10.07.2015 Views

Violência e fanatismo: a dissolução do sujeito no grupo

Violência e fanatismo: a dissolução do sujeito no grupo

Violência e fanatismo: a dissolução do sujeito no grupo

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

1PROPOSTA DE TRABALHO PARA MESA-REDONDA<strong>Violência</strong> e <strong>fanatismo</strong>: a <strong>dissolução</strong> <strong>do</strong> <strong>sujeito</strong> <strong>no</strong> <strong>grupo</strong>Ligia Gama e Silva Furta<strong>do</strong> de Men<strong>do</strong>nça 1Rita Maria Manso de Barros 2Resumo: Por mais que este assunto esteja em foco atualmente devi<strong>do</strong> à guerrasreligiosas, terrorismos etc, e seja sistematicamente atrela<strong>do</strong> ao uso psicanalítico <strong>do</strong>termo destrutividade, gostaríamos de demonstrar através deste trabalho que o <strong>fanatismo</strong>engloba algo além destas questões. Encontra-se na obra de Amos Oz “Comment guérirum fanatique” (2006) alguns caminhos que podem <strong>no</strong>s ser útil na argumentação. Esteautor é um israelense que cresceu em meio a conflitos entre palesti<strong>no</strong>s e israelenses e,por isso, é uma pessoa apta para falar de um tema como este, como ele mesmo diz naintrodução de seu livro. Segun<strong>do</strong> este autor, o <strong>fanatismo</strong> é uma constante da naturezahumana, portanto dizer que ele é identifica<strong>do</strong> somente em manifestantes, terroristas etc.não seria correto. Foi, então, a partir de sua reflexão sobre a religião que Freud produzuma de suas obras mais importante, de onde se extrai substratos fundamentais para secompreender o <strong>fanatismo</strong>: a formação de <strong>grupo</strong>s, a partir da obra, “Psicologia de Grupoe Análise <strong>do</strong> Ego” (1921).Palavras-chave: Fanatismo, <strong>sujeito</strong>, violência, psicanálise, religião, <strong>grupo</strong>s.<strong>Violência</strong> e <strong>fanatismo</strong> são temas que podem ser interliga<strong>do</strong>s atualmente devi<strong>do</strong> àguerras religiosas, terrorismos, etc, e está sistematicamente atrela<strong>do</strong> ao uso psicanalítico<strong>do</strong> termo destrutividade. No entanto, gostaríamos de demonstrar através deste trabalhoque o <strong>fanatismo</strong> engloba algo além destas questões.Na falta de uma melhor definição para o que viria ser um fanático e, claro, o<strong>fanatismo</strong>, encontra-se na obra de Amos Oz “Comment guérir um fanatique” (2006)alguns caminhos que podem ser bem usa<strong>do</strong>s durante este trabalho.Segun<strong>do</strong> Amos Oz, o <strong>fanatismo</strong> é uma constante da natureza humana, portantodizer que ele é identifica<strong>do</strong> somente em manifestantes, terroristas, etc não seria correto.1Graduanda <strong>do</strong> Curso de Psicologia da UERJ. Participante <strong>do</strong> Convênio <strong>do</strong> Laboratório dePsicopatologia Clínica e Psicanálise da Universidade de Toulouse II, Le Mirail.2 Psicanalista. Pesquisa<strong>do</strong>ra. Professora Adjunta <strong>do</strong> Programa de Pós-graduação em Pesquisa e ClínicaPsicanalítica da UERJ.


