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Elogio Fúnebre do Professor João Pedro Gardez - Biblioteca Virtual ...

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JOSÉ DE MESQUITA(Do Instituto Histórico de Mato Grosso)JOSÉ DE MESQUITA<strong>Elogio</strong> Fúnebre <strong>do</strong><strong>Professor</strong> João <strong>Pedro</strong> <strong>Gardez</strong>(Proferi<strong>do</strong> em sessão <strong>do</strong> Instituto Histórico de Mato Grosso a23 de Janeiro de 1927)José Barnabé de Mesquita(*10/03/1892 †22/06/1961)Cuiabá - Mato Grosso<strong>Biblioteca</strong> <strong>Virtual</strong> José de Mesquitahttp://www.jmesquita.brtdata.com.br/bvjmesquita.htmCuiabáRevista <strong>do</strong> Instituto Histórico de Mato GrossoAnno IX — Tomos XVII a XVIII19272


<strong>Elogio</strong> Fúnebre <strong>do</strong> <strong>Professor</strong> João <strong>Pedro</strong> <strong>Gardez</strong>Mais uma vagaRaro tem si<strong>do</strong> o anno, desde a fundação <strong>do</strong> Instituto,que no seu decurso não abra um claro em nossas fileiras. Em1920 — primeiro anno de vida social — perdíamos o <strong>do</strong>utorAntonio Corrêa da Costa, figura de intellectual to<strong>do</strong> volta<strong>do</strong>para os estu<strong>do</strong>s de historia e de quem muito o nosso sodalíciotinha a esperar si tão ce<strong>do</strong> não o arrebatasse a morte; annoseguinte, 1921, <strong>do</strong>is confrades nos eram leva<strong>do</strong>s pela rondanteeterna que vive a fazer-nos as suas <strong>do</strong>lorosas sortidas — oArcebispo D. Carlos Luiz d’Amour, hierático vulto <strong>do</strong>episcopa<strong>do</strong> e tradição de cultura e fidalguia, e Modesto deMello, modesto que o era de facto e não só de nome, masestudioso observa<strong>do</strong>r de nossas cousas e bom amigo de Matto-Grosso; em 1925 o General Caetano de Albuquerque, patríciodigno pela illustração e probidade inatacável desertava também,improvisamente, seu posto no meio de nós, deixan<strong>do</strong>-nos ovácuo de uma profunda e justíssima saudade...1926, que ha pouco attingiu o seu termo, golpeou-noslogo de começo, no seu primeiro quartennio, a 3 de Abril, coma morte de João <strong>Pedro</strong> <strong>Gardez</strong>, sócio funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Instituto, acuja memória me cabe render, de accor<strong>do</strong> com os nossosEstatutos, o preito senti<strong>do</strong> da nossa homenagem fraterna.E o faço com indissimulável commoção pois que paramim, como para muitos de vós aqui presentes, <strong>Gardez</strong> foi mais<strong>do</strong> que o confrade veneran<strong>do</strong>, pela idade e pela erudição, mais<strong>do</strong> que o amigo bemqueri<strong>do</strong> pela affabi-3JOSÉ DE MESQUITAlidade e lhaneza de trato, — foi o mestre bon<strong>do</strong>so e dedica<strong>do</strong>, oprofessor illustra<strong>do</strong> e modesto, operário humilde que levou asua pedra para a edificação da nossa cultura e em cujo nobreexemplo de assiduidade, correcção e dedica<strong>do</strong> ao ensino vimoso mais formoso paradigma <strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r, a servir de espelho ásgerações que se lhe seguirem.A sua lembrança merecerá para nós que o tivemos pormestre um culto sempre enterneci<strong>do</strong> e a sua figura austera esimples se casará sempre em nosso espírito, á evocaçãoinextinguível <strong>do</strong>s melhores dias da nossa vida, os dias distantesda a<strong>do</strong>lescência feliz e descui<strong>do</strong>sa que abre, nos horizontesindecisos e nebulosos da existência, a álacre madrugada <strong>do</strong>sonho e da esperança... Estou a vel-o e a ver-me, vai por maisde 20 annos, na sala de estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Collegio São Gonçalo, naaula de inglez, senta<strong>do</strong> na cathedra singela, a explicar-nos aarrevezada prosódia da língua britannica, com aquella suaeterna bonhomia, estereotypada no gesto typico de alisar asbarbas e na interjectiva “ora, pois...” com que entremeava assuas explicações e passava de um a outro ponto da disciplina.Tu<strong>do</strong> nelle era simplicidade, desatavio,despreoccupação, desde o trage até andar, desde a postura até ogesto, desde a expressão da voz até a maneira de commentar osfactos e desenvolver as licções.Disse alguém que ávida <strong>do</strong> homem se resume empoucas, quatro ou cinco impressões fortes da a<strong>do</strong>lescência , quese vão repetin<strong>do</strong> pela vida afora. Bem posso affirmar aexactidão desse conceito. Em <strong>Gardez</strong> fixou-se-me o “typo” <strong>do</strong><strong>Professor</strong>, <strong>do</strong> didacta escrupuloso, <strong>do</strong> fiel cumpri<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s seusdeveres e, pelo decurso <strong>do</strong>s annos, não me é possível evocarsob outro aspecto a figura <strong>do</strong> velho mestre que se me nãodepare ante a visualidade mental o queri<strong>do</strong> e sau<strong>do</strong>so <strong>Professor</strong>que soube, co a sua proverbial paciência e habilidade, re-4


<strong>Elogio</strong> Fúnebre <strong>do</strong> <strong>Professor</strong> João <strong>Pedro</strong> <strong>Gardez</strong>conciliar-me com o áspero idioma saxão que ainda hoje se meapresenta aos olhos d’alma menos no fulgor das estrophes deByron ou na mordacidade irônica de Swit que na linguagemsingela e correntia <strong>do</strong> velho francez que mó ensinou a conhecere amar.A flor da vidaDigamos-lhe da vida, em ligeiro transumptobiográphico, da vida silenciosa e apagada, pois <strong>Gardez</strong> jamaisse preoccupou com o la<strong>do</strong> externo das cousas e foi daquelles aquem bem se applica o verso com que Macha<strong>do</strong> de Assiscelebrou o gênio de Spinosa:“. . . grave e solitário.Sob o fumo de esquálida candeia.Nas mãos a ferramenta de operário,E na cabeça a coruscante idéia.”<strong>Gardez</strong> viveu da vida interior que é, ainda hoje, empleno século <strong>do</strong> tumulto e da febricitante actividade, averdadeira vida, digna de ser vivida.No seu grave semblante, no seu diapasão grave da falla,no conceito seguro e, ao mesmo tempo, lento ao exprimir-se,elle realizava á perfeição o typo <strong>do</strong> homem que vive dentro deuma idéa e por elle se deixa conduzir... Havia em to<strong>do</strong> elle aexpressão serena de um sábio vestida da apparencia fria e rudede um philosopho estóico. E ao encaral-o sempre me vinha aidéa a influencia que em to<strong>do</strong> o seu ser exerceria uma profundae remota ancestralidade de camponeses e trabalha<strong>do</strong>resdaquella formosa e velhíssima gleba <strong>do</strong> Langue<strong>do</strong>c que o viunascer.Oh ! como se me radica no espírito cada vez mais,através <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s e da observação <strong>do</strong>s annos que passam estasimples verdade que synthetisa toda a theoria5JOSÉ DE MESQUITAda evolução physica e psychica da humanidade: — o homem éo producto de innumeras gerações que o precederam, aresultante <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> ancestral a que se liga pela lei dacasualidade, como, pela mesma lei, se liga ao futuro,des<strong>do</strong>bran<strong>do</strong>-se na sua descendência ! <strong>Gardez</strong> nasceu napequenina aldeia de Lausonne, tão que a não registam os Atlas,perto de Le Puy, no departamento <strong>do</strong> Alto-Loire, pertence áantiga província <strong>do</strong> Langue<strong>do</strong>c, a que Michelet consagra asmais bellas páginas <strong>do</strong> “Notre France”, evocan<strong>do</strong>-lhe oprestigio <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> distante que se vai entroncar nos Romanose nos Iberos.É ali onde se vêm ruínas sobre ruínas, forman<strong>do</strong> porassim dizer verdadeiras camadas históricas e estratificações deorganismos sociaes fossiliza<strong>do</strong>s, nessa terra de poesia e desonho, a extravasar-se nos felibres <strong>do</strong>s trova<strong>do</strong>res, <strong>do</strong>s poetas<strong>do</strong>s jogos floraes que vêm desde Guy de Fibrac e Jacques deRomieu ao cantor extraordinário da Mireille; ali onde os“camisards de Luis XIV se sobrepõe aos albigenses de Simãode Monfort, os saracenos aos go<strong>do</strong>s, estes aos romanos eiberos” e onde parece pairar o vago perfume orientalista dasCruzadas; ali, no coração heróico da velha França meridional,junto quasi á muralha granítica <strong>do</strong>s Cevennes, perto da lendáriaBourges, que, a 31 de Agosto de 1844, nasceu João <strong>Pedro</strong><strong>Gardez</strong>, filho legitimo de João Cláudio <strong>Gardez</strong> e Joanna MariaSavin, filhos aquelle de Joanna Maria Bation esta de João<strong>Pedro</strong> Savin.Eram seus pais gente pobre, mas honesta, religiosa eestimada, como testificou, a 16 de Outubro de 1863, o curaBonneton, em <strong>do</strong>cumento que existe no cartório ecclesiástico,annexo aos autos de justificação de esta<strong>do</strong> livre feita em 1882.Alem <strong>do</strong>s attesta<strong>do</strong>s, consta <strong>do</strong> mesmo processo umacarta <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> cura de Lausonne, datada de 11 de Junho de1874, na qual se faz referencia ás duas6


<strong>Elogio</strong> Fúnebre <strong>do</strong> <strong>Professor</strong> João <strong>Pedro</strong> <strong>Gardez</strong>irmans de <strong>Gardez</strong>, Melania e Rosina e a um cunha<strong>do</strong> André<strong>Pedro</strong>. De sua vida anterior á partida para a América pouco sepode saber, sinão o que nos relata o mesmo Bonneton, cujotestemunho me permitto invocar a cada passo, pois sobre a suafidelidade, por ser o único que de sciencia própria, como coaldeão<strong>do</strong> nosso consocio, pôde esclarecer-nos tal phase da suavida, ha ainda na própria singelesa e segurança das informaçõesa melhor credencial a nos convencer da sua veracidade.Ouçamos o velho parocho, em cuja graphia se revela orústico e em cuja linguagem se evidencia o homem simples everdadeiro: “Eu, abaixo assigna<strong>do</strong>, cura de Lausonne, freguezia<strong>do</strong> Mosteiro (Monastier), Alto-Loire, certifico que João <strong>Pedro</strong><strong>Gardez</strong> sempre foi, antes de partir para a América, de boa vidae bons costumes, duma conducta regular e exemplar, quecumpria to<strong>do</strong>s os deveres religiosos e se approximava mesmofreqüentemente <strong>do</strong>s Sacramentos, que o mesmo partiu para aAmérica unicamente porque o quis e pertence a famíliahonesta, religiosa e estimada e goza na sua terra de geral estimae si a ella voltar será recebi<strong>do</strong> de braços abertos pelos seus paise to<strong>do</strong>s os que o conhecem”.Expressiva a mais não poder, essa declaração ingênua etocante <strong>do</strong> velho sacer<strong>do</strong>te illustra ao vivo os antecedentesfamiliares e a primeira phase da vida de <strong>Gardez</strong>.Ali se nos depara o ambiente <strong>do</strong> lar, aroma<strong>do</strong> pelavirtude e santifica<strong>do</strong> pelo labor, na pequenina aldeã deLausonne, nessa athmosphera meio rústica defrontan<strong>do</strong> a serrae a floresta, habitat de camponeses puros e honra<strong>do</strong>s, zonaonde, ao contacto sadio da natureza, se conservam intactas asvirtudes da raça e se apuram, no cadinho das adversidades, asqualidades nobres <strong>do</strong> individuo.JOSÉ DE MESQUITANunca mais voltou <strong>Gardez</strong> á sua terra natal, não realizoua previsão <strong>do</strong> velho cura, pois que elegeu por sua outra terra, ada sua esposa e <strong>do</strong>s seus filhos, a terra cuyabana a que deu aflor de sua vida, e que hoje se ufana em guardar em seu seiogeneroso os seus despojos queri<strong>do</strong>s...Boa e amorável terra cuyabana, que ainda elle conheceuna virgindade meio rústica de sua belleza primitiva, quan<strong>do</strong>aqui aportou pela primeira vez, a 26 de Julho de 1871, e quedecerto lhe trouxe viva recordação de sua aldeia natal, pelasimilitude de certos hábitos, pela rusticidade singela <strong>do</strong> meio,pela bondade acolhe<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s habitantes... boa e amorável terracuyabana, tu que és mãe até para os extranhos, foste para<strong>Gardez</strong> a segunda pátria, a pátria eleita, a pátria <strong>do</strong> coração e daintelligência, que, com tanto carrinho o acolheste e o prendestedurante cinqüenta e cinco annos, que, porcerto, lhe encheste avida, o pensamento, o affecto, deixan<strong>do</strong> bem pouco lugar para aoutra, a pátria de nascimento... Tem o amor desses mysterios edesses egoísmos: a esposa, a escolhida na maturidade, nãoabsorve toda a vida <strong>do</strong> homem, não lhe empolga a actividade, oaffecto e a ternura, mau gra<strong>do</strong> o amor, que sempre, no fun<strong>do</strong>,subsiste pelo lar antigo, o ninho paterno abençoa<strong>do</strong> ?...O scientistaAqui tenho sobre a minha secretária, ao traçar estaslinhas, o veneran<strong>do</strong> pergaminho data<strong>do</strong> de 22 de Setembro de1869, no qual o Ministro secretário da Instrucção Publica, emnome <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r Napoleão III, concede ao Sr. João <strong>Pedro</strong><strong>Gardez</strong> o diploma de Bacharel em Letras pela Faculdade deLetras da Academia de Grenoble.78


<strong>Elogio</strong> Fúnebre <strong>do</strong> <strong>Professor</strong> João <strong>Pedro</strong> <strong>Gardez</strong>Dae que transcreva em nossa língua, integran<strong>do</strong>-o aoelogio fúnebre <strong>do</strong> nosso sau<strong>do</strong>so confrade, esse valioso titulode sua nobiliarchia mental, que, conserva<strong>do</strong> religiosamente pelafamília, faz hoje parte <strong>do</strong> archivo <strong>do</strong> Instituto, graças a gentilofferta feita por intermédio <strong>do</strong> nosso preza<strong>do</strong> consocio Estevãode Men<strong>do</strong>nça:“Império Francez — Diploma de Bacharel em Letras —Em nome <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r — O Ministro Secretário de Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong>Departamento da Instrucção Pública — Visto o certifica<strong>do</strong> dehabilitação ao grau de Bacharel em letras concedi<strong>do</strong> a 7 deAgosto de 1869 pelos <strong>Professor</strong>es da Faculdade de Letras deGrenoble, Academia de Grenoble, ao Snr. <strong>Gardez</strong>, João <strong>Pedro</strong>,nasci<strong>do</strong> em Lausonne, departamento <strong>do</strong> Alto Loire, a 30 deAgosto de 1844 — (*) Vista a approvação dada a essecertifica<strong>do</strong> pelo Reitor da dita Academia — ratifican<strong>do</strong> osobredito certifica<strong>do</strong> — Dá, pelas presentes, ao dito Snr.<strong>Gardez</strong> o diploma de Bacharel em letras para gozal-o com odireito e prerogativas que lhe são inherentes pelas leis, decretose regulamentos.Feito em Paris, com sello <strong>do</strong> Ministério da InstrucçãoPública, aos 22 de Setembro de 1869.”Seguem-se as assignaturas, algumas das quaes jáillegiveis, como a <strong>do</strong> Ministro.O <strong>Professor</strong>Muni<strong>do</strong> de seu diploma de bacharel, sentiu o moço<strong>Gardez</strong> abrirem-se-lhe mais largos horizontes e, sonho heróicodas aventuras, o mesmo sonho que impellia para o Oriente osseus antepassa<strong>do</strong>s das hostes da Cruzada, eil-o, abrin<strong>do</strong> o vôoem largo remigio, oceano em fóra, rumo da América, quesempre fascinou, nos seus ideaes de liberdade, os filhos dagenerosa França. Não foi, porem, o Brasil o primeiro paizescolhi<strong>do</strong> pelo joven(*) 31, de accor<strong>do</strong> com a Justif.9JOSÉ DE MESQUITAfrancez, e sim a nossa vizinha Argentina, em cuja formosacapital, Buenos-Aires, permaneceu cerca de 15 mezes, sem que,todavia, lograsse adaptar-se. dali fez-se rumo desta entãoProvíncia, aportan<strong>do</strong> a Cuyabá onde deveria viver mais de meiacentúria de annos, compartin<strong>do</strong> sempre de nossas alegrias e denossas adversidades. É elle mesmo quem nol-o conta, napetição em que requerida se lhe justificasse o esta<strong>do</strong> livre parapoder casar-se com a cuyabana Anna Edwiges de MoraesCarvalho, filha legitima de Joaquim José de Carvalho e JoannaPereira de Moraes Carvalho:“... ten<strong>do</strong> sahi<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu paiz natal na idade de 25 annos,foi para Buenos Aires, onde se demorou por espaço de 15mezes. Seguin<strong>do</strong> logo para esta Província, chegou aqui a 27 deJulho de 1871...” O seu casamento data de 1882. Dahi pordiante póde se consideral-o radica<strong>do</strong> de vez á terra cuyabana,cujo extraordinário poder de seducção e absorpção se exercesobretu<strong>do</strong> através <strong>do</strong>s laços affectivos urdi<strong>do</strong>s na teia <strong>do</strong>sPenélopes patrícias.Facto curioso e digno de registo é esse da imantaçãoexercida pela mulher mesmo no espírito <strong>do</strong>s mais retractarios avida calma <strong>do</strong> lar: — tenho visto casos verdadeiramentesorprehendentes de homens extranhos a to<strong>do</strong> e qualquer jugo sedeixarem enredar na trama luminosa e casta <strong>do</strong>s olhares dasmais ingênuas creaturas... <strong>Gardez</strong> estava preso e dahi por diantea terra da esposa, <strong>do</strong>s filhos, <strong>do</strong>s nettos seria a sua terra. E foi.Ascenden<strong>do</strong> de chacareiro <strong>do</strong> Dr. Murtinho, — primeirafuncção que exerceu em Cuyabá — a oleiro, trabalho que já lhepermittia certa independência no exercitar a sua actividade, fezse,ao depois, ajudante de botica, servin<strong>do</strong> algum tempo napharmacia de Joaquim Alves Ferreira, como manipula<strong>do</strong>r.Ao seu espírito, porem, não lhe aprazia essa vida todamaterialisada <strong>do</strong>s serviços manuaes. Pezar de não os haverjamais aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>, pois que sempre lhe entre-10


<strong>Elogio</strong> Fúnebre <strong>do</strong> <strong>Professor</strong> João <strong>Pedro</strong> <strong>Gardez</strong>tiveram os ócios <strong>do</strong> magistério, chegan<strong>do</strong> a fazer papel deoperário constructor das suas próprias casas, <strong>Gardez</strong> sentia quepara al havia nasci<strong>do</strong>. A sua vocação era indiscutivelmente, omagistério. Para Buenos Aires viera contracta<strong>do</strong> comoprofessor de um collegio que se fechara devi<strong>do</strong> a um surtoepidêmico. É o nosso confrade Cesário Pra<strong>do</strong> que o relata, emuma de suas bellas chronicas, consagrada á evocação <strong>do</strong> “nossovelho <strong>Professor</strong>” e publicada na “A Cruz” de 29 de Novembrode 1925. A variante que o adverso das circumstancias lhetraçara na vida, propellin<strong>do</strong>-o a outros misteres, tinha que orepor em breve na estrada real aban<strong>do</strong>nada. Era uma digressãoapenas. Com pouco vel-o-eis de novo integra<strong>do</strong> no que, defacto, e acima de tu<strong>do</strong>, constituía leit-motif <strong>do</strong> seu viver.Primeiro como <strong>Professor</strong> particular e, depois, público, <strong>Gardez</strong>perlustra longos annos o magistério em Cuyabá: começou porleccionar o curso primário na Companhia de Menores <strong>do</strong>Arsenal de Guerra, occupan<strong>do</strong> depois as cathedras maisdiversas no Lyceu Cuyabano e Salesiano, sen<strong>do</strong> as suasdisciplinas predilectas o Inglez e a História Natural.Foi também Agrimensor e muito competente, ten<strong>do</strong>exerci<strong>do</strong>, algum tempo, o cargo de Engenheiro Municipal.Paixão <strong>do</strong>minanteTo<strong>do</strong> homem—homem, to<strong>do</strong> homem verdadeiramentedigno desse nome, tem uma paixão culminante na vida, umideal que lhe polariza a actividade, um sonho que lhe nortea avolição: para uns é a gloria militar e chamam-se César ouNapoleão, para outros a política, e chamam-se Thiers ou Pitt,para outros as letras e chamam-se Herculano ou Flaubert, paraoutros, a humanidade, a philantropia e chamam-se Vicente dePaula ou Augusto Comte, para outros a mulher e cha-11JOSÉ DE MESQUITAmam-se D. Juan Tenório ou Casanova, para outros, finalmente,Deus, e chamam-se Luiz Gonzaga ou Ignácio de Loyola.<strong>Pedro</strong> <strong>Gardez</strong> teve a sua existência <strong>do</strong>minada por umideal, norteada por uma preoccupação sobrepujante a todas asdemais: o ensino.Era em tu<strong>do</strong> e acima de tu<strong>do</strong> o professor. Conversan<strong>do</strong>dava o ar de preleccionar, tão seguro lhe andava o critério efirme a exposição nas matérias mais simples e triviaes.Na cathedra, entretanto, parecia entreter uma palestra,tal a naturalidade que imprimia ao tom de voz de suasexplicações mais complexas. Desconhecia a affectação, apostura estudada, aquillo que nós chamamos francamente depose e que não sei como melhor qualificar sinão por attitudefictícia, mascara de quem não sabe ter uma phisionomia real.Ensinava — e nisso o grande segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> verdadeirodidacta — persuadin<strong>do</strong>.Não tinha — e bem o podia ter — o ar autoritário dequem profere <strong>do</strong>gmas scientificos. Fazia calar a verdade noespírito pela convicção e não pela autoridade — autoritaterationis e não ratione autoritatis.O “ora pois” que se lhe tornara cacoete e com queacolchetava os seus perío<strong>do</strong>s era bem a conclusão de umsyllogismo que sempre lhe trabalhava a mente. Era lógico eseguro em suas affirmações. É verdade que a lógica hoje temperdi<strong>do</strong> muito a sua importância na pauta da sciencia e valoressociaes. Relegada a um amplo secundário, há quem pense atéexcluil-a <strong>do</strong>s programmas officiaes por sciencia prescindível aomanejo da vida, quan<strong>do</strong> não mesmo compromette<strong>do</strong>ra. <strong>Gardez</strong>foi um lógico, e, como tal, um excêntrico na época queatravessamos. Orientou a sua vida por um ideal — a instrucção.Velho, <strong>do</strong>ente, alquebra<strong>do</strong>, era de vêl-o, já aposenta<strong>do</strong>, exercera funcção gratuita de Ins-12


<strong>Elogio</strong> Fúnebre <strong>do</strong> <strong>Professor</strong> João <strong>Pedro</strong> <strong>Gardez</strong>pector Escolar da povoação <strong>do</strong> Coxipó da Ponte, rompen<strong>do</strong> apé, apoia<strong>do</strong> na tosca bengala de madeira, a distancia de 6kilometros que separa a Capital daquella povoação... Porqueelle, de facto, exercia as funcções que lhe commettiam.Depois de ter si<strong>do</strong> professor cathedratico de grego noLyceu Cuyabano, o professor de inglez e historia natural <strong>do</strong>Lyceu Salesiano, nos áureos tempos da equiparação,leccionan<strong>do</strong> num e noutro estabelecimento as disciplinas maisdiversas, á mercê das vacâncias eventuaes das cadeiras,occupou ainda <strong>Gardez</strong>, interinamente, o cargo de Director daInstrucção Pública e <strong>do</strong> Lyceo Cuyabano. Coube-lhe ainda — efoi este o único cargo que occupou fóra <strong>do</strong> departamento deInstrucção Estadual — dirigir por primeiro a Escola deAprendizes Artífices, ainda uma casa de ensino e educação. Láestivemos, bempouco antes de sua morte, numa festa dedistribuição de prêmios e o velho amigo evocava ainda, comsaudade, a phase inicial, o perío<strong>do</strong> difficil da installação em quelhe coube dirigir a Escola.Fez pouco, dirão observa<strong>do</strong>res superficiaes da vida de<strong>Gardez</strong>, aquelles que exigem a obra escripta ou materializadapara aferir o esforço de um individuo através della ! Fez muito,dirão os que, num lance mais largo de visão, se capacitam deque a obra prima <strong>do</strong> homem é a sua vida, o seu exemplo moral,o seu ensinamento. Homens há que não deixam um livro e sãomais úteis á humanidade que plureditos auctores de frioleirasque recheam as estantes <strong>do</strong>s livreiros.Christo, o Homem-Deus, nunca escreveu uma linhasiquer: a sua <strong>do</strong>utrina sublime compendiaram-n’a os seusdiscípulos nos Evangelhos, através de que elle fez e disse.Sócrates, a encarnação da philosophia mais elevada dahumanidade pré-christan, não deixou uma obra e só nos éconhecida a sua idéa pelos escriptos de Xeno-13JOSÉ DE MESQUITAphonte e pelos livros de Platão, o seu discípulo dilecto. A obraprima <strong>do</strong> homem nunca se escreve, de resto: vive-se. <strong>Gardez</strong>,professan<strong>do</strong> durante tantos annos, deixou, no cultivo daintelligencia, no arroteio <strong>do</strong>s cérebros, na lavra e mondadura decaracteres, na seara miraculosa <strong>do</strong> ensino, obra magna eefficiente, trabalho mais valioso á collectividade <strong>do</strong> que si,porventura, nos houvera lega<strong>do</strong> uma dezena de volumes...Aspectos <strong>do</strong> homemNo visionar-lhe os aspectos <strong>do</strong> temperamento ressaltamlogo, como arestas mais perceptíveis, certas qualidades que sepoderiam resumir em duas — a franqueza e a pontualidade.Columnas, mestras da sua construção mental, a franqueza e apontualidade lhe eram innatas, e não há imaginal-o sem taesattributos que lhe compunham por assim dizer a personalidadepsychica. Franqueza algo rude, sem ambages, sem tinos que, nofun<strong>do</strong>, são hypocrisias, sem rodeios que valem por vaniloquiosexecráveis. Pontualidade exacta, si se póde dizer assim, semredundância de conceitos, visto que nós outros nos affazemosde tal sorte á impontualidade que creamos até essa noçãopara<strong>do</strong>xal da pontualidade relativa e da meia hora detolerância... Pontualidade envolve rigorosa idea que excluerelatividade, e era assim que entendia <strong>Gardez</strong>. Jamais seria onosso sau<strong>do</strong>so confrade capaz de interpretar 10 horas em pontode outra forma que não fosse 9 horas e 60 minutos... E apontualidade é quasi uma virtude theologal, posto se lhe nãohaja incluí<strong>do</strong> o nome no cadastro das virtudes, pois Deus é apontualidade suprema e não falha jamais nos seus desígnios. Apontualidade é o relógio <strong>do</strong> caracter. Ella permite aferir daexacção <strong>do</strong> dever, da comprehensão nítida da disciplina, dasubmissão <strong>do</strong> factor-vontade ao factor-tempo, que não está nasnos-14


<strong>Elogio</strong> Fúnebre <strong>do</strong> <strong>Professor</strong> João <strong>Pedro</strong> <strong>Gardez</strong>sas mãos ... A pontualidade é o segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> êxito, a alma <strong>do</strong>metho<strong>do</strong>, o factor <strong>do</strong> triumpho, a garantia <strong>do</strong> credito, a linhareta da honra, o índice <strong>do</strong> caracter e até, si quizerdes, o espelho<strong>do</strong> amor, que, quan<strong>do</strong> verdadeiro, soe sempre pontual... Nãoestou aqui a fazer o elogio de tão preciosa virtude, parainculcar-vos apenas que a deveremos possuir... Meu fito é tãosomente fazer ver que, sen<strong>do</strong> pontual, <strong>Gardez</strong> era virtuoso. Asua pontualidade era bem o reflexo de uma consciência serena,illuminada pela noção clara <strong>do</strong> dever...A chronica viva<strong>Gardez</strong> era a chronica viva <strong>do</strong> nosso passa<strong>do</strong>, que elleconhecia mais e melhor <strong>do</strong> que muita gente aqui nascida, criadae vivida. A sua memória era, por vezes, pasmosa no conversarfactos, datas e impressões de pessoas. Os acontecimentosnitidizavam-se ao gravarem-se-lhe na placa sensível <strong>do</strong> cérebroe elle os reproduzia fielmente, com farta profusão depormenores. A precisão a que o habituara o estu<strong>do</strong> dassciencias mathematicas revelava-se nas suas narrativas,vincadas de uma força convincente e de uma autorizadacredibilidade. Há quem passe pela vida como um hospede que<strong>do</strong> seu quarto de hotel não leva outra impressão que a <strong>do</strong>itinerante fugidio — poderá mais tarde dizer que o seucommo<strong>do</strong> tinha quatro paredes e uma porta de entrada... Outroslevam na retentiva mental, ao vivo, até as minúcias <strong>do</strong> piso, asfalhas <strong>do</strong> tecto, os defeitos <strong>do</strong> muro, açor da tapeçaria, otamanho <strong>do</strong>s quadros, o rendilha<strong>do</strong> das cortinas... São aquellesos felizes, talvez, os despreoccupa<strong>do</strong>s, os flana<strong>do</strong>res... Entantomais apraz ser destes, <strong>do</strong>s que olham, observam e guardam.Levam comsigo um pouco de tu<strong>do</strong> o que viram: fica, por outrola<strong>do</strong>, um pouco delles por onde andaram... <strong>Gardez</strong> pertencia aesta categoria. Era um vasto re-15JOSÉ DE MESQUITApositório de impressões, um archivo de factos, uma galeria denomes, uma collectanea de datas. Conversar com elle era vivero passa<strong>do</strong>. Evocar é ainda e será sempre o melhor prazer davida. Reviver o que foi, penso eu pelo menos, será sempre maisagradável <strong>do</strong> que anteviver o que será...Da<strong>do</strong> que pudéssemos prelibar o futuro, eu, ainda assim,pretendia o gosto de repassar o passa<strong>do</strong>, na moendamelancólica e geme<strong>do</strong>ra da saudade...Por isso é que me apraz a conversa <strong>do</strong>s antigos, <strong>do</strong>s que,como <strong>Gardez</strong>, no seu longo perfil meio semítico, na sua barbaveneranda, no seu to<strong>do</strong> austero, possuem algo dessa nobreancestralidade que tanto me falla ao espírito — uma espécieassim de velho patriarcha bíblico ou rhapso<strong>do</strong> hellenico arecontar, ao som <strong>do</strong> psalterio ou Lyra, os velhos episódios quefazem a Historia verdadeira, tão diferente da que se escreve e seensina nas páginas estylizadas e muitas vezes mentirosas <strong>do</strong>scompêndios...O contributo extrangeiroNo perscrutar a influencia <strong>do</strong> contributo extrangeiropara a nossa evolução, ressaltam logo, desde o perío<strong>do</strong> colonial,nomes <strong>do</strong>s mais illustres entre os filhos da gloriosa terra deFrança. Os nomes de um Baurepaire, de um Agassis, de umSaint Hilaire, de um d’Orbigny, de um Castelnau, de umTaunay e d’Alincourt, — posto que este ultimo só de origemfranceza — estão liga<strong>do</strong>s á nossa Historia e são familiares aosque se dão ao deletreio de nossas chronicas. Não há negar,porem, que essa brilhante cordilheira de nomes culmina nos<strong>do</strong>is vultos mais representativos que nos deu a França — essagenerosa França que, no dizer de um <strong>do</strong>s seus escriptores, temvivi<strong>do</strong> mais para a Humanidade <strong>do</strong>16


<strong>Elogio</strong> Fúnebre <strong>do</strong> <strong>Professor</strong> João <strong>Pedro</strong> <strong>Gardez</strong>que para si mesma: Augusto Leverger, o marinheiro bretão eJoão <strong>Pedro</strong> <strong>Gardez</strong>, o bacharel e humanista <strong>do</strong> Alto-Loire. Noenunciar-lhes a procedência, quasi lhes traço a caracterizaçãopsychica e a differencial <strong>do</strong>s espíritos. Um filho da lendáriaBretanha, embala<strong>do</strong> desde a infância pelo marulho nostálgicodas vagas atlânticas, era bem o arroja<strong>do</strong> homem <strong>do</strong> mar, olucta<strong>do</strong>r, o espírito ávi<strong>do</strong> de aventureiros sonhos de gloria, ohomem acção, o estadista, o valoroso cabo de guerra que osannos converteriam em estudioso, em um homem de gabinete...Outro, vin<strong>do</strong> á luz na região mysteriosa das nascentes <strong>do</strong> Loire,no recesso da França, zona selvática e rude, que a serra deCevennes fecha hostilmente como uma barreira, deveria ser oespírito perquiri<strong>do</strong>r e attento ao estu<strong>do</strong> da Natureza, o homemda observação acurada e <strong>do</strong> abnega<strong>do</strong> amor á Sciencia,despendi<strong>do</strong> <strong>do</strong> la<strong>do</strong> externo da vida e to<strong>do</strong> entregue á tarefa aque se consagrou de aprender e ensinar... Contrastes nãohavia,entretanto, nem antitheses, entre esses <strong>do</strong>is bellosespíritos. Dissemelhanças, sim, e profundas, que vinham da suaancestralidade e <strong>do</strong> seu mo<strong>do</strong> de educação. No fun<strong>do</strong>, uniamnose apprroximavam-nos as qualidades visceraes da bella raçaa que pertenciam ambos, e que são o amor á humanidade, avaga religiosidade atávica, a dedicação ao estu<strong>do</strong> e o belo, osuperior devotamento ás causas nobres e grandes.<strong>Gardez</strong> foi, entre nós, algum tempo, político. Pertenceuá Constituinte de 1891. Ocupou cargos de eleição.Mas ce<strong>do</strong>, ou porque o desilludisse a política, ou porquese não sentisse feito para ella, desquitou-se de tão absorventeconvívio. Como Melgaço seu patrício e amigo, bem poderiadizer a phrase que se lhe attribue e que annos depois foirepetida pelo nosso sau<strong>do</strong>so confrade Caetano de Albuquerque— “Ou eu não sirvo para a política ou ella é que me não serve”.JOSÉ DE MESQUITAConclusãoA moléstia insidiosa a que deveria succumbir vinha dehá tempos lhe carcomen<strong>do</strong>, como fibroma invisível mas tenaz,o cerne das energias physicas.Em Março <strong>do</strong> anno passa<strong>do</strong> acamou-se. Ainda assim selhe não exgotara a confiança e o ar<strong>do</strong>r <strong>do</strong> trabalho. A 23 dessemez ainda requeria prorrogação de prazo para fazer umamedição para qual fora designa<strong>do</strong>.Van esperança, entanto, era essa de restabelecer-se eainda poder trabalhar ! Exgottaram-se-lhe as forças no largo eporfia<strong>do</strong> viver e o seu organismo, posto robusto, já dera, em 81annos, toda a seiva e vitalidade que continha.A 3 de Abril succumbia o lucta<strong>do</strong>r, serenamenteconforta<strong>do</strong> pelo viatico da Religião que lhe embalou o berço eorvalhou de preces e lagrimas a sua infância e a sua velhice...<strong>Gardez</strong> desappareceu. Mas <strong>Gardez</strong> continua a viver. Vive napaz elysea <strong>do</strong> alem-morte que as almas boas desfructarãoeternamente; vive no culto subjectivo <strong>do</strong>s seus queri<strong>do</strong>s; vivena memória grata <strong>do</strong>s que lhe aprenderam as lições; vive,sobretu<strong>do</strong>, na nossa immensa saudade, que hoje o homenagea elhe evoca pela minha palavra obscura mas sincera a existênciatoda consagra<strong>do</strong> ao estu<strong>do</strong> e ao ensino. E viverá sempre, nalembrança das pósgerações, <strong>do</strong>s que nos succederem aqui,filhos da carne ou <strong>do</strong> espírito, continua<strong>do</strong>res de nossa obra,zela<strong>do</strong>res <strong>do</strong> patrimônio intellectual de nossa terra, cultua<strong>do</strong>resdas memórias sagradas que nós cultuamos.O culto <strong>do</strong>s antepassa<strong>do</strong>s é, como queria Littré, a basede toda Religião e é também o alicerce de to<strong>do</strong> o Progresso,pois é uma illusão suppor-se possível futuro feliz semconhecimento <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, como não há ahi1718


<strong>Elogio</strong> Fúnebre <strong>do</strong> <strong>Professor</strong> João <strong>Pedro</strong> <strong>Gardez</strong>imaginar aurora sem noite e primavera radiosa sem inverno quea anteceda...E através <strong>do</strong>s tempos, annos longos a fio, <strong>Gardez</strong> será sempre oparadigma da dedicação ao ensino, da abnegada e humildetarefa <strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r, tão desconhecida e olvidada pelafrivolidade contemporânea, mais inclinada a admirar aslantejoulas da phantasia que o bom ouro de lei, discreto evalioso...A sua vida obscura será o padrão pelo qual se aferirão outrasvidas de professores, como elle empenha<strong>do</strong>s em transmittir aoutrem o lega<strong>do</strong> <strong>do</strong> saber, e o seu exemplo luminoso avultará,nas qualidades que lhe exornaram o caracter, dan<strong>do</strong>-lhe assim afeição <strong>do</strong> homem-representativo de Emerson ou <strong>do</strong> homemheróede Carlyle, — um homem symbolo <strong>do</strong> amor quasimystico, quasi platônico a essa deusa incruenta e benéfica queos antigos denominam Pallas Athenéa ou Minerva e que nóshoje reverenciamos sob o nome de Instrucção, Sciencia,Sabe<strong>do</strong>ria... E ora que elle já não vive na materialidade illusória<strong>do</strong>s seres, ora que a matéria que compunha o seu eu physico,desaggregada, <strong>do</strong>rme o somno tranquillo <strong>do</strong> não ser no alta daPiedade — tão longe <strong>do</strong> cemiteriosinho de Lausonne que lhedesejaria possuir os ossos, que a sua alma, a emanação fluídica<strong>do</strong> seu ser paira no Empyrio <strong>do</strong>s justos, e de lá nos comtempla eabençoa, façamos por que as homenagens que lhe tributamosnão consistam apenas nas palavras vans que o vento leva, massim no culto immarcessível que erige o seu exemplo em padrãoaos porvin<strong>do</strong>uros.E assim fazen<strong>do</strong>, certo, mais nos dignificaremos a nós mesmos<strong>do</strong> que a elle, que de taes manifestações já não precisa, ten<strong>do</strong>,como deve ter, a suprema gloria que Deus ourtorga ás almasjustas que passaram pela vida fazen<strong>do</strong> o Bem aos seussemelhantes.19

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