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<strong>08</strong><br />
Jul./Dez. 2014 ISSN 2237-5953<br />
<strong>RE</strong>VISTA DO CURSO DE DI<strong>RE</strong>ITO DA CNEC SANTO ÂNGELO - RS
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />
DI<strong>RE</strong>ITO<br />
ISSN 2237-5953<br />
Ano 4, n. 8 - julho/dezembro 2014<br />
Catalogação na Fonte<br />
(<strong>RE</strong>) Pensando Direito / Revista do Curso de Direito<br />
da CNEC Santo Ângelo –RS. – Ano 4, n. 8. (jul/dez.<br />
2014) – Uberaba: CNEC Edigraf, 2014.<br />
Semestral<br />
ISSN 2237-5953<br />
1. Direito. 2. Direito – Periódico. I. Curso de Direito da<br />
CNEC Santo Ângelo – RS<br />
CDU: 34(05)
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO<br />
Revista do Curso de Direito<br />
da CNEC Santo Ângelo – RS<br />
Campanha Nacional de Escolas da Comunidade<br />
Diretor Presidente: Deputado Alexandre José dos Santos<br />
Diretor Presidente em Exercício: Prof. Juarez de Magalhães Rigon<br />
Diretora Secretária: Profª. Anita Ortiz Corrêa<br />
Diretor do IESA: Prof. Antônio Roberto Lausmann Ternes<br />
Coordenação Editorial: Prof. Gilberto Kerber<br />
Diretores da Revista: Prof. Doglas Cesar Lucas e Prof. José Lauri Bueno de Jesus e<br />
Comissão Editorial: Gilberto Kerber, José Lauri Bueno de Jesus, Doglas Cesar Lucas,<br />
Salete Oro Boff, Clarisse Goulart Nunes.<br />
Conselho Editorial: Dr. Antonio Carlos Wolkmer (UFSC), Dr. Vicente de Paulo Barretto<br />
(Uerj), Drª. Jânia Saldanha (UFSM), Dr. Doglas Cesar Lucas (Iesa/<br />
Unijuí), Dr. Luiz Ernani Bonesso de Araújo (UFSM), Dr. Sidney<br />
Guerra (UFRJ), Dr. Thiago Fabres de Carvalho (FDV/ES), Dr. Wagner<br />
Menezes (USP), Drª. Ângela Araújo da Silveira Espíndola (UFSM),<br />
Drª. Fabiana Marion Spengler (Unisc), Drª. Raquel Fabiana Lopes<br />
Sparemberger (FURG), Drª. Salete Oro Boff (Iesa/Unisc), Dra. Nuria<br />
González Martín (Universidad Nacional Autónoma de México)<br />
Revisão:<br />
Capa:<br />
Prof. Artur Hamerski e Isabel Cristina Brettas Duarte.<br />
CNEC Propaganda<br />
Classificação B5 no Sistema Qualis Capes de Periódicos<br />
Editada em 1981 com o título Revista da Faculdade de Direito de Santo Ângelo (nº 1), em<br />
1999 como Revista IESA (nº 2), de 2002 a 2004 como Revista Habeas Data (nº 3 a nº 5), e<br />
em 2011 como (Re)Pensando Direito<br />
Endereço do Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo:<br />
Rua: Dr. João Augusto Rodrigues, 471<br />
CEP: 98801-015 – Santo Ângelo-RS<br />
Fone: 55 33131922 – fax 55 33131922<br />
e-mail: revistadir@iesanet.com.br<br />
Revista disponível em:<br />
http://www.iesanet.com.br<br />
Direitos de Publicação, Capa, Programação Visual, Editoração Impressão:<br />
Editora e Gráfica Cenecista Dr. José Ferreira<br />
Av. Frei Paulino, 530 - Bairro Abadia<br />
PABX: (34) 2103-0700 - FAX: (34) 3312-5133<br />
CEP: 38025-180 - Uberaba, MG - e-mail: cnecedigraf@cneconline.com.br
SUMÁRIO<br />
AP<strong>RE</strong>SENTAÇÃO 5<br />
MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS<br />
FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE 11<br />
Aline Damian Marques<br />
Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />
A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN 29<br />
Doglas Cesar Lucas<br />
Nadabe Manoel Machado<br />
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE 53<br />
Paulo Valdemar da Silva Balbé<br />
Salete Oro Boff<br />
A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O<br />
<strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO 73<br />
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth<br />
Tamyse de Christo Marques<br />
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA<br />
SOCIEDADE ATUAL 101<br />
Juliane Colpo<br />
Roberto Colpo<br />
A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA 145<br />
Isabel Cristina Brettas Duarte<br />
FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05 161<br />
José Lauri Bueno de Jesus<br />
A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA<br />
FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADO<strong>RE</strong>S DO DI<strong>RE</strong>ITO 181<br />
Clarissa Bohrer
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS<br />
PARA A SUA APLICAÇÃO 193<br />
Adriana Liberalesso<br />
Bruna Escobar<br />
Carla Dóro de Oliveira<br />
Tainá Borges<br />
Vera Maria Werle<br />
A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS 217<br />
Ana Lara Tondo<br />
José Lauri Bueno de Jesus<br />
NORMAS PARA SUBMISSÃO E PUBLICAÇÃO 235
AP<strong>RE</strong>SENTAÇÃO<br />
AP<strong>RE</strong>SENTAÇÃO<br />
Sempre na busca do aprimoramento de nossa Revista (<strong>RE</strong>)<br />
Pensando do Curso de Direito do Instituto Cenecista de Ensino<br />
Superior de Santo Ângelo (CNEC-IESA),nesta edição os leitores estão<br />
sendo abrilhantados com vários artigos, dentre os quais destacamos a<br />
produção realizada por nossos alunos que se encontram no 8 o período<br />
do curso. Assim, ficamos felizes com a participação deles e esperamos<br />
que outros acadêmicos se juntem a eles na escrita de artigos.<br />
Para compor a 8 a edição,como sempre temos feito, observamos<br />
vários critérios, dos quais os colaboradores e leitores têm o conhecimento,<br />
e porque são necessários para o Sistema Qualis Capes de Periódicos,<br />
almejando subir a classificação da Revista, pois essa é muito importante<br />
para a instituição e para o Curso de Direito.<br />
Assim, o primeiro artigo constante é sobre a Mediação e conciliação:<br />
reflexões acerca dos conflitos familiares na contemporaneidade,<br />
em que as autoras realizam uma abordagem acerca dos benefícios da<br />
mediação e da conciliação nos conflitos familiares, além de apontar<br />
as principais causas desses conflitos, pontuando as mudanças que a<br />
entidade familiar vem sofrendo ao longo dos anos, eis que a família,<br />
dentro das mais diversas configurações da convivência humana,<br />
obteve, sempre, papel de destaque na organização do sistema social.<br />
Logo, do histórico da evolução da entidade familiar, serão abordadas<br />
as aplicações gerais da mediação e da conciliação como alternativas<br />
benéficas na resolução dos conflitos familiares, principalmente, nos<br />
casos de separação e de divórcios, nas quais essa resolução alternativa<br />
atinge sua maior aplicabilidade e efetividade. Dentro desse panorama<br />
geral da sociedade ocidental e dos diversos conflitos, inerentes ao<br />
âmbito familiar, será possível fazer um paralelo da transformação dos<br />
laços familiares e da judicialização da sociedade, tomando, como<br />
parâmetro, a mediação como viés da resolução de conflitos.<br />
O texto seguinte trata sobre A desobediência civil na teoria<br />
jurídica de Ronald Dworkin, no qual os seus autores apresentam de forma<br />
bastante rápida a compreensão da desobediência civil no pensamento<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 5
jurídico de Ronald Dworkin. Segundo o jusfilósofo norte-americano,<br />
a desobediência civil poderá ser invocada por aquele cidadão que<br />
considerar determinada lei de constitucionalidade duvidosa e decorre<br />
do direito (de baixa intensidade) de liberdade que todos os cidadãos<br />
possuem de interpretar moralmente o sistema jurídico, principalmente<br />
nos casos de possíveis exageros e equívocos da autoridade judicial.<br />
Nesses casos, os desobedientes civis fomentariam o debate em torno<br />
da validade da lei, questionando argumentos e interpretações oficiais<br />
e com isso proveriam a reafirmação ou correção dos instrumentos<br />
legitimadores do sistema jurídico.<br />
Na continuidade, é apresentado o artigo sobre o Desenvolvimento<br />
sustentável por meio da extrafiscalidade, no qual os autores<br />
abordam o tema do desenvolvimento sustentável, com destaque para<br />
a aplicação da extrafiscalidade nas espécies tributárias. Inicialmente<br />
é abordado o contexto histórico e mundial que deu origem ao tema<br />
“desenvolvimento sustentável”. Em um segundo momento, busca-<br />
-se a compreensão da dimensão das liberdades fundamentais,<br />
condicionantes para a mudança de perfil do indivíduo, capacitando-o<br />
a atuar como agente dentro das estruturas da sociedade, com reflexos<br />
na construção de uma ética de responsabilidade. Após, realiza-se<br />
um estudo das competências tributárias na Constituição Federal de<br />
1988 com especial enfoque para as bases econômicas ou matrizes<br />
tributárias previstas no texto constitucional e o questionamento sobre<br />
a possibilidade de instituição de tributação ambiental em um âmbito<br />
normativo analítico, com pouca margem de liberdade. Por fim, realiza-<br />
-se um estudo sobre o alcance do princípio da extrafiscalidade e a<br />
possibilidade de aplicação nas espéciestributárias com o propósito de<br />
resguardo ao meio ambiente.<br />
Na sequência dos artigos, no texto sobre A revisão criminal como<br />
condição de possibilidade para o resgate do status dignitatis do<br />
condenado, os autores analisam a responsabilidade civil do empregador<br />
pelos danos causados em razão do assédio moral no trabalho, tanto<br />
por atos praticados por ele próprio quanto por atos praticados por seus<br />
empregados ou prepostos. Examina-se, para tanto, o assédio moral<br />
6 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
AP<strong>RE</strong>SENTAÇÃO<br />
no trabalho, seu conceito, suas modalidades e danos causados. Em<br />
seguida, atenta-se para a teoria da responsabilidade civil, conceituando-a<br />
e analisando seus pressupostos. Por fim, analisa-se a responsabilidade<br />
civil do empregador em face do assédio moral no trabalho.<br />
Outro artigo interessante é o texto sobre O direito ambiental e a<br />
interface com a educação ambiental na sociedade atual, em que<br />
os autores analisam se a coletividade se apropriou ou não dos valores<br />
inerentes ao direito ambiental como forma de prover a si mesma<br />
dos elementos essenciais à sadia qualidade de vida, dissociando ou<br />
associando a sustentabilidade do meio natural com os processos de<br />
desenvolvimento, partindo-se da abordagem da sociedade atual na<br />
visão de Leonardo Boff e Gilles Lipovetzky. Em seguida, traçando<br />
interface com o Código de Defesa do Consumidor, relacionam a<br />
posição das partes envolvidas na relação de consumo e seu papel<br />
transformador daquela sociedade paradigma em novo modelo<br />
social, com desenvolvimento econômico, porém nas dimensões da<br />
sustentabilidade, a partir da conscientização dos efeitos, danosos<br />
ou não, decorrentes da liberdade de consumir. Segue-se com a<br />
leitura da educação ambiental no direito positivo brasileiro, conceito,<br />
partícipes e objetivos, e a par da reflexão da sociedade atual na<br />
abordagem dos autores referenciados no trabalho, perquire-se acerca<br />
da sustentabilidade nessa sociedade dita como de mercantilização<br />
dos valores, bem como o papel da educação ambiental e se esta age<br />
como vetor de transformação social para a concretização do direito<br />
a um meio ambiente equilibrado como garantia a sadia qualidade de<br />
vida.<br />
A importância da bioética para o Direito: uma reflexão<br />
necessária é um texto em que a autora faz uma análise sobre a forma<br />
em que o progresso da ciência tem causado mudanças na sociedade<br />
mundial e enseja relações jurídicas cada vez mais complexas, além<br />
de novos questionamentos, para os quais a legislação vigente não<br />
tem uma resposta exata e imediata. Vive-se uma crise de paradigmas<br />
na dogmática jurídica mistificada na neutralidade da ciência, além do<br />
descortinar de novas reflexões, assim como o surgimento de uma<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 7
nova juridicidade, fundada nos princípios bioéticos, em especial na<br />
dignidade da pessoa humana e na responsabilidade, nos quais é<br />
balizada a utilização das novas biotecnologias.<br />
Na sequência, no texto sobre a Falência e recuperação da<br />
empresa na óptica da lei n. 11.101/05, demonstra-se o longo<br />
caminho que as empresas têm percorrido, na história, para poderem<br />
atingir o patamar de recuperação ao invés de ingressarem na falência,<br />
diretamente. Entretanto, é necessário observar alguns princípios, que<br />
deverão ser analisados quando a empresa se encontrar em crise,<br />
a fim de verificar a viabilidade ou não da continuidade das suas<br />
atividades, preservando assim a empresa, inclusive, deve ser sempre<br />
voltado para o aspecto social, inserindo-se nessa situação a quitação<br />
dos débitos de todos os credores e a mantença do emprego dos<br />
funcionários. Faz-se também uma breve retrospectiva histórica das<br />
leis dos principais países, especialmente sobre os aspectos relativos<br />
à recuperação da empresa.<br />
Ainda temos o texto sobre A importância da criminalística como<br />
disciplina autônoma na formação superior dos operadores do<br />
Direito, em que a Criminalística tem demonstrada a sua importância ao<br />
longo da evolução do estudo da Medicina Legal e do Processo Penal,<br />
cadeiras integrantes do curso superior de Ciências Jurídicas e Sociais. O<br />
profissional do Direito, entretanto, conclui a sua formação tendo apenas<br />
uma breve noção de conceitos que serão por ele utilizados sê membro<br />
das carreiras do Judiciário, do Ministério Público, das Promotorias e<br />
Defensorias ou na qualidade de advogado. Entretanto, caso opte por<br />
uma das carreiras da Segurança Pública (Polícias civil e militar e Perícia<br />
oficial) terá uma abrangência de conhecimentos que lhes capacitarão<br />
verdadeiramente para labutar na seara criminal. Assim, será proposta<br />
a inclusão da Criminalística como disciplina autonôma dos cursos<br />
superiores de Direito, dada a sua importância para todos os operadores<br />
do Direito, sejam profissionais da Segurança Pública ou não.<br />
Por fim, os dois artigos dos acadêmicos do Curso de Direito da<br />
CNEC-IESA. O primeiro diz sobre a Dignidade da pessoa humana:<br />
limites, critérios e pressupostos para a sua aplicação, no qual é<br />
8 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
AP<strong>RE</strong>SENTAÇÃO<br />
realizada a apresentação das noções principais acerca do princípio<br />
constitucional da dignidade da pessoa humana, especialmente no que<br />
tange à delimitação de um conceito jurídico possível, bem como à<br />
delimitação de conteúdos mínimos para a sua correta aplicação pelo<br />
profissional do direito. Também, buscar-se-á demonstrar de que forma<br />
tem se dado a utilização desse princípio pela jurisprudência brasileira<br />
frente ao caso concreto.<br />
Já o artigo sobre A responsabilidade dos sócios à luz da<br />
atual lei de falências, em que os autores demonstram como fica a<br />
responsabilidade dos sócios de uma sociedade empresária quando<br />
ocorrer a decretação da falência da mesma. Para isso, serão<br />
apresentados os tipos de sociedades empresárias e o procedimento<br />
na atual lei de falências e recuperação de empresas, bem como a<br />
situação dos sócios identificados em cada uma, como falidos. Além<br />
disso, também será analisada a desconsideração da personalidade<br />
jurídica quando da falência, em decorrência da confusão e o desvio do<br />
patrimônio por parte dos seus sócios.<br />
Desejamos uma boa leitura a todos. Esperamos, enfim, que<br />
os artigos aqui apresentados possam contribuir com o crescimento<br />
intelectual e profissional de cada profissional do Direito, para que as<br />
luzes aqui lançadas alcancem novos horizontes do saber.<br />
Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas<br />
Prof. Ms. José Lauri Bueno de Jesus<br />
Diretores da Revista (<strong>RE</strong>) Pensando Direito CNEC-IESA<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 9
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />
DI<strong>RE</strong>ITO<br />
MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES<br />
ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA<br />
CONTEMPORANEIDADE<br />
Mediation and reconciliation: reflections on conflicts of<br />
families in contemporary<br />
Resumo<br />
Aline Damian Marques 1<br />
Denise Tatiane Girardon dos Santos 2<br />
O presente artigo tem por objetivo promover uma abordagem acerca dos benefícios da mediação e da conciliação nos<br />
conflitos familiares, além de apontar as principais causas desses conflitos, pontuando as mudanças que a entidade<br />
familiar vem sofrendo ao longo dos anos, eis que a família, dentro das mais diversas configurações da convivência<br />
humana, obteve, sempre, papel de destaque na organização do sistema social. Logo, do histórico da evolução da<br />
entidade familiar, serão abordadas as aplicações gerais da mediação e da conciliação como alternativas benéficas na<br />
resolução dos conflitos familiares, principalmente, nos casos de separação e de divórcios, nas quais essa resolução<br />
alternativa atinge sua maior aplicabilidade e efetividade. Dentro desse panorama geral da sociedade ocidental e dos<br />
diversos conflitos, inerentes ao âmbito familiar, será possível fazer um paralelo da transformação dos laços familiares e<br />
da judicialização da sociedade, tomando, como parâmetro, a mediação como viés da resolução de conflitos.<br />
Palavras-chave: Conflito. Conciliação. Mediação. Família.<br />
Abstract<br />
The present article has the objective to promote an approach about the benefits of mediation and conciliation in family<br />
conflicts, while pointing out the major causes of conflicts, highlighting the changes that the family unit has suffered<br />
over the years, behold the family within the various configurations of human coexistence, got, always prominent role<br />
in the organization of the social system. Therefore, the historical evolution of the family unit, will address the general<br />
applications of mediation and conciliation as beneficial in resolving family conflicts alternatives, especially in cases<br />
of separation and divorce, where this alternative resolution reaches its greatest applicability and effectiveness. Within<br />
this overall picture of Western society and the various conflicts inherent in the family context, you can draw a parallel<br />
transformation of family ties and the judicialization of society, taking as parameter, mediation and conflict resolution bias.<br />
Keywords: Conflict. Conciliation. Mediation. Family.<br />
Sumário:<br />
1. Considerações iniciais; 2. O conflito: conceituações e aspectos gerais; 3. A conciliação e a mediação<br />
dentro dos conflitos familiares; 4. Considerações finais; 5. Referências<br />
1 Advogada, Especialista em Direito Tributário e Mestranda em Direitos Humanos pela UNIJUÍ, bolsista FAPERGS, pesquisadora na<br />
linha “Direitos Humanos, Relações Internacionais e Equidade”. E-mail: alined.marques@terra.com.br<br />
2 Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ). Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade do<br />
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ); vinculação à linha de pesquisa “Direitos Humanos, Relações Internacionais e Equidade”;<br />
bolsista Integral do Programa de Apoio à Pós-Graduação (PROAP) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),<br />
especializanda em Educação Ambiental pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Advogada. E-mail: dtgsjno@hotmail.com<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 11-52
Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />
CONSIDERAÇÕES INICIAIS<br />
O presente estudo se dedica a analisar um tema que se encontra<br />
em voga, sendo, deveras, importante hodiernamente, qual seja, as<br />
transformações sofridas pelas famílias na contemporaneidade, como<br />
a estrutura, a cultura e os hábitos, além de apontar as principais – e<br />
novéis - contendas e as formas de resolução dessas, destacando-se<br />
a mediação e a conciliação.<br />
O regime de hierarquia, que delegava à figura paterna uma<br />
posição de soberania e impunha aos filhos e à mãe a obediência,<br />
foi, há tempos, substituído pelo regime de igualdade e respeito entre<br />
todos, de modo que o pai não mais é o único responsável por prover<br />
a família, pois tanto a mãe, quanto os filhos conquistaram espaço<br />
no que diz respeito às decisões familiares, uma vez que passaram a<br />
participar, ativamente, da geração de recursos.<br />
Assim, a figura materna também conquistou seu espaço na família<br />
como parte provedora desta e passou a ter autonomia em suas decisões.<br />
Nesse contexto, os filhos, de um modo em geral, possuem maior autonomia<br />
em relação aos genitores e, como consequência, acabam por manter maior<br />
contato com muitos agentes externos, sejam eles de influência positiva ou<br />
negativa – esses, principalmente, são o alcoolismo, a dependência por<br />
drogas, o materialismo, o consumismo, dentre outros agentes.<br />
E, paralelamente, como todas as instituições sociais passaram<br />
por radicais transformações na modernidade, não foi diferente com<br />
o Direito, que é o responsável por ordenar as relações sociais e<br />
administrar seus conflitos. Com a acentuação e a rapidez com que<br />