4No “Mal-Estar...” é demonstra<strong>do</strong> o conflito a que o ser huma<strong>no</strong> é submeti<strong>do</strong>entre as exigências das suas pulsões e as restrições impostas pela civilização. Freudidentifica que os esforços <strong>do</strong> ser huma<strong>no</strong> perante a vida são para obter felicidade,portanto, sua força motriz seria o princípio <strong>do</strong> prazer. Sen<strong>do</strong> assim, surge umatendência a isolar <strong>do</strong> eu qualquer fonte de desprazer, e é através desta luta <strong>do</strong> homemcom o seu mun<strong>do</strong> exterior que se inicia um processo de diferenciação <strong>do</strong> eu com estemun<strong>do</strong> exter<strong>no</strong>, sen<strong>do</strong> introduzi<strong>do</strong> o principio de realidade <strong>no</strong> ser huma<strong>no</strong>, que virá aestruturar to<strong>do</strong> o seu desenvolvimento posterior. O princípio de realidade tem comoobjetivo, <strong>no</strong> seu duelo com o princípio <strong>do</strong> prazer, capacitar o ser huma<strong>no</strong> a construirdefesas que o protejam <strong>do</strong>s desprazeres provenientes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> exter<strong>no</strong>. Ten<strong>do</strong> em vistaestas forças que agem <strong>no</strong> ser huma<strong>no</strong> influencian<strong>do</strong> seu contato com o mun<strong>do</strong> exter<strong>no</strong>,Freud analisa acerca das relações sociais, caracterizan<strong>do</strong>-as como um <strong>do</strong>s aspectos dacivilização e capazes de restringir a liberdade individual, conseqüentemente geran<strong>do</strong> uminterminável conflito entre o ser huma<strong>no</strong> e a civilização.Só seria possível o desenvolvimento civilizatório se as pulsões não estivessem“livres”, <strong>no</strong> senti<strong>do</strong> que os homens seriam regi<strong>do</strong>s por princípios e leis, o que osassegurariam de certa segurança, em troca de uma parcela de liberdade. Ao remontar omito de Totem e Tabu (1912), Freud deduz a universalidade de <strong>do</strong>is desejos recalca<strong>do</strong>s:o incesto e o desejo de matar o Pai, cuja expressão se apresenta <strong>no</strong> “Complexo deÉdipo”, e que <strong>no</strong>s leva a crer que estes, juntamente com o canibalismo, foram alvos dasprimeiras restrições à liberdade humana, sen<strong>do</strong> que a proibição <strong>do</strong> canibalismo já teriasi<strong>do</strong> internalizada, mas o incesto e o parricídio são temi<strong>do</strong>s pelos seres huma<strong>no</strong>ssomente à medida que há uma coerção externa, como apontou o autor em “Futuro deuma Ilusão” (1927, p.21). É em Totem e Tabu (1912) que Freud faz sua primeira grandesíntese sobre a questão da religião ao mesmo tempo em que interpreta as origens da


5civilização. Ele se apóia na observação das tribos primitivas a fim de destrinchar osenti<strong>do</strong> da sua organização social e religiosa, o totemismo, e suas regras sagradas quedirigem seu comportamento, o tabu. O objetivo deste ensaio é dar-se conta dasproibições ligadas ao incesto e ao parricídio, da constituição <strong>do</strong> laço social, e <strong>do</strong>sentimento de culpa.Após seu interesse pelas formas primitivas da religião, Freud se foca nas suasmanifestações contemporâneas através de uma analise sobre seus ritos e crenças. Desdeseu artigo “Actions compulsionnelles et exercices religieux” (1907), ele opere umaaproximação entre os rituais religiosos e os priva<strong>do</strong>s da neurose obsessiva. Seadmitimos que os rituais visam uma proteção frente a angustia, deve-se atribuir amesma função aos rituais religiosos. Os rituais religiosos ‘sossegam’ então a angustia,mas eles também repousam em crenças que dão uma sensação de segurança. Desta veza analogia não é mais com a neurose obsessiva, mas com a <strong>no</strong>ção de alucinação. Freudmostra isso em “O futuro de uma ilusão” (1927), onde ele afirma que a religião é umailusão, porque deriva <strong>do</strong>s desejos huma<strong>no</strong>s, e a realização deles é a motivação para crer.A essência da atitude religiosa é a busca pelo remédio para a sensação de insignificânciadiante <strong>do</strong> universo. A religião contribuiu para <strong>do</strong>mar as pulsões, mas não fez nada quetornasse a humanidade feliz e reconciliada com a vida. Portanto, é impossível eliminara religião pela força, de um só golpe, além disso, seria uma crueldade para alguns. E,caso o homem aban<strong>do</strong>nasse de vez a religião teria que admitir para si mesmo que édesampara<strong>do</strong> <strong>no</strong> mun<strong>do</strong> e que não há uma providência que lhe criou e ampara. É devi<strong>do</strong>a este sentimento de aban<strong>do</strong><strong>no</strong> <strong>do</strong> ser huma<strong>no</strong> que nós necessitamos de uma proteçãopaternal – o Deus to<strong>do</strong>-poderoso <strong>do</strong>s mo<strong>no</strong>teístas – como uma criança precisa de seu paiprotetor. Além <strong>do</strong> sentimento de aban<strong>do</strong><strong>no</strong>, há um outro aspecto da <strong>no</strong>ssa constituiçãoque Freud explica: a agressividade.


