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KAPP, Silke. Síndrome do estojo. In - MOM. Morar de Outras Maneiras.

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1Síndrome <strong>do</strong> <strong>estojo</strong><strong>Silke</strong> KappResumoWalter Benjamin certa vez caracterizou a moradia burguesa <strong>do</strong> século XIX como um <strong>estojo</strong>. O que eletinha em mente era o tipo <strong>de</strong> <strong>estojo</strong> em que técnicos e ama<strong>do</strong>res das ciências guardavam seusinstrumentos <strong>de</strong> precisão: por fora, caixas aparentemente inofensivas, lisas ou ornamentadas commotivos quaisquer, em geral não relaciona<strong>do</strong>s a seus conteú<strong>do</strong>s; por <strong>de</strong>ntro, o exato negativo <strong>do</strong>sobjetos guarda<strong>do</strong>s. Para Benjamin, o <strong>estojo</strong> con<strong>de</strong>nsa a dicotomia da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> oitocentista comseu imaginário <strong>de</strong> livre <strong>de</strong>senvolvimento das potencialida<strong>de</strong>s humanas e individuais, perpassa<strong>do</strong> poruma racionalização feroz em prol da produtivida<strong>de</strong>. Os interiores das casas burguesas contêminúmeras inutilida<strong>de</strong>s dispostas com um rigor que só po<strong>de</strong>ria provir da esfera <strong>do</strong> utilitarismo. Tanto éassim, que <strong>de</strong>las herdamos nossa segmentação convencional <strong>do</strong> espaço da moradia: divisão em áreasocial, íntima e <strong>de</strong> serviço, cômo<strong>do</strong>s monofuncionais, espaços perenes. Benjamin também diz que oséculo XIX <strong>de</strong>spertou <strong>de</strong> seu sono <strong>de</strong> Bela A<strong>do</strong>rmecida com a Primeira Guerra Mundial. A arquitetura<strong>de</strong> moradias que se produziu <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então eliminou o imaginário burguês e incrementou a precisão <strong>do</strong>s<strong>estojo</strong>s, trazen<strong>do</strong> para o espaço priva<strong>do</strong> os princípios tayloristas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho. O presentetexto discute o quanto esse procedimento <strong>de</strong> concepção <strong>do</strong> espaço ainda está arraiga<strong>do</strong> em to<strong>do</strong>s osraciocínios convencionalmente aplica<strong>do</strong>s ao projeto <strong>de</strong> arquitetura. O que se projeta não são osespaços e suas qualida<strong>de</strong>s, mas invólucros perfeitos para pessoas e eventos inexistentes. Únicaexceção a esse procedimento são arquiteturas ditas <strong>de</strong> vanguarda. Enquanto isso, as Cohabs, MRVs,Caixas e outras instituições similares continuam operan<strong>do</strong> com o pressuposto inquestionável <strong>de</strong> que omelhor que se po<strong>de</strong> fazer pelos supostos usuários das moradias produzidas em massa é acondicionáloscom precisão em <strong>estojo</strong>s.Palavras-chave: Produção da moradia, Walter Benjamin, mutabilida<strong>de</strong>, funcionalismoAbstractWalter Benjamin once characterized the bourgeois houses of the nineteenth century as etuis. What hehad in mind was the type of cases where technicians and enthusiats of science kept their instrumentsof precision: on the outsi<strong>de</strong>, apparently harmless boxes, <strong>de</strong>corated with motifs usually not related totheir content; on the insi<strong>de</strong>, the accurate negative of the kept objects. For Benjamin, the etuicon<strong>de</strong>nses the dichotomy of nineteenth century mo<strong>de</strong>rnity with its i<strong>de</strong>al of free <strong>de</strong>velopment of humanand individual potentials, overlapped by a fierce rationalization to enhance productivity. The bourgeoisinteriors contain uncountable useless things disposed with an austerity that could only come from thesphere of utilitarianism. From them we inherited our conventional segmentation of dwelling spaceswith its division in social, private and service areas, and its monofunctional, changeless rooms.Benjamin also says that the nineteenth century awoke from its Sleeping Beauty's dream with the FirstWorld War. The architecture of housing since then has eliminated the bourgeois images and has<strong>de</strong>veloped the precision of the etuis by introducing the taylorist principles of work in private space.The present paper argues how much this concept still prevails in our conventional reasoning onarchitectural <strong>de</strong>sign of dwellings. What has been <strong>de</strong>signed are not spaces and their qualities, butperfect packages for hypothetical people and events. Exceptions to this procedure are calledvanguards. Meanwhile, institutions as Cohab, MRV and banks continue operating with theunquestioned presumption that the best one can <strong>do</strong> for users of mass produced housing is to arrangethem precisely in etuis.Keywords: housing, dwelling, Walter Benjamin, mutability, functionalism


21. <strong>In</strong>troduçãoNo Trabalho das Passagens, Walter Benjamin reúne, entre outras coisas, uma coleção <strong>de</strong>fragmentos e comentários sobre os espaços interiores <strong>do</strong> século XIX, em especial o interiorda moradia burguesa. Ele interpreta essa moradia como o "<strong>estojo</strong>" ou o "casulo" <strong>de</strong> seushabitantes:O século XIX, mais <strong>do</strong> que qualquer outro, foi ávi<strong>do</strong> por moradia. Elecompreen<strong>de</strong>u a moradia como <strong>estojo</strong> <strong>do</strong> ser humano e nele o acondicionou comto<strong>do</strong>s os seus assessórios, tão profundamente que se po<strong>de</strong>ria pensar no interior<strong>de</strong> um <strong>estojo</strong> <strong>de</strong> compasso, on<strong>de</strong> o instrumento com todas as suas peçasrepousa em cavida<strong>de</strong>s fundas, revestidas <strong>de</strong> velu<strong>do</strong> violeta. Para quanta coisa oséculo XIX não inventou <strong>estojo</strong>s: para relógios <strong>de</strong> bolso, pantufas, porta-ovos,termômetros, baralhos – e, na falta <strong>de</strong> casulos, capas protetoras, passa<strong>de</strong>iras,cobertores e forros. 1Há algumas características notáveis nesses <strong>estojo</strong>s <strong>do</strong> século XIX. A primeira é o fato <strong>de</strong>seu exterior raramente revelar o que contêm. As caixas, sejam lisas ou ornamentadas,costumam ter uma aparência que não causa estranhamento, enquanto muitas vezesguardam objetos recém-inventa<strong>do</strong>s ou recém-chega<strong>do</strong>s à esfera <strong>do</strong> uso cotidiano eadvin<strong>do</strong>s <strong>de</strong> uma industrialização ainda pouco habitual. Os <strong>estojo</strong>s <strong>de</strong> certa maneiraprotegem da evidência imediata <strong>de</strong>ssa lógica <strong>de</strong> produção, da mesma forma que a profusão<strong>de</strong> ornamentos nos produtos massifica<strong>do</strong>s. Ambos criam uma capa, um emolduramento, uminterstício para a imaginação. Nesse senti<strong>do</strong>, são contrários à chamada estética damáquina, que tem por premissa evi<strong>de</strong>nciar o funcionamento interno, basean<strong>do</strong>-se emmecanismos ainda relativamente compreensíveis pela imagem, como a bicicleta ou o 14Bis.Um segun<strong>do</strong> aspecto importante <strong>do</strong>s <strong>estojo</strong>s com os quais Benjamin compara a moradia éseu interior perfeitamente molda<strong>do</strong> para seu conteú<strong>do</strong>, mas, ao mesmo tempo, ainda apto areter marcas <strong>do</strong> uso. Nesse interior, importa que as peças não se mexam, não seembaralhem, estejam intactas e disponíveis; as partes <strong>de</strong>vem se encaixar sem folgas. Mascomo os <strong>estojo</strong>s são forra<strong>do</strong>s com materiais têxteis, o manuseio repeti<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>spontos ou mesmo os minúsculos movimentos das peças em suas cavida<strong>de</strong>s criam <strong>de</strong>sgastessingulares. Então, por um la<strong>do</strong>, o <strong>estojo</strong> resulta <strong>de</strong> um raciocínio tecnocrático, que queracondicionar perfeitamente, da mesma forma que quer or<strong>de</strong>nar o mun<strong>do</strong>. Mas, por outrola<strong>do</strong>, ele evoca a idéia <strong>de</strong> aconchego <strong>do</strong>s objetos, como se tivessem alma e ali lhes fosseda<strong>do</strong> um "repouso mereci<strong>do</strong>" após um "trabalho" executa<strong>do</strong>, na contramão <strong>do</strong> consumopuro e simples. As merca<strong>do</strong>rias atuais são acondicionadas em plástico ou espuma; materiaisque se quebram ou se dissolvem antes <strong>de</strong> reterem marcas singulares.Nesse senti<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>-se dizer que o <strong>estojo</strong> como que con<strong>de</strong>nsa uma dialética própria <strong>do</strong>século XIX, ou as contradições mesmas da socieda<strong>de</strong> burguesa, entre imaginação eracionalização, entre um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> livre, igual e fraterna e a prática <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong><strong>de</strong> produção que pressupõe <strong>do</strong>minação, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social e uma "razoável" indiferençapara com o sofrimento alheio. O <strong>estojo</strong> é racionaliza<strong>do</strong>, pre<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>, constrange<strong>do</strong>r e,ao mesmo tempo, aconchegante, seguro, confortável e até imaginativo.Se Benjamin compara as moradias a esses <strong>estojo</strong>s, é porque as pensa segun<strong>do</strong> umadialética semelhante. Os interiores burgueses criam, pela primeira vez, um mun<strong>do</strong> priva<strong>do</strong>como promessa <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>. Esse mun<strong>do</strong> "priva<strong>do</strong>", como o próprio nome indica e HannahArendt enfatizou muitas vezes, é o mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> privação – privação <strong>de</strong> vida pública. Mas, na


