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a ressurgência do fascismo na Alemanha - Diversitas

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Reconstruin<strong>do</strong>as fronteiras: a<strong>ressurgência</strong> <strong>do</strong><strong>fascismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Alemanha</strong>(o caso de Zwickau,2011-2012)Francisco Carlos Teixeira Da Silva 1Zwickau, <strong>na</strong> SaxôniaZwickau, <strong>na</strong> <strong>Alemanha</strong>, é um centro industrial de cercade cem mil habitantes, forman<strong>do</strong> com Dresden e Leipzig ocoração industrial da província da Saxônia. A região, em seuconjunto também denomi<strong>na</strong>da de Zwickaugebiet, abriga cerca500 mil habitantes, quase to<strong>do</strong>s volta<strong>do</strong>s para o setor industrialpesa<strong>do</strong> alemão. O centro industrial de Zwickau é volta<strong>do</strong>,desde mais de cem anos, para a indústria automobilística ten<strong>do</strong>si<strong>do</strong> o núcleo de marcas famosas como Audi e VW (que produzaí os modelos Passat, Phaeton e Golf). Durante o perío<strong>do</strong> deexistência da DDR – República Democrática Alemã, comunista– Zwickau produziu o maior ícone <strong>do</strong> comunismo alemão: oheroico e esforça<strong>do</strong> automóvel Trabant. Lá está também aWestsächsische Hochschule Zwickau – com cerca de 5.200estudantes matricula<strong>do</strong>s em 2012 –, a mais afamada unidadeuniversitária de pesquisa automobilística da <strong>Alemanha</strong> 1 . Damesma forma, a cidade fi<strong>na</strong>ncia e mantém 107 centros deesporte e lazer para a sua população, numa das melhoresrelações densidade/centros de lazer da Europa.As origens históricas da cidade se perdem no século XIIquan<strong>do</strong> mineiros de carvão utilizavam os recursos <strong>do</strong>s MontesHarz (Herzgebirge), transforman<strong>do</strong> a região num próspero erico núcleo da mineração alemã. Em 1517, a cidade tornou-se,ao la<strong>do</strong> de Wittenberg, a primeira grande cidade ple<strong>na</strong>mentelutera<strong>na</strong> da <strong>Alemanha</strong>, manten<strong>do</strong> suas fortes tradiçõesprotestantes até hoje.A população local votou, nos últimos cinco anos,maciçamente no Parti<strong>do</strong> Socialdemocrata/SPD (em oposiçãono plano federal), elegen<strong>do</strong> como prefeito a Senhora PiaFideiss. Os da<strong>do</strong>s de desemprego <strong>na</strong> grande região – contan<strong>do</strong>com seus quase 500 mil habitantes – estão em regressão desde2009 (em junho de 2012 era de -2%), atingin<strong>do</strong> exatamente1 Professor Titular de História Moder<strong>na</strong> e Contemporâneada Universidade <strong>do</strong> Brasil/UFRJ, Coorde<strong>na</strong><strong>do</strong>r <strong>do</strong>Laboratório de Estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Tempo Presente/TEMPO eProfessor Visitante da Universidade Livre de Berlim.1 Os da<strong>do</strong>s aqui apresenta<strong>do</strong>s, em especial para o leitor brasileiro, foram coleta<strong>do</strong>sno: (oescritório federal alemão de estatísticas).


13.816 indivíduos, que são cobertos pelo sistema de seguridade social e, por lei, obriga<strong>do</strong>s, após umdetermi<strong>na</strong><strong>do</strong> perío<strong>do</strong>, a buscar escolas públicas especiais de formação em novas atividades 2 . Na própriaZwickau, o desemprego passou de 8,3%, em 2011, para 8%, em junho de 2012, manten<strong>do</strong> o ritmo dequeda constante desde 2008/2009, quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> auge da crise mundial 3 .Nesse senti<strong>do</strong>, Zwickau é uma exceção europeia e acompanha o perfil de prosperidade – emmeio à crise generalizada no continente – de crescimento da própria <strong>Alemanha</strong>. Em comparação comMadrid – com quase 43% de desemprego jovem – ou Valencia, ainda <strong>na</strong> Espanha, praticamente falidae com corte profun<strong>do</strong> nos seus serviços sociais ou, ainda, Tottenham, <strong>na</strong> periferia de Londres – ondedeze<strong>na</strong>s de centros sociais e de lazer foram fecha<strong>do</strong>s e o desemprego é de cerca de 16% –, Zwickaunão apresenta o perfil clássico de uma comunidade anômica e desestruturada por uma crise econômicae social.Francisco Carlos Teixeira Da SilvaE, dessa forma, o fenômeno brutal da <strong>ressurgência</strong> <strong>na</strong>zista <strong>na</strong> região, tor<strong>na</strong>-se uma questãoexcepcio<strong>na</strong>l para o entendimento da radicalização extremista entre os jovens no tempo presente.IntroduçãoÉ comum que mulheres e homens se voltem para o futuro com esperanças e expectativas demudança deixan<strong>do</strong> para trás o passa<strong>do</strong>. Mesmo a poesia – como em Drummond, de versos tão belossobre o tempo presente – costuma valorizar o presente e adivinhar um futuro sempre melhor. Nocotidiano, no nosso dia a dia, a vasta e vaga sabe<strong>do</strong>ria popular nos diz “para esquecer o passa<strong>do</strong>” e viver“para frente!”. Assim, deixar o passa<strong>do</strong> para trás e viver o presente, permitir que “os mortos enterremseus próprios mortos”, como diria Marx, é parte fundamental da sabe<strong>do</strong>ria popular. Mesmo o famosoverso da “Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l Comunista” (a canção) propunha “fazer <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> tábua rasa!” – logo a cançãoque se queria a consciência da classe operária! 4 .Tu<strong>do</strong> isso, é certo, pode ser bom e vantajoso, enquanto estratégia de sobrevivência, para pessoasatingidas duramente por um passa<strong>do</strong> traumático. Tratar-se-ia, então, de uma forma de acreditar quetu<strong>do</strong> pode melhorar, conforme o senso comum, com o tempo – “que tu<strong>do</strong> apaga!”. Talvez seja assimmesmo, mas, somente, talvez. Para muitos, a realidade e o seu peso vivi<strong>do</strong> num passa<strong>do</strong> são intoleráveis,2 Para uma visão <strong>do</strong> desemprego e das condições sociais locais, ver: .303 Disponível em: .4 Referimo-nos aqui ao brilhante ensaio <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r marxista Jean Chesneaux (1922-2007): Du passé faisons table rase? À propos del´histoire et des historiens. Paris: François Maspero, 1976.Mar-Set/ 2013


