10.07.2015 Views

O Homem - Unama

O Homem - Unama

O Homem - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

www.nead.unama.brE cerrou os olhos para não ver nada, e tapou os ouvidos para nada ouvir;mas, apesar disso, sentia, nauseada, que ali estava a sua alcova de doente, o seuleito impregnado de moléstia. a mesinha de cabeceira coberta de abomináveisfrascos de remédio; a enfermeira, a Justina, ressonando a um canto, sobre umcolchão, de papo para o ar, a boca aberta, o peito almofadado, meio à mostra, euma perna, brutalmente gorda, aparecendo estirada por entre os lençóis.E isto era a vida! — Que horror! Que horror! — Que abjeção! — Que porcaria!E Magda saiu do quarto para não espancar com os pés a criada, para nãoesbofetear a sua própria sombra; furtando-se daquilo, tudo desorientada,inconsolável, com ânsias de desertar do mundo, de fugir de si mesma, do seupróprio corpo, da sua própria alma. E, no entanto — as saudades do filho acrescerem, a crescerem-lhe por dentro, cada vez mais, alastrando como hera floridae viçosa por entre ruínas.E nada de chegar o sonho ou o delírio! — Que desespero!Oh, mas precisava ver o filho no mesmo instante, readquiri-lo; matar aqueledesensofrido desejo que a devorava com exigência de um vício profundo, adquiridona primeira idade; precisava refugiar-se nele — no seu Fernando — no seu amado,que era todo casto, amoroso e lindo, que era todo ideal e puro, e nada tinha destemundo e com esta vida, estúpidos ambos, e ambos dessorados por enfermidades epor paixões de toda a casta, infames, monstruosas e mesquinhas!Correu à mesa dos medicamentos, rebuscou entre os vidros o de láudano,apoderou-se dele com avidez e tomou uma grande dose.No fim de algum tempo, viu, porém, que nem assim lhe acudia o sono ou aletargia. — Que suplício! — Apenas ficava estonteada, presa de tênue vertigem, quede quando em quando lhe apagava a luz dos olhos. Entrou no mesmo estado pelodia alto, muito abstrata, andando por toda a casa como uma sonâmbula. Ao lanchedas duas horas da tarde, o pai quis detê-la no seu lado e obrigá-la a conversar; elaescapou-lhe por entre os dedos e fugiu em silêncio para o andar superior, olhando aespaços para trás, desconfiada.Agora, neste momento, não sentia nada, absolutamente nada, que aincomodasse; nem enxaquecas, nem dores na espinha, nem dormência nas pernas;já não a perseguiam o gosto de sangue e o cheiro de magnólia; via-se leve, como seestivesse oca, vaporosa, aeriforme; sentia-se capaz de voar e de manter-se sobreuma pluma sem a abater. E dava-se ainda um outro fenômeno bem curioso: a vidareal parecia-lhe agora o sonho, e o sonho afigurava-se-lhe a vida real; os fatosverdadeiros embaralhavam-se-lhe na mente, confundiam-se uns com os outros,fragmentavam-se, difundiam-se, escapavam; ao passo que os mais insignificantespormenores da sua vida fantástica lhe permaneciam inteiros no espírito, claros eseguros à memória, como os cantos de um poema decorado na infância.Queria lembrar-se do que, acordada, fizera na véspera; do que fizera haviapoucos instantes, e não conseguia rememorar coisa alguma; enquanto que ainda lhecantavam no ouvido, bem lúcidas e sonoras, as mais remotas palavras de Luiz, eainda sentia nos lábios a impressão dos últimos beijos de seu filho. Recordava-se detoda a sua existência fictícia, instante por instante; poderia narrá-la inteira, seguida;descrevê-la de princípio a fim, sem lhe esquecer um episódio; e, no entanto,estranhava a sala em que estava, sem poder determinar que casa era aquela edonde tinham vindo aqueles objetos que a cercavam.Volvia surpreendida os olhos em torno de si, alheia ao lugar; nada, dequanto a sua vista lobrigava, lhe trazia à razão a sombra mais sutil de uma97

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!