4ditadura da prescrição arquitetônica: ao fim e ao cabo, sente que está morto, pois não po<strong>de</strong>mais se transformar, não po<strong>de</strong> adquirir novos gostos, nem po<strong>de</strong> mais ganhar presentes oucomprar coisas, pois to<strong>do</strong>s os lugares <strong>de</strong> sua casa já estão <strong>de</strong>vidamente preenchi<strong>do</strong>s equalquer alteração <strong>de</strong>struiria a harmonia da obra <strong>do</strong> arquiteto.O <strong>estojo</strong> Art Nouveau, embora visualmente menos eclético e por vezes mais areja<strong>do</strong> <strong>do</strong> queos <strong>do</strong> século XIX, é ainda mais ajusta<strong>do</strong>. Ele exacerba a heternomia <strong>do</strong> habitante, à mesmamedida que a autonomia <strong>do</strong> arquiteto. A moradia como obra <strong>de</strong> arte anula a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> marcas ou modificações pelo uso. Como diz Loos, "para a menor das caixinhas havia umlugar <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>, feito especialmente com essa finalida<strong>de</strong>" 4 . Se a moradia-<strong>estojo</strong> semprefoi uma tentativa <strong>de</strong> tornar permanente <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> status quo, esse aspecto pareceacirra<strong>do</strong> no início <strong>do</strong> século XX.Contu<strong>do</strong>, nessa forma <strong>de</strong> tratar o interior da moradia também ainda há a especificida<strong>de</strong> queentão se atribuia às obras <strong>de</strong> arte. A lógica <strong>do</strong> espaço é a lógica <strong>do</strong>s objetos que ointegram, mas tais objetos se <strong>de</strong>stinam a expressar algo da singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus <strong>do</strong>nos.Van <strong>de</strong> Vel<strong>de</strong> e outros contemporâneos <strong>de</strong> Loos não projetam para a moradia <strong>de</strong> massa,mas para pessoas concretas a cujos habitos se <strong>de</strong>dicam obstinadamente. O procedimento éproblemático porque <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a vida e os <strong>de</strong>sejos <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res semodificarem; o casulo cabe ao <strong>do</strong>no, se e somente se esse permanecer sempre idêntico a simesmo. Mas, ao mesmo tempo, ele tem a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ainda não ser casulo genérico paraseres humanos abstratos.Essa última situação só se instala no momento em que os mesmos profissionais <strong>de</strong>arquitetura antes <strong>de</strong>dica<strong>do</strong>s às moradias da alta burguesia passam a enten<strong>de</strong>r também amoradia popular como seu campo <strong>de</strong> atuação, isto é, na década <strong>de</strong> 1920. A princípio,parecem ganhar terreno idéias como transparência e flui<strong>de</strong>z <strong>do</strong>s espaços, ausência <strong>de</strong><strong>de</strong>limitações espaciais rígidas e até superposição e mutabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> funções. A CasaSchrö<strong>de</strong>r projetada por Rietveld e pela viúva Schrö<strong>de</strong>r em 1924 permite integrar ou apartaros espaços com gran<strong>de</strong>s elementos corrediços; os apartamentos projeta<strong>do</strong> por Mies van <strong>de</strong>rRohe para a exposição <strong>de</strong> Weissenhof em 1927 permite variadas disposições <strong>de</strong> divisóriasinternas; e até uma das casas projetadas por Le Corbusier para a mesma exposição tem umespaço multifuncional em lugar <strong>de</strong> sala e quartos. Nesse senti<strong>do</strong>, o Movimento Mo<strong>de</strong>rno temaquele caráter <strong>de</strong>strutivo-subversivo que Benjamin vê como oposição à existência-<strong>estojo</strong> <strong>do</strong>burguês bem adapta<strong>do</strong>. Ele contém, literalmente, uma vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> "abrir espaço".Porém, o mais tardar em 1929, no CIAM <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> ao Existenzminimum, isto é, à moradiamínima para uma existência supostamente digna, prevale o intuito <strong>de</strong> enquadrar apopulação trabalha<strong>do</strong>ra num mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida preconcebi<strong>do</strong>, em <strong>de</strong>trimento das possibilida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> abertura e flexibilização. Como já dito, o <strong>estojo</strong> é a tentativa <strong>de</strong> tornar permanente<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> status quo. <strong>In</strong>serir também as classes mais pobres em espaços <strong>de</strong>sse tipo,elimina certas formas <strong>de</strong> ação e a torna mais "administrável". Se por um curto perío<strong>do</strong> ohabitante genérico da moradia <strong>de</strong> massa foi entendi<strong>do</strong> como um sujeito com criativida<strong>de</strong> evonta<strong>de</strong> próprias, essas características são paulatinamente eliminadas <strong>de</strong> suasrepresentações; uma tendência, aliás, que acompanha a <strong>do</strong> cenário sócio-político da época.No fim, o que sobra das primeiras ambições da arquitetura em relação à moradia <strong>de</strong> massaé um ambiente <strong>do</strong>méstico em que o sujeito <strong>de</strong>ve simplesmente se recompor (<strong>de</strong>scansar,alimentar-se, higienizar-se, procriar), da mesma maneira que no ambiente <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong>veser parte da engrenagem produtiva. Nenhum <strong>de</strong>sses <strong>do</strong>is ambientes comporta o<strong>de</strong>senvolvimento criativo da própria personalida<strong>de</strong> ou qualquer espécie <strong>de</strong> ação inusitada.


