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A Diversidade Revelada - Cepac

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PREFÁCIOO AMOR NADIVERSIDADEAureliano BiancarelliA DIVERSIDADE REVELADA4Já esperava ouvir relatos de humilhações e maustratossofridos pela população LGBT, especialmentepor parte das travestis e transexuais. Aangústia de gays que abandonaram a casa dospais depois de agredidos e foram morar na rua.Garotas travestis que fugiram de suas famílias ese aventuraram sozinhas em busca de hormônio e declientela. Só não esperava que o amor e o companheirismosobrevivessem com tanta força entre essespersonagens. No Centro de Referência da <strong>Diversidade</strong>é comum ver casais de mãos dadas, ela travesti, eleheterossexual, os dois morando na rua. Em todos osrelatos, em meio a histórias de maus-tratos, abandonoe discriminação, há sempre uma história de amorMikaela é capaz de quebrar um bar se alguém maltratauma de suas colegas travestis. Na “vida real”, imaginauma casinha onde possa trabalhar no computador,ao lado do “esposo” que diz amar. Luiza Santosvive há 14 anos com o companheiro e sonha com o diaem que poderá presenteá-lo com uma vagina, sem anecessidade de esconder o pênis atrofiado. Ele nuncase queixou, diz ela. Alexsandro, um homem trans, tevevárias parceiras heterossexuais. A família da atual namoradaprepara o casamento. Rodrigo já foi michê eagora, portador do HIV, troca cuidados com a companheiraque é travesti e sofre com um câncer. Marcianoganhou dinheiro como cafetão, até cair no crack e adoecercom câncer e aids. Em nenhum momento antes edepois da doença, ele conta, foi abandonado por companheiras,travestis e mulheres, que estiveram ao seulado. A travesti Camila, no entusiasmo dos seus 20 anos,deixou o albergue e passou a morar nas ruas por “amorao esposo”. A transexual Alessandra conheceu o com-panheiro com quem vai se casar quando se preparavapara a cirurgia de redesignação sexual. Os pais do casaljá foram apresentados.A descoberta do amor nesse universo marginal surgiuao longo das muitas entrevistas. A solidariedade e atroca de cuidados, como gestos de amor, estão presentesem quase todos os relatos. Já se imaginava um universode preconceito mas o amor não estava na pauta,nem na lista de preocupações dessa publicação.A proposta foi deixar que contassem suas histórias.Reunir relatos descritos a partir do olhar de quemse encontra na rua ou dependente da rua, onde seusexo, definido ou imaginado, é a razão das atençõese discriminações. Muitas vezes desejadas e fantasiadas,travestis e transexuais são objetos de desejos escondidos– ou revelados – nas escapadas noturnasde “clientes” em avenidas e esquinas pouco iluminadasda cidade. Na lista dos clientes estão garotos comcarro emprestado dos pais e homens à procura decompanhia.A proposta dos textos que se seguem é reproduziras histórias dessas travestis e transexuais. Falar dasbarreiras que separam essas personagens dos serviçospúblicos, principalmente aqueles de saúde. A publicaçãodedica cuidado diferenciado e esperançoso a doisserviços recentes que buscam olhares e atenção inovadorespara essa população. Trata-se do CRD, oCentro de Referência da <strong>Diversidade</strong>, parceria daONG Grupo Pela Vidda/SP com a Prefeitura de SãoPaulo. E do Ambulatório de Saúde Integral para Travestise Transexuais, do Centro de Treinamento eReferência DST/Aids-SP, serviço da Secretaria deEstado da Saúde de São Paulo.


Aos olhos dessa publicação, estes locais revelam-sepontos de encontro com um universo marginal e estigmatizado,mal compreendido e subavaliado. A dependênciapelo crack e a infecção pelo HIV, altamentepresentes nessa população, são duas ameaças para asquais a sociedade e a saúde pública ainda não prestarama devida atenção. Os custos produzidos pela violênciadesse vulcão silencioso, os gastos com saúde, asperdas de vidas e o sofrimento dos sobreviventes sóserão conhecidos quando a conta chegar. E ela chegarácom acréscimos nem sempre possíveis de bancar.Convidado a produzir os textos dessa publicação,me senti à vontade para reunir relatos que ilustram avida de personagens e dados sobre serviços de saúde,procedimentos médicos e legislações. A cirurgia deredesignação sexual para transexuais foi oficializadano Brasil em 2002, um atraso de meio século quandose compara com países desenvolvidos. A Justiça tambémempacou nos seus códigos, e a mudança de nome– e especialmente de sexo – ainda requer uma longa ecara ação individual. O cenário vem mudando, mas adesesperança na fila das cirurgias – agravada com afalta de transparência – e as dificuldades na mudançade nome fazem parte de quase todos os relatos.A discriminação e a pouca atenção dedicadas atravestis e transexuais se arrastam ao longo de séculos.Um dia alguém ainda escreverá sobre o sofrimentodessa população, ignorada e estigmatizada.Historiadores e antropólogos ainda não deram a devidaatenção a esses personagens.Até décadas atrás, a medicina tinha pouco a fazer.Agora que tem, limita a atenção a uma minúsculaminoria de transexuais, como se tratasse de uma “luxúria”,não de uma modificação que necessitasse decuidados médicos. A oferta dos serviços públicos, sóagora regulamentada, não dá conta de uma ínfimaparcela das transexuais. A maioria, mesmos nos “temposmodernos”, morrerá embalando o sonho de ter opênis trocado por uma vagina. Aos homens trans, nãohá sequer a perspectiva de implantação de um pênis,técnica ainda experimental.O resultado desta publicação é ainda uma viagemsuperficial num território outrora batizadoequivocadamente de “terceiro sexo”, ignorado pelamaioria heterossexual. Já começou o milênio ondehomens e mulheres serão superados por um sexo quenão será nem masculino nem feminino, fantasiamalguns militantes LGBT.Verdade ou fantasia, o livro revela que pouco sesabe sobre esse outro universo. E que poucos cuidadosvêm sendo dispensados para aqueles que vivementre a marginalidade e a sobrevivência. O que se sabe,é que eles vêm abandonando o ninho e ganhando vozno meio social.Enquanto a sociedade não presta atenção nem cuidados,travestis, transexuais e michês se protegem dividindosolidariedade e se juntando em casais. A impressãoque salta dos relatos é a de que o amor nadiversidade é mais generoso e menos opressivo do queentre casais heterossexuais. O preço que se paga, noentanto, continua muito alto.A grande maioria das entrevistas foi feita entremarço e junho de 2010, nos espaços do CRD e doambulatório. Algumas poucas foram feitas por telefone.Todos os entrevistados e entrevistadas concordaramcom a publicação de seus nomes e de suas fotos. 5A DIVERSIDADE REVELADA


INTRODUÇÃOUM TEMAESTIGMATIZADOE IGNORADO“Não mudamos nada, apenas adequamos o sexo ao cérebro”, diz ocirurgião que mais fez cirurgias de redesignação sexual no Brasil.Muito além dos bisturis, o desafio está em adequar as mentesheterossexuais à convivência com a diversidade.A DIVERSIDADE REVELADA6Relatos de personagens de uma chamada“diversidade” estão registrados nos capítulosdesta publicação. São mulheres trans –que nasceram com corpo de homem e sesentem mulheres. E de homens trans, queconservam os órgãos femininos, mas pensame agem como homens. O respeito e os cuidadospsicológicos e médicos a essa população dependemde um amadurecimento da sociedade. Vai do conhecimentoe da atenção médica, que inclui cirurgiascomplexas e reordenações do serviço público, aosavanços em termos da legislação e até mesmo às interpretaçõesdo Judiciário.Nos códigos prevalentes, não há espaço para um“terceiro sexo”, por isso a mudança do nome e dosexo depende de demorados e complexos processosna Justiça. Medicina e Judiciário estão décadas atrásde um processo de readequação do sexo que há séculosaparece em relatos, em todas as civilizações eem todas as épocas.Camufladas e escondidas no meio social, as travestisseriam 800 mil no Brasil e 400 mil as transexuais,segundo estimativas da Antra, articulação nacional quereúne essa população. Mesmo reduzidas a um décimodesse número, não há estrutura nos serviços públicoscapaz de atender sequer uma parcela dessa população.Sem a pretensão de ordenar temas ou de explorartodas as dificuldades da população LGBT, os textosque se seguem nesta publicação tratam das questõesda legalidade, do direito ao nome, dos serviçosde saúde e do reconhecimento desse grupo. Especialistasdo direito e da saúde, e ativistas transexuais,expõem seus pontos de vistas e falam de suas experiênciascom essa população.Os depoimentos das pessoas entrevistadas ilustramum cenário desconhecido e ignorado mesmo pelosprofissionais que deveriam estar de olhos mais atentospara a evolução dos conceitos. “Não mudamos nada,apenas adequamos o sexo ao cérebro”, diz Jalma Jurado,o cirurgião plástico brasileiro que diz já ter feito800 cirurgias de redesignação sexual. A grande maioriados profissionais ainda terá de amadurecer antesde pensar como ele.A seguir, falas resumidas de alguns e algumas daspersonagens, cujas histórias em detalhe podem ser vistasao longo desta publicação.


AGNES traz entre os seios umatatuagem com seu nome, uma cruz euma borboleta. Fez isso quando tinha23 anos. Deprimida, tinha decidido sematar, mas não se conformava com ofato de que na lápide ficaria gravadoseu nome masculino. Com atatuagem, saberiam que estavamenterrando uma mulher, elaimaginava. Desistiu do suicídio, masse inquieta ao pensar que se morrerantes da cirurgia e da mudança nosdocumentos trocarão suas roupas porum paletó de homem e na lápideficará seu nome masculino.ALEXSANDRO já teve quatrocasamentos com mulheresheterossexuais e diz que semprecumpriu suas “funções de homem emarido”. Agora está diante de umdilema: os pais da atual namoradaesperam um casamento na igreja e depapel passado. Só que ele é um homemtrans, tem barba e traços masculinos,mas disfarça os seios e esconde umavagina. E nos documentos traz o nomede mulher. Sua esperança é conseguiruma cirurgia para a retirada dos seios, jáque substituir a vagina por um pênis éuma possibilidade remota. E mudar onome depende de um processo lentona Justiça. A data do casamento está seaproximando.ANDRÉIA FERRARESI carrega napasta repleta de papéis um laudo de1977 informando que é portadora detransexualismo e que está apta para acirurgia de adaptação de genitais. Só25 anos depois, em 2002, o ConselhoFederal de Medicina viria a autorizaro procedimento nos hospitais públicose privados. Nesse quarto de século,Andréia viveu de terapias e sonhos.Ainda continua sonhando. Aos 67anos, ela se diz uma mulherinjustiçada, mas se recusa a falar emdesistência. Com a nova portaria doSUS de 2008 – incluindo a cirurgia deredesignação sexual entre seusprocedimentos – e a abertura doAmbulatório de Saúde Integral paraTravestis e Transexuais, ela retomouas esperanças. “Só não me suicideiporque tirar a vida por uma condiçãoque Deus me deu, seria cometer omaior pecado. Mas ainda espero quecom a cirurgia encontrarei ocasamento e a felicidade.”NO PARQUE DA LUZ, o maispobre e triste ponto de prostituição dacidade, Bernadete é consideradajovem perto das senhoras de mais de80 anos que fazem programa ali.“Vivem de clientes antigos, ou derapazes maníacos com fixação na mãeou na avó”, ela interpreta. “Osclientes idosos, com os cabelosbranquinhos, são tão sozinhos quantoelas. Usam três cuecas, quando umasuja, colocam outra por cima, depoisoutra.” Bernardete Vicente de Souza,58 anos, faz a ponte entre as“meninas” da Luz e o CRD. “Digo aelas que é um jeito de não ficarsozinha. Porque ficar sozinha nestavida é perigoso.”CAMILA ROCHA, 18 anos, é umatravesti forte, bonita, com traços eseios que chamam a atenção. Dormena rua “por amor”, ela conta. O“marido” morria de ciúmes sabendoque estava num albergue numa alacom 120 homens. “Não dava paraficar separados. Decidimos os doisdormir na rua.” Camila encontrousocorro no CRD e no Ambulatório deSaúde Integral para Travestis eTransexuais quando o HIV já estavaroubando as energias e as drogasafastando os clientes. Sua vida de ruae prostituição começou aos 10 anos napraia de Iracema, em Fortaleza. “EmSão Paulo descabelei, orgia, bebida,droga. O cliente oferece crack, pagamais e não quer camisinha. Não voucontar que tenho aids. Estoudeixando essa vida, mas ainda precisode dinheiro.”“O CRD para mim é umaclínica, nenhum outro tratamento memudaria tanto, porque aqui me deramresponsabilidades, tive o apoio e aconfiança de toda a equipe. Paradesviar da droga, o drogado tem queter uma responsabilidade. Então ocontrato aqui com o CRD mudoutudo, virou um projeto de vida, maisdo que um trabalho. É uma lutaconstante. Eu era 100% drogada, hojeposso dizer que sou 20%. Um tempoatrás eu jamais estaria aqui, estariaroubando, indo atrás de droga.”Claudia Coca, 42 anos, é uma travesticontratada como educadora de rua.Percorre pontos de prostituiçãoembaixo de viadutos, onde só umatravesti seria recebida. Quem vêaquela negra atraente, de cabeloscurtos, cintura torneada e seiosempinados, não imagina que já foidrogada, prostituída, presidiária,bombadeira. É um dos exemplos maismarcantes de “travestis marginais”que mudaram de vida ao encontrar oCRD e que, infelizmente, faleceuantes de ver essa publicação.A CABELEIREIRA Débora Zaidanreuniu R$ 30 mil com a ajuda da famíliae em 2006 fez a cirurgia deredesignação sexual com um cirurgiãoparticular. Os vizinhos e clientessabem que hoje ela é uma “mulheroperada”, embora sempre tenha sidorespeitada como mulher. Débora dizque teve companheiros antes e depoisda cirurgia, e descobriu que o sexo nãoera o mais importante na relação.“Hoje vivo muito mais tranqüila commeu sexo, mas descobri que o prazeré psicológico. Tive muito prazer comalguns homens, e não tive nada comoutros, sem vagina e com vagina, assimcomo qualquer mulher.”A DIVERSIDADE REVELADA“A MUDANÇA de sexo é umacoisa que hoje não me incomodatanto, mas já sofri muitoafetivamente. Você conhece um 7


A DIVERSIDADE REVELADA8homem e ele pensa que você ébiologicamente mulher, e você nãoé... Fica com medo de contar e serrejeitada, como acontecia lá atrás. Omedo de se identificar vai virando umtrauma. Hoje já me pega menos.Estou conseguindo gostar de mimmesma.” Kleos Marine Guedes, 45anos, produtora de eventos e artesã.“MEU NOME social é LeoMoreira, tenho 52 anos, sou umhomem trans, tenho essa barba e carade homem, mas ainda carrego seios euma vagina. Estive preso por cincoanos em vários presídios por conta dedrogas, me casei três vezes nascadeias, nas alas femininas, porquepara o sistema eu era a LourdesHelena Moreira Santos, era a sapatãomais disputada pelas presidiárias.Com metade do curso de sociologiana USP, virei professor na cadeia,antes já tinha sido militante feministae baterista do grupo As Mercenárias.Fui casado de papel com a travestiGabriela Bionda, eu com meu nomede mulher, ela com o nome dehomem, era o casal mais badalado domundo gay. Quando sai da cadeia, nãotinha mais nada, nem amigos nemreferências sexuais. O CRD me deuessa força. Hoje sou ator na peça“Hipóteses para o Amor deVerdade”, que conta um pedaço daminha história, e que está no espaçoSatyros 1. Vocês estão convidados.”MARCELLE MIGUEL, 37 anos, temtraços femininos, cabelos sobre osombros, olhos verdes, usa blusa regatapreta, calça unisex e sandália de dedo.Chama a atenção pela aparentetimidez, a conversa tranquila, aspalavras medidas, as frases construídascom cuidado. Já foi “técnico” deinformática em grandes empresasantes de abandonar os trajesmasculinos e se assumir como mulhertrans. O preço foi o desemprego e arua. Viveu vários períodos sobmarquises no centro de Osasco, atéconhecer o CRD e ser encaminhada aum albergue. Diz que ainda nãoencontrou ajuda nos serviços de saúdee naqueles voltados para a populaçãoLGBT, onde esperava uma reinserçãono trabalho. “Meu relato é umahistória de perdas e de um autoconhecimentosolitário. Perda doemprego, da casa, da identidadesexual, da família. Aos 26 anos contei ameus pais o que eles sempresouberam. Meu pai disse, ‘eu aceitovocê assim, só não estou preparadopara participar’. Era justamente o queesperava ouvir. Esse foi o momentodefinitivo. Meu pai e minha mãemorreram logo depois.”MARCIANO Alves Fernandes, 29anos, conserva a elegância dos temposque mantinha R$ 300 mil em contabancária e chefiava 30 meninas numadas ruas de Ravenna, na Itália. Foi pararua com 12 anos quando o pai adotivolhe bateu na cara e ele prometeu quehomem nenhum voltaria a fazer issocom ele. Fugitivo de casa, dormiu emcima de árvores, foi cuidado portravestis, até se tornar cafetãorespeitado e patrocinador de festascom as mulheres mais bonitas. Hoje setrata da aids, de diabetes e de umcâncer. Trocou as contas em bancopor um salário contado comosegurança e agente de prevenção doCRD. “Plantei espinhos, estoucolhendo espinhos”, diz, sem perder adignidade. “O crack me pegou e medestruiu em dois anos. Mas ainda vousair dessa.” Em todos os momentos,sempre teve uma mulher do seu lado,travesti ou transexual. “Quando vocêpara com a droga, fica muito carente.Agora vivo com Bianca, na periferia.Um cuida do outro.”NOS 20 ANOS que se prostituiu,quando se animava com drogas eálcool, a travesti Mikaela Rossiniganhou o apelido de MikaelaDemônio, que conserva até hoje.Alta, forte e “babadeira”, ela seimpunha onde estivesse. Um clienteou estranho que humilhasse umacolega, ela quebrava uma garrafa namesa e o bar virava um silêncio. Era amais respeitada. Aos 40 anos,“exausta, acabada, sem saída”,passou um dia pela calçada do CRD edediciu entrar. “Ali mostraram queminha vida podia ser diferente, e eucomecei a mudar.” Dali passou a sercuidada pelo Ambulatório de SaúdeIntegral para Travestis e Transexuais.Mikaela está se mudando para umacasa na periferia da Zona Sul com o“esposo”, que tem emprego noprograma Travessia Segura, daPrefeitura. Diz que aprendeu tudo deinformática e quer fazer faculdade detecnologia da informação. Ganharátanto que voltará a usar seu perfumepreferido, Bulgary black, e sótrabalhará em casa, “pelada, commeu namorado”.MILA não quer mais que achamem de Mila Citroen, apelido queganhou porque os carros que“sequestrava” para tirar dinheiro decaixas eletrônicos eram sempre damarca Citroen. “Sou outra Mila”, eladiz. Mila Alves dos Santos, 30 anos, jáfoi prostituta, assaltante, presidiária,drogada, “fazia programa por R$ 5 sópara comprar pedra”. Entrou noCRD convidada por uma amiga edesde então diz que sua vida estámudando. “Hoje não sou maisclandestina, vivo com meu parceiro, oIgor, todo mundo no bairro sabe”.Igor é ajudante de carga e descarga,estava noivo quando se decepcionoue encontrou Mila, “esta é história queele me conta”, diz. “A droga aindame tenta, mas estou vivendo comoauxiliar de cabeleireira e façosupletivo. Vivo fugindo dastentações. Costumava carregar R$ 3mil na bolsa, oferecia drogas e bebidaspara as colegas. Hoje o dinheiro para


viver me deixa feliz. No ambulatório,estou treinando com a fonoaudiólogapara afinar a voz.”ELA É A ESTRELA das noitespaulistanas nos bares que reúnemgays, lésbicas e travestis. É uma dasraras drag queens que não dubla e quecoleciona elogios da crítica comointérprete da música popularbrasileira. Cria suas coreografias edestila um humor picante, sempreintercalado com poemas. Seu próximoCD é dedicado a Noel Rosa. Ela éRenata Perón, mas já foi o cantorSérgio, em Juazeiro, Bahia. Em SãoPaulo foi cabeleireira, manequim,trabalhou em teatro, cinema e novelade TV. Nas tardes de quarta-feira,pode ser vista entre o grupo quefrequenta as oficinas de canto doCRD. “A música é sempre ummomento de reflexão e autoestima,para noiados ou não.” Foi o Centro deCombate à Homofobia, da Prefeitura,e o CRD que a acolheram quando foiagredida por um grupo de rapazes napraça da República e perdeu um rim.Renata é uma travesti, mas nos showsque agora faz no Hábeas Copus seidentifica como drag queen. “Asociedade não aceita que haja travestiscom alguma dignidade e inteligência.”QUASE TODOS os dias Fernandasai de Guarulhos e vai à região centralde São Paulo para ver Rodrigo. Ela étravesti, já foi auxiliar deenfermagem, agora luta contra umcâncer e batalha pela aposentadoriaque tem direito. Rodrigo de SouzaVentura, 30 anos, percorreu váriascidades antes de chegar a São Paulo ese assumir como michê profissional.Animado pelo crack, chegava a fazer20 programas em 24 horas nosprincipais cinemas pornôs do centrode São Paulo. Doente e com ossintomas da aids, foi em busca deajuda no CRD, onde encontrouamigos e o gosto pela pintura. Sonhacom um trabalho e um espaço quepossa dividir com Fernanda. “Ela temdois yorkshires, precisamos de umacasinha com quintal.”“UMA TRAVESTI com silicone epróteses pode ganhar até R$ 500 pornoite, as outras ganham a metade. Osilicone industrial é perigoso, mas nãovim de Belém para ficar no meio docaminho. Assim que fizer asaplicações e juntar dinheiro, vou paraa Itália.” Suzielen S., 19 anos, se diztravesti e transexual. Frequenta asTerças-Trans do CRD e fazacompanhamento no Ambulatório deSaúde Integral para Travestis eTransexuais. Mesmo orientada,percorre a rota sonhada por milharesdelas, “modelar” o corpo e ganhardinheiro lá fora.“O TERCEIRO milênio é omilênio da mente, e a mente tem umterceiro sexo. Vai chegar ummomento que o homossexual terámuito orgulho em ser homo, porque écapaz de gerar coisas lindas,fabulosas.” Thaís di Azevedo, que fazessa “previsão”, traz a experiência deuma travesti que aos 60 anoscoleciona uma história de vitórias econquistas que superam ashumilhações. Thaís é hoje arecepcionista do CRD, aprovada emconcurso. Combina a elegância com aamabilidade e a habilidade necessáriaspara manter a ordem num espaçoonde se misturam moradores de rua etravestis em busca de ajuda, às vezesainda sob o efeito de drogas. “A faltade informação e o preconceitoparalisam todos nós”, diz. As cadeirasdispostas ao lado de sua mesa nuncaestão vazias. Tem sempre alguémquerendo ouvir suas idéias.VANESSA PAVANELLO, 41 anos,mãe de um filho adotivo, é uma mulhertrans. Trabalha como agente social daPrefeitura, coordena reuniões comprostitutas, é voluntária num serviço deDST-Aids, e faz o primeiro ano numafaculdade de Serviço Social. Éacompanhada pelo ambulatório paratravestis e transexuais do CRT DST/Aids-SP. Vanessa diz que nunca ouviuuma “gracinha, um psiu, umaprovocação”, referindo-se a seus trajese comportamento como mulher. “Sevocê quer respeito, tem que terrespeito, tem que impor. Não podebotar um bustiê, um sutiã, e querer irao açougue ao meio-dia”, ela diz.O PROFESSOR de inglês Victorde Abreu, 27 anos, é um homemtrans que já fez cirurgia da mama eagora embala um sonho com anamorada com quem vive há quatroanos: retirar um dos seus óvulos eguardá-lo congelado numa clínica deinseminação para que no futuro possaser fecundado e colocado no útero dacompanheira. Assim, o filho nasceriade um óvulo seu e seria gerado na“barriga” da namorada. Victor épaciente do Ambulatório de SaúdeIntegral para Travestis e Transexuais.ALEXANDRE SANTOS, o Xande,38 anos, é um homem trans que jácomandou a Parada do Orgulho GLBTde São Paulo, a maior manifestação degays, lésbicas, travestis, transexuais esimpatizantes do mundo. Tem umafilha, hoje com 19 anos, que nasceuainda em sua “fase” lésbica. Nasrelações seguintes, as companheirasforam sempre heterossexuais, comoDébora, sua atual parceira. Xandeainda não conseguiu a retirada dosseios e dos órgãos femininos internos,embora seja um procedimento comumem mulheres, por necessidadesmédicas. “A menstruação é uma coisaterrível para mim”, ele diz, cobrandoum direito que considera fundamental.Militante em tempo integral, Xandelamenta a invisibilidade dos homenstrans e faz críticas à imposição dopadrão heterossexual. 9A DIVERSIDADE REVELADA


A DIVERSIDADE REVELADA12À espera de atendimento no CRT DST/Aids-SP: antes dogênero, do nome e do sexo, o mais importante é o respeitoTravestis e Transexuais, por sua vez, é um serviço doCRT DST/Aids-SP, da Secretaria de Estado da Saúdede São Paulo, o primeiro centro voltado ao tratamentoe prevenção da aids, ainda no início dos anos 1980.“Participamos desde o início da construção desseambulatório, por isso somos um parceiro prioritário”,diz Irina Bacci, que coordena o CRD. No cadastro quepreenchem quando da chegada de um novo usuário,vários itens tratam da saúde. “Sabemos há quanto temponão passam por um médico, se são soropositivas, seinjetaram silicone e se fazem uso indiscriminado dehormônio. Quando é o caso, ligamos e agendamos umaconsulta no ambulatório”, diz Irina.O caminho para os serviços de saúde não precisaria,em princípio, passar pelo CRD, mas para algunsé o único atalho. “Muita gente está vindo aquiporque não consegue acessar os serviços de urgênciae emergência”, diz Irina. “Estavam tão mal quepronto-socorro não aceita, Samu não resgata. Entãonós levamos para o ambulatório, e na fase seguinteele encaminha para dentro da rede. Essa é outra importânciado ambulatório, abrir a porta da rede desaúde para essa população.”O perfil dos frequentadores do Centro de Referênciada <strong>Diversidade</strong> ilustra o nível de risco em quese encontram. Entre os usuários que procuraram oCRD até maio de 2010, 57% se auto-classificavamcomo travestis e apenas 5% como transexuais. Os outrosdisseram ser gays, heterossexuais, bissexuais oulésbicas. No grupo todo, 40% viviam com HIV e 46%não realizavam teste há mais de três anos, emborarelatassem situação de exposição. A metade se diziadesempregada e 35%, profissionais do sexo. Um terçodeles era morador de rua.Trata-se de uma população bastante diferenciadadaquela que procura o ambulatório do CRTDST/Aids-SP, o que é compreensível pela própriaproposta do serviço. De uma amostra inicialcadastrada no ambulatório, 68,2% se auto-definiramcomo transexuais e a demanda principal era a cirurgiade redesignação sexual e tratamento hormonal.As travestis eram 35,3% e procuravam sobretudo pelahormonoterapia e pela retirada de silicone industrial.Partiu do então secretário estadual da Saúde, LuizRoberto Barradas Barata, morto em 17 de julho de 2010,o pedido para que o CRT DST/Aids-SP colocasse emandamento um programa voltado para travestis etransexuais. “As condições estavam dadas, havia planosnacionais e estaduais dizendo que tínhamos de trabalharcom essa questão, e havia a clareza de nossa parte deque a vulnerabilidade dessa população precisava derespostas diferenciadas e concretas – e que essas respostaspassavam pelo acesso aos serviços de saúde. Para aquelasque são soropositivas, o serviço permite melhor acompanhamento.Com as outras, podemos trabalhar a prevenção”,diz Maria Clara Gianna, coordenadora do ProgramaEstadual DST/Aids-SP.Se oferecesse apenas um acolhimento diferenciado,o ambulatório não atrairia nem teria a fidelidade quetem das usuárias. “A saúde integral, como o ambulatóriopromete, inclui necessidades que vão da AtençãoBásica à hormonoterapia, à fonoaudiologia, passandopor psicoterapia preparatória para a operação, no casodas transexuais”, diz a médica. As travestis, por exemplo,não iriam ao ambulatório se não contassem com umacompanhamento hormonal e se não pudessem recebercuidados no caso de danos provocados por siliconeindustrial. Uma parceria com o Hospital Estadual deDiadema, na Grande São Paulo, vem cuidando daquelascujo silicone migrou para outras partes do corpo,causando deformações e inchaços. Em uma amostrade 72 travestis atendidas no ambulatório, 15 foram embusca de tratamento para o silicone industrial implantado.E quase todas procuraram o serviço para acompanhamentohormonal.


Débora Zaidan, 49 anosA DIVERSIDADE REVELADA14O SALÃO DA cabeleireira Débora Zaidané um dos mais conhecidos numa dasprincipais avenidas de Diadema, naGrande São Paulo. Seus clientes e vizinhossabem que Débora já foi uma“mulher com corpo de homem”, e quehoje é uma “mulher operada”, comoeles costumam dizer. Em 2006, fezuma cirurgia de transgenitalização naclínica particular do cirurgião Jalma Jurado.O médico construiu uma vaginavalendo-se do tecido do pênis, comose fosse uma luva ao contrário, umatécnica aprimorada por ele e que dizpreservar a sensibilidade.Para pagar os R$ 30 mil que custou acirurgia com a enfermagem e todos osprocedimentos, Débora afirma queeconomizou durante anos. “Foi a únicaforma que encontrei para sair da filado HC, onde aguardei por cinco anossem nenhuma perspectiva”, ela diz.Débora tem 49 anos e desde os 25 vemtentando a cirurgia, sempre carregandoculpas quando um relacionamentoterminava. “Achava que os namoradosiam embora porque eu não tinha umavagina. Aquilo sempre me deprimia.”Hoje Débora diz entender que a cirurgia,embora um direito fundamentalpara as transexuais, não é tudo norelacionamento. “Tive vários namorados,até casada já fui. Morei com umcompanheiro por 11 anos antes da cirurgia,ele nunca falou em operação. Euachava que sexo segurava alguém, mashoje vejo diferente, o sexo não importa.A cirurgia veio para me completar,isso sim. A insegurança que eu tinha,hoje não tenho mais, me sinto tranquila,a tensão do relacionamento terminou.Quando me olho no espelho, não mevejo mais como alguém com o sexodeformado. Mas para mim o prazer nãodepende só do sexo, porque ele é psicológico.Tive muito prazer com alguns“ Eu já mudeio sexo, masainda nãoconsegui mudaro nome”homens, e não tive nada com outros,sem vagina e com vagina, assim comoqualquer mulher.”Depois da cirurgia, Débora teve umrelacionamento que durou pouco maisde um ano. “Hoje estou com outrocompanheiro, uma relação muitotranquila, cada um em sua casa, eu emDiadema, ele em Itaquera.” Filhos, elapensa em adotar mais tarde, quando umdia tiver mais tempo e voltar para a terrade onde veio, Fortaleza, no Ceará.Débora soube do Ambulatório deSaúde Integral para Travestis e Transexuaisdo CRT DST/Aids-SP quandoprocurou o serviço do HC e nãoconseguiu consulta com o endocrinologista“porque tinha sido operadaem clínica particular”. “Eu precisava deum acompanhamento hormonal porquesempre tomei remédio por conta, ecom a idade chegando os riscos aumentam.Foi aí que alguém do posto desaúde aqui do bairro me falou doambulatório da Santa Cruz.”Débora marcou uma consulta pelotelefone e vem passando pelos médicosdesde o final de 2009. “Eu nuncatinha ido antes a um ginecologista. Nãoestava mais fazendo psicoterapia, nemia ao endocrinologista. Também tenhouma aplicação de silicone industrial faz15 anos, só um pouquinho, mas nuncafiz uma avaliação. No ambulatórioestou passando por todos esses médicos.Nunca tinha recebido essa atenção.Também percebo que estou encontrandogente como eu, coisa difícil,porque ficava isolada no salão.”Débora conta que se descobriutransexual desde muito menina. “Eupercebia que era diferente dos outros,porque sentia aquele arrepio só quandovia os meninos, não as meninas.Quando eu via as meninas eu me sentiaigual, só que eu notava que nas partesgenitais eu era diferente. Na minhaépoca, lá no Ceará, tudo era mais complicado,demorou muito para a eu entenderessas coisas.”Débora conseguiu ganhar um lugarna fila, juntar dinheiro e fazer a cirurgia,conquistou o respeito de seusclientes e vizinhos como mulher trans,mas ainda não conseguiu mudar suadocumentação. “Estou com todos oslaudos e papéis num serviço gratuitoaqui de Diadema, mas está demorandomuito.” No caso da transexualidade,como em vários outros, a medicinaandou mais rápido que a Justiça.Se morrer, Débora será enterradacom corpo de mulher e na lápide estaráescrito seu nome de homem.


