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(RE)PENSANDO DIREITO - 08

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<strong>08</strong><br />

Jul./Dez. 2014 ISSN 2237-5953<br />

<strong>RE</strong>VISTA DO CURSO DE DI<strong>RE</strong>ITO DA CNEC SANTO ÂNGELO - RS


(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />

DI<strong>RE</strong>ITO<br />

ISSN 2237-5953<br />

Ano 4, n. 8 - julho/dezembro 2014<br />

Catalogação na Fonte<br />

(<strong>RE</strong>) Pensando Direito / Revista do Curso de Direito<br />

da CNEC Santo Ângelo –RS. – Ano 4, n. 8. (jul/dez.<br />

2014) – Uberaba: CNEC Edigraf, 2014.<br />

Semestral<br />

ISSN 2237-5953<br />

1. Direito. 2. Direito – Periódico. I. Curso de Direito da<br />

CNEC Santo Ângelo – RS<br />

CDU: 34(05)


(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO<br />

Revista do Curso de Direito<br />

da CNEC Santo Ângelo – RS<br />

Campanha Nacional de Escolas da Comunidade<br />

Diretor Presidente: Deputado Alexandre José dos Santos<br />

Diretor Presidente em Exercício: Prof. Juarez de Magalhães Rigon<br />

Diretora Secretária: Profª. Anita Ortiz Corrêa<br />

Diretor do IESA: Prof. Antônio Roberto Lausmann Ternes<br />

Coordenação Editorial: Prof. Gilberto Kerber<br />

Diretores da Revista: Prof. Doglas Cesar Lucas e Prof. José Lauri Bueno de Jesus e<br />

Comissão Editorial: Gilberto Kerber, José Lauri Bueno de Jesus, Doglas Cesar Lucas,<br />

Salete Oro Boff, Clarisse Goulart Nunes.<br />

Conselho Editorial: Dr. Antonio Carlos Wolkmer (UFSC), Dr. Vicente de Paulo Barretto<br />

(Uerj), Drª. Jânia Saldanha (UFSM), Dr. Doglas Cesar Lucas (Iesa/<br />

Unijuí), Dr. Luiz Ernani Bonesso de Araújo (UFSM), Dr. Sidney<br />

Guerra (UFRJ), Dr. Thiago Fabres de Carvalho (FDV/ES), Dr. Wagner<br />

Menezes (USP), Drª. Ângela Araújo da Silveira Espíndola (UFSM),<br />

Drª. Fabiana Marion Spengler (Unisc), Drª. Raquel Fabiana Lopes<br />

Sparemberger (FURG), Drª. Salete Oro Boff (Iesa/Unisc), Dra. Nuria<br />

González Martín (Universidad Nacional Autónoma de México)<br />

Revisão:<br />

Capa:<br />

Prof. Artur Hamerski e Isabel Cristina Brettas Duarte.<br />

CNEC Propaganda<br />

Classificação B5 no Sistema Qualis Capes de Periódicos<br />

Editada em 1981 com o título Revista da Faculdade de Direito de Santo Ângelo (nº 1), em<br />

1999 como Revista IESA (nº 2), de 2002 a 2004 como Revista Habeas Data (nº 3 a nº 5), e<br />

em 2011 como (Re)Pensando Direito<br />

Endereço do Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo:<br />

Rua: Dr. João Augusto Rodrigues, 471<br />

CEP: 98801-015 – Santo Ângelo-RS<br />

Fone: 55 33131922 – fax 55 33131922<br />

e-mail: revistadir@iesanet.com.br<br />

Revista disponível em:<br />

http://www.iesanet.com.br<br />

Direitos de Publicação, Capa, Programação Visual, Editoração Impressão:<br />

Editora e Gráfica Cenecista Dr. José Ferreira<br />

Av. Frei Paulino, 530 - Bairro Abadia<br />

PABX: (34) 2103-0700 - FAX: (34) 3312-5133<br />

CEP: 38025-180 - Uberaba, MG - e-mail: cnecedigraf@cneconline.com.br


SUMÁRIO<br />

AP<strong>RE</strong>SENTAÇÃO 5<br />

MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS<br />

FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE 11<br />

Aline Damian Marques<br />

Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN 29<br />

Doglas Cesar Lucas<br />

Nadabe Manoel Machado<br />

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE 53<br />

Paulo Valdemar da Silva Balbé<br />

Salete Oro Boff<br />

A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O<br />

<strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO 73<br />

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth<br />

Tamyse de Christo Marques<br />

O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA<br />

SOCIEDADE ATUAL 101<br />

Juliane Colpo<br />

Roberto Colpo<br />

A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA 145<br />

Isabel Cristina Brettas Duarte<br />

FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05 161<br />

José Lauri Bueno de Jesus<br />

A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA<br />

FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADO<strong>RE</strong>S DO DI<strong>RE</strong>ITO 181<br />

Clarissa Bohrer


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS<br />

PARA A SUA APLICAÇÃO 193<br />

Adriana Liberalesso<br />

Bruna Escobar<br />

Carla Dóro de Oliveira<br />

Tainá Borges<br />

Vera Maria Werle<br />

A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS 217<br />

Ana Lara Tondo<br />

José Lauri Bueno de Jesus<br />

NORMAS PARA SUBMISSÃO E PUBLICAÇÃO 235


AP<strong>RE</strong>SENTAÇÃO<br />

AP<strong>RE</strong>SENTAÇÃO<br />

Sempre na busca do aprimoramento de nossa Revista (<strong>RE</strong>)<br />

Pensando do Curso de Direito do Instituto Cenecista de Ensino<br />

Superior de Santo Ângelo (CNEC-IESA),nesta edição os leitores estão<br />

sendo abrilhantados com vários artigos, dentre os quais destacamos a<br />

produção realizada por nossos alunos que se encontram no 8 o período<br />

do curso. Assim, ficamos felizes com a participação deles e esperamos<br />

que outros acadêmicos se juntem a eles na escrita de artigos.<br />

Para compor a 8 a edição,como sempre temos feito, observamos<br />

vários critérios, dos quais os colaboradores e leitores têm o conhecimento,<br />

e porque são necessários para o Sistema Qualis Capes de Periódicos,<br />

almejando subir a classificação da Revista, pois essa é muito importante<br />

para a instituição e para o Curso de Direito.<br />

Assim, o primeiro artigo constante é sobre a Mediação e conciliação:<br />

reflexões acerca dos conflitos familiares na contemporaneidade,<br />

em que as autoras realizam uma abordagem acerca dos benefícios da<br />

mediação e da conciliação nos conflitos familiares, além de apontar<br />

as principais causas desses conflitos, pontuando as mudanças que a<br />

entidade familiar vem sofrendo ao longo dos anos, eis que a família,<br />

dentro das mais diversas configurações da convivência humana,<br />

obteve, sempre, papel de destaque na organização do sistema social.<br />

Logo, do histórico da evolução da entidade familiar, serão abordadas<br />

as aplicações gerais da mediação e da conciliação como alternativas<br />

benéficas na resolução dos conflitos familiares, principalmente, nos<br />

casos de separação e de divórcios, nas quais essa resolução alternativa<br />

atinge sua maior aplicabilidade e efetividade. Dentro desse panorama<br />

geral da sociedade ocidental e dos diversos conflitos, inerentes ao<br />

âmbito familiar, será possível fazer um paralelo da transformação dos<br />

laços familiares e da judicialização da sociedade, tomando, como<br />

parâmetro, a mediação como viés da resolução de conflitos.<br />

O texto seguinte trata sobre A desobediência civil na teoria<br />

jurídica de Ronald Dworkin, no qual os seus autores apresentam de forma<br />

bastante rápida a compreensão da desobediência civil no pensamento<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 5


jurídico de Ronald Dworkin. Segundo o jusfilósofo norte-americano,<br />

a desobediência civil poderá ser invocada por aquele cidadão que<br />

considerar determinada lei de constitucionalidade duvidosa e decorre<br />

do direito (de baixa intensidade) de liberdade que todos os cidadãos<br />

possuem de interpretar moralmente o sistema jurídico, principalmente<br />

nos casos de possíveis exageros e equívocos da autoridade judicial.<br />

Nesses casos, os desobedientes civis fomentariam o debate em torno<br />

da validade da lei, questionando argumentos e interpretações oficiais<br />

e com isso proveriam a reafirmação ou correção dos instrumentos<br />

legitimadores do sistema jurídico.<br />

Na continuidade, é apresentado o artigo sobre o Desenvolvimento<br />

sustentável por meio da extrafiscalidade, no qual os autores<br />

abordam o tema do desenvolvimento sustentável, com destaque para<br />

a aplicação da extrafiscalidade nas espécies tributárias. Inicialmente<br />

é abordado o contexto histórico e mundial que deu origem ao tema<br />

“desenvolvimento sustentável”. Em um segundo momento, busca-<br />

-se a compreensão da dimensão das liberdades fundamentais,<br />

condicionantes para a mudança de perfil do indivíduo, capacitando-o<br />

a atuar como agente dentro das estruturas da sociedade, com reflexos<br />

na construção de uma ética de responsabilidade. Após, realiza-se<br />

um estudo das competências tributárias na Constituição Federal de<br />

1988 com especial enfoque para as bases econômicas ou matrizes<br />

tributárias previstas no texto constitucional e o questionamento sobre<br />

a possibilidade de instituição de tributação ambiental em um âmbito<br />

normativo analítico, com pouca margem de liberdade. Por fim, realiza-<br />

-se um estudo sobre o alcance do princípio da extrafiscalidade e a<br />

possibilidade de aplicação nas espéciestributárias com o propósito de<br />

resguardo ao meio ambiente.<br />

Na sequência dos artigos, no texto sobre A revisão criminal como<br />

condição de possibilidade para o resgate do status dignitatis do<br />

condenado, os autores analisam a responsabilidade civil do empregador<br />

pelos danos causados em razão do assédio moral no trabalho, tanto<br />

por atos praticados por ele próprio quanto por atos praticados por seus<br />

empregados ou prepostos. Examina-se, para tanto, o assédio moral<br />

6 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


AP<strong>RE</strong>SENTAÇÃO<br />

no trabalho, seu conceito, suas modalidades e danos causados. Em<br />

seguida, atenta-se para a teoria da responsabilidade civil, conceituando-a<br />

e analisando seus pressupostos. Por fim, analisa-se a responsabilidade<br />

civil do empregador em face do assédio moral no trabalho.<br />

Outro artigo interessante é o texto sobre O direito ambiental e a<br />

interface com a educação ambiental na sociedade atual, em que<br />

os autores analisam se a coletividade se apropriou ou não dos valores<br />

inerentes ao direito ambiental como forma de prover a si mesma<br />

dos elementos essenciais à sadia qualidade de vida, dissociando ou<br />

associando a sustentabilidade do meio natural com os processos de<br />

desenvolvimento, partindo-se da abordagem da sociedade atual na<br />

visão de Leonardo Boff e Gilles Lipovetzky. Em seguida, traçando<br />

interface com o Código de Defesa do Consumidor, relacionam a<br />

posição das partes envolvidas na relação de consumo e seu papel<br />

transformador daquela sociedade paradigma em novo modelo<br />

social, com desenvolvimento econômico, porém nas dimensões da<br />

sustentabilidade, a partir da conscientização dos efeitos, danosos<br />

ou não, decorrentes da liberdade de consumir. Segue-se com a<br />

leitura da educação ambiental no direito positivo brasileiro, conceito,<br />

partícipes e objetivos, e a par da reflexão da sociedade atual na<br />

abordagem dos autores referenciados no trabalho, perquire-se acerca<br />

da sustentabilidade nessa sociedade dita como de mercantilização<br />

dos valores, bem como o papel da educação ambiental e se esta age<br />

como vetor de transformação social para a concretização do direito<br />

a um meio ambiente equilibrado como garantia a sadia qualidade de<br />

vida.<br />

A importância da bioética para o Direito: uma reflexão<br />

necessária é um texto em que a autora faz uma análise sobre a forma<br />

em que o progresso da ciência tem causado mudanças na sociedade<br />

mundial e enseja relações jurídicas cada vez mais complexas, além<br />

de novos questionamentos, para os quais a legislação vigente não<br />

tem uma resposta exata e imediata. Vive-se uma crise de paradigmas<br />

na dogmática jurídica mistificada na neutralidade da ciência, além do<br />

descortinar de novas reflexões, assim como o surgimento de uma<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 7


nova juridicidade, fundada nos princípios bioéticos, em especial na<br />

dignidade da pessoa humana e na responsabilidade, nos quais é<br />

balizada a utilização das novas biotecnologias.<br />

Na sequência, no texto sobre a Falência e recuperação da<br />

empresa na óptica da lei n. 11.101/05, demonstra-se o longo<br />

caminho que as empresas têm percorrido, na história, para poderem<br />

atingir o patamar de recuperação ao invés de ingressarem na falência,<br />

diretamente. Entretanto, é necessário observar alguns princípios, que<br />

deverão ser analisados quando a empresa se encontrar em crise,<br />

a fim de verificar a viabilidade ou não da continuidade das suas<br />

atividades, preservando assim a empresa, inclusive, deve ser sempre<br />

voltado para o aspecto social, inserindo-se nessa situação a quitação<br />

dos débitos de todos os credores e a mantença do emprego dos<br />

funcionários. Faz-se também uma breve retrospectiva histórica das<br />

leis dos principais países, especialmente sobre os aspectos relativos<br />

à recuperação da empresa.<br />

Ainda temos o texto sobre A importância da criminalística como<br />

disciplina autônoma na formação superior dos operadores do<br />

Direito, em que a Criminalística tem demonstrada a sua importância ao<br />

longo da evolução do estudo da Medicina Legal e do Processo Penal,<br />

cadeiras integrantes do curso superior de Ciências Jurídicas e Sociais. O<br />

profissional do Direito, entretanto, conclui a sua formação tendo apenas<br />

uma breve noção de conceitos que serão por ele utilizados sê membro<br />

das carreiras do Judiciário, do Ministério Público, das Promotorias e<br />

Defensorias ou na qualidade de advogado. Entretanto, caso opte por<br />

uma das carreiras da Segurança Pública (Polícias civil e militar e Perícia<br />

oficial) terá uma abrangência de conhecimentos que lhes capacitarão<br />

verdadeiramente para labutar na seara criminal. Assim, será proposta<br />

a inclusão da Criminalística como disciplina autonôma dos cursos<br />

superiores de Direito, dada a sua importância para todos os operadores<br />

do Direito, sejam profissionais da Segurança Pública ou não.<br />

Por fim, os dois artigos dos acadêmicos do Curso de Direito da<br />

CNEC-IESA. O primeiro diz sobre a Dignidade da pessoa humana:<br />

limites, critérios e pressupostos para a sua aplicação, no qual é<br />

8 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


AP<strong>RE</strong>SENTAÇÃO<br />

realizada a apresentação das noções principais acerca do princípio<br />

constitucional da dignidade da pessoa humana, especialmente no que<br />

tange à delimitação de um conceito jurídico possível, bem como à<br />

delimitação de conteúdos mínimos para a sua correta aplicação pelo<br />

profissional do direito. Também, buscar-se-á demonstrar de que forma<br />

tem se dado a utilização desse princípio pela jurisprudência brasileira<br />

frente ao caso concreto.<br />

Já o artigo sobre A responsabilidade dos sócios à luz da<br />

atual lei de falências, em que os autores demonstram como fica a<br />

responsabilidade dos sócios de uma sociedade empresária quando<br />

ocorrer a decretação da falência da mesma. Para isso, serão<br />

apresentados os tipos de sociedades empresárias e o procedimento<br />

na atual lei de falências e recuperação de empresas, bem como a<br />

situação dos sócios identificados em cada uma, como falidos. Além<br />

disso, também será analisada a desconsideração da personalidade<br />

jurídica quando da falência, em decorrência da confusão e o desvio do<br />

patrimônio por parte dos seus sócios.<br />

Desejamos uma boa leitura a todos. Esperamos, enfim, que<br />

os artigos aqui apresentados possam contribuir com o crescimento<br />

intelectual e profissional de cada profissional do Direito, para que as<br />

luzes aqui lançadas alcancem novos horizontes do saber.<br />

Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas<br />

Prof. Ms. José Lauri Bueno de Jesus<br />

Diretores da Revista (<strong>RE</strong>) Pensando Direito CNEC-IESA<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 9


(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />

DI<strong>RE</strong>ITO<br />

MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES<br />

ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA<br />

CONTEMPORANEIDADE<br />

Mediation and reconciliation: reflections on conflicts of<br />

families in contemporary<br />

Resumo<br />

Aline Damian Marques 1<br />

Denise Tatiane Girardon dos Santos 2<br />

O presente artigo tem por objetivo promover uma abordagem acerca dos benefícios da mediação e da conciliação nos<br />

conflitos familiares, além de apontar as principais causas desses conflitos, pontuando as mudanças que a entidade<br />

familiar vem sofrendo ao longo dos anos, eis que a família, dentro das mais diversas configurações da convivência<br />

humana, obteve, sempre, papel de destaque na organização do sistema social. Logo, do histórico da evolução da<br />

entidade familiar, serão abordadas as aplicações gerais da mediação e da conciliação como alternativas benéficas na<br />

resolução dos conflitos familiares, principalmente, nos casos de separação e de divórcios, nas quais essa resolução<br />

alternativa atinge sua maior aplicabilidade e efetividade. Dentro desse panorama geral da sociedade ocidental e dos<br />

diversos conflitos, inerentes ao âmbito familiar, será possível fazer um paralelo da transformação dos laços familiares e<br />

da judicialização da sociedade, tomando, como parâmetro, a mediação como viés da resolução de conflitos.<br />

Palavras-chave: Conflito. Conciliação. Mediação. Família.<br />

Abstract<br />

The present article has the objective to promote an approach about the benefits of mediation and conciliation in family<br />

conflicts, while pointing out the major causes of conflicts, highlighting the changes that the family unit has suffered<br />

over the years, behold the family within the various configurations of human coexistence, got, always prominent role<br />

in the organization of the social system. Therefore, the historical evolution of the family unit, will address the general<br />

applications of mediation and conciliation as beneficial in resolving family conflicts alternatives, especially in cases<br />

of separation and divorce, where this alternative resolution reaches its greatest applicability and effectiveness. Within<br />

this overall picture of Western society and the various conflicts inherent in the family context, you can draw a parallel<br />

transformation of family ties and the judicialization of society, taking as parameter, mediation and conflict resolution bias.<br />

Keywords: Conflict. Conciliation. Mediation. Family.<br />

Sumário:<br />

1. Considerações iniciais; 2. O conflito: conceituações e aspectos gerais; 3. A conciliação e a mediação<br />

dentro dos conflitos familiares; 4. Considerações finais; 5. Referências<br />

1 Advogada, Especialista em Direito Tributário e Mestranda em Direitos Humanos pela UNIJUÍ, bolsista FAPERGS, pesquisadora na<br />

linha “Direitos Humanos, Relações Internacionais e Equidade”. E-mail: alined.marques@terra.com.br<br />

2 Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ). Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade do<br />

Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ); vinculação à linha de pesquisa “Direitos Humanos, Relações Internacionais e Equidade”;<br />

bolsista Integral do Programa de Apoio à Pós-Graduação (PROAP) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),<br />

especializanda em Educação Ambiental pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Advogada. E-mail: dtgsjno@hotmail.com<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 11-52


Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />

CONSIDERAÇÕES INICIAIS<br />

O presente estudo se dedica a analisar um tema que se encontra<br />

em voga, sendo, deveras, importante hodiernamente, qual seja, as<br />

transformações sofridas pelas famílias na contemporaneidade, como<br />

a estrutura, a cultura e os hábitos, além de apontar as principais – e<br />

novéis - contendas e as formas de resolução dessas, destacando-se<br />

a mediação e a conciliação.<br />

O regime de hierarquia, que delegava à figura paterna uma<br />

posição de soberania e impunha aos filhos e à mãe a obediência,<br />

foi, há tempos, substituído pelo regime de igualdade e respeito entre<br />

todos, de modo que o pai não mais é o único responsável por prover<br />

a família, pois tanto a mãe, quanto os filhos conquistaram espaço<br />

no que diz respeito às decisões familiares, uma vez que passaram a<br />

participar, ativamente, da geração de recursos.<br />

Assim, a figura materna também conquistou seu espaço na família<br />

como parte provedora desta e passou a ter autonomia em suas decisões.<br />

Nesse contexto, os filhos, de um modo em geral, possuem maior autonomia<br />

em relação aos genitores e, como consequência, acabam por manter maior<br />

contato com muitos agentes externos, sejam eles de influência positiva ou<br />

negativa – esses, principalmente, são o alcoolismo, a dependência por<br />

drogas, o materialismo, o consumismo, dentre outros agentes.<br />

E, paralelamente, como todas as instituições sociais passaram<br />

por radicais transformações na modernidade, não foi diferente com<br />

o Direito, que é o responsável por ordenar as relações sociais e<br />

administrar seus conflitos. Com a acentuação e a rapidez com que<br />

as relações sociais se alteram, o Direito necessitou – e necessita<br />

– se transformar e se adequar, moldando-se à sociedade, para ter<br />

capacidade de atender às demandas sociais com êxito.<br />

Dessa forma, o presente trabalho objetiva promover um debate<br />

sobre a noção do conceito de família, na contemporaneidade, partindo<br />

da premissa da transformação jurídica ocorrida, em decorrência das<br />

transformações sociais, e como aquela pode se adequar a estas para<br />

tratar das novas demandas, oriundas da inédita organização familiar<br />

que está se formando e transformando constantemente.<br />

12 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE<br />

A família contemporânea tem sua base lastreada na liberdade,<br />

na igualdade e na afetividade, em cujo tripé de valores os membros<br />

familiares mantêm constantes negociações, culminando em um<br />

suprimento de necessidades, mútuo e do todo, uma vez que, na família<br />

atual, não há papéis preestabelecidos, sendo o diálogo fundamental<br />

para a manutenção da harmonia. Nesse viés, nem sempre todos<br />

conseguem chegar a um consenso entre seus direitos e seus deveres,<br />

e é neste ponto que, muitas vezes, há a necessidade de um interventor<br />

imparcial, qual seja, o mediador.<br />

Por isso, a conciliação e a medição surgem como mecanismos<br />

eficazes na resolução de conflitos, tornando o Poder Judiciário mais<br />

ágil, mais respeitado e menos oneroso, sobretudo, mais justo e<br />

adequado para resolver os novos conflitos familiares, apresentados<br />

pelas famílias contemporâneas. Destarte, este estudo faz-se relevante<br />

e interessante diante da repercussão jurídica e da implicação social<br />

da temática tratada, podendo contribuir para a efetivação do método<br />

conciliatório, sobretudo, no contexto familiar.<br />

O CONFLITO: CONCEITUAÇÕES E ASPECTOS GERAIS<br />

A palavra conflito é originária do latim e possui inúmeras variantes,<br />

mas seu significado etimológico traz a ideia de choque, de discórdia, de<br />

antagonia, de oposição. Na lição de José Luis Bolzan de Morais e Fabiana<br />

Marion Spengler (2012, p. 45), um conflito pode ser social, interno,<br />

externo, étnico, religioso, político, familiar ou um conflito de valores, ou<br />

seja, é “[...] um enfrentamento entre dois seres ou grupos da mesma<br />

espécie que manifestam, uns a respeito dos outros, uma intenção hostil”.<br />

Como se trata de romper a resistência da outra parte nessa espécie<br />

de confronto de vontades, o conflito também implica a tentativa de<br />

domínio por meio de violência – direta ou indireta –, ou ameaça – física<br />

ou psicológica –, tendo em vista que a essência do poder é o domínio,<br />

na maioria das vezes, manifestado pela violência (A<strong>RE</strong>NDT, 2004, p. 23).<br />

Assim, o conflito pode ser entendido como uma forma de se avocar, para<br />

si, a razão, sem a necessidade de argumentos lógicos e racionais, exceto<br />

quando as partes litigiosas aceitam a mediação de um terceiro.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 13


Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />

Fundamentalmente, os conflitos surgem de divergência de interesses<br />

de um ou mais indivíduos na defesa de seus direitos e, a partir dessa cizânia<br />

de interesses, abrolha a necessidade de se criar alternativas capazes de<br />

retomar a paz social. Na medida em que a sociedade foi evoluindo, os conflitos<br />

também foram se modificando, obrigando, com isso, ao aprimoramento<br />

das alternativas de soluções de conflitos, a fim de garantir, de manter ou<br />

reestabelecer o direito (NASCIMENTO; EL SAYED, 2002, p. 49).<br />

Entretanto, como as sociedades, seus usos, costumes e leis<br />

transformam-se, constantemente, o conflito também acompanhou<br />

esse fenômeno, inclusive como meio para facultar essas mesmas<br />

transformações. Assim, o litígio voltou-se para a resolução de pontos<br />

de vista, socialmente divergentes, não sendo possível separá-lo das<br />

relações sociais, posto que esse tipo de comportamento humano<br />

significa mudanças e estimula inovações, favorecendo o combate<br />

ordenado, ou seja, uma “[...] competição regrada pelo direito, fora de<br />

toda a violência” (BOLZAN DE MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 67).<br />

Ocorre, entretanto, que, ao tomar o monopólio da violência para si, o<br />

Estado se volta, unicamente, para a vítima – e não para o autor do fato –,<br />

intencionando a suprir o sentimento de vingança; acontece que essa forma<br />

de administração da justiça não é satisfativa, pois o conflito, em si, tenta a<br />

se iniciar, novamente, ou continuar. Esse comportamento se justifica pela<br />

tentativa de, ao sentimento de desforço ser aplacado, de ser afastado,<br />

evitando a vingança pessoal, pelo que o Estado, ao tomá-la para si, necessita<br />

adotar os meios para supri-la (TAVA<strong>RE</strong>S DOS SANTOS, 1997, p. 161).<br />

A pacificação é a função fundamental da jurisdição, assim como<br />

de todo o sistema processual, incumbindo ao Estado promover as<br />

formas de realização, sobretudo de criar ou de adequar meios efetivos<br />

para a realização da Justiça. Nos ensinamentos de Fabiana Marion<br />

Spengler, é possível verificar que<br />

para tratar os conflitos nascidos da sociedade, o Estado, enquanto<br />

detentor do monopólio da força legítima, utiliza-se do Poder<br />

Judiciário. O juiz deve, então, decidir os litígios porque o sistema<br />

social não suportaria a perpetuação do conflito. A legitimidade<br />

estatal de decidir os conflitos nasce, assim, do contrato social<br />

no qual os homens outorgaram a um terceiro o direito de fazer a<br />

guerra em busca de paz (2012, p. 65).<br />

14 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE<br />

O complexo modelo social surgido na contemporaneidade<br />

manifestou a exigência de existir um terceiro, em tese, neutro e<br />

desinteressado, como instrumento pacificador de conflito, condição<br />

esta que foi, paulatinamente, assumida pelo Estado, que passou a<br />

intervir como figura neutra na solução dos conflitos. Assim, a atuação<br />

estatal, na função de árbitro, passou a visar à neutralização do conflito<br />

ou sua eliminação (PINHO; DURÇO, 20<strong>08</strong>, p. 35).<br />

Quanto à atividade estatal, cumpre ressaltar que a característica<br />

mais importante do ato jurisdicional é o desinteresse do juiz, ou seja,<br />

é a sua postura alheia ao litígio enquanto parte interessada, de modo<br />

que o Estado, portanto, deve ser imparcial nessa função, preenchendo<br />

a lacuna que se instaurou a partir da substituição da resolução dos<br />

conflitos na esfera privada. Destarte, no estado agonal ou no Sistema<br />

Judiciário, o Estado impera em uma condição hobbesiana, em que o<br />

cidadão, ao mesmo tempo em que recebe a tranquilidade de deter a<br />

vingança e a violência, perde a possibilidade de tratar seus próprios<br />

conflitos de forma autônoma e não violenta.<br />

A questão problemática dessa condição é que a sociedade<br />

permanece estática, pois todas as questões são delegadas à resolução<br />

pelo juiz, representando uma transferência de prerrogativas e o<br />

engessamento da solução, verificando-se a adoção de uma postura<br />

que desconsidera as novas possibilidades inerentes a um tratamento<br />

mais democrático dos conflitos. É possível afirmar, inclusive, que essa<br />

estrutura fica mais atenta aos remédios em detrimento das causas da<br />

contenda (BOLZAN DE MORAIS; SPENGLER, 2012). Essa atenção,<br />

que é cobrada do juiz, o coloca em uma posição superior de mero<br />

intérprete das normas, indo para além, sendo a pessoa responsável<br />

por efetivar o direito à igualdade (propiciada pelo direito do acesso<br />

à Justiça) a partir do momento que efetiva os direitos humanos e<br />

fundamentais que estão em voga, atingindo o fim e a responsabilidade<br />

social dessa prestação (CAPPELETTI, 1989).<br />

Ao adotar essa posição, o Poder Judiciário decide sobre relações<br />

sociais, mas não impede que outras tantas continuem surgindo,<br />

pois, afinal, a lei substitui a violência privada, mas condiciona que as<br />

partes, em frente da decisão oriunda da lei, tenham-se por satisfeitas,<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 15


Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />

ou que as raízes do conflito tenham sido eliminadas. Bom exemplo<br />

é o produto, enquanto resultado, das separações e dos divórcios: o<br />

processo acaba, mas o conflito, muitas vezes, não.<br />

Além do estado agonal, há formas não jurisdicionais de tratamento<br />

de conflitos, nas quais se atribui legalidade à voz de um conciliador,<br />

de um mediador, que auxilia os conflitantes em determinada questão.<br />

Esse sistema, com base no direito fraterno, é centrado na criação<br />

das regras de compartilhamento e de convivência, significando mais<br />

responsabilidades ao cidadão por suas próprias decisões (BOLZAN<br />

DE MORAIS; SPENGLER, 2012).<br />

A sociedade moderna, vista sob o âmbito dos conflitos familiares,<br />

surgiu no final da Idade Média e início do Renascimento, perpassando de<br />

sociedade tradicional para industrial, momento em que ocorreram rupturas<br />

que demarcaram essas mudanças. A partir de então, foram inúmeras as<br />

transformações em todo âmbito social, e os indivíduos transformaram,<br />

praticamente, toda a sua forma de ação e a óptica sobre a percepção da<br />

realidade, alterando, completamente, suas narrativas de vida, de modo<br />

que, hodiernamente, vive-se em uma época de constante transformação<br />

dos âmbitos da vida social e institucional.<br />

Zygmunt Bauman analisa a questão da intimidade e do<br />

relacionamento humano dentro da modernidade de forma radicalizada,<br />

ponderando que os graus de parentesco se sentem ameaçados diante<br />

de uma ordem social que carece de pontes estáveis, pois<br />

suas fronteiras se tornaram embaçadas e contestadas, e as redes<br />

se dissolveram num terreno sem titulo de posse nem propriedade<br />

hereditárias. [...] Às vezes um campo de batalha, outras vezes<br />

o objeto de pendengas judiciais não menos amargas. As redes<br />

de parentesco não podem estar seguras de suas chances de<br />

sobrevivência, muito menos calcular suas expectativas de vida.<br />

Sua fragilidade as torna ainda mais preciosas (2007, p. 47).<br />

O autor, ao abordar a sociedade contemporânea, conceitua-a<br />

como líquido-moderna, diante das incertezas “[...] em que as condições<br />

sob as quais agem seus membros, mudam em um tempo mais curto do<br />

que o necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas<br />

de agir”. (op. cit., p. 7). Nesse novo modelo de sociedade as relações<br />

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MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE<br />

sociais se confundem com as relações de consumo, pois a sociedade<br />

se transformou, ao mesmo tempo, em mercadoria e em consumidora,<br />

desimportando o meio onde se vive, desde que a constância da<br />

atratividade e do desejo se mantenha – como mercadoria –, seja para<br />

conseguir um emprego, seja para um reconhecimento social.<br />

As realizações pessoais dos indivíduos são, a todo momento,<br />

passíveis de transformação. Os relacionamentos são como uma<br />

espécie de relação de consumo, na qual o indivíduo busca o prazer<br />

imediato que possa ser descartado quando o relacionamento não<br />

mais for conveniente à nova realidade. Muitas vezes essas questões<br />

se problematizam, chegando ao cunho do Poder Judiciário.<br />

Na atualidade, diante do acentuado crescimento de demandas<br />

judiciais, verifica-se o fenômeno denominado por Kazuo Watanabe de<br />

[...] cultura da sentença. Os juízes preferem proferir sentença ao<br />

invés de tentar conciliar as partes para a obtenção da solução<br />

amigável dos conflitos. Sentenciar, em muitos casos, é mais fácil<br />

e mais cômodo do que pacificar os litigantes e obter, por via de<br />

consequência, a solução dos conflitos (2007, p. 7).<br />

Todas essas transformações nas relações humanas e,<br />

consequentemente, no âmbito familiar, acabam modificando as<br />

relações sociais, o que afeta, diretamente, o mundo jurídico, pode-se<br />

mencionar, igualmente, a relação familiar em relação aos gêneros, “[...]<br />

a subordinação legal de um sexo a outro” (MILL, 2006, p. 15), como<br />

um fator que gera conflitualidades, mormente pela nova posição social<br />

que a mulher passou a assumir. Em razão disso, o direito de família,<br />

constantemente, é alvo de investigações no meio acadêmico, diante<br />

das várias nuanças que apresenta, sendo importante a questão da<br />

situação familiar no Poder Judiciário e as formas de acesso à Justiça.<br />

Destarte, o objetivo jurisdicional tem suas normas elaboradas para<br />

buscar a pacificação social, de modo que a conciliação e a mediação<br />

são meios de garantir o convívio social mais justo, sendo imprescindível,<br />

para tanto, a análise das práticas da Justiça Restaurativa, na qual os<br />

métodos da conciliação e da mediação são relevantes par a se obter<br />

a pacificação positiva dos conflitos e a busca por uma cultura de paz.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 17


Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />

A CONCILIAÇÃO E A MEDIAÇÃO DENTRO DOS<br />

CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S<br />

Os litígios familiares são relatados desde o surgimento das<br />

primeiras concepções dos institutos familiares. De acordo com Rodrigo<br />

da Cunha Pereira (2004, pp. 32-36), as mudanças na formação da<br />

família demonstram que a instituição familiar é o reflexo de cada<br />

geração, pelo que existiam e existem conflitos entre casais, disputas<br />

pela guarda dos filhos, pelo direito à paternidade, entre outros. O que<br />

vem se alterando, juridicamente, são as maneiras de resolver esses<br />

embates, buscando uma solução mais justa e apropriada para cada<br />

caso com a efetivação dos direitos fundamentais.<br />

Os conflitos de natureza familiar são mais complexos e<br />

complicados de ser solucionados em comparação com os demais,<br />

pois as dificuldades estão, justamente, na supervalorização desses<br />

conflitos, eis que a intensidade das emoções envolvidas, os<br />

sentimentos egoístas e de orgulho têm uma dimensão mais alargada<br />

do que em outros relacionamentos, exigindo que a pacificação seja<br />

mais concreta, mais eficaz (FONKERT, 1998, p. 02).<br />

Nesse passo, Myléne Jaccoud (2005) destaca que a Justiça<br />

Restaurativa significa uma forma de aproximar as pessoas, de fazer com<br />

que interações sociais ocorram, mas também de resolver pendências<br />

negativas advindas dessas relações, corrigindo infrações cometidas,<br />

resolvendo conflitos e, novamente, transigindo as pessoas. Isso<br />

demonstra que, muito mais que a forma tradicional de aplicação do Direito<br />

e de solução de conflituosidades, a partir do momento em que se dá<br />

atenção para as várias conexões sociais que envolvem – e muitas vezes<br />

geraram – a demanda problematizada, a permanência da decisão que<br />

põe termo a uma situação de litígio é mais duradoura, mais proveitosa,<br />

eis que exige comprometimento de todos os envolvidos.<br />

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a conciliação e a<br />

mediação são instrumentos legais de solução de disputa, na qual uma<br />

terceira pessoa orienta os envolvidos a comporem o litígio (BRASIL,<br />

2006, p. 3). Nas palavras de Bolzan de Morais e Spengler,<br />

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MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE<br />

mais do que um meio de acesso a justiça fortalecedor da participação<br />

social do cidadão, a mediação e a conciliação são politicas publicas<br />

que vem ganhando destaque e fomento do ministério da justica,<br />

da secretaria de reforma do judiciário e do Conselho Nacional<br />

de Justica, uma vez que resta comprovada impiricamente sua<br />

eficiência no tratamento de conflitos (2012, p. 167).<br />

O Brasil, constituindo-se em um Estado Democrático de Direito,<br />

tem, dentre seus princípios fundamentais, a cidadania e a dignidade<br />

da pessoa humana. A conciliação está prevista no Código de Processo<br />

Civil, especialmente nos arts. 125, 277, 331, 448 e 449 (BRASIL, 2013);<br />

além disso, está elencado, constitucionalmente, que o juiz deve contribuir<br />

na construção de uma sociedade justa e igualitária. Dessa forma, a<br />

conciliação exerce um papel importante na solução de litígios, sendo<br />

prevista e aplicada no sistema processual brasileiro, pois “[...] a efetivação<br />

da conciliação como meio de satisfação social com a resolução de litígios<br />

é um ato de cidadania [...]”. Sendo assim, a conciliação apresenta uma<br />

significativa possibilidade na construção de uma sociedade mais humana,<br />

mais digna e mais harmoniosa (VAL JÚNIOR, 2006, p. 140).<br />

A conciliação, como meio alternativo de solução de conflitos, embora<br />

já amplamente utilizada pelo sistema processual, ainda encontra muitos<br />

entraves, uma vez que, via de regra, as partes envolvidas em conflitos de<br />

cunho familiar tentam evitar as sessões destinadas à conciliação, em que<br />

o diálogo é incentivado, o que dificulta ou até mesmo impede a tentativa<br />

de se chegar a um consenso, a um acordo. Por outro lado, existe, ainda,<br />

um culto ao litígio, em que as partes acreditam ser necessária a presença<br />

de um terceiro para decidir, prevalecendo sua vontade sobre a vontade<br />

dos diretamente envolvidos (LENZI, 2010, p. 80).<br />

A questão financeira, igualmente, se torna uma adversidade nos<br />

conflitos familiares, eis que, dificilmente, as pessoas aceitam a perda,<br />

a abdicação de algo, bem como a questão emocional também gera<br />

empecilhos, pois não há como evitar que sentimentos e ressentimentos<br />

das partes envolvidas interfiram na composição. Outro aspecto<br />

diz respeito ao empecilho, muitas vezes, imposto pelos próprios<br />

advogados que, por vezes, disseminam o litígio em vez de priorizar a<br />

composição pela via menos gravosa, qual seja, a conciliação.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 19


Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />

O papel da mediação não diverge, eis que também se configura<br />

como um meio de pacificação de natureza autocompositiva e voluntária,<br />

no qual um terceiro, imparcial, atua, de forma ativa ou passiva, como<br />

facilitador do processo de retomada do diálogo entre as partes<br />

(AZEVEDO, 2004, p. 15). Especificamente, em relação à mediação<br />

– que é um dos institutos em voga da Justiça Restaurativa – é um<br />

meio consensual em que as partes, acompanhadas por uma terceira<br />

pessoa, imparcial e habilitada para viabilizar/facilitar a conversação,<br />

chamada de mediador, debatem, pacificamente, na busca comum<br />

pela solução da questão que os aflige, sendo responsáveis quanto à<br />

decisão a ser tomada (NORTHFLEET, 1994).<br />

Em apoio ao aprimoramento da prestação jurisdicional, foi<br />

assinado o Pacto Republicano do Estado Brasileiro que visa a um sistema<br />

judicial mais acessível, ágil e efetivo e, para conseguir atingir os objetivos,<br />

um de seus compromissos é “[...] fortalecer a mediação e a conciliação,<br />

estimulando a resolução de conflitos por meios autocompositivos,<br />

voltados à maior pacificação social e menor judicialização” (STF, 2013).<br />

As constantes transformações sociais refletem no sistema<br />

judiciário que busca, incessantemente, suportes para realização da<br />

jurisdição por meio de alternativas, como a arbitragem, a mediação, a<br />

conciliação e a negociação, todas no intuito de favorecer a celeridade,<br />

a informalização e a pragmaticidade, de modo a se adequar aos<br />

moldes sociais contemporâneos.<br />

Atualmente, o sistema judiciário enfrenta uma crise, diante da<br />

crescente judicialização dos conflitos, não conseguindo atender,<br />

satisfatoriamente, às demandas sociais, e essa impossibilidade do<br />

tratamento adequado às questões acabam por ocasionar uma perda<br />

de poder do Estado e consequente desprestígio e deslegitimação do<br />

próprio Poder Judiciário como Poder Público Estatal (PINHO, 2010, p.<br />

63). A última ratio – o Poder Judiciário -, até meados do século passado,<br />

manteve-se como, realmente, o espaço para a solução de conflitos<br />

avultados, tendo uma capacidade de resposta satisfatória; entretanto,<br />

nas últimas décadas, instaurou-se um número de litigiosidades nunca<br />

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MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE<br />

visto, com um crescimento geométrico de demandas judiciais, muitas<br />

singelas, mas que atarefam a máquina judicial de tal forma que José<br />

Renato Nalini (20<strong>08</strong>, p. 107) chegou a classificar como “demandismo”.<br />

Sendo assim, é necessária a superação dessa visão de que<br />

um sistema somente é eficiente quando, para cada conflito, há<br />

uma intervenção jurisdicional, resgatando-se a ideia de que a<br />

conversação e o tratamento dos conflitos, de forma alternativa, devem<br />

ser incentivados com instituições e procedimentos que previnam e<br />

resolvam controvérsias a partir das necessidades dos interesses das<br />

partes (BOLZAN DE MORAIS; SPENGLER, 2012).<br />

A mediação, a arbitragem, a negociação e a conciliação objetivam<br />

não a exclusão ou a superação do sistema tradicional, mas, sim, a sua<br />

complementação para melhor efetivação de resultados, uma vez que, ao<br />

lado do tradicional processo judicial, se apresentam como uma opção<br />

que visa descongestionar os tribunais e reduzir o custo e a demora dos<br />

procedimentos, bem como estimular a participação da comunidade na<br />

resolução dos conflitos e facilitar o acesso ao seu tratamento.<br />

São inúmeras as vantagens dos mecanismos alternativos como<br />

auxiliadores do sistema jurisdicional, dentre elas, destacam-se a<br />

forma preventiva (pois formam um resultado antes que o processo<br />

inicie ou avance), são confidenciais (os procedimentos são secretos),<br />

são informais (há escassez de procedimentos), são flexíveis<br />

(as opções não se encontram predispostas às leis, podendo ser<br />

adequadas), representam economia (custos reduzidos), justeza das<br />

decisões (porque o tratamento do problema é adaptado ao que as<br />

partes desejam), são promissores (tendo em vista as experiências<br />

satisfatórias nos países que já os implementaram).<br />

Nesse sentido, a mediação e a conciliação são caminhos<br />

alternativos que visam à solucão de conflitos no futuro do Judiciário,<br />

buscando construir outra mentalidade nos juristas brasileiros, cujo<br />

objetivo principal seja a pacificação social e o abandono do litígio.<br />

Sobre o tema, assim lecionam Lilia Maia de Moraes Sales e<br />

Mônica Carvalho Vasconcelos:<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 21


Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />

É nas questões de família que a mediação encontra sua mais<br />

adequada aplicação. Há muito, as tensas relações familiares<br />

careciam de recursos adequados, para situações de conflitos,<br />

distintos da negociação direta, da terapia e da resolução judicial.<br />

A mediação vem-se destacando como uma eficiente técnica que<br />

valoriza a coparticipação e a co-autoria (2005, p.166).<br />

Conforme, oportunamente, frisado, os conflitos familiares<br />

apresentam grande complexidade em razão dos sentimentos das<br />

partes envolvidas. Nesse contexto, a mediação se destacou dentre<br />

os tradicionais mecanismos de solução de conflito, dada sua natureza<br />

humanitária, cujo objetivo é evitar maiores desgastes emocionais,<br />

causados por processos que, muitas vezes, custam lapso de tempo<br />

considerável de angústia aos litigantes e que, provavelmente, não<br />

resultarão em decisão satisfatória para ambos.<br />

A mediação atua nas crises familiares por intermédio da<br />

conscientização dos envolvidos de modo a mostrar-lhes que há meios<br />

de resolver seus conflitos sem provocar mais desgastes emocionais a<br />

si mesmos e aos demais membros da família atingidos pelo conflito.<br />

Assim, os litigantes passam a perceber a importância do diálogo, que,<br />

por vezes, é esquecida diante do conflito.<br />

Doglas Cesar Lucas e Fabiana Marion Spengler lembram que<br />

na mediação se resolve ou se transforma o conflito recorrendo a<br />

sua reconstrução simbólica. Quando se decide judicialmente se<br />

consideram normativamente os efeitos; desse modo, o conflito<br />

pode ficar hibernando, tornando-se mais grave em qualquer<br />

momento futuro. Solucionar um conflito equivale dizer a que as<br />

partes implicadas criaram a solução e ninguém lhes impôs. Em<br />

um procedimento litigioso o juiz decide, um vez que as partes<br />

apresentaram as provas e os argumentos de suas pretensões.<br />

Tudo dentro de um ritual inflexível, no qual se esquecer algum dado<br />

é quase impossível corrigir esse esquecimento. Nas mediações<br />

os “os esquecimentos” não resultam tão fatais quanto na cultura<br />

tradicional do litígio. Isso é devido a que as partes tem a possibilidade<br />

de resolver o conflito, podendo empregar todos os mecanismos<br />

que considerem necessários para poder elaborar, transformar ou<br />

resolver suas desavenças com o outro (2011, p. 239).<br />

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MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE<br />

Corroborando com esse entendimento, Sales e Vasconcelos<br />

(2005, p. 168) afirmam que “[...] a mediação busca a valorização do<br />

ser humano e a igualdade entre as partes”. Portanto, nos conflitos<br />

familiares, que, muitas vezes, são marcados pela desigualdade entre<br />

homens e mulheres, a mediação promove o equilíbrio entre os gêneros<br />

na medida em que ambos possuem as mesmas oportunidades dentro<br />

do procedimento.<br />

A mediação atinge grande importância nos conflitos familiares<br />

em que permeiam sentimentos de raiva, de rancor, de vingança, de<br />

depressão, de hostilidade, que podem transformar-se em disputas<br />

intermináveis e perdurar por gerações, atingindo vários membros<br />

da família. A par disso, os autores (op. cit., p. 165) complementam<br />

que “os conflitos familiares, antes de serem conflitos de direito, são<br />

essencialmente afetivos, psicológicos, relacionais, antecedidos de<br />

sofrimento”.<br />

Em consonância com o Movimento pela Conciliação, proposto<br />

pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), alguns Estados já vêm<br />

utilizando sessões de conciliação, nas quais se busca, por meio de<br />

um esforço concentrado, solucionar, com mais rapidez, as questões<br />

passíveis de acordo e que já estejam sub judice, e, por conseguinte,<br />

diminuir o estoque de processos pendentes nas varas, otimizando as<br />

atividades jurisdicionais. Em regra, uma equipe jurídica composta<br />

pela juíza coordenadora, por uma promotora, analistas, conciliadores<br />

e estagiários, bem como por uma equipe interprofissional que presta<br />

apoio psicológico e social às partes, trabalham de forma a objetivar a<br />

solução do litígio, quando as partes assim consentirem.<br />

Dessa forma, várias vantagens são evidenciadas com a utilização<br />

da mediação e da conciliação na solução de conflitos familiares,<br />

sendo que as partes restam satisfeitas ao chegarem a um acordo,<br />

em que elas mesmas constroem uma solução para resolver o conflito,<br />

na qual não há uma sentença imposta pelo juiz. Além disso, esses<br />

instrumentos alternativos também são meios mais céleres de se<br />

resolver um conflito, constituindo um atalho para uma decisão mais<br />

rápida e causando menos desgaste aos envolvidos.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 23


Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Este estudo buscou demonstrar a importância da conciliação<br />

e da mediação como mecanismos coadjuvantes na solução de<br />

conflitos, sobretudo em questões envolvendo o Direito de Família.<br />

As intensas transformações sociais que ocorreram, em especial<br />

nas últimas décadas, tiveram grande impacto na transformação da<br />

entidade familiar e, em consequência disso, essas transformações,<br />

e dos conflitos delas decorrentes, surgiu a necessidade de buscar a<br />

tutela mais adequada e humanitária para resolver essas espécies de<br />

conflito.<br />

Nessa senda, a conciliação e a mediação são mecanismos que<br />

têm se destacado, pois, além de céleres, se mostram adequados<br />

para resolver diversos tipos de conflitos, muitos já em litígio judicial.<br />

Em relação ao âmbito familiar, a conciliação e a mediação surgem<br />

como meios mais humanitários e, por isso, também mais adequados<br />

a solucionar questões tão complexas, em que estão envolvidos<br />

sentimentos como orgulho e rancor.<br />

As pesquisas que analisaram vários aspectos referentes à aplicação<br />

desses mecanismos como forma alternativa de solucionar os conflitos<br />

da família moderna comprovaram inúmeros benefícios em relação aos<br />

métodos da justiça tradicional. Dentre eles, seguem as principais vantagens<br />

enumeradas: valorização do cidadão no seu poder de resolução, eis que<br />

as próprias partes, por meio do diálogo, chegam a compor o conflito; a<br />

satisfação das partes; o maior cumprimento dos acordos realizados. Além<br />

disso, imprescindível mencionar que esses meios são mais céleres do<br />

que os demais mecanismos judiciais e com menor custo.<br />

Por outro lado, restaram evidenciadas as inúmeras dificuldades de<br />

implementação desses mecanismos no sistema processual, mormente<br />

pela crença que se criou de que somente as decisões impostas por<br />

um terceiro, são legítimas. Em questões de âmbito familiar, as partes<br />

envolvidas, por vezes, evitam o diálogo, o que impede a simples<br />

tentativa de se chegar a um acordo.<br />

Observou-se, ainda, que a falta de estrutura e de espaço<br />

físico adequados também dificultam o conciliador e o mediador<br />

24 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE<br />

de desempenharem suas funções, eis que, muitas vezes, são<br />

necessários trabalhos, juntamente com uma equipe multidisciplinar,<br />

para possibilitar a composição dos conflitos de maior complexidade.<br />

Dessa forma, em que pese existirem vários obstáculos a serem<br />

superados, a conciliação e a mediação são de extrema importância<br />

para a resolução de conflitos familiares. Os dados, obtidos por meio<br />

das pesquisas mencionadas, têm se mostrado muito satisfatórios,<br />

na medida em que as composições, obtidas por esses mecanismos,<br />

perfazem uma quantidade substanciosa de conflitos resolvidos, o que,<br />

evidentemente, vem contribuindo para a realização do Direito por meio<br />

da efetivação da justiça.<br />

Ressalta-se, ainda, que um consenso, fruto da composição<br />

amigável, viabiliza um índice maior de ser cumprido pelas partes do<br />

que uma decisão judicial imposta. Isto porque, no acordo construído<br />

pelas partes, cada um tem consciência e aceita sua parcela de<br />

responsabilidade legitimamente. Não há perdedor e vencedor, pois a<br />

litigiosidade foi desfeita por meio do diálogo e cooperação, da ação<br />

comunicativa, restaurada pela mediação.<br />

Por fim, diante deste estudo, foi possível observar como se<br />

estabelecem, hoje, as relações sociais e jurídicas na família e como<br />

o Direito tem se posicionado em relação a essa problemática, e qual<br />

seria a abordagem mais adequada para solução dos conflitos de<br />

familiares.<br />

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Recebido: 20-4-2014<br />

Aprovado: 20-8-2014<br />

28 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />

DI<strong>RE</strong>ITO<br />

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA<br />

JURÍDICA DE RONALD DWORKIN 3<br />

The civil desobedience in Ronald’s Dworkin legal theory<br />

Doglas Cesar Lucas 4<br />

Nadabe Manoel Machado 5<br />

Resumo<br />

O presente texto tem a pretensão de apresentar de forma bastante rápida a compreensão da desobediência<br />

civil no pensamento jurídico de Ronald Dworkin. Segundo o jusfilósofo norte-americano, a desobediência<br />

civil poderá ser invocada por aquele cidadão que considerar determinada lei de constitucionalidade<br />

duvidosa e decorre do direito (de baixa intensidade) de liberdade que todos os cidadãos possuem de<br />

interpretar moralmente o sistema jurídico, principalmente nos casos de possíveis exageros e equívocos da<br />

autoridade judicial. Nesses casos, os desobedientes civis fomentariam o debate em torno da validade da<br />

lei, questionando argumentos e interpretações oficiais e com isso proveriam a reafirmação ou correção dos<br />

instrumentos legitimadores do sistema jurídico.<br />

Palavras-chave: Desobediência civil. Ronald Dworkin. Legitimidade.<br />

Abstract<br />

The present text purports to present in a very quick way the comprehension of the civil desobedience through<br />

the juridic thoughts of Ronald Dworkin. According to the north american jus-philosopher, the civil desobedience<br />

can be invoqued by the citizen that considers a certain law of doubtful constitutionality and follows the right (of<br />

very low intensity) of liberty that every citizen has to moralize the legal system, mainly on cases of possible<br />

exaggeration and mistakes of the judicial authority. In these cases, the civil desobedients would promote the<br />

debate about the validity of the law, questioning arguments and official interpretations and with that promoting the<br />

reassurance or corrections of the legitimating instruments of the legal system.<br />

Keywords: Civil desobedience. Ronald Dworkin. Legitimacy.<br />

Sumário:<br />

Considerações iniciais; 1. Aspectos históricos e conceituais da desobediência civil; 2. Elementos<br />

específicos da desobediência civil; 3. A desobediência civil no pensamento de Dworkin como teste de<br />

constitucionalidade e de validade das normas jurídicas; 4. Resposta à desobediência civil: o que o Estado<br />

deve fazer com os desobedientes?; 5. Considerações finais; 6. Referências.<br />

3 Artigo produzido no âmbito do projeto de pesquisa Desobediência civil: entre legalidade e legitimidade, vinculado à linha de pesquisa<br />

Fundamentos e concretização dos direitos humanos, do mestrado em direitos humanos da Unijuí.<br />

4 Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi Roma Tre, Itália. Doutor em Direito pela UNISINOS e Mestre em Direito pela UFSC.<br />

Professor nos cursos de Graduação e Mestrado em Direito da UNIJUÍ. Professor no Curso de Graduação em Direito do Instituto Cenecista<br />

de Ensino Superior de Santo Ângelo – IESA. Professor visitante do Mestrado em Direito da URI-Santo Ângelo. Líder do grupo de pesquisa<br />

no CNPQ Fundamentos e concretização dos direitos humanos. Avaliador do MEC/INEP. E-mail: doglasl@unijui.edu.br<br />

5 Acadêmica do 8 o semestre do Curso de Graduação em Direito da Unijuí. Bolsista de Iniciação científica do CNPQ.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 29-52


Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />

CONSIDERAÇÕES INICIAIS<br />

Os protestos e manifestações públicas marcaram o Brasil em 2013.<br />

O povo saiu às ruas para demonstrar sua insatisfação contra todo tipo<br />

de injustiças e problemas sociais de nosso país. É como se os gritos<br />

das ruas afrontassem os silêncios que caracterizam o Brasil desde a sua<br />

formação; um país forjado pela segregação, coronelismo e por ditaduras<br />

tem certa dificuldade de se acostumar com as modalidades ativas de<br />

cidadania popular e não raramente as vê com certa desconfiança, medo<br />

e até mesmo como ações contra a lei e a ordem estatais. A República<br />

formal teve que abrir os olhos para um país real e admitir a crise de<br />

representatividade de suas instituições políticas.<br />

Mesmo que a força dos protestos já tenha arrefecido e poucas<br />

transformações reais promovidas, as movimentações recolocaram<br />

em debate, sobretudo para os jovens, o tema da democracia e suas<br />

formas substanciais de vivência. A democracia promovida pelas ruas,<br />

pela ação ativa da população brasileira reclama respostas e novas<br />

agendas públicas através de protestos, ocupações de prédios públicos<br />

e de passeatas, estratégias que geram muita repercussão social e<br />

que desafiam a ideia de “ordem” ao menos em termos jurídicos<br />

tradicionais. Qual a leitura jurídico-política que podemos fazer desses<br />

e outros tipos de protestos? Desafiam ou promovem a democracia?<br />

São autorizados ou proibidos pelo direito?<br />

O debate sobre a legalidade e a legitimidade política dos atos<br />

de resistência democrática ou de desobediência às leis injustas se<br />

confunde com a história das obrigações políticas e das teorias da justiça<br />

e de validade do direito. Na desobediência de Antígona a Creonte,<br />

no tiranicídio medieval, no direito de resistência defendida pelos<br />

autores contratualistas, na recusa de se obedecer à lei que mandava<br />

entregar escravos fugidios, na campanha de desobediência às leis<br />

Jim Crow liderada por Luther King, no movimento de não cooperação<br />

ao império Britânico firmado por Gandhi na Índia, nos protestos<br />

contra a participação americana na guerra do Vietnã e contra a<br />

energia nuclear na Europa, nos movimentos que eclodem diariamente<br />

nas sociedades democráticas, etc., em todos esses exemplos nos<br />

deparamos com três questões centrais para a teoria do direito e para<br />

30 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />

a teoria política: a possibilidade ou não de se desobedecer uma lei<br />

ou medida governamental que seja considerada injusta ou ilegítima/<br />

inconstitucional pela maioria da população; quais as consequências<br />

jurídicas que devem ser aplicadas aos desobedientes e a importância<br />

ou não de atos de desobediência civil para a consolidação de um<br />

modelo democrático de direito.<br />

Com a consolidação das propostas jurídicas democráticas se<br />

estreitaram as relações entre o direito e a democracia, e as pautas<br />

morais publicamente construídas pela comunidade passaram a fazer<br />

parte dos conteúdos relevantes tanto do direito quando das ações<br />

políticas e servir como parâmetro de validade e de legitimidade de<br />

ambos os sistemas de regulação da vida social.<br />

Tendo presente este cenários de (des)obediências ao direito numa<br />

sociedade democrática, este texto tem a pretensão de apresentar de<br />

forma bastante rápida o histórico, os fundamentos e o conceito de<br />

desobediência civil, demonstrando sua importância para a definição<br />

de uma cultura jurídica viva, democrática e dinâmica, que aposta<br />

na participação ativa dos cidadãos para denunciar e modificar o<br />

direito pela geração de situações de debate e diálogo público em<br />

torno de normas (interpretações) consideradas injustas/ilegítimas/<br />

inconstitucionais.<br />

A parte histórica e conceitual foi construída a partir de uma leitura<br />

geral e resume-se a fazer uma descrição da categoria estudada. Nos<br />

momentos seguintes optou-se por apresentar a teoria de desobediência<br />

civil de Ronald Dworkin, seja pela importância do autor no contexto da<br />

teoria jurídica contemporânea, pela utilização histórica dessa prática<br />

nos EUA e, sobretudo, por sua proposta teórica situar a desobediência<br />

civil como uma posição de liberdade que não pode ser negada em<br />

virtude dos conteúdos morais que condicionam a validade do próprio<br />

direito e da democracia.<br />

ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS DA<br />

DESOBEDIÊNCIA CIVIL<br />

A desobediência civil tem sido definida como a desobediência à<br />

lei ou medida governamental que não atenda aos princípios de justiça<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 31


Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />

ou de moralidade estabelecidos publicamente pela comunidade. É<br />

uma ação pública, realizada de modo não violento por um número<br />

expressivo de cidadãos que visam denunciar a injustiça ou até mesmo<br />

a falta de legitimidade constitucional de determinada norma ou medida<br />

governamental, com o intuito de modificá-la (LUCAS, 2003).<br />

Consiste numa reformulação do direito de resistência desenvolvida,<br />

no final do século XIX e início do século XX, pelo escritor norteamericano<br />

Henry Thoreau (1817 – 1862). Foi ele quem elaborou a<br />

expressão desobediência civil, utilizada pela primeira vez como título<br />

de um escrito produzido pelo autor na oportunidade em que esteve<br />

preso por não pagar impostos que financiavam, no seu entendimento,<br />

uma guerra injusta que os Estados Unidos mantinham contra o México.<br />

Defendia que a desobediência era a única alternativa a ser adotada<br />

diante de leis e práticas governamentais injustas ou contrárias aos<br />

princípios morais do indivíduo. Entendia que o caráter opressivo<br />

da lei não é atenuado pelos processos legislativos orientados pela<br />

regra da maioria, pois o motivo por que se permite à maioria governar<br />

encontra-se somente em sua maior força física e não em sua melhor<br />

compreensão ou incondicional virtude moral.<br />

Nessa senda, o respeito à lei deve firmar-se na consciência do<br />

indivíduo. A única obrigação que o cidadão assume é fazer aquilo que<br />

considere direito, de modo que a transgressão à norma se configura<br />

como um dever ético do cidadão. É favorável ao dever de desobedecer<br />

mesmo que disso resulte o aprisionamento, que deveria ser encarado<br />

como mérito pessoal, como um evento importante para mobilizar a<br />

opinião pública a adotar a mesma atitude e pressionar o governo a<br />

mudar sua postura (COSTA, 1990).<br />

As construções teóricas de Thoreau, associadas a Tolstói e Ruski,<br />

acabaram influenciando aquele que seria o principal responsável pela<br />

independência da Índia e um fervoroso defensor da desobediência<br />

civil, Mohandas Karamachad Gandhi (1869 –1948). Sua proposta,<br />

diferentemente de Thoreau, previa a desobediência civil como uma<br />

ação coletiva que ganha relevo e tende ao sucesso se realizada por um<br />

número expressivo de pessoas. A necessária utilização dos protestos<br />

32 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />

não violentos é a marca principal da proposta de desobediência civil<br />

elaborada por Gandhi. O pastor norte-americano Martin Luther King<br />

foi outro desobediente clássico que se valeu das técnicas de não<br />

violência, especialmente em favor dos direitos da população negra dos<br />

Estados Unidos nas décadas de 50 e 60 do século passado, época<br />

de intensa segregação racial em escolas, hospitais e restaurantes.<br />

Sustentava que essa situação exigia a organização da sociedade civil,<br />

pois considerava que o Poder Judiciário não poderia promover, de<br />

forma exclusiva, as mudanças necessárias.<br />

Apesar de a desobediência civil ser anunciada como uma<br />

reformulação do direito de resistência, com ele não se confunde.<br />

Enquanto a desobediência civil objetiva verificar a obrigatoriedade<br />

e a legitimidade de determinadas normas jurídicas e de medidas<br />

governamentais, a resistência, numa direção mais ampla, visa<br />

fazer frente à totalidade do ordenamento jurídico, objetivando a<br />

instauração de uma nova ordem político-jurídica. O desenvolvimento<br />

e as manifestações do direito de resistência remontam à Idade<br />

Antiga, servindo como melhor referência desse período a peça grega<br />

Antígona, de Sófocles. Este clássico texto revela a revolta de Antígona<br />

contra o decreto do rei Creonte proibindo o sepultamento de seu irmão<br />

Polinice. Sustentando a existência de um direito natural não-escrito,<br />

superior às ordens do Soberano, Polinice justifica a não-obediência ao<br />

rei quando este agir em desacordo com a lei maior. Contudo, diante da<br />

tradição do poder tirano, sem limites, pouco desenvolvimento teve no<br />

mundo antigo o direito de resistência.<br />

Do mesmo modo, os primeiros séculos do cristianismo pouco<br />

acrescentaram para o reconhecimento deste direito, devido à cultura<br />

amplamente enraizada de obediência e de tolerância ao tirano. Exemplo<br />

da tradição do poder com origem divina, e portanto inquestionável,<br />

pode ser encontrado na Epístola aos Romanos, do apóstolo São<br />

Paulo. Alguns autores identificam que as raízes históricas do direito de<br />

resistência apareceram apenas na Idade Média. Inobstante a doutrina<br />

do direito de resistência ter recebido a colaboração de muitos autores<br />

e alimentado diferentes manifestações ao longo da História, somente<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 33


Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />

se solidificou teoricamente com o aparecimento do contratualismo.<br />

Sob esse viés, o direito de resistência se consubstância como um<br />

direito de reagir frente ao abuso dos governantes que extrapolem as<br />

prerrogativas concedidas no contrato (GARCIA, 1994).<br />

Locke (1994), expoente dessa concepção, destacava que a falta<br />

de liberdade, a conquista, a usurpação, a tirania ou a dissolução do<br />

governo resultariam numa crise da sociedade que tornaria possível<br />

um retorno ao estado de guerra, considerado um ambiente de dever<br />

apenas para com a consciência, sem outra responsabilidade que<br />

não consigo mesmo, sendo legítimo o direito de resistir, uma vez que<br />

se configura no único mecanismo capaz de regenerar a sociedade<br />

civil e o Estado. Enfim, o direito de resistência está voltado para a<br />

reorganização do poder político como um todo, mesmo que para isso<br />

seja necessária a derrubada de um modelo de governo e a afirmação<br />

de outro.<br />

ELEMENTOS ESPECÍFICOS DA DESOBEDIÊNCIA<br />

CIVIL<br />

A desobediência civil possui algumas características que lhe<br />

são próprias e que a diferenciam de outras formas de resistência.<br />

Na sequência apontamos, de modo bastante rápido, os elementos<br />

definidores da desobediência civil segundo a maioria dos autores<br />

dedicados ao tema.<br />

Quanto ao número de participantes necessários para se<br />

caracterizar a desobediência civil, a maioria dos autores identifica a<br />

desobediência civil como sendo um ato necessariamente coletivo, como<br />

uma ação de grupo. Essa orientação é defendida por Hannah Arendt<br />

(1973), Norberto Bobbio (1992) e Michael Walzer (1977), por exemplo.<br />

Atualmente as manifestações mais significativas da desobediência<br />

civil são encontradas na atuação dos novos movimentos sociais e nos<br />

atos espontâneos de protestos públicos da sociedade civil, como os<br />

que vêm ocorrendo no Brasil mais intensivamente desde 2013.<br />

Caracteriza-se também por ser um ato público e aberto, pelo<br />

qual os desobedientes expõem à comunidade todas as razões,<br />

34 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />

fundamentos e intenções de sua desobediência, visando, com isso,<br />

angariar a simpatia e a confiança da população. A publicidade distingue<br />

a desobediência civil da desobediência criminosa, que é considerada<br />

um ato de violação clandestina.<br />

É uma ação de natureza política por se tratar de um ato que se<br />

orienta e se justifica por princípios políticos, ou seja, está amparado,<br />

segundo John Rawls (1994), nos princípios de justiça que fundamentam<br />

a Constituição e as instituições da sociedade. Face às insuficiências<br />

da democracia representativa, Arendt reconhece a desobediência civil<br />

como reafirmação da obrigação político-jurídica capaz de regenerar a<br />

faculdade de agir, de participar do processo de tomada de decisões<br />

políticas e, dessa maneira, impedir a degeneração da lei e a corrosão<br />

do poder político.<br />

A desobediência civil é apresentada como um recurso não-violento.<br />

Objetiva modificar as práticas e leis injustas sem colocar à prova a<br />

legitimidade da ordem jurídica em sua totalidade. Os meios violentos,<br />

para Arendt, são considerados inadequados porque levam à destruição<br />

do poder e da autoridade. Para Gandhi, o principal defensor das práticas<br />

não-violentas - somente a não-violência, ahimsa, poderia ser uma<br />

política profícua na conquista das mudanças necessárias em um mundo<br />

moldado sob a cultura da pouca tolerância e do arbítrio. Ressalta-se que<br />

um dos objetivos da resistência não-violenta é fazer com que o opressor<br />

reconheça a dignidade do oprimido, minando as diferenças que impedem<br />

o reconhecimento mútuo. No entendimento de Martin Luther King, a<br />

eficácia do ato não-violento está diretamente ligada ao efeito produzido<br />

nos participantes e nos espectadores do conflito, do que dependerá a<br />

simpatia da opinião pública e a aproximação entre os lados opostos<br />

(LUCAS, 2003).<br />

A desobediência civil é considerada um recurso que somente pode<br />

ser utilizado depois de esgotadas todas as alternativas institucionais<br />

de solução de conflitos, isto é, deve limitar-se aos casos extremos.<br />

No entanto, Rawls defende a utilização da desobediência civil<br />

como instrumento primeiro quando se tratar de situações urgentes<br />

ou quando for notória e reiterada a improficuidade das respostas<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 35


Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />

institucionais. Dworkin também aduz essa possibilidade quando a<br />

situação de obediência provoca uma ofensa irreparável a consciência<br />

do desobediente que não poderá ser remediada caso ele obedeça a<br />

determinada regra que considere injusta. Um estudante que é obrigado<br />

por lei beijar a bandeira americana todos os dias, comenta Dworkin,<br />

terá sua consciência e seu senso de justiça atacado se obedecer a<br />

regra, sendo irrelevante para a ofensa já perpetrada que ele recorra<br />

posteriormente a outros mecanismos institucionais visando discutir a<br />

validade da norma.<br />

Para a grande maioria dos autores, a desobediência civil é uma<br />

prática ilegal, apesar de enfatizarem que não se trata de uma prática<br />

ilícita qualquer, mas de uma ilegalidade amparada em justificativas<br />

legítimas. Sustentam que o ordenamento jurídico não pode considerar<br />

lícito um comportamento que ameaça a obrigatoriedade de obediência<br />

ao direito. Este recorte mais positivista posiciona a desobediência<br />

civil no debate do idealismo doutrinário, sem reconhecer nenhuma<br />

consequência ou elemento que permita considerá-la de modo distinto<br />

das ilegalidades tradicionais.<br />

A qualidade principal da desobediência civil estaria contida<br />

justamente na sua ilegalidade legitimada. Rawls (2000) aduz que a<br />

contrariedade da desobediência civil à lei se desenvolve dentro dos<br />

limites do ordenamento jurídico, pois, apesar da violação legal, a<br />

natureza pública e não violenta do ato demonstra a aceitação das<br />

consequências jurídicas pelos desobedientes, o seu reconhecimento<br />

e sua fidelidade à autoridade da lei. Bobbio (1992) e Arendt (1973)<br />

também aceitam a dimensão de ilegalidade legitimada dos atos<br />

desobedientes. Inobstante o predomínio da concepção mais<br />

tradicional, existem teses que consideram a desobediência civil um<br />

direito fundamental de proteção da liberdade, da cidadania e da<br />

Constituição, sugerindo, inclusive, sua inclusão no ordenamento<br />

jurídico. Nesse quadro teórico, a desobediência civil é caracterizada<br />

como o exercício de um direito ou como teste de constitucionalidade.<br />

Outra possibilidade assumida pela desobediência civil no âmbito<br />

36 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />

constitucional diz respeito a sua identificação com o exercício de um<br />

direito fundamental. Caracteriza-se, nesse viés, como defensora das<br />

liberdades necessárias à existência de uma opinião pública crítica.<br />

Quanto à sujeição dos desobedientes às prescrições punitivas,<br />

predomina o entendimento de que, pelo fato de reconhecerem a<br />

legitimidade do sistema político e de dirigirem a desobediência apenas<br />

contra determinadas leis, os desobedientes aceitam a punição pelos<br />

seus atos como uma forma de chamar a atenção da sociedade e criar<br />

as condições necessárias para a instauração do debate público. A<br />

punição é anuída como elemento estratégico, persuasivo, capaz de<br />

mobilizar a opinião pública a adotar a mesma postura participativa e<br />

crítica assumida pelos desobedientes.<br />

Thoreau considerava o aprisionamento decorrente de<br />

desobediência civil um mérito pessoal, pois ao agirem injustamente<br />

os governos fazem da prisão o único lugar digno para um homem<br />

justo. Quanto à postura que deve assumir o Estado-juiz diante da<br />

desobediência civil, Dworkin (2002 ; 2005), Rawls (2000) e Habermas<br />

(1994) defendem uma punição privilegiada aos desobedientes,<br />

diferente daquela dispensada aos ilícitos tradicionais, sem justificação<br />

política. A esse respeito Dworkin refere que devem ser evitados dois<br />

erros grosseiros: o de que o Estado deve punir sempre e, ao contrário,<br />

o de que deverá sempre se abster de punir atos de desobediência civil.<br />

Sugere que sejam consideradas as justificativas da desobediência e<br />

aplicadas aos desobedientes penas mais brandas, se com isso não<br />

se causar prejuízos a outros compromissos. Assim, dedicamos um<br />

item específico para tratar dos argumentos de Dworkin a respeito do<br />

tema. Para Habermas a desobediência civil enquanto mecanismo<br />

indispensável à legitimidade do Estado Democrático não pode ser<br />

tipificada e tratada como qualquer ato ilegal. Os juízes devem respeitar<br />

a virtude e a dignidade da aspiração dos desobedientes, evitando<br />

persegui-los como se fossem criminosos comuns, para, desse modo,<br />

não incorrerem num legalismo autoritário.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 37


Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NO PENSAMENTO<br />

DE DWORKIN COMO TESTE DE<br />

CONSTITUCIONALIDADE E DE VALIDADE DAS<br />

NORMAS JURÍDICAS<br />

Na obra de Dworkin, a relação entre a moral e o direito é<br />

bastante estreita e de certo modo interdependente. A discussão<br />

e a decisão sobre a validade de uma norma jurídica estão sujeitas<br />

a deliberações sobre problemas e temas morais. Para o autor, a<br />

fusão entre problemas morais e jurídicos são constitutivos da própria<br />

materialidade da Constituição norte-americana. É neste contexto de<br />

moralidade do direito que o autor norte-americano situa sua teorização<br />

sobre a desobediência civil, que ele considera uma decorrência da<br />

possibilidade real de pessoas livres, dadas as suas convicções,<br />

duvidarem e discordarem de interpretações a respeito de questões<br />

morais que constituem o direito ou uma decisão política (DWORKIN,<br />

2000; 2002).<br />

Importa para o objeto da desobediência civil saber qual a<br />

medida a ser adotada quando, dadas as convicções pessoais, uma<br />

lei é considerada inconstitucional, portanto não válida, e qual o<br />

comportamento a ser adotado pelo Estado nessas circunstâncias.<br />

Para o jusfilósofo norte-americano, o cidadão tem obrigação moral<br />

de obedecer às obrigações políticas porque elas são resultados da<br />

vida em comunidade, sobretudo nos Estados democráticos de direito<br />

que reconhecem e protegem os direitos individuais básicos como<br />

a dignidade e a igualdade. No entanto, quando se depararem com<br />

uma lei de constitucionalidade e, portanto, de validade duvidosa, seu<br />

comportamento não será injusto se seguirem seu próprio entendimento<br />

sobre esta lei, desde que razoável.<br />

O autor refere que a moralidade social presente nas Constituições<br />

democráticas interfere na validade das normas jurídicas, de modo<br />

que qualquer lei que pareça colocar em perigo dita moralidade suscita<br />

problemas constitucionais, e se ela for grave, as dúvidas constitucionais<br />

também o serão (DWORKIN, 2000; 2002). A interpretação constitucional<br />

38 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />

é um processo que ultrapassa os limites do Judiciário e reconhece a<br />

importância da participação pública na construção dos significados.<br />

Neste contexto, a desobediência civil deflagra o debate sobre a<br />

constitucionalidade das leis, apresentando-se como um especial<br />

instrumento para se testar e preservar os níveis de constitucionalidade<br />

das mesmas.<br />

O direito seria mais pobre e com menos possibilidade de<br />

questionar seus próprios postulados e fundamentos se todos os<br />

cidadãos tivessem que, a priori, obedecer incondicionalmente às leis<br />

que consideram de validade duvidosa. Poder questionar, duvidar e<br />

interrogar sobre a validade de uma lei com base em argumentos morais<br />

e constitucionais parece ser uma atitude alinhada com os ideários de<br />

democracia que constituem os modelos jurídicos contemporâneos e<br />

contribui na elaboração da melhor decisão judicial possível.<br />

A lealdade do cidadão é para com a lei e não para com um<br />

determinado ponto de vista particular sobre a natureza do direito.<br />

Diante de normas jurídicas de interpretação duvidosa, o cidadão<br />

poderá se posicionar de forma livre, desde que sensata. Ao se colocar<br />

como intérprete da norma o indivíduo está agindo de forma coerente<br />

com a própria possibilidade que a dúvida interpretativa lhe garante.<br />

Não se trata de estar certo ou errado, mas de poder interpretar a norma<br />

de modo diverso em um ambiente de incertezas. Nesse sentido a<br />

desobediência é vista pelo autor americano como uma decorrência do<br />

exercício dos seus direitos fundamentais. O fato de não ser positivada<br />

não lhe retira a juridicidade. Pode ser um direto fraco se comparado<br />

a clássicos direitos individuais, mas mesmo assim se considera um<br />

direito aos olhos do desobediente (OB<strong>RE</strong>GÓN; CANIZALES, 2013).<br />

A desobediência civil, explica Dworkin (2000), é uma característica<br />

da experiência política, não porque umas pessoas sejam virtuosas e<br />

outras más, ou porque umas detém a sabedoria e outras a ignorância.<br />

Mas sim, porque os indivíduos discordam entre si e ao divergirem<br />

reconstroem objetos e entendimentos. Nesse norte, Dworkin acredita<br />

que a resposta à pergunta “o que é certo as pessoas fazerem quando<br />

acreditam que as leis estão erradas?” dependerá das circunstâncias<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 39


Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />

que motivam e fundamentam o ato de desobediência. Considerando<br />

que nem todos os atos de desobediência civil apresentam os mesmos<br />

motivos e circunstâncias, Dworkin propõe três tipos de desobediência.<br />

Um primeiro tipo ele denomina de desobediência baseada na<br />

integridade. Nesse caso o atendimento aos ditames da consciência<br />

impede de obedecer. Considera a desobediência civil baseada<br />

na integridade uma questão de urgência que não pode esperar as<br />

manifestações institucionais sob pena de esta obediência significar<br />

uma perda definitiva. É uma forma de defesa pessoal que “tem como<br />

objetivo apenas que o agente não faça algo que sua consciência<br />

proíbe.” O autor aduz que quase todos concordariam que é correto<br />

violar a lei quando as pessoas são obrigadas a fazerem aquilo que<br />

sua consciência reprova de forma absoluta. (DWORKIN, 2000, p. 160-<br />

161). Exemplifica o autor: “O nortista a quem se pede que entregue<br />

um escravo ao proprietário, ou mesmo o escolar a quem se pede que<br />

saúde a bandeira, sofre uma perda definitiva ao obedecer e não é de<br />

muita valia para ele que a lei seja modificada logo depois” (DWORKIN,<br />

2000, p. 159-160).<br />

Para Jorge Malem Seña (1990), o que Dworkin denomina<br />

desobediência civil baseada na integridade pode ser identificada com<br />

a objeção de consciência. Há que se frisar, no entanto, que as razões<br />

motivadoras da desobediência civil, em muitos casos, não são distintas<br />

das motivadoras da objeção, sendo desse modo a classificação<br />

de um ato desobediente, em uma ou outra categoria, uma tarefa<br />

complexa. Ressalvado este aspecto conflitante, importa destacar que<br />

Dworkin introduz um novo elemento na discussão quando defende<br />

a possibilidade de se utilizar a desobediência civil como instrumento<br />

de defesa para situações de urgência sem antes recorrer aos meios<br />

institucionais.<br />

Nos passos do autor americano, parece coerente afirmar que,<br />

quando a situação exigir uma manifestação imediata, seja para<br />

defesa ou protesto, recorrer previamente aos mecanismos jurídicos<br />

significaria anular o próprio objeto da desobediência civil. Assim, uma<br />

teoria da desobediência civil que se quer profícua não pode excluir<br />

40 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />

de forma incondicional a atuação defensiva e imediata, sob pena<br />

de restarem prejudicados seus objetivos quando de circunstâncias<br />

extremas e irreversíveis. É a natureza e a gravidade da injustiça que<br />

determinam a ênfase e o momento da reação a ser tomada.<br />

Diferentemente da primeira, a desobediência baseada na justiça é<br />

definida por Dworkin como uma postura estratégica e instrumental que<br />

visa se opor à políticas consideradas injustas com intuito de modificá-las.<br />

Para tanto, vale-se de estratégias persuasivas e não persuasivas. Obrigar<br />

a maioria a escutar os argumentos contra uma determinada política na<br />

expectativa de que mude de ideia é um exemplo do primeiro tipo de<br />

estratégia. As estratégias não persuasivas não visam alterar a posição<br />

da maioria, “mas elevar o custo de dar prosseguimento ao programa que<br />

a maioria ainda prefere, na esperança de que esta julgue o novo custo<br />

inaceitavelmente elevado.” (DWORKIN, 2000, p.161.)<br />

Em determinadas situações, porém, em condições pouco favoráveis<br />

para o diálogo político e diante de uma posição rígida do governo,<br />

estratégias não persuasivas de intimidação (bloqueio de estradas,<br />

ocupação de prédios públicos) desde que sem violência, podem<br />

representar uma alternativa de razoável sucesso, defende o autor.<br />

Um terceiro tipo é denominada por Dworkin de desobediência<br />

civil baseada na política e visa reverter uma posição política por<br />

considerá-la perigosamente imprudente, estúpida ou insensata para a<br />

maioria. Acreditam os desobedientes que a política resistida é má para<br />

todos e não apenas para alguns setores ou minorias. Nesse caso,<br />

igualmente à desobediência baseada na justiça, também podem se<br />

distinguir estratégias persuasivas e não persuasivas. “As estratégias<br />

persuasivas pretendem convencer a maioria de que sua decisão<br />

está equivocada e assim, fazê-la renunciar ao programa a que antes<br />

favoreceu. As estratégias não persuasivas pretendem aumentar o<br />

preço que a maioria deve pagar por um programa que continua a<br />

preferir.” (DWORKIN, 2000, p.162 -163).<br />

As estratégias persuasivas são sempre melhores em qualquer tipo<br />

de desobediência, destaca o autor, pois o fato de se tentar persuadir a<br />

opinião valendo-se de argumentos sensatos não desafia em nenhum<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 41


Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />

sentido o princípio do governo da maioria. Já as estratégias não<br />

persuasivas podem ser mais facilmente justificadas na desobediência<br />

baseada na justiça do que na desobediência baseada na política.<br />

É possível reagir fortemente contra uma maioria que sonegue os<br />

princípios de justiça presentes na Constituição e tente empreender<br />

modificações nessa direção. Ao contrário, não parece que tenha<br />

sentido obrigar a maioria a modificar ou aprovar determinadas medidas<br />

políticas que segundo o seu entendimento, mesmo que equivocado<br />

pela minoria, considere de interesse comum.<br />

A distinção que Dworkin faz entre estratégias persuasivas e<br />

não persuasivas é, em nosso juízo, um tanto confusa e não ajuda a<br />

caracterizar categoricamente nenhum dos tipos de desobediência civil<br />

por ele proposta. E essa não é a fragilidade principal dessa distinção.<br />

Ora, a desobediência civil é utilizada quase sempre depois de<br />

esgotadas as diversas instâncias institucionais de debate público nas<br />

quais os argumentos de persuasão foram apresentados e certamente<br />

refutados. Caso os melhores argumentos tivessem a garantia de<br />

saírem sempre vitoriosos de uma disputa de ideias, possivelmente a<br />

desobediência civil jamais teria surgido como estratégia para se fazer<br />

ouvir argumentos.<br />

Por outro lado, o recurso de desrespeito à lei visa justamente<br />

recolocar o argumento e reformular espaços de diálogo, o que significa<br />

que mesmo as estratégias não persuasivas são utilizadas para iniciar<br />

processos persuasivos, de modo que separar ambas as estratégias de<br />

ação da desobediência civil parece uma tarefa sem sentido prático. A<br />

não ser que a desobediência civil possa obrigar mudanças de rumo no<br />

direito e na política mesmo sem o consentimento da maioria, situação<br />

que obviamente Dworkin não ventilou.<br />

Em suma, a desobediência civil adotará estratégias que<br />

dependerão do contexto de sua ação prática, mas quase sempre<br />

recorrendo a mecanismos não oficiais e institucionalizados de petição,<br />

como por exemplo a desobediência direta à lei considerada injusta,<br />

protestos, ocupação de prédios públicos e rodovias, etc, que servem<br />

para colocar em debate a injustiça de determina lei ou medida política.<br />

42 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />

Dworkin destaca que em casos extremos de injustiça, de equívoco<br />

político ou de imoralidade é bastante fácil se posicionar favoravelmente<br />

à desobediência civil. O mesmo, alerta ele, não acontece diante de<br />

situações que, dadas as convicções de diferentes sujeitos e grupos,<br />

não se consegue ter clareza de uma posição majoritária que assegure<br />

que os mesmos argumentos favoráveis à desobediência não sejam<br />

refutados com a mesma energia pelos argumentos desfavoráveis.<br />

Enfim, é na recusa moral (e portanto também jurídica) de um uma<br />

norma ou de uma política que reside o fundamento da desobediência; é<br />

na possibilidade de duvidar e de discutir qualquer lei que comprometa a<br />

moralidade jurídica da Constituição que a desobediência civil pensada<br />

por Dworkin encontra seu valor político e jurídico.<br />

<strong>RE</strong>SPOSTA À DESOBEDIÊNCIA CIVIL: O QUE O<br />

ESTADO DEVE FAZER COM OS DESOBEDIENTES?<br />

Ao tratar do problema da punição ou não dos desobedientes,<br />

Dworkin refere que duas compreensões estanques devem ser<br />

afastadas: a de que o Estado deve punir sempre ou, ao contrário, de<br />

que deverá sempre se abster de punir atos de desobediência civil. Nas<br />

palavras do autor,<br />

devemos evitar dois erros grosseiros. Não devemos dizer que se<br />

alguém teve motivos, dadas as suas convicções, para violar a lei,<br />

o governo não deve puni-lo. Não existe nenhuma contradição e,<br />

muitas vezes, há muito sentido em decidir que alguém deve ser<br />

punido apesar de ter feito exatamente o que nós, se tivéssemos as<br />

suas convicções, faríamos e teríamos a obrigação de fazer. Mas o<br />

erro oposto é igualmente ruim. Não devemos dizer que se alguém<br />

violou a lei, por qualquer razão que seja e por mais honrosos que<br />

sejam seus motivos, sempre deve ser punido porque a lei é a lei<br />

(2000, p. 168).<br />

Quando, porém, o Estado deverá punir? Para o autor norte-<br />

-americano ninguém deveria ser punido, a não ser que, considerando<br />

todas as circunstâncias envolvidas, a punição provocasse, em longo<br />

prazo, um bem geral para a sociedade. Sem dúvida que será sempre<br />

mais desejável que a desobediência civil atinja seus objetivos sem<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 43


Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />

a necessidade de punição. Essa é a condição melhor para todos e<br />

não deve ser descartada pelas autoridades estatais responsáveis pela<br />

persecução penal.<br />

Caso se reconheça, segundo Dworkin, que alguém está certo<br />

ao violar a lei, “dada sua convicção de que a lei é injusta, parece<br />

incoerente não reconhecer isso também como uma razão que os<br />

promotores podem e devem levar em conta ao decidir acusar ou não<br />

[...], como (também) uma razão para punir mais brandamente alguém<br />

que foi processado e condenado”. (DWORKIN, 2000, p. 170). O autor<br />

não considera incompleta a desobediência civil que se der sem a<br />

punição dos desobedientes, mas entende que muitas vezes ela pode<br />

se caracterizar como elemento estratégico, incitando o desejo de<br />

muitos pela punição.<br />

No caso de leis de validade duvidosa, tanto dissidentes quanto<br />

juízes podem acreditar na razão de seus argumentos e elaborarem<br />

teses convincentes. Desse modo, se o debate está centrado na<br />

validade da própria lei, a partir da moralidade da Constituição, não se<br />

pode dizer, a primeira vista, se a norma é válida ou inválida. Por óbvio,<br />

então, uma norma de validade discutível não poderá punir de modo<br />

indiscutível, permanecendo aberto o debate sobre a sua aplicação.<br />

Deste modo,<br />

ao julgar o que deveria ser feito em relação aos opositores<br />

do recrutamento, não podemos pressupor que eles estavam<br />

reivindicando o privilégio de desobedecer leis válidas. Não<br />

podemos decidir que a equidade exige sua punição enquanto<br />

não tentarmos responder às questões que se seguem: o que<br />

deve fazer um cidadão quando a lei não for clara e ele pensar que<br />

ela permite algo que, na opinião de outros, não é permitido? Sem<br />

dúvida, não pretendo perguntar o que, para ele, é juridicamente<br />

apropriado fazer, ou quais são seus direitos jurídicos- isso seria<br />

uma petição de princípio, já que a resposta depende de sabermos<br />

quem está certo: ele ou os outros. Eu desejo perguntar qual é o<br />

comportamento que lhe compete enquanto cidadão; em outras<br />

palavras, o que consideraríamos ‘seguir as regras do jogo’. Trata-<br />

-se de uma questão crucial, porque não pode ser injusto deixar<br />

de puni-lo se ele estiver agindo, dadas as suas opiniões, como<br />

achamos que deve agir (Dworkin, 2002 p. 321).<br />

44 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />

Afinal, pergunta Dworkin, o que deve fazer um cidadão quando<br />

ele considera que uma norma é duvidosa e pensa que ela permite<br />

algo que, na opinião de outros, é proibido? Dworkin apresenta três<br />

possibilidades para essa pergunta e depois aponta qual delas melhor<br />

se adapta as práticas e expectativas do modelo jurídico democrático<br />

americano. Numa primeira hipótese de a lei ser duvidosa, obscura<br />

quanto a permitir que o indivíduo faça o que quiser, este pode imaginar<br />

o pior e agir pressupondo que a lei não permite, obedecendo à lei<br />

mesmo considerando-a errada, enquanto utiliza o processo político<br />

para modificá-la.<br />

Já a segunda possibilidade diz que se a lei é duvidosa o cidadão<br />

seguirá sua própria interpretação e fará o que quiser, se pensar que o<br />

argumento a favor da permissão seja mais forte do que o da proibição.<br />

No entanto, no momento que advier uma decisão judicial contrária<br />

ao seu entendimento o desobediente passa a respeitar a norma,<br />

mesmo considerando-a inválida. E por fim a terceira possibilidade:<br />

se a lei é duvidosa, o cidadão poderá orientar-se por seu próprio<br />

discernimento, mesmo depois de uma decisão contrária tomada pelo<br />

Tribunal.<br />

O jusfilósofo americano rejeita os dois primeiros modelos. Não é<br />

sensato, afirma ele, que os cidadãos pressuponham sempre o pior.<br />

Caso nenhum tribunal<br />

[...] tenha se pronunciado quanto a questão e se um indivíduo<br />

acreditar, depois de ponderar sobre os fatores, que a lei está<br />

do seu lado, a maioria de nossos juristas e críticos achará<br />

perfeitamente correto que ele siga seu próprio discernimento.<br />

Mesmo quando muitos discordarem do que ele faz – como, por<br />

exemplo, vender literatura pornográfica – não pensarão que ele<br />

deve desistir somente porque a legalidade de sua conduta é<br />

objeto de dúvida (DWORKIN, 2002, p. 324).<br />

Se a lei é ambígua, portanto, nem sempre o que a Suprema Corte<br />

diz das normas é de fato o que diz ser, pois pode estar influenciada<br />

por diversas situações e agir de forma mais conveniente para si,<br />

o que também pode acontecer com o indivíduo que interpreta a lei<br />

a seu modo. Além disso, os Tribunais mudam de ideia e revisam<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 45


Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />

suas decisões, podendo considerar legal uma determinada conduta<br />

que durante muito tempo foi considerada ilegal. Nesse sentido, um<br />

homem deve levar em conta aquilo que os Tribunais farão quando<br />

ele decidir se é prudente seguir o que seu próprio juízo indica. É<br />

por isso que se deve rejeitar o segundo modelo proposto, pois uma<br />

coisa é afirmar que o indivíduo deve, de vez em quando, violar sua<br />

consciência quando sabe que a lei o obriga a agir assim. Outra coisa<br />

é afirmar que ele deve violar sua consciência mesmo quando acredita<br />

sensatamente que a lei não exige que o faça, somente porque<br />

causará incomodo aos seus concidadãos se utilizar tal expediente de<br />

forma direta (DWORKIN, 2002).<br />

O terceiro modelo (o cidadão orientar-se de acordo com seu<br />

próprio discernimento mesmo depois de uma decisão judicial em<br />

contrário tomada pela mais alta corte), portanto, é indicado por Dworkin<br />

como a formulação mais equitativa do dever social de um membro da<br />

comunidade. O cidadão tem o dever de lealdade com a lei e não com<br />

posicionamentos particulares sobre ela. Obviamente que os Tribunais<br />

devem ser respeitados e guiar a conduta das pessoas no que se refere<br />

à possibilidade de fazer ou não fazer determinada coisa. Contudo, em<br />

se tratando de direitos fundamentais, um indivíduo não extrapola os<br />

limites de seu direito ao se recusar a aceitar uma decisão definitiva se<br />

argumentar que o Tribunal cometeu um erro e que a dúvida sobre a<br />

matéria persiste.<br />

Dworkin sugere que se deve tolerar o dissenso por um<br />

determinado tempo como uma forma de permitir que o debate construa<br />

entendimentos aceitáveis a respeito do assunto, visto que aqueles que<br />

duvidam da constitucionalidade de uma lei vão continuar duvidosos<br />

mesmo se a Suprema Corte afirmar esta constitucionalidade. Duvidar<br />

da constitucionalidade das leis é duvidar de sua própria validade. Por<br />

isso, em situações de dúvidas consistentes e razoáveis, os órgãos<br />

competentes devem estimular o debate e o diálogo seja para modificar<br />

entendimentos ou reforçá-los, seja para rever as leis ou para ampliar<br />

e confirmar a sua legitimidade constitucional, pois “[...] é injusto punir<br />

homens por desobedecerem uma lei duvidosa” (2002, p.339).<br />

46 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />

Uma lei que é questionada em sua validade obviamente que<br />

tem fragilizada a sua capacidade de definir tipos penais e sanções<br />

correspondentes. Se persistirem dúvidas sobre qual é a melhor<br />

interpretação que se deve dar a um dispositivo de lei é porque a própria<br />

validade do dispositivo está sendo questionada e seria um exagero<br />

exigir um comportamento incondicional por parte do desobediente e<br />

ainda mais exagerado lhe punir no caso de descumprimento da norma<br />

de validade duvidosa. Estaríamos transferindo para os Tribunais,<br />

Ministério público, polícia e demais instituições de persecução penal<br />

a palavra final sobre os conteúdos morais da lei, algo totalmente<br />

incompatível com a harmonia dos três poderes estabelecido no<br />

Estado Democrático.<br />

Certamente que os Tribunais devem ter legitimidade para dizer<br />

a última palavra, caso contrário o sistema de justiça se desintegraria.<br />

Isso, contudo, não garante que eles digam a melhor palavra e que<br />

façam interpretações absolutas sobre a moralidade e validade<br />

do direto. Tanto que seguidamente revisam suas decisões. Os<br />

desobedientes fortalecem o sistema de constitucionalidade na medida<br />

em que obrigam os Tribunais e a comunidade jurídica a debater<br />

sobre novas interpretações e conteúdos das normas jurídicas. Sua<br />

desobediência tem uma causa moral e jurídica; não desobedecem por<br />

razões egoísticas.<br />

Por isso tudo, sugere Dworkin, os Tribunais devem impor<br />

penas mínimas, suspender os efeitos da sentença e em situações<br />

de evidente dúvida constitucional devem obviamente absolver os<br />

desobedientes civis. Enfim, se reside dúvida sobre a validade de uma<br />

lei, não é errado que uma pessoa aja da forma como entender ser<br />

a melhor. E ninguém pode ser punido se, diante das circunstâncias<br />

e dadas às convicções pessoais, todos considerarem que a pessoa<br />

tenha agido de modo adequado ao desobedecer determinada lei.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

O Estado moderno centralizou a ação política e minimizou a<br />

importância do cidadão no processo democrático. A racionalidade<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 47


Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />

liberal-burguesa monopolizou os espaços de reivindicação,<br />

distanciando, por conta disso, a ação política formal das tensões<br />

reais da sociedade civil e reduzindo a compreensão da legitimidade<br />

à coerência lógico-formal do processo legislativo e das instituições de<br />

direito. Nesse contexto, a soberania popular transfigura-se em ícone<br />

que se sustenta no homem abstrato ao mesmo tempo em que nega a<br />

historicidade desse mesmo homem.<br />

A desobediência civil permite a construção de uma discursividade<br />

fora dos limites institucionais que é fundamental para a definição de<br />

conceitos representativos das reais demandas sociais. Consubstancia-<br />

-se como uma alternativa para expressar as necessidades públicas<br />

e para construir espaços públicos de discussão que aumentem a<br />

capacidade de controle do poder institucionalizado e dos conteúdos<br />

do direito. Ademais, se a perspectiva liberal de democracia reduz<br />

o espaço da palavra, da construção e da percepção da moralidade<br />

pública ao patamar legal-formal, a desobediência civil, por sua vez,<br />

atua no resgate de um discurso compartilhado que permite a formação<br />

dos conceitos coletivos a partir da constituição de objetivos comuns<br />

dentro da diversidade da comunidade política.<br />

A desobediência civil também deve ser situada como instrumento<br />

alternativo capaz de promover um deslocamento da soberania. No<br />

momento em que a comunidade política promove um agir associativo em<br />

torno das condutas que desaprova, por considerá-las injustas, resgata a<br />

fonte formadora do que, por esse ângulo, deposita-se na ação conjunta<br />

de muitos. Desobedecer a uma lei injusta ou inconstitucional representa<br />

uma disposição para avaliar a validade das normas a partir dos conceitos<br />

coletivos que expressam os níveis de legitimidade publicamente<br />

construídos. Assim, colocar em dúvida a justiça ou a constitucionalidade<br />

de uma lei, pela desobediência civil, é incitar um debate, é publicizar<br />

a discussão em torno dos valores que devem estar presentes para a<br />

consideração desta constitucionalidade e desta justiça.<br />

O liberalismo de Dworkin reconhece a desobediência civil como<br />

uma forma de manifestação da liberdade de ação diante da dúvida<br />

sobre a constitucionalidade da lei. Uma posição de desobediência<br />

48 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />

nessas circunstâncias não pode ser considerada como ato que<br />

ataca o sistema jurídico em sua integralidade visando fragilizá-lo;<br />

ao invés disso reforça o diálogo e a necessidade de revisar ou de<br />

reafirmar determinadas interpretações sobre a lei. As dúvidas sobre a<br />

moralidade da lei constituem-se dúvidas de sua validade. Da mesma<br />

forma que não interessa ao sistema político apoiar sua autoridade em<br />

leis inválidas, assim também não interessa ao sistema jurídico a sua<br />

reprodução e manutenção.<br />

Discutir, questionar, duvidar não significa a mesma coisa<br />

que atacar o direito, mas reforçar a sua legitimidade e validade<br />

pela afirmação de entendimentos velhos e pela construção de<br />

novos entendimentos. A construção democrática do direito sugere<br />

transcender o paradigma positivista e admitir que as justificativas do<br />

Estado e do Direito ultrapassam a fronteira técnica de seu ordenamento<br />

jurídico e reconheçam os princípios morais, éticos e políticos como<br />

imprescindíveis à sua legitimidade e validade. Nessa tarefa, a<br />

desobediência civil é uma categoria importante para construir relações<br />

democráticas indispensáveis para a regeneração e a reafirmação do<br />

Estado democrático de direito.<br />

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OB<strong>RE</strong>GÓN Martha Elena Soto; CANIZALES Raúl Ruiz. Tratamiento<br />

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23, pp. 151-166 - ISSN 1692-2530 • Enero-Junio de 2013. Medellín,<br />

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RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita<br />

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TELLA, Maria José Falcón y. La desobediencia civil. Madri: Marcial<br />

Pons, 2000.<br />

50 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />

THO<strong>RE</strong>AU, Henry David. Desobedecendo: a desobediência civil e<br />

outros escritos. Trad. José Augusto Drumond. 2.ed. Rio de Janeiro:<br />

Rocco, 1986.<br />

WALZER, Michael. Das obrigações políticas. Ensaios sobre a<br />

desobediência, guerra e cidadania. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.<br />

Recebido: 1-8-2014<br />

Aprovado: 10.10.2014<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 51


(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />

DI<strong>RE</strong>ITO<br />

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR<br />

MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />

Sustainable development through the extrafiscality of<br />

taxation<br />

Resumo<br />

Paulo Valdemar da Silva Balbé 6<br />

Salete Oro Boff 7<br />

O presente trabalho tem como objetivo abordar o tema do desenvolvimento sustentável, com destaque<br />

para a aplicação da extrafiscalidade nas espécies tributárias. Inicialmente é abordado o contexto histórico<br />

e mundial que deu origem ao tema “desenvolvimento sustentável”. Em um segundo momento, busca-se a<br />

compreensão da dimensão das liberdades fundamentais, condicionantes para a mudança de perfil do indivíduo,<br />

capacitando-o a atuar como agente dentro das estruturas da sociedade, com reflexos na construção de uma<br />

ética de responsabilidade. Na terceira parte do trabalho, realiza-se um estudo das competências tributárias na<br />

Constituição Federal de 1988 com especial enfoque para as bases econômicas ou matrizes tributárias previstas<br />

no texto constitucional e o questionamento sobre a possibilidade de instituição de tributação ambiental em um<br />

âmbito normativo analítico, com pouca margem de liberdade. Na quarta parte do trabalho, realiza-se um estudo<br />

sobre o alcance do princípio da extrafiscalidade e a possibilidade de aplicação nas espécies tributárias com o<br />

propósito de resguardo ao meio ambiente . Por fim, conclui-se que a extrafiscalidade é instrumento adequado<br />

e viável para o resguardo do meio ambiente no sistema tributário, admitida sua aplicação não somente aos<br />

impostos, de forma indireta, mas nas contribuições de intervenção no domínio econômico.<br />

Palavras-chave: Desenvolvimento. Sustentabilidade. Extrafiscalidade. Tributação ambiental<br />

Abstract<br />

The present work has the objective of approaching the theme of sustainable development, with a highlight<br />

on the application of extrafiscality in the tributary species. At first, the historical and worldwide context<br />

that gave origin to the theme of “sustainable development” is approached. In a second moment, there is<br />

the understanding of the dimension of the fundamental liberties, which condition the individuals’ profile<br />

changes, enabling them to act as agents within the society’s structures, with consequences on the building<br />

of a responsibility ethics. In the third part of the work, a study of the tax competences in the Federal<br />

Constitution of 1988 is carried out, with a special focus on the economic bases or tributary matrices<br />

predicted in the constitutional text and on questioning the possibility of instituting an environmental taxation<br />

in an analytic normative sense, with little margin of liberty. In the fourth part of the work, a study is made<br />

on the reach of the extrafiscality principle and on the possibility of application in the tributary species in<br />

order to safeguard the environment. Finally, the conclusion is that extrafiscality is an adequate and feasible<br />

instrument in the tributary system for the safeguard of the environment, if its application is admitted not only<br />

to taxes, in an indirect manner, but in the intervention contributions in the economic domain.<br />

Keywords: Development. Sustainability. Extrafiscality. Environmental taxation.<br />

6 Mestrando em Direito no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu na Faculdade Meridional (IMED). Vinculado aos grupos de<br />

pesquisa “Direito e Desenvolvimento” e “Ética, Cidadania e Sustentabilidade”. Procurador Federal. Email: paulo.balbe@gmail.com<br />

7 Pós-Doutrora em Direito UFSC. Professora do IESA-CNEC e dos PPGD/IMED/UNISC. Linhas de pesquisa “Direito e<br />

Desenvolvimento” e “Políticas Públicas de Inclusão Social”. Email: salete.oro.boff@terra.com.br<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 53-72


Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />

Sumário:<br />

1. Introdução; 2. Desenvolvimento sustentável, meio ambiente e tributo; 3. Indivíduo como agente moral:<br />

liberdade e responsabilidade; 4. Competência tributária; 5. Extrafiscalidade: possível caminho para uma<br />

tributação ambiental no Brasil?; 6. Considerações finais; 7. Referências<br />

INTRODUÇÃO<br />

A proteção ao meio ambiente, constante do arcabouço normativo<br />

brasileiro, deve crédito à preocupação e à importância conferida ao<br />

tema “desenvolvimento sustentável” pela comunidade internacional<br />

desde meados do século passado.<br />

Compreender o que seja “desenvolvimento sustentável” é<br />

tarefa complexa, pois abrange uma gama de dimensões e vários<br />

aspectos da vida humana. Nesse contexto, a dimensão ecológica,<br />

voltada à preocupação com a conservação dos elementos naturais,<br />

é um aspecto relevante, pois retrata, de modo bastante claro, e em<br />

uma perspectiva temporal não muito distante, a possibilidade de<br />

de que sejam inviabilizadas pela própria humanidade as condições<br />

necessárias à sua subsistência.<br />

Sem menosprezar a necessária construção de um conteúdo<br />

ético para pautar a conduta humana em relação aos demais<br />

seres e biosferas existentes no Planeta Terra (conteúdo este que<br />

necessariamente deverá desenvolver os sentimentos de solidariedade<br />

e responsabilidade), pode-se afirmar que ainda falta o despertar para<br />

a importância de uma quebra de paradigma nos modos de produção e<br />

no sistema econômico vigente.<br />

A conduta humana, nessa conjuntura, é ainda pautada de<br />

modo muito importante pela normatividade e pelas estruturas que<br />

a viabilizam no seio da sociedade democrática. É a norma, nessas<br />

circunstâncias, dotada de forte apelo didático, que estimula ou coíbe<br />

condutas dos indivíduos e, consequentemente, induz a formação de<br />

um novo padrão cultural. No caso da proteção ao meio ambiente é<br />

possível constatar que normas de várias naturezas e propósitos<br />

buscam efetivar e complementar sua tutela, observando o estatuto de<br />

direito fundamental conferido ao tema pela Constituição Federal (art.<br />

225).<br />

54 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />

Um questionamento que se destaca é aquele referente aos limites<br />

da aplicabilidade dessa proteção ao meio ambiente no ramo do Direito<br />

Tributário, sobretudo em razão das evidentes amarras legislativas e<br />

teóricas que vigoram naquela seara, também voltada à proteção do<br />

patrimônio do cidadão.<br />

No caso brasileiro, pode-se pretender viabilizar uma tributação de<br />

viés ecológico mediante a aplicação do princípio da extrafiscalidade.<br />

Cabe, portanto, indagar até que ponto isso seria possível, ou seja,<br />

quais seriam os limites da aplicação do tributo para a proteção<br />

ambiental no Brasil utilizando-se da extrafiscalidade.<br />

A expectativa é que a presente análise possa trazer indicativos,<br />

mesmo que preliminares, a essas indagações.<br />

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL<br />

A busca por um modelo de desenvolvimento sustentável é<br />

tema de debate na comunidade internacional com maior destaque<br />

a partir da segunda metade do século XX, em especial diante dos<br />

questionamentos, originários das comunidades política e científica, de<br />

que o aperfeiçoamento técnico voltado para a crescente exploração<br />

de recursos naturais poderia chegar a um limite 8 . Pela primeira vez<br />

a humanidade percebeu que a ausência de alternativas ao modo de<br />

produção capitalista e aos padrões de consumo poderia ocasionar<br />

real perigo de extinção à própria espécie.<br />

No início da década de 70 (séc. XX), a Organização das Nações<br />

Unidas realizou a Primeira Conferência Mundial sobre o Homem e o<br />

Meio Ambiente. A Declaração de Estocolmo, em seu relatório final,<br />

trouxe significativos diagnósticos e proposições acerca do problema<br />

da poluição e degradação ambiental, dando início a uma série de<br />

debates e tratativas internacionais com temática de destaque para a<br />

ecologia e o meio ambiente. Característicos de uma época na qual<br />

8 Há referências de que um evento marcante para o início do debate tenha sido a divulgação, no ano de 1972 do estudo “Os limites<br />

do crescimento” solicitado pelo “Clube de Roma” e desenvolvido por uma equipe do Massachusetts Institute of Technology - MIT. O<br />

aludido estudo, dramático a ponto de indicar o colapso dos sistemas populacional e econômico no século XXI, embora controverso e<br />

em alguns pontos refutado, já obteve respaldo na comunidade científica. Estudo recente aponta que os cenários-padrão apontados<br />

na publicação de 1972 correspondem de forma razoável com a realidade nos últimos 30 anos. Nesse sentido, o estudo de Graham<br />

Turner A comparison of the limits to growth with thirty years of reality” divulgado no ano de 20<strong>08</strong> (Disponível emhttp://www.csiro.au/<br />

Outcomes/Environment/Population-Sustainability/SEEDPaper19.aspx).<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 55


Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />

ainda era incipiente a compreensão da complexidade do conjunto de<br />

circunstâncias relacionadas ao tema, os documentos resultantes dos<br />

debates demonstram a predominância do viés antropocentrista.<br />

Foi com o cognominado Relatório Brundland, entretanto, que a<br />

expressão “desenvolvimento sustentável” ganhou definição e passou<br />

a adquirir ares de oficialidade, o que significou seu grande uso na<br />

literatura relacionada ao tema (BOFF, 2012, p. 34).<br />

No condizente às causas diagnosticadas, a pobreza e a<br />

desigualdade despontam como principais fatores aptos a propiciar<br />

crises, em especial de ordem ecológica: “Em um mundo no qual a<br />

pobreza e a desigualdade são endêmicas será sempre propenso a<br />

crises ecológicas e de outro tipo […] muitos problemas de esgotamento<br />

de recursos e de estresse ambiental surgem de disparidades de poder<br />

econômico e político” 9 .<br />

Em semelhantes linhas, o tema já era de igual modo compreendido<br />

no ano de 1972: “Nos países em desenvolvimento, a maioria dos<br />

problemas ambientais são causados pelo subedesenvolvimento” 10 .<br />

Mais tarde, no ano de 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre o<br />

Meio Ambiente e o Desenvolvimento – CNUMAD – elaborou e divulgou<br />

novo documento no qual buscou planificar ações e programas para<br />

o cumprimento de metas estipuladas durante o evento, destinadas<br />

à implementação de condições para o alcance do desenvolvimento<br />

sustentável no século XXI: a Agenda 21.<br />

Documento extenso e relativamente complexo (4 Seções, 40<br />

capítulos), a Agenda 21 foi submetida a periódicas revisões com<br />

o propósito de identificar obstáculos à sua concretização (Rio+5,<br />

Rio+20). Os documentos internacionais referidos contemplam uma<br />

visão ampla de “desenvolvimento sustentável”, permitindo identificar<br />

naquela expressão várias medidas de ordem social, econômica e<br />

política. Ilustra-se, para compreensão, o escopo de “desenvolvimento<br />

sustentável” elaborada originariamente pelas Nações Unidas em 1972:<br />

9 Tradução livre. Texto original: “A world in which poverty and inequity are endemic will always be prone to ecological and other crises<br />

[…] many problems of resource depletion and environmental stress arise from disparities in economic and political power”. Our<br />

common future. United Nations.World Commission on Environment and Development. 1987<br />

10 Tradução livre. Texto original: “In the developing countries most of the environmental problems are caused by under-development.”<br />

Declaration of the United Nations Conference on the Human Environment. United Nations. 1972<br />

56 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />

O desenvolvimento sustentável procura atender às necessidades<br />

e aspirações do presente sem comprometer a capacidade de<br />

atender às do futuro. Longe de exigir a cessação do crescimento<br />

econômico, reconhece que os problemas de pobreza e<br />

subdesenvolvimento não podem ser resolvidos a menos que<br />

tenhamos uma nova era de crescimento no qual os países<br />

em desenvolvimento têm um papel grande e colher grandes<br />

benefícios 11 .<br />

Questiona-se até que ponto as palavras que compõem a expressão<br />

“desenvolvimento sustentável” podem configurar uma contradição,<br />

dado que é da natureza do desenvolvimento a ideia de progresso e,<br />

consequentemente, a exploração incessante de recursos. Por outro lado,<br />

a palavra “sustentável” evoca “a tendência dos ecossistemas ao equilíbrio<br />

dinâmico, à cooperação e à coevolução” (BOFF, 2012, p. 45).<br />

Nesse sentido, não se trata de apontar um fator único, originário,<br />

mas procurar identificar padrões nos variados países nos quais<br />

constatada a relação entre a deficiente distribuição de renda e o<br />

nível de poluição, pois a pobreza tem causas diversas (e algumas<br />

delas, inclusive, bem poderiam ser os excessos do modo de produção<br />

capitalista e o uso indiscriminado da noção de progresso científico<br />

voltado à exploração de recursos naturais e humanos). E é nesse<br />

contexto que, aparentemente, surgem casos que comprovam essa<br />

percepção 12 . Todavia, as relações entre tais fatores, obviamente,<br />

ainda não são claros, pois dependem de estudos aprofundados de<br />

sorte a comprovar sua veracidade 13 .<br />

Ante as constatações apontadas, os esforços mundiais<br />

passaram a voltar-se para a descoberta de medidas aptas a anular<br />

ou diminuir a influência de fatores que tenham potencial para agravar<br />

11 Tradução livre. Texto original: “Sustainable development seeks to meet the needs and aspirations of the present without compromising<br />

the ability to meet those of the future. Far from requiring the cessation of economic growth, it recognizes that the problems of poverty<br />

and underdevelopment cannot be solved unless we have a new era of growth in which developing countries play a large role and<br />

reap large benefits.” Our common future. United Nations.World Commission on Environment and Development. 1987.<br />

12 http://www.actionforourplanet.com/top-10-polluting-countries/4541684868. Acesso em 14/02/2014.<br />

13 O estudo estatístico divulgado pelo Banco Mundial (The Little Green Data Book) traz informações interessantes que aparentemente<br />

comprovam a relação entre pobreza e poluição do ar atmosférico: “urban air pollution declined in most countries between 2000<br />

and 2006 (the most recent year for which data is available), with the greatest progress in low-income and lower middle-income<br />

countries. But concentration levels are still nearly three times higher in these countries than in high-income countries”. http://wwwwds.worldbank.org/external/default/WDSContentServer/WDSP/IB/2010/07/06/000333038_20100706034730/Rendered/PDF/55542<br />

0PUB0litt1PI19564496001PUBLIC1.pdf. Acesso em: 14-2-2014.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 57


Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />

o cenário de degradação do ambiente. Surge, então, o conceito<br />

de “desenvolvimento sustentável”, pretendendo reunir condições<br />

que viabilizem a continuidade de padrões dignos de vida mediante<br />

equilíbrio com os demais seres vivos e elementos naturais. Destaca-<br />

-se que o “desenvolvimento sustentável” não está relacionado<br />

exclusivamente à questão ecológica. Como conceito amplo que é,<br />

aborda várias dimensões: social, ética, jurídico, política, econômica<br />

que “se entrelaçam e se constituem mutuamente, numa dialética<br />

da sustentabilidade” (F<strong>RE</strong>ITAS, 2011, p. 65). Em decorrência desse<br />

caráter multidimensional, é que existem várias frentes nas quais os<br />

esforços devem ser empreendidos, e uma delas é a questão social,<br />

relacionada diretamente ao préstimo de serviços públicos essenciais à<br />

população, proporcionando sejam atingidas as capacidades essenciais<br />

necessárias à plena participação do indivíduo na condição de sujeito<br />

ativo, política e moralmente.<br />

Certo é que na óptica da literatura ecológica de vanguarda a<br />

sociedade moderna ainda está presa ao modelo de desenvolvimento<br />

sustentável padrão, caracterizado pelo antropocentrismo, consumismo,<br />

exploração, busca do lucro às custas do empobrecimento alheio e<br />

tendência a mensurar a eficiência da qualidade de vida com base<br />

exclusiva em fatores econômicos (por exemplo o Produto Interno<br />

Bruto - PIB).<br />

Verifica-se que a proposta da alternativa inovadora e radical<br />

da “economia verde” não altera o modo de produção vigente, mas<br />

procura lhe conferir uma roupagem mais adequada, adotando práticas<br />

que não trarão resultados substanciais para a mudança de paradigma<br />

(BOFF, 2012, p. 54). Cabe a questão: é possível uma mudança nos<br />

modelos atuais de desenvolvimento sustentável que sejam passíveis<br />

de implementação imediata?<br />

Aparentemente a proposta de quebra radical do padrão atual,<br />

capitalista e consumista, embora coerente e recomendável, cai na<br />

armadilha da utopia, visto que se estipula o atingimento, pela humanidade,<br />

de elevados padrões éticos como pressuposto para a mudança<br />

pretendida. Isso porque o comportamento humano, como prova a história,<br />

58 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />

é influenciado por fatores geográficos e temporais, neste compreendido<br />

o conjunto de valores e crenças compartilhados. Tudo na vida, como no<br />

velho ditado popular, começa com o primeiro passo.<br />

Pretende-se, antes de ceder ao imperativo prático e de renunciar<br />

às soluções complexas (naturalmente mais tortuosas), reconhecer que<br />

a capacidade de compreensão do ser humano é limitada por fatores<br />

geográficos, históricos e sociais, situação que por si já basta para<br />

comprovar a dificuldade de um alcance homogêneo de um padrão<br />

ético que possibilite à humanidade, em um só momento, passar a<br />

implementar as grandes mudanças necessárias para a manutenção de<br />

sua existência no Planeta e para a renovação do padrão de interação<br />

com os demais seres vivos e com a biosfera.<br />

Afastada, em um primeiro momento, a dimensão utópica das<br />

propostas para o alcance da sustentabilidade, necessário identificar<br />

o potencial normativo para o fim de promover comportamentos<br />

que, embora não necessariamente decorram de um padrão ético<br />

compartilhado, possibilitam atingir o propósito (ainda que parcial)<br />

de vida sustentável. Logo, não há como deixar de constatar que os<br />

tributos e, em maior escala, a política fiscal de um país, constituem<br />

expedientes legítimos importantes para a solução desse complexo<br />

quebra-cabeças.<br />

A política fiscal, encarregada de elaborar e sistematizar todo o<br />

arcabouço normativo do sistema tributário, contribui decisivamente<br />

para o suporte financeiro do Estado e para a prestação de serviços que<br />

abrangem desde as atividades burocráticas essenciais, como também<br />

de regulação do mercado, fiscalização, fomento e atendimento aos<br />

direitos fundamentais previstos na Constituição da República.<br />

INDIVÍDUO COMO AGENTE MORAL: LIBERDADE E<br />

<strong>RE</strong>SPONSABILIDADE<br />

O respeito ao meio ambiente possui intrínseca ligação com a<br />

liberdade, posto que seu equilíbrio é condição básica para uma vida<br />

digna. É com base nessa premissa que a Constituição da República<br />

erigiu o meio ambiente à condição de “bem de uso comum do povo e<br />

essencial à sadia qualidade de vida” (art. 225). Liberdade é, portanto,<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 59


Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />

um valor moral em si. Pressuposto para o exercício da democracia.<br />

Falar em respeito ao meio ambiente pressupõe a ideia de<br />

responsabilidade por algo que não pertence exclusivamente aos<br />

sujeitos, ou seja, algo que a rigor deve ser compartilhado com os<br />

demais. Tal noção de cuidado e respeito, entretanto, parte de uma<br />

convicção respaldada em uma escolha moral do indivíduo.<br />

A compreensão do significado das escolhas morais tende a se<br />

aperfeiçoar à medida em que satisfeitas as garantias fundamentais e as<br />

condições de pleno acesso e desenvolvimento das capacidades humanas.<br />

O sujeito, até então limitado pelas necessidades mais comezinhas passa<br />

a atuar na condição de agente, participando da esfera pública a atuando<br />

com maior influência nas decisões que afetam a coletividade. Nesse<br />

sentido, Zambam (2012, p. 71) esclarece que<br />

a condição de agente é uma característica fundamental para a<br />

superação de situações que ameaçam o bem-estar das pessoas […]<br />

iniciativas que fortalecem o desenvolvimento das potencialidades<br />

individuais e a participação ativa nas esferas públicas, mediadas<br />

por ações que permitem o acesso à alfabetização e a um sistema<br />

educacional mais qualificado, investimentos em políticas de saúde,<br />

direito à propriedade e ao trabalho […] participação no sistema<br />

eleitoral com voz ativa e direito de votar e ser votada, entre outros,<br />

têm impacto imediato e duradouro sobre a avaliação do bem-estar e,<br />

por consequência, sobre o conjunto da sociedade.<br />

É, portanto, na liberdade que o sujeito se dá conta da dimensão de<br />

poder que detém sobre seus atos na condição de sujeito ativo. E é esse<br />

poder, por sua vez, que invoca o dever de responsabilidade por aqueles que<br />

dele dependem. Nesse sentido, a válida lição de Jonas (2006, p. 167):<br />

O poder se torna, assim, objetivamente responsável por aquele<br />

que lhe foi confiado e afetivamente engajado graças ao sentimento<br />

de responsabilidade […] a tomada de partido sentimental tem<br />

sua primeira origem não na ideia da responsabilidade em geral,<br />

mas no reconhecimento do bem intrínseco do objeto, tal como ele<br />

influencia a sensibilidade e envergonha o egoísmo cru do poder<br />

[…] a reivindicação do objeto, de um lado, na insegurança da sua<br />

existência, e a consciência do poder, de outro, culpada da sua<br />

causalidade, unem-se no sentimento de responsabilidade afirmativa<br />

do eu ativo, que se encontra sempre intervindo no Ser das coisas.<br />

60 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />

Será nessas circunstâncias, nas quais presentes a capacidade<br />

ativa do sujeito e seu dever de responsabilidade, que advirão as normas<br />

legais como ferramentas essenciais à organização da sociedade em<br />

um Estado Democrático de Direito. É imbuído dessa responsabilidade<br />

que, por exemplo, os cidadãos se impõem a obrigação de verter<br />

recursos aos cofres públicos, indispensáveis à própria manutenção da<br />

organização social.<br />

Obviamente que essa consciência e esse agir não são unânimes.<br />

Todavia, em uma conjuntura democrática, composta de sujeitos ativos<br />

(representantes e representados), advindos de extratos sociais e cultuais<br />

diferenciados (pluralidade), a regra da maioria vige e condiciona.<br />

O sistema tributário tem reflexos na economia e,<br />

consequentemente, em algumas das camadas sociais. Conquanto<br />

seu objetivo seja basicamente a prospecção de recursos necessários<br />

para a satisfação das necessidades coletivas e à própria manutenção<br />

da máquina estatal, forçoso reconhecer que não foi concebido com o<br />

propósito de nivelar desigualdades. Vale dizer, o sistema é contributivo<br />

e não redistributivo (TOR<strong>RE</strong>S, 2005, p. 26).<br />

COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA<br />

No chamado Estado do Bem-Estar Social, a presença do Ente<br />

Estatal nos variados setores e atividades da sociedade tem por escopo<br />

a garantia de condições mínimas aos cidadãos, a fim de que esses<br />

possam desenvolver suas capacidades, seus talentos, em condições<br />

de igualdade, na busca de seus anseios e realizações pessoais.<br />

Cediço nesse conceito a ideia de “sociedade justa e ordenada” da<br />

qual fala John Rawls (1995).<br />

Nos Estados modernos, a efetivação de direitos fundamentais aos<br />

cidadãos (e, em um plano ético mais amplo, ao indivíduo do gênero<br />

humano) pressupõe a criação de estruturas de substancial tamanho e<br />

complexidade que dependem de recursos financeiros para a reunião<br />

de todos os elementos necessários a lhes dar plena funcionalidade (p.<br />

ex. recursos humanos e materiais).<br />

Vedada ao Estado Moderno a imposição de trabalho compulsório<br />

e a requisição de bens e valores materiais de seus súditos, o custeio<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 61


Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />

para o implemento dos direitos fundamentais tem origem precípua nos<br />

tributos que, sob a perspectiva orçamentária, são também designados<br />

de “receitas derivadas”, pois não tem origem na exploração direta dos<br />

bens afetados aos órgãos e entidades estatais (receitas originárias).<br />

O tributo é uma espécie de obrigação, criado com lastro no<br />

ordenamento jurídico positivado do Estado. Sua criação tem origem,<br />

portanto, não somente no poder ou potestade do Ente Estatal, mas<br />

também no dever que a sociedade atribuiu a si própria no imperativo<br />

de garantir condições mínimas essenciais à vida digna. Nesse sentido<br />

há, inclusive, menção a um “dever fundamental de pagar impostos<br />

(NABAIS apud PAULSEN, 2007, p. 14).<br />

Esse poder de tributar, nos Estados Democráticos de Direito, a<br />

exemplo do Brasil, encontra legitimidade no arcabouço normativo,<br />

fruto de deliberação dos representantes dos cidadãos nas câmaras<br />

parlamentares.<br />

Ocorre que nem mesmo o parlamento é dotado de plena liberdade<br />

para a instituição de matrizes tributárias, posto que a criação de<br />

tributos também possui lindes jurídicos expressos na Constituição.<br />

A previsão de limites expressos ao poder de tributar, corolário do<br />

princípio da legalidade, constitui uma conquista da civilização e, de<br />

certo modo, um avanço na consolidação da Democracia, obstando<br />

que o Poder Estatal seja exercido de forma desmesurada, exigindo<br />

o sacrifício patrimonial dos súditos além de suas capacidades<br />

financeiras, sem dúvida que está contemplado no rol das garantias<br />

fundamentais (direitos fundamentais de primeira dimensão).<br />

No caso do Brasil, a possibilidade de instituição de tributos<br />

é condicionada por um manancial de normas jurídicas expressas<br />

na Constituição. Longe de estipular balizas gerais, a Constituição<br />

Republicana trouxe em seu texto uma previsão analítica dos<br />

pressupostos necessários à criação de figuras tributárias como, por<br />

exemplo, a previsão de competências tributárias e as limitações ao<br />

poder de tributar.<br />

São nas normas de competência tributária que o Ente Estatal<br />

possui autorização para a criação de tributos. Nelas estão contidas,<br />

em linhas muito amplas, as matrizes tributárias, ou seja, as situações<br />

62 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />

fáticas e jurídicas para os quais o legislador poderá criar normas<br />

gerais e abstratas que instituam obrigações tributárias para o cidadão.<br />

Pode-se dizer que as matrizes tributárias possuem uma natureza<br />

bifronte: de um lado, criam possibilidades, prevendo situações da<br />

vida passíveis de serem consideradas como aptas da dar surgimento<br />

às obrigações tributárias; de outro, caracterizam a própria limitação<br />

da capacidade de criá-las, corolário de sua natureza restritiva,<br />

considerando que o próprio sistema jurídico somente autoriza o<br />

exercício da competência tributária nas situações nelas contempladas.<br />

As normas constitucionais preveem que a estrutura federativa do<br />

Estado Brasileiro contempla uma competência legislativa concorrente<br />

(art. 24 da Constituição Federal) em matéria tributária, o que significa<br />

que todos os entes da federação poderão legislar sobre assuntos<br />

a ela afetos. Resulta que a previsão de matrizes tributárias diversas<br />

decorre da necessidade de um mínimo de organização e coerência das<br />

atividades legislativas e administrativas das esferas municipal, estadual<br />

e do Ente Federado (União), evitando a sobreposição de atribuições<br />

e competências e, consequentemente, a instituição de tributos (de<br />

idêntica espécie ou não) sobre idênticas situações (bitributação).<br />

No exercício da competência tributária que lhe foi outorgada<br />

pela Constituição, cada ente da federação poderá instituir obrigações<br />

tributárias, observando os veículos legislativos próprios e, em especial,<br />

as normas gerais da União. Por conseguinte, cada ente político poderá,<br />

nos moldes das competências que lhe foram instituídas (em especial<br />

as matrizes tributárias nela contidas), eleger fatos econômicos para<br />

integrar os preceitos das normas tributárias. Assim procedendo, deverá<br />

contemplar no veículo normativo os demais elementos necessários<br />

àquela obrigação (por exemplo: fato gerador, sujeito passivo, alíquota,<br />

base de cálculo).<br />

Nessa atividade legislativa, o ente político não está atrelado<br />

exclusivamente ao aspecto fiscal do tributo, ou seja, o escopo de<br />

arrecadação de recursos para o custeio de suas atividades. Diz-se<br />

que nesses casos a tributação opera com natureza extrafiscal, que<br />

consiste “no emprego de instrumentos tributários para o atingimento<br />

de finalidades não arrecadatórias, mas, sim, incentivadoras ou<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 63


Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />

inibitórias de comportamentos, com vista à realização de outros<br />

valores, constitucionalmente contemplados” (COSTA, 2009, p. 48).<br />

A questão que se impõe, entretanto, é saber se o legislador, pretendendo<br />

alcançar propósitos não exclusivamente arrecadatórios, poderá incluir na<br />

norma tributária elementos que, embora não integrem o fato econômico<br />

escolhido como objeto do preceito normativo, estejam com este de algum<br />

modo relacionados e contemplem condições suficientes para incentivar ou<br />

coibir determinados comportamentos. A resposta é positiva.<br />

EXTRAFISCALIDADE COMO POSSÍVEL CAMINHO<br />

PARA UMA TRIBUTAÇÃO AMBIENTAL NO BRASIL<br />

O arcabouço normativo brasileiro contém figuras tributárias nas<br />

quais a natureza extrafiscal é da sua essência, ou seja, propõe-se<br />

a atingir, explicitamente, propósitos além da singela arrecadação<br />

de recursos financeiros mediante previsão expressa, no preceito<br />

normativo, de determinadas situações intimamente que se pretende<br />

incentivar ou coibir. Cite-se como exemplo a espécie tributária “taxa”<br />

cobrada em razão do exercício do poder de polícia (via de regra<br />

fiscalização) sobre atividades consideradas relevantes em razão dos<br />

interesses coletivos envolvidos (como as de segurança).<br />

Há outros casos, entretanto, nos quais poderá o legislador<br />

contemplar no conjunto dos elementos da obrigação tributária situações<br />

que deseje incentivar ou coibir, estabelecendo condições benéficas<br />

(por exemplo a redução de alíquota, a remissão, a anistia, a isenção)<br />

ou impondo pesados ônus (como com o aumento de alíquota e das<br />

multas). Afirma-se que nesses casos a tributária é dotada de caráter<br />

indutivo, possibilitando que sejam alcançados efeitos extrafiscais até<br />

mesmo em tributos que não estejam ontologicamente dotados dessa<br />

característica (tributos extrafiscais por natureza).<br />

No Brasil, a extrafiscalidade é uma característica presente no<br />

sistema tributário. Arrisca-se a dizer que tal característica denota a<br />

legitimidade do Estado no exercício do papel indutor, fomentando a<br />

atuação do setor produtivo para determinadas atividades não alçadas<br />

à categoria de prioridade no mercado. Mas também na sociedade<br />

64 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />

civil o reflexo do que se pode chamar de “política extrafiscal” irradia<br />

efeitos diversos, seja no implemento de incentivos a determinadas<br />

condutas, benefícios a camadas sociais de menor renda (com o<br />

objetivo de minimizar as grandes diferenças existentes entre as<br />

classes econômicas) ou estímulo à preservação ambiental e melhor<br />

organização urbanística.<br />

São inúmeros os exemplos de aplicação da extrafiscalidade como na<br />

variação de alíquotas de impostos; nas taxas, originárias do exercício do<br />

poder de polícia (atuando na fiscalização de normas voltadas a diversas<br />

finalidades sociais) e no préstimo de serviço estatal específico e divisível<br />

(nos quais o Poder Público, não raro, age como único prestador, seja em<br />

função da natureza da atividade realizada, seja em virtude da ausência de<br />

interessados a exercê-las sob o regime de concessão); nas contribuições<br />

de intervenção no domínio econômico (as quais, por natureza, tem por<br />

escopo o fomento e a regularização de setores econômicos específicos;<br />

nas isenções; nas imunidades.<br />

Em relação à competência tributária de cada ente, destacam-se<br />

várias situações concretas nas quais há preponderância do interesse<br />

na preservação ambiental com suporte na extrafiscalidade 14 .<br />

Ponto que se reveste de especial importância é a conciliação entre a<br />

extrafiscalidade e o princípio da capacidade contributiva, reconhecido no<br />

14 Sobre o tema Teixeira (2010, p. 225-228) destacam os seguintes benefícios fiscais:<br />

Na esfera federal:<br />

a)Decreto-lei nº 755/1993, que reduz as alíquotas do IPI para a aquisição de veículos movidos a álcool;<br />

b)Lei nº 5.106/1966, a qual institui a possibilidade de redução da base de cálculo (dedução) do Imposto de Renda em relação aos projetos<br />

de reflorestamento custeadas pelos contribuintes;<br />

c)Projeto de lei nº 5.162/2005, que concede incentivos fiscais a pessoas físicas e jurídicas que apoiem projetos ambientais;<br />

d)Projeto de lei nº 5.974/2005, que estipula a possibilidade de dedução, na base de cálculo do Imposto de Renda, de percentuais dos<br />

valores de doações e de patrocínios direcionados a projetos ambientais;<br />

e)Lei nº 4.771/65, que estabeleceu a isenção do Imposto Territorial Rural - ITR em relação às áreas de reserva legal, de preservação<br />

permanente, reservas particulares do patrimônio e de áreas de preservação ambiental;<br />

Na esfera estadual<br />

a)o “ICMS ecológico” que viabiliza a instituição de critérios diferenciados de repartição de receitas de parcela das transferências<br />

obrigatórias correspondentes àquela exação;<br />

b)o IPVA, no qual existe a possibilidade de redução de alíquotas de acordo com a motorização e o tipo de combustível utilizado, de modo<br />

que a menor operosidade recairá sobre veículos que emitam menores percentuais de gases poluidores;<br />

c)o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doações de Quaisquer Bens e Direitos – ITCD –, que poderá apresentar alíquotas diversas<br />

em razão de critérios ambientais.<br />

Na esfera municipal:<br />

a)Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana - IPTU, cuja progressividade é fator de incentivo para o alcance da função social da<br />

propriedade, nesta incluída o uso da propriedade em conformidade com o meio ambiente;<br />

b)Imposto Sobre Serviços – ISS –, que poderá contemplar critérios aptos a estimular práticas de proteção ao meio ambiente.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 65


Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />

sistema jurídico brasileiro. A capacidade contributiva é uma metanorma<br />

que passa a estipular a observância, nas relações obrigacionais de<br />

feição tributária, em especial pelo Poder ou função legislativa (órgão que<br />

compõe a estrutura do ente tributante, ou seja, detentor da competência<br />

tributária) da compatibilidade entre a riqueza do contribuinte (signos<br />

presuntivos de riqueza) e os imperativos de igualdade e justiça. Sua<br />

fiel observância implica a instituição de obrigações tributárias que não<br />

sejam demasiado onerosas ou desvinculadas daqueles atos ou fatos<br />

previstos nas matrizes tributárias como suficientes a demonstrar a<br />

possibilidade de o cidadão arcar com o ônus do tributo.<br />

É possível afirmar que a capacidade contributiva possui lindes bem<br />

definidos, pois permite a atribuição de obrigação tributária desde que não<br />

implique privar o cidadão dos recursos essenciais à sobrevivência e à vida<br />

digna (mínimo existencial) e também não o imponha ônus demasiado, a<br />

ponto de caracterizar a expropriação de seu patrimônio (confisco).<br />

A questão que se põe é a seguinte: a extrafiscalidade, visando<br />

ao alcance de interesses alheios ao custeio da máquina estatal,<br />

interesses esses que, a rigor, poderiam vir a contemplar medidas de<br />

relevante valor social expressos na Constituição, poderá descuidar da<br />

observância estrita à capacidade contributiva?<br />

Aparentemente sim, pois o alcance de finalidades estranhas ao<br />

propósito de custear as despesas da máquina estatal autorizaria em certo<br />

ponto que o legislador, desconsiderando a capacidade de o contribuinte<br />

arcar com o ônus tributário em determinado contexto fático, pudesse instituir<br />

obrigações voltadas a incentivar ou desestimular determinadas condutas.<br />

Ocorre que essa liberdade conferida ao legislador não é absoluta,<br />

dado que permitida somente em um aspecto que poderia ser chamado<br />

de “negativo” da tributação, ou seja, no tocante ao trato das isenções e<br />

imunidades. Somente nesses casos a ausência de imposição do ônus<br />

tributário — apesar de configurada a capacidade de o contribuinte<br />

suportá-lo — estaria fundada na desconsideração da capacidade<br />

contributive e, portanto, autorizada a instituir hipóteses de exclusão<br />

do crédito tributário ou a criação de situações imunes à incidência das<br />

normas que imponham essa espécie de obrigação.<br />

66 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />

Há em tais hipóteses situações que caracterizam uma escolha<br />

política, não propriamente relacionada aos signos presuntivos de<br />

riqueza previstos na norma tributária. Como nas isenções políticas<br />

que “configuram verdadeiras exceções ao princípio em exame, tendo<br />

em vista que beneficiam pessoas que têm efetiva capacidade de<br />

contribuir” (COSTA apud DUTRA, 2010, p. 140).<br />

Se por um lado se afigura admissível a exceção ao princípio<br />

da capacidade contributiva em relação à dispensa de o contribuinte<br />

cumprir com a obrigação tributária, não é admissível adotar de igual<br />

modo raciocínio excludente para impor ônus que exceda à manifesta<br />

capacidade do cidadão em suportar a carga que lhe é usualmente<br />

imposta. Ultrapassar esse limite caracterizaria perigosa proximidade à<br />

prática do confisco, explicitamente vedada pela Constituição.<br />

Outro ponto que demanda reflexão é que, conquanto<br />

aparentemente autorizada a adoção de incentivos e benefícios com o<br />

propósito extrafiscal, o arcabouço legislativo vigente impõe aos entes<br />

tributantes que as modificações dessa natureza, caso pretendam ser<br />

implementadas, devem observar uma gama de restrições no aspecto<br />

orçamentário. Nesse sentido, o disposto no art. 14 da Lei Complementar<br />

nº 101, de 4 de maio de 2000 - Lei de Responsabilidade Fiscal 15 .<br />

Bem se vê que as restrições de natureza orçamentária condicionam<br />

de modo bastante significativo o exercício da extrafiscalidade,<br />

considerando que a prioridade, sob o ponto de vista administrativo e<br />

gerencial, será a obtenção e alocação de recursos para o adequado<br />

15 Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar<br />

acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes,<br />

atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições (Vide Medida Provisória nº<br />

2.159, de 2001) (Vide Lei nº 10.276, de 2001)<br />

I - demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de<br />

que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;<br />

II - estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da<br />

elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.<br />

§ 1º A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de<br />

alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que<br />

correspondam a tratamento diferenciado.<br />

§ 2º Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de que trata o caput deste artigo decorrer da condição contida no inciso<br />

II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso.<br />

§ 3º O disposto neste artigo não se aplica:<br />

I - às alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos I, II, IV e V do art. 153 da Constituição, na forma do seu § 1o;<br />

II - ao cancelamento de débito cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 67


Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />

funcionamento da máquina estatal. Obviamente que as condicionantes<br />

previstas na legislação orçamentária impõem maior dificuldade ao<br />

administrador, que terá de contornar problemas pontuais relacionados<br />

à parcela de receita derivada que deixará de arrecadar.<br />

Nesse ponto (condicionantes de natureza orçamentária) talvez<br />

resida um dos mais importantes dilemas da política fiscal brasileira,<br />

decorrente de um paradoxo que a rigor não encontra solução a curto<br />

prazo: a necessidade de adoção da extrafiscalidade como instrumento<br />

para a promoção de condutas dos cidadãos que sejam harmônicas em<br />

relação ao meio ambiente, sem olvidar da manutenção do fluxo de receitas<br />

derivadas para o custeio da máquina estatal e, consequentemente, para<br />

o préstimo de uma gama de serviços públicos cada vez mais necessários<br />

no contexto de um modelo de Estado do “bem-estar”.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

A intensificação dos debates referentes à sustentabilidade<br />

ocorreu a partir da segunda metade do século XX em razão dos<br />

questionamentos relacionados à possibilidade de continuidade do<br />

modelo de desenvolvimento até então adotado pela maioria dos<br />

Estados-nação do Planeta Terra.<br />

Os temas relacionados à extinção dos recursos naturais e à<br />

adoção de alternativas para a continuidade do crescimento econômico<br />

adquiriram relevância global a ponto de desencadearem a atuação<br />

de organismos supranacionais, a exemplo das Organizações das<br />

Nações Unidas – ONU. No âmbito de conferências e estudos<br />

realizados, foram elaborados vários documentos nos quais se passou<br />

a reconhecer a necessidade da adoção de novos paradigmas no<br />

modelo de desenvolvimento a fim de que esse pudesse vir a se tornar<br />

sustentável, a longo prazo, ou seja, de que a busca pelo propósito do<br />

crescimento econômico e das necessidades do presente não venham<br />

a impossibilitar a persecução daqueles mesmos objetivos no futuro.<br />

Perceptível que na sucessão de debates e estudos surgem<br />

vários modelos de desenvolvimento sustentável, objetos de críticas<br />

ou encômios a depender da concepção adotada pelos interlocutores.<br />

68 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />

Nesse sentido, a proposta de uma “economia verde”, nos moldes como<br />

apresentada no final do século XX, conquanto retrate substancial<br />

melhoria qualitativa em relação às primeiras alternativas apontadas<br />

pela comunidade mundial, é tachada de paliativa e até mesmo com<br />

o propósito de ludibriar, porquanto não ataca, no entender de seus<br />

críticos, as causas principais das crises do desenvolvimento, que<br />

seriam os excessos do modo de produção capitalista (especialmente<br />

o estímulo demasiado ao consumo), e a instrumentalização da<br />

racionalidade científica.<br />

É preciso que se desenvolva conteúdo ético apropriado para<br />

enfrentar as vicissitudes da modernidade, as quais não se resumem<br />

à degradação ambiental e à pobreza, com retorno à pauta da política<br />

educacional o estímulo à solidariedade e à responsabilidade.<br />

No decorrer desse processo de mudança, é perceptível que<br />

as normas positivas, ao lado dos conteúdos éticos que deverão ser<br />

trabalhados, constituem ferramental imprescindível, de natureza<br />

pedagógica, para modificação dos padrões culturais.<br />

Na seara do Direito Tributário — assim como em qualquer ramo<br />

do Direito — também se afigura possível dotar normas com o propósito<br />

de estimular ou coibir condutas de preservação ambiental. Não é<br />

necessário que as categorias normativas destinadas a essa finalidade<br />

decorram exclusivamente de um ramo do Direito, muito embora não<br />

se olvide de sua importância e significado para o desenvolvimento de<br />

categorias operacionais, conceitos e definições que se relacionarão de<br />

forma sistemática com todo o plexo normativo. Resulta clarividente que o<br />

Direito Ambiental trará sempre conteúdo e significado para as normas dos<br />

demais ramos do Direito que pretendam pautar condutas de preservação<br />

ambiental (Direito Penal Ambiental, Direito Tributário Ambiental).<br />

O Direito Tributário é dotado de uma característica peculiar, pois<br />

autoriza em certo grau a ingerência do Estado no patrimônio do cidadão.<br />

Obviamente que pela natureza do poder conferido ao Estado em tal<br />

plexo de obrigações são necessárias várias garantias fundamentais,<br />

previstas na Constituição, de modo a evitar que a imposição do tributo<br />

possa caracterizar medida arbitrária, ocasionando desigualdade no<br />

tratamento de seus súditos e apropriação indevida do patrimônio.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 69


Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />

No Brasil, as bases econômicas dos impostos estão previstas de<br />

forma taxativa na Constituição Federal (arts. 153 a 156), resultando<br />

que poucas espécies tributárias remanescem com relativa liberdade<br />

para criação de novas hipóteses de incidência, a exemplo das taxas,<br />

contribuições de melhoria, contribuições sociais gerais e contribuições<br />

sociais especiais de intervenção no domínio econômico (estas duas<br />

últimas exclusivas da União).<br />

Mesmo não contemplada de modo explícito, mediante previsão<br />

constitucional de uma base econômica específica e estipulação de<br />

uma espécie tributária própria, a tributação voltada para propósitos<br />

ambientais poderá ser utilizada de forma indireta nos tributos com o<br />

auxílio do princípio da extrafiscalidade. Com esse propósito, a norma<br />

tributária poderá conter a previsão de situações para as quais estará<br />

autorizada a majoração da carga tributária (por exemplo, aumento<br />

de alíquota) ou sua substancial redução (v.g. redução de alíquotas,<br />

redução da base de cálculo, isenção).<br />

A instituição de hipóteses de tributação voltadas para o alcance<br />

de finalidades diversas da arrecadação não esbarra no princípio<br />

da capacidade contributiva, desde que respeitados limites mínimos<br />

tendentes a assegurar o resguardo de um padrão de vida digna (mínimo<br />

existencial) do contribuinte e protegê-lo da invasão desmesurada do<br />

Estado em seu patrimônio (vedação ao confisco). Respeitadas essas<br />

balizas, poderá o Fisco explorar hipóteses normativas que possibilitem<br />

atingir o máximo da capacidade contributiva.<br />

Ainda no tocante aos limites da capacidade contributiva devem<br />

ser excepcionadas as hipóteses de dispensa do contribuinte no<br />

cumprimento das obrigações tributárias (por exemplo, reduções de<br />

alíquota, reduções de base de cálculo, isenções, imunidades). Nessas,<br />

obviamente, não há razoabilidade para a aplicação daquele princípio,<br />

posto que reduzem ou suprimem o dever de contribuir em prol de<br />

objetivos elevados como, por exemplo, a preservação ambiental.<br />

Essa possibilidade, contudo, sofre restrições de ordem orçamentária,<br />

a exemplo da Lei Complementar nº 101/2000, diploma normativo que exige<br />

do legislador a previsão de mecanismos de compensação — destinados<br />

a evitar perdas de receita — para situações nas quais se pretenda<br />

70 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />

a redução da carta tributária. Nada obstante as limitações do sistema<br />

tributário brasileiro, resultantes em grande parte ao caráter analítico da<br />

Constituição Federal, a instituição de normas de índole tributária voltadas<br />

à proteção do meio ambiente afigura-se plenamente possível, de forma<br />

indireta nos impostos e no próprio desenho da hipótese de incidência<br />

nas espécies tributária taxa, contribuições sociais gerais e especiais de<br />

intervenção no domínio econômico.<br />

<strong>RE</strong>FERÊNCIAS<br />

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Recebido: 6-6-2014<br />

Aprovado: 20-8-2014<br />

72 Ano 4 • n. 8 • jan/jun. • 2014


(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />

DI<strong>RE</strong>ITO<br />

A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO<br />

DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO<br />

STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />

Review criminal as a condition of possibility for rescue<br />

dignitatis status the condemned<br />

Resumo<br />

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth 16<br />

Tamyse de Christo Marques 17<br />

O presente artigo faz uma análise acerca da dignidade da pessoa humana e a sua ligação com o instituto<br />

da revisão criminal. Versa sobre as questões atinentes à dignidade da pessoa humana sob a óptica<br />

da Constituição Federal de 1988, bem como sobre a sua presença norteadora nos códigos Penal e de<br />

Processo Penal brasileiros. Apresenta o instituto da revisão criminal, suas peculiaridades e discussões<br />

doutrinárias. Discute ainda a possibilidade de o instituto da revisão criminal ser capaz de resgatar o “status<br />

dignitatis” do condenado vítima de erro judiciário, sob a forma de revisão da sentença condenatória e/ou<br />

sob a forma de indenização, trazendo como lição o famoso caso brasileiro dos irmãos Naves. A orientação<br />

do trabalho se dá no Código de Processo Penal analisado sob a luz da Constituição Federal de 1988, tendo<br />

por âmago o princípio da dignidade da pessoa humana.<br />

Palavras-chave: Princípio da dignidade da pessoa humana. Revisão criminal. Status dignitatis.<br />

Abstract<br />

The present article meticulously analyzes the principle of human dignity and its connection with the institute<br />

of criminal revision. It covers the issues on human dignity from the standpoint of Federal Constitution of<br />

1988, as well as the guiding position of this principle in Brazilian Criminal and Criminal Process Codes. It<br />

also pretends the institute of criminal revision, bringing its particular features and doctrinaire discussions.<br />

Furthermore, it discusses the ability of criminal revision in giving back the status dignitatis of a victim of<br />

miscarriage of justice, by granting him the review of judgement or the indemnification. In this regard, the<br />

leading case of Nave’s brothers is demonstrated, as a lesson. The study of this thesis lays in the Criminal<br />

Process Code, analysed from the perspective of the Federal Constitution of 1988, focusing on the principle<br />

of human dignity.<br />

Keywords: Criminal process law. Principle of human dignity. Criminal revision. Convict. Status dignitatis.<br />

Sumário:<br />

1. Considerações iniciais; 2. A dignidade da pessoa humana como fundante do processo penal no estado<br />

democrático de direito brasileiro; 3. A revisão criminal como condição para o resgate do status dignitatis<br />

do condenado; 4. Considerações finais; 5. Referências.<br />

16 Doutor em Direito (UNISINOS). Professor dos Cursos de Graduação em Direito da UNIJUÍ e UNISINOS e do Mestrado em Direitos<br />

Humanos da UNIJUÍ. E-mail: madwermuth@gmail.com<br />

17 Bacharel em Direito pela UNIJUÍ. E-mail: myse.marques@gmail.com<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 73-100


Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />

CONSIDERAÇÕES INICIAIS<br />

A revisão criminal é um instituto presente no ordenamento jurídico<br />

brasileiro, que tem por finalidade revisar a sentença penal condenatória<br />

transitada em julgado, desde que fundamentada em um dos incisos<br />

do artigo 621 do Código de Processo Penal. Contudo, por vezes, o<br />

uso correto do instituto é ignorado, o que decorre da compreensão da<br />

revisão criminal como uma espécie de “segunda” apelação.<br />

Ocorre que a revisão criminal tem uma ligação bem mais estreita<br />

com a Constituição Federal e seu princípio norteador, a dignidade da<br />

pessoa humana, do que propriamente com a técnica penal. Neste<br />

sentido, o objetivo geral delineado para o desenvolvimento da referida<br />

ligação entre o princípio e o instituto, é buscar elucidar a possibilidade<br />

de a revisão criminal atuar na recuperação do status dignitatis do<br />

condenado vítima de erro judiciário, em homenagem ao princípio da<br />

dignidade da pessoa humana, sustentáculo do Estado Democrático<br />

de Direito Brasileiro.<br />

Assim, buscar-se-á caracterizar o princípio constitucional da<br />

dignidade da pessoa humana, bem como analisar o instituto da revisão<br />

criminal, explicando a conexão existente entre eles. Em última análise,<br />

objetiva-se investigar o princípio da dignidade da pessoa humana e a<br />

revisão criminal sob a luz de um sistema penal garantista, justamente<br />

para viabilizar a compreensão da utilização da revisão criminal como<br />

condição de possibilidade para o resgate do status dignitatis do<br />

condenado.<br />

É sabido que a lei penal brasileira possui fontes e é mantida<br />

sob o prisma de uma tendência garantista como proteção ao réu em<br />

processo criminal. É notório que condenar alguém, mesmo em um<br />

sistema com tendência garantista, não é inabitual. Inusitado, todavia,<br />

é a condenação de pessoa inocente fundada em erro judiciário. Nestes<br />

casos, considerando a forte carga estigmatizante que o contato com<br />

o sistema punitivo – ou mesmo simplesmente com o sistema penal –<br />

provoca, há possibilidade de a revisão criminal auxiliar na recuperação<br />

74 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />

da dignidade do condenado por erro judiciário? É este questionamento<br />

que revela a problemática envolvida na pesquisa, cujo objetivo<br />

principal é averiguar em que medida a revisão criminal pode ser<br />

compreendida, à luz de um processo penal garantista, como condição<br />

de possibilidade para o resgate do status dignitatis do condenado no<br />

Estado Democrático de Direito brasileiro.<br />

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO<br />

PRINCÍPIO FUNDANTE DO PROCESSO PENAL NO<br />

ESTADO DEMOCRÁTICO DE DI<strong>RE</strong>ITO BRASILEIRO<br />

O princípio da dignidade humana é essencial para uma adequada<br />

hermenêutica da Constituição Federal, promulgada em 1988. Porém,<br />

nem sempre a situação foi essa. A história mostra que antes de ser<br />

assegurada como princípio constitucional, a dignidade humana passou<br />

por diferentes contextos e significados.<br />

Na antiguidade clássica, a dignidade era dimensionada em<br />

razão da “posição social ocupada pelo indivíduo e o seu grau de<br />

reconhecimento pelos demais membros da comunidade” (SARLET,<br />

2012, p. 34). Mais tarde, para os adeptos do estoicismo, a dignidade<br />

da pessoa humana representava uma peculiaridade do próprio ser<br />

humano, fazendo parte de todos e de cada um. Assim, a dignidade<br />

antes mensurada pela posição social passou a ter um cunho moral,<br />

baseada na igualdade entre os indivíduos e a liberdade (SARLET,<br />

2012, p. 35).<br />

Já na Idade Média, Tomás de Aquino possuía uma visão de<br />

dignidade claramente ligada aos preceitos católicos vigentes na<br />

época. Como assevera Sarlet (2012, p.37),<br />

a dignidade encontra seu fundamento na circunstância de que<br />

o ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus, mas<br />

também radica na capacidade de autodeterminação inerente à<br />

natureza humana, de tal sorte que, por força de sua dignidade,<br />

o ser humano, sendo livre por natureza, existe em função da sua<br />

própria vontade.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 75


Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />

Entretanto, foi somente com Immanuel Kant (1724-1804) que<br />

o conceito do princípio se despiu do sagrado para tomar sentido<br />

verdadeiramente racional. De acordo com Sarlet (2012, p. 40), Kant<br />

construiu seu conceito utilizando-se da natureza racional do homem,<br />

afirmando que “a autonomia da vontade, [...], é um atributo encontrado<br />

somente nos seres racionais, constituindo-se no fundamento da<br />

dignidade da natureza humana”.<br />

Segundo o entendimento de Kant (s.d., p.28, grifo do autor),<br />

o Homem, e em geral todo ser racional, existe como um fim em si, não<br />

apenas como meio, do qual esta ou aquela vontade possa dispor a seu<br />

talento; [...]. Os seres, cuja existência não depende precisamente de<br />

nossa vontade, mas da natureza, quando são seres desprovidos de<br />

razão, só possuem valor relativo, valor de meios e por isso se chamam<br />

de coisas. Ao invés, os seres racionais são chamados pessoas, porque<br />

a natureza deles os designa já como fins em si mesmos, isto é, como<br />

alguma coisa que não pode ser usada unicamente como meio, alguma<br />

coisa que, consequentemente, põe um limite, em certo sentido, a todo<br />

livre arbítrio (e que é objeto de respeito).<br />

Assim, verifica-se que a dignidade da pessoa humana não se<br />

trata na verdade de um “direito”, mas sim de uma qualidade inerente<br />

ao homem. Contudo, apesar de ter trilhado uma longa jornada até<br />

chegar ao título de princípio, tem-se na doutrina e na jurisprudência<br />

certa problemática envolvendo a dignidade: percebe-se ser mais fácil<br />

dizer o que não é do que dizer com clareza o que é a dignidade da<br />

pessoa humana. Portanto, na tentativa de elucidar tal situação, é<br />

que Sarlet (2012, p. 58) afirma que “a dignidade da pessoa humana<br />

é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, [...], da<br />

comunidade em geral, de todos e de cada um”.<br />

Não existe ainda um conceito exato sobre a dignidade da pessoa<br />

humana. O que existem são construções que deliberam sobre o seu<br />

significado e repercussão no cotidiano das pessoas por ser um princípio<br />

em constante movimento que, se conceituado de forma simplória, limitaria<br />

o seu leque de abrangência jurídica, moral e social. Assim, Sarlet (2012,<br />

p.73, grifo do autor) oferece um conceito multidimensional, porém ainda<br />

em aberto, em função da razão acima citada:<br />

76 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e<br />

distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor<br />

do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da<br />

comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos<br />

e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra<br />

todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como<br />

venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para<br />

uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação<br />

ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da<br />

vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o<br />

devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.<br />

Nas palavras de Salo de Carvalho (2001, p. 157), o princípio<br />

da dignidade da pessoa humana é um “valor fundamental expresso<br />

nas cartas políticas, sendo diluído nas normas concretas, porque, ao<br />

conhecer a dignidade do homem, o Estado desconheceria a existência<br />

e universalidade dos demais direitos humanos”.<br />

Acerca do conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana,<br />

Vicente de Paulo Barreto (2013, p. 74) reflete que pode haver uma<br />

dupla divisão deste princípio. A primeira faz menção a não tratar a<br />

pessoa humana como simples meio, ou seja, nas palavras já citadas<br />

por Kant, o homem é um fim de si mesmo, não devendo constituir um<br />

meio para a vontade de outro que não a si próprio.<br />

A segunda divisão refere que o princípio determina que o ser<br />

humano não deve ser tratado como “espírito puro”, ou seja, o homem<br />

é revestido pela carne, e possui um corpo com necessidades básicas<br />

que para a sua sobrevivência devem ser supridas. Desta forma, o<br />

princípio em questão protege o ser humano na sua integridade física<br />

e também moral.<br />

O princípio em análise encontrou guarida no ordenamento jurídico<br />

brasileiro pela primeira vez com a promulgação da Constituição Federal<br />

de 1988. Tal constituição foi amplamente baseada na Constituição<br />

Alemã de 1959, já que “foi, claramente, a experiência nazista que<br />

gerou a consciência de que se devia preservar, a qualquer custo, a<br />

dignidade da pessoa humana” (NUNES, 2010, p. 62).<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 77


Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />

Pelo mundo afora, a dignidade da pessoa humana foi tomando<br />

lugar nas constituições. A Constituição Federal brasileira, caracterizada<br />

por ser uma Constituição Cidadã – visto que assegurava inúmeros<br />

direitos que estavam oprimidos por mais de vinte anos (PINTO<br />

FILHO, 2010, p. 88) – além de baseada na Constituição Alemã do<br />

pós-guerra, foi amplamente inspirada pelas disposições contidas no<br />

texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que aduz em<br />

seu preâmbulo que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos<br />

os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis<br />

é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (NUNES,<br />

2010, p.95).<br />

Portanto, quando abarcado pela Constituição Federal brasileira, o<br />

princípio tinha por escopo garantir a todos os brasileiros a liberdade e<br />

a consciência de existência individual e coletiva pós-ditadura. Talvez<br />

por isso a disposição legal acerca do princípio da dignidade humana<br />

encontra-se prevista já no art. 1º do Título I da Constituição Federal<br />

de 1988, que trata dos princípios fundamentais, ou seja, dos valores<br />

supremos, fundantes da República brasileira.<br />

Na condição de fundamento da República, a dignidade da pessoa<br />

humana é um alicerce da ordem jurídica do país, que juntamente<br />

com os outros princípios fundantes, “postos no ponto mais alto da<br />

escala normativa, [...], se tornam, doravante, as normas supremas<br />

do ordenamento” (BONAVIDES, 2010, p. 289). Assim, os princípios<br />

constitucionalmente elencados são a base normativa de todas as<br />

demais normas, sendo a fundamentação e o guia destas.<br />

Na perspectiva de que o princípio da dignidade humana é o<br />

medular da Constituição Cidadã de 1988 e fonte de criação de todos<br />

os outros princípios e normas, é que Barreto (2013, p. 67) propõe que<br />

ele deve ser utilizado subsidiariamente. Relata que só se deve fazer<br />

uso do princípio caso nenhum dos outros – princípios ou normas –<br />

possa ser aplicado na resolução do caso concreto. Alega que caso o<br />

princípio seja usado em demasia para resolução de toda e qualquer<br />

lide processual, o princípio acabará banalizado, perdendo, assim, toda<br />

a efetividade e credibilidade conquistada até então.<br />

78 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />

Assim, na ordem sóciojurídica, toda a situação concreta que<br />

demande lide processual, deverá ser resolvida sob a luz do princípio<br />

da dignidade da pessoa humana, porém, isso se dará por meio da<br />

interpretação anterior dos princípios que lhe são segmentários, e<br />

somente depois, caso infrutífera a resolução, é que se dará à lide<br />

resposta integralmente amparada pelo princípio da dignidade humana.<br />

Desta forma, o princípio será efetivo, mas não desmoralizado.<br />

Para Ingo W. Sarlet (2012, p. 132), analisando o princípio da<br />

dignidade humana como tarefa do Estado e demais órgãos estatais,<br />

impõe-se a estes o dever de proteger e respeitar, além de suscitar<br />

as condições a fim de remover qualquer óbice que venha a impedir<br />

a dignidade na vida das pessoas. Ressalta ainda que não é somente<br />

nas relações entre particular e Estado que se deve respeitar e<br />

proteger o princípio, mas também e principalmente nas relações entre<br />

particulares.<br />

Nestas referidas relações, deve-se fazer a seguinte análise: os<br />

seres humanos são todos iguais em dignidade, visto essa ser uma<br />

qualidade inerente e que garante a posição de todo ser humano<br />

no mesmo gênero, qual seja, o humano. Porém, até que ponto a<br />

dignidade da pessoa humana é absoluta e em que termos pode haver<br />

uma relativização?<br />

Já visto que a dignidade se trata de característica inerente a<br />

todo ser humano e, nas palavras de Sarlet (2012, p. 54), “todos –<br />

mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade, no sentido<br />

de serem reconhecidos como pessoas”, é que ele deve ser efetivo e<br />

abrangente a toda a população. Porém, é notório que o princípio da<br />

dignidade humana, por mais que seja o corolário de todos os princípios<br />

constitucionais e infraconstitucionais, sofre violações arrebatadoras. E<br />

tal adversidade se torna perceptível quando se analisa, por exemplo,<br />

o sistema penal pátrio.<br />

No cumprimento do jus puniendi, o sistema penal brasileiro é<br />

absolutamente falho, revelando-se uma total e completa relativização<br />

da dignidade da pessoa humana (ÁLVA<strong>RE</strong>S, 20<strong>08</strong>, p. 31). Em suas<br />

explicações, Sarlet (2012, p. 151) aduz que a prisão de alguém<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 79


Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />

condenado por homicídio qualificado em um estabelecimento com<br />

inconveniente de superlotação, por exemplo, constitui uma violação<br />

efetiva de sua dignidade, visto que está se respondendo a uma ofensa<br />

ao bem jurídico mais importante, a vida.<br />

Expõe ainda que há, neste caso, a utilização do princípio da<br />

dignidade da pessoa humana como “tarefa, no sentido específico de<br />

que ao Estado [...] incumbe o dever de proteger (inclusive mediante<br />

condutas positivas) os direitos fundamentais e a dignidade dos<br />

particulares”. Por fim, esclarece Sarlet (2012, p. 151) que<br />

a dignidade, ainda que não se a trate como espelho no qual<br />

todos veem o que desejam, inevitavelmente já está sujeita a uma<br />

relativização [...] no sentido de que alguém (não importa aqui se<br />

juiz, legislador, administrador ou particular) sempre irá decidir qual<br />

o conteúdo da dignidade e se houve, ou não, uma violação no<br />

caso concreto.<br />

Nesse sentido, convém salientar que o Processo Penal brasileiro<br />

é pautado e exercido em consonância com as normas constitucionais<br />

positivadas. Conforme José J. G. Canotilho (1941, p. 377), se não<br />

houvesse a positivação das normas, os direitos dos homens seriam<br />

apenas “esperanças, aspirações, ideias, impulsos, ou, até, por vezes,<br />

mera retórica política, mas não direitos protegidos sob a forma de<br />

normas de direito constitucional”.<br />

Essas normas constitucionais conferem ao acusado, polo<br />

passivo em um processo penal, direitos e garantias. Logo, sem a sua<br />

observância, pode haver inclusive a anulação do processo. Essas<br />

garantias constitucionais deram origem à máxima nulla poena sine<br />

judicio, confirmando ao acusado, que caso ele tenha que cumprir uma<br />

pena, esta será justa e conforme os ditames legais. Para Canotilho<br />

(1941, p. 405), estas garantias correspondem a “garantias ou meios<br />

processuais adequados para a defesa dos direitos”.<br />

Sendo assim, tem-se no Brasil uma Constituição que assegura a<br />

seus cidadãos garantias processuais em caso de processamento na<br />

esfera criminal. Isto porque a Constituição brasileira é democrática, e<br />

assim o processo penal, que dela deriva, será por óbvio democrático<br />

80 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />

e “visto como um instrumento a serviço da máxima eficácia do sistema<br />

de garantias constitucionais do indivíduo” (LOPES JR., 2012, p. 70).<br />

As garantias processuais se fazem presentes no processo penal<br />

para afirmar que sua legitimação “enquanto instrumento a serviço do<br />

projeto constitucional” se dê de forma efetiva, tendo “por conteúdo a<br />

máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais da Constituição,<br />

pautando-se pelo valor dignidade da pessoa humana submetida à<br />

violência do ritual judiciário” (LOPES JR., 2012, p. 90).<br />

Como já referido anteriormente, não há possibilidade de se ter no<br />

Brasil uma condenação sem que haja processo. Assim, os princípios do<br />

contraditório e da ampla defesa – previstos no inciso LV, do art. 5º da<br />

Constituição Federal – se encaixam neste cenário como condição de que<br />

o acusado que responde a um processo legal faça valer suas garantias<br />

constitucionais em nome da sua dignidade como ser humano. Assim, o<br />

processo penal representa antes de qualquer outro tema, um instrumento<br />

de defesa do indivíduo contra o arbítrio punitivo estatal.<br />

Quanto ao princípio da presunção de inocência – contido no inciso<br />

LVII da Constituição Federal e, também, nos artigos XI, nº 1 e 8, da<br />

Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Pacto de São José da<br />

Costa Rica, respectivamente –, Silvio Carlos Álvares (20<strong>08</strong>, p. 46) ensina<br />

que este princípio tem consequências sobre a busca da verdade real 18<br />

relacionada à culpabilidade do réu, bem como em relação a todos os<br />

demais atos do processo, que devem respeitar a honra, a integridade, a<br />

moral, o contraditório e a ampla defesa do acusado.<br />

A dignidade da pessoa humana tem uma ligação vultosa com a<br />

vedação à prática da tortura (com previsão nos incisos XLVII, “e”; XLIX<br />

18 Em relação à verdade real, diz Avena (2011, p. 21, grifo do autor) que devem se adotar todas as providências para que se descubra<br />

como os fatos realmente ocorreram e, desta forma, o jus puniendi seja desempenhado efetivamente quanto àquele que praticou<br />

ou concorreu para a infração penal. Afirma ainda que o juiz deve motivar o processo, objetivando “aproximar-se ao máximo da<br />

verdade plena, apurando os fatos até onde for possível elucidá-los, para que, ao final, possa proferir sentença que se sustente em<br />

elementos concretos, e não em ficções ou presunções”. Oliveira (2012, p. 323, grifo do autor), aduz que a busca pela verdade real<br />

legitimou, em tempos não tão remotos, “desvios das autoridades públicas, além de justificar a ampla iniciativa probatória reservada<br />

ao juiz [...]. A expressão, [...], autorizava uma atuação judicial supletiva e substitutiva da atuação ministerial (ou acusação)”.<br />

Alega, ainda, que esta situação se verificava antes da Constituição Federal de 1988, já que, depois da entrada em vigor deste<br />

texto constitucional com suas garantias, já não podia mais se justificar tais atitudes. Por fim, ressalva Oliveira (2012, p. 324), que é<br />

absolutamente inadequado discorrer sobre o alcance da verdade real, por dois motivos, o primeiro frisa que essa busca versa sobre<br />

um fato que já ocorreu, ou seja, trata-se de um fato histórico e, ainda, por demonstrar que se assemelha muito – e tal semelhança<br />

não é recomendável – com o processo penal medieval, “quando a excessiva preocupação com a sua realização (da verdade real)<br />

legitimou inúmeras técnicas de obtenção da confissão do acusado e de intimação da defesa”.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 81


Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />

do art. 5º da Constituição Federal, também, no art. 5º, nº 2 do Pacto<br />

de São José da Costa Rica e, no art. 5º da Convenção Interamericana<br />

para prevenir e punir a tortura). Para Sarlet (2012, p. 156),<br />

o exemplo da vedação da tortura [...] bem ilustra a já referida<br />

função da dignidade da pessoa humana como cláusula (ética e<br />

jurídica) de barreira, que fundamenta uma espécie de ‘sinal de<br />

pare, inclusive no sentido de operar como ‘tabu’ [...], a estabelecer<br />

um ‘território proibido’, onde o Estado não pode intervir e onde,<br />

além disso, lhe incumbe assegurar a proteção da pessoa (e sua<br />

dignidade) contra terceiros.<br />

Por fim, o direito constitucional de permanecer em silêncio<br />

(previsto no art. 5º, inciso LXIII da Constituição Federal) corresponde<br />

ao princípio de que ninguém pode ser obrigado a fazer prova contra si<br />

mesmo, já que isso ajudaria o Estado a relativizar de forma explícita<br />

a dignidade humana e, de acordo com Eugênio Pacelli de Oliveira<br />

(2012, p. 41, grifo do autor),<br />

o direito ao silêncio, ou a garantia contra a autoincriminação, não<br />

só permite que o acusado ou aprisionado permaneça em silêncio<br />

durante toda a investigação e mesmo em juízo, como impede que<br />

ele seja compelido – compulsoriamente, portanto – a produzir ou<br />

a contribuir com a formação da prova contrária ao seu interesse.<br />

Diante das considerações acerca das garantias processuais, tem-<br />

-se que um processo penal que respeite as garantias individuais só<br />

reforça a aplicação íntegra do princípio da dignidade humana, antes,<br />

durante e após a persecução penal (ÁLVA<strong>RE</strong>S, 20<strong>08</strong>, p. 47). Contudo,<br />

percebe-se que a sociedade brasileira jamais observou, tanto no<br />

passado quanto no presente, todas as regras do jogo democrático<br />

que se estabeleceu no país a partir da promulgação da Constituição<br />

Federal em 1988. Esta se traduziu em um pacto ofertado a um novo<br />

tipo de sociedade que nascia após o período ditatorial, fundada no<br />

arquétipo de um Estado Democrático de Direito (COPETTI, 2000, p.<br />

82).<br />

Nos moldes de um Estado Democrático de Direito, a Constituição<br />

Federal deve ser considerada como a instituição do Estado e da<br />

comunidade. Diante dessa afirmativa, é tida como necessária a<br />

82 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />

proteção constitucional contra as ações arbitrárias e ilegítimas do<br />

Estado em frente ao indivíduo. André Copetti (2000, p. 83) esclarece<br />

que no projeto de democracia social vigente “deve ser observada uma<br />

expansão dos direitos dos cidadãos e, correlativamente, dos deveres<br />

do Estado, o que em outros termos importa uma maximização das<br />

liberdades e expectativas e uma minimização dos poderes”.<br />

Para Copetti (2000, p. 83), surge uma proposta de Estado liberal<br />

mínimo e de um Estado social máximo acarretando “[...] um Estado e<br />

um Direito mínimo na esfera penal e, por outro lado, um Estado e um<br />

Direito máximo na esfera social”. Acredita o autor ser essa uma chance<br />

de recuperar grande parte das aspirações de um Estado Democrático<br />

de Direito. Mas o que vem a ser um direito penal mínimo?<br />

Para dirimir a dúvida suscitada, traz-se a seguinte afirmação:<br />

direito penal mínimo é um tipo de ordenamento jurídico, no qual o poder<br />

penal do Estado esteja minuciosamente vinculado e limitado à lei e<br />

subjugado a um plano processual (FERRAJOLI, 2002, p. 83). O direito<br />

penal mínimo configura, então, um protótipo de racionalidade e de<br />

certeza. Para Luigi Ferrajoli (2002, p. 83), esta disposição refere que,<br />

quando indeterminados ou incertos os requisitos da responsabilidade<br />

penal, esta deverá ser excluída.<br />

Ferrajoli (2002, p.84) salienta que uma norma que se refere a<br />

este modelo de direito penal é o critério do favor rei, pois ele exige<br />

que sejam feitas valorações acerca da exclusão ou da atenuação da<br />

responsabilização, quando existir dúvida quanto aos requisitos da<br />

pena.<br />

Propõe o direito penal mínimo que “nenhum inocente seja punido<br />

à custa da incerteza de que também algum culpado possa ficar<br />

impune”. Esta certeza se traduz em razão do princípio in dubio pro<br />

reo, ou seja, há a certeza de não culpabilidade do acusado, até que se<br />

prove o contrário. Exige-se a prova da culpabilidade, “não se tolerando<br />

a condenação, mas exigindo-se a absolvição em caso de incerteza”<br />

(FERRAJOLI, 2002, p. 85).<br />

Corroborando com a análise realizada, Copetti (2000, p. 87)<br />

afirma que,<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 83


Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />

sendo o direito penal o mais violento instrumento normativo de<br />

regulação social, particularmente por atingir, pela aplicação das<br />

penas privativas de liberdade, o direito de ir e vir dos cidadãos,<br />

deve ser ele minimamente utilizado. Numa perspectiva político-<br />

-jurídica deve-se dar preferência a todos os modos extrapenais<br />

de solução de conflitos. A repressão penal deve ser o último<br />

instrumento utilizado, quando já não houver mais alternativas<br />

disponíveis [...].<br />

Em relação ao contexto esboçado acima, Maiquel Ângelo Dezordi<br />

Wermuth (2011, p. 143, grifo do autor) assegura que, em razão de<br />

uma avalanche legislativa em matéria penal, que visa remediar a falta<br />

de atuação do Estado, o direito penal que deveria ser usado de forma<br />

subsidiária, acaba por se tornar a prima ratio de um sistema falho e<br />

sem qualquer controle. O direito penal, em suma, torna-se<br />

repressivo – o que se revela a partir do aumento da população<br />

carcerária, bem como da elevação qualitativa e quantitativa dos<br />

níveis da pena privativa de liberdade – e simbólico – o que se<br />

revela a partir da proliferação das já referidas ‘leis manifesto’,<br />

manipuladas pela classe política como resposta às acusações<br />

feitas pela mídia de ‘afrouxamento’ do sistema punitivo na sua<br />

tarefa de ‘combate ao crime’.<br />

Esta simbologia do direito penal se dá em razão de que o<br />

legislador busca simbolicamente atender às reinvindicações cidadãs<br />

de segurança pública e eficiência estatal no combate à criminalidade<br />

com leis que tem por escopo punir mais e mais severamente, sem,<br />

contudo, observar as garantias e princípios penais e processuais.<br />

Nas palavras de Laura Frade (20<strong>08</strong>, p. 58),<br />

como ferramenta, a lei não é boa, nem ruim. Depende do uso que<br />

lhe é atribuído. Mas um fato é indiscutível: é ela quem estabelece<br />

o limite, que traça o marco entre o legal e o ilegal, o que pode e o<br />

que não pode. Ultrapassada a margem, ocorre o desvio, torna o<br />

indivíduo criminoso.<br />

Buscando sanar o frenesi popular quanto à segurança jurídica, os<br />

legisladores brasileiros fornecem sumariamente mais e mais normas,<br />

com o único intento de ludibriar o povo no sentido de que trabalha<br />

84 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />

para garantir-lhes mais segurança. Ocorre que, ao criar essas normas<br />

simbólicas, o legislador brasileiro não aprecia os fundamentos de um<br />

Estado Democrático de Direito (WERMUTH, 2011, p. 144).<br />

Esta situação impõe àqueles que aumentam a massa carcerária,<br />

já existente no país, condições de sobrevivência sub-humanas,<br />

condições higiênicas insalubres, casos de abuso por parte daqueles<br />

que deveriam salvaguardar a integridade física e mental dos detentos,<br />

bem como abusos dos detentos entre si (ÁLVA<strong>RE</strong>S, 20<strong>08</strong>, p. 32).<br />

Portanto, de nada adianta o legislador buscar frear a criminalidade<br />

criando normas penais mais severas para tentar contentar um lado da<br />

massa social, enquanto impõe ao outro, no caso a massa carcerária, o<br />

cumprimento de penas em um formato e locais desumanos.<br />

Assim, no intuito de diminuir o número de vítimas das atrocidades sociais<br />

e penais, que surgiu no ordenamento pátrio um instituto que busca amainar<br />

as consequências do processo penal impostas aos apenados. Trata-se da<br />

revisão criminal, instituto com o qual se ocupa o tópico a seguir.<br />

A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE<br />

POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS<br />

DIGNITATIS DO CONDENADO<br />

Como esclarece Hidejalma Muccio (2009, p.991), “nem sempre,<br />

[...], o selo do trânsito em julgado confere à decisão a certeza de sua<br />

correção, a qualidade de verdadeira”. Assim como existem recursos,<br />

em função de o homem não aceitar decisões injustas, a revisão<br />

criminal assume a função de possibilidade de retificação de sentença<br />

condenatória após o trânsito em julgado, pois nada poderia justificar o<br />

cumprimento de pena por alguém que não deve cumpri-la.<br />

Além de retificar a sentença condenatória, a revisão criminal tem<br />

o intuito de conceder ao cidadão o resgate do seu status dignitatis,<br />

seja modificando a sentença condenatória para absolutória ou, pelo<br />

menos, desclassificando a conduta, ou até mesmo atribuindo ao<br />

Estado o dever de indenizar o cidadão como forma de amenizar<br />

os danos sofridos em razão do processo criminal e consequente<br />

condenação em virtude de erro.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 85


Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />

Como afirma Paulo Rangel (2012, p. 1060), em todo o meio social<br />

ocorrem erros e, com o Poder Judiciário, não seria diferente, já que<br />

estes equívocos configuram uma realidade em nossa sociedade e,<br />

em sendo este erro identificado e o judiciário devidamente provocado,<br />

aquele deve ser remediado. Aury Lopes Jr. (2012, p. 13<strong>08</strong>), ao tratar<br />

sobre o assunto, faz a seguinte afirmação:<br />

a revisão criminal situa-se numa linha de tensão entre a<br />

“segurança jurídica” instituída pela imutabilidade da coisa julgada<br />

e a necessidade de desconstituí-la em nome do valor justiça. Se<br />

de um lado estão os fundamentos jurídicos, políticos e sociais da<br />

coisa julgada, de outro está a necessidade de relativização deste<br />

mito em nome das exigências da liberdade individual.<br />

A revisão criminal está contemplada pelo ordenamento jurídico<br />

pátrio nos artigos 621 a 631, do Código de Processo Penal.<br />

Erroneamente, está alocada na lei como tendo natureza recursal.<br />

Contudo, sua natureza jurídica varia no entender de cada doutrinador.<br />

Ada Pelegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho e Antônio<br />

Scarance Fernandes (2009, p.239), por exemplo, aduzem ser a revisão<br />

criminal uma “ação autônoma, impugnativa da sentença passada em<br />

julgado, de competência originária dos tribunais”.<br />

O entendimento acima narrado é compartilhado por Rangel (2012,<br />

p. 1061) e por Lopes Jr. (2012, p. 1307), sendo a majoritária entre<br />

os doutrinadores e a jurisprudência. Contudo, não é entendimento<br />

isento de controvérsias, já que, para Hidejalma Muccio (2009, p. 996)<br />

e Guilherme de Souza Nucci (2012, p. 460), trata-se de uma ação<br />

penal de natureza constitutiva, enquanto que, para Norberto Cláudio<br />

Pâncaro Avena (2011, p. 1249), a revisão criminal configura uma ação<br />

penal de conhecimento de caráter desconstitutivo.<br />

A doutrina pátria é pacífica ao afirmar que o pressuposto para que se<br />

admita uma revisão criminal é possuir uma sentença penal condenatória<br />

transitada em julgado. Nas palavras de Muccio (2009, p. 997),<br />

transitada em julgado a sentença condenatória, a providência fica<br />

admitida, em tese. Nesse caso, pouco importa saber a natureza<br />

da pena aplicada (pecuniária ou privativa de liberdade) e sua<br />

quantidade, bem como se foi ou não iniciada ou já cumprida, e<br />

também se é vivo ou morto o sentenciado.<br />

86 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />

Nesse sentido, e em concordância 19 com o disposto no caput do<br />

artigo 622, do Código de Processo Penal, que dispõe que “a revisão<br />

poderá ser requerida a qualquer tempo, antes da extinção da pena ou<br />

após”, argumenta-se acerca do prazo para se ingressar com a revisão<br />

criminal.<br />

Francis Rafael Beck (2009, p. 334), afirma que o pleito da revisão<br />

criminal não obedece a nenhum decurso de prazo prescricional ou<br />

decadencial, sendo cabida após o cumprimento da pena, e inclusive,<br />

após a morte do condenado. Avena (2011, p. 1256), explica que<br />

essa maleabilidade temporal do prazo para intentar uma revisão<br />

criminal fundamenta-se na “circunstância de que o seu objetivo<br />

é, primordialmente, evitar a consolidação de uma injustiça com a<br />

subsistência de decisão condenatória injusta”.<br />

Quanto às possibilidades de cabimento, elas estão legalmente<br />

previstas nos incisos I, II e III, do art. 621, do Código de Processo<br />

Penal. A primeira hipótese, prevista no inciso I do referido artigo, prevê<br />

a possibilidade de revisão criminal quando a sentença condenatória<br />

for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos. A<br />

segunda hipótese, referida no artigo citado, se dá quando a sentença<br />

condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos<br />

comprovadamente falsos. Por fim, a terceira hipótese de cabimento de<br />

revisão criminal, se confirma quando, após a sentença, se descobrirem<br />

novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que<br />

determine ou autorize diminuição especial da pena.<br />

Avena (2011, p. 1251), ao abordar as hipóteses de cabimento<br />

de revisão criminal, aduz que elas são taxativas, ou seja, não há<br />

19 Apesar de indicar como requisito para a revisão criminal a existência de uma sentença condenatória transitada em julgado,<br />

muitos doutrinadores aduzem ser possível a utilização da revisão criminal em caso de sentenças absolutórias impróprias. Tais<br />

sentenças impõem ao condenado não o cumprimento de pena no sentido literal da palavra, o indivíduo é internado em um hospital<br />

penitenciário, até que se recupere. Beck (2009, p. 342), afirma que a sentença é suscetível de execução forçada, representando,<br />

portanto, uma carga condenatória. Lopes Jr. (2012, p. 1309) aduz que, geralmente, a situação vivenciada por quem cumpre medida<br />

de segurança é até mais grave do que aquele que cumpre pena privativa de liberdade. Assim, é pacífico o entendimento de que a<br />

revisão criminal tanto pode ser originária de uma sentença condenatória, quanto de uma sentença absolutória imprópria, buscando<br />

sempre, a devolução do “status dignitatis” do condenado. Também se discute a possibilidade de revisão criminal em se tratando<br />

de sentença homologatória de transação penal. Ansanelli Junior (2007) aduz que a sentença homologatória de transação penal faz<br />

coisa julgada material, conferindo a ela condição de sentença condenatória, já que homologa um acordo entre as partes e outorga<br />

a uma delas a satisfação de uma obrigação. Para o autor, caso seja vedada a possibilidade de intentar uma revisão criminal nesses<br />

casos, “estar-se-ia violando o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal) que fundamenta<br />

a própria revisão”, sendo assim, perfeitamente cabível a revisão criminal de sentença homologatória de transação penal.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 87


Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />

possibilidade de revisão criminal fora do rol do art. 621 do CPP.<br />

Rangel (2012, p. 1067) também afirma que as hipóteses previstas<br />

são numerus clausus, e constituem o mérito da ação revisional, pois,<br />

em caso de ausência de qualquer uma das hipóteses elencadas em<br />

lei, como fundamento da revisão criminal proposta, esta será julgada<br />

improcedente, com julgamento do mérito.<br />

Quanto aos legitimados, apesar de ter a lei especificado um<br />

rol (artigo 623, Código de Processo Penal – “a revisão poderá ser<br />

pedida pelo próprio réu ou por procurador legalmente habilitado ou,<br />

no caso de morte do réu, pelo cônjuge, ascendente, descendente ou<br />

irmão”), há na doutrina e na jurisprudência discussão a respeito da<br />

possibilidade de o órgão do Ministério Público ser ou não legitimado<br />

para intentar revisão.<br />

Manifestamente contra é o posicionamento de Lopes Jr. (2012,<br />

p. 1315), pois entende ser uma distorção total do processo penal.<br />

Diz o autor que não é possível conceber a ideia de que o Ministério<br />

Público, órgão sinteticamente criado para se contrapor à parte passiva<br />

no processo penal, ser legitimado para propor a revisão criminal “a<br />

favor do réu, para desconstituir uma sentença penal condenatória que<br />

somente se produziu porque houve uma acusação (levada a cabo<br />

pelo mesmo Ministério Público, uno e indivisível)”.<br />

Nucci (2012, p. 461) segue a mesma linha de raciocínio<br />

supracitada ao afirmar não ser razoável ter legitimidade o Ministério<br />

Público para ingressar com ação de revisão criminal, visto que não<br />

está prevista em lei. Fernando Capez e Rodrigo Colnago (2013, p.<br />

311) também alegam ter o órgão em tela a legitimidade para propor<br />

a ação penal pública, objetivando a satisfação do jus puniendi, o que<br />

não justificaria ter este mesmo órgão a possibilidade ou o interesse de<br />

promover ação em favor do réu.<br />

Em oposição, surge o entendimento de Muccio (2009, p. 1001)<br />

que diz que, apesar de a legitimidade do Ministério Público não<br />

estar prevista em lei, faz parte de sua incumbência controlar a justa<br />

aplicação da lei corrigindo injustiças. Sob uma óptica mais recente do<br />

Processo Penal, apesar de silente a lei, o Ministério Público deve ser<br />

88 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />

legitimado para promover a ação de revisão criminal, cumprindo com<br />

seu status de fiscal da lei (BECK, 2009, p.332).<br />

Nestor Távora e Rosmar Antoninni (2009, p. 894) aduzem que, por<br />

mais que o Código de Processo Penal não faça menção à legitimidade<br />

do órgão do Ministério Público para propor a ação, a Constituição<br />

Federal, no artigo 127, autoriza o órgão a propor a ação. Este também<br />

perfaz o entendimento de Oliveira (2012, p. 930) que aduz não haver<br />

razão para que não seja admitida a legitimidade do Ministério Público,<br />

já que se justifica pelo cumprimento de norma constitucional, além<br />

do fato de que tem o órgão legitimidade para “impedir a privação da<br />

liberdade de quem esteja injustamente dela privado, seja por meio de<br />

habeas corpus, seja pela via da revisão criminal”.<br />

Rangel (2012, p. 1064, grifo do autor) coaduna com a afirmação<br />

acima e sustenta que<br />

há que se interpretar a lei ordinária de acordo com a Constituição<br />

e não a Constituição de acordo com a lei ordinária, o que significa<br />

dizer: a lei (art. 623, CPP), realmente não legitima o Ministério<br />

Público a propor a revisão criminal, porém, a Constituição,<br />

em seu art. 127, caput, incumbe o Ministério Público de<br />

defender a ordem jurídica, o regime democrático e os<br />

interesses sociais e individuais indisponíveis, e, óbvio<br />

que, se incumbe, deve dar a ele todos os meios legais para, via<br />

jurisdicional, cumprir sua incumbência.<br />

Pinto (2006, grifo do autor) afirma que o Ministério Público há tempos<br />

deixou de ser o órgão que atuava como acusador profissional e buscava<br />

a todo custo a condenação. Hoje, o Ministério Público faz as vezes do<br />

interesse estatal, que busca uma sentença justa, independentemente de<br />

ser absolutória ou condenatória. Alega ainda que, quando da entrada em<br />

vigência do Código de Processo Penal em 1941, o papel do Ministério<br />

Público era muito diferente daquele que é representado hoje e, por essa<br />

razão, não consta no rol exemplificativo do art. 623.<br />

Para findar o estudo relativo às características gerais da ação de<br />

revisão criminal, apresenta-se a análise doutrinária acerca dos efeitos<br />

da procedência do instituto. O art. 626 do Código de Processo Penal<br />

traz a seguinte informação: “Julgando procedente a revisão, o tribunal<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 89


Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />

poderá alterar a classificação da infração, absolver o réu, modificar<br />

a pena ou anular o processo”, e, no parágrafo único, traz a seguinte<br />

afirmação: “de qualquer maneira, não poderá ser agravada a pena<br />

imposta pela decisão revista” (grifo nosso).<br />

Em relação à dualidade de julgamentos, trazem-se as figuras<br />

da revisão criminal pro societate, que busca a revisão de sentenças<br />

absolutórias transitadas em julgado, e a revisão criminal pro reo,<br />

prevista na legislação brasileira, que admite a revisão de sentenças<br />

condenatórias ou absolutórias impróprias, conforme já amplamente<br />

explanado.<br />

Em países como a Alemanha, Suíça, Suécia e Áustria, por<br />

exemplo, a revisão criminal pro societate é aceita em determinados<br />

casos previstos em lei. Na República da Colômbia, a revisão<br />

criminal pro societate é aceita quando, depois da sentença, houver<br />

comprovação, com sentença transitada em julgado, de cometimento<br />

de crime praticado pelo julgador ou por terceiro, que tenha influenciado<br />

no resultado do primeiro julgamento. A segunda hipótese se dá quando<br />

o julgamento tenha se pautado, total ou parcialmente, em prova falsa<br />

(ARRUDA, 2009, p. 254).<br />

Outro país que aceita a ocorrência da revisão pro societate é<br />

Cuba. O Código de Procedimiento Penal cubano (Lei 05/1977) prevê<br />

a revisão quando a sentença absolutória tenha se pautado em provas<br />

falsas, desde que também reconhecido por sentença transitada em<br />

julgado, ou quando fatos ou circunstâncias que foram ignorados<br />

quando do julgamento por si só ou unidos aos fatos já constantes no<br />

processo demonstram a responsabilidade de quem fora absolvido ou<br />

quando há participação em delito mais grave (ARRUDA, 2009, p. 256).<br />

Por fim, traz-se a legislação sueca, que, em seu Código de<br />

Procedimentos Judiciais (1948), classifica a revisão criminal como um<br />

recurso extraordinário e possibilita a revisão quando o juiz, jurado,<br />

integrante do Ministério Público, autoridade policial, perito, testemunha<br />

ou advogado, tenha cometido alguma ação ou negligência de caráter<br />

criminoso com impacto na decisão; quando o juiz ou promotor tenham<br />

sido desqualificados, tendo sua atuação efeitos sobre o julgamento;<br />

90 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />

o julgamento se orientar em evidências ou provas falsas; e, ainda,<br />

quando houver evidências ou circunstâncias não consideradas no<br />

julgamento original que ostentaram aptidão a conduzir à condenação<br />

(ARRUDA, 2009, p. 261).<br />

No Brasil, como já referido, este desdobramento do instituto não é<br />

aceito, já que não é previsto em lei, por ser, nas palavras de Lopes Jr.<br />

(2012, p. 1309), “uma autêntica reformatio in pejus”. Marjorie Kelli M.<br />

Maia (2005, p. 62) afirma que a Constituição brasileira é pautada pelos<br />

princípios da razoabilidade e da igualdade, então, por mais que não se<br />

tenha a previsão de revisão criminal pro societate, não deve ser esta<br />

possibilidade dispensada do ordenamento e da prática jurídica, pois<br />

não seria razoável nem mesmo igualitário, garantir o direito de revisão<br />

apenas ao condenado.<br />

A questão maior suscitada nesta espécie de revisão criminal diz<br />

respeito ao tempo decorrido entre o trânsito em julgado da sentença<br />

absolutória e o aparecimento da prova da culpabilidade do autor do<br />

delito. Como exposto, não há prazo para o ingresso com a revisão<br />

criminal pro reo, portanto, partindo da igualdade e da razoabilidade,<br />

não haveria prazo também para o ingresso da revisão pro societate.<br />

Por esta razão que Muccio (2009, p. 994) propõe que deveria ser<br />

permitido o ingresso da revisão pro societate legalmente, utilizando-se<br />

para tanto um limite de tempo. Este limite se daria nos termos do art.<br />

109, do Código Penal, utilizando-se do prazo prescricional em abstrato<br />

do delito, ou, em parecendo ser este um prazo muito extenso, poderia<br />

se usar o prazo da pena mínima cominada ao delito.<br />

Uma vez analisadas as questões dogmáticas acerca do instituto, é<br />

quanto à possibilidade de resgatar a dignidade do condenado por meio<br />

da revisão criminal que o foco deste estudo se volta neste momento.<br />

O instituto da revisão criminal se utiliza de duas possibilidades<br />

para que se proceda com o resgate do status dignitatis do condenado.<br />

A primeira possibilidade consiste em se requerer a revisão da<br />

sentença criminal transitada em julgado. A segunda possibilidade é a<br />

de reconhecer o direito à indenização pelos prejuízos sofridos, como<br />

será demonstrado a seguir.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 91


Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />

Em sendo julgado procedente o pedido de revisão e tendo o<br />

revisando requerido expressamente, poderá o Tribunal reconhecer o<br />

direito à justa indenização pelos danos sofridos. Tal disposição está<br />

contida no artigo 630 do Código de Processo Penal. Além disso, há<br />

previsão constitucional expressa sobre o tema, como se lê no artigo<br />

5º, inciso LXXV:<br />

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer<br />

natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros<br />

residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,<br />

à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:<br />

[...]<br />

LXXV - o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim<br />

como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença.<br />

Porém, assim como na relação de hipótese de cabimento de<br />

revisão criminal, deve estar provado quando do ingresso com a ação<br />

revisional o erro judiciário, sob pena de se ter provida a revisão da<br />

sentença, mas não a fixação de indenização. Muccio (2009, p. 1021)<br />

explica que, para que se possa ter direito à indenização, é necessário<br />

que a condenação se origine de dolo ou culpa pelos representantes<br />

do Estado no processo (peritos, juízes, membros do Judiciário,<br />

representantes do Ministério Público, delegados de polícia, entre<br />

outros).<br />

Avena (2011, p. 1258) menciona haver na lei duas situações<br />

capazes de impedir a busca de indenização por erro judiciário, ambas<br />

contidas no §2º, alíneas “a” e “b” do art. 630 do Código de Processo<br />

Penal. A primeira alínea refere que não será possível o pedido de<br />

indenização se “o erro ou a injustiça da condenação proceder de<br />

ato ou falta imputável ao próprio impetrante, como a confissão ou<br />

a ocultação de prova em seu poder”, ou seja, em ocorrendo esta<br />

situação, o próprio revisando deu causa ao erro judiciário, portanto,<br />

não terá direito à indenização, por mais que a revisão criminal possa<br />

ter sido julgada procedente.<br />

Muccio (2009, p. 1021), em estudo ao presente caso, afirma que a<br />

disposição da alínea “a” do §2º, sob a óptica da Constituição Federal,<br />

92 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />

não é mais observada, visto que, por mais que o acusado confesse a<br />

prática delituosa ou venha a ocultar prova a seu favor, o Estado falhou<br />

com a sua obrigação de comprovar a culpa do acusado no processo<br />

e, assim, deve indenizar o revisando, mesmo que tenha ele concorrido<br />

ou colaborado para a ocorrência do erro judiciário.<br />

Percebe-se que, de acordo com o modelo de processo penal<br />

vigente no Brasil, o entendimento acima delineado deveria ser o<br />

entendimento majoritário, seguido de decisões jurisprudenciais<br />

neste sentido. Como já anteriormente referido, o processo penal<br />

está formatado com base no princípio da dignidade da pessoa<br />

humana, sendo necessária a observação do princípio em todos os<br />

entendimentos e decisões, deixando de lado os juízos pessoais que<br />

são irrelevantes quando há a incidência de garantias processuais.<br />

A alínea “b” do §2º do citado artigo indica que não será caso<br />

de indenização se a acusação houver sido meramente primária. De<br />

uma forma geral, a doutrina rechaça este entendimento, visto que,<br />

ao dispor sobre o erro judiciário, o constituinte não fez qualquer<br />

referência quanto à natureza jurídica da ação penal que antecedeu<br />

a sentença penal condenatória. Assim é o entendimento de Lopes Jr.<br />

(2012, p. 1321) ao discorrer que, se privada a ação penal, não há<br />

qualquer incongruência ou isenção quanto à responsabilidade objetiva<br />

do Estado, pois a ação que gerou prejuízo foi a sentença condenatória<br />

proferida pelo magistrado e não a acusação.<br />

Apresentadas as características e vantagens de se obter o<br />

julgamento positivo de uma revisão criminal, observando seus<br />

requisitos e características particulares, resta agora o estudo acerca<br />

da possibilidade de o instituto efetivamente contribuir para o resgate<br />

do status dignitatis do condenado.<br />

Pimentel (20<strong>08</strong>, p. 3), em estudo do princípio da dignidade da<br />

pessoa humana e sua aplicação no Processo Penal, afirma que,<br />

quando da transformação social do Estado, configurando o Estado<br />

Democrático de Direito, a dignidade humana sofreu uma transformação<br />

que deu lugar a um conceito mais amplo e prático, compreende-se a<br />

partir de então a “segurança da vida individual e social, a proteção<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 93


Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />

jurídica a salvaguarda da identidade e da natureza humana, a limitação<br />

do poder do Estado e o respeito da integridade corporal do indivíduo”.<br />

Assim, em um histórico do processo penal,<br />

se no passado os princípios tradicionais (da ampla defesa e<br />

do contraditório, acusatório, da publicidade, da presunção da<br />

inocência, da verdade, etc.) moldaram-lhe o rito, agora é o princípio<br />

da dignidade da pessoa humana que nos dirige à modernização do<br />

processo. É ele quem determina que incorporemos ao processo<br />

penal soluções inovadoras para otimizá-lo como instrumento da<br />

apuração e punição dos fatos delituosos e como anteparo do<br />

imputado (PIMENTEL, 20<strong>08</strong>, p. 10).<br />

Então, abarcando tanto o social quanto o individual, o princípio<br />

da dignidade humana se divide em duas vertentes. De um lado, dá<br />

validade à repressão estatal, do outro, também impõe limite à atividade<br />

repressora do Estado quando da ocorrência de algum fato típico, em<br />

decorrência da observância da dignidade ínsita a cada um dos seres<br />

humanos.<br />

Desta forma, tem-se um processo penal com garantias aos<br />

acusados, mas também com a possibilidade estatal de punir os<br />

indivíduos que transgredirem as normas. Portanto, “mesmo que<br />

toda carga acusatória atinja o acusado, este continua sendo pessoa<br />

humana, sujeito processual e não objeto do processo; é sujeito de<br />

direitos e garantias processuais” (GIACOMOLLI, 2007).<br />

Contudo, mesmo que com todo o aparato constitucionalmente<br />

legalizado de defesa dos interesses individuais do réu durante o<br />

trâmite de um processo penal, este vier a ser condenado ilegalmente,<br />

o Estado, também constitucionalmente, oferece uma saída, qual seja,<br />

a revisão criminal. E é com base neste instituto que o condenado,<br />

vendo-se renegado pela sociedade e muitas vezes pela própria<br />

família, pode alcançar a restituição da sua dignidade.<br />

Conhecida de todo o meio jurídico é a famosa e sofrida história<br />

dos irmãos Joaquim e Sebastião Naves, vendedores de arroz, que teve<br />

início em meados de 1937. Em novembro daquele ano, Benedito, filho<br />

de um rico fazendeiro mineiro, simplesmente desapareceu, sumindo<br />

juntamente com ele uma grande quantia em dinheiro. Apavorados, os<br />

94 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />

irmãos Naves procuram o sócio por toda a parte sem sucesso, quando<br />

decidem contatar com a polícia.<br />

Passado algum tempo, em 29 de dezembro do mesmo ano, o<br />

1 o Tenente Francisco Vieira, que acabara de assumir a Delegacia de<br />

Araguari, conclui que os irmãos eram responsáveis pelo sumiço de<br />

Bendito e manda prendê-los. A partir de então, os irmãos passam a<br />

sofrer maus tratos, a viver em condições sub-humanas e insalubres<br />

na cadeia pública de Araguari. Diante de todo o horror sofrido, acabam<br />

inventando uma confissão para o crime não cometido. Apesar de não<br />

existir cadáver nem corpo de delito, os irmãos são pronunciados.<br />

Cabe ressalvar que naquela época o promotor de justiça do caso<br />

era um farmacêutico, substituindo o promotor efetivo, cujo cargo se<br />

encontrava vago, enquanto que o juiz de direito responsável era juiz<br />

de paz, substituindo eventualmente o juiz criminal (ALAMY FILHO,<br />

1993, p. 83).<br />

Depois de passar por dois julgamentos populares, os irmãos são<br />

condenados a 25 anos e 6 meses de prisão celular e multa de 16 ¼ por<br />

cento sobre o valor do objeto roubado. Em julho de 1940, o advogado<br />

dos irmãos ingressa com a primeira revisão criminal. Juntando como<br />

prova novos depoimentos dos irmãos e de testemunhas obtidos por<br />

meio de ação de justificação, ele buscou demonstrar que toda a<br />

confissão acostada aos autos do processo de conhecimento foi obtida<br />

sob coação e tortura. As Câmaras Criminais Reunidas do Tribunal de<br />

Apelação do Estado de Minas Gerais reduziram as penas dos irmãos<br />

cominadas anteriormente em grau submáximo para grau submédio,<br />

ou seja, passaram a ter uma pena de 16 anos e 6 meses de prisão<br />

celular (ALAMY FILHO, 1993, p. 320).<br />

Anos depois, em 1948, Joaquim Naves morre doente e vivendo<br />

como indigente. Qual a surpresa de Sebastião, quando usufruindo de<br />

livramento condicional em julho de 1952, encontra Benedito Caetano<br />

vivo! Com a maior prova do não cometimento do delito em mãos, o<br />

advogado dos irmãos Naves ingressou novamente com uma revisão<br />

criminal. E é o relator da revisão criminal que em seu voto aduz que o<br />

pedido de revisão foi fundado no art. “621, n. 3, 1 a hipótese, do Código<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 95


Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />

de Processo Penal”, aduzindo que “o fato novo foi a ressurreição do<br />

referido Benedito, o qual, em carne e osso surgiu após longa e frutuosa<br />

peregrinação pelo Brasil” (ALAMY FILHO, 1993, p. 352).<br />

Diante do erro absurdo cometido pelo Judiciário, o Tribunal de<br />

Justiça mineiro julgou a nova revisão criminal, e somente em 1960 o<br />

Supremo Tribunal Federal concedeu a Sebastião e aos herdeiros de<br />

Joaquim Naves o direito à justa indenização pelo cometimento de erro<br />

judiciário.<br />

Diante desse evento e de tantos outros, é que se percebe que o<br />

instituto efetivamente é capaz de colaborar com o resgate da dignidade<br />

do condenado vítima de erro judiciário, pois mesmo em tempos da<br />

história brasileira em que a dignidade humana não tinha nenhuma<br />

relevância em frente ao sistema, foi somente a partir da revisão<br />

criminal que a família Naves pôde reconstruir e recontar a imagem e a<br />

história, respectivamente, de Sebastião e Joaquim.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Diante da exposição supra, percebe-se que a dignidade da pessoa<br />

humana, por ser característica inerente a todos os seres humanos, é<br />

dever do Estado. A Constituição Federal, ao contemplar o princípio<br />

como fundamento da República, teve este intuito.<br />

No entanto, o Processo Penal brasileiro, por mais que seja<br />

pautado por normas garantistas, nem sempre garante aos cidadãos<br />

a certeza jurídica em razão de vícios e erros cometidos no decorrer<br />

da instrução, o que significa uma afronta ao princípio em questão.<br />

A revisão criminal se apresenta, então, como um meio eficaz de<br />

garantir ao cidadão a retomada de seu status dignitatis relativizado<br />

em razão da condenação injusta por processo criminal. Se durante<br />

a instrução não for possível garantir ao cidadão, apesar de todo o<br />

sistema de garantias formulado pela Constituição, a concretização da<br />

sua dignidade, é por meio da revisão criminal que o condenado, vítima<br />

de erro judiciário, terá a possibilidade de retomar seu status quo ante.<br />

Desta forma, entende-se que a revisão criminal é uma das<br />

condições de possibilidade para que se recupere a dignidade de<br />

96 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />

um condenado, vítima de erro judiciário. E é com base em institutos<br />

como este que os legisladores devem se pautar no momento da<br />

redação de novas leis penais no Brasil. Como já referido, não se irá<br />

resolver o problema da criminalidade brasileira apinhando pessoas<br />

sobre pessoas dentro de penitenciárias insalubres e com tratamentos<br />

desumanos e degradantes.<br />

A solução está em aprimorar o direito penal e processual penal<br />

de forma que se satisfaçam ambas as correntes em que se parte<br />

do princípio da dignidade da pessoa humana, ou seja, do individual<br />

– referente ao indivíduo transgressor das normas, que, também é<br />

dotado de dignidade – e também do social – para que o Estado possa<br />

punir sem exceder os limites. Assim, cada vez mais será possível<br />

adequar o ordenamento jurídico aos postulados que embasam o<br />

Estado Democrático de Direito brasileiro.<br />

<strong>RE</strong>FERÊNCIAS<br />

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98 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


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Recebido: 16-5-2014<br />

Aprovado: 20-8-2014<br />

100 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />

DI<strong>RE</strong>ITO<br />

O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM<br />

A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE<br />

ATUAL<br />

ENVIRONMENTAL LAW AND INTERFACE WITH<br />

ENVIRONMENTAL EDUCATION IN SOCIETY TODAY<br />

Resumo<br />

Juliane Colpo 20<br />

Roberto Colpo 21<br />

O presente artigo tem por objetivo verificar se a coletividade se apropriou ou não dos valores inerentes ao direito<br />

ambiental como forma de prover a si mesma dos elementos essenciais à sadia qualidade de vida, dissociando ou<br />

associando a sustentabilidade do meio natural com os processos de desenvolvimento, partindo-se da abordagem<br />

da sociedade atual na visão de Leonardo Boff e Gilles Lipovetzky. Em seguida, traçando interface com o Código de<br />

Defesa do Consumidor, relacionar a posição das partes envolvidas na relação de consumo e seu papel transformador<br />

daquela sociedade paradigma em novo modelo social, com desenvolvimento econômico, porém nas dimensões da<br />

sustentabilidade, a partir da conscientização dos efeitos, danosos ou não, decorrentes da liberdade de consumir.<br />

Segue-se com a leitura da educação ambiental no direito positivo brasileiro, conceito, partícipes e objetivos, e a par<br />

da reflexão da sociedade atual na abordagem dos autores referidos, perquire-se acerca da sustentabilidade nesta<br />

sociedade dita como de mercantilização dos valores, bem como o papel da educação ambiental e se esta age<br />

como vetor de transformação social para a concretização do direito a um meio ambiente equilibrado como garantia<br />

a sadia qualidade de vida. Por todo o exposto, conclui-se, sem a pretensão de esgotar o tema, que a educação<br />

ambiental não está cumprindo seu objetivo na sociedade atual, na forma e modelo em que está sendo realizada,<br />

senão em pequenas células sociais. Apropriando-se do pensamento de Henrique Leff, há que se direcionar a<br />

uma nova racionalidade ambiental capaz de subverter a ordem imperante entre as lógicas de vida e o destino das<br />

sociedades. Mas, não obstante a riqueza de metodologias verificadas como possíveis de alcançar este objetivo,<br />

suas implementações práticas requerem o esforço de toda sociedade, dos educadores e do Estado.<br />

Palavras-chave: Direito Ambiental. Sociedade de consumo. Educação ambiental. Sustentabilidade.<br />

Abstract<br />

The purpose of this paper is to verify whether collectivity has appropriated environmental law values as<br />

a way to provide itself with the crucial elements to a healthy quality of life, associating or dissociating<br />

sustainability from the natural context and development processes based on the present society approach<br />

according to Leonardo Boff and Gilles Lipovetzky. The next step was to establish an interface with the<br />

Consumer Defense Code, analyze the positions of the parts involved in relation to consumption and its<br />

20 Graduada em Psicologia, Especialista em Psicologia nos Processos Educacionais (PUC), Pós-graduada em Aprendizagens Psicológicas<br />

na Universidade (IESA), Especialização em MBA em Gestão Educacional (FACUS), Mestre em Educação nas Ciências<br />

(Unijuí). Docente universitária (IESA), nos cursos de Pedagogia, Administração e Ciências Contábeis, cursos de extensão e Pós-<br />

Graduação. E-mail: julianecolpo@hotmail.com<br />

21 Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais; Pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil pela URI; Pós graduado em Direito<br />

Ambiental e Urbanístico pelo LFG. Foi Diretor Jurídico Municipal entre 2001 e 2002 e desde então até 20<strong>08</strong> Procurador Geral do<br />

Município de Santa Rosa( RS). Email: robertocolpo@terra.com.br<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 101-144


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

role of changing the paradigm into a new social model, under the economic development. However, the<br />

sustainability dimension, from the realization of effects, harmful or not, emerge from the free choice of<br />

consumption. Next, we analyze the environmental education context taking into consideration the Brazilian<br />

positive law, concept, participants and purposes based on a thorough examination of current society<br />

drawing on the mentioned authors. We also inquiry about sustainability in such society where values are<br />

presumably commercialized as well as the role of environmental education and, most crucially, if such<br />

education works as a driving force capable of promoting social changes and guarantee the right of a<br />

balanced environment and therefore a better and healthier quality of life. Taking the previous context into<br />

consideration and, by no means, depleting the topic under discussion, we come to the conclusion that<br />

environmental education, in the way it is being implemented, is not playing its role in our present society,<br />

with the exception of very limited and small social cells. Drawing on Henrique Leff, a new environmental<br />

rationale needs to be developed in order to overturn the current social order concerning the logic of life and<br />

the destiny of societies. However, despite the numerous methodological alternatives to achieve such goal,<br />

practical implementations require a bundling of efforts from the whole society, educators and the State.<br />

Keywords: Action adhesive. Procedural system . Civil procedure .<br />

Keywords: Law environment. Society of consumption. Environmental education. Sustainability.<br />

SUMÁRIO:<br />

Introdução; 1. Reflexões sobre a sociedade atual; 1.1. A sociedade atual segundo Leonardo Boff; 1.2. A<br />

sociedade atual segundo Gilles Lipowetsky; 1.3. Código de Defesa do Consumidor como fator de equilíbrio<br />

na sociedade de consumo brasileira; 2. A educação ambiental no Brasil; 2.1. Classificação e conceito; 2.2.<br />

Educação ambiental no Direito brasileiro; 2.3. Objetivos da educação ambiental; 3. Educação ambiental,<br />

desenvolvimento e sustentabilidade; 3.1. Educação ambiental como vetor de transformação social; 3.2.<br />

Educação ambiental e direito de informação; 4. Conclusão; 5. Referências.<br />

INTRODUÇÃO<br />

A premissa investigada parte da análise dos valores incorporados<br />

à sociedade atual, segundo Boff e Lipovetzky, de mercantilização,<br />

desculpabilização pelo consumo desenfreado e individualismo,<br />

conjunto de fatores que contribuem para a autoexclusão da qualidade<br />

de corresponsável pela situação de risco no equilíbrio do planeta e à<br />

própria qualidade de vida das pessoas.<br />

A par desta incorporação de valores mercantilistas pelas pessoas<br />

está a educação ambiental como princípio constitucional e integrante<br />

da política nacional do meio ambiente voltada a criar condições que<br />

formem uma nova consciência baseada em conceitos de ética e<br />

sustentabilidade.<br />

O Poder público, a sociedade e os indivíduos que a integram<br />

passaram a dividir responsabilidades sobre sua existência no planeta,<br />

haja vista a incorporação do meio ambiente equilibrado como garantia<br />

de qualidade de vida de todos, bem de uso comum do povo, assim<br />

previsto na Constituição Federal.<br />

102 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

A classificação do meio ambiente como bem de uso comum<br />

do povo sugere sua proteção contra os excessos quantitativos e<br />

qualitativos da produção econômica que afetem a sustentabilidade.<br />

Entretanto, os indivíduos agem como se não fossem partícipes<br />

do direito nem da obrigação, voltando-se exclusivamente para ações<br />

de satisfação pessoal, motivadas pelo mercado. Há ignorância e/ou<br />

conformismo com a situação de risco atual, embora as informações<br />

alarmantes estejam acessíveis a todos, e a educação ambiental, a<br />

partir do regramento pela constituição e normas infraconstitucionais,<br />

associou-se às finalidades do Estado, impulsionando ações afirmativas<br />

visando à conscientização para a necessidade de mudança do modelo<br />

social atual.<br />

O comportamento das pessoas é ditado pelas estratégias<br />

de marketing geradas pelas intenções do desenvolvimento<br />

socioeconômico, no qual a exigência é cada vez mais produção para<br />

atender à demanda dos consumidores. Entretanto, neste modelo,<br />

avançam as desigualdades sociais e o desrespeito aos limites da<br />

natureza como fonte dos recursos de produção.<br />

O Estado, por intermédio de ações como a positivação do Código<br />

de Defesa do Consumidor, age de forma a equalizar a relação entre<br />

sociedade e mercado, impondo regras de conduta na produção e<br />

oferta dos bens de consumo, permitindo ao consumidor exercer o<br />

direito de escolha a partir da informação e conscientização de que<br />

é parte social, podendo contribuir na transformação do mercado em<br />

favor de melhora na sua qualidade de vida, equacionando a liberdade<br />

de consumir e a preocupação com o meio ambiente.<br />

A educação ambiental nasceu dessa realidade crescente<br />

objetivando criar uma cultura ecológica para transformar as relações<br />

do homem com a natureza, desenvolver a cidadania com ética em<br />

relação ao consumo individual, a inclusão social e a proteção e<br />

conservação do meio ambiente.<br />

Diante disso, geram-se expectativas em relação às possibilidades da<br />

educação ambiental, cada vez mais sendo essa colocada como um dos<br />

pilares para a efetivação de um modelo de desenvolvimento sustentável.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 103


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

Divide-se o artigo em três capítulos. O primeiro trata da sociedade<br />

atual a partir da visão de Leonardo Boff e de Gilles Lipovetsky,<br />

retratando uma mercantilização de valores e desculpabilização<br />

pelo consumo desenfreado e individualismo, tornando a pessoa um<br />

sujeito passivo e não cidadão transformador. Ainda verifica o papel do<br />

Código de Defesa do Consumidor como instrumento de equilíbrio na<br />

sociedade brasileira.<br />

O segundo capítulo trata da educação ambiental, informando-se<br />

como está inserida no ordenamento jurídico brasileiro, seu conceito,<br />

partícipes e suas obrigações, bem como seus objetivos.<br />

Reserva-se o terceiro capítulo a verificar a sustentabilidade na<br />

sociedade atual, bem como o papel da educação ambiental neste<br />

processo e se esta se revela como instrumento (vetor) de transformação<br />

social. Discorre-se, a seguir, a partir das constatações sobre a educação<br />

ambiental, as relações entre esta e o direito de informação.<br />

<strong>RE</strong>FLEXÕES SOB<strong>RE</strong> A SOCIEDADE ATUAL<br />

A SOCIEDADE ATUAL SEGUNDO LEONARDO BOFF<br />

Boff (2003) entende que há uma nova civilização influenciada<br />

pela comunicação, imagem e informatização, formando uma nova<br />

concepção de vida, em que o papel da pessoa na sociedade vai<br />

transformado, importando mais as ações que ele conceitua como<br />

‘espetáculo’, em que a preocupação principal das pessoas é a<br />

realização de si mesmo.<br />

No entendimento do autor citado, a sociedade-espetáculo promoveu<br />

a transformação das pessoas em espectadores e esses querem sê-los,<br />

se contemplando e projetando sua identidade pela imagem. Conclui que<br />

“[...] são participantes passivos, meros consumidores e não cidadãos que<br />

opinam, criticam, negam certo tipo de adesão e reforçam conscientemente<br />

certas causas” (BOFF, 2003. p.19).<br />

Nesse contexto social, entretanto, há dois terços da humanidade<br />

que têm suas necessidades fundamentais ligadas apenas à<br />

sobrevivência e ao dia a dia do trabalho. Sequer têm acesso à<br />

104 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

infraestrutura mínima necessária à vida com dignidade. Diante disso,<br />

segundo o autor (p. 28), “uns participam, realmente, desta realidade<br />

nova através dos enclaves modernos, do consumo, da nova tecnologia;<br />

outros, pelo imaginário e pela imagem”.<br />

A produção de imagens, entretanto, tem capacidade ilimitada de<br />

manipulações e falsificações, distorcendo limites entre verdadeiro e<br />

falso e são largamente utilizadas na comunicação de massas, alterando<br />

comportamentos na sociedade atual. Tais processos tendem a desviar<br />

as pessoas do sentido de copilotos da natureza, com ela e não acima<br />

dela, pois ela é parte e parcela da Terra, perdendo-se o sentido ético<br />

que permite que aquelas se co-responsabilizem pelo mundo (BOFF,<br />

2003. p.35).<br />

Boff (2003) atribui à globalização o fenômeno que produz uma<br />

grande homogeneização, implicando levar os mesmos valores do<br />

sistema global, as mesmas tendências culturais, o mesmo estilo<br />

de consumo. Passa-se a ideia de que não há alternativa para esse<br />

modelo de sociedade. Segundo o autor, o capitalismo fez com que<br />

na sociedade moderna se socializassem os sonhos, amplamente<br />

propagados pelos meios de comunicação, especialmente pela<br />

propaganda, porém só permite que eles se realizem dentro dos limites<br />

impostos pelos interesses do capital.<br />

Em consequência, a sociedade moderna é marcada por desvios,<br />

dentre eles o reducionismo na concepção de ser humano e o<br />

desrespeito à natureza.<br />

O norte social é o desenvolvimento e a propriedade material,<br />

classificando o homem como um ser de necessidades. Sabendo-se<br />

que as necessidades humanas são ilimitadas, para satisfazê-las,<br />

imagina-se que o desenvolvimento assim também deve ser.<br />

Trata-se de falácia, pois todas as necessidades humanas nunca<br />

poderão ser satisfeitas plenamente. Com isso, há insatisfação<br />

permanente, gerando crise de identidade, de esperança e de futuro.<br />

Por tais motivos, neste contexto social a Terra e a natureza são<br />

reduzidas a um conjunto de recursos disponíveis à ganância do ser<br />

humano que se entende como seu senhor (BOFF, 2003. p.90).<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 105


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

Conclui, então, Boff (2003) que, pela necessidade de transformação<br />

do modelo atual, lentamente a sociedade incorpora uma nova forma<br />

de globalização, que não passa pelo mercado, pela economia e pela<br />

tecnociência, mas pela solidariedade, pelo intercâmbio aberto e pelo mútuo<br />

aprendizado. Espécie de desenvolvimento social, com inclusão de todos os<br />

seres humanos, onde dois terços são conformados com a miséria.<br />

A SOCIEDADE ATUAL SEGUNDO GILLES LIPOWETSKY<br />

Lipovetsky (2007, p.24-25, 28), filósofo e pesquisador francês,<br />

entende que a sociedade atual, em vista da revolução das tecnologias<br />

da informação e da comunicação, que suscitaram mudança de<br />

valores e atitudes, deu ênfase no bem estar material, no dinheiro e<br />

na segurança física, mercantilizando as necessidades e modos de<br />

vida das pessoas. Traz a lógica do “sempre mais, sempre novo”.<br />

Em síntese, é a sociedade do hiperconsumismo, oriunda de uma<br />

construção cultural, social e educacional dos consumidores.<br />

Outras fases antecederam a forma atual. Inicialmente, a era<br />

moderna conduziu um projeto de democratização do acesso aos<br />

bens mercantis, ou seja, pôs os produtos ao alcance das massas.<br />

“Agregado a esta dinâmica foi inventado o marketing de massa,<br />

educando o consumidor a consumir marcas de produtos pela ação da<br />

publicidade“ (LIPOVETSKY, 2007, p. 29-30).<br />

Pôs-se em marcha, a partir deste momento, um processo de<br />

democratização do desejo, voltado a estimular a necessidade de<br />

consumir, a excitar gostos pelas novidades e pela moda. Ressalta que<br />

“[...] desculpabilizaram o ato de compra”, transformando-a em forma<br />

de ocupar o tempo e estilo de vida das classes médias (LIPOVETSKY,<br />

2007, p. 31).<br />

Com a estabilidade e desenvolvimento econômico, instala-se<br />

um sentimento de abundância, democratizando ainda mais o acesso<br />

aos bens, especialmente os duráveis, acessíveis às classes mais<br />

pobres. A produção também foi massificada e com isso políticas de<br />

diversificação dos produtos e processos visando reduzir o tempo de<br />

vida das mercadorias (LIPOVETSKY, 2007, p. 34).<br />

106 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

Nesta fase social, a ordem econômica ordena-se pelos princípios<br />

da redução e do efêmero, mobilizando toda sociedade em torno de<br />

um projeto de um cotidiano de conforto, fácil, sinônimo de felicidade.<br />

Resulta desse contexto uma substituição de valores em prol de um<br />

imaginário de felicidade consumidora, que produziu uma mutação<br />

cultural (LIPOVETSKY, 2007, p.35).<br />

O poder do mercado e das marcas se impõe cada vez mais,<br />

visto que cada vez menos os estilos de vida são comandados pela<br />

ordem social e pelos sentimentos de inclusão de classes (2007, p.50).<br />

O hiperconsumidor responde à transformação de valores que lhe<br />

foi imposta, participando de uma corrida desenfreada à renovação<br />

acelerada de produtos e modelos (LIPOVETSKY, 2007, p. 87).<br />

A lógica do mercado avança em todos os ramos de atividades,<br />

impondo um capitalismo midiático dominado pelo aumento da<br />

velocidade e do descartável acelerado.<br />

Diante disso, as desigualdades econômicas se aprofundam, as<br />

aspirações consumistas se aproximam; as práticas sociais divergem,<br />

e o sistema referencial é idêntico (2007, p.117), pela incorporação do<br />

costume da realização do sujeito.<br />

A realização do sujeito na fase atual da sociedade exige que<br />

este seja um turboconsumidor, ressaltando que não significa dizer<br />

consumidor insensível. Entende que o turboconsumidor caminha para<br />

um acréscimo de sensibilidade para o consumo de produtos oriundo<br />

do comércio socialmente correto, que respeita normas ecológicas e<br />

éticas. Buscam selos e produtos com sentidos associados à defesa<br />

das crianças, dos famintos, dos animais, do meio ambiente, das<br />

vítimas de todo o tipo (LIPOVETSKY, 2007, p. 133-134).<br />

Assim, a mercadoria responsável tem como complemento um<br />

consumo de ações humanitárias e expansão da beneficência de massa.<br />

As forças do mercado invadiram a quase totalidade dos aspectos da<br />

existência humana, que não significa necessariamente a degradação<br />

da sociabilidade, da empatia e dos valores da humanidade, embora<br />

a sociedade atual tenha sofrido transformação nas relações sociais,<br />

porquanto essas não se reduzem a atividades consumistas.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 107


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

A fase atual da sociedade é de onimercantilização do mundo<br />

em que, se existem diferentes políticas econômicas ou sociais, não<br />

existe, por ora, solução alternativa à sociedade do hiperconsumo, cujo<br />

império devastador propaga o conformismo generalizado, a preguiça<br />

do espírito, a incultura, a superficialidade e a incoerência dos seres.<br />

Acabaram-se as significações e os ideais elevados; os únicos objetivos<br />

nos quais os indivíduos se reconhecem são o dispêndio fútil, o bem-<br />

-estar e a saúde.<br />

CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR COMO<br />

FATOR DE EQUILÍBRIO NA SOCIEDADE DE CONSUMO<br />

BRASILEIRA<br />

Ruscheinsky (2002) infere que na sociedade de consumo há<br />

uma cumplicidade forçada do indivíduo consumidor no que chama de<br />

corrupção de valores, espécie de ‘servilismo consentido’, o que lhe retira<br />

a capacidade de consentimento e compromisso com o meio ambiente<br />

numa participação ativa que pudesse refletir o exercício à cidadania.<br />

Pontilho justifica esse comportamento como presente em todas<br />

as culturas em que os bens funcionam como exaltação de valores<br />

e posição social do indivíduo. Logo, consumir refletiria um anseio<br />

de inserção e identificação social. Entende que há espécie de<br />

centralização em si mesmo no ato de consumir do indivíduo, “sem<br />

se preocupar com as consequências de suas escolhas. O cidadão é<br />

reduzido ao papel de consumidor, sendo cobrado por uma espécie de<br />

obrigação moral e cívica de consumir”.<br />

Entretanto, prossegue a autora citada, o consumo vai além deste<br />

interesse individual, representando uma atividade política de coesão<br />

social, criação e reprodução de valores. Infere ainda que “existe<br />

uma conexão entre valores éticos, escolhas políticas, visões sobre a<br />

natureza e comportamentos com relação às atividades de consumo”.<br />

Desse modo, em razão deste viés de atividade política de coesão<br />

social, criação e reprodução de valores gerais, como consequências<br />

do ato de consumir individual, evidenciou-se a necessidade de<br />

interferência do Estado nas relações de consumo.<br />

1<strong>08</strong> Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

O Código de Defesa do Consumidor surge como uma reação ao<br />

quadro social que destina posição de inferioridade do consumidor em<br />

face do poder econômico, em vista dos protagonistas deste serem os<br />

fornecedores dos produtos, do acesso a eles pelo crédito e do poder<br />

indutivo verificado pelas técnicas de marketing e propaganda.<br />

A desigualdade cultural/educacional acaba por restringir o direito<br />

à informação, em vista da incapacidade de exercê-lo, levando, por<br />

vezes, o consumidor a lesionar-se na sua integridade econômica,<br />

físico-psíquica, afetando o direito a um meio ambiente que lhe garanta<br />

qualidade de vida. Além de padronizar espécie de conformismo com<br />

a desigualdade.<br />

Repisa-se, pois, que o Código de Defesa do Consumidor surgiu,<br />

então, para equalizar as relações das partes inseridas na sociedade<br />

de consumo. Primeiro, a Constituição Federal de 1988, no art. 5º,<br />

inc. XXXII, consolidou como cláusula pétrea a defesa do consumidor.<br />

Depois, normatizou-se por força do art. 48 do ADCT da CF/88, pela<br />

promulgação da Lei nº 8.078, de 11-8-1990, vigorando a partir de 11-<br />

3-1991.<br />

Reconheceu-se, já no art. 1º, inc. I, do Código de Defesa<br />

do Consumidor, a vulnerabilidade do consumidor no mercado de<br />

consumo, haja vista que este não escolhe o que é produzido e nem<br />

de que maneira é produzido, ficando à deriva do que é produzido e<br />

ofertado. Erradicar o desequilíbrio em que se encontra no mercado<br />

de consumo, buscando alcançar uma realidade social mais justa, em<br />

face desta vulnerabilidade, é objetivo convergente com a dignidade da<br />

pessoa humana, fundamento da República do Brasil.<br />

Com precisão, Benjamin (2001, p.325) conceitua a vulnerabilidade<br />

como “[...] um traço universal de todos os consumidores, ricos ou<br />

pobres, educadores ou ignorantes, crédulos ou espertos”.<br />

Infere-se, pois, que a relação na sociedade de consumo tem, de<br />

um lado, uma parte detentora dos mecanismos de induzimento ao<br />

consumo (fornecedor) e de outra que é a todo instante bombardeada<br />

por anúncios apelativos ao consumo, tanto necessário como<br />

exagerado e desnecessário. Com o Código de Defesa do Consumidor,<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 109


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

este passa a ter efetiva possibilidade de escolha e controle por meio<br />

da informação e seleção de produtos que atendam suas necessidades<br />

com manutenção ou melhoria da qualidade de vida.<br />

Trata-se de um avanço em direção ao exercício da cidadania do<br />

consumidor, especialmente pela crescente conscientização motivada<br />

pelo acesso às informações mais claras e precisas sobre os produtos.<br />

Em decorrência de obrigação legal, as empresas obrigam-se, de<br />

igual forma, a um processo de adaptação a essa nova realidade. A<br />

propósito, os efeitos vão, além disso, verificando o crescimento do<br />

número de empresas que superam estas obrigações legais, tornandose<br />

socialmente responsáveis.<br />

Constata-se, pois, que o Código de Defesa do Consumidor é um<br />

instrumento eficaz de influência comportamental, tanto do consumidor<br />

quanto do fornecedor, partes da sociedade de consumo. Aos<br />

primeiros, garantiu proteção com acesso à informação sobre o produto<br />

a fim de exercitar o direito de escolha e mecanismos satisfativos de<br />

direitos como a saúde, integridade física, de não ser lesado, entre<br />

outros, essenciais para suscitar conscientização da necessidade de<br />

equacionar a liberdade de consumir com a preocupação com o meio<br />

ambiente ecologicamente equilibrado, diretamente relacionado a sua<br />

qualidade de vida. Aos segundos, a incorporação de posturas de<br />

transformação estrutural na relação de forças nas áreas ambiental,<br />

econômica e social.<br />

Por tais razões, aduz-se que o Código de Defesa do Consumidor,<br />

harmonizando-se com os interesses da questão ambiental, pode ser<br />

considerado como instrumento de educação ambiental, pelo promissor<br />

viés na construção de valores sociais, atitudes e habilidades nos<br />

indivíduos que compõem a coletividade, pelo fomento de um espírito<br />

crítico de liberdade de escolhas que podem preferir consumir somente<br />

o que garanta a sadia qualidade de vida, diretamente vinculada a um<br />

desenvolvimento sustentável.<br />

Percebe-se que o direito ao meio ambiente ecologicamente<br />

equilibrado passa a ser buscado pelo consumidor na seleção dos<br />

produtos postos a sua disposição. A informação, acessível por força<br />

110 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

das regras, permite a escolha e com isso a participação ativa das<br />

pessoas naquilo que pode influenciar diretamente sua qualidade de<br />

vida. Pode-se dizer que a normatização protecionista do Código de<br />

Defesa do Consumidor impulsionou o exercício da cidadania que, por<br />

sua vez, é essencial para uma postura critica sobre o atual modelo<br />

de sociedade, podendo influir nas dimensões social, ambiental e<br />

econômica da sustentabilidade dos meios de produção e consumo.<br />

A conscientização do consumidor e o controle estatal, por meio de<br />

um sistema punitivo, instiga a mudança de comportamento do fabricante,<br />

que passa a adotar padrões novos para seus produtos, respeitando a<br />

ética normatizada, implantando um sistema de responsabilidade social<br />

preocupado com a qualidade de vida do consumidor.<br />

Anota-se, em vistas das razões elencadas, que o Código de Defesa<br />

do Consumidor se constitui em vigorosa ferramenta de cidadania, com<br />

normas de ordem pública e interesse social, quando se percebe a<br />

dimensão coletiva que se pretendeu dar àquela norma. De igual sorte,<br />

estabelece regras e princípios adequados à realidade presente, no<br />

momento de relevantes transformações socioeconômicas operadas<br />

em todo o mundo.<br />

A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO BRASIL<br />

CLASSIFICAÇÃO E CONCEITO<br />

Consumo e consumismo não devem ser confundidos. Aquele é<br />

essencial à vida humana, pois serve ao atendimento das necessidades<br />

cotidianas das pessoas, tais como: habitação, alimentação,<br />

saneamento, instrução, energia, entre outros, que são utilizados para<br />

o gozo da vida humana com dignidade. Consumismo, por sua vez,<br />

é o excesso calcado em necessidades desnecessárias, criadas pela<br />

ação massificante da mídia, instrumento largamente utilizado pelos<br />

detentores dos meios de produção na sociedade atual.<br />

Milaré (2009, p.80-81) admite haver uma mentalidade arraigada<br />

em hábitos mórbidos e compulsivos, uma degeneração que agrega<br />

fatores culturais, sociais, econômicos e psicológicos, com adeptos<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 111


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

em quantidade suficiente a representar uma ameaça global ao meio<br />

ambiente porquanto sua ânsia não observa as limitações do planeta<br />

e contribui para o desequilíbrio econômico/social com visível aumento<br />

das desigualdades.<br />

Exemplificando, o consumo excessivo por um, de água potável,<br />

tanto para irrigar jardins imensos, quanto lavar calçadas e carros de<br />

forma desmedida, contribui para a escassez deste recurso natural.<br />

Entretanto, todos, sem distinção entre quem desperdiçou ou não,<br />

podem sentir os efeitos de um racionamento.<br />

Cada vez mais se percebe a necessidade de refletir se é possível<br />

e aceitável manter uma sociedade tão desigual e despreocupada<br />

com o outro e com o futuro das próximas gerações. Não obstante<br />

o vigor de instrumentos como o CDC, que objetivam a participação<br />

consciente do indivíduo neste processo, como se viu no capítulo<br />

anterior, incorporar espírito crítico sobre as informações lançadas<br />

diariamente, especialmente enquanto revestidas de um continuísmo<br />

do interesse econômico, parece não refletir na sociedade de forma a<br />

operar mudança significativa.<br />

Entretanto, o Estado, partícipe da sociedade, deve perseguir, a<br />

par dos integrantes desta, o objetivo do desenvolvimento e bem-estar<br />

da coletividade, buscando uma ordem social em que as atividades<br />

econômicas não podem gerar problemas que afetem ou impeçam o<br />

atingimento dos escopos sociais.<br />

Neste contexto, a Constituição Brasileira de 1988 estabeleceu<br />

fundamentos, objetivos e princípios/garantias com o propósito de<br />

salvaguardar a pessoa humana na sua plenitude individual e em suas<br />

relações com o semelhante.<br />

A Carta Magna trouxe no artigo 1°, inc. III, a dignidade da pessoa<br />

humana como fundamento da República Federativa do Brasil, impondo<br />

como um dever-ser no qual toda norma deve convergir.<br />

Nesse mesmo norte, o inc. IV, do art. 3°, da Constituição Federal,<br />

enumera como objetivo fundamental da República a “promoção do<br />

bem de todos”.<br />

112 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

Por tais motivos, o Poder Público (Estado) tem obrigação<br />

constitucional de promover o bem de todos, visando à dignidade<br />

da pessoa humana como mínimo existencial. Dentre este dever<br />

estatal está o de efetivar o direito de todos a um meio ambiente<br />

ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida,<br />

como preceitua o caput do art. 225 da CF/88. Esse direito nasce em<br />

vista da necessidade, por meio das ações humanas, de compatibilizar<br />

desenvolvimento econômico e social com a utilização racional dos<br />

recursos naturais, pensando na presente e futuras gerações.<br />

A educação ambiental está inserida no texto constitucional como<br />

uma meta de efetivação, pelo Estado, de garantir o direito a um meio<br />

ambiente ecologicamente equilibrado para preservação da vida. O<br />

inc. VI, do art. 225, da CF/88, assim dispõe: “promover a educação<br />

ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública<br />

para a preservação do meio ambiente”.<br />

Em razão de ser uma regra constitucional que impõe um dever ao<br />

Poder Público para garantir um direito fundamental às pessoas, podese<br />

entender que a educação ambiental deve ser classificada como<br />

princípio.<br />

Os princípios, como regras constitucionais, possuem um caráter<br />

deontológico, à medida que dizem o que deve ser. Stumm (1995, p.43)<br />

sintetiza a conceituação entendendo, como a maioria da doutrina, que<br />

“os princípios são mandados de otimização, quer dizer que o seu<br />

comando deve ser realizado da melhor maneira possível”.<br />

Princípios, então, poderiam ser classificados como premissas<br />

introduzidas no direito, porém oriundas, especialmente, das noções<br />

básicas de filosofia acerca do ser humano, deste como pessoa e de<br />

suas necessidades individuais e coletivas, em todas as acepções<br />

conceitualísticas.<br />

Mas os princípios são normas, são regras, valores ou outro? A<br />

questão não é pacífica, embora haja alguma convergência doutrinária.<br />

Dworkin (apud SANTOS,1999, p. 41) acredita que os princípios são<br />

exigências de justiça, de equidade ou de qualquer outra dimensão<br />

da moral, indicam um objetivo a ser alcançado, em geral, um<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 113


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

melhoramento em algum aspecto econômico, político, social da vida<br />

da comunidade. Seriam Standarts para cada área de aplicação do<br />

direito.<br />

Para Esser (apud ÁVILA, 2005, p.27), “[...] princípios são aquelas<br />

normas que estabelecem fundamentos para que determinado<br />

mandamento seja encontrado”. A diferença entre princípios e regras,<br />

para o autor citado, seria uma distinção qualitativa. No mesmo norte,<br />

Larentz, citado por Ávila (2005, p.27), entende que “[...] os princípios<br />

seriam pensamentos diretivos de uma regulação jurídica existente<br />

ou possível, mas que ainda não são regras suscetíveis de aplicação<br />

[...]”. Significa dizer que aos princípios faltaria a conexão entre uma<br />

hipótese de incidência e uma consequência jurídica.<br />

A doutrina não converge neste ponto, embora aquela ideia seja a<br />

mais aceitável. Alexy (apud SANTOS,1999, p.48) entende que tanto<br />

as regras quanto os princípios são normas, pois dizem o que devem<br />

ser pertencendo ao âmbito deôntico. Conclui que<br />

os princípios, tal qual as regras, são razões para juízos concretos<br />

de dever ser, ainda que sejam razões de diferentes tipos. Enfim, a<br />

distinção entre os dois é, pois, uma distinção entre duas espécies<br />

de normas. Toda norma ou é uma regra ou é um princípio<br />

Nota-se, pois, que há divergências na conceituação dos princípios<br />

e, não bastasse isso, igualmente não convergem os autores quando<br />

tentam traçar distinções entre regras e princípios, especialmente no<br />

tocante aos critérios escolhidos por um e outro. A doutrina segue três<br />

caminhos diferentes para a conceituação dos princípios, a saber: o<br />

primeiro, refere-se à impossibilidade de qualquer separação entre<br />

regras e princípios; o segundo sustenta que a dessemelhança é tão<br />

somente de grau; e o terceiro aponta não apenas uma diferença de<br />

grau, mas qualitativa.<br />

Princípios e regras guardam significados diferentes, embora<br />

possam convergir na ideia de eficácia, por se tratarem de dever-<br />

-ser, muito embora aqueles serem normas mais abertas que estas.<br />

Observe-se que, quando há conflitos entre regras, esses podem ser<br />

resolvidos em face da hierarquia das normas ou da especialidade.<br />

114 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

Tratando-se de princípios, o conflito somente seria resolvido na<br />

dimensão de ‘peso’, de valoração, fazendo com que um dos dois em<br />

conflito ceda em frente ao outro, mantendo-se, destarte, a validade de<br />

ambos. Regra e princípio são, pois, diferentes.<br />

Os princípios distinguem-se, de igual forma, dos valores, não<br />

obstante alguns autores insistirem na exclusiva ideia axiológica dos<br />

princípios. Princípios, como se disse antes, na esteira de Fernando<br />

Ferreira dos Santos, existem no âmbito deontológico, na esfera do<br />

dever-ser (juízos de obrigação: X é devido). Os valores, porém, são<br />

conceitos axiológicos na esfera do bom (Juízos de valor: X é bom)<br />

(SANTOS, 1999).<br />

Regras, princípio e valor têm convergências entre si e cada um<br />

está para o outro de forma a complementar-se. Bonavides, citado<br />

por Santos (1999, p.54), entende que “a jurisprudência dos valores<br />

é a mesma jurisprudência dos princípios e, se interpenetrando com<br />

a jurisprudência dos problemas, forma a espinha dorsal da Nova<br />

Hermenêutica”, proporcionando critérios e meios de interpretação<br />

visando melhor acesso à tríade normativa – regra-princípio e valor.<br />

Com efeito, a educação ambiental, como princípio, não se insere<br />

no campo da discricionariedade administrativa, ou seja, não se cogita<br />

em submetê-la a segundo plano em razão de escolha de prioridades<br />

pelos governos. Há, pois, obrigação de atuação.<br />

Consoante o caráter principiológico, de dever-ser, da educação<br />

ambiental na Constituição Federal, para prosseguimento de sua<br />

efetividade, foi publicada a Lei nº 9.795, de 27-4-1999, tratando da<br />

Política Nacional de Educação Ambiental, regulamentada pelo Decreto<br />

nº 4281, 25-6-2002.<br />

Do pensamento essencial do princípio constitucional, a educação<br />

ambiental ganhou conceito de contornos específicos, no art. 1º da<br />

lei acima referida, como sendo “os processos por meio dos quais o<br />

indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos,<br />

habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação<br />

do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia<br />

qualidade de vida e sua sustentabilidade”.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 115


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO DI<strong>RE</strong>ITO BRASILEIRO<br />

A par da referência constitucional citada, v.g. caput e inc. VI,<br />

do § 1º, do art. 225, específica no tocante ao meio ambiente e o<br />

princípio da educação ambiental, cumpre-nos salientar que o art.<br />

6º, caput, da mesma Carta, elegeu a educação como direito social<br />

e de competência comum entre a União, Estados, Distrito Federal e<br />

Municípios proporcionar os meios de acesso à educação (inc. V, do<br />

art. 23, CF/88), bem como, excetuando-se os Municípios, aqueles<br />

entes estatais concorrem na competência de legislar sobre educação<br />

(inc. IX, art. 24, CF/88).<br />

Entretanto, a educação, além de ser um direito social de todos e<br />

dever do Estado, também é dever da família, devendo ser promovida<br />

e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno<br />

desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania<br />

e sua qualificação para o trabalho, a teor do disposto no art. 205 da<br />

CF/88.<br />

Antes, porém, de a educação ambiental ser elevada ao status<br />

constitucional (na Carta de 1988), o instituto já havia sido referido na<br />

Lei nº 6.938, de 31-8-1981, que dispôs sobre a Política Nacional do<br />

Meio Ambiente, como um princípio a ser atendido pelo Estado com o<br />

fim de preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental<br />

propícia à vida, visando assegurar o desenvolvimento socioeconômico<br />

aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da<br />

vida humana (art. 2º). O inc. X, do art. 2º, disciplina que para atingir<br />

os fins antes citados deve-se atender à “educação ambiental a todos<br />

os níveis de ensino inclusive a educação da comunidade, objetivando<br />

capacitá-la para participação ativa na defesa do meio ambiente”.<br />

Posteriormente a Lei nº 6.938/81 veio a ser regulamentada<br />

pelo Decreto nº 99.274, de 6-6-1990, que repisou a atribuição do<br />

Poder Público, nos seus diferentes níveis de governo, “orientar a<br />

educação, em todos os níveis, para a participação ativa do cidadão<br />

e da comunidade na defesa do meio ambiente, cuidando para que os<br />

currículos escolares das diversas matérias obrigatórias contemplem o<br />

estudo da ecologia” (inc. VII, do art. 1º).<br />

116 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

A legislação infraconstitucional posterior também não se descurou<br />

dos preceitos constitucionais, reiterando-os, como se verifica na Lei<br />

nº 9.394, de 20-12-1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação<br />

Nacional – LDB, em cujo caput do art. 2º estabelece que “A educação,<br />

dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade<br />

e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno<br />

desenvolvimento do educado, seu preparo para o exercício da<br />

cidadania e sua qualificação para o trabalho”.<br />

Importante salientar que, mesmo antes da publicação da política<br />

nacional de educação ambiental pela Lei nº 9.795/99, a LDB impunha<br />

esse viés específico nos objetivos do ensino fundamental quando,<br />

no inc. II, do art.32, infere que aquela formação se dá mediante “a<br />

compreensão do ambiente natural e social, do sistema político,<br />

da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a<br />

sociedade”.<br />

Não obstante a igualdade de tema, mesmo que a educação<br />

ambiental esteja inserida na generalidade educação, a LDB orienta-<br />

-se na limitação dos currículos e conteúdos mínimos fixados em<br />

diretrizes (inc. IV do art. 9º), baseada no princípio de ministração do<br />

ensino dentro do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas<br />

(inc. III do art. 3º), regrando que a educação ambiental não deve ser<br />

implantada como disciplina específica no currículo de ensino.<br />

Porém a incumbência do Poder Público prevista na Lei n. 9.795,<br />

de 27 de abril de 1999, e o Decreto nº 4.281, de 25 de junho de 2002,<br />

que dispõe sobre a educação ambiental e institui a Política Nacional<br />

de Educação Ambiental, parece ser mais abrangente. Estas normas<br />

específicas deixam claro que a educação ambiental é um componente<br />

essencial e permanente da educação nacional, com presença de forma<br />

articulada em todos os níveis e modalidades do processo educativo,<br />

seja em caráter formal ou não formal. No inc. I, do art. 3º da Lei nº<br />

9.795/99, está a incumbência de o Poder Público definir as políticas<br />

públicas que incorporem a dimensão ambiental, promovendo-a<br />

em todos os níveis de ensino e no engajamento da sociedade na<br />

preservação, recuperação e melhoria do meio ambiente.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 117


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

Convergem as regras gerais de educação da LDB com as<br />

disposições das leis específicas (§ 1º, do art. 10, da Lei nº 9.795/99)<br />

quanto à exclusão da educação ambiental como disciplina específica<br />

no currículo de ensino, evidenciando-se uma restrição distante da<br />

incumbência pública acima referida.<br />

Ainda na Lei nº 9.795/99, a educação ambiental divide-se<br />

em formal e não formal. Segundo seu art. 9º, a educação formal é<br />

a educação escolar, desenvolvida no âmbito dos currículos das<br />

instituições de ensino, públicas e privadas, englobando educação<br />

básica (infantil, fundamental e média); educação superior; educação<br />

especial; educação profissional; educação de jovens e adultos.<br />

Antes desse regramento, a LDB, Lei nº 9.394/96, já disciplinava o<br />

formalismo em cada uma das mesmas modalidades, começando pelo<br />

art. 21 (educação básica), desdobrada no art. 29 (educação infantil),<br />

art. 32 (ensino fundamental), art. 35 (ensino médio), art. 37 (educação<br />

de jovens e adultos), art. 39 (educação profissional), art. 43 (educação<br />

superior) e, finalmente, art. 58 (educação especial). Nota-se, portanto,<br />

que a modalidade de educação formal se revela em mais uma estreita<br />

ligação entre as normas referidas na medida em que tratam do tema<br />

‘educação’.<br />

Por outro lado, a educação não formal, que não encontra<br />

correspondente na LDB, segundo o art. 13, da Lei nº 9.795/99,<br />

compreende as ações e práticas educativas voltadas à sensibilização<br />

da coletividade sobre as questões ambientais e à sua organização e<br />

participação na defesa da qualidade do meio ambiente.<br />

O Direito brasileiro, como se viu, em face da obrigação estatal de<br />

garantir, por meio da educação ambiental, o direito ao meio ambiente<br />

ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida,<br />

prevê vasta legislação afirmativa e assecuratória daquele que é um<br />

bem de uso comum do povo.<br />

OBJETIVOS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL<br />

O art. 5º e seus incisos, da Lei nº 9.795/99, enumera os objetivos<br />

fundamentais da educação ambiental como sendo “o desenvolvimento<br />

118 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

de uma compreensão integrada do meio ambiente em suas múltiplas<br />

e complexas relações, envolvendo aspectos ecológicos, psicológicos,<br />

legais, políticos, sociais, econômicos, científicos, culturais e éticos<br />

(inc. I); a garantia de democratização das informações ambientais<br />

(inc. II); o estímulo e o fortalecimento de uma consciência crítica sobre<br />

a problemática ambiental e social (inc. III); o incentivo a participação<br />

individual e coletiva, permanente e responsável na preservação do<br />

equilíbrio do meio ambiente, entendendo-se a defesa da qualidade<br />

ambiental como um valor inseparável do exercício da cidadania ( inc. IV);<br />

o estímulo à cooperação entre as diversas regiões do País, em níveis<br />

micros e macrorregionais, com vistas à construção de uma sociedade<br />

ambientalmente equilibrada, fundada nos princípios da liberdade,<br />

igualdade, solidariedade, democracia, justiça social, responsabilidade<br />

e sustentabilidade (inc. V); o fomento e o fortalecimento da integração<br />

com a ciência e a tecnologia (inc. VI); e o fortalecimento da cidadania,<br />

autodeterminação dos povos e solidariedade como fundamento para<br />

o futuro da humanidade” (inc. VII).<br />

Com efeito, esse conjunto de objetivos fundamentais constitui-se<br />

em metas permanentes para assegurar a efetividade do direito a um<br />

meio ambiente ecologicamente equilibrado, em todas as dimensões,<br />

essencial à sadia qualidade de vida de todos desta e das futuras<br />

gerações, como preconizado no art. 225, caput, da CF/88.<br />

EDUCAÇÃO AMBIENTAL, DESENVOLVIMENTO E<br />

SUSTENTABILIDADE<br />

A ideologia da sociedade industrial, baseada em noções sobre<br />

crescimento econômico, padrões de vida cada vez melhores,<br />

necessidades tecnológicas e efemeridade dos produtos, contribuiu<br />

para a presente crise ambiental, da qual a maioria das pessoas não<br />

percebe sua existência.<br />

Edis Milaré (2009) entende que a sociedade atual é de incertezas,<br />

porém dispõe de informações razoáveis da trajetória humana<br />

percorrida até o momento para perceber e agir em relação ao estado<br />

das coisas atuais que chama de ‘questão ambiental’.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 119


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

Infere que a evolução histórica atesta alterações nos ecossistemas<br />

planetários impostas pela presença do homem, por vezes intencionais,<br />

cujos efeitos, hoje visíveis, acarretaram a dilapidação do patrimônio<br />

natural formado lentamente pelos tempos geológicos e biológicos,<br />

sem possibilidade de retorno.<br />

Lembra, na perspectiva da trajetória humana referida, ter havido<br />

um equívoco nos processos de desenvolvimento das nações, visto<br />

que “[...] o processo de desenvolvimento dos países se realiza,<br />

basicamente, à custa dos recursos naturais vitais, provocando<br />

deterioração das condições ambientais em ritmo e escala até ontem<br />

ainda desconhecidos” (MILARÉ, 2009, p. 59).<br />

Resultou, deste processo de desenvolvimento, um desequilíbrio<br />

ecológico que se acentua a cada dia. Destacam-se consequências<br />

como florestas devastadas, lençol freático, rios e lagos contaminados,<br />

chuva ácida, dejetos e lixo urbano sem tratamento e em excesso,<br />

poluição de toda espécie, ar irrespirável, contaminação do solo<br />

e do mar, construções desordenadas das cidades, crescentes<br />

desigualdades sociais, epidemias, desemprego, sub-emprego,<br />

alimentos contaminados, extinção de espécies animais, alteração<br />

climática pelo aquecimento global, entre outras.<br />

Milaré (2009) não tem dúvidas de que a ‘questão ambiental’, neste<br />

contexto revelador da utilização desmedida dos recursos naturais, “é<br />

uma questão de vida ou morte, tanto de animais e plantas quanto<br />

do próprio homem e do Planeta que nos abriga”. Apesar disso, nem<br />

sempre sensibiliza a sociedade e seus dirigentes.<br />

Em 1972, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio<br />

Ambiente, em Estocolmo, com a participação de 113 países, entre<br />

eles o Brasil, foi dado o alerta da gravidade dos riscos presentes e<br />

futuros à medida em que os países ricos industrializados revelaram<br />

a degradação ambiental por si produzidas em decorrência do modelo<br />

econômico utilizado, resultando na escassez de recursos naturais.<br />

Leff (2009, p. 27-28) destaca a divisão entre as nações<br />

desenvolvidas e as subdesenvolvidas, atribuindo àquelas a geração<br />

do processo de subdesenvolvimento destas em razão da globalização<br />

120 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

do capital com intercâmbios desiguais e transferências de riquezas.<br />

Por tais razões, entre outras, não houve consenso na Conferência das<br />

Nações Unidas sobre Meio Ambiente havida em Estocolmo em 1972,<br />

não obstante o alerta dos países ricos, porém a questão ambiental<br />

ganhou visibilidade pública.<br />

Conclui Leff (2009, p. 33) “[...] que o sistema capitalista rompeu<br />

a harmonia entre os sistemas naturais e as formações sociais”.<br />

Milaré (2009, p. 60-61), do mesmo modo, considerando os vários<br />

aspectos deste quadro, e em vista deste, percebe que “houve uma<br />

perda de identidade do homem com a natureza e do sentido de<br />

mútua dependência, fomentando uma ruptura artificial entre ambos e<br />

repercutindo profundamente naquilo que se convencionou chamar de<br />

qualidade de vida”.<br />

Além da degradação do meio ambiente natural pela sociedade<br />

industrial de contínuo crescimento econômico, Guimarães (2004)<br />

amplia o debate sobre as dimensões da crise, informando que a<br />

sociedade atual também é marcada pela urbanização, que o fenômeno<br />

de concentração urbana é igualmente um fenômeno da sociedade<br />

industrializada, baseada em fábricas e serviços desvinculados do<br />

produto natural da terra. Revela-se uma urbanização crescente no<br />

Brasil, dado que a população urbana era de 32% em 1940, 50% em<br />

1970 e 80% em 2000, não sendo difícil concluir que atualmente já<br />

ultrapassou esse patamar.<br />

A conscientização deste momento de risco em que todos perdem<br />

suscitou a necessidade de mudanças na sociedade humana, visando<br />

à adoção de padrões adequados de utilização dos recursos naturais<br />

por parte das sociedades e nações. Surge, então, a sustentabilidade<br />

como uma saída para a crise.<br />

Silva (2005, p. 441-468), envidando a perspectiva histórica, indica<br />

que a primeira referência conceitual do que seria um desenvolvimento<br />

sustentável foi dada por Maurice Strong, Diretor Executivo do PNUMA,<br />

na primeira Reunião do Conselho Administrativo deste órgão, em<br />

1973, quando referiu o termo “ecodesenvolvimento” para definir<br />

um estilo de desenvolvimento adaptado às áreas rurais do Terceiro<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 121


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

Mundo, baseado na utilização dos recursos locais e na sabedoria<br />

tradicional, com o objetivo de não comprometer a natureza e satisfazer<br />

as necessidades das gerações futuras.<br />

Prossegue a autora informando que posteriormente o termo<br />

foi utilizado pelo economista Ignacy Sachs, que lhe deu concepção<br />

mais ampla e não apenas às áreas rurais. Segundo Sachs, o<br />

ecodesenvolvimento deve ser compreendido como a planificação do<br />

desenvolvimento que integra os seguintes aspectos de viabilidade:<br />

a viabilidade social, por meio de maior justiça na repartição das<br />

riquezas e das rendas; a viabilidade econômica, por uma repartição<br />

e uma gestão mais eficiente dos recursos, bem como um fluxo<br />

regular de investimentos públicos e privados; a viabilidade ecológica,<br />

considerando a capacidade de suporte do meio, o consumo de<br />

combustíveis fósseis e de bens materiais, incentivos às tecnologias<br />

limpas e regras para uma adequada proteção do meio ambiente; a<br />

viabilidade espacial pela manutenção do equilíbrio entre cidade e<br />

campo, e a repartição da população e da atividade econômica sob a<br />

integralidade do território; a viabilidade cultural fundada no respeito às<br />

tradições culturais e à pluralidade de soluções para cada ecossistema,<br />

assim como para cada cultura e para determinada situação.<br />

Seguindo-se na perspectiva histórica, revela a autora que em<br />

1987 a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento,<br />

das Nações Unidas (ONU), criada em 1983 com o objetivo de propor<br />

estratégias ambientais e cooperação entre países de diferentes<br />

estágios de desenvolvimento, lançou O Nosso Futuro Comum ou<br />

Relatório Brundtland (referência a Harlem Brundtland, quem presidiu<br />

a comissão) como um alerta contra a permanência dos modelos e<br />

padrões de produção e consumo. A fórmula enunciada no Relatório<br />

tornou popular o termo ‘desenvolvimento sustentável’, conceituando<br />

como “aquele que atende às necessidades do presente sem<br />

comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as<br />

suas próprias necessidades. Ele contém dois conceitos chaves: o<br />

conceito de “necessidade”, sobretudo as necessidades essenciais dos<br />

pobres do mundo, que devem receber a máxima prioridade; a noção<br />

122 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

de limitações que o estágio da tecnologia e da organização social<br />

impõe no meio ambiente, impedindo-o de atender as necessidades<br />

presentes e futuras”.<br />

A reflexão da autora citada conclui por distinguir três pilares<br />

indissociáveis na base do conceito de desenvolvimento sustentável: o<br />

econômico, o social e o ambiental.<br />

Outro marco dessa integração foi lançado pela agenda 21 Global,<br />

na Rio 92 à medida que considerou a complexa relação entre o<br />

desenvolvimento sustentável e o meio ambiente numa variedade de<br />

áreas, apontando como dimensões do conceito o cálculo econômico,<br />

aspecto biofísico e componente sóciopolítico como referências para<br />

modelo de sociedade.<br />

A sustentabilidade em qualquer atividade passa obrigatoriamente<br />

pela integração do aspecto temporal, significando que as ações<br />

devem atender a curto, médio e longo prazo, sendo intergeracional; do<br />

aspecto espacial, significa que as ações devem observar as questões<br />

físicas, biológicas e antrópicas; e da participação da sociedade de<br />

forma efetiva, na definição lançada por Machado (2004).<br />

Milaré (2009, p.66) sintetiza as dimensões da sustentabilidade<br />

ao efeito de atingir o equilíbrio, antes mencionado, entre sociedade<br />

humana e meio natural, como sendo as que abrangem o aumento<br />

de produtividade, criação de oportunidades políticas, econômicas e<br />

sociais iguais a todos, porém sem pôr em risco a atmosfera, a água, o<br />

solo, os ecossistemas, fundamentais à vida na Terra.<br />

O conceito não é pacífico, porém há convergência substancial<br />

nos conceitos citados, bem como entre estes e os quase sessenta<br />

significados encontrados na doutrina, diferindo-se entre si, por<br />

vezes, em maior ou menor amplitude acerca das dimensões que a<br />

sustentabilidade deve observar. Sintetizando os anseios contidos<br />

nos diversos conceitos, Velasco (2002, p.45) clama à sociedade para<br />

pensar a sustentabilidade “como significando melhorar a qualidade<br />

da vida humana sem ultrapassarmos a capacidade de suporte dos<br />

ecossistemas que a sustentam”.<br />

No Brasil, o alerta da crise ambiental global ecoou na positivação do<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 123


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

conceito de sustentabilidade tanto na legislação constitucional quanto<br />

na infraconstitucional, bem como em resoluções e regulamentações<br />

de vanguarda, impondo a si e à sociedade a transformação salutar na<br />

salvaguarda do meio ambiente em todas as suas dimensões.<br />

Estabeleceu como fundamento da República a dignidade da<br />

pessoa humana (in. III, do art. 1º, da CF/88) como norma matriz do<br />

dever-ser, fixando um mínimo existencial às pessoas que nenhuma<br />

outra norma pudesse suplantar sob pena de serem invalidadas. Fixou<br />

garantias personalíssimas de mesma ordem constitucional (art. 5º,<br />

caput e incs., da CF/88) e, entre elas, o direito ao meio ambiente<br />

ecologicamente equilibrado necessário à sadia qualidade de vida<br />

(art. 225, da CF/88); determinou responsabilidade social ambiental às<br />

atividades econômicas (inc. VI, do art. 170, da CF/88); o controle na<br />

produção comercial (inc. V, do § 1º, do art. 225, da CF/88); criou a<br />

Política Nacional do Meio Ambiente pela Lei nº 6.938, de 31-8-1981;<br />

o Estatuto da Cidade, pela Lei nº 10.257/2001, que, no inc. 1º, do<br />

art. 2º, estabelece a “garantia do direito às cidades sustentáveis,<br />

entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento<br />

ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços<br />

públicos, a trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.<br />

Não bastasse isso, na norma do inc. VIII do mesmo art. 2º transparece<br />

a adoção da sustentabilidade como objetivo da lei quando determina<br />

a adoção de padrões e consumo de bens e serviços e de expansão<br />

urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental,<br />

social e econômica do Município e do território sob sua influência”. A<br />

legislação que regulamenta norma constitucional de política urbana<br />

(art. 182) assinou tratados internacionais de controle de emissão de<br />

poluentes e em tantas outras matérias pontuais, condizentes com a<br />

sustentabilidade; publicou o Código de Defesa do Consumidor; a lei<br />

de educação ambiental, entre outras centenas de normas.<br />

A par da vasta legislação e regulamentação das atividades<br />

econômicas, o País vem atingindo metas de desenvolvimento<br />

econômico, mas com razoável transformação da realidade social, o<br />

que é facilmente verificado pela concentração de rendas havidas nos<br />

124 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

centros urbanos, pela concentração territorial da infra-estrutura urbana<br />

nas áreas centrais, pelo processo de favelização dos centros urbanos,<br />

pela devastação florestal em favor da agricultura, sem discussão com<br />

a sociedade, pelas deficiências nos serviços de educação, segurança<br />

e saúde pública. Tratam-se de condições que refletem na qualidade<br />

de vida da sociedade.<br />

Importante repisar que a sociedade atual, na sua grande maioria,<br />

vive nas cidades, onde devem gozar sua existência com qualidade de<br />

vida sadia e equilibrada.<br />

A respeito das cidades, convém trazer à baila o alerta de Fernandes<br />

(2006, p.3-23), ressaltando que as conquistas legais não poderiam, por<br />

si sós, ser tomadas como garantidas, pois a verdadeira reforma urbana<br />

ainda depende de diversos fatores, especialmente da renovação da<br />

mobilização social e política em torno da questão urbana.<br />

A mobilização social depende da participação das pessoas nos<br />

processos democráticos, tornando-se corresponsável na proteção da<br />

sua qualidade de vida que é umbilicalmente ligada à existência de um<br />

meio ambiente ecologicamente equilibrado.<br />

Com efeito, o que se vê na sociedade atual, ao contrário, é a<br />

busca de um crescimento econômico sem ética, voltado para um<br />

consumismo incapaz de existir sem a destruição do mundo natural e<br />

sem um olhar voltado para a coletividade, especialmente diante das<br />

desigualdades sociais.<br />

Destaca-se que a sociedade atual ainda age voltada para a<br />

realização individual, enquanto aumentam as massas de excluídos<br />

como resultado deste mundo social desestruturado e privatizado pelo<br />

império do consumo mercantil, por novos modos de vida centrados no<br />

dinheiro, pela vida do presente, pela satisfação imediata dos desejos.<br />

Há consumo insustentável.<br />

Os limites da natureza como fonte dos recursos desta produção<br />

não parecem ser levados em conta pelo indivíduo da sociedade<br />

atual. Logo, o desenvolvimento parece não estar sendo evidenciado<br />

dentro das dimensões que conferem a sustentabilidade consoante os<br />

conceitos referenciais citados.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 125


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

Carlos Gabaglia Penna, referido por Milaré (2009, p.66), declina<br />

que “[...] o desenvolvimento sustentável, por enquanto, é apenas um<br />

conceito, uma formulação de objetivos, e tem se incluído, cada vez<br />

mais, na retórica desenvolvimentista, nos discursos dos que pregam<br />

o crescimento econômico constante. É um novo instrumento de<br />

propaganda para velhos e danosos modelos de desenvolvimento”.<br />

A observação ganha relevância quando somada à lição de<br />

Machado (2004), já citada no texto, de que esse momento da sociedade<br />

atual está vinculado à conformação do Estado com a ficção legal do<br />

Direito Ambiental. Observa-se das posições a ausência de efetividade<br />

prática dos mecanismos legais.<br />

Escolher um comportamento prejudicial à sociedade como um todo<br />

fere uma exigência moral baseada na reciprocidade, na qual as pessoas<br />

morais devem respeito umas às outras, ensina Raz (2004, p.118-119), e<br />

justifica esse dever de respeito nas razões morais aduzindo que<br />

as razões morais advêm de quaisquer interesses morais válidos<br />

que possam gerar razões, e, uma vez que sabemos o que a<br />

moral exige em virtude desses motivos independentes, podemos<br />

saber o que devemos fazer para respeitar as pessoas (ou o meio<br />

ambiente, ou o que quer que seja), isto é, devemos nos adaptar<br />

às exigências morais válidas<br />

Há um conflito entre o comportamento dos indivíduos e as<br />

necessidades da sociedade como um todo, impedindo a efetiva<br />

sustentabilidade capaz de garantir a qualidade de vida das pessoas e<br />

do planeta, verificada apenas em pequenas células sociais. As razões<br />

são várias, e entre estas se inclui a necessidade de conscientização<br />

para a construção de novos valores que atendam o indivíduo e a<br />

coletividade como um todo.<br />

EDUCAÇÃO AMBIENTAL COMO VETOR DE<br />

TRANSFORMAÇÃO SOCIAL<br />

Como se viu no aspecto anterior, há entraves à ocorrência da<br />

sustentabilidade na sociedade atual, sendo a falta de conscientização<br />

da gravidade da situação ambiental e o comportamento voltado para<br />

126 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

a satisfação dos anseios pessoais em prejuízo da qualidade de vida<br />

da coletividade os mais destacados. Ressaltam-se, de igual forma, os<br />

valores da sociedade atual.<br />

No sentir de Jacobi (2005), este contexto implica principalmente<br />

a necessidade de estimular uma participação mais ativa da sociedade<br />

no debate dos seus destinos como uma forma de estabelecer um<br />

conjunto socialmente identificado de problemas, objetivos e soluções.<br />

Assim, a ideia de sustentabilidade implica a prevalência da premissa<br />

de que é preciso estabelecer uma limitação definida nas possibilidades<br />

de crescimento e um conjunto de iniciativas que levem em conta<br />

a existência de interlocutores e participantes sociais relevantes e<br />

ativos por meio de práticas educativas e de um processo de diálogo<br />

informado, inclusive permitindo que a população participe em nível<br />

mais alto dos processos decisórios, o que reforça um sentimento de<br />

corresponsabilização e de constituição de valores éticos.<br />

Logo, conclui Jacobi, o caminho para uma sociedade sustentável<br />

se fortalece na medida em que se desenvolvam práticas educativas<br />

que, pautadas pelo paradigma da complexidade, aportem para a<br />

escola e os ambientes pedagógicos uma atitude reflexiva em torno<br />

da problemática ambiental e os efeitos gerados por uma sociedade<br />

cada vez mais pragmática e utilitarista, visando à formação de novas<br />

mentalidades, conhecimentos e comportamentos.<br />

Segundo o autor, a carência de acessibilidade à informação e o<br />

déficit de práticas comunitárias sugerem maior provocação do papel<br />

indutivo do poder público nos conteúdos educacionais e informativos<br />

de sua oferta, como caminhos possíveis para alterar o quadro atual de<br />

degradação socioambiental.<br />

Nesse contexto, refere Jacobi, as práticas educativas devem<br />

apontar para propostas pedagógicas centradas na conscientização,<br />

mudança de comportamento e atitudes, desenvolvimento de<br />

competências, capacidade de avaliação e participação dos<br />

educandos. Isto desafia a sociedade a elaborar novas epistemologias<br />

que possibilitem o que Edgar Morin denomina de “uma reforma do<br />

pensamento”.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 127


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

Brandão (1985, p.7), como educador, pensa que<br />

ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na<br />

escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da<br />

vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar.<br />

Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias<br />

misturamos a vida com a educação.<br />

Para Brandão (1985), a educação se revela em formas diversificadas,<br />

livres, e entre todos pode ser uma das maneiras que as pessoas criam<br />

para tornar ‘comum’, como saber, como ideia, como crença, aquilo que<br />

é comunitário como bem, como trabalho ou como vida. Ela pode existir<br />

imposta por um sistema centralizado de poder, que usa o saber e o<br />

controle sobre o saber como armas que reforçam a desigualdade entre<br />

os homens na divisão dos bens, do trabalho, dos direitos e dos símbolos.<br />

Brandão (1985, p.10-11) infere ainda que<br />

[...] a educação é, como outras, uma fração do modo de vida<br />

dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras<br />

invenções de sua cultura, em sua sociedade. Formas de educação<br />

que produzem e praticam, para que elas reproduzam, entre todos<br />

os que ensinam-e-aprendem, o saber que atravessa as palavras<br />

da tribo, os códigos sociais de conduta, as regras do trabalho, os<br />

segredos da arte ou da religião, do artesanato ou da tecnologia<br />

que qualquer povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida<br />

do grupo e a de cada um dos sujeitos, através de trocas sem fim<br />

com a natureza e entre os homens, trocas que existem dentro do<br />

mundo social onde a própria educação habita, e desde onde ajuda<br />

a explicar – às vezes a ocultar, às vezes a inculcar – de geração<br />

em geração, a necessidade da existência de sua ordem.<br />

Educar é transformar pela teoria em confronto com a prática e<br />

vice-versa (práxis), com consciência adquirida na relação entre o eu<br />

e o outro, nós (em sociedade) e o mundo. É desvelar a realidade e<br />

trabalhar com os sujeitos concretos, situados espacial e historicamente.<br />

É, portanto, exercer a autonomia para uma vida plena,<br />

modificando-nos individualmente pela ação conjunta que nos conduz<br />

às transformações estruturais. Logo, a categoria educar não se esgota<br />

em processos individuais e transpessoais, engloba tais esferas, mas<br />

vincula-as às práticas coletivas, cotidianas e comunitárias que nos<br />

dão sentido de pertencimento à sociedade.<br />

128 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

Repisa-se que tanto a educação em si quanto a educação<br />

ambiental, que está inserida naquela, são direitos positivados na<br />

legislação brasileira. No tocante ao Direito à Educação Ambiental<br />

e à Conscientização de todos, Custódio (20<strong>08</strong>) infere que se torna<br />

patente que a educação ambiental, inseparável da permanente<br />

educação geral e da educação econômico-ambiental, da educação<br />

político-ambiental em geral ou da educação jurídico-ambiental em<br />

particular, constitui, na verdade, o caminho fundamental, o meio único<br />

capaz de conduzir qualquer pessoa ao imprescindível grau de real<br />

sensibilidade e de responsável tomada de consciência, aliado ao firme<br />

propósito, por meio de efetiva participação, contribuição ou ação, no<br />

sentido de explorar ou utilizar racionalmente a propriedade (própria<br />

ou alheia, pública ou privada), os recursos ambientais (naturais ou<br />

culturais) nela integrantes, bem como integrantes do meio ambiente<br />

e da natureza, em permanente defesa e preservação do patrimônio<br />

ambiental saudável, como condição essencial à continuidade da vida<br />

em geral e à sobrevivência da própria humanidade.<br />

Barcelos (20<strong>08</strong>) reflete que aprender a viver juntos se constitui,<br />

hoje, numa necessidade, sob pena de a barbárie sair vencedora, em<br />

vista de que nossa identidade é planetária e as consequências afetam<br />

todos neste mundo globalizado que incita o compartilhamento do<br />

mesmo consumo. Traz à reflexão o fato de que se estamos insatisfeitos<br />

com o caminho seguido até agora, há que pensar, inventar, recriar<br />

outro ou outros caminhos. Sugere um pensar e agir a partir de outras<br />

metodologias que passam pela educação ambiental.<br />

A educação ambiental assume parcela de responsabilidade pela<br />

edificação de um mundo social e ecologicamente mais justo, em<br />

contrapartida ao modo de pensar e agir que a sociedade continua<br />

adotando, mesmo que devastador ao ambiente natural e de negação<br />

ao outro do acesso ao básico (BARCELOS, 20<strong>08</strong>).<br />

Diante desta sociedade paradoxal, a construção de um mundo<br />

mais justo pela atuação da educação ambiental passa pela invenção de<br />

metodologias que auxiliem na construção de espaços de convivência<br />

a partir da solidariedade, cooperação, tolerância e amor com os seres<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 129


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

humanos e com as demais formas de vida existentes no planeta. Mas<br />

Barcelos (20<strong>08</strong>) adverte que para percorrer este caminho novo não se<br />

pode estabelecer previamente uma metodologia a ser utilizada numa<br />

determinada situação. A abordagem deve ser nova, outra, e sugere<br />

uma conversa com o grupo que se quer trabalhar e, a partir disso,<br />

desenvolver as atividades com o grupo.<br />

Barcelos (20<strong>08</strong>) rejeita o copiar modelos e estereótipos, visto<br />

que assim foi feito até agora e os resultados negativos se conhece,<br />

caracterizando-se em tradição que não dá mais conta dos desafios<br />

contemporâneos. Acredita no que nomeia como um aceitar-escutar<br />

em atitude de pausa, criando um espaço tempo em que os fatos que<br />

acontecem possam ser experienciados para transformar aquilo que<br />

acontece em algo significativo em nosso viver. Conclui o autor (20<strong>08</strong>,<br />

p.30-31), a partir do pensamento de Boaventura de Souza Santos,<br />

“[...] que o momento é de transição paradigmática, onde os mapas que<br />

até o momento nos orientavam e guiavam nossas viagens, perderam<br />

a confiabilidade e deixaram de ser-nos familiares”. Daí a necessidade,<br />

como dito, de construirmos novas metodologias de educação ambiental<br />

para que esta efetive seu papel transformador.<br />

Entende que sua proposta de criar novas metodologias a partir da<br />

referida ‘atitude de pausa’, com dever de permanente diálogo com a<br />

diversidade da sociedade, se presta a permitir que os educandos se<br />

sintam integrados à sociedade e não a serviço dela, como se percebe<br />

no modelo atual. Crê, pois, numa transformação, haja vista, segundo<br />

Paulo Freire, que “somos seres inacabados e, como tal, podemos<br />

aprender o tempo todo e em todos os lugares”.<br />

Tristão (2002) convalida esse pensamento de que não é possível<br />

buscar uma base conceitual única para lidar com as diferenças e<br />

antagonismos. Percebe a educação ambiental como multirreferencial<br />

na sua essência, visto que na pretensão de constituir um campo de<br />

conhecimento, noções e conceitos podem ser originários de várias<br />

áreas do saber. Ensina que a educação é auto-eco-organizativa,<br />

no sentido de que uma dimensão é atravessada por várias outras<br />

dimensões, assim como o sujeito é atravessado por várias identidades.<br />

130 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

Por isso, ainda que deva enfrentar desafios na contemporaneidade,<br />

de modo geral a educação ambiental deve ser entendida como prática<br />

transformadora, comprometida com a formação de cidadãos críticos<br />

e corresponsáveis por um desenvolvimento que respeite as mais<br />

diferentes formas de vida.<br />

Por tais razões, a educação ambiental pode ser identificada<br />

como um vetor de transformação social, porém essa transformação<br />

pode ecoar em vários destinos, revelando-se a necessidade de uma<br />

percepção renovada de mundo, uma forma integral de ler a realidade<br />

e de atuar sobre ela, suscitando novas metodologias que dialoguem<br />

entre os vários saberes, bem como inserindo o indivíduo como<br />

integrante da sociedade e corresponsável, é que poderá alcançar<br />

a sustentabilidade e a melhoria da qualidade de vida das pessoas,<br />

integradas ao planeta.<br />

EDUCAÇÃO AMBIENTAL E DI<strong>RE</strong>ITO DE INFORMAÇÃO<br />

A Lei nº 9.795, de 27-4-1999, que trata da Política Nacional de<br />

Educação Ambiental, regulamentada pelo Decreto nº 4281, 25-6-2002,<br />

divulgou conceito de contornos específicos da educação ambiental no<br />

seu art. 1º, como sendo,<br />

[...] os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade<br />

constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes<br />

e competências voltadas para a conservação do meio ambiente,<br />

bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida<br />

e sua sustentabilidade.<br />

Um dos processos de construção da educação ambiental é o<br />

direito de informação que, pelo acesso ao seu conteúdo, é capaz<br />

de qualificar o cidadão a atuar na sociedade. Segundo Milaré (200),<br />

a participação é um direito que pressupõe a informação e também<br />

um princípio (da participação comunitária) que expressa a ideia de<br />

cooperação entre Estado e sociedade pela participação dos diferentes<br />

grupos sociais na formulação e execução da política ambiental a fim<br />

de resolver os problemas do ambiente.<br />

O acesso à informação é uma garantia e se traduz no fornecimento<br />

dos meios efetivos de disponibilizar a informação que, somados à<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 131


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

capacidade individual e coletiva de usá-los, resulta no que chama de<br />

‘cidadania informacional’, o que seria uma espécie de ponto de partida<br />

para a conscientização do cidadão. Do contrário, não ter acesso à<br />

informação levaria a incompreensão.<br />

Porém a participação na vida social e política pode ser variável no<br />

tipo e intensidade dependendo da qualidade e quantidade de informação<br />

disponibilizada, refere Machado (2006), igualmente verificando estreita<br />

relação entre informação e participação. Neste aspecto, exalta a<br />

importante contribuição da sociedade civil que interfere no debate público<br />

e ajuda a balizar a opinião pública pela informação.<br />

A relevância do acesso à informação pode ser constatada em sua<br />

constitucionalização no rol das garantias fundamentais, disposta no<br />

inc. XIV, do art. 5º, da CF/88.<br />

À informação, podem-se atribuir diversos conceitos delimitados<br />

a partir de suas finalidades. Machado (2006, p. 25-27) diz que “[...] a<br />

informação é um registro do que existe ou do que está em processo de<br />

existir” em que os informes são identificados e organizados. Informar,<br />

por sua vez, segundo o autor, seria transmitir conhecimento, visto<br />

que, quando se informa, dá-se ciência ou notícia de um fato existente.<br />

Nesta transmissão do conhecimento, a informação vai ensejar da<br />

parte do informado a criação de novos saberes, por meio do estudo,<br />

da comparação ou da reflexão. Logo, entende que a transmissão da<br />

informação é condição sem a qual não há sociedade organizada como<br />

vida social continuada.<br />

Ao Estado cumpre a tarefa de sistematizar as informações e<br />

transformar em informação útil, difundindo-a para que alcance o<br />

maior número de pessoas e entidades. Objetivando sistematizar as<br />

informações necessárias para apoiar o processo de tomada de decisão<br />

na área ambiental em todos os níveis, foi criado o SINIMA – Sistema<br />

Nacional de Informações sobre Meio Ambiente –, como instrumento da<br />

Política Nacional do Meio Ambiente, e está previsto no inc. VII, do art.<br />

9º, da Lei nº 6938/81. Milaré (2007, p. 463-466) comenta que o SINIMA<br />

possui três aspectos fundamentais, a saber: 1 – desenvolvimento<br />

de ferramentas de acesso à informação baseadas em programas<br />

132 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

computacionais livres; 2 – sistematização de estatísticas e elaboração<br />

de indicadores ambientais; 3 – integração e interoperacionalidade de<br />

sistemas de informação.<br />

A informação se torna um instrumento de auxílio e detecção<br />

de problemas, busca de alternativas para a solução, avaliação e<br />

monitoramento das medidas adotadas e possibilita o controle social<br />

relacionado ao acesso a essas informações.<br />

O Estado também garantiu o acesso público aos dados e à<br />

informação que dispõe nos órgãos e entidades integrantes dos<br />

SISNAMA – Sistema Nacional do Meio Ambiente –, pela publicação<br />

da Lei nº 10.650, de 16 de abril de 2003 (vide art. 2º), podendo ser<br />

acessado por qualquer indivíduo, sem que se lhe exija comprovação<br />

de interesse sobre o que pretende acessar (vide § 1º, do art. 2º).<br />

Entretanto, Machado (2006, p.91, 209) infere que esta lei se tornou<br />

insuficiente diante da velocidade e da intensidade dos fatos poluidores<br />

dos ecossistemas, podendo comprometer a eficiência da informação<br />

ambiental, que deve se revelar com as características da tecnicidade,<br />

por sistemas informativos padronizados; da compreensibilidade,<br />

sendo imparcial, sem privilegiar pontos de vista, e da rapidez.<br />

Diante disso, Milaré (2009, p.472) conclui que a produção e a<br />

divulgação de informações ambientais, ou seja, versando sobre<br />

variáveis socioeconômicas, poluição, recursos naturais e o próprio<br />

ecossistema planetário constituem pressupostos lógicos e inafastáveis<br />

do desempenho eficiente da promoção da educação ambiental e da<br />

conscientização para a preservação do meio ambiente.<br />

No mesmo norte, a Lei nº 9.795/99, que dispõe sobre a educação<br />

ambiental e instituiu a política nacional de educação ambiental, determina<br />

que a educação ambiental deve ser desenvolvida por meio de linhas de<br />

atuação, interralacionadas, de desenvolvimento de estudos, pesquisas e<br />

experimentação voltadas para a difusão de conhecimentos, tecnologias e<br />

informação sobre a questão ambiental (art. 8º, inc. II, § 3º, inc. II).<br />

A toda evidência, a orientação serve para a persecução do objetivo<br />

da educação ambiental de garantir a democratização das informações<br />

ambientais (vide art. 5º, inc. II, da Lei nº 9.795/99).<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 133


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

Por tais razões, verifica-se que o Estado, de um lado, tem o dever<br />

de informar, e o cidadão, de outro lado, tem o direito à informação,<br />

servindo tais regulamentações para equalizar essa cooperação/<br />

dever/participação. Machado (2006) ressalva que a única maneira de<br />

exercer-se o direito à informação e de cumprir o dever de informar é<br />

fazê-lo livremente, o que denota responsabilidade ética. Contudo, essa<br />

liberdade só se completa com a liberdade de opinião e expressão que<br />

se efetiva com a liberdade de participação. Constata que a informação<br />

pode agir para libertar o ser humano e que a ausência dela pode<br />

provocar a subordinação e a opressão.<br />

Por outro lado, exceto pela informação disponibilizada pelos<br />

órgãos governamentais referidos acima, a qual o indivíduo precisa<br />

acessar, ou seja, buscá-la, de modo geral a informação precisa ser<br />

transmitida e, nesse processo, destacam-se os meios de comunicação<br />

de massa, partícipes na permanente disseminação de informações<br />

(vide art. 3º, inc. IV, da Lei nº 9.795/99) para conscientizar e ajudar a<br />

criar valores na sociedade.<br />

Machado (2006, p.196-194) refere que a conscientização é<br />

uma forma de instruir, porém não se processa só na intimidade das<br />

consciências. Os meios de comunicação social exercem inegável<br />

papel de formação de um sentido de responsabilidade pelo nosso<br />

destino coletivo. Provoca uma empatia em relação aos outros,<br />

desprovidos socialmente, aos animais ameaçados de extinção, às<br />

vítimas de ações humanas inescrupulosas, suscitando um sentimento<br />

de culpa ou tristeza. Assim, a difusão de imagens e informações pelos<br />

meios de comunicação ajudam a estimular e aprofundar um sentido de<br />

responsabilidade pelo mundo da natureza e pelo universo dos outros<br />

que não compartilham as mesmas condições de vida.<br />

Entretanto, há que se frisar que os meios de comunicação<br />

nem sempre cumprem a finalidade referida, porquanto, em vista do<br />

modelo atual de sociedade de consumo, percebe-se uma distorção<br />

na publicidade, que deveria ser instrumento de informação, passando<br />

a ser instrumento de persuasão, concorrência e até manipulação<br />

(MACHADO, 2006).<br />

134 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

Diante do exposto, subssume-se que a educação ambiental só é<br />

possível se garantido um direito fundamental anterior, que é o direito<br />

de informação, que se revela pelo direito ao acesso à informação<br />

ambiental, constituindo-se ambos em vetores da participação popular,<br />

corolário da democracia.<br />

CONCLUSÃO<br />

Da análise da concepção da sociedade atual por Boff e Lipowetky,<br />

constatou-se que vivemos uma nova civilização influenciada pela<br />

comunicação e imagem e informatização, formando uma nova<br />

concepção de vida, em que o valor das pessoas está na realização<br />

de si mesmas.<br />

Trata-se de um contexto social em que se verificam dois terços da<br />

humanidade apenas sobrevivendo. Significa que o acesso igualitário<br />

aos bens de consumo, postos como necessários à realização da<br />

pessoa, seja uma falácia, pois apenas os sonhos foram socializados<br />

pelos meios de comunicação.<br />

Poderia se admitir que a sociedade atual é a sociedade do<br />

hiperconsumismo, oriunda de uma construção cultural, social e<br />

educacional das pessoas como consumidores, onde o ato da compra<br />

é desculpabilizado, baseado num falso sentimento de abundância.<br />

Espécie de fase social em que a ordem econômica se ordena pelos<br />

princípios da redução e do efêmero, mobilizando a sociedade em<br />

torno de um cotidiano fácil e de conforto.<br />

A consequência deste contexto é que o planeta Terra e a natureza<br />

são reduzidos a um conjunto de recursos disponíveis à ganância do<br />

ser humano amparados na ideia de que somos seus proprietários.<br />

Em decorrência desses valores, especialmente o de que consumir<br />

reflete um anseio e identificação social, as desigualdades econômicas<br />

se aprofundam e o olhar para o outro se perde no individualismo<br />

descompromissado com as consequências de suas escolhas.<br />

Em razão de tal diagnóstico, o Estado obrigou-se a interferir na<br />

sociedade de consumo, especialmente pelo desequilíbrio havido na<br />

relação entre fornecedor e consumidor, na desigualdade cultural/<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 135


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

educacional entre as pessoas levando a restrição do direito ao acesso<br />

à informação sobre os produtos postos à venda por meio de técnicas<br />

de marketing e propaganda. Criou-se, então, o Código de Defesa do<br />

Consumidor como reação e como rumo ao exercício da cidadania.<br />

Pode-se dizer que, por esse caráter, o CDC se arvora como<br />

instrumento de educação ambiental. Porém não se evidencia como<br />

instrumento de reflexão, mas tão só de proteção numa relação de<br />

continuidade do ato de consumir.<br />

Mas a persecução do Estado não se limita à regulação das<br />

relações de consumo, haja vista a obrigação constitucional do Poder<br />

Público de promover o bem de todos, visando à dignidade da pessoa<br />

humana como um mínimo existencial.<br />

Insere-se neste dever estatal o de efetivar o direito de todos ao meio<br />

ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de<br />

vida (art. 225, da CF/88), que surge da necessidade de compatibilizar<br />

desenvolvimento econômico e social com a utilização racional dos<br />

recursos naturais, pensando na presente e nas futuras gerações.<br />

A propósito, para o exercício de qualquer direito, exige-se a<br />

consciência dele, fator que suscitou a criação de mecanismos, entre os<br />

quais, a educação ambiental, inserida na educação geral do País. Revela-<br />

-se a educação como um direito social, dever do Estado e da família,<br />

com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da<br />

pessoa e a seu preparo para o exercício da cidadania.<br />

A legislação é farta, desde a Constituição Federal à Lei de<br />

Diretrizes e Bases da Educação até a instituição da política nacional<br />

da educação ambiental.<br />

Importante ressaltar que as normas que tratam da educação<br />

ambiental estão na direção ambiental e não na educacional, logo,<br />

as normas estão distanciadas da prática administrativa usual da<br />

educação geral (LDB). Talvez neste ponto resida uma das dificuldades<br />

de implementação prática daquela, visto que se dissocia da tradicional<br />

educação formal já pela não implementação em currículo de ensino e<br />

sim implementada de maneira transversal.<br />

Com efeito, a par disso, num contexto de atingimento de metas de<br />

desenvolvimento econômico, se vê uma transformação social tímida,<br />

136 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

com concentração de renda, concentração territorial de infraestrutura<br />

urbana, favelização, deficiências na saúde pública, educação e<br />

segurança, enfim, percebe-se que o modelo de desenvolvimento não<br />

pode ser considerado sustentável senão como conceito e formulação<br />

de objetivos. É de se frisar que há retórica desenvolvimentista em<br />

discursos que só pregam o crescimento econômico.<br />

Igualmente não se verifica a participação ativa da sociedade<br />

nos debates dos seus destinos, revelando um distanciamento<br />

de identificação com a realidade e, pois, com a necessidade de<br />

transformação.<br />

Ainda, observou-se que sem confrontar a teoria com a prática<br />

não se desvela a realidade e não se cria consciência do outro na<br />

diversidade. O sentido de pertencimento à sociedade só se instalaria<br />

com a vinculação às práticas coletivas, cotidianas e comunitárias.<br />

A educação ambiental, por seus propósitos legais e pela situação<br />

de crise ambiental instalada, deveria induzir a uma reflexão se de fato<br />

estamos insatisfeitos com esse caminho percorrido e seus resultados.<br />

Se a resposta for positiva, de insatisfação, a ação e a prática deveriam<br />

estar voltadas para um pensar, inventar, criar ou recriar outro ou outros<br />

caminhos para se obterem resultados diferentes dos atuais.<br />

Daí decorre que a educação ambiental assume uma parcela<br />

de responsabilidade nesta edificação. O desvelamento da realidade<br />

socioambiental na forma proposta não está ocorrendo no ritmo<br />

exigido para a consciência da necessidade de um desenvolvimento<br />

sustentável ou em uma nova proposta de desenvolvimento, resultando<br />

na mantença da situação de sociedade de risco contemporânea.<br />

Evidentemente que o acesso à informação passa a ter papel<br />

fundamental para balizamento da opinião pública e surge por parte do<br />

Poder Público e da sociedade organizada, tratando-se de elemento<br />

necessário à persecução dos objetivos da educação ambiental.<br />

Desse modo, a educação ambiental se relacionaria com a<br />

cidadania, na qual cada cidadão pode ser sujeito de direitos e deveres,<br />

convertendo-se em ator responsável na defesa da qualidade de vida<br />

da coletividade.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 137


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

Por todo o exposto, conclui-se, sem a pretensão de esgotar o<br />

tema, que a educação ambiental não está cumprindo seu objetivo na<br />

sociedade atual, na forma e modelo em que está sendo realizada,<br />

senão em pequenas células sociais. Apropriando-se do pensamento<br />

de Henrique Leff, há que se direcionar a uma nova racionalidade<br />

ambiental capaz de subverter a ordem imperante entre as lógicas<br />

de vida e o destino das sociedades. Mas, não obstante a riqueza de<br />

metodologias verificadas como possíveis de alcançar este objetivo,<br />

suas implementações práticas requerem o esforço de toda sociedade,<br />

dos educadores e do Estado.<br />

Repise-se, porém, que o esforço referido não se verifica pela<br />

aparente falta de apropriação, pela sociedade, dos valores inerentes<br />

ao direito ambiental como forma de prover a si mesma dos elementos<br />

essenciais à sadia qualidade de vida, dissociando a sustentabilidade,<br />

nas dimensões ambiental, econômica e social, dos processos de<br />

desenvolvimento.<br />

Parece que a curto prazo os seres humanos terão que conviver<br />

com o estado de crise ambiental permanente no rumo do esgotamento,<br />

talvez sem volta aos padrões de equilíbrio do planeta e sociedade.<br />

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(FOBSIC) – Diputación de Barcelona, Consellería de Innovación<br />

e Industria de La Xunta de Galícia, Ayuntamiento de Cornellà de<br />

Llobregat e Secretaria de Telecomunicacions i Societat de la Informació<br />

da Generalitat de Catalunya, novembro-dezembro de 2006. Material<br />

da 4ª aula da Disciplina Direito Ambiental Constitucional, ministrada no<br />

Curso de Pós-graduação lato sensu televirtual em Direito Ambiental e<br />

Urbanístico – UNIDERP / <strong>RE</strong>DE LFG.<br />

RUSCHEINSKY, Aloísio . Educação ambiental – Abordagens<br />

Múltiplas. Porto Alegre: Artmed, 2002.<br />

______. As rimas da ecopedagogia: uma perspectiva ambiental. In:<br />

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Abordagens múltiplas. Porto Alegre: Artmed, 2002.<br />

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In: RUCHEINSKY, Aloísio e colaboradores. Educação ambiental<br />

abordagens múltiplas. Porto Alegre: Artmed, 2002.<br />

SANTOS, Fernando Ferreira. Princípio constitucional da dignidade<br />

da pessoa humana. São Paulo: Celso Bastos, 1999.<br />

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MERCADANTES, Aramunta; MAGALHÃES, José Carlos de. (Orgs.).<br />

Reflexões sobre os 60 anos da ONU. Ijuí: Unijuí, 2005.<br />

SORJ, Bernardo. A democracia inesperada – Cidadania, direitos<br />

humanos e desigualdade social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,<br />

2004.<br />

STUMM, Raquel Denize. Princípio da proporcionalidade no direito<br />

constitucional brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 143


Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />

TRISTÃO, Martha. As dimensões e os desafios da educação<br />

ambiental na sociedade do conhecimento. In: RUCHEINSKY, Aloísio<br />

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Alegre: Artmed, 2002.<br />

WALTER, Alice. Os valores da fast food e os valores da slow food.<br />

In: CAPRA, Fritjof, et.al. Alfabetização ecológica – A educação das<br />

crianças para um mundo sustentável. Tradução de Carmem Fischer.<br />

São Paulo: Cultrix, 2006.<br />

Recebido: 14-7-2014<br />

Aprovado: 20-9-2014<br />

144 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


Resumo<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />

DI<strong>RE</strong>ITO<br />

A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O<br />

DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />

The importance of bioethics to right: a reflection required<br />

Isabel Cristina Brettas Duarte 22<br />

O progresso da ciência tem causado mudanças na sociedade mundial e enseja relações jurídicas cada vez<br />

mais complexas, além de novos questionamentos, para os quais a legislação vigente não tem uma resposta<br />

exata e imediata. Vive-se uma crise de paradigmas na dogmática jurídica mistificada na neutralidade da<br />

ciência, além do descortinar de novas reflexões, assim como o surgimento de uma nova juridicidade,<br />

fundada nos princípios bioéticos, em especial na dignidade da pessoa humana e na responsabilidade, nos<br />

quais é balizada a utilização das novas biotecnologias.<br />

Palavras-chave: Direito. Bioética. Novas realidades. Novos olhares.<br />

Abstract<br />

The progress of science has caused changes in global society and in legal relations more complex, and new<br />

questions, to which the legislation not have an immediate and accurate response. We live in a paradigm<br />

crisis in legal dogmatic mystified the neutrality of science, as well as uncover new ideas as well as the<br />

emergence of a new juridical founded on the principles of bioethics, especially in human dignity and<br />

responsibility, in which is marked out the use of new biotechnologies.<br />

Keywords: Right. Bioethics. New realities. New looks.<br />

Sumário:<br />

1. Considerações iniciais; 2. Bioética: novas realidades, novos olhares; 3. Direito: novas realidades, novos<br />

olhares; 4. Considerações finais; 5. Referências.<br />

CONSIDERAÇÕES INICIAIS<br />

Os debates bioéticos são relativamente recentes na seara do<br />

Direito, tanto que se pode afirmar que eles fazem parte de uma moderna<br />

cultura jurídica, surgida a partir das novas exigências da sociedade em<br />

termos de novas interpretações e novas práticas jurídico-processuais.<br />

Nesse sentido, é importante lembrar o teor do famoso ditado romano,<br />

segundo o qual o Direito é feito por e para pessoas; pessoas não em<br />

22 Mestre em Direito, Mestre em Letras e Licenciada em Letras-Espanhol, todos pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai<br />

e das Missões (URI). Advogada da Procuradoria-Geral do Município de Santo Ângelo. Professora do curso de graduação em Direito<br />

do Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo (CNEC/IESA). E-mail: isabelcristinabd@yahoo.com.br.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 145-160


Isabel Cristina Brettas Duarte<br />

sua dimensão abstrata, mas em sua dimensão concreta, de acordo<br />

com suas especificidades, com a diversidade de características e<br />

papéis sociais que desempenham: internauta, velho, adolescente,<br />

enfermo, índio, criança, etc. Isso porque “os novos direitos materializam<br />

exigências permanentes da própria sociedade diante das condições<br />

emergentes da vida e das crescentes prioridades determinadas<br />

socialmente” (WOLKER, 2003, p. 3).<br />

O Direito é um fenômeno do mundo da cultura, a qual está<br />

imbricada na sociedade, demonstrando que a discussão ultrapassa<br />

as lindes jurídicas, penetrando nas diferentes formas de culturas e<br />

sociedades que coexistem na contemporaneidade – numa situação<br />

multicultural por excelência. E do reconhecimento de que a ciência<br />

também é falha decorre a insegurança – pode-se dizer que hostilizada<br />

na seara jurídica –, que traz o medo e a desconfiança ao novo. Nesse<br />

sentido, lembra ao Direito – em sua arraigada busca pela segurança<br />

jurídica – que a insegurança, a provisoriedade e a relatividade fazem<br />

parte da nossa condição humana.<br />

Apesar de e justamente por ser um tema polêmico sobre o qual<br />

não há respostas objetivas e imediatas, o importante e gratificante é<br />

trilhar o caminho, descobrindo que a cada passo dado, haverá muitos<br />

outros passos. Por isso, o papel do Direito é trilhar esse caminho<br />

juntamente com outras áreas do conhecimento, de forma a estar num<br />

permanente processo de discussão e reflexão. O Direito emerge das<br />

relações sociais, seu desenvolvimento através dos tempos obedeceu<br />

inexoravelmente aos vetores culturais, que trazem implicações<br />

jurídicas. Assim, se mudam os tempos, muda o Direito, que necessita<br />

amparar eficazmente as novas demandas que lhe são colocadas.<br />

Nesse contexto, partimos da premissa de que é preciso pensar<br />

a mudança de paradigmas 23 trazida pela ciência, situação esta<br />

vivenciada na sociedade multicultural. Afinal, tais rupturas não só têm<br />

o condão de transformar conceitos, mas também de transformar a vida<br />

das pessoas, ensejando, também, transformações no conhecimento<br />

23 Segundo Morin, “o paradigma é aquilo que está no princípio da construção das teorias, é o núcleo obscuro que orienta discursos<br />

teóricos neste ou naquele sentido. Existem paradigmas que dominam o conhecimento científico numa certa época e as grandes<br />

mudanças de uma revolução científica acontecem quando um paradigma cede seu lugar a um novo paradigma, isto é, há uma<br />

ruptura das concepções do mundo de uma teoria para outra” (MORIN, 2000, p. 45).<br />

146 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />

jurídico e, principalmente, o anseio por novos conhecimentos que<br />

precisam se integrar ao arcabouço jurídico para que o Direito possa<br />

dar respostas satisfatórias e coerentes às novas questões que lhe são<br />

postas.<br />

O estudo proposto direciona-se em busca de uma prática jurídica<br />

reflexiva voltada às necessidades, aos conflitos e aos problemas da<br />

vida humana em seus aspectos social, cultural, político e filosófico,<br />

pois a complexidade da vida humana apresenta novos desafios ao<br />

Direito. Ela exige reflexão, novas posturas, cuidados específicos e,<br />

principalmente, “instrumentos jurídicos adequados para viabilizar a<br />

materialização dos novos direitos e garantir sua tutela jurisdicional, [...]<br />

por meio da construção de um novo paradigma para a teoria jurídica,<br />

capaz de contemplar o constante e o crescente aparecimento histórico<br />

dos novos direitos” (WOLKER, 2003, p. 4).<br />

BIOÉTICA: NOVAS <strong>RE</strong>ALIDADES, NOVOS OLHA<strong>RE</strong>S<br />

A revolução biotecnológica ocorrida de algumas décadas para<br />

cá trouxe a estranha e paradoxal sensação de fascínio e temor e a<br />

consequente pergunta: para onde vamos? Para responder a esta<br />

pergunta, surge a Bioética como uma “ciência que se propõe a estabelecer<br />

uma ponte entre as mais diversas tecnologias. Encontrando-se no ponto<br />

de convergência de uma multiplicidade de saberes, a Bioética é uma das<br />

esperanças de que, em meio às possibilidades oriundas de tamanho<br />

saber e de tamanho poder, acabe triunfando o bom senso” 24 .<br />

Hoje, postula-se uma mudança de paradigmas, pois não mais se<br />

admite o dualismo cartesiano como modelo científico, embora haja<br />

o entendimento de que o modelo hegemônico de métodos científico<br />

continua sendo o cartesiano. Nesse sentido, interessante trazer o<br />

que Capra mencionou a respeito do modelo cartesiano: “sua rigorosa<br />

24 Nesse bom senso, o questionamento passa pela reflexão: “ser humano é ousar, sim, avançar, progredir, crescer; não obstante,<br />

para onde e para quê? Para ser feliz [...] Tecnologia para ser feliz? Comumente, quem é feliz vive com amor ou sabe amar e lutar.<br />

Por conseguinte, progresso verdadeiro, é amar, amizade, solidariedade, vida sem estresse, ser humano respeitado, aceitação do<br />

outro, medicina promotora da saúde. Como nossas instituições sociais têm priorizado tais fins humanos? Que impacto tem em nossa<br />

consciência a precariedade dada nas doenças da pobreza, e mais, das grandes doenças causadas pela riqueza, ou acumulação<br />

dela? Quais os direitos das gerações futuras? Somos máquinas nas mãos de médicos-mecânicos ou seres afetivo-simbólicos<br />

culturais? Somos passíveis de melhoramento genético ou é melhor investir mais no progresso humano-pessoal?” (PELIZZOLI, 2007,<br />

p. 11).<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 147


Isabel Cristina Brettas Duarte<br />

divisão entre corpo e mente levou os médicos a se concentrarem<br />

na máquina corporal e a negligenciarem os aspectos psicológicos,<br />

sociais e ambientais da doença” 25 , para então tratar da nova realidade,<br />

que exige uma concepção sistêmica da vida, baseada na consciência<br />

do estado de inter-relação e interdependência essencial de todos os<br />

fenômenos – físicos, biológicos, psicológicos, sociais e culturais, visão<br />

esta que transcende as atuais fronteiras disciplinares e conceituais.<br />

A humanidade como um todo está contextualizada num ambiente<br />

de diferenças e contradições, tendo que conviver com diversos pontos<br />

de vista, muitas vezes incompatíveis entre si. E a Bioética, por seu<br />

caráter multidisciplinar, tem muitas contribuições a dar, justamente<br />

porque abrange diversas áreas do conhecimento científico, como<br />

a Biologia, a Medicina, a Sociologia, a Psicologia, a Filosofia, a<br />

Antropologia, o Direito, entre outros.<br />

Certamente, o Direito, que não pode se furtar aos desafios<br />

levantados pela ciência: deve estar imiscuído nessa interface entre<br />

as ciências. Para tanto, é necessário abrir-se a novos campos<br />

conceituais, terminologias até então estranhas ao seu arcabouço, o<br />

que de certa forma explica o desinteresse com que muitas vezes a<br />

Bioética é tratada no âmbito jurídico 26 .<br />

A importância da Bioética quando se trata de questões envolvendo a<br />

biotecnologia reside em evitar que o homem avance sobre a humanidade,<br />

manipulando a natureza humana de maneira a por em risco a vida<br />

humana, pois deve ser deixada de lado a “doutrina ingênua segundo a<br />

qual toda ciência é necessariamente verdadeira e todo conhecimento<br />

verdadeiro é necessariamente científico” (ZIMAN, 1996, p. 12-13). Daí a<br />

comparação de Hernández com uma lendária história mitológica:<br />

25 Segundo Capra, “o modelo biomédico está firmemente assente no pensamento cartesiano. Descartes introduziu a rigorosa<br />

separação entre mente e o corpo, a partir da ideia de que corpo é uma máquina que pode ser completamente entendida em<br />

termos da organização e do funcionamento de suas peças. Uma pessoa saudável seria como um relógio bem construído e em<br />

perfeitas condições mecânicas; uma pessoa doente, um relógio cujas peças não estão funcionando apropriadamente” (p. 132), e<br />

que “a divisão cartesiana influenciou a prática da assistência à saúde em vários e importantes aspectos: em primeiro lugar, dividiu<br />

a profissão em dois campos distintos com muito pouca comunicação entre si. Os médicos ocupam-se do tratamento do corpo, os<br />

psiquiatras e psicólogos, da cura da mente” (CAPRA, 1982, p. 134).<br />

26 Nesse sentido, “para que seja possível a discussão jurídico-filosófica sobre os avanços da manipulação genética, faz-se<br />

imprescindível que os pesquisadores das ciências humanas tomem conhecimento de aspectos técnicos da reprodução, estudando<br />

conceitos da Biologia bem como da Medicina, que propiciem um alicerce para seus estudos e suas futuras conclusões. Além de<br />

conhecer os aspectos técnicos da manipulação genética, o filósofo bioético tem que se manter atento às investigações e seus<br />

resultados” (PELIZZOLI, 2007, p. 90).<br />

148 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />

A engenharia genética abriu a caixa de Pandora de nossos medos<br />

ancestrais. De repente, algumas das nossas seguranças mais<br />

íntimas tornaram-se inseguras, e fomos forçados a desenvolver<br />

respostas a perguntas complexas para as quais não estávamos<br />

preparados. Na confusão, buscamos referências claras e fomos<br />

forçados a legislar rapidamente e, por vezes desordenadamente,<br />

sobre questões duvidosas e de uma considerável dificuldade<br />

conceitual e tecnológica (HERNÁNDEZ, 2000, p. 12, Tradução<br />

nossa).<br />

A Bioética é justamente uma das facetas da ética, sendo que uma<br />

das suas principais atribuições é conter e impor limites, utilizando-se dos<br />

ensinamentos e princípios bioéticos, já que este ramo da ética filosófica<br />

surgiu recentemente para analisar teoricamente os valores, normas<br />

e princípios que ordenam os avanços científicos e tecnológicos. A<br />

magnitude alcançada pela Bioética na atualidade é revelada justamente<br />

pela diversidade de tópicos que florescem e evoluem desde a sua<br />

gênese, descortinando o rol das complexas preocupações de ordem<br />

ética:<br />

As condições de origem da Bioética nos revelam um forte<br />

sentimento de defesa e salvaguarda do homem, em sua<br />

singularidade, individualidade e na universalidade de sua<br />

humanidade. Isto ocorreu juntamente com uma inequívoca<br />

afirmação do respeito à condição humana e do valor incondicional<br />

do próprio homem. Há uma orientação aceita no sentido de<br />

impor limites ao vasto campo da investigação científica aplicada<br />

ao ser humano, na multiplicidade de seus modos de ser e de<br />

existir. A generalização das inquietudes sociais deve ser limitada<br />

a um plano da normatividade e de reflexão enquanto exigência<br />

de fundamentação do comportamento. Não basta, porém,<br />

estabelecer como se deve atuar (formular normas), mas, também,<br />

por que se deve agir dessa maneira (determinação dos princípios<br />

bioéticos) (SANTOS, 1998, p. 37).<br />

O avanço da biotecnologia demonstra o surgimento de complexas<br />

e novas relações sociais e jurídicas, que envolvem valores religiosos,<br />

morais, culturais, políticos, econômicos. Diante da complexidade<br />

dessas relações, a Bioética não pode limitar-se à abstração teórica, já<br />

que é constantemente chamada a dar uma solução ou uma resposta<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 149


Isabel Cristina Brettas Duarte<br />

aos questionamentos práticos, uma justificativa racional e legítima<br />

dentro de um equilíbrio com o Direito.<br />

O termo “Bioética” foi empregado pela primeira vez por Potter<br />

num sentido ecológico, considerando-a a ciência da sobrevivência,<br />

com objetivo moral-pedagógico. Em sua concepção alargada,<br />

conforme Barreto, passou a designar os problemas éticos gerados<br />

pelos avanços nas ciências biológicas e médicas, como algo de<br />

grande problemática, envolvendo o ser humano no que diz respeito à<br />

sua dignidade e à crescente interferência do homem no processo de<br />

nascimento e morte. Então, “essa possibilidade de controle da vida,<br />

despertou na humanidade a necessidade de estabelecer limites para<br />

o atuar da ciência” (2000, p. 43).<br />

Porém, no início dos anos 1990, começaram a surgir críticas<br />

ao principialismo e à universalidade dos seus princípios a partir,<br />

principalmente, da necessidade de que fossem respeitados os<br />

diferentes contextos sociais e culturais existentes em um mundo<br />

globalizado. Assim, no final do século XX, a Bioética passou a<br />

expandir seu campo de estudo e ação, incluindo temas como o dos<br />

direitos humanos e da cidadania, a preservação da biodiversidade, a<br />

finitude dos recursos naturais planetários, o equilíbrio do ecossistema,<br />

os alimentos transgênicos, o racismo, outras formas de discriminação,<br />

etc.<br />

Segundo Volnei Garrafa, até 1998, a epistemologia da Bioética<br />

se restringia a caminhos que apontavam para temas e problemas/<br />

conflitos preferencialmente individuais em relação aos coletivos: “o<br />

eu deixou o nós em posição secundária, pois a teoria principialista<br />

se mostrava impotente para desvendar, entender, propor soluções e<br />

intervir nas gritantes questões coletivas [...]” (GARRAFA, 2006, p. 12-<br />

13).<br />

A Bioética, desde o princípio, impôs-se como uma reação à<br />

realidade da pesquisa científica no campo da vida humana, que estava<br />

mergulhada em um “vazio ético”, já que se negava a existência de<br />

qualquer valor ético universal, surgindo como uma limitação a essas<br />

pesquisas. A discussão Bioética foi suscitada quando se percebeu que<br />

150 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />

o rumo dos acontecimentos, principalmente envolvendo a pesquisa<br />

em seres vivos, poderia levar a conseqüências graves e indesejadas<br />

pela falta de conscientização da responsabilidade ética, situação esta<br />

que exige o compasso entre a ciência e o Direito:<br />

A Bioética tem estimulado o Direito a se mover no compasso<br />

das ciências biológicas e da tecnologia, não com o atraso que<br />

o caracterizava até recentemente, abordando a interpretação<br />

jurídica das consequências de suas aplicações. Em instituições e<br />

regras internacionais em muitos países, as normas jurídicas e de<br />

direito têm acompanhado a comunidade científica, a atualização,<br />

sincronizando-se com os feitos científicos e tecnológicos quando<br />

estes se produzem e reclamam sua atenção, no futuro, a<br />

velocidade das descobertas científicas e avanços tecnológicos<br />

podem tornar difícil manter esse ritmo (PALACIOS, 2000, p. 17)<br />

(Tradução nossa).<br />

Assim, a Bioética é uma disciplina que amalgama conhecimentos<br />

teóricos de ética, se submete aos rigores do debate analítico, abre-se<br />

para o conhecimento empírico e o incorpora à medida que o requer<br />

para avaliar as realidades, as projeções, os dilemas e as situações<br />

problemáticas que ocorrem no âmbito da reflexão. O discurso da<br />

Bioética se submete a critérios de racionalidade, razoabilidade ou<br />

plausibilidade, prudência, coerência interna dos pronunciamentos e<br />

coerência externa do que é asseverado em relação aos antecedentes<br />

históricos e à realidade social contemporânea (GARRAFA, 2006, p.<br />

35).<br />

E como o ser humano é um ser cultural, que se socializa, acultura-<br />

-se, profissionaliza-se, politiza-se, enfim, estrutura-se dinamicamente<br />

em contato com o meio em que vive, então se constrói a partir do<br />

contexto em que está inserido, de forma que é de suma importância<br />

considerar a temporalidade da Bioética ao tratar dos diferentes temas<br />

que ela enfrenta em diferentes épocas. Afinal, os valores não se<br />

encontram nos genes, nem são produtos espontâneos da genética,<br />

mas são culturais, frutos de uma longa experiência e tradição humana,<br />

pois<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 151


Isabel Cristina Brettas Duarte<br />

o processo evolutivo não nos deu de saúde um código de valores<br />

éticos, mas deu-nos as condições e a capacidade de adquiri-los. [...]<br />

A ciência nunca descobrirá ou isolará um valor ético no laboratório:<br />

este pode nos revelar tudo o que somos do ponto de vista biofísico e<br />

bioquímico, mas nunca terá condições científicas para revelar o que<br />

seja uma pessoa, um valor, pois estes conceitos fundamentalmente<br />

foram construídos lentamente pela tradição filosófica, ética,<br />

religiosa, jurídica... (PALÁCIOS, 2001, p. 52).<br />

Sendo a ética a ordenação destinada a conduzir o homem de<br />

acordo com uma hierarquia de bens, uma tábua de valores, um sistema<br />

axiológico de referência, tornando-o cada vez mais homem, cada vez<br />

mais aquele ser que a natureza dotou de consciência e espiritualidade,<br />

então a reflexão Bioética nada mais é do que um antigo esforço em<br />

reconhecer o valor ético da vida humana e de agir conforme esse valor.<br />

DI<strong>RE</strong>ITO: NOVAS <strong>RE</strong>ALIDADES, NOVOS OLHA<strong>RE</strong>S<br />

O Direito emerge das relações sociais, seu desenvolvimento através<br />

dos tempos obedeceu inexoravelmente aos vetores culturais, que trazem<br />

implicações jurídicas. Assim, se mudam os tempos, mudam as vontades –<br />

e muda o Direito, que necessita amparar eficazmente as novas demandas<br />

que lhe são colocadas.<br />

Assim, entendemos que é na Bioética que a experiência ética adquire<br />

essa angústia existencial profunda. Já dizia o poeta que o caminho se faz<br />

caminhando 27 . Porém, talvez o caminho seja à luz de velas. Talvez leve a<br />

um oásis, ou a um deserto. Talvez. Movemo-nos no campo das incertezas e<br />

das complexidades, as quais avultam a importância da responsabilidade a<br />

conduzir a conduta humana. Mas, como afirma Boff, o certo é que há uma<br />

crise ética que traz perplexidade e confusão, e que estamos entrando num<br />

novo patamar de consciência (2003, p. 13).<br />

27 Dizia o poeta espanhol andaluz Antônio Machado, em “Provérbios y Cantares XXIX” (In: Poesías Completas. Editorial ESPASA<br />

CALPE: Madrid, 1973, p. 158):<br />

Caminante, son tus huellas<br />

Caminhante tuas pegadas<br />

el camino y nada más;<br />

São caminho, nada mais<br />

Caminante, no hay camino,<br />

Caminhante não há caminho<br />

se hace camino al andar.<br />

Se faz caminho ao andar<br />

Al andar se hace el camino, Ao andar se faz caminho<br />

y al volver la vista atrás<br />

E ao voltar a vista atrás<br />

se ve la senda que nunca<br />

Se vê a estrada que nunca<br />

se ha de volver a pisar.<br />

Se vai voltar a pisar<br />

Caminante no hay camino<br />

Caminhante não há caminho<br />

sino estelas en el mar.<br />

Só estrelas sobre o mar (tradução nossa).<br />

152 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />

Na medida em que as potencialidades tecnológicas, que tanto<br />

podem ser destruidoras quanto transformadoras, podem provocar<br />

consequências imprevisíveis no futuro, verifica-se o temor expressado<br />

por Morin: “pressentimos que a engenharia genética tanto pode<br />

industrializar a vida como biologizar a indústria” (2000, p. 18). Essa<br />

ideia pode parecer extremista, mas ao analisar as vicissitudes da<br />

história humana, percebe-se que nunca houve nada que pudesse<br />

representar um caminho tão dicotômico como a manipulação genética,<br />

que causa fascinação e perplexidade, aliados ao sentimento de medo<br />

e insegurança (SANTOS, 1998).<br />

Porém, a principal preocupação hoje não é julgar a ciência, mas<br />

sim de chamar atenção sobre a sua ambivalência, bem como sobre<br />

os novos contornos que se desenham na manipulação genética, cujos<br />

questionamentos eram até pouco tempo inimagináveis. Vê-se, pois,<br />

que o fenômeno social é complexo e assim deve ser compreendido e<br />

tratado, também pelos profissionais do Direito.<br />

Dessa forma, um dos aspectos da complexidade especialmente<br />

analisados por Morin diz respeito à ciência, a qual ocupa especial<br />

atenção do Direito em uma disciplina que se encontra no rol dos<br />

“novos” direitos – o Biodireito. Referida disciplina busca unir à cultura<br />

jurídica, à letra fria da lei, a cultura humanista e a cultura científica,<br />

num elo de consciência e responsabilidade, pois<br />

a cultura humanista é uma cultura genérica que, via filosofia, afronta<br />

as grandes interrogações humanas, estimula a reflexão sobre o<br />

saber e favorece a integração pessoal dos conhecimentos. A cultura<br />

científica, de outra natureza, separa os campos do conhecimento; ela<br />

suscita admiráveis descobertas, teorias geniais, mas não a reflexão<br />

sobre o destino humano e sobre o vir-a-ser dela própria enquanto<br />

ciência. [...] A cultura científica, privada da reflexividade sobre os<br />

problemas gerais e globais, se torna incapaz de pensar a si própria e<br />

de pensar os problemas sociais e humanos que ela coloca 28 .<br />

A teoria jurídica formalista, instrumental e individualista vem<br />

sendo constantemente questionada, de forma que “os impasses e<br />

28 MORIN; LE MOIGNE, 2000, p. 9. Há uma ênfase no sentido de que a cultura científica é de outra natureza (em relação à cultura<br />

humanística) “porque se fundamenta cada vez mais sobre uma enorme quantidade de informações e de conhecimentos que nenhum<br />

espírito humano saberia nem poderia armazenar” (p. 30).<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 153


Isabel Cristina Brettas Duarte<br />

as insuficiências do atual paradigma da ciência jurídica tradicional<br />

entreabrem, lenta e constantemente, o horizonte para as mudanças e a<br />

construção de novos paradigmas, direcionados para uma perspectiva<br />

pluralista, flexível e interdisciplinar” (WOLKER, 2003, p. 3). 29 Essa<br />

preocupação aflorou em razão da existência de juristas com interesses<br />

filosóficos e filósofos com interesses jurídicos, sendo que essa junção<br />

de saberes muito tem agregado ao Direito, na medida em que<br />

o paradigma tradicional da ciência jurídica, da teoria do Direito<br />

(na esfera pública e privada) e do Direito Processual convencional<br />

vem sendo desafiado a cada dia em seus conceitos, institutos e<br />

procedimentos. Diante das profundas e aceleradas transformações<br />

por que passam as formas de vida e suas modalidades complexas<br />

de saber (genética, biotecnologia, biodiversidade, realidade<br />

virtual, etc), o Direito não consegue oferecer soluções corretas e<br />

compatíveis com os novos fenômenos, o Direito tem-se mostrado<br />

inerte, com seu equipamento conceitual defasado em relação<br />

aos avanços sociais impostos pelas ciências relacionadas com<br />

a Bioética, e com sua visão centrada preponderantemente na<br />

norma (2003, p. 21).<br />

Assim, o Direito precisa servir-se dos conhecimentos da Filosofia,<br />

da Antropologia, da Medicina, da Biologia, da Sociologia, enfim, das<br />

mais variadas áreas do conhecimento, pois todas elas lhe dizem<br />

respeito e se interligam, de uma ou de outra forma. Essa inter/<br />

multidisciplinariedade entre o Direito e as outras áreas do conhecimento<br />

é importante, na medida em que não se pode negar que há um conflito<br />

entre o imperativo do conhecimento e os imperativos éticos, que são<br />

objeto das discussões bioéticas.<br />

Daí Morin ter afirmado que a ciência é complexa porque é<br />

inseparável de seu contexto histórico e social, e que a ciência não é<br />

científica, pois sua realidade é multidimensional, ou seja, os efeitos<br />

da ciência envolvem riscos e não são simples nem para o melhor,<br />

nem para o pior; são profundamente ambivalentes. Isso tudo porque<br />

“a ciência é, intrínseca, histórica, sociológica e eticamente, complexa.<br />

29 Entende o autor que essa nova realidade está indissociavelmente atrelada às transformações tecno-científicas, às práticas de vida<br />

diferenciadas, à complexidade crescente de bens valorados e de necessidades básicas, à emergência de atores sociais, portadoras<br />

de novas subjetividades, individuais e coletivas.<br />

154 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />

A ciência tem necessidade não apenas de um pensamento apto a<br />

considerar a complexidade do real, mas desse mesmo pensamento<br />

para considerar sua própria complexidade e a complexidade das<br />

questões que ela levanta para a humanidade” (2000, p. 9).<br />

É altamente provável que a ciência seja a mais complexa, poderosa<br />

e influente das instituições contemporâneas. Desde seu nascimento, há<br />

muitos séculos, a ciência nada faz, senão se sofisticar, se multiplicar e<br />

estabelecer parâmetros de existência e validade em todas as dimensões<br />

da vida: “o ser humano acabou por fazer da ciência a sua verdade<br />

racional, tendendo, especialmente na cultura ocidental, a fazer dela o seu<br />

ídolo ao qual tudo o mais – especialmente outras formas de racionalidade<br />

– é sacrificado” (PELIZZOLI, 2007, p. 114).<br />

Porém, essa racionalidade tem uma faceta objetiva e outra<br />

subjetiva, pois as teorias científicas são construções do espírito, não<br />

são reflexos do real, por mais que tentem aplicá-lo: são traduções<br />

do real numa linguagem que é a nossa, ou seja, aquela de uma<br />

dada cultura, num dado tempo. De um lado, as teorias científicas<br />

são produzidas pelo espírito humano; portanto, elas são subjetivas.<br />

De outro, estão fundamentadas em dados verificáveis e, portanto,<br />

objetivos (MORIN; LE MOIGNE, 2000, p. 38).<br />

Segundo Morin, os cientistas formados segundo os modelos<br />

clássicos do pensamento se afastam dessa complexidade, mais<br />

precisamente no que se refere ao dogma clássico da separação entre<br />

ciência e filosofia, e não conseguem entender que<br />

todas as ciências avançadas deste século encontraram e<br />

reascenderam as questões filosóficas fundamentais: o que é o<br />

mundo? a natureza? a vida? o homem? a realidade? Os maiores<br />

cientistas desde Einsten, Boher e Heisenberg transformaram-se<br />

em filósofos selvagens. É de se esperar que as transformações que<br />

começaram a arruinar a concepção clássica de ciência vão continuar<br />

em verdadeira metamorfose. [...] Não haverá transformação sem<br />

reforma do pensamento, ou seja, revolução nas estruturas do próprio<br />

pensamento. O pensamento deve se tornar complexo 30 .<br />

30 MORIN, 2000, p. 9-10. Para o autor, “o progresso da ciência é ideia que comporta em si incerteza, conflito e jogo. Não se pode<br />

conceber absoluta ou alternativamente progresso e regressão, conhecimento e ignorância. E para que haja novo e decisivo<br />

progresso no conhecimento, temos de superar esse tipo de alternativa e conceber em complexidade as noções de progresso e de<br />

conhecimento” (p. 105).<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 155


Isabel Cristina Brettas Duarte<br />

O desaparecimento das sociedades como sistemas integrados e<br />

portadores de um sentido geral, definido ao mesmo tempo em termos<br />

de produção, de significação e de interpretação, coloca os seres<br />

humanos diante de um mundo objetivo, em que há uma “crise dos<br />

indivíduos sobrecarregados de problemas para cuja solução já não<br />

encontram nenhuma ajuda nas instituições nem civis nem jurídicas<br />

nem religiosas, redundando na inquietude, e mesmo angústia,<br />

que nascem da perda de nossos pontos de referência habituais”<br />

(TOURAINE, 2006, p. 60).<br />

É sabido que uma das facetas da modernidade é a ciência, e como<br />

afirmou Beck, duas guerras mundiais, a invenção de armas destrutivas,<br />

a crise ecológica global e outros desenvolvimentos do presente<br />

século poderiam esfriar o ardor até dos mais otimistas defensores<br />

do progresso por meio da investigação científica desenfreada. Mas<br />

“a ciência pode – e deve – ser encarada como problemática nos<br />

termos de suas premissas” (BECK; GIDDENS; LASH, 1997, p. 109).<br />

Dessa forma, uma das facetas da modernização – e, portanto, da<br />

globalização e também do multiculturalismo – é o desenvolvimento<br />

científico e tecnológico, que aumenta a chamada complexidade.<br />

Segundo Morin, há que fazer um progresso da ideia de progresso,<br />

o qual deve deixar de ser noção linear, simples, segura e irreversível<br />

para tornar-se complexa e problemática: “a noção de progresso deve<br />

comportar auto-crítica e reflexividade” (2000, p. 98). O dinamismo<br />

desse progresso do conhecimento científico sustenta uma curiosidade<br />

inesgotável, pois um conhecimento, uma descoberta, a resolução de<br />

um enigma faz surgir novos enigmas, novos mistérios: “a aventura do<br />

conhecimento é non stop, porque, quanto mais se sabe, menos se<br />

sabe. Quanto mais sábio, mais ignorante. Essa aprendizagem da nossa<br />

ignorância é positiva já que nos tornamos conscientes da ignorância<br />

de que éramos inconscientes. Portanto, existe um dinamismo que<br />

está no seu próprio movimento” (MORIN; LE MOIGNE, 2000, p. 76.).<br />

Portanto, é preciso despertar uma crescente consciência ética em<br />

relação a diversos desafios levantados pelos avanços científicos e pelo<br />

progresso econômico e técnico, pois começou a se perceber que “nem<br />

156 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />

toda descoberta científica e nem toda vantagem tecnológica trazem<br />

sempre efeitos puramente benéficos para as pessoas e a sociedade.<br />

Ela acorda da visão ingênua de uma ciência isenta de interesses<br />

espúrios e de uma técnica limpa e benéfica” (JUNGES, 1999, p. 9),<br />

mesmo porque não há instante isolado, neutro ou indiferente para a<br />

vida. Esta é sua essencial não-neutralidade, pois o ser humano é um<br />

ser não-neutro por excelência.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

As discussões bioéticas conduzem a compromissos provisórios e,<br />

por isso, segundo Morin (2000), deve-se estar ciente da arbitrariedade das<br />

decisões. Em razão dessa provisoriedade, que gera a alegada incerteza,<br />

o autor utiliza-se do termo “aposta” em uma decisão mais correta possível<br />

quando se leva em consideração a complexidade da relação posta, já<br />

que a certeza nessa área inexiste, ou se existe, ainda está longe do<br />

conhecimento humano, apesar de todas as pesquisas científicas.<br />

Na área jurídica, a incerteza e a provisoriedade das decisões<br />

também resta evidenciada, especialmente no que se refere ao<br />

julgamento de casos que envolvam os “novos” direitos. Isso porque não<br />

se mostra viável a aplicação de um tipo específico de conhecimento,<br />

ou de um único critério para determinar a solução do conflito, ante a<br />

pluridimensionalidade do objeto, bem como dos efeitos deste para as<br />

partes e para a sociedade. Por tudo isso, é que se exige do julgador<br />

um conhecimento que extravase o saber jurídico: o conhecimento<br />

da realidade social onde aplica a lei, assim como um conhecimento<br />

mais aprofundado da complexidade das relações que ensejaram a<br />

demanda judicial que lhe cabe julgar.<br />

Utilizando-se das palavras de Von Hayeck, citado por Morin,<br />

é interessante referir e exemplificar que “ninguém será um grande<br />

economista se for somente um economista”, pois “em economia tudo<br />

depende de tudo, tudo age sobre o todo” (MORIN; LE MOIGNE, 2000,<br />

p. 76). O mesmo ocorre com o profissional do Direito, pois este não será<br />

um grande jurista se for somente jurista. Ele deve viver e compreender o<br />

meio no qual vive e no qual tem de aplicar e interpretar a lei.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 157


Isabel Cristina Brettas Duarte<br />

Como dito alhures, tudo que é humano deve ser compreendido<br />

a partir de um jogo complexo, pois para conhecer melhor as partes<br />

deve-se conhecer o todo e vice-versa, como em um movimento<br />

circular ininterrupto. Nesse sentido, não se pode, também, entender o<br />

julgador sem entender o objeto ou o ser julgado, de modo que se deve<br />

compreender também essa relação entre eles – o julgador e o julgado.<br />

Sabe-se que a ciência moderna, dentre elas o Direito, por<br />

vezes, está longe da ética que não seja a do conhecimento, o que<br />

é criado pelo cegamento causado pelo conhecimento objetivo, da<br />

hiperespecialização, que pode ser desastroso para a sociedade, já<br />

que, partindo da premissa de Morin (2000), um pensamento cego<br />

ao global não pode captar aquilo que une os elementos separados.<br />

Quando se fala em conhecimento objetivo na seara jurídica, está a<br />

falar do conhecimento formal, teórico e da aplicação da letra fria da lei,<br />

apenas considerado em seu aspecto literal, desvinculado da realidade<br />

social e da função social que deve ser dada à norma.<br />

Nesse contexto, não se pode olvidar que a complexidade dos<br />

conflitos que são postos diariamente em juízo em busca da tutela<br />

jurisdicional é cada vez maior e decorrente dos avanços sociais.<br />

Estes, por sua vez, são decorrentes dos avanços tecnológicos, do<br />

crescimento populacional, da alteração de valores sociais, etc., em<br />

um processo contínuo, assim como a própria vida, cujos limites são<br />

incertos, o que confirma a teoria da incerteza trazida por Morin. Diante<br />

dessa realidade, surge a premência de nos libertarmos das amarras<br />

cartesianas e adentrarmos no estudo do pensamento complexo, capaz<br />

de lidar satisfatoriamente com situações complexas.<br />

O Direito, até então determinador de regras fundadas no consenso,<br />

passa a ser gerador de propostas úteis aos debates democráticos.<br />

O estudo dos ‘novos’ direitos relacionados à Bioética, renunciando<br />

à segurança das normas antigas, passa a indicar o caminho da<br />

interrogação, da elucidação das finalidades e do estabelecimento de<br />

referências provisórias para a ação. E é claro que isso gera importantes<br />

repercussões no mundo jurídico, do que a Bioética é apenas um<br />

exemplo, assim como a propriedade intelectual e outros.<br />

158 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />

Nesse novo paradigma, o Direito, até então pautado pelo<br />

normativo e pelo legal, passa a exercer uma função mais indicadora<br />

de condutas justas, bem como procedimentos apropriados para que<br />

as decisões e as opções tenham todas as chances de resolver os<br />

problemas suscitados pelas novas tecnologias, o que é de suma<br />

importância num momento em que há a problematização de tantas<br />

questões e situações não previstas. Portanto, é preciso encarar o<br />

desafio de aprofundar o estudo da Bioética e em especial dos novos<br />

direitos encarando o fenômeno jurídico, assim como o fenômeno social,<br />

como uma desordem e/ou ordem com possibilidade de mudança e<br />

aperfeiçoamento.<br />

Agora, efetivamente, “há questões que nunca antes foram objeto<br />

de legislação, caindo sob a alçada das leis com que a cidade global<br />

tem de se dotar para que possa haver um mundo sustentável para as<br />

gerações humanas que ainda virão” (PELIZZOLI, 2007, p. 83). Diante<br />

disso, finalizamos afirmando que essa breve contribuição é apenas uma<br />

tentativa de reflexionar sobre a Bioética, principalmente quando inserida<br />

na realidade cada vez mais emergente dos “novos” direitos, desafio<br />

este que certamente encontrou limitações inerentes à toda pesquisa.<br />

Assim, esperamos ter contribuído para aproximar o compasso<br />

entre a ciência e o Direito e também outras áreas do conhecimento,<br />

com vistas à constante construção de uma sociedade cujas leis<br />

estejam à altura das intensas transformações ocorridas no seio do<br />

multiculturalismo que permeia a era biotecnológica vivenciada pela<br />

sociedade brasileira. Portanto, cientes de que o modelo tradicional do<br />

Direito não é capaz de responder a todos os anseios dessa realidade,<br />

ousamos afirmar que nunca foi tão importante que novos olhares<br />

sejam lançados à vastidão do mundo jurídico, somente comparável<br />

à vastidão do mundo social e cultural que cerca os seres humanos.<br />

<strong>RE</strong>FERÊNCIAS<br />

BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização<br />

reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Trad.<br />

Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1997.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 159


Isabel Cristina Brettas Duarte<br />

BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca dos fundamentos. Petrópolis:<br />

Vozes, 2003.<br />

GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel; SAADA, Alya (Orgs.). Bases<br />

conceituais da Bioética: enfoque latino-americano. Trad. Luciana<br />

Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006.<br />

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. de<br />

Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A,<br />

2005.<br />

HERNÁNDEZ, Miquel Osset. Ingeniería genética y derechos<br />

humanos: legislación y ética ante el reto de los avances<br />

biotecnológicos. Barcelona, España: Icaria Antrazyt, 2000.<br />

JUNGES, José Roque. Bioética: perspectivas e desafios. Porto<br />

Alegre: Ed. Unisinos, 1999.<br />

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. de Maria D. Alexandre<br />

e Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.<br />

MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean Louis. A inteligência da complexidade.<br />

Trad. de Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000.<br />

PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo<br />

modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis: Vozes, 2007.<br />

SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do pêndulo:<br />

Bioética e a lei implicações médico-legais. São Paulo: Ícone, 1998.<br />

SG<strong>RE</strong>CCIA, Elio. A bioética e o novo milênio. Trad. Claudio Antonio<br />

Pedrini. Bauru: EDUSC, 2000.<br />

TOURAINE, Alain. Um novo paradigma para compreender o mundo<br />

de hoje. Trad. de Gentil Agelino Titton. Petrópolis: Vozes, 2006.<br />

WOLKER, Antônio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (Orgs.).<br />

Os novos direitos no Brasil: natureza e perspectivas. São Paulo:<br />

Saraiva, 2003.<br />

Recebido: 10-7-2014<br />

Aprovado: 20-10-2014<br />

160 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />

DI<strong>RE</strong>ITO<br />

FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA<br />

NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />

Bankruptcy and recovery company the perspective of law n.<br />

11.101/05<br />

Resumo<br />

José Lauri Bueno de Jesus 31<br />

Neste trabalho, pretende-se demonstrar o longo caminho que as empresas têm percorrido, na história, para<br />

poderem atingir o patamar de recuperação ao invés de ingressarem na falência, diretamente. Entretanto,<br />

é necessário observar alguns princípios, que deverão ser analisados quando a empresa se encontrar em<br />

crise, a fim de verificar a viabilidade ou não da continuidade das suas atividades, inclusive, deve ser sempre<br />

voltado para o aspecto social, inserindo-se nessa situação a quitação dos débitos de todos os credores e<br />

a mantença do emprego dos funcionários. Faz-se também uma breve retrospectiva histórica das leis dos<br />

principais países, especialmente sobre os aspectos relativos à recuperação da empresa.<br />

Palavras-chave: Crises. Falência. Recuperação judicial. Princípios.<br />

Abstract<br />

In this work, we intend to demonstrate the long way that companies have traversed, in history, in order<br />

to reach the level of recovery rather than join the bankruptcy directly. However, it is necessary to observe<br />

some principles that should be examined when the company is in crisis in order to verify the feasibility or<br />

otherwise of the continuity of its operations, including, should always be focused on the social aspect,<br />

inserting themselves in this situation the discharge of the debts of all creditors and the maintenance of<br />

employment of employees. Also, a brief historical overview of the laws of major countries, a special way,<br />

those aspects of the company’s recovery.<br />

Keywords: Crises. Bankruptcy. Judicial recovery. Principles.<br />

Sumário:<br />

1. Introdução; 2. A insolvência e as crises empresariais; 3. A dissonância das relações e a insolvência<br />

empresarial; 4. Breve evolução histórica da falência e recuperação; 5. Princípios do regime de insolvência<br />

do agente econômico; 6. Considerações finais; 7. Referências.<br />

INTRODUÇÃO<br />

O empresário ou sociedade empresária que exerce atividade<br />

de empresa, atualmente, protegido pela Teoria da Empresa, que é<br />

propugnada pelo Código Civil de 2002, pode, em algum momento,<br />

não ter condições de efetuar o pagamento de seus débitos, por uma<br />

31 Mestre em Direito pela Unisinos, Especialização em Segurança Pública pela PUC-RS e Especialização em Docência para o Ensino<br />

Superior pela CNEC-IESA. Graduado em Direito pela FADISA (hoje CNEC-IESA), professor no Instituto Cenecista de Ensino<br />

Superior de Santo Ângelo (CNEC-IESA), Tenente-coronel da Reserva Remunerada da Brigada Militar. E-mail: laurijb@terra.com.br.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 161-180


José Lauri Bueno de Jesus<br />

situação que se apresente de maneira insanável, à primeira análise,<br />

em virtude do acometimento de algum tipo de crise. Se for verificado<br />

no Decreto-Lei n. 7.661/45, as soluções eram bastante preocupantes,<br />

haja vista que levava a empresa a fechar as suas portas e, com isso,<br />

afetava a sociedade. Entretanto, com o advento da nova lei de falências<br />

e recuperação de empresas (Lei n. 11.101/05), tal situação é vista de<br />

forma diferente, preocupando-se com a empresa que está diretamente<br />

envolvida na sua atividade e o mercado em que ela está inserida.<br />

A INSOLVÊNCIA E AS CRISES EMP<strong>RE</strong>SARIAIS<br />

No momento em que se diz que uma empresa está em crise,<br />

isso pode significar muitas coisas. Pode estar em crise econômica,<br />

financeira e patrimonial. Tais patologias do organismo empresarial,<br />

muitas vezes, pode levar a empresa à morte e, isso ocorrendo, vai<br />

prejudicar as pessoas que dependam dela, direta ou indiretamente.<br />

Além disso, é preciso que fique claro que “a raiz das crises por que<br />

passa o organismo empresarial também é de matriz diversa. Não há<br />

linearidade”, segundo afirma Waldo Fazzio Junior (20<strong>08</strong>, p. 5).<br />

Nesse diapasão, é importante a distinção entre elas, pois,<br />

normalmente, uma desencadeia a outra, devido à complexidade da<br />

economia e das relações jurídicas, mesmo que não sejam vistas de<br />

forma lineares.<br />

Então, por crise econômica (COELHO, 2010, p. 231), entende-<br />

-se como uma “retração considerável nos negócios desenvolvidos<br />

pela sociedade empresária” ou pelo empresário. Por exemplo, se os<br />

consumidores não mais adquirem igual quantidade dos produtos ou<br />

serviços oferecidos, o empresário ou sociedade empresária pode sofrer<br />

queda de faturamento. Esta crise pode ser generalizada, segmentada<br />

ou atingir especificamente uma empresa. O empreendedor deve<br />

avaliar o que está ocorrendo, visto que é necessário diagnosticar o<br />

motivo dessa retração, pois pode, inclusive, ser um atraso tecnológico<br />

do seu estabelecimento ou incapacidade de sua empresa competir, ou<br />

ainda, o produto que está sendo comercializado não é mais do agrado<br />

das pessoas.<br />

162 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />

Por outro lado, segundo Fábio Ulhoa Coelho,<br />

a crise financeira revela-se quando a sociedade empresária ou<br />

empresário não tem caixa para honrar seus compromissos. É a<br />

chamada crise de liquidez. As vendas podem estar crescendo e<br />

o faturamento satisfatório, mas a empresa tem dificuldades de<br />

pagar as suas obrigações. A forma de exteriorização jurídica da<br />

crise financeira se apresenta através da impontualidade (2010,<br />

p. 231-232).<br />

A outra crise é a patrimonial, isto é, a insolvência. Esta ocorre<br />

no momento em que os bens existentes no ativo forem insuficientes<br />

para atender à satisfação do passivo. É uma crise estática, pois a<br />

empresa tem menos bens em seu patrimônio que o total de suas<br />

dívidas, parecendo apresentar uma condição temerária e indicativa de<br />

grande risco para os credores. Entretanto, é comum acontecer que o<br />

patrimônio líquido negativo pode significar apenas que a empresa está<br />

passando por uma fase de expressivos investimentos na ampliação<br />

de suas atividades e/ou tecnologia (COELHO, 2010, p. 232).<br />

Esses índices de crise, às vezes, acabam sendo relativos, pois<br />

não se revelaram úteis à análise de mercado em algumas situações.<br />

Por exemplo, no fim do séc. XX, com o início da difusão do comércio<br />

eletrônico via internet, muitas empresas que realizavam ainda<br />

incipientes negócios por intermédio da rede mundial de computadores,<br />

registravam prejuízos consideráveis e ostentavam patrimônio líquido<br />

acentuadamente negativo. Mesmo assim, foram negociados por<br />

milhões de dólares. Tudo dependerá do lucro que a empresa tiver<br />

(COELHO, 2010).<br />

Ainda com Fábio Ulhoa Coelho (2010, p. 233), apoiando-se nessa<br />

linha de pensamento, pode-se afirmar que “em geral, cabe dizer, que<br />

determinada empresa está em crise após a manifestação das três<br />

formas pela qual se manifesta. A queda das vendas acarreta falta<br />

de liquidez e, em seguida, insolvência: este é o quadro crítico que<br />

preocupa os credores, trabalhadores, investidores, etc.”.<br />

A crise fatal de uma empresa significa o fim de postos de<br />

trabalho, desabastecimento de produtos ou serviços, diminuição de<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 163


José Lauri Bueno de Jesus<br />

arrecadação de impostos, paralisação de atividades satélites e muitos<br />

outros problemas. Por isso, muitas vezes, o Direito se ocupa em criar<br />

mecanismos jurídicos e judiciais de recuperação de empresa.<br />

Como se pode observar, tais crises não são lineares, elas<br />

ocorrem por motivos diversos, inclusive, geralmente, são causados<br />

por vícios de origem, como por exemplo, a escolha do tipo societário<br />

inadequado, estruturação administrativa insuficiente, a estimação<br />

imprópria do capital social, a obsolescência do objeto social eleito,<br />

restrições de crédito bancário, política econômica nacional, elevação<br />

da taxa de juros, crise de abastecimento, etc. (COELHO, 2010).<br />

Assim, não se pode esquecer que o mesmo mercado que ajudou<br />

a empresa a promover suas atividades agora encurta sua sobrevida,<br />

considerando-a um organismo em coma.<br />

A DISSONÂNCIA DAS <strong>RE</strong>LAÇÕES E A INSOLVÊNCIA<br />

EMP<strong>RE</strong>SARIAL<br />

Existia no sistema jurídico brasileiro uma dissonância muito grande<br />

nas relações emergentes da insolvência empresarial com o moderno<br />

perfil da empresa e as características da economia globalizada.<br />

Devido a isso, o alvo não era a atividade econômica organizada, mas<br />

a pessoa do empresário paciente de concordatas e da falência.<br />

Dessa forma, surgiu o Decreto-lei n. 7.66l/45 logo após a Segunda<br />

Guerra Mundial. Esse decreto-lei concebia um modelo de empresa<br />

próprio da economia nacional, que se encontrava muito defasada e<br />

refletia as coordenadas da ordem capitalista, instaurada em 1944, na<br />

Conferência de Bretton Woods (FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>).<br />

Com a antiga legislação falimentar, o crédito era concebido<br />

como, simplesmente, mais uma espécie de relação obrigacional,<br />

pois desconsiderava a repercussão da insolvência no mercado e<br />

concentrava-se no ajustamento das relações entre os credores e o<br />

ativo devedor. A falência e concordata, então regulada pelo Dec.-Lei<br />

n. 7.661/45, não dava conta dos intrincados problemas gerados pelos<br />

processos de concordata e de falência, cada vez mais complexos,<br />

burocratizados e inócuos.<br />

164 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />

Foi grande o impacto dos projetos sobre o regime de insolvência<br />

editados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial<br />

em países como Espanha, Portugal, Itália, França, México, Argentina.<br />

No Brasil, iniciou com a edição da LFC (DL 7.661/45), mas desde<br />

1990 começou a implementação dos andaimes da nova normação da<br />

insolvência empresarial. Nessa época, os juízes, por meio de suas<br />

sentenças judiciais, começaram a implantação da Teoria da Empresa<br />

em substituição à Teoria dos Atos de Comércio, então vigente (FAZZIO<br />

JUNIOR, 20<strong>08</strong>).<br />

Rápidas transformações econômicas e hesitações políticas<br />

ocorreram até a entrada em vigor da Lei n. 11.101, de 9 fevereiro de<br />

2005 (nova lei de recuperação de empresa e falência) que surgiu para<br />

dilatar os tímidos e frustrados horizontes, consagrando justificável<br />

preferência por outras estratégias legais predispostas a assegurar<br />

sobrevida útil às empresas viáveis em crise econômico-financeira. O<br />

objetivo da recuperação judicial é viabilizar a superação da situação de<br />

crise do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora,<br />

do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores,<br />

promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e<br />

o estímulo à atividade econômica, conforme dispõe em seu art. 47.<br />

Essa nova lei (11.101/05) traz como divisa a reestruturação<br />

empresarial como meio de proporcionar maiores possibilidades de<br />

satisfazer aos credores, minimizar o desemprego, fortalecer e facilitar o<br />

crédito e, em consequência, poupar o mercado dos reflexos perversos<br />

da insuficiência dos agentes econômicos.<br />

A nova lei de falência e recuperação de empresa não é perfeita,<br />

pois como diz Waldo Fazzio Junior (20<strong>08</strong>, p. 3), contém “imprecisões,<br />

interrogações e, provavelmente, nem sempre vai oferecer as melhores<br />

alternativas para os vários problemas oriundos das crises que hoje<br />

assolam as empresas brasileiras”. Vai ocorrer, e já ocorreram,<br />

resistências do empresariado mais conservador. Entretanto, deve ficar<br />

bem claro, que é impossível ajustar, sem rupturas, ordens econômicas<br />

diferentes.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 165


José Lauri Bueno de Jesus<br />

É sabido que “o Direito das Concordatas e Falências era um<br />

instrumento do atávico princípio romano, ou seja, quem deve tem que<br />

pagar”. Com essa lei, “os credores eram amparados, garantiam-se<br />

os haveres públicos, incriminavam-se os empresários malsucedidos,<br />

menosprezavam-se o desemprego e aniquilavam-se as empresas em<br />

crise” (FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p. 4).<br />

Assim, o Direito Positivo brasileiro “alterou a natureza de sua<br />

instrumentalidade, optando pela despersonalização da empresa”, quando<br />

necessário, “e pela composição de interesses de credores e devedores.<br />

Ainda na fala de Fazzio Junior,<br />

o Direito Concursal é, hoje, o Direito da empresa em crise, por que<br />

superou a fase da vindita dos credores, ultrapassando os estreitos<br />

limites da liquidação falitária, haja vista que se apresenta como<br />

solução jurídica mais pragmática e mais sintonizada com o Direito<br />

Econômico, deixou de ser um mero complexo regulador de relações<br />

estritamente privadas para encampar o interesse público e as<br />

repercussões sociais das isquemias das empresas (20<strong>08</strong>, p.4).<br />

Foi, portanto, alterada a via de solução. Isso ocorreu porque, “a<br />

reestruturação da empresa passou a integrar o elenco de objetivos<br />

das modernas legislações concursais, tendo como finalidade atender<br />

os direitos dos credores e direcionar a atividade empresarial para não<br />

comprometer a segurança do mercado e sua periferia social” (FAZZIO<br />

JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p. 4).<br />

Dessa forma, o Direito da empresa em crise é, na realidade, “um<br />

conjunto de medidas de natureza econômico-administrativa, acordadas<br />

entre o agente econômico devedor e seus credores, supervisionados<br />

pelo Estado-juiz, como expediente preventivo da liquidação” que<br />

objetiva “o soerguimento da empresa em crise, para que os credores<br />

tenham melhores perspectivas de realização de seus haveres, os<br />

fornecedores não perdem o cliente, os empregados mantêm seus<br />

empregos, o mercado sofre menos os impactos e as repercussões da<br />

insolvência empresarial” (FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p. 4-5).<br />

Então, quando verificada a história das empresas em crise,<br />

percebe-se, claramente, como diz Waldo Fazzio Junior (20<strong>08</strong>, p. 7),<br />

166 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />

que elas podem ser vistas “necessariamente pelo reconhecimento<br />

de quatro fases: o Direito Concursal como regulador da execução<br />

dos bens do devedor; b) a judicialização da execução concursal; c)<br />

prevenção do estado de liquidação; e d) a recuperação da empresa”.<br />

Nessa mesma linha de pensamento, percebe-se na fala de André<br />

Luiz Santa Cruz Ramos, que<br />

o direito falimentar não tem como característica a preocupação<br />

preponderante de punir o devedor insolvente, criminalizando<br />

sua conduta e excluindo-o do mercado a todo custo. A grande<br />

preocupação do direito falimentar atual é a preservação da<br />

empresa, razão pela qual a legislação tenta fornecer ao devedor<br />

em crise todos os instrumentos necessários à sua recuperação,<br />

reservando a falência apenas para os devedores realmente<br />

irrecuperáveis (2013, p. 616).<br />

As soluções para as crises empresariais dependem muito da<br />

perspectiva segundo a qual essas crises são abordadas. Agora são<br />

vistas sob a óptica do empresário e dos credores, o que vai ser, em<br />

princípio, menos danosa a todos.<br />

B<strong>RE</strong>VE EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FALÊNCIA E<br />

<strong>RE</strong>CUPERAÇÃO<br />

Para facilitar a compreensão da falência e recuperação da empresa<br />

nos dias atuais, é imperioso que se busque na história, mesmo que<br />

brevemente, os seus fundamentos e problemas que antecederam a<br />

legislação em vigor, para que não se incorra nas mesmas situações<br />

do pretérito e, inclusive, em países e estrangeiros.<br />

Assim, é possível verificar que no Direito Romano a execução<br />

incidia sobre a pessoa do devedor, autorizava ao credor manter o<br />

devedor em cárcere privado ou escravizá-lo. Ou seja,<br />

houve um período em que o devedor respondia por suas<br />

obrigações com a própria liberdade e às vezes até mesmo com a<br />

própria vida. A garantia do credor era, pois, a pessoa do devedor.<br />

Assim, este poderia [...] tornar-se escravo do credor por certo<br />

tempo, bem como entregar-lhe em pagamento da dívida uma<br />

parte do seu corpo (RAMOS, 2013, p. 614).<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 167


José Lauri Bueno de Jesus<br />

Depois, passou para o sistema de constrição patrimonial (lei<br />

Paetelia Papiria, 428 a.C.), que admitia a execução forçada das<br />

condenações em dinheiro, “proibindo o encarceramento, a venda<br />

como escravo e a morte do devedor. [...] passou-se a entender que os<br />

bens do devedor, e não a sua pessoa, deveriam servir de garantia do<br />

credores” (RAMOS, 2013, p. 614).<br />

Por exemplo, o credor munido da sentença, procurava o magistrado<br />

e este o autorizava por decreto para que entrasse na posse de todos os<br />

bens do devedor, procedendo depois a venda mediante determinadas<br />

formalidades. Não despia o devedor da propriedade dos bens e nem<br />

da posse jurídica, privava-o apenas da administração. O patrimônio<br />

do devedor constituía um penhor em benefício dos credores (FAZZIO<br />

JUNIOR, 20<strong>08</strong>).<br />

No final dessa época surgiu a administração da massa, a<br />

assembleia de credores, a classificação dos créditos e a revogação<br />

dos atos fraudulentos do devedor. O procedimento concursal do<br />

Direito Romano aplicava-se a qualquer espécie de devedor, até porque<br />

inexistia legislação específica regente da atividade empresária.<br />

Walfo Fazzio Junior (20<strong>08</strong>), refere que foi no Direito Medieval,<br />

por intermédio dos estatutos corporativos das cidades, especialmente<br />

nas italianas, que surgiu o instituto da falência, restringindo o caráter<br />

privado da execução, embora isso não significasse a emancipação<br />

física do devedor. No séc. XIII, surgiram as primeiras regras que<br />

constituíram o instituto da falência como típica execução criminal.<br />

São bastantes utilizados os usos e costumes e aplicado ao insolvente<br />

sanções cruéis, tanto física como moral. Um pressuposto da época<br />

era que, quando o devedor fugisse em decorrência de sua insolvência,<br />

automaticamente passava para o estado de falência.<br />

Nessa época, também foi isolada a insolvência em seus<br />

elementos conceituais e era relevada no aspecto formal pelo<br />

sequestro, inventário, apreensão e o encerramento dos inscritos. O<br />

caráter penal incidia muito forte na pessoa do devedor. Já no séc. XV,<br />

surgiu uma espécie de concordata mediada pela autoridade pública<br />

que a homologava. E foi estabelecido o salvo-conduto que permitia ao<br />

168 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />

devedor fugitivo retornar para a conclusão da concordata. Entretanto,<br />

o concurso creditício italiano não era exclusivo dos mercadores, tinha<br />

feição predominantemente penal, que se transformou lentamente de<br />

execução pessoal em patrimonial. Também trouxe à luz as primeiras<br />

acordanças tendentes a evitar a liquidação (FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>).<br />

Corroborando com tal posição, André Luiz Santa Cruz Ramos<br />

(2013, p. 614-615), menciona que apesar de terem sido identificadas<br />

“regras especiais para a execução dos devedores insolventes,<br />

[...] ainda se tratava de regras que se aplicavam indistintamente a<br />

qualquer espécie de devedor, comerciante ou não, e que mantinham<br />

seu caráter extremamente repressivo”<br />

No Direito Moderno,<br />

o Estado surgiu como entidade política e jurídica, com sensível<br />

interferência na disciplina das relações de crédito, inclusive na<br />

regência dos casos de insolvência. Os Estados arrogaram-se à<br />

exclusividade da imposição de sanções e judicializaram o deslinde<br />

de situações jurídicas criadas pela insatisfação obrigacional. A<br />

liquidação do patrimônio do devedor passou a ser assegurada<br />

pelos organismos judiciais encarregados de aplicar a lei (FAZZIO<br />

JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p. 9).<br />

Ainda no “séc. XVII, as Ordenanças Filipinas trataram das quebras<br />

dos mercadores. Sendo que no Alvará Real de 1756, em Lisboa,<br />

estabeleceu-se um processo peculiar para os negociantes falidos”<br />

(FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p. 9). Por exemplo, o homem de negócio<br />

que faltasse ao crédito deveria se apresentar perante uma Junta de<br />

Comércio para explicitar as causas das quebras e entregar as chaves<br />

de seu estabelecimento, oferecer a relação dos bens e apresentar os<br />

livros e papéis de seu comércio (FER<strong>RE</strong>IRA apud FAZZIO JUNIOR,<br />

20<strong>08</strong>).<br />

Na França, no ano de 1673, a Codificação Savary, regulamentou<br />

o regime de insolvência sem particularizar os comerciantes. Somente<br />

ocorreu após, com Napoleão Bonaparte, quando no início do séc.<br />

XIX promoveu a cisão legislativa das normas mercantis. Editou um<br />

Código Civil em 1804 e um Código Comercial em 18<strong>08</strong>. Nesse Código<br />

Comercial de 18<strong>08</strong>, imperava a Teoria dos Atos de Comércio (o Brasil,<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 169


José Lauri Bueno de Jesus<br />

em 1850, também adotou a mesma teoria, mas que foi alterada para<br />

a Teoria da Empresa, em 2002, com o advento do novo Código Civil<br />

brasileiro).<br />

Independentemente de qualquer outro motivo,<br />

a mudança que o Code de Commerce de Napoleão trouxe<br />

para o direito comercial atingiu, consequentemente, o direito<br />

falimentar, que passou a constituir um conjunto de regras<br />

especiais, aplicáveis restritamente aos devedores insolventes<br />

que revestiam a qualidade de comerciantes. Para o devedor<br />

insolvente de natureza civil, não se aplicavam as regras do direito<br />

falimentar, mas disposições constantes do regime jurídico geral,<br />

qual seja, o direito civil (RAMOS, 2013, p. 615).<br />

Mesmo com o codificação napoleônica não foi alterada uma<br />

característica do direito falimentar desde os seus primórdios, ou seja,<br />

“o caráter repressivo e punitivo do devedor” (RAMOS, 2013, p. 615).<br />

Assim, o Direito Concursal ingressou na Idade Contemporânea<br />

como sendo a liquidação do ativo do devedor insolvente, sob a<br />

égide do Poder Judiciário. Entretanto, com o transcurso do tempo, a<br />

sociedade evoluiu e a economia avançou em uma velocidade muito<br />

rápida e o direito falimentar necessitou acompanhar esse processo de<br />

mudanças para adaptar-se aos novos paradigmas (RAMOS, 2013).<br />

A partir da Revolução Industrial ocorreu um acentuado e<br />

progressivo desenvolvimento econômico por meio do chamado<br />

“processo de globalização, o qual trouxe relevantes alterações na<br />

conjuntura socioeconômica, que exigiram do operador de direito uma<br />

completa reformulação dos princípios e institutos falimentares do<br />

direito falimentar” (RAMOS, 2013, p. 615).<br />

Consoante Waldo Fazzio Junior (20<strong>08</strong>), no Direito Contemporâneo,<br />

ocorreram duas guerras mundiais até a metade do século passado.<br />

Viveu-se uma fase de valorização das concordatas como expedientes<br />

preventivos ou suspensivos do estado de liquidação. Muitas crises<br />

econômicas, desastres financeiros e flagrante favorecimento dos<br />

credores majoritários. O entendimento na época era que o empresário<br />

honesto e infeliz nos negócios deveria desfrutar de favor legal, com<br />

concordatas dilatórias e remissórias.<br />

170 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />

Era preciso mudar, superando o caráter de conflito particular<br />

inerente às falências e concordatas com a presença mais efetiva<br />

do Estado nas crises econômicas sobre as empresas públicas,<br />

sociedades estatais e instituições financeiras. Ganhou realce o lado<br />

social da empresa.<br />

Nessa época, segundo Fazzio Junior (20<strong>08</strong>, p. 10), “a crescente<br />

unificação do Direito Privado e a interpenetração do Direito Público e do<br />

Direito Privado, a valorização do Direito Fiscal, do Direito do Consumidor,<br />

do Direito Previdenciário e do Direito Financeiro, obrigou a procura de<br />

desfechos mais construtivos e menos radicais para as crises”.<br />

É possível verificar tais situações em alguns países que se<br />

apresentavam preocupados com as falências que pudessem ocorrer,<br />

mas queriam a recuperação como norte. Dessa forma, com uma nova<br />

concepção do direito falimentar, contraposta à antiga concepção que<br />

consagrava regaras extremamente punitivas ao devedor, influenciou<br />

a reformulação da legislação em diversos países, como afirma André<br />

Luiz S. C. Ramos (2013) ao manifestar-se sobre o assunto.<br />

Assim, segundo Waldo Fazzio Junior (20<strong>08</strong>), em 1867, nos<br />

Estados Unidos, surgiu o primeiro procedimento de recuperação<br />

judicial, sob o nome de Lei da Companhia Ferroviária. Em 1898, esse<br />

procedimento ampliou-se para atingir outras pessoas jurídicas. Foi<br />

aprimorado em 1938 e consolidado em 1994. Entretanto, para Fábio<br />

Ulhoa Coelho (2010, p. 233), “o primeiro diploma de direito estatutário,<br />

dispondo sobre recuperação judicial de empresas surgiu em 1934,<br />

visando atenuar os efeitos da crise provocada pela Bolsa de Valores<br />

de Nova York em 1929”. Mas isso não faz muito diferença de qual<br />

data foi anterior ou não, o que importa é que a preocupação com a<br />

recuperação das empresas em crise era um assunto em questão e<br />

que também era preocupação dos governantes.<br />

No Japão, em 1952, foi aprovada uma lei de reorganização das<br />

Sociedades por Ações e, em 1992, foi substituída por uma nova lei<br />

marcadamente recuperatória.<br />

Na França, em 1984, é aprovada uma lei reguladora da prevenção<br />

e composição amigável das dificuldades da empresa. Em 1985,<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 171


José Lauri Bueno de Jesus<br />

foi criada uma lei para saneamento e reorganização da empresa<br />

em crise. Em 1994, uma lei reforçando os meios preventivos da<br />

insolvência, simplificando os procedimentos, moralizando os planos<br />

de recuperação e trazendo medidas mais eficazes para assegurar os<br />

direitos dos credores.<br />

Na Itália, em 1991, é aprovada uma lei com as mesmas<br />

características de salvaguarda da empresa da França.<br />

Em Portugal, o critério é a viabilidade da empresa desde que criou<br />

em 1976 a declaração da empresa economicamente difícil, que serviu<br />

de embrião para o Código dos Processos Especiais de Recuperação<br />

da Empresa e de Falência de 1993, o qual instituiu o procedimento<br />

judicial de recuperação da empresa.<br />

Na Espanha, em 2003, a lei aprovada, além de superar a<br />

diversidade de instituições concursais para comerciantes, flexibiliza<br />

o procedimento calcado na insolvência e institui o convênio entre<br />

credores e o devedor, tudo assentado num plano de viabilidade.<br />

Como se pode perceber até aqui, a recuperação judicial, na<br />

maioria dos países ocidentais, reconhece a importância social da<br />

empresa, passando a exigir do devedor a apresentação de um plano,<br />

o qual estabelecerá os meios, dentre os mais diversos, que pretende<br />

utilizar para reerguimento da atividade empresarial. Pela lei brasileira,<br />

além disso, a concessão da recuperação, que substitui a concordata,<br />

prevista na lei n.11.101/05, passa a depender da anuência dos<br />

credores, reunidos em assembleia.<br />

Assim, a tendência dos atuais sistemas jurídicos regentes<br />

da insolvência, é a realização dos direitos dos credores mediante<br />

a recuperação da empresa devedora, ficando a falência como<br />

antídoto residual, de cunho liquidatório, dirigida exclusivamente aos<br />

empreendimentos inviáveis.<br />

PRINCÍPIOS DO <strong>RE</strong>GIME DE INSOLVÊNCIA DO<br />

AGENTE ECONÔMICO<br />

Dentre alguns dos princípios que regem a insolvência e a<br />

recuperação da empresa, é possível destacar os principais, os quais<br />

172 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />

deverão ser analisados, criteriosamente e em conjunto, antes de ser<br />

tomada qualquer tipo de decisão. São eles: a) Viabilidade da empresa,<br />

como critério distintivo básico entre a recuperação e a falência; b)<br />

Predominância do interesse imediato dos credores; c) Publicidade dos<br />

procedimentos; d) Par conditio creditorum (equidade); e) Conservação<br />

e maximização dos ativos do agente econômico devedor; e f)<br />

Preservação da atividade empresarial.<br />

Estes princípios não devem ser considerados como<br />

compartimentos isolados e autossuficientes, pois mantêm entre si um<br />

nexo de complementaridade e equilíbrio. Para facilitar, sucintamente,<br />

será feita uma breve análise de cada princípio, a fim de tentar<br />

esclarecer o significado de cada um deles.<br />

Para o Princípio da Viabilidade da Empresa, existe uma dicotomia<br />

entre as empresas economicamente viáveis e inviáveis. A recuperação<br />

pode ser judicial (art. 47) e extrajudicial (art.161), mas somente é<br />

indicada para as empresas viáveis. A aferição dessa viabilidade está<br />

ligada a fatores endógenos e exógenos. Os endógenos referem-se ao<br />

ativo e passivo, ao faturamento anual, ao nível de endividamento e ao<br />

tempo de constituição. Já os exógenos dizem respeito à relevância<br />

socioeconômica da atividade.<br />

Para possibilitar a formulação de um diagnóstico, segundo Fazzio<br />

Junior (20<strong>08</strong>, p. 16), devem ser feitas as seguintes perguntas, no<br />

mínimo: “1) Existe um plano de recuperação? 2) Que critérios devem<br />

ser eleitos para sua avaliação? 3) Essa avaliação autoriza a expectativa<br />

de êxito do plano? 4) Como custodiar sua concretização?”.<br />

Além de tais questionamentos, também, devem ser observados<br />

os meios de recuperação judicial previstos, principalmente, no art. 50<br />

(L<strong>RE</strong>), como por exemplo, a concessão de prazos e condições especiais<br />

para pagamento das obrigações vencidas ou vincendas, alteração do<br />

controle societário, substituição total ou parcial dos administradores<br />

do devedor ou modificação de seus órgãos administrativos, aumento<br />

do capital social, trespasse ou arrendamento do estabelecimento,<br />

redução salarial, constituição de sociedades de credores, venda parcial<br />

de bens, equalização de encargos financeiros, usufruto da empresa,<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 173


José Lauri Bueno de Jesus<br />

administração compartilhada, emissão de valores mobiliários, etc.<br />

Depois disso, e devidamente estruturado num plano de recuperação,<br />

é que se oferecerá à consideração judicial.<br />

Caso verificada, desde logo, a impossibilidade de cumprimento<br />

do plano proposto, é de rigor, o indeferimento da pretensão pelo juiz.<br />

A constatação posterior de que a continuidade da empresa é inviável,<br />

implica a conversão (convolação), ou seja, decretação da falência do<br />

processo de recuperação em solução liquidatória, conforme prevê o<br />

art. 73, nas seguintes hipóteses: a) por deliberação da assembleia<br />

geral, isto é, quando a proposta obtiver votos favoráveis de credores<br />

que representem mais da metade do valor total dos créditos<br />

presentes à assembleia geral; b) quando houver sido rejeitado o<br />

plano de recuperação judicial pela assembleia de credores; e c)<br />

por descumprimento de qualquer obrigação assumida no plano de<br />

recuperação judicial.<br />

A reorganização da empresa deve ser tanto administrativa como<br />

financeira e isso pressupõe um mínimo de condições e a presença de<br />

pressupostos legais. A recuperação empresarial não pode almejar a<br />

plena recriação da empresa, mas atender aos objetivos inicialmente<br />

propostos de viabilidade.<br />

Pelo Princípio da Relevância do Interesse dos Credores, diz<br />

Waldo Fazzio Junior que<br />

[...] qualquer regime de insolvência visa satisfazer, equitativamente,<br />

pretensões creditícias legítimas [...]. A reestruturação da empresa<br />

em dificuldades é instrumental da satisfação dos credores, desde<br />

que observados níveis mínimos de paridade. Percebe-se que desde<br />

a sua origem a insolvência [...]é uma postura jurídica estabelecida<br />

para atender os direitos dos credores. Tais direitos predominam e, no<br />

mínimo, [...] constituem o estopim para a deflagração processual da<br />

conjuntura universal de insolvência (20<strong>08</strong>, p. 17).<br />

A prevalência do interesse dos credores deve ser entendida<br />

em sentido genérico, abrangente da coletividade dos detentores<br />

de créditos e não em razão deste ou daquele credor. Também, não<br />

pode ser identificado como a realização de pronto de seus haveres.<br />

O processo de insolvência não pode se protrair indefinidamente,<br />

174 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />

pois deve ocorrer uma satisfação célere dos créditos, observando os<br />

parâmetros adequados e de pagamentos satisfatórios.<br />

A predominância do interesse dos credores deve identificar-se<br />

com o interesse público inerente à empresa. É lícito, e possível, afirmar<br />

que a manutenção da empresa pode ser a chave para o atendimento<br />

adequado das pretensões creditícias, pois nenhum credor é movido<br />

pelo ânimo liquidatório, haja vista que empresa liquidada não paga<br />

seus débitos na totalidade.<br />

Por sua vez, o Princípio da Publicidade dos Procedimentos,<br />

conforme Fazzio Junior traz à baila que a<br />

[...] transparência é a palavra que abre as portas de um processo<br />

de insolvência, ou seja, transparência em sentido estrito de<br />

todos os atos processuais e também a clareza e objetividade na<br />

definição dos diversos atos que os integram. Deve haver uma<br />

previsão bem clara da estipulação de requisitos, fundamentos<br />

e prazos para impedir a adoção de manobras procedimentais e<br />

expedientes protelatórios (20<strong>08</strong>, p. 18-19).<br />

Nesse contexto, uma fiscalização permanente e zelosa do juiz, do<br />

administrador judicial e do Ministério Público, certamente, vai facilitar<br />

muito o andamento das atividades da empresa. Também, “é desejável<br />

a ampla participação dos credores e dos segmentos integrantes<br />

da empresa insolvente”, pois a adoção de soluções que atendam<br />

à maioria dos envolvidos, ampliarão as possibilidades de êxito das<br />

medidas eleitas.<br />

No que diz respeito ao Princípio do Par Conditio Creditorum<br />

(equidade), vislumbra-se a existência de um tratamento dos credores<br />

em igualdade de condições, pois<br />

[...] a equidade é um princípio geral de Direito que, aqui, se<br />

manifesta em toda a sua intensidade. O tratamento equitativo dos<br />

créditos é a máxima regente de todos os processos concursais,<br />

considerando o mérito das pretensões antes que a celeridade na<br />

sua dedução (FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p. 19).<br />

Nesse diapasão, quando se fala em equidade, deve-se “observar<br />

o sítio em que cada crédito a lei lhe reserva na classificação geral nos<br />

art. 83 e 84 da Lei n. 11.101/05, assegurando-se, de modo decisivo,<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 175


José Lauri Bueno de Jesus<br />

que a índole preferencial de alguns seja respeitada” ”(FAZZIO JUNIOR,<br />

20<strong>08</strong>, p. 19). A regra diz respeito à proporcionalidade na consideração<br />

dos créditos, ou seja, deve-se respeitar as peculiaridades da lei.<br />

É inegável a posição de paridade dos credores, o que não traduz,<br />

necessariamente, nivelamento.<br />

Assim, a ordem dos créditos a serem pagos, prevista em tais<br />

artigos, deve ser, inicialmente, os créditos extraconcursais (art. 84), os<br />

créditos trabalhistas limitados a 150 salários mínimos, os decorrentes<br />

de acidentes de trabalho, os créditos com garantia real até o limite do<br />

valor do bem gravado, os créditos tributários, os créditos com privilégio<br />

especial, os créditos com privilégio geral, os créditos quirografários e<br />

os créditos subordinados. Essa é a ordem que, obrigatoriamente, deve<br />

ser seguida e observada no momento dos pagamentos dos créditos<br />

aos credores.<br />

O Princípio da Conservação e Maximização dos Ativos diz o<br />

seguinte: “para que se cumpram as finalidades do processo de<br />

insolvência, os ativos (bens) da empresa precisam ser preservados<br />

e, se possível, maximizados”, isto é, se necessário aliená-los, devem<br />

ser feitos com os valores mais altos possíveis. É comum a dissipação<br />

dos ativos pela ação de credores mais “ligeiros”, em prejuízo da<br />

coletividade dos credores e da observância do mérito que assiste a<br />

cada pretensão.<br />

Sobretudo na falência, em que os titulares da empresa devedora<br />

perdem sua capacidade de gestão para um administrador judicial,<br />

a fiscalização da massa de bens é atitude indispensável para<br />

salvaguardar a garantia comum dos credores e assegurar que seja,<br />

se não suficiente, ao menos apta a resolver a maior faixa possível<br />

de créditos. A preservação dos ativos “deve ser meta anelada com o<br />

intuito de satisfazer à solução dos débitos e dos encargos sociais”.<br />

Não é tutelar os ativos para a fruição e gozo do empresário, pois “o<br />

que deve ser recuperado é a empresa” (FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p.<br />

20).<br />

Por fim, o Princípio da Preservação da Empresa diz que “a<br />

empresa é uma unidade econômica que interage no mercado”, seja<br />

176 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />

insolvente ou não, pois é “uma unidade de distribuição de bens e/<br />

ou serviços. É um ponto de alocação de trabalho”, por ser um “elo<br />

na imensa corrente do mercado e, por isso, não pode desaparecer,<br />

simplesmente, sem causar sequela”, como afirma Fazzio Junior (20<strong>08</strong>,<br />

p. 20).<br />

De certa forma, “a atividade empresarial desborda dos limites<br />

estritamente singulares para alcançar dimensão socioeconômica<br />

bem mais ampla, pois afeta o mercado e a sociedade e isso é mais<br />

que singela conotação pessoal” (20<strong>08</strong>, p. 20). Daí, por que basta<br />

a presunção de insolvência para justificar a busca de uma solução<br />

jurisdicional.<br />

A preservação da atividade empresarial “é o ponto mais delicado<br />

do regime jurídico de insolvência. Ao contrário da concepção cirúrgica<br />

adotada pela extinta Lei de Falências e Concordata (DL 7.661/45),<br />

pretende-se com a nova Lei de Recuperação de Empresas (Lei n.<br />

11.101/05), na medida do possível, priorizar a recuperação sobre a<br />

falência” (20<strong>08</strong>, p. 20). Assim, “somente deve ser liquidada a empresa<br />

inviável, [...] aquela que não comporta uma reorganização eficiente ou<br />

não justifica o desejável resgate” (FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p.21).<br />

Frise-se que “a preservação da empresa não significa a preservação<br />

do empresário ou dos administradores da empresa”. Implica apartar<br />

os reais interesses envolvidos na empresa dos interesses dos seus<br />

mentores. Como diz Lobo (apud FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p. 21) ao<br />

manifestar-se sobre o princípio em estudo, pois ele representa “um<br />

valor objetivo de organização que deve ser preservado, pois toda crise<br />

da empresa causa um prejuízo à comunidade”.<br />

O objetivo econômico da preservação da empresa previsto no art.<br />

47 da Lei n. 11.101/05, deve preponderar, em regra, sobre o objetivo<br />

jurídico da satisfação do título executivo, se este for considerado<br />

apenas como a realização de pretensão singular. Assim, o regime<br />

jurídico de insolvência não deve ficar preso ao maniqueísmo que se<br />

revela no embate entre a pretensão dos credores e o interesse do<br />

devedor. A empresa não é mero elemento da propriedade privada,<br />

pois nas crises, sofrem o próprio devedor, os credores e a sociedade.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 177


