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O Homem - Unama

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www.nead.unama.brFoi ter à janela da saleta contígua à sua alcova e ficou a olhar abstratamentelá para fora. O dia acordava, estremunhado, remanchão, preguiçoso, sem ânimo deabrir de todo as pálpebras sonolentas, espiando por entre as cambraias da neblina:não havia linhas de horizonte, não havia contornos definidos; era tudo umaacumulação de névoas, onde mal se pressentiam apagadas sombras. Nem vivaalma se destacava; nem um só trabalhador passava para o serviço; a pedreiratransparecia apenas, como se estivesse mergulhada dentro de uma grande opaladerretida. E, aos olhos de Magda, tudo aquilo principiou de afigurar uma naturezaem embrião, um mundo ainda informe, em estado gasoso; alguma coisa que jáexistia e que ainda não vivia: um ovo ainda não galado por Deus.Mas, daí a pouco, no fundo desse caos opaco, no âmago daquela albumina,a montanha começou a bulir, a mexer-se como um corpo em gestação, e depois aagitar-se como um feto que quer nascer.A infeliz delirava lá.E ela distinguiu que o imenso feto, sequioso de vida, espedaçava a crisálidae, erguendo a cabeça, sacudia cá fora, à luz do dia, a treva dos seus cabelos; enessa cabeça, Magda enxergava olhos que eram ternos e humanos, e lábios quesorriam de amor. E viu em seguida o gigante erguer os braços e romper as nuvensde alto a baixo, e pôs-se de pé, altivo e risonho, tocando com a fronte nas estrelasque a cingiam e constelavam de régio diadema.E reconheceu logo o seu amante.— Oh, enfim! Exclamou num brado de contentamento, estendendo-lhe osbraços e pedindo-lhe entre lágrimas de gozo, que sem demora a arrebatasse lá paraa outra vida ideal da fantasia. Nessa ocasião, porem, outro gigante inda maiorassomara para além das bandas do oriente, e este agora vinha formidável e terrível,armado da cabeça aos pés, irradiando fogo; e, só com o dardejar e reluzir do seuescudo, desmaiavam no céu as densas tímidas e palpitantes, fugia a lua assustada,e a terra tremia toda como a noiva na primeira noite das bodas.Então Magda viu entristecida a ciclópica figura do seu amado abalar-se eestremecer também, depois ir empalidecendo, até volver-se de novo montanha,agora resfraldada de gazes cor de pérola, que se rasgavam e desteciam aos raiosdo sol nascente; enquanto ao redor surgiam aqui e acolá pontas de igrejas e ângulosde chalets esmaltados pela aurora, e repontavam grupos de árvores e saiam nochão manchas verdes que logo se transformavam em hortas e jardins, e alvejavamcurvas tortuosas que se desfaziam em ruas e caminhos, e pontos negros que eramcarroç5es de lixo, e outros menores e ligeiros que eram carrocinhas de pão; epareciam vacas a tilintar o chocalho à porta das chácaras; e homens de jaquetão àbalega e chapéu desabado apregoando perus, frutas ou garrafas vazias; elavadeiras com imensas trouxas de roupa na cabeça; e pretas e pretos carregandoaltos tabuleiros de verdura ou de carne fresca. E ouviam-se vozes de gente, choro eriso de crianças. latir de cães, cantar de galos, rodar de seges; um esfalfado zunzumde mundo gasto e enfermo, que acorda contra a vontade, inalteravelmente, como navéspera, para vegetar mais um dia de tédio, à espera da morte.E Magda afastou-se da janela e fechou-a com ímpeto, cheia de horror echeia de nojo pelo mundo.— Oh, que miséria! Oh, que miséria, meu Deus!96

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