6Com esta breve exposição acerca da religião (segun<strong>do</strong> Freud), podemos observarque ela é um terre<strong>no</strong> fértil para a manifestação <strong>do</strong> <strong>fanatismo</strong>. Durante o percurso dacivilização, sempre testemunhamos rivalidades entre paises vizinhos, culturasdiferentes, e entre crenças religiosas também. A diferença é que os fanáticos levam essarivalidade a sério – lembran<strong>do</strong> o que disse Amos Oz – e tentam impor a to<strong>do</strong> custo asuperioridade da sua crença aos outros que não compartilham da mesma idéia. Podehaver fanáticos entre torce<strong>do</strong>res de futebol, na política, etc, mas parece que na religião,tu<strong>do</strong> já está praticamente pronto: já há um líder (onde veremos seu papel mais a frente),rituais, uma identificação entre os fieis e entre os fieis e o líder, entre outros. E ofanático, sem ter o interesse de se tornar quase-ilha, utiliza-se das <strong>do</strong>utrinas religiosas àsua própria maneira, tentan<strong>do</strong> converter e ‘salvar’ os outros.A questão da sexualidade, sempre presente na obra freudiana, vem a colaborarcom o conceito de identificação, cita<strong>do</strong> acima, que é tão caro ao se discutir o laçoexistente entre fanáticos em um <strong>grupo</strong>. E é para alcançar este objetivo (não o referente afanáticos, mas a membros de um <strong>grupo</strong>) que Freud (1921), <strong>no</strong> capítulo IV “Psicologiade Grupo e Análise <strong>do</strong> Ego” intitula<strong>do</strong> de Sugestão e Libi<strong>do</strong>, teoriza acerca <strong>do</strong> amor,mas não o diferencia em “categorias”: a diferença recai se a libi<strong>do</strong> 3 é inibida ou não nasua finalidade. Assim, um <strong>do</strong>s fatores sob os quais os seres huma<strong>no</strong>s se unem é através<strong>do</strong>s laços libidinais, que, por sua vez, é regulada pela civilização, e não apenas pelodesejo <strong>do</strong> individuo. Sen<strong>do</strong> assim, Freud, neste mesmo texto, assimila que estas relaçõesamorosas (ou laços emocionais/libidinais) também constituem a essência da mentegrupal.3No texto “Sugestão e Libi<strong>do</strong>”, Freud conceitua libi<strong>do</strong> como “a expressão extraída da teoria dasemoções”, dan<strong>do</strong> este <strong>no</strong>me “à energia considerada como magnitude quantitativa (embora na realidadenão seja presentemente mensurável), daqueles instintos que têm a ver com tu<strong>do</strong> o que pode ser abrangi<strong>do</strong>sob a palavra ‘amor’”.


7Esta questão também traz a tona o conceito de identificação, já que ela é a formamais remota de um laço emocional com o outro. A identificação existente entre oscomponentes de um <strong>grupo</strong> fanático poderia ser aquela que surge “com qualquer <strong>no</strong>vapercepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa que não éobjeto de instinto sexual” (FREUD, 1921) e, provavelmente essa qualidade comumpartilhada residiria na natureza <strong>do</strong> laço com o líder. O principal rejunte entre osmembros de um <strong>grupo</strong> seria a ilusão que seu líder ama a to<strong>do</strong>s de forma igual.Sen<strong>do</strong> os laços libidinais um <strong>do</strong>s responsáveis por manterem uni<strong>do</strong>s os sereshuma<strong>no</strong>s, há outro aspecto da constituição humana que comunga desses mesmospoderes, mas que não alcança o mesmo fim: a agressividade, introduzida em algunsparágrafos acima. Caterina Koltai, em seu texto “A tentação <strong>do</strong> bem: o caminho maiscurto para o pior...” relata que o homem primitivo era um ser apaixona<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> pior emais cruel que os animais, e que “nada o impedia de matar e devorar seres de suaespécie, tanto que a história primitiva da humanidade é cheia de assassinatos e que [...] a‘história mundial’ não passa de uma sucessão deles”.A contenção desta agressividade se apresenta como um desafio que o homemainda não conseguiu vencer, e seria por isso que a guerra se apresente inevitável nacivilização, “consubstancial à própria existência da sociedade” (KOLTAI, 2002).Sen<strong>do</strong> o ser huma<strong>no</strong> possui<strong>do</strong>r de uma quota de agressividade, nenhum de nóspode tolerar uma aproximação extremamente íntima com o próximo. No capítulo VI de“Psicologia de Grupo...” – Outros Problemas e Linhas de Trabalho – Freud defendeesta teoria ao dizer que mesmo que a relação emocional entre duas pessoas seja muitopróxima (como, por exemplo, entre pais e filhos), ela contém “um sedimento desentimentos de aversão e hostilidade”, o qual só não perceberíamos em conseqüência <strong>do</strong>recalque. No entanto, quan<strong>do</strong> se trata de um <strong>grupo</strong>, <strong>no</strong> caso, de fanáticos, essa aversão e


8hostilidade se desvanecem, nem que temporariamente. Num <strong>grupo</strong>, seus componentesse comportam de maneira uniforme e toleram-se mutuamente. Constata-se aí umalimitação <strong>do</strong> narcisismo, produzida por um laço libidinal com outras pessoas <strong>do</strong> <strong>grupo</strong>,mas que, <strong>no</strong> entanto, não atua fora dele. Seus sentimentos hostis são dirigi<strong>do</strong>s para fora,ou seja, para um outro <strong>grupo</strong> rival, por exemplo, pois uma vez que o laço afetivo entreos membros e o líder de um <strong>grupo</strong> é abala<strong>do</strong>, o equilíbrio existente nele é desfeito,propician<strong>do</strong> um investimento narcísico <strong>no</strong> eu – que outrora fora limita<strong>do</strong> – e quesentimentos hostis e aversivos se voltem para os componentes e o líder <strong>do</strong> <strong>grupo</strong>, o queresultaria <strong>no</strong> desmembramento <strong>do</strong> mesmo.Constata-se, então, que as restrições impostas ao homem quanto a sua sexualidadee agressividade são sacrifícios aos quais o homem tem que se submeter para que oprocesso civilizatório evolua. Ao mesmo tempo, a evolução da civilização não garantesua felicidade, muito pelo contrário, vai de encontro a ela, uma vez que estas restriçõesatravancam o principio <strong>do</strong> prazer, que é a principal fonte de felicidade para o homem.É inevitável ao falar em civilização, formação de <strong>grupo</strong>s e <strong>fanatismo</strong> nãointroduzir o conceito de pulsão freudiana. Implícita anteriormente em algumas partesdeste texto, ela se mostra bastante útil para compreender-se sobre a natureza humana eseu conflito perante a civilização. Freud inicia a obra intitulada “Pulsões e seusdesti<strong>no</strong>s” dizen<strong>do</strong> que “uma pulsão <strong>no</strong>s aparecerá como sen<strong>do</strong> um conceito situa<strong>do</strong> nafronteira entre o mental e o somático, como representante psíquico <strong>do</strong>s estímulos que seoriginam dentro <strong>do</strong> organismo e alcançam a mente (…)” (apud GARCIA-ROZA, 1994).Como resumiram Laplanche e Pontalis <strong>no</strong> Vocabulário de Psicanálise (2004), aspulsões de vida “tendem a constituir unidades cada vez maiores, e a mantê-las” (pp.414), e abrangeriam as pulsões sexuais e de autoconservação. As de morte, por sua vez,se contrapõem às pulsões de vida, e tendem “a uma redução completa das tensões” (pp.