TRANSEXUAISE TRAVESTISRespeito e direitos em adequaçãoTravestis e transexuais formam o grupo maisestigmatizado e por isso o mais afastado eincompreendido nos serviços de saúde. Oacolhimento proporcionado pelo CRD-PelaVidda/SP e a atenção à saúde oferecida peloambulatório do CRT DST/Aids-SP sãoexemplos de iniciativas bem-sucedidas que seempenham para mudar esse cenário.Quem observa a sala de espera do Ambulatóriode Saúde Integral para Travestis eTransexuais, na Vila Mariana, em São Paulo,vai notar ali homens e mulheres, comose vê em qualquer sala de espera de umserviço de saúde. Trata-se, no entanto, deum espaço onde sexo e gênero não obedecem à divisãoconvencional entre masculino e feminino. Algumasdas presentes são travestis, pessoas que nasceramdo sexo masculino e que optaram por desenvolver ostraços e as atitudes das mulheres, porque é assim quese sentem. A maioria ali são transexuais. Parte sãomulheres trans que se apresentam como mulheres,pensam como mulheres, agem e têm cérebro de mulheres,mas que biologicamente são homens. Podemser bonitas, elegantes, a voz com a modulação dasvozes das mulheres, mas conservam o órgão sexualmasculino. São chamadas de mulheres trans porqueestão se adequando ao gênero feminino, ao qual pertencem.Entre elas, nessa sala de espera, há uns poucoshomens, voz grossa, alguns com barba no rosto,gestos masculinos, mas que são biologicamente do sexofeminino. Têm tudo de homem, mas escondem umavagina, disfarçam os seios e seus corpos carregam úteroe ovários. São os homens trans.Entre esses homens trans está Alexandre Santos, oXande, ex-presidente da Associação da Parada do OrgulhoGLBT de São Paulo, a maior manifestação dogênero no mundo, que ainda não se livrou da menstruação.Espera pela cirurgia para a retirada do ovárioe da mama. O promotor de eventos Alexsandro SantosSilva, que há cinco anos é acompanhado em centrosde referência e que deseja se casar até o final doano – desde que retire a mama e mude o nome nospapéis. Há também o professor de idiomas Victor deAbreu, que vive com a companheira e sonha em guardarum óvulo para um futuro filho, antes que o uso dehormônios o deixe estéril.Na mesma sala de espera está Andréia Ferraresi,67 anos, que nasceu biologicamente do sexo masculinoe há quatro décadas cobra o direito a uma cirurgiaque readequaria sua genitália em uma vagina.A DIVERSIDADE REVELADA15


Recepção do ambulatório do CRT DST/Aids-SP: porta de acesso para a atenção integral à saúdeA DIVERSIDADE REVELADA16E Luiza Claudia Santos, que vive com um companheirohá 14 anos e que ainda sonha em exibir a eleuma vagina, em lugar de esconder o pênis.São alguns dos dramas e sonhos que se escondemdebaixo dos lençóis e que estão ali silenciosos na salade espera. Na rua, nas escolas, no mercado de trabalho,ou quando procuram um serviço de saúde, aspessoas transexuais e travestis amargam a discriminaçãoe o preconceito. O que vale é o nome no documento,não a aparência, os gestos, os cuidados.Depois de décadas de humilhações, o Estado deSão Paulo aprovou no início de 2010 uma lei quegarante aos transexuais e travestis o direito de seremchamados pelo nome social nos serviços públicos. Nosúltimos meses, cerca de 12 Estados e vários municípiosbaixaram decretos garantindo o mesmo direito na educaçãoe nos serviços de saúde. Atendem a uma recomendaçãoda 1ª Conferência Nacional LGBT, de 2008,e a uma antiga reivindicação dos ativistas. Uma leipaulista, existente desde 2001, pune quem pratica qualquerato discriminatório contra homossexuais, bissexuais,travestis e transexuais em todo estabelecimento público– de delegacias, hospitais a lanchonetes e empresas.Mas apenas em março de 2010 um decreto dispôs sobreas penalidades.Ser chamado publicamente pelo nome que nãocorresponde à aparência é o desrespeito responsávelpela fuga de milhares de travestis dos serviços de saúde.É também a causa da evasão de mais da metadedas travestis dos bancos escolares. Em todas as situaçõesde convívio com a sociedade, elas são a parcelada população LGBT mais estigmatizada e com menoríndice de escolaridade.Os decretos recentes estão garantindo o nomesocial em alguns serviços públicos para travestis etransexuais. Mas a mudança do nome e do sexo nosdocumentos, fato que mais trauma provoca nas pessoastrans, só é concedida mediante uma ação naJustiça, e diante de laudos que comprovem a cirurgia,um sonho distante para muitas delas.Não há levantamentos que quantifiquem essa população,nem estimativas sobre sua prevalência. AAntra, Associação Nacional das Travestis eTransexuais, estima que sejam 1,2 milhão no país –800 mil travestis e 400 mil transexuais. Possivelmenteum número de difícil comprovação, mas enquantoo governo não considerar essa populaçãonos censos demográficos, é o número que continuarávalendo. Mesmo reduzindo esse número a umdécimo, as transexuais seriam 40 mil. Considerandoque todas desejam a cirurgia de redesignaçãosexual, seriam necessários 50 hospitais fazendo 40cirurgias por ano ao longo de 20 anos. Em 2008,uma portaria do SUS incluiu a operação entre seusprocedimentos e definiu quatro centros de referênciapara a sua realização. Um deles, o Hospital dasClínicas da Faculdade de Medicina da USP, passouem junho de 2010 a fazer 12 cirurgias por ano. Atéentão vinha fazendo duas.A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo,por meio do Ambulatório de Saúde Integral paraTravestis e Transexuais do CRT DST/Aids-SP, buscauma parceria para a abertura de mais um serviço noEstado. Quando a intenção se concretizar, o Estadode São Paulo deve fazer 30 cirurgias por ano, somadasas do HC com a do futuro serviço.


Foram 50 anos de olhos fechados, paralisando avanços damedicina e atrofiando milhares de vidasAs cirurgias de transgenitalização vêm sendo realizadasno mundo desde a década de 1950, especialmenteem mulheres trans – pessoas que nasceram dosexo masculino, mas que na verdade são mulheres,nas quais o pênis é retirado e uma vagina é construída.No Brasil, no entanto, só em 1997 o Conselho Federalde Medicina autorizou esses procedimentoscomo experimentais e em ambientes universitários.Em 2002, a cirurgia foi liberada em qualquer hospital,apenas em mulheres trans, e seguindo um protocolodo CFM. Foram 50 anos de olhos fechados paraessa população, o que resultou numa carência absolutade cirurgiões especializados e em milhares devidas “atrofiadas”. Muitos serviços de psicoterapiapara transexuais foram fechados. Ou interromperamnovas inscrições, uma forma de camuflar o tamanhodas filas e de evitar que mais transexuais apostassemsuas vidas numa cirurgia que não viria nunca. Aos 67anos, Andréia exibe o primeiro laudo indicando-acomo apta para uma “cirurgia de plástica dos genitais”e assinado ainda em 1977 por médicos do HC. Trêsoutros laudos foram feitos em anos e décadas seguintes.Agora matriculada no Ambulatório de SaúdeIntegral para Travestis e Transexuais do CRT DST/Aids-SP, Andréia ainda não perdeu a esperança. “Nãopassa pela cabeça dos médicos e diretores de hospitaisquanto sofre um transexual”, diz.Enquanto as transexuais aparecem como vítimas,dignas de piedade e necessitadas de cuidados médicos– sentimentos e abordagem que elas rejeitam –as travestis são mostradas como “sem vergonhas” emarginais, que modificam o corpo para ganhar dinheiro.Em número muito maior que o dastransexuais, elas são as principais vítimas da discriminaçãoda sociedade e da desconsideração dos serviçospúblicos. Jovens e saudáveis na sua maioria, nãoprocuram nem sentem necessidade da rede de saúde.Muitas, devido ao preconceito, se envolvem comdrogas e álcool e abusam do silicone industrial e dehormônios para modelar o corpo mais depressa.Mostram-se pessoas divertidas quando são vistasnas esquinas das avenidas escuras, seminuas e convidativas.Mas formam o grupo que mais sofre violência– nos primeiros meses de 2010, 28 foram assassinadasno país. E constituem um dos grupos de maiorvunerabilidade para a infecção pelo HIV. Entre as queprocuram o CRD, cerca de 40% estão infectadas.Dentro de alguns anos, uma ou duas décadas talvez,quando a idade “aposentá-las” como profissionaisdo sexo, o abuso de drogas pesar, o silicone industrialmostrar seus efeitos e a aids afastá-las dasruas, o mesmo Estado que as ignorou não saberá oque fazer. Assim como a legião de usuários do crack,as travestis descartadas serão um peso enorme parauma rede pública e uma sociedade que não sabem,nem nunca souberam, como lidar com elas. Adesconsideração será cobrada em dobro.Algumas iniciativas públicas e não-governamentaiscomeçam a mudar esse cenário. Uma delas é o Centrode Referência da <strong>Diversidade</strong>, o CRD, parceria doGrupo Pela Vidda/SP com a Prefeitura de São Paulo.A outra é o Ambulatório de Saúde Integral para Travestise Transexuais do Centro de Referência e TreinamentoDST/Aids-SP, da Secretaria de Estado daSaúde. A primeira é a porta aberta para aqueles emmaior situação de risco e abandono entre a populaçãoLGBT. É nesse primeiro socorro, que antes da conversacom a assistente social e a psicóloga oferece umsofá para um cochilo, que muitos estão encontrandoum caminho para sair da rua e das drogas. O segundoé um ambulatório especializado onde travestis etransexuais são cuidadas na sua saúde integral e nassuas necessidades diferenciadas. A maioria dos serviçosda rede de saúde limita sua atenção ao masculinoe ao feminino. Pessoas em fase de adequação de sexonão cabem nos seus protocolos, nem são consideradasnas suas práticas de assistência.A proposta e o cotidiano desses dois serviços aparecemnos relatos de quase vinte transexuais, travestise michês ouvidos nesta publicação. Ao lado deles,um número significativo de profissionais foi entrevistado.O resultado é um retrato de dupla face. Deum lado, revela o abandono e as dificuldades queenfrentam essa população. De outro, o empenho dosprofissionais e a surpreendente volta por cima depessoas já tidas como irrecuperáveis.É o que mostram depoimentos de personagensque estão conseguindo escapar ao destino da rua,das drogas e da doença. Como Claudia Coca, travestique já foi prostituta, drogada, presidiária, e que aoencontrar o CRD descobriu suas habilidades comoeducadora social. A travesti Mikaela Rossini, queencontrou no CRD uma saída para sua vida de prostitutae drogada “babadeira”. Agora se prepara paraA DIVERSIDADE REVELADA17


A DIVERSIDADE REVELADA18A escolapoderiacontribuirpara umanova relaçãoentre aspessoas seensinasse aosalunos orespeito àdiversidadefazer faculdade de tecnologia da informação. MarcianoAlves Fernandes, que já foi cafetão e dependentede crack, e que agora trabalha e cuida da saúde.Por sua vez, relatos colhidos no Ambulatório deSaúde Integral para Travestis e Transexuais do CRTDST/Aids-SP demonstram a importância de um serviçode saúde integral e especializado. Muitostransexuais que sonham com a cirurgia de redesignaçãosexual encontraram ali a única porta para seintegrar a um grupo de psicoterapia como fase preparatória.A transexual Vanessa Pavanello, agentesocial e universitária, é uma das que estão começandono grupo e passando por consultas médicas.Vanessa tem 41 anos, viveu 12 com um companheiroe nunca tinha encontrado umserviço especializado. O transexualAlexsandro Santos Silva vemdo interior de São Paulo a cada15 dias para participar das consultase terapias.Dez anos atrás, travestis etransexuais também não tinhama quem recorrer quando se sentiamabusadas e discriminadas.Hoje vários Estados contam commecanismos e instrumentos deproteção, embora a maioria aindanão passe de intenções no papel.Ainda falta o sentimento deque o importante está na educação.Uma escola que ensine aosalunos a respeitar uma travesti ouuma pessoa transexual colega declasse estará contribuindo paraque uma nova relação se estabeleçaentre as pessoas. A maioriadas travestis e transexuais ouvidas nesse trabalho relatahumilhações sofridas nas escolas. Depois da família,a escola e o local de trabalho têm sido o principalpalco das discriminações. Os sentimentos, os fatos, osjulgamentos e as sugestões, podem ser extraídos dosdepoimentos colhidos.Em abril de 2010, o Governo Federal e representantesde movimentos de travestis lançaram a campanha“Sou Travesti – Tenho Direito de Ser QuemSou”, voltada aos serviços de saúde. “Esta é a demandamais importante das travestis, que têm o direitode cuidar de sua saúde. Elas têm problemasespecíficos e o sistema de saúde tem que atender àssuas singularidades”, afirmou à época o ministro daSaúde José Gomes Temporão.Por umagramáticatransexualUma das dificuldades dessapublicação foi adequar ogênero e a sexualidade dospersonagens ao gêneroestabelecido pela gramática.Não há, nas cartilhas,referência a um “terceirosexo”, por isso optou-se pordeixar de lado essapreocupação. De acordo coma gramática, onde há pelomenos um elementomasculino, o gênero quepredomina é o masculino,embora grupos ativistasreivindiquem, corretamente, areferência sempre aos doisgêneros. O correto seria dizer“os” transexuais e “as”transexuais, por exemplo. Mascomo se referir a uma mulhertrans, que na verdade ébiologicamente homem (dosexo masculino)? Ou a umhomem trans, cujo nome éfeminino? Se ainda faltamdefinições sociais e médicaspara esse “gênero emadequação”, é natural que agramática nada tenha a dizer arespeito. Decidiu-se, portanto,que os textos desta publicaçãousariam o masculino oufeminino dentro doscontextos, facilitando a leiturae a compreensão.


Agnes Prado dos Santos, 28 anosAGNES traz entre os seios uma tatuagemcom seu nome, uma cruz e umaborboleta. Fez isso quando tinha 23anos. Deprimida, tinha decidido se matar,mas não se conformava com o fatode que na lápide ficaria gravado seunome masculino. Com a tatuagem, saberiamque estavam enterrando umamulher, pensava. O pior da crise passou,ela desistiu do suicídio, mas a tatuagementre os seios permanece comouma forma de dizer que não é homem,nem nunca quis ser. Agnes ainda esperamudar seu nome na Justiça, mas sevê muito longe de uma cirurgia detransgenitalização por conta das filas deespera. Tudo que faz é o acompanhamentoterapêutico no Hospital das Clínicashá um ano, e o comparecimentofiel às Terças-Trans, promovidas peloCRD, o Centro de Referência da <strong>Diversidade</strong>.Se morrer atropelada – elaimagina – trocarão suas roupas femininaspor um paletó de homem e na lápideirá seu nome masculino, que ela nãoquer pronunciar nem revelar. Será quealguém notará a Agnes tatuada no colodos seios?, ela pergunta.Agnes Prado dos Santos, 28 anos,pode ser vista nos corredores do Institutode Psiquiatria do Hospital das Clínicas,onde é “funcionário administrativo”,traja uma jaqueta masculina da instituiçãodisfarçando blusa e calças femininas.Tem os cabelos na altura dos ombros,encaracolados, quem a vê no trabalhonão consegue saber se é homemou mulher. Fora dali, Agnes só usa roupasfemininas, e quase sempre pretas.Foi assim que se vestiu quando compareceuao Instituto de Psiquiatria depoisde ter passado em um concurso do Hospitaldas Clínicas, dois anos atrás. “Quandoviram que eu me vestia como mulher,não sabiam o que fazer comigo”,conta. “Você vai ter que disfarçar”, dissea chefia. “Use o banheiro unisex”,um banheiro que ficava escondido e quasedesativado. Agnes conta que escreveupara a superintendência, que respondeuautorizando o uso de roupas femininase o banheiro das moças. Mas logoaconteceram protestos de funcionárias,a proibição voltou e ela ainda aguardauma decisão da superintendência parausar o banheiro e um crachá feminino.Agnes conta que conheceu o CRDdois anos atrás, em 2008, quando procuravagrupos de transexuais na Internete soube das “terças-trans”. “Procuravapessoas que tinham o mesmodesejo que eu, que me orientassem afazer um tratamento. Aqui no ‘terçatrans’,quando ouço outros relatos, vejoque minha vida foi até tranquila. Sempreacredito que vou acrescentar algumacoisa. É também um pouco demilitância, eu quero fazer algo pelomovimento. E queria contar coisas quenão conseguia dizer na psicoterapia doHC, porque lá me sinto presa a um rótulode transexual.”O que imaginava ser um segredo sóseu, revelou-se um sentimento compartilhadopor várias colegas. Agnes é“ Não meenterrem comohomem”lésbica, o que a torna sujeita a um duplopreconceito. “Apesar de ter a minhaidentidade feminina, eu gosto demulheres, assim como existem transexuaisgays, homens trans que gostamde homens. Imagine minha alegria quandosenti que não era a única. É muitocomplicado para as pessoas entenderemque eu me identifico mais comouma mulher lésbica do que com umamulher trans.”Agnes nasceu biologicamente homem,mas se sentia mulher. Em lugarde gostar de homem, porém, sentiaatração por outras mulheres. “Quandoera criança era uma doideira compreendertudo isso, na minha cabeçaeu não era gay, não era travesti, nãoera trans, nem nada... Aquela coisa demenino gostar de menina, não valia paramim, eu não me sentia menino, e comomenina eu deveria gostar de menino,mas eu queria gostar de menina comomenina, isso não batia. Custou para eudescobrir que identidade de gênero esexualidade são coisas distintas.”O nome Agnes, que ela traz no peito,veio ainda da infância quando assistiadesenhos japoneses como Jaspion,Flashion e Jirai. “Em um dos episódioshavia uma ninja que se chamava Agnes.Uma mulher ninja que enfrenta todosos perigos, eu quero ser assim, queroser forte assim. E fiquei com aquelenome na cabeça... Acho que tinha unssete ou oito anos.”A DIVERSIDADE REVELADA19


CRDO acolhimentocomo “porta deentrada”Entre 2009 e 2010, o número deatendimentos mensais aumentouem 115%. A população emsituação de rua e usuária de cracktem sido a principal causa dessecrescimento. Entre os queprocuraram o CRD em 2010, umterço era morador de rua.A DIVERSIDADE REVELADA20Oespaço do Centro de Referência da <strong>Diversidade</strong>,com a porta aberta para a calçadada rua Major Sertório, é um lugarque convida a entrar. Nenhum obstáculosepara a porta dos sofás vermelhos morangodispostos diante de uma tevê sempreligada. A mesa da recepcionista Thaís di Azevedofica discreta à direita da sala, e o segurança doespaço é instruído para cuidar da ordem, não controlara entrada. Quem quiser chegar e apenas esticar-seno sofá não será incomodado. Alguns chegamali ainda “bodeados”, outros dormiram na rua. Tiramum cochilo antes de se animar para uma conversa,ou antes da chegada de dona Selma, oferecendolanche e um suco. Na tarde da sexta-feira, 16 dejulho, um dos dias mais frios do ano, havia pelo menos30 pessoas no espaço, entre travestis, transexuaise michês. Muitos se apertavam no sofá. Parte delesiria para algum albergue no início da noite, outrosdormiriam na rua. Nas noites de frio, os pernoitesem albergues são mais disputados.As paredes do Centro estão tomadas por grafites equadros pintados pelos próprios usuários durante assessões de arteterapia. Três computadores ficam à disposiçãoe a concorrência entre os usuários exige inscriçãono livro sobre a mesa da recepcionista Thaís.Nas salas no fundo ficam Taís Diniz Souza, a assistentesocial, e Fernanda Maria Munhoz Salgado, a psicóloga.Um pequeno quadro indica se estão disponíveis ounão, mas a janela de vidro permite que se observe defora, e as pessoas podem entrar sem bater.“Queríamos fugir da cara de equipamento públicoburocrático”, diz Irina Bacci, que passou a dirigira segunda fase do CRD, voltada sobretudo para oacolhimento. “Fizemos uma recepção confortável,com sofá, tevê, com livros, colocamos uns computadores,mesmo que só para entrar no Orkut, Facebook.O importante era despertar outros interesses que nãofosse só a droga, deixá-los menos bodeados.” A própriatevê, mesmo que não componha um espaço idealpara a inclusão, os leva a prestarem atenção na programação,a discutirem sobre canais. “Às vezes


folheiam um livro, não ficam com aquele olhar vaziocom que costumam chegar”, diz Irina. “Isso é importantepara nós, como equipe, observar o despertardeles. Ver qual tipo de ajuda estão pedindo.”O sofá é “nossa porta de entrada”, diz a psicólogaFernanda. “É um espaço aconchegante para dizer ‘euestou aqui, eu preciso ficar aqui’. Depois começamosum convencimento, pode ser eu mesma, ou qualqueroutro educador social do CRD, porque todos ali temosessa função. ‘Olha, quando precisar venha falarcomigo, estou naquela salinha’, a gente diz. No segundodia passamos de novo para um olá. Assim temsido com muitos, alguns dias ou uma semana depoisestão fazendo parte das oficinas. Outros não aparecemmais. Mas a porta continua aberta.”Os números e o perfil dos usuários do CRD mostrama dimensão do desafio. Desde que foi abertoaté setembro de 2010, um total de 1.486 pessoas passarampelo Centro, e dessas 1.276 foram cadastradas.O número total de atendimentos em 2009 foi de 9.539;de janeiro a setembro de 2010 os atendimentossomaram 15.406. A média mensal passou de 795 em2009 para 1.712 em 2010. Um aumento de mais de115%, demanda que já deixou o CRD no seu limite.O crack vem sendo o responsável pelo crescimentobrusco dessa população, que na sua maioria já é desempregada,vive na rua ou é profissional do sexo, diz Irina.Essa é uma demanda não só do CRD, mas em todos osserviços de assistência social de São Paulo e de muitascidades. Passou a ser uma prioridade de saúde públicacom a qual o governo não sabe ainda lidar.“O crack está matando nossos moradores de rua,especialmente travestis e gays”, diz Irina, “talvez maisdo que já matou a aids”. Agora, as duas “epidemias”estão associadas. Travestis e michês relatam o convitefreqüente de clientes para dividirem a droga nos quartosde hotel, quando antes era apenas o álcool. Nestecenário, a camisinha costuma ser deixada de lado. “Umavez que você começa, não para mais”, diz Rodrigo deSouza Ventura, agora um assíduo frequentador do CRDe em fase de tratamento. Rodrigo já foi michê e se iniciouno crack convidado por clientes.“A rede social e de saúde vê o usuário de drogameio como um criminoso, um cara que não tem maisjeito. Isso preocupa muito, porque hoje é o nossomaior público”, diz Irina. A exclusão, que pode levarà droga e à rua, começa lá atrás, “quando a sociedadediscrimina, coloca fora de casa”. O roteiro éconhecido: a expulsão da família, a “pista”, da “pista”à construção do corpo com silicone industrial, adroga e o álcool na noite, até que a “pista” já não 21A DIVERSIDADE REVELADA


A DIVERSIDADE REVELADA22Perfil dos usuários cadastrados em 2010(a partir de informações fornecidas pelas pessoas)Identidade atribuída57% travesti19% gay11% heterossexual6% bissexual5% transexual2% lésbicaFonte de renda52% desempregado*35% profissional do sexo7% aposentado6% outrosSobre a origem50% moram na região da Subprefeitura da Sé33% moradores de rua17% de outras regiões da cidadeSobre a sorologia para o HIV46% não realizam teste há mais de 3 anos40% vivem com HIV14% teste negativo recente*Muitos fazem eventuais programas na rua,mas se consideram desempregadosPrincipais números do CRD➜ Pessoas que passaram pelo CRD desde sua abertura 1.486➜ Usuários cadastrados neste período 1.276➜ Total de atendimentos em 2009 9.539➜ Total de atendimentos em 2010* 15.406➜ Média mensal de atendimento em 2009 795➜ Média mensal de atendimento em 2010* 1.712sustenta mais e a rua passa a sero único abrigo.Muitos gays e travestis saemda casa direto para a rua, dizIrina. O outro passo nesse caminhosão os assaltos e a cadeia.“É uma questão que oEstado tem que intervir, porqueenvolve uma mudança de paradigma,uma mudança comportamental.A sociedade pode* até setembroevoluir com políticas públicas afirmativas, mas tambémcom mudanças nas leis, como aconteceu com oracismo. Mas não basta criminalizar, porque esse nãodeve ser o papel prioritário do Estado; ao contrário,deve sobretudo educar para que a discriminação nãoaconteça mais.”Por ser uma porta para o primeiro acolhimento, oCRD muitas vezes tem que agir como bombeiro. Alguémprecisa de um lugar para dormir, de um lancheporque nada comeu no dia, de uma conversa que nãopode ser adiada. “Mas não queremos apenas apagarfogo”, diz a psicóloga Fernanda. “O Centro tem umcaráter de militância, porque o respeito e o acolhimentoa essa população diferenciada devem ser levadospara outros serviços da cidade. Alguns alberguesainda não sabem o que fazer quando encaminhamosuma travesti. E quando há desconhecimento, há repulsa,há agressividade.” Um aprendizado lento quevem sendo absorvido por alguns parceiros que oferecemcursos, por exemplo.A estratégia adotada pelo CRD em 2009 consistiuem dedicar o primeiro semestre à assistênciasocial mais ampla, encaminhando os freqüentadoresaos vários serviços que o município oferece. Os trêsmeses seguintes foram investidos na saúde, época emque os usuários já podiam contar com o Ambulatóriode Saúde Integral para Travestis e Transexuais doCRT DST/Aids-SP. “Fomos convidados a participarda formação e construção desse novo ambulatóriodesde o início, o que foi um pé importante para nós”,diz Irina. “Também fechamos uma parceria com oPrograma Municipal DST/Aids para realizar o testerápido HIV no próprio espaço do CRD.” Nas vezesem que o teste foi realizado, 13,9% dos resultadosderam positivo para o HIV, e nenhuma das pessoastinha sido diagnosticada ainda.A última das três fases da implantação do projetodedicou-se à empregabilidade, uma área coordenadapor Cristina Santos a partir de 2010. “Implantamosaqui um Balcão Solidário de Oportunidades de Emprego,que faz currículo e cadastra os interessadosno Emprega São Paulo, da Secretaria de Estado dode Emprego e Relações do Trabalho, e em outrasredes solidárias do Terceiro Setor”, diz Irina. Atéfinal de setembro de 2010, das 38 pessoas cadastradasno Balcão, 14 foram encaminhadas para processoseletivo e duas conseguiram trabalho.A maior dificuldade é sensibilizar a outra ponta, osempregadores, principalmente quando os candidatossão travestis ou transexuais. A intenção do CRD éencontrar parceiros e promover um seminário comgestores do setor privado para sensibilizá-los sobre aquestão da empregabilidade da população LGBT.


Mikaela Rossini, 40 anosMIKAELA é a mais respeitada, a maisquerida e a mais temida das travestis.Alta, forte e “babadeira”, ela se impõeonde estiver. Um cliente ou estranhoque humilhe uma colega, ela quebrauma garrafa na mesa e o bar vira umsilêncio. Ganhou o apelido de “Mikaelademônio”, que conserva até hoje.Mikaela Rossini tem 40 anos, viveu 20na prostituição, nos últimos cinco sótrabalhava animada por drogas, cachaçae crack, como ela relata.“Estava exausta, acabada, não viamais saída”, conta. “Eu passava semprepor essa calçada do CRD e um diadecidi entrar. Isso foi um ano e meioatrás. Carregava na bolsa uma latacom os meus cigarros e as minhas drogase disse que voltaria outro dia. Fuipara o hotel, usei tudo que tinha queusar e no outro dia retornei. ‘Querosair dessa, mas estou no buraco, nãotenho um puto’, eu disse ao Alexandre,um rapaz maravilhoso que merecebeu e me encheu de esperanças.Fui para um albergue, me joguei emtodos os cursos que me ofereciam,parei de me drogar e beber. Saía deum curso, ia para outro, passava poraqui e voltava para o albergue, assimeu fugia das drogas. O CRD me encaminhoupara o Cratod, um centro dereferência para álcool e drogas doEstado, que me ajudou muito.”Encaminhada pelo CRD, Mikaelatrocou o SAE dos Campos Elísios peloambulatório do CRT DST/Aids-SP, narua Santa Cruz. Há nove anos vemsendo acompanhada por infectologistaspor ser portadora do vírus do HIV eagora procura tratamento hormonal.“Sobre hormônios, sei o que aprendicom as mais velhas. Diziam que esse épara o peito, aquele para o bumbum,para as coxas. Tomava tudo numa seringasó, uma vez por semana. Hoje seique isso é perigoso e estou ouvindo o“ Passavasempre poressa calçada;um dia decidientrar”que o médico diz. O silicone ainda nãodeu problema. Tenho próteses no seio,que paguei para um cirurgião plástico.E silicone industrial no bumbum, umlubrificante de peças de avião.”Vários quadros das paredes do CRDforam pintados por Mikaela. “Descobriessa vocação aqui no CRD.” Outradescoberta foi sua habilidade cominformática. “Faço sites e trabalho comdez janelas abertas ao mesmo tempo.Terminei o segundo grau com 16 anos,sempre fui precoce, agora farei faculdadede tecnologia da informação.” Eficará rica, ela prevê. “Vou trabalharem casa, pelada, com o meu namoradoao lado, ganhando muito dinheiro.Vou usar de novo meu ‘Bulgary black’,que é o meu cheiro, quase dois mil ofrasco. Carro não quero, quero casana praia. Cirurgia também não quero.Quero meu órgão.”Mikaela tem os cabelos pintados deloiro e bem curtos, o que reforça seuporte atlético. Costuma vir ao CRDacompanhada do “esposo”, que conheceuno albergue Nova Vida e que trabalhano “Travessia Segura”, programade emprego da Prefeitura. “Hojefaz nove meses e duas semanas queestamos juntos. Vamos morar numacasa no jardim Mirna, depois da Guarapiranga,longe, no extremo sul da cidade,com o bolsa aluguel que consegui.Ele tem 50 anos, está feliz como criança.Ele não bebe, não usa drogas, meajuda em tudo, sofri um derrame parcialpor conta do HIV e tenho dificuldadescom uma das mãos, é ele quemprepara meus baseados, me ajuda a cuidarda casa. Não estou com ele só porisso, é que estou apaixonada.”Mikaela sonha com o “quarto e sala”onde ouvirá suas músicas – “gosto doestilo new age, gosto do Kitaro...”. Dizque está lendo Sêneca, já leu HermanHesse, ‘Sidarta’, Oscar Wilde, ‘Retratode Dorian Gray’, Victor Hugo,Nietzsche. “Sou kardecista desde os 14anos. O kardecismo me ajuda a entenderporque muitas pessoas são agressivascom uma travesti, é porque só vêemo lado mau. O kardecismo vê a travesticomo aquela que tem corpo de homeme alma de mulher. Quem não entende,quem não respeita, eu viro a mesa.”Mikaela chama as travestis mais novasde “meninas”, de “minhas filhas”,e quando as encontra na rua faz questãode levá-las para o CRD. “Temaquelas cheias de vergonha, tenho quepegar pelos cabelos, ‘vai lavar as mãose vem tomar um lanche, vem conversar,entra no computador’, eu sempreinsisto.” Numa tarde de junho, duasdelas, ainda meninas, dormiam no sofá,a maquiagem borrada. “Passaram a noitenum programa, ainda estão alcoolizadase com fome”, explica Mikaela.“Quando a ressaca passar, talvez aceitemum suco, um lanche.” Algumasficam para conversar. Outras saem tímidas,cambaleantes.A DIVERSIDADE REVELADA23


Kleos Marine Guedes, 45 anosA DIVERSIDADE REVELADA24KLEOS MARINE GUEDES é daquelas pessoasque passam pelo Centro de Referênciada <strong>Diversidade</strong> tão discretamenteque se não fosse a troca de beijinhoscom as amigas nem seria percebida.Costuma se sentar ao lado da recepcionistaThaís, com um jornal ou uma revistanas mãos. Sempre tem uma peça,um filme ou uma exposição para comentar.Nos seus 45 anos, diz que aprendeua viver em paz com sua transexualidade,sem a ansiedade de temposatrás, quando sonhava com uma cirurgiae tomava hormônio. Até mesmo aangústia das relações diminuíram, eladiz. “A mudança de sexo é uma coisaque não me incomoda, mas já sofrimuito afetivamente, porque isso atrapalhabastante. Essa coisa de você conhecerum homem e ele pensar quevocê é biologicamente mulher, e vocênão é... Fica com medo de contar e serrejeitada, como acontecia lá atrás. Omedo de se identificar vai virando umtrauma. Hoje já me pega menos.”Kleos diz que se sente agora “umapessoa mais centrada”. “Procuro gostarmais de mim, porque antes, porconta dessa carência por você ser diferente,sempre buscava no outro algumacoisa para ser feliz. Aos poucosfui percebendo que o conflito estavacomigo mesma, você precisa gostar desi própria.”Também na profissão o início foi difícil,ela diz. Era mostrar o documento enão conseguia o trabalho. “Me tomavampor travesti, e acham que travestié sempre ladra e prostituta.” Buscourefúgio nos salões de beleza, onde trabalhoupor anos como maquiadora, atévirar uma profissional liberal. “Hoje trabalhona produção de eventos de beleza,estou fazendo estilismo e um poucode artesanato.”“Sofri muitocom a faltada cirurgia,hoje nãosofro mais”Parou os estudos na sétima série, retomouo supletivo agora e pretendefazer um curso superior ligado à arte.“Quero retomar tudo que parei”, eladiz. Boa parte desse entusiasmoconfessa ter encontrado no CRD, aose identificar com outras transexuaisque estavam buscando um espaçoprofissional e pessoas dispostas a ouvila.“Aqui tive orientação, não só doponto de vista da minha transexualidade,mas gente que entende dedireitos trabalhistas, por exemplo.”Kleos frequenta oficinas de teatro,música e artesanato no CRD. Antes fezparte de uma ONG ligada à aids e conheciao Grupo Pela Vidda. O ambulatóriodo CRT, na rua Santa Cruz, foioutra descoberta. Não vai lá em buscado que quase todas procuram, o tratamentohormonal, a psicoterapia para afutura cirurgia. “Vou em busca do clínicogeral, do psicólogo, e especialmenteda atenção que eles dedicam quando mechamam pelo meu nome social.”Os preconceitos não desapareceram.“Medrosa, sempre com um péatrás”, ela diz fugir de problemas na rua.Nos finais de semana, vai ao cinema ouao teatro. “Vou com amigos, mas semprefui muito solitária. Hoje administrobem esse lado, antes eu sofria com acarência, com a busca do companheiro.Sempre buscava fora alguém pra mecompletar.”