sen<strong>do</strong>, então, preferível afastar-se de tal realidade 5 . Pessoas que não encaram seus me<strong>do</strong>s ou traumas,que existem no passa<strong>do</strong>, são, no mais das vezes, conde<strong>na</strong>das a revivê-los, constantemente, enquantorecalque e, daí, a elaborar o passa<strong>do</strong> e a sua <strong>do</strong>r como me<strong>do</strong> real, <strong>na</strong> forma de neurose 6 .Se esquecer o passa<strong>do</strong>, tentar escondê-lo ou reprimi-lo, não é uma resposta saudável para aspessoas (com sérias possibilidades de causar <strong>do</strong>r psíquica constante ou mesmo um comportamentopouco saudável e impossibilitantes da felicidade, posto que os sintomas se mantém vivos e ativos <strong>na</strong> ação<strong>do</strong> recalca<strong>do</strong>), não seria assim também para as coletividades?Talvez existam aí as bases de um dano coletivo de monta, capaz de gerar comportamentoscoletivamente neuróticos? Possivelmente, a defesa <strong>do</strong> esquecimento <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, principalmente quan<strong>do</strong>o passa<strong>do</strong> é <strong>do</strong>loroso, desonroso ou de alguma forma feio, é a forma fácil com a qual a sociedade buscacurar as suas mais profundas feridas. Trata-se, assim, de uma forma superficial de cura – se é que falamosde “cura” no senti<strong>do</strong> clínico da palavra, o que no caso da sociedade é bastante duvi<strong>do</strong>so – que pode, nolimite, se transformar numa mentira coletiva e, enquanto um recalque coletivo ou uma renegação social,em neurose ou psicose de massas. Nesse caso, a mentira é benevolente, anestesiante, mas com certezaencobre <strong>do</strong>res que se transformam em comportamentos agressivos e capazes de gerar, em outros, algumaforma de <strong>do</strong>r. Eis aqui uma hipótese de trabalho sobre a resistência das sociedades, <strong>do</strong>s grupos ou dasinstituições sociais em negar o passa<strong>do</strong> e fixar-se, de forma repetitiva, no seu esquecimento.Sociedades, coletividades e instituições sociais são diversas de cada um <strong>do</strong>s indivíduos que ascompõem. Não são simples somatórios e, portanto, aquilo que podemos creditar aos indivíduos – umaontogênese complexa exposta a uma realidade que pode ser <strong>do</strong>lorosa – pode não ser adequa<strong>do</strong> para pensarsuas coletividades. Ou seja, os méto<strong>do</strong>s de abordagem <strong>do</strong> indivíduo e <strong>do</strong> coletivo guardam, sabemos comclareza, procedimentos e regras muito específicos e de difícil intercâmbio. Com isso, é possível fazer umaclara distinção, de um la<strong>do</strong>, entre as pessoas e o senso comum (o que seria sua “memória coletiva”, comfunções identitárias) e, de outro, entre as <strong>na</strong>ções e a sua história, sujeitas a critérios rigorosos e de leituranormatizada. Ou seja, temos que aprofundar as relações entre “senso comum” e memória individual emface <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e o conjunto de <strong>na</strong>rrativas que denomi<strong>na</strong>mos de história e a memória (esta como uma<strong>na</strong>rrativa coletiva institucio<strong>na</strong>lizada), capaz de <strong>do</strong>tar uma coletividade de referências comuns, entendidascomo uma “vivência”. Ou seja, a construção social de uma filogênese sancio<strong>na</strong>da coletivamente ou, aomenos, por seus grupos sociais hegemônicos 7 .Reconstruin<strong>do</strong> as fronteiras5 CUNHA, Jurema A. Dicionário de termos de psicanálise de Freud. Porto Alegre: Globo, 1978, p. 112.6 FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e angústias. Rio de Janeiro: Imago, 1998, p. 101 et seq.7 Creio que o esforço mais sistemático, rigoroso e frutífero, nessa direção, foi realiza<strong>do</strong> pelo historia<strong>do</strong>r Peter Gay. Num trabalho inicial, de caráterquase manualístico (“Freud para historia<strong>do</strong>res”), tais questões sobre o méto<strong>do</strong> psica<strong>na</strong>lítico aplica<strong>do</strong> aos agrupamentos sociais foram explicitadascom todas as suas dificuldades e possibilidades. Contu<strong>do</strong>, <strong>na</strong> ampla trilogia dedicada à Era Vitoria<strong>na</strong>, Peter Gay pode aplicar, com sucesso creio, taispossibilidades, em especial o volume O cultivo <strong>do</strong> ódio (São Paulo: Companhia das Letras, 1995).31Mar-Set/ 2013


construídas como o corpo <strong>do</strong> outro conveniente, <strong>do</strong> inimigo objetivo 17 .Assim, enquanto para alguns grupos sociais o trauma é fundante de uma nova identidade e seperpetua enquanto memória coletiva e fonte de uma <strong>do</strong>r revivida, em outros grupos a realidade pensadae construída – mesmo que falsifican<strong>do</strong> os da<strong>do</strong>s históricos – atua como atenuante, apazigua<strong>do</strong>r e capazde <strong>do</strong>tar um grupo de identidade e de autoatenuação de um passa<strong>do</strong> intolerável como realidade 18 .Francisco Carlos Teixeira Da SilvaO fenômeno sem nomeNa <strong>Alemanha</strong>, os grupos pensantes – e em ambos os esta<strong>do</strong>s que emergiram da Catástrofe de1933-1945, a <strong>Alemanha</strong> Federal e a <strong>Alemanha</strong> dita “democrática” (a antiga “DDR” ou <strong>Alemanha</strong> oriental)– buscaram, por vias diferenciadas, uma forma especial de esquecimento da experiência históricacomo catástrofe e abomi<strong>na</strong>ção: a assunção cabal e ba<strong>na</strong>l <strong>do</strong> trauma representa<strong>do</strong> pelo Holocausto, suaexposição pornográfica, através de monumentos, exposições e lugares de memória, como no caso da<strong>Alemanha</strong> Federal (e depois de 1991, a <strong>Alemanha</strong> reunificada). Para seus funda<strong>do</strong>res, e seus dirigentes,o <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l-socialismo emergiu como uma <strong>do</strong>ença (uma <strong>do</strong>ença moral) numa sociedade ferida e da qualum grupo de degenera<strong>do</strong>s e homens “sem nenhuma qualidade” se aproveitaram para chegar ao podere “enga<strong>na</strong>r” o povo alemão. Nesse senti<strong>do</strong>, a maioria <strong>do</strong> povo alemão foi vítima, como os demais povosda Europa, dessa <strong>do</strong>ença e de suas consequências. Por isso, o Esta<strong>do</strong> Federal <strong>na</strong> <strong>Alemanha</strong> pode exibirà luz, ad <strong>na</strong>useum, o passa<strong>do</strong> <strong>na</strong>zista, posto que esse passa<strong>do</strong> não seja o seu passa<strong>do</strong>, embora emerjadele, <strong>na</strong> sua origem – da atual república – tem a marca de vítima e não de perpetra<strong>do</strong>r.Enquanto isso, a <strong>Alemanha</strong> “democrática” (ou seja, a <strong>Alemanha</strong> comunista) declarou-se indeneao passa<strong>do</strong>, já que sua elite funda<strong>do</strong>ra (a liderança e os militantes <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunista Unifica<strong>do</strong>/SED,como herdeiros <strong>do</strong> KPD/Parti<strong>do</strong> Comunista da <strong>Alemanha</strong>) foi “vítima” <strong>do</strong> Terceiro Reich, ocupan<strong>do</strong>posto de honra nos campos de concentração (“KZ”) <strong>do</strong> <strong>na</strong>zismo. O fato de os comunistas figurarem,ao la<strong>do</strong> de judeus e das demais vítimas, como os primeiros ocupantes <strong>do</strong>s KZ teria o poder de eximirtoda a elite dirigente da antiga DDR de qualquer ligação com o passa<strong>do</strong>. Logo, não teriam qualquerperdão a pedir a ninguém ou qualquer compulsão a rememorar o passa<strong>do</strong> e, muito menos, obrigação deindenização às vítimas. Aqui a culpa era exclusivamente <strong>do</strong> outro e o outro, nesse caso, era a <strong>Alemanha</strong>ocidental. Onde se acusava, e não sem certa razão, de falso ar<strong>do</strong>r no processo de des<strong>na</strong>zificação e,mesmo, no preenchimento de cargos e funções políticas da República Federal por antigos quadros <strong>do</strong>3617 Sobre a sexualização da política e da arte no <strong>na</strong>zismo, existe uma ampla produção, embora nem sempre perceben<strong>do</strong> a capacidade desublimação da libi<strong>do</strong> em agir político através das festas e demonstrações de gozo coletivo. Ver: MAIWALD, Stefan; MISCHLER, Gerd. Sexualitätunter dem Hakenkreuz. Munique: Ullsstein Verlag, 2002; e MÜLLER, Joachim; STERNWEILER, Andreas. Homosexuelle Männer im KZSachsenhausen. Berlim: Rosa Winkel Verlag, s/d..18 Esse é um debate desenvolvi<strong>do</strong> e explicita<strong>do</strong> em: THEWELEIT, Klaus. Male fantasies. Cambridge: Polity Press, 1996.Mar-Set/ 2013