as relações sociais se alteram, o Direito necessitou – e necessita<br />
– se transformar e se adequar, moldando-se à sociedade, para ter<br />
capacidade de atender às demandas sociais com êxito.<br />
Dessa forma, o presente trabalho objetiva promover um debate<br />
sobre a noção do conceito de família, na contemporaneidade, partindo<br />
da premissa da transformação jurídica ocorrida, em decorrência das<br />
transformações sociais, e como aquela pode se adequar a estas para<br />
tratar das novas demandas, oriundas da inédita organização familiar<br />
que está se formando e transformando constantemente.<br />
12 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE<br />
A família contemporânea tem sua base lastreada na liberdade,<br />
na igualdade e na afetividade, em cujo tripé de valores os membros<br />
familiares mantêm constantes negociações, culminando em um<br />
suprimento de necessidades, mútuo e do todo, uma vez que, na família<br />
atual, não há papéis preestabelecidos, sendo o diálogo fundamental<br />
para a manutenção da harmonia. Nesse viés, nem sempre todos<br />
conseguem chegar a um consenso entre seus direitos e seus deveres,<br />
e é neste ponto que, muitas vezes, há a necessidade de um interventor<br />
imparcial, qual seja, o mediador.<br />
Por isso, a conciliação e a medição surgem como mecanismos<br />
eficazes na resolução de conflitos, tornando o Poder Judiciário mais<br />
ágil, mais respeitado e menos oneroso, sobretudo, mais justo e<br />
adequado para resolver os novos conflitos familiares, apresentados<br />
pelas famílias contemporâneas. Destarte, este estudo faz-se relevante<br />
e interessante diante da repercussão jurídica e da implicação social<br />
da temática tratada, podendo contribuir para a efetivação do método<br />
conciliatório, sobretudo, no contexto familiar.<br />
O CONFLITO: CONCEITUAÇÕES E ASPECTOS GERAIS<br />
A palavra conflito é originária do latim e possui inúmeras variantes,<br />
mas seu significado etimológico traz a ideia de choque, de discórdia, de<br />
antagonia, de oposição. Na lição de José Luis Bolzan de Morais e Fabiana<br />
Marion Spengler (2012, p. 45), um conflito pode ser social, interno,<br />
externo, étnico, religioso, político, familiar ou um conflito de valores, ou<br />
seja, é “[...] um enfrentamento entre dois seres ou grupos da mesma<br />
espécie que manifestam, uns a respeito dos outros, uma intenção hostil”.<br />
Como se trata de romper a resistência da outra parte nessa espécie<br />
de confronto de vontades, o conflito também implica a tentativa de<br />
domínio por meio de violência – direta ou indireta –, ou ameaça – física<br />
ou psicológica –, tendo em vista que a essência do poder é o domínio,<br />
na maioria das vezes, manifestado pela violência (A<strong>RE</strong>NDT, 2004, p. 23).<br />
Assim, o conflito pode ser entendido como uma forma de se avocar, para<br />
si, a razão, sem a necessidade de argumentos lógicos e racionais, exceto<br />
quando as partes litigiosas aceitam a mediação de um terceiro.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 13
Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />
Fundamentalmente, os conflitos surgem de divergência de interesses<br />
de um ou mais indivíduos na defesa de seus direitos e, a partir dessa cizânia<br />
de interesses, abrolha a necessidade de se criar alternativas capazes de<br />
retomar a paz social. Na medida em que a sociedade foi evoluindo, os conflitos<br />
também foram se modificando, obrigando, com isso, ao aprimoramento<br />
das alternativas de soluções de conflitos, a fim de garantir, de manter ou<br />
reestabelecer o direito (NASCIMENTO; EL SAYED, 2002, p. 49).<br />
Entretanto, como as sociedades, seus usos, costumes e leis<br />
transformam-se, constantemente, o conflito também acompanhou<br />
esse fenômeno, inclusive como meio para facultar essas mesmas<br />
transformações. Assim, o litígio voltou-se para a resolução de pontos<br />
de vista, socialmente divergentes, não sendo possível separá-lo das<br />
relações sociais, posto que esse tipo de comportamento humano<br />
significa mudanças e estimula inovações, favorecendo o combate<br />
ordenado, ou seja, uma “[...] competição regrada pelo direito, fora de<br />
toda a violência” (BOLZAN DE MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 67).<br />
Ocorre, entretanto, que, ao tomar o monopólio da violência para si, o<br />
Estado se volta, unicamente, para a vítima – e não para o autor do fato –,<br />
intencionando a suprir o sentimento de vingança; acontece que essa forma<br />
de administração da justiça não é satisfativa, pois o conflito, em si, tenta a<br />
se iniciar, novamente, ou continuar. Esse comportamento se justifica pela<br />
tentativa de, ao sentimento de desforço ser aplacado, de ser afastado,<br />
evitando a vingança pessoal, pelo que o Estado, ao tomá-la para si, necessita<br />
adotar os meios para supri-la (TAVA<strong>RE</strong>S DOS SANTOS, 1997, p. 161).<br />
A pacificação é a função fundamental da jurisdição, assim como<br />
de todo o sistema processual, incumbindo ao Estado promover as<br />
formas de realização, sobretudo de criar ou de adequar meios efetivos<br />
para a realização da Justiça. Nos ensinamentos de Fabiana Marion<br />
Spengler, é possível verificar que<br />
para tratar os conflitos nascidos da sociedade, o Estado, enquanto<br />
detentor do monopólio da força legítima, utiliza-se do Poder<br />
Judiciário. O juiz deve, então, decidir os litígios porque o sistema<br />
social não suportaria a perpetuação do conflito. A legitimidade<br />
estatal de decidir os conflitos nasce, assim, do contrato social<br />
no qual os homens outorgaram a um terceiro o direito de fazer a<br />
guerra em busca de paz (2012, p. 65).<br />
14 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE<br />
O complexo modelo social surgido na contemporaneidade<br />
manifestou a exigência de existir um terceiro, em tese, neutro e<br />
desinteressado, como instrumento pacificador de conflito, condição<br />
esta que foi, paulatinamente, assumida pelo Estado, que passou a<br />
intervir como figura neutra na solução dos conflitos. Assim, a atuação<br />
estatal, na função de árbitro, passou a visar à neutralização do conflito<br />
ou sua eliminação (PINHO; DURÇO, 20<strong>08</strong>, p. 35).<br />
Quanto à atividade estatal, cumpre ressaltar que a característica<br />
mais importante do ato jurisdicional é o desinteresse do juiz, ou seja,<br />
é a sua postura alheia ao litígio enquanto parte interessada, de modo<br />
que o Estado, portanto, deve ser imparcial nessa função, preenchendo<br />
a lacuna que se instaurou a partir da substituição da resolução dos<br />
conflitos na esfera privada. Destarte, no estado agonal ou no Sistema<br />
Judiciário, o Estado impera em uma condição hobbesiana, em que o<br />
cidadão, ao mesmo tempo em que recebe a tranquilidade de deter a<br />
vingança e a violência, perde a possibilidade de tratar seus próprios<br />
conflitos de forma autônoma e não violenta.<br />
A questão problemática dessa condição é que a sociedade<br />
permanece estática, pois todas as questões são delegadas à resolução<br />
pelo juiz, representando uma transferência de prerrogativas e o<br />
engessamento da solução, verificando-se a adoção de uma postura<br />
que desconsidera as novas possibilidades inerentes a um tratamento<br />
mais democrático dos conflitos. É possível afirmar, inclusive, que essa<br />
estrutura fica mais atenta aos remédios em detrimento das causas da<br />
contenda (BOLZAN DE MORAIS; SPENGLER, 2012). Essa atenção,<br />
que é cobrada do juiz, o coloca em uma posição superior de mero<br />
intérprete das normas, indo para além, sendo a pessoa responsável<br />
por efetivar o direito à igualdade (propiciada pelo direito do acesso<br />
à Justiça) a partir do momento que efetiva os direitos humanos e<br />
fundamentais que estão em voga, atingindo o fim e a responsabilidade<br />
social dessa prestação (CAPPELETTI, 1989).<br />
Ao adotar essa posição, o Poder Judiciário decide sobre relações<br />
sociais, mas não impede que outras tantas continuem surgindo,<br />
pois, afinal, a lei substitui a violência privada, mas condiciona que as<br />
partes, em frente da decisão oriunda da lei, tenham-se por satisfeitas,<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 15
Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />
ou que as raízes do conflito tenham sido eliminadas. Bom exemplo<br />
é o produto, enquanto resultado, das separações e dos divórcios: o<br />
processo acaba, mas o conflito, muitas vezes, não.<br />
Além do estado agonal, há formas não jurisdicionais de tratamento<br />
de conflitos, nas quais se atribui legalidade à voz de um conciliador,<br />
de um mediador, que auxilia os conflitantes em determinada questão.<br />
Esse sistema, com base no direito fraterno, é centrado na criação<br />
das regras de compartilhamento e de convivência, significando mais<br />
responsabilidades ao cidadão por suas próprias decisões (BOLZAN<br />
DE MORAIS; SPENGLER, 2012).<br />
A sociedade moderna, vista sob o âmbito dos conflitos familiares,<br />
surgiu no final da Idade Média e início do Renascimento, perpassando de<br />
sociedade tradicional para industrial, momento em que ocorreram rupturas<br />
que demarcaram essas mudanças. A partir de então, foram inúmeras as<br />
transformações em todo âmbito social, e os indivíduos transformaram,<br />
praticamente, toda a sua forma de ação e a óptica sobre a percepção da<br />
realidade, alterando, completamente, suas narrativas de vida, de modo<br />
que, hodiernamente, vive-se em uma época de constante transformação<br />
dos âmbitos da vida social e institucional.<br />
Zygmunt Bauman analisa a questão da intimidade e do<br />
relacionamento humano dentro da modernidade de forma radicalizada,<br />
ponderando que os graus de parentesco se sentem ameaçados diante<br />
de uma ordem social que carece de pontes estáveis, pois<br />
suas fronteiras se tornaram embaçadas e contestadas, e as redes<br />
se dissolveram num terreno sem titulo de posse nem propriedade<br />
hereditárias. [...] Às vezes um campo de batalha, outras vezes<br />
o objeto de pendengas judiciais não menos amargas. As redes<br />
de parentesco não podem estar seguras de suas chances de<br />
sobrevivência, muito menos calcular suas expectativas de vida.<br />
Sua fragilidade as torna ainda mais preciosas (2007, p. 47).<br />
O autor, ao abordar a sociedade contemporânea, conceitua-a<br />
como líquido-moderna, diante das incertezas “[...] em que as condições<br />
sob as quais agem seus membros, mudam em um tempo mais curto do<br />
que o necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas<br />
de agir”. (op. cit., p. 7). Nesse novo modelo de sociedade as relações<br />
16 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE<br />
sociais se confundem com as relações de consumo, pois a sociedade<br />
se transformou, ao mesmo tempo, em mercadoria e em consumidora,<br />
desimportando o meio onde se vive, desde que a constância da<br />
atratividade e do desejo se mantenha – como mercadoria –, seja para<br />
conseguir um emprego, seja para um reconhecimento social.<br />
As realizações pessoais dos indivíduos são, a todo momento,<br />
passíveis de transformação. Os relacionamentos são como uma<br />
espécie de relação de consumo, na qual o indivíduo busca o prazer<br />
imediato que possa ser descartado quando o relacionamento não<br />
mais for conveniente à nova realidade. Muitas vezes essas questões<br />
se problematizam, chegando ao cunho do Poder Judiciário.<br />
Na atualidade, diante do acentuado crescimento de demandas<br />
judiciais, verifica-se o fenômeno denominado por Kazuo Watanabe de<br />
[...] cultura da sentença. Os juízes preferem proferir sentença ao<br />
invés de tentar conciliar as partes para a obtenção da solução<br />
amigável dos conflitos. Sentenciar, em muitos casos, é mais fácil<br />
e mais cômodo do que pacificar os litigantes e obter, por via de<br />
consequência, a solução dos conflitos (2007, p. 7).<br />
Todas essas transformações nas relações humanas e,<br />
consequentemente, no âmbito familiar, acabam modificando as<br />
relações sociais, o que afeta, diretamente, o mundo jurídico, pode-se<br />
mencionar, igualmente, a relação familiar em relação aos gêneros, “[...]<br />
a subordinação legal de um sexo a outro” (MILL, 2006, p. 15), como<br />
um fator que gera conflitualidades, mormente pela nova posição social<br />
que a mulher passou a assumir. Em razão disso, o direito de família,<br />
constantemente, é alvo de investigações no meio acadêmico, diante<br />
das várias nuanças que apresenta, sendo importante a questão da<br />
situação familiar no Poder Judiciário e as formas de acesso à Justiça.<br />
Destarte, o objetivo jurisdicional tem suas normas elaboradas para<br />
buscar a pacificação social, de modo que a conciliação e a mediação<br />
são meios de garantir o convívio social mais justo, sendo imprescindível,<br />
para tanto, a análise das práticas da Justiça Restaurativa, na qual os<br />
métodos da conciliação e da mediação são relevantes par a se obter<br />
a pacificação positiva dos conflitos e a busca por uma cultura de paz.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 17
Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />
A CONCILIAÇÃO E A MEDIAÇÃO DENTRO DOS<br />
CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S<br />
Os litígios familiares são relatados desde o surgimento das<br />
primeiras concepções dos institutos familiares. De acordo com Rodrigo<br />
da Cunha Pereira (2004, pp. 32-36), as mudanças na formação da<br />
família demonstram que a instituição familiar é o reflexo de cada<br />
geração, pelo que existiam e existem conflitos entre casais, disputas<br />
pela guarda dos filhos, pelo direito à paternidade, entre outros. O que<br />
vem se alterando, juridicamente, são as maneiras de resolver esses<br />
embates, buscando uma solução mais justa e apropriada para cada<br />
caso com a efetivação dos direitos fundamentais.<br />
Os conflitos de natureza familiar são mais complexos e<br />
complicados de ser solucionados em comparação com os demais,<br />
pois as dificuldades estão, justamente, na supervalorização desses<br />
conflitos, eis que a intensidade das emoções envolvidas, os<br />
sentimentos egoístas e de orgulho têm uma dimensão mais alargada<br />
do que em outros relacionamentos, exigindo que a pacificação seja<br />
mais concreta, mais eficaz (FONKERT, 1998, p. 02).<br />
Nesse passo, Myléne Jaccoud (2005) destaca que a Justiça<br />
Restaurativa significa uma forma de aproximar as pessoas, de fazer com<br />
que interações sociais ocorram, mas também de resolver pendências<br />
negativas advindas dessas relações, corrigindo infrações cometidas,<br />
resolvendo conflitos e, novamente, transigindo as pessoas. Isso<br />
demonstra que, muito mais que a forma tradicional de aplicação do Direito<br />
e de solução de conflituosidades, a partir do momento em que se dá<br />
atenção para as várias conexões sociais que envolvem – e muitas vezes<br />
geraram – a demanda problematizada, a permanência da decisão que<br />
põe termo a uma situação de litígio é mais duradoura, mais proveitosa,<br />
eis que exige comprometimento de todos os envolvidos.<br />
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a conciliação e a<br />
mediação são instrumentos legais de solução de disputa, na qual uma<br />
terceira pessoa orienta os envolvidos a comporem o litígio (BRASIL,<br />
2006, p. 3). Nas palavras de Bolzan de Morais e Spengler,<br />
18 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE<br />
mais do que um meio de acesso a justiça fortalecedor da participação<br />
social do cidadão, a mediação e a conciliação são politicas publicas<br />
que vem ganhando destaque e fomento do ministério da justica,<br />
da secretaria de reforma do judiciário e do Conselho Nacional<br />
de Justica, uma vez que resta comprovada impiricamente sua<br />
eficiência no tratamento de conflitos (2012, p. 167).<br />
O Brasil, constituindo-se em um Estado Democrático de Direito,<br />
tem, dentre seus princípios fundamentais, a cidadania e a dignidade<br />
da pessoa humana. A conciliação está prevista no Código de Processo<br />
Civil, especialmente nos arts. 125, 277, 331, 448 e 449 (BRASIL, 2013);<br />
além disso, está elencado, constitucionalmente, que o juiz deve contribuir<br />
na construção de uma sociedade justa e igualitária. Dessa forma, a<br />
conciliação exerce um papel importante na solução de litígios, sendo<br />
prevista e aplicada no sistema processual brasileiro, pois “[...] a efetivação<br />
da conciliação como meio de satisfação social com a resolução de litígios<br />
é um ato de cidadania [...]”. Sendo assim, a conciliação apresenta uma<br />
significativa possibilidade na construção de uma sociedade mais humana,<br />
mais digna e mais harmoniosa (VAL JÚNIOR, 2006, p. 140).<br />
A conciliação, como meio alternativo de solução de conflitos, embora<br />
já amplamente utilizada pelo sistema processual, ainda encontra muitos<br />
entraves, uma vez que, via de regra, as partes envolvidas em conflitos de<br />
cunho familiar tentam evitar as sessões destinadas à conciliação, em que<br />
o diálogo é incentivado, o que dificulta ou até mesmo impede a tentativa<br />
de se chegar a um consenso, a um acordo. Por outro lado, existe, ainda,<br />
um culto ao litígio, em que as partes acreditam ser necessária a presença<br />
de um terceiro para decidir, prevalecendo sua vontade sobre a vontade<br />
dos diretamente envolvidos (LENZI, 2010, p. 80).<br />
A questão financeira, igualmente, se torna uma adversidade nos<br />
conflitos familiares, eis que, dificilmente, as pessoas aceitam a perda,<br />
a abdicação de algo, bem como a questão emocional também gera<br />
empecilhos, pois não há como evitar que sentimentos e ressentimentos<br />
das partes envolvidas interfiram na composição. Outro aspecto<br />
diz respeito ao empecilho, muitas vezes, imposto pelos próprios<br />
advogados que, por vezes, disseminam o litígio em vez de priorizar a<br />
composição pela via menos gravosa, qual seja, a conciliação.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 19
Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />
O papel da mediação não diverge, eis que também se configura<br />
como um meio de pacificação de natureza autocompositiva e voluntária,<br />
no qual um terceiro, imparcial, atua, de forma ativa ou passiva, como<br />
facilitador do processo de retomada do diálogo entre as partes<br />
(AZEVEDO, 2004, p. 15). Especificamente, em relação à mediação<br />
– que é um dos institutos em voga da Justiça Restaurativa – é um<br />
meio consensual em que as partes, acompanhadas por uma terceira<br />
pessoa, imparcial e habilitada para viabilizar/facilitar a conversação,<br />
chamada de mediador, debatem, pacificamente, na busca comum<br />
pela solução da questão que os aflige, sendo responsáveis quanto à<br />
decisão a ser tomada (NORTHFLEET, 1994).<br />
Em apoio ao aprimoramento da prestação jurisdicional, foi<br />
assinado o Pacto Republicano do Estado Brasileiro que visa a um sistema<br />
judicial mais acessível, ágil e efetivo e, para conseguir atingir os objetivos,<br />
um de seus compromissos é “[...] fortalecer a mediação e a conciliação,<br />
estimulando a resolução de conflitos por meios autocompositivos,<br />
voltados à maior pacificação social e menor judicialização” (STF, 2013).<br />
As constantes transformações sociais refletem no sistema<br />
judiciário que busca, incessantemente, suportes para realização da<br />
jurisdição por meio de alternativas, como a arbitragem, a mediação, a<br />
conciliação e a negociação, todas no intuito de favorecer a celeridade,<br />
a informalização e a pragmaticidade, de modo a se adequar aos<br />
moldes sociais contemporâneos.<br />
Atualmente, o sistema judiciário enfrenta uma crise, diante da<br />
crescente judicialização dos conflitos, não conseguindo atender,<br />
satisfatoriamente, às demandas sociais, e essa impossibilidade do<br />
tratamento adequado às questões acabam por ocasionar uma perda<br />
de poder do Estado e consequente desprestígio e deslegitimação do<br />
próprio Poder Judiciário como Poder Público Estatal (PINHO, 2010, p.<br />
63). A última ratio – o Poder Judiciário -, até meados do século passado,<br />
manteve-se como, realmente, o espaço para a solução de conflitos<br />
avultados, tendo uma capacidade de resposta satisfatória; entretanto,<br />
nas últimas décadas, instaurou-se um número de litigiosidades nunca<br />
20 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE<br />
visto, com um crescimento geométrico de demandas judiciais, muitas<br />
singelas, mas que atarefam a máquina judicial de tal forma que José<br />
Renato Nalini (20<strong>08</strong>, p. 107) chegou a classificar como “demandismo”.<br />
Sendo assim, é necessária a superação dessa visão de que<br />
um sistema somente é eficiente quando, para cada conflito, há<br />
uma intervenção jurisdicional, resgatando-se a ideia de que a<br />
conversação e o tratamento dos conflitos, de forma alternativa, devem<br />
ser incentivados com instituições e procedimentos que previnam e<br />