9407), ou seja, busca com que o indivíduo retorne ao esta<strong>do</strong> a<strong>no</strong>rgânico. Uma vezvoltadas ao interior, elas tenderiam a autodestruição, e dirigidas ao exterior,manifestariam-se sob “a forma da pulsão de agressão ou destruição”. Como diz Freud(1933, apud KOLTAI, 2002), “nenhuma dessas duas pulsões é me<strong>no</strong>s essencial <strong>do</strong> quea outra: os fenôme<strong>no</strong>s da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária deambas (...) A dificuldade de isolar as duas espécies de pulsões em suas manifestaçõesreais é, na verdade, o que até agora <strong>no</strong>s impedia de conhecê-las”.Constatadas a força e a importância dessas pulsões, cabe a cada indivíduo, emrelacionamento com o mun<strong>do</strong> exter<strong>no</strong>, a controlá-las, ou melhor, <strong>do</strong>mesticá-las dentro<strong>do</strong> possível, pois uma pulsão de morte que não esteja fusionada a pulsão de vida poderuir numa autoagressividade, que poderia ser exemplifica<strong>do</strong> pelo suicídio, ouheteroagressividade, onde o assassinato serve de ilustração. Porém, a agressividadeoriunda da fusão da pulsão de vida com a pulsão de morte não emboca numadestrutividade. É importante ressaltar que a agressividade está presente quan<strong>do</strong> lutamospelos <strong>no</strong>ssos direitos, competimos uma vaga num emprego, impomos limites ao outro,seduzimos alguém, defendemos um ponto de vista, e em diversas outras situações <strong>do</strong><strong>no</strong>sso cotidia<strong>no</strong>.Prosseguin<strong>do</strong> o dilema entre as pulsões e a civilização, Freud questiona qualseria o meio utiliza<strong>do</strong> pela segunda na coerção da destrutividade humana. Ele encontra aresposta <strong>no</strong> sentimento de culpa, sen<strong>do</strong> a felicidade o preço que o ser huma<strong>no</strong> paga peloavanço da civilização, que se faz possível pela intensificação deste sentimento. Um <strong>do</strong>smotivos de certas <strong>do</strong>utrinas religiosas, como o cristianismo, conseguirem tantas adesõesrecai <strong>no</strong> fato dela não desprezar o papel <strong>do</strong> sentimento de culpa desempenha<strong>do</strong> nacivilização, e prometer a redenção daqueles que pecam.


10O sentimento de culpa, como Freud relata em “O Mal-Estar...” se estabeleceatravés da tensão entre o eu e supereu, que demanda <strong>do</strong> <strong>sujeito</strong> uma necessidade depunição. Como se pode <strong>no</strong>tar, a <strong>no</strong>ção de sentimento de culpa só pode ser identificada apartir <strong>do</strong> reconhecimento <strong>do</strong> supereu, uma instância oriunda da introjeção daagressividade para o interior <strong>do</strong> próprio eu, e que atua sob a forma de consciência, comoum vigilante sobre as ações e as intenções <strong>do</strong> eu e julgá-las, exercen<strong>do</strong> a censura.Mas o sentimento de culpa também pode ser originário <strong>do</strong> me<strong>do</strong> de umaautoridade que foi instituída com o processo civilizatório, representan<strong>do</strong> a lei. Podemosinferir que o me<strong>do</strong> da autoridade é mais bran<strong>do</strong> que o me<strong>do</strong> <strong>do</strong> supereu, pois enquantoque a autoridade exige a renúncia das satisfações das pulsões, uma vez que estasinviabilizariam a organização social, o supereu é mais exigente. Além da renúncia àspulsões, ele demanda <strong>do</strong> eu uma punição, uma vez que os desejos proibi<strong>do</strong>s continuamexistentes dentro <strong>do</strong> <strong>sujeito</strong>, impulsiona<strong>do</strong>s permanentemente pelo princípio <strong>do</strong> prazer.Como bem pontuou Freud nesta obra, “a civilização, portanto, consegue, <strong>do</strong>minar operigoso desejo de agressão <strong>do</strong> indivíduo, enfraquecen<strong>do</strong>-o, desarman<strong>do</strong>-o eestabelecen<strong>do</strong> <strong>no</strong> seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numacidade conquistada”. Poderíamos, então, concluir que, de alguma forma e por razõesdistintas em cada caso, os fanáticos não conseguiram ter seus desejos de agressão<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s pela civilização – utilizan<strong>do</strong> as palavras de Freud - já que não observamosneles uma renúncia das satisfações das pulsões de forma satisfatória para manter o laçosocial. Daí pode-se especular duas possibilidades: ou o supereu não esta cumprin<strong>do</strong> oseu papel de introjetar a agressividade para o interior <strong>do</strong> próprio eu, ou a tensãoestabelecida entre o eu e o supereu é de uma ordem insuportável para o <strong>sujeito</strong> que nãohá saída se não exteriorizá-la, culpar o outro por sua culpa, e punir o outro também porela.


11Essas <strong>no</strong>ções são essenciais para prosseguir com a questão da formação de<strong>grupo</strong>, e, assim <strong>do</strong> <strong>fanatismo</strong>, já que o supereu assume um papel crucial para seuentendimento e também serve de apoio para compreender acerca de ideal <strong>do</strong> eu, outroconceito também de suma importância ao tratar deste tema. Apesar de em “Psicologiade Grupo e Análise <strong>do</strong> Eu” o termo supereu não estar presente, a sua compreensãoclarifica muitas dúvidas que podem surgir na leitura deste texto.Freud considera imprescindível a figura <strong>do</strong> líder na formação de um <strong>grupo</strong>, eeste também seria o principal motivo pelo qual ele refuta a teoria <strong>do</strong> instinto gregário,preferin<strong>do</strong> assim utilizar a analogia da horda primeva para teorizar sobre a formação de<strong>grupo</strong>s. Freud aban<strong>do</strong>na a proposta de Trotter (1916 apud FREUD, 1921) – que defendeum institnto gregário inato ao seres huma<strong>no</strong>s, constituin<strong>do</strong> assim uma analogia àmulticeluraridade – para fortalecer a hipótese de que os fenôme<strong>no</strong>s grupais possuemcomo origem um investimento afetivo sobre um objeto que não pode ser obti<strong>do</strong>, segui<strong>do</strong>pela identificação com os supostos "rivais". Em continuidade com esta teoria, Freud seaproxima da conjectura darwiniana, “segun<strong>do</strong> a qual a forma primitiva da sociedadehumana era uma horda governada despoticamente por um macho poderoso” (FREUD,1921). Este macho, pai primevo, ou líder não tem a necessidade de amar ninguém, epode ser <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>r, narcisista, independente e autoconfiante, e é extremamentenecessário para os segui<strong>do</strong>res da horda, que têm “sede de obediência” (Le Bon, 1895apud FREUD, 1921). Neste mesmo texto, Freud finaliza dizen<strong>do</strong> que “o pai primevo é oideal <strong>do</strong> <strong>grupo</strong>, que dirige o eu <strong>no</strong> lugar <strong>do</strong> ideal <strong>do</strong> eu. A hip<strong>no</strong>se bem pode reinvidicar suadescrição como um <strong>grupo</strong> de <strong>do</strong>is. Aqui fica como definição para sugestão: uma convicção quenão está baseada na percepção e <strong>no</strong> raciocínio, mas em um vínculo erótico” (página).Freud assinala que há uma espécie de sugestão hipnótica na sustentação danatureza das pulsões que mantém o <strong>grupo</strong> uni<strong>do</strong> – pulsões inibidas em sua finalidade - ena substituição <strong>do</strong> ideal <strong>do</strong> eu pelo objeto, ou seja, o líder, mas acrescenta ainda que é a


