18O LIVRO DEHOJE DO AMOR ALBERTO PUCHEUHá a lei da gravidade pesando alguns sentimentoscontra o chão. Um amor perdido, outros,partidos, outros, vividos ou não,deixando no ar um rastro de aflição.Poucas vezes estamos no lugar em que deveríamos estar,mas não entendo como, se hoje a festa é lá,vim parar por aqui onde estou. Se eu gritasse,talvez o vento deste ar-condicionado levasse o gritoquem importa para onde. Se eu gritasse, quemseria capaz de esvair meu gritocom mais rapidez do que o sopro deste ar-condicionado?Os carros continuam passando na rua e alguém,mais uma vez, quis acabar com o mundo.Já trepei com putas, viados, travestise pessoas muito amadas. E mesmo aquelascom quem não passei mais do que uma noite,mesmo aquelas com quem passei menos que uma única noite,mesmo aquelas nas quais dei apenas um ou dois beijos,eu poderia ter verdadeiramente amado. Eu poderia tê-lasamado muito. Espremido-as entre a água e o vidrode meu aquário para nos dar a todos um pouco mais de mar.Para oxigenar o aquário, para empurrar o vidroalguns milímetros para fora, para ampliar o espaço,para não precisar saltar para fora do aquário.Eu poderia tê-las amado muito como amo você.Eu poderia tê-las feito realizar algum sonho como fiz com você.Eu poderia ter-lhes dado momentos de muita alegriacomo nós dois nos damos momentos de muita alegria.Eu poderia tê-las feito sofrer como nos fiz sofrer.Eu poderia ter... Assim é o amor,com sua sintaxe esburacada.Há anos, tentei arranjar O livro de hoje do amor.Fiz o arranjo, mas não me deixaram publicá-lojustamente por causa do amor com sua sintaxe esburacada,justamente porque esburacaria ainda maisos buracos de algum amor. Na stand up comedyde ontem, o cara disse não entendercomo um homem larga sua mulherpara se casar com a amante, que issoé como estar numa cela de prisão e escavar um fossoque vai dar na cela de uma outra prisão.Pucheu é um poeta com uma grande força expressiva, o que o distingue numa poesiamarcada pelas lacunas e pelas ruínas linguísticas. Ele traz uma energia de linguagem tãoacentuada que torna os temas mais banais do cotidiano em extensos e intensos discursoslíricos. O seu ancestral talvez seja Walt Whitman, pois há um idêntico desejo de nãorecuar diante do contemporâneo e um uso dos meios da prosa para obter poesia, umapoesia que é narrativa e reflexiva sem perder as potencialidades da sugestão. Marcadospela agoridade, seus poemas apresentam um sopro épico, tratando da matéria - linguísticae existencial - do tempo presente. Em "O livro de hoje do amor", há a encenação de umavida conjugal lírica e devassa, uma versão do amor em tempos de oferta fácil de sexo.Miguel Sanches Neto
A NOVA POESIA BRASILEIRA19JANETE, DONA DEPENSÃOFERNANDO FÁBIO FIORESE FURTADOUm hóspede que demora(por uma noite que seja)depois de fazer a praça,de todo não vai embora.Deixa a fome na cozinha,fome larga das estradas,como se ali ficasse a alma,à espera, enquanto caminha.SOBRE "A CASA"funcionando como soluções implacáveisO poema “A casa”, está inserido na segundapara os impasses propostos nos versos ante-parte do livro Ossário do mito, publicadoriores. Nesse momento, uma Voz (do poeta?Confesso que me senti pouco à vontadeAfinal de contas, muitas são as virtudespelo poeta, contista e ensaísta Fernandodo leitor? da tradição? do deus ferido?) res-com a delicada incumbência proposta pelodeste belíssimo poema [De Corpo portátil:Fábio Fiorese Furtado, em Juiz de Fora, edi-soa como um oráculo diante daqueles que<strong>Suplemento</strong>. A despeito dos parâmetros es-Escrituras, 2002] . Uma das principais, a meuções d’lira, 1990. Este poema reapareceu embuscam respostas para os seus assombros:tabelecidos – que, de fato, restringiram bas-ver, reside na exposição da permanência doCorpo portátil, que reúne obras do autor de“na rua da Casa, não passe./ o futuro serátante o universo lírico da pesquisa –, comopériplo humano através de signos de tran-1986 a 2000. Em “A casa”, Fiorese tece umapóstumo” ; “na calçada da Casa, não pise./destacar apenas um poema? Aceitei o desa-sitoriedade. Fernando Fiorese sabe costurarlarga teia de significados valendo-se, noa terra será queda”. A coroação desse estra-fio, mas com a pulga atrás da orelha. Já nocomo ninguém esses retalhos referenciaisentanto, de uma considerável economia denhamento em relação à casa ocorre, para-mesmo dia, de enfiada, arregacei as mangas.de extrema polaridade, de notável parale-meios. Em termos formais, o poema é cons-doxalmente, quando o sujeito se reconheceApelei para a memória e para as estantes.lismo antitético. Por outro lado, alguns de-tituído por uma sequência de sete dísticos.nela: “na Casa eu vivo./ os ausentes são mi-Depois de muita labuta, algumas noitestalhes técnicos merecem ser destacados: oEm termos de significação, os primeiros ver-nha família”. O contato inicial com este po-adiante, empaquei diante de 17 poemas ex-hábil manejo da redondilha maior; o feitiosos dos seis dísticos apresentam – atra-ema de Fiorese, em 1990, e os reencontroscepcionais, escritos por 15 autores distintos.“miniloquente” do conjunto (lembrandovés de uma Voz que pode ser a do poeta,sucessivos com sua teia de apelos, ao longoPara escapar dessa sinuca de tantos bicos,Carlos Bousoño); o esquema rímico inter-a do leitor, a da tradição ou a de um deusdos anos, confirmaram em mim o espantovali-me dos mais variados critérios. Todospolado nos dois quartetos, tendo por baseferido – a relação, permeada de interditos,inaugural. Aquele que, uma vez experimen-discutíveis, é claro. Sem conseguir chegar arimas consoantes, graves e ricas, bem comodo sujeito com a casa (“na rua da Casa, nãotado, nos alimenta, mesmo quando não nosum acordo com meus outros 16 eus, monteirimas toantes e emparelhadas apenas nospasse.”/ “a fachada da Casa não olhe.”/ “nadamos conta desse vínculo. Esse poema deum pequeno campeonato. A partir das quar-versos centrais da segunda estrofe. Em re-calçada da Casa, não pise.”, etc). Esse tom deFiorese, pela junção entre economia for-tas de final, no entanto, todas as partidassumo, uma verdadeira lição de fazer poé-advertência é rompido no primeiro versomal e densidade de significados, foi umforam decididas nos pênaltis. Mais precisa-tico. Lição, também, de “corpo portátil”, cujosdo último dístico quando, num relance dedos textos que vincaram em mim uma certamente na base do cara-ou-coroa. E a Janetecontornos, no entanto, evocam infinitos ho-reconhecimento do seu espaço, o sujeito (opercepção da experiência poética, ou seja,ficou com a taça. “Marmelada!”, gritarão al-rizontes de leitura.poeta? o leitor?) anuncia: “na Casa eu vivo”.aquela que faz do menos o mais da poesia.guns. “Nepotismo!”, outros poderão bradar.Deixemos isso de lado e passemos adiante.Iacyr Anderson FreitasOs versos que compõem a segunda parte decada dístico possuem um caráter sentencial,Edimilson De Almeida Pereira