resolvam controvérsias a partir das necessidades dos interesses das<br />
partes (BOLZAN DE MORAIS; SPENGLER, 2012).<br />
A mediação, a arbitragem, a negociação e a conciliação objetivam<br />
não a exclusão ou a superação do sistema tradicional, mas, sim, a sua<br />
complementação para melhor efetivação de resultados, uma vez que, ao<br />
lado do tradicional processo judicial, se apresentam como uma opção<br />
que visa descongestionar os tribunais e reduzir o custo e a demora dos<br />
procedimentos, bem como estimular a participação da comunidade na<br />
resolução dos conflitos e facilitar o acesso ao seu tratamento.<br />
São inúmeras as vantagens dos mecanismos alternativos como<br />
auxiliadores do sistema jurisdicional, dentre elas, destacam-se a<br />
forma preventiva (pois formam um resultado antes que o processo<br />
inicie ou avance), são confidenciais (os procedimentos são secretos),<br />
são informais (há escassez de procedimentos), são flexíveis<br />
(as opções não se encontram predispostas às leis, podendo ser<br />
adequadas), representam economia (custos reduzidos), justeza das<br />
decisões (porque o tratamento do problema é adaptado ao que as<br />
partes desejam), são promissores (tendo em vista as experiências<br />
satisfatórias nos países que já os implementaram).<br />
Nesse sentido, a mediação e a conciliação são caminhos<br />
alternativos que visam à solucão de conflitos no futuro do Judiciário,<br />
buscando construir outra mentalidade nos juristas brasileiros, cujo<br />
objetivo principal seja a pacificação social e o abandono do litígio.<br />
Sobre o tema, assim lecionam Lilia Maia de Moraes Sales e<br />
Mônica Carvalho Vasconcelos:<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 21
Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />
É nas questões de família que a mediação encontra sua mais<br />
adequada aplicação. Há muito, as tensas relações familiares<br />
careciam de recursos adequados, para situações de conflitos,<br />
distintos da negociação direta, da terapia e da resolução judicial.<br />
A mediação vem-se destacando como uma eficiente técnica que<br />
valoriza a coparticipação e a co-autoria (2005, p.166).<br />
Conforme, oportunamente, frisado, os conflitos familiares<br />
apresentam grande complexidade em razão dos sentimentos das<br />
partes envolvidas. Nesse contexto, a mediação se destacou dentre<br />
os tradicionais mecanismos de solução de conflito, dada sua natureza<br />
humanitária, cujo objetivo é evitar maiores desgastes emocionais,<br />
causados por processos que, muitas vezes, custam lapso de tempo<br />
considerável de angústia aos litigantes e que, provavelmente, não<br />
resultarão em decisão satisfatória para ambos.<br />
A mediação atua nas crises familiares por intermédio da<br />
conscientização dos envolvidos de modo a mostrar-lhes que há meios<br />
de resolver seus conflitos sem provocar mais desgastes emocionais a<br />
si mesmos e aos demais membros da família atingidos pelo conflito.<br />
Assim, os litigantes passam a perceber a importância do diálogo, que,<br />
por vezes, é esquecida diante do conflito.<br />
Doglas Cesar Lucas e Fabiana Marion Spengler lembram que<br />
na mediação se resolve ou se transforma o conflito recorrendo a<br />
sua reconstrução simbólica. Quando se decide judicialmente se<br />
consideram normativamente os efeitos; desse modo, o conflito<br />
pode ficar hibernando, tornando-se mais grave em qualquer<br />
momento futuro. Solucionar um conflito equivale dizer a que as<br />
partes implicadas criaram a solução e ninguém lhes impôs. Em<br />
um procedimento litigioso o juiz decide, um vez que as partes<br />
apresentaram as provas e os argumentos de suas pretensões.<br />
Tudo dentro de um ritual inflexível, no qual se esquecer algum dado<br />
é quase impossível corrigir esse esquecimento. Nas mediações<br />
os “os esquecimentos” não resultam tão fatais quanto na cultura<br />
tradicional do litígio. Isso é devido a que as partes tem a possibilidade<br />
de resolver o conflito, podendo empregar todos os mecanismos<br />
que considerem necessários para poder elaborar, transformar ou<br />
resolver suas desavenças com o outro (2011, p. 239).<br />
22 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE<br />
Corroborando com esse entendimento, Sales e Vasconcelos<br />
(2005, p. 168) afirmam que “[...] a mediação busca a valorização do<br />
ser humano e a igualdade entre as partes”. Portanto, nos conflitos<br />
familiares, que, muitas vezes, são marcados pela desigualdade entre<br />
homens e mulheres, a mediação promove o equilíbrio entre os gêneros<br />
na medida em que ambos possuem as mesmas oportunidades dentro<br />
do procedimento.<br />
A mediação atinge grande importância nos conflitos familiares<br />
em que permeiam sentimentos de raiva, de rancor, de vingança, de<br />
depressão, de hostilidade, que podem transformar-se em disputas<br />
intermináveis e perdurar por gerações, atingindo vários membros<br />
da família. A par disso, os autores (op. cit., p. 165) complementam<br />
que “os conflitos familiares, antes de serem conflitos de direito, são<br />
essencialmente afetivos, psicológicos, relacionais, antecedidos de<br />
sofrimento”.<br />
Em consonância com o Movimento pela Conciliação, proposto<br />
pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), alguns Estados já vêm<br />
utilizando sessões de conciliação, nas quais se busca, por meio de<br />
um esforço concentrado, solucionar, com mais rapidez, as questões<br />
passíveis de acordo e que já estejam sub judice, e, por conseguinte,<br />
diminuir o estoque de processos pendentes nas varas, otimizando as<br />
atividades jurisdicionais. Em regra, uma equipe jurídica composta<br />
pela juíza coordenadora, por uma promotora, analistas, conciliadores<br />
e estagiários, bem como por uma equipe interprofissional que presta<br />
apoio psicológico e social às partes, trabalham de forma a objetivar a<br />
solução do litígio, quando as partes assim consentirem.<br />
Dessa forma, várias vantagens são evidenciadas com a utilização<br />
da mediação e da conciliação na solução de conflitos familiares,<br />
sendo que as partes restam satisfeitas ao chegarem a um acordo,<br />
em que elas mesmas constroem uma solução para resolver o conflito,<br />
na qual não há uma sentença imposta pelo juiz. Além disso, esses<br />
instrumentos alternativos também são meios mais céleres de se<br />
resolver um conflito, constituindo um atalho para uma decisão mais<br />
rápida e causando menos desgaste aos envolvidos.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 23
Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Este estudo buscou demonstrar a importância da conciliação<br />
e da mediação como mecanismos coadjuvantes na solução de<br />
conflitos, sobretudo em questões envolvendo o Direito de Família.<br />
As intensas transformações sociais que ocorreram, em especial<br />
nas últimas décadas, tiveram grande impacto na transformação da<br />
entidade familiar e, em consequência disso, essas transformações,<br />
e dos conflitos delas decorrentes, surgiu a necessidade de buscar a<br />
tutela mais adequada e humanitária para resolver essas espécies de<br />
conflito.<br />
Nessa senda, a conciliação e a mediação são mecanismos que<br />
têm se destacado, pois, além de céleres, se mostram adequados<br />
para resolver diversos tipos de conflitos, muitos já em litígio judicial.<br />
Em relação ao âmbito familiar, a conciliação e a mediação surgem<br />
como meios mais humanitários e, por isso, também mais adequados<br />
a solucionar questões tão complexas, em que estão envolvidos<br />
sentimentos como orgulho e rancor.<br />
As pesquisas que analisaram vários aspectos referentes à aplicação<br />
desses mecanismos como forma alternativa de solucionar os conflitos<br />
da família moderna comprovaram inúmeros benefícios em relação aos<br />
métodos da justiça tradicional. Dentre eles, seguem as principais vantagens<br />
enumeradas: valorização do cidadão no seu poder de resolução, eis que<br />
as próprias partes, por meio do diálogo, chegam a compor o conflito; a<br />
satisfação das partes; o maior cumprimento dos acordos realizados. Além<br />
disso, imprescindível mencionar que esses meios são mais céleres do<br />
que os demais mecanismos judiciais e com menor custo.<br />
Por outro lado, restaram evidenciadas as inúmeras dificuldades de<br />
implementação desses mecanismos no sistema processual, mormente<br />
pela crença que se criou de que somente as decisões impostas por<br />
um terceiro, são legítimas. Em questões de âmbito familiar, as partes<br />
envolvidas, por vezes, evitam o diálogo, o que impede a simples<br />
tentativa de se chegar a um acordo.<br />
Observou-se, ainda, que a falta de estrutura e de espaço<br />
físico adequados também dificultam o conciliador e o mediador<br />
24 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE<br />
de desempenharem suas funções, eis que, muitas vezes, são<br />
necessários trabalhos, juntamente com uma equipe multidisciplinar,<br />
para possibilitar a composição dos conflitos de maior complexidade.<br />
Dessa forma, em que pese existirem vários obstáculos a serem<br />
superados, a conciliação e a mediação são de extrema importância<br />
para a resolução de conflitos familiares. Os dados, obtidos por meio<br />
das pesquisas mencionadas, têm se mostrado muito satisfatórios,<br />
na medida em que as composições, obtidas por esses mecanismos,<br />
perfazem uma quantidade substanciosa de conflitos resolvidos, o que,<br />
evidentemente, vem contribuindo para a realização do Direito por meio<br />
da efetivação da justiça.<br />
Ressalta-se, ainda, que um consenso, fruto da composição<br />
amigável, viabiliza um índice maior de ser cumprido pelas partes do<br />
que uma decisão judicial imposta. Isto porque, no acordo construído<br />
pelas partes, cada um tem consciência e aceita sua parcela de<br />
responsabilidade legitimamente. Não há perdedor e vencedor, pois a<br />
litigiosidade foi desfeita por meio do diálogo e cooperação, da ação<br />
comunicativa, restaurada pela mediação.<br />
Por fim, diante deste estudo, foi possível observar como se<br />
estabelecem, hoje, as relações sociais e jurídicas na família e como<br />
o Direito tem se posicionado em relação a essa problemática, e qual<br />
seria a abordagem mais adequada para solução dos conflitos de<br />
familiares.<br />
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Recebido: 20-4-2014<br />
Aprovado: 20-8-2014<br />
28 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />
DI<strong>RE</strong>ITO<br />
A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA<br />
JURÍDICA DE RONALD DWORKIN 3<br />
The civil desobedience in Ronald’s Dworkin legal theory<br />
Doglas Cesar Lucas 4<br />
Nadabe Manoel Machado 5<br />
Resumo<br />
O presente texto tem a pretensão de apresentar de forma bastante rápida a compreensão da desobediência<br />
civil no pensamento jurídico de Ronald Dworkin. Segundo o jusfilósofo norte-americano, a desobediência<br />
civil poderá ser invocada por aquele cidadão que considerar determinada lei de constitucionalidade<br />
duvidosa e decorre do direito (de baixa intensidade) de liberdade que todos os cidadãos possuem de<br />
interpretar moralmente o sistema jurídico, principalmente nos casos de possíveis exageros e equívocos da<br />
autoridade judicial. Nesses casos, os desobedientes civis fomentariam o debate em torno da validade da<br />
lei, questionando argumentos e interpretações oficiais e com isso proveriam a reafirmação ou correção dos<br />
instrumentos legitimadores do sistema jurídico.<br />
Palavras-chave: Desobediência civil. Ronald Dworkin. Legitimidade.<br />
Abstract<br />
The present text purports to present in a very quick way the comprehension of the civil desobedience through<br />
the juridic thoughts of Ronald Dworkin. According to the north american jus-philosopher, the civil desobedience<br />
can be invoqued by the citizen that considers a certain law of doubtful constitutionality and follows the right (of<br />
very low intensity) of liberty that every citizen has to moralize the legal system, mainly on cases of possible<br />
exaggeration and mistakes of the judicial authority. In these cases, the civil desobedients would promote the<br />
debate about the validity of the law, questioning arguments and official interpretations and with that promoting the<br />
reassurance or corrections of the legitimating instruments of the legal system.<br />
Keywords: Civil desobedience. Ronald Dworkin. Legitimacy.<br />
Sumário:<br />
Considerações iniciais; 1. Aspectos históricos e conceituais da desobediência civil; 2. Elementos<br />
específicos da desobediência civil; 3. A desobediência civil no pensamento de Dworkin como teste de<br />
constitucionalidade e de validade das normas jurídicas; 4. Resposta à desobediência civil: o que o Estado<br />
deve fazer com os desobedientes?; 5. Considerações finais; 6. Referências.<br />
3 Artigo produzido no âmbito do projeto de pesquisa Desobediência civil: entre legalidade e legitimidade, vinculado à linha de pesquisa<br />
Fundamentos e concretização dos direitos humanos, do mestrado em direitos humanos da Unijuí.<br />
4 Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi Roma Tre, Itália. Doutor em Direito pela UNISINOS e Mestre em Direito pela UFSC.<br />
Professor nos cursos de Graduação e Mestrado em Direito da UNIJUÍ. Professor no Curso de Graduação em Direito do Instituto Cenecista<br />
de Ensino Superior de Santo Ângelo – IESA. Professor visitante do Mestrado em Direito da URI-Santo Ângelo. Líder do grupo de pesquisa<br />
no CNPQ Fundamentos e concretização dos direitos humanos. Avaliador do MEC/INEP. E-mail: doglasl@unijui.edu.br<br />
5 Acadêmica do 8 o semestre do Curso de Graduação em Direito da Unijuí. Bolsista de Iniciação científica do CNPQ.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 29-52
Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />
CONSIDERAÇÕES INICIAIS<br />
Os protestos e manifestações públicas marcaram o Brasil em 2013.<br />
O povo saiu às ruas para demonstrar sua insatisfação contra todo tipo<br />
de injustiças e problemas sociais de nosso país. É como se os gritos<br />
das ruas afrontassem os silêncios que caracterizam o Brasil desde a sua<br />
formação; um país forjado pela segregação, coronelismo e por ditaduras<br />
tem certa dificuldade de se acostumar com as modalidades ativas de<br />
cidadania popular e não raramente as vê com certa desconfiança, medo<br />
e até mesmo como ações contra a lei e a ordem estatais. A República<br />
formal teve que abrir os olhos para um país real e admitir a crise de<br />
representatividade de suas instituições políticas.<br />
Mesmo que a força dos protestos já tenha arrefecido e poucas<br />
transformações reais promovidas, as movimentações recolocaram<br />
em debate, sobretudo para os jovens, o tema da democracia e suas<br />
formas substanciais de vivência. A democracia promovida pelas ruas,<br />
pela ação ativa da população brasileira reclama respostas e novas<br />
agendas públicas através de protestos, ocupações de prédios públicos<br />
e de passeatas, estratégias que geram muita repercussão social e<br />
que desafiam a ideia de “ordem” ao menos em termos jurídicos<br />
tradicionais. Qual a leitura jurídico-política que podemos fazer desses<br />
e outros tipos de protestos? Desafiam ou promovem a democracia?<br />
São autorizados ou proibidos pelo direito?<br />
O debate sobre a legalidade e a legitimidade política dos atos<br />
de resistência democrática ou de desobediência às leis injustas se<br />
confunde com a história das obrigações políticas e das teorias da justiça<br />
e de validade do direito. Na desobediência de Antígona a Creonte,<br />
no tiranicídio medieval, no direito de resistência defendida pelos<br />
autores contratualistas, na recusa de se obedecer à lei que mandava<br />
entregar escravos fugidios, na campanha de desobediência às leis<br />
Jim Crow liderada por Luther King, no movimento de não cooperação<br />
ao império Britânico firmado por Gandhi na Índia, nos protestos<br />
contra a participação americana na guerra do Vietnã e contra a<br />
energia nuclear na Europa, nos movimentos que eclodem diariamente<br />
nas sociedades democráticas, etc., em todos esses exemplos nos<br />
deparamos com três questões centrais para a teoria do direito e para<br />
30 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />
a teoria política: a possibilidade ou não de se desobedecer uma lei<br />
ou medida governamental que seja considerada injusta ou ilegítima/<br />
inconstitucional pela maioria da população; quais as consequências<br />
jurídicas que devem ser aplicadas aos desobedientes e a importância<br />
ou não de atos de desobediência civil para a consolidação de um<br />
modelo democrático de direito.<br />
Com a consolidação das propostas jurídicas democráticas se<br />
estreitaram as relações entre o direito e a democracia, e as pautas<br />
morais publicamente construídas pela comunidade passaram a fazer<br />
parte dos conteúdos relevantes tanto do direito quando das ações<br />
políticas e servir como parâmetro de validade e de legitimidade de<br />
ambos os sistemas de regulação da vida social.<br />
Tendo presente este cenários de (des)obediências ao direito numa<br />
sociedade democrática, este texto tem a pretensão de apresentar de<br />
forma bastante rápida o histórico, os fundamentos e o conceito de<br />
desobediência civil, demonstrando sua importância para a definição<br />
de uma cultura jurídica viva, democrática e dinâmica, que aposta<br />
na participação ativa dos cidadãos para denunciar e modificar o<br />
direito pela geração de situações de debate e diálogo público em<br />
torno de normas (interpretações) consideradas injustas/ilegítimas/<br />
inconstitucionais.<br />
A parte histórica e conceitual foi construída a partir de uma leitura<br />
geral e resume-se a fazer uma descrição da categoria estudada. Nos<br />
momentos seguintes optou-se por apresentar a teoria de desobediência<br />
civil de Ronald Dworkin, seja pela importância do autor no contexto da<br />
teoria jurídica contemporânea, pela utilização histórica dessa prática<br />
nos EUA e, sobretudo, por sua proposta teórica situar a desobediência<br />
civil como uma posição de liberdade que não pode ser negada em<br />
virtude dos conteúdos morais que condicionam a validade do próprio<br />
direito e da democracia.<br />
ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS DA<br />
DESOBEDIÊNCIA CIVIL<br />
A desobediência civil tem sido definida como a desobediência à<br />
lei ou medida governamental que não atenda aos princípios de justiça<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 31
Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />
ou de moralidade estabelecidos publicamente pela comunidade. É<br />
uma ação pública, realizada de modo não violento por um número<br />
expressivo de cidadãos que visam denunciar a injustiça ou até mesmo<br />
a falta de legitimidade constitucional de determinada norma ou medida<br />
governamental, com o intuito de modificá-la (LUCAS, 2003).<br />
Consiste numa reformulação do direito de resistência desenvolvida,<br />
no final do século XIX e início do século XX, pelo escritor norteamericano<br />
Henry Thoreau (1817 – 1862). Foi ele quem elaborou a<br />
expressão desobediência civil, utilizada pela primeira vez como título<br />
de um escrito produzido pelo autor na oportunidade em que esteve<br />
preso por não pagar impostos que financiavam, no seu entendimento,<br />
uma guerra injusta que os Estados Unidos mantinham contra o México.<br />
Defendia que a desobediência era a única alternativa a ser adotada<br />
diante de leis e práticas governamentais injustas ou contrárias aos<br />
princípios morais do indivíduo. Entendia que o caráter opressivo<br />
da lei não é atenuado pelos processos legislativos orientados pela<br />
regra da maioria, pois o motivo por que se permite à maioria governar<br />
encontra-se somente em sua maior força física e não em sua melhor<br />
compreensão ou incondicional virtude moral.<br />
Nessa senda, o respeito à lei deve firmar-se na consciência do<br />
indivíduo. A única obrigação que o cidadão assume é fazer aquilo que<br />
considere direito, de modo que a transgressão à norma se configura<br />
como um dever ético do cidadão. É favorável ao dever de desobedecer<br />
mesmo que disso resulte o aprisionamento, que deveria ser encarado<br />
como mérito pessoal, como um evento importante para mobilizar a<br />
opinião pública a adotar a mesma atitude e pressionar o governo a<br />
mudar sua postura (COSTA, 1990).<br />
As construções teóricas de Thoreau, associadas a Tolstói e Ruski,<br />
acabaram influenciando aquele que seria o principal responsável pela<br />
independência da Índia e um fervoroso defensor da desobediência<br />
civil, Mohandas Karamachad Gandhi (1869 –1948). Sua proposta,<br />
diferentemente de Thoreau, previa a desobediência civil como uma<br />
ação coletiva que ganha relevo e tende ao sucesso se realizada por um<br />
número expressivo de pessoas. A necessária utilização dos protestos<br />
32 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />
não violentos é a marca principal da proposta de desobediência civil<br />
elaborada por Gandhi. O pastor norte-americano Martin Luther King<br />
foi outro desobediente clássico que se valeu das técnicas de não<br />
violência, especialmente em favor dos direitos da população negra dos<br />
Estados Unidos nas décadas de 50 e 60 do século passado, época<br />
de intensa segregação racial em escolas, hospitais e restaurantes.<br />
Sustentava que essa situação exigia a organização da sociedade civil,<br />
pois considerava que o Poder Judiciário não poderia promover, de<br />
forma exclusiva, as mudanças necessárias.<br />
Apesar de a desobediência civil ser anunciada como uma<br />
reformulação do direito de resistência, com ele não se confunde.<br />
Enquanto a desobediência civil objetiva verificar a obrigatoriedade<br />
e a legitimidade de determinadas normas jurídicas e de medidas<br />
governamentais, a resistência, numa direção mais ampla, visa<br />
fazer frente à totalidade do ordenamento jurídico, objetivando a<br />
instauração de uma nova ordem político-jurídica. O desenvolvimento<br />
e as manifestações do direito de resistência remontam à Idade<br />
Antiga, servindo como melhor referência desse período a peça grega<br />
Antígona, de Sófocles. Este clássico texto revela a revolta de Antígona<br />
contra o decreto do rei Creonte proibindo o sepultamento de seu irmão<br />
Polinice. Sustentando a existência de um direito natural não-escrito,<br />
superior às ordens do Soberano, Polinice justifica a não-obediência ao<br />
rei quando este agir em desacordo com a lei maior. Contudo, diante da<br />
tradição do poder tirano, sem limites, pouco desenvolvimento teve no<br />
mundo antigo o direito de resistência.<br />
Do mesmo modo, os primeiros séculos do cristianismo pouco<br />
acrescentaram para o reconhecimento deste direito, devido à cultura<br />
amplamente enraizada de obediência e de tolerância ao tirano. Exemplo<br />
da tradição do poder com origem divina, e portanto inquestionável,<br />
pode ser encontrado na Epístola aos Romanos, do apóstolo São<br />
Paulo. Alguns autores identificam que as raízes históricas do direito de<br />
resistência apareceram apenas na Idade Média. Inobstante a doutrina<br />
do direito de resistência ter recebido a colaboração de muitos autores<br />
e alimentado diferentes manifestações ao longo da História, somente<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 33
Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />
se solidificou teoricamente com o aparecimento do contratualismo.<br />
Sob esse viés, o direito de resistência se consubstância como um<br />
direito de reagir frente ao abuso dos governantes que extrapolem as<br />
prerrogativas concedidas no contrato (GARCIA, 1994).<br />
Locke (1994), expoente dessa concepção, destacava que a falta<br />
de liberdade, a conquista, a usurpação, a tirania ou a dissolução do<br />
governo resultariam numa crise da sociedade que tornaria possível<br />
um retorno ao estado de guerra, considerado um ambiente de dever<br />
apenas para com a consciência, sem outra responsabilidade que<br />
não consigo mesmo, sendo legítimo o direito de resistir, uma vez que<br />
se configura no único mecanismo capaz de regenerar a sociedade<br />
civil e o Estado. Enfim, o direito de resistência está voltado para a<br />
reorganização do poder político como um todo, mesmo que para isso<br />
seja necessária a derrubada de um modelo de governo e a afirmação<br />
de outro.<br />
ELEMENTOS ESPECÍFICOS DA DESOBEDIÊNCIA<br />
CIVIL<br />
A desobediência civil possui algumas características que lhe<br />
são próprias e que a diferenciam de outras formas de resistência.<br />
Na sequência apontamos, de modo bastante rápido, os elementos<br />
definidores da desobediência civil segundo a maioria dos autores<br />
dedicados ao tema.<br />
Quanto ao número de participantes necessários para se<br />
caracterizar a desobediência civil, a maioria dos autores identifica a<br />
desobediência civil como sendo um ato necessariamente coletivo, como<br />
uma ação de grupo. Essa orientação é defendida por Hannah Arendt<br />
(1973), Norberto Bobbio (1992) e Michael Walzer (1977), por exemplo.<br />
Atualmente as manifestações mais significativas da desobediência<br />
civil são encontradas na atuação dos novos movimentos sociais e nos<br />
atos espontâneos de protestos públicos da sociedade civil, como os<br />
que vêm ocorrendo no Brasil mais intensivamente desde 2013.<br />
Caracteriza-se também por ser um ato público e aberto, pelo<br />
qual os desobedientes expõem à comunidade todas as razões,<br />
34 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />
fundamentos e intenções de sua desobediência, visando, com isso,<br />
angariar a simpatia e a confiança da população. A publicidade distingue<br />
a desobediência civil da desobediência criminosa, que é considerada<br />
um ato de violação clandestina.<br />
É uma ação de natureza política por se tratar de um ato que se<br />
orienta e se justifica por princípios políticos, ou seja, está amparado,<br />
segundo John Rawls (1994), nos princípios de justiça que fundamentam<br />
a Constituição e as instituições da sociedade. Face às insuficiências<br />
da democracia representativa, Arendt reconhece a desobediência civil<br />
como reafirmação da obrigação político-jurídica capaz de regenerar a<br />
faculdade de agir, de participar do processo de tomada de decisões<br />
políticas e, dessa maneira, impedir a degeneração da lei e a corrosão<br />
do poder político.<br />
A desobediência civil é apresentada como um recurso não-violento.<br />
Objetiva modificar as práticas e leis injustas sem colocar à prova a<br />
legitimidade da ordem jurídica em sua totalidade. Os meios violentos,<br />
para Arendt, são considerados inadequados porque levam à destruição<br />
do poder e da autoridade. Para Gandhi, o principal defensor das práticas<br />
não-violentas - somente a não-violência, ahimsa, poderia ser uma<br />
política profícua na conquista das mudanças necessárias em um mundo<br />
moldado sob a cultura da pouca tolerância e do arbítrio. Ressalta-se que<br />
um dos objetivos da resistência não-violenta é fazer com que o opressor<br />
reconheça a dignidade do oprimido, minando as diferenças que impedem<br />
o reconhecimento mútuo. No entendimento de Martin Luther King, a<br />
eficácia do ato não-violento está diretamente ligada ao efeito produzido<br />
nos participantes e nos espectadores do conflito, do que dependerá a<br />
simpatia da opinião pública e a aproximação entre os lados opostos<br />
(LUCAS, 2003).<br />
A desobediência civil é considerada um recurso que somente pode<br />
ser utilizado depois de esgotadas todas as alternativas institucionais<br />
de solução de conflitos, isto é, deve limitar-se aos casos extremos.<br />
No entanto, Rawls defende a utilização da desobediência civil<br />
como instrumento primeiro quando se tratar de situações urgentes<br />
ou quando for notória e reiterada a improficuidade das respostas<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 35
Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />
institucionais. Dworkin também aduz essa possibilidade quando a<br />
situação de obediência provoca uma ofensa irreparável a consciência<br />
do desobediente que não poderá ser remediada caso ele obedeça a<br />
determinada regra que considere injusta. Um estudante que é obrigado<br />
por lei beijar a bandeira americana todos os dias, comenta Dworkin,<br />
terá sua consciência e seu senso de justiça atacado se obedecer a<br />
regra, sendo irrelevante para a ofensa já perpetrada que ele recorra<br />
posteriormente a outros mecanismos institucionais visando discutir a<br />
validade da norma.<br />
Para a grande maioria dos autores, a desobediência civil é uma<br />
prática ilegal, apesar de enfatizarem que não se trata de uma prática<br />
ilícita qualquer, mas de uma ilegalidade amparada em justificativas<br />
legítimas. Sustentam que o ordenamento jurídico não pode considerar<br />
lícito um comportamento que ameaça a obrigatoriedade de obediência<br />
ao direito. Este recorte mais positivista posiciona a desobediência<br />
civil no debate do idealismo doutrinário, sem reconhecer nenhuma<br />
consequência ou elemento que permita considerá-la de modo distinto<br />
das ilegalidades tradicionais.<br />
A qualidade principal da desobediência civil estaria contida<br />
justamente na sua ilegalidade legitimada. Rawls (2000) aduz que a<br />
contrariedade da desobediência civil à lei se desenvolve dentro dos<br />
limites do ordenamento jurídico, pois, apesar da violação legal, a<br />
natureza pública e não violenta do ato demonstra a aceitação das<br />
consequências jurídicas pelos desobedientes, o seu reconhecimento<br />
e sua fidelidade à autoridade da lei. Bobbio (1992) e Arendt (1973)<br />
também aceitam a dimensão de ilegalidade legitimada dos atos<br />
desobedientes. Inobstante o predomínio da concepção mais<br />
tradicional, existem teses que consideram a desobediência civil um<br />
direito fundamental de proteção da liberdade, da cidadania e da<br />
Constituição, sugerindo, inclusive, sua inclusão no ordenamento<br />
jurídico. Nesse quadro teórico, a desobediência civil é caracterizada<br />
como o exercício de um direito ou como teste de constitucionalidade.<br />
Outra possibilidade assumida pela desobediência civil no âmbito<br />
36 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />
constitucional diz respeito a sua identificação com o exercício de um<br />
direito fundamental. Caracteriza-se, nesse viés, como defensora das<br />
liberdades necessárias à existência de uma opinião pública crítica.<br />
Quanto à sujeição dos desobedientes às prescrições punitivas,<br />
predomina o entendimento de que, pelo fato de reconhecerem a<br />
legitimidade do sistema político e de dirigirem a desobediência apenas<br />
contra determinadas leis, os desobedientes aceitam a punição pelos<br />
seus atos como uma forma de chamar a atenção da sociedade e criar<br />
as condições necessárias para a instauração do debate público. A<br />
punição é anuída como elemento estratégico, persuasivo, capaz de<br />
mobilizar a opinião pública a adotar a mesma postura participativa e<br />
crítica assumida pelos desobedientes.<br />
Thoreau considerava o aprisionamento decorrente de<br />
desobediência civil um mérito pessoal, pois ao agirem injustamente<br />
os governos fazem da prisão o único lugar digno para um homem<br />
justo. Quanto à postura que deve assumir o Estado-juiz diante da<br />
desobediência civil, Dworkin (2002 ; 2005), Rawls (2000) e Habermas<br />
(1994) defendem uma punição privilegiada aos desobedientes,<br />
diferente daquela dispensada aos ilícitos tradicionais, sem justificação<br />
política. A esse respeito Dworkin refere que devem ser evitados dois<br />
erros grosseiros: o de que o Estado deve punir sempre e, ao contrário,<br />
o de que deverá sempre se abster de punir atos de desobediência civil.<br />
Sugere que sejam consideradas as justificativas da desobediência e<br />
aplicadas aos desobedientes penas mais brandas, se com isso não<br />
se causar prejuízos a outros compromissos. Assim, dedicamos um<br />
item específico para tratar dos argumentos de Dworkin a respeito do<br />
tema. Para Habermas a desobediência civil enquanto mecanismo<br />
indispensável à legitimidade do Estado Democrático não pode ser<br />
tipificada e tratada como qualquer ato ilegal. Os juízes devem respeitar<br />
a virtude e a dignidade da aspiração dos desobedientes, evitando<br />
persegui-los como se fossem criminosos comuns, para, desse modo,<br />
não incorrerem num legalismo autoritário.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 37
Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />
A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NO PENSAMENTO<br />
DE DWORKIN COMO TESTE DE<br />
CONSTITUCIONALIDADE E DE VALIDADE DAS<br />
NORMAS JURÍDICAS<br />
Na obra de Dworkin, a relação entre a moral e o direito é<br />
bastante estreita e de certo modo interdependente. A discussão<br />
e a decisão sobre a validade de uma norma jurídica estão sujeitas<br />
a deliberações sobre problemas e temas morais. Para o autor, a<br />
fusão entre problemas morais e jurídicos são constitutivos da própria<br />
materialidade da Constituição norte-americana. É neste contexto de<br />
moralidade do direito que o autor norte-americano situa sua teorização<br />
sobre a desobediência civil, que ele considera uma decorrência da<br />
possibilidade real de pessoas livres, dadas as suas convicções,<br />
duvidarem e discordarem de interpretações a respeito de questões<br />
morais que constituem o direito ou uma decisão política (DWORKIN,<br />
2000; 2002).<br />
Importa para o objeto da desobediência civil saber qual a<br />
medida a ser adotada quando, dadas as convicções pessoais, uma<br />
lei é considerada inconstitucional, portanto não válida, e qual o<br />
comportamento a ser adotado pelo Estado nessas circunstâncias.<br />
Para o jusfilósofo norte-americano, o cidadão tem obrigação moral<br />
de obedecer às obrigações políticas porque elas são resultados da<br />
vida em comunidade, sobretudo nos Estados democráticos de direito<br />
que reconhecem e protegem os direitos individuais básicos como<br />
a dignidade e a igualdade. No entanto, quando se depararem com<br />
uma lei de constitucionalidade e, portanto, de validade duvidosa, seu<br />
comportamento não será injusto se seguirem seu próprio entendimento<br />
sobre esta lei, desde que razoável.<br />
O autor refere que a moralidade social presente nas Constituições<br />
democráticas interfere na validade das normas jurídicas, de modo<br />
que qualquer lei que pareça colocar em perigo dita moralidade suscita<br />
problemas constitucionais, e se ela for grave, as dúvidas constitucionais<br />
também o serão (DWORKIN, 2000; 2002). A interpretação constitucional<br />
38 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />
é um processo que ultrapassa os limites do Judiciário e reconhece a<br />
importância da participação pública na construção dos significados.<br />
Neste contexto, a desobediência civil deflagra o debate sobre a<br />
constitucionalidade das leis, apresentando-se como um especial<br />
instrumento para se testar e preservar os níveis de constitucionalidade<br />
das mesmas.<br />
O direito seria mais pobre e com menos possibilidade de<br />
questionar seus próprios postulados e fundamentos se todos os<br />
cidadãos tivessem que, a priori, obedecer incondicionalmente às leis<br />
que consideram de validade duvidosa. Poder questionar, duvidar e<br />
interrogar sobre a validade de uma lei com base em argumentos morais<br />
e constitucionais parece ser uma atitude alinhada com os ideários de<br />
democracia que constituem os modelos jurídicos contemporâneos e<br />
contribui na elaboração da melhor decisão judicial possível.<br />
A lealdade do cidadão é para com a lei e não para com um<br />
determinado ponto de vista particular sobre a natureza do direito.<br />
Diante de normas jurídicas de interpretação duvidosa, o cidadão<br />
poderá se posicionar de forma livre, desde que sensata. Ao se colocar<br />
como intérprete da norma o indivíduo está agindo de forma coerente<br />
com a própria possibilidade que a dúvida interpretativa lhe garante.<br />
Não se trata de estar certo ou errado, mas de poder interpretar a norma<br />
de modo diverso em um ambiente de incertezas. Nesse sentido a<br />
desobediência é vista pelo autor americano como uma decorrência do<br />
exercício dos seus direitos fundamentais. O fato de não ser positivada<br />
não lhe retira a juridicidade. Pode ser um direto fraco se comparado<br />
a clássicos direitos individuais, mas mesmo assim se considera um<br />
direito aos olhos do desobediente (OB<strong>RE</strong>GÓN; CANIZALES, 2013).<br />
A desobediência civil, explica Dworkin (2000), é uma característica<br />
da experiência política, não porque umas pessoas sejam virtuosas e<br />
outras más, ou porque umas detém a sabedoria e outras a ignorância.<br />
Mas sim, porque os indivíduos discordam entre si e ao divergirem<br />
reconstroem objetos e entendimentos. Nesse norte, Dworkin acredita<br />
que a resposta à pergunta “o que é certo as pessoas fazerem quando<br />
acreditam que as leis estão erradas?” dependerá das circunstâncias<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 39
Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />
que motivam e fundamentam o ato de desobediência. Considerando<br />
que nem todos os atos de desobediência civil apresentam os mesmos<br />
motivos e circunstâncias, Dworkin propõe três tipos de desobediência.<br />
Um primeiro tipo ele denomina de desobediência baseada na<br />
integridade. Nesse caso o atendimento aos ditames da consciência<br />
impede de obedecer. Considera a desobediência civil baseada<br />
na integridade uma questão de urgência que não pode esperar as<br />
manifestações institucionais sob pena de esta obediência significar<br />
uma perda definitiva. É uma forma de defesa pessoal que “tem como<br />
objetivo apenas que o agente não faça algo que sua consciência<br />
proíbe.” O autor aduz que quase todos concordariam que é correto<br />
violar a lei quando as pessoas são obrigadas a fazerem aquilo que<br />
sua consciência reprova de forma absoluta. (DWORKIN, 2000, p. 160-<br />
161). Exemplifica o autor: “O nortista a quem se pede que entregue<br />
um escravo ao proprietário, ou mesmo o escolar a quem se pede que<br />
saúde a bandeira, sofre uma perda definitiva ao obedecer e não é de<br />
muita valia para ele que a lei seja modificada logo depois” (DWORKIN,<br />
2000, p. 159-160).<br />
Para Jorge Malem Seña (1990), o que Dworkin denomina<br />
desobediência civil baseada na integridade pode ser identificada com<br />
a objeção de consciência. Há que se frisar, no entanto, que as razões<br />
motivadoras da desobediência civil, em muitos casos, não são distintas<br />
das motivadoras da objeção, sendo desse modo a classificação<br />
de um ato desobediente, em uma ou outra categoria, uma tarefa<br />
complexa. Ressalvado este aspecto conflitante, importa destacar que<br />
Dworkin introduz um novo elemento na discussão quando defende<br />
a possibilidade de se utilizar a desobediência civil como instrumento<br />
de defesa para situações de urgência sem antes recorrer aos meios<br />
institucionais.<br />
Nos passos do autor americano, parece coerente afirmar que,<br />
quando a situação exigir uma manifestação imediata, seja para<br />
defesa ou protesto, recorrer previamente aos mecanismos jurídicos<br />
significaria anular o próprio objeto da desobediência civil. Assim, uma<br />
teoria da desobediência civil que se quer profícua não pode excluir<br />
40 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />
de forma incondicional a atuação defensiva e imediata, sob pena<br />
de restarem prejudicados seus objetivos quando de circunstâncias<br />
extremas e irreversíveis. É a natureza e a gravidade da injustiça que<br />
determinam a ênfase e o momento da reação a ser tomada.<br />
Diferentemente da primeira, a desobediência baseada na justiça é<br />
definida por Dworkin como uma postura estratégica e instrumental que<br />
visa se opor à políticas consideradas injustas com intuito de modificá-las.<br />
Para tanto, vale-se de estratégias persuasivas e não persuasivas. Obrigar<br />
a maioria a escutar os argumentos contra uma determinada política na<br />
expectativa de que mude de ideia é um exemplo do primeiro tipo de<br />
estratégia. As estratégias não persuasivas não visam alterar a posição<br />
da maioria, “mas elevar o custo de dar prosseguimento ao programa que<br />
a maioria ainda prefere, na esperança de que esta julgue o novo custo<br />
inaceitavelmente elevado.” (DWORKIN, 2000, p.161.)<br />
Em determinadas situações, porém, em condições pouco favoráveis<br />
para o diálogo político e diante de uma posição rígida do governo,<br />
estratégias não persuasivas de intimidação (bloqueio de estradas,<br />
ocupação de prédios públicos) desde que sem violência, podem<br />
representar uma alternativa de razoável sucesso, defende o autor.<br />
Um terceiro tipo é denominada por Dworkin de desobediência<br />
civil baseada na política e visa reverter uma posição política por<br />
considerá-la perigosamente imprudente, estúpida ou insensata para a<br />
maioria. Acreditam os desobedientes que a política resistida é má para<br />
todos e não apenas para alguns setores ou minorias. Nesse caso,<br />
igualmente à desobediência baseada na justiça, também podem se<br />
distinguir estratégias persuasivas e não persuasivas. “As estratégias<br />
persuasivas pretendem convencer a maioria de que sua decisão<br />
está equivocada e assim, fazê-la renunciar ao programa a que antes<br />
favoreceu. As estratégias não persuasivas pretendem aumentar o<br />
preço que a maioria deve pagar por um programa que continua a<br />
preferir.” (DWORKIN, 2000, p.162 -163).<br />
As estratégias persuasivas são sempre melhores em qualquer tipo<br />
de desobediência, destaca o autor, pois o fato de se tentar persuadir a<br />
opinião valendo-se de argumentos sensatos não desafia em nenhum<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 41
Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />
sentido o princípio do governo da maioria. Já as estratégias não<br />
persuasivas podem ser mais facilmente justificadas na desobediência<br />
baseada na justiça do que na desobediência baseada na política.<br />
É possível reagir fortemente contra uma maioria que sonegue os<br />
princípios de justiça presentes na Constituição e tente empreender<br />
modificações nessa direção. Ao contrário, não parece que tenha<br />
sentido obrigar a maioria a modificar ou aprovar determinadas medidas<br />
políticas que segundo o seu entendimento, mesmo que equivocado<br />
pela minoria, considere de interesse comum.<br />
A distinção que Dworkin faz entre estratégias persuasivas e<br />
não persuasivas é, em nosso juízo, um tanto confusa e não ajuda a<br />
caracterizar categoricamente nenhum dos tipos de desobediência civil<br />
por ele proposta. E essa não é a fragilidade principal dessa distinção.<br />
Ora, a desobediência civil é utilizada quase sempre depois de<br />
esgotadas as diversas instâncias institucionais de debate público nas<br />
quais os argumentos de persuasão foram apresentados e certamente<br />
refutados. Caso os melhores argumentos tivessem a garantia de<br />
saírem sempre vitoriosos de uma disputa de ideias, possivelmente a<br />
desobediência civil jamais teria surgido como estratégia para se fazer<br />
ouvir argumentos.<br />
Por outro lado, o recurso de desrespeito à lei visa justamente<br />
recolocar o argumento e reformular espaços de diálogo, o que significa<br />
que mesmo as estratégias não persuasivas são utilizadas para iniciar<br />
processos persuasivos, de modo que separar ambas as estratégias de<br />
ação da desobediência civil parece uma tarefa sem sentido prático. A<br />
não ser que a desobediência civil possa obrigar mudanças de rumo no<br />
direito e na política mesmo sem o consentimento da maioria, situação<br />
que obviamente Dworkin não ventilou.<br />
Em suma, a desobediência civil adotará estratégias que<br />
dependerão do contexto de sua ação prática, mas quase sempre<br />
recorrendo a mecanismos não oficiais e institucionalizados de petição,<br />
como por exemplo a desobediência direta à lei considerada injusta,<br />
protestos, ocupação de prédios públicos e rodovias, etc, que servem<br />
para colocar em debate a injustiça de determina lei ou medida política.<br />
42 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />
Dworkin destaca que em casos extremos de injustiça, de equívoco<br />
político ou de imoralidade é bastante fácil se posicionar favoravelmente<br />
à desobediência civil. O mesmo, alerta ele, não acontece diante de<br />
situações que, dadas as convicções de diferentes sujeitos e grupos,<br />
não se consegue ter clareza de uma posição majoritária que assegure<br />
que os mesmos argumentos favoráveis à desobediência não sejam<br />
refutados com a mesma energia pelos argumentos desfavoráveis.<br />
Enfim, é na recusa moral (e portanto também jurídica) de um uma<br />
norma ou de uma política que reside o fundamento da desobediência; é<br />
na possibilidade de duvidar e de discutir qualquer lei que comprometa a<br />
moralidade jurídica da Constituição que a desobediência civil pensada<br />
por Dworkin encontra seu valor político e jurídico.<br />
<strong>RE</strong>SPOSTA À DESOBEDIÊNCIA CIVIL: O QUE O<br />
ESTADO DEVE FAZER COM OS DESOBEDIENTES?<br />
Ao tratar do problema da punição ou não dos desobedientes,<br />
Dworkin refere que duas compreensões estanques devem ser<br />
afastadas: a de que o Estado deve punir sempre ou, ao contrário, de<br />
que deverá sempre se abster de punir atos de desobediência civil. Nas<br />
palavras do autor,<br />
devemos evitar dois erros grosseiros. Não devemos dizer que se<br />
alguém teve motivos, dadas as suas convicções, para violar a lei,<br />
o governo não deve puni-lo. Não existe nenhuma contradição e,<br />
muitas vezes, há muito sentido em decidir que alguém deve ser<br />
punido apesar de ter feito exatamente o que nós, se tivéssemos as<br />
suas convicções, faríamos e teríamos a obrigação de fazer. Mas o<br />
erro oposto é igualmente ruim. Não devemos dizer que se alguém<br />
violou a lei, por qualquer razão que seja e por mais honrosos que<br />
sejam seus motivos, sempre deve ser punido porque a lei é a lei<br />
(2000, p. 168).<br />
Quando, porém, o Estado deverá punir? Para o autor norte-<br />
-americano ninguém deveria ser punido, a não ser que, considerando<br />
todas as circunstâncias envolvidas, a punição provocasse, em longo<br />
prazo, um bem geral para a sociedade. Sem dúvida que será sempre<br />
mais desejável que a desobediência civil atinja seus objetivos sem<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 43
Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />
a necessidade de punição. Essa é a condição melhor para todos e<br />
não deve ser descartada pelas autoridades estatais responsáveis pela<br />
persecução penal.<br />
Caso se reconheça, segundo Dworkin, que alguém está certo<br />
ao violar a lei, “dada sua convicção de que a lei é injusta, parece<br />
incoerente não reconhecer isso também como uma razão que os<br />
promotores podem e devem levar em conta ao decidir acusar ou não<br />
[...], como (também) uma razão para punir mais brandamente alguém<br />
que foi processado e condenado”. (DWORKIN, 2000, p. 170). O autor<br />
não considera incompleta a desobediência civil que se der sem a<br />
punição dos desobedientes, mas entende que muitas vezes ela pode<br />
se caracterizar como elemento estratégico, incitando o desejo de<br />
muitos pela punição.<br />
No caso de leis de validade duvidosa, tanto dissidentes quanto<br />
juízes podem acreditar na razão de seus argumentos e elaborarem<br />
teses convincentes. Desse modo, se o debate está centrado na<br />
validade da própria lei, a partir da moralidade da Constituição, não se<br />
pode dizer, a primeira vista, se a norma é válida ou inválida. Por óbvio,<br />
então, uma norma de validade discutível não poderá punir de modo<br />
indiscutível, permanecendo aberto o debate sobre a sua aplicação.<br />
Deste modo,<br />
ao julgar o que deveria ser feito em relação aos opositores<br />
do recrutamento, não podemos pressupor que eles estavam<br />
reivindicando o privilégio de desobedecer leis válidas. Não<br />
podemos decidir que a equidade exige sua punição enquanto<br />
não tentarmos responder às questões que se seguem: o que<br />
deve fazer um cidadão quando a lei não for clara e ele pensar que<br />
ela permite algo que, na opinião de outros, não é permitido? Sem<br />
dúvida, não pretendo perguntar o que, para ele, é juridicamente<br />
apropriado fazer, ou quais são seus direitos jurídicos- isso seria<br />
uma petição de princípio, já que a resposta depende de sabermos<br />
quem está certo: ele ou os outros. Eu desejo perguntar qual é o<br />
comportamento que lhe compete enquanto cidadão; em outras<br />
palavras, o que consideraríamos ‘seguir as regras do jogo’. Trata-<br />
-se de uma questão crucial, porque não pode ser injusto deixar<br />
de puni-lo se ele estiver agindo, dadas as suas opiniões, como<br />
achamos que deve agir (Dworkin, 2002 p. 321).<br />
44 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />
Afinal, pergunta Dworkin, o que deve fazer um cidadão quando<br />
ele considera que uma norma é duvidosa e pensa que ela permite<br />
algo que, na opinião de outros, é proibido? Dworkin apresenta três<br />
possibilidades para essa pergunta e depois aponta qual delas melhor<br />
se adapta as práticas e expectativas do modelo jurídico democrático<br />
americano. Numa primeira hipótese de a lei ser duvidosa, obscura<br />
quanto a permitir que o indivíduo faça o que quiser, este pode imaginar<br />
o pior e agir pressupondo que a lei não permite, obedecendo à lei<br />
mesmo considerando-a errada, enquanto utiliza o processo político<br />
para modificá-la.<br />
Já a segunda possibilidade diz que se a lei é duvidosa o cidadão<br />
seguirá sua própria interpretação e fará o que quiser, se pensar que o<br />
argumento a favor da permissão seja mais forte do que o da proibição.<br />
No entanto, no momento que advier uma decisão judicial contrária<br />
ao seu entendimento o desobediente passa a respeitar a norma,<br />
mesmo considerando-a inválida. E por fim a terceira possibilidade:<br />
se a lei é duvidosa, o cidadão poderá orientar-se por seu próprio<br />
discernimento, mesmo depois de uma decisão contrária tomada pelo<br />
Tribunal.<br />
O jusfilósofo americano rejeita os dois primeiros modelos. Não é<br />
sensato, afirma ele, que os cidadãos pressuponham sempre o pior.<br />
Caso nenhum tribunal<br />
[...] tenha se pronunciado quanto a questão e se um indivíduo<br />
acreditar, depois de ponderar sobre os fatores, que a lei está<br />
do seu lado, a maioria de nossos juristas e críticos achará<br />
perfeitamente correto que ele siga seu próprio discernimento.<br />
Mesmo quando muitos discordarem do que ele faz – como, por<br />
exemplo, vender literatura pornográfica – não pensarão que ele<br />
deve desistir somente porque a legalidade de sua conduta é<br />
objeto de dúvida (DWORKIN, 2002, p. 324).<br />
Se a lei é ambígua, portanto, nem sempre o que a Suprema Corte<br />
diz das normas é de fato o que diz ser, pois pode estar influenciada<br />
por diversas situações e agir de forma mais conveniente para si,<br />
o que também pode acontecer com o indivíduo que interpreta a lei<br />
a seu modo. Além disso, os Tribunais mudam de ideia e revisam<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 45
Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />
suas decisões, podendo considerar legal uma determinada conduta<br />
que durante muito tempo foi considerada ilegal. Nesse sentido, um<br />
homem deve levar em conta aquilo que os Tribunais farão quando<br />
ele decidir se é prudente seguir o que seu próprio juízo indica. É<br />
por isso que se deve rejeitar o segundo modelo proposto, pois uma<br />
coisa é afirmar que o indivíduo deve, de vez em quando, violar sua<br />
consciência quando sabe que a lei o obriga a agir assim. Outra coisa<br />
é afirmar que ele deve violar sua consciência mesmo quando acredita<br />
sensatamente que a lei não exige que o faça, somente porque<br />
causará incomodo aos seus concidadãos se utilizar tal expediente de<br />
forma direta (DWORKIN, 2002).<br />
O terceiro modelo (o cidadão orientar-se de acordo com seu<br />
próprio discernimento mesmo depois de uma decisão judicial em<br />
contrário tomada pela mais alta corte), portanto, é indicado por Dworkin<br />
como a formulação mais equitativa do dever social de um membro da<br />
comunidade. O cidadão tem o dever de lealdade com a lei e não com<br />
posicionamentos particulares sobre ela. Obviamente que os Tribunais<br />
devem ser respeitados e guiar a conduta das pessoas no que se refere<br />
à possibilidade de fazer ou não fazer determinada coisa. Contudo, em<br />
se tratando de direitos fundamentais, um indivíduo não extrapola os<br />
limites de seu direito ao se recusar a aceitar uma decisão definitiva se<br />
argumentar que o Tribunal cometeu um erro e que a dúvida sobre a<br />
matéria persiste.<br />
Dworkin sugere que se deve tolerar o dissenso por um<br />
determinado tempo como uma forma de permitir que o debate construa<br />
entendimentos aceitáveis a respeito do assunto, visto que aqueles que<br />
duvidam da constitucionalidade de uma lei vão continuar duvidosos<br />
mesmo se a Suprema Corte afirmar esta constitucionalidade. Duvidar<br />
da constitucionalidade das leis é duvidar de sua própria validade. Por<br />
isso, em situações de dúvidas consistentes e razoáveis, os órgãos<br />
competentes devem estimular o debate e o diálogo seja para modificar<br />
entendimentos ou reforçá-los, seja para rever as leis ou para ampliar<br />
e confirmar a sua legitimidade constitucional, pois “[...] é injusto punir<br />
homens por desobedecerem uma lei duvidosa” (2002, p.339).<br />
46 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />
Uma lei que é questionada em sua validade obviamente que<br />
tem fragilizada a sua capacidade de definir tipos penais e sanções<br />
correspondentes. Se persistirem dúvidas sobre qual é a melhor<br />
interpretação que se deve dar a um dispositivo de lei é porque a própria<br />
validade do dispositivo está sendo questionada e seria um exagero<br />
exigir um comportamento incondicional por parte do desobediente e<br />
ainda mais exagerado lhe punir no caso de descumprimento da norma<br />
de validade duvidosa. Estaríamos transferindo para os Tribunais,<br />
Ministério público, polícia e demais instituições de persecução penal<br />
a palavra final sobre os conteúdos morais da lei, algo totalmente<br />
incompatível com a harmonia dos três poderes estabelecido no<br />
Estado Democrático.<br />
Certamente que os Tribunais devem ter legitimidade para dizer<br />
a última palavra, caso contrário o sistema de justiça se desintegraria.<br />
Isso, contudo, não garante que eles digam a melhor palavra e que<br />
façam interpretações absolutas sobre a moralidade e validade<br />
do direto. Tanto que seguidamente revisam suas decisões. Os<br />
desobedientes fortalecem o sistema de constitucionalidade na medida<br />
em que obrigam os Tribunais e a comunidade jurídica a debater<br />
sobre novas interpretações e conteúdos das normas jurídicas. Sua<br />
desobediência tem uma causa moral e jurídica; não desobedecem por<br />
razões egoísticas.<br />
Por isso tudo, sugere Dworkin, os Tribunais devem impor<br />
penas mínimas, suspender os efeitos da sentença e em situações<br />
de evidente dúvida constitucional devem obviamente absolver os<br />
desobedientes civis. Enfim, se reside dúvida sobre a validade de uma<br />
lei, não é errado que uma pessoa aja da forma como entender ser<br />
a melhor. E ninguém pode ser punido se, diante das circunstâncias<br />
e dadas às convicções pessoais, todos considerarem que a pessoa<br />
tenha agido de modo adequado ao desobedecer determinada lei.<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
O Estado moderno centralizou a ação política e minimizou a<br />
importância do cidadão no processo democrático. A racionalidade<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 47
Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machado<br />
liberal-burguesa monopolizou os espaços de reivindicação,<br />
distanciando, por conta disso, a ação política formal das tensões<br />
reais da sociedade civil e reduzindo a compreensão da legitimidade<br />
à coerência lógico-formal do processo legislativo e das instituições de<br />
direito. Nesse contexto, a soberania popular transfigura-se em ícone<br />
que se sustenta no homem abstrato ao mesmo tempo em que nega a<br />
historicidade desse mesmo homem.<br />
A desobediência civil permite a construção de uma discursividade<br />
fora dos limites institucionais que é fundamental para a definição de<br />
conceitos representativos das reais demandas sociais. Consubstancia-<br />
-se como uma alternativa para expressar as necessidades públicas<br />
e para construir espaços públicos de discussão que aumentem a<br />
capacidade de controle do poder institucionalizado e dos conteúdos<br />
do direito. Ademais, se a perspectiva liberal de democracia reduz<br />
o espaço da palavra, da construção e da percepção da moralidade<br />
pública ao patamar legal-formal, a desobediência civil, por sua vez,<br />
atua no resgate de um discurso compartilhado que permite a formação<br />
dos conceitos coletivos a partir da constituição de objetivos comuns<br />
dentro da diversidade da comunidade política.<br />
A desobediência civil também deve ser situada como instrumento<br />
alternativo capaz de promover um deslocamento da soberania. No<br />
momento em que a comunidade política promove um agir associativo em<br />
torno das condutas que desaprova, por considerá-las injustas, resgata a<br />
fonte formadora do que, por esse ângulo, deposita-se na ação conjunta<br />
de muitos. Desobedecer a uma lei injusta ou inconstitucional representa<br />
uma disposição para avaliar a validade das normas a partir dos conceitos<br />
coletivos que expressam os níveis de legitimidade publicamente<br />
construídos. Assim, colocar em dúvida a justiça ou a constitucionalidade<br />
de uma lei, pela desobediência civil, é incitar um debate, é publicizar<br />
a discussão em torno dos valores que devem estar presentes para a<br />
consideração desta constitucionalidade e desta justiça.<br />
O liberalismo de Dworkin reconhece a desobediência civil como<br />
uma forma de manifestação da liberdade de ação diante da dúvida<br />
sobre a constitucionalidade da lei. Uma posição de desobediência<br />
48 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />
nessas circunstâncias não pode ser considerada como ato que<br />
ataca o sistema jurídico em sua integralidade visando fragilizá-lo;<br />
ao invés disso reforça o diálogo e a necessidade de revisar ou de<br />
reafirmar determinadas interpretações sobre a lei. As dúvidas sobre a<br />
moralidade da lei constituem-se dúvidas de sua validade. Da mesma<br />
forma que não interessa ao sistema político apoiar sua autoridade em<br />
leis inválidas, assim também não interessa ao sistema jurídico a sua<br />
reprodução e manutenção.<br />
Discutir, questionar, duvidar não significa a mesma coisa<br />
que atacar o direito, mas reforçar a sua legitimidade e validade<br />
pela afirmação de entendimentos velhos e pela construção de<br />
novos entendimentos. A construção democrática do direito sugere<br />
transcender o paradigma positivista e admitir que as justificativas do<br />
Estado e do Direito ultrapassam a fronteira técnica de seu ordenamento<br />
jurídico e reconheçam os princípios morais, éticos e políticos como<br />
imprescindíveis à sua legitimidade e validade. Nessa tarefa, a<br />
desobediência civil é uma categoria importante para construir relações<br />
democráticas indispensáveis para a regeneração e a reafirmação do<br />
Estado democrático de direito.<br />
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Ronald Dworkin y Jürgen Habermas. Opinión Jurídica, Vol. 12, N°<br />
23, pp. 151-166 - ISSN 1692-2530 • Enero-Junio de 2013. Medellín,<br />
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RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita<br />
Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.<br />
SEÑA, Jorge Francisco Malem. Concepto e justificación de la<br />
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TELLA, Maria José Falcón y. La desobediencia civil. Madri: Marcial<br />
Pons, 2000.<br />
50 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />
THO<strong>RE</strong>AU, Henry David. Desobedecendo: a desobediência civil e<br />
outros escritos. Trad. José Augusto Drumond. 2.ed. Rio de Janeiro:<br />
Rocco, 1986.<br />
WALZER, Michael. Das obrigações políticas. Ensaios sobre a<br />
desobediência, guerra e cidadania. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.<br />
Recebido: 1-8-2014<br />
Aprovado: 10.10.2014<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 51
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />
DI<strong>RE</strong>ITO<br />
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR<br />
MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />
Sustainable development through the extrafiscality of<br />
taxation<br />
Resumo<br />
Paulo Valdemar da Silva Balbé 6<br />
Salete Oro Boff 7<br />
O presente trabalho tem como objetivo abordar o tema do desenvolvimento sustentável, com destaque<br />
para a aplicação da extrafiscalidade nas espécies tributárias. Inicialmente é abordado o contexto histórico<br />
e mundial que deu origem ao tema “desenvolvimento sustentável”. Em um segundo momento, busca-se a<br />
compreensão da dimensão das liberdades fundamentais, condicionantes para a mudança de perfil do indivíduo,<br />
capacitando-o a atuar como agente dentro das estruturas da sociedade, com reflexos na construção de uma<br />
ética de responsabilidade. Na terceira parte do trabalho, realiza-se um estudo das competências tributárias na<br />
Constituição Federal de 1988 com especial enfoque para as bases econômicas ou matrizes tributárias previstas<br />
no texto constitucional e o questionamento sobre a possibilidade de instituição de tributação ambiental em um<br />
âmbito normativo analítico, com pouca margem de liberdade. Na quarta parte do trabalho, realiza-se um estudo<br />
sobre o alcance do princípio da extrafiscalidade e a possibilidade de aplicação nas espécies tributárias com o<br />
propósito de resguardo ao meio ambiente . Por fim, conclui-se que a extrafiscalidade é instrumento adequado<br />
e viável para o resguardo do meio ambiente no sistema tributário, admitida sua aplicação não somente aos<br />
impostos, de forma indireta, mas nas contribuições de intervenção no domínio econômico.<br />
Palavras-chave: Desenvolvimento. Sustentabilidade. Extrafiscalidade. Tributação ambiental<br />
Abstract<br />
The present work has the objective of approaching the theme of sustainable development, with a highlight<br />
on the application of extrafiscality in the tributary species. At first, the historical and worldwide context<br />
that gave origin to the theme of “sustainable development” is approached. In a second moment, there is<br />
the understanding of the dimension of the fundamental liberties, which condition the individuals’ profile<br />
changes, enabling them to act as agents within the society’s structures, with consequences on the building<br />
of a responsibility ethics. In the third part of the work, a study of the tax competences in the Federal<br />
Constitution of 1988 is carried out, with a special focus on the economic bases or tributary matrices<br />
predicted in the constitutional text and on questioning the possibility of instituting an environmental taxation<br />
in an analytic normative sense, with little margin of liberty. In the fourth part of the work, a study is made<br />
on the reach of the extrafiscality principle and on the possibility of application in the tributary species in<br />
order to safeguard the environment. Finally, the conclusion is that extrafiscality is an adequate and feasible<br />
instrument in the tributary system for the safeguard of the environment, if its application is admitted not only<br />
to taxes, in an indirect manner, but in the intervention contributions in the economic domain.<br />
Keywords: Development. Sustainability. Extrafiscality. Environmental taxation.<br />
6 Mestrando em Direito no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu na Faculdade Meridional (IMED). Vinculado aos grupos de<br />
pesquisa “Direito e Desenvolvimento” e “Ética, Cidadania e Sustentabilidade”. Procurador Federal. Email: paulo.balbe@gmail.com<br />
7 Pós-Doutrora em Direito UFSC. Professora do IESA-CNEC e dos PPGD/IMED/UNISC. Linhas de pesquisa “Direito e<br />
Desenvolvimento” e “Políticas Públicas de Inclusão Social”. Email: salete.oro.boff@terra.com.br<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 53-72
Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />
Sumário:<br />
1. Introdução; 2. Desenvolvimento sustentável, meio ambiente e tributo; 3. Indivíduo como agente moral:<br />
liberdade e responsabilidade; 4. Competência tributária; 5. Extrafiscalidade: possível caminho para uma<br />
tributação ambiental no Brasil?; 6. Considerações finais; 7. Referências<br />
INTRODUÇÃO<br />
A proteção ao meio ambiente, constante do arcabouço normativo<br />
brasileiro, deve crédito à preocupação e à importância conferida ao<br />
tema “desenvolvimento sustentável” pela comunidade internacional<br />
desde meados do século passado.<br />
Compreender o que seja “desenvolvimento sustentável” é<br />
tarefa complexa, pois abrange uma gama de dimensões e vários<br />
aspectos da vida humana. Nesse contexto, a dimensão ecológica,<br />
voltada à preocupação com a conservação dos elementos naturais,<br />
é um aspecto relevante, pois retrata, de modo bastante claro, e em<br />
uma perspectiva temporal não muito distante, a possibilidade de<br />
de que sejam inviabilizadas pela própria humanidade as condições<br />
necessárias à sua subsistência.<br />
Sem menosprezar a necessária construção de um conteúdo<br />
ético para pautar a conduta humana em relação aos demais<br />
seres e biosferas existentes no Planeta Terra (conteúdo este que<br />
necessariamente deverá desenvolver os sentimentos de solidariedade<br />
e responsabilidade), pode-se afirmar que ainda falta o despertar para<br />
a importância de uma quebra de paradigma nos modos de produção e<br />
no sistema econômico vigente.<br />
A conduta humana, nessa conjuntura, é ainda pautada de<br />
modo muito importante pela normatividade e pelas estruturas que<br />
a viabilizam no seio da sociedade democrática. É a norma, nessas<br />
circunstâncias, dotada de forte apelo didático, que estimula ou coíbe<br />
condutas dos indivíduos e, consequentemente, induz a formação de<br />
um novo padrão cultural. No caso da proteção ao meio ambiente é<br />
possível constatar que normas de várias naturezas e propósitos<br />
buscam efetivar e complementar sua tutela, observando o estatuto de<br />
direito fundamental conferido ao tema pela Constituição Federal (art.<br />
225).<br />
54 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />
Um questionamento que se destaca é aquele referente aos limites<br />
da aplicabilidade dessa proteção ao meio ambiente no ramo do Direito<br />
Tributário, sobretudo em razão das evidentes amarras legislativas e<br />
teóricas que vigoram naquela seara, também voltada à proteção do<br />
patrimônio do cidadão.<br />
No caso brasileiro, pode-se pretender viabilizar uma tributação de<br />
viés ecológico mediante a aplicação do princípio da extrafiscalidade.<br />
Cabe, portanto, indagar até que ponto isso seria possível, ou seja,<br />
quais seriam os limites da aplicação do tributo para a proteção<br />
ambiental no Brasil utilizando-se da extrafiscalidade.<br />
A expectativa é que a presente análise possa trazer indicativos,<br />
mesmo que preliminares, a essas indagações.<br />
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL<br />
A busca por um modelo de desenvolvimento sustentável é<br />
tema de debate na comunidade internacional com maior destaque<br />
a partir da segunda metade do século XX, em especial diante dos<br />
questionamentos, originários das comunidades política e científica, de<br />
que o aperfeiçoamento técnico voltado para a crescente exploração<br />
de recursos naturais poderia chegar a um limite 8 . Pela primeira vez<br />
a humanidade percebeu que a ausência de alternativas ao modo de<br />
produção capitalista e aos padrões de consumo poderia ocasionar<br />
real perigo de extinção à própria espécie.<br />
No início da década de 70 (séc. XX), a Organização das Nações<br />
Unidas realizou a Primeira Conferência Mundial sobre o Homem e o<br />
Meio Ambiente. A Declaração de Estocolmo, em seu relatório final,<br />
trouxe significativos diagnósticos e proposições acerca do problema<br />
da poluição e degradação ambiental, dando início a uma série de<br />
debates e tratativas internacionais com temática de destaque para a<br />
ecologia e o meio ambiente. Característicos de uma época na qual<br />
8 Há referências de que um evento marcante para o início do debate tenha sido a divulgação, no ano de 1972 do estudo “Os limites<br />
do crescimento” solicitado pelo “Clube de Roma” e desenvolvido por uma equipe do Massachusetts Institute of Technology - MIT. O<br />
aludido estudo, dramático a ponto de indicar o colapso dos sistemas populacional e econômico no século XXI, embora controverso e<br />
em alguns pontos refutado, já obteve respaldo na comunidade científica. Estudo recente aponta que os cenários-padrão apontados<br />
na publicação de 1972 correspondem de forma razoável com a realidade nos últimos 30 anos. Nesse sentido, o estudo de Graham<br />
Turner A comparison of the limits to growth with thirty years of reality” divulgado no ano de 20<strong>08</strong> (Disponível emhttp://www.csiro.au/<br />
Outcomes/Environment/Population-Sustainability/SEEDPaper19.aspx).<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 55
Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />
ainda era incipiente a compreensão da complexidade do conjunto de<br />
circunstâncias relacionadas ao tema, os documentos resultantes dos<br />
debates demonstram a predominância do viés antropocentrista.<br />
Foi com o cognominado Relatório Brundland, entretanto, que a<br />
expressão “desenvolvimento sustentável” ganhou definição e passou<br />
a adquirir ares de oficialidade, o que significou seu grande uso na<br />
literatura relacionada ao tema (BOFF, 2012, p. 34).<br />
No condizente às causas diagnosticadas, a pobreza e a<br />
desigualdade despontam como principais fatores aptos a propiciar<br />
crises, em especial de ordem ecológica: “Em um mundo no qual a<br />
pobreza e a desigualdade são endêmicas será sempre propenso a<br />
crises ecológicas e de outro tipo […] muitos problemas de esgotamento<br />
de recursos e de estresse ambiental surgem de disparidades de poder<br />
econômico e político” 9 .<br />
Em semelhantes linhas, o tema já era de igual modo compreendido<br />
no ano de 1972: “Nos países em desenvolvimento, a maioria dos<br />
problemas ambientais são causados pelo subedesenvolvimento” 10 .<br />
Mais tarde, no ano de 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre o<br />
Meio Ambiente e o Desenvolvimento – CNUMAD – elaborou e divulgou<br />
novo documento no qual buscou planificar ações e programas para<br />
o cumprimento de metas estipuladas durante o evento, destinadas<br />
à implementação de condições para o alcance do desenvolvimento<br />
sustentável no século XXI: a Agenda 21.<br />
Documento extenso e relativamente complexo (4 Seções, 40<br />
capítulos), a Agenda 21 foi submetida a periódicas revisões com<br />
o propósito de identificar obstáculos à sua concretização (Rio+5,<br />
Rio+20). Os documentos internacionais referidos contemplam uma<br />
visão ampla de “desenvolvimento sustentável”, permitindo identificar<br />
naquela expressão várias medidas de ordem social, econômica e<br />
política. Ilustra-se, para compreensão, o escopo de “desenvolvimento<br />
sustentável” elaborada originariamente pelas Nações Unidas em 1972:<br />
9 Tradução livre. Texto original: “A world in which poverty and inequity are endemic will always be prone to ecological and other crises<br />
[…] many problems of resource depletion and environmental stress arise from disparities in economic and political power”. Our<br />
common future. United Nations.World Commission on Environment and Development. 1987<br />
10 Tradução livre. Texto original: “In the developing countries most of the environmental problems are caused by under-development.”<br />
Declaration of the United Nations Conference on the Human Environment. United Nations. 1972<br />
56 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />
O desenvolvimento sustentável procura atender às necessidades<br />
e aspirações do presente sem comprometer a capacidade de<br />
atender às do futuro. Longe de exigir a cessação do crescimento<br />
econômico, reconhece que os problemas de pobreza e<br />
subdesenvolvimento não podem ser resolvidos a menos que<br />
tenhamos uma nova era de crescimento no qual os países<br />
em desenvolvimento têm um papel grande e colher grandes<br />
benefícios 11 .<br />
Questiona-se até que ponto as palavras que compõem a expressão<br />
“desenvolvimento sustentável” podem configurar uma contradição,<br />
dado que é da natureza do desenvolvimento a ideia de progresso e,<br />
consequentemente, a exploração incessante de recursos. Por outro lado,<br />
a palavra “sustentável” evoca “a tendência dos ecossistemas ao equilíbrio<br />
dinâmico, à cooperação e à coevolução” (BOFF, 2012, p. 45).<br />
Nesse sentido, não se trata de apontar um fator único, originário,<br />
mas procurar identificar padrões nos variados países nos quais<br />
constatada a relação entre a deficiente distribuição de renda e o<br />
nível de poluição, pois a pobreza tem causas diversas (e algumas<br />
delas, inclusive, bem poderiam ser os excessos do modo de produção<br />
capitalista e o uso indiscriminado da noção de progresso científico<br />
voltado à exploração de recursos naturais e humanos). E é nesse<br />
contexto que, aparentemente, surgem casos que comprovam essa<br />
percepção 12 . Todavia, as relações entre tais fatores, obviamente,<br />
ainda não são claros, pois dependem de estudos aprofundados de<br />
sorte a comprovar sua veracidade 13 .<br />
Ante as constatações apontadas, os esforços mundiais<br />
passaram a voltar-se para a descoberta de medidas aptas a anular<br />
ou diminuir a influência de fatores que tenham potencial para agravar<br />
11 Tradução livre. Texto original: “Sustainable development seeks to meet the needs and aspirations of the present without compromising<br />
the ability to meet those of the future. Far from requiring the cessation of economic growth, it recognizes that the problems of poverty<br />
and underdevelopment cannot be solved unless we have a new era of growth in which developing countries play a large role and<br />
reap large benefits.” Our common future. United Nations.World Commission on Environment and Development. 1987.<br />
12 http://www.actionforourplanet.com/top-10-polluting-countries/4541684868. Acesso em 14/02/2014.<br />
13 O estudo estatístico divulgado pelo Banco Mundial (The Little Green Data Book) traz informações interessantes que aparentemente<br />
comprovam a relação entre pobreza e poluição do ar atmosférico: “urban air pollution declined in most countries between 2000<br />
and 2006 (the most recent year for which data is available), with the greatest progress in low-income and lower middle-income<br />
countries. But concentration levels are still nearly three times higher in these countries than in high-income countries”. http://wwwwds.worldbank.org/external/default/WDSContentServer/WDSP/IB/2010/07/06/000333038_20100706034730/Rendered/PDF/55542<br />
0PUB0litt1PI19564496001PUBLIC1.pdf. Acesso em: 14-2-2014.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 57
Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />
o cenário de degradação do ambiente. Surge, então, o conceito<br />
de “desenvolvimento sustentável”, pretendendo reunir condições<br />
que viabilizem a continuidade de padrões dignos de vida mediante<br />
equilíbrio com os demais seres vivos e elementos naturais. Destaca-<br />
-se que o “desenvolvimento sustentável” não está relacionado<br />
exclusivamente à questão ecológica. Como conceito amplo que é,<br />
aborda várias dimensões: social, ética, jurídico, política, econômica<br />
que “se entrelaçam e se constituem mutuamente, numa dialética<br />
da sustentabilidade” (F<strong>RE</strong>ITAS, 2011, p. 65). Em decorrência desse<br />
caráter multidimensional, é que existem várias frentes nas quais os<br />
esforços devem ser empreendidos, e uma delas é a questão social,<br />
relacionada diretamente ao préstimo de serviços públicos essenciais à<br />
população, proporcionando sejam atingidas as capacidades essenciais<br />
necessárias à plena participação do indivíduo na condição de sujeito<br />
ativo, política e moralmente.<br />
Certo é que na óptica da literatura ecológica de vanguarda a<br />
sociedade moderna ainda está presa ao modelo de desenvolvimento<br />
sustentável padrão, caracterizado pelo antropocentrismo, consumismo,<br />
exploração, busca do lucro às custas do empobrecimento alheio e<br />
tendência a mensurar a eficiência da qualidade de vida com base<br />
exclusiva em fatores econômicos (por exemplo o Produto Interno<br />
Bruto - PIB).<br />
Verifica-se que a proposta da alternativa inovadora e radical<br />
da “economia verde” não altera o modo de produção vigente, mas<br />
procura lhe conferir uma roupagem mais adequada, adotando práticas<br />
que não trarão resultados substanciais para a mudança de paradigma<br />
(BOFF, 2012, p. 54). Cabe a questão: é possível uma mudança nos<br />
modelos atuais de desenvolvimento sustentável que sejam passíveis<br />
de implementação imediata?<br />
Aparentemente a proposta de quebra radical do padrão atual,<br />
capitalista e consumista, embora coerente e recomendável, cai na<br />
armadilha da utopia, visto que se estipula o atingimento, pela humanidade,<br />
de elevados padrões éticos como pressuposto para a mudança<br />
pretendida. Isso porque o comportamento humano, como prova a história,<br />
58 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />
é influenciado por fatores geográficos e temporais, neste compreendido<br />
o conjunto de valores e crenças compartilhados. Tudo na vida, como no<br />
velho ditado popular, começa com o primeiro passo.<br />
Pretende-se, antes de ceder ao imperativo prático e de renunciar<br />
às soluções complexas (naturalmente mais tortuosas), reconhecer que<br />
a capacidade de compreensão do ser humano é limitada por fatores<br />
geográficos, históricos e sociais, situação que por si já basta para<br />
comprovar a dificuldade de um alcance homogêneo de um padrão<br />
ético que possibilite à humanidade, em um só momento, passar a<br />
implementar as grandes mudanças necessárias para a manutenção de<br />
sua existência no Planeta e para a renovação do padrão de interação<br />
com os demais seres vivos e com a biosfera.<br />
Afastada, em um primeiro momento, a dimensão utópica das<br />
propostas para o alcance da sustentabilidade, necessário identificar<br />
o potencial normativo para o fim de promover comportamentos<br />
que, embora não necessariamente decorram de um padrão ético<br />
compartilhado, possibilitam atingir o propósito (ainda que parcial)<br />
de vida sustentável. Logo, não há como deixar de constatar que os<br />
tributos e, em maior escala, a política fiscal de um país, constituem<br />
expedientes legítimos importantes para a solução desse complexo<br />
quebra-cabeças.<br />
A política fiscal, encarregada de elaborar e sistematizar todo o<br />
arcabouço normativo do sistema tributário, contribui decisivamente<br />
para o suporte financeiro do Estado e para a prestação de serviços que<br />
abrangem desde as atividades burocráticas essenciais, como também<br />
de regulação do mercado, fiscalização, fomento e atendimento aos<br />
direitos fundamentais previstos na Constituição da República.<br />
INDIVÍDUO COMO AGENTE MORAL: LIBERDADE E<br />
<strong>RE</strong>SPONSABILIDADE<br />
O respeito ao meio ambiente possui intrínseca ligação com a<br />
liberdade, posto que seu equilíbrio é condição básica para uma vida<br />
digna. É com base nessa premissa que a Constituição da República<br />
erigiu o meio ambiente à condição de “bem de uso comum do povo e<br />
essencial à sadia qualidade de vida” (art. 225). Liberdade é, portanto,<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 59
Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />
um valor moral em si. Pressuposto para o exercício da democracia.<br />
Falar em respeito ao meio ambiente pressupõe a ideia de<br />
responsabilidade por algo que não pertence exclusivamente aos<br />
sujeitos, ou seja, algo que a rigor deve ser compartilhado com os<br />
demais. Tal noção de cuidado e respeito, entretanto, parte de uma<br />
convicção respaldada em uma escolha moral do indivíduo.<br />
A compreensão do significado das escolhas morais tende a se<br />
aperfeiçoar à medida em que satisfeitas as garantias fundamentais e as<br />
condições de pleno acesso e desenvolvimento das capacidades humanas.<br />
O sujeito, até então limitado pelas necessidades mais comezinhas passa<br />
a atuar na condição de agente, participando da esfera pública a atuando<br />
com maior influência nas decisões que afetam a coletividade. Nesse<br />
sentido, Zambam (2012, p. 71) esclarece que<br />
a condição de agente é uma característica fundamental para a<br />
superação de situações que ameaçam o bem-estar das pessoas […]<br />
iniciativas que fortalecem o desenvolvimento das potencialidades<br />
individuais e a participação ativa nas esferas públicas, mediadas<br />
por ações que permitem o acesso à alfabetização e a um sistema<br />
educacional mais qualificado, investimentos em políticas de saúde,<br />
direito à propriedade e ao trabalho […] participação no sistema<br />
eleitoral com voz ativa e direito de votar e ser votada, entre outros,<br />
têm impacto imediato e duradouro sobre a avaliação do bem-estar e,<br />
por consequência, sobre o conjunto da sociedade.<br />
É, portanto, na liberdade que o sujeito se dá conta da dimensão de<br />
poder que detém sobre seus atos na condição de sujeito ativo. E é esse<br />
poder, por sua vez, que invoca o dever de responsabilidade por aqueles que<br />
dele dependem. Nesse sentido, a válida lição de Jonas (2006, p. 167):<br />
O poder se torna, assim, objetivamente responsável por aquele<br />
que lhe foi confiado e afetivamente engajado graças ao sentimento<br />
de responsabilidade […] a tomada de partido sentimental tem<br />
sua primeira origem não na ideia da responsabilidade em geral,<br />
mas no reconhecimento do bem intrínseco do objeto, tal como ele<br />
influencia a sensibilidade e envergonha o egoísmo cru do poder<br />
[…] a reivindicação do objeto, de um lado, na insegurança da sua<br />
existência, e a consciência do poder, de outro, culpada da sua<br />
causalidade, unem-se no sentimento de responsabilidade afirmativa<br />
do eu ativo, que se encontra sempre intervindo no Ser das coisas.<br />
60 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />
Será nessas circunstâncias, nas quais presentes a capacidade<br />
ativa do sujeito e seu dever de responsabilidade, que advirão as normas<br />
legais como ferramentas essenciais à organização da sociedade em<br />
um Estado Democrático de Direito. É imbuído dessa responsabilidade<br />
que, por exemplo, os cidadãos se impõem a obrigação de verter<br />
recursos aos cofres públicos, indispensáveis à própria manutenção da<br />
organização social.<br />
Obviamente que essa consciência e esse agir não são unânimes.<br />
Todavia, em uma conjuntura democrática, composta de sujeitos ativos<br />
(representantes e representados), advindos de extratos sociais e cultuais<br />
diferenciados (pluralidade), a regra da maioria vige e condiciona.<br />
O sistema tributário tem reflexos na economia e,<br />
consequentemente, em algumas das camadas sociais. Conquanto<br />
seu objetivo seja basicamente a prospecção de recursos necessários<br />
para a satisfação das necessidades coletivas e à própria manutenção<br />
da máquina estatal, forçoso reconhecer que não foi concebido com o<br />
propósito de nivelar desigualdades. Vale dizer, o sistema é contributivo<br />
e não redistributivo (TOR<strong>RE</strong>S, 2005, p. 26).<br />
COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA<br />
No chamado Estado do Bem-Estar Social, a presença do Ente<br />
Estatal nos variados setores e atividades da sociedade tem por escopo<br />
a garantia de condições mínimas aos cidadãos, a fim de que esses<br />
possam desenvolver suas capacidades, seus talentos, em condições<br />
de igualdade, na busca de seus anseios e realizações pessoais.<br />
Cediço nesse conceito a ideia de “sociedade justa e ordenada” da<br />
qual fala John Rawls (1995).<br />
Nos Estados modernos, a efetivação de direitos fundamentais aos<br />
cidadãos (e, em um plano ético mais amplo, ao indivíduo do gênero<br />
humano) pressupõe a criação de estruturas de substancial tamanho e<br />
complexidade que dependem de recursos financeiros para a reunião<br />
de todos os elementos necessários a lhes dar plena funcionalidade (p.<br />
ex. recursos humanos e materiais).<br />
Vedada ao Estado Moderno a imposição de trabalho compulsório<br />
e a requisição de bens e valores materiais de seus súditos, o custeio<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 61
Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />
para o implemento dos direitos fundamentais tem origem precípua nos<br />
tributos que, sob a perspectiva orçamentária, são também designados<br />
de “receitas derivadas”, pois não tem origem na exploração direta dos<br />
bens afetados aos órgãos e entidades estatais (receitas originárias).<br />
O tributo é uma espécie de obrigação, criado com lastro no<br />
ordenamento jurídico positivado do Estado. Sua criação tem origem,<br />
portanto, não somente no poder ou potestade do Ente Estatal, mas<br />
também no dever que a sociedade atribuiu a si própria no imperativo<br />
de garantir condições mínimas essenciais à vida digna. Nesse sentido<br />
há, inclusive, menção a um “dever fundamental de pagar impostos<br />
(NABAIS apud PAULSEN, 2007, p. 14).<br />
Esse poder de tributar, nos Estados Democráticos de Direito, a<br />
exemplo do Brasil, encontra legitimidade no arcabouço normativo,<br />
fruto de deliberação dos representantes dos cidadãos nas câmaras<br />
parlamentares.<br />
Ocorre que nem mesmo o parlamento é dotado de plena liberdade<br />
para a instituição de matrizes tributárias, posto que a criação de<br />
tributos também possui lindes jurídicos expressos na Constituição.<br />
A previsão de limites expressos ao poder de tributar, corolário do<br />
princípio da legalidade, constitui uma conquista da civilização e, de<br />
certo modo, um avanço na consolidação da Democracia, obstando<br />
que o Poder Estatal seja exercido de forma desmesurada, exigindo<br />
o sacrifício patrimonial dos súditos além de suas capacidades<br />
financeiras, sem dúvida que está contemplado no rol das garantias<br />
fundamentais (direitos fundamentais de primeira dimensão).<br />
No caso do Brasil, a possibilidade de instituição de tributos<br />
é condicionada por um manancial de normas jurídicas expressas<br />
na Constituição. Longe de estipular balizas gerais, a Constituição<br />
Republicana trouxe em seu texto uma previsão analítica dos<br />
pressupostos necessários à criação de figuras tributárias como, por<br />
exemplo, a previsão de competências tributárias e as limitações ao<br />
poder de tributar.<br />
São nas normas de competência tributária que o Ente Estatal<br />
possui autorização para a criação de tributos. Nelas estão contidas,<br />
em linhas muito amplas, as matrizes tributárias, ou seja, as situações<br />
62 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />
fáticas e jurídicas para os quais o legislador poderá criar normas<br />
gerais e abstratas que instituam obrigações tributárias para o cidadão.<br />
Pode-se dizer que as matrizes tributárias possuem uma natureza<br />
bifronte: de um lado, criam possibilidades, prevendo situações da<br />
vida passíveis de serem consideradas como aptas da dar surgimento<br />
às obrigações tributárias; de outro, caracterizam a própria limitação<br />
da capacidade de criá-las, corolário de sua natureza restritiva,<br />
considerando que o próprio sistema jurídico somente autoriza o<br />
exercício da competência tributária nas situações nelas contempladas.<br />
As normas constitucionais preveem que a estrutura federativa do<br />
Estado Brasileiro contempla uma competência legislativa concorrente<br />
(art. 24 da Constituição Federal) em matéria tributária, o que significa<br />
que todos os entes da federação poderão legislar sobre assuntos<br />
a ela afetos. Resulta que a previsão de matrizes tributárias diversas<br />
decorre da necessidade de um mínimo de organização e coerência das<br />
atividades legislativas e administrativas das esferas municipal, estadual<br />
e do Ente Federado (União), evitando a sobreposição de atribuições<br />
e competências e, consequentemente, a instituição de tributos (de<br />
idêntica espécie ou não) sobre idênticas situações (bitributação).<br />
No exercício da competência tributária que lhe foi outorgada<br />
pela Constituição, cada ente da federação poderá instituir obrigações<br />
tributárias, observando os veículos legislativos próprios e, em especial,<br />
as normas gerais da União. Por conseguinte, cada ente político poderá,<br />
nos moldes das competências que lhe foram instituídas (em especial<br />
as matrizes tributárias nela contidas), eleger fatos econômicos para<br />
integrar os preceitos das normas tributárias. Assim procedendo, deverá<br />
contemplar no veículo normativo os demais elementos necessários<br />
àquela obrigação (por exemplo: fato gerador, sujeito passivo, alíquota,<br />
base de cálculo).<br />
Nessa atividade legislativa, o ente político não está atrelado<br />
exclusivamente ao aspecto fiscal do tributo, ou seja, o escopo de<br />
arrecadação de recursos para o custeio de suas atividades. Diz-se<br />
que nesses casos a tributação opera com natureza extrafiscal, que<br />
consiste “no emprego de instrumentos tributários para o atingimento<br />
de finalidades não arrecadatórias, mas, sim, incentivadoras ou<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 63
Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />
inibitórias de comportamentos, com vista à realização de outros<br />
valores, constitucionalmente contemplados” (COSTA, 2009, p. 48).<br />
A questão que se impõe, entretanto, é saber se o legislador, pretendendo<br />
alcançar propósitos não exclusivamente arrecadatórios, poderá incluir na<br />
norma tributária elementos que, embora não integrem o fato econômico<br />
escolhido como objeto do preceito normativo, estejam com este de algum<br />
modo relacionados e contemplem condições suficientes para incentivar ou<br />
coibir determinados comportamentos. A resposta é positiva.<br />
EXTRAFISCALIDADE COMO POSSÍVEL CAMINHO<br />
PARA UMA TRIBUTAÇÃO AMBIENTAL NO BRASIL<br />
O arcabouço normativo brasileiro contém figuras tributárias nas<br />
quais a natureza extrafiscal é da sua essência, ou seja, propõe-se<br />
a atingir, explicitamente, propósitos além da singela arrecadação<br />
de recursos financeiros mediante previsão expressa, no preceito<br />
normativo, de determinadas situações intimamente que se pretende<br />
incentivar ou coibir. Cite-se como exemplo a espécie tributária “taxa”<br />
cobrada em razão do exercício do poder de polícia (via de regra<br />
fiscalização) sobre atividades consideradas relevantes em razão dos<br />
interesses coletivos envolvidos (como as de segurança).<br />
Há outros casos, entretanto, nos quais poderá o legislador<br />
contemplar no conjunto dos elementos da obrigação tributária situações<br />
que deseje incentivar ou coibir, estabelecendo condições benéficas<br />
(por exemplo a redução de alíquota, a remissão, a anistia, a isenção)<br />
ou impondo pesados ônus (como com o aumento de alíquota e das<br />
multas). Afirma-se que nesses casos a tributária é dotada de caráter<br />
indutivo, possibilitando que sejam alcançados efeitos extrafiscais até<br />
mesmo em tributos que não estejam ontologicamente dotados dessa<br />
característica (tributos extrafiscais por natureza).<br />
No Brasil, a extrafiscalidade é uma característica presente no<br />
sistema tributário. Arrisca-se a dizer que tal característica denota a<br />
legitimidade do Estado no exercício do papel indutor, fomentando a<br />
atuação do setor produtivo para determinadas atividades não alçadas<br />
à categoria de prioridade no mercado. Mas também na sociedade<br />
64 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />
civil o reflexo do que se pode chamar de “política extrafiscal” irradia<br />
efeitos diversos, seja no implemento de incentivos a determinadas<br />
condutas, benefícios a camadas sociais de menor renda (com o<br />
objetivo de minimizar as grandes diferenças existentes entre as<br />
classes econômicas) ou estímulo à preservação ambiental e melhor<br />
organização urbanística.<br />
São inúmeros os exemplos de aplicação da extrafiscalidade como na<br />
variação de alíquotas de impostos; nas taxas, originárias do exercício do<br />
poder de polícia (atuando na fiscalização de normas voltadas a diversas<br />
finalidades sociais) e no préstimo de serviço estatal específico e divisível<br />
(nos quais o Poder Público, não raro, age como único prestador, seja em<br />
função da natureza da atividade realizada, seja em virtude da ausência de<br />
interessados a exercê-las sob o regime de concessão); nas contribuições<br />
de intervenção no domínio econômico (as quais, por natureza, tem por<br />
escopo o fomento e a regularização de setores econômicos específicos;<br />
nas isenções; nas imunidades.<br />
Em relação à competência tributária de cada ente, destacam-se<br />
várias situações concretas nas quais há preponderância do interesse<br />
na preservação ambiental com suporte na extrafiscalidade 14 .<br />
Ponto que se reveste de especial importância é a conciliação entre a<br />
extrafiscalidade e o princípio da capacidade contributiva, reconhecido no<br />
14 Sobre o tema Teixeira (2010, p. 225-228) destacam os seguintes benefícios fiscais:<br />
Na esfera federal:<br />
a)Decreto-lei nº 755/1993, que reduz as alíquotas do IPI para a aquisição de veículos movidos a álcool;<br />
b)Lei nº 5.106/1966, a qual institui a possibilidade de redução da base de cálculo (dedução) do Imposto de Renda em relação aos projetos<br />
de reflorestamento custeadas pelos contribuintes;<br />
c)Projeto de lei nº 5.162/2005, que concede incentivos fiscais a pessoas físicas e jurídicas que apoiem projetos ambientais;<br />
d)Projeto de lei nº 5.974/2005, que estipula a possibilidade de dedução, na base de cálculo do Imposto de Renda, de percentuais dos<br />
valores de doações e de patrocínios direcionados a projetos ambientais;<br />
e)Lei nº 4.771/65, que estabeleceu a isenção do Imposto Territorial Rural - ITR em relação às áreas de reserva legal, de preservação<br />
permanente, reservas particulares do patrimônio e de áreas de preservação ambiental;<br />
Na esfera estadual<br />
a)o “ICMS ecológico” que viabiliza a instituição de critérios diferenciados de repartição de receitas de parcela das transferências<br />
obrigatórias correspondentes àquela exação;<br />
b)o IPVA, no qual existe a possibilidade de redução de alíquotas de acordo com a motorização e o tipo de combustível utilizado, de modo<br />
que a menor operosidade recairá sobre veículos que emitam menores percentuais de gases poluidores;<br />
c)o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doações de Quaisquer Bens e Direitos – ITCD –, que poderá apresentar alíquotas diversas<br />
em razão de critérios ambientais.<br />
Na esfera municipal:<br />
a)Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana - IPTU, cuja progressividade é fator de incentivo para o alcance da função social da<br />
propriedade, nesta incluída o uso da propriedade em conformidade com o meio ambiente;<br />
b)Imposto Sobre Serviços – ISS –, que poderá contemplar critérios aptos a estimular práticas de proteção ao meio ambiente.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 65
Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />
sistema jurídico brasileiro. A capacidade contributiva é uma metanorma<br />
que passa a estipular a observância, nas relações obrigacionais de<br />
feição tributária, em especial pelo Poder ou função legislativa (órgão que<br />
compõe a estrutura do ente tributante, ou seja, detentor da competência<br />
tributária) da compatibilidade entre a riqueza do contribuinte (signos<br />
presuntivos de riqueza) e os imperativos de igualdade e justiça. Sua<br />
fiel observância implica a instituição de obrigações tributárias que não<br />
sejam demasiado onerosas ou desvinculadas daqueles atos ou fatos<br />
previstos nas matrizes tributárias como suficientes a demonstrar a<br />
possibilidade de o cidadão arcar com o ônus do tributo.<br />
É possível afirmar que a capacidade contributiva possui lindes bem<br />
definidos, pois permite a atribuição de obrigação tributária desde que não<br />
implique privar o cidadão dos recursos essenciais à sobrevivência e à vida<br />
digna (mínimo existencial) e também não o imponha ônus demasiado, a<br />
ponto de caracterizar a expropriação de seu patrimônio (confisco).<br />
A questão que se põe é a seguinte: a extrafiscalidade, visando<br />
ao alcance de interesses alheios ao custeio da máquina estatal,<br />
interesses esses que, a rigor, poderiam vir a contemplar medidas de<br />
relevante valor social expressos na Constituição, poderá descuidar da<br />
observância estrita à capacidade contributiva?<br />
Aparentemente sim, pois o alcance de finalidades estranhas ao<br />
propósito de custear as despesas da máquina estatal autorizaria em certo<br />
ponto que o legislador, desconsiderando a capacidade de o contribuinte<br />
arcar com o ônus tributário em determinado contexto fático, pudesse instituir<br />
obrigações voltadas a incentivar ou desestimular determinadas condutas.<br />
Ocorre que essa liberdade conferida ao legislador não é absoluta,<br />
dado que permitida somente em um aspecto que poderia ser chamado<br />
de “negativo” da tributação, ou seja, no tocante ao trato das isenções e<br />
imunidades. Somente nesses casos a ausência de imposição do ônus<br />
tributário — apesar de configurada a capacidade de o contribuinte<br />
suportá-lo — estaria fundada na desconsideração da capacidade<br />
contributive e, portanto, autorizada a instituir hipóteses de exclusão<br />
do crédito tributário ou a criação de situações imunes à incidência das<br />
normas que imponham essa espécie de obrigação.<br />
66 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />
Há em tais hipóteses situações que caracterizam uma escolha<br />
política, não propriamente relacionada aos signos presuntivos de<br />
riqueza previstos na norma tributária. Como nas isenções políticas<br />
que “configuram verdadeiras exceções ao princípio em exame, tendo<br />
em vista que beneficiam pessoas que têm efetiva capacidade de<br />
contribuir” (COSTA apud DUTRA, 2010, p. 140).<br />
Se por um lado se afigura admissível a exceção ao princípio<br />
da capacidade contributiva em relação à dispensa de o contribuinte<br />
cumprir com a obrigação tributária, não é admissível adotar de igual<br />
modo raciocínio excludente para impor ônus que exceda à manifesta<br />
capacidade do cidadão em suportar a carga que lhe é usualmente<br />
imposta. Ultrapassar esse limite caracterizaria perigosa proximidade à<br />
prática do confisco, explicitamente vedada pela Constituição.<br />
Outro ponto que demanda reflexão é que, conquanto<br />
aparentemente autorizada a adoção de incentivos e benefícios com o<br />
propósito extrafiscal, o arcabouço legislativo vigente impõe aos entes<br />
tributantes que as modificações dessa natureza, caso pretendam ser<br />
implementadas, devem observar uma gama de restrições no aspecto<br />
orçamentário. Nesse sentido, o disposto no art. 14 da Lei Complementar<br />
nº 101, de 4 de maio de 2000 - Lei de Responsabilidade Fiscal 15 .<br />
Bem se vê que as restrições de natureza orçamentária condicionam<br />
de modo bastante significativo o exercício da extrafiscalidade,<br />
considerando que a prioridade, sob o ponto de vista administrativo e<br />
gerencial, será a obtenção e alocação de recursos para o adequado<br />
15 Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar<br />
acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes,<br />
atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições (Vide Medida Provisória nº<br />
2.159, de 2001) (Vide Lei nº 10.276, de 2001)<br />
I - demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de<br />
que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;<br />
II - estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da<br />
elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.<br />
§ 1º A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de<br />
alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que<br />
correspondam a tratamento diferenciado.<br />
§ 2º Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de que trata o caput deste artigo decorrer da condição contida no inciso<br />
II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso.<br />
§ 3º O disposto neste artigo não se aplica:<br />
I - às alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos I, II, IV e V do art. 153 da Constituição, na forma do seu § 1o;<br />
II - ao cancelamento de débito cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 67
Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />
funcionamento da máquina estatal. Obviamente que as condicionantes<br />
previstas na legislação orçamentária impõem maior dificuldade ao<br />
administrador, que terá de contornar problemas pontuais relacionados<br />
à parcela de receita derivada que deixará de arrecadar.<br />
Nesse ponto (condicionantes de natureza orçamentária) talvez<br />
resida um dos mais importantes dilemas da política fiscal brasileira,<br />
decorrente de um paradoxo que a rigor não encontra solução a curto<br />
prazo: a necessidade de adoção da extrafiscalidade como instrumento<br />
para a promoção de condutas dos cidadãos que sejam harmônicas em<br />
relação ao meio ambiente, sem olvidar da manutenção do fluxo de receitas<br />
derivadas para o custeio da máquina estatal e, consequentemente, para<br />
o préstimo de uma gama de serviços públicos cada vez mais necessários<br />
no contexto de um modelo de Estado do “bem-estar”.<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
A intensificação dos debates referentes à sustentabilidade<br />
ocorreu a partir da segunda metade do século XX em razão dos<br />
questionamentos relacionados à possibilidade de continuidade do<br />
modelo de desenvolvimento até então adotado pela maioria dos<br />
Estados-nação do Planeta Terra.<br />
Os temas relacionados à extinção dos recursos naturais e à<br />
adoção de alternativas para a continuidade do crescimento econômico<br />
adquiriram relevância global a ponto de desencadearem a atuação<br />
de organismos supranacionais, a exemplo das Organizações das<br />
Nações Unidas – ONU. No âmbito de conferências e estudos<br />
realizados, foram elaborados vários documentos nos quais se passou<br />
a reconhecer a necessidade da adoção de novos paradigmas no<br />
modelo de desenvolvimento a fim de que esse pudesse vir a se tornar<br />
sustentável, a longo prazo, ou seja, de que a busca pelo propósito do<br />
crescimento econômico e das necessidades do presente não venham<br />
a impossibilitar a persecução daqueles mesmos objetivos no futuro.<br />
Perceptível que na sucessão de debates e estudos surgem<br />
vários modelos de desenvolvimento sustentável, objetos de críticas<br />
ou encômios a depender da concepção adotada pelos interlocutores.<br />
68 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />
Nesse sentido, a proposta de uma “economia verde”, nos moldes como<br />
apresentada no final do século XX, conquanto retrate substancial<br />
melhoria qualitativa em relação às primeiras alternativas apontadas<br />
pela comunidade mundial, é tachada de paliativa e até mesmo com<br />
o propósito de ludibriar, porquanto não ataca, no entender de seus<br />
críticos, as causas principais das crises do desenvolvimento, que<br />
seriam os excessos do modo de produção capitalista (especialmente<br />
o estímulo demasiado ao consumo), e a instrumentalização da<br />
racionalidade científica.<br />
É preciso que se desenvolva conteúdo ético apropriado para<br />
enfrentar as vicissitudes da modernidade, as quais não se resumem<br />
à degradação ambiental e à pobreza, com retorno à pauta da política<br />
educacional o estímulo à solidariedade e à responsabilidade.<br />
No decorrer desse processo de mudança, é perceptível que<br />
as normas positivas, ao lado dos conteúdos éticos que deverão ser<br />
trabalhados, constituem ferramental imprescindível, de natureza<br />
pedagógica, para modificação dos padrões culturais.<br />
Na seara do Direito Tributário — assim como em qualquer ramo<br />
do Direito — também se afigura possível dotar normas com o propósito<br />
de estimular ou coibir condutas de preservação ambiental. Não é<br />
necessário que as categorias normativas destinadas a essa finalidade<br />
decorram exclusivamente de um ramo do Direito, muito embora não<br />
se olvide de sua importância e significado para o desenvolvimento de<br />
categorias operacionais, conceitos e definições que se relacionarão de<br />
forma sistemática com todo o plexo normativo. Resulta clarividente que o<br />
Direito Ambiental trará sempre conteúdo e significado para as normas dos<br />
demais ramos do Direito que pretendam pautar condutas de preservação<br />
ambiental (Direito Penal Ambiental, Direito Tributário Ambiental).<br />
O Direito Tributário é dotado de uma característica peculiar, pois<br />
autoriza em certo grau a ingerência do Estado no patrimônio do cidadão.<br />
Obviamente que pela natureza do poder conferido ao Estado em tal<br />
plexo de obrigações são necessárias várias garantias fundamentais,<br />
previstas na Constituição, de modo a evitar que a imposição do tributo<br />
possa caracterizar medida arbitrária, ocasionando desigualdade no<br />
tratamento de seus súditos e apropriação indevida do patrimônio.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 69
Paulo Valdemar da Silva Balbé - Salete Oro Boff<br />
No Brasil, as bases econômicas dos impostos estão previstas de<br />
forma taxativa na Constituição Federal (arts. 153 a 156), resultando<br />
que poucas espécies tributárias remanescem com relativa liberdade<br />
para criação de novas hipóteses de incidência, a exemplo das taxas,<br />
contribuições de melhoria, contribuições sociais gerais e contribuições<br />
sociais especiais de intervenção no domínio econômico (estas duas<br />
últimas exclusivas da União).<br />
Mesmo não contemplada de modo explícito, mediante previsão<br />
constitucional de uma base econômica específica e estipulação de<br />
uma espécie tributária própria, a tributação voltada para propósitos<br />
ambientais poderá ser utilizada de forma indireta nos tributos com o<br />
auxílio do princípio da extrafiscalidade. Com esse propósito, a norma<br />
tributária poderá conter a previsão de situações para as quais estará<br />
autorizada a majoração da carga tributária (por exemplo, aumento<br />
de alíquota) ou sua substancial redução (v.g. redução de alíquotas,<br />
redução da base de cálculo, isenção).<br />
A instituição de hipóteses de tributação voltadas para o alcance<br />
de finalidades diversas da arrecadação não esbarra no princípio<br />
da capacidade contributiva, desde que respeitados limites mínimos<br />
tendentes a assegurar o resguardo de um padrão de vida digna (mínimo<br />
existencial) do contribuinte e protegê-lo da invasão desmesurada do<br />
Estado em seu patrimônio (vedação ao confisco). Respeitadas essas<br />
balizas, poderá o Fisco explorar hipóteses normativas que possibilitem<br />
atingir o máximo da capacidade contributiva.<br />
Ainda no tocante aos limites da capacidade contributiva devem<br />
ser excepcionadas as hipóteses de dispensa do contribuinte no<br />
cumprimento das obrigações tributárias (por exemplo, reduções de<br />
alíquota, reduções de base de cálculo, isenções, imunidades). Nessas,<br />
obviamente, não há razoabilidade para a aplicação daquele princípio,<br />
posto que reduzem ou suprimem o dever de contribuir em prol de<br />
objetivos elevados como, por exemplo, a preservação ambiental.<br />
Essa possibilidade, contudo, sofre restrições de ordem orçamentária,<br />
a exemplo da Lei Complementar nº 101/2000, diploma normativo que exige<br />
do legislador a previsão de mecanismos de compensação — destinados<br />
a evitar perdas de receita — para situações nas quais se pretenda<br />
70 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />
a redução da carta tributária. Nada obstante as limitações do sistema<br />
tributário brasileiro, resultantes em grande parte ao caráter analítico da<br />
Constituição Federal, a instituição de normas de índole tributária voltadas<br />
à proteção do meio ambiente afigura-se plenamente possível, de forma<br />
indireta nos impostos e no próprio desenho da hipótese de incidência<br />
nas espécies tributária taxa, contribuições sociais gerais e especiais de<br />
intervenção no domínio econômico.<br />
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Recebido: 6-6-2014<br />
Aprovado: 20-8-2014<br />
72 Ano 4 • n. 8 • jan/jun. • 2014
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />
DI<strong>RE</strong>ITO<br />
A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO<br />
DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO<br />
STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />
Review criminal as a condition of possibility for rescue<br />
dignitatis status the condemned<br />
Resumo<br />
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth 16<br />
Tamyse de Christo Marques 17<br />
O presente artigo faz uma análise acerca da dignidade da pessoa humana e a sua ligação com o instituto<br />
da revisão criminal. Versa sobre as questões atinentes à dignidade da pessoa humana sob a óptica<br />
da Constituição Federal de 1988, bem como sobre a sua presença norteadora nos códigos Penal e de<br />
Processo Penal brasileiros. Apresenta o instituto da revisão criminal, suas peculiaridades e discussões<br />
doutrinárias. Discute ainda a possibilidade de o instituto da revisão criminal ser capaz de resgatar o “status<br />
dignitatis” do condenado vítima de erro judiciário, sob a forma de revisão da sentença condenatória e/ou<br />
sob a forma de indenização, trazendo como lição o famoso caso brasileiro dos irmãos Naves. A orientação<br />
do trabalho se dá no Código de Processo Penal analisado sob a luz da Constituição Federal de 1988, tendo<br />
por âmago o princípio da dignidade da pessoa humana.<br />
Palavras-chave: Princípio da dignidade da pessoa humana. Revisão criminal. Status dignitatis.<br />
Abstract<br />
The present article meticulously analyzes the principle of human dignity and its connection with the institute<br />
of criminal revision. It covers the issues on human dignity from the standpoint of Federal Constitution of<br />
1988, as well as the guiding position of this principle in Brazilian Criminal and Criminal Process Codes. It<br />
also pretends the institute of criminal revision, bringing its particular features and doctrinaire discussions.<br />
Furthermore, it discusses the ability of criminal revision in giving back the status dignitatis of a victim of<br />
miscarriage of justice, by granting him the review of judgement or the indemnification. In this regard, the<br />
leading case of Nave’s brothers is demonstrated, as a lesson. The study of this thesis lays in the Criminal<br />
Process Code, analysed from the perspective of the Federal Constitution of 1988, focusing on the principle<br />
of human dignity.<br />
Keywords: Criminal process law. Principle of human dignity. Criminal revision. Convict. Status dignitatis.<br />
Sumário:<br />
1. Considerações iniciais; 2. A dignidade da pessoa humana como fundante do processo penal no estado<br />
democrático de direito brasileiro; 3. A revisão criminal como condição para o resgate do status dignitatis<br />
do condenado; 4. Considerações finais; 5. Referências.<br />
16 Doutor em Direito (UNISINOS). Professor dos Cursos de Graduação em Direito da UNIJUÍ e UNISINOS e do Mestrado em Direitos<br />
Humanos da UNIJUÍ. E-mail: madwermuth@gmail.com<br />
17 Bacharel em Direito pela UNIJUÍ. E-mail: myse.marques@gmail.com<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 73-100
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />
CONSIDERAÇÕES INICIAIS<br />
A revisão criminal é um instituto presente no ordenamento jurídico<br />
brasileiro, que tem por finalidade revisar a sentença penal condenatória<br />
transitada em julgado, desde que fundamentada em um dos incisos<br />
do artigo 621 do Código de Processo Penal. Contudo, por vezes, o<br />
uso correto do instituto é ignorado, o que decorre da compreensão da<br />
revisão criminal como uma espécie de “segunda” apelação.<br />
Ocorre que a revisão criminal tem uma ligação bem mais estreita<br />
com a Constituição Federal e seu princípio norteador, a dignidade da<br />
pessoa humana, do que propriamente com a técnica penal. Neste<br />
sentido, o objetivo geral delineado para o desenvolvimento da referida<br />
ligação entre o princípio e o instituto, é buscar elucidar a possibilidade<br />
de a revisão criminal atuar na recuperação do status dignitatis do<br />
condenado vítima de erro judiciário, em homenagem ao princípio da<br />
dignidade da pessoa humana, sustentáculo do Estado Democrático<br />
de Direito Brasileiro.<br />
Assim, buscar-se-á caracterizar o princípio constitucional da<br />
dignidade da pessoa humana, bem como analisar o instituto da revisão<br />
criminal, explicando a conexão existente entre eles. Em última análise,<br />
objetiva-se investigar o princípio da dignidade da pessoa humana e a<br />
revisão criminal sob a luz de um sistema penal garantista, justamente<br />
para viabilizar a compreensão da utilização da revisão criminal como<br />
condição de possibilidade para o resgate do status dignitatis do<br />
condenado.<br />
É sabido que a lei penal brasileira possui fontes e é mantida<br />
sob o prisma de uma tendência garantista como proteção ao réu em<br />
processo criminal. É notório que condenar alguém, mesmo em um<br />
sistema com tendência garantista, não é inabitual. Inusitado, todavia,<br />
é a condenação de pessoa inocente fundada em erro judiciário. Nestes<br />
casos, considerando a forte carga estigmatizante que o contato com<br />
o sistema punitivo – ou mesmo simplesmente com o sistema penal –<br />
provoca, há possibilidade de a revisão criminal auxiliar na recuperação<br />
74 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />
da dignidade do condenado por erro judiciário? É este questionamento<br />
que revela a problemática envolvida na pesquisa, cujo objetivo<br />
principal é averiguar em que medida a revisão criminal pode ser<br />
compreendida, à luz de um processo penal garantista, como condição<br />
de possibilidade para o resgate do status dignitatis do condenado no<br />
Estado Democrático de Direito brasileiro.<br />
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO<br />
PRINCÍPIO FUNDANTE DO PROCESSO PENAL NO<br />
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DI<strong>RE</strong>ITO BRASILEIRO<br />
O princípio da dignidade humana é essencial para uma adequada<br />
hermenêutica da Constituição Federal, promulgada em 1988. Porém,<br />
nem sempre a situação foi essa. A história mostra que antes de ser<br />
assegurada como princípio constitucional, a dignidade humana passou<br />
por diferentes contextos e significados.<br />
Na antiguidade clássica, a dignidade era dimensionada em<br />
razão da “posição social ocupada pelo indivíduo e o seu grau de<br />
reconhecimento pelos demais membros da comunidade” (SARLET,<br />
2012, p. 34). Mais tarde, para os adeptos do estoicismo, a dignidade<br />
da pessoa humana representava uma peculiaridade do próprio ser<br />
humano, fazendo parte de todos e de cada um. Assim, a dignidade<br />
antes mensurada pela posição social passou a ter um cunho moral,<br />
baseada na igualdade entre os indivíduos e a liberdade (SARLET,<br />
2012, p. 35).<br />
Já na Idade Média, Tomás de Aquino possuía uma visão de<br />
dignidade claramente ligada aos preceitos católicos vigentes na<br />
época. Como assevera Sarlet (2012, p.37),<br />
a dignidade encontra seu fundamento na circunstância de que<br />
o ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus, mas<br />
também radica na capacidade de autodeterminação inerente à<br />
natureza humana, de tal sorte que, por força de sua dignidade,<br />
o ser humano, sendo livre por natureza, existe em função da sua<br />
própria vontade.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 75
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />
Entretanto, foi somente com Immanuel Kant (1724-1804) que<br />
o conceito do princípio se despiu do sagrado para tomar sentido<br />
verdadeiramente racional. De acordo com Sarlet (2012, p. 40), Kant<br />
construiu seu conceito utilizando-se da natureza racional do homem,<br />
afirmando que “a autonomia da vontade, [...], é um atributo encontrado<br />
somente nos seres racionais, constituindo-se no fundamento da<br />
dignidade da natureza humana”.<br />
Segundo o entendimento de Kant (s.d., p.28, grifo do autor),<br />
o Homem, e em geral todo ser racional, existe como um fim em si, não<br />
apenas como meio, do qual esta ou aquela vontade possa dispor a seu<br />
talento; [...]. Os seres, cuja existência não depende precisamente de<br />
nossa vontade, mas da natureza, quando são seres desprovidos de<br />
razão, só possuem valor relativo, valor de meios e por isso se chamam<br />
de coisas. Ao invés, os seres racionais são chamados pessoas, porque<br />
a natureza deles os designa já como fins em si mesmos, isto é, como<br />
alguma coisa que não pode ser usada unicamente como meio, alguma<br />
coisa que, consequentemente, põe um limite, em certo sentido, a todo<br />
livre arbítrio (e que é objeto de respeito).<br />
Assim, verifica-se que a dignidade da pessoa humana não se<br />
trata na verdade de um “direito”, mas sim de uma qualidade inerente<br />
ao homem. Contudo, apesar de ter trilhado uma longa jornada até<br />
chegar ao título de princípio, tem-se na doutrina e na jurisprudência<br />
certa problemática envolvendo a dignidade: percebe-se ser mais fácil<br />
dizer o que não é do que dizer com clareza o que é a dignidade da<br />
pessoa humana. Portanto, na tentativa de elucidar tal situação, é<br />
que Sarlet (2012, p. 58) afirma que “a dignidade da pessoa humana<br />
é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, [...], da<br />
comunidade em geral, de todos e de cada um”.<br />
Não existe ainda um conceito exato sobre a dignidade da pessoa<br />
humana. O que existem são construções que deliberam sobre o seu<br />
significado e repercussão no cotidiano das pessoas por ser um princípio<br />
em constante movimento que, se conceituado de forma simplória, limitaria<br />
o seu leque de abrangência jurídica, moral e social. Assim, Sarlet (2012,<br />
p.73, grifo do autor) oferece um conceito multidimensional, porém ainda<br />
em aberto, em função da razão acima citada:<br />
76 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e<br />
distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor<br />
do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da<br />
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos<br />
e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra<br />
todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como<br />
venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para<br />
uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação<br />
ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da<br />
vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o<br />
devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.<br />
Nas palavras de Salo de Carvalho (2001, p. 157), o princípio<br />
da dignidade da pessoa humana é um “valor fundamental expresso<br />
nas cartas políticas, sendo diluído nas normas concretas, porque, ao<br />
conhecer a dignidade do homem, o Estado desconheceria a existência<br />
e universalidade dos demais direitos humanos”.<br />
Acerca do conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana,<br />
Vicente de Paulo Barreto (2013, p. 74) reflete que pode haver uma<br />
dupla divisão deste princípio. A primeira faz menção a não tratar a<br />
pessoa humana como simples meio, ou seja, nas palavras já citadas<br />
por Kant, o homem é um fim de si mesmo, não devendo constituir um<br />
meio para a vontade de outro que não a si próprio.<br />
A segunda divisão refere que o princípio determina que o ser<br />
humano não deve ser tratado como “espírito puro”, ou seja, o homem<br />
é revestido pela carne, e possui um corpo com necessidades básicas<br />
que para a sua sobrevivência devem ser supridas. Desta forma, o<br />
princípio em questão protege o ser humano na sua integridade física<br />
e também moral.<br />
O princípio em análise encontrou guarida no ordenamento jurídico<br />
brasileiro pela primeira vez com a promulgação da Constituição Federal<br />
de 1988. Tal constituição foi amplamente baseada na Constituição<br />
Alemã de 1959, já que “foi, claramente, a experiência nazista que<br />
gerou a consciência de que se devia preservar, a qualquer custo, a<br />
dignidade da pessoa humana” (NUNES, 2010, p. 62).<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 77
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />
Pelo mundo afora, a dignidade da pessoa humana foi tomando<br />
lugar nas constituições. A Constituição Federal brasileira, caracterizada<br />
por ser uma Constituição Cidadã – visto que assegurava inúmeros<br />
direitos que estavam oprimidos por mais de vinte anos (PINTO<br />
FILHO, 2010, p. 88) – além de baseada na Constituição Alemã do<br />
pós-guerra, foi amplamente inspirada pelas disposições contidas no<br />
texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que aduz em<br />
seu preâmbulo que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos<br />
os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis<br />
é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (NUNES,<br />
2010, p.95).<br />
Portanto, quando abarcado pela Constituição Federal brasileira, o<br />
princípio tinha por escopo garantir a todos os brasileiros a liberdade e<br />
a consciência de existência individual e coletiva pós-ditadura. Talvez<br />
por isso a disposição legal acerca do princípio da dignidade humana<br />
encontra-se prevista já no art. 1º do Título I da Constituição Federal<br />
de 1988, que trata dos princípios fundamentais, ou seja, dos valores<br />
supremos, fundantes da República brasileira.<br />
Na condição de fundamento da República, a dignidade da pessoa<br />
humana é um alicerce da ordem jurídica do país, que juntamente<br />
com os outros princípios fundantes, “postos no ponto mais alto da<br />
escala normativa, [...], se tornam, doravante, as normas supremas<br />
do ordenamento” (BONAVIDES, 2010, p. 289). Assim, os princípios<br />
constitucionalmente elencados são a base normativa de todas as<br />
demais normas, sendo a fundamentação e o guia destas.<br />
Na perspectiva de que o princípio da dignidade humana é o<br />
medular da Constituição Cidadã de 1988 e fonte de criação de todos<br />
os outros princípios e normas, é que Barreto (2013, p. 67) propõe que<br />
ele deve ser utilizado subsidiariamente. Relata que só se deve fazer<br />
uso do princípio caso nenhum dos outros – princípios ou normas –<br />
possa ser aplicado na resolução do caso concreto. Alega que caso o<br />
princípio seja usado em demasia para resolução de toda e qualquer<br />
lide processual, o princípio acabará banalizado, perdendo, assim, toda<br />
a efetividade e credibilidade conquistada até então.<br />
78 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />
Assim, na ordem sóciojurídica, toda a situação concreta que<br />
demande lide processual, deverá ser resolvida sob a luz do princípio<br />
da dignidade da pessoa humana, porém, isso se dará por meio da<br />
interpretação anterior dos princípios que lhe são segmentários, e<br />
somente depois, caso infrutífera a resolução, é que se dará à lide<br />
resposta integralmente amparada pelo princípio da dignidade humana.<br />
Desta forma, o princípio será efetivo, mas não desmoralizado.<br />
Para Ingo W. Sarlet (2012, p. 132), analisando o princípio da<br />
dignidade humana como tarefa do Estado e demais órgãos estatais,<br />
impõe-se a estes o dever de proteger e respeitar, além de suscitar<br />
as condições a fim de remover qualquer óbice que venha a impedir<br />
a dignidade na vida das pessoas. Ressalta ainda que não é somente<br />
nas relações entre particular e Estado que se deve respeitar e<br />
proteger o princípio, mas também e principalmente nas relações entre<br />
particulares.<br />
Nestas referidas relações, deve-se fazer a seguinte análise: os<br />
seres humanos são todos iguais em dignidade, visto essa ser uma<br />
qualidade inerente e que garante a posição de todo ser humano<br />
no mesmo gênero, qual seja, o humano. Porém, até que ponto a<br />
dignidade da pessoa humana é absoluta e em que termos pode haver<br />
uma relativização?<br />
Já visto que a dignidade se trata de característica inerente a<br />
todo ser humano e, nas palavras de Sarlet (2012, p. 54), “todos –<br />
mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade, no sentido<br />
de serem reconhecidos como pessoas”, é que ele deve ser efetivo e<br />
abrangente a toda a população. Porém, é notório que o princípio da<br />
dