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A representação do medo na descrição da peste em Atenas (V ...

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História, imag<strong>em</strong> e <strong>na</strong>rrativas<br />

N o 4, ano 2, abril/2007 – ISSN 1808-9895<br />

A representação <strong>do</strong> me<strong>do</strong> <strong>na</strong> descrição <strong>da</strong> <strong>peste</strong> <strong>em</strong> Ate<strong>na</strong>s (V século a. C.)<br />

Lyvia Vasconcelos Baptista<br />

Mestran<strong>da</strong>, UFG/FCHF<br />

lyviavasconcelos@gmail.com<br />

Resumo: A chama<strong>da</strong> “Peste <strong>em</strong> Ate<strong>na</strong>s” acometeu os atenienses no ano de 430 a.C., durante a Guerra <strong>do</strong><br />

Peloponeso, no governo de Péricles. A desorientação que esse ataque ocasionou, potencializou-se, principalmente,<br />

devi<strong>do</strong> à própria Guerra, que assumia proporções ca<strong>da</strong> vez mais grandiosas. Segun<strong>do</strong> o historia<strong>do</strong>r grego Tucídides,<br />

a <strong>peste</strong> era grande d<strong>em</strong>ais para ser suporta<strong>da</strong> pela <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>. Através dessa afirmação pod<strong>em</strong>os vislumbrar a<br />

desestruturação simbólica e material que o ataque desta epid<strong>em</strong>ia favoreceu, b<strong>em</strong> como o clima de me<strong>do</strong> e terror que<br />

se instalou <strong>em</strong> Ate<strong>na</strong>s, durante este perío<strong>do</strong>. Procurar<strong>em</strong>os, neste artigo, destacar pontos que nos permitam visualizar<br />

a representação <strong>do</strong> me<strong>do</strong> <strong>na</strong> obra de Tucídides, encaran<strong>do</strong> a descrição <strong>da</strong> <strong>peste</strong> como evento marcante e significativo<br />

para essa percepção.<br />

Palavras-chave: me<strong>do</strong>, <strong>peste</strong>, Tucídides, Guerra <strong>do</strong> Peloponeso.<br />

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1. lôimos<br />

“Virá um dia a guerra dória, e com ela a <strong>peste</strong>”. 1<br />

Freqüent<strong>em</strong>ente, nos deparamos com situações que abalam nossa capaci<strong>da</strong>de de<br />

percepção e representação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Na História, os ataques de <strong>peste</strong>, oferec<strong>em</strong> exatamente esse<br />

tipo de experiência, potencializa<strong>do</strong>s pela incapaci<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s seres humanos envolvi<strong>do</strong>s de<br />

resolver<strong>em</strong> a situação. Faz-se objetivo deste artigo realizar uma percepção sobre a representação<br />

<strong>da</strong> <strong>peste</strong> que assolou os atenienses, <strong>em</strong> 430 a. C., <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa de Tucídides 2 , ressaltan<strong>do</strong> os<br />

el<strong>em</strong>entos de desorientação e, conseqüente, me<strong>do</strong> <strong>do</strong>s atenienses, frente ao ataque epidêmico.<br />

As pesquisas realiza<strong>da</strong>s acerca <strong>da</strong>s epid<strong>em</strong>ias que acometeram populações, converg<strong>em</strong>,<br />

<strong>em</strong> sua grande maioria, para a manifestação <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> “Peste Negra”, ocorri<strong>da</strong> no século XIV,<br />

por ter si<strong>do</strong> esta, a melhor relata<strong>da</strong> e a maior <strong>em</strong> termos espaciais, alojan<strong>do</strong>-se <strong>em</strong> grande parte <strong>da</strong><br />

Europa. Nas descrições que o evento <strong>da</strong> “Peste Negra” possibilitou, pod<strong>em</strong>os encontrar,<br />

entretanto, traços <strong>da</strong> <strong>na</strong>rrativa desenvolvi<strong>da</strong> por Tucídides para relatar sua própria experiência<br />

acerca <strong>da</strong> <strong>peste</strong> que assolou os atenienses <strong>em</strong> 430 a. C., durante a Guerra <strong>do</strong> Peloponeso.<br />

A própria utilização de um conceito tão carrega<strong>do</strong> de senti<strong>do</strong>, como é o termo “<strong>peste</strong>”,<br />

para traduzirmos a palavra loimôs 3 , a qual Tucídides se refere <strong>em</strong> sua obra, segun<strong>do</strong> Jean-Charles<br />

Sournia, evidencia essa relação. O termo foi transporta<strong>do</strong> para o relato <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r grego<br />

devi<strong>do</strong> às s<strong>em</strong>elhanças com os escritos sobre a “Peste Negra”. Aceita-se o fato de que Tucídides<br />

estabeleceu, desta forma, uma ver<strong>da</strong>deira tradição literária <strong>da</strong> qual muitos literatos <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de<br />

Média irão se apropriar. Sournia defende a idéia de que, apesar de alguns <strong>do</strong>s sintomas<br />

aproximar<strong>em</strong>-se aos <strong>da</strong> Peste Negra, <strong>do</strong> século XIV, o flagelo ateniense não pode ser considera<strong>do</strong><br />

uma manifestação desta, pois não há a descrição de gânglios muito <strong>do</strong>lorosos: bubões que<br />

1 (TUCÍDIDES. II. 54).<br />

2 Tucídides <strong>na</strong>sceu entre os anos de 460 e 455 a. C., <strong>em</strong> Ate<strong>na</strong>s. Provavelmente entre 430 e 427 a. C., foi grav<strong>em</strong>ente<br />

atingi<strong>do</strong> pela epid<strong>em</strong>ia que assolou os atenienses, ten<strong>do</strong> se recupera<strong>do</strong> <strong>em</strong> segui<strong>da</strong>. De acor<strong>do</strong> com Francisco Murari<br />

Pires, sobre o méto<strong>do</strong> tucidideano, pod<strong>em</strong>os dizer que, <strong>na</strong> tentativa de afastar o el<strong>em</strong>ento mítico, ele potencializa seu<br />

projeto historiográfico, almejan<strong>do</strong> reduzir ao máximo a distância entre o t<strong>em</strong>po <strong>do</strong> acontecimento e t<strong>em</strong>po <strong>da</strong><br />

<strong>na</strong>rrativa, libertan<strong>do</strong> a m<strong>em</strong>ória <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po histórico <strong>da</strong> confusão de senti<strong>do</strong>s que a m<strong>em</strong>orização prolonga<strong>da</strong> favorece.<br />

Somente e tão-só através deste procedimento a ver<strong>da</strong>de histórica conseguiria sobressair-se <strong>em</strong> relação aos<br />

<strong>em</strong>belezamentos que falseiam a ver<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s fatos (PIRES, 2004, p. 96).<br />

3 Tucídides, <strong>em</strong> sua obra destaca a confusão de senti<strong>do</strong>s que o termo loimôs ocasionou <strong>na</strong> interpretação <strong>do</strong> verso:<br />

“virá um dia a guerra dória, e com ela a <strong>peste</strong>”. Segun<strong>do</strong> o historia<strong>do</strong>r, isso se deu devi<strong>do</strong> à s<strong>em</strong>elhança <strong>da</strong> palavra<br />

loimôs (<strong>peste</strong>/<strong>do</strong>ença) com limôs (fome) (TUCÍDIDES. II. 54).<br />

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apareciam <strong>na</strong>s axilas e <strong>na</strong>s virilhas, principal característica <strong>do</strong> ataque <strong>na</strong> Alta I<strong>da</strong>de Média<br />

(SOURNIA, 1984, p. 79). Esta teoria é reafirma<strong>da</strong> pelo filólogo: Francisco Antonio Garcia<br />

Romero que critica autores como Oza<strong>na</strong>m, Hooker e Williams, por ter<strong>em</strong> considera<strong>do</strong> que a<br />

epid<strong>em</strong>ia <strong>em</strong> Ate<strong>na</strong>s foi, realmente, de <strong>peste</strong> bubônica e não de varíola, tifus, sarampo, escarlati<strong>na</strong><br />

ou qualquer <strong>da</strong>s d<strong>em</strong>ais enfermi<strong>da</strong>des propostas (ROMERO, 2000, p. 259). Dentre os sintomas<br />

mais característicos <strong>da</strong> <strong>do</strong>ença a qual se refere Tucídides, encontramos:<br />

“intenso calor <strong>na</strong> cabeça... vermelhidão e inflamação nos olhos, as partes inter<strong>na</strong>s<br />

<strong>da</strong> boca ficavam imediatamente cor de sangue e passavam a exalar um hálito<br />

anormal e féti<strong>do</strong>. No estagio seguinte apareciam espirros e rouquidão, e pouco<br />

t<strong>em</strong>po depois o mal descia para o peito, seguin<strong>do</strong>-se tosse forte. Quan<strong>do</strong> o mal se<br />

fixava no estomago, este ficava perturba<strong>do</strong> e ocorriam vômitos de bile de to<strong>do</strong>s os<br />

tipos mencio<strong>na</strong><strong>do</strong>s pelos médicos, segui<strong>do</strong>s também de terrível mal estar...<br />

Exter<strong>na</strong>mente o corpo não parecia muito quente ao toque; não ficava páli<strong>do</strong>, mas<br />

de um vermelho forte e lívi<strong>do</strong>, e cheio de peque<strong>na</strong>s bolhas e ulceras...”(<br />

TUCÍDIDES. II. 49)<br />

A riqueza de detalhes, <strong>na</strong> descrição de Tucídides, surpreende ain<strong>da</strong> hoje os estudiosos. O<br />

historia<strong>do</strong>r enfatiza sua percepção direta até mesmo nos sintomas descritos, uma vez que foi, ele<br />

mesmo, vitima<strong>do</strong> pelo mal; e preocupa-se, como no restante <strong>da</strong> obra, <strong>em</strong> depositar como herança,<br />

um relato s<strong>em</strong>pre útil, como nos informa <strong>na</strong> frase: “ ... descreverei a maneira de ocorrência <strong>da</strong><br />

<strong>do</strong>ença, detalhan<strong>do</strong>-lhe <strong>do</strong>s sintomas, de tal mo<strong>do</strong> que, estu<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-os, alguém mais habilita<strong>do</strong> por<br />

seu conhecimento prévio não deixe de reconhecê-lo se algum dia ela voltar a manifestarse...”(TUCÍDIDES.<br />

II. 48).<br />

A <strong>do</strong>ença que atacou os atenienses é trata<strong>da</strong> hoje como epid<strong>em</strong>ia, <strong>na</strong> medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que este<br />

termo, segun<strong>do</strong> escritos médicos, é explica<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong> um tipo de <strong>do</strong>ença passageira, porém<br />

contagiosa (e isso implica as diversas formas de contágio existentes), que ataca ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

e no mesmo lugar grande número de pessoas. Julga-se que este termo tenha sua orig<strong>em</strong> no grego<br />

clássico: epi (sobre) + d<strong>em</strong>os (povo) e sabe-se ter si<strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong> por Hipócrates. Para o médico<br />

grego, as epid<strong>em</strong>ias relacio<strong>na</strong>vam-se com fatores climáticos, raciais, dietéticos e <strong>do</strong> meio onde as<br />

pessoas viviam.<br />

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1. A <strong>peste</strong>: me<strong>do</strong> e desorientação<br />

Pod<strong>em</strong>os vislumbrar el<strong>em</strong>entos que compõ<strong>em</strong> a manifestação <strong>da</strong> <strong>peste</strong> que assolou<br />

Ate<strong>na</strong>s, através <strong>da</strong> <strong>na</strong>rrativa elabora<strong>da</strong> por Tucídides. Este acontecimento tor<strong>na</strong>-se objeto de<br />

estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r no momento <strong>em</strong> que é representa<strong>do</strong> pelos homens, e por isso expresso ou<br />

“...materializa<strong>do</strong> através de signos: si<strong>na</strong>is, <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>as, alegorias e símbolos” ( FALCON, 2000, p.<br />

96 ). Etimologicamente, “representar” provém <strong>da</strong> forma lati<strong>na</strong> repraesentare – fazer presente ou<br />

apresentar de novo. Para Sandra Jovchelovitch o espaço <strong>da</strong> representação é constituí<strong>do</strong> pelo<br />

símbolo pressupon<strong>do</strong> a “...capaci<strong>da</strong>de de evocar presença apesar <strong>da</strong> ausência...”<br />

(JOVCHELOVITCH, 2002, p. 74). Desta forma, a ativi<strong>da</strong>de simbólica compõe-se, <strong>em</strong> essência,<br />

no reconhecimento de uma <strong>da</strong><strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de compartilha<strong>da</strong>: a reali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> sujeito, <strong>do</strong> objeto e a <strong>do</strong><br />

“Outro”.<br />

Segun<strong>do</strong> Tucídides a <strong>peste</strong> manifestou pela primeira vez alguns dias após a entra<strong>da</strong> <strong>do</strong>s<br />

peloponésios e seus alia<strong>do</strong>s <strong>na</strong> região <strong>da</strong> Ática. O desvio <strong>da</strong>s condições normais de vi<strong>da</strong>, segun<strong>do</strong><br />

este historia<strong>do</strong>r, foi tão profun<strong>do</strong> e o caráter <strong>da</strong> <strong>do</strong>ença tão desafia<strong>do</strong>r, que a violência <strong>do</strong> ataque<br />

foi “grande d<strong>em</strong>ais para ser suporta<strong>da</strong> pela <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>.” (TUCÍDIDES. II. 50). O papel que<br />

Tucídides atribui à figura política <strong>do</strong> estratego Péricles é de fun<strong>da</strong>mental importância para<br />

pensarmos o evento epidêmico, pois <strong>na</strong> tentativa de adquirir uma vitória para Ate<strong>na</strong>s, o político<br />

convence a população a se refugiar dentro <strong>da</strong>s muralhas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, (aban<strong>do</strong><strong>na</strong>n<strong>do</strong> assim suas<br />

casas <strong>em</strong> outras regiões), com a idéia de fazer guerra por mar, pois confiava no poderio de sua<br />

esquadra.<br />

Mais a diante, Tucídides esclarece que a esquadra esparta<strong>na</strong> havia se aperfeiçoa<strong>do</strong><br />

notavelmente, prolongan<strong>do</strong> uma guerra que, segun<strong>do</strong> Péricles, seria rapi<strong>da</strong>mente venci<strong>da</strong>.<br />