12identificação com os outros indivíduos aquilo que talvez tenha torna<strong>do</strong> possível elesterem a mesma relação com o objeto, <strong>no</strong> caso, mais uma vez, o líder.Com isso, <strong>no</strong>s deparamos com a expressão tão nebulosa ideal <strong>do</strong> eu. Asvariações <strong>do</strong> seu conceito remetem ao fato que ele está acompanha<strong>do</strong> da elaboraçãoprogressiva da <strong>no</strong>ção de supereu. De acor<strong>do</strong> com Laplanche e Pontalis (2004), é na obrafreudiana “Sobre o Narcisismo: uma introdução” (1914) que surge a expressão “ideal <strong>do</strong>eu” para designar uma “formação intrapsíquica relativamente autô<strong>no</strong>ma que serve dereferência ao ego para apreciar as suas relações efetivas. Sua origem é principalmentenarcísica” (pp. 222). Na infância, o ideal da criança é ela mesma, e ela aban<strong>do</strong>na esteesta<strong>do</strong> narcísico a partir das críticas <strong>do</strong>s seus pais. Sen<strong>do</strong> assim, o que o homem projetadiante de si como seu ideal é o substituto <strong>do</strong> narcisismo perdi<strong>do</strong> na infância. Já em“Psicologia de Grupo...”, o ideal <strong>do</strong> eu é diferencia<strong>do</strong> <strong>do</strong> eu, e a ele são atribuídas asfunções de auto-observação, consciência moral, censura <strong>do</strong>s sonhos, e a principalinfluência <strong>no</strong> recalque. Ainda complementa que ele é herdeiro da época em que o euinfantil desfrutava de auto-suficiência, e de forma gradual reúne a partir das influências<strong>do</strong> meio ambiente, “as exigências que este impõe ao ego, das quais este não pode estarsempre a altura; de maneira que um homem, quan<strong>do</strong> não pode estar satisfeito com seupróprio ego, tem, <strong>no</strong> entanto, possibilidade de encontrar satisfação <strong>no</strong> ideal <strong>do</strong> ego quese diferenciou <strong>do</strong> ego” (pp. 222). Isso permitiria compreender a fascinação amorosa, adependência para com o hip<strong>no</strong>tiza<strong>do</strong>r, e a submissão ao líder, to<strong>do</strong>s esses ilustrações decasos onde uma pessoa “estranha” é colocada pelo <strong>sujeito</strong> <strong>no</strong> seu lugar de ideal <strong>do</strong> eu.Através desta exposição, pode-se reparar como a violência perpassa sobre otema <strong>do</strong> <strong>fanatismo</strong>. Os fanáticos, através de uma religião própria embasada em suascrenças e ideais rígi<strong>do</strong>s, submetem os outros aos seus desejos próprios. E, centran<strong>do</strong> aviolência <strong>no</strong> meio fanático, deparamo-<strong>no</strong>s com a questão da formação de <strong>grupo</strong> (e,


13consequentemente, da identificação) e da importância de um líder, elementos estesimprescindíveis para compor uma legião de fanáticos, onde cada <strong>sujeito</strong> dissolve-se <strong>no</strong><strong>grupo</strong>. A identidade de cada um é sobreposta por uma identidade grupal, e uma outrafigura – o líder, <strong>no</strong> caso – assume o lugar <strong>do</strong> ideal <strong>do</strong> eu de seus fiéis.Referências bibliográficas:FREUD, Sigmund. (1907). Actions compulsionnelles et exercices religieux. In:Névrose, psychose et perversion. Paris: PUF, 1974, p. 133-p. 142._____ (1912). Totem e Tabu. In: Edição standard brasileira das obras psicológicascompletas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 11-p. 191._____ (1921). Psicologia de <strong>grupo</strong> e análise <strong>do</strong> ego. In: Edição standard brasileiradas obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p.87-p. 180._____ (1927). O futuro de uma ilusão. In: Edição standard brasileira das obraspsicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 15-p. 63._____ (1930). O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.GARCIA-ROZA, Luiz Alfre<strong>do</strong> (1994). Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor, 2000.KOLTAI, Caterina. A tentação <strong>do</strong> bem: o caminho mais curto para o pior. RevistaAgora. Rio de Janeiro, v. V, n. 1, p. 9-18, 2002.LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Baptiste (1982). Vocabulário da psicanálise.São Paulo: Martins Fontes, 2004.OZ, Amos. Comment guérir um fanatique. Ed. Arcades Gallimard, 2006.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!