5As premissas para essa nova modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espaços rígi<strong>do</strong>s e pre<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s já estavamdadas antes, pela lenta entrada <strong>do</strong> gerenciamento científico <strong>de</strong> Taylor no ambiente<strong>do</strong>méstico, impulsionada inclusive por mulheres, como Catherine Esther Beecher, LillianGilbreth e Margaret Schütte-Lihotzky. É preciso <strong>de</strong>ixar claro que as intenções <strong>de</strong>ssasmulheres eram emancipatórias, ao menos <strong>de</strong> seu próprio ponto <strong>de</strong> vista, pois o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>smovimentos ou a disposição otimizada <strong>de</strong> objetos na moradia <strong>de</strong>veriam facilitar as tarefascotidianas, e não oprimir ou restringir suas usuárias. Assim, também as soluçõesmassificadas não se instalam <strong>de</strong> imediato. As cozinhas são um exemplo: enquanto a"cozinha <strong>de</strong> Frankfurt" projetada em 1926 por Schütte-Lihotzky para o <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong>habitação da prefeitura daquela cida<strong>de</strong> tem dimensões padronizadas segun<strong>do</strong> a estaturamediana das mulheres da época, a "cozinha prática" projetada por Lillian Gilbreth em 1929para a companhia <strong>de</strong> gás <strong>do</strong> Brooklyn <strong>de</strong>veria ser ajustada às medidas específicas <strong>de</strong> cadausuária. Essa última concepção ainda lembra os ajustes singulares das ricas casas ArtNouveau que mencionei acima, ao passo que a cozinha <strong>de</strong> Frankfurt já faz parte <strong>do</strong> "espíritoCIAM" <strong>de</strong> soluções universais que prevalecerá nas décadas seguintes.De um mo<strong>do</strong> ou <strong>de</strong> outro, fica evi<strong>de</strong>nte que nem o Art Nouveau nem o funcionalismomo<strong>de</strong>rnista aban<strong>do</strong>nam a idéia <strong>de</strong> projetar espaços e objetos <strong>do</strong>mésticos segun<strong>do</strong> um<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> roteiro, imposto aos mora<strong>do</strong>res. Embora, como diz Benjamin, os objetos eedifícios <strong>de</strong> vidro não tenham a aura e privacida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s <strong>estojo</strong>s burgueses, nada impe<strong>de</strong> quese persista na lógica <strong>do</strong> acondicionamento. É possível que nas vilas da alta burguesia <strong>do</strong>início <strong>do</strong> século XX, para a qual também Corbusier trabalhou, haja <strong>de</strong> fato uma reversão damoradia <strong>estojo</strong> <strong>do</strong> século anterior. Mas quan<strong>do</strong> se trata <strong>de</strong> abrigar nas metrópoles apopulação trabalha<strong>do</strong>ra, as características <strong>do</strong> <strong>estojo</strong> retornam. Apenas os novos <strong>estojo</strong>s sãomenos suscetíveis a rastros e marcas pessoais, servin<strong>do</strong> ainda melhor para acondicionar econdicionar seus habitantes.A gran<strong>de</strong> contradição <strong>do</strong> <strong>estojo</strong> Art Nouveau e <strong>do</strong> <strong>estojo</strong> funcionalista é o fato <strong>de</strong> tolherem oconsumo. Loos já evi<strong>de</strong>nciara isso: o pobre homem rico é pobre porque, apesar <strong>de</strong> terdinheiro, não tem on<strong>de</strong> colocar novas aquisições e, portanto, não po<strong>de</strong> comprar nada. Amesma coisa vale para o espaço <strong>do</strong>méstico hiperfuncionaliza<strong>do</strong>. Ambos contradizem aformação social em que estão inseri<strong>do</strong>s, porque essa formação social <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da expansãocontínua <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r. Quan<strong>do</strong> o CIAM propõe o estu<strong>do</strong> da moradia mínima, em1929, a lógica da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo <strong>do</strong> século XX já havia si<strong>do</strong> <strong>de</strong>scoberta eexperimentada por Henry Ford, que aumentara os salários e o tempo livre <strong>de</strong> seustrabalha<strong>do</strong>res para que pu<strong>de</strong>ssem comprar e usar (<strong>de</strong>sgastar) o Ford T que ele produzia. Ouseja, as massas haviam se torna<strong>do</strong> o merca<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r por excelência. Então, comoviabilizar, ao mesmo tempo, uma moradia funcionalizada e o consumo ininterrupto <strong>de</strong> novasmerca<strong>do</strong>rias?Enten<strong>do</strong> que esse impasse leva a duas transformações importantes na maneira <strong>de</strong> projetara habitação <strong>de</strong> massa, mas para<strong>do</strong>xalmente não altera a premissa fundamental <strong>de</strong> encaixee acondicionamento. A primeira <strong>de</strong>las é a passagem <strong>de</strong> uma moradia inteiramente "prêt-àporter"(pronta para o uso), para uma moradia cujos equipamentos são adquiri<strong>do</strong>spaulatinamente pelos mora<strong>do</strong>res e substituí<strong>do</strong>s com freqüência. Assim, por exemplo, acozinha <strong>de</strong> Frankfurt ainda era um equipamento entregue juntamente com a unida<strong>de</strong>habitacional, e o imenso conjunto <strong>de</strong> Levittown nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s <strong>do</strong> inicio da década <strong>de</strong>1950 ainda oferecia mo<strong>de</strong>los com TV, gela<strong>de</strong>ira, fogão e estantes embuti<strong>do</strong>s. Mais tar<strong>de</strong>,prevalecerão moradias com nichos ou "cavida<strong>de</strong>s" vazias, como um album a ser preenchi<strong>do</strong>.


6A segunda transformação é a idéia <strong>de</strong> que as moradias po<strong>de</strong>riam ser substituídas quan<strong>do</strong>não mais comportassem os anseios e necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma família. A casa Dymaxion <strong>de</strong>Buckminster Fuller, por exemplo, foi concebida para uma produção industrial seriada, quelançaria periodicamente novos mo<strong>de</strong>los, tal qual a própria indústria automobilística. Osusuários trocariam sua casa, como trocam seu carro. O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Fuller não foi bemsucedi<strong>do</strong>, por razões que não cabe analisar aqui, mas a sua lógica <strong>de</strong> substituição periódicada moradia prevaleceu largamente sobre outras alternativas, como a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>moradias alteráveis, adaptáveis, evolutivas ou mutáveis, que tiveram um breve momento<strong>de</strong> ascenção na década <strong>de</strong> 1920.Tal persistência da moradia-<strong>estojo</strong> está <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com um padrão <strong>de</strong> produção da indústria<strong>de</strong> bens <strong>de</strong> consumo chama<strong>do</strong>s "duráveis", cujo apogeu se dá no segun<strong>do</strong> pós-guerra. Nãointeressa a essa indústria que o público <strong>de</strong>seje quaisquer coisas, mas que <strong>de</strong>seje asmerca<strong>do</strong>rias que ela tem a oferecer e que, em vista da sua quantida<strong>de</strong>, são muito poucodiversificadas. Nada melhor, portanto, <strong>do</strong> que reforçar o comportamento <strong>de</strong> consumo numsetor pelo outro. Não quero insinuar um complô <strong>de</strong> estratégias bem planejadas entre, porexemplo, os produtores <strong>de</strong> moradia <strong>de</strong> massa e os produtores <strong>de</strong> eletro<strong>do</strong>mésticos (emboraessa possibilida<strong>de</strong> também não esteja excluída). Mais importante é perceber que o contextosócio-econômico molda a mentalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res para um ciclo <strong>de</strong> compra e<strong>de</strong>scarte <strong>do</strong> qual a moradia também se torna parte. Avi Friedman registra que, ao longo <strong>de</strong>sua vida útil, uma moradia norte-americana é habitada, em média, por oito diferentesfamílias e que, inversamente, as famílias se mudam em média a cada <strong>de</strong>z anos 5 . Nessemovimento, as pessoas costumam migrar <strong>de</strong> um lugar a outro e por vezes <strong>de</strong> um patamar<strong>de</strong> consumo a outro, mas dificilmente escapam <strong>de</strong> padrões pre<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s.O argumento mais freqüente em favor <strong>de</strong>sses padrões, utiliza<strong>do</strong> inclusive pela própriaindústria que os torna tão persistentes, é a suposição <strong>de</strong> que oferecem o maior confortopossível em <strong>de</strong>terminada faixa <strong>de</strong> renda. Mas a própria noção <strong>de</strong> conforto, a idéia <strong>de</strong>promover a comodida<strong>de</strong> <strong>do</strong> corpo ao sentar, <strong>do</strong>rmir ou executar movimentos, só aparece noinício <strong>do</strong> século XVIII e só alcança o ambiente <strong>do</strong>méstico já no século XIX. Ela faz parte dasocieda<strong>de</strong> urbana <strong>de</strong> massa e, como já discuti em outras ocasiões 6 , tem relação direta coma anulação <strong>do</strong> corpo necessária aos novos regimes <strong>de</strong> trabalho. O mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção <strong>do</strong>capitalismo industrial <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da adaptação <strong>de</strong> cada indivíduo a um ritmo coletivominuciosamente <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>. Desejos e necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um corpo indisciplina<strong>do</strong> prejudicam aprodutivida<strong>de</strong>. A melhor maneira <strong>de</strong> <strong>do</strong>mesticar esses corpos, no entanto, não é a violênciadireta, mas o conforto que os torna passivos e aptos à execução <strong>de</strong> tarefas sempre parciaise restritas. Tanto é, que a ergonomia, disciplina <strong>de</strong>dicada ao conforto, significa literalmente"normalização <strong>do</strong> trabalho". Se hoje falamos em "ergonomia aplicada à habitação","ergo<strong>de</strong>sign" e coisas semelhantes é porque se promove no ambiente <strong>do</strong>méstico umaa<strong>de</strong>quação padronizada <strong>do</strong> corpo muito semelhante àquela <strong>do</strong>s ambientes <strong>de</strong> trabalho. E"móveis ergonômicos" parecem pertencer à mesma categoria <strong>do</strong>s "sapatos ortopédicos" e<strong>do</strong>s "brinque<strong>do</strong>s pedagógicos": eles tolhem muitas possibilida<strong>de</strong>s, mas ainda assim nosconvencemos <strong>de</strong> que nos fazem bem.Em resumo, teríamos então uma história <strong>do</strong> que chamei <strong>de</strong> "síndrome <strong>do</strong> <strong>estojo</strong>" que seinicia no século XIX, com uma burguesia abastadas, altera seu padrão estilístico com o ArtNouveau, se massifica e se torna científica com a produção <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s conjuntos peloEsta<strong>do</strong> e pela iniciativa privada, e vem se prolongan<strong>do</strong> também pela socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumoda segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XX. Essa síndrome consiste num mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> concepção <strong>de</strong>


