10.07.2015 Views

Viagem Na Família - Carlos Drummond de Andrade No deserto de ...

Viagem Na Família - Carlos Drummond de Andrade No deserto de ...

Viagem Na Família - Carlos Drummond de Andrade No deserto de ...

SHOW MORE
SHOW LESS
  • No tags were found...

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

<strong>Viagem</strong> <strong>Na</strong> <strong>Família</strong> - <strong>Carlos</strong> <strong>Drummond</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><strong>No</strong> <strong>de</strong>serto <strong>de</strong> Itabiraa sombra <strong>de</strong> meu paitomou-me pela mão.Tanto tempo perdido.Porém nada dizia.Não era dia nem noite.Suspiro? Voo <strong>de</strong> pássaro?Porém nada dizia.Longamente caminhamos.Aqui havia uma casa.A montanha era maior.Tantos mortos amontoados,o tempo roendo os mortos.E nas casas em ruína,<strong>de</strong>sprezo frio, humilda<strong>de</strong>.Porém nada dizia.A rua que atravessavaa cavalo, <strong>de</strong> galope.Seu relógio. Sua roupa.Seus papéis <strong>de</strong> circunstância.Suas histórias <strong>de</strong> amor.Há um abrir <strong>de</strong> baúse <strong>de</strong> lembranças violentas.Porém nada dizia.<strong>No</strong> <strong>de</strong>serto <strong>de</strong> Itabiraas coisas voltam a existir,irrespiráveis e súbitas.O mercado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejosexpõe seus tristes tesouros;meu anseio <strong>de</strong> fugir;mulheres nuas; remorso.Porém nada dizia.Pisando livros e cartas,viajamos na família.Casamentos; hipotecas;os primos tuberculosos;a tia louca; minha avótraída com as escravas,rangendo sedas na alcova.Porém nada dizia.Que cruel, obscuro instintomovia sua mão pálidasubtilmente nos empurrandopelo tempo e pelos lugares<strong>de</strong>fendidos?


Olhei-o nos olhos brancos.Gritei-lhe: Fala! Minha vozvibrou no ar um momento,bateu nas pedras. A sombraprosseguia <strong>de</strong>vagaraquela viagem patéticaatravés do reino perdido.Porém nada dizia.Vi mágoa, incompreensãoe mais <strong>de</strong> uma velha revoltaa dividir-nos no escuro.A mão que eu não quis beijar,o prato que me negaram,recusa em pedir perdão.Orgulho. Terror noturno.Porém nada dizia.Fala fala fala fala.Puxava pelo casacoque se <strong>de</strong>sfazia em barro.Pelas mãos, pelas botinasprendia a sombra severae a sombra se <strong>de</strong>sprendiasem fuga nem reação.Porém ficava calada.E eram distintos silênciosque se entranhavam no seu.Era meu avô já surdoquerendo escutar as avespintadas no céu da igreja;a minha falta <strong>de</strong> amigos;a sua falta <strong>de</strong> beijos;eram nossas difíceis vidase uma gran<strong>de</strong> separaçãona pequena área do quarto.A pequena área da vidame aperta contra o seu vulto,e nesse abraço diáfanoé como se eu me queimassetodo, <strong>de</strong> pungente amor.Só hoje nos conhecermos!Óculos, memórias, retratosfluem no rio do sangue.As águas já não permitemdistinguir seu rosto longe,para lá <strong>de</strong> setenta anos...Senti que me perdoavaporém nada dizia.


As águas cobrem o bigo<strong>de</strong>,a família, Itabira, tudo.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!