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O Homem - Unama

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www.nead.unama.brUma conduta irrepreensível! Se sofria ou não para sustentar os deveres demulher honesta só o sabia a discreta imagem de marfim, a quem unicamenteconfiava os segredos das suas lutas interiores; os desesperos e as misérias da suacarne; se tinha desejos, tragava-os em silêncio com a mais inflexível nobreza e omais afinado orgulho. Ao vê-la, na singela gravidade do seu trajo, o rostodescolorido pela moléstia, os movimentos demorados e sem vida, sentia a gente porela um profundo respeito compassivo, uma simpatia discreta e duradoura. O triste arde altiva resignação que se lhe notara nos olhos, outrora tão ardentes e tão talhadospara todos os mistérios da ternura; a desdenhosa expressão de fidalguia daqueleslábios já sem cor, instrumentos que a natureza havia destinado para executar amúsica ideal dos beijos e cujas cordas pareciam agora frouxas e embambecidas;aquela respiração curta e entrecortada de imperceptíveis suspiros; aquela voz,poderosa na expressão e fraca na tonalidade, onde havia um pouco de súplica e umpouco de arrogância — súplica para Deus e arrogância para os homens; enfim —tudo que respirava da sua adorável figura de deusa enferma: tudo nos conduzia aamá-la em segredo reverentemente, como um soldado a sua rainha.Agora a bem poucos dava a honra de uma conversa; falava sempre semgesticular e em voz baixa, e ninguém, a não ser o pai, lhe alcançava um sorriso. Adança, o canto, o piano, tudo isso foi posto à margem; as partituras dos seus autoresfavoritos já não se abriam havia longos meses; a sua caixinha de tintas vivia noabandono; os seus pincéis de aquarela, dantes tão companheiros dela, já lhe nãomereciam sequer um beijo. Iam-se-lhe agora os dias quase que exclusivamenteconsumidos na leitura, lia mais que dantes, muito mais, sem comparação, mas tãosomente livros religiosos ou aqueles que mais de perto jogavam com os interessesda igreja; gostava de saber as biografias dos santos, deliciava-se com a "Imitação deJesus Cristo", e não se fartava de ler a Bíblia, o grande manancial da poesia queagora mais a encantava; decorara o "Cântico dos Cânticos" de Salomão,principalmente o capítulo V que principia deste modo:“Venha o meu amado para o seu jardim, e coma o fruto das suas macieiras”.“Eu vim para o meu jardim, irmã minha esposa; seguei a minha birraaromática; comi o favo com o mel; bebi o meu vinho com o meu leite”. Comei,amigos, e bebei, e embriagai-vos, caríssimos!"Eu durmo e o meu coração vela; eis a voz do meu amado que bate; dizendo:— Abre-me, irmã minha pomba minha, imaculada minha, porque sinto a cabeça cheiade orvalho, e me estão correndo pelos anéis do cabelo, as gotas da noite."E estes, como todos os outros versículos de Salomão, lhe punham noespírito uma embriagues deliciosa, atordoavam-na como o perfume capitoso emelífluo de flores orientais ou como um vinho saboroso e tépido que a ia penetrandotoda, até a alma, com a sua doçura aveludada e cheirosa. E, de pois de repeti-losmuitas e muitas vezes, corria a tomar nas mãos a imagem de Cristo, e abraçava-a, ecobria-a de beijos, soluçando e murmurando: "Meu amado, meu irmão, meuesposo!" E dizia-lhe em segredo, num delírio crescente: "Eu sou a tua pombaimaculada; sou o mel de que teus lábios gostam; sou o leite fresco e puro com quetu te acalmas; tu és o vinho com que me embriago!"— Isto acaba mal! Isto com certeza acaba muito mal! Exclamava entretantoo Dr. Lobão, furioso contra o Conselheiro, sobre quem ele fazia recair toda aresponsabilidade do estado de Magda. — Pois já não bastavam os terríveiselementos que havia para agravar a moléstia?... Como então deixou nascer e25

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