatual proveniente do ICMS.Já foi maior, mas caiu em funçãode alguns apertos promovidos pelaFazenda, como o aumento dataxa de juros na hora do acerto ea redução do número de parcelaspara quitação do débito.Guerra fiscalOutro problema que deveráextinguir-se com a reforma, segundoPanzarini, é a guerra fiscal,uma vez que a tributação passaráa ser aplicada no destino e nãomais na origem. Ou seja, um carrofabricado em São Paulo e vendidoem Pernambuco será tributadolá. Estado mais industrializadodo país, São Paulo sai perdendo,mas ganha em outro ponto,com a inclusão dos serviços nabase de cálculo do ICMS.O estabelecimento de uma alíquotainterestadual única, ou“ICMS federal”, a ser cobrada nodestino, evitaria fugas como asque ocorrem hoje, já que a alíquotaé de 18% em São Paulo,enquanto no Paraná, por exemplo,é de 12%. Conforme a reformaproposta, essa alíquota deveráser fixada em 17%. Os ganhoscom a inclusão dos serviços sãoestimados entre 10% e 12%. Na71


Março 2000diferença, São Paulo perderiaentre 6% e 7% da arrecadaçãoobtida hoje como ICMS.De qualquer forma,Panzarini lembra que háum período de sete anosde transição previsto paraque a reforma seja definitivamenteimplantada e essaperda, teoricamente,ocorrerá ao longo do tempo;assim mesmo, se foremmantidas as condições econômicasde 1998, ano basedos cálculos feitos por ele.Na verdade, no primeiroano haveria um ganho parao Estado, diz Panzarini,certo de que a reforma introduziráum modelo tributáriomais eficiente, queeliminará fontes de sonegação.As isenções tambémserão eliminadas. Ouseja, há uma conjunção defatores positivos que, segundoo especialista,poderiam anular a perdaprevista.curto prazo, e preferemanter as coisas como estãoe tocar com a barriga,para não afetar o cumprimentodas metas acertadascom o FMI”, analisaMaria Emília Pureza.De acordo com a economista,ainda que venhaa ser aprovada, a reforma,nos moldes em que foipensada, não trará avançossubstanciais na estruturade tributação, quecontinuaria privilegiandoos impostos indiretos, osquais incidem fortementesobre os setores médios epobres da sociedade. Acorreção de tal distorçãoexige uma cobrança maisefetiva dos impostos sobreo patrimônio e sobrea renda, e o combate à sonegação.Revista <strong>Adusp</strong>Assessoria parlamentarCallegari, apontando ilegalidades do governo CovasDesinteressede FHCEm finais de marçodeste ano, tudo indicavaque a reforma tributárianão seria levada àfrente, por desinteressedo governofederal.“O governooperamuito no72


Revista <strong>Adusp</strong>“É um ledo engano concentrarna emenda constitucional a missãode suprimir as iniqüidades dosistema, pelo simples motivo deque a Constituição não desce adetalhamentos sobre contribuintes,alíquotas, base de cálculo, penalidadesaos infratores e formade atuação da administração tributária,que são os verdadeirosinstrumentos para se fazer umarevolução tributária neste país”,argumenta. “Por isso, a idéia depromover políticas distributivaspela via constitucional está fadadaao insucesso”.Verbas paraeducação em SPNa avaliação de técnicos e estudiosos,há como minimizar eaté anular as perdas que o Estadode São Paulo sofre por conta defatores como evasão, sonegação eaté mesmo guerra fiscal entre osestados. Sanados estes problemas,São Paulo passaria a arrecadarmais e, em conseqüência, aeducação contaria com maioresverbas. Será?A julgar pela política do atualgoverno, a resposta é “talvez,quem sabe”. Desde o início deseu primeiro mandato, em 1995,o governador Covas insiste emdescumprir a Constituição Federalquanto ao repasse de 30% doOrçamento estadual para a educação.Não cumpre, sequer, opercentual de 25% exigido pelaConstituição paulista. Na AssembléiaLegislativa, uma ComissãoParlamentar de Inquérito investigadenúncias de ilegalidades naaplicação dos recursos devidosao setor.O deputado estadual CesarCallegari (PSB), presidente daCPI da Educação, alerta que maisde R$ 200 milhõesforamMarço 2000sonegados pelo governo estadualàs universidades públicas nos últimosanos. Segundo o parlamentar,R$ 75 milhões deixarão de serdestinados neste ano à USP,Unesp e Unicamp. Em francodesrespeito ao disposto na Lei deDiretrizes Orçamentárias (LDO),o governo resolveu descontar todaa parcela do ICMS destinada àhabitação antes de aplicar o percentualdevido às Universidades.“É uma atitude flagrantementeilegal”, denuncia o deputado.Ilegal na LDO, o governo Covastambém afronta a Lei de Diretrizese Base da Educação(LDB), a qual determina que asdespesas com servidores inativosnão podem ser incluídas entre asdespesas de manutenção e desenvolvimentodo ensino. O própriogovernador homologou decisãodo Conselho Estadual de Educaçãonesse sentido. Contraditoriamente,porém, vem debitando taisdespesas na conta da educação eno orçamento das universidades.“Tudo isso”, declara Callegari,“para construir os percentuaisobrigatórios, que na verdade nuncaforam atingidos”.O relator da CPI afirma quesomente 23% do Orçamento estadualtêm sido aplicados naeducação. “Até despesas com aalimentação de animais doJardim Zoológico são trazidaspara o setor, na tentativade justificar o injustificável”.Com isso, em cincoanos mais de R$ 5 bilhões teriamsido desviados da educaçãopública paulista, consideradostodos os níveis de ensino. RA73


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>EntrevistaJacques Marcovitch“NÃO ACEITO OPESSIMISMO PARALISANTE”por Pedro Estevam da Rocha PomarO reitor da USPcritica o diagnósticode uma universidadeem ruínas, defende oatual modelo degestão e proclama osprincípios da“escassez comresponsabilidade” eda “participação eresponsabilidade”Fotos: Daniel Garcia74


Revista <strong>Adusp</strong>A questão não é nova, mas é mais pertinente do que nunca: auniversidade saberá desembaraçar-se dos rituais burocráticos, doscontroles formais baseados em critérios freqüentemente arbitrários, e quecriam obstáculos e exigências kafkianas para a imensa maioria dosdocentes, mas propiciam a existência de privilégios? Ela será capaz derepensar e transformar seus colegiados e comissões, que reproduzemestruturas de poder tão infensas à democracia?Essa questão foi recolocada na ordem do dia pela publicação de notíciasenvolvendo alguns pesquisadores da USP em casos de desvio oumalversação de verbas públicas destinadas à pesquisa. Problema semelhanteocorreu na Unicamp, que vem de organizar uma comissão sindicanteespecial para apurar as atividades do notório legista Badan Palhares.Há quem amplifique esses episódios, usando-os para reforçar acampanha de depreciação da universidade pública. Mas, para aqueles queestão na linha de frente da defesa do ensino superior público, o que ocorreué que os controles atuais destinam-se a restringir a democracia e não adetectar problemas e abusos reais. Por isso, falharam.✧ ✧ ✧Sobre tais casos e tudo mais que diga respeito à gestão da USP,consideramos importante, para nossos leitores, ouvir a opinião do reitor,professor Jacques Marcovitch, que também exerceu, anteriormente, o cargode pró-reitor de Cultura e Extensão, sendo, assim, um conhecedor dosmeandros da estrutura universitária.No dia 21 de dezembro de 1999, o reitor concedeu longa entrevista àRevista <strong>Adusp</strong>, cujos principais trechos publicamos nas páginas seguintes.Marcovitch considera pontuais e sem maior relevância no contexto da USPos casos trazidos à tona pela imprensa, afirmando, além disso, que ainstituição tomou todas as providências cabíveis. Revela, contudo, queestão sendo reexaminados todos os processos e sindicâncias instauradosnos últimos três anos.Em relação à escolha dos dirigentes universitários, ele defende o modeloadotado pelo Estatuto de 1988, que subordina as consultas amplas ao avaldos colegiados. Sobre estes últimos, entende que é hora de se repensar omodelo departamental, onde “muitas vezes acaba prevalecendo a lógica dopoder”, sem estender essa crítica aos demais colegiados.Marcovitch dá ênfase, quase sempre, às conquistas da USP e ao imensopotencial da universidade, que na sua opinião nem o neoliberalismo écapaz de abalar. Por isso, repele o “pessimismo paralisante”, o “diagnósticode uma universidade em ruínas”.Março 200075


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>- No último períodotem surgido uma série dedenúncias sobre aplicação inadequada,irregular ou até criminosade verbas para pesquisa. E aindaque eventualmente essas denúnciaspossam se prestar a umacampanha que de fato existe, contraa universidade pública, elasrevelam um problema que temfundo real. Ou seja, há muitos indíciosde que há uma aplicaçãoindevida dessas verbas. A USPnão estaria minimizando esses fatos?A USP, nesse sentido, conseguepensar a si mesma para quepossa detectar esses problemas ecorrigi-los, eventualmente?Marcovitch- Penso que paratratar de um aspecto tão pontualcomo esse, porque foram três casosque surgiram este ano, devemoster uma perspectiva um poucomais ampla do momento que estamosatravessando, da nossa evoluçãoe dos desafios que estamos enfrentando.E como estes três casosforam enfrentados pelas suas unidadese como está sendo tratadatoda a questão da ética e dos conflitosde interesses dentro da universidade.Vale a pena entender oentorno no qual estamos vivendo,especialmente a expansão que tivemosna universidade e na sociedadeao longo dessas últimas décadas.Nós tendemos a subestimar aevolução demográfica que tivemosno Estado de São Paulo e no Brasil.Convém sempre lembrar quenós começamos com 17 milhões dehabitantes no Brasil, estamos terminandoo século com 170 milhõesde habitantes. Nunca estivemos vivendouma dualidade tão grande76entre os extremos de renda quenós temos no Brasil. Nunca a evoluçãotecnológica foi tão rápida comoestá ocorrendo neste final deséculo, com seus desdobramentossobre as atividades da universidade.E finalmente vejo que existesim, dentro e fora da universidade,uma consciência de responsabilidadesocial crescente. Tudo issomostra um entorno que exige dauniversidade uma enorme preocupaçãoem preservar tradições e aomesmo tempo construir o seu futuro.A perenidade da instituiçãouniversitária passa a ser uma prioridade.Essa perenidade, a meuver, decorre de alguns fatores. Emprimeiro lugar, a capacidade de teruma sensibilidade muito grandeem relação ao entorno, e como nóssabemos que na universidade convivemmuitas áreas de conhecimento,desde a física até a filosofia,desde a antropologia até a comunicação,isso significa que emcada área do conhecimento nós temostempos próprios e culturaspróprias, a serem respeitados. Osegundo fator são os princípios evalores que, respeitados esses váriosentornos das áreas do conhecimento,são valores de universalismo,de solidariedade, de humanismoque permeiam toda a instituiçãouniversitária. Esses valores debusca de excelência constituem otecido que une uma universidade,que tem uma extraordinária diversidadede áreas de conhecimento.Em terceiro lugar, a descentralização,fundamental em qualquer instituiçãouniversitária, para evitaruma burocratização ou um centralismosufocante, que acabaria porRevista <strong>Adusp</strong>inibir exatamente a sensibilidadedo entorno, e ao mesmo tempo inibiriaa aplicação de princípios e valores,que em cada uma das áreasdeve ter a sua aplicação. Essa descentralizaçãoé muito valorizada edefendida na USP. Finalmente,uma preocupação que assegura aperenidade é o equilíbrio econômico-financeiro.Em outras palavras,nenhuma instituição se torna perenese não preserva esse seu equilíbrio.Temos portanto um entornoem rápida transformação, nuncafomos tantos do ponto de vista deuma sociedade em desenvolvimento,nunca estivemos tão distantesentre os extremos, e temos umauniversidade que tem como vocaçãodefender sua perenidade porqueela se entende como instituiçãomultissecular.Quando ocorrem então casoscomo aqueles que ocorreram, elesdevem ser tratados dentro destaótica. Nos três casos que foram citadosas unidades já haviam tomadoas providências, o Jurídico está— estava e continua — apurandoas responsabilidades, em um doscasos o professor já tinha se demitidopor decisão dele, e o Jurídicoestá cuidando da aplicação das penas.Discordo até da própria formacomo a pergunta é formulada, queé uma tentativa de desqualificarmuito mais do que os casos específicosque ocorreram, desqualificandoa instituição como um todo, oque não me parece que é o caso. Enão são só esses três, nós fizemosum levantamento e estamos estudandotodas as sindicâncias e processosadministrativos feitos nos últimostrês anos. Se esses casos tive-


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000ram uma visibilidade externa, éporque exatamente a universidadetinha cuidado, nos autos, em tratarcom todo detalhe os problemas quejá tinham sido apurados. E a mídiaexterna acaba tendo acesso a essesdocumentos, mas por conflitos entrepessoas que acabaram fazendocom que esses documentos fossemlevados para fora. Penso que devemoslidar com esses casos com amáxima seriedade, lidar tambémcom os outros casos de sindicânciase processos administrativos,retirar deles todas aslições, mas de nenhumaforma nós podemos generalizaresses casos parao coletivo universitário.CASOS DE MAU USO DE VERBAS“Nos três casos citados as unidades jáhaviam tomado providências, oJurídico continua apurando asresponsabilidades e cuidando daaplicação das penas, e em umdos casos o professor játinha se demitido pordecisão dele. Discordo atéda forma como apergunta é formulada,que é uma tentativa dedesqualificar ainstituição”Revista <strong>Adusp</strong>- O sr.publicou um artigo nodia 10 de dezembro, naFolha de S. Paulo, sobreos dez anos de autonomiada USP, fazendo referênciaà fiscalização eao acompanhamentoexercidos pelo ConselhoUniversitário (CO) sobreo orçamento da universidade.Peço que o sr. expliquecomo se dá o controle sobre asverbas de pesquisa nas diferentesunidades.Marcovitch- Em primeiro lugar,há várias formas de ver uma organizaçãohumana. Eu prefiro partirda premissa de que uma organizaçãouniversitária é constituída porprofessores, alunos e funcionáriosimbuídos de propósitos elevados,imbuídos dos valores universitáriosque nós citamos, e dispostos a enfrentaros desafios das adversidades,da escassez com responsabilidade.Feita essa introdução, issonão significa que a universidade,por se utilizar de recursos públicos,não deve continuamente, planejar,como ela faz todo ano, quando daaprovação das diretrizes orçamentárias— e todo ano essa discussãoestá se tornando cada vez mais intensa.No ano passado nós tivemosuma discussão com quatro cenáriospossíveis para o ano de 1999,neste ano nós discutimos o orçamentoda universidade com baseem três alternativas, das quais oCO escolheu uma — a partir daí,nós temos o nosso planejamentode distribuição de recursos. Esseplanejamento de distribuição derecursos orçamentários, recursosque recebemos do Estado, passa aser executado por cada uma dasunidades, unidades estas que seencarregam da gestão da cota-parteque lhes é alocada, dentro decertos critérios propostos pelaCOP e depois executados pelasunidades. Temos o controle dessesrecursos, em grande parte determinadopelos próprios procedimentosdo Estado: o Tribunal de Contasdesempenha um papel contínuode auditoria e nós temos queencaminhar anualmente as nossascontas. E a partir daí temos tambémuma auditoria interna, queresponde às solicitações feitas pelosdiretores. Essa auditoria, noano de 1999, foi reeestruturada eaquinhoada com mais recursos humanos,tanto através defuncionários aposentadosque voltaram a desempenharsua funçãona condição de voluntários,como também novosfuncionários que foramselecionados. Comrelação aos recursos externos,parte-se de duaspremissas: em primeirolugar, que o professortem uma responsabilidadesobre esses recursos;em segundo lugar,que o órgão financiador— refiro-me à Fapesp, àFinep, ao CNPq — nahora em que aloca esses recursos,aloca dentro de critérios e procedimentosde fiscalização que sãoaplicados pelas agências. Então, temosdois sistemas de recursos: um,proveniente de recursos orçamentários,e o outro proveniente de recursosde pesquisa. Os recursos depesquisa que são canalizados pelasentidades externas sofrem não sóum acompanhamento dos colegiados,que vão aprovar esses convênios,como também a fiscalizaçãoexterna pelos órgãos financiadores.77


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>Revista <strong>Adusp</strong>- Falando de todasas atividades, todos os atos davida acadêmica, e não somente deverbas para pesquisa, o sr. nãoconsidera que esse mecanismo deconselhos departamentais, congregações,tem-se mostrado comoalgo muito mais ritual do que verdadeiramenteum controle eficientee inteligente dos atos da vidaacadêmica? Esses organismos nãosão muito vulneráveis ao espíritode corpo e à práticada troca de favores?Marcovitch- Numainstituição dotamanho de umauniversidade comoesta, a divisão emcélulas menores éfundamental para adescentralização.Eu reconheço, sim,que os departamentostêm, ao mesmotempo, resolvidoquestões relativas àgestão das áreas deconhecimento na sua menor unidade,mas ao mesmo tempo imbuiram-sede rituais burocráticosque acabaram sufocando a reflexãocrítica e a discussão de temasque têm mais a ver com o conhecimento,com a lógica das atividades-fim,do que aquilo que acabasendo mais discutido no âmbitodos colegiados, que são os rituaisburocráticos. E muitas vezes acabaprevalecendo a lógica do poder.A questão departamental temque ser repensada na universidade.Por enquanto, não temos outromodelo. Temos universidadesque, mesmo aqui no Brasil, estão78A QUESTÃO DOS DEPARTAMENTOS“Por enquanto, não temos outro modelo.Temos universidades no Brasil queestão experimentando a estrutura deuma unidade sem departamentos.Ela teria uma coordenação deatividades-fins em termos degraduação, pós-graduação,pesquisa e extensão, semnecessariamente distribuir osprofessores pordepartamentos estanques”experimentando a estrutura deuma unidade sem departamentos.Ela teria uma coordenação de atividades-finsem termos de graduação,pós-graduação, pesquisa e extensão,sem necessariamente distribuiros professores por departamentosestanques. Os núcleos sãotão criticados, mas muitos núcleosacabaram se tornando espaços detransdisciplinaridade e de atividadesinovadoras que os departamentosacabaram não podendohospedar. Da mesma forma, osinstitutos especializados, como oInstituto de Estudos Avançados(IEA) e o Instituto de EnergiaEletrotécnica (IEE), conseguiramabrir espaços, que também os museusacabaram ampliando, quenos departamentos tiveram poucapossibilidade de prosperar. Se odepartamento resolveu váriasquestões, não resolveu todas, e épreciso que a universidade encontreespaços onde o conhecimentopassa a ser o foco das discussões.A busca de novos modelos se fazhoje necessária.Revista <strong>Adusp</strong>- Em artigo publicadona Revista da USP (nº 39),o sr. chamou atenção para o desequilíbrioque existe entre a docênciae a pesquisa, dado que se atribuia essa última maior importância,na prática, ou pelo menos muitosprofessores acreditam nisso e,segundo o sr. afirma, passam adescuidar das atividades de docênciapropriamente dita. O sr. tambémmencionou, numa conversacom os membros doConselho de Representantesda <strong>Adusp</strong>,que os departamentosnão têm desempenhadoa contentoa função de avaliaçãodocente, e defendeua existênciada CERT. Que modelode avaliação osr. defende?Marcovitch- ACERT foi criada peloEstatuto de 1988,que avaliou as experiênciasanteriores e propôs a existênciade uma comissão que definiuuma política de avaliação docenteque procuraria assegurar umbalanceamento entre as três atividadesda universidade: ensino, pesquisae extensão. O que ocorreunos departamentos é que, na medidaem que eles são constituídospor professores de uma mesmaárea — e que a avaliação pode significarao mesmo tempo premiação,mas também a punição dosprofessores que não têm cumpridoa atividade mínima — tem sido difícilrealizar a avaliação docente noâmbito do departamento. No en-


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000tanto, algumas unidades têm criadosua comissão de acompanhamentoda atividade docente noâmbito respectivo. A Faculdade deMedicina de Ribeirão Preto é umadelas. Tudo indica que esse é ummodelo descentralizador que podeprosperar. O que observamos éque são mais exceções do que regra.Se pudéssemos ver mais unidadesassumindo a atividade daavaliação docente, nós estaríamosaproximando essaatividade da atividaderealizada pelodocente. O modeloestá em contínuoaprimoramento, eleinclui outros segmentos:a avaliaçãodepartamental, feitapela CPA, e na qualterminamos um ciclopara começar ooutro, levou cincoanos para ser concluída;a avaliaçãoda universidade comoum todo, que é feita anualmentepelo anuário estatístico, e asduas folhas que resumem os indicadoresde evolução da universidade,constituem também outro elementode avaliação. Portanto, achoque seria incorreto imaginar que auniversidade se utiliza da avaliaçãodo docente como o único instrumentode avaliação. A avaliaçãodeve ser sempre vista como umaaferição do cumprimento de metasque devem ser continuamente revistaspela universidade, e ela se dánessas três dimensões: o professor,o departamento e a universidadecomo um todo.Revista <strong>Adusp</strong>- Estou com seuartigo publicado recentemente naFolha, e queria questionar algumascoisas que o sr. menciona.Depois de se referir a uma sériede avanços, especialmente naqualificação do corpo docente, osr. afirma: “Tais avanços não incharamas despesas com o pessoalna USP. Seu corpo docente, de5.609 professores quando foi decretadaa autonomia, hoje é deAVANÇOS DESIGUAIS NA USP (I)“As humanidades exigem de nós atenção todaespecial daqui para a frente. As áreastecnológicas, as biológicas e as básicasbem ou mal conseguiram, ao longodos anos, o tipo de apoio necessário.Carecemos de uma reflexão sobre omodelo de desenvolvimento emescala mundial. A opção queestá-se fazendo pela tecnologiacomo fim exige a mobilizaçãodas humanidades”4.752, e o de funcionários caiu de17.379 para 14.846. As contas estãoem ordem. Não há déficitsnem desperdícios, com as restriçõesorçamentárias habituais nosórgãos públicos”. Queria perguntar:primeiro, se o sr. consideraque havia inchaço no pessoal, tantoem relação aos docentes comoaos demais servidores; e segundo,se o cenário que descreve não émuito otimista.Marcovitch- Estou me baseandoem números. Os números quetemos e que são apresentados nonosso Anuário revelam que a USPacabou promovendo uma maiordedicação à universidade. Veremosque o número de professores emdedicação exclusiva, no RDIDP,aumentou para 77%, e o númerode professores com título de doutoraumentou para quase 89%, oque significa que, ao longo dessesdez anos de autonomia, a USPprocurou, elevando a qualidade doseu corpo docente, elevando a dedicaçãodos seus professores, tornar-semais sensível a demandasexternas. A prova éque a pós-graduaçãocresceu em maisde 100%, e mesmo agraduação cresceu,embora de formamais modesta. Asatividades de pesquisatambém podemser mensuradas,a própria presençada USP nosindicadores da Fapespe do CNPqmostra. O que nãoconsidero um otimismo,longe disso, mas entendoque do outro lado o pessimismoparalisante, muitas vezes propalado,é apresentado como o diagnósticodefinitivo de uma universidadeem ruínas. Procuro mostrar que estauniversidade tem seu dinamismo,seus indicadores, seus resultados.Ela alcança no final deste século,depois de dez anos de autonomia,um patamar que mostra vitalidadee dinamismo. Isso não significaque ela está numa condiçãode perfeição ou de estabilidade.Ela tem que continuamente questionar-see procurar novos patamares.Se, por exemplo, formos abrir79


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>esses números, veremos que, emfunção das áreas (biológicas, exatas,humanidades), as humanidadesexigem de nós atenção toda especialdaqui para a frente. As tecnológicas,as biológicas, as básicasbem ou mal conseguiram, ao longodesses anos, o apoio e o tipo deapoio necessário para seu desenvolvimento.Nós estamos hoje carecendode uma reflexão críticasobre o modelo de desenvolvimentonão só do Brasil, mas em escalamundial: a opção que está-se fazendopela tecnologia como fimexige hoje uma mobilização dashumanidades.80Revista <strong>Adusp</strong>- O sr. não consideraque a redução no númerode professores, e também a reduçãode verbas que tem ocorrido,podem vir a ameaçar isso quechamou de “cenário promissor”no seu artigo?Marcovitch- Quem assume umafunção de direção — eu incluo oschefes de departamento, diretoresde unidades e os próprios ocupantesda Reitoria — deve analisar, deforma cada vez mais apurada, aevolução dos recursos. Mas, de outrolado, as adversidades na área derecursos (e 1999 foi um ano muitodifícil), a falta de recursos, não legitimauma atitude de passividadeou de conformismo, deixando entãoa instituição quase que aguardandoessa volta de recursos maisadequados às suas necessidades.Até porque, desde o nascimento dauniversidade, não conheço nenhumaépoca em que todos os recursosnecessários tenham sido colocadosà disposição da universidade. Nuncapodemos esquecer que uma universidadeé um projeto de ciclolongo. Sendo projeto de ciclo longo,cujos resultados só se sentem alongo prazo — e a sociedade sempreconfrontando demandas imediatasna área de saúde, de transporte,mesmo na área de educaçãoa preocupação com o ensino fundamental,o ensino de nível médio —,tudo isso acaba criando para a universidadeuma posição de isolamentona defesa dos seus recursos.Mais do que isso, esta universidadeestá muito engajada na pós-graduaçãoe na pesquisa, e os resultadosda pós-graduação e da pesquisa sãoainda a mais longo prazo. Tudo issonos leva a uma situação em que épreciso defender os recursos dauniversidade, mas sem em nenhummomento entender que a escassezé desculpa para a paralisia e o derrotismo.O artigo que você citouprocura exatamente dizer isso. Senós temos dificuldades, elas ocorremem todas as universidades domundo, não só na USP, porque asdemandas sociais estão se tornandocada vez mais explicitadas, e os retornosque uma universidade podeoferecer são sempre de médio elongo prazo. Esse problema se tornaainda mais agudo nas democracias,por mais relativa que seja ademocracia. Porque obviamente aspressões sociais acabam se fazendosentir pela via do legislativo. Queronesse momento lembrar que o legislativode São Paulo sempre foi


Revista <strong>Adusp</strong>UNIVERSIDADE E NEOLIBERALISMO“O papel da universidade pública é estar a serviçoda sociedade como um todo, num horizonte de médioe longo prazo, formando as gerações vindouras parase tornarem lideranças no processo de transformação.Apesar das adversidades, a universidade superoumomentos muito mais difíceis do que o atual,que é qualificado de modelo neoliberal”bem mais sensível à questão dapesquisa e do ensino superior doque outros legislativos, tanto noBrasil como no exterior.Revista <strong>Adusp</strong>- O sr. não consideraque o chamado modelo neoliberalameaça a universidade pública?Marcovitch- Uma universidadepública deverá prevalecer em qualquermodelo escolhido pelos partidospolíticos que, no embate periódico,fazem prevalecer uma correntede pensamento na dimensão dapolítica econômica. Penso que auniversidade, que deve ser críticaem relação aos impasses que a sociedadeenfrenta, não pode sentirseameaçada por um ou outro modelo.Ela deve ter o seu projeto, asua missão. Deve ter a sua visão defuturo, olhando sempre para a formaçãode jovens que devem ser imbuídosde um pensamento crítico.Jovens que devem, durante seu períodouniversitário, ter pelo menosum convívio com várias correntesde pensamento, para que eles possamse tornar os agentes de mudança,na medida em que passam aamadurecer como cidadãos e tambémcomo profissionais. O papel dauniversidade pública é estar a serviçoda sociedade como um todo,num horizonte de médio e longoprazo, formando as gerações vindouraspara se tornarem liderançasnesse processo de transformação.Apesar das adversidades, a universidadesuperou momentos muitomais difíceis do que o atual, que équalificado de modelo neoliberal.Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>- Queria falarum pouco sobre a parceria possívelentre a universidade e as empresasprivadas. Como o sr. concebeessa possibilidade e o que jáexiste em andamento hoje?Marcovitch- Sempre prefiro entendera relação da universidadecom os vários segmentos da sociedade,onde as empresas nada maissão do que uma célula dentro deuma sociedade extremamentecomplexa, juntamente com sindicatos,entidades não-governamentais,associações que acabam reunindopopulações excluídas, e tudoisso constitui um entorno externo.Refiro-me ao Movimento SemTerra (MST) por exemplo, com oqual a Faculdade de Filosofia acabade assinar um convênio, pelavia da chamada Fundação para oEstudo da Terra do Estado de SãoPaulo, portanto é uma fundaçãoque pertence à Secretaria da Justiçae da Cidadania. Existe um universoexterno, constituído por váriosagentes sociais, e as empresasfazem parte desse universo externo.Cada área de conhecimentotem uma vocação própria de relacionamentoexterno. Obviamente,as escolas de engenharia, refiro-metanto à Poli quanto à Escola deEngenharia de São Carlos, evidentementetêm uma vocação maiorpara o relacionamento com o setorempresarial. Agora, quando vamospara áreas como a psicologia, comoa educação, como a Faculdadede Filosofia, Letras e Ciências Humanas,encontramos outras vocaçõesde relacionamento, que podemser com as empresas ou comoutras instituições. Cabe à universidadeassegurar essa relação entrea conexão externa, o pensamentocrítico e o ensino e a pesquisa quese alimentam dessa relação externa.E aí se coloca a grande diferençaentre uma instituição de prestaçãode serviços e a universidade.Os serviços que serão oferecidospara a empresa ou para a comuni-81