Parti<strong>do</strong> Nacio<strong>na</strong>l-Socialista 19 .O papel <strong>do</strong> conjunto da população – para além, é claro, das possíveis responsabilidades <strong>do</strong>scomunistas, via suas estratégias erradas e incompetentes, como sua filiação às interpretações da TerceiraInter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l Comunista sobre um pretenso “social-<strong>fascismo</strong>” <strong>do</strong>s socialdemocratas <strong>do</strong> SPD – não merecemaiores esclarecimentos.Da mesma forma, e de ambos os la<strong>do</strong>s <strong>do</strong> então existente “Muro”, uma análise acurada dasinstituições alemãs pré-1933 (instituições como a escola, a polícia, a burocracia de esta<strong>do</strong>, as FFAA, etc.)não mereceram a atenção necessária nesse quadro de análises, como se o <strong>fascismo</strong> alemão fosse estranhoà cultura e às instituições alemãs.Assim, o passa<strong>do</strong> era afasta<strong>do</strong> e oculto. Para ambos os la<strong>do</strong>s, no entanto, o passa<strong>do</strong> era visto edeclara<strong>do</strong> como um hiato, uma anomalia que se impôs entre 1933 e 1945 e sobre a qual a história davaum salto, sem qualquer elaboração, em direção ao futuro. O interessante, em ambas as “histórias oficiais”,reside <strong>na</strong> redução <strong>do</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l-socialismo à experiência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Policial, <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> SS, construí<strong>do</strong> apartir de 1933 e destruí<strong>do</strong> em 1945. A presença, e as origens, <strong>do</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l-socialismo <strong>na</strong> própria sociedadealemã, e europeia, não era/não é um tema para preocupação. Ou seja, o <strong>fascismo</strong> só existe enquantoEsta<strong>do</strong>, desprezan<strong>do</strong>-se a emergência e o terror fascista enquanto cotidiano mesmo antes de 1933 20 .Assim, é fácil para vários a<strong>na</strong>listas atuais, descartar a <strong>ressurgência</strong> de grupos fascistas em váriospaíses hoje – como os neo<strong>na</strong>zistas <strong>na</strong> <strong>Alemanha</strong>, os neofascistas italianos, os supremacistas brancos norteamericanos,os grupos de extrema-direita terrorista <strong>na</strong> Noruega, etc. – enquanto estes não se constituíremem Esta<strong>do</strong>. Na própria denomi<strong>na</strong>ção utilizada <strong>na</strong> mídia – “populista”, “radical” ou “extremista” – se ilidi opróprio caráter fascista de atos e práticas ostentadas por tais grupos.Assim, o próprio nome da “coisa”, o pai <strong>do</strong> horror, é suprimi<strong>do</strong>, confundi<strong>do</strong>, comprovan<strong>do</strong> o “maldito”como consciência ilidida e oculta. Assim, as denomi<strong>na</strong>ções de “fascista” ou “<strong>na</strong>zista” são alteradas,a partir de tais casuísmos, para “populistas”, “extremistas” ou “radicais”. Da mesma forma, os <strong>fascismo</strong>scomo movimento, inclusive como movimento sem condições de assunção <strong>do</strong> poder, não merecem aatenção <strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>r, da mídia ou das ações <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, posto que não apresentam condições concretasde se tor<strong>na</strong>rem atores centrais da história.É nesse senti<strong>do</strong> que o cotidiano de <strong>do</strong>r que tais grupos infligem aos outros – a <strong>do</strong>r de ver nopresente a repetição <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>; a <strong>do</strong>r da rememoração da perda; a <strong>do</strong>r <strong>do</strong> risco da negação da negaçãoReconstruin<strong>do</strong> as fronteiras19 Para esse debate, ver: AYÇOBERRY, Pierre. La question <strong>na</strong>zie: les interprétations du <strong>na</strong>tio<strong>na</strong>l-socialisme, 1922-1975. Paris : Seuil, 1979, 314 p.Coll. Points Histoire.20 Para um bom exemplo dessa “ilidição” <strong>do</strong> “nome”, ver a edição popular de: BREUER, Stefan. Die radikale Rechte in Deutschland 1871-1945.Stuttgart: Reclamen, 2010. Nem mesmo no índice de uma obra bastante popular e vendida a baixo preço – marca da editora “Reclamen” –, volta<strong>do</strong>para os chama<strong>do</strong>s “radicalismos de Direita”, aparece, se quer uma vez, o termo “<strong>na</strong>zismo” ou “<strong>fascismo</strong>”.37Mar-Set/ 2013


Francisco Carlos Teixeira Da Silva<strong>do</strong> “nunca mais” (o “Nie wieder”) – ao la<strong>do</strong> da <strong>do</strong>r física decorrente de ações brutais, tais como oespancamento, a tortura ou a morte de judeus, gays, estrangeiros, não merecem, para o efeito público,a nomeação de <strong>fascismo</strong>, deslocan<strong>do</strong>-se para o tempo <strong>do</strong> “mal-dito”. A recusa ao nome poupa asautoridades <strong>do</strong> exercício de expor-se à negação e ao combate daquilo que elas guardam em si mesma– o “inter-dito” – e, ao mesmo tempo, de reconhecer a presença <strong>do</strong> <strong>fascismo</strong> como uma possibilidadereal. O <strong>fascismo</strong>, tor<strong>na</strong><strong>do</strong> fenômeno cotidiano – seja em São Paulo, Berlin, Ate<strong>na</strong>s ou Santiago <strong>do</strong> Chile–, é considera<strong>do</strong> resíduo, fenômeno margi<strong>na</strong>l, que não atinge as macroestruturas sociais e políticas<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> ocorre um fenômeno maciço iniludível – como o atenta<strong>do</strong> em Oklahoma City,em 1995 (com 168 mortos e mais de 500 feri<strong>do</strong>s), ou a matança <strong>na</strong> Noruega, em 2011 (97 mortos ecente<strong>na</strong>s de feri<strong>do</strong>s), ou ainda a sistemática matança de homossexuais, como no Brasil 21 –, escapa-separa a perplexidade, seguida para morbidez <strong>do</strong> culpa<strong>do</strong>, tor<strong>na</strong>n<strong>do</strong> a ação política <strong>do</strong> fascista um casomédico. A <strong>do</strong>ença mental individual é a última trincheira <strong>do</strong> desconhecimento e da negação <strong>do</strong> <strong>fascismo</strong>.A medicamentalização <strong>do</strong> agir político fascista surge como um fenômeno regressivo, defensivo, de ilidirno nome a própria coisa, o fenômeno, e negar, de forma inconsciente, a possibilidade da coisa em si.Desfilian<strong>do</strong> o fenômeno – negan<strong>do</strong> o nome <strong>do</strong> pai, metáfora, de to<strong>do</strong> o nome – <strong>do</strong> <strong>fascismo</strong>, nega-sea possibilidade <strong>do</strong> “neo” ou da “re”-surgência <strong>do</strong> próprio <strong>fascismo</strong>. Sem nome, eu sou um não sou. Decerta forma, um diálogo semântico, paralelo, com os nomes “mal-ditos” (câncer, lúcifer, má sorte), cujapura e simples nomeação possui a capacidade de uma aparição ex-machi<strong>na</strong> <strong>do</strong> fenômeno temi<strong>do</strong> 22 .Os alemães, durante os anos <strong>do</strong> Nacio<strong>na</strong>l-Socialismo, acabaram por perceber esse fenômeno etor<strong>na</strong>r-se-ão em primorosos artistas da ilidição <strong>do</strong> nome. Assim, suas ações maciças e sistemáticas dehomicídios em suas diversas etapas e procedimentos foram acobertadas por nomeações que buscavama neutralidade de significantes: “Solução Fi<strong>na</strong>l”; “Aktion T4”, “Lebensborn”, etc. Não se tratava, comofacilmente podemos supor e afirmar, como é usual <strong>na</strong> literatura específica, de uma forma de “enga<strong>na</strong>r”os futuros vence<strong>do</strong>res ou o público – afi<strong>na</strong>l os <strong>na</strong>zistas pensavam que seriam vence<strong>do</strong>res e não haviaum “público” no regime <strong>na</strong>zista! As denomi<strong>na</strong>ções encoberta<strong>do</strong>ras são a própria negação da realidadeexpressas <strong>na</strong> recusa ao nome que permite a existência. Nesse senti<strong>do</strong>, o nome “inter-dito” – aqueleque é sabi<strong>do</strong> entre as partes, mas nunca é dito – tinha o papel apazigua<strong>do</strong>r e capaz de tor<strong>na</strong>r tolerávelo intolerável.Assim, ilidir o nome transforma-se em uma saída, precária e necessária, para acalmar a própriapossibilidade de deparar-se com o “passa<strong>do</strong> que não passa”, <strong>na</strong> expressão já famosa de Ernst Nolte. Emoutra chave, esse silêncio <strong>do</strong> nome da coisa, o “inter-dito” – moralizante, pretensamente pedagógico,3821 Em 2011, foram registra<strong>do</strong>s, de forma <strong>do</strong>cumentada, 266 assassi<strong>na</strong>tos de gays e lésbicas no Brasil, índice recorde desde sua criação. Amaioria <strong>do</strong>s casos foi através de meios atrozes, como espancamentos e torturas. Outras 56 pessoas foram espancadas, conseguin<strong>do</strong> salvar-se.Assim, o Brasil alcançou o primeiro lugar mundial <strong>na</strong> lista de assassi<strong>na</strong>tos homofóbicos para 2011. Ver: Assassi<strong>na</strong>tos de homossexuais no Brasil:Relatório 2011, disponível em: .22 Ver: SIBONY, D. L´Autre incastrable. Paris: Seuil, 1978, p. 28 et seq.Mar-Set/ 2013