José Lauri Bueno de Jesus<br />

Decorrentemente desses princípios elencados, surge o princípio<br />

geral da solvabilidade jurídica, no qual as obrigações (legais ou<br />

convencionais) devem ser voluntariamente cumpridas, ou o Estado<br />

deverá aplicar as consequências jurídicas previstas para o seu<br />

descumprimento, exercendo (o Estado), para tanto, o seu poder de<br />

coerção. Claro está o art. 91, do Código Civil de 2002, em que afirma<br />

ser uma universalidade de direito o complexo das relações jurídicas,<br />

de uma pessoa, dotadas de valor econômico. Também, o art. 391,<br />

do Código Civil, confirma que pelo inadimplemento das obrigações<br />

respondem todos os bens do devedor.<br />

Obviamente, o princípio geral da solvabilidade jurídica pressupõe<br />

que o patrimônio ativo (positivo) da pessoa tenha capacidade<br />

econômica de suportar as obrigações constantes no seu patrimônio<br />

passivo (negativo). Por outro lado, entretanto, deve ficar claro que a<br />

insolvência civil e insolvência do empresário ou sociedade empresária<br />

são regimes jurídicos diversos, pois o primeiro é raro, e o segundo é<br />

muito comum.<br />

Assim, a empresa é bem jurídico cuja proteção se justifica não<br />

apenas em função dos interesses de seus sócios, mas de seus<br />

empregados, fornecedores, consumidores, investidores, do Estado<br />

e, enfim, da sociedade, que, mesmo indiretamente, se beneficia de<br />

suas atividades. E, sendo assim, o regime alternativo à falência é a<br />

recuperação de empresa.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Em uma breve análise, percebe-se que a antiga legislação<br />

falimentar (Decreto-lei n. 7661/45), padecia de diversas incoerências<br />

com a realidade brasileira, desprestigiando a importância social da<br />

empresa, em virtude da existência de muitas dissonâncias que<br />

aconteciam na época. Com o intuito de sanar tais deficiências, dentre<br />

outras, foi criado o instituto da recuperação judicial e extrajudicial,<br />

por meio da Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, cujo principal<br />

objetivo é viabilizar a preservação da empresa, a sua função social e<br />

o estímulo à atividade econômica, para minimizar o desemprego.<br />

178 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />

Assim, esse novo e moderno instituto jurídico se compatibiliza<br />

com as tendências internacionais, ao atender as peculiaridades<br />

e necessidades da empresa em crise, em um esforço criativo para<br />

viabilizar a sua continuidade, como ocorre na maioria dos países<br />

desenvolvidos, a exemplo dos Estados Unidos, Itália, Portugal, Japão,<br />

Espanha e França.<br />

Contudo, é imperioso ressaltar que a nova lei de falência e<br />

recuperação de empresa também foi, e ainda é, alvo de severas<br />

críticas, especialmente ao outorgar aos credores o poder de decisão<br />

quanto ao plano de recuperação apresentado pelo devedor, limitando,<br />

dessa forma, as atribuições da autoridade judiciária. Com isso, os<br />

credores irão aprovar ou rejeitar a recuperação judicial, segundo as<br />

suas conveniências, evitando dar margem a fraudes e conluios, além<br />

de não privilegiar os interesses dos grandes credores, em detrimento<br />

do previsto na legislação.<br />

Além disso, alguns juristas e empresários conservadores tecem<br />

críticas à nova sistemática legal por não retirar do Poder Judiciário os<br />

procedimentos mais demorados, quais sejam, a verificação do crédito<br />

e a habilitação dos credores, uma vez que cada impugnação ainda<br />

precisará de parecer do Ministério Público e sentença judicial. Não<br />

houve, portanto, qualquer avanço quanto à morosidade da justiça.<br />

Contudo, apesar da lei nova ter trazido uma inovação importante e<br />

digna de aplausos pelos juristas ao ampliar o rol de créditos submetidos<br />

à recuperação, exigir a apresentação e cumprimento de um plano de<br />

recuperação e ao disponibilizar meios variados para tanto, não se<br />

pode olvidar que o instituto restou fragilizado por ter outorgado vultoso<br />

poder aos credores.<br />

Concluindo, embora ainda apresente imperfeições, a nova Lei de<br />

Falências e Recuperação de Empresas (Lei n. 11.101/05) é fundamental<br />

para a economia brasileira e representa, inequivocadamente, um<br />

enorme avanço no tratamento dado às empresas em dificuldades, ao<br />

preservar empregos, privilegiar a recuperação financeira e viabilizar<br />

créditos, nos moldes dos países mais avançados.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 179


José Lauri Bueno de Jesus<br />

<strong>RE</strong>FERÊNCIAS<br />

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. Direito de<br />

empresa. 10. ed., São Paulo: Saraiva, 2010. Vol. 3.<br />

FAZZIO JUNIOR, Waldo. Lei de falência e recuperação de empresas.<br />

4. ed., São Paulo: Atlas, 2009.<br />

MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro. Falência e<br />

recuperação de empresa. 3. ed., São Paulo: Atlas, 2009. Vol. 4.<br />

OLIVEIRA, Celso Marcelo. Comentários à nova lei de falências.<br />

São Paulo: IOB Thomson, 2005.<br />

RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial sistematizado.<br />

Recebido: 11-7-2014<br />

Aprovado: 10-10-2014<br />

180 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />

DI<strong>RE</strong>ITO<br />

A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA<br />

COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA<br />

FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADO<strong>RE</strong>S<br />

DO DI<strong>RE</strong>ITO<br />

The importance of criminology as an independent discipline<br />

in higher education law of operators<br />

Clarissa Bohrer 32<br />

Resumo<br />

A Criminalística tem demonstrada a sua importância ao longo da evolução do estudo da Medicina Legal e<br />

do Processo Penal, cadeiras integrantes do curso superior de Ciências Jurídicas e Sociais. O profissional do<br />

Direito, entretanto, conclui a sua formação tendo apenas uma breve noção de conceitos que serão por ele<br />

utilizados sê membro das carreiras do Judiciário, do Ministério Público, das Promotorias e Defensorias ou<br />

na qualidade de advogado. Entretanto, caso opte por uma das carreiras da Segurança Pública (Polícias civil<br />

e militar e Perícia oficial) terá uma abrangência de conhecimentos que lhes capacitarão verdadeiramente<br />

para labutar na seara criminal. Assim, será proposta a inclusão da Criminalística como disciplina autonôma<br />

dos cursos superiores de Direito, dada a sua importância para todos os operadores do Direito, sejam<br />

profissionais da Segurança Pública ou não.<br />

Palavras-chave: Criminalística. Autonomia. Educação superior.<br />

Abstract<br />

The Criminalistics has demonstrated its importance during the evolution of the study of Forensic Medicine<br />

and Criminal Procedure, members of chairs degree in Law and Social Sciences. The professional law,<br />

however, concluded his training with only a brief notion of concepts that will be used by him a member of<br />

the careers of the Judiciary, the Public Ministry, the Prosecutors and Defenders or as a lawyer. However, if<br />

you opt for a career in Public Safety (civil and military official and Expertise Police) will have a breadth of<br />

knowledge that will enable them truly to toil in the criminal realm. Thus, the inclusion of Criminology will be<br />

proposed as an autonomous discipline of higher education in law, given its importance to all operators of<br />

Law, Public Safety are professionals or not.<br />

Keywords: Criminalistics. Top autonomia. Educação.<br />

Sumário:<br />

1. Introdução; 2. Revisão de literatura; 2.1. Histórico da criminalística; 2.2 A criminalística como disciplina<br />

autônoma; 3. A criminalística como disciplina autônoma nos cursos de formação para profissionais da<br />

segurança pública; 3.1. A crise na educação e os novos paradigmas; 4. Considerações finais; 5. Referências<br />

32 Docente do Instituto Cenecista de Santo Ângelo (IESA) na Faculdade de Direito e leciona a disciplina de Medicina Legal. Perita<br />

Criminal do Instituto – Geral de Perícias (IGP) lotada no Posto de Criminalística de Santo Ângelo. Especialista em Direito Público<br />

pela Escola da Magistratura Federal (ESMAFE) e em Docência para o Ensino Superior pelo IESA. Graduada em Ciências Jurídicas<br />

e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Email: clabohrer13@hotmail.com<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 181-192


Clarissa Bohrer<br />

INTRODUÇÃO<br />

O mais antigo tratado de medicina forense conhecido é o livro<br />

chinês Hsi Yuan Lu (O desaparecer dos erros), datado do século XIII.<br />

Acima de tudo, esse trabalho já sublinhava a importância de examinar<br />

a cena de um crime, afirmando que “a diferença de um cabelo é a<br />

diferença de mil li” 33 (BENFICA, 2003).<br />

No final do século XVIII, a Medicina Legal obteve o reconhecimento<br />

de sua condição como disciplina autônoma vinculada ao Direito.<br />

Podem-se citar como obras de fundamental importância a publicada<br />

por Johannes Bohn, de Liipzig, Lesões Corporais – Lesões em vida<br />

e post-mortem, e o primeiro tratado espanhol de Medicina Legal, de<br />

autoria de Juan Fernandez de Valles.<br />

A partir do século XIX, nos primórdios da fase técnico-científica,<br />

cabia à Medicina Legal, além dos exames de integridade física do corpo<br />

humano, toda a pesquisa, busca e demonstração de outros elementos<br />

relacionados com a materialidade do fato penal, como o exame dos<br />

instrumentos do crime e de mais evidências extrínsecas ao corpo humano.<br />

Assim, pode-se afirmar que a perícia médica precedeu, em<br />

muitos séculos, à perícia criminalística, e que essa disciplina é um<br />

desdobramento da medicina legal.<br />

Com o advento de novos conhecimentos e o desenvolvimento<br />

das áreas técnicas, como a física, a química, a biologia, a matemática,<br />

a toxicologia e outras, tornou-se necessária a criação de uma nova<br />

disciplina de pesquisa, análise e interpretação dos vestígios materiais<br />

encontrados em locais de crime. Isso se tornaria fonte imperiosa de<br />

apoio à Polícia e à Justiça, para o fiel cumprimento de sua missão, no<br />

intuito de esclarecer e provar fatos.<br />

Assim, tem-se o surgimento da Criminalística como disciplina<br />

autônoma, auxiliar e informativa do Direito Judiciário Penal. É autônoma<br />

por não estar inserida dentro de outra cadeira material ou processual<br />

das Ciências Jurídicas ou Sociais, ou mesmo, da Medicina; por outro<br />

lado, é considerada auxiliar do Direito Penal e do Processo Penal,<br />

disciplinas que se ocupam da descoberta e verificação científica do<br />

33 Um “li” representa uma milha chinesa.<br />

182 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADO<strong>RE</strong>S DO DI<strong>RE</strong>ITO<br />

delito e do delinquente, e servem de auxílio aos órgãos encarregados<br />

da administração da Justiça.<br />

<strong>RE</strong>VISÃO DE LITERATURA<br />

Histórico da Criminalística<br />

Criminalística é a disciplina que tem por objetivo o reconhecimento<br />

e a interpretação dos indícios materiais extrínsecos, relativos ao crime<br />

ou à identidade do criminoso. Os exames, nos vestígios intrínsecos e<br />

na pessoa, seriam da alçada da Medicina Legal (disciplina integrante<br />

da Perícia Criminal). Ou seja, é a parte das ciências criminais que,<br />

ao lado da Medicina Legal, tem por finalidade os estudos técnicos e<br />

científicos dos indícios materiais do delito e da possível identificação<br />

do seu autor, auxiliando, desse modo, os outros campos do Direito<br />

que dela necessitem.<br />

O perito criminal José Lopes Zarzuela (1996), profissional com<br />

mais de trinta anos de atuação na área da Perícia Oficial e conhecedor<br />

de que a criminalística é, eminentemente, dinâmica e sua evolução<br />

doutrinária acompanha o desenvolvimento da química, da física,<br />

da biologia, da medicina, da engenharia, dentre outras disciplinas,<br />

formulou conceito que se ajusta à revolução de idéias que o mundo<br />

contemporâneo atravessa:<br />

[...] a criminalística constitui o conjunto de conhecimentos científicos, técnicos,<br />

artísticos, etc., destinados à apreciação, interpretação e descrição escritas dos<br />

elementos de ordem material encontrados no local do fato, no instrumento de crime<br />

e na peça de exame, de modo a relacionar uma ou mais pessoas envolvidas em um<br />

evento, às circunstâncias que deram margem a uma ocorrência, de presumível ou<br />

evidente interesse judiciário.<br />

Entre os principais postulados que visam a esclarecer o significado<br />

da criminalística é possível destacar aquele que diz: “o conteúdo de<br />

um laudo pericial é invariante com relação ao perito que o produziu”,<br />

ou seja, os resultados são, invariavelmente, baseados em métodos<br />

científicos, por meio de teorias e experiências já consagradas, sendo<br />

que qualquer perito que recorra às leis, para analisar um fenômeno<br />

criminalístico, obterá um resultado que independerá dele como pessoa.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 183


Clarissa Bohrer<br />

Também há aquele que refere que “as conclusões de uma perícia<br />

criminalística não dependem dos meios utilizados para alcançá-las”.<br />

Significa que é preciso o uso de meios adequados para se concluir<br />

a respeito do fenômeno criminalístico; essa conclusão, ao serem<br />

reproduzidos os exames, seja para confirmação do resultado, seja<br />

para contraprova da defesa em um crime doloso contra a vida, será<br />

constante, independentemente de terem sido utilizados meios mais<br />

rápidos, mais precisos, mais modernos ou não.<br />

Por fim, “a perícia criminalística é independente do fator temporal”,<br />

pois é do conhecimento de todos os operadores do direito que a<br />

verdade é imutável em relação ao tempo decorrido.<br />

Além dos postulados criminalísticos, há os princípios considerados<br />

fundamentais a respeito da perícia criminalística que se referem à<br />

observação, análise, interpretação, descrição e documentação da<br />

prova.<br />

No tocante ao postulado da observação, é possível aludir que<br />

todo o contato deixa uma marca. Isso se comprova quando, no local<br />

do crime, ocorre a pesquisa e a busca por vestígios, missão que, nem<br />

sempre, é fácil em razão dos vestígios deixados no local, seja pela<br />

vítima, seja pelo autor.<br />

Ao falar do princípio da análise pericial, é preciso apontar que ela<br />

deve sempre seguir o método científico, uma vez que a perícia científica<br />

visa a definir como o fato ocorreu por meio de uma análise criteriosa,<br />

seguida de uma coleta de dados, as quais permitam estabelecer como<br />

ocorreu o fato e formular, inclusive, hipóteses coerentes sobre ele. Às<br />

vezes, é possível o desenvolvimento desse método ainda no local do<br />

crime, quando não for preciso auxílio de algum aparelho ou exame<br />

complementar.<br />

A respeito do princípio da interpretação, há o entendimento de que<br />

dois objetos podem ser semelhantes, mas nunca idênticos. É preciso<br />

individualizá-los sendo que, para tal, ocorre a identificação genérica, a<br />

específica e a individual. Os exames periciais devem alcançar sempre<br />

este último grau em suas coletas.<br />

184 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADO<strong>RE</strong>S DO DI<strong>RE</strong>ITO<br />

O princípio da descrição aponta, sempre, para o resultado de um<br />

exame pericial que é constante em relação ao tempo, e sua exposição<br />

deve ser feita em linguagem ética e juridicamente perfeita.<br />

Por fim, há o princípio da documentação que refere que toda a<br />

amostra deve ser documentada, desde o seu nascimento, no local<br />

do crime, até sua análise e descrição final, com o objetivo único de<br />

estabelecer um histórico fiel e completo de sua origem. Assim, há<br />

proteção e fidelidade da prova, evitando considerações sobre provas<br />

forjadas para incriminar ou inocentar alguém (DO<strong>RE</strong>A, QUINTELA;<br />

STUMVOLL, 2005).<br />

A Criminalística como disciplina autônoma<br />

A criação da disciplina de Criminalística é atribuída ao Professor<br />

Hans Gross, eminente catedrático de Direito Penal, na Universidade de<br />

Graz, na Áustria, e ex-juiz instrutor, em livro publicado em 1886, Manual<br />

do Juiz de Instrução – Todos os sistemas de criminalística (System<br />

der Kriminalistik) 34 . A obra abrange a gama de conhecimentos<br />

científicos e práticos, úteis e necessários ao Juiz instrutor do processo<br />

penal, estando incluídas as diversas disciplinas da perícia forense:<br />

a Medicina Legal, a Antropologia Criminal, a Psicologia Criminal, a<br />

Psicologia do Testemunho, a Psiquiatria e a Psicopatologia Forense.<br />

Para Hans Gross, Criminalística seria o estudo da fenomenologia do<br />

crime e dos métodos práticos de sua investigação.<br />

O juiz, entretanto, na maior parte das vezes, havia de se socorrer<br />

das diversas categorias de peritos leigos, ou seja, profissionais<br />

de respectivas áreas do conhecimento, todavia carentes de<br />

preparo intelectual capaz de habilitá-los a articularem respostas<br />

necessariamente precisas e claras aos questionamentos formulados<br />

a serem esclarecidos.<br />

Assim, o elo natural entre o jurista e os peritos leigos, esses carentes<br />

de preparo intelectual, aquele com formação intelectual superior, ocorreu<br />

entre o juiz e o médico, este detentor de cultura geral e formação<br />

específica equivalente ao do magistrado (RABELLO, 1996).<br />

34 Originalmente, Handbuch fürUntersuchungsrichter als System der Kriminalistik<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 185


Clarissa Bohrer<br />

Paralelamente à criação da criminalística, na Argentina, Juan<br />

Vucentich, funcionário do Departamento de Polícia da Província de<br />

La Plata, encarregado da Oficina de Identificação, criava, em 1891,<br />

e colocava em funcionamento, em 1892, na repartição em que<br />

trabalhava, o Sistema Datiloscópico, considerado, até hoje, o mais<br />

perfeito sistema prático de identificação datiloscópica.<br />

O Sistema foi, pela primeira vez, utilizado, com êxito, no famoso<br />

caso Teresa Rojas de Necochea, o homicídio de duas crianças de<br />

forma brutal em que a mãe atribuía a autoria a determinado homem.<br />

Entretanto, de acordo com as impressões papilares deixadas no cabo<br />

do instrumento do crime, foi constatado que a autoria do delito fora<br />

da própria mãe das crianças. Com isso, resolveu-se, em definitivo,<br />

o problema de determinação científica da identidade física do ser<br />

humano, proporcionando à Justiça a prova irrefutável da identidade<br />

da autoria do delito.<br />

A partir do desenvolvimento da Medicina Legal, da Criminalística<br />

e da Papiloscopia, foi a Polícia quem primeiro fez uso da Perícia<br />

Criminal, durante a persecução penal.<br />

A Polícia, no setor de investigação criminal, já possuía, em seu<br />

quadro funcional, o médico legista, que resolvia, em definitivo, o<br />

problema da verificação e da prova da identidade física do indivíduo,<br />

inclusive pelos vestígios materiais deixados no local do crime e nos<br />

objetos vinculados ao fato.<br />

A evolução da Perícia Criminal ocorreu, basicamente, no interior<br />

das instituições policiais, o que ensejou as incorretas denominações<br />

de Polícia Técnica, Polícia Científica e, até, Policiologia.<br />

Via de regra, é da Polícia a incumbência das primeiras providências<br />

na ocorrência de significado jurídico penal. Quando toma conhecimento<br />

do fato, é dela a missão de investigá-lo, de apurar, devidamente, a<br />

sua natureza e suas circunstâncias de possível interesse para o juízo<br />

criminal, cumprindo, dentro das regras de Direito, valer-se de todos os<br />

recursos disponíveis.<br />

Ocorre que o investigador criminal é um profissional desprovido<br />

de conhecimentos técnicos, podendo, até mesmo, concorrer para<br />

186 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADO<strong>RE</strong>S DO DI<strong>RE</strong>ITO<br />

a destruição ou perda de elementos indiciários valiosos que, se<br />

devidamente preservados por ele e adequadamente examinados por<br />

um especialista, podem conduzir a investigação penal com brevidade<br />

e certeza à completa elucidação do fato investigado.<br />

Tem-se, então, a criação da figura do perito criminal, agente que<br />

concorre com seus conhecimentos e recursos de ordem técnico-<br />

-científica, na investigação, para o esclarecimento e a prova de<br />

questões de fato, cujo exame estiver compreendido no seu setor<br />

particular de especialização.<br />

Ao policial, portanto, há a incumbência de solicitar ou requisitar<br />

o atendimento especializado dos peritos criminais que não atuam de<br />

ofício, mas tão somente em atendimento à solicitação da autoridade −<br />

quer policial, quer judiciária.<br />

A CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA<br />

AUTÔNOMA NOS CURSOS DE FORMAÇÃO PARA<br />

PROFISSIONAIS DA SEGURANÇA PÚBLICA<br />

Os ramos da perícia criminal são quatro, a saber: a Medicina Legal,<br />

a Criminalística, a Papiloscopia e o Laboratório de Perícias, sendo<br />

que a Criminalística abrange todas as demais análises técnicas, como<br />

as perícias de: Documentoscopia, Grafoscopia, Balística, Impressões<br />

Papilares, Computação Forense, Engenharia Legal, Meio Ambiente,<br />

Audiovisual, Acidentes de Tráfego, Mortes Violentas, Crimes contra<br />

o Patrimônio, Identificação de Veículos, Reprodução Simulada de<br />

Fatos, dentre outras.<br />

No Rio Grande do Sul, existem quatro orgãos que compõem a<br />

Segurança Pública (Polícia Civil, Brigada Militar, Instituto Geral de<br />

Perícias - IGP e Superintendencia de Serviços Penintenciários –<br />

SUSEPE). Após o ingresso por meio de concurso público de provas e/<br />

ou títulos, os membros desses orgãos – seja na qualidade de agente,<br />

seja na de autoridade – deverão obrigatoriamente frequentar um<br />

curso de formação, que será parte integrante do processo seletivo. Na<br />

matriz curricular desses cursos de formação, cada um em sua área<br />

específica, deverá ser ministrada a disciplina de Criminalística. Essa<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 187


Clarissa Bohrer<br />

disciplina é, preponderantemente, ofertada por peritos oficiais, dentre<br />

eles, peritos criminais, papiloscopistas e médicos-legistas.<br />

Inconteste a necessidade da oferta dessa disciplina nos cursos<br />

de formação, pois os profissionais da segurança pública irão<br />

verdadeiramente lidar com os conceitos necessários e fornecidos pela<br />

Criminalística para buscar preservar o trabalho, principalmente, dos<br />

peritos na busca da verdade real.<br />

A Crise na Educação e os Novos Paradigmas<br />

Nas IES (Instituição de Ensino Superior) do Brasil, não existe<br />

a cadeira da Criminalística como disciplina autônoma nos cursos<br />

superiores de Direito. Em algumas, como, em especial, no Rio Grande<br />

do Sul, existe o conteúdo programático da Criminalistica inserido na<br />

disciplina de Medicina Legal e na disciplina de Processo Penal.<br />

Em decorrência da formação acadêmica que, na quase totalidade<br />

das Faculdades de Direito não contempla a Criminalística na<br />

grade curricular, muitos profissionais da área jurídica − advogados,<br />

promotores, defensores, juízes − encontram dificuldades para elaborar,<br />

corretamente, os quesitos ao perito, apresentar questionamentos em<br />

audiência, solicitar o adequado exame pericial, construir uma tese de<br />

defesa ou de acusação com base no laudo pericial.<br />

As IES, atualmente, devem, segundo Dias Sobrinho(2002),<br />

responder a desafios ou ao menos ajudar na solução de problemas,<br />

tais como na formação de mão-de-obra de alto nível para o<br />

atendimento de demandas imediatas no mundo do trabalho, formação<br />

qualificada para novas ocupações, além da formação para a inovação,<br />

preservação e desenvolvimento da alta cultura. Importante, ainda,<br />

na visão desse pensador, a capacitação de professores de todos os<br />

níveis e a formação de novos pesquisadores.<br />

O que as IES devem pretender, na atualidade das diversas “crises<br />

de paradigmas” é a melhoria do processo-ensino aprendizagem no<br />

seio da universidade. O novo paradigma científico requer novas<br />

perspectivas para a apreensão e compreensão dos fenômenos<br />

educacionais. Tal perspectiva é necessária do processo educacional<br />

188 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADO<strong>RE</strong>S DO DI<strong>RE</strong>ITO<br />

desenvolvido nas universidades, pois é a partir de sua formação<br />

acadêmica que os profissionais das IES, terão a capacidade de<br />

atribuirem sentido aos dados e fatos apresentados pela realidade,<br />

numa tentativa de compreendê-los e convertê-los em discurso, o que<br />

é fundamental para a renovação da prática pedagógica (WERLE,<br />

2011).<br />

Primeiramente deve-se tratar o que é a crise de paradigmas. Sabe-<br />

-se que é uma questão limitada a um pequeno círculo intelectual, pois<br />

a grande parte da população sequer sabe o que significa “paradigma”.<br />

Com relação à Educação, o modelo então vigente é colocado em xeque,<br />

gerando verdadeira “orfandade ideológica” (GARCIA, 1994, p.58).<br />

Numa primeira visão, “paradigma” refere-se à teoria (leis,<br />

conceitos, modelos, analogias, regras) mas, também, implica em<br />

valores em visões e compreensões de mundo. Ainda se refere a<br />

quadros de referência teórico-metodológicos.<br />

Para Mendonça (1994), a crise sentida no campo da educação é<br />

justificada pelo isolamento do campo – de ensino – e a inconsistência<br />

teórica, ou seja, a delimitação de fronteiras de outros campos<br />

enquanto que a natureza da Educação, enquanto objeto de estudo – é<br />

necessariamente interdisciplinar<br />

O mercado exige e a universidade deve atender aos anseios dele.<br />

O mercado necessita do conhecimento produzido no meio acadêmico.<br />

Isso porque o aluno que está na universidade é aquele que irá para<br />

o mercado, então, já deve ir preparado para ter as reais condições<br />

de competitividade. A universidade não se transformará em simples<br />

marca, mas, sim, em responsável pelo futuro empreendedor, no futuro<br />

empregado e empregador. E esse é o seu papel, o de responsável<br />

social pela formação de seus alunos.<br />

Com base nisso, os futuros operadores do Direito têm a<br />

necessidade de se equipararem no estudo da ciência da Criminalística,<br />

enquanto servidores públicos dos diversos órgãos da Administração<br />

Direta, do Poder Judiciário, Ministério Público e Defensorias, ou na<br />

qualidade de advogados, pois iram labutar em condições de igualdade<br />

no embate criminal dos servidores da Segurança Pública.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 189


Clarissa Bohrer<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Este artigo apresentou a importância do estudo da Criminalística<br />

para os futuros operadores do Direito. Em que pese a ciência estar<br />

sendo tratada como conteúdo programático das disciplinas de Medicina<br />

Legal e de Processo Penal, faz-se necessária a sua transcendência<br />

para o patamar de disciplina autônoma dos cursos de Direito, haja<br />

vista já estar assim sendo tratada nos cursos de formação para os<br />

profissionais de Segurança Pública.<br />

Hoje, juízes, promotores, defensores e advogados não sabem<br />

interpretar um laudo oficial, pura e simplesmente, por falta de formação<br />

acadêmica. Não é apenas o profissional da Segurança Pública que<br />

deve deter esse conhecimento: são todos os envolvidos na persecução<br />

penal. Todavia, para que isso ocorra, é necessário haver alterações na<br />

estrutura curricular, a fim de que, finalmente, os futuros bacharéis em<br />

Ciências Jurídicas e Sociais possam se equiparar em conhecimentos<br />

com os agentes da Segurança Pública.<br />

Com a transformação e as reflexões advindas das instituições de<br />

ensino superior (IES), conforme demonstrado ao longo deste trabalho,<br />

o momento é propício para se inserir nas matrizes curriculares o<br />

estudo da metodologia científica da investigação criminal, no mundo<br />

da ciência Criminalística, com o intuito da emancipação profissional<br />

dos operadores do Direito.<br />

Importante frisar que o relacionamento entre as disciplinas<br />

permite, além de descobrir o entendimento específico de cada uma<br />

quanto ao seu objeto, mas motivar a autorreflexão sobre os próprios<br />

olhares restritos que delimitam seus questionamentos. (FLICKINGER,<br />

2007).<br />

Pode-se inferir, por fim, que os conhecimentos oferecidos pela<br />

perícia criminal são imprescindíveis para todos os profissionais que<br />

lidam com o processo penal, desde os agentes públicos da Segurança<br />

Pública, até advogados, defensores públicos, promotores e juízes<br />

criminais. E esse conhecimento deve ser ofertado nas Instituições de<br />

Ensino Superior (IES), nos Cursos de Direito.<br />

190 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADO<strong>RE</strong>S DO DI<strong>RE</strong>ITO<br />

<strong>RE</strong>FERÊNCIAS<br />

AUDY, Jorge L. N.; MOROSINI, Marília C. (Org). Inovação e<br />

interdisciplinaridade na Universidade. Porto Alegre: EdiPucrs,<br />

2007.<br />

BENFICA, Francisco Silveira; VAZ, Márcia. Medicina legal aplicada<br />

ao Direito. São Leopoldo: Unisinos, 2003.<br />

DIAS SOBRINHO, José. Universidade e avaliação. Entre a ética e o<br />

mercado. Florianópolis: Insular, 2002.<br />

DO<strong>RE</strong>A, Luiz Eduardo Carvalho; QUINTELA, Victor; STUMVOLL,<br />

Victor Paulo. Tratado de perícias criminais. 3. ed. Campinas:<br />

Millennium, 2006.<br />

GARCIA, Pedro Benjamin. Paradigmas em crise e a educação. In:<br />

BRANDÃO, Taia (Org.). A Crise dos Paradigmas em Educação. São<br />

Paulo: Cortez, 1994.<br />

MENDONÇA, Ana Waleska Pollo Campos. A história da educação<br />

face à “crise dos paradigmas”. In: BRANDÃO, Zaia (Org.). A crise<br />

dos paradigmas em educação. São Paulo: Cortez, 1994.<br />

RABELLO, Eraldo. Curso de criminalística: sugestão de programa<br />

para as faculdades de direito. Porto Alegre: Sagra DC Luzzatto, 1996.<br />

WERLE, Vera Maria. Pesquisa em educação. Uma reflexão<br />

paradigmática. Santo Ângelo: [s.n.], 2011. Apostila.<br />

ZARZUELA, José Lopes. Temas fundamentais de criminalística.<br />

Porto Alegre: Sagra DC Luzzatto, 1996.<br />

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2010.<br />

FINCATO, Denise Pires. Estágio de docência, prática jurídica e<br />

distribuição de justiça. Revista Direito GV, São Paulo, v. 6, n. 1, p.<br />

29-37, 2010. Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2011.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 191


Clarissa Bohrer<br />

LUDWIG, Artulino. A perícia em local de crime. Canoas: Ulbra, 1996.<br />

MACHADO, Cláudio; MACHADO, Solange. Estudos periciais: teoria,<br />

prática e legislação. Porto Alegre: Alcance, 1997.<br />

<strong>RE</strong>IS, Albani Borges dos. Metodologia científica e perícia criminal.<br />

Campinas: Millenium, 2006.<br />

ROSISTOLATO, Rodrigo. Significados da cultura entre estudantes<br />

de direito. Revista Avaliação, Campinas, v. 15, n. 2, p. 73-92, 2010.<br />

Disponível em: .<br />

Acesso em: 15 mar. 2011.<br />

Recebido: 5-8-2014<br />

Aprovado: 17-10-2014<br />

192 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />

DI<strong>RE</strong>ITO<br />

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES,<br />

CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA<br />

APLICAÇÃO<br />

Dignity of the human person: limits, criteria and assumptions<br />

for your application<br />

Resumo<br />

Adriana Liberalesso 35<br />

Bruna Escobar 36<br />

Carla Dóro de Oliveira 37<br />

Tainá Borges 38<br />

Vera Maria Werle 39<br />

O presente trabalho tem por objetivo a apresentação das noções principais acerca do princípio<br />

constitucional da dignidade da pessoa humana, especialmente no que tange à delimitação de um conceito<br />

jurídico possível, bem como da delimitação de conteúdos mínimos para a sua correta aplicação pelo<br />

operador do direito. Por fim, buscar-se-á demonstrar de que forma tem se dado a utilização desse princípio<br />

pela jurisprudência brasileira frente ao caso concreto.<br />

Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana. Princípio da ponderação. Conteúdos mínimos. Mínimo<br />

existencial.<br />

Abstract<br />

The present work aims at presenting the main notions of the constitutional principle of human dignity,<br />

especially with regard to the delimitation of a possible legal concept, as well as the delimitation of minimum<br />

content for their correct application by the operator on the right. Finally, we will seek to demonstrate is that<br />

form has been given the use of this principle by the Brazilian jurisprudence opposite case.<br />

Keywords: Dignity of the human person. Principle of weighting. Minimum contents. Existential minimum.<br />

Sumário:<br />

Introdução; 1. Evolução histórica; 2. Natureza jurídica; 3. A aplicação do princípio da dignidade da pessoa<br />

humana tendo como parâmetro o princípio da ponderação, a delimitação de conteúdos e o mínimo<br />

existencial; 4. A utilização do princípio da dignidade da pessoa humana pela jurisprudência atual; 5.<br />

Conclusão; 6. Referências.<br />

35 Acadêmica do 8º período do curso de Direito da Universidade de Passo Fundo. E-mail: adri_liberalesso@hotmail.com.<br />

36 Acadêmica do 8º período do curso de Direito do Instituto de Ensino Superior de Santo Ângelo. E-mail: bruna-escobar@hotmail.com.<br />

37 Acadêmica do 8º período do curso de Direito do Instituto de Ensino Superior de Santo Ângelo. E-mail: carlinha_doro@hotmail.com.<br />

38 Acadêmica do 8º período do curso de Direito do Instituto de Ensino Superior de Santo Ângelo. E-mail: tainathaisb@hotmail.com.<br />

39 Mestre em Desenvolvimento, Gestão e Cidadania. Orientadora. Professora do Curso de Direito do Instituto de Ensino Superior de<br />

Santo Ângelo.E-mail: verawerle@brturbo.com.br.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 193-216


Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />

INTRODUÇÃO<br />

O presente estudo tem por objetivo a busca por uma melhor<br />

compreensão da dignidade da pessoa humana. Vê-se que,<br />

hodiernamente, os operadores do Direito têm dificuldade na<br />

conceituação da dignidade humana, vendo nessa um instituto, muitas<br />

vezes, vazio de significado. O principal escopo desse trabalho é evitar<br />

que a dignidade da pessoa humana seja vista, conforme destaca Luis<br />

Roberto Barroso, como um espelho “no qual cada um projeta sua<br />

própria imagem de dignidade” (2010, p. 3). Para tanto, far-se-á uma<br />

análise da evolução história desse princípio, buscando-se entender<br />

de que forma ele alcançou tamanha importância nos diversos<br />

ordenamentos jurídicos ao redor do mundo. Ademais, examinar-se-á<br />

a natureza jurídica da dignidade humana, expondo-se conceitos e<br />

fazendo-se alusão à atual jurisprudência brasileira, e a forma como a<br />

dignidade humana vem sendo aplicada.<br />

EVOLUÇÃO HISTÓRICA<br />

A dignidade da pessoa humana, na forma como é tratada<br />

atualmente, tem origem religiosa. Foi com o cristianismo que a<br />

dignidade humana teve traçados seus primeiros contornos, a partir<br />

do reconhecimento do homem como imagem e semelhança de Deus.<br />

Cabe destacar que esse reconhecimento se dava muito mais no plano<br />

espiritual, uma vez que, mesmo durante o cristianismo, homens eram<br />

escravizados e transformados em objetos a serviço de um fim.<br />

É esse o entendimento de Luís Roberto Barroso, para quem a<br />

dignidade da pessoa humana tem origem bíblica, já tendo passado<br />

pela filosofia, para posteriormente se tornar um objetivo político e, por<br />

fim, ingressar no mundo jurídico. O autor ainda explica que somente<br />

com o Iluminismo, com o advento da visão antropológica de mundo, a<br />

dignidade da pessoa humana passa para o campo da Filosofia, tendo por<br />

fundamento a razão e a capacidade de autodeterminação do indivíduo.<br />

Immanuel Kant, importante filósofo do Iluminismo, é o principal<br />

responsável pela ideia contemporânea da dignidade da pessoa<br />

humana. Barroso expõe que, segundo Kant, “tudo tem um preço ou<br />

194 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />

uma dignidade. As coisas que não têm preço podem ser substituídas<br />

por outras equivalentes. Mas quando uma coisa está acima de todo<br />

o preço, e não pode ser substituída por outra equivalente, ela tem<br />

dignidade” (2010, p. 17). O autor ainda afirma que, segundo tal<br />

pensamento,<br />

[...] todo homem é um fim em si mesmo, não devendo ser<br />

funcionalizado a projetos alheios; as pessoas humanas não têm<br />

preço nem podem ser substituídas, possuindo um valor absoluto,<br />

a qual se dá o nome de dignidade (2010, p. 18).<br />

De acordo com Rafael Diogo Diógenes Lemos, o conceito de<br />

dignidade da pessoa humana proposto por Kant assumiu especial<br />

relevância, principalmente porque conseguiu “consolidar a laicidade<br />

do conceito, permitindo sua adoção por toda a humanidade,<br />

independentemente de religião” (20<strong>08</strong>, p. 44). Desse modo, foi graças<br />

a Kant que o conceito de dignidade da pessoa humana foi finalmente<br />

apartado do conceito religioso de dignidade.<br />

Luís Roberto Barroso explica que, ao longo do século XX, no<br />

entanto, foi que a dignidade humana ganhou uma denotação política,<br />

de forma a se tornar um objetivo a ser buscado pelo Estado e por toda<br />

a sociedade (2010, p. 4).<br />

Somente após a 2ª Guerra Mundial, a ideia de dignidade migrou<br />

para o mundo jurídico. Tal fenômeno ocorreu, especialmente, em<br />

razão das atrocidades produzidas nas duas grandes guerras mundiais,<br />

crueldades essas autorizadas pela lei, fundadas no Direito. É nesse<br />

contexto que surge um novo modelo ético-jurídico, pautado pela<br />

preocupação com a construção de uma sociedade justa e igualitária,<br />

baseada no respeito à liberdade individual e na consagração do<br />

respeito à pessoa humana.<br />

A inserção da dignidade da pessoa humana no plano jurídico se dá<br />

graças a dois movimentos, conforme explica Barroso. Primeiramente,<br />

“pelo surgimento de uma cultura pós-positivista, que reaproximou o<br />

direito da filosofia moral e da filosofia política”, e, em outro plano, pela<br />

“inclusão da pessoa humana em diferentes documentos internacionais<br />

e constituições de Estados Democráticos” (2010, p. 4).<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 195


Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />

Foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que<br />

possibilitou a maior valoração da dignidade da pessoa humana, uma<br />

vez que, em seu art. 1º, preconiza que “Todas as pessoas nascem livres<br />

e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência<br />

e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.<br />

Conforme explicam Paulo Gomes de Lima Júnior e Cleide<br />

Aparecida Gomes Rodrigues Fermentão, com a Declaração dos<br />

Direitos Humanos, diversos países passaram a adotar, em suas cartas<br />

constitucionais, o princípio da dignidade da pessoa humana:<br />

Após a segunda guerra mundial, com a Declaração Universal dos<br />

Direitos do Homem em 1948, vários países adotaram o princípio da<br />

dignidade da pessoa humana em suas constituições. A Alemanha (art.<br />

1º, inciso I), a Espanha (preâmbulo e art. 10.1), a Grécia (art.2º, inc.<br />

I), a Irlanda (preâmbulo) e Portugal (art. 1º). A Constituição da Itália<br />

(art. 3º) refere-se à “dignidade social” de todos os cidadãos, embora<br />

não mencione expressamente a expressão “dignidade da pessoa<br />

humana”. A Constituição da Bélgica (art. 23) assegura “aos belgas<br />

e estrangeiros que se encontram em território belga o direito de levar<br />

uma vida de acordo com a dignidade humana”. Na América Latina o<br />

princípio encontra-se positivado expressamente nos seguintes textos<br />

constitucionais: Constituição do Brasil (art.1º, inciso III), Paraguai<br />

(preâmbulo), Cuba (art. 8º), Venezuela (preâmbulo), Peru (art. 4º),<br />

Bolívia (art. 6, inciso II), Chile (art. 1), Guatemala (art. 4). Constituição<br />

da Rússia aprovada em 1993 (art.12-1) (2012, p. 323).<br />

Tais transformações demonstram uma mudança de paradigma.<br />

O homem passa não mais a ser visto na condição de súdito, mas de<br />

cidadão, passa à condição de sujeito de direito. Ou seja, é o Estado<br />

agora que deve servir ao homem, que deve possibilitar a concretização<br />

de seus direitos básicos e zelar pela sua dignidade. Isso se torna ainda<br />

mais evidente nas cartas magnas dos países que inspiraram a atual<br />

constituição brasileira. É o que ocorre com as Constituições alemã,<br />

portuguesa, espanhola e italiana.<br />

Segundo Agenor Casaril, a lei fundamental alemã, promulgada<br />

no ano de 1949, “consagrou a dignidade da pessoa humana em seu<br />

texto, de modo expresso e solene, erigindo-a em direito fundamental,<br />

estabelecido em seu art. 1º” (2009, p. 96).<br />

196 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />

O citado autor faz referência a José Afonso da Silva para explicar<br />

que a positivação deste princípio tem por fundamento as crueldades<br />

produzidas pelo Estado nazista, o qual atacou a dignidade humana<br />

sob a égide da lei (2009). Frisa-se que a Constituição de Portugal,<br />

de 1976, em seu art. 1º e a Constituição italiana, de 1947, também<br />

consagraram a dignidade da pessoa humana em seus textos.<br />

Em nossa Constituição, a dignidade da pessoa humana veio<br />

disposta logo no art. 1º, inciso III, servindo como fundamento da<br />

República e ocupando posição de destaque, antes mesmo dos direitos<br />

fundamentais.<br />

NATU<strong>RE</strong>ZA JURÍDICA<br />

A determinação da natureza jurídica da dignidade humana,<br />

segundo Roberto Barroso, faz-se importante para que seja definido o<br />

seu conteúdo, modo de aplicação, bem como sua eficácia no âmbito<br />

jurídico (2010, p. 12).<br />

Em princípio, a dignidade humana era observada apenas pelo<br />

ramo da Filosofia, sendo por isso considerada como valor, ou seja,<br />

referindo-se apenas à ideia de justiça e de bondade. Contudo, a partir<br />

da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, a dignidade<br />

humana passou a ser incluída nos textos constitucionais de diversos<br />

países, passando pelo fenômeno da positivação no sistema jurídico.<br />

Consequentemente, a dignidade da pessoa humana começou a ser<br />

considerada não apenas no seu sentido axiológico, mas, também,<br />

como uma norma jurídica.<br />

Para melhor entendimento acerca da identificação da natureza<br />

jurídica da dignidade humana, torna-se necessária a definição de norma<br />

jurídica. O ordenamento jurídico é formado por um sistema de normas<br />

que são caracterizadas pela sua imperatividade e coercibilidade, ou<br />

seja, a norma jurídica define um dever-ser do sujeito, englobando<br />

atividades positivas (um agir) ou negativas (não agir), determinando<br />

como deve ser a conduta do indivíduo. Além disso, a norma jurídica<br />

pode fixar enunciados sobre a organização da sociedade e do<br />

Estado. Ademais, conforme Humberto Ávila, citado por Lima Júnior<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 197


Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />

e Fermentão, as normas jurídicas dividem-se em princípios, regras e<br />

postulados normativos, cujas diferenças e conceitos serão explorados<br />

a seguir (2012, p. 317).<br />

Na fase positivista, os princípios eram utilizados apenas como fonte<br />

normativa subsidiária dos textos legais, isto é, eram usados apenas<br />

como instrumento para preencher lacunas da lei. Foi na escola póspositivista<br />

que os princípios transformaram-se em normas vinculantes,<br />

não sendo mais utilizados apenas para preencher lacunas. Conforme<br />

conceituação apresentada por J. J. Gomes Canotilho,<br />

princípios são normas que exigem a realização de algo, da<br />

melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fácticas e<br />

jurídicas. Os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em<br />

termos de ‘tudo ou nada’; impõem a optimização de um direito ou<br />

de um bem jurídico, tendo em conta a ‘reserva do possível’, fáctica<br />

ou jurídica (2003, p. 1255).<br />

Conforme se pode inferir do conceito de princípio apresentado por<br />

Sidney Guerra e Lilian Márcia Balmant Emerique,<br />

os princípios transmitem a ideia de condão do núcleo do próprio<br />

ordenamento jurídico. Como vigas mestras de um dado sistema,<br />

funcionam como bússolas para as normas jurídicas, de modo<br />

que se estas apresentarem preceitos que se desviam do rumo<br />

indicado, imediatamente esses seus preceitos tornar-se-ão<br />

inválidos (2006, p. 7).<br />

Os princípios servem de fundamento para as regras jurídicas,<br />

além disso, servem de guia, de orientação, de critério para a melhor<br />

compreensão do restante do ordenamento jurídico. Os referidos não se<br />

confundem nem com as regras jurídicas e nem com valores jurídicos.<br />

Os valores jurídicos são, de acordo com explicações de Rizzato Nunes,<br />

citado por Lima Júnior e Fermentão, relativos, enquanto os princípios<br />

se “impõem como um absoluto, como algo que não comporta qualquer<br />

espécie de relativização” (2012, p. 316).<br />

Ademais, as regras possuem conteúdo mais objetivo que os<br />

princípios, sendo aplicadas quando o caso concreto coincide com as<br />

situações específicas apresentadas pelo seu texto. Em contrapartida,<br />

os princípios apresentam teor mais subjetivo, incidindo sobre várias<br />

198 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />

situações, sendo que “a demarcação de seu conteúdo estará sujeita à<br />

concepção ideológica ou filosófica do intérprete” (BARROSO, 2003, p.<br />

14). Argumenta, ainda, Luis Roberto Barroso que<br />

um exemplo é fornecido pelo princípio da dignidade da pessoa<br />

humana. Além de não explicitar os comportamentos necessários<br />

para realizar a dignidade humana – esta, portanto, é a primeira<br />

dificuldade: descobrir os comportamentos – poderá haver<br />

controvérsia sobre o que significa a própria dignidade a partir<br />

de um determinado conteúdo essencial, conforme o ponto de<br />

observação do intérprete (2003, p. 14).<br />

Observando estudos realizados por Dworkin e Alexy, citados por<br />

Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2012), a<br />

diferença entre as regras e os princípios é qualitativa. Os princípios<br />

não incidem seus efeitos jurídicos apenas com a ocorrência do fato,<br />

ou seja, não podem ser aplicados diretamente como as regras. Os<br />

princípios, por serem mais vagos e indeterminados, dependem de<br />

ponderação a ser realizada pelo aplicador do direito, podendo ser<br />

aplicados “diversos pesos” nos conflitos de princípios, de acordo com<br />

o caso concreto. Conforme explica Barroso,<br />

princípios são normas jurídicas que não se aplicam na modalidade<br />

tudo ou nada, como as regras, possuindo uma dimensão de<br />

peso ou importância, a ser determinada diante dos elementos<br />

do caso concreto. São eles mandados de otimização, devendo<br />

sua realização se dar na maior medida possível, levando-<br />

-se em conta outros princípios, bem como a realidade fática<br />

subjacente. Vale dizer: princípios estão sujeitos à ponderação<br />

e à proporcionalidade, e sua pretensão normativa pode ceder,<br />

conforme as circunstâncias, a elementos contrapostos (2010,<br />

p.11).<br />

Portanto, no caso de conflito entre regras, somente uma será<br />

válida e deverá prevalecer sobre a outra. Já, havendo conflito entre<br />

dois princípios, sua aplicação será feita conforme o princípio da<br />

ponderação, não será um princípio aplicado excluindo completamente<br />

o outro (não será aplicado no “tudo ou nada”), mas sim, de forma<br />

graduada, levando-se em conta as situações apresentadas.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 199


Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />

Resta ainda o conceito de postulados normativos. Estes são<br />

normas que complementam outras normas, ou seja, que ditam como<br />

outra norma deve ser aplicada ou interpretada pelo juiz.<br />

A dignidade da pessoa humana possui, pois, dupla natureza<br />

jurídica. Levando-se em conta os conceitos apresentados acima, a<br />

dignidade humana é um princípio norteador do ordenamento jurídico,<br />

que coordena os demais princípios e regras jurídicas, atuando não<br />

apenas como um mero princípio, mas também como um postulado<br />

normativo, na medida em que é utilizado como critério na aplicação e<br />

na interpretação das demais normas jurídicas pelo jurista.<br />

Ademais, sendo a dignidade da pessoa humana um princípio<br />

que fundamenta todo o ordenamento jurídico, conforme Art. 1º, III,<br />

da Constituição Federal de 1988, todo o ato que ferir a dignidade da<br />

pessoa humana, estará ferindo consequentemente os demais direitos<br />

fundamentais apresentados em nossa constituição.<br />

A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA<br />

PESSOA HUMANA TENDO COMO PARÂMETRO O<br />

PRINCÍPIO DA PONDERAÇÃO, A DELIMITAÇÃO DE<br />

CONTEÚDOS E O MÍNIMO EXISTENCIAL<br />

Revela-se de elevada importância a questão acerca da conceituação<br />

do princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que, conforme<br />

destacam Lima Júnior e Fermentão, estabelecer um conceito para a<br />

dignidade humana “é buscar os meios necessários para tornar o princípio<br />

efetivo” (2012, p. 324). Ou seja, muitas vezes, a escassez de um conceito<br />

palpável para o referido princípio acaba reduzindo a sua eficácia no<br />

momento de sua aplicação pelo operador do direito.<br />

Entretanto, uma conceituação única e precisa do que é a dignidade<br />

da pessoa humana é de difícil alcance por se tratar de um conceito<br />

polissêmico, isto é, que abrange várias sentidos e vários segmentos<br />

das ciências humanas, conforme já destacado no item que trata da<br />

evolução história deste princípio.<br />

Rafael Lemos (20<strong>08</strong>) apresenta diversas doutrinas acerca do<br />

tema, primeiramente afirmando que a dignidade da pessoa humana<br />

200 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />

não aceita relativizações, ou seja, não admite ponderação com outros<br />

princípios, porque, segundo tal teoria, se a dignidade humana se<br />

tratasse de um princípio como os demais previstos na Carta Magna,<br />

faltariam justificativas para o seu caráter norteador das demais normas.<br />

Portanto, tratar-se-ia de um superprincípio.<br />

O autor segue, no entanto, explicando que<br />

[...] admitir que ela (a dignidade da pessoa humana) não sofre<br />

ponderação – como superprincípio – ou que é possível o<br />

conflito exclusivamente consigo mesma é desvirtuar da moderna<br />

noção de princípios e, em última análise, atentar contra sua força<br />

normativa (20<strong>08</strong>. p. 55).<br />

Diante disso, apresenta-se uma dupla perspectiva da dignidade<br />

da pessoa humana, segundo a qual esse princípio funciona tanto<br />

como elemento limitador quanto como fator integrante dos direitos<br />

fundamentais. Sob esse prisma, a dignidade humana pode ser<br />

relativizada frente ao caso concreto. Rafael Lemos explica que,<br />

conferindo à dignidade humana um caráter absoluto, correr-se-ia o<br />

risco de o Estado vir à ruína, ante a total impossibilidade de efetivar<br />

esse princípio igualmente a todos os cidadãos. De outra banda, conferir<br />

um caráter demasiadamente reduzido, sob a alegação de “não levar<br />

o Estado ‘à falência’, levaria o Estado a efetivá-lo de maneira ínfima,<br />

levando à morte da constituição” (20<strong>08</strong>, p. 56). Corroborando com o<br />

autor supracitado, Igor Lúcio Dantas Araújo Caldas ressalta a<br />

[...] discussão que surge a partir da valoração do princípio<br />

em análise, enquanto princípio absoluto. No âmbito de um<br />

ordenamento jurídico, que valoriza os direitos fundamentais,<br />

torna-se contraditório a construção de uma defesa existente em<br />

torno de um determinado princípio, intitulando-o de princípio<br />

absoluto, uma vez que, tal hipótese confrontaria com a própria<br />

lei da ponderação, em que os princípios são visualizados como<br />

normas relativas, podendo-se afastá-las de acordo com a<br />

casuística (2011, s.p).<br />

A partir do exposto acima, faz-se necessário o entendimento do<br />

que consiste o princípio da ponderação. Tal princípio é utilizado quando,<br />

no caso concreto, dois princípios entram em conflito. Nessa senda, o<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 201


Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />

intérprete deverá sopesar os interesses apresentados, atribuindo um<br />

peso maior a um dos princípios e um valor menor ao outro. Desse<br />

modo, não se estará invalidando determinado princípio, como seria<br />

no caso do conflito entre regras, pois o princípio que recebeu um peso<br />

menor continuará existindo no ordenamento jurídico. Segundo Caldas,<br />

“esse fenômeno de afastamento momentâneo da aplicação de um<br />

princípio ao caso concreto é a chamada ponderação” (2011, s.p.).<br />

Sendo assim, o princípio da ponderação é elemento de<br />

fundamental importância no momento de aplicação do princípio da<br />

dignidade da pessoa humana no caso concreto. Por meio dele, pode-<br />

-se proceder a análise dos valores envolvidos na contenda, chegando-<br />

-se à conclusão mais coerente frente ao caso. Conforme Robert Alexy,<br />

referido no artigo escrito por Igor Caldas,<br />

[...] nos casos em que a dignidade humana é relevante, sua<br />

natureza de regra pode ser percebida por meio da constatação<br />

de que não se questiona se ela prevalece sobre outras normas,<br />

mas tão-somente se ela foi violada, ou não. Contudo, em face<br />

da abertura da norma da dignidade humana, há uma ampla<br />

margem de apreciação na resposta a essa questão [...] Que o<br />

princípio da dignidade humana é sopesado diante de outros<br />

princípios, com a finalidade de determinar o conteúdo da regra da<br />

dignidade humana, é algo que pode ser percebido com especial<br />

clareza na decisão sobre prisão perpétua, na qual se afirma que<br />

‘a dignidade humana [...] tampouco é violada se a execução da<br />

pena for necessária em razão da permanente periculosidade do<br />

preso e se, por razão, for vedada a graça’. Com essa formulação<br />

fica estabelecido que a proteção da ‘comunidade estatal’, sob as<br />

condições mencionadas, tem precedência em face do princípio<br />

da dignidade humana. Diante de outras condições a precedência<br />

poderá ser definida de outra forma (2011, s.p.).<br />

Faz-se necessário ainda, para que o aplicador do direito possa não<br />

mais utilizar a dignidade da pessoa humana apenas como argumento<br />

retórico, a delimitação de um conteúdo mínimo. Para Sarlet, “o acordo<br />

a respeito das palavras ‘dignidade da pessoa humana’ infelizmente<br />

não afasta a grande controvérsia em torno do seu conteúdo” (2007, p.<br />

361). O referido autor se utiliza da lição de Michael Sachs dizendo sobre<br />

202 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />

a dificuldade de definir qual o objeto da dignidade da pessoa humana,<br />

isso porque – diferentemente dos outros direitos fundamentais que<br />

protegem a vida, a intimidade e a integridade físca – a dignidade da<br />

pessoa humana não cuida de aspectos específicos, ela é tida como<br />

um valor que integra a essência do ser humano.<br />

Daí nasce a dificuldade de o âmbito judiciário formar uma<br />

definição genérica e abstrata consensualmente aceita para determinar<br />

o que deve ou não ser protegido pelo princípio da dignidade da pessoa<br />

humana, apesar de que a sua compreensão seja natural e de forma<br />

espontânea quando aplicada em uma situação concreta. Por esta<br />

razão, tentar-se-á delimitar tal princípio por meio de seus elementos<br />

essenciais, demarcando seu conteúdo mínimo, na tentativa de auxiliar<br />

na aplicação do princípio da dignidade humana.<br />

Barroso, com o intuito de dar à dignidade da pessoa humana<br />

“um sentido mínimo universalizável, aplicável a qualquer ser humano,<br />

onde quer que se encontre” (2010, p. 21), caracteriza três elementos<br />

essenciais à dignidade humana, quais sejam: valor intrínseco da<br />

pessoa humana, autonomia e valor social do indivíduo.<br />

O primeiro elemento, valor intrínseco da pessoa humana, refere-<br />

-se à dignidade humana como característica fundamental do ser, ou<br />

seja, todo ser humano nasce com ela e não pode deixar de tê-la. Trata-<br />

-se, conforme dita Barroso, “de um valor objetivo, que independe das<br />

circunstâncias pessoais de cada um” (2010, p. 22), isto é, não importa<br />

a raça, a classe, a religião, a nacionalidade, todos os indivíduos<br />

nascem sendo detentores da dignidade humana. Daí surge o conceito<br />

de Kant, já apresentado no presente artigo, de que o homem tem<br />

um fim em si mesmo e que não pode ser “coisificado”. Corroborando<br />

com a ideia trazida por Barroso, Ingo Wolfgang Sarlet preconiza que<br />

“[...] a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é<br />

irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser<br />

humano como tal e dele não pode ser destacado [...]” (2007, p. 366).<br />

Diante disso, Sarlet (2007) esclarece que a dignidade da pessoa<br />

humana, por ser inerente a todos os seres humanos, só pode ser<br />

reconhecida e respeitada, não se admitindo que seja criada, ou<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 203


Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />

concedida, ou retirada. Ademais, o fato de a dignidade da pessoa<br />

humana ser reconhecida ou não pelo Direito, não influencia na<br />

sua existência, já que é característica pertencente ao ser humano.<br />

Decorrente disso o fato de que mesmo os criminosos que praticam<br />

os crimes mais cruéis e desumanos não podem ter a sua dignidade<br />

desconsiderada.<br />

Contudo, deve-se ter em mente que a dignidade da pessoa<br />

humana não pode ser considerada apenas como algo inerente ao ser<br />

humano, mas, também, deve ser visualizada no âmbito cultural de<br />

cada indivíduo. Isso porque, para determinada pessoa, uma atitude<br />

pode não ferir sua dignidade, contudo, para outra que tenha crescido<br />

dentro de uma cultura específica, a mesma atitude pode feri-la de<br />

forma brutal.<br />

O segundo elemento essencial, a autonomia de vontade, está<br />

interligado a capacidade de autodeterminação do indivíduo. Significa<br />

a capacidade de o indivíduo ter liberdade para pautar sua conduta, de<br />

exercer a sua vontade e fazer suas escolhas (autonomia moral).<br />

A autonomia de vontade apresenta, segundo Barroso (2010),<br />

duas dimensões: a dimensão pública e a privada, sendo que<br />

[...] no plano dos direitos individuais, a dignidade se manifesta,<br />

sobretudo, como autonomia privada, presente no conteúdo<br />

essencial da liberdade, no direito de autodeterminação sem<br />

interferências externas ilegítimas. [...] No plano dos direitos<br />

políticos, a dignidade se expressa como autonomia pública,<br />

identificando o direito de cada um participar no processo<br />

democrático (2010, p. 24) (grifo do autor).<br />

A dignidade da pessoa humana se manifesta diante da autonomia<br />

do indivíduo em decidir o que fazer da própria vida. Todavia, por ser<br />

a dignidade humana intrínseca ao ser humano, mesmo quando o<br />

sujeito perde a autonomia ou quando não mais percebe sua dignidade<br />

sendo atacada, este terá o direito de ser protegido pelo Estado e<br />

pela coletividade. Sendo que, nos casos específicos de saúde em<br />

que por culpa da demência, por exemplo, o indivíduo tenha o seu<br />

discernimento alterado pela doença, este poderá perder o exercício<br />

204 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />

da sua autodeterminação, neste caso, um curador irá decidir por ele<br />

para, assim, ser assegurado o seu direito à tutela estatal.<br />

O terceiro e último elemento essencial da dignidade da pessoa<br />

humana é o valor comunitário. Este elemento ganha a devida<br />

importância quando o sujeito encontra-se dentro do grupo social,<br />

isso porque é dentro das relações interpessoais que nasce a<br />

necessidade de tutelar os direitos do sujeito na medida em que se<br />

torna imprescindível a limitação de onde começa o direito do outro e<br />

onde este termina. Ou seja, o terceiro elemento serve como forma de<br />

delimitação da liberdade individual, servindo como um contrapeso ao<br />

elemento anterior (autonomia).<br />

Ingo Sarlet, tratando do valor comunitário da dignidade humana,<br />

ressalta a lição de Jürgen Habermas, considerando que<br />

a dignidade da pessoa, numa acepção rigorosamente moral e<br />

jurídica, encontra-se vinculada à simetria das relações humanas,<br />

de tal sorte que a sua intangibilidade resulta justamente das<br />

relações interpessoais marcadas pela recíproca consideração e<br />

respeito, de tal sorte que apenas no âmbito do espaço público<br />

da comunidade da linguagem, o ser natural se torna indivíduo e<br />

pessoa dotada de racionalidade (2007, p. 371).<br />

Depois de verificados os três elementos essenciais da dignidade<br />

humana, ainda não se tem esgotada a delimitação do conteúdo<br />

abrangido pelo princípio da dignidade da pessoa humana, ou melhor,<br />

ainda não se tem delimitada qual a responsabilidade do Estado diante<br />

deste direito ou o que o Estado deve prestar e proteger a fim de<br />

garantir a dignidade da pessoa humana. Para isso, parte-se do estudo<br />

realizado por Ingo Sarlet (2007) que esclarece que o referido princípio<br />

divide-se em duas perspectivas. A primeira refere-se à limitação do<br />

poder estatal, isso porque a pessoa não pode ser considerada pelo<br />

Estado como sendo mero objeto, sendo que a dignidade gera direitos<br />

fundamentais chamados de negativos, ou seja, direitos que a protegem<br />

de atos que possam violar essa dignidade (perspectiva protetiva),<br />

ademais, a dignidade não pode ser alienada, pois pertence a cada<br />

indivíduo e se pudesse ser perdida, não existiria mais nenhum limite a<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 205


Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />

ser respeitado. A segunda perspectiva é conhecida como prestacional,<br />

ou seja, o Estado tem o dever de prestar medidas positivas que<br />

assegurem essa dignidade.<br />

Diante disso, referindo-se à perspectiva prestacional do Estado, o<br />

presente estudo depara-se com o conceito do mínimo existencial, cujo<br />

objetivo é conseguir superar a fluidez da ideia de dignidade da pessoa<br />

humana, munindo os operadores do direito de instrumentos capazes<br />

de fazer valer tal preceito constitucional, bem como obrigando o Estado<br />

a cumprir com sua Carta Magna, de forma a atender as garantias<br />

fundamentais às quais têm direito os seus cidadãos.<br />

A delimitação de um conteúdo mínimo essencial da dignidade<br />

da pessoa humana apresenta uma faceta positiva e outra negativa,<br />

pois se, de um lado, dota o operador do direito dos meios necessários<br />

à efetivação desse preceito constitucional, bem como possibilita ao<br />

Estado antever essa relação prestacional, equacionando-a de modo<br />

a garantir ao maior número possível de pessoas os direitos mínimos<br />

vitais à dignidade humana; de outro, sabe-se que a definição das<br />

prestações mínimais indispensáveis à manutenção de uma vida digna<br />

é tarefa não tão fácil de ser executada. Sidney Guerra e Lilian Márcia<br />

Balmant Emerique trazem importante contribuição acerca do tema ao<br />

afirmarem que<br />

[...] a questão do mínimo existencial dentro de uma modalidade<br />

prestacional convive com a complexidade de definição de<br />

quais direitos e em que amplitude podem ser caracterizados<br />

como fundamentais dentre os direitos sociais estipulados na<br />

Constituição (2006, p. 390).<br />

Nessa senda, Rafael Lemos defende arduamente a ideia de que,<br />

a demarcação do mínimo essencial à dignidade humana, fortaleceria<br />

a efetivação desse preceito, uma vez que, viria a tornar<br />

[...] mais exigível o princípio, bem como a pragmática função de<br />

não exigir do Estado mais do que ele pode proporcionar ou menos<br />

do que deve efetivar. Assim, cremos que boa parcela da indecisão<br />

ou das discussões acerca do princípio constitucional positivado<br />

no art. 1º, III da CF/88 esvaziar-se-á de sentido com uma ampla<br />

aceitação de um conteúdo mínimo de dignidade (20<strong>08</strong>, p. 59).<br />