Enquanto isso, os atenienses permaneciam aglomera<strong>do</strong>s e s<strong>em</strong> condições de higiene. Como<br />

plantações inteiras foram devasta<strong>da</strong>s devi<strong>do</strong> à guerra, faltou comi<strong>da</strong> para suprir as necessi<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> população, o que gerou acentua<strong>da</strong> imunodeficiência e fraqueza.<br />

Segun<strong>do</strong> o historia<strong>do</strong>r grego, esses fatores, agrava<strong>do</strong>s pela longa duração <strong>da</strong> guerra,<br />

acabaram geran<strong>do</strong> um ambiente favorável ao surgimento <strong>da</strong> <strong>peste</strong>. A característica mais notável<br />

deste esta<strong>do</strong> epidêmico era a apatia ou apatheia no grego clássico, situação caracteriza<strong>da</strong> pelo<br />

desinteresse absoluto, pela indiferença ou insensibili<strong>da</strong>de aos acontecimentos (REY, 1999, p. 15),<br />

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que <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>va as pessoas ao se ver<strong>em</strong> entre as vítimas, pois a morte era quase certa, e esses<br />

<strong>do</strong>entes eram praticamente aban<strong>do</strong><strong>na</strong><strong>do</strong>s, pois o contágio se <strong>da</strong>va de forma muito fácil, rápi<strong>do</strong> e<br />

desconheci<strong>do</strong>.<br />

A experiência de Tucídides gerou uma descrição rica de informações e detalhes acerca<br />

dessa catástrofe e <strong>do</strong>s sintomas que ela geraria. Segun<strong>do</strong> ele, aquele ano havia si<strong>do</strong><br />

excepcio<strong>na</strong>lmente saudável quanto às outras <strong>do</strong>enças que geralmente ocorriam de forma muito<br />

habitual <strong>na</strong> Grécia, como por ex<strong>em</strong>plo: a pneumonia, a gota, a cirrose, a caxumba, a tuberculose,<br />

a malária e a diarréia. Havia também relatos de <strong>do</strong>enças de pele muito comuns <strong>na</strong> sua forma<br />

exant<strong>em</strong>ática caracteriza<strong>da</strong> por uma vermelhidão cutânea, como sarampo, catapora e escarlati<strong>na</strong>,<br />

além de descrições de difteria e graves infecções <strong>na</strong> boca e no pescoço. O fato de ter ocorri<strong>do</strong><br />

uma diminuição perceptível desses casos gerava um clima anormal, pois até aquelas<br />

enfermi<strong>da</strong>des comuns de acontecer<strong>em</strong> <strong>na</strong>quele ano não aconteceram .<br />

Sobre o caráter <strong>da</strong> epid<strong>em</strong>ia <strong>em</strong> questão, a despeito <strong>da</strong> discussão biológica <strong>da</strong> <strong>do</strong>ença, é<br />

importante perceber sua relação com os aspectos culturais. Nota-se que a <strong>peste</strong>, constituiu-se,<br />

entre os antigos historia<strong>do</strong>res, como uma espécie de arquétipo <strong>da</strong> <strong>do</strong>ença, estan<strong>do</strong> presente, além<br />

<strong>da</strong> descrição encontra<strong>da</strong> <strong>na</strong> História <strong>da</strong> Guerra <strong>do</strong> Peloponeso, <strong>em</strong> mais duas obras essenciais<br />

para o estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> cultura grega: <strong>na</strong> Ilía<strong>da</strong>, e <strong>em</strong> Édipo Rei.. Em um <strong>do</strong>s artigos <strong>do</strong> livro História:<br />

novos objetos, intitula<strong>do</strong> “O corpo”, de Jacques Revel e Jean-Pierre Peter, encontramos uma<br />

ver<strong>da</strong>deira teoria sobre a <strong>peste</strong>. Segun<strong>do</strong> estes <strong>do</strong>is autores, ela é forma<strong>da</strong> por dualismos, pois, <strong>em</strong><br />

si mesma, constitui uma história que, no entanto, v<strong>em</strong> <strong>do</strong> exterior mu<strong>do</strong> <strong>da</strong> historia, ou seja, se<br />

pensarmos a história como um processo ou curso, a <strong>peste</strong>, parece ser um fator externo a ela, que<br />

repenti<strong>na</strong>mente invade a humani<strong>da</strong>de e se retira. A epid<strong>em</strong>ia parece exterior para aquelas<br />

populações que são acometi<strong>da</strong>s por ela, que viv<strong>em</strong> o desenrolar <strong>do</strong>s acontecimentos, mas, no<br />

entanto, quan<strong>do</strong> realizamos uma análise dessa catástrofe perceb<strong>em</strong>os que ela não surge s<strong>em</strong><br />

precedentes, mas que sua história se desenvolve paralelamente à vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s homens, porém estan<strong>do</strong><br />

liga<strong>da</strong> direta ou indiretamente às ações huma<strong>na</strong>s. Quan<strong>do</strong> <strong>peste</strong> e hom<strong>em</strong> se defrontam, estes se<br />

encontram despreveni<strong>do</strong>s, pois estão preocupa<strong>do</strong>s d<strong>em</strong>ais com suas próprias necessi<strong>da</strong>des, não<br />

sen<strong>do</strong> capazes de perceber uma história que não se desenvolve explicitamente, mesmo sen<strong>do</strong>,<br />

muitas vezes, reflexo de seus comportamentos. Assim,<br />

“a <strong>peste</strong> é por excelência social, porém seu lugar <strong>na</strong> socie<strong>da</strong>de não é assi<strong>na</strong>lável;<br />

ela é evidente, mas impalpável; coletiva (<strong>na</strong> medi<strong>da</strong> que atinge populações), mas<br />

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assi<strong>na</strong>lável sobre um único indivíduo. O grupo encontra nela to<strong>da</strong>s as<br />

interrogações que traz <strong>em</strong> si mesmo (pois é <strong>em</strong> situações desse tipo, de desespero,<br />

e melhor, desorientação, que v<strong>em</strong> à to<strong>na</strong> to<strong>do</strong>s os preconceitos e me<strong>do</strong>s.)”<br />

(REVEL & PETER, 1976, p.142).<br />

Desta forma, o acontecimento epidêmico caracteriza-se como um lugar privilegia<strong>do</strong> de<br />

visualização <strong>do</strong>s mecanismos e práticas <strong>da</strong> população afeta<strong>da</strong>, servin<strong>do</strong> como espelho refletor <strong>da</strong><br />

imag<strong>em</strong> que a socie<strong>da</strong>de t<strong>em</strong> de si mesma.<br />

A descrição que Tucídides realiza <strong>do</strong> ataque de <strong>peste</strong>, comporta el<strong>em</strong>entos de uma níti<strong>da</strong><br />

manifestação <strong>do</strong> me<strong>do</strong> entre os atenienses. Os t<strong>em</strong>ores coletivos são evidencia<strong>do</strong>s pela<br />

desconfiança <strong>na</strong>quilo que antes, oferecia certezas. Encontramos assim, dúvi<strong>da</strong>s <strong>na</strong> relação entre<br />

homens e deuses, <strong>na</strong> d<strong>em</strong>ocracia, nos saberes, principalmente <strong>na</strong> arte médica, como evidencia o<br />

trecho abaixo:<br />

“Diz<strong>em</strong> que ela [<strong>peste</strong>] apareceu anteriormente <strong>em</strong> vários lugares (<strong>em</strong> L<strong>em</strong>nos e<br />

outras ci<strong>da</strong>des), mas <strong>em</strong> parte alguma se tinha l<strong>em</strong>brança de <strong>na</strong><strong>da</strong> comparável<br />

como calami<strong>da</strong>de ou <strong>em</strong> termos de destruição de vi<strong>da</strong>s. N<strong>em</strong> os médicos eram<br />

capazes de enfrentar a <strong>do</strong>ença, já que de início tinham de tratá-la s<strong>em</strong> lhe conhecer<br />

a <strong>na</strong>tureza e que a mortali<strong>da</strong>de entre eles era maior, por estar<strong>em</strong> mais expostos a<br />

ela, n<strong>em</strong> qualquer outro recurso humano era <strong>da</strong> menor valia. As preces feitas nos<br />

santuários, ou os apelos aos oráculos e atitudes s<strong>em</strong>elhantes foram to<strong>da</strong>s inúteis e,<br />

afi<strong>na</strong>l, a população desistiu delas, venci<strong>da</strong> pelo flagelo.” (TUCÍDIDES. II. 47)<br />

V<strong>em</strong>os assim que a <strong>peste</strong> é, “quase s<strong>em</strong>pre, um el<strong>em</strong>ento de desorganização e<br />

reorganização social” (REVEL & PETER, 1976, p.144), ou seja, devi<strong>do</strong> à sua característica<br />

súbita, quase s<strong>em</strong>pre as técnicas existentes não são suficientes ou até mesmo adequa<strong>da</strong>s para<br />

contê-la ou exterminá-la. No caso ateniense, tor<strong>na</strong>-se necessário, assim, desconstruir to<strong>do</strong> um<br />

pensamento relativamente estável como se encontrava o pensamento médico e político <strong>na</strong> Grécia,<br />

no V século a.C., devi<strong>do</strong> às bases hipocráticas e à d<strong>em</strong>ocracia sob o governo de Péricles, para se<br />

construir outros suportes. Porém, esse movimento não se completa de forma imediata, e enquanto<br />

t<strong>em</strong>os essa tentativa de reestruturação, v<strong>em</strong>os instala<strong>da</strong> a desorientação e o caos.<br />

Nas palavras de Tucídides: “de um mo<strong>do</strong> geral a <strong>peste</strong> introduziu <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de pela primeira<br />

vez a a<strong>na</strong>rquia total” (TUCIDIDES. II. 53). No âmbito político, o aparecimento <strong>da</strong> epid<strong>em</strong>ia,<br />

possibilitou um revigoramento no <strong>em</strong>bate entre Cléon, hábil ora<strong>do</strong>r, e Péricles. O flagelo <strong>da</strong><br />

<strong>do</strong>ença agravava o furor popular já açula<strong>do</strong> pela presença <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de de uma enorme massa de<br />

refugia<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s campos devasta<strong>do</strong>s pelos peloponésios. Os atenienses censuravam Péricles (que<br />

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morreu posteriormente vitima<strong>do</strong> pela epid<strong>em</strong>ia), pela decisão de manter to<strong>do</strong>s confi<strong>na</strong><strong>do</strong>s <strong>na</strong>s<br />

muralhas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. No campo <strong>do</strong>s saberes, houve uma per<strong>da</strong> sensível <strong>da</strong>s certezas e descobertas<br />

que haviam consagra<strong>do</strong> o século V, como um perío<strong>do</strong> de esplen<strong>do</strong>r e efervescência artística e<br />

cultural 4 .<br />

2. História e medici<strong>na</strong>: relação de saberes<br />

A medici<strong>na</strong>, no momento <strong>da</strong> manifestação <strong>da</strong> Peste, <strong>em</strong> Ate<strong>na</strong>s, desenvolvi<strong>da</strong> enquanto<br />

saber especializa<strong>do</strong> e eficaz contra os males <strong>do</strong> corpo encontrou, no ataque <strong>em</strong> questão, seu maior<br />

desafio. Segun<strong>do</strong> Tucídides “não houve nenhum r<strong>em</strong>édio, pode-se dizer, que contribuísse para o<br />

alívio de qu<strong>em</strong> o tomasse” (TUCÍDIDES. II.51). A prática médica, neste momento, resumia-se <strong>na</strong><br />

figura de Hipócrates 5 e sua relação com a <strong>na</strong>rrativa tucididea<strong>na</strong> é notável. O médico, assim como<br />

o historia<strong>do</strong>r e o político, é posicio<strong>na</strong><strong>do</strong>, <strong>na</strong> História <strong>da</strong> Guerra <strong>do</strong> Peloponeso, como o porta<strong>do</strong>r<br />

<strong>do</strong> “justo meio”, “... como o ator <strong>do</strong> ideal <strong>da</strong> razoabili<strong>da</strong>de fun<strong>da</strong><strong>da</strong> exclusivamente sobre a<br />

medi<strong>da</strong>” (CAIRUS, 2005, p. 36), como pod<strong>em</strong>os perceber no trecho a seguir:<br />

“E tu, presidente, se pensas que teu dever é zelar pelo b<strong>em</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e se desejas<br />

mostrar-te um bom ci<strong>da</strong>dão, submete esta matéria novamente a voto e obtém uma<br />

nova decisão <strong>do</strong>s atenienses. Se receias submeter a matéria novamente a voto,<br />

considera que não há culpa se se transgride a lei <strong>em</strong> presença de tantas<br />

test<strong>em</strong>unhas; ao contrário, tor<strong>na</strong>r-te-ás o médico <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de numa hora <strong>em</strong> que ela<br />

deliberou mal; o bom gover<strong>na</strong>nte é aquele que presta à sua ci<strong>da</strong>de o maior número<br />

4 Apesar <strong>do</strong> desenvolvimento artístico e cultural não ter ocorri<strong>do</strong> ape<strong>na</strong>s <strong>em</strong> Ate<strong>na</strong>s, a maior parte <strong>do</strong>s escritores <strong>do</strong><br />

século V, cuja obra driblou a ação <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po, é forma<strong>da</strong> por atenienses; nos permitin<strong>do</strong> vislumbrar o<br />

desenvolvimento <strong>da</strong>s idéias nesta ci<strong>da</strong>de. Sobre o “Século de Péricles”, ver: MAFFRE, J. J. O século de Péricles.<br />

Lisboa: Europa-América, 1993.<br />

5 Hipócrates <strong>na</strong>sceu <strong>na</strong> ilha de Cós <strong>em</strong> 460 a.C. aproxima<strong>da</strong>mente, e morreu <strong>na</strong> ilha de Thessaly <strong>em</strong> 370 a.C.. Foi<br />

professor <strong>em</strong> Cós e praticante itinerante <strong>da</strong> arte médica. Desenvolveu estu<strong>do</strong>s sobre: a<strong>na</strong>tomia, fisiologia, patologia,<br />

terapia, diagnóstico, prognóstico, cirurgia, ginecologia, obstetrícia, <strong>do</strong>enças mentais, ética e criou o famoso<br />

juramento hipocrático. Tu<strong>do</strong> o que conhec<strong>em</strong>os sobre a medici<strong>na</strong> desenvolvi<strong>da</strong> por Hipócrates está conti<strong>do</strong> numa<br />

coleção de 72 livros denomi<strong>na</strong><strong>do</strong> Corpus hippocraticus e nos comentário que alguns autores como Sorano (300 a. C.)<br />

e Galeno (médico no Império Romano) realizaram sobre ele. Segun<strong>do</strong> Wilson Ribeiro “as informações sobre a vi<strong>da</strong><br />

de Hipócrates estão de tal forma mescla<strong>da</strong>s a len<strong>da</strong>s que tor<strong>na</strong>-se quase impossível averiguá-las de forma precisa.”<br />

(JUNIOR, 2005, p. 11). Pod<strong>em</strong>os afirmar, porém, que a existência deste médico coincidiu aproxima<strong>da</strong>mente com a<br />

Guerra <strong>do</strong> Peloponeso e que provavelmente ele foi um <strong>do</strong>s médicos pioneiros que, no século V a. C., <strong>em</strong>penhavamse<br />

<strong>em</strong> desvincular a medici<strong>na</strong> <strong>da</strong> filosofia e <strong>em</strong> reconhecê-la como uma “tekné”, uma “arte” autônoma, <strong>em</strong>bora não<br />

possamos desvincular as especulações filosóficas de Platão às idéias divulga<strong>da</strong>s pela “arte de curar”. Não é à toa que<br />

o famoso Corpus Hippocraticum ou Coleção Hipocrática encontra-se no dialéto Jônico, apesar <strong>do</strong> dialeto dórico<br />

prevalecer <strong>na</strong> região de Cós, sede <strong>da</strong> “Escola Hipocrática”. A Jônia freqüent<strong>em</strong>ente fornecia escritores e sábios;<br />

sen<strong>do</strong> o Jônico freqüente nos escritos filosóficos e poéticos.<br />

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possível de bons serviços, ou pelo menos não a prejudica conscient<strong>em</strong>ente.”<br />

(TUCÍDIDES. VI. 14).<br />

Tucídides também atribui esse papel de juiz ao historia<strong>do</strong>r quan<strong>do</strong> apresenta-se como<br />

aquele que, quan<strong>do</strong> não assiste diretamente o ocorri<strong>do</strong>, escuta as test<strong>em</strong>unhas e, através de um<br />

rigoroso méto<strong>do</strong>, estabelece, a despeito <strong>da</strong> insuficiência <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória ou <strong>do</strong> engajamento cego <strong>do</strong>s<br />

seus informantes o que realmente aconteceu. A palavra grega que acompanha esta idéia é histor,<br />

caracterizan<strong>do</strong> a figura de autori<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quele que <strong>da</strong>rá o aval <strong>da</strong>quilo que ficar convencio<strong>na</strong><strong>do</strong><br />

pelas duas partes, autentican<strong>do</strong>, porém, a ver<strong>da</strong>de de ape<strong>na</strong>s uma posição, ou seja, Tucídides não<br />

se identifica necessariamente com qu<strong>em</strong> presenciou e viu a manifestação <strong>do</strong> fato ocorri<strong>do</strong> no<br />

passa<strong>do</strong>, antes, é seu papel o fazer ver. O histor, assim, é aquele que alcança a ver<strong>da</strong>de, porque<br />

sabe separar o dizer verídico <strong>do</strong> falso.<br />

A idéia de equilíbrio também compõe a figura de autori<strong>da</strong>de <strong>do</strong> médico hipocrático <strong>na</strong><br />

tentativa de restabelecer a saúde. A medici<strong>na</strong> de Hipócrates era nortea<strong>da</strong> pela teoria humoral, que<br />

reside <strong>na</strong> concepção de que, assim como a <strong>na</strong>tureza, o mun<strong>do</strong> era forma<strong>do</strong> pelos el<strong>em</strong>entos: água,<br />

ar, fogo e terra. O organismo humano, por sua vez seria forma<strong>do</strong> pelo sangue, fleuma, bile<br />

amarela e bile negra. Isto, porque buscava-se a explicação <strong>da</strong> saúde ou <strong>da</strong> <strong>do</strong>ença pela observação<br />

<strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza. Assim, segun<strong>do</strong> Jacques Le Goff:"...a saúde era, <strong>em</strong> primeiro lugar, o esta<strong>do</strong> <strong>em</strong> que<br />

as substâncias constituintes <strong>do</strong> organismo, estariam numa proporção correta de uma <strong>em</strong> relação à<br />

outra, tanto <strong>em</strong> força quanto <strong>em</strong> quanti<strong>da</strong>de, estan<strong>do</strong> b<strong>em</strong> mistura<strong>da</strong>s" ( LE GOFF, 1997, p. 45).<br />

As <strong>do</strong>enças caracterizariam-se pela desord<strong>em</strong>, pelo desequilíbrio e era papel <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza<br />

restabelecer essa harmonia perdi<strong>da</strong>, sen<strong>do</strong> que o médico deveria atuar ape<strong>na</strong>s como um auxílio.<br />

Peter Jones dirá que “a prática médica grega neste perío<strong>do</strong>, estava centra<strong>da</strong> no<br />

prognóstico”(JONES, 1997, p. 305), isto é, <strong>na</strong> cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sa observação <strong>do</strong>s rumos que a <strong>do</strong>ença<br />

tomava. O médico observava os sintomas objetivan<strong>do</strong> chegar a um diagnóstico. Pod<strong>em</strong>os<br />

observar também essa preocupação com a compreensão e, de certa forma, com a realização de<br />

um diagnóstico, <strong>em</strong> Tucídides, <strong>na</strong> sua <strong>na</strong>rrativa sobre a guerra. Na descrição que faz sobre a<br />

epid<strong>em</strong>ia que acometeu os atenienses, Tucídides, esforça-se por rastrear o caminho <strong>da</strong> <strong>do</strong>ença,<br />

procuran<strong>do</strong> apontar possíveis causas para o mal. Além disso, é importante enfatizar que o elo de<br />

ligação entre esses <strong>do</strong>is saberes, freqüent<strong>em</strong>ente, ultrapassa a questão <strong>do</strong> discurso encontran<strong>do</strong>-se<br />

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no próprio objeto de pesquisa, uma vez que o corpo transforma-se, <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa tucididea<strong>na</strong>, <strong>em</strong><br />

metáfora para a socie<strong>da</strong>de<br />

“...que transforma<strong>da</strong> <strong>em</strong> corpo social viria a sofrer males como a invasão de<br />

<strong>do</strong>enças... Tucídides <strong>na</strong>rra a crise <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> helênico com o conflito <strong>do</strong><br />

Peloponeso. Essa crise mostra-se ao olhar <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r como o corpo <strong>do</strong>ente ao<br />

olhos <strong>do</strong>s médicos hipocráticos” (MOLLO, 1995, p. 85).<br />

Assim, para Francisco Marshall, “as relações <strong>do</strong> discurso historiográfico clássico,<br />

particularmente o de Tucídides, com o ambiente cientificista <strong>do</strong> século V a. C., desde bastante<br />

t<strong>em</strong>po chamara a atenção <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res.” 6 (MARSALL, 1999, p. 73). É considerável,<br />

portanto, eluci<strong>da</strong>r pontos de convergência entre os saberes médicos e históricos uma vez que a<br />

socie<strong>da</strong>de “é produto de angústias, fantasias e sonhos, projeta<strong>do</strong>s <strong>na</strong>s utopias que elabora, ou seja,<br />

para o sentimento de identi<strong>da</strong>de coletiva, mais importante <strong>do</strong> que viver a mesma reali<strong>da</strong>de<br />

concreta é sonhar os mesmos sonhos” (RODRIGUES, 1988, p. 9). Destarte v<strong>em</strong>os disponível<br />

uma relação, de fato, entre os saberes produzi<strong>do</strong>s e, nesse caso, a influência que a medici<strong>na</strong><br />

hipocrática obtém <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa tudididea<strong>na</strong> é consideravelmente perceptível.<br />