jurídico ou acadêmico – de dizer o nome <strong>do</strong> fenômeno é parte de um processo maior de cumplicidadecom o próprio fenômeno <strong>do</strong> não dito.As instituições da República Federal – polícia, tribu<strong>na</strong>is, mídia, academia –, que descartam o<strong>fascismo</strong> como um fenômeno <strong>do</strong> cotidiano no tempo presente, acabam, pela mesma via, por tambémdescartar a <strong>do</strong>r e o sofrimento que tais grupos – os perpetra<strong>do</strong>res – impõem ao outro, às vítimas quenão participam de sua visão de mun<strong>do</strong> e/ou pertença aos padrões míticos/místicos (raça, gênero, origem<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l) origi<strong>na</strong><strong>do</strong>s <strong>na</strong> negação <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s perpetra<strong>do</strong>res da agressão.A negação imediata com que amplos segmentos da sociedade – incluin<strong>do</strong> aí importantes pesquisa<strong>do</strong>res<strong>na</strong> academia – afirmam a impossibilidade <strong>do</strong> fenômeno neo<strong>na</strong>zista <strong>na</strong> sociedade contemporânea – sejacomo movimento, seja como possibilidade de poder estatal – expressa a própria recusa de incorporaro passa<strong>do</strong> como vivência-viva e possibilidade contínua da história. Mas, também, oculta e “interdita”a própria presença desse passa<strong>do</strong>, como agir político, no interior de si mesmos. Assim, a tradicio<strong>na</strong>lcegueira da polícia e <strong>do</strong>s órgãos de repressão alemães para com os extremismos de direita, incluin<strong>do</strong> aíos terrorismos, enlaça-se <strong>na</strong> própria percepção de mun<strong>do</strong> e no compartilhamento da perda/negação portais grupos.Assim, muitas vezes, e isso será central em nossa análise, a tradicio<strong>na</strong>l cegueira “<strong>do</strong> olho direito”da polícia ocupa o espaço vazio <strong>do</strong> “inter-dito”, sabi<strong>do</strong>, mas nega<strong>do</strong> enquanto possibilidade de afloraçãopositivada, permitin<strong>do</strong> a complacência e a ausência da ação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> liberal-representativo no controle<strong>do</strong> fenômeno fascista. Para tais instituições, ele – o fenômeno fascista –, ao existir ape<strong>na</strong>s no espaço <strong>do</strong>“inter-dito”, nem mesmo está lá para ser a<strong>na</strong>lisa<strong>do</strong>, controla<strong>do</strong> e, claro, combati<strong>do</strong>. Para outros, como nocaso da clínica médica, há uma compulsão em abarcar no seu discurso toda e qualquer possibilidade deexistência <strong>do</strong> “mal-dito” – desde a negação da sociedade contemporânea massificada até a opção racio<strong>na</strong>lpelo terror como agir político. Assim, os atos racio<strong>na</strong>is (embora cruéis e brutais), direcio<strong>na</strong><strong>do</strong>s e realiza<strong>do</strong>scom precisão e cálculo por indivíduos que até a undécima hora viviam e eram trata<strong>do</strong>s como “gentecomo a gente”, mas caracteriza<strong>do</strong>s como de “terror” quan<strong>do</strong> positiva<strong>do</strong>s – o caso de Andres Breivik <strong>na</strong>Noruega, por exemplo –, são sempre caracteriza<strong>do</strong>s como morbidez. Trata-se de imperializar to<strong>do</strong> o agirconsidera<strong>do</strong> não regula<strong>do</strong> e hegemonizar os campos da sociologia, da história e da ciência política embusca de uma epistemologia monopolista <strong>do</strong> mal-estar, transforman<strong>do</strong> em <strong>do</strong>ença o mal. Por fim, paramuitos, imbuí<strong>do</strong>s de traços acríticos e desprovi<strong>do</strong>s de reflexão, de visões rousseaunia<strong>na</strong>s <strong>do</strong> homem,somente a privação de senti<strong>do</strong>, a possessão demoníaca ou a <strong>do</strong>ença poderiam explicar, apazigua<strong>do</strong>ra paraessas mentes humanistas, o <strong>fascismo</strong>. Estas negam <strong>na</strong> nomi<strong>na</strong>ção <strong>do</strong> agir fascista, a própria história comum<strong>do</strong> homem. Daquilo que é humano, ou como foi dito, demasiadamente humano.Reconstruin<strong>do</strong> as fronteiras39Mar-Set/ 2013


Do me<strong>do</strong> <strong>do</strong> nome ao me<strong>do</strong> <strong>do</strong> fenômenoNo caso alemão, é como se o <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l-socialismo, hiato-anomalia no curso normal da história,fosse uma <strong>do</strong>ença <strong>na</strong> história, um momento – 1933 – fora <strong>do</strong> curso normal <strong>do</strong>s acontecimentos. 1945restaura a normalidade, “libertan<strong>do</strong>” os próprios alemães <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> Terceiro Reich. Assim, to<strong>do</strong>ssão vítimas, excetuan<strong>do</strong>-se A<strong>do</strong>lf Hitler e, talvez, um pequeno grupo de “degenera<strong>do</strong>s” e, possivelmente,psicóticos, que lançaram mão <strong>do</strong> poder em 1933. Por que razão o povo alemão, ou ao menos umaimensa parcela da população, deu milhões de votos para os “degenera<strong>do</strong>s” em 1933 não são, dessaforma, um problema para a história 23 .Francisco Carlos Teixeira Da SilvaO inconveniente da negação <strong>do</strong> fenômeno, no caso alemão, é a combi<strong>na</strong>ção da derrota militar(e subsequente ocupação) com a abundância de provas materiais e testemunhais – muitas delasproduzidas pelo próprio <strong>na</strong>zismo – sobre o Holocausto. Mesmo sob o encobertamento da realidade– com o uso de nomes provenientes <strong>do</strong> “inter-dito” –, a massa de <strong>do</strong>cumentos fala sem parar. Assim,ao contrário, por exemplo, da <strong>na</strong>rrativa heroica da história america<strong>na</strong> sobre o extermínio <strong>do</strong>s índios,não podemos, no caso alemão, (1) relativizar o tempo e o espaço cultural e (2) manter o “mal-dito”enquanto <strong>na</strong>rrativa oficial. Os alemães, <strong>na</strong> Segunda Guerra Mundial, combi<strong>na</strong>ram as atrocidades daguerra com a opção racio<strong>na</strong>l e sistemática pelo genocídio. Assim, a simples ba<strong>na</strong>lização da guerra – dadestruição de Cartago até os extermínios de Gengis Khan – não encontra apoio <strong>na</strong> construção <strong>na</strong>rrativa<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> recente alemão 24 .Nesse caso, mais <strong>do</strong> que a guerra, o genocídio, a tortura e o assassi<strong>na</strong>to em massa é o núcleo<strong>do</strong> trauma. Assim, a <strong>Alemanha</strong>, derrotada e ocupada, fez da afirmação da culpa, iniludível nesse caso,uma tábua rasa <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, ba<strong>na</strong>lizan<strong>do</strong> o mal, o que se adéqua perfeitamente à vitimização da própria<strong>Alemanha</strong> perante o <strong>na</strong>zismo. Outros países, como por exemplo o Japão, insistem <strong>na</strong> guerra como arealidade central <strong>do</strong> trauma, negan<strong>do</strong> as ações racio<strong>na</strong>is, apoiadas ou patroci<strong>na</strong>das pelo Esta<strong>do</strong> e suasinstituições, tais como os genocídios, as experiências médicas com prisioneiros ou a violação maciça,como parte da história.Algumas vezes o passa<strong>do</strong> é tão traumático que a guerra tor<strong>na</strong>r-se uma desculpa.O problema da ba<strong>na</strong>lização <strong>do</strong> mal reside <strong>na</strong> aceitação – como expressa por A<strong>do</strong>lf Eichmannno seu julgamento em Jerusalém – da normalidade das ações de terror <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e, principalmente,<strong>do</strong>s seus funcionários. Tal procedimento descarta a presença <strong>do</strong> gozo sádico em face da tortura,4023 Para ver o uso político <strong>do</strong> outro como o “inimigo objetivo” em outros <strong>fascismo</strong>s, no caso da Itália, ver: BURGIO, Alberto (Org.). Nel nomedella razza. Bolonha: Il Mulino, 1998.24 KEEGAN, John. Uma história da guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.Mar-Set/ 2013


normalizan<strong>do</strong> até o repug<strong>na</strong>nte e desprezível papel <strong>do</strong> funcionário <strong>na</strong>zista 25 .Houve, tanto de forma consciente como <strong>na</strong> forma de recalque, um procedimento de escape maciçoem face da imensidão <strong>do</strong> crime cometi<strong>do</strong> pelos <strong>na</strong>zistas. Um crime tamanho, que se estende no tempo eno espaço em dimensões tão amplas, não poderia acontecer sem a assistência, a aceitação e, claramente,a colaboração de milhões de pessoas. Por essa razão, quan<strong>do</strong> a catástrofe se abateu de forma definitiva– a derrota militar e a ocupação em 1945 – e revelou suas dimensões, buscou-se transferir a culpa paraos homens mais óbvios. Alguns autores, como Joachim Fest e Anthony Beaver, ressaltam como no maisimediato pós-Guerra o nome de Hitler não era pronuncia<strong>do</strong> ou o era como um eco de um passa<strong>do</strong> muitodistante. Matava-se no nome <strong>do</strong> pai a existência <strong>do</strong> próprio fenômeno 26 .A construção <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> no pós-Guerra tratou de edificar um culpa<strong>do</strong> (quase) único, de carátergagligariano manipulan<strong>do</strong> um povo transforma<strong>do</strong> em seu conjunto em um “Caesar”, autômato conduzi<strong>do</strong>em transe para atos que escapavam ao seu controle moral. Hitler e os demais líderes <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Nazista(ou <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l-socialista) foram aponta<strong>do</strong>s, desde logo, como monstros, psicopatas e homicidas de massa. Aculpa tinha uma face e essa face era Hitler. Falava-se da <strong>Alemanha</strong> “hitlerista”, <strong>do</strong> “exército hitlerista”, <strong>do</strong>“parti<strong>do</strong> hitlerista” ou da “ditadura hitlerista” ocultan<strong>do</strong>-se, decididamente, o adjetivo pátrio “alemão” ou“alemã” e, muitas vezes, o próprio nome “<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l-socialista”, posto este ser, por sua própria <strong>na</strong>tureza,coletivo, de uma extensão social inegável. Da mesma forma, a denomi<strong>na</strong>ção da ditadura <strong>na</strong>zista comototalitária, termo que se ba<strong>na</strong>liza durante a Guerra Fria e adquire o caráter de “conceito combatente”,exclui a determi<strong>na</strong>ção <strong>do</strong> <strong>na</strong>zismo como o nome <strong>do</strong> fenômeno e produz generalização de formas de<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ção e exercício <strong>do</strong> poder. O <strong>na</strong>zismo/<strong>fascismo</strong>, o <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l-socialismo, mantém, dessa forma, o seucaráter de “inter-dito”, provan<strong>do</strong>-se a incrível dificuldade de dizer o nome “mal-dito”.Não dizer o sabi<strong>do</strong> e perpetuar o não dito possui uma função social. Com isso, a culpa <strong>do</strong> horrorrecaía sobre uma minoria, no limite sobre a pessoa de um único homem, o próprio Führer. A sociedadesurgia como “hipnotizada”, “enga<strong>na</strong>da”, “seduzida” e, dessa forma, como vítima. Para os funda<strong>do</strong>res da nova<strong>Alemanha</strong>, a “hora zero”, em 1945, não era a derrota, a capitulação – elementos constitutivos da puniçãopela culpa –, e sim a “libertação” pelos alia<strong>do</strong>s (ocidentais, é claro). Dessa forma, os próprios alemães –culpa<strong>do</strong>s unicamente por se terem deixa<strong>do</strong> seduzir pelo “fascínio” (o “schöneschein”) <strong>do</strong> <strong>na</strong>zismo e/oupelo próprio Führer enquanto gênio <strong>do</strong> mal – eram equipara<strong>do</strong>s às vítimas reais <strong>do</strong> <strong>na</strong>zismo 27 . A negação<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> vivi<strong>do</strong> em favor de uma reconstrução <strong>na</strong>rrativa <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> possível era a forma de caminharda consciência entre as ruí<strong>na</strong>s <strong>do</strong> intolerável.Reconstruin<strong>do</strong> as fronteiras25 AMÉRY, Jean. Die tortur. In: ______. Werke. Stuttgart: Klett-Cotta Verlag, 2002. v. 2.26 Sobre o fenômeno da participação maciça e <strong>do</strong> acolhimento <strong>do</strong> <strong>na</strong>zismo ver a tese de “radicalização acumulativa” de KERSHAW, Ian. Hitler, SãoPaulo, Cia das Letras, 2010.27 REICHEL, Peter. La fasci<strong>na</strong>tion du <strong>na</strong>zisme. Paris: Odile-Jacob, 1993.41Mar-Set/ 2013


Francisco Carlos Teixeira Da SilvaO fato de que milhões de alemães optaram voluntariamente por Hitler, deliraram pelas ruascom as marchas <strong>na</strong>zistas, apoiaram as medidas de construção da violenta ditadura <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l-socialista,participaram – com a delação, a segregação, as ofensas, o enriquecimento próprio ou com o simplessilêncio – da perseguição de grupos étnicos, religiosos ou de gênero não permite, de forma alguma,igualá-los com suas vítimas polonesas, judias, russas ou com outros alemães que sofreram por seremsimplesmente Testemunhas de Jeová ou gays. Se os alemães, em seu conjunto, foram vítimas – como nosterríveis bombardeios das cidades alemãs ou <strong>na</strong> fome e <strong>na</strong>s expropriações pós-1945 –, as opções quefizeram ou deixaram de fazer em 1933 são a raiz da história futura. Ou seja, 1945 está inscrito em 1933.Ora, os alemães sabem, verdadeiramente, o que foi 1933? Eis aqui a questão. Quan<strong>do</strong> a elaboraçãonegativa <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> impõe a <strong>na</strong>rrativa que 1933 foi uma ilusão, que foram então vítimas de um grupode psicopatas, mentirosos ou magos provi<strong>do</strong>s de poder de sedução sobre as massas, os tremen<strong>do</strong>ssofrimentos de 1918-1923 e sua repetição, em escala ainda maior, em 1945 tor<strong>na</strong>-se incompreensível,posto serem eles, também, vítimas. Tal construção <strong>na</strong>rrativa, centrada <strong>na</strong> vitimização <strong>do</strong> conjunto dapopulação alemã, produz um terrível resulta<strong>do</strong>: a tentação insuperável <strong>do</strong> trauma como repetição 28 .Assim, a <strong>ressurgência</strong> <strong>do</strong> <strong>fascismo</strong> emerge como um reorde<strong>na</strong>mento identitário, perverti<strong>do</strong>, da históriafalseada da própria <strong>Alemanha</strong>.A <strong>Alemanha</strong> perante seu passa<strong>do</strong>Hoje, a sociedade alemã defronta-se mais uma vez com seu próprio passa<strong>do</strong>. Um passa<strong>do</strong> que seergue <strong>do</strong> vazio, das sombras e <strong>do</strong> desconhecimento: um hiato que se queria esqueci<strong>do</strong> e decididamentesupera<strong>do</strong>. Tu<strong>do</strong> aquilo que se queria esqueci<strong>do</strong>, ou “cura<strong>do</strong>”, que não mais poderia acontecer (“Niewieder”), <strong>na</strong> verdade continua acontecen<strong>do</strong>. É o passa<strong>do</strong> que retor<strong>na</strong>, repetitivamente, como pesadeloe escândalo.Um escândalo dito em meias palavras: durante 13 anos uma organização neo<strong>na</strong>zista –“Natio<strong>na</strong>lsozialisticher Untergrund” (ou “Clandestinidade Nacio<strong>na</strong>l-Socialista”) assassinou pelo menos10 pessoas, fez mais de 14 ataques contra propriedades turcas e lugares de memória judeus, alémde assaltar bancos e participar regularmente de atividades de propaganda <strong>na</strong>zista em várias cidadesalemãs, incluin<strong>do</strong> manifestações públicas. Ainda, assim, e apesar da conhecida eficácia da polícia alemã(ou talvez com o conhecimento dela, segun<strong>do</strong> o jor<strong>na</strong>l “Tagesspiegel”), os terroristas permaneceramlivres e atuantes, até novembro de 2011 – quan<strong>do</strong>, sob perseguição e, fi<strong>na</strong>lmente, cerca<strong>do</strong>s, buscaramo suicídio, emulan<strong>do</strong> os perso<strong>na</strong>gens <strong>do</strong> Terceiro Reich. Em 2012, o Parlamento Alemão pede, emfim, um inquérito visan<strong>do</strong> estabelecer as ramificações e as condições em que agiram os três principaisacusa<strong>do</strong>s, bem como as relações <strong>do</strong> grupo <strong>na</strong>zista com a polícia.4228 Ver: FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar: novas recomendações sobre a técnica da psicanálise, II. In: ______. Edição standardbrasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 12, p. 165.Mar-Set/ 2013


Mais uma vez, por um tempo, vivo <strong>na</strong> <strong>Alemanha</strong> e busco entender esse passa<strong>do</strong> que se faz vivoa cada momento. O primeiro impacto, para olhos trei<strong>na</strong><strong>do</strong>s, é o exercício de conviver quotidia<strong>na</strong>mentecom os signos e ícones vivos de duas grandes guerras – a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e a GuerraFria (1945-1991). Além, é claro, da presença avassala<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s genocídios – judeus, opositores, simplesgente denomi<strong>na</strong>da de “anti-sociais” - “asoziale”, aqueles que não se enquadravam, nos parâmetros <strong>do</strong>“corpo <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l” alemão, tais como gays, Testemunhas de Jeová, ciganos, <strong>do</strong>entes mentais, alcoólatras,mulheres que recusavam a gravidez e deficientes físicos. To<strong>do</strong>s estes eram considera<strong>do</strong>s “sub-humanos”(“Untermenschen”) ou “gente de pouco valor racial” e, portanto, encara<strong>do</strong>s como um peso para asociedade alemã, entendida como uma “comunidade <strong>do</strong> povo”, “Volksgemeinschaft” 29 . Estes, os “subhumanos”– defini<strong>do</strong>s inclusive a partir de esforços racio<strong>na</strong>is de cientistas e pesquisa<strong>do</strong>res nos campos daantropologia e da fisiologia –, eram ou peso (consumiam alimentos, remédios, ocupavam hospitais e asilos)para o esforço de criar uma super-raça de 200 milhões de arianos ou eram culpa<strong>do</strong>s de “contami<strong>na</strong>r” araça superior, como no caso de gays, judeus e ciganos. Assim, não por seu agir, mas por sua essencialidade,estavam conde<strong>na</strong><strong>do</strong>s ao extermínio 30 .Assim, ao esbarrar em cada ícone deste “passa<strong>do</strong> que não passa”, mais enten<strong>do</strong> o passa<strong>do</strong> comoalgo vivo, real, pujante de signos. Aqui tropeçamos, literalmente, <strong>na</strong> história, seja no caminho <strong>do</strong> trabalho,de casa ou simplesmente quan<strong>do</strong> vamos a um barzinho para beber uma cerveja – uma lápide com umainscrição, uma placa no ponto de ônibus ou o muro de tijolos nos fun<strong>do</strong>s de sua casa encerram um passa<strong>do</strong>que nos diz o que a <strong>na</strong>rrativa oficial considera “mal-dito”.Aktion T4Aqui e ali a guerra mostra sua dura face: no pátio interno <strong>do</strong> meu prédio, <strong>na</strong> Rua da Comu<strong>na</strong> deParis, os buracos de balas e as crateras <strong>do</strong>s morteiros soviéticos da Batalha de Berlin ainda são visíveisnos remen<strong>do</strong>s apressa<strong>do</strong>s feitos nos fun<strong>do</strong>s (“Hinterhof”) <strong>do</strong> prédio. A história banida para as paredes<strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s mostra uma cara cheia de cicatrizes. Acor<strong>do</strong> e olho essa cara sem maquiagem <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.Diariamente, estou face a face com a guerra que foi a guerra de todas as guerras. Na esqui<strong>na</strong>, atravesso aKarl-Marx-Allee, que já foi a gloriosa “Avenida Stálin”, e que a revisão de Nikita Kruschev decidiu, em 1956,com mais pu<strong>do</strong>r, denomi<strong>na</strong>r tão somente Karl-Marx-Allee.Reconstruin<strong>do</strong> as fronteirasNo fim da minha rua, o muro sobrevive com sua falsa alegria de pichações coloridas: são bons 200metros de passa<strong>do</strong>, com sua curva separan<strong>do</strong> ruas, pra<strong>do</strong>s, quarteirões... E pessoas!Para além <strong>do</strong>s lugares materiais, de pedra e concreto, a guerra sobrevive <strong>na</strong> mente de to<strong>do</strong>s, umpouco zipada, para não fazer volume, mas está lá... Nos museus, em Karlshorst, onde o Marechal Keitel se29 A YAβ, Wolfgang. “Asoziale” im Natio<strong>na</strong>lsozialismus. Stuttgart: Klett-Cotta, 1995.30 WACHSMANN, Nikolaus. Gefangenen unter Hitler. Hamburgo: Sidler Verlag, 2004.43Mar-Set/ 2013


endeu ao Marechal Jukov, em maio de 1945, a<strong>do</strong>lescentes correm com suas pranchetas e computa<strong>do</strong>res,copian<strong>do</strong> datas, nomes, lugares, cifras... Nenhuma geração possui o direito de esquecer...Francisco Carlos Teixeira Da SilvaRua da Primavera, <strong>Alemanha</strong>E, no entanto, esquecem... Em Zwickau, esta cidade industrial no esta<strong>do</strong> da Saxônia a que nosreferimos <strong>na</strong> apresentação deste texto, uma célula neo<strong>na</strong>zista assassinou inúmeros estrangeiros (apolícia ainda trabalha para descobrir a extensão <strong>do</strong> grupo e <strong>do</strong>s mortos, até o momento chegou-sea oito turcos, um grego e um policial alemão, como as vítimas conhecidas, mas a Bundespolizei nãodescarta novas descobertas). O grupo, autodenomi<strong>na</strong><strong>do</strong> “Clandestinidade Nacio<strong>na</strong>l-socialista” (leiase,<strong>na</strong>zista), era composto – em sua base – por Beate Zschäpe, 36 anos, Uwe Mundlos, 38 anos, eUwe Bönhardt, 34 anos... To<strong>do</strong>s residentes <strong>na</strong> Rua da Primavera, 26, Zwickau. Eram quietos, calmos,respeita<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s vizinhos, não cantavam ou faziam bader<strong>na</strong> durante jogos de futebol, e nunca ouviammúsica alto demais... O aluguel era pago pontualmente to<strong>do</strong> dia 25 <strong>do</strong> mês, incluin<strong>do</strong> todas as taxas. Ouseja, eram to<strong>do</strong>s bons vizinhos, bons cidadãos e bons alemães. Identifica<strong>do</strong>s pela polícia, os <strong>do</strong>is Uwese mataram e Beate explodiu a casa, <strong>na</strong> tentativa de evitar a identificação da rede <strong>na</strong>zista e a capturade seus arquivos, onde constaria a extensão das ações de assassi<strong>na</strong>to e a lista de participantes. Antes,porém, Beate de forma pie<strong>do</strong>sa pediu a vizinha para cuidar de seus <strong>do</strong>is gatos...Beate escapou, e está presa: a polícia tenta estabelecer as relações da “Clandestinidade Nacio<strong>na</strong>l-Socialista” com outros grupos neo<strong>na</strong>zistas em Berlin, Kassel e Hannover – e muito possivelmente como Parti<strong>do</strong> Nacio<strong>na</strong>l Republicano, “die Reps”, que reclama para si, e com exclusividade, a herança <strong>na</strong>zista.O grupo era conheci<strong>do</strong> da polícia, que possivelmente tinha um agente infiltra<strong>do</strong> <strong>na</strong> rede. Osarquivos policiais sabiam também das reuniões e <strong>do</strong>s “cultos” pratica<strong>do</strong>s em honra <strong>do</strong> Terceiro Reich,além de atos de vandalismo e agressão contra judeus e estrangeiros durante anos segui<strong>do</strong>s. Além disso,o grupo havia divulga<strong>do</strong> (em 2010), com venda livre <strong>na</strong> internet, um CD-ROM denomi<strong>na</strong><strong>do</strong> “A<strong>do</strong>lf Hitlerlebt!” (A<strong>do</strong>lf Hitler vive!), com um tremen<strong>do</strong> “hit” denomi<strong>na</strong><strong>do</strong> “Donner Killer” – Donner, kebap, é acomida, e ao mesmo tempo o nome das peque<strong>na</strong>s lojas de lanches rápi<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s turcos residentes <strong>na</strong><strong>Alemanha</strong>, aqui composto com o substantivo “Killer”, mata<strong>do</strong>r, em inglês.Os crimes, cometi<strong>do</strong>s ao longo de treze anos, que estavam sem solução, eram conheci<strong>do</strong>scomo “os assassi<strong>na</strong>tos <strong>do</strong> kepab”!44Entender o ódioA pergunta que não se cala é imediata: por quê? Ou melhor: por que ainda? Nenhum <strong>do</strong>s trêsprincipais acusa<strong>do</strong>s – por serem jovens – vira ou viveram a guerra, não conheceram o Parti<strong>do</strong> Nazistaem sua época de apogeu, com suas marchas e festas de massas, e não participaram de suas maciçasMar-Set/ 2013