Ambulatório para travestis e transexuaisA BUSCA PELASAÚDE INTEGRALQuais os resultados, as propostas e as dificuldades doambulatório do CRT DST/Aids-SP, o primeiro serviçode saúde integral para essa população. E quais asparcerias e aprendizados com o Hospital das Clínicasda FMUSP, o CRD e o Conselho Regional de Medicina.A DIVERSIDADE REVELADA25


Débora Zaidan e Luiza Claudia Santos sãoduas das cerca de 500 usuárias que o Ambulatóriode Saúde Integral para Travestise Transexuais do CRT DST/Aids-SP vemacompanhando, de acordo com númerosdo final de junho de 2010. As duas sãomulheres trans. Débora é transexual operada em clínicaparticular e não encontrava serviço especializadopara acompanhamento hormonal e ginecológico. OHC só atende pacientes operadas lá. Luiza Claudiaretomou sua esperança de fazer uma cirurgia, se inscreveuno serviço de acompanhamento do ambulatório,está fazendo tratamento hormonal e cuidando daretirada do silicone industrial que tem no corpo.O Ambulatório de Saúde Integral para Travestis eTransexuais do CRT DST/Aids-SP não foi criado pararealizar cirurgias de redesignação sexual. Sua direção,no entanto, vem fazendo e buscando parcerias quepodem elevar o número de cirurgias para 30 por anono Estado, além de oferecer serviços especializadospara essa população. Já tem parceria com o HospitalEstadual de Diadema, onde um grupo de cirurgiõesfaz a retirada do silicone industrial que migrou paraoutras partes do corpo. Também busca uma parceriacom o Hospital Pérola Byington para a cirurgia deretirada de órgãos femininos de homens trans, comomama, útero e ovário. Já iniciou grupos de psicoterapiapara que os transexuais se preparem para a operação,além de oferecer psicólogos e atendimento integralem saúde para travestis e transexuais.Até junho de 2010, o Hospital das Clínicas daFaculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP), a únicainstituição pública que fazia essa operação no Estado,realizava duas cirurgias por ano. Com repassesdo Governo do Estado, o hospital promete fazer 12por ano. As outras 18 planejadas são esperadas apartir de uma parceria do Ambulatório de Saúde Integralpara Travestis e Transexuais com algum hospitalpúblico, sob o comando de uma equipe expertsno assunto. O convite foi feito ao cirurgião plásticoJalma Jurado, que já realizou 800 cirurgias detransgenitalização, a grande maioria em sua clínicaprivada. O hospital ainda não foi definido.“Minha intenção é repassar experiência a novos cirurgiões”,diz Jalma Jurado, de 73 anos. “Estamosanimados nos contatos que fizemos com hospitaispúblicos”, afirma Maria Clara Gianna, coordenadorado Programa Estadual DST/Aids-SP. No início de julho,segundo ela, as negociações estavam adiantadas.Muitos hospitais e profissionais têm restrições noatendimento a essa população. Maria Clara diz terassumido diante do então secretário Barradas o compromissode colocar em andamento um serviço queatendesse travestis e ampliasse a atenção aostransexuais. Assim foi aberto em junho de 2009 oAmbulatório de Saúde Integral para Travestis eTransexuais, serviço que já oferece todas as especialidadesessenciais a esta população.A cirurgia de redesignação sexual, principal demandadas pessoas transexuais, é um grande desafio.Autorizada para mulheres trans pelo ConselhoFederal de Medicina (CFM) em 2002 – e permitidaem caráter experimental desde 1998 – apenas 34 cirurgiastinham sido feitas pelo HC-FMUSP até oinício de julho de 2010. “Tínhamos dois dias cirúrgicospor mês que eram priorizados para genitália ambígua,emergências e retoques”, diz a endocrinologistaElaine Maria Frade Costa, responsávelAmbulatório do CRT DST/Aids-SP: preparado para cuidados e assistência integral à saúdeA DIVERSIDADE REVELADA26


pelo Ambulatório de Transexuais do Hospital das Clínicas.Agora o serviço ganhou mais um dia cirúrgicoe espera que toda a equipe seja ampliada. O HC-FMUSP contava com um único cirurgião capacitadopara fazer esse tipo de cirurgia.As 50 salas cirúrgicas do hospital têm filas paratodas as clínicas e são disputadas por todas elas. “Umcirurgião da urologia vai dizer, ‘porque dar um diacirúrgico para os transexuais, que não estão em riscode morte, se tenho dezenas de pacientes com tumorde rim e crianças com metástase que não podem esperar?’É um problema institucional, mas estamosconseguindo sensibilizar esses profissionais para asnecessidades dos transexuais”, diz Elaine.Para ser candidato a uma cirurgia no HC-FMUSP,uma pessoa transexual tem antes que ser chamado eaprovado numa entrevista e seguir fielmente dois anosde psicoterapia, no mínimo, conforme protocolo doCFM. No HC, a média de anos em terapia ultrapassaos quatro. Para conter a demanda e as expectativas, oserviço interrompeu as chamadas para entrevistas econsequentemente a entrada no grupo de psicoterapia.O Ambulatório de Transexuais e o ProSex - Programade Estudo em Sexualidade, do Instituto de Psiquiatriado HC-FMUSP, têm juntos cerca de 20 pacientestransexuais em terapia. Para que um novo participanteseja convidado, alguém precisa sair, e alguém só saiquando passa por cirurgia - o que não vinha acontecendodesde 2009.O repasse da Secretaria de Estado da Saúde parao ambulatório do HC, e a esperada parceria do Ambulatóriodo CRT DST/Aids-SP com um hospital público,trouxeram novo alento às filas de espera. Mesmocamuflada por um gargalo artificial, Elaine diz que 23pacientes estavam na fila preparados para a cirurgia e120 aguardavam avaliação para começar a psicoterapiae o tratamento hormonal.O HC atende casos de transexualidade desde ofinal da década de 70. “Pacientes vinham para cá parafazer atendimento psicológico, porque não se podiafazer a cirurgia. Eles eram acompanhados junto comos pacientes que tinham genitália ambígua, que nasceramsem sexo definido, que é a nossa especialidade”,diz Elaine. Como hospital de referência, o HCtem mais de 700 pacientes intersexos em acompanhamento,que não necessitam de atendimento psicológicoe vão direto para a cirurgia. Só em 1998,com a primeira resolução do CFM, o HC iniciou ascirurgias em transexuais e foi criado o Ambulatório deTransexuais, dirigido por Elaine.“Um grande problema é a falta de especialistasinteressados em tratar esses pacientes, especialmentecirurgiões”, diz a médica. “Eles acham que têm poucoa oferecer do ponto de vista técnico, que não ajudariammuito. Há também uma preocupação do pontode vista legal, porque não há lei específica paraisso, e alguns temem ser processados por mutilaçãose houver complicações”, diz Elaine.No caso das mulheres trans, o HC faz a cirurgia dereadequação da genitália e construção de uma neovagina.Para os homens trans, a cirurgia consiste naretirada dos órgãos femininos, como os seios e o útero,mas o procedimento não inclui um neo-pênis,procedimento ainda experimental. O recurso tem sidoo aumento do clitóris com o uso de hormônios.O Ambulatório de Saúde Integral para Travestis eTransexuais do CRT DST/Aids-SP, por sua vez, vemtendo bons resultados na parceria com o HospitalSaúde integral é uma proposta em construção“Logo no primeiro acolhimento,travestis e transexuais passam porum clínico, já que um dos objetivosfundamentais do ambulatório éatrair essa população para osserviços de saúde dos quais sãoexcluídas”, diz o psicólogo RicardoBarbosa Martins, coordenador desaúde mental do CRT DST/Aids-SP. Mas no geral elas vêmatraídas pela questão “daespecificidade biológica oufisiológica da travestilidade e datransexualidade, que também épreciso atender”. Embora aintenção seja oferecer umatendimento integral, elascontinuam “vindo para ter acessoà hormonoterapia e às questõesque têm a ver com a manutençãodo gênero pretendido” – como aretirada do silicone e a terapiaA DIVERSIDADE REVELADApara uma futura cirurgia. “É issoque para elas faz sentido vir aqui.Nossa ambição de saúde pública,de tratar também a questão dasaúde geral, ainda não tem adevida importância para elas.” Astravestis, especialmente, “nemprecisam de psicoterapia paratomar hormônio”, e muitas nemtomam, ou acham que já sabem oque é preciso tomar. 27


A DIVERSIDADE REVELADA28Estadual de Diadema para a retirada de silicone. Emoutra frente, as negociações estão adiantadas com ocirurgião Jalma Jurado e um hospital público para acriação de um novo serviço de cirurgia. E o entendimentocom o Pérola Byington continua. Há também aperspectiva de o ambulatório oferecer próteses desilicone para as pacientes, mas isso dependerá de umprotocolo específico. Dois grupos de psicoterapia, comcerca de 15 pacientes, estão em andamento. Na prática,se o número de cirurgias não aumentar, serão maiscandidatas angustiadas na fila da operação.A criação do ambulatório contou com a assessoriada endocrinologista Elaine Costa, do HC, e com aparceria do CRD, o Centro de Referência da <strong>Diversidade</strong>.“Temos trabalhado de um jeito muito articuladocom o CRD, porque tivemos de aprender muitosobre essa população”, diz Maria Clara. “A portariado Ministério da Saúde sobre o processotransexualizador, assim comoa resolução do Conselho Regional deMedicina de 2009 sobre tratamentoclínico a travestis, foi fundamentalpara nós. A partir daí, todos participamosna redação do ‘protocolo clínicopara a saúde integral para travestis’,cuidados específicos para umapopulação até então ignorada e desconhecidapelos serviços de saúde.”A julgar pelos números do ambulatório,a demanda deve ser crescentee o serviço não terá capacidadepara absorvê-la muito em breve.Maria Clara diz que está em contatocom a Secretaria Municipal da Saúdede São Paulo e já expôs o trabalho para muitosmunicípios. “A idéia é descentralizar, até levarmos essetipo de atendimento para a Atenção Básica. Só os casosque exigem especialistas seriam encaminhados para oambulatório e centros de referência.”O contato com transexuais e especialmente travestisvem mostrando que a prevenção para o HIV/aids deve avançar além da distribuição da camisinhae de folhetos. “A vulnerabilidade dessa populaçãopara o HIV é brutal”, diz Maria Clara. “À medidaque elas vêm para o serviço, mesmo que interessadasna cirurgia ou no uso de hormônio, você pode fazeroutro tipo de prevenção. O serviço estimula o cuidadoem uma população que de outra forma não poderiaser acessada.” Ela observa que há “toda uma questãosocial” que também se coloca, pois a usuária começaa se sentir respeitada e integrada a um serviçoÉ hora depensar numserviço deatenção integralà saúde dasprostitutas, umcaminho paraintegrá-las àsociedadecom o qual pode contar. No seu entender, é hora depensar também em serviços de saúde integral paraprostitutas. Também para essa população, o acesso àrede de saúde é o caminho mais eficaz e interessantepara a prevenção, defende Maria Clara. Ela ressalva,no entanto, que os desafios que envolvem a populaçãoLGBT e prostitutas não se resolvem apenas com saúde,já que são resultados de um contexto social, econômicoe cultural amplo, que exige a participação de toda asociedade e toda a rede pública.Há muito ainda por fazer, a começar pela classificaçãodessa população. Na ficha de investigaçãoepidemiológica dos serviços, travestis estão entre oshomens que fazem sexo com homens. E as transexuaisforam incluídas na campanha de prevenção à aids queo Ministério da Saúde fez para as mulheres. Astransexuais não operadas – que são a absoluta maioria–, no entanto, fazem sexo anal. Essafalha na classificação levou a impassesnas campanhas e vem impedindo atéhoje que se faça um levantamento eum perfil dessa população.Maria Clara tem um histórico queexplica sua preocupação com a prevenção:desde 1988 está no CRTDST/Aids-SP, sempre trabalhandocom vulnerabilidade, e reconheceque as falhas epidemiológicas comrelação a essa população são de responsabilidadetanto da esfera nacionalquanto estaduais. Ela observa, porexemplo, que não é apenas o sexoanal que deixa as transexuais mais vulneráveis.Quando têm companheiros,elas se comportam como mulheres submissas, deixandotoda iniciativa para o homem, sem poder paraexigir o uso da camisinha. “Elas se colocam comomulheres de 30 anos atrás, sonham em ser donas decasa, confiam totalmente no companheiro, a relação émuito desigual”, diz Maria Filomena Cernichiaro,diretora do ambulatório.A montagem do Ambulatório de Saúde Integralpara Travestis e Transexuais do CRT DST/Aids-SPfoi uma experiência cheia de dúvidas, diz Maria Clara.Assim que o pedido para a criação do ambulatório foifeito pela Secretaria de Estado da Saúde, em maio de2009, o CRT DST/Aids-SP ouviu o movimentoLGBT sobre a proposta. As ativistas tinham ressalvasao fato de o ambulatório atender dentro de um serviçovoltado para a aids, o que poderia caracterizar umadiscriminação. O ambulatório passou a funcionar no


Entrada do ambulatório doCRT DST/Aids-SP, combandeira brasileira duranteos jogos da Copa doMundo, no mês de junhoespaço destinado à testagem e aconselhamento, CTA,o que tirava seu caráter de serviço para soropositivos.“Aprendemos que era necessário um ginecologistapara atender os homens trans e as mulheres transoperadas”, diz Maria Clara. “Fomos buscar ajuda noserviço do HC.” “Não há ginecologistas que conheçamuma ‘vagina construída’ ou uma neo-vagina; nãose fala sobre o tema nas escolas médicas, o assunto émuito novo”, comenta Filomena.Também foi preciso contar com o Conselho Regionalde Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp)com relação ao tratamento para travestis, um serviçoinédito no país. “Como prescrever hormônio femininopara uma pessoa que nasceu homem, e que é biologicamenteum homem?”, diz Maria Clara. Em outubrode 2009, o Cremesp fez uma resolução definindoo atendimento clínico para as travestis. Em janeirode 2010, o ambulatório publicou no Diário Oficialum protocolo clínico para a saúde integral para travestis,o primeiro no país, e que deve orientar outrosserviços, ao contrário do que se temia, não houve repercussãonegativa. “Foi um passo importante para aequipe, porque essa população estava à margem, ninguémconhecia a população de travestis”, diz Filomena,diretora do ambulatório. Até então, travestis se apresentavamcomo transexuais para ter acesso ao tratamento,principalmente hormonal. Hoje o protocolopermite esses cuidados diferenciados para as travestis.A resolução e o protocolo permitiram informaras usuárias dos riscos do silicone industrial e oferecera terapia hormonal que resulta em seios maiores eem formas mais arredondadas no corpo. “A dificuldadeé que as travestis têm pressa, mais do que astransexuais. Querem rapidamenteum corpo mais exuberantee feminino, porquea maioria delas trabalha narua. Mas a equipe tem conseguidoalertar que o siliconeindustrial é um perigo e informarque o hormônio vaidar conta, que é preciso apenaster um pouco de paciência”,explica Maria Clara. Uma coisa é você apenasfalar dos riscos do silicone, a outra é oferecer nolugar e de graça a hormonoterapia, com acompanhamentoe medicamento, esclarece Filomena.Como referência para a saúde pública no país, oambulatório tem a proposta de elaborar protocolosclínicos, avaliar tecnologias e modelos assistências epromover atividades integrando movimentos sociais.Deve também ser um local de treinamento para profissionaisnessa área, já que a população de travestise transexuais ainda é pouco conhecida. O ambulatóriotambém vem recolhendo experiências de outrosmunicípios, como aconteceu com São José do RioPreto, no interior paulista.Na opinião da diretora do Departamento de Apoioà Gestão Participativa, do Ministério da Saúde, AnaMaria Costa, o ambulatório do CRT DST/Aids-SP,assim como o CRD-Grupo Pela Vidda/SP, são iniciativasnecessárias para o atendimento a uma populaçãoque é discriminada nos outros serviços. Mas ela avaliaque serviços como esses têm um papel transitório nesseprocesso. “À medida que o SUS todo se adequa a umatendimento melhor para esse público, a tendência éque esses serviços mudem de caráter, que assumamum papel de referência a problemas de maior complexidadeque acometem essa população”, diz ela.Ana Maria defende que o atendimento básico deveser naturalmente realizado na porta de entrada comumao restante da população. “Não queremos discriminarnenhum grupo social, muito menos as travestise transexuais”, diz a responsável pelas políticasde promoção da equidade do Ministério da Saúde,como as ações voltadas à população LGBT.A DIVERSIDADE REVELADA29


Alexsandro Santos Silva, 35 anosA DIVERSIDADE REVELADA30O PROMOTOR de eventos Alexsandropretende se casar ainda este ano, assimque conseguir a cirurgia de retirada damama e a mudança de nome nos documentos.“A família quer que seja na igrejae no cartório, não sabe de nada”, elediz. A cirurgia de implante ou “construção”de um pênis virá posteriormente,afirma Alexsandro, uma esperança quevoltou a alimentar depois que se inscreveuno Ambulatório de Saúde Integralpara Travestis e Transexuais do CRTDST/Aids-SP, em fevereiro de 2010.Nos cinco anos anteriores, ele foiacompanhado por endocrinologistas,psiquiatras e psicólogos no interior deSão Paulo, sem nenhuma perspectivade conseguir as cirurgias que aguarda.Desde o início deste ano, ele viaja a SãoPaulo duas a três vezes por mês para asconsultas no ambulatório, dependendode vagas nas ambulâncias.Alexsandro Santos Silva, 35 anos, éum homem trans – biologicamente dosexo feminino, mas sente, age e pensacomo homem. O blusão ajuda a disfarçaros seios, e a barba e os pelos dosbraços e que escapam do peito não deixamsuspeita de que Alexsandro é umhomem. Há anos vem tomando hormôniomasculino.Ele conta que já teve quatro casamentos,todos com mulheres heterossexuais,ele “cumprindo” suas funçõesde marido, e elas, as de mulher, semprevivendo como “amigados”. “Nuncaenganei ninguém; eu dizia sempre,‘você está indo para a cama com alguémque não é 100% homem, meu corponão é o que você está vendo.’ Na cama,é prótese de silicone.”Alexsandro diz que não sabe comosair da situação, com os pais da namoradaexigindo que se casem no civil e na“ Meus sogrosqueremcasamento depapel passado,mas não sabemque sou umhomem trans”igreja. “Quando começamos o namorocinco anos atrás, eu e ela fizemos tudode acordo, ela ainda acompanha meutratamento, juntos decidimos que ospais não seriam informados.” Os doisnamoram em casa. “Quando estou nosofá e minha sogra se aproxima, ficogelado, medo de que perceba os meusseios. Alguns colegas sabem que soutransexual, uma brincadeira na rua podeacabar com tudo. É uma situação demuito sofrimento, por isso a cirurgia e amudança de nome para mim são muitoimportantes.”As saídas com a namorada e a famíliasão sempre tensas. Ele não pode ir aoclube nem à praia por que não pode tirara blusa. A família programou umaviagem para o litoral que Alexsandrooptou por pagar, já planejando que navéspera da partida alegaria um compromissoinadiável a pedido da empresa.A cirurgia da mama – a mastectomia– e a retirada do útero e do ovário, jásão feitas há décadas especialmente notratamento do câncer. Mas só em setembrode 2010 o Conselho Federal deMedicina regulamentou a realizaçãodesses procedimentos em caráter nãoexperimental em transexuais. A neofaloplastia,ou implantação de um pênis,ainda é considerada experimental.Mesmo sendo acompanhado há cincoanos, Alexsandro não tem ainda umlaudo psicológico dizendo que se tratade um homem trans. “Estou começandotudo de novo. Em quatro mesesem São Paulo, já passei por psicológico,endocrinologista, urologista eginecologista.”Mas nem a mudança de nome conseguiuainda. “Os juízes sabem quepassamos muitos constrangimentos.Quando vou ao banco, ou quando estoudirigindo, sempre me tomam porfalsário. Quando em serviço, não possomostrar meu RG.”É justamente a empresa onde trabalhaque vem dando a ele o maior apoio.O patrão faz questão de chamá-lo pelonome social e o indica para eventosimportantes da região. Alexsandro vaidispondo sobre a mesa o crachá da empresae dos vários eventos onde trabalhou.“Meu patrão autorizou que trouxessepara fortalecer o processo”, diz.Nas duas pastas que carrega, além depapéis e documentos, ele traz um pacotede fotos desde os tempos da adolescência– onde já aparece vestido demenino –, até retratos com as mulherescom as quais viveu. “Essa é aElaine, fiquei quatro anos com ela...Aqui é um outro relacionamento, elatinha uma filha que me chamava de pai.Aqui estou trabalhando em um grandesupermercado, eu tinha que fazer abarba na pinça e na cera... Este é o pessoalcom quem trabalho. Aqui é meupai. Se estivesse vivo, me ajudaria muitonessa briga.”


Verônica de Freitas, 20 anosA TRANSEXUAL Verônica de Freitas, 20anos, ganhou esperança nova com aconsulta marcada no ambulatório doCRT DST/Aids-SP, mas a cirurgiaparece a ela algo ainda muito distante.Tudo que busca agora “é sobreviver,arrumar um cantinho”, como ela diz,“sair dessa vida de todo dia não saberonde vai dormir, buscar pernoites emalbergue, às vezes dormindo nas calçadas”.“Quando você está de pernoiteainda, quer dizer que todo dia temde procurar vaga, às 7h da manhã dooutro dia tem que sair. Os alberguesestão lotados, eles dizem que têm depegar primeiro os doentes, os idosos.”Verônica vai ao CRD participar dasTerças-Trans. A assistente social játem conseguido alguns pernoites em albergues,e fez contato para um trabalhonuma cooperativa de reciclagem.“Ainda estou aprendendo, dá para tiraruns R$ 200 e pouco por mês.” Aassistente social da cooperativa tambémestá ajudando a encontrar vaga em albergues,uma rotina que Verônica sonhaum dia deixar.Se trabalhasse na rua, como profissionaldo sexo, ganharia numa noite oque ganha num mês. “Minha vida nãofoi voltada para isso, não é minha intenção.Sou transexual, estou esperandominha operação.”Desde criança ela diz que se vestecomo menina, “saí de casa, aqui em SãoPaulo mesmo, para ter minha própriavida”. Foi na cooperativa que conheceuseu atual companheiro, com quemdivide o dia-a-dia de pessoas vivendona rua e os pequenos projetos futuros.“A gente se entende bem, quero apenasuma vida mais digna, um lugar paranós, comprar minhas coisinhas, fazerfaculdade de moda, porque estou concluindoa sétima série à noite.”Desde o ano passado, ela frequenta o“ A cirurgia étudo que quero,mas antespreciso de umcantinho, precisosobreviver”CRD, encaminhada por uma amiga quetrabalha num centro de saúde. “Aquitem curso, tem informação, tenho amigas,tem psicóloga, tem assistente social,mas o que mais eles dão é apoiomoral.” Verônica também foi encaminhadaao ambulatório do CRT. “Tenhouma consulta com o psicólogo daquia dois meses. É ele que vai decidiruma coisa que eu já tenho certeza, sesou transexual ou não. Ele vai apenasconfirmar isso. Aí vou seguir o grupode terapia.”Suzielen S., 19 anosSUZIELEN S., 19 anos, já estabeleceuseus planos e não pensa em mudar,mesmo com as amigas e a assistentesocial avisando que estará correndo riscos.“Saí de casa para colocar prótesesde silicone nos seios, já vi o preço, R$3.500. Na perna, no bumbum e quadril,só daqui para baixo, são mais R$1.000, isso com silicone industrial. Tãodizendo que é perigoso, mas estouconsciente. O silicone industrial é maiseconômico, as próteses são muito caras,não tenho esse recurso.”O passo seguinte é ir para a Itália emais tarde fazer a cirurgia de mudançade sexo. “Já me inscrevi no grupo depsicoterapia do ambulatório da SantaCruz e tenho consulta marcada.” Segundoela, uma amiga contou que o“ Não entreinessa vidapara ficar nametade”ambulatório oferece prótese de silicone,mas que demora três anos. E a hormonoterapiatambém leva meses, diz ela.“Não posso esperar. Nós vivemos nummundo que faz tudo pela estética, e temque ser rápido, com isso a gente sesatisfaz e satisfaz outras pessoas.”Ela faz as contas, “uma travesti comsilicone ganha R$ 300 a R$ 400 por noite.Sem silicone, cai pela metade. Seeu entrei nessa vida, não vou ficar pelametade. Até tenho outra opção, retomara faculdade de turismo e enfermagemque fazia, mas antes quero colocarsilicone e ganhar algum dinheiro.”Suzielen saiu de Belém, no Pará, com17 anos para se “aventurar”. Trabalhounuma loja em Copacabana, no Rio, enquantose iniciava na rua. Há poucosmeses está em São Paulo. A mãe já viusua foto no Orkut e mandou avisar, “sepisar em Belém, não me procure, nãote reconheço mais como filha.”Em São Paulo, ela repetiu o caminhoda maioria daquelas que chegam – procuramabrigo em albergues, buscamclientes que as levem a um hotel, recorrera alguma colega travesti. Suzielenconheceu o CRD por amigas e pelosfolhetos que a equipe de prevenção distribuinas saídas noturnas. Hoje transitapelo CRD como se fosse sua segundacasa, às vezes, a primeira. “É onde possoconversar e perguntar o que não sei.Aqui me sinto segura e sem culpa.”A DIVERSIDADE REVELADA31


TRANSEXUAIS TÊM MAIORescolaridade e inserção no trabalhoPerfil de 204 usuárias do ambulatório do CRT DST/Aids-SPmostra que 55,6% das travestis são profissionais do sexo e a maiordemanda é por terapia hormonal e retirada de silicone. Quase umterço das transexuais tem curso superior completo ou incompleto.A DIVERSIDADE REVELADA32Desde que iniciou o atendimento, em 15 dejunho de 2009, até 30 de junho de 2010, oAmbulatório de Saúde Integral para Travestise Transexuais atendeu cerca de 500pessoas. Dos primeiros 301 casos, 204 foramanalisados. Desse total, 129 ou 64,2%,se declararam transexuais. Oito tinham sido operadas,102 eram mulheres trans não operadas e 19,homens trans não operados. As travestis auto-referidaseram 72, ou 35,3% desse grupo. Outros três sedisseram cross dressing ou gay. A faixa etária é bastanteuniforme entre 22 e 56 anos.Como era proposta do ambulatório, os usuários sãona quase totalidade transexuais e travestis. Os dois grupostêm demandas, escolaridade e perfil profissionalbastante diferentes. Na primeira consulta das 72 travestis,e como primeira demanda, 16 disseram procuraro ambulatório para tratamento hormonal, 15 porproblemas com silicone industrial e 14 para sorologias.Seis delas procuraram para clínica geral, quatro porlesões genital e anal, três para acompanhamento deHIV/aids. Só uma buscou atendimento psicológico.Como segunda demanda, 44 travestis apresentaramqueixas devido a problemas decorrentes de uso desilicone industrial, sendo que “em alguns casos já nãohavia mais o que fazer”, diz Judit Lia Busanello, psicólogae uma das diretoras do Ambulatório de Saúde Integralpara Travestis e Transexuais.Entre as transexuais, as principais demandas sãocirurgia de transgenitalização – 23 delas disseram queera a primeira demanda. Mas 59 outras reivindicavama cirurgia de redesignação sexual associada a outrasdemandas, principalmente o acompanhamentohormonal. Significa que das 121 mulheres trans e homenstrans não operados, 67,7% tinham como meta ademanda pela cirurgia.As travestis têm um nível de escolaridade maisbaixo que as pessoas transexuais, fato que explica amenor inserção no mercado de trabalho formal e ummaior número de profissionais do sexo entre elas.Também revela o preconceito maior que pesa sobreesse grupo. Entre as travestis, 52,1% têm ensino fundamental,39,4% têm nível médio e 6,4%, superior.Entre as transexuais, 28,9% têm curso superior, 47,0%cursaram nível médio ou formação técnica e 22,6%,o fundamental.A discriminação com relação aos dois grupos ébastante perceptível quando se observa a ocupação.Das 72 travestis, 40 se disseram profissionais dosexo, o que representa 55,6% desse grupo. Onzeafirmaram ser cabeleireiras. E outras onze faziamtrabalhos diversos, como anfitriã e recreação, artistaplástica, assistente social, balconista, carteiro,costureira, cozinheira, dona de pensão. Três informaramestar desempregadas.Entre as transexuais, o maior número delas é cabeleireira,19, seguida por estudantes, 11, e profissionaisdo sexo, nove. Há um maior número delasinseridas no mercado de trabalho, o que revela umamelhor aceitação desse grupo, quando se compara comas travestis. Quatro atuam como professoras, três estãoempregadas no setor público, quatro são vendedoras,duas comerciantes e duas autônomas. Pelo menos umarevelou ser auxiliar de enfermagem, bancária, bióloga,caixa. Cerca de 40 diferentes profissões ou ocupaçõesforam citadas. Onze delas estavam desempregadas.


Oficina de Pintura Artística em Madeira, coordenada por Helena Vitória (ao centro):uma das muitas atividades oferecidas ao público frequentador do CRD 33A DIVERSIDADE REVELADA


Sono nos sofás da entrada do CRD: uma pausa para o relaxamento, sem horários nem cobrançasABRIGO,TRABALHO EACOLHIMENTOCom a porta aberta para a rua,o CRD é a entrada dasdemandas mais urgentesda população LGBTem situação de risco.A DIVERSIDADE REVELADA34Francisco tem 19 anos, é gay e saiu de casanum bairro de São Paulo por conta de conflitoscom o pai e depois de uma discussão coma mãe. A família não o aceita, ele preferiu morarna rua – é o que relata para a assistente socialTaís Diniz Souza. Segura uma mochila nasmãos, é tudo que levou de casa. Depois de alguns diasdormindo sob marquises da região central, um colegade rua falou do CRD. Veio em busca de uma vaga emalgum albergue. Na rua vivia sob a ameaça de violências,estava vulnerável a tudo, ele contou.Francisco repete a trajetória de muitos outros quechegam ali. “Acabam ficando alguns dias na rua, vêemque a situação é pesada e voltam para casa. Depois dealgum tempo, depois de outras brigas, retornam paraa rua. Alguns, como Francisco, vêm buscar ajuda aqui.”Taís consulta a lista de albergues afixada na paredeao lado de sua mesa, são mais de 20, cinco deles estãomarcados em amarelo, porque ficam na região cen-tral e porque é com eles que Taís faz contato commais freqüência. É quinta-feira e Taís consegue umavaga para duas noites no Estação Vivência, no bairrodo Pari. Depois disso, o próprio Francisco deve solicitarseu pouso. Na segunda-feira deveria retornar aoCRD, não apareceu mais.“Há períodos em que a maioria dos que chegamaqui à procura de ajuda são gays ‘expulsos’ de casa.Em outros, são travestis. Não sabemos a razão desseaumento cíclico de procura”, diz. Em outras semanas,são michês que passam a tarde aqui, tomamo lanche e à noite saem para um programa que lhesgarante a noite no hotel.Antes de ceder uma vaga, o albergue quer saber operfil do “candidato”, se homem, mulher, heterossexual,gay ou travesti. “Alguns albergues têm espaços para travestise transexual, a maioria não”, diz Taís. “O Portal doFuturo reservou leitos para travestis na ala feminina, masem alguns albergues as travestis e as transexuais ficam em


Quando a equipe do CRD percebe que a pessoa já está melhorestruturada, aí a preocupação passa a ser com a busca de trabalhoConversa com profissionais e acesso aos computadores: pessoas e equipamentos disponíveis para osprimeiros contatos com uma nova perspectiva de vida, fora das ruas,das drogas e da prostituiçãoalas masculinas. Em outros, são colocadas na ala dos idosos.Nos albergues, tanto homens como mulheres têmcerta resistência às travestis.”Esse é outro trabalho que aos poucos vem sendodesenvolvido pela assistente social e pela psicóloga doCRD, além da CADS (Coordenadoria de Assuntosda <strong>Diversidade</strong> Sexual, da PMSP): visitar os alberguese conversar com as pessoas responsáveis – geralmenteuma assistente social – para que tratem com o devidorespeito a população LGBT. Mesmo sendo um equipamentopúblico ou conveniado, os funcionários nãochamam transexuais e travestis pelo seu nome social,como já exige a lei, sob a guarda da portaria municipalnº 51.180/10. Várias se queixam que foram colocadasem ala masculina. Tiveram que tomar banho segurandoa porta, que não tem trinco, com medo de abusose histórias de estupros que uma conta para outra.Marcelle Miguel conseguiu vaga permanente – operíodo é de seis meses – na ala feminina de umalbergue. Camila Rocha não. “Preferi dormir na ruacom meu ‘esposo’. Ele tinha ciúmes de me ver numaala com 200 homens”, diz.O CRD “trabalha com a proteção social básica,nos parâmetros do Sistema Único de Assistência Social(SUAS), que é fazer a acolhida do usuário eencaminhá-lo para a rede de serviços públicos”, explicaTais. “Atendemos as áreas específicas da diversidade,as demandas mais urgentes de alguém quechega da rua, se precisa de um lugar para dormir,uma ajuda psicológica. É a porta de entrada de umacasa de acolhida. Aos poucos vamos reconstruindosua história, muitos deles acabam retornando e passama fazer parte das oficinas, outros aparecem paraconversar, e outros não voltam mais.”Quando a equipe percebe que a pessoa já estáestruturada, caminhando, aí a preocupação é com otrabalho. “Fazemos o cadastro no site Emprega SãoPaulo e pesquisamos entrevistas. Com um trabalho,A DIVERSIDADE REVELADA35


A DIVERSIDADE REVELADA36a pessoa vai conseguir autonomia, que é o nosso objetivo”,completa Taís.Este, naturalmente, é o caminho ideal. A equipeestá lá para oferecer apoio e encaminhamento paracursos, vários deles ali mesmo no CRD. “Mas quemvai decidir é a pessoa”, diz a assistente social. “Háaqueles que preferem passar a noite no albergue, oumesmo na rua, tomar um banho e almoçar em algumcentro de assistência, passar a tarde aqui e ànoite voltar para o albergue ou voltar a dormir narua. Se a pessoa prefere assim, não interferimos nasua conduta. É possível que umdia ela perceba que a vida queestá levando não é aquela quequeria, e aí nós estamos aqui paraisso, para ajudá-la.”A transexual Suzy Silva, 25anos, tem o ensino médio e mudou-sedo Piauí para São Paulopara morar com o irmão, que égay. Foi nesse meio que conheceuo CRD. “Fizemos o cadastroda Suzy no Emprega São Paulo,ela foi chamada para uma entrevistanuma empresa de telemarketing,passou, e está desde oinício do ano trabalhando”, contaa assistente social Taís. DepoisSuzy trouxe a irmã, como costumamfazer os homens que vêmpara a cidade grande, conseguememprego e em seguida chamamo resto da família. Fora do trabalho,Suzy se dedica a pinturas eartesanato. “Passa por aqui paradar um ‘oi’ para as ‘filhas’”, comoelas costumam chamar as colegasmais novas e ainda em busca deum lugar.Suzy é um dos casos de sucessodo Balcão Solidário deOportunidades de Emprego, ummodelo que vem sendo testadopelo CRD como tentativa de resolveruma das maiores dificuldadesdessa população, a inserçãono mercado de trabalho. Éuma experiência inédita no país.“As travestis que chegam defora vêm cheias defantasias, acreditam quevão ganhar muito dinheiro,modificam o corpo comsilicone industrial, tomamhormônio, não ligam para operigo, querem ficarmontadas. E quando não dácerto entram na droga, sãoas mais vulneráveis”, relataAndreza Barbosa Trindade,orientadora sócio-educativado CRD, que percorre ruasda região central, fazendocontatos e encaminhando aspessoas ao CRD.“As que conseguemprogramas, ainda passam anoite no hotel. As que jáestão debilitadas, usam ocrack para suportarem. E asque não aguentam mais,vêm em procura de umalbergue. Mas o apelo dadroga é grande e muitasabandonam o albergue. Oque fazemos, em muitoscasos, é tentar diminuir osriscos e a vulnerabilidadedelas”, comenta Andreza.Trabalho não resolve tudo, mas para muitos é a condiçãopara sair da rua. Para chegar lá – diz Taís – épreciso passar por uma fila de preconceitos e discriminações.Para a maioria dessas pessoas, sem escolaridade,morador de rua ou profissional do sexo, abarreira é quase intransponível. Taís e Cristina Santosacompanham de perto as tentativas daqueles quese candidatam a um trabalho, somam mais fracassosdo que sucessos, mas são aprendizados para todos.Marcelle Miguel, hoje com 37 anos, foi técnicoem telecomunicações em grandes empresas enquantodisfarçou seu papel de homem, atéque se revelou transexual e as demissõese recusas de emprego serepetiram. Em quatro anos, foi doapartamento onde morava e dotrabalho de técnico que exercia,para o desemprego e o abrigo darua. Em junho de 2010, fez novemeses que freqüenta o CRD, ajudana cozinha e dorme em albergue.Não tem mais esperanças deter seus empregos de volta.Mikaela Rossini faz o caminhoinverso. Saiu da “pista” na condiçãode drogada, prostituída ebabadeira para encontrar no CRDum incentivo para começar denovo. Sabe muito de informática,lê clássicos da filosofia e já se preparapara a faculdade. Garanteque vai ganhar mais dinheiro naárea de tecnologia da informaçãodo que ganhava como travesti nanoite. Mikaela já pensa em serconsultora trabalhando em suaprópria casa, o que reduz o riscoda discriminação.Na classificação desse universo,ser travesti significa aquela que temmenor chance de um emprego. “Amaioria de nós não quer mesmo”,diz Claudia Coca, ex-drogada,prostituída, presidiária, bombadeirae hoje educadora social do CRD.“Pergunte a uma travesti se querser pedreiro ou faxineira? Nenhumaaceitaria essa sina”, diz.


As oficinas do CRD – como a de Design de Moda e Customização, coordenada por Bianca Foepel (foto) –,permitem aos frequentadores adquirir novas habilidades que possibilitem a reinserção no mercado de trabalho“Aquelas que são profissionais do sexo e queremoutro trabalho, passam por grandes dificuldades”, dizTaís. “É preciso trabalhar primeiro a educação, porqueo roteiro de vida dessas meninas é de exclusão. Amaioria foi rejeitada pela sociedade, pela família, emseguida foi drogada, acolhida por uma cafetina que arouba, clientes que abusam. Só convive com a vidanoturna, tem medo de sair durante o dia, pegar metrô,tomar ônibus. À luz do dia, elas se sentemameaçadas, por isso um trabalho parece a elas muitodifícil. Aquelas que se aproximam, nós começamos aconversar sobre quem ela é, porque acha que estáaqui, com quem ela pode contar, a importância de sedeixar reeducar, a importância de tomar o metrô e nomeio das pessoas conservar a dignidade.”Os dados preliminares do Ambulatório de SaúdeIntegral para Travestis e Transexuais do CRT DST/Aids-SP mostram que depois de profissionais do sexo,a profissão mais citada pelas travestis é a de cabeleireiras.Num grupo de 72, uma única disse ser faxineira.As transexuais, por serem consideradas uma mulherem transformação – e muitas vezes tidas comodoente – gozam de um prestígio mínimo no mercado,às vezes confundido com piedade, sentimento que elase as ativistas desprezam.“As transexuais que tiveram alguma escolaridade,ou que estão estudando, essas nós conseguimos encaminharpara o mercado de trabalho”, diz Taís. Assimcomo aconteceu com Suzy, várias outras foram paratelemarketing, ou já eram professoras ou auxiliares deenfermagem.Os gays são bem aceitos como garçons e váriosconseguiram emprego depois que passaram por cursose foram encaminhados pelo CRD, diz Taís. “Alémdo curso, a gente fala com eles sobre essa resistênciaque é preciso manter sempre. Precisam ser respeitadoscomo profissionais e como gays.”Há outros casos como Marciano, que já foi um “respeitado”cafetão de meninas brasileiras numa cidadeitaliana, acostumado a dar festas e a desfilar com carrose mulheres. “Derrubado pelo crack”, agora é agentede prevenção do Programa Municipal de DST/Aidsno projeto que tem como sede o CRD e segurança emempresas particulares. Ganha no mês o que ganhavaem algumas horas. Cuida das enfermidades que acumulousem perder a elegância e a dignidade.A DIVERSIDADE REVELADA37


A DIVERSIDADE REVELADA38Assistente social,Taís agora cursapós-graduaçãoTAÍS DINIZ SOUZA, a assistentesocial do CRD, é uma mulher transque diz não ter conflitos com seuórgão genital masculino. Talvez umdia faça a cirurgia, mas não vê aoperação como essencial para suacondição de transexual feminina.Vive com um companheiro e osdois têm planos futuros deadotarem filhos. “Eu o conheci nodia do meu aniversário, 9 desetembro. Ele é heterossexual, eutambém sou. Sou mulher e gostode homem, gosto do outro sexo.Ele é barman e nós nos damosmuito bem.”No CRD, Taís é chamada deTaizinha, para diferenciar da Thaísdi Azevedo, que é a recepcionistae travesti. Taís tem 28 anos, égraduada em serviço social e pósgraduandaem políticas públicas.Veio de Manaus para São Pauloem novembro de 2008 e foitrabalhar num abrigo de crianças emenores em situação de riscosocial. “Tinha deixado meucurrículo na Prefeitura e fuiselecionada para o trabalho aqui.”Além de cursos e experiência, Taístinha o diferencial de sertransexual. Quase todos os quetrabalham no CRD são LGBT,embora essa não seja umacondição.A mesma Taís que encaminha emarca consultas no Ambulatóriode Saúde Integral para Travestis eTransexuais é uma das pacientesdo serviço. Foi nas várias consultaspelas quais passou que pode falarTaís também encaminha os usuáriosdo CRD para assistência à saúde noambulatório do CRT DST/Aids-SPdo silicone industrial que tinhacolocado anos atrás e que aincomodava. Encaminhada para oHospital Geral de Diadema, quetem parceria com o ambulatório, aremoção foi feita.Taís faz acompanhamentohormonal no ambulatório, masainda não participa do grupo depsicoterapias para uma eventualcirurgia. “Quando abriu, oambulatório foi uma porta paramim, porque trans e travestis sóvão ao médico em caso de extremanecessidade. Não fosse oambulatório, eu não teria retirado osilicone nem teria oacompanhamento que preciso. Nogeral, os serviços públicos nãoentendem.”Taís transita no espaço do CRDexibindo um corpo impecável,cabelos longos, cintura fina e botascompridas. Se alguém pedir suaidentidade, no entanto, vai sesurpreender com seu nomemasculino. Como centenas deoutras transexuais, que já vivemsuas vidas como mulheres, Taísainda não conseguiu reunir provaspara que a Justiça a autorize acorrigir seu nome.


Transexuais e travestis,CLASSIFICAÇÕES INCÔMODASEm um dos encontros Terças-Transdo Centro de Referência da <strong>Diversidade</strong>,a coordenadora Alessandra Saraivaperguntou quantas eram transexuaise quantas travestis. Das 15 presentes,só uma se disse travesti. “Haviapelo menos seis delas na sala”, dizAlessandra.Não se manifestaram por conta depreconceitos que pesam sobre elas. Astransexuais, ao contrário, são descritaspor classificações médicas e exigemagora o direito de não serem mais enquadradascomo doentes.A definição de transexualismo variade acordo com a origem do textoque se refere a ele, mas apenas nosdetalhes. A resolução 1.652 de 2002do Conselho Federal de Medicina, quedispõe sobre a cirurgia de transexualismo,enumera os seguintes critérios:desconforto com o sexo anatômiconatural; desejo expresso de eliminaros genitais, de perder as característicasprimárias e secundárias dopróprio sexo e ganhar as do sexo oposto.Permanência desses distúrbios deforma contínua e consistente por, nomínimo, dois anos. E ausência de outrostranstornos mentais.A Associação Americana de Psiquiatria,em sua definição de 1994, é apenasmais detalhista, listando as seguintescondições ou critérios:A - Uma forte e persistente identificaçãocom o gênero oposto (nãomeramente um desejo de obter quaisquervantagens culturais percebidas porser do sexo oposto). Em adolescentese adultos, o distúrbio se manifesta porsintomas tais como desejo declaradode ser do sexo oposto, passando frequentementecomo do outro sexo – odesejo de viver ou ser tratado comodo outro sexo, ou a convicção de queele ou ela tem os típicos sentimentos ereações do outro sexo.B - Persistente desconforto com seusexo ou sentimento de inadequação nopapel de gênero deste sexo. Preocupaçãoem se livrar de características sexuaisprimárias e secundárias (porexemplo, pedido por hormônios, cirurgiaou outros procedimentos paraalterar fisicamente as características sexuaisde modo a simular o sexo oposto)ou crença de que ele ou ela nasceuno sexo errado.Os critérios precisam levar em consideraçãooutras variáveis. Por exemplo,por falta de oportunidade ou pormedo da cirurgia, parte dos transexuais(mulheres trans e homens trans) dizconviver com seus órgãos genitais semgrande sofrimento, o que pode ser vistoem alguns depoimentos nessa publicação.Não quer dizer que deixemde ser transexuais.Dois anos de psicoterapia é o tempomínimo que o Conselho Federal deMedicina estima para que um transexualesteja realmente certo de que étransexual e quer corrigir seu sexo.Tanto para homens trans como paramulheres trans, a cirurgia é irreversível.“Esse período é um consenso apoiadopor correntes internacionais, como ada Universidade John Hopkins, porexemplo”, diz o psicólogo RicardoBarbosa Martins, coordenador de saúdemental do CRT DST/Aids-SP.No Ambulatório de Transexuais doHC, a média tem sido de quatro anos.“Eu, pessoalmente, acho que algumaspessoas não precisariam sequer dosdois anos, outras precisariam de mais”,diz Martins. “Algumas chegam aquiconfusas do ponto de vista do gêneroque diz ser pretendido, sem nunca terenfrentado uma questão com seu meiosocial, sem ter tido a coragem de dizerque não pertencem a seu gênero biológico.Para essas, a cirurgia é uma temeridade”,diz o psicólogo.“Mas há outras que vivem o seugênero com tamanha tranquilidade, etem um incômodo tão aflitivo com apresença do órgão do seu gênero biológico,que algumas entrevistas bastampara confirmar que são transexuais. Pessoasque já estão há dez, 15 anos vivendocom um companheiro e que não vãose sujeitar a dois anos de psicoterapiapara que se prove isso”, revela Martins.Para as travestis, a definição maisaceita, inclusive no meio médico, é ade alguém que se comporta e se vestecomo do outro gênero para satisfaçãosexual, mas não quer a cirurgia paramudar seu órgão sexual, como desejamos transexuais, pois não se sentemdesconfortáveis com a presença domasculino e feminino no mesmo corpo.Para modelar o corpo, as travestisrecorrem a uso de hormônios e depróteses de silicone e pelo menos metadedelas seria profissional do sexo.Alguns autores lembram que há umadistorção social na divisão entre travestise transexuais, com as primeirassendo relacionadas com as classes maisbaixas, à pouca escolaridade e à práticada prostituição. As segundas teriammelhor nível social – o que não necessariamenteé verdade – e se justificariampor uma disforia de gênero.Na sua origem, o termo travesti erausado para indicar alguém que se vestiacom roupas do sexo oposto para seapresentar em shows e espetáculos.Hoje, essas pessoas são mais conhecidascomo drag queens, cross dressers oumesmo transformistas. Não são necessariamentehomossexuais, embora amaioria se inclua na população LGBT.A DIVERSIDADE REVELADA39


Victor de Abreu, 27 anosA DIVERSIDADE REVELADA40VICTOR é um homem trans que já fezcirurgia da mama e agora embala umsonho com a namorada com quem vivehá quatro anos: retirar um dos seusóvulos e guardá-lo congelado numa clínicade inseminação para que no futuropossa ser fecundado e colocado no úteroda companheira. Assim o filho nasceriade um óvulo seu e seria gerado na“barriga” da namorada. Mas o sonhonão pode esperar, porque os hormôniosmasculinos que ele vem tomando háanos, em pouco tempo podem deixáloestéril. Os dois já fizeram as contas eviram que não têm condições de bancaros custos desse procedimento, pelomenos no momento.“Para nós, ter a possibilidade de congelarmeu óvulo e gerar um filho destaforma seria mais importante que conseguiruma cirurgia”, diz. “Já faz algumtempo que minha menstruação foi interrompidapor conta dos hormônios, equanto antes eu fizer isso terei maischances. Já verifiquei em algumas clínicasparticulares e o custo está alto paramim, mas eu gostaria muito de fazer.”A mastectomia foi paga por ele mesmo,em meados de 2009. A histerectomia– retirada do útero e do ovário– ainda não foi feita. “Estou aindaamadurecendo a idéia de uma possíveltransgenitalização (a implantaçãode um pênis), conversando com médicose psicólogos para ver se isso é realmenteimportante na minha vida”, dizVictor. “O que pretendo mesmo écontinuar o tratamento hormonal,que é uma coisa que está me fazendomuito bem. E antes de tudo, a prioridadenúmero um é a mudança denome. Por conta da minha documentação,eu sofro mais preconceito doque pela falta da cirurgia em si. Minhanamorada também não considera quea cirurgia no momento seja essencialna nossa relação.”“ Congelar umóvulo meuseria maisimportante quea cirurgia”Victor conheceu o Ambulatório deSaúde Integral para Travestis e Transexuaisno início de 2010. “Antes eutinha um convênio muito ruim, o máximoque tive foram algumas consultascom endocrinologista. Foi por indicaçãode amigos no Orkut que conheci oambulatório do CRT. Agora faço tudopelo ambulatório.”Ele vai duas a três vezes por mês aoCRT DST/Aids-SP, onde faz psicoterapiaindividual e é acompa-nhado porendocrinologista, ginecologista e outrosmédicos da equipe. “Fiquei feliz com otratamento, é um pessoal preparadopara isso. Cheguei a falar para mimmesmo, ‘puxa, eu não esperava isso doBrasil, essa atenção e esses cuidadosparecem coisa de Primeiro Mundo.”Victor de Abreu, 27 anos, é professorde inglês. A namorada, da mesmaidade, dá aulas de francês, também emescola de idioma. A mãe dela e os doisirmãos já sabem que ela vive com umtransexual. O pai e a avó não. “Me tratamnormalmente como Victor, nemdesconfiam”, ele diz. Assim que saíremos papéis, os dois pretendem se casar.Por isso a documentação é uma prioridadepara Victor. Com o laudo psicológicoem mãos, comprovando suatransexualidade, ele procurou a DefensoriaPública para entrar com uma ação.A mudança de nome e gênero ainda nãoé permitida por lei, por isso é necessárioque se entre com pedido na Justiça.“A advogada disse que vai dependerdo juiz, mas já adiantou que São Pauloé um Estado atrasado nessas questões.”Ele conta que só assumiu sua transexualidadena adolescência, quando jáestava com a primeira namorada.“Sempre fui visto como moleque, masdecidi dar a cara para bater quando játinha 18 anos. Já tive outras namoradas,sempre heterossexuais, não sintonenhuma atração por lésbica.”Com a atual namorada, e com oacompanhamento pelo CRT, Victordiz que hoje “vive um momento depaz” na sua vida social, especialmenteno curso de graduação em análise e desenvolvimentode sistemas. “Na faculdadesó os diretores e professores sabemda minha situação, ninguém mais.Na primeira semana de aula, chegueimais cedo todos os dias, falei com cadaprofessor sobre meu nome e minhatransexualidade e eles me entenderam.Só me chamam por Victor.”Ele cita a iniciativa da faculdade deadotar a portaria baixada pelo governodo Estado em março de 2010 determinandoque em todo o serviço público aspessoas sejam chamadas pelo nome social.“Em todos os meus documentosescolares estou como Victor, na carteirada faculdade, no bilhete único...Parece que pela primeira vez na minhavida estou sendo eu de verdade.”


“NÃO SOU DOENTE MENTAL”diz ex-presidente da Parada GLBT“Patologização” do transexualismo provoca protestos epreocupa essa população. A França foi o primeiro país a retirar ostransexuais da classificação de doentes mentais.Embora a travesti se caracterize por uma identificaçãointensa com o outro sexo, inclusivecom o recurso a medicamentos e próteses paramodificar o corpo, o travestismo escapou àclassificação de doença. O transexualismo, aocontrário, está catalogado como patologia peloCódigo Internacional de Doença da Organização Mundialda Saúde. Mais que isso, foi classificado dentro doCID 10, onde se enquadram as doenças e transtornosmentais, o que provoca protestos de ativistas de todo omundo e a divisão entre os próprios transexuais.A divisão é compreensível, especialmente no Brasilonde o SUS só oferece tratamento para problemas enquadradoscomo doença – a linha de raciocínio é a deque, se não for doença, não precisa de tratamento. Logo,o temor é que a “despatologização” implique na impossibilidadede atendimento pelo serviço público de saúde,justamente uma conquista reivindicada há muitos anos.Há quem defenda um terceiro caminho, como AlexandreSantos, o Xande, transexual e ex-presidente daAssociação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo.Se é preciso que o transexualismo seja enquadradadoem um CID, que o seja em outro, ou que seja inventadoum outro, não no CID 10, diz ele. “Não souportador de doença ou transtorno mental”, protesta.A tendência é que no futuro o transexualismo deixede ser considerado uma doença, como aconteceuna França. Em fevereiro de 2010, um decreto do ministériofrancês da saúde suprimiu a expressão “transtornosprecoces de identidade de gênero” das “patologiaspsiquiátricas de longa duração”.Com a medida, o país se tornou o primeiro nomundo a retirar o transexualismo do CID 10, classificaçãofeita pela Organização Mundial de Saúde. AOMS, por sua vez, justificou a classificação lembrandoque o transexualismo figura na lista de patologiasregistradas no manual médico DSM (Diagnostic andStatistical Manual of Mental Disorders), feito por médicosamericanos. A homossexualidade, que tambémconstava do CID, foi retirada dessa classificação anosatrás. Em 2009, personalidades políticas e cientistasde muitos países divulgaram carta aberta à OMS pedindoque os transexuais “não fossem consideradoscomo vítimas de transtornos mentais”.O Ministério da Saúde francês anunciou que ostransexuais continuarão assumidos pela PrevidênciaSocial. O transexualismo, que não será mais doençamental, entrará na classificação de “fora da lista”, oucomo “doença órfã”. No Brasil, uma solução semelhanteresolveria o impasse criado entre as diretrizesdo SUS e uma disforia que, mesmo não sendo doença,precisa de tratamento médico.Portarias que reforçam essa tese não faltam. Oatendimento sem discriminação é previsto na Cartados Direitos dos Usuários da Saúde, instituída pelaPortaria nº 675/GM, de 31 de março de 2006. Odocumento menciona, explicitamente, o direito ao atendimentohumanizado e livre de discriminação por orientaçãosexual e identidade de gênero a todos os usuáriosdo Sistema Único de Saúde.A portaria 1.707 de 2008, que institui no âmbitodo SUS o “processo transexualizador”, considera quea orientação sexual e a identidade de gênero são fatoresreconhecidos pelo Ministério da Saúde como determinantese condicionantes da situação de saúde. “Nãoapenas por implicarem práticas sexuais e sociais específicas,mas também por expor a população LGBT aagravos decorrentes do estigma, dos processosdiscriminatórios e de exclusão que violam seus direitoshumanos, dentre os quais os direitos à saúde, àdignidade, à não discriminação, à autonomia e ao livredesenvolvimento da personalidade”.A DIVERSIDADE REVELADA41


Alexandre Santos, Xande, 38 anosA DIVERSIDADE REVELADA42ALEXANDRE SANTOS, o Xande, 38 anos,já comandou a maior manifestação delésbicas, gays, bissexuais, transexuais etravestis do mundo. Na sua edição de2010, a Parada LGBT reuniu mais de 3milhões de pessoas em São Paulo. Xandeé o único caso de homem trans no mundoque dirigiu uma entidade mista, nocaso a Associação da Parada do OrgulhoLGBT de São Paulo. É também um casoraro de vivência e militância pela causa.Xande, entre outras atuações, participoudo grupo consultor na redação da normado SUS sobre processo transexualizadore da criação do Ambulatório de SaúdeIntegral para Travestis e Transexuais doCRT DST/Aids-SP.Alexandre sempre se apresentoucomo homem, tem a voz de homem,usa blusas largas que disfarçam os seios,mas não conseguiu ainda a cirurgia deretirada do útero e do ovário que poderiainterromper sua menstruação. Vinteanos atrás, com o projeto de compartilharum filho com a então companheiraque não podia engravidar, Xande deua luz a filha Bruna. A companheira morreutrês anos depois. Bruna, hoje com19 anos, podia ser vista nas fotos que eleexibia em sua mesa na sede da Associaçãoda Parada, na Praça da República.Outra foto sorridente mostrava Débora,a companheira com quem Xandevive há quase quatro anos. “A gente seconheceu na Internet e depois de algumtempo ela propôs um encontro”,ele diz. “Tentei evitar, dizendo quenão era totalmente homem. ‘Como assim?’ela quis saber. ‘Você se lembrado caso da Roberta Close’, perguntei.‘Pois eu sou a Roberta Close ao contrário’.E desde então estamos juntos.”A filha Bruna mora com o pai, viroumilitante e é quem mais parte para abriga quando percebe sinais de preconceitoà sua volta. “Costumo conversarcom ela desde que era pequena. Elame chama de ‘pãe’, uma mistura de paie mãe.” Débora, a companheira, é umamulher heterosexual, como as namoradasque Xande já teve. O único relacionamentolésbico que viveu foi nagravidez de Bruna, cujo pai é um gay,amigo do casal na época, ele conta.“Nunca me senti menina”, contaXande. “Desde criança jogava bola, soltavapipa, andava de carrinho derolemã.” A primeira paixão, aos 9 anos,foi com uma coleguinha que nunca descobriuque o namoradinho tinha umavagina, não um pênis. “Apanhei muitopor essas coisas.”Com o nome de Alexandra e as roupasde rapaz, Xande passou num concursoda prefeitura de Araraquara, cidadedo interior paulista onde morava,e foi ser recreacionista numa creche. Foidespedido acusado de “comportamentoinadequado”, mas ganhou na Justiça.Em 2000 sofreu um acidente de motoque o deixou em cadeira de rodas portrês anos. Em 2003, numa das viagensa São Paulo para tratamento na AACD,acompanhou a Parada Gay de muletas.“Eu vi aquela multidão contagiante edisse, ‘cara, quero saber quem faz isso,porque também quero participar’.”Meses depois, Xande deixou Araraquaracom seus trajes masculinos mas“ Homens transsão ignorados,eles nãoexistem”ainda sendo chamado de Alexandra, eveio se instalar em São Paulo.Aos 30 anos, Xande ainda não sabiaexatamente o que era. “Quando entreipara o movimento das lésbicas,percebi que alguma coisa não se encaixava- uma lésbica não podia ser tãomasculina como eu era, nem ter nomede homem.” Só começou a delinear suaidentidade sexual quando passou a frequentaro grupo de travestis e transexuaisda Associação da Parada. “Astransexuais eram todas mulheres trans,e eu comecei a ver que me identificavacom elas, mas ao contrário. Nas buscasna Internet vi que existiam movimentosFtM, mulher para homem, ou homenstrans. Aí me dei conta, ‘cara, éisso que eu sou’. Porque até então estavaperdido, não sabia o que eu era.”Quando Xande entrou para a Associaçãoda Parada, em 2004, já se apresentoucomo homem trans. “Comeceicomo voluntário, atendia telefone, liaos jornais. Tinha feito só até o segundoano do ensino médio. Em 2007 me puseramcomo secretário geral e em 2008fui convidado para a presidência. Fui oprimeiro presidente homem trans deuma associação mista.”Para o movimento, essa visibilidadevem sendo importante. “Eu me torneiuma pessoa pública, um homem transpúblico. Se as travestis são discriminadase desprezadas, as mulheres transsão pouco visíveis e sofrem preconceito,os homens trans são totalmente ignorados,eles não existem”, afirma.


Alexandre Santos é um personagem que convive com todos os paradoxos de umhomem trans: foi mãe biológica, tem filha, esposa, seios, vagina, e é pai e marido.É nessa condição que fala dos desafios e das dificuldades que enfrentam ostransexuais.Trechos de sua entrevista foram transcritos abaixo:Sobre a norma e a prática do SUS“Sou usuário do ambulatório desdeque começou, também participei da suacriação e da elaboração da norma doSUS, junto com o pessoal do CRTDST/Aids-SP e do CRD. Foi precisobrigar muito, chorar mesmo, para queos homens trans fossem incluídos. Mashá uma interpretação equivocada nanorma do SUS que considera o processotransexualizador para homemtrans como experimental. Aconteceque o homem trans passa por váriascirurgias, a histerectomia e a mastectomia(a retirada do útero e damama), e a faloplastia (que é o implanteou reconstrução de um pênis). Esseúltimo procedimento sim, nós concordamosque é ainda experimental, maso que o movimento reivindica é o direitoà histerectomia e à mastectomia, quesão feitas há décadas em milhares demulheres. Pelos números que tenho,só o Hospital Pérola Byington faz cercade 1.500 mastectomias por mês. No anode 2005, foram realizadas 107 milhisterectomias pelo SUS. Não há nadade experimental nessas cirurgias, masa portaria do SUS incluiu tudo num pacote.Eu quero fazer a histerectomia ea mastectomia, como centenas de homenstrans, porque a presença dos seiose minha menstruação interferem muitona minha autoestima. As pessoasolham para mim e vêem um homem depeito. Por que me impedem de fazeressas cirurgias? Minha menstruação sóvai parar quando fizer a histerectomia,e a menstruação é uma coisa terrívelpara mim.”A entrevista com Alexandre foi feitaem junho de 2010. Três meses depois,o Conselho Federal de Medicinadivulgou resolução retirando o caráterexperimental das cirurgias de retiradada mama, do útero e ovário. Nateoria, Xande já poderá se submeter aessas cirurgias na rede pública de saúde.Na prática, o processo ainda estáem implantação.Sobre a “patologização”dos transexuais“A ‘despatologização’ da transexualidadeé outro debate importante dentrodo movimento. A questão para mimestá no fato de a transexualidade estardentro do CID 10, o que a classifica comouma doença, um transtorno mental. Eeu não tenho transtorno nenhum, nemdisforia de gênero. Eu sou uma pessoacom sã consciência, estou em pleno usode minhas capacidades mentais. Paraque haja um atendimento da transexualidadeatravés do SUS, entende-seque ela precisa ser vista como doença.Muitas pessoas trans têm medo dadespatologização por conta disso, ‘se nãofor mais patológico, como é que eu vouoperar?’ Ao mesmo tempo eu não possoaceitar que me classifiquem comodoente mental. Como é que uma doençamental pode ser curada com uma cirurgiaplástica? Isso tem a ver comautoestima, com direito, não com insanidade.Por isso nossa reivindicação éque a transexualidade seja retirada doCID 10, e que se crie um outro CID paraela. Uma mulher quando tira a mama, oútero e o ovário, faz isso por questão desaúde, não porque está louca. Eu precisotirar porque minha autoestima estáindo embora, e eu posso me matar. Oscasos de suicídio de transexuais são muitos.São cirurgias que os médicos chamamde secundárias, mas são essas quemais prejudicam. Ninguém vai saber oque tenho dentro da calça, posso atéconviver com uma prótese, mas umhomem carregar um peito e ter menstruação,é uma anormalidade que fereos meus direitos, fere minha autoestima.A ‘despatologização’ da transexualidadeé uma campanha mundial, a França jáfez isso, acho que o caminho é esse. Masa primeira coisa é tirá-la da classificaçãode doença mental. A minha doença nãoestá na cabeça, está no meu corpo, e omeu corpo é tratável. Por que uma mulherpode colocar prótese de silicone oureduzir o tamanho dos seios e ninguémvai dizer que ela é anormal, nem queestá fazendo mutilação?”Desinformação e invisibilidade“Há um número bastante grande dehomens trans que não se classifica assimporque não sabe. Tem uma boateaqui em São Paulo onde eu saberiareconhecer mais de cem deles numaúnica noite, mas não se apresentampor desinformação, e isso só aumentaa invisibilidade desse grupo. Boa partedeles se porta como homens, usamroupa de homens, mas se dizem lésbicasmasculinizadas. A questão do homemtrans ainda é muito nova, nem omovimento discute isso. A PrimeiraConferência Nacional LGBT, em2008, apresentou um calhamaço dereivindicações, dezenas delas erampropostas na área da saúde, nenhumafalava sobre o homem trans. Essainvisibilidade é maior ainda em algunsoutros países. Acabamos de fundar,dentro da Associação da Parada, aRede Latina Americana de HomensTrans, que já tem representantes daArgentina, do Chile e de Honduras.Estamos em contato com o pessoal daColômbia e do Paraguai. O movimentoestá começando a nascer.”A DIVERSIDADE REVELADA43


Brasil tem quatro centros públicosPARA A CIRURGIAO “processo transexualizador” do SUS e uma entrevista comJalma Jurado, que já operou 800 pacientes no Brasil.Histórico dessa cirurgia mostra que o procedimento aindaenfrenta mais barreiras morais do que técnicas.A DIVERSIDADE REVELADA44Ocirurgião Roberto Farina fez em 1971 a primeiracirurgia de transgenitalização no Brasil.A paciente Valdir, que já era conhecidasocialmente como Valdirene, ganhou umavagina no lugar do pênis. Mas Farina foiinterditado pelo Conselho Federal deMedicina (CFM) e condenado pela Justiça, acusado demutilação por um procedimento que já era feito emvários países desde anos 1950. Foi absolvido em segundainstância. A sentença dizia que “não agedolosamente o médico que, através de cirurgia, faça aablação dos órgãos genitais externos do transexualprocurando curá-lo ou reduzir seu sofrimento físico oumental. Semelhante cirurgia não é vedada pela lei, nempelo código de ética médica.”Foi só em 1997 que o CFM autorizou as cirurgiasem caráter experimental e em 2002 estendeu essaautorização a todos os hospitais, desde que cumprissemo protocolo. As cirurgias de neofaloplastia emhomens trans, para implantação de um pênis no lugarda vagina, continua sendo um procedimentoexperimental, conforme a resolução 1955/2010.Em agosto de 2008 o Ministério da Saúde publicouportaria definindo as Diretrizes Nacionais para o ProcessoTransexualizador no SUS, incluindo a cirurgia paramulheres trans entre seus procedimentos. A portariahabilitava quatro centros de referência, com equipetreinada para avaliar os pacientes por meio de psicoterapia,realizar as cirurgias e acompanhar o pós-operatório.Os hospitais referenciados foram o Hospital deClínicas de Porto Alegre, da Universidade Federaldo Rio Grande do Sul; o Hospital Pedro Ernesto daUniversidade Estadual do Rio de Janeiro; o Hospitaldas Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidadede São Paulo; e o Hospital das Clínicas daUniversidade Federal de Goiás.


Quatro hospitais públicos foram credenciados para cirurgiasem mulheres trans. Depende agora das instituiçõesConforme a portaria, cabe às secretarias estaduaisde Saúde regular o encaminhamento de pacientes eadministrar a lista de espera, tanto para a preparaçãopor meio de psicoterapia, quanto para a cirurgia. Segundodados do Ministério até 2008, 674 pacientestinham procurado os serviços de saúde com a intençãode realizar a cirurgia de redesignação sexual. Atéa data da pesquisa, tinham sido feitas 191 cirurgiasnos hospitais públicos. De agosto de 2008 até o fimde 2009, foram realizadas 38 cirurgias nos hospitaishabilitados pelo Ministério da Saúde.O cirurgião plástico Jalma Jurado, que diz já ter feito800 cirurgias, a grande maioria em sua clínica particular,estima que no Brasil foram realizadas cerca de 1.500operações, contando as realizadas em instituições públicase privadas. Um único hospital de Londres faz 160cirurgias por ano. E o cirurgião francês Georges Burouafirma ter realizado mais de 10 mil operações em suaclínica em Casablanca, no Marrocos.Jalma Jurado, 73 anos, é uma referência em cirurgiasde “mudança de sexo”, no Brasil e lá fora. Eleatende numa clínica de contornos arredondados e decor amarelo pastel numa pequena praça no bairro doAnhangabaú, em Jundiaí, interior de São Paulo. Nadaali deixa transparecer que a cirurgia que Jurado faz éespecial, e que seus pacientes buscam muito mais querejuvenescer alguma parte do corpo.“Mudança de sexo” não é o termo apropriado.A mulher transexual já nasceu do gênero feminino,embora biologicamente seja do sexo masculino.“Não mudamos nada, apenas adequamos o sexo aocérebro”, diz Jurado. Do total de 800 cirurgias queo médico contabiliza, a grande maioria foi em mulherestrans. Cerca de 20 foram em homens trans,que nasceram com órgãos femininos, mas que sãode fato do gênero masculino. De todas as cirurgiasjá feitas, o médico diz que 10% foram em pessoasestrangeiras e as outras em brasileiros que moramaqui ou fora do país.Quando abre a tela do computador, as fotos queJurado exibe são de pacientes cuja genitália masculinafoi substituída por uma feminina. Há fotos decasamentos e de festas. Um dos casais que ele acompanhaé formado por uma mulher trans e um homemtrans. Os dois se conheceram no hospital quefreqüentavam, viveram juntos antes da cirurgia e depoisse casaram. Muitas pacientes são européias ouamericanas, todas mostram um sorriso largo e exibema “neo-vagina” com orgulho.Na caso de mulheres trans, o cirurgião aprimorouuma técnica que há várias décadas vem sendoempregada com o nome de “Retalho Neuro-Arterial”.Cada centro médico e cada equipe cirúrgicavêm melhorando o procedimento. Ele diz que suacontribuição foi no aumento da sensibilidade. “A peledo pênis é usada para fazer um canal vaginal, porqueé muito elástica e se dilata, e com o tempo acabapermitindo uma relação sexual como a de qualquermulher, que com a prática sexual vai aumentandosua profundidade”, explica o médico, enquanto mostrano monitor os detalhes da operação.“Minha cirurgia também vira o pênis ao contrário,como faz a maioria dos cirurgiões, conservando os nervose com isso a sensibilidade, a mesma que havia antesno pênis. A glande fica no fundo desse canal aberto noperíneo, proporcionando o orgasmo. O prazer é cerebral,mas a sensibilidade é o gatilho, e quem estimula oorgasmo é o ato de fricção nessa região sensível, comona masturbação. Minha contribuição foi no sentido deaumentar a sensibilidade”, diz o médico.No início, o desafio era obter um canal para relaçãoque tivesse dimensões adequadas, “era uma exigênciasobretudo das profissionais do sexo”, e às vezeso resultado não era bom. A partir dos anos 1990,relata o médico, passou a haver também uma preocupaçãoestética. “A sexualidade no mundo mudou.Antes o sexo era feito embaixo dos lençóis. Hoje éem cima, com luz, espelhos, o casal olha, cheira, beija.Passou a haver uma preocupação maior com aparte externa, o que obrigou novos estudos, novastécnicas. Passo a passo, fomos melhorando.”Os procedimentos para os homens transexuaiscompreendem a mastectomia, que é a retirada dosseios, e a histerectomia, a retirada dos principais órgãosfemininos, como o útero e o ovário. A implantaçãode um pênis é uma operação bem mais complexa,e de resultados ainda pouco satisfatórios, porisso considerada experimental pelo Conselho Federalde Medicina. Segundo Jurado, a maioria preferenão arriscar além da mastectomia e da histerectomia.O procedimento que desenvolveu, explica o médico,consiste em reconstruir um pênis com o transplantede um tubo de tecidos do próprio paciente queem seguida é “anexado” sobre a vagina. Com a ajudaA DIVERSIDADE REVELADA45


A DIVERSIDADE REVELADA46de uma prótese, procedimento usado para disfunçãoerétil, o paciente pode ter o pênis ereto. Mas as sensaçõese um possível orgasmo dependem de microcirurgiasque Jalma prefere não arriscar. Uma cirurgiadessa magnitude, mesmo sem a garantia de resultados,chega a custar US$ 100 mil nos EUA, ele avalia.O recurso utilizado em alguns centros é o aumentodo clitóris por meio de hormônios, ou com procedimentoscirúrgicos que permitem a “construção” deum pequeno falo a partir do clitóris.As primeiras cirurgias no mundo começaram a serpublicadas em 1925. Em 1931, oInstituto Hirschfeld de Ciência Sexual,em Viena, apresentou a primeiraCirurgia de RedesignaçãoSexual (CRS), como o procedimentoficaria conhecido mais tarde.Na década de 1950 e seguintes,o cirurgião francês GeorgesBurou chegou a fazer mais de 10mil cirurgias em sua clínica emCasablanca, no Marrocos. Em1952, o ex-soldado GeorgeJorgensen transformou-se na primeiranorte-americana a passarpela cirurgia, mudando seu nomepara Christine Jorgensen. Na época,os cirurgiões retiraram os órgãosmasculinos e usaram a peleda coxa para “construir” umanova vagina. Quando o caso saiunos jornais e revistas, dois anosdepois, foi motivo de grande repercussãoe polêmicas.No Brasil, a primeira cirurgiafeita em 1971 pelo médico RobertoFarina aconteceu em pleno regimemilitar. Além de interditadopelo CFM, que o denunciou por“lesões corporais”, Farina foi condenadoem 1978 a dois anos dereclusão de acordo com o CódigoPenal, que considera o procedimentouma mutilação. O médico,pioneiro, foi absolvido depois apósa Justiça concluir que a cirurgia eranecessária para aliviar o sofrimentoda paciente. “A pessoa – queantes era Valdir e passou a se chamarValdirene – até hoje é minhapaciente”, diz Jurado.“A portaria do SUS – queestabelece o processotransexualizador e define oscentros de referência – serestringe à mulher transporque ainda temos umarestrição de realização desseprocedimento em homenstrans por parte do CFM. Háuma discussão do ponto devista médico que a técnicacirúrgica para homens transainda se encontra em caráterexperimental*. Tão logotenhamos segurança, atendência é que se expandatambém esse atendimentopara eles. Isso envolve umainvestida grande emcapacitação de profissionais,mobilização, aprendizado dastecnologias que não são tãosimples. Um dos objetivosdessa política é avançar naprodução de conhecimentopara essa cirurgia.”Ana Maria Costa, diretora doDepartamento de Apoio à GestãoParticipativa do Ministério da Saúde.(*) Em 1º de setembro de 2010, o CFMpublicou resolução que exclui o caráterexperimental do procedimento parahomens trans, exceto a neofaloplastia.Jalma Jurado fez sua primeira cirurgia em 1980.Em 1984, a transexual Roberta Close posou nua numarevista masculina, antes mesmo da cirurgia que fariana Inglaterra. Seu caso contribuiu para dar maior visibilidadeaos transexuais. Em 1997, a cirurgia paramulher trans foi normatizada e legalizada pelo ConselhoFederal de Medicina, desde que cumprido um protocoloe realizada em hospitais universitários. Em 1998,Bianca Magra tornou-se a primeira transexual a seroperada “legalmente” no Brasil.Em 2003, Jurado apresentou sua técnica no HarryBenjamim International GenderDysphoric Association, na Bélgica,o maior encontro dessa especialidade.O endocrinologista HarryBenjamin foi o primeiro a perceber,no final dos anos 1950, averdadeira diferença entre a homossexualidadee o gênero “trocado”.Para ele, as pessoastransexuais sofriam de um “errode gênero” de origem desconhecida,e nada tinham de doentesmentais, como defendia a maioriados psiquiatras na época. Diantedo sofrimento das transexuais,ele começou a receitarhormônios e a encaminhá-laspara cirurgiões que na época jáoperavam.O interesse do médico brasileiropor esse tipo de trabalho começouao constatar que os muitospacientes que buscavam umacirurgia passavam anos à espera,participando em grupos de psicoterapia,sem nenhum resultado.Jurado conheceu essas pessoasquando se formou na USP e passoupelos vários serviços do hospital.“Já no período de 1975 a1980, quando a cirurgia de transformaçãode sexo era consideradauma agressão, havia dezenasde pessoas matriculadas nos serviços,acompanhadas, estudadas,mas nunca eram operadas, justamenteo que todas esperavam.”Quando Roberto Farina foiprocessado, Jurado operava emJundiaí e foi lá que decidiu se


dedicar aos transexuais. Com o aumento de pacientes,que começaram a pagar pelas cirurgias, Jalma dizque passou a fazer parte de um grupo de cirurgiõesreconhecidos em vários países. Em 2002, quando oCFM admitiu a cirurgia fora de espaços de pesquisa,desde que o protocolo fosse seguido, Jalma teve seureconhecimento e sua clientela ampliados. Tanto oCFM como o Ministério da Saúde o convidaram paraque fizesse suas considerações quando redigiam suasresoluções e portarias.Pai de quatro filhos e com cinco netos, ele diz terdedicado a vida a essas cirurgias. Já operou médicos,engenheiros, cabeleireiras, transexuais de programas,tanto em hospitais públicos como em sua clínica privada,onde cobra cerca de R$ 25 mil. Ele diz que naclínica não há filas e são agendadas de duas a três cirurgiaspor mês. Os casos mais delicados foram com militaresda Marinha e do Exército. “O comandante mepediu informações de tal paciente, eu dou informaçõespara a Justiça, não para a corporação, expliquei. Umcapitão que trabalhava como homem fez a cirurgia equis regularizar a situação como mulher, permanecendono Exército. Foi um drama na corporação, o generalnão sabia como resolver o problema.”Embora não haja estatísticas, o médico estima quenão chega a 1.500 o total de cirurgias feitas no país,contando aquelas realizadas em clínicas privadas e noshospitais universitários. Com a regulamentação peloCFM oito anos atrás, com a portaria do SUS e com amaior visibilidade dos transexuais e a conseqüente reduçãodo preconceito, era de se esperar que as cirurgiasaumentassem significativamente. Não foi assim queaconteceu. “A dificuldade se encontra no pequenonúmero de cirurgiões interessados nessa especialidade”,diz Jurado. “Eu conheço menos de 15 cirurgiõesplásticos no Brasil aptos a fazer essa cirurgia”, afirma.“O número de profissionais não cresceu porque omédico carrega a cultura de seu meio familiar, geralmenteconservador e cheio de preconceitos. Há médicosque dizem: ‘se Deus fez uma pessoa assim, por queé que tem que mudar?’.” Há exceções dentro e fora domeio médico, mesmo entre os religiosos. Jurado contaque nos anos em que foi diretor da Faculdade de Medicinade Jundiaí teve uma conversa com o arcebispo dacidade, já falecido, que disse o seguinte: “o Vaticanosabe de tudo que é feito no mundo, sabe inclusive queessas pessoas estão sofrendo e que a cirurgia poderiamelhorar a vida delas. Se Deus deu ao senhor este dom,o senhor está fazendo um ato divino.”É com a experiência e o “dom” de Jalma Juradoque a Secretaria de Estado da Saúde de São Pauloestá contando para abrir um novo serviço, além doque já existe no Hospital das Clínicas da FMUSP.“Já estivemos vendo vários hospitais públicos paraessa parceria”, diz Jurado. Seu papel, além de operar,seria o de capacitar novos cirurgiões, de formaque o serviço possa no futuro reduzir as filas que sótendem a crescer.EUA: 15 mil cirurgias emmulheres trans nos anos 1990Não há estudos epidemiológicos minimamenteseguros sobre a prevalência doTranstorno de Identidade de Gênero.Levantamentos pontuais feitos em paísesmenores da Europa chegaram à conclusãode que cerca de 1 entre 30.000homens adultos (mulheres trans) e 1 entre100.000 mulheres adultas (homenstrans) buscaram a cirurgia. São númerosainda dos anos 1950 e 1960, quando amoderna cirurgia de redesignação sexualtornou-se acessível nesses países. A professoraLinn Conway, cientista da computação,transexual e ativista, observaque esses números não podem ser tomadoscomo prevalência, porque só enumeraaqueles que tiveram a coragem dese apresentar para cirurgia numa épocaem que os transexuais sofriam mais preconceitoainda.Em contato com os principais centrosmédicos e cirurgiões dos EUA – entreeles Harry Benjamin –, Linn Conwaychegou à conclusão de que um númeroentre 32 mil e 40 mil mulheres trans foramoperadas entre os anos 1960 até ofinal da década de 1990. Segundo seusdados, só nos anos 1990 foram feitas entre15 mil e 20 mil cirurgias naquele país.Considerando que a população masculinanorte-americana na faixa etária de 18a 60 anos era de 80 milhões (os cálculosforam feitos em 2001), Linn Conway concluique 1 em cada 2.500 homens (oumulheres trans) passaram por cirurgia. Aprevalência seria 12 vezes superior àquelaanteriormente considerada como maispróxima da realidade. Linn ainda acreditaque o número de pessoas que sofremdisforia de gênero intensa nos EUA é de5 a 10 vezes superior ao número daquelesque passaram por cirurgia.A DIVERSIDADE REVELADA47


Andréia Ferraresi, 67 anosA DIVERSIDADE REVELADA48ANDRÉIA FERRARESI é certamente atransexual que há mais tempo esperapor uma cirurgia, que mais sessões depsicoterapia já fez, que mais laudos járecebeu, e que mais decepção já reuniu.Aos 67 anos, ela se diz uma mulherinjustiçada, mas se recusa a falar em desistência.Por duas vezes, esteve muitopróxima de ser operada, a primeira pelomédico Roberto Farina, pioneiro nessacirurgia no Brasil, a segunda por JalmaJurado, quem mais procedimentosdesse tipo já fez no país. Nas duas vezes,não conseguiu dinheiro suficiente. Assimque foi aberto o Ambulatório de SaúdeIntegral para Travestis e Transexuais,em junho de 2009, ela se inscreveu. Foia 35ª paciente, e acha que é a primeirana fila para cirurgia.Na pasta com documentos que semprecarrega, ela leva os laudos, os atestadose os papéis para a mudança denome, outra luta que vem travando háanos, sempre perdendo. O primeirolaudo traz a data de 8 de agosto de 1977,33 anos atrás, tem a assinatura da professoraDorina Epps, endocrinologistado Hospital das Clínicas. O segundo éde maio de 1982, assinado também pelamédica Dorina Epps ao lado do psiquiatraMáximo Stephano e do psicoterapeutaOscar Faria. Diz o laudo que,“tendo examinado Orlando Ferraresi(esse é seu nome no registro civil), ebaseado nos relatos e informes do pacientee nos estudos genéticos, psicológicose endócrinos, chegamos à conclusão,após observação de mais de doisanos, que o paciente é portador detransexualismo predominantementeprimário, havendo indicação de plásticados genitais”.Sem recurso para uma cirurgia dentroou fora do Brasil, Andréia retomouas esperanças com a resolução do ConselhoFederal de Medicina que em 1997autorizou o procedimento em caráter“ Médicos epsiquiatras não seimportam comnosso sofrimento”experimental. Voltou a acreditar quandoem 2002 o CFM normatizou a cirurgiaem qualquer hospital. Em 2008,o SUS finalmente divulgou portaria incluindoa cirurgia de transgenitalizaçãoentre seus procedimentos e selecionouquatro centros de referência. “Aqui noambulatório do Santa Cruz sou a primeirada fila”, anima-se Andréia. Oambulatório prepara os pacientes, masnão realiza cirurgias.Na sua ansiedade, Andréia esqueceos anos que tem e se revela uma jovemrebelde defendendo seus direitos.“Vou lutar até o fim. É preciso que hajatransparência nas filas. Há um Códigode Ética Médica que não está sendorespeitado e há uma portaria do SUSde 2008 que prevê essa cirurgia. Sóestou pedindo meus direitos, depois depagar impostos por 53 anos. Os médicose psiquiatras não se importam comnosso sofrimento.”Andréia veste blusa vermelha e saiapreta combinando com os sapatos,movimenta os cabelos de forma delicada.Diz que se depila, mostra as unhasbem cuidadas. “Ninguém nunca suspeitouque eu não fosse mulher”, ela diz.Mas é sempre humilhada quando precisamostrar documentos, diz apontandoa carteira de identidade masculina eos vários cartões de crédito e de lojas.“Tenho que chamar a pessoa e falarbaixinho, ‘minha filha, eu sou transexual,aparento mulher, mas essa pessoaaí do documento sou eu’. Explicoisso todas as vezes.”Na sua longa trajetória como transexual,Andréia se recorda de temposmais difíceis. “Estávamos em plenoregime militar e não podíamos nem falarem cirurgia para transexuais. Os carrõesda polícia caçavam gayzinhos em lugarde caçar marginais.” A infância misturalembranças alegres e tristes. “Minha tiadizia sempre para minha mãe, ‘Palmira,leva esse menino no médico porque elenão é muito menino não’. Isso com três,quatro anos. Quando ganhei a rifa deuma boneca na escola, saí feliz com elanos braços, os meninos chamando‘mariquinha, mariquinha’, eles pensandoque estavam me ofendendo, euachando aquilo a glória. Comecei aadolescência colocando enchimentosnos seios, mas logo nem precisou, porqueo bico ficou igual ao bico de umamenina. Minha mãe via aquilo preocupada,eu via como uma coisa maravilhosa.Meu pai nem ligava, só sabiafazer filhos.”Andréia diz que os profissionais doambulatório do CRT estão elevando suaautoestima. “Eu vivia em depressão,estava um trapo. Tinha uma fobia socialmuito grande, medo das pessoas. Agora,quando vejo um homem bonito, interessante,já me dá vontade de viver.”


Thaís di Azevedo, 60 anosA TRAVESTI Thaís di Azevedo não éapenas uma recepcionista no Centro deReferência da <strong>Diversidade</strong>. É certamentea voz mais tranquilizadora paraquem chega tímido na sala animada, sejaà procura de ajuda, seja em busca dedesabafo. Com a experiência dos seus60 anos, vestida com elegância e óculosde secretária, Thaís anuncia umanova era. “O terceiro milênio é o milênioda mente e do terceiro sexo”, eladiz. “A homossexualidade é um estadode espírito, não uma bandeira quese carrega. Os preconceitos são origináriosda nossa ignorância, do nossodesconhecimento.”No seu entender, “as pessoas têm atendência de dizer que o gay ou homossexualvira de uma hora para a outra”.“Não, você nasce tão homossexualquanto heterossexual. Não existeum desvio. O terceiro sexo existe desdequando a heterossexualidade existe,não é uma patologia. Como rejeitara homossexualidade se toda forma desexualidade é a extensão de um ato decarinho, de amor?”Thaís, que só conseguiu completar ocurso de enfermagem, diz que sua“formação é paralela, ando em buscade informações, sempre. Só assim umatravesti sobrevive, porque a imagemque a sociedade tem dela é a piorpossível. A travesti é um calo no pé dasociedade, e está cada vez mais presentena vida das pessoas.”A história da Thaís travesti começano interior de Minas. Para não desagradara família – “por amor mesmo a meuspais” —, uma tia levou-a para morar emsua casa, no Rio. “Ela me disse, ‘seuspais não têm que sofrer assim, se o mundoé tão grande?’ Aquilo para mim foi odespertar, de querer ter peitos, de mevestir como mulher. Para mim, a questãonão era ser homem ou ser mulher,eu tenho uma aparência feminina porqueo meu sentir é feminino. Comecei aestudar filosofia kardecista e o kardecismoexplica isso muito bem, o que mefez sentir mais confortável.”Thaís passou de faxineira de uma confecçãoa vendedora em shopping e manequimde uma grife em pouquíssimotempo. “Sempre tive uma aparênciaque abriu portas para mim, e as pessoasme ajudaram muito”, diz. “Concorricom 60 meninas para ser a manequim,eu tinha medidas perfeitas, era muitobonita. Isso foi em 1979, a loja era noShopping Ipirapuera, a inveja dasvendedoras era tanta que fizeram umabaixo-assinado dizendo que eu erahomem e proibindo que eu usasse obanheiro feminino. Percebi então quea Thaís manequim era aceita pela sociedade,mas a Thaís travesti não.” Abandonouas “luzes, o glamour, a falsa”, ese mudou para a Itália.Foi no seu retorno, no início dos anos1990, que começou a trabalhar comoauxiliar de enfermagem e voluntáriajunto a pacientes de aids. “Chegou ummomento que faltava funcionário naárea da saúde por causa do preconceito.Comecei a ajudar na Casa de ApoioBrenda Lee no período mais difícil,quando as meninas começaram a cair“ O terceiromilênio é omilênio doterceirosexo”doentes, estavam morrendo. Percebique tinha talento para isso, fiz o cursode auxiliar de enfermagem, fui gerenteda casa Brenda. Naquela época eu játrazia as meninas que frequentavam acasa da Brenda Lee para as reuniões doGrupo Pela Vidda. Foi assim que elesme conheceram, e quando surgiu esseprojeto, eles me convidaram.”Thaís di Azevedo diz que o Centrode Referência da <strong>Diversidade</strong> é importantenão apenas por ser uma portaaberta para o público LGBT, mas porpermitir que a sociedade conheça econviva mais em paz com o que ela chamade “terceiro sexo”. “Quando nãose conhece, há rejeição, há equívocos.O homossexual já está sendo reconhecidona sociedade, é lamentável que emparte seja por interesses políticos e comerciais.O homossexual ainda teráorgulho de dizer e se sentir homo, porqueo homossexual – quando se vê ahistória – está nas coisas mais belas davida, na arte, na moda. O homo embeleza,faz a diferença, são as criaturasmais inteligentes, mais sensíveis.Quando chegam aos 18 anos são muitomais maduros, têm mais informaçõesque os heteros. O terceiro milênio é omilênio da mente, e a mente tem umterceiro sexo. Vai chegar um momentoque o homo terá muito orgulho emser homo, porque é capaz de gerar coisaslindas, fabulosas.”A DIVERSIDADE REVELADA49


TERÇAS-TRANSUm espaço dedúvidas eaprendizadosO convite para essedebate semanal no CRDvale para toda asociedade, mas a maioriados participantes étransexual, como acoordenadora AlessandraSaraiva, ela própria umamulher trans operada.A DIVERSIDADE REVELADA50Oespaço das Terças-Trans foi criado parareunir transexuais, travestis, gays e lésbicas,e discutir sentimentos e dúvidas queinquietam esse grupo. Umas das questõesque divide especialmente as transexuais éa aceitação de um “gênero definido”. Elasserão sempre mulheres trans operadas ou não operadas,ou já nascem mulheres, independentemente dacirurgia? “Para nós, não importa se fizeram ou nãocirurgia, se querem ou não fazer, se fazem ou nãoprogramas”, diz Alessandra Saraiva, 32 anos, operadaem 2008 e coordenadora das Terças-Trans.“No nosso espaço ninguém dá diagnóstico, achoque isso é íntimo e pessoal”, ela diz. “Há uma regraaqui – ninguém pergunta o que você é, se travesti,trans, gay, homo, hetero. Não se pergunta nemidentidade de gênero nem orientação sexual, a pessoafica livre para falar o que ela é.” Conduzidodessa maneira, o leque de opções aberto nos encontrosdeixa os participantes muito à vontade, compartilhandoquestões que dividem grupos e que nãotêm respostas definidas.As Terças-Trans, antes promovida pela Associaçãoda Parada, agora são feitas em parceria como CRD. O número de participantes oscila de cincoa 20 por encontros, e os horários contemplam tardee noite, para permitir a vinda das pessoas quetrabalham ou estudam.“Nos cinco anos que estou à frente das Terças-Trans, o que mais vi foram pessoas dizendo que eramtransexuais, e muitas não eram. Acho que isso tem aver com o fato de as trans sofrerem menos preconceito”,diz Alessandra. “Se eu disser que sou trans, queestou aguardando uma cirurgia, posso ser vista comouma candidata a mulher, que precisa de ajuda médica.Já a travesti é vista como sem vergonha, aquelaque meteu um vestido e foi pra rua, que está fazendoprograma porque é supersexualizada.”Num encontro onde mais de 15 participavam,Alessandra perguntou quem era travesti e só duaslevantaram a mão. “Havia bem mais na sala”, ela diz.Várias se apresentaram como transex, uma categoriaque, na percepção de várias delas, as afastaria do rótulode travestis e de “transexual submissa, passiva,que segue o estereótipo da mulher certinha”.A aceitação de todas nas Terças-Trans, sem quetenham que dizer se são transexuais ou não, nãoimpede que esse debate permaneça entre as maispolitizadas, reunidas em diferentes grupos. Na vidareal, mesmo depois de feita a cirurgia, algumas aindaenfrentaram a resistência de juízes que queriam classificaro gênero de “feminino cirúrgico” ou “sexotransexual”. Foram derrotados no Supremo TribunalFederal. A discussão entre as mais engajadas vaialém: a questão é se o termo transexual deveria existir,já que ela “nasceu mulher, independentemente de


As reuniões alternam a discussão de temas diversos que afetam o cotidiano de travestis e transexuais,às vezes com a presença de convidados, ou então se torna um espaço para a troca de experiênciaster feito ou se fará ou não a cirurgia”. Alessandra defendea idéia de que, “a partir do momento em que oEstado brasileiro reconhece a mudança do nome e dosexo para o feminino, também reconhece a elas suaexistência como mulher, de fato e de direito. E aí oprocesso transexual deixa de existir.”O grupo Aracê discute essa “despatologização”,o reconhecimento da identidade feminina em todoo processo. “Desde criança você é uma mulher, eacabou”. Segundo Alessandra, para o grupo “a questãoda transexualidade se define como o conflito entrecorpo e mente”. “A partir do momento em quehá uma harmonia, com cirurgia ou sem, isso se encerrae a pessoa passa a viver sua vida como mulher,como qualquer outra. Porque mulheres nós somosde fato, porque sentimos assim, vivemos assim, isso éo que prega o Aracê”. “Há outra corrente que afirma,‘eu nasci transexual, vou morrer transexual’,pouco importa a cirurgia”, diz Alessandra.Por conta de já ter sido operada, Alessandra diz quese vê entre as duas correntes. “Para mim, atransexualidade acabou, mas é fato que ela continuatendo muita importância na minha vida. Mas hoje nãome reconheço mais como transexual, acho isso umacarga muito pesada para carregar, porque, querendoou não, quando você se coloca como transexual, vocêse coloca como diferente, nunca chega à igualdade.Hoje eu sou Alessandra. Eu digo às outras para queresgatem suas identidades, porque elas são Alessandras,Thaíses, Franciscas, Isabeles. E é assim que devem serreconhecidas e identificadas. Não como mulheres trans.”As reuniões das Terças-Trans são abertas, às vezessão temáticas, com convidados, às vezes são diálogos sobreos mais diferentes temas. Um dos últimos encontros,por exemplo, foi com Jorge Leite, estudioso da origem eda classificação dos termos transexuais e travestis, e decomo se tornaram uma patologia. Outro foi Rodrigo Rosa,especialista que falou sobre a “despatologização” e comoos movimentos na Europa vêm lutando para retirar atransexualidade do manual de doenças mentais, assim comofizeram com a homossexualidade anos atrás.Em alguns encontros, são as participantes que falam,“é uma troca de experiência e temas livres comovida, liberdade, conquista”, diz Alessandra. Quando adiscussão se abre sobre doença ou não, o grupo sedivide, cada uma defendendo aquilo que mais a afeta.Libertadas do estigma da patologia – posiçãoreivindicada por muitas – teriam dificuldade em seratendidas na rede pública de saúde. Se não são doentes,não precisam de atenção e cuidados médicos. Nãosó a possibilidade de uma cirurgia, mas também a participaçãonos grupos de psicoterapia ficaria fora doalcance. Muitas lamentam ter “que passar por doentepara ser aceita na triagem”. “A intenção com as palestrase debates é que cada uma tire as suas conclusõese defenda seus direitos”, diz Alessandra.A DIVERSIDADE REVELADA51


A DIVERSIDADE REVELADA52Transexual, Alessandrasempre investiu nos estudosFormada em administração e em designpublicitário, Alessandra Saraiva diz quejá estudou muito sobre sexualidade humanae pretende fazer psicologia. “Queriaentender o que se passava comigo”,diz. Com essas credenciais, e comotransexual já operada, ela assumiu a coordenaçãoda Secretaria de Travestis eTransexuais da Associação da Parada,que hoje faz parceria com o CRD.Nascida em Manaus, Alessandra mudou-sedefinitivamente para São Pauloem 2005 e passou a procurar gruposque pudessem ajudá-la. “Vi logo queno HC era impossível. Algumas amigasestavam lá em psicoterapia havia13 anos.” Foi apresentada a um grupoem Campinas, conduzido pela psicólogaMaria Angélica Soares, e se juntoua ele. A psicóloga coordenou o grupode psicoterapia para transexuais daUnicamp até que o serviço foi fechado.Por iniciativa própria, Maria Angélicamanteve os encontros em suacasa. Há 16 anos, todo primeiro sábadodo mês, ela continua “ajudando asmeninas em casa, sem cobrar nada”.Com o laudo indicando a cirurgia, ejuntadas as economias, Alessandra feza operação na clínica do médico JalmaDa equipe doCRD, Alessandraé a facilitadoradas atividadesrealizadas nasTerças-TransJurado, em Jundiaí, em fevereiro de2008. Por ser clínica e não um hospital,os pacientes só podem passar ali umanoite, depois são transferidos, geralmentepara um hotel da cidade.“Fui tratada como uma princesa. Masfoi um momento de muita solidão.Acabei de acordar e tinha uma vaginae não sabia como lidar com ela, nãopodia ligar para minha mãe ou minhairmã e perguntar o que devia fazer. Éuma cirurgia que precisa de muitos cuidadosdiferenciados, e a falta de informaçãome atrapalhou bastante. FoiNeide Armerinda dos Santos, enfermeiraauxiliar do doutor Jalma, quempassou as primeiras instruções e acompanhouo pós-operatório. Fiquei cincodias no hotel, depois retornava àclínica a cada 15 dias”, relata.Alessandra costuma dizer que “pagoumuito caro” pela sua “dignidade”.“Para mim, a cirurgia foi o que me trouxeao meu centro, o que me fez viverem sociedade, ser reconhecida, dedentro para fora e de fora para dentro.Mas acho que não precisava terme custado tanto, era uma coisa queeu tinha direito, eu e tantas outras...”.“Esse sentimento de pertencimentoao outro sexo eu senti a vida inteira,notava que tinha alguma coisa errada,porque meu sentimento sempre foi feminino,sempre fui uma menina. Minhamãe me deixou ter cabelos compridos,brincar de boneca, sempre pude viverminha feminilidade até um certo limite,então eu não sofri muito a repressão commeus pais. Já fora de casa sofri bastante,na escola me derrubavam da cadeira,jogavam tinta na minha roupa. Aquiem São Paulo, 20 dias depois de memudar, fui expulsa do prédio por sertransexual. Só que eu não estava maisem Manaus, fiquei sem a quem recorrer.Fui à Associação da Parada, recebiapoio, informações. Hoje as pessoasdiscriminadas em São Paulo podemcontar com a Secretaria da Justiça, oCRD, a Prefeitura, o Centro de Combateà Homofobia. Em 2005 não tinhanada disso. Em Manaus, as associaçõese o gueto ainda são pequenos. Fazer olaser lá me custaria 50 vezes mais. Prepararpara a cirurgia seria impossível.Para quem mora em cidades menores,essas dificuldades são intransponíveis.”Alessandra diz que conheceu seu“companheiro duas semanas antes deoperar”. “O primeiro encontro foi nasemana anterior ao Carnaval, o segundofoi no Carnaval, e o terceiro foi nohospital e no hotel, depois da cirurgia.Ele é de São José dos Campos. Nossasfamílias já se conhecem. Nossos planossão morar em Manaus ou São José, eno futuro adotar um filho. Ainda estouresolvendo a questão do nome. Já conseguitirar o RG, por conta de uma açãona Justiça, mas faltam o título de eleitor,o CPF, o diploma do MEC... Aindavai dar muito trabalho. É uma questãode preconceito, por isso dificultamem tudo que podem, porque a ordemdo juiz saiu daqui, os documentos sãode lá. A cada papel é preciso voltar àJustiça.” Alessandra diz que gastouquase todas as suas economias nas passagensentre São Paulo e Manaus paraacertar os seus documentos. E aindanão conseguiu resolver todos eles.


Renata Perón, 33 anosTODAS AS noites de quinta-feira, a dragqueen Renata Perón, 33 anos, pode servista e ouvida no bar Hábeas Copus, naavenida Vieira de Carvalho, junto à praçada República, um ponto de encontroGLS. Não é uma drag qualquer. Renatanão dubla. Interpreta canções de um repertóriode MPB com voz e coreografiaelogiados por críticos da noite. Não ésempre que se vê e se ouve uma dragcantando “Não deixe o samba morrer”e “Tico-Tico no fubá”. Ou interpretandocriações de Noel Rosa. É justamentea Noel que Renata Perón dedica seuquarto CD, em preparação, depois dosucesso que anima seu atual show, batizadosimplesmente de “Peron é festa”.Costuma ser elogiada pelo seu humorpicante e suas brincadeiras inteligentes,intercalados com poesias.Renata já foi cabeleireira, manequim,trabalhou em teatro, cinema e novelade TV. Nos últimos anos, optou porser apenas Renata Perón, “assim cuidomelhor dela e de mim”. Depois de 15anos dedicados à música, Renata aindareserva as tardes de quarta-feira paravirar aluno da oficina de canto oferecidapelo Centro de Referência da <strong>Diversidade</strong>.“Tem sempre uma coisapara aprender. Vários dos meninos emeninas que frequentam o CRD sãocarentes, uns vivem na rua, são dependentesde drogas, alguns fazem programas.Para todos nós, a música é um relaxamentoe uma descoberta”, ela diz.“Se estão ‘noiados’, acabam ficandotranquilos. É um lugar que faz bem paraquem usa droga e para quem não usa.”Renata Perón conheceu o CRD depoisde uma agressão que sofreu na praçada República em 2007, e que provocoua perda de um dos rins. “Eu estavacom um amigo e eles apareceram derepente, eram nove rapazes. Meu amigocaiu e foi chutado no chão. Eu mesegurei em pé, mas um deles deu umavoadora com uma bota com ponta deaço, acertou meu estômago.” Só nohospital constataram que Renata estavacom hemorragia interna e um dosrins tinha que ser extraído. Os agressoresnunca foram identificados e o Estadovem recorrendo de indenizaçõescobradas por ela na Justiça.Recuperada, Renata procurou oCentro de Combate à Homofobia e foidaí que conheceu o CRD, ainda no seuinício. “Foram eles que indicaram algunslugares para os shows que vinhafazendo. Hoje, a Renata Perón fazapresentações na noite, em bares gays,eventos, festas de aniversário, casamentos,confraternizações”.O nome Renata ela já tinha, desde ostempos que cantava na noite deJuazeiro, na Bahia. O Perón foi homenagema Evita e para reduzir o preconceito.“Eu queria um sobrenome forte,porque eu cantava nos bares só parameninos, mas sempre fui muito afemininada,muito menina, e isso não davapúblico, me viam como gay, não comocantor. ‘Já que não consigo fazer showe ser respeitada pela sociedade porquesou muito afeminada, vou logo criaruma personagem de uma menina mesmo’,pensei. Com a criação da drag“Não deixeo sambamorrer”queen, tive reconhecimento como pessoae como artista.”Desembarcou em São Paulo, seteanos atrás, já como Renata Perón.“Juazeiro era muito pequena para osmeus sonhos”, conta. Lá ainda se vestiacomo rapaz durante o dia, e à noitese apresentava como drag. “Aqui soutravesti 24 horas, me visto como mulher,uso calcinha, tenho cabelo grande,unhas pintadas. Mas nos shows meapresento como drag queen, porquetravesti ainda soa pejorativo no meiosocial. Eles não conseguem aceitar queuma travesti seja talentosa, seja umacantora. Alguém que não viva da prostituição,não use droga. A imagem quese faz da travesti é de alguém sempre àmargem da sociedade. Mas como souuma pessoa inteligente, e não queroque as pessoas me tenham por essa conta,eu prefiro usar o título de dragqueen na noite.”Do CRD, Renata Perón só tem umaqueixa: precisa de uma estrutura maior,mais espaço e mais profissionais, maispsicólogos, mais educadores, mais dinheiro.E, se possível, instalações emmais de um lugar da cidade. “Porque essapopulação é enorme, vive à margem detudo, desprezados e repelidos. As travestissão mais discriminadas que o gay,o drogado, o ladrão, mais que o assassino.Não adianta só convidá-la para sairda rua, é preciso oferecer a ela um lugare um caminho. E isso custa caro.”Renata Perón é a drag queen que ilustraa capa desta publicação.A DIVERSIDADE REVELADA53


A BATALHA PELODIREITOAO NOME EA DIVERSIDADE REVELADA54AO SEXOAlessandra Saraiva fez cirurgia há dois anose não conseguiu ainda mudar o nome emtodos os documentos. Débora Zaidan foioperada em 2006 e já juntou laudos e papéisna ação que está movendo. Até agora,continua com nome de homem nosdocumentos. Centenas de mulheres trans e homenstrans, tendo ou não feito a cirurgia, tentam mudarseus nomes na Justiça. A maioria se conformaria sócom a mudança do nome, sem mudança no sexo,mas nem isso conseguem.O direito ao uso do nome social como opção,mesmo que restrito às escolas e serviços públicos desaúde, ainda é uma dura batalha em andamento paratravestis e transexuais. A alteração do nome e gêneropara transexuais, nos documentos, é uma luta individualque precisa ser ganha uma a uma, com açõesjudiciais. Ainda não há lei que autorize a mudançade nome, mesmo quando se tem laudos médicos.“É preciso uma ação para que o juiz veja caso a caso”,diz a advogada Tereza Rodrigues Vieira. “É como sea Justiça não quisesse deixar a decisão apenas a cargodos médicos e psicólogos.” No Canadá, por exemplo,basta que a pessoa vá um cartório de registrocivil com os laudos e solicite a mudança do nome egênero. Só será iniciada uma ação se alguém se manifestarcontra a alteração solicitada.Segundo a Organização Mundial da Saúde e alertasfeitos por organizações ativistas, o uso do nomecivil em lugar do nome social provoca enorme constrangimentopara as travestis e transexuais. É consideradaa principal causa de evasão escolar e do afastamentodessa população dos serviços públicos.Os serviços jurídicos do Centro de Referência da<strong>Diversidade</strong> e do Ambulatório de Saúde Integral paraTransexuais são obrigados aentrar com ações na Justiça edependem de laudos que muitasvezes não conseguem. Semmudança do nome e sexo,transexuais, mesmo operadas,não podem ser casar.Travestis e Transexuais têm encaminhado os interessadosao Centro de Referência em Direitos Humanosde Prevenção e Combate à Homofobia (CCH), daPrefeitura de São Paulo. O Centro, por sua vez, temparcerias com a Faculdade de Direito da Universidadede São Paulo e com a Defensoria Pública do Estadopara o encaminhamento das ações. Nos dois casos, odesafio está nas longas filas e na preparação de umaação que possa convencer o juiz da razão na mudançade nome e sexo.Os interessados nunca sabem ao certo quais documentose laudos são necessários. Muitos solicitamapenas mudança no nome, sem alterar o sexo. Nosdocumentos de uso cotidiano, como carteira de identidadee de habilitação, o sexo não aparece. Mas empassaporte e na certidão de nascimento – necessáriapara o casamento – a indicação do sexo é obrigatória.Travestis e transexuais que desejarem se casar nocivil terão obrigatoriamente que mudar o nome e osexo na Justiça. A menos que antes o país aprove ocasamento entre pessoas do mesmo sexo. Nesse caso,a mulher trans, que a Justiça considera como homem,ou a travesti, poderia se casar com seu parceiro,que é homem e heterossexual. Não há nenhumaindicação que essas mudanças venham a ocorrer noBrasil num futuro próximo. A Justiça, portanto, continuasendo o único caminho.


A Coordenadoria deAssuntos da <strong>Diversidade</strong>Sexual, CADS, é umórgão de propositura depolíticas públicas daSecretaria Municipal deParticipação e Parceria deSão Paulo. Subordinadoao CADS está o CCH,Centro de Referênciaem Direitos Humanos dePrevenção e Combate àHomofobia. “Fazemosatendimento às pessoasque sofrem discriminaçãopor orientação sexual”,diz o advogado GustavoMenezes, coordenadordo Centro. “O CCHpresta assessoria jurídicae encaminha os casospara parceiros da rede dedireitos humanos,parceiros que sãopreparados esensibilizados por nóspara receber essapopulação.” SegundoMenezes, a principaldemanda é jurídica, edentro dela a mudançade nome é a maisfrequente. Nessasquestões, os principaisparceiros são aDefensoria Pública doEstado e o Grupo deExtensão em<strong>Diversidade</strong> Sexual,GEDS, montado pelosalunos da Faculdade deDireito da Universidadede São Paulo, no LargoSão Francisco.Luiza Claudia Santos, 33 anos“Querofazer surpresapara o meucompanheiro”A CABELEIREIRA Luiza Claudia Santos,33 anos, ficou sabendo do Ambulatóriode Saúde Integral para Travestis eTransexuais do CRT DST/Aids-SP noinício de 2010, por meio de uma amiga.Embora sonhasse com uma cirurgiadesde a adolescência, ela sempresoube que apenas o Hospital dasClínicas de São Paulo, além de algunsserviços particulares, atendiam transexuais.“Fiz inscrição no HC por telefoneem 2000, nunca fui chamada”, diz.Luiza esteve pela primeira vez noambulatório do CRT em 31 de maio de2010. No dia 25 do mês seguinte, elaretornou pela segunda vez, surpresacom o atendimento e cheia de expectativa.“Eu não sabia que o governotinha liberado as cirurgias, essa está sendominha grande esperança”, ela diz.Luiza está se referindo à portaria doSUS que criou quatro centros de referênciaem universidades federais parao atendimento dessa população e a realizaçãoda cirurgia de transgenitalização.Um deles é justamente o Hospital dasClínicas da Faculdade de Medicina daUSP. O Ministério da Saúde não sabeainda quantos transexuais estão nestafila, e Luiza não sabe que esse processoainda pode levar anos.De todo modo, o acompanhamentopelo ambulatório do CRT vem sendoum ganho significativo para sua saúdefísica e mental. Luiza diz que na primeiravisita ao ambulatório foi recebidapor uma médica que marcou as próximasconsultas com diferentes especialistas– inclusive com urologista, poisseu corpo é biologicamente masculino.Luiza foi encaminhada também aoHospital Estadual de Diadema, ondeuma equipe vem se dedicando a cuidarde pacientes que apresentam problemascom o uso de silicone industrial. Oproduto que Luiza aplicou vários anosatrás migrou para as pernas, o que provocafrequentes infecções e inchaços,impedindo-a até mesmo de atender nosalão. Os médicos avaliaram que teráde passar por um cirurgião vascular.“Não tinha vaga e ficaram de marcaroutro dia”, ela diz. Luiza conta que jácomeçou a psicoterapia. “Em doismeses, já fui encaminhada para váriasconsultas, com vários médicos, mais doque nos últimos dez anos.”Vivendo com um companheiro há 14anos, e isolada no seu salão, Luiza nãotinha acompanhamento médico. Nemprofissionais, nem amigas com quemfalar e se informar sobre seus problemase dúvidas. Mesmo os hormôniosela vinha tomando “por conta própria”.Atendida nos seus cuidados mais urgentes,Luiza quer agora concentrarsena psicoterapia e na busca de um laudoque a colocaria na fila das cirurgias eajudaria no processo para troca dos nomesnos papéis. “Será uma dupla surpresapara o companheiro”, ela sonha.A DIVERSIDADE REVELADA55


“ABERTURA” DO JUDICIÁRIOfacilita nova identidadeJuízes estão aceitando mudança do nome mesmo antes da cirurgia,diz advogada. Travestis podem se valer de jurisprudência que permite atroca de nome quando seu portador o considera “ridículo”.A lei dos registros públicos também autoriza mudança para o nomepelo qual a pessoa é conhecida socialmente.A DIVERSIDADE REVELADA56Tereza Rodrigues Vieira é uma das advogadasque mais fez ações de mudança de nome esexo de transexuais no país. Especialista emsexualidade, bioética e direito, é hoje a autoracom mais artigos e livros publicados sobre otema. Professora universitária, leciona direitoprocessual e bioética em várias faculdades, além de daraulas para a Escola do Ministério Público do Mato Grossodo Sul e na Escola de Magistratura do Pará. “Atransexualidade é um tema que precisa ser trabalhadoem conjunto com a bioética, pois só o direito, a medicinaou a psicologia não dão conta”, diz Tereza.Segundo a advogada, de 1997 a junho de 2010,ela já foi procurada por mais de 230 transexuais. “Das75 ações que movemos, 69 foram ganhas em primeirainstância e seis estão em andamento”, diz. Dessenúmero, um quarto envolvia homens trans. O processomais rápido demorou 25 dias, nem o promotornem a juíza pediram perícia ou audiência. O mais demoradolevou três anos e meio.“Muitas pessoas que perderam a ação, seja em SãoPaulo ou outros estados, estão retornando para começartudo de novo, acreditando nessa mudança de comportamentoda área jurídica”, diz a advogada. Além demudanças por parte dos juízes e promotores, os bonsresultados podem ser atribuídos também à tese queTereza vem compartilhando com outros profissionais,tanto nas petições como nos seus cursos e livros.“Mostramos, com laudos de especialistas, que nãose trata de uma mudança de sexo, nem de uma opção,mas de uma adequação ao sexo verdadeiro. Des-ta forma, tanto o gênero como o nome precisam sercorrigidos, já que causam grande constrangimento àpessoa”, diz Tereza. Esse pensamento já vem sendodefendido por muitos profissionais do direito, comreflexos positivos tanto no Judiciário quanto no meiomédico e nas políticas públicas de saúde. Alguns juízeschegaram a colocar o termo “transexual” ou “sexocirúrgico” no espaço reservado ao gênero, mas perderamem instâncias superiores. Hoje, tanto a negativada mudança de nome e gênero, como recursos queidentificam a pessoa que passou por alguma adequação,vêm se tornando episódios menos frequentes.Roberta Close é apontada por Tereza como umcaso exemplar. Ela fez a cirurgia em 1989 fora doBrasil e entrou com ação para mudança do nome noRio de Janeiro no ano seguinte. Ganhou em primeirainstância, mas a promotoria apelou e ela perdeu. Aação subiu até o STF que, em 1997, reformulou asentença, negando a Roberta a mudança do nome.Em 2001 Tereza assumiu o caso, elaborou umparecer jurídico e cercou-se de laudos de um médicolegista, um geneticista, três endocrinologistas, duaspsicólogas, um psiquiatra e um neuro-psiquiatra. Umassistente técnico acompanhou as perícias solicitadaspelo promotor. Não se tratava apenas de adequar nomee gênero de uma transexual, mas de mudar uma decisãoque já tinha transitado em julgado no STF, umepisódio raro no direito. Em 4 de março de 2005 saiua sentença favorável. Na tela do computador, Terezamostra a cópia da certidão onde Roberta aparece comoRoberta Gambine Moreira, do “sexo feminino”.


Para poderemse casar, oshomens eas mulherestransexuaisprecisam fazera mudança dosexo e do nomena JustiçaOutras mudanças vêm ocorrendo. Alguns juízesestão aceitando a mudança do nome e do sexo mesmoquando a pessoa ainda não fez a cirurgia genital. Oshomens trans que fazem a mastectomia e a histerectomia– a retirada dos órgãos femininos “secundários” – masque não passaram pela faloplastia (implante ou reconstruçãode um pênis) têm obtido sentenças favoráveis.“Todos os ‘meninos’ ganharam em primeira instância”,diz Tereza. Também desta vez, a petição partiuda tese de que não se trata de uma “mudança de sexo”,mas de uma adequação ao verdadeiro sexo.No caso de alteração apenas do prenome, já hájurisprudência que autoriza a pessoa a mudá-lo quandoconsidera que seu nome é ridículo, ou que sesinta ridicularizado ou constrangidocom o seu emprego. “O prenomeem si não é ridículo, maspassa a sê-lo quando aplicado a pessoasque se sentem pertencentes aooutro sexo. Por exemplo, alguémque se apresenta como Roberta e échamado de Roberto. A lei dos registrospúblicos também autoriza asubstituição do prenome por apelidospúblicos notórios”, diz Tereza.No caso das transexuais e travestis,elas são conhecidas em seumeio pelo nome social. Há que secomprovar estes dois fatores, masprincipalmente o uso do nome diversodaquele do registro. Segundoa advogada, algumas transexuaispedem apenas a mudança do nome, pois nãosabem quando a cirurgia vai acontecer e queremevitar o constrangimento de uma perícia. Esse caminhotambém pode ser seguido pelas travestis.Quando a pessoa ganha a causa, o juiz ordena aexpedição de um mandado para que seja encaminhadoao cartório no qual a pessoa foi registrada. Algunsjuízes já fazem constar que não se deve colocar nacertidão nada que constranja a pessoa. “A mudançado nome deve constar apenas no livro que fica nocartório, não na certidão que a pessoa carrega comela”, diz Tereza. A maioria das repartições públicasou privadas responsável pela expedição de documentosaceita a cópia do mandado ao Cartório do RegistroCivil como comprovação da alteração do nome edo gênero. Tereza explica que, para diminuir os transtornospara o cliente, muitos advogados já estão pedindona petição inicial que o juiz ordene a expediçãode todos os mandados correspondentes. Desta forma,a pessoa poderá regularizar todos os documentos,inclusive passaporte e diploma de universidade.A advogada afirma que as conquistas no Judiciáriotambém fortaleceram a posição dos médicos. “Se oJudiciário está reconhecendo, significa que não é ilegal,pode-se argumentar.” Contudo, somente em1997, o CFM passou explicitamente a considerar éticaa cirurgia. Mas o artigo 13 do Código Civil autorizaa retirada de parte sã do corpo, por exigência médica.É o caso do transplante, porexemplo. O que acontece no casodo transexual, segundo a advogada,não passa de um autotransplante.Tereza observa que vem crescendoo número de escolas de medicina,psicologia e direito, que a convidampara falar sobre o tema. O númerode clientes que a procuram tambémaumentou. Com uma diferença: algunsagora vêm acompanhados pelopai ou pela mãe. “Começa a haverum diálogo dentro de casa”, diz.“Alguns homens trans ou mulherestrans ainda conservam fortestraços de seu lado biológico. Emborao gênero nada tenha a ver coma aparência externa do corpo dapessoa, é aconselhável mas não obrigatório, que comecemum acompanhamento médico e psicológicocom especialistas para que, sendo o caso, possaminiciar terapias para acentuar seus traços masculinosou femininos. Sem isso, correm o risco de ver seupedido de mudança de nome negado pelo juiz.” Eisso poderá trazer ainda mais sofrimento para essaspessoas e suas famílias, diz a advogada.Segundo ela, muitas das transexuais que passarampelo seu escritório já estão casadas. Quantoaos “meninos”, todos têm companheira. Mas parapoderem se casar, as transexuais e os transexuaisprecisam mudar o nome e o sexo na Justiça, observaTereza.A DIVERSIDADE REVELADA57


Marciano Alves Fernandes, 29 anosA DIVERSIDADE REVELADA58MARCIANO Alves Fernandes, 29 anos,reveza paletó e gravata com calçajeans, camiseta e tênis de bom gosto.O aparelho nos dentes revela que nãoperdeu sua preocupação com a aparência.Quando conta sua história, tema humildade de alguém que sobrevivecom R$ 500 por mês e se dedica a trabalhosde prevenção e de segurança,depois de já ter somado mais de R$ 300mil trabalhando como cafetão. Já foiusuário de todo tipo de droga, até queo crack o derrubou e acabou com suaseconomias e a saúde.O CRD foi a casa que não teve ao longoda vida, e foi ali que encontrou quemouvisse sua história, ajudasse a deixar asdrogas e oferecesse trabalho como agentede prevenção. Marciano chegou a“comandar” 30 meninas na Itália, somandoR$ 200 a R$ 300 mil reais por mês.Diz que foi um dos cafetões mais bemsucedidosdo circuito São Paulo, Espanhae Itália. Tudo que ganhou, perdeu.Hoje fala que sua vida é “o pagamento”que lhe cabe. Tem câncer,HIV, diabetes e duas hérnias de disco.“Se você planta espinhos, vai colherespinhos”, ele diz.Abandonado pelos pais, foi adotadopelos avós, que já morreram. “Quandotinha onze anos meu avô me deuum tapa na cara. Prometi que homemnenhum faria aquilo de novo comigo.Fugi para São Paulo de caminhão, moreiem cima de árvores numa praça darua Major Diogo, até que uma travestime levou para casa.”Passou a fazer serviços de rua, bancos,até receber missões mais delicadas.A travesti, cafetina e patroa encarregava-ode “cobrar as meninas” que trabalhavampara ela, levá-las para implantarsilicone, acertar contas com o médico.“Eu era seu secretário. Na rua me envolviacom a cocaína e com o álcool.Conhecia um mundo feroz”, diz.“ Foram asmulheres queme salvaram”Quando fez 18 anos foi mandado àEspanha para cobrar o contrato de travestise prostitutas enviadas daqui sobas ordens da patroa. O trabalho se estendeupara a Itália, onde passou a trabalharpor conta, até que ocupou umarua inteira de Ravenna. “Ganhei muitodinheiro. Quando ia para uma balada,tinha que ser a melhor, muita bebida,drogas e mulheres, eu fazia questãode bancar.”Nas vezes que visitou o Brasil, desfilavacom o luxo que podia. “Quemnão adora o luxo? Andava com carrõese dois celulares, quando só ricos usavam.Eu era de Rio do Sul, em SantaCatarina, onde ainda estavam meusparentes. Queria que soubessem omal que tinham feito para mim.” Amãe biológica se recusou a recebê-lo.“Hoje minha mãe é a Bianca, uma travestique cuida de mim, ri comigo,chama minha atenção. Faz festa quandoestou chegando. Nossa casa na ZonaLeste é um lugar alegre.”Marciano diz que perdeu o péquando numa viagem ao Brasil conheceuo crack. “Comecei a perdertodo o dinheiro que tinha. Minhaconta no banco, que chegou a ter R$300 mil, foi desaparecendo. Em doisanos, perdi tudo.”A parada seguinte foi o CRD, levadopor pessoas que conheceu na rua. “Essaregião do Centro sempre foi o meu pedaço,conhecia todo mundo.” Faz seismeses que parou de usar drogas, no inícioteve recaídas pesadas, “usava crackdireto, dormia na rua, em albergues”.“Me chutavam a cara na calçada, mijavamem mim. Deixei de ser o Marcianoelegante. Isso eu não deixo mais,minha dignidade estou recuperando devolta.” Quando soube que estava doente,abandonou a vontade de viver, eleconta. “Foi Bianca que veio me pegarcaído na calçada, no centro da cidade.”Marciano mudou seus hábitos, deixouamigos da rua, não sai mais à noite,e sempre que pode frequenta oNA, o grupo de Narcóticos Anônimos,que tem reuniões em vários pontosda cidade. Já faz um ano que sabeque é soropositivo, mas só recentementeos médicos recomendaramque tomasse medicamentos, porquesua resistência baixou. “Estou começandotudo de novo, como se estivesseaprendendo a andar.”Nessa sua história, a família e as companheirastiveram sempre um papelcentral. “Foi a mãe e o pai que não tiveque me empurraram para a rua”, elediz. “Foi Bianca, que é minha mãe eirmã, que me salvou. Foi Jamile, comquem estive durante cinco anos, queme tirou do crack. Depois foi Mariana,que conheci no NA. Ela diz que souguerreiro, tem a maior admiração pormim, é cheia de cuidados. Quando vocêpara com a droga, você fica carente, euestou precisando muito delas.”


Vanessa Pavanello, 41 anos“A cirurgiaé sonho, masnão é todaminha vida”VANESSA trabalha como agente social daPrefeitura de São Paulo, coordena reuniõessócio-educativas com prostitutas,é voluntária num Centro de TestagemAnônima para DST e aids, e faz o primeiroano da Faculdade de Serviço Socialna Universidade de Guarulhos.Vanessa é uma mulher trans. Diz quenunca ouviu uma “gracinha, um psiu,uma provocação”. “Se você quer respeito,tem que ter, tem que impor. Nãopode botar um bustiê, um sutiã, e quererir ao açougue ao meio-dia”, ela diz.Vanessa Pavanello, 41 anos, moracom a mãe e um filho adotivo em SãoMiguel Paulista, Zona Leste. Optousempre pela discrição e não costumadizer que é mulher trans. Já teve umcompanheiro com quem viveu por 12anos e foi nessa época que adotou o filho,hoje com 16 anos. No bairro, todomundo a conhece, especialmente nasruas que percorre como agente socialdo Programa Ação Família, da SecretariaMunicipal de Assistência Social.Ao longo do mês, visita 50 famílias emsituação de risco social. “As pessoas nãosabem que sou uma transexual. Nasminhas visitas sou profissional, umaagente social e pronto, não entro emdetalhes sobre minha vida. Algumasfamílias até sabem que sou transexual,mas eu não comento.”Vanessa fez um percurso muito parecidocom a grande maioria das mulherestrans que chegam ao ambulatório doCRT DST/Aids-SP. Primeiro buscouatendimento no Hospital das Clínicas,tentando passar pelo gargalo da psicoterapia– único caminho para a hormonoterapiae o sonho da cirurgia. Nos anosde espera, e com as informações quecorrem sobre a abertura do ambulatóriopara transexuais e travestis, acabouprocurando “CRT da Santa Cruz”.Ela já tem definidas as prioridades:seguir na psicoterapia, na hormonoterapia,fazer a operação e trocar onome nos documentos. Com o siliconeindustrial, embora tenha “os seios feitos”anos atrás, ainda não teve problemas.“Já estou fazendo uma bateria deexames”, ela se anima.Vanessa acha que pode “viver feliz”sem a cirurgia, como vem vivendo desdea adolescência. Mas é um “sonho,um desejo, uma necessidade tão importante”que ela não vai deixar nunca debuscar. “A cirurgia e os cuidados com ocorpo e a mente da gente são muitoimportantes. Eu vi nos médicos eatendentes do ambulatório essa seriedade.Estou muito feliz e animada.”Vanessa diz que a fase mais dura dopreconceito e da solidão já passou, agoratem uma “vida mais tranquila”, nãoprecisa brigar tanto. Ela acredita quena faculdade até saibam que é transexual,mas sempre foi respeitada.“Porque se ouvir um cochicho, eu voltoe resolvo. Uso o banheiro femininoe nunca ouvi nada. Isso vai muito dapostura”, diz.A DIVERSIDADE REVELADA59


NOMEafasta transexuaise travestis da escolae serviços de saúdeUso do nome civil provoca evasão escolar efuga dos serviços públicos, principalmenteda saúde. Apenas metade dos estados temportarias garantindo o nome social paratravestis e transexuais. Em São Paulo, odireito vale para todo serviço público.A DIVERSIDADE REVELADA60Uma das reivindicações mais justificadas detransexuais e travestis, com enorme significadopara a auto-estima e a dignidade daspessoas, é o simples fato de terem comoopção o uso do nome social, tanto escritocomo falado. No Estado de São Paulo, odecreto 55.588 de 17 de março de 2010 determinaque transexuais e travestis tenham o “direito da escolhade tratamento nominal nos atos e procedimentospromovidos no âmbito da Administração direta e indireta”.Ao preencher cadastros ou se apresentar parao atendimento, num posto de saúde ou delegacia, porexemplo, o cidadão pode indicar o nome que adota,independentemente do nome e sexo registrados nacarteira de identidade. O servidor público quedescumprir o decreto pode ser processado.No mesmo dia 17 de março de 2010, o decreto55.587 instituiu o Conselho Estadual dos Direitosda População LGBT junto à Coordenação de Políticaspara a <strong>Diversidade</strong> Sexual do Estado de São Paulo,da Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa daCidadania. Órgão consultivo e deliberativo, o Conselhotem por finalidade elaborar, monitorar e avaliarpolíticas públicas destinadas à efetiva promoção dosdireitos dessa população.Em São Paulo, capital, o prefeito baixou o decreto51.180, de 14 de janeiro de 2010, determinando o usodo nome social em formulários, prontuários médicos efichas de cadastro, entre outros requerimentos da administraçãopública. O nome social deve aparecer antes donome civil e entre parênteses nos registros municipais.Em Santa Catarina, em 2009, ao reivindicar a criaçãode um campo específico nos documentos escolarespara a inclusão do nome social dos travestis etransexuais, o Centro de Referência em DireitosHumanos e Associação dos Travestis e Transexuais –ambos da Grande Florianópolis, SC – lembraram aaltíssima evasão escolar dessa população provocadapela discriminação e preconceito que sofrem. “Muitosnão completam sequer o ensino fundamental ena fase adulta acabam sem profissão definida. Há estimativasindicando que 90% dos travestis etransexuais estão na prostituição, enquanto umpercentual de apenas 3% a 5% estuda”, diz o texto.