3. Desorientação nos “costumes”<br />

A desorientação advin<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>peste</strong> atingiu também, profun<strong>da</strong>mente, o âmbito <strong>do</strong>s<br />

costumes. O equilíbrio entre os vivos e os mortos foi altera<strong>do</strong> pelo t<strong>em</strong>or <strong>do</strong> contágio. As práticas<br />

fúnebres foram sensivelmente aban<strong>do</strong><strong>na</strong><strong>da</strong>s e “muitos recorreram a mo<strong>do</strong>s escabrosos de<br />

sepultamento” (TUCÍDIDES. II. 52). O caráter caótico proveniente desta situação tor<strong>na</strong>-se<br />

explicável ao percebermos a enorme importância <strong>do</strong>s ritos <strong>da</strong> morte <strong>na</strong> socie<strong>da</strong>de. Segun<strong>do</strong> José<br />

Carlos Rodrigues “os rituais mortuários, comunicam, assimilam, e expulsam o impacto que<br />

provoca o fantasma <strong>do</strong> aniquilamento” (RODRIGUES, 1983, p. 21).<br />

Em Ate<strong>na</strong>s, as orações fúnebres assumiam lugar de destaque <strong>na</strong> relação com os mortos. O<br />

aban<strong>do</strong>no desta prática representa, assim, uma desorientação, no universo simbólico <strong>do</strong>s<br />

6 Essa preocupação é i<strong>na</strong>ugura<strong>da</strong> pelos historia<strong>do</strong>res que se procuraram <strong>em</strong> estruturar a história como discipli<strong>na</strong><br />

acadêmica no século XIX, historia<strong>do</strong>res positivistas como Droysen, Ranke, Langlois e Seignobos, estão no cerne <strong>da</strong><br />

construção dessa formulação discipli<strong>na</strong>r <strong>da</strong> história. Talvez neste momento t<strong>em</strong>os a formação e a consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong><br />

imag<strong>em</strong> de um Tucídides rigoroso <strong>na</strong> definição e aplicação <strong>do</strong> méto<strong>do</strong>, modelo que adequou-se perfeitamente à<br />

historiografia escrupulosa que então se projetava. (MARSALL, 1999).<br />

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atenienses. Nicole Loraux destaca que a oração fúnebre é um gênero discursivo que foi, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po instância privilegia<strong>da</strong> <strong>da</strong> elaboração de um modelo de pólis genérica que nós<br />

chamamos clássica (LORAUX, 1994, p. 9).<br />

Os funerais públicos pod<strong>em</strong> ser considera<strong>do</strong>s como operações ideológicas fort<strong>em</strong>ente<br />

enraiza<strong>da</strong>s, pois é uma relação que a coletivi<strong>da</strong>de estabelece, senão com a sua própria morte, ao<br />

menos com a <strong>do</strong>s seus, numa tentativa de exorcizar o aniquilamento por meio <strong>da</strong> palavra de<br />

glória, ou seja, <strong>na</strong> representação que os atenienses constro<strong>em</strong> <strong>da</strong> morte, visualiza<strong>da</strong> por meio de<br />

símbolos, cria-se uma espécie de identificação e de um sentimento de pertencimento, devi<strong>do</strong> à<br />

experiência partilha<strong>da</strong>, já que esta, constitui a essência <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de simbólica<br />

(JOVCHELOVITCH, 1995, p. 74). Isso porque o espaço <strong>do</strong>s símbolos é o espaço onde não<br />

encontramos ple<strong>na</strong>mente delinea<strong>da</strong> a fronteira entre o Eu como reali<strong>da</strong>de inter<strong>na</strong> e o Um como<br />

reali<strong>da</strong>de compartilha<strong>da</strong>, conten<strong>do</strong>-os ao mesmo t<strong>em</strong>po, sen<strong>do</strong> , portanto, o espaço <strong>em</strong> potencial,<br />

onde coisas diferentes pod<strong>em</strong> significar umas as outras. Pod<strong>em</strong>os dizer destarte que é “a<br />

referência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que garante a <strong>na</strong>tureza criativa <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de simbólica, de tal forma que a<br />

experiência de outros, cria continuamente a experiência que constitui a reali<strong>da</strong>de de to<strong>do</strong>s 7 .”<br />

(JOVCHELOVITCH, 1995, p. 74).<br />

Nicole Loraux, enfatiza que os discursos fúnebres são importantes para a permanência <strong>do</strong><br />

ideal <strong>da</strong> pólis, ao funcio<strong>na</strong>r<strong>em</strong>, mais <strong>do</strong> que como instrumento para a manutenção <strong>da</strong> “boa<br />

l<strong>em</strong>brança” morto, como artifício para coesão social, uma vez que: “...encarregavam-se de<br />

l<strong>em</strong>brar aos atenienses que, apesar <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de de seus atos, <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s situações e<br />

<strong>da</strong>s vicissitudes <strong>do</strong> futuro, a pólis permanece uma e única.” (LORAUX, 1994, p. 151).<br />

A pólis , assim, honra seus ci<strong>da</strong>dãos mortos por meio <strong>da</strong> oração fúnebre e reencontra-se<br />

a si própria, no discurso, estabelecen<strong>do</strong>-se como orig<strong>em</strong> ou causa fi<strong>na</strong>l <strong>da</strong> morte, como<br />

encontramos <strong>em</strong> Tucídides quan<strong>do</strong> este descreve o discurso de Péricles frente ao<br />

descontentamento <strong>da</strong> população:<br />

“...mesmo quan<strong>do</strong> um hom<strong>em</strong> é feliz <strong>em</strong> seus negócios priva<strong>do</strong>, se a sua ci<strong>da</strong>de<br />

se arruí<strong>na</strong> ele perece com ela; se, to<strong>da</strong>via, ele se encontra <strong>em</strong> má situação, mas sua<br />

ci<strong>da</strong>de está próspera, é mais provável que ele se saia b<strong>em</strong>. Portanto, se a ci<strong>da</strong>de<br />

7 É importante ressaltar que a construção simbólica insere-se numa “estrutura social”, onde alguns grupos adquir<strong>em</strong><br />

uma posição privilegia<strong>da</strong> à imposição de suas construções, sen<strong>do</strong>, portanto, essencial notarmos relações entre<br />

construção simbólica e resistência sen<strong>do</strong> esta um el<strong>em</strong>ento constitutivo <strong>da</strong>s representações (BAUER APUD<br />

GUARESCHI, 2002, p. 23).<br />

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pode suportar o infortúnio de seus habitantes <strong>na</strong> vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong>, mas o indivíduo não<br />

pode resistir ao dela, to<strong>do</strong>s certamente dev<strong>em</strong> defendê-la...” (TUCÍDIDES. II. 60).<br />

Essa imag<strong>em</strong> de Ate<strong>na</strong>s como uma uni<strong>da</strong>de, como modelo de pólis u<strong>na</strong>, indivisível e<br />

equilibra<strong>da</strong>, configura-se, segun<strong>do</strong> Nicole, como um modelo historicamente construí<strong>do</strong> para uso<br />

<strong>do</strong>s atenienses e nosso, ou seja, é provável que, celebran<strong>do</strong> uma pólis conforme seus desejos, os<br />

atenienses tenham elabora<strong>do</strong>, para uso próprio e para uma possível posteri<strong>da</strong>de, uma figura de si<br />

mesmos, que influenciou e influência ain<strong>da</strong> hoje to<strong>da</strong> a história de Ate<strong>na</strong>s 8 (LORAUX, 1994, p.<br />

23). Percebe-se aí uma espécie de função <strong>do</strong> discurso fúnebre no interior <strong>da</strong> pólis, pois se o<br />

discurso é inventa<strong>do</strong> pelos atenienses, contribui reciprocamente <strong>na</strong> constituição identitária de<br />

Ate<strong>na</strong>s, atuan<strong>do</strong> como prática <strong>do</strong>ta<strong>da</strong> de senti<strong>do</strong>.<br />

Em Tucídides 9 , v<strong>em</strong>os um ex<strong>em</strong>plo claro dessa descrição de si próprio enquanto ateniense<br />

e <strong>do</strong> ideal de uni<strong>da</strong>de, vislumbra<strong>do</strong> explicitamente no discurso de Péricles <strong>em</strong> decorrência <strong>da</strong><br />

quanti<strong>da</strong>de de mortos <strong>na</strong>s batalhas e no ataque de <strong>peste</strong>.<br />

Estão presentes também, <strong>na</strong> História <strong>da</strong> Guerra <strong>do</strong> Peloponeso, el<strong>em</strong>entos visíveis que<br />

caracterizam os âmbitos <strong>do</strong> público e <strong>do</strong> priva<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> Serge Moscovici a relação entre o<br />

individual e o coletivo é uma reali<strong>da</strong>de fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>em</strong> socie<strong>da</strong>de. Segun<strong>do</strong> este autor<br />

“to<strong>da</strong>s as culturas possu<strong>em</strong> instituições e normas formais que conduz<strong>em</strong> , de uma<br />

parte à individualização, e de outra, à socialização. As representações que elas<br />

elaboram carregam a marca desta tensão, conferin<strong>do</strong>-lhe um senti<strong>do</strong> e procuran<strong>do</strong><br />

mantê-la nos limites <strong>do</strong> suportável. Não existe sujeito s<strong>em</strong> sist<strong>em</strong>a n<strong>em</strong> sist<strong>em</strong>a<br />

s<strong>em</strong> sujeito. O papel <strong>da</strong>s representações partilha<strong>da</strong>s é o de assegurar que sua<br />

coexistência seja possível.”(MOSCOVICI, 2002, p. 12).<br />

Na socie<strong>da</strong>de grega o âmbito <strong>do</strong> público, reside <strong>na</strong> figura <strong>da</strong> pólis, enquanto que o priva<strong>do</strong><br />

encontra sua manifestação <strong>na</strong> vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> lar. Na obra de Han<strong>na</strong>h Arendt, encontramos uma<br />

discussão bastante profícua <strong>em</strong> relação a esses ambientes. A autora estabelece a idéia de que o<br />

próprio surgimento <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de-Esta<strong>do</strong> significou que hom<strong>em</strong> recebera, além de sua vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong>,<br />

uma espécie de segun<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> o seu bios politikos, haven<strong>do</strong> uma grande diferença entre aquilo que<br />

lhe é próprio (idion) e o que lhe é comum (koinon) (ARENDT, 2005, p. 33). Desta forma, a<br />

8 Mesmo sen<strong>do</strong> formula<strong>da</strong>s <strong>em</strong> 1981, as questões, presentes <strong>na</strong> obra de Nicole Loraux: A ivenção de Ate<strong>na</strong>s,<br />

concernentes à influência <strong>do</strong> discurso oficial <strong>na</strong> compreensão <strong>do</strong>s epitáphioi, vali<strong>da</strong>m-se ain<strong>da</strong> hoje.<br />

9 A despeito <strong>da</strong>s questões críticas acerca <strong>da</strong> precipita<strong>da</strong> postura de considerar os discursos fúnebres <strong>na</strong>s <strong>na</strong>rrativas<br />

atenienses como um bloco, desenvolvi<strong>da</strong>s por Nicole Loraux, é necessário focar nosso estu<strong>do</strong> às manifestações<br />

tucididea<strong>na</strong>s acerca <strong>do</strong> fenômeno.<br />

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Guerra e a Peste promov<strong>em</strong> o caos, porque liqui<strong>da</strong>m a fronteira entre os âmbitos, Tucídides dirá<br />

que:<br />

“as revoluções trouxeram para as ci<strong>da</strong>des numerosas e terríveis calami<strong>da</strong>des,<br />

como t<strong>em</strong> aconteci<strong>do</strong> e continuará a acontecer enquanto a <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong> for a<br />

mesma;... Na paz e prosperi<strong>da</strong>de as ci<strong>da</strong>des e os indivíduos têm melhores<br />

sentimentos, porque não são força<strong>do</strong>s a enfrentar dificul<strong>da</strong>des extr<strong>em</strong>as; a guerra,<br />

ao contrário, que priva os homens <strong>da</strong> satisfação até de suas necessi<strong>da</strong>des<br />

cotidia<strong>na</strong>s, é uma mestra violenta....Na reali<strong>da</strong>de, os laços de parentesco ficam<br />

mais fracos que os <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>, no qual os homens se dispõ<strong>em</strong> mais decidi<strong>da</strong>mente<br />

a tu<strong>do</strong> ousar s<strong>em</strong> per<strong>da</strong> de t<strong>em</strong>po, pois tais associações não se constitu<strong>em</strong> para o<br />

b<strong>em</strong> público respeitan<strong>do</strong> as leis existentes, mas para violar<strong>em</strong> a ord<strong>em</strong><br />

estabeleci<strong>da</strong> ao sabor <strong>da</strong> ambição.” (TUCÍDIDES. III. 82)<br />

O rompimento de uma ord<strong>em</strong> entre o b<strong>em</strong> <strong>da</strong> pólis e o <strong>do</strong>s indivíduos, é, de fato,<br />

explicita<strong>do</strong> nesse trecho. O <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> pólis era o espaço <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, e se havia uma relação<br />

íntima entre os <strong>do</strong>is âmbitos era que a vitória sobre as necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>em</strong> família constituía<br />

a condição <strong>na</strong>tural para a liber<strong>da</strong>de <strong>na</strong> pólis, sen<strong>do</strong> esta situação uma <strong>da</strong>s condições primordiais<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> grega (ARENDT, 2005, p. 40).<br />

A guerra e a <strong>peste</strong> eram exatamente o tipo de configuração que propiciava o retorno à<br />

condição huma<strong>na</strong> tucididea<strong>na</strong>, reconduzin<strong>do</strong> o hom<strong>em</strong> ao seu esta<strong>do</strong> de orig<strong>em</strong>. Nesse caso a<br />

Guerra <strong>do</strong> Peloponeso seria um ex<strong>em</strong>plo marcante de uma situação <strong>em</strong> que as forças liberta<strong>do</strong>ras<br />

<strong>da</strong> “<strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>” atingiriam suas potenciali<strong>da</strong>des, uma vez que se caracterizou pelo desejo<br />

de imperialismo e poder de um la<strong>do</strong> e pelo t<strong>em</strong>or <strong>da</strong> <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ção de outro; além de d<strong>em</strong>onstrar a<br />

cruel<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s meios de que se valeram os ci<strong>da</strong>dãos para cumprir os objetivos <strong>da</strong>s batalhas:<br />

vencer e subjugar o outro, pois, como afirma Tucídides: “é absur<strong>do</strong> e seria ingenui<strong>da</strong>de crer que a<br />

<strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>, quan<strong>do</strong> se engaja afoitamente <strong>em</strong> uma ação, possa ser conti<strong>da</strong> pela força <strong>da</strong> lei<br />

ou por qualquer outra ameaça” (TUCÍDIDES. III. 45).<br />

Para Marshall Sahlins, impressio<strong>na</strong>, de maneira profun<strong>da</strong>, a quanti<strong>da</strong>de de práticas<br />

culturais e de instituições 10 que, de forma direta ou indireta, são afeta<strong>da</strong>s ou estão sujeitas aos<br />

desígnios <strong>da</strong> “<strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>”, <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa tucididea<strong>na</strong> (SAHLINS, 2006, p. 116). A crença de<br />

Tucídides <strong>na</strong> regulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> história refletiria a idéia de uma “<strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>” imutável. A<br />

História passa a ser concebi<strong>da</strong> como ktêma es aieí (uma possessão para s<strong>em</strong>pre) e a “<strong>na</strong>tureza<br />

10 Parentesco, amizade, afiliação étnica, império, lei, morali<strong>da</strong>de, honra, trata<strong>do</strong>s, sagra<strong>do</strong>, religião e até mesmo a<br />

linguag<strong>em</strong> estão <strong>na</strong> lista de instituições, práticas e condutas sujeitas à condição huma<strong>na</strong>. (SAHLINS, 2006: 116)<br />

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huma<strong>na</strong>”, constituí<strong>da</strong>, por vingança, inveja, esperança e “várias outras paixões igualmente<br />

irreprimíveis” (TUCÍDIDES. III. 45), seria condicio<strong>na</strong><strong>da</strong> a leis necessárias e universais,<br />

funcio<strong>na</strong>n<strong>do</strong> como motor <strong>do</strong>s acontecimentos devi<strong>do</strong> ao seu caráter irrefreável.<br />

4. Conclusão<br />

Nas palavras de Tucídides: “...fora de to<strong>da</strong> previsibili<strong>da</strong>de, a <strong>peste</strong> caiu sobre nós<br />

[atenienses] – único acontecimento que transcendeu a nossa expectativa.”(TUCÍDIDES. II. 64).<br />

Assim, a epid<strong>em</strong>ia <strong>em</strong> questão representa um el<strong>em</strong>ento lídimo de desestruturação simbólica,<br />

senão <strong>do</strong> cotidiano ateniense, ao menos dessa construção de Ate<strong>na</strong>s como ideal de pólis , <strong>em</strong>bora<br />

estes âmbitos estejam <strong>em</strong> profun<strong>da</strong> relação, ou seja, não há uma separação níti<strong>da</strong> entre uma<br />

“ideali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pólis” e uma “reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pólis”. Visto desta forma, o advento <strong>da</strong> <strong>peste</strong>, ao<br />

ocasio<strong>na</strong>r uma ruptura nos costumes fúnebre, oblitera a fronteira existente entre o público e o<br />

priva<strong>do</strong> e interfere <strong>na</strong> história que os atenienses há mais de c<strong>em</strong> anos antes <strong>do</strong> desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> historiografia <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l contavam a si próprios, durante os funerais públicos, onde a pólis<br />

assumia o papel de protagonista (LORAUX, 1994, p. 23).<br />

Como os imaginários interfer<strong>em</strong> ativamente <strong>na</strong> m<strong>em</strong>ória <strong>do</strong> grupo, para qual os<br />

acontecimentos “...contam muitas vezes menos <strong>do</strong> que as representações a que dão orig<strong>em</strong> e que<br />

os enquadram” (BACZKO, 1985, p. 321), faz-se visível o enorme peso que eles exerc<strong>em</strong> sobre as<br />

práticas coletivas, pois constitu<strong>em</strong> pontos de referência num sist<strong>em</strong>a simbólico mais amplo,<br />

produzi<strong>do</strong> pela coletivi<strong>da</strong>de. Os imaginários atuam então como uma força regula<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

coletiva e uma situação de caos, como o ataque <strong>da</strong> <strong>peste</strong> <strong>em</strong> questão, ao ocasio<strong>na</strong>r uma condição<br />

desorienta<strong>do</strong>ra no que concerne à percepção de si e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, promove aquilo que Tucídides que<br />

se refere como sen<strong>do</strong> “grande d<strong>em</strong>ais para ser suporta<strong>da</strong> pela <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>” (TUCÍDIDES. II.<br />

50).<br />

Se a situação epidêmica provoca o me<strong>do</strong>, excessivamente compartilha<strong>do</strong>, <strong>da</strong> morte, é<br />

também um perío<strong>do</strong> de solidão força<strong>da</strong>, de “abolição <strong>da</strong> morte perso<strong>na</strong>liza<strong>da</strong>.” (DELUMEAU,<br />

1989, p. 123). As necessi<strong>da</strong>des para sobrevivência, pertencentes ao âmbito <strong>do</strong> familiar, <strong>da</strong> casa,<br />

no t<strong>em</strong>po de <strong>peste</strong>, extrapolam o priva<strong>do</strong> e encontram-se no <strong>do</strong>mínio público, uma vez que a<br />

morte configura-se como possibili<strong>da</strong>de constante, alteran<strong>do</strong> o mo<strong>do</strong> de li<strong>da</strong>r com o social. O<br />

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hom<strong>em</strong> não é mais livre para atuar socialmente, pois encontra-se preso à manutenção <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>,<br />

mesmo quan<strong>do</strong> passa ao <strong>do</strong>mínio público.<br />

Assim perceb<strong>em</strong>os que a descrição <strong>da</strong> Peste, juntamente com a <strong>da</strong>s batalhas ocorri<strong>da</strong>s <strong>na</strong><br />

região <strong>do</strong> Peloponeso, <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa de Tucídides, oferece-nos um material rico <strong>na</strong> percepção de<br />

um ex<strong>em</strong>plo <strong>do</strong>s t<strong>em</strong>ores coletivos que s<strong>em</strong>pre assaltaram a humani<strong>da</strong>de. Os relatos sobre a<br />

experiência huma<strong>na</strong> provaram que s<strong>em</strong>pre que os homens são atingi<strong>do</strong>s por uma calami<strong>da</strong>de<br />

deste porte ocorre o aban<strong>do</strong>no <strong>da</strong>s regras morais impostas por um “corpo” político e religioso,<br />

cuja função é socializar esse hom<strong>em</strong> insociável. Essas “leis” feitas pelos homens e para os<br />

homens são abala<strong>da</strong>s quan<strong>do</strong> a estrutura ideológica de uma época <strong>em</strong> determi<strong>na</strong><strong>do</strong> momento é<br />

questio<strong>na</strong><strong>da</strong>, tor<strong>na</strong>n<strong>do</strong>-se insuficiente para explicar os acontecimentos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ao re<strong>do</strong>r.<br />

Destacar e compreender esses fenômenos favorece uma percepção ca<strong>da</strong> vez mais<br />

enriquece<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> experiência huma<strong>na</strong>, uma vez que expressamos por meio <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>, não a<br />

experiência <strong>em</strong> si, mas o senti<strong>do</strong> dessa experiência e a re-significação <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s no t<strong>em</strong>po.<br />

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