demonstrações cenograficamente preparadas. Ou foram “<strong>do</strong>utri<strong>na</strong><strong>do</strong>s” pela imprensa <strong>do</strong> Dr. Goebbels...Como historia<strong>do</strong>r, e acima de tu<strong>do</strong> como educa<strong>do</strong>r, gostaria de refazer o percurso dessas pessoas e voltarà escola, aos livros e aos professores que tiveram...Gostaria de saber como estudaram história: o que leram, se foram leva<strong>do</strong>s a algum museu ouexposição sobre a guerra ou se leram sequer cinco pági<strong>na</strong>s sobre o Holocausto? Teriam visto sequer umfilme, um <strong>do</strong>cumentário sobre os horrores <strong>na</strong> Rússia ou <strong>na</strong> Polônia ocupadas? Sabiam o significa<strong>do</strong> deAuschwitz ou Treblinka?O mal não é i<strong>na</strong>to, não deve ser algo inscrito no DNA ou no “solo e no sangue” (“Blut und Boden”), como os próprios<strong>na</strong>zistas queriam... Não, a resposta não deve residir aí, ou caso contrário os <strong>na</strong>zistas teriam razão: a história seria construídapela determi<strong>na</strong>ção de raça. Não, a falha que permitiu o retorno <strong>do</strong> mal em Zwickau está, com certeza, em outros fatores.Houve uma falha, algo que se quebrou no fun<strong>do</strong> da vida dessas pessoas ba<strong>na</strong>is, num bairro ba<strong>na</strong>l,de uma cidade industrial interiora<strong>na</strong> e também ba<strong>na</strong>l. Em algum momento, a educação – não só o ensinoda história, mas to<strong>do</strong> o processo educativo – falhou! A escola não soube, ou não pôde com seus meios,evitar o <strong>na</strong>zismo (de novo)! O grupo de Zwickau é uma derrota da escola, para além de comprovar aleniência histórica da polícia alemã com a extrema-direita fascista.Podemos, é claro, falar de uma sociedade hierárquica, por demais organizada, pronta para sacrificaro individual e o humano, ao rigor das agendas, das normas, <strong>do</strong>s parágrafos e artigos <strong>do</strong>s códigos, <strong>do</strong>s quaisnão se pergunta, ou se questio<strong>na</strong>, a origem e o significa<strong>do</strong>.Podemos, é claro, falar de pessoas maciçamente sozinhas, em roti<strong>na</strong>s enfa<strong>do</strong>nhas, sem espaço parao diferente, onde até um passeio, uma “Pils” no bar da esqui<strong>na</strong>, obedece a regras, horários e normas, quenão podem ser contrariadas.Podemos, é claro, falar de pessoas que não se cumprimentam o vizinho, ou o fazem quase comoum ros<strong>na</strong><strong>do</strong>, que fingem não ver o outro e que leem sempre o mesmo livro barato da “Reclamen” <strong>na</strong>viagem de metrô só para não falar com o passageiro ao la<strong>do</strong>.Reconstruin<strong>do</strong> as fronteirasPodemos, ainda, falar de uma peque<strong>na</strong> classe média, de uma burguesia de lojistas, de funcionáriospúblicos e agentes <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> – to<strong>do</strong>s à beira da proletarização ao estilo europeu! – que desconfiam<strong>na</strong>turalmente de estrangeiros. Pouco importa que você fale alemão, já estão disponíveis a não entender, anão ajudar, a recusar uma informação ou mesmo um serviço.Mas, <strong>na</strong>da disso explica por si só o retorno – a repetição mais uma vez de um fenômeno que éagora conheci<strong>do</strong> e, por isso mesmo, não há justificativa para que se repita o horror. Desta feita, ninguémpode alegar ingenuidade, desconhecimento ou dizer que não sabia. Toda alegação de inocência oudesconhecimento da história é criminosa – ou ainda pior: inuma<strong>na</strong>.45Mar-Set/ 2013


Francisco Carlos Teixeira Da Silva46Mesmo rotineiros e solitários a grande maioria <strong>do</strong>s alemães é partidária da República, apoiaa Constituição democrática e convive de forma normal com os seus vizinhos, mesmo se eles sãoestrangeiros. Muitos preferem bares, restaurantes e quiosques de turcos, gregos ou italianos e gostamde pizza, kebap e de caipirinhas.Mas podemos também acreditar que existem aqui e ali pessoas caladas, bons vizinhos, quegostam de gatos e pagam suas contas em dia, que não fazem barulho e não perturbam os vizinhos,como Beate, e que tramam coisas terríveis.Existem, também, outros grupos e instituições que negam a própria evidência <strong>do</strong> re<strong>na</strong>scer <strong>do</strong>mal. De um la<strong>do</strong>, são vítimas – históricas, repetitivas – da ação <strong>do</strong>s fascistas – é aqui, neste espaço, quevive e se estende o “mal-dito”. Estes são vítimas históricas, ou seja, foram os alvos reais e concretos<strong>do</strong> Holocausto, <strong>do</strong> “shoah” histórico, da humilhação racial como nos apartheids e <strong>na</strong> presença <strong>do</strong>horror de entidades como a Ku-Klux-Klan. Mas são também vítimas <strong>do</strong> trauma de um Holocausto oude um apartheid interioriza<strong>do</strong> e capaz de se repetir como recalque e inclusive ser transmiti<strong>do</strong> de formageracio<strong>na</strong>l como incapacidade de superar a <strong>do</strong>r. Nesse senti<strong>do</strong>, o trauma origi<strong>na</strong>l – a humilhação racial,a ameaça real de extermínio – alimenta a repetição fantasística (ou seja, como espectro escondi<strong>do</strong>no recôndito de cada indivíduo) que molda comportamentos e respostas. Muitos desses indivíduos– e isso é recorrente, por exemplo, <strong>na</strong> <strong>Alemanha</strong> contemporânea – negam qualquer possibilidade derepetição histórica <strong>do</strong> horror. O horror interioriza<strong>do</strong>, não dissolvi<strong>do</strong> <strong>na</strong> elaboração não repressiva <strong>do</strong>passa<strong>do</strong> e não compreendi<strong>do</strong> enquanto história, retor<strong>na</strong> como negação quase histérica de qualquerpossibilidade histórica de <strong>ressurgência</strong> <strong>do</strong> próprio <strong>fascismo</strong>. O trauma é tão terrível, permanece tãopresente e insupera<strong>do</strong>, que é <strong>do</strong>loroso demais pensar que pode, ainda uma vez, acontecer. Assim, ossi<strong>na</strong>is evidentes de uma ação fascista contemporânea são nega<strong>do</strong>s com veemência absoluta. Inúmerasinstituições alemãs o fazem hoje com veemência. Desde a polícia até pedagogos humanistas falamem “delinquência juvenil”, em falha personológica ou em xenofobia, quan<strong>do</strong> muito. O <strong>fascismo</strong>, queos <strong>do</strong>is Uwes e Beate procuraram e reclamaram para si mesmos como o nome <strong>do</strong> pai, é nega<strong>do</strong>,exproprian<strong>do</strong> os perpetra<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s crimes da própria capacidade de se autonomearem. O nome devepermanecer “inter-dito”. Mesmo instituições judias adéquam-se a uma certa discrição em apontar o<strong>fascismo</strong> ressurgi<strong>do</strong> <strong>na</strong> sociedade alemã.A <strong>do</strong>r deve ser trancada no passa<strong>do</strong> e lá permanecer, posto que sua possibilidade contemporâneaseria insuportável. Evidentemente que o passa<strong>do</strong> não se deixa calar e retor<strong>na</strong> sob a forma de neurosecoletiva. Uma das formas de expressão desse passa<strong>do</strong> trancafia<strong>do</strong> e, contu<strong>do</strong>, falante é a recusa demuitos intelectuais judeus em enfrentar o risco fascista atual. Para muitos, isso se dá através de umarecuperação histórica <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> judeu <strong>na</strong> <strong>Alemanha</strong> (ou Áustria, Hungria, Romênia) como sen<strong>do</strong> umahistória comum e normalizada, sem riscos anteriores ao <strong>fascismo</strong>, que se transforma assim, tambémpara eles, em hiato, espasmo, histórico. O risco da permanência e da continuidade <strong>do</strong> fenômeno <strong>do</strong>Mar-Set/ 2013