Cena da peça de teatro Hipóteses para oAmor de Verdade, com atores e atrizes transpara abordar questões da transexualidadePelo menos onze Estados já permitem o uso donome social nos serviços públicos, alguns na área dasaúde, outros na área da educação. No Piauí, a determinaçãose deu por força de lei aprovada na AssembléiaLegislativa, garantindo um documento paralelochamado de “identidade do nome social”. Em Fortaleza,duas portarias assinadas em 14 de fevereiro de2010 permitem que travestis e transexuais matriculadosem escolas municipais ou cadastrados em projetossociais usem o nome social.A tendência é que portarias semelhantes sejam baixadasem todos os Estados e estendidas para todo oserviço público. Embora sejam iniciativas bem-vindas,os ativistas LGBT e de direitos humanos lamentam alentidão nesse processo, ainda limitado a serviços públicose concentrados nas áreas de educação e saúde. Lembram,por exemplo, que a Constituição de 1988 declaracomo um de seus fundamentos a proteção à dignidadeda pessoa humana, protegendo o cidadão contraqualquer forma de discriminação. O princípio constitucionalda igualdade proíbe a discriminação em razão dosexo, seja o cidadão homossexual, transexual ou não.Lembram os ativistas, que duas décadas depois da promulgaçãoda Constituição, a população LGBT – particularmentetravestis e transexuais – continua com seusdireitos fundamentais negados e desrespeitados.São Paulo é o Estado que conta com o melhor arsenaljurídico no sentido de coibir discriminação emrazão da orientação sexual. A lei 10.948, de 5 de novembrode 2001, diz que “toda manifestação atentatóriaou discriminatória praticada contra cidadão homossexual,bissexual ou transgênero” será punida. Entre osatos atentatórios citados pela lei está a prática de “qualquertipo de ação violenta, constrangedora, intimidatóriaou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica”.A proibição do “ingresso ou permanênciaem qualquer ambiente ou estabelecimento público ouprivado, aberto ao público; praticar atendimento selecionadoque não esteja devidamente determinado emlei”. “Preterir, sobretaxar ou impedir a hospedagemem hotéis, motéis, pensões ou similares”, assim como“preterir, sobretaxar ou impedir a locação, compra,aquisição, arrendamento ou empréstimo de bens móveisou imóveis de qualquer finalidade”.A lei ainda cita entre os atos discriminatórios a prática,pelo empregador ou seu preposto, de “atos dedemissão direta ou indireta, em função da orientaçãosexual do empregado”. “Inibir ou proibir a admissãoou o acesso profissional em qualquer estabelecimentopúblico ou privado em função da orientação sexual doprofissional”, além de “proibir a livre expressão e manifestaçãode afetividade, sendo estas expressões e manifestaçõespermitidas aos demais cidadãos”.Feita a denúncia, caberá à Secretaria de Estado daJustiça e da Defesa da Cidadania promover a instauraçãodo processo administrativo devido para apuração eimposição das penalidades cabíveis, que vão de multas àcassação da licença estadual do estabelecimento acusado.Importante observar – diz a advogada TerezaRodrigues Vieira – que por esta lei, a discriminação emestabelecimentos públicos passa a ser uma ofensa contrao Estado, a quem deverão ser pagas as multas. A pessoavítima da discriminação, por sua vez, poderá entrar comação contra os responsáveis. Em 17 de março de 2010,o decreto 55.589 regulamentou a lei 10.948, dispondosobre as penalidades a serem aplicadas.A lei, que já tem quase uma década, seria o bastantepara que travestis e transexuais pudessem exigir o usodo nome social. E bastaria para que a discriminaçãocontra a população LGBT fosse reduzida nos espaçospúblicos e privados. Desde que fosse cumprida. 61A DIVERSIDADE REVELADA


Marcelle Miguel, 37 anosA DIVERSIDADE REVELADA62MARCELLE tem traços femininos, cabelossobre os ombros, olhos verdes,usa blusa regata preta, calça unisex esandália de dedo. Chama a atençãopela timidez, a conversa tranquila, aspalavras medidas, as frases construídascom cuidado. Os olhos parecem distantes,mas é por conta de uma miopiamuito forte que carrega desde criança,ela explica.Marcelle é uma mulher trans que viveunas ruas de Osasco, na Grande SãoPaulo, por dois longos períodos. Dormiana calçada, sob as marquises, maisde uma vez foi chutada por estranhose passou a noite sangrando. Outrosqueriam levá-la de carro para programas,à força.Sua adolescência e juventude forammais estáveis. Fez o segundo grau e ocurso técnico de informática e telecomunicações,chegou a trabalhar naTelesp Celular, depois na Ericsson. Tinhaum círculo de amigos e era respeitada,mesmo trajando e se apresentandocomo andrógina. Com as privatizaçõese redução de postos, o suportetécnico foi todo cortado, pelo menosfoi a razão que lhe deram. Aindatrabalhou em companhias terceirizadas,“mas nas empresas menores opreconceito é ainda maior”.Sem salário e recusada nos trabalhos,entregou o apartamento alugado e foimorar na rua. Meses depois foi contratadacomo agente de saúde, e mesesmais tarde estava na rua outra vez. Aindaesteve empregada em mais de umaempresa, mas as chances diminuíam.“Ninguém contratava alguém que nacarteira se chamava Marcelo e se apresentavacomo Marcelle”, diz.Das ruas onde morava, Marcelle seconectava nos telecentros da cidadecom ONGs como a Associação da Paradae o Centro de Referência da <strong>Diversidade</strong>.Em setembro de 2009 um“ Somos frágeis,e somos vistoscomo ameaça”amigo a apresentou ao CRD e ela nuncamais voltou a Osasco. Em maio de2010, oito meses mais tarde, continuavano mesmo albergue, o Portal do Futuro,no bairro Armênia, onde é aceitono pavilhão das mulheres. Nesse período,também reuniu uma série de decepções,a falta de trabalho, o desentendimentocom os grupos de terapia,os amigos que se afastaram.Marcelle Miguel tem hoje 37 anos ese alegra por ter conseguido contar aospais sobre sua transexualidade poucoantes de morrerem. “Desde os 21 anoseu já me via como transexual. Aos 26anos disse a meu pai o que ele sempresoube. Meu pai falou, ‘eu aceito, meufilho, só não estou preparado para participara seu lado’. Era justamente o queesperava ouvir. Esse foi o momentodefinitivo. Meu pai e minha mãe morreramlogo depois.”No CRD, Marcelle diz estar encontrandoo acolhimento e a compreensãoque não teve em sua vida. Na fala cheiade cuidados, ela faz questão de dizerque o serviço público não está dando aatenção que essas pessoas necessitame que isso está provocando danosirreparáveis, como ela já sofreu. “Areintegração na sociedade é um processosolitário e penoso. Não se podedeixar os transexuais sem amparo, semorientação, para evitar que caiam na situaçãoque eu caí. A saúde pública precisaolhar para essa população com cuidado,porque somos frágeis, e porquesomos vistos como ameaça.”Marcelle participa das “terças-trans”do CRD e vê nesses encontros uma“tentativa de devolver dignidade àstransexuais”, o que não tinha encontradoem outros lugares. “Sempreestive sozinha nesse processo, mesmoconvivendo com colegas da militância.Foram anos me assumindo como transexual,e sempre somando perdas. Aperda de empregos, de colegas de trabalho,a perda dos pais, do lugar ondeeu morava, perdas sempre solitárias.Com o CRD, tenho um apoio para absorveresses sofrimentos.”Ao longo das tardes, Marcelle podeser vista sentada junto à cozinha, sempregentil e com um sorriso disponível,mas com o olhar distante. Ajuda“dona” Marta a preparar e a servir olanche. Marcelle sabe que os profissionaisdo CRD não vão mudar sua vida,mas sabe que ali sempre encontrarápessoas e uma esperança. “A políticada cidade afeta também os recursos dadiversidade, então as coisas não caminhamcomo a gente espera”, fala, revelandoconhecer os mecanismos quegerenciam as verbas e prioridades dopoder público. Marcelle diz esperar queo CRD não seja afetado por mudançaspolíticas, porque ali não se sente sozinha.“A solidão é o preço mais alto quese pode pagar.”


Mudança noDOCUMENTOé prioridadeA Antra, Articulação Nacionalde Travestis e Transexuais,defende lei que permita mudança de nome no registro de nascimento.Saúde integral e combate à violência são outras prioridades.“Você é homem, rapaz”, dizia o professorem voz alta, chamando Jovanna Baby peloseu nome de registro. Jovanna conta quea humilhação fez com que abandonasse afaculdade de administração que cursava naépoca. “Hoje talvez tivesse recursos legaise apoio do movimento para continuar o curso e denunciaro professor. Na época não tinha, não me sentiaforte para isso”, ela diz.Jovanna é de Picos, no interior do Piauí. Atualmentepreside a Articulação Nacional de Travestis eTransexuais, a Antra. As principais reivindicações dogrupo são justamente o uso do nome social, um planonacional de saúde para transexuais e travestis, e ocombate à violência.Por conta da pressão da Antra, uma lei estadualcriou um documento conhecido como “identidadedo nome social”. Uma espécie de carteira de identidadeparalela que transexuais e travestis têm o direitode solicitar e apresentar quando sua documentaçãofor pedida em qualquer situação. “Mas nossa lutaé pela aprovação no Congresso de lei que autorizetransexuais e travestis a mudarem de nome e sexo nacertidão de nascimento, mesmo sem ter feito cirurgiade readequação sexual”, afirma.A Antra estima que existam no país 800 mil travestise 400 mil transexuais. “São estimativas colhidasjunto ao movimento. Se o número é maior ou menor,cabe ao governo nos dar a informação correta”, diz apresidente da Antra. Pelo menos a metade sobrevivecomo profissional do sexo, estima-se.Jovanna diz que há diferenças regionais, e que noNordeste, Norte e Centro-Oeste, principalmente nascidades do interior, as travestis se expõe mais, são visíveisdurante o dia, o que não aconteceria no Sul e Sudeste.Esse fato facilita o contato com a população ereduziria o preconceito, oferecendo outras oportunidadesde emprego. Segundo ela, é nessas regiões queexiste um maior número de travestis no mercado detrabalho. Ela mesmo diz ser uma consultora na área dedireitos humanos. Conhecida como “senhora Jovanna”,costuma ser convidada para sessões na Câmara, atospúblicos, festas e mesmo cultos na igreja local.“Há entre nós muitas secretárias, auxiliares de enfermagem,mas a maioria é professora. A Antra acabade criar uma rede de pessoas educadoras trans, e elassão muitas”, diz. “Mas se forem chamadas pelo nomedo registro civil na sala de aula, ficam sem condições delidar com os alunos.” Segundo Jovanna, o nome é aprincipal demanda, porque interfere diretamente naeducação. “Uma aluna travesti ou transexual, que échamada pelo nome masculino na sala de aula, nãovolta mais para a escola.” Discriminada, com baixa estimae sem escolaridade, resta o caminho da modificaçãodo corpo e da prostituição, comenta Jovanna.Outra demanda da Antra é a saúde. “Queremossaúde integral, e que não sejamos assistidas apenaspelos serviços de DST/Aids. Precisamos de um planonacional de saúde para as travestis”, diz Jovanna. Atéjunho de 2010, somente o Conselho Regional deMedicina do Estado de São Paulo tinha estabelecidoum “protocolo clínico de saúde integral para travestis”.A DIVERSIDADE REVELADA63


E somente nesse Estado estava em funcionamentoum serviço para essa população, o Ambulatório deSaúde Integral para Travestis e Transexuais, do CRTDST/Aids-SP.As transexuais, por sua vez, encontram enormedificuldade fora do triângulo São Paulo, Rio de Janeiroe Porto Alegre. Segundo Jovanna, a portariado SUS levou alguns serviços a oferecerem atendimentopsicológico e hormonal no Piauí, “mas quandoalguma precisa de um laudo específico tem quese deslocar para centros maiores”. No Piauí, por exemplo,80 meninas trans estariam aguardando cirurgia.Por enquanto, apenas uma conseguiu.Outra preocupação da Antra é a violência contraa população LGBT e que atinge principalmente as travestis.De acordo com o Relatório Anual de Assassinatosde Homossexuais (LGBT), elaborado pelo GrupoGay da Bahia, foram 105 assassinatos por motivaçãohomofóbica no país, em 2009. No ano anterior, foram189. Com esses números, segundo o GGB, oBrasil ocupa o primeiro lugar nesse tipo de crime,superando de longe o país que está em segundo lugar,o México, que registrou 35 casos em 2009. Curitiba eSalvador foram as cidades com maior número de assassinatosde homossexuais (LGBT), com 14 e 11 homicídios,respectivamente.De 1980 a 2009, o GGB documentou 3.196 assassinatosde gays, travestis e lésbicas no Brasil. Nosprimeiros quatro meses de 2010, 47 travestis foramassassinadas, média muito acima de outros anos.FONOAUDIOLOGIA:exercícios de poesia para modular vozesA DIVERSIDADE REVELADA64Nas manhãs de quarta-feira e nas tardesde quinta, sons que lembram exercíciosde um coral, às vezes em versosmelódicos, podem ser ouvidos em umadas salas de atendimento do Ambulatóriode Saúde Integral para Travestise Transexuais do CRT DST/Aids-SP.Para os de fora, aquilo pode parecerestranho num serviço de saúde. Não é.Trata-se de uma terapia que trabalhaum dos problemas mais delicados paraquem está num processo de “reconstrução”de seu gênero, a modulação davoz. O que se faz ali são exercícios paraque as vozes das mulheres trans e dastravestis sejam mais parecidas com umavoz de mulher. E que os homens transtenham uma modulação que não reveleseu gênero biológico feminino.“Nossa voz é nosso cartão de visitasonoro”, diz a fonoaudióloga DeniseMallet, que desde 2001 trabalha no CRTDST/Aids-SP. Quando o ambulatório foiaberto, ela foi convidada para uma tarefaque não fazia parte das lições que aprendeuna faculdade: contribuir para a transformaçãode transexuais e de travestis noprocesso de construção de seu gênero.“Pessoas lindas e maravilhosas comoelas, sofrem quando notam que suasvozes revelam seu gênero biológico”, dizDenise. “Vozes agradáveis atraem pessoasagradáveis. Vozes feias, que nãocombinam com a aparência, afastam aspessoas.” Sem literatura para se apegar,ela se pautou pelo que considera essencial:praticar exercícios para modular avoz, sem forçar as pregas vocais.“Elas não terão a voz aguda comoa de uma mulher, mas uma forma agradávelde falar, uma voz melódica, delicada,moderada”, diz Denise. A vozfeminina não está apenas no seu tomagudo, mas na sua melodia e suavidade,explica. “Elas estão contentes e felizescom os progressos, e eu mais aindapor poder contribuir com essa populaçãotão sozinha.”As que chegam ali já têm um históricode esforços para conseguir uma vozmais feminina. Muitas aprenderam comas colegas a forçar a laringe ou a darum tom mais nasalizado à voz. “Sãorecursos que disfarçam o grave da voz,mas que podem trazer problemasfuturos”, diz Denise. O uso de hormôniofeminino ajuda muito, mas nãoresolve tudo. Quando chegam ao ambulatórioe procuram pela fonoaudióloga,a primeira atitude de Denise éencaminhá-las ao otorrino do próprioCRT DST/Aids-SP, ali mesmo noprédio, de forma que se verifiquepossíveis problemas nas pregas vocais.“Felizmente, todas tinham as pregaspreservadas”, diz.Denise sempre fala no femininoporque das cerca de 30 pacientes queacompanha, só dois são homens trans,que já chegaram com a voz moduladapara grave e que sofriam com um excessode nasalização. Todas as outraspacientes são transexuais – a grandemaioria – ou travestis.Na prática cotidiana, Denise criouuma técnica própria, valendo-se de poesiasque ao mesmo tempo ajudam amodular a voz e diminuem a tensão e oestresse de suas pacientes. Não são poesiasde autores conhecidos, ela avisa,mas versos que falam da natureza e dapreservação, elementos que fazem parteda antroposofia que ela descobriu ese apaixonou ainda durante seus estu-


Oficina de Canto e Iniciação Musical, coordenada pela cantora Ligiana Costa Araujo (ao centro), auxilia os participantesna modulação da voz, além de propiciar relaxamento; a atividade também permite que o CRD tenha um coraldos. “Oh, anjo celeste, que um dia trouxeste,em teu meigo olhar, um azul maisprofundo, de algum outro mundo, oazul lá do fundo, das ondas do mar...”Denise repete o verso, vai baixandoe subindo o tom de voz, até “encontrarum tom de conforto”. “Elaspróprias percebem esse tom, sentemque seu falar está mais delicado, maissuave, retornam nas sessões seguintesdizendo que estiveram mais tranqüilase seguras nas suas conversas.”O que elas se queixam muito é dafala ao telefone. É quando mais se senteminseguras e sofrem com os resultados.“O aparelho chega a modificarum pouco a modulação da voz, paragrave”, diz Denise. “Mas o que maistem impacto é o fato de a outra pessoa,do outro lado, não estar vendoque se trata de uma mulher bonita eelegante.” Então é comum, do outrolado da linha alguém dizer, “como émesmo seu nome, meu senhor?”.“Quando se vêem denunciadas pelavoz, elas se sentem muito chateadas.Mas com a modulação, estou conseguindobons resultados.”O segredo, além da técnica, é a repetiçãodos exercícios. “Todas fazemisso com a maior dedicação. Algumastrazem gravador para depois compararema minha modulação com a delas.Fazem um esforço enorme para se ajustarem,porque assim se sentem aceitas,se sentem bem.”Entre as cerca de 30 pacientes acompanhadas,está a travesti Mila Alves dosSantos, 30 anos, que diz ter passado osúltimos onze anos entre drogas, assaltos,cadeia e prostituição. Em setembrode 2009 descobriu o CRD, que a recebeue encaminhou para cuidados noAmbulatório de Saúde Integral paraTransexuais e Travestis do CRT DST/Aids-SP. Já passou por proctologista,endócrino, clínico geral e é uma das quenão perdem as sessões de fonoaudiologia.“Tá ouvindo minha voz? ela não eramacia assim não, eu falava grosso. É adoutora Denise que está me ajudando.”Denise começou atendendo um diapor semana e três meses atrás passoupara dois. Acha que haverá cada vezmais procura, especialmente por partedas travestis, que ainda são poucas.“Elas são mais agitadas, impacientes,precisam relaxar; as transexuais sãomais calmas. Essa é uma sensação minha,porque o grupo ainda é pequeno,e só temos onze meses de trabalho.”Muitas pacientes não precisariammais das sessões, mas continuam vindo.“Nós não damos alta, são elas quedecidem. E quando deixarem de vir, assumemo compromisso de retornaremduas vezes por ano, para que o otorrinopossa vê-las e eu possa avaliar amodulação da voz”, diz Denise.Até agora, ninguém pediu alta.“Muitas já poderiam ter feito isso. Masessa é uma população sozinha, sem referências,sem ninguém para acompanhá-las”.Encontram ali uma outraforma de terapia. O que se compreendequando Denise recita alguns dosversos que usa nos seus exercícios. “Abrisa fagueira, da beira da praia, passavaligeira, sob sombra altaneira, e alegreensaiava, o ruidoso bailado, com oleque das palmas”, declama Denise. “Éum convite a uma voz mais serena, maisrelaxada, mais suave, mais romântica.Essa é a proposta”, afirma. 65A DIVERSIDADE REVELADA


Bernadete Vicente de Souza, 58 anosA DIVERSIDADE REVELADA66BERNADETE é uma das poucas prostitutasque frequentam o Centro de Referênciada <strong>Diversidade</strong>. Faz a ponte entreas mulheres profissionais do sexoque trabalham na região do Parque daLuz e o CRD. Quando consegue, trazuma amiga, mas poucas continuam aparecendo.No ano passado, 2009, distribuíaenxovais de bebê para as mulheresda Luz que estavam grávidas, enxovaisrecebidos pelo CRD. Depoismontou o que ela chama de “brechóambulante”, aparecia no Centro comsacolas de roupa que oferecia aosfrequentadores e aos funcionários.Diferentemente das travestis etransexuais, as prostitutas dizem quesofrem menos preconceito nos serviçosde saúde, quando procuram o ginecologistaou fazem exames de “papanicolau”.São prostitutas, mas são mulherescomo as outras. Sempre que passapelo CRD, conversa com a assistentesocial ou a psicóloga, um desabafo, eladiz. Conta que já fez quase todos os cursosdo Centro, como bijuteria, teatro,costura, adereços de carnaval, inglês.“Na night a gente precisa ter umpouquinho de ‘embromation’, e o cursode inglês me ajudou com a gramática.Conversar mesmo depende do álcool,quando tomo uma, falo até russo.”Com seu casaco de couro marron jágasto e o cabelo avermelhado, Bernadeteé uma figura conhecida no CRD,embora destoe das travestis e michês quefrequentam o local, alegres, falantes, desfilandosuas poucas roupas coloridas. Dascoisas que ela conta, nunca se sabe quantode verdade e fantasia tem. Diz queainda mantém alguns clientes “especiais”,mas que não faz mais programa pornecessidade, por conta das cenas semanaisde filme pornô que lhe rendemmais de R$ 2 mil por mês. Agora estariamontando uma pequena empresa paraexportar vestido de noiva para Angola.“Ficar sozinhanesta vidaé perigoso”Bernardete Vicente de Souza, 58anos, diz que começou a frequentarboates ainda com 17 anos, trabalhandoao mesmo tempo em salão de cabeleireiro.“A primeira foi a La Licorne, lindaaquela boate, clientela de respeito.A gente também deixava o telefonecom alguns porteiros de hotéis, quandoum turista perguntava por companhia,davam nosso número. Minha mãenunca soube, minha irmã desconfiava,cuspia e batia na minha cara. Eu eramuito feliz, essa coisa feita escondida,saindo com gente bonita, em lugaresbonitos. Eu adorava. Graças a Deusnunca entrei na droga, nem peguei aids.Minha droga era bebida e cama.”Sua vivência como prostituta e cabeleireiraentre a Luz e a rua Augustafez dela uma observadora especialdesses dois mundos e das misérias deseus frequentadores. “Falta aqui um lavatório,um chuveiro – diz referindoseàs instalações do CRD –, porque apessoa quando está sofrendo quertomar um banho, levanta a moral, mudaa vida.” Nos salões onde atende na “baixa”Augusta, ela lamenta a miséria das“meninas” que passaram a noite semfazer um programa, e que se sentampara fazer o cabelo sem ter tomado umbanho. “Quando se levantam, elas cheirammal. Uma judiação. Os funcionáriossem educação ainda falam alto, ‘vocêestá podre, está fedendo’. Quando fazemum programa, ainda têm um chuveirono hotel, horrível, mas tem.”Na Luz, Bernadete é jovem perto dassenhoras de mais de 80 anos que fazemprograma no parque. “São procuradaspor clientes antigos, cobram R$ 20 aR$ 30, o hotel sai por R$ 5, é um horrorde sujo. Quando aparecem jovens procurandopor elas, pode ver que sãomaníacos, com fixação na mãe ou naavó”, ela interpreta. Os clientes idosos,“com os cabelos branquinhos”, sãotão sozinhos quanto elas. “Uns usamtrês cuecas, não por higiene, mas porquesão imundos, quando sujam uma,colocam outra por cima, depois outra.”O Viagra ela considera descabimento.“Tens uns velhinhos que já entram compau duro e saem de pau duro, é horrível,triste, deprimente, porque Viagraé assim, levantou, um abraço.”Mesmo durante o dia e com o policiamentodo parque, as mulheres são assaltadas,“mas de um outro jeito”, contaBernadete. “O bandido fica passeandopelo parque, olhando aquela que faz maisprogramas. No final da noite, sai com elae assalta.” Outro “perigo” é a aids, “aprostituta carrega camisinha, no hoteleles oferecem camisinha, mas o homem,se puder, faz de conta que esqueceu.”Bernadete virou uma espécie demensageira dessas notícias. E ainda nãodesistiu de insistir com as amigas paraque venham conhecer o CRD. “É umjeito de não ficar sozinha nesse mundoda rua. Porque ficar sozinha nestavida é perigoso.”


Visita às avenidas e guetosonde se oferecem asPROFISSIONAISDO SEXODuas vezes por semana, a van branca do Grupo Pela Vidda/SP percorre ospontos da cidade mais frequentados por travestis, prostitutas e michês. Aequipe distribui camisinhas, gel lubrificante e informações sobre direitoshumanos e saúde. Além disso, faz um mapeamento das necessidades eurgências dessa população disputada e esquecida nos guetos e avenidas.


A DIVERSIDADE REVELADA68Travestis em uma esquina próxima ao CRD-Pela ViddaQparceria com voluntários do Grupo Pelauando a cidade está se recolhendo, quandoo tráfego diminui nas principais avenidas,é a hora em que os “clientes” dessemercado noturno começam a aparecer. Énesse horário que a equipe do CRD, emVidda/SP, inicia sua expedição noturna. Dois dias porsemana, o carro branco do Pela Vidda, com as coresdo arco-íris espalhadas em bolinhas pelas laterais, fazo mesmo itinerário, percorrendo as avenidas e becosde maior movimento. A passagem desse “trenó sexopreventivo”é sempre esperada por travestis, prostitutase michês. “Oi, gatas, precisam de gel, de camisinha?”Antes mesmo das respostas, as travestis se aproximamda janela, algumas batendo palmas, abrindo asbolsas para o carregamento de pelo menos 10 preservativose um tubo de gel lubrificante, cada uma.Na van Kangoo, o grupo leva em cada viagem umestoque de 300 tubos de lubrificantes e 8 mil camisinhas.Mais do que distribuir preservativos e folders, a passagemda equipe de prevenção significa para essas profissionaisdo sexo um sinal de respeito num cotidiano dedesprezo e estigma que pesa sobre elas. Como um postode serviço itinerante, o grupo oferece informações sobreacesso à saúde, assistência social e jurídica.Naquela noite de sexta-feira, 14 de maio de 2010,o tour começa pelo centro, seguindo para a zona norte.Paulo prepara a viagem tirando os tubos de gel dasembalagens – “se não elas jogam os papéis na rua” –e abrindo os pacotes de camisinha. Nesta noite, suaacompanhante é Irina Bacci, coordenadora do CRDcom anos de experiência em prevenção junto à populaçãoLGBT. Suas observações revelam um outro olharsobre essa população quase invisível, mas capaz de tocara fantasia de homens e mulheres. O trabalho é umaação conjunta do CRD com o Grupo Pela Vidda/SP,uma espécie de porta avançada do Centro de Referênciada <strong>Diversidade</strong>. Paulo e João, os acompanhantes,fazem o roteiro há dois anos. Conhecem todos os pontosda cidade onde trabalham prostitutas, travestis emichês. É sob o comando desses “guias”, que essetour muito especial vai começar.“Aqui estamos numa região que concentra o maiornúmero de travestis”, diz Irina. A van sai da rua MajorSertório, região central, onde fica o CRD e em cujascalçadas circulam dezenas delas à noite. A temperatura éde outono, mas a maioria exibe quase todo o corpo. Nadisputa por clientes, o rosto feminino conta pontos, mas oque decide o negócio são os seios e o bumbum.Em travessas estreitas e escuras da rua Voluntáriosda Pátria, na Zona Norte, elas ficam de costas, de formaque os faróis dos carros iluminem o que elas achamque tem de melhor para oferecer. O trecho costumaficar engarrafado. Elas só mudam de posição quandoum cliente as chama na janela do carro, ou quandoPaulo passa perguntando se querem camisinha.Nenhuma das cerca de 160 abordadas nesse trajetorejeitou a oferta. Sempre pediam mais tubos de gel.O gel é importante, explica Irina. “Nas relações, especialmenteanais, o não uso do gel provoca ferimentosque facilitam a transmissão de DSTs e aids. Semprelembramos que uso do preservativo é indispensável,mas sabemos que em algumas oportunidades elas nãousam e que há clientes que insistem em não usar. Ogel é importante pois dá mais conforto à relação ereduz a possibilidade de rompimento da camisinha.”Na rota desta sexta, embora a grande maioria sejatravesti, havia meninas profissionais do sexo numatravessa da rua Santa Eulália, na Zona Norte. Elastambém festejam a chegada das camisinhas. No meiodelas, alguém destoava com calças de garoto e cabeloscurtos. “É uma menina lésbica”, diz Irina. “Algumasdelas, ainda jovens e sem um círculo de contatos,procuram prostitutas para fazerem sexo. Como nãotêm dinheiro para pagar, esperam o fim da noite.”Irina pergunta se ela sabe como usar a camisinha emsexo oral; tímida, ela diz que não. No trecho mal iluminadoda avenida, onde as meninas se protegem,forma-se um círculo em volta de Irina, que abre um


preservativo, tira o anel e rasga-o pelo meio. Resultanum quadrado de látex que ela coloca sobre o pulsoda jovem lésbica e pede que passe a língua. “Sentealguma diferença? É assim que você deve fazer sexooral, protegendo você e sua companheira de doençassexualmente transmissíveis.” Todas as meninas dogrupo também querem lamber.A garota, que diz se chamar Bárbara, está surpresacom o acolhimento e o respeito com que é tratada. Irinaentrega um dos folhetos do CRD e diz que no domingohaverá um encontro de lésbicas. Ela pergunta o endereçoe a hora, diz que vai estar lá. O anel da camisinhaIrina entrega a um jovem que se juntou ao grupo. “Issovocê coloca no pênis. A ejaculação demora mais e oprazer é maior.” O rapaz ri, mas não recusa. “As lésbicas,de todo o grupo da diversidade, são as que encontrammais dificuldade de inserção nos seus grupos deconvívio”, diz Irina, de volta ao “trenó” da prevenção.Paulo, João e Irina conhecem todas as avenidas eruelas dessa região onde as travestis fazem “ponto”.Nas ruas mais largas, Paulo movimenta o carro de umlado a outro, procurando as travestis em todos os cantos.Identificam de longe, mesmo as mais discretas. “Jáaconteceu de oferecermos camisinhas a jovens que nãofaziam programa. Não houve problemas.” A intençãoé fazer contato com todas que estão nessa rota, oferecendocamisinha e folhetos. Sempre perguntam comoestá a noite, se tem havido problemas com policia, ouviolência por parte de estranhos.“Nos últimos 15 dias, 28 travestis foram assassinadasno país”, diz Irina. Paulo diz que na avenidaIndianápolis, na Zona Sul, freqüentada por travestis,duas delas foram baleadas. No folheto que entregam,há o telefone e o endereço do CRD, onde podem procurarajuda para questões de saúde e orientações deum advogado. “Os casos mais comuns são de violência,direitos previdenciários, aposentadoria, pensão alimentícia,os benefícios previstos na Lei Orgânica daAssistência Social (LOAS) para as soropositivas”, explicaIrina. O CRD tem um advogado que atende três diaspor semana, encaminhando os casos para a defensoriapública e outros serviços da rede pública.“Bom trabalho pra vocês, gatas”, Paulo costuma dizerassim que entrega as camisinhas. As travestis agradecemcom um sorriso, surpresas com a atenção num meio emque se acostumaram com a violência dos clientes, depessoas que passam pela rua e mesmo da polícia.Nos lugares menos esperados, em travessas do bairroArmênia, junto à avenida do Estado, surgem travestissolitárias ou em pequenos grupos. Duas, três, quatro,elas contam que vieram de Belém, de Manaus, deProfissional do sexo à espera de clientes, em SantanaRondônia, “faz menos de três semanas”. “É dessasregiões que mais chegam travestis”, observa Irina. “Vocêpercebe pelo jeito de falar e se vestir. São novas naprofissão e nessa cidade. Mais tarde, as mais bonitas eousadas vão disputar áreas mais movimentadas, algumasatingirão o sonho de todas, trabalhar na Europa.”Várias do grupo contam que não tinham camisinha,que é a primeira vez que recebem. “No drive ou nomotel costumam dar”, diz uma. “Mas o cliente nuncatraz, nem liga.” Outra diz que já é soropositiva mesmo eque se o cliente insistir em não usar “não me importo,ele é que vai se dar mal”. Sem saber se a travesti estáfalando a verdade, Irina não deixa de explicar: “Vocêpode ter pego um tipo do vírus HIV, mas existem outros.A cada relação sem camisinha, você pode pegaroutros.” A travesti fica séria: “cruz credo”, diz.Pelos cálculos de Paulo e Irina, pelo menos 40% dastravestis abordadas em cada saída semanal não tinhamsido vistas antes. Significa que vieram de algum outrolugar. Somando as cerca de mil que são acessadas acada mês, o número de travestis que recebem camisinhapelo programa ficaria em cerca de 15 mil por ano.Mas há um outro universo que, segundo Irina, vemcrescendo muito com a Internet. Ela estima que a cadatravesti trabalhando na “pista”, outras cinco ou dez estejamoferecendo seus serviços pela Internet. Feitas as contas,São Paulo e Grande São Paulo teria mais de 50 mil travestis,um número também de difícil comprovação.A DIVERSIDADE REVELADA69


Autorama, no Parque do Ibirapuera, é tradicional ponto de homens homossexuais na Zona SulA DIVERSIDADE REVELADA70Além de oferecer privacidade, a Internet permiteque o cliente escolha o perfil e a prática de sua “contratada”.No universo predominante das travestis, háum número bem menor de transexuais femininas,pessoas biologicamente do sexo masculino – comoas travestis – mas que negam os genitais e que agemcomo passivas. Diferentemente das trans, as travestistêm ereção e também podem agir como ativas.“Na rua, dificilmente o cliente percebe essas diferenças.Mas na Internet as profissionais especificamsuas práticas.” E o cliente escolhe se prefere uma“mulher” passiva ou ativa, ou as duas.Embora os pontos da cidade separem travestis emulheres profissionais do sexo, há áreas onde elasse confundem. Numa das ruas próximas ao terminalSantana, na Zona Norte, um grupo de travestisse aproxima assim que vêem o carro do Grupo PelaVidda/SP. Entre elas, uma carrega um pênis desilicone na mão. “São mulheres que para disputarcom as travestis exibem um pênis artificial. Destaforma, podem satisfazer homens que procuram umpênis e que também querem uma relação vaginal”,explica Irina. Em outras palavras, essa prostitutaestá dizendo que o cliente pode ter um homem euma mulher ao mesmo tempo.O carro retorna à região central pela rua MajorSetório e para no farol da avenida Amaral Gurgel. Emfrente ao hotel da esquina está Paulinha, uma travestide pernas compridas e brancas, vestido negro muitocurto, cabelos chanel e uma imobilidade que destacamsua altivez. Lembra uma esfinge guardando aporta de um palácio. “Olá, Paulinha, leva essas camisinhapara as amigas”, diz Paulo. Paulinha já é conhecidado CRD, faz a ponte levando as “meninas” paraconhecerem o Centro.O carro passa debaixo do elevado. O minhocão,que se estende sob a Amaral Gurgel e a São Joãocomo um tapete negro, separa dois mundos que nãose conversam. “É a nossa Faixa de Gaza”, diz Irina.De um lado, as ruas que saem dos entornos da SantaCasa e levam para a segurança do bairro deHigienópolis, dos shoppings e ao movimento iluminadodas avenidas Consolação e Angélica. Do outro, osprédios maltratados e as calçadas tomadas por “estrangeiros”e travestis, ruas que avançam pelo Largodo Arouche e desembocam nas esquinas das ruasAurora e Santa Efigiênia, onde se misturam viciadosem crack e mulheres da noite.O último trecho a ser percorrido é a rua doArouche. “Este é um ponto de michês”, avisa Paulo.São sete ao longo da rua, todos aceitam as camisinhas.“Fazem programas com homens, eles podemser gays ou heterossexuais”, diz Irina. Alguns exibemo peito musculoso. Outros se vestem e se portam comoum cidadão comum. Um deles pede apenas três camisinhas.“Esses querem só fazer um programa, reunirdinheiro para uma balada ou para a droga.” Paraquase todos, Irina pergunta sobre a droga. “Tomemuita água. Só padê [gíria para cocaína] não dá.”Dois outros têm traços de adolescentes, menores de18 anos. Irina oferece o folheto do CRD e diz que látambém recebe menores de idade. Os dois meninosse olham, riem e dizem: “pô, vamos aparecer lá.”O carro passa pela praça da República, movimentada,quase meia noite. “Essa é uma área que concentramichês que ao mesmo tempo são marginais e assaltantes.Nunca conseguimos fazer um trabalho deprevenção ali dentro.” A avenida Vieira de Carvalho,um dos pontos de gays mais conhecidos da cidade,está com os bares e as calçadas animados. Reina alium clima que mistura paquera, brincadeiras, abraços,uma confraternização de gays e travestis.


Leo Moreira, 52 anos“MEU NOME artístico é Leo Moreira,tenho 52 anos, sou um homem trans.Já fui baterista da banda Mercenáriasquando ainda era Lu Moreira. Hoje façoteatro. Tive problemas com drogas, vireidependente, me pegaram com ummonte de ecstasy. Passei cinco anospreso. Foi o curso de Ciências Sociaisda USP que me salvou. Não terminei,mas dentro da cadeia virei professor.Por isso sobrevivi.”Leo Moreira faz parte do elenco dapeça “Hipóteses para o Amor de Verdade”,em cartaz no teatro Satyros 1,escrita a partir de depoimentos de travestis,transexuais, traficantes e moradoresanônimos do centro da cidade.Dos oito atores, quatro são transexuais.É certamente a peça em cartazcom o maior número deles, ou delas.Além de Leo, homem trans, três outrassão mulheres trans, entre elasEsther Antunes, que durante muitosanos atuou segundo seu masculino biológico,e Phedra De Córdoba, transexualcubana que desde 2002 é uma referênciano Satyros.A transexualidade da peça foi um elementoque ganhou força a partir dosdepoimentos. O “Hipóteses para umAmor de Verdade” estava em cartazem junho de 2010 e deveria continuar,sempre de sexta a domingo, a partir das9h30 da noite. Leo chegou mais cedono sábado combinado para a entrevista.Cabelos descoloridos, barbicha preta,mochila nas costas, era difícil ligar opersonagem ao entrevistado. Conversamosnuma das salas do primeiro andardo teatro. Do lado de fora chegavamconversas animadas da calçada dapraça Roosevelt e o som de Gonzagãoe Dominguinhos. Era festa Junina naIgreja da Consolação, bem ao lado, etradições de um Brasil inteiro se apertavamali no canto mais paulistano esem identidade da cidade.“ Foi nacadeia queme definicomohomem”Leo foi condenado em 2004, passoupor várias cadeias e penitenciárias femininas,porque no sistema conta o queestá no papel, Lourdes Helena MoreiraSantos. “Hoje sou Leo, mas tenho orgulhodo meu passado de Lu. Eu medefini como homem trans dentro dacadeia, lá não tem meio termo. Atéentão era uma mulher andrógina, massempre fui do gênero masculino. Nomundo classe média, dos Jardins, daUSP, onde vivia aqui fora, eu podia sero que eu era. Lá dentro, no mundo docrime de periferia, você é homem ou émulher.” Barba no rosto e sarado pormusculações e hormônios, Leo diz quecaiu nas cadeias femininas como o objetode desejo de todas. “Achavam queera agente penitenciário, quando descobriramque era sapatão, foi uma loucura.Me casei três vezes, casamentomesmo, machista, regras a seremcumpridas. Talaricou, olhou para amulher do outro, é punição na certa,apanha mesmo. É a reprodução daopressão, uma loucura.”Em 1996, Leo e a travesti GabrielaBionda protagonizaram um dos casamentosmais “tricotados” no meio. Umcasamento às avessas, na igreja e nocartório, ele com o nome oficial feminino,ela com seu registro oficial masculino.Nada de errado diante de Deus,nem diante dos homens. “Era um homemcasado com uma mulher, umamulher casada com um homem, masera como se fôssemos quatro. Acho queo grande lance da transexualidade évocê ser um duplo, transitar pelos gêneros.A transexualidade é um terceirogênero. Acho que existe o gêneromulher, o gênero homem, e o gênerotransexual, que poderia ter um outronome. Por que as transexuais não gostamde se assumir como transexual.Porque lá no código internacional dedoenças está escrito que transexualismoé doença. E não somos doentes.”Ao deixar a cadeia, transexual, semamigos nem trabalho, sem as referênciasdo movimento feminista lésbico doqual participou, nem as leituras de Simonede Beauvoir e Susan Sontag, Leoconta que saiu em busca de novos gruposque pudessem acolhê-lo. Foi naAssociação da Parada e no Centro deReferência da <strong>Diversidade</strong>, entre váriosoutros, que está reencontrando erefazendo os caminhos.Leo ainda não entrou na Justiça paramudar seu nome nos papéis e só encontrouajuda médica no ambulatóriode travestis e transexuais da rua SantaCruz. “Eu não tinha coragem de procuraruma ginecologista, e eu precisava.No ambulatório faço tratamentohormonal, a médica me receita umadose, eu ponho mais duas. Ela está certa,a gente não pode enlouquecer, astravestis são loucas por hormônios,querem resultados imediatos.”A DIVERSIDADE REVELADA71


A “festa” dos craqueirosANESTESIADOSE ESQUECIDOS


Centenas de crianças e adultos, amontoados nas calçadasda Santa Efigênia, sequer notam a passagem da van doGrupo Pela Vidda/SP. Nem se importam com as travestis eprostitutas de seios imensos que se oferecem nas esquinas.A pedra de crack “brochou” seus clientes e revelou ofracasso de projetos sociais e políticos.Sexta-feira, 11 de junho, véspera do dia dosnamorados, abertura dos jogos da Copado Mundo, e a van do Grupo Pela Vidda/SP começa o percurso de rotina. Desta vezé Irina quem dirige a camioneta e João é oparceiro nos contatos e distribuição do gellubrificante e dos preservativos. Cai uma chuva finae os termômetros da rua marcam 14 graus. Sob amarquise na esquina das ruas Rego Freitas e MajorSertório, Irina conta dez travestis, separa os pacotesde camisinha e gel. “O gel é o sachê azul”, ela explica,os tubos preferidos estão em falta. Algumas aproveitama chuva e o frio para desfilarem seus casacos,arriscam ar de nobreza, a maioria desafia o mal tempoe exibe tudo.No farol o carro é abordado por pedintes, um homempede uma moeda, Irina diz que só distribui camisinhas,ele pega a tira de cincos. “Valeu, vou pegarumas putas na cracolândia”, diz, e sai agradecendo.Na esquina seguinte um homem discute com três prostitutas,não são travestis; ele está bêbado, diz que quertodas de uma vez. Elas riem e dizem que ele “não dariaconta de um buraco, imagine de três.” A noite estáapenas começando. Os diálogos fazem parte da noitede uma região que já foi conhecida como a “boca doluxo”. No hotel da esquina da avenida Amaral Gurgel,onde sempre desfilavam as meninas que se hospedamali, não há ninguém nesta noite. Informam que umvizinho policial militar saiu de revólver em punho, ameaçandotoda travesti que se apresentasse na rua.O carro leva neste percurso 900 sachês e trêsvezes mais camisinha. Ainda é cedo, 10h da noite, ena rua do Arouche, onde ficam os michês, apenasum rapaz de toca colorida e óculos de aro fino, misturade Che Guevara com John Lennon, está à espreita.Ele aceita as camisinhas e diz que os colegassó chegam pela meia noite.O carro percorre um trecho da rua Santa Ifigênia,que durante o dia é tomada pelas luzes e pela multidãode compradores e camelôs, e que à noite, às escuras,vem sendo ocupada pelos meninos e adultosda cracolândia, expulsos dos quarteirões próximos.São dezenas sentados nas portas das lojas trancadas.Próximo à rua Vitória, a multidão lembra uma festa,são centenas em torno de algo que parece um carrinhode pipoca ou de cachorro quente. À distância,nada diferente de uma festa junina onde não faltasequer a fogueira, natural nessas semanas de junho.Um visitante não estranharia se dissessem que aquiloera uma festa de São João. Para aqueles participantes,é isso mesmo, o crack é uma festa. O carro passadevagar, com os letreiros do Grupo Pela Vidda/SPem destaque, e ninguém presta atenção. “Depois dameia noite, serão centenas e centenas, pequenos seresmisturados com adultos que não ouvem nem reagem.É a festa que reflete a falência de todas as políticaspúblicas tentadas naquela região”, diz Irina.O carro percorre as travessas com esquinas onde seapresentam grupos de travestis de seios imensos e nádegasà disposição. Reconhecem a van do Grupo PelaVidda/SP e se aproximam conciliadoras, agradecidas.Já na Zona Norte da cidade, o carro enrrosca no engarrafamentodiante do terminal Tietê. João e Irina comentamsobre o chamado que receberam no meio daA DIVERSIDADE REVELADA73


“Quem descumpriu o acordo recebe um ‘doce’, uma giletada norosto ou uma paulada para estourar a prótese do seio”tarde, alguém informando que um homem gay estavatrancado em casa há dias, sem comida nem cuidados, eque corria risco de morte. A equipe do CRD conduziuo homem a um hospital e o diagnóstico mais provávelfoi síndrome do pânico. “Convidamos ele para umacaminhada pela rua, ele se recusou. Tinha medo de veras pessoas”, conta João, que participou da ajuda.Alguns dias atrás, o CRD foi informado de umatravesti moradora no extremo da Zona Sul com feridana perna que a prendia na cama. Talvez a perna tivessede ser amputada. A equipe do CRD conduziu-a aohospital mais próximo e o tratamento tirou-a da linhade risco. A ferida foi provocada por silicone industrialinjetado nas nádegas anos atrás. Outra travesti ligoudizendo que sua amiga estava morrendo, e que nãoconseguia socorro por parte do Samu. A equipe doCRD encontrou-a em casa precisando de ajuda médicae transportou-a para um pronto-socorro, de táxi. Otelefone do Centro de Referência da <strong>Diversidade</strong> esua equipe representa uma das mais importantescentrais de socorro para a população LGBT.Irina no volante conhece todas as travessas e pon-tos onde se protegem e se oferecem as travestis. Umrapaz que conversa com as meninas também quercamisinhas, mas recusa o gel. As meninas riem – “semgel, vai doer muito”, dizem –, enquanto o homemprotesta: “não sou dessas coisas”. “Com gel é atébom, deixa de preconceitos”, brinca uma delas. Encabulado,o rapaz aceita os sachês com gel.Nas suas paradas, Irina pergunta se há problemascom a cafetina, com os donos do ponto. “Tem havido‘doce’ na rua?”, quer saber. Elas dizem que não. Irinaexplica que “doce” é o termo usado para indicar brigaou retaliação entre elas. Se alguma se sente enganadaou traída, vai enviar um “doce” a quem lhe fez mal,ou descumpriu o combinado. “Uma giletada ou mesmouma paulada no seio, de forma a estourar a prótesede silicone, provocando um mal irreversível.” São geralmentedesavenças entre travestis por ocupação deponto, contas que não foram pagas à cafetina, e atritosentre travestis que são ao mesmo tempo cafetinas.Em geral, são elas mesmas as agressoras, mas podemser pessoas mandadas pelas cafetinas ou seus “maridos”,homens que se portam como donos delas.Na região central, usuários de crack se misturam às profissionais do sexo, afugentando os clientes


Camila Rocha, 20 anosCAMILA ROCHA, 20 anos, conheceu oCRD no final de 2009, levada por umamigo “gay”. “Gostei das duas Taís, aassistente social e a recepcionista. Foramelas que encontraram um lugar noalbergue, me encaminharam para oambulatório da rua Santa Cruz, derampasse de ônibus, conseguiram umasroupas de frio.”Camila é uma travesti forte, morena,com os seios que chamam a atenção,mas que as roupas improvisadas eos descuidos com os cabelos revelama falta de um abrigo e denunciam asprecárias condições em que vive. Jáfoi pior nesses dois últimos anos, quandodescobriu que era portadora doHIV e foi adoecendo com as noitesdormidas na rua e quase nada para comer.Hoje ainda divide as noites entrea calçada e os albergues. O namoradoque encontrou tem ajudado muito, eladiz. É por amor que os dois optarampela rua, conta Camila. “Ele conseguialugar no mesmo albergue que eu,mas tinha ciúmes porque eu era a únicatravesti no meio de tantos homens.Então preferiu vir morar na rua comigo.Lugar não falta, o frio a gente seacostuma, é só fugir da chuva.”Faz três meses que Camila vem sendoacompanhada no Ambulatório deSaúde Integral para Travestis e Transexuais,da rua Santa Cruz, encaminhadapelo CRD. “Antes eu ia no SAE doIpiranga, mas não gostei. Me chamavampelo nome de registro, na recepçãogritavam, ‘Rodrigo’, e lá apareciaeu como um homem vestido de mulher.Era uma humilhação. A infectologistavia na ficha que meu nomesocial era Camila, mas fazia questão deme chamar de Rodrigo, falava comigosem olhar na cara.” No Santa Cruz,Camila acompanha as taxas de CD4 e a“ Semcamisinhaé maisdinheiro;pediu,eu vou”carga viral, vai passar por proctologistae endocrinologista. “São as médicas delá que vão me dar hormônios, é issoque estou pedindo.”Camila morava em Fortaleza, começoua se prostituir com dez anos napraia de Iracema, aos 16 estava em SãoPaulo. “Nos três primeiros anos aquieu descabelei, era orgia todo dia, eu bebia,fumava. Foram quase dez anos semusar camisinha. Comecei de um anopara cá, porque me casei e meu maridoé sadio. Também fui diminuindo o númerode programas, porque na rua abebida e as drogas acabam com você.Sexo na rua é só para quem tem cabeça,o cliente te leva para a droga. Vocêestá precisando de dinheiro, devendopara a cafetina, aí um cliente chega comdroga e te oferece, ‘eu te pago tanto amais’, não tem bicha que não vai. OfereceR$ 300, R$ 400, ‘vem comigo,cheira comigo’, você vai. Quem conseguenão cair na droga, ganha muitodinheiro. Eu tirava R$ 500, R$ 600 pordia, dinheiro fácil, você tira isso comdois clientes; e como eu faço sem camisinha,posso cobrar mais. Só usoquando o cliente exige, ele não precisasaber que tenho o vírus. Não informo,mas tenho camisinha na bolsa. Quandoeles dizem, ‘eu pago tanto sem camisinha’,aí eu vou, é mais dinheiro, eu estouprecisando.”Camila reduziu muito o uso de drogasdesde que passou a frequentar oCRD. “Viver com um companheirotem me ajudado muito, antes eu trabalhavaum dia para comprar pedra nooutro, não tinha motivação. Agora estouquerendo me cuidar, ficar bonitapara mim e para ele. Arrumar um cantoe um emprego. Sempre quis ser enfermeira.O CRD vai me arrumar umaescola e assim que eu terminar, vai mecolocar num curso do Senac.” Em muitasdas tardes que passa no CRD,Camila está acompanhada do namorado,como acontece com várias outrasusuárias. A porta do Centro não restringeninguém. No início da noite, osdois saem em direção a um albergue.Ou vão em busca de alguma marquiseque possa abrigá-los.A DIVERSIDADE REVELADA75


JOVENS EDETERMINADASMaioria das travestis diz não“precisar” de cuidados médicosO número de travestis que procura os serviçosde saúde é apenas uma parcela daquelas que estão na profissão.A grande maioria acha que está bem e se “resolve” na farmácia.A equipe do CRD-Grupo Pela Vidda/SP informa, nas “visitasnoturnas”, sobre prevenção, cuidados médicos e o ambulatório doCRT DST/Aids-SP, que a maioria diz ainda não conhecer.A DIVERSIDADE REVELADA76Na saída daquela noite, além da entrega dogel e da camisinha, a equipe procura sabermais sobre a saúde das travestis einformá-las sobre os serviços disponíveis.“Quando você está doente, em qual hospitalou posto de saúde você vai? E comovocês são tratadas?”, a equipe pergunta.O número de travestis trabalhando na rua é pelomenos 20 a 30 vezes maior que aquele que procuraos ambulatórios de especialidades e mesmo o Institutode Infectologia Emílio Ribas. Não há estudosmostrando onde e como se cuidam essas profissionais,mas as respostas nas ruas deixam entender quea maioria não é acompanhada em serviço algum. Buscamajuda quando não se sentem bem, em prontosocorrosou farmácias.“Você sabe que São Paulo tem um ambulatório sópara travestis?”, pergunta Irina. Ela explica que podemmarcar consultas nesse ambulatório por meio doCRD, serão cuidadas por endocrinologistas que informarãosobre o uso de hormônios, podem contarmesmo com fonoaudióloga, para melhorar a voz. “Arrasou,quero ir lá”, diz uma. “Nunca soube dessascoisas”, diz a maioria.Nos serviços de Atenção Básica e hospitais geraisainda é muito comum transexuais e travestis seremchamadas pelo nome do registro civil, provocandoconstrangimento e o afastamento de usuárias. “Jádeixei de procurar médico para não passar vergonha”,diz Analise. Nos SAEs, os Serviços de AtençãoEspecializada em DST e aids, os funcionáriosforam preparados para esses cuidados, embora àsvezes ainda escorreguem. “Nos Campos Elísios e noEmílio Ribas sempre me chamam pelo nome de travesti”,diz Brígida. “Eu? Faz quatro anos que nãovejo um médico”, diz outra.A equipe vai distribuindo camisinhas e gel enquantopergunta sobre os cuidados em saúde. Sabe-se poucosobre as poucas que procuram os SAEs, os ambulatóriosdo CRT DST/Aids-SP e aquelas que aparecemno CRD. E não se sabe nada sobre esse imenso universode travestis jovens, que trabalham na rua ou pelaInternet, e que ainda não tiveram problemas de saúde.As que se referem ao Emílio Ribas, e não sãopoucas, é porque já estão em tratamento para o HIV.Mas a maioria exibe juventude e saúde, muitas recémdesembarcadas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Sentem-se recompensadas pelos R$ 1 a 2 mil


que reúnem por mês, já descontadas as taxas dacafetina e gastos com um quarto e alimentação. Nuncaganharam tanto.A cada grupo que se aperta na janela da van, João eIrina perguntam sobre cuidados com a saúde e seconhecem o ambulatório do CRT DST/Aids-SP, narua Santa Cruz. E se já estiveram no CRD, na ruaMajor Sertório. A grande maioria diz que não. Paciente,Irina entrega folhetos e passa as informações básicas.Muitas delas falam do SAE Campos Elíseos, afirmandoque são chamadas pelo nome social. “Lá eusou Aline, sempre fui bem tratada”, conta uma travesti.Pela sua localização na região central, dentrode uma área com alto índice de prostituição, o serviçorecebe um grande número de travestis, oferecendoum acolhimento responsável. A maioria, no entanto,diz não conhecer o grupo de travestis que sereúne ali a cada semana.A desinformação parece ser comum entre elas,mas as respostas permitem pensar que as notícias sobreos serviços estão correndo muito rapidamente, bocaa boca. Quando numa esquina uma conhece o ambulatórioda rua Santa Cruz, as outras também dizemque já estiveram lá. Quando uma não conhece, o grupotodo também diz que nunca ouviu falar. “A gentetem direito a isso?”, pergunta uma que se interessoupelo tratamento com hormônios. “Aqui está o nossofolheto da Major Sertório”, diz Irina.“Você vai lá e agente agenda a consulta. É a partir da 1h da tarde.”As perguntas e respostas continuam, nenhuma senega a falar. “No pronto-socorro, quando dou meudocumento, eu digo logo, olha aqui, meu nome é Ciça.Nunca passei constrangimento porque dou um baileneles. Aviso que se me chamarem de outro jeito, eufaço um escândalo”, diz. “Nos Campos Elíseos sempreme chamaram por Nicole. Amanhã vou lá pegar oresultado de um exame, que fiz 15 dias atrás. Não estoucom medo, tenho me cuidado.” “Só faz um mês e22 dias que estou em São Paulo, ainda não conheçonada”, diz Natasha, guardando um folheto na bolsa.À medida que o carro percorre os pontos de travestis,novas caras se dependuram na janela em buscade gel e camisinha. “Inclusive estou tomandomuito anticoncepcional, está me fazendo mal”, dizuma. “Você pode me indicar um médico?”, diz.“Moro no centro, vim de Belém do Pará com maisduas. Fico na casa da cafetina, a Marcela.” “Por quevocê não trabalha no Centro, se mora lá?”, perguntaJoão, que já sabe a resposta. A equipe de encontranuma travessa da rua Voluntários da Pátria, na ZonaNorte. “Porque no Centro o trabalho é nos cinemas, 77A DIVERSIDADE REVELADA


Equipe do CRD-Grupo Pela Vidda/SP roda a cidade para levar informação e insumos de prevençãoA DIVERSIDADE REVELADA78eles pagam muito barato, 10 reais, 20 reais. Aqui agente pega 50, 60 reais, num drive, num hotel. Nasruas do Centro, na Rego Freitas, a gente não pode irporque tem os donos da rua. Na avenida Indianópolis,é impossível.” Com os melhores pontos dominadospor cafetinas e cafetões, em muitos casos protegidospor policiais, as que chegam de fora têm que se iniciarnas avenidas de bairros.Algumas quadras adiante, Larissa e Ellen dizemque estiveram no ambulatório da rua Santa Cruz. “Fuiatendida super bem”, diz a primeira. “Só fui para tomarvacina”, diz a outra. “Eu nunca precisei de médicos,nunca fui”, diz Bianca, que aparenta bem menosque os 18 anos que anuncia. Quando ouve falar dehormônios, ela abre a blusa e exibe dois seios de menina.“Meu sonho é colocar prótese”, ela diz.João explica que ela pode ser encaminhada paraserviços que só cuidam disso. “Tenho certeza que vocêquer um volume maior”, diz, como se estivesse falandoda saúde de uma filha adolescente. Faz dois mesesque Bianca está em São Paulo e ainda não precisounem procurou ajuda médica. Nem a colega: “Há quatroanos que vim de São Luis do Maranhão. Nuncafui ao médico. Se tenho uma dorzinha, vou à farmáciae me resolvo.”Sempre que um grupo se junta na janela do carro,Irina explica que o CRD e o ambulatório podem oferecernão só cuidados médicos, mas também assistênciajurídica em caso de brigas, de disputa com cafetões,pagamento de aposentadorias. “Se tiver algum ‘doce’,a gente também pode ajudar”, diz.A maioria é jovem e se mostra mais interessada napossibilidade de receber hormônios, quer formas maisfemininas, e depressa. Não tiveram ainda problemas comsilicone, nem precisaram de outros cuidados médicos.São saudáveis e estão na melhor idade, e querem mais.“No CRD vocês vão se sentir à vontade”, diz Irina.“São pessoas como vocês que estão lá. A recepcionistaé travesti, a assistente social é transexual, a psicóloga élésbica, entre as educadoras sociais têm transexuais, travestis,gays e rapazes que foram michês.”As “meninas” parecem não acreditar, a vida quelevam tem apenas exclusão e discriminação. “Vou láa semana que vem”, dizem várias. E se despedemcom os olhos atentos nos carros que passam devagar,mexendo os quadris nus e exibindo os seios.


Claudia Coca, 42 anosCLAUDIA COCA é uma travesti que percorrepontos de prostituição e baixosde viadutos oferecendo a mão paraquem precisa de ajuda. Não é uma formade dizer, é uma rotina cumpridavários dias por semana nos locais maisesquecidos, fétidos e escondidos dosbairros centrais. Quem vê aquela negraatraente, de cabelos curtos, cinturatorneada e seios empinados, não imaginasua história de travesti, drogada,prostituída, ladra, traficante, presidiária,bombadeira.Coca é hoje uma “agente comunitária”do Centro de Referência da <strong>Diversidade</strong>.Recebe o bastante para pagarum quarto na região central, recuperara dignidade, “parar de roubar etraficar”, como ela diz. O suficientepara envolvê-la num trabalho que háquase dois anos vem mudando sua vida.“Foi minha oportunidade de sair da ruae das drogas”, ela diz.Para o CRD, foi a prova de que investire confiar nas pessoas que maisprecisam de ajuda, e que vivem emsituação de maior risco, é um caminhodigno para conquistá-las. Por meio delas,fica mais fácil chegar ao submundoda prostituição e da noite, um universopouco conhecido, que foge a qualquertipo de aproximação e vive semacesso aos serviços.Claudia Coca, 42 anos, carrega a identidadede Edvaldo Marques Cabral.“Nasci homem, tenho órgãos masculinos,não perco minha identidade. Queromeu pênis e com ereção. Mas gostariade ter também uma vagina bemgrande.” Coca saiu do Recife com 14anos, em carona de caminhão pelasBRs 101, 102, 107, fez Fortaleza, JoãoPessoa, Brasília, Bahia, Rio. “As BRsforam minha estrada, minha escola emeu local de trabalho.”Nos 20 anos que separam sua chegadaa São Paulo e o contato com o CRD,em 2008, aconteceram “muitas cadeias,duas tuberculoses, o HIV”. “Morei empensão, albergue, flat, na rua, embaixodas pontes.” Coca ficou oito anos emmeia dúzia de presídios por tráfico e usode drogas. “Nas cadeias masculinas astravestis são bem recebidas, só não podembrigar, discutir, nem matar; é sólavar uma roupa, fazer uma ativa, tratareles bem, ficar bonita, e eles ficam felizes.Imagina 10 mil homens carentes euma bicha chegando com um peitão.Eles cuidavam de mim, me protegiam.”Para a história de Coca, o CRD foi“uma clínica”. “Nenhum outro tratamentome mudaria tanto, porque aquime deram responsabilidades, tive oapoio e a confiança de toda a equipe.Eu digo que tem Deus no céu e a Irinana terra (Irina Bacci é a coordenadorado CRD), foi ela que acreditou em mim.Se não estivesse aqui, estaria roubandopara comprar droga.”A rua ensina muito, Coca costumadizer. “Nesses anos todos, aprendi aconhecer prostitutas, travestis emichês que circulam por essas ruas. Sãodiferentes no jeito de viver, mas iguaisno sofrimento e nas necessidades. Somostodos uma grande família.”Mas quando se aprende alguma coisadiferente, não se consegue viver comose vivia antes. “A tuberculose me ensinoua tomar remédio na hora certa,“ Não queria outravida para mim”depois veio a aids. O trabalho no CRDme fez dormir mais cedo para acordarno outro dia. Dois anos atrás eu levantavapara fumar crack, hoje não queroque passem pelo que passei.”Coca diz que já consegue enxergara vida além da prostituição e das drogas.“Vai chegando os 50 anos e ninguémte quer mais. Sem oportunidade,sem ajuda, vai para o tráfico, vairoubar, matar. Dizer que uma prostitutaou um michê vai deixar essa vidae aceitar trabalhar de servente de pedreiroou doméstica, é mentira. Senão juntou dinheiro, vai acabar na ruaou na cadeia.”A vida não é tão ruim assim, Coca costumadizer, tentando brincar com suaspróprias histórias. “A vida de prostituta,de travesti, de michê, tem o lado bomdo sexo. Quem imagina fazendo isso sópor dinheiro, não vai conseguir, porquesem tesão dói muito. Fazer sexo, dandoou vendendo, tem que ser por prazer.Com o trabalho no CRD, o sexo ficoupara o final de semana. É bom estar emcasa com alguém, tomar banho junto,dormir assistindo televisão...”.Pouco tempo depois de dar este depoimento,Coca faleceu no dia 10 de setembrode 2010, aos 43 anos. “Por quantotempo ainda contaremos nossos mortos,por quanto tempo ainda seremos militantespela dor dos nossos pares que sevão? A irreverência que nasceu Edvaldo,hoje morre Coca, a irreverência que nosensinou que a vida é maior do que a lutapelo direito de sermos diversos, hoje nosensina que a diversidade se iguala namorte”, escreveu Irina Bacci, coordenadorado CRD-Grupo Pela Vidda/SP, emnota de homenagem à Coca.A DIVERSIDADE REVELADA79


Mila Alves dos Santos, 30 anosA DIVERSIDADE REVELADA80MILA tem o corpo esguio, traços aparentementefrágeis, os cabelos tingidosde loiro. Usa blusa listrada bem curta,sem manga, e um short também curto,com laços nas laterais da coxa, as sandáliassão brancas. Numa tarde do iníciode maio, Mila entra no espaço do CRDagitada, falando alto, estava voltando dosupermercado próximo. “Gente, crieium ‘bafon’, uma moça riu na minha cara,era uma negra bonita, mas descarada,tinha uma revista na mão e apontava paraa colega como se estivesse mostrandoalguém, ‘olha o cabelo dela, olha’, diziae ria, ‘olha os músculos dela, olha oshortinho dela’, ria e olhava para mim.Até a menina do caixa, que me conhece,avisou, ‘ela está rindo de você’. Eudisse, ‘ela vai ter o troco’.”Na sala do CRD tomo mundo ouvia.“Quando a moçoila depositou a comprano caixa, simplesmente me aproximei,peguei um dos seus iogurtes, sabormorango, e estourei o pote na caradela. O caldo rosado escorreu pelo narize pela blusa. Agora ela vai pensarmelhor antes de botar seu preconceitopara fora.”“São mulheres infelizes”, comentoua recepcionista Thaís. E os que estavamna sala aplaudiram Mila. “Isso deprovocação já foi mais forte. Vivo noItaim Paulista, pura periferia, morocom meu esposo, lá mexem menos,respeitam mais. Mas essas coisas aindaacontecem. Não sou de briga, masnão levo para casa.”Mila Alves dos Santos, 30 anos, jáfoi muito de briga. Era prostituta nocentro, bebia e usava drogas, roubavaos clientes, fazia sequestros relâmpagos,já pegou cadeia. Ficou conhecidacomo Mila Citroen, porque os novecarros que sequestrou, levando seusmotoristas para caixas eletrônicos, todoseram Citroen. “Uma coincidência,mas me botaram esse nome.” Noúnico sequestro com cativeiro queparticipou, a polícia a pegou dormindoenquanto guardava a vítima. Pegouquatro anos e dois meses de cadeia.Tinha 19 anos. “Hoje esse nome nãovale mais”, ela diz, querendo contarcomo deixou esse mundo do crime.“Minha amiga Baby um dia me convidoupara entrar no CRD. Pensei queera só um lanche, como ela dizia, masdescobri que ali tinha atendimento psicológico,vi os computadores comInternet, tinha sanitários. As pessoasqueriam conversar comigo. Foi um estalo,eu decidi que queria voltar ali. Eassim começou minha mudança. Isso foipor volta de 2 da tarde de um dia desetembro de 2009, não vou mais esquecer.Foi por causa da Baby, mas elaainda não conseguiu deixar a droga, agente fala muito sobre isso. Eu fiz cursode auxiliar de cabeleireiro, faz 15 diasque ela também começou.”Mila viveu “11 anos na droga, na pistae na putaria, fazia programas porR$ 5 ou R$ 10 para comprar crack”.“Já vinha de muita estrada, sou doCeará, passei pelo Rio, Belo Horizonte,Campinas, estou aqui há 19 anos.“ A Mila Citroen hojeé a Mila do bem”A gente do CRD que me puxou para avida, ainda guardo umas lembrançasdas confusões que aprontei aqui dentro,mas era por causa da abstinência.Hoje sou uma pessoa tranqüila, sou aMila do bem.”Mila vive com o “esposo” Igor, ajudantede carga e descarga, que estavanoivo quando se decepcionou e a encontrou,“esta é a história que ele meconta”, diz ela. A família de Igor já foiapresentada, “nada contra”. A famíliade Mila é de Juazeiro do Norte, faz 15anos que não vê.A droga ainda é uma tentação queronda, “mudei meu cotidiano para fugirdela”, conta. “Hoje sou auxiliar decabeleireira, faço supletivo, segundoano do segundo grau, das 6 da tarde às9h30 da noite. Nesse horário eu estavana pista, na droga. Quando a vontadevolta, eu procuro ajuda.”Mila diz que hoje vive com trocadoscontados, mas que não tem saudade dostempos que carregava na bolsa R$ 3 mile oferecia às colegas kits de drogas ebebida. “Eu pegava cliente cheio dagrana e roubava mesmo, não vou mentir.”Ela fala como uma convertida.“Hoje, se eu ganhar um real, vou dargraças a deus, porque é o meu suor.”O CRD continua sendo o ponto dereferência. Foi encaminhada ao ambulatóriodo CRT DST/Aids-SP, já passoupor proctologista, endocrinologista e clínicogeral. “Amanhã tenho fonoaudiologia,cada dia estou gostando maisda minha voz”, diz.


Realização:Apoios:Departamento de DST, Aids e HepatitesVirais, do Ministério da SaúdeSecretaria Municipal de Assistência Social

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