206 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />

Desse modo, a fixação de um mínimo existencial necessário à<br />

efetivação da dignidade da pessoa humana consiste em um fator<br />

que merece especial discussão, uma vez que permite conciliar a<br />

implementação dos direitos indispensáveis à realização de uma vida<br />

digna, com a árdua tarefa do Estado de prover, aos seus cidadãos,<br />

as condições necessárias a tal acontecimento. Isso porque, conforme<br />

alertam Guerra e Emerique, “embora seja preciso ter certa dose de<br />

cautela para não cair no extremo de pensar que o Estado pode tudo,<br />

também não se deve admitir que o Estado não possa nada ou quase<br />

nada em função das crises econômicas” (2006, p. 392).<br />

A dignidade humana é o mínimo vital que o Estado deve<br />

assegurar para a existência da pessoa humana, diante disso, a<br />

proposta da delimitação de um mínimo existencial tem por escopo o<br />

estabelecimento de um rol de direitos que comporia um piso vital, o qual<br />

poderia evitar a total ineficácia jurídica desse preceito constitucional<br />

essencial à concretização de uma vida digna.<br />

Diante disso, Ana Paula de Barcellos (apud LEMOS, 20<strong>08</strong>, p. 59),<br />

defende que, dentre os direitos que devem ser garantidos pelo Estado<br />

a cada cidadão para que esse possa ter assegurada a sua dignidade<br />

estão a educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos<br />

desamparados e o acesso à justiça, típicos direitos sociais, portanto,<br />

de caráter prestacional. Frisa-se que a previsão de tais direitos não<br />

exclui outros, em especial os direitos chamados negativos, que<br />

impõem um “não fazer”, uma abstenção por parte do Estado, como os<br />

da vedação da tortura, de penas cruéis e degradantes, dentre outros.<br />

Daniel Sarmento segue o mesmo posicionamento, afirmando que<br />

[...] o Estado tem não apenas o dever de se abster de praticar<br />

atos que atentem contra a dignidade humana, como também o de<br />

promover esta dignidade através de condutas ativas, garantindo<br />

o mínimo existencial para cada ser humano em seu território.<br />

O homem tem a sua dignidade aviltada não apenas quando se<br />

vê privado de algumas de suas liberdades fundamentais, como<br />

também quando não tem acesso à alimentação, educação básica,<br />

saúde, moradia etc. (apud GUERRA; EMERIQUE, 2006, p. 384-<br />

5).<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 207


Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />

Por outro lado, deve-se deixar claro que o mínimo essencial não<br />

pode ser estabelecido de forma definitiva, sem mais poder sofrer<br />

quaisquer reformas, uma vez que o próprio conceito de dignidade<br />

humana é mutável e vem sofrendo alterações ao longo da história.<br />

Isto posto, vê-se que a demarcação de um mínimo essencial pode<br />

auxiliar de forma significativa ao jurista no momento da aplicação do<br />

princípio da dignidade da pessoa humana. Embora, isoladamente,<br />

tal critério possa não oferecer todos os pressupostos necessários<br />

à eficaz utilização desse preceito constitucional, apoiando-se no já<br />

estudado princípio da ponderação, bem como, com base nos critérios<br />

mínimos anteriormente propostos (autonomia, valor intrínseco e valor<br />

comunitário), pode-se chegar a uma satisfatória noção do real conceito<br />

da dignidade da pessoa humana. Por conseguinte, Lima Júnior e<br />

Fermentão trazem relevante lição a esse respeito:<br />

A proteção à dignidade da pessoa humana é o fundamento de<br />

todo o ordenamento jurídico e também a finalidade última do<br />

Direito. Onde não houver respeito pela vida, integridade física<br />

e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma<br />

existência digna não forem asseguradas, onde não houver<br />

limitação do poder e a igualdade, a liberdade e a autonomia não<br />

forem reconhecidas e minimamente asseguradas, não haverá<br />

espaço para a dignidade da pessoa humana (2012, p. 329).<br />

Nesse sentido, deve-se destacar que cada sociedade tem seus<br />

padrões e convenções a respeito do que constitui a dignidade, isto<br />

é, o conceito de dignidade varia de acordo com o local e a época, de<br />

modo que, o alcance de uma definição única e universal da dignidade<br />

humana é, conforme já demonstrado, tarefa árdua.<br />

Um conceito possível deve se mostrar suficientemente aberto<br />

para abranger os mais diversos casos e, de outra banda, deve<br />

oferecer segurança jurídica, no sentido de não permitir, justamente<br />

por apresentar tal abertura, a violação da dignidade humana. Ou seja,<br />

uma definição plausível deve assegurar que o Estado trabalhe na<br />

implementação dos direitos mínimos para o cidadão ter acesso a uma<br />

vida digna, concomitantemente deve prever a abstenção estatal no<br />

sentido de não ferir a liberdade e a autonomia de cada sujeito.<br />

2<strong>08</strong> Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />

Por derradeiro, Ingo Sarlet nos apresenta valiosa lição a respeito,<br />

uma vez que consegue unir, em uma única conceituação, a faceta<br />

positiva (de implementação de direitos) e negativa (o dever de “não<br />

fazer” do Estado) da dignidade humana, defendendo que<br />

tem-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e<br />

distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor<br />

do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da<br />

comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e<br />

deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e<br />

qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe<br />

garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,<br />

além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável<br />

nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os<br />

demais seres humanos (2007, p. 383) (grifo do autor).<br />

Diante disso, a partir da conciliação do princípio da ponderação,<br />

da utilização de critérios mínimos e do mínimo existencial, vê-se que o<br />

princípio constitucional da dignidade da pessoa humana pode ter sua<br />

aplicação aprimorada se o jurista se preocupar em munir-se de todos<br />

os meios disponíveis no momento da interpretação do direito frente<br />

ao caso concreto, de modo que esse preceito tão indiscutivelmente<br />

importante não seja utilizado tão somente como argumento retórico,<br />

como mero apoio, ou seja, que o operador do direito possa efetivamente<br />

compreender o real alcance da dignidade humana, aplicando-a de<br />

forma coerente.<br />

A UTILIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA<br />

PESSOA HUMANA PELA JURISPRUDÊNCIA ATUAL<br />

Conforme já visto anteriormente, com o fim da segunda guerra,<br />

a dignidade da pessoa humana passou a ter grande relevância nos<br />

textos constitucionais de todo o mundo. Luís Roberto Barroso (2010)<br />

nos mostra que, mesmo nos países que não fazem referência, em<br />

suas Constituições, à dignidade da pessoa humana, esse princípio<br />

vem ganhando força argumentativa em casos de grande relevância<br />

para o direito. A partir de então, cortes constitucionais de todo o<br />

mundo ocidental iniciaram um diálogo transnacional, compartilhando<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 209


Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />

um sentido comum de dignidade.<br />

O Tribunal alemão, por exemplo, se firmou como referência na<br />

questão da dignidade da pessoa humana, servindo, frequentemente, de<br />

base para a doutrina e para a jurisprudência brasileira. Hodiernamente, o<br />

Supremo Tribunal Federal brasileiro tem feito uso da dignidade humana<br />

para fundamental as mais variadas decisões. A esse respeito, Barroso<br />

traz contribuições importantes, ao afirmar o seguinte:<br />

[...] a dignidade da pessoa humana foi um dos fundamentos<br />

para a mudança jurisprudencial do STF em tema de prisão por<br />

dívida, passando-se a considerar ilegítima sua aplicação no caso<br />

do depositário infiel. Foi ela, igualmente, um dos argumentos<br />

centrais pelos quais se negou aplicação, em inúmeros<br />

precedentes, a dispositivo da Lei de Entorpecentes que proibia,<br />

peremptoriamente, a liberdade provisória. Não apenas atos<br />

estatais, mas também condutas privadas podem ser consideradas<br />

violadoras da dignidade humana e, consequentemente, ilícitas.<br />

Em uma das raras ocasiões em que se dispôs a limitar a liberdade<br />

de expressão, o STF considerou ilegítima a manifestação de ódio<br />

racial e religioso. (2010, p. 14).<br />

O referido autor segue explicando que a dignidade da pessoa<br />

humana “passou a ser invocada em cenários distintos e complexos,<br />

que vão da bioética à proteção do meio ambiente, passando pela<br />

liberdade sexual, de trabalho e de expressão” (2010, p. 18).<br />

A alusão à dignidade humana, na jurisprudência do Supremo<br />

Tribunal Federal, é notadamente abundante em matéria penal e<br />

processual penal. Em diversos julgados está expressa ou implícita<br />

a não aceitação da instrumentalização do acusado ou do preso aos<br />

interesses do Estado na persecução penal.<br />

Entretanto, o uso do princípio da dignidade da pessoa humana não<br />

se interrompe aí, uma vez que esse princípio vem sendo amplamente<br />

utilizado para decidir casos em que o direito à saúde está em voga,<br />

quando se faz necessário ponderar valores como a vida, a saúde, o<br />

conflito entre a manutenção da vida e da dignidade da pessoa, ou<br />

entre a saúde e a dignidade de outros.<br />

A variedade é tanta que não se pode deixar de destacar o<br />

210 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />

julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental<br />

(ADPF) n.º 54/DF, a qual descriminalizou o aborto de fetos anencéfalos,<br />

tendo como um dos argumentos a ponderação entre os princípios da<br />

dignidade da pessoa humana, da saúde, da liberdade e da autonomia,<br />

conforme se pode extrair da leitura da ementa que segue:<br />

ADPF - ADEQUAÇÃO - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – FETO<br />

ANENCÉFALO - POLÍTICA JUDICIÁRIA - MACROPROCESSO.<br />

Tanto quanto possível, há de ser dada sequência a processo<br />

objetivo, chegando-se, de imediato, a pronunciamento do<br />

Supremo Tribunal Federal. Em jogo valores consagrados na Lei<br />

Fundamental - como o são os da dignidade da pessoa humana,<br />

da saúde, da liberdade e autonomia da manifestação da vontade<br />

e da legalidade -, considerados a interrupção da gravidez de feto<br />

anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a configuração do<br />

crime de aborto, adequada surge a arguição de descumprimento<br />

de preceito fundamental (BRASIL, Supremo Tribunal Federal,<br />

ADPF 54/DF, Relator: Min. Marco Aurélio, 2012) [grifo nosso].<br />

Cabe ainda, relativamente ao assunto, destacar parte do voto do<br />

Ministro Relator, Marco Aurélio, para o qual,<br />

a incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto,<br />

o será por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer<br />

custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher. No caso, ainda que<br />

se conceba o direito à vida do feto anencéfalo – o que, na minha óptica,<br />

é inadmissível, consoante enfatizado –, tal direito cederia, em juízo de<br />

ponderação, em prol dos direitos à dignidade da pessoa humana,<br />

à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade<br />

física, psicológica e moral e à saúde, previstos, respectivamente, nos<br />

artigos 1º, inciso III, 5º, cabeça e incisos II, III e X, e 6º, cabeça, da Carta<br />

da República. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADPF 54/DF, Relator:<br />

Min. Marco Aurélio, 2012) [grifo nosso].<br />

A atuação do STF no julgamento de lides que envolvem diretamente o<br />

princípio da dignidade humana em aparente conflito com outros princípios<br />

vai além. Mister se faz ressaltar a decisão em que o STF, no ano de 2011,<br />

nos autos da Ação de Declaração de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 4277/<br />

DF, decidiu sobre a legalidade da união de casais homoafetivos. Segundo<br />

o voto de seu relator, Ministro Ayres Britto, o reconhecimento do direito à<br />

preferência sexual é uma “direta emanação do princípio da ‘dignidade da<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 211


Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />

pessoa humana’”. Veja-se:<br />

PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO<br />

DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER<br />

(GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL<br />

DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO P<strong>RE</strong>CONCEITO<br />

COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL.<br />

HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-<br />

POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA<br />

PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS<br />

DI<strong>RE</strong>ITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXP<strong>RE</strong>SSÃO QUE<br />

É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DI<strong>RE</strong>ITO À INTIMIDADE E À<br />

VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉT<strong>RE</strong>A. O sexo das pessoas, salvo<br />

disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não<br />

se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à<br />

luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente<br />

com o objetivo constitucional de ‘promover o bem de todos’. Silêncio<br />

normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos<br />

indivíduos como saque da kelseniana ‘norma geral negativa’, segundo<br />

a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está<br />

juridicamente permitido”. Reconhecimento do direito à preferência<br />

sexual como direta emanação do princípio da ‘dignidade da<br />

pessoa humana’: direito a auto-estima no mais elevado ponto da<br />

consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo<br />

da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade<br />

sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da<br />

vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos<br />

da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia<br />

da vontade. Cláusula pétrea. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADI<br />

4277/DF, Relator: Min. Ayres Britto, 2011) [grifo nosso].<br />

Também no âmbito do Superior Tribunal de Justiça tem se multiplicado<br />

as referências à dignidade da pessoa humana em decisões das mais<br />

variadas, conforme destaca André Gustavo Corrêia de Andrade, segundo<br />

o qual “cada vez mais numerosos são os julgados, por exemplo, que têm<br />

invocado explicitamente o princípio da dignidade humana em conexão<br />

com o direito fundamental à saúde” (20<strong>08</strong>, s.p). A exemplo, o Superior<br />

Tribunal de Justiça julgou o A<strong>RE</strong>sp. n.º 362016, no qual o relator, Ministro<br />

Herman Benjamin, defendeu que o fornecimento de medicamentos, pelo<br />

Estado, é o meio de concretização da dignidade da pessoa humana.<br />

212 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />

CONSTITUCIONAL. SAÚDE. FORNECIMENTO DE<br />

MEDICAMENTO. ACÓRDÃO EMBASADO EM P<strong>RE</strong>MISSAS<br />

CONSTITUCIONAIS. 1. O Tribunal a quo considerou ser<br />

devido o fornecimento do medicamento à recorrida, uma vez<br />

que ‘os artigos 196 e 198 da Constituição Federal asseguram<br />

aos necessitados o fornecimento gratuito dos medicamentos<br />

indispensáveis ao tratamento de sua saúde, de responsabilidade<br />

da União, dos Estados e Municípios, já se encontra consolidado<br />

em nossos Tribunais. Portanto, considerando-se os princípios<br />

constitucionais aplicados ao caso sob testilha, fato é que,<br />

ponderando-se os valores envolvidos nesta demanda, deve<br />

prevalecer o direito à saúde, projeção da dignidade da<br />

pessoa humana, princípio fundamental da República, nos<br />

termos do art. 1°, III, da CRFB/88, a ser resguardado, in casu,<br />

pelo fornecimento de medicamentos pelos Entes réus. E,<br />

cabe ao Poder Judiciário, sempre que possível, superar essa<br />

dificuldade, prestando a tutela jurisdicional em deferência à<br />

concretização do princípio da dignidade da pessoa humana’<br />

(fl. 195, e-STJ). 2. Dessa forma, muito embora tenham sido<br />

citados dispositivos infraconstitucionais, a matéria foi dirimida<br />

sob enfoque eminentemente constitucional. Descabe, pois, a esta<br />

Corte examinar a questão, porquanto reverter o julgado significa<br />

usurpar competência do STF. 3. Agravo Regimental não provido.<br />

(BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, A<strong>RE</strong>sp. n.º 362016,<br />

Relator: Min. Herman Benjamin, 2013) [grifo nosso].<br />

A partir do exposto, após a inclusão nos textos constitucionais dos<br />

mais variados países, verifica-se que a dignidade da pessoa humana<br />

passou a ser vista como princípio norteador de todo o ordenamento<br />

jurídico. Seu papel de princípio fundamental da República Federativa<br />

do Brasil acabou por lhe conferir relevada importância, uma vez que,<br />

como se pode observar na análise da jurisprudência nacional, vem<br />

sendo adotado para legitimar a intervenção do Estado nos mais<br />

variados âmbitos da vida privada. Isso porque, a dignidade da pessoa<br />

humana é interdisciplinar e polissêmica, não sendo usada tão-somente<br />

em determinado ramo do Direito, já que se encontra difundida por<br />

todas as matérias. Por esse motivo, pode-se observar o seu uso como<br />

argumento para o julgamento de lides no âmbito penal, civil, no direito<br />

de família, no acesso à saúde, dentre outros.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 213


Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />

Diante disso, torna-se cada vez mais necessário que os operadores<br />

do direito tenham uma noção mais precisa, mais aprofundada sobre a<br />

dignidade da pessoa humana, uma vez que a falta de uma conceituação<br />

jurídica para tal princípio, muitas vezes, é o principal fator que leva o<br />

seu uso como mero argumento retórico, como uma “muleta” do jurista<br />

no momento da argumentação.<br />

Por isso, para que seja possível esmiuçar, cada vez mais, a aplicação<br />

do princípio da dignidade humana, indispensável conhecer a forma de<br />

sua aplicação pela jurisprudência não só nacional, como estrangeira.<br />

CONCLUSÃO<br />

O presente artigo teve como escopo delimitar o princípio<br />

fundamental da dignidade da pessoa humana, percorrendo sua<br />

evolução histórica, delimitando a sua dupla natureza jurídica como<br />

princípio e postulado normativo que norteia todo o ordenamento<br />

jurídico brasileiro, bem como apresentando de forma aprofundada<br />

seus elementos essenciais – valor intrínseco da pessoa humana,<br />

autonomia e valor social do indivíduo – como também seu conceito<br />

atual, para que o operador do Direito pudesse usar deste princípio não<br />

apenas como argumento retórico, mas dando-lhe a devida importância<br />

e aplicando-lhe da forma mais correta possível.<br />

Conforme já explicitado, a dignidade humana era originalmente<br />

objeto apenas da Filosofia e não do Direito. Contudo, após a Segunda<br />

Guerra Mundial, a dignidade humana passou a ser retratada em diversos<br />

ordenamentos jurídicos, servindo, desde sua positivação na Constituição<br />

Federal de 1988, como pilar da República Federativa do Brasil.<br />

A partir disso, a análise do princípio da dignidade da pessoa humana<br />

pelos operadores do Direito mostra-se de extrema importância, já que<br />

estes não podem se esquivar da competência de julgar causas que<br />

envolvam referido princípio. Portanto, têm o dever de entender seus<br />

aspectos e sua complexidade para sua melhor aplicação diante da lide.<br />

Com isso, pode-se concluir que a dignidade humana é inerente<br />

ao ser humano, ou seja, todos nascem possuindo este direito, mas<br />

conforme o âmbito cultural em que o sujeito vive é que essa dignidade<br />

será desenvolvida.<br />

214 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />

<strong>RE</strong>FERÊNCIAS<br />

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dignidade humana e sua concretização judicial. 20<strong>08</strong>. Disponível<br />

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BARROSO, Luís Roberto Barroso. A dignidade da pessoa humana no<br />

direito constitucional contemporâneo: natureza jurídica, conteúdos<br />

mínimos e critérios de aplicação. Disponível em: . Acesso em: 22 out. 2013.<br />

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Inconstitucionalidade n. 4277. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília,<br />

05 de maio de 2011. Disponível em: . Acesso em: 3 nov. 2013.<br />

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Sant’Anna Leite. Relator: Ministro Herman Benjamin. Brasília, 10<br />

de setembro de 2013. Disponível em: . Acesso em: 3 nov. 2013.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 215


Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />

CALDAS, Igor Lúcio Dantas Araújo. A ponderação de princípios e a<br />

supremacia do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.<br />

Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 94, nov. 2011. Disponível em: . Acesso em: 7 nov. 2013.<br />

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da<br />

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Disponível em: . Acesso em: 26 out. 2013.<br />

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Disponível em: Acesso em: 21 out. 2013.<br />

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso<br />

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SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa<br />

humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional<br />

necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional<br />

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Recebido: 15-9-2014<br />

Aprovado: 20-10-2014<br />

216 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />

DI<strong>RE</strong>ITO<br />

A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ<br />

DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />

Resumo<br />

The liability of partners in light of current bankruptcy law<br />

Ana Lara Tondo 40<br />

José Lauri Bueno de Jesus 41<br />

O presente trabalho tem por finalidade demonstrar a responsabilidade dos sócios de uma sociedade<br />

empresária quando ocorrer a decretação da falência da mesma. Para isso, serão estudados os tipos de<br />

sociedades empresárias e o procedimento na atual lei de falências e recuperação de empresas, bem como<br />

os sócios identificados em cada uma, como falidos. Além disso, também será analisada a desconsideração<br />

da personalidade jurídica em situações como a falência, por motivo em que ocorrem a confusão e o desvio<br />

do patrimônio por parte dos seus sócios.<br />

Palavras-chave: Sociedade empresária. Responsabilidade. Falência. Personalidade jurídica.<br />

Abstract<br />

This study aims to demonstrate the liability of shareholders of a business corporation when the declaration<br />

of bankruptcy of the same place. For this, the types of business entities and the procedure in the current<br />

bankruptcy law and corporate recovery, as well as the partners identified in each, as bankrupts will be<br />

studied. Besides, we also analyzed the piercing the corporate veil in situations like bankruptcy, in situations<br />

that confusion and diversion of assets from the partners occur.<br />

Keywords: Liability company. Responsibility.Bankruptcy.Legal personality.<br />

Sumário:<br />

Introdução; 1. As sociedades empresariais; 2.A falência no atual ordenamento jurídico; 3. Os sócios<br />

identificados como falidos; 4. A desconsideração da pessoa jurídica; 5. Conclusão; 6. Referências.<br />

INTRODUÇÃO<br />

O presente trabalho tem como objetivo suscitar debates relativos<br />

à situação do sócio na falência da sociedade empresária. Posta assim<br />

a questão, será trabalhado o conceito de empresa, buscando-se<br />

definir e delimitar os tipos de sociedades empresárias mais comuns<br />

40 Acadêmica do 8º período do curso de Direito no Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo (CNEC-IESA), 2014. Email:<br />

aana.tondo@gmail.com.<br />

41 Mestre em Direito pela Unisinos, Especialização em Segurança Pública pela PUC-RS e Especialização em Docência para o Ensino<br />

Superior pela CNEC-IESA.Graduado em Direito pela FADISA (hoje CNEC-IESA),professor no Instituto Cenecista de Ensino Superior<br />

de Santo Ângelo (CNEC-IESA), Tenente-coronel da Reserva Remunerada da Brigada Militar-RS. E-mail: laurijb@terra.com.br.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 217-233


Ana Lara Tondo - José Lauri Bueno de Jesus<br />

no atual ordenamento jurídico. Posteriormente, neste estudo será<br />

exposta a condição que o sócio, seja de responsabilidade ilimitada,<br />

seja de responsabilidade limitada, possui na empresa, devendo arcar<br />

com os ônus advindos da falência.<br />

Também se retratará o instituto da desconsideração da pessoa<br />

jurídica, que visa coibir a fraude contra credores, a má administração,<br />

o abuso de direito e o desvio de finalidade. Finalmente, em última<br />

análise, também será examinado instituto da despersonalização<br />

inversa, que, como se verá, poderá ser utilizado para se responsabilizar<br />

a sociedade empresária por certas atitudes do sócio.<br />

AS SOCIEDADES EMP<strong>RE</strong>SARIAIS<br />

A Lei de Recuperação e Falência, Lei nº 11.101/2005, e o Código<br />

Civil Brasileiro, Lei nº 10.406/2002, em seus artigos 966 a 1195, são<br />

as normas que, no atual ordenamento jurídico, disciplinam sobre o<br />

empresário, os sócios e a sociedade empresarial. Dessa forma, a<br />

própria lei regula sobre a responsabilidade de cada sócio, quando do<br />

momento da falência da empresa, tendo em vista o tipo de sociedade<br />

empresária.<br />

Segundo Vander Brusso da Silva (2009, p. 49), “sociedade<br />

será sempre a união de 2 ou mais pessoas com o mesmo objetivo,<br />

ou seja, explorar uma atividade e partilhar entre si o resultado dessa<br />

exploração”. Complementar a isso, para Tarcisio Teixeira, a sociedade<br />

empresária é um contrato, em que esse contrato assume o papel de<br />

um acordo, criado com a finalidade de constituir, regular ou extinguir<br />

a relação patrimonial existente entre aspartes (2013). Pode-se<br />

comprovar a necessidade da vontade dos sócios no art. 981 do Código<br />

Civil de 2002:<br />

Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que<br />

reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços,<br />

para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos<br />

resultados.<br />

Parágrafo único. A atividade pode restringir-se à realização de um<br />

ou mais negócios determinados.<br />

218 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />

Desse modo, é imprescindível estudar sobre os tipos da sociedade<br />

empresária, sendo a classificação mais usual, quanto à espécie legislativa<br />

e quanto à existência de personalidade jurídica, ou seja, personificadas<br />

ou não personificadas, conforme seu registro na Junta Comercial.<br />

As sociedades não personificadas são assim chamadas por não<br />

estarem registradas no Registro Público de Empresas Mercantis e Afins.<br />

São elas a sociedade em comum e a sociedade em conta de participação.<br />

A sociedade em comum está prevista nos artigos986 a 990 do<br />

Código Civil de 2002. Nela, os sócios responderão ilimitadamente e<br />

solidariamente por todas as obrigações contratuais entre si, e de forma<br />

subsidiária perante terceiros, não havendo, nesse tipo de sociedade,<br />

quaisquer benefícios de ordem, ou seja,<br />

[...] o sócio que não participou da realização de determinado<br />

negócio jurídico pode invocar o direito de ver seus bens excutidos<br />

somente após o esgotamento do patrimônio que responde<br />

primariamente pelas dívidas sociais: os bens da sociedade e do<br />

sócio tratador (NEGRÃO, 2013, p. 69).<br />

Outra sociedade não personificada é a sociedade em conta de<br />

participação, prevista nos artigos 914 a 919 do Código Civil, não livre<br />

de certa divergência doutrinária, em que, para uns, é considerada<br />

investimento. Segundo Silva (2009), nesse tipo de sociedade existe o<br />

sócio ostensivo, que tem o dever de administrar, cuja responsabilidade<br />

é ilimitada, e o sócio participante, que é considerado o investidor, para<br />

quem a responsabilidade se torna limitada.<br />

De outra banda, existem as sociedades personificadas, que<br />

possuem personalidade jurídica, podendo, dessa maneira, “adquirir<br />

direitos e contrair obrigações por ter seu contrato social registrado no<br />

órgão próprio” (TEIXEIRA, 2013, p. 218). As sociedades personificadas<br />

estão expressas entre os artigos 1.039 a 1.092, de acordo com o que<br />

rege o art. 983 do Código Civil vigente:<br />

Art. 983. A sociedade empresária deve constituir-se segundo um<br />

dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092; a sociedade simples<br />

pode constituir-se de conformidade com um desses tipos, e, não o<br />

fazendo, subordina-se às normas que lhe são próprias.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 219


Ana Lara Tondo - José Lauri Bueno de Jesus<br />

Da simples leitura dos referidos artigos, conclui-se que tais<br />

sociedades personificadas são subdivididas entre sociedades simples,<br />

que são aquelas que exploram atividades intelectuais, de natureza<br />

artística, científica e literária, e em sociedades empresárias, que<br />

existem em número de cinco, sendo elas a em nome coletivo, as em<br />

comandita simples e por ações, a sociedade limitada e a sociedade<br />

anônima.<br />

Para Vander da Silva (2009), como as sociedades simples<br />

apenas exploram atividades intelectuais não organizadas, tais como<br />

uma sociedade de médicos ou advogados, não terão elas caráter<br />

empresarial, não sendo sujeitas à Lei de Falências. Nesse sentido,<br />

explica Tarcísio Teixeira, “a sociedade simples não é uma sociedade<br />

empresária, não tendo assim os direitos inerentes aos empresários,<br />

como recuperação de empresas” (2013, p. 222).<br />

No que concerne à sociedade em nome coletivo, destaca-<br />

-se que apenas poderão fazer parte de uma sociedade como essa<br />

pessoas físicas, haja vista que todos os sócios respondem ilimitada<br />

e solidariamente pelas obrigações sociais. Também, conforme rege o<br />

art. 1.042, a administração desse tipo de empresa só pode ser exercida<br />

pelos sócios, “são os chamados sócios-gerentes, ou então diretores<br />

[...]. Antigamente considerados mandatários, hoje são considerados<br />

órgãos da sociedade” (BULGA<strong>RE</strong>LLI, 2001, p. 47).<br />

Já na sociedade em comandita simples observa-se a existência<br />

de dois tipos distintos de sócios, os sócios comanditários e os sócios<br />

comanditados. Acerca dos sócios comanditários, observa- -se que<br />

podem ser pessoas físicas ou jurídicas, sendo impedidos, entretanto,<br />

de exercerem atos de gestão, cuja responsabilidade se torna limitada,<br />

respondendo apenas pela integralização de sua parte no capital<br />

existente, e somente em relação aos credores preexistentes (NEGRÃO,<br />

2013). Quanto aos sócios comanditados, Silva (2009) explica que<br />

serão sempre pessoas físicas que exercem a administração da<br />

sociedade, tendo responsabilidade ilimitada e solidária.<br />

No que diz respeito às sociedades limitadas, expostas no art.<br />

1.052 do Código Civil, é pertinente ressaltar que o seu capital é dividido<br />

220 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />

em quotas, na qual os sócios respondem limitadamente pela sua<br />

parte e de maneira solidária pela integralização total do capital, “não<br />

alcançando seus respectivos patrimônios pessoais” (TEIXEIRA, 2013,<br />

p. 217), do que, pode-se concluir que, segundo Silva (2009), nesse tipo<br />

de sociedade limitada, a responsabilidade dos sócios estará ligada ao<br />

capital subscrito, e não ao capital integralizado. Nela, segundo Fábio<br />

Coelho (2014), ocorre a separação patrimonial entre a pessoa jurídica<br />

e seus membros, de maneira a limitar a responsabilidade dos sócios,<br />

respondendo apenas pelo capital subscrito e não integralizado.<br />

Quanto à sociedade anônima, é necessário esclarecer que ela é<br />

regulada pela Lei nº 6.404/76, tendo o Código Civil, apenas a definido:<br />

Art. 1.<strong>08</strong>8. Na sociedade anônima ou companhia, o capital divide-se<br />

em ações, obrigando-se cada sócio ou acionista somente pelo preço<br />

de emissão das ações que subscrever ou adquirir.<br />

Art. 1.<strong>08</strong>9. A sociedade anônima rege-se por lei especial, aplicando-<br />

-se-lhe, nos casos omissos, as disposições deste Código.<br />

Ou seja, num conceito de Silva (2009, p. 84), sociedade anônima<br />

“é uma sociedade de capital, empresária e que possui seu capital<br />

social dividido em ações [...]”. Essa sociedade, que “será designada<br />

por denominação acompanhada das expressões ‘companhia’ ou<br />

‘sociedade anônima’ [...]é aberta ou fechada, conforme os valores<br />

mobiliários de sua emissão estejam ou não admitidos à negociação<br />

em bolsa ou no mercado de balcão” (RUSSO, 2001, p. 316).<br />

Por fim, no que se refere à sociedade em comandita por ações,<br />

destaca-se que este é o menos utilizadoentre os tipos societários, pois<br />

[...] trata-se de um modelo híbrido, uma mistura de sociedade em<br />

comandita simples e sociedade anônima. Na responsabilidade<br />

dos sócios e na gestão social, segue o modelo proposto pelas<br />

comanditas: somente os sócios podem administrá-la. Na estrutura<br />

econômica, seu capital é dividido em ações, facultando-lhe emitir<br />

outros valores mobiliários (NEGRÃO, 2013, p. 81).<br />

Assim sendo, embora os sócios comanditários não possam<br />

administrar a empresa, respondendo apenas pelas suas ações no<br />

capital, em certos casos, tais como o falecimento do sócio comanditado,<br />

sua renúncia ou exoneração, os sócios comanditários podem<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 221


Ana Lara Tondo - José Lauri Bueno de Jesus<br />

administrar a empresa, porém responderão como se comanditados<br />

fossem e respondem de maneira subsidiária, solidária e ilimitada.<br />

Nesse âmbito comercial, imprescindível se torna o estudo que<br />

envolva o empresário, ou seja, aquele que exerce empresa. Segundo<br />

Paulo Roberto Colombo Arnoldi (apud BANA, 2014, s.p.),<br />

[...] o comerciante era visto como aquele que apenas praticava<br />

atos de intermediação com finalidade lucrativa, hoje é aquele que<br />

exerce atividade econômica organizada para a produção ou a<br />

circulação de bens ou serviços.<br />

O novo Código Civil, por adotar a teoria de empresa, também<br />

adotou o conceito de empresário, como aquele que “profissionalmente<br />

exerce atividade econômica organizada para a produção ou circulação<br />

de bens e serviços” (SANCHEZ, GIANLUCCA, 2014, p. 25). Entretanto,<br />

como já referido, aquele que exerce atividade intelectual não será<br />

considerado empresário, conforme parágrafo único doart. 966 do<br />

Código Civil de 2002.<br />

Portanto, considera-se empresa a atividade empresarial,<br />

enquanto que a organização dessa atividade é feita pelo empresário.<br />

Para o melhor exercício dessa atividade, é exigida pessoalidade<br />

e periodicidade, pois o empresário não pode exercer a atividade<br />

ocasionalmente. Para Maria Gabriela Gonçalves (2014, p. 19), “a<br />

atividade empresarial é econômica porque está voltada à obtenção de<br />

lucro. Esse lucro pode ser canalizado para o próprio empresário, ser<br />

reinvestido no negócio, ou voltar-se, como exemplo, a fins filantrópicos<br />

[...]”. Ou seja, o fundamental, enquanto empresa, é que a atividade<br />

deve gerar lucro para quem a explore, nesse caso, o empresário.<br />

Para elucidar a questão, também faz-se necessária a leitura do<br />

art. 966 do mesmo diploma legal:<br />

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente<br />

atividade econômica organizada para a produção ou a circulação<br />

de bens ou de serviços.<br />

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce<br />

profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística,<br />

ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o<br />

exercício da profissão constituir elemento de empresa.<br />

222 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />

Por todo o exposto, percebe-se que o empresário é aquele<br />

que exerce empresa, profissionalmente e com habitualidade, na<br />

expectativa de gerar lucro. Podem ser pessoas físicas ou jurídicas, que<br />

se distinguem claramente dos sócios, haja vista serem estes apenas<br />

empreendedores, com regras e responsabilidades distintas entre si.<br />

A FALÊNCIA NO ATUAL ORDENAMENTO JURÍDICO<br />

Fábio Coelho (2014) explica que a doutrina registrou episódios<br />

em que, no início da civilização romana, quando a lei era regida pelas<br />

XII Tábuas, caso o devedor não pagasse suas obrigações no prazo<br />

estabelecido, era vendido como escravo no estrangeiro. Ainda, no<br />

século V a.C., com a evolução do direito romano, criou-se ferramentas<br />

de forma a fomentar a execução apenas patrimonial. Hoje, quando<br />

uma obrigação não é cumprida, o credor tem o direito de executar os<br />

bens patrimoniais do devedor, tantos quantos forem necessários para<br />

satisfazer o débito.<br />

Excluídas as empresas públicas e as sociedades de economia<br />

mista, quando o empresário individual ou a sociedade empresária<br />

estiverem sofrendo uma crise econômico-financeira, em que os bens<br />

individuais não são suficientes para satisfazer o crédito, tem-se a<br />

possibilidade de se criar um processo de execução coletiva, em um<br />

concurso de credores, ou seja, uma execução única, em que todos<br />

os bens do falido serão arrecadados e vendidos judicialmente, com a<br />

distribuição igual do valor obtido entre os credores (TEIXEIRA, 2013).<br />

A propósito, oportuno é estabelecer uma diferenciação entre o<br />

regime falimentar, que é direcionado ao empresário desprovido de<br />

bens necessários para satisfazer as dívidas e a insolvência civil,<br />

que ocorre quando “o devedor explora sua atividade econômica sem<br />

empresarialidade, ou não exerce nenhuma atividade econômica”, uma<br />

vez que, aquele que não exerce atividade econômica não deve ter<br />

amparo legal semelhante (COELHO, 2014, p. 3<strong>08</strong>).<br />

Assim, nos dizeres de Silva, a “falência é uma execução coletiva<br />

movida contra um empresário insolvente atingindo seu patrimônio<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 223


Ana Lara Tondo - José Lauri Bueno de Jesus<br />

para uma venda forçada, partilhando o resultado, proporcionalmente,<br />

entre os credores” (2009, p. 152).<br />

De acordo com a Lei de Recuperação e Falência, no seu art.<br />

77, quando for decretada a falência, também se terá o vencimento<br />

antecipado das dívidas, tanto do devedor quanto dos sócios de<br />

responsabilidade ilimitada.<br />

Art. 77. A decretação da falência determina o vencimento<br />

antecipado das dívidas do devedor e dos sócios ilimitada e<br />

solidariamente responsáveis, com o abatimento proporcional dos<br />

juros, e converte todos os créditos em moeda estrangeira para a<br />

moeda do País, pelo câmbio do dia da decisão judicial, para todos<br />

os efeitos desta Lei.<br />

De tal fato decorre que o “estado patrimonial do devedor que<br />

possui o ativo inferior ao passivo é denominado insolvência econômica<br />

ou insolvabilidade” (COELHO, 2014, p. 316). Não obstante, para ser<br />

decretada a falência, a insolvência econômica é irrelevante, visto que a<br />

falência será presumida pela impontualidade, pelos atos falimentares<br />

e pela execução frustrada.<br />

No que concerne à impontualidade, Silva (2009, p. 152) ressalta<br />

que ela ocorre quando o empresário não paga suas dívidas no período<br />

correto, acumulando uma dívida no valor de, no mínimo, 40 (quarenta)<br />

salários mínimos. A respeito dos atos falimentares, Coelho (2014,<br />

p. 322) considera-se como “ato falimentar a liquidação precipitada,<br />

o negócio simulado, a alienação irregular do estabelecimento e a<br />

transferência simulada do principal estabelecimento” e, em relação à<br />

execução frustrada, é considerada a “sociedade empresária devedora<br />

que, executada, não paga, não deposita nem nomeia bens à penhora<br />

no prazo legal” (COELHO, 2014, p. 321-322). Finalmente, com a<br />

ocorrência de um desses pressupostos, poderá ser decretado o estado<br />

falimentar do empresário ou da sociedade empresária, conforme<br />

previsão nos arts. 94 e 99 da Lei nº 11.101/05.<br />

Ademais, diz o art. 126 da LRF acerca do princípio da<br />

universalidade do juízo falimentar, que impõe que todos as ações e<br />

interesses da sociedade falida se submeterão a um mesmo juízo:<br />

224 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />

Art. 126. Nas relações patrimoniais não reguladas expressamente<br />

nesta Lei, o juiz decidirá o caso atendendo à unidade, à<br />

universalidade do concurso e à igualdade de tratamento dos<br />

credores, observado o disposto no art. 75 desta Lei.<br />

Esse juízo falimentar “é dividido em razão da matéria e em razão do<br />

lugar. Da matéria será a justiça cível estadual; já com relação ao lugar,<br />

será a do principal estabelecimento” (SILVA, 2009, p. 153). Coelho (2014,<br />

p. 337) também atenta que a sentença decorrente desse processo não<br />

será declaratória, “mas constitutiva, porque altera as relações entre os<br />

credores em concurso e a sociedade devedora falida”.<br />

No referente ao juízo falimentar, Teixeira (2013, p. 363) explica<br />

que ele é dividido em duas fases. A primeira fase, que se inicia com a<br />

petição inicial e se encerra com a decisão do juiz, que julga o pedido,<br />

concedendo ou não a falência. Na segunda fase, que se inicia com<br />

a decretação da falência, busca-se vender os bens da sociedade<br />

empresária ou do empresário com a finalidade de saldar as dívidas.<br />

Quando isso ocorre, o juiz irá encerrar o processo de falência.<br />

O mesmo autor ressalta, entretanto, que,<br />

[...] com a decretação da falência, o devedor fica proibido de<br />

exercer atividade empresarial, o que ocorre a partir dessa decisão<br />

judicial, que declarou a quebra, até a sentença que extinguir suas<br />

obrigações, podendo ainda perdurar por até 5 anos da decisão<br />

penal (LRF, art. 102, caput, c/c art. 181, § 1º) (2013, P. 369).<br />

A essa situação de proibição dá-se o nome de inabilitação<br />

empresarial, e é uma sanção imposta ao empresário por ter falido. Assim,<br />

[...] é preciso levar em consideração que, a partir da decretação<br />

da falência, o devedor perde o direito de administrar ou dispor de<br />

seus bens [...]. Esse efeito de inabilitação empresarial também é<br />

estendido aos sócios de responsabilidade ilimitada. Quanto aos<br />

sócios de responsabilidade limitada, a inabilitação empresarial<br />

somente os alcançará se forem os administradores da sociedade<br />

(TEIXEIRA, 2013, p. 369-370).<br />

Diante do exposto, percebe-se que o instituto da falência é um<br />

procedimento judicial que visa resguardar o patrimônio da sociedade,<br />

para que, posteriormente, seja utilizado para satisfazer os créditos<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 225


Ana Lara Tondo - José Lauri Bueno de Jesus<br />

não saldados daquela empresa. Uma vez incluída na situação de<br />

falida, a atividade econômica é suspensa e os bens do devedor<br />

ficarão indisponíveis, respondendo por aquela dívida, concedendo ao<br />

empresário mal sucedido o status de falido.<br />

OS SÓCIOS IDENTIFICADOS COMO FALIDOS<br />

O art. 82 da LRF trata da responsabilização dos sócios e dos<br />

administradores da empresa. Dessa maneira, todos os sócios sofrerão<br />

as consequências da falência da empresa.<br />

Tais consequências, porém, destaca Coelho (2014, p. 304), serão<br />

decorrentes da função exercida na empresa, ou seja, “em termos<br />

gerais, a lei atribui ao representante legal da sociedade falidaos<br />

mesmos encargos processuais reservados ao empresário individual”.<br />

Entretanto, alerta ainda o autor, caso a sociedade se tratar de<br />

limitada ou anônima cujo capital estiver integralizado, não será o sócio<br />

responsável pelas obrigações sociais, nem será impedido de continuar<br />

integrando demais entidades que, por acaso, fazer parte, ou mesmo,<br />

ingressar em outra nova. Não obstante, restrições patrimoniais serão<br />

direcionadas ao sócio com responsabilidade ilimitada.<br />

Pormenorizando as consequências direcionadas ao sócio com<br />

responsabilidade ilimitada, cumpre referir que, conforme assevera o<br />

art. 81 da Lei nº 11.101/05, responderá como falido, e, ainda, ficará<br />

impossibilitado de exercer a atividade empresarial.<br />

Art. 81: A decisão que decreta a falência da empresa com sócios<br />

ilimitadamente responsáveis também acarreta a falência destes,<br />

que ficam sujeitos aos mesmos efeitos jurídicos produzidos em<br />

relação à sociedade falida e por isso devem ser citados para<br />

apresentar contestação, se assim o desejarem.<br />

Ressalta-se, ainda, que Valdo Fazzio Júnior corrobora com tal<br />

posicionamento alegando que<br />

[...] a decisão que instaura a liquidação judicial da sociedade<br />

com sócios ilimitadamente responsáveis também acarreta a<br />

falência destes, sujeitos que ficam aos mesmos efeitos jurídicos<br />

produzidos em relação à sociedade que integram. É a projeção,<br />

no regime de insolvência empresarial, da indistinção patrimonial a<br />

que estão expostos (apud SOUZA, 2014, p. 6).<br />

226 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />

Rubens Requião, ademais, destaca que “o sócio de<br />

responsabilidade ilimitada que tenha se retirado há mais de dois anos<br />

a contar da data da declaração da falência não será alcançado pelo<br />

efeito descrito” (2014, s.p.). Ou seja, o sócio ainda fica pendente<br />

de responsabilização por um período de dois anos, a contar da sua<br />

saída de determinada atividade empresarial, mas deve tal ato estar<br />

registrado na Junta Comercial.<br />

No tocante à responsabilidade limitada, é indispensável que<br />

se esclareça que a sociedade empresária, durante a tramitação do<br />

processo de falência, manterá sua personalidade jurídica, entretanto,<br />

perderá a disposição e administração dos bens, que passarão a<br />

ser administrados por um administrador judicial (CALÇAS, 2003).<br />

Relativamente ao sócio de responsabilidade limitada, quando de<br />

sua personificação, ou seja, no momento do seu registro no Registro<br />

Público de Empresas Mercantis, o ente empresário adquire autonomia<br />

em relação às pessoas que compõe o ente empresarial.<br />

Essas pessoas se tornarão os sócios com responsabilidade<br />

limitada, a partir da integralização do capital social, perdendo a<br />

propriedade sobre esses bens, mas ganhando, em contrapartida,<br />

o direito de participar das decisões da empresa. A personificação<br />

ainda garante a separação patrimonial entre a pessoa jurídica recém<br />

constituída e a pessoa física, que adquiriu o status de sócio. Dessa<br />

forma, os bens particulares dos sócios que não foram usados para<br />

integrar o capital social não responderá pelas dívidas da empresa<br />

(NERILO, 2004, p. 38-39).<br />

Portanto, uma vez integralizado o capital social, cada sócio<br />

responde exclusivamente até o valor de suas quotas de capital.<br />

Essa mudança é benéfica para os sócios que não participam<br />

da administração, pois, uma vez integralizado o total do capital<br />

social, tem sua responsabilidade limitada até o valor de suas<br />

quotas (FAB<strong>RE</strong>TTI, 2003, p. 114).<br />

Assim, tendo em vista que a responsabilidade do sócio limitado<br />

é equivalente ao valor de suas quotas, comprometidas no contrato<br />

social, de tal peculiaridade decorre um incentivo para que o empresário<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 227


Ana Lara Tondo - José Lauri Bueno de Jesus<br />

explore sua atividade econômica, tendo em vista que suas perdas<br />

são limitadas, caso essa exploração falhe (FIO<strong>RE</strong>NTINO, 2014).<br />

Complementar a isso, Isiane Fiorentino alerta para uma exceção que,<br />

segundo ela,<br />

[...] se o patrimônio da sociedade limitada for insuficiente para<br />

satisfazer um crédito, o credor poderá cobrar de qualquer sócio<br />

até o limite do valor subscrito e não integralizado, inclusive de seu<br />

patrimônio particular, o que faltar para saldar seu crédito. É certo<br />

que o sócio que houver integralizado todas as suas quotas terá que<br />

pagar integralmente o credor, por causa dessa responsabilidade<br />

solidária, mas terá ação regressiva contra os demais sócios para<br />

reaver o valor despendido (2014, s.p.).<br />

Trata-se essa responsabilização pessoal do sócio da sociedade<br />

limitada, de uma exceção à responsabilidade limitada do sócio. Além<br />

disso, “é preciso que esse tenha exercido poder de gerência, e ainda<br />

que tenha agido com excesso de poder ou infringido a norma legal ou<br />

contrato social” (FIO<strong>RE</strong>NTINO, 2014, s.p.).<br />

A DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA<br />

Em última análise, cabe aqui apreciar o instituto ficcional da<br />

desconsideração da pessoa jurídica. Surgido nas cortes londrinas,<br />

tal instituto nasceu com o intuito de discutir “a possibilidade de<br />

responsabilizar-se particularmente determinado sócio que, valendo-<br />

-se da personificação da sociedade, pratica fraude contra credores”<br />

(CALÇAS, 2003, p. 156). Hoje, a desconsideração da personalidade<br />

jurídica não acarreta a nulidade da sociedade, apenas ocasiona a<br />

ineficácia da personificação em determinados negócios jurídicos.<br />

Tendo isso posto, verifica-se que a desconsideração da pessoa<br />

jurídica serve, no ordenamento jurídico atual, para coibir abusos e<br />

práticas ilícitas no âmbito da sociedade empresária. Coelho (2014)<br />

refere que esse instituto tem natureza excepcional, não devendo<br />

ser utilizado para questionar a sociedade, não sendo justificável o<br />

afastamento da autonomia da pessoa jurídica quando o credor não<br />

puder satisfazer os créditos.<br />

228 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />

Pela teoria da desconsideração, o juiz pode deixar de aplicar<br />

as regras de separação patrimonial entre sociedade e sócios,<br />

ignorando a existência da pessoa jurídica num caso concreto,<br />

porque é necessário coibir a fraude perpetrada graças à<br />

manipulação de tais regras. Não seria possível a coibição se<br />

respeitada a autonomia da sociedade (COELHO, 2014, p. 66).<br />

Logo, nota-se que a dissolução ou anulação da sociedade não é<br />

consequência da aplicação da teoria da desconsideração. Para Fábio<br />

Coelho, mesmo que seja desconsiderada, a autonomia patrimonial da<br />

sociedade empresária será preservada. Essa é uma forma de reprimir<br />

fraudes e atos abusivos sem prejudicar interesses de terceiros<br />

envolvidos, tais como trabalhadores, consumidores ou o fisco.<br />

Fábio Coelho destaca ainda, que essa teoria será aplicada apenas<br />

se “a personalidade jurídica autônoma da sociedade empresária antepõe-<br />

-se como obstáculo à justacomposição dos interesses” (2014, p. 69).<br />

Ainda, para Manoel de Queiroz Calças, é garantido à sociedade um<br />

processo autônomo face aos sócios que praticarem o ato fraudulento,<br />

onde serão descritos quais atos foram praticados, observando-se<br />

aos princípios do contraditório e ampla defesa. Visa-se, nesse caso,<br />

comprovar a presença de pressupostos explícitos, que evidenciam a<br />

fraude contra credores, a má-administração, o abuso de direito e o<br />

desvio de finalidade.<br />

Nesse campo, Coelho ressalta também a teoria da<br />

despersonalização inversa, que tende a conter fraudes relativas à<br />

autonomia processual da empresa, qual seja, o desvio de bens. É<br />

pacífico que essa versão da teoria seja utilizada para responsabilizar a<br />

sociedade por uma obrigação de um sócio, especialmente no que diz<br />

respeito ao direito de família e à possível partilha fraudulenta de bens.<br />

Concluindo-se o exame das disposições acima suscitadas, nas<br />

palavras de Fábio Coelho,<br />

a teoria da desconsideração, como visto, tem pertinência<br />

apenas quando a responsabilidade não pode ser, em princípio,<br />

diretamente imputada ao sócio, controlador ou representante legal<br />

da pessoa jurídica. Se a imputação pode ser direta, se a existência<br />

da pessoa jurídica não é obstáculo à responsabilização de quem<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 229


Ana Lara Tondo - José Lauri Bueno de Jesus<br />

quer que seja, não há por que cogitar do superamento de sua<br />

autonomia. E quando alguém, na qualidade de sócio, controlador<br />

ou representante legal da pessoa jurídica, provoca danos a<br />

terceiros, inclusive consumidores, em virtude de comportamento<br />

ilícito, responde pela indenização correspondente (2014, p. 80).<br />

O referido autor ainda complementa, afirmando que se visa, nesse<br />

caso, a responsabilização pessoal, originada no ato ilícito provocado<br />

pelo sócio, não deixando com que a existência de uma pessoa jurídica<br />

obste esse encargo.<br />

CONCLUSÃO<br />

O presente artigo, além de pontuar os tipos de sociedades<br />

empresárias, também explanou a respeito do instituto da falência<br />

e da consequência que a instauração de um processo dessa<br />

magnitude acarreta aos sócios em cada tipo societário. Assim sendo,<br />

preliminarmente, destacou-se que as sociedades são divididas<br />

em personificadas e não personificadas, de acordo com o registro<br />

efetuado na Junta Comercial.<br />

As sociedades não personificadas são representadas pela<br />

sociedade em comum e a sociedade em conta de participação. Quanto<br />

ao registro, referiu-se que não estão registradas no Registro Público<br />

de Empresas Mercantis.<br />

No tocante às sociedades personificadas, observou-se que<br />

são registradas, estando subdivididas em sociedades simples, que<br />

não são empresárias, em nome coletivo, em comandita simples<br />

e em comandita por ações, e as sociedades anônimas e limitadas.<br />

No trabalho exposto, não coube explorar as particularidades das<br />

sociedades simples, haja vista não possuírem caráter empresarial,<br />

uma vez que exploram apenas atividades intelectuais.<br />

Além disso, tratou-se a respeito do encargo dos sócios de<br />

responsabilidades limitadas e ilimitadas no processo da falência,<br />

tendo-se chegado à conclusão que remete à consideração do sócio<br />

de responsabilidade ilimitada como falido, em observância ao art. 81<br />

da Lei nº 11.101/05. Mister também se fez ressaltar que o sócio de<br />

230 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />

responsabilidade limitada não se torna responsável pelas obrigações<br />

sociais, uma vez estando o capital social integralizado, podendo,<br />

inclusive continuar integrando demais institutos que faça parte, ou<br />

ingressando numa nova sociedade, caso deseje, disposições essas<br />

que são vedadas ao sócio ilimitado.<br />

Ademais, o trabalho exposto também ofereceu uma análise acerca<br />

do tema da desconsideração da pessoa jurídica, tendo concluído pela<br />

utilidade do uso do artifício para fins de reduzir as fraudes e má-fé que<br />

possam advir do sócio, oculto pela presença do ente empresarial.<br />

<strong>RE</strong>FERÊNCIAS<br />

BANA, Elias Jacobsen. A mudança do direito empresarial no direito<br />

brasileiro. Disponível em: .<br />

Acesso em: 31 ago. 2014.<br />

BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002, que dispõe sobre o<br />

novo código civil brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/<br />

ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.Acesso em: 7 set. 2014.<br />

BRASIL. Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, que dispõe sobre<br />

a falência e recuperação de empresas. Disponível em: . Acesso<br />

em: 7 set. 2014.<br />

BULGA<strong>RE</strong>LLI, Waldirio. Sociedades comerciais: sociedades civis e<br />

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CALÇAS, Manoel Queiroz Pereira. Sociedade limitada no novo<br />

Código Civil. São Paulo: Atlas, 2003.<br />

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 18. ed. São<br />

Paulo: Saraiva, 2014.Volume 2.<br />

_______. Curso de direito comercial. Volume 3. São Paulo: Saraiva,<br />

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Acesso em:7 set. 2014.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 231


Ana Lara Tondo - José Lauri Bueno de Jesus<br />

______. Manual de direito comercial. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.<br />

Disponível em: .<br />

Acesso em: 7 set. 2014.<br />

FILHO, Adalberto Simão. Direito Empresarial III: direito societário<br />

contemporâneo. Coordenadores: Alice Bianchini, Luiz Flávio Gomes.<br />

Saraiva: 2012. Disponível em: .<br />

Acesso em:7 set. 2014.<br />

FIO<strong>RE</strong>NTINO, Isiane Cristina. Responsabilidade civil dos sócios<br />

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jan. 2009. Disponível em: . Acesso<br />

em: 14 set. 2014.<br />

GONÇALVES, Maria Gabriela VenturotiPerrotta Rios. RIOS, Victor<br />

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empresárias.5ª ed.Saraiva: 2012. Disponível em:.<br />

Acesso em: 7 set. 2014.<br />

NEGRÃO, Ricardo. Direito Empresarial: estudo unificado. 4.ed. rev.<br />

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NERILO, Lucíola Fabrete Lopes. Manual da sociedade limitada no<br />

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responsabilidade ilimitada e com responsabilidade limitada e a<br />

falência da sociedade. Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2014.<br />

RUSSO, Francisco. Manual prático de constituição de empresas.<br />

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SANCHEZ, Alessandro. GIALLUCA, Alexandre. Direito empresarial.<br />

IV: recuperação de empresas e falências. São Paulo: Saraiva,<br />

2012. Disponível em: < http://lelivros.club/book/download-direitoempresarial-iv-vol-30-col-saberes-do-direito-alessandro-sanchez-emepub-mobi-e-pdf/>.<br />

Acesso em:7 set. 2014.<br />

232 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />

SILVA, Vander Brusso da. Direito comercial empresarial.P<strong>RE</strong>TTI,<br />

Gleibe(Coord.). São Paulo: Ícone, 2009.<br />

SOUZA, NadialiceFrancischini de. Sócio de responsabilidade<br />

ilimitada: interpretação lógico-sistemática da sua participação na<br />

falência. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Direito.<br />

Disponível em: .<br />

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TEIXEIRA, Tarcísio. Direito empresarial sistematizado: doutrina e<br />

prática. 2. ed. São Paulo: Saraiva: 2013.<br />

Recebido: 18-9-2014<br />

Aprovado: 17-10-2014<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 233


NORMAS PARA SUBMISSÃO E PUBLICAÇÃO<br />

IESA<br />

CAMPANHA NACIONAL DE ESCOLAS DA COMUNIDADE - CNEC<br />

INSTITUTO CENECISTA DE ENSINO SUPERIOR DE SANTO<br />

ÂNGELO – IESA<br />

FACULDADE DE DI<strong>RE</strong>ITO<br />

<strong>RE</strong>VISTA (<strong>RE</strong>)<strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO<br />

NORMAS PARA SUBMISSÃO E PUBLICAÇÃO<br />

1. Sobre a revista (Re)Pensando Direito<br />

O Curso de Graduação em Direito do Instituto Cenecista de<br />

Ensino Superior de Ângelo– IESA, convida a comunidade acadêmica<br />

brasileira e estrangeira para colaborar com a sétima edição da Revista<br />

(Re)Pensando Direito.<br />

A revista (Re)Pensando Direito tem por objetivo publicar, de<br />

forma impressa e com periodicidade semestral, artigos científicos<br />

inéditos de autores nacionais e estrangeiros, seguindo rigorosamente<br />

as diretrizes para periódicos definidos pelo sistema Qualis – área do<br />

Direito.<br />

2. Envio dos artigos para submissão<br />

Os artigos deverão ser enviados à submissão para o endereço<br />

do correio eletrônico revistadir@iesanet.com.br, sob a forma de<br />

documento anexado à mensagem.<br />

A mensagem do e-mail deverá conter: o título do trabalho; o nome<br />

do autor, sua titulação e seu vínculo institucional; endereços para<br />

correspondência; telefones para contato e endereços eletrônicos e<br />

solicitação de análise do artigo.<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 235


3. Normas editorais<br />

a) Em conformidade com as regras do QUALIS, os artigos serão<br />

avaliados qualitativamente pelo sistema do “DOUBLE BLIND PEER<br />

<strong>RE</strong>VIEW”.<br />

b) Os trabalhos que receberem sugestões do Conselho Editorial<br />

e/ou do Comitê Editorial serão encaminhados aos autores, para as<br />

devidas adaptações.<br />

c) Não caberá recurso ao trabalho recusado, o qual será<br />

devolvido para o autor.<br />

d) Os pesquisadores que tiverem seus trabalhos selecionados<br />

cedem, sem ônus, desde a submissão dos mesmos, os direitos<br />

autorais para a publicação na Revista.<br />

e) Os conteúdos dos artigos serão de responsabilidade exclusiva<br />

de seus autores, não refletindo, necessariamente, a opinião do IESA-<br />

CNEC.<br />

f) Cada autor terá direito a quatro exemplares da edição da<br />

revista em que seu artigo foi publicado.<br />

4. Normas de apresentação dos trabalhos<br />

Os trabalhos para publicação na Revista (Re)Pensando Direito<br />

deverão seguir as seguintes normas:<br />

a) Os trabalhos deverão ter no mínimo doze e no máximo 20<br />

laudas, incluindo as referências bibliográficas, digitadas em formato<br />

Word, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaçamento de 1,5<br />

entre linhas.<br />

b) O título do artigo deve ser escrito em letra maiúscula, tamanho<br />

12 e em negrito, bem como a sua tradução em inglês, logo abaixo.<br />

c) Os itens e subitens do texto devem ser escritos em letras<br />

maiúsculas e em negrito, e numerados de forma progressiva.<br />

d) Nos trabalhos deverão constar os seguintes dados: o título<br />

do trabalho em português e inglês, o nome do autor (ou coautores),<br />

vinculação acadêmica, títulos, instituições às quais integra e e-mail;<br />

e) A estrutura básica do artigo deverá conter: o título do<br />

trabalho em português e inglês; o nome do autor (indicando vinculo<br />

236 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


NORMAS PARA SUBMISSÃO E PUBLICAÇÃO<br />

institucional, titulação acadêmica e e-mail); resumo (aproximadamente<br />

150 palavras); abstract; palavras-chave; keywords (de três a cinco<br />

palavras); sumário; introdução; desenvolvimento do trabalho;<br />

considerações finais e referências.<br />

f) As páginas devem estar numeradas em folhas A4, com<br />

margens superior e esquerda com 3,0 cm e inferior e direita com 2,0<br />

cm.<br />

g) As citações e as referências bibliográficas deverão seguir as<br />

normas da ABNT.<br />

Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas<br />

Prof. Ms. José Lauri Bueno de Jesus<br />

Diretores da Revista<br />

(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 237


<strong>08</strong><br />

AP<strong>RE</strong>SENTAÇÃO<br />

MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE<br />

Aline Damian Marques<br />

Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />

Doglas Cesar Lucas<br />

Nadabe Manoel Machado<br />

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />

Paulo Valdemar da Silva Balbé<br />

Salete Oro Boff<br />

A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth<br />

Tamyse de Christo Marques<br />

O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />

Juliane Colpo<br />

Roberto Colpo<br />

A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />

Isabel Cristina Brettas Duarte<br />

FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />

José Lauri Bueno de Jesus<br />

A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADO<strong>RE</strong>S DO DI<strong>RE</strong>ITO<br />

Clarissa Bohrer<br />

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />

Adriana Liberalesso<br />

Bruna Escobar<br />

Carla Dóro de Oliveira<br />

Tainá Borges<br />

Vera Maria Werle<br />

A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />

Ana Lara Tondo<br />

José Lauri Bueno de Jesus<br />

NORMAS PARA SUBMISSÃO E PUBLICAÇÃO<br />

IESA

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