<strong>fascismo</strong> deve, dessa forma, desaparecer. Para muitos, o <strong>fascismo</strong> é história e só história. Não se repete enão poderia se repetir, nem como fenômeno de massa e conquista de poder, nem mesmo como eventolocal em microinstituições (como a polícia ou a clínica) ou pequenos grupos, como o “SubterrâneoNacio<strong>na</strong>l-Socialista” de Zwickau. Essa é uma resposta apazigua<strong>do</strong>ra, mas incapaz de pacificar o danotraumático que, mesmo em face da negação da história presente, continua geran<strong>do</strong> <strong>do</strong>r.A outra atitude, individual, de grupo ou institucio<strong>na</strong>l, é uma derivação da mesma negação traumáticade viver de forma liberta<strong>do</strong>ra o trauma elaboran<strong>do</strong>-o, (o “Durcharbeiten”) em busca da superação.Nesse caso, estão as atitudes que consideram desde logo a ação fascista como um fato patológico, uma<strong>do</strong>ença que afeta o indivíduo. Assim, perso<strong>na</strong>gens como A<strong>do</strong>lf Hitler, Timothy MacVeigh (o terrorista queexecutou o atenta<strong>do</strong> em Oklahoma, EUA) ou Anders Breivik (o terrorista norueguês que atacou prédios<strong>do</strong> governo e jovens num evento político) seriam psicopatas, <strong>do</strong>entes e mesmo, no limite, incapazes noseu senti<strong>do</strong> jurídico, permanecen<strong>do</strong> inimputáveis. Assim, a junta médica indicada pela justiça norueguesaproduziu um diagnóstico de esquizofrenia para o terrorista, o que livraria de um julgamento. Na verdade,duas ações convergiram no primeiro diagnóstico de esquizofrenia de Breivik: de um la<strong>do</strong>, o imperialismoepistemológico da clínica, tentan<strong>do</strong> abraçar to<strong>do</strong> o comportamento não regula<strong>do</strong> e, de outro, a reação<strong>do</strong>s tribu<strong>na</strong>is e das instituições políticas, buscan<strong>do</strong> evitar que Breivik defenda, de forma racio<strong>na</strong>l, seuspontos de vista políticos.O julgamento de Breivik é o julgamento das instituições norueguesas que exporiam o “inter-dito”à luz, causan<strong>do</strong> profun<strong>do</strong> mal-estar.Nesse caso, como em outros, as instituições responsáveis se negam a reconhecer o ato terroristacomo um ato político, mesmo sen<strong>do</strong> um ato de terror de massas claramente direcio<strong>na</strong><strong>do</strong> por um militantede extrema-direita contra uma festa patroci<strong>na</strong>da por um parti<strong>do</strong> socialista. A base de diagnose pressupõeuma forma “normal” e única de agir político, de concepção ideológica <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, claramente derivada <strong>do</strong>agir político <strong>do</strong> universo liberal-representativo. Fora desse mun<strong>do</strong> “normal-liberal” só existiria a loucura.Estamos muito próximos <strong>do</strong>s dirigentes soviéticos que, à época <strong>do</strong> stalinismo, conde<strong>na</strong>vam os dissidentesa inter<strong>na</strong>ções em manicômios, posto que o socialismo real fosse tão perfeito que se opor a ele seria umato de insanidade. Assim, as duas principais derivações <strong>do</strong> racio<strong>na</strong>lismo iluminista <strong>do</strong> século XVIII – oliberalismo e o socialismo real – “normalizaram” a política conforme seu próprio agir, poden<strong>do</strong> assimdefinir as demais formas <strong>do</strong> ato político (pacífico, maciço, individual ou violento) como psicótico.O que fica patente nesse caso é que a fala <strong>do</strong> fascista – no caso de Breivik –, explícita, clara, <strong>na</strong>defesa da violência e <strong>do</strong> extermínio como forma de alcançar os seus objetivos, não é considerada comopossível, deven<strong>do</strong> sofrer o “inter-dito”. Da mesma forma que autonomeação, o reclamar da herança <strong>do</strong>nome <strong>do</strong> pai, por parte <strong>do</strong>s assassinos <strong>do</strong> “Untergrund Natio<strong>na</strong>lsozialistische”, também não é aceito,deven<strong>do</strong> manter-se no campo <strong>do</strong> “mal-dito”. A própria fala <strong>do</strong> fascista, como <strong>na</strong> frente da junta médicaReconstruin<strong>do</strong> as fronteiras47Mar-Set/ 2013


de Oslo, é deixada de la<strong>do</strong>, desconsiderada, por não ser adequada ao manual normatiza<strong>do</strong> da política“oficial” e, principalmente, por ser revela<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> “mal-dito” e destrui<strong>do</strong>ra das regras <strong>do</strong> “inter-dito”.A dura realidade – que a violência fascista é expressão clara de uma concepção ideológica eparte <strong>do</strong> conjunto de concepções existentes no interior da própria sociedade – é, dessa forma, negada.O <strong>fascismo</strong> é, dessa forma, bani<strong>do</strong> da possibilidade da história. Trata-se da mesma negação traumáticada história 31 .Francisco Carlos Teixeira Da SilvaQuem deseja o passa<strong>do</strong>?Há, então, uma minoria disponível ao retorno da história, a sua repetição – e ainda esta vez nãoé como burla, comédia ou farsa, como atestam os mortos de Zwickau. Há um componente autoritário,há um componente de recusa ao diferente e de frieza <strong>na</strong>s relações interpessoais – incluin<strong>do</strong> aí asrelações entre os próprios alemães, com seus próprios filhos – e, em torno disso tu<strong>do</strong>, uma profundafalha de educação – no seu senti<strong>do</strong> mais largo, que alimenta a possibilidade fascista.Por isso mesmo, pelo papel <strong>do</strong>s educa<strong>do</strong>res, que o passa<strong>do</strong> não é algo morto, não é um lugarque não existe mais. Muitos historia<strong>do</strong>res, colegas de grande valor, foram conquista<strong>do</strong>s por matizesdiferentes de uma leitura <strong>na</strong>rrativista da história, onde o objeto <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r não é o passa<strong>do</strong> e suareconstrução, mas, sim, as “falas” sobre o passa<strong>do</strong>, todas <strong>do</strong>tadas <strong>do</strong> mesmo estatuto de valor. Pensoque não. Nem todas as <strong>na</strong>rrativas possuem o mesmo valor heurístico, para não falar em valor ético. Damesma forma que as diversas vivências são irredutíveis. A <strong>na</strong>rrativa sobre os campos de concentraçãofeita pelos seus guardas SS não possui o mesmo valor da <strong>na</strong>rrativa de um prisioneiro <strong>do</strong> mesmo campo,embora ambos tenham vivi<strong>do</strong> no mesmo espaço e tempo e “inter-agi<strong>do</strong>”. O que cada um vive difereintrinsecamente da vivência <strong>do</strong> outro. E cada vivência é única, precisa ser resgatada e exposta. Elaé a verdade? Não toda a verdade, é a verdade vivida de cada um, ou seja, o passa<strong>do</strong> num mosaicointerminável. A multiplicação de verdades vividas, juntas, comparadas, cruzadas, constitui uma rede deveracidade e material da história.Temos que nos apressar em relatar essas vivências, num esforço contínuo para evitar rupturasnessa vasta rede de verdades vividas. Uma falha <strong>na</strong> malha, ampla, diversa, como uma tela ilumi<strong>na</strong>da deMatisse, é o bastante. O risco de ignorar o que foi vivi<strong>do</strong> avoluma-se, conde<strong>na</strong>n<strong>do</strong>-nos a viver de novoe de novo o “já existi<strong>do</strong>” enquanto experiência única.48Se os assassinos de Zwickau tivessem visita<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescentes, o Campo de Sachsenhausenou Dachau teriam eles organiza<strong>do</strong> o grupo neo<strong>na</strong>zista que torturou e matou durante anos impunemente?Eis uma questão importante.31 Ver: MANIFESTO terrorista vira monólogo. O Globo, Rio de Janeiro, 1 fev. 2012. Segun<strong>do</strong> Caderno, p. 4. Uma exceção aqui é a militância<strong>do</strong> teatrólogo di<strong>na</strong>marquês Chrsitian Lollike, que insiste em tomar a “fala fascista” de Breivik como expressão de uma visão de mun<strong>do</strong>.Mar-Set/ 2013


Quan<strong>do</strong> <strong>na</strong> <strong>Alemanha</strong>, ou ainda agora no Chile, ou mesmo no Brasil muitas vozes declaram que opassa<strong>do</strong> está morto (“quem vive de passa<strong>do</strong> é museu!”) ou que não vale à pe<strong>na</strong> ressuscitá-lo, cometemum erro basilar: nenhum passa<strong>do</strong> é morto. São vivências, próprias e <strong>do</strong>s outros, que continuam a existir,a alimentar-se mutuamente, forman<strong>do</strong> uma rede que envolve to<strong>do</strong>s nós... e, no limite, a repetir-se. Nósto<strong>do</strong>s somos produtos <strong>do</strong>s nossos passa<strong>do</strong>s, seja como ontogênese, seja como filogênese. Para uns, umpassa<strong>do</strong> elabora<strong>do</strong>, compreendi<strong>do</strong> e capaz de sustentar projetos de felicidade. Para outros, um passa<strong>do</strong>construí<strong>do</strong> em torno <strong>do</strong> trauma, recalca<strong>do</strong> e, por isso, conde<strong>na</strong><strong>do</strong> a repetir-se como negação da realidade.Olhan<strong>do</strong> agora pela minha janela, vejo to<strong>do</strong> o passa<strong>do</strong> nos tijolos remenda<strong>do</strong>s apressadamente nobloco de apartamentos da Rua da Comu<strong>na</strong> de Paris – formam outra rede de tijolos, remen<strong>do</strong>s, buracose ausências. O passa<strong>do</strong> está lá, está <strong>na</strong> Rua da Primavera e está com aqueles que morreram porque opassa<strong>do</strong> vive.Reconstruin<strong>do</strong> as fronteiras49Mar-Set/ 2013

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