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>dade do Butantã, os extremos, sãoserviços que devem alimentar apesquisa e o ensino. Recentemente,a nossa Faculdade de Saúde Públicafez um estudo sobre a incidência,por exemplo, de cáries napopulação de 133 municípios, coma participação das nossas faculdadesde Odontologia, colocando esseestudo a serviço das autoridadesna área de saúde, e mais, a serviçoda Organização Mundialda Saúde.Revista <strong>Adusp</strong>- Voltandoà questão doscontroles e dos organismosda universidade.Hoje já há eleição paracargos de direção emvários níveis. Queriasaber se é possível, nasua opinião, aprofundaressa experiência, eque avaliação o sr. fazdessa participação dossegmentos que compõema comunidadeuniversitária na escolhados seus responsáveis.Marcovitch- Esse é,talvez, o tema central da questão dopoder na universidade. Existe umbinômio que sempre deve ser lembrado,que é o binômio da participaçãoe depois da responsabilidade.Certamente o Estatuto de 1988 émuito mais participativo do que osanteriores, e, ao longo dos anos,abriu a universidade para uma maisampla participação, entendendo noentanto que deveria haver uma relaçãoentre participação e responsabilidade.Numa universidade tãogrande como a nossa, existe uma82preocupação, sim, em abrir umaparticipação sem responsabilidade— isto é, uma chamada participaçãouniversal, onde todos podemvotar e definir qual é o eleito, querseja no departamento, numa faculdadeou na Reitoria. As consultassão feitas no âmbito informal, masdepois os seus resultados são levadosaos colegiados, e os colegiadosdecidem, dentro desse binômio dePODER E DEMOCRACIA NA USP“As consultas são feitas no âmbitoinformal, mas depois os seus resultadossão levados aos colegiados, e oscolegiados decidem. Por quê? Peloreceio da partidarização doprocesso de escolha dosdirigentes. Há umapreocupação, sim, de ver avia partidária determinandoo processo sucessóriodentro de umdepartamento, de umaunidade, ou mesmo noâmbito da universidade”participação e responsabilidade.Por quê? Pelo receio da partidarizaçãodo processo de escolha dos dirigentes.Essa universidade é muitogrande. Ela é conectada com a sociedade.Há uma preocupação, sim,de ver a via partidária determinandoo processo sucessório dentro deum departamento, de uma unidade,ou mesmo no âmbito da universidade.Isso poderia ser, é, fatal parauma universidade. Neste sentido, oEstatuto de 1988 amplia a participação,permite, como muitas unidadesjá o fazem, as consultas à comunidade,mas transfere o processo deescolha dos dirigentes para os colegiados,que são colegiados amplos.Agora, tudo isso está sujeito a umacontínua análise crítica e uma contínuarevisão. Nós encaminhamos atodos os diretores, por decisão doCO, uma consulta para o ano 2.000,solicitando que eles nos dêem umaorientação sobre os temas prioritáriosno próximo biênio,não só na questão daescolha dos dirigentes,mas sobre todos os temasda universidade.Uma prioridade quemuito provavelmentedeverá surgir é a valorizaçãodos recursos humanos.O que determinao êxito de uma instituiçãoé a qualidadedos recursos humanosque ela é capaz de reter.Mas as questões depoder, como essa quefoi citada agora, a formada escolha dos dirigentes,também poderãosurgir como temasa serem tratados no âmbito do CO.Revista <strong>Adusp</strong>- Então, na opiniãodo sr., os colegiados são imunesa essa partidarização?Marcovitch- Não, ninguém éimune a uma incidência externa, elaé até saudável como provocação,como reflexão. Mas na medida emque temos colegiados que têm aresponsabilidade da escolha finaldo dirigente — e que vão assumirdepois, junto com esse dirigente,como mecanismo de contrapoder, a


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000gestão do departamento, da faculdadee da universidade — nós temosaí uma corresponsabilidade. Avantagem de se ter um colegiadoque ao mesmo tempo é um mecanismode contrapoder ao própriodirigente escolhido, que tem umaresponsabilidade grande na escolhado dirigente, é que a gestão da universidadese torna mais responsável,olhando-se para o longo prazo.A idéia de uma escolhafeita por pessoas quedepois não vão ter umacorresponsabilidade nagestão pode criar umaconjuntura que talvezfaça sentido numa determinadahora, masque na hora da execuçãoda passagem dosdois ou quatro anos podeimplicar um fosso deresponsabilidade, queno caso de uma universidadepode ser fatal.Revista <strong>Adusp</strong>- Paraencerrar, volto a fazera pergunta inicial,na forma de provocação:a USP consegue pensar a simesma?Marcovitch- Uma boa universidadeé aquela que consegue sonharo seu futuro e concretizá-lo. Não tenhodúvida de que no âmbito daUSP nós temos em todos os departamentos,todas as unidades, e tambémno âmbito dos colegiados superiores,talentos que estão permanentementesonhando esse futuro.Sonhar esse futuro significa a perenidadeda instituição, a sensibilidadeao entorno externo, estar continuamenteconectado com essemundo externo (e não só numa escalaregional, mas mundial), pautar-sepor princípios e valores, confiarno outro, como célula que temcondições de realizar projetos e assegurarsempre o que nós chamaríamosde um equilíbrio dinâmico.A USP tem todas essas condiçõesde sonhar o seu futuro. Agora cabea segunda parte: é concretizar esseAVANÇOS DESIGUAIS NA USP (II)“Não temos uma universidadehomogênea do ponto de vista dacapacidade de concretizar os seussonhos. Mesmo quando somosexternamente reconhecidos, e vários dosnossos professores sãopremiados, é evidente que estaqualidade, esta excelência,não está homogeneamentedistribuída. Podemosaprender com estasunidades, estas células,que conseguemconcretizar seus sonhos”futuro. Isto está nas mãos de cadaum dos professores e de cada umadas células — e aí não me refiro somentea departamentos, mas aosnossos museus, nossos institutos,nossas unidades. Em muitas áreas,isso já está ocorrendo. E não temos,devemos reconhecê-lo, uma universidadehomogênea do ponto de vistada capacidade de concretizar osseus sonhos. Mesmo quando nóssomos externamente reconhecidos,e vários dos nossos professores sãopremiados, como Sérgio Ferreira,por exemplo, que acaba de recebero Prêmio México de Ciência e Tecnologia,é evidente que esta qualidade,esta excelência, não está homogeneamentedistribuída. Podemosaprender com estas unidades,estas células, que conseguem concretizaros seus sonhos. Na medidaem que multiplicamos as célulasque concretizam esses sonhos, auniversidade sai consolidada. Umauniversidade não é umapirâmide, constituídanuma hierarquia verticalde departamentos,unidades, Reitoria.Uma universidade pauta-sepela frase da Praçado Relógio: “Nomundo da cultura, ocentro está em todaparte”. Onde a Reitoria,a direção da unidade,o próprio departamentoconstituam célulasdistribuídas horizontalmente,e que se alimentammutuamentepara que as células dasatividades-fim possamviabilizar os seus projetos,seus sonhos em construção. Cabeà Reitoria apoiar estas células,não só as mais dinâmicas, comoaquelas que por limitações estruturaisestão tendo mais dificuldadede sonhar e de construir o seu futuro.Na medida em que cada umadas células assume sua posição dinâmica,a universidade se consolida.Ela depende exclusivamentedos seus professores, alunos e funcionários,e muito menos de umaadministração central que pode asseguraro seu futuro. RA83


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>AUNIVERSIDADE,O POSSÍVELFUTURO EUM CERTOPASSADORoberto RomanoProfessor da Unicamp84


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000Do Renascimento até o período romântico, a crônica dos campi mostra aperpétua oscilação entre o desejo de autonomia e a busca de recursos externos,fornecidos pela Igreja ou pelos governos. Para manter a autonomia, regrasforam produzidas, todas esbarrando na necessária manutenção material, quelimita qualquer independência. Imposto no século 19, o modelo napoleônico deuniversidade atenuou o papel dos Conselhos em proveito da iniciativa do Reitor.Este paradigma, assumido pela maioria dos campi modernos, causoudesequilíbrios na condução dos assuntos científicos e acadêmicosToda análise da universidade futuraprecisa se precaver contra as marcasdo passado. A instituição universitáriasurgiu com a vida urbana,no século 12, como reação ao mundofeudal,fruto de uma lentaquebra de valores espirituaisgregos e latinos. AIgreja, única instituiçãoque manteve a língua, asnormas jurídicas, as formassocietárias romanas,durante a primeira IdadeMédia, não possuía ummeio amplo de se reproduzir,em termos noéticose funcionais. As escolasdos bispados e os mosteiros,geraram as bases dasfuturas universidades.No fim do feudalismo,e com a gênese dos Estadosnacionais e do poderabsoluto dos reis, a nascenteuniversidade foi disputadapelas instituiçõesreligiosas e políticas, delasrecebendo marcas indeléveis.A crônica dos campi, de Gerson (Renascimento)até Humboldt (no período romântico), mostra aperpétua oscilação entre o desejo de autonomia e abusca de recursos externos, fornecidos pela Igreja oupelos governos.Para manter a autonomia,regras foram produzidas,mas todas esbarrandona necessária manutençãomaterial, quelimita qualquer independência.As maneiras de administraro complexo universitáriovariaram relativamentepouco duranteséculos. Conselhos definiama ratio studiorumenquanto executivos acadêmicos,em certo prazo,administravam os negóciosurgentes. Os mandatosdos reitores se caracterizarampor longosanos ou períodos reduzidos.Em certas universidades,o mandato reitoralchegou a se definir emtermos de meses apenas.A própria complexidade dosproblemas, a cada instante maisárduos, exigiu maior número departícipes: pesquisadores,técnicos, alunos, funcionários,fornecedores de matériasprimas,editores etc. Maiornúmero de implicados esuperconcentração emorganismos dirigentes: nistoreside o nó górdio que ameaçaestrangular as universidades85


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>O modelo napoleônico de universidade, impostono século 19, atenuou o papel dos Conselhos emproveito da iniciativa que reside no Reitor. Este paradigmafoi assumido pela maioria dos campi modernos.Isto causou desequilíbrios na condução dosassuntos científicos e acadêmicos.A própria complexidade dos problemas, a cadainstante mais árduos, exigiu maior número de partícipes.Refiro-me aos pesquisadores, técnicos, alunos,funcionários, fornecedores de matérias-primas, editores,instrumentos de pesquisa e de análise, poderese opinião públicos etc. Maior número de implicadose superconcentração em organismos dirigentes:nisto reside o nó górdio que ameaça estrangular asuniversidades de todos os países.Administrar um campus, hoje, não raro, é tarefamais difícil do que reger países inteiros, dadas as múltiplasimplicações políticas, ideológicas, financeiras,científicas e até mesmo religiosas da tarefa. Na verdade,os desafios universitários são a outra face dos óbicesque impedem nações inteiras de se erguerem, autônomas,frente às demais.Povos sem democraciadificilmente terão universidadesdignas deste nome.Universidades presasao modelo napoleônico,onde a decisão do executivoé primordial, estão setornando enormes corposparalíticos, acorrentadospor burocracias que seafastam, céleres, das tarefasessenciais do plano intelectual.Deste modo, osgovernos dos campi estãotravados, com seus Conselhose demais orgãos legislativosimpotentes e comsua administração submersanos detalhes mais insignificantese nos assuntosmais estratégicos, sempossível escolha e triagemprudente.86Todos estes entraves (parca democracia, modelofundamentado no Executivo universitário, pequenalegitimidade dos instrumentos de consulta) fazemdas nossas universidades instituições que se afastamdo alvo alegado (o ensino, a pesquisa, a extensão comunitária),em proveito de uma luta sem quartel pelasposições de mando e de projeção política. Todosestes itens foram herdados do pretérito político e social,ao longo de praticamente mil anos.É difícil corrigir semelhantes desvios. Uma radiografiados campi brasileiros (os públicos, porque, noBrasil, salvo algumas universidades confessionais,pouquíssimas instituições privadas de ensino superiortêm perfil universitário, não contando com organismosde representação reais, como Congregação,Comissões, Conselhos) mostra que hoje, dado o estrangulamentofinanceiro, as tarefas primordiais deprodução científica e docência têm sido muito prejudicadas.Na busca de se livrar de várias despesas, os governos(estaduais, municipais, federal) encontraram umardil que se torna cadavez mais importante nacaptação de recursos paraos docentes e pesquisadores,e para as próprias reitorias.Trata-se das chamadas“consultorias” eseus convênios, através daextensão universitária.Até data recente, as próreitoriasde extensão ostentavampequeno prestígionos campi. Hoje, elassão as mais importantes.Diminuindo as verbas,aumentando as tarefas docorpo de professores e decientistas, os recursos paraum pagamento dignodo fim universitário (quadros,compra de instrumental,livros, arquivos,etc) mostram-se insuficientesde modo absoluto.Os governos encontraram umardil que se torna cada vez maisimportante na captação derecursos para docentes,pesquisadores e as própriasreitorias. Trata-se das chamadas“consultorias” e seus convênios,através da extensãouniversitária. Até data recente,as pró-reitorias de extensãoostentavam pequeno prestígionos campi. Hoje, elas são asmais importantes


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000Assim, os professores só vislumbram, como salvação,deixar que os fundos públicos financiem a estruturamais onerosa da universidade (prédios, salárioruim para os funcionários e manutenção de “base”para os pesquisadores), procurando aumentar os saláriose os meios de trabalho nos referidos convênios,efetuados com firmas particulares ou com governose demais instituições civis.Em certos departamentos, tudo isso é piorado pelacriação de serviços “remunerados” de forma miserável.Alguns docentes, iniciantes ou não, aceitamreceber pouco mais de cem dólares por suas aulas.Isto, com cumplicidade dos pares que podem recorrerà “extensão”. No prisma ético, isto gera professoresde classes distintas: os de “primeira”, que podemobter excelentes (em termos financeiros) convênios,os que atingem tratos menos lucrativos, e umproletariado professoral, sem direitos ou esperanças,que tende a crescer em termos numéricos. Os alunos,supostos fins do ensino, recebem, deste modo,lições de explorados do espírito, sem maiores meiosde ampliar seu universoespeculativo e sem horizontespráticos dignosda vida moral saudável.Será esse um caminhoirreversível? Talvez.Mas tudo indica que osavanços tecnológicos, comoa informática, possibilitandoagilizar procedimentos(do ensino àpesquisa, passando pelaadministração), e demaisinstrumentos de comunicaçãoe gerenciamentocoletivo, podem trazeralguma forma de autonomiapara a comunidadeacadêmica. Por outrolado, os mesmos instrumentospodem ajudar nademocratização real dasdecisões universitárias,interna e extra corporis.Tudo indica que os avançostecnológicos, como a informáticae demais instrumentos decomunicação e gerenciamentocoletivo, podem trazer algumaforma de autonomia para acomunidade acadêmica. Poroutro lado, os mesmosinstrumentos podem ajudar nademocratização real das decisõesuniversitárias. Um Conselho“virtual” pode abarcar auniversidade no seu todoHoje, os Conselhos “empíricos” atingiram um limitea partir do qual não podem mais se ampliar.Um Conselho “virtual” pode abarcar a universidadeno seu todo. Pontos a serem debatidos e votados,podem sê-lo na própria rede virtual, recolhendo ascontribuições de todos os segmentos. Os votos tambémpodem ser ampliados numericamente. As correçõesde rota serão facilitadas. Os problemas, notese,continuarão difíceis e sempre mais complexos.Mas será possível discuti-los de modo amplo e profundo.Ampliando-se o corpo deliberativo, é possível diminuiras funções executivas, dando-se aos docentesque hoje se empenham nas administrações a oportunarecuperação da pesquisa e docência. O tempo dosmandatos pode ser abreviado, possibilitando-semaior democracia nas decisões. Claro, todos esteselementos positivos podem-se transformar em pesadelo,com uma superconcentração de poderes universitários,e o conseqüente exílio dos ideais democráticosno interior dos campi.Os novos meios de comunicaçãopodem ser dirigidospara ambos os lados, a democraciaou o autoritarismo.A herança napoleônica dasnossas universidades, que é amais forte no imaginário, nospensamentos e na prática,pode se tornar a grande vencedora,em detrimento doespírito científico e do ensinoreal. Mas ela pode, pelaprimeira vez, ser atenuadaao máximo. E isto dependenão tanto de elementos especulativos,mas de vontadepolítica, e de grande dignidade.Sem estes elementos, osintegrantes éticos da vidaacadêmica já estão derrotadospelas tendências burocráticasque levaram as instituiçõesuniversitárias às aporiasde nossos tempos. RA 87


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>NOVOS ATORES EM CENADenise CasattiAssistente de RedaçãoPedro Estevam da Rocha PomarEditor da Revista <strong>Adusp</strong>Em tempos de profunda crise social, cabe indagar sobre os papéis daextensão universitária e sobre a atenção efetiva que as universidades vêmdedicando a essa atividade. Nos últimos anos, se é verdade que a extensãotem sido relegada a um plano secundário, não é menos verdadeiro quesurgiram novos atores neste cenário: os movimentos sociais organizados, ademandar uma intensa interação.Inúmeros projetos, aproximando esses grupos sociais das universidadespúblicas estaduais e federais, buscam a construção coletiva de um novoconhecimento, ou a democratização do acesso a saberes antes inacessíveispara amplos contingentes de brasileiros da cidade e do campo.Abrem-se, desse modo, amplas perspectivas para a extensão, rejuvenescidapor essa imersão na realidade social e no mundo do trabalho.Na Faculdade deSaúde Pública daUSP, uma parceriainiciada hácinco anos com aSecretaria Estadualde Saúde, o Sindicato dosBancários de Campinas e região ea Federação dos Sindicatos Bancáriosde São Paulo e Mato Grossodo Sul resultou na publicação deum livro sobre LER, sigla que designaas lesões por esforço repetitivo,doença que atinge pelo menos40 000 bancários no Brasil.A pesquisa de campo sobreLER compreendeu 5 464 trabalhadoresde cinco bancos estatais,88quatro de Campinas e um de SãoPaulo, com recursos que totalizaram245 mil reais, dos quais 90%vieram da Secretaria do Estado daSaúde e o restante do sindicato eda federação. A Faculdade de SaúdePública forneceu recursos materiais,humanos e infraestrutura.O sindicato financiou a publicaçãodo livro LER - detecção precocee suas relações com gênero, idadee função, com tiragem de 3 000exemplares. Socializando-se o conhecimentoproduzido, quer-sealertar a categoria contra essadoença ocupacional.“Em 1995, percebemos que onúmero de casos de LER vinhacrescendo assustadoramente. Algotinha de ser feito em termos deprevenção. Organizamos um debatecom a participação dos trabalhadoresadoecidos, e todos os gruposde trabalho apontaram a necessidadede uma atividade de detecçãoe diagnóstico precoce”, explicaWaldney José Biz, diretor de saúdedo Sindicato dos Bancários deCampinas. “Na mesa de negociação,precisávamos de dados científicos,e nada melhor do que a USPpara nos dar esses dados”.De acordo com Biz, os resultadossuperaram as expectativas.“Conseguimos dados que eramdesconhecidos. Por exemplo: por


Revista <strong>Adusp</strong>que as mulheres adoeciam emmaior número? Descobrimos quea LER ataca mais o pessoal de baixoescalão, escriturários e caixas,onde as mulheres são maioria. Asmulheres são discriminadas e nãoocupam cargos de chefia. Nas cercade 260 agências bancárias da região,nenhuma mulher é gerente”.A extensão universitária é umaatividade prioritária para o professorHerval Pina Ribeiro, coordenadorda pesquisa. Autor de doisprojetos em andamento envolvendoconvênios com sindicatos, e outrosdois em fase de discussão, eleressalta que o importante, em trabalhosdesse tipo, é montar as parceriasresguardando a independênciae a missão de cada uma das diferentesinstituições envolvidas.Outro projeto interinstitucionaldesenvolvido pelo professortem como objetivo realizar o censodomiciliar de saúde na regiãode Osasco. A idéia é disponibilizaros dados para que os municípiospossam administrar as questõesde saúde baseando-se nas necessidadesda população: “Pretendemosfazer todo o levantamentode dados em tempo real. Acada mil domicílios faremos a primeiraapreciação e já tentaremosviabilizar uma discussão com aspartes envolvidas”. O projeto envolvea Secretaria Estadual deSaúde, a Prefeitura de Osasco, aEscola Paulista de Medicina(Universidade Federal de SãoPaulo) e dezenas de entidadessindicais e populares.Entre obter as informações eexecutar uma política social existeuma distância. “Políticas públicasHerval Ribeiro: é preciso valorizar a extensãoprecisam ter continuidade e paraisso é necessário existir movimentosocial organizado. A comunidadeprecisa atuar para que os dirigentesfaçam o que seja de interessepúblico”, esclarece Ribeiro.Embora projetos dessa naturezasejam importantes, o professor dizque não são prioritários na universidadee nos órgãos de financiamento,pois falta identificação entreessas instituições e a sociedade.“Pesquisas abertas, que não têmmetodologia e resultados dentro doescopo acadêmico tradicional, nãorecebem financiamento”, revela.No seu entender, as atividadesextensionistas serão valorizadas àmedida que os trabalhos, que sãode longo prazo, se tornem mais visíveis,que se mostre sua factibilidadee que se compreenda queciência não se faz esperando resultadosimediatos. “A ciência se fazpor tentativas. Devem-se premiaras tentativas porque elas em simesmas são descobertas.”Saúde no campoMarço 2000Daniel GarciaEm Araraquara, na Faculdadede Odontologia da Unesp, os docentesda disciplina de Odontopediatria,dois estagiários da área eos quartanistas do curso de graduaçãotêm um contato direto comas crianças do assentamento BelaVista, do MST. O atendimento clínicoé realizado no posto de saúdedo local durante oito horas semanais.Há também o trabalho educativo.Numa escola situada no próprioassentamento, os alunos doensino fundamental recebem informaçõessobre saúde bucal. Forada sala de aula, atividades lúdicascomo gincanas, jogos, brincadeirase peças teatrais buscam conscientizaras crianças da importância decuidar dos dentes.O projeto é resultado de umaparceria entre a Prefeitura de Araraquara,que fornece o material deconsumo e o transporte, e a Faculdadede Odontologia. Segundo a89


Março 2000professora Angela Cilense Zuanon,coordenadora do trabalho,após cinco anos de atendimentoobservou-se que as doenças bucaisestão sendo controladas e que ascrianças estão mais informadas.Em 1999, foram realizados 394atendimentos em 73 crianças.Além desse projeto, Angelacoordena, juntamente com o professorCyneu Aguiar Pansani, o trabalho“Promoção de Saúde e AtendimentoPrecoce”, em que casas elotes do assentamento são visitadoscom o objetivo de examinar criançasde zero a quatro anos de idade.Esclarecer as famílias sobre a importânciado atendimento odontológicoprecoce faz parte do trabalho,que é financiado pelo ConselhoNacional de DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico (CNPq).A vez dos sem-terraMil jovens de todo o país chegaramà Unicamp no dia 19 de fevereiro.Não eram calouros: foram selecionadosnos assentamentos doMovimento dos Sem-Terra (MST)para participar do 2º Curso sobreRealidade Brasileira. Durante dezdias assistiram a aulas e palestras.Foi a segunda vez que a Unicampcedeu suas instalações para o MST.Revista <strong>Adusp</strong>Em julho do ano passado aconteceuo primeiro curso, e o próximo estámarcado para fevereiro de 2001.Cursos semelhantes foram ministradosna Universidade Federal do Pará(UFPa) e na Universade Federalde Minas Gerais (UFMG).A USP também aproxima-sedos sem-terra, não diretamente,mas por intermédio de convênio,assinado em novembro de 1999,entre a Faculdade de Filosofia, Letrase Ciências Humanas e a FundaçãoInstituto de Terras do Estadode São Paulo (Itesp). O convênio,com duração de cinco anos,prevê “ações conjuntas nos camposda educação, pesquisa e exten-MST “OCUPA” OS CAMPIEm 1986, quando Bernardo Mançano era alunodo curso de Geografia da USP e fazia a disciplinaGeografia Agrária, o professor Ariovaldo de Oliveirasugeriu a ele que procurasse estudar o MST, que davainício, então, às primeiras ocupações de latifúndios.Desse contato surgiu, posteriormente, o convitefeito a Mançano por lideranças dos sem-terra, paraque ele escrevesse a história do MST, e ele fez dissosua tese de doutorado, que acaba de concluir na USP.Hoje, pode-se dizer que Mançano engajou-se inteiramenteno intercâmbio da universidade com omovimento social. Professor do Departamento deGeografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia daUnesp, campus de Presidente Prudente, ele é tambémo responsável pelo Setor de Educação do MST,o qual procura garantir a existência de escolas paracrianças e jovens em todos os acampamentos e assentamentosdos sem-terra, bem como cursos de alfabetizaçãode jovens e adultos.Uma das principais frentes de atuação do Setorde Educação do MST é a formação de professores."Temos viabilizado convênios para criar cursos dePedagogia da Terra: em 1998 com a Universidade deIjuí (Unijuí), em 1999 com a Universidade Estadualdo Mato Grosso (Unemat) e agora com a UniversidadeFederal do Espírito Santo (UFES). Neste anoestaremos formando em Ijuí, no Rio Grande do Sul,a primeira turma: 60 alunos oriundos do MST, professoresde acampamentos e assentamentos de todoo Brasil, e que tinham apenas o segundo grau”, informaMançano. Trata-se de cursos de dois anos emeio de duração, de nível superior, e que concedem,portanto, diploma universitário. “Nosso objetivo, depois,é batalhar a pós-graduação”.Todos esses cursos são em parte presenciais, e emparte à distância, com textos didáticos e relatóriostrocados pelo correio.DocumentaçãoOutro fruto das iniciativas do professor é o Centrode Documentação do MST, que funcionará noCentro de Memória da Unesp, e deverá ser abertoaos interessados, para consulta, em agosto desteano. “A idéia surgiu do projeto de escrever a históriado MST. Visitei 22 estados onde o movimento está90


Revista <strong>Adusp</strong>No ginãsio da Unicamp, música para os sem-terrasão”, por meio da “ampliação deconhecimentos dos técnicos, docentes,alunos e populações ruraisatendidas pelo Itesp”, isto é, fundamentalmenteserão beneficiados osAntoninho Perri/UnicampMarço 2000contingentes humanos organizadospelo MST no estado de São Paulo.Prevê-se, ainda, “intercâmbiodas políticas, programas e metodologiasdesenvolvidas pelas respectivasinstituições, dentre as quaismediação de conflitos fundiários,regularização fundiária, geoprocessamento,cartografia, estratégiade pesquisa e elaboração de laudosantropológicos”, este últimoitem concernente às comunidadesquilombolas. De acordo com a diretorade formação e promoçãoinstitucional do Itesp, Márcia ReginaAndrade, é um privilégio fazerum convênio com uma instituiçãouniversitária desse porte: “Asociedade tem que saber que aUSP de fato está voltada às questõessociais”. Na sua opinião, essapreocupação não é comum nasuniversidades. RAorganizado, recolhi nessa pesquisa teses, livros emonografias, entrevistei 156 pessoas no Brasil inteiro.Então, nasceu a idéia de criarmos o Centro deDocumentação”, relata Mançano.O convênio de criação do Centro de Documentaçãofoi assinado em setembro de 1999 pelo reitorda Unesp, Antonio Manuel dos Santos, e por JoséTrevisol, presidente da Associação Nacional de CooperaçãoAgrícola, representante legal do MST.“É extremamente coerente que USP, Unesp,Unicamp realizem convênios com o MST, porqueelas são espaços geradores de conhecimentos da históriae da realidade brasileiras, e o MST é um dosprincipais movimentos de ressocialização da populaçãopobre do Brasil”, sustenta o professor. “Sozinhoo movimento não consegue atuar com mais competêncianesse trabalho, porque na luta pela terra elevai fundo, mas quando chega na parte do desenvolvimentoeconômico do assentamento é fundamental oacesso ao conhecimento. Nesse sentido, a Universidadetem tudo para contribuir”, explica.Um convênio com a Universidade de Brasília(UnB), envolvendo professores desta instituição e daUnesp, Unicamp, Universidade Federal Rural doO professor Mançano e João Pedro Stédile,um dos líderes do MSTArquivo pessoalRio de Janeiro (UFRRJ) e Universidade Federal doParaná (UFPR), tornou viável a realização de umcurso de administração de cooperativas, destinado aagrônomos, técnicos agrícolas e administradores decooperativas do MST.Mançano usa uma frase de efeito para definir oque está acontecendo: “O MST está ocupando auniversidade”.91


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>DÉCIO, ANTES DE TUDOUM CRÍTICO TEATRALClovis GarciaProfessor Emérito (aposentado) da Escola de Comunicações e Artes da USPFotos: Agliberto Lima/AE92


Revista <strong>Adusp</strong>Com a morte deDécio de AlmeidaPrado — ocorridaa 3 de fevereirodesteano — desapareceaquele que entre nós, os críticos,era denominado “o Papa daCrítica Teatral”, com certa dose debrincadeira mas com grande fundamentona realidade. De fato, foiDécio quem estabeleceu na imprensabrasileira o conceito antigode que a crítica de Arte, na qual seinsere a teatral, é uma obra literária,com princípios próprios, queexige conhecimentos e preparaçãoespecíficos. Por esse conceito, acrítica teatral passou a ser respeitadanos jornais e revistas nacionais,com um espaço adequado. Oseu falecimento se dá no momentoem que a nossa imprensa confundecrítica de Arte com reportagem,improvisa críticos teatrais ereduz o espaço destinado à crítica.Décio de Almeida Prado foium espírito polivalente: formadoem Filosofia e em Direito pelaUSP, foi professor, cronista, ensaísta,historiador e, antes de tudo,um crítico teatral que, além domais, tinha a experiência de ator ediretor de teatro. Aliás, a Faculdadede Direito, na época, exercia afunção que hoje cabe às escolas decomunicação, dando abertura paravárias atividades culturais, especialmenteartísticas. Não foi pormero acaso que o Departamentode Artes Cênicas da ECA tinha,no seu início, sete professores bacharéisem Direito.Dos quatro estilos de críticateatral, numa classificação que nosparece operacional dentro de tantasoutras, a crítica filosófica, queacentua a discussão estética daobra de Arte; a crítica literária,que se aproxima da crônica; a críticadidática, de caráter pedagógicoe linha humanística; a críticajornalística, que tem como principalobjetivo a informação, Décioadotou um estilo eclético, que participavade todos os quatro tipos.Com sua formação filosófica nãodeixava de analisar esteticamenteos espetáculos, especialmente ostextos dramáticos; como ensaísta ecronista, suas críticas tinham umaexcepcional qualidade literária.Como atuante na imprensa, nãodeixava de exercer a função informativae como professor, suas críticasnão deixavam de ter caráterdidático. Por essas características,suas críticas, felizmente publicadasem três livros, o que as salvou datemporariedade do jornal, até hojeservem de modelo e objeto de estudo,além de fonte histórica.A crítica tem pelo menos cincofunções importantes, pelo menosno Brasil. Em primeiro lugar, a críticadeve traduzir, para o público,os significados do espetáculo, esclarecendoe objetivando sua temática,suas qualidades artísticas,o que foi realizado de suas intenções.Em segundo lugar, num movimentoinverso, a crítica vai informaraos realizadores o que elesconseguiram transmitir ao público.Neste caso, o crítico é um espectadorprivilegiado, que conhece o assuntoe pode dar um excelentefeed-back. Em terceiro, a críticaexerce a função de registro histórico,função hoje quase inexistenteMarço 2000pelo reduzido número de espetáculoscriticados. Em quarto, e estaé uma função característica doBrasil, os críticos podem e devemparticipar de comissões julgadorasde concursos, prêmios, festivais, doplanejamento e do incentivo à distribuiçãode incentivos. De fato, ocrítico é ao mesmo tempo desinteressadoporque não produz espetáculosteatrais e profundamentepreocupado com o desenvolvimentodo teatro, objeto de sua atividadeartística. Finalmente, uma quintafunção é a de, com seu conhecimentoe experiência, tornar-se umteorizador da arte teatral e um divulgadorcultural, publicando artigos,ensaios e livros.Décio de Almeida Prado bemcompreendeu essas funções da críticateatral e as exerceu até ao extremode suas possibilidades. Suascríticas tinham não somente a qualidadede informar, esclarecer, instruiro público mas também, dentrode um critério objetivo, fundamentado,respeitoso mas sem concessões,esclarecer os criadores do espetáculo.Quanto ao registro histórico,seus três livros de crítica“Apresentação do Teatro BrasileiroModerno”, “Teatro em Progresso”e “Exercício Findo” são uma fontepreciosa de pesquisas históricas donosso teatro, não só o paulista mastambém o brasileiro e até estrangeiro.Com relação à teorização edifusão cultural, seus outros livrosde história, de ensaios e de crônicascumpriram essa função dentrode um nível de alta qualidade.Mas uma função da crítica, quenão tem sido suficientemente considerada,é a da participação em93


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>Décio bem compreendeu asfunções da crítica teatral eas exerceu ao extremo desuas possibilidades. Suascríticas não só instruíam opúblico mas também,dentro de critériorespeitoso mas semconcessões, esclareciam oscriadores do espetáculocomissões e outros órgãos culturaise que foi amplamente exercida porDécio. Podemos destacar duas,que testemunhamos pois tivemos aoportunidade de trabalhar juntocom Décio: a primeira foi a organizaçãoe a integração dos críticosteatrais de São Paulo, com a transformaçãoda Associação Brasileirade Críticos Teatrais, Seção de SãoPaulo, entidade caudatária do Riode Janeiro, em Associação Paulistade Críticos Teatrais, a famosa eatuante APCT, de saudosa memória,que teve importante ação culturale política, agindo em prol dodesenvolvimento do teatro brasileiro,enquanto existiu até se diluirna atual APCA. A primeira diretoriada então nova entidade tinhacomo presidente Décio (éramosprimeiro secretário) e imediatamentepassou a atuar em todos ossetores do nosso teatro.A outra atuação de Décio deAlmeida Prado foi na criação daComissão Estadual de Teatro que94teve uma grande, importante efundamental ação na criação, organização,planejamento e distribuiçãodos incentivos estaduais —obrigação do Estado e para issopagamos impostos — e que foiresponsável pelo enorme desenvolvimentodo teatro em São Pauloe pela sua defesa, bastando lembraro período de Nagib Elchmer,caracterizado pela atenção dadaao Teatro Amador, celeiro de todoo teatro, e o de Cacilda Becker, noperíodo negro da ditadura militar,por se tornar no centro de resistênciae de defesa da classe teatral.Em 1956, verificando que oEstado distribuia verbas, sem nenhumcritério, a APCT, da qual faziamparte Décio (no momentoéramos presidente), Miroel Silveira,Mattos Pacheco, Hermilo BorbaFilho, Sábato Magaldi, DelmiroGonçalves, Mariajosé Carvalho,decidiu solicitar ao então governadorJânio Quadros a criação daComissão Estadual de Teatro, paraplanejar a atuação do Estadonessa área artística. Aproveitamos,também, para pedir o uso dos teatrosexistentes nos edifícios de estabelecimentosde ensino estaduaise a criação de uma carteirade financiamento ao teatro noBanco do Estado. Obtivemos aaprovação dos pedidos e ficamosencarregados de redigir os decretosreferentes às duas primeirassolicitações, o que foi feito. A ComissãoEstadual de Teatro, hojeinfelizmente numa situação apagada,foi criada pelo Decreto Estadual26.348 de 31 de agosto de1956, fazendo parte da primeiraComissão Décio de Almeida Pradoque seria, posteriormente, seupresidente, realizando grandesações a favor do teatro, bastandolembrar a extensão do prêmio Governadordo Estado e a democratizaçãodas subvenções.Como se vê, Décio de AlmeidaPrado foi um grande homem deTeatro! RA


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2000CARLOS CHAGAS FILHO,UM HOMEM À FRENTEDE SEU TEMPORosa LealJornalistaFoto: Otávio Magalhães/AE95


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>Quando, em 1983, opapa João PauloII reconheceu quea Igreja errara,três séculos antes,ao perseguir econdenar Galileu Galilei por suasidéias, um cientista brasileiro estavapor trás desse processo de meaculpa:Carlos Chagas Filho.Chagas Filho, falecido em fevereiro,no Rio de Janeiro, aos 89anos de idade, foi um cientista inovador,católico fervoroso, humanistacom uma aguçada percepção de futuro,e que fez da autenticidade, dasimplicidade e de um profundorespeito à ética suasmarcas registradas. Poderiater-se recolhido à sombrada herança paterna, maspreferiu escrever a sua própriahistória, que não desmerecea do descobridordo Trypanosoma cruzi.Membro da AcademiaPontifícia do Vaticano de1972 a 1988, dois anos dosquais como presidente,Chagas Filho provocou mudançasradicais na relação da Igreja com acomunidade científica, até porque,para ele, não havia qualquer contradiçãoentre religião e ciência. Foisob sua liderança que um grupo deespecialistas pôde estudar e datar oSanto Sudário, a mais venerada relíquiados católicos. Foi ele, ainda,quem inovou ao convidar cientistasdo mundo inteiro, sem qualquerdiscriminação ideológica, racial oude gênero (sim, as mulheres estavampresentes) para a reunião queculminou no documento da Igrejapregando o desarmamento nuclear.96Na década de 40, para compensara inexistência de agênciasfinanciadoras, ele usava seuprestígio pessoal para conseguirbolsas de estudo no exteriorpara seus alunos e equipamentospara os laboratóriosIdéias arrojadas e ousadia sempreforam o seu forte. Professor dacadeira de Biofísica do curso deMedicina da então Universidadedo Brasil, hoje Universidade Federaldo Rio de Janeiro, ele recrutavajá na graduação os alunos queviriam a formar a primeira geraçãode chefes de laboratórios do Institutode Biofísica da instituição. Ométodo continua sendo usado aindahoje, com sucesso. Todos osatuais coordenadores foram recrutadosainda na iniciação científica.Mas em 1945, quando foi criadoo Instituto que desde 1983 chamaseCarlos Chagas Filho, a realidadeacadêmica brasileira era muitodiferente. Não havia pós-graduação,CNPq, Capes ou Finep. Paracompensar a falta de órgãos oficiaisque financiassem a pesquisa,Chagas Filho usava seu prestígiopessoal para conseguir bolsas deestudo no exterior para seus alunose equipamentos para os laboratórios.Aproveitava suas constantesviagens aos Estados Unidos eEuropa para convidar especialistasnas diversas áreas a virem ao Brasil.Assim, todo ano, entre julho esetembro, baixava no Rio de Janeirouma revoada de renomadoscientistas estrangeiros para ministraraulas na Universidade.Ao longo dos anos 50, o Institutorecebeu equipamentos completos,caros e inexistentes nopaís, doados pela Fundação Rockfeller,a pedido de Chagas Filho.Que, a propósito, batia em todasas portas onde houvesse possibilidadede conseguir verbas para aUniversidade, fossem embaixadasou empresários brasileiros, comoGuilherme Guinle. Toda sua açãobaseava-se na convicção de que oensino e a pesquisa são indissociáveis,e de que era precisocriar uma ciência nacionalde padrão internacional.Do ponto de vista científico,era um visionário.Especialista em bioeletrogênese,trabalhava com opeixe elétrico e foi quemtrouxe para o Brasil, em1947, as novas técnicas introduzidasna bioquímicadurante a 2ª Guerra Mundial,por ingleses e suecos:a cromatografia, a eletroforese e aultracentrifugação.A convite do Jóquei Club doRio de Janeiro, a equipe de ChagasFilho utilizou pioneiramente o métododa cromatografia na análise dedoping em cavalos, o que levou àFrança uma das pesquisadoras, AídaHasson-Voloch, para explicar naEscola de Farmácia, a convite dosanfitriões, a técnica empregada.Chagas Filho foi o primeiro atrabalhar, no Brasil, com a microscopiaeletrônica, e organizou o primeirocurso de aplicação médicade radioisótopos. No final da déca-


Revista <strong>Adusp</strong>da de 50, buscando formas de tratamentoda miastenia gravis e domal de Parkinson, ele tentou isolaro receptor da acetilcolina, proteínaexistente no sistema neuromusculardo peixe elétrico, semelhanteà dos mamíferos. Não conseguiuporque, na época, não havia aindauma substância especial que permitisseque a proteína fosse isolada.Mais de 10 anos depois, o cientistafrancês Jean Pierre Changeuxalcançou esse objetivo.Esse espírito inovador acompanhouChagas Filho em todas asatividades que exerceu ao longo davida. Em 1966, assumiu o cargo deembaixador brasileiro junto àUnesco e provocou verdadeira“revolução” na embaixada. Bombardeavao diretor-geral da Unescocom projetos e propostas e batalhavapara colocá-las em prática.Integrou a Comissão de Salvaguardade Veneza. Foi um dos fundadoresda Academia de Ciências doTerceiro Mundo e da AcademiaLatino-Americana de Ciências.Extremamente educado e afável,jamais perdia a paciência, ouviaa todos atentamente. Mesmo quandojá não ocupava funções administrativasno Instituto de Biofísica,era chamado a opinar e, em geral,sua solução era acatada. Colocava ainstituição acima de tudo, inclusivedos seus próprios interesses.Na juventude foi jogador debasquete do Fluminense, time queera a sua paixão. Leitor voraz,apreciava a literatura francesa. Integrouo Conselho Estadual deCultura do Rio de Janeiro, a convitede Antônio Houaiss. Era amigode poetas, como Manuel BandeiraMarço 2000O APRENDIZ E AUNIVERSIDADE ABERTAEm dezembro de 1980, quando completou 70 anos e recebeu o títulode Professor Emérito da UFRJ, Carlos Chagas Filho, mais uma vez,reafirmou sua visão de Universidade.“A Universidade com que sonho é a Universidade aberta. Se é só norecolhimento de seus laboratórios, bibliotecas, salas de aula e semináriosem condições propícias da relação docente/aluno que a Universidadeamealhará conhecimento, este não deve ser atestado somente pelospergaminhos, nem porejar lentamente através de suas paredes, mas devese estender por meios propícios de difusão e comunicação a todas asclasses sociais. Universidade aberta, onde não se firmem os bastiões doclanismo e do protecionismo, auto-hibridizantes, seja esterilizadores, masque aceite a fecundação que vem de fora, pelas idéias e pelos docentes,que souber absorver, voltada, ao mesmo tempo, para a sociedade em quevive. Universidade sem complexo faustiano certa de que se é grande a suaparte na edificação da sociedade, outros de seus construtores dela nãosurgiram e vêm de todos os horizontes, dos mais afastados e dos maispróximos, pois daqueles fazem parte até mesmo os iletrados. (...)Penso que a Universidade e o Brasil sofrerão grave queda de sua produçãocientífica e terrível migração de talentos, se melhorias dascondições de trabalho não forem asseguradas aos nossos cientistas. É quenos estão faltando recursos materiais para manter em atividade os recursoshumanos que possuímos. Falta-nos estímulo. Faltam-nos mais recursos,muitas vezes mínimos. Faltam-nos melhores perspectivas de trabalhoe, até mesmo, mercado que possa absorver nossos pós-graduandos. (...)Se não forem tomadas a tempo, com os esforços que sejam necessários,medidas de recuperação e restruturação de nossa infra-estrutura científica,seremos presas da frustração de que nos fala Cecília Meireles:Minhas mãos por águas perdidas,Foram pura inutilidade.”e Vinícius de Moraes, de escritorescomo Pedro Nava, e de cantores ecompositores como Paulinho daViola, Olívia e Francis Hime.Nos últimos sete anos, mesmocom a saúde bastante debilitada, iapelo menos duas vezes por semanaao Instituto de Biofísica, na Ilha doFundão, no Rio de Janeiro. Anualmentedava um curso de Filosofiada Ciência para alunos da pós-graduação.Sua última contribuiçãoao país foi a autobiografia que escreveucom o auxílio dos amigosPaulo Gadelha e Darci Almeida. Olivro, intitulado Um Aprendiz deCiência, é uma edição conjunta daFundação Oswaldo Cruz e EditoraNova Fronteira e será lançado aindaneste semestre. RA97


Março 2000Revista <strong>Adusp</strong>USP LANÇADossiê produzido pelo IEAA USP lançou, em fevereiroúltimo, dossiê intituladoA Presença daUniversidade Pública,fruto do trabalho daComissão de Defesada Universidade Pública,instituída noInstituto de EstudosAvançados (IEA) porsolicitação do reitor.O dossiê, na formade revista e destinadoao público extra-universitário,com tiragemde 7 000 exemplares,condensa uma sériede dados de grande importânciana luta em defesada universidade pública,“responsável pelosmelhores cursos de graduaçãoe pós-graduação epela quase totalidade dapesquisa científica e tecnológicano Brasil”.Sem a universidade pública,o Brasil “seria umoutro país, infinitamentemais atrasado e certamentepior para se viver”.Trazendo muitas estatísticas,gráficos e fotografias,o dossiê enumerauma série de argumentosque desmontam as afirmaçõeslevianas que prosperaramnos últimos anos:• “Muitos dos que defendema superioridadeda iniciativa privada comoprincípio absolutotornam-se incapazesde distinguir entreuma siderúrgica e umauniversidade”.• “A vasta maioriados universitários brasileirospertence à classemédia. Mas há quem insistaem dizer que só osricos têm acesso às universidadespúblicas.”• “Os que defendema cobrança de mensalidadesnas universidadespúblicas não se dão contade que não existe ensinosuperior gratuito.Ele é financiado atravésdos impostos pagos portoda a sociedade.”• “É a política fiscalde cada país que determinaos critérios de distribuiçãodos custos daeducação pelas classessociais”.Cartas“Grata surpresa”Sr. Editor,Tive a grata surpresa de receber uma cópia don. 18; 99 da Revista <strong>Adusp</strong>, que, por sugestão doprofessor Oswaldo Coggiola, contém a traduçãodo meu artigo publicado na revista Contradição,dirigida por Gianfranco Pala.Sinto-me honrado em colaborar com os objetivosperseguidos pela vossa revista, e agradeçopor essa grande consideração. Aproveito para declararminha disposição de contribuir, especialmente,para o aprofundamento dos problemasteóricos relativos à democracia e ao direito, preocupaçãoque também é compartilhada pelo professorCoggiola.É preciso esclarecer aos leitores que não soudocente na Universidade de Roma, conformepublicado, mas na Universidade de Pisa. Esperomanter o contato e gostaria de saber se, a partirde agora, poderia receber regularmente os próximosnúmeros da Revista <strong>Adusp</strong>.Salvatore d’AlbergoTitular do Instituto de Direito Público e docente de DireitoPúblico da Economia da Universidade de Pisa, ItáliaFica registrada a correção e o nosso compromissode enviar as revistas para o professor d’Albergo.•••“Excelente trabalho”Recebo os informativos e revistas da <strong>Adusp</strong>.Mudei de endereço e gostaria de continuar recebendoa Revista <strong>Adusp</strong>.Parabéns pelo excelente trabalho de imprensae conteúdo jornalístico.Mário Bernardino Rosa FilhoSantos98

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