7moradias em que o bem intenciona<strong>do</strong> projetista prevê cuida<strong>do</strong>sa e meticulosamente cadamovimento, ação, evento e objeto <strong>de</strong> um futuro usuário abstrato. O usuário é abstrato parao projetista, porque abstrair significa subtrair e o projetista recolhe as características <strong>do</strong>usuário <strong>de</strong> estatísticas genérica e vagas representações próprias ou, no melhor <strong>do</strong>s casos,<strong>de</strong> um curto momento <strong>de</strong> contato direto. O projetista cria o cenário ti<strong>do</strong> por i<strong>de</strong>al para esseusuário abstrato, observan<strong>do</strong> preceitos <strong>de</strong> conforto e funcionalida<strong>de</strong>, por sua vez basea<strong>do</strong>sem sistematizações genéricas, tais como as registradas no "Neufert" – a bíblia da medidaexata <strong>de</strong> objetos, seres humanos e movimentos, e o livro mais vendi<strong>do</strong> <strong>de</strong> arquitetura emto<strong>do</strong>s os tempos. Sobre os usuários, essa previsão cuida<strong>do</strong>sa tem um efeito sedutor: elapromete aconchego e conforto e evoca as imagens <strong>de</strong> vida familiar bem or<strong>de</strong>nada que aindústria cultural se encarrega <strong>de</strong> propagar. Apenas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algum tempo <strong>de</strong> usoinstalam-se os conflitos, porque os acontecimentos concretos sempre ultrapassam o roteiroabstrato para o qual o espaço foi projeta<strong>do</strong>. Há então três possibilida<strong>de</strong>s: ou os usuários seresignam e se adaptam ao espaço <strong>de</strong> que dispõem; ou tentam empreen<strong>de</strong>r reformas, emgeral difíceis, onerosas e cheias <strong>de</strong> transtornos; ou então, quan<strong>do</strong> po<strong>de</strong>m, almejam umanova substituição da moradia, manten<strong>do</strong> aqueci<strong>do</strong> o merca<strong>do</strong> imobiliário e a própriaindústria <strong>de</strong> incorporação e construção.3. AlternativasParalelamente ao percurso histórico da moradia-<strong>estojo</strong> houve diversas iniciativas <strong>de</strong> maiorflexibilização. Na supracitada Levittown <strong>do</strong> início da década <strong>de</strong> 1950, por exemplo, já haviaprojetos com divisórias móveis para arranjos diversifica<strong>do</strong>s. Mas tais possibilida<strong>de</strong>s semultiplicam sobretu<strong>do</strong> na década <strong>de</strong> 1960, quan<strong>do</strong>, nos países industrializa<strong>do</strong>s mais ricos, aprodução <strong>de</strong> moradias <strong>de</strong> massa já está avançada em termos quantitativos e seusproblemas se fazem sentir concretamente. Por um la<strong>do</strong>, a abertura ou a retomada <strong>de</strong> taisalternativas está relacionada a movimentos políticos e sociais mais amplos <strong>de</strong> crítica àprópria socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> massa <strong>do</strong> século XX; por outro la<strong>do</strong>, está ligada também a tentativas<strong>de</strong> diversificação e individualização da oferta <strong>de</strong> bens, necessárias para manter altos osníveis <strong>de</strong> consumo, <strong>de</strong>pois que as <strong>de</strong>mandas mais fundamentais parecem estar supridas.Cito apenas alguns exemplos. Na Holanda, um grupo <strong>de</strong> arquitetos se associa em 1964 parafinanciar uma pesquisa da qual N. J. Habraken se tornou coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r – o SAR (StichingArchitecten Research) 7 . Seu objetivo era justamente criar estratégias para a habitaçãoindustrializada sem a uniformida<strong>de</strong> das moradias então produzidas naquele país. Resultoudisso um méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> "recheios" e "suportes", que acabouenvolven<strong>do</strong> uma parte expressiva <strong>de</strong> toda a ca<strong>de</strong>ia produtiva da construção da Holanda etem conseqüências até hoje no movimento Open Building. Na <strong>In</strong>glaterra, em 1969, ReynerBanham, Paul Barker, Peter Hall e Cedric Price publicam um artigo intitula<strong>do</strong> "Non-Plan: Anexperiment in free<strong>do</strong>m", evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> que o planejamento está historicamente relaciona<strong>do</strong>à ausência <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia e que raramente tem os resulta<strong>do</strong>s que almeja 8 . Eles propõementão um experimento <strong>de</strong> zonas <strong>de</strong> não-planejamento, em que as próprias pessoaspu<strong>de</strong>ssem tomar suas <strong>de</strong>cisões. Semelhante posição em favor da autonomia foi assumidatambém por John Turner, que, via Unesco, conseguiu implementar políticas habitacionais <strong>de</strong>fortalecimentos <strong>de</strong> ocupação e construção espontâneas em vários países 9 . Ao mesmotempo, a própria indústria começa a produzir sistemas flexíveis, como os móveis Ikea, osbrinque<strong>do</strong>s Lego e uma enorme varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong> casas pré-fabricadas.


8Não que esses movimentos e tendências fossem to<strong>do</strong>s motiva<strong>do</strong>s pelos mesmos interesses.Alguns preten<strong>de</strong>m rupturas com o status quo, enquanto outros são simples expedientes <strong>de</strong>aumento <strong>de</strong> vendas e ainda outros se situam vagamente entre esses <strong>do</strong>is extremos. Mas,<strong>de</strong> qualquer forma, to<strong>do</strong>s apontam para possibilida<strong>de</strong>s diferentes da moradia-<strong>estojo</strong>, sejapela adaptabilida<strong>de</strong> das habitações ao longo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> uso, pela ampliação das opçõesdisponíveis, pela multifuncionalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s espaços ou pela autoprodução.É nesse contexto também que a idéia da coor<strong>de</strong>nação modular passa <strong>de</strong> um simplesproblema da indústria a uma possibilida<strong>de</strong> relevante para a qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ambienteconstruí<strong>do</strong>. O módulo <strong>de</strong> 10cm e as série <strong>de</strong> "números preferíveis" já haviam si<strong>do</strong> acorda<strong>do</strong>snos países europeus em 1955, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> prioritariamente a otimização <strong>de</strong> processosindustriais. Com ou sem coor<strong>de</strong>nação modular a indústria da construção po<strong>de</strong> perfeitamentecontinuar produzin<strong>do</strong> milhares <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s idênticas. Contu<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> se põe essadiscussão na perspectiva <strong>de</strong> uma maior possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha <strong>do</strong>s usuários finais (porexemplo, entre diferentes "recheios" para um mesmo "suporte", como no sistemainaugura<strong>do</strong> por Habraken) ou <strong>de</strong> autonomia <strong>de</strong>sse usuários (por exemplo, na facilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>autoconstrução, reforma e bricolagem), elas adquirem novas implicações para a produção<strong>do</strong> espaço e novos significa<strong>do</strong>s e priorida<strong>de</strong>s.No Brasil, esses experimentos tiveram muito pouca repercussão para além <strong>de</strong> algumasmenções em revistas especializadas. Os <strong>estojo</strong>s se perpetuaram inabala<strong>do</strong>s e, a meu ver,ainda regem a gran<strong>de</strong> maioria <strong>do</strong>s projetos <strong>de</strong> moradias, sobretu<strong>do</strong> as produzidas emmassa e em condições formais. O perfeito acondicionamento ainda é um i<strong>de</strong>al persegui<strong>do</strong> eentendi<strong>do</strong> como boa prática, assim como a passivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> usuário em relação ao seuespaço ainda é o comportamento almeja<strong>do</strong>. No fun<strong>do</strong>, não nos convencemos <strong>de</strong> que amoradia-<strong>estojo</strong> seja um mal a combater. A Caixa Econômica Fe<strong>de</strong>ral, por exemplo, exige<strong>de</strong>terminadas configurações espaciais para os financiamentos <strong>de</strong> imóveis habitacionais: nãose admite uma moradia que não tenha pelo menos uma partição que caracterize um<strong>do</strong>rmitório separa<strong>do</strong> <strong>de</strong> outros espaços. De mo<strong>do</strong> análogo, o Código <strong>de</strong> Obras <strong>de</strong> BeloHorizonte é inteiramente pauta<strong>do</strong> na monofuncionalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s espaços, alguns <strong>do</strong>s quaiscom exigências bastante específicas. E tu<strong>do</strong> isso chega ter um senti<strong>do</strong> humanista, porque,bem ou mal, o <strong>estojo</strong> também carrega consigo a imagem <strong>de</strong> aconchego, conforto esegurança. Tanto é, que quan<strong>do</strong> os projetos evi<strong>de</strong>nciam o que se acondiciona on<strong>de</strong>, são<strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s "plantas humanizadas". Slogans como "projetos inteligentes: melhoraproveitamento <strong>do</strong> espaço", que indicam uma previsão ainda mais meticulosa <strong>de</strong> cadaobjeto e evento, são usa<strong>do</strong>s tanto para produtos populares quanto para os luxuosos e nãoparecem incomodar nem mesmos aos arquitetos mais críticos.Enten<strong>do</strong> que em parte essa persistência <strong>do</strong>s <strong>estojo</strong>s se <strong>de</strong>va ao fato <strong>de</strong> que nossa <strong>de</strong>mandabásica por moradias não está suprida, o que leva ao entendimento errôneo <strong>de</strong> queflexibilizações na produção seriam luxos inadmissíveis. Por outra parte, o apego a espaçospre<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s também reflete <strong>de</strong> um longo perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> autoritarismo (aliás, bem anteriora 1964), cujos hábitos se transformam apenas muito lentamente. Assim, as práticasparticipativas no planejamento <strong>de</strong> empreendimentos habitacionais subsidia<strong>do</strong>s têm setorna<strong>do</strong> mais comuns, mas ainda não costumam incluir concepções com escolhasindividualizadas para as famílias ou que efetivamente facilitem mudanças nas moradias aolongo <strong>do</strong> tempo. De um mo<strong>do</strong> geral, reformas ou acréscimos feitos pelos usuários ainda sãoti<strong>do</strong>s por inconvenientes.


9Nesse contexto, meto<strong>do</strong>logias como a coor<strong>de</strong>nação modular também costumam ser vistascomo simples otimizações <strong>de</strong> processos construtivos, tanto por aqueles que lhe sãofavoráveis, quanto por seus críticos. Esses últimos a enten<strong>de</strong>m como um afastamento da"escala humana" e em prol <strong>do</strong> maquinário: as grelhas abstratas <strong>de</strong> um módulo ortogonal <strong>de</strong><strong>de</strong>z centímetros são somente a concretização final <strong>de</strong> uma arquitetura tecnocrática. Pensoque essa crítica é pertinente, mas faz per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista o caráter opressivo <strong>do</strong> próprio espaço<strong>estojo</strong>supostamente humaniza<strong>do</strong>; quanto melhor um espaço se a<strong>de</strong>qua a <strong>de</strong>terminadaorquestração <strong>de</strong> usos, mais dificulta outros usos quaisquer.Mais frutífero seria enten<strong>de</strong>r a questão na sua ambigüida<strong>de</strong>. Pautar os objetos napossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua conjunção livre e flexível não é apenas sair <strong>do</strong> registro da escalahumana – da qual, a meu ver, já saímos a muito tempo – mas também abre a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> essas conjunções serem feitas por qualquer pessoa e em qualquer circunstância. Umacoor<strong>de</strong>nação modular que não fosse, ao mesmo tempo, voltada para a mutabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>sespaços, <strong>de</strong> fato seria somente um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> facilitar a vida <strong>de</strong> seus produtores diretos eindiretos, ten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a favorecer a indústria da construção e talvez alguns autoconstrutores,mas sem fazer diferença substancial para os próprios mora<strong>do</strong>res. Porém a idéia dacoor<strong>de</strong>nação modular na construção po<strong>de</strong> ultrapassar essa perspectiva restrita e facilitarsubstancialmente a produção <strong>de</strong> moradias para além <strong>do</strong>s <strong>estojo</strong>s.Para que ocorram mudanças <strong>de</strong> perspectiva <strong>de</strong>sse tipo, é essencial que haja envolvimento<strong>de</strong> outros agentes que não apenas os da própria indústria da construção. Tome-se comoexemplo a chamada "produção flexível", hoje tão em voga nas empresas. Ela não coinci<strong>de</strong>necessariamente com nenhuma flexibilização <strong>de</strong> produtos para os usuários finais; pelocontrário, na maioria <strong>do</strong>s casos as empresas flexibilizam sua organização interna pararespon<strong>de</strong>rem mais rapidamente a mudanças conjunturais, mas continuam oferecen<strong>do</strong> osprodutos pre<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s. Da mesma maneira, a coor<strong>de</strong>nação modular na construção nãorepresenta, em si mesma, uma possibilida<strong>de</strong> nova para a moradia. A tendência geral, nocaso <strong>de</strong> ela se difundir no Brasil, é <strong>de</strong> produção <strong>do</strong>s mesmos tipos <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s habitacionaispor meios mais racionaliza<strong>do</strong>s. Se quisermos aproveitá-la para favorecer também umamaior abertura na produção <strong>do</strong> espaço <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> geral, terá <strong>de</strong> haver engajamento einvestigação nesse senti<strong>do</strong>, especialmente por parte <strong>do</strong>s profissionais, pesquisa<strong>do</strong>res eestudantes <strong>de</strong> arquitetura.1 Benjamin, Walter. Das Passagen-Werk. Erster Band. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1982, p.292.2 Benjamin, op.cit., p.292.3 Loos, A<strong>do</strong>lf. Von einem armen, reichen Manne. <strong>In</strong>: <strong>In</strong>s Leere Gesprochen. Wien: Prachner, 1997, p.198-203.4 Loos, op.cit, p.200.5 Cf. Friedman, Avi. The Adaptable House. Designing homes for change. New York: McGraw-Hill, 2002.6 Kapp, S. Abenteuer <strong>de</strong>r Körper in ungemütlichen Städten. Cloud Cuckoo Land <strong>In</strong>ternacional Journal OfArchitectural Theorie, Cottbus, v. 7, n. 1, p. 1-8, 2002; e Kapp, S. Anti-catarse ou a Contaminação pelaArquitetura. <strong>In</strong>: Rodrigo Duarte; Virgínia Figueire<strong>do</strong>; Verlaine Freitas; Imaculada Kangussu. (Org.). Kátharsis.Reflexões <strong>de</strong> um conceito estético. 1 ed. Belo Horizonte: C/ Arte, 2002.7 Cf. Habraken, N.J. et al. El Diseño <strong>de</strong> Soportes. Barcelona: Gustavo Gili, 2000. E Bosma, Koos / Hoogstraten,Dorine van / Vos, Martijn. Housing for the Millions: John Habraken and the SAR 1960-2000. Rotterdam: NAI, 2004.8 Cf. Hughes, Jonathan / Sadler, Simon. Non-plan. Essays on Free<strong>do</strong>m Participation and Change in Mo<strong>de</strong>rnArchitecture and Urbanism. Oxford: Architectural Press, 2000.9 Cf. Turner, John. Housing by people. Towards Autonomy in Building Environments. Lon<strong>do</strong>n: Marion Boyars, 1991.

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