10.07.2015 Views

Nº 271 - Linguagem Viva

Nº 271 - Linguagem Viva

Nº 271 - Linguagem Viva

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Página 6 - março de 2012Ave_EvaHilda MendonçaMulher que ora dorme nesta calçada:Mulher, mulher, qual foi o teu pecado,Mulher!Mulher de barriga grandeFruto do único momento do bom da Vida!Mulher, mulher, mulher,Qual foi o teu pecado, mulher?Trepando na noite escorregas o dia,Mulher, sem destino, sem nome,Mulher que conhece da vida o avesso.Barriga explode, mais umpra sargenta, pra droga, pra tocaia que mata!Mulher, oh, mulher!Quem fizeste? Quem te fez?Pesado é o teu fardo,tiritando na noite, mendigando no dia,Mulher, Mulher,quem pôs em ti o sinal?De AVE para Eva,Que caminho te trouxe?.Hilda Mendonça é folclorista,contista, cronista e poeta.AntoniaOdette MuttoAntonia bem pretinha foi para a cidadegrande antes dos treze anos. Chorou muito quandodeixou a mãe que já havia posto no mundoseis Antônias e cinco Antônios. Antonia viu a patroa,sentiu um pouco de medo. Gente branca podianão gostar dela ser tão escura. Patroa velha,patrão velho, patroa moça, todos gostaram deAntonia. Antonia azeitona preta ganhou vestidonovo, sapato também tinha chegado meio nua,de chinelo. Patroa moça, que boazinha! Alisou ocabelo de Antonia, mandou curar o dente que nãoparava de doer. Devagar aprendeu o serviço, primeirolavar roupa, depois limpar a casa e fazer acomida. Antonia ficou importante servia à mesa,sabia o gosto de cada um. Antonia bem tratadacresceu, criou corpo. Os homens viam Antonia,ela não via os homens. Ainda gostava de brincarcom bonecas. Queria aprender a ler. Patroa moçatrazia cadernos para corrigir em casa. Antoniaespichava os olhos com inveja, namorando asletras, mistérios para ela. Falou daquela vontadee logo estava de caderno livro e lápis na mão todanoite no caminho da escola. No começo teve vergonhajá era moça feita, quinze anos. Depois viuas companheiras quase todas maiores que elamoços também. Perdeu o acanhamento. Aprendialentamente, tinha raiva de esquecer, mas esquecia.Não faltava nunca, nem quando chovia.Patroa moça deu capa de chuva e sapato fechado.Antonia bem bonitinha, pedaço de carvão bemqueimado uma noite viu Carlos mulato de prosafácil. Falou com ela, conversa fiada, pergunta ePermissão do poemaLina Tâmega PeixotoPeço permissão ao poemapara que eu o escreva.E interrogar, como se faz às plantas,o corte, o recuo,o tocar das mãos,o enleio do medo, os estandartes do corpo.E recolher no fulgor dolorido da linguagema manhã balançando-se em juncos brancose a lua mergulhando o rosto na água.Que o poema permita que eu esteja presenteao desfalecer de sua belezae à cruel louçania da criação.Preciso de traço e fascíniopara levantar os versoscomo os caules entremeiam espaçospara firmar o olhar da rosa.Que o martírio do silêncio e do mistérionão rascunhe a fronte da palavramas me conduza a uma escritafeita de meu prório sopro.Lina Tâmega Peixoto é professora,poeta e crítica literária.mais pergunta. Antonia respondeu pouco. Só olhavapara ele do mesmo jeito que antes olhava asletras. Carlos deu em ir tocaiar Antonia na saídada escola. Ficava aflita esperando o sinal tocar.Então via o Carlos e o coração disparava, mas nãodizia nada, era só e sempre ele quem falava. Aquelever e falar diários foram tentando Antonia. Resistiualgum tempo, desejo crescendo, crescendo...Um dia cedeu. Antonia jabuticaba virou mulher, nemcabia em si de feliz. Esqueceu tudo apenas oCarlos contava agora. Patroa moça chamou atençãode Antonia, que estava chegando muito tarde,patrão ia se zangar. Antonia mulher fez pirraça negouconversa três dias depois arrependida procuroua moça patroa. Foi recebida sem mágoa a outranão era de guardar rancor. Antonia continuouchegando tarde... Antonia contou para o Carlos queia ser mãe. Precisavam casar, tinha vergonha dospatrões. Ele concordou. Antonia comprou lençol ecolcha de cama, seu enxoval. Passaram quinzedias o primo de Carlos trouxe um bilhete. Antonianervosa não conseguiu ler. A moça patroa veio ajudar.Ele tinha viajado, prometia voltar em dois meses.Antonia se amargurou. Carlos não voltavamais. Chorou escondida, nem foi à escola. Umacolega apareceu querendo saber se Antonia estavadoente. Antonia quase não podia falar, o choronão deixava. A outra desconfiou, apertou o cercoaté Antonia contar. Não se espantou, pelo contrário.Antonia que ficasse sossegada, pois conheciauma mulher capaz de dar um jeito naquilo. Nadade tristeza, tudo tinha arrumação no mundo. Nodomingo seguinte levou Antonia na tal parteira muitoentendida... Na volta Antonia mal podia acreditarque tivesse sofrido tanta dor e ainda continuasseviva... Estava com frio, a colega emprestou o agasalho.Pensou que na segunda feira estivesse boamatou a filha e foiao cinemaDalila Teles Verascom todo o carinhoacomodou o bebê no bancofechou o carro bem fechado e(confiante, passos seguros)foi trabalhartragédia consumada(asfixia e desidrataçãoacusa o laudo pericial) opai não soube explicar amorte da filha de 10 mesesesquecimento por esquecimentoesqueceu os repórteres à espera e(como no filme)foi ao cinemaDalila Teles Veras é escritora, poeta,cronista, ensaísta e diretora-proprietáriada Alpharrabio Livraria e Editora.livre daqueles arrepios de frio e daquela dor... Enganou-se.Amanheceu com febre, mesmo assimfoi fazendo o serviço escondendo o acontecido.Arrastou uma semana daquele jeito, porém nodomingo não conseguiu levantar. Patroa velhavendo a febre tão alta achou que era gripe forte,estava dando... Antonia ficou calada, medo queas patroas descobrissem, vergonha, tristeza...Tomou remédio três dias sem resultado. Patroamoça se assustou levou Antonia para o hospitalAntonia não contou nada, olhos cheios de lágrimas,queria morrer, só isto. Os médicos descobriramlogo, mas não perguntaram como haviasido gente boa aquela... Dois meses de hospital:febre, dores, injeções, operação, a vida acabando.Queria um lenço branco para pôr na cabeça.Patroa moça trouxe as mãos trêmulas amarraramna cabeça da jabuticaba enferma, estava chorandoAntonia percebeu. Gostaria de ver o Carlos,mas sentia vergonha estava feia pele e osso,melhor ele não vir. Ouvia as conversas dos médicos,não entendia o que diziam, mas pela caradeles coisa boa não era. Estava morrendo, sentiaisto. Viu o padre conversando com outras doentes,teve vontade de falar com ele também. Massentia-se fraca, as idéias misturadas na cabeça,o sacerdote ia pensar que era louca... Se melhorasse,num outro dia quem sabe... Na manhã seguintea enfermeira não conseguiu aplicar a injeção.Antonia bem pretinha havia deixado de existir.Viveu dezessete anos, dois meses e cinco dias.Mas mesmo assim foi fazendo o serviço escondendoo acontecido. Arrastou estes dos trezeanos. Chorou muito quando deixou a mãe que jáhavia posto no mundo.Odette Mutto é escritora,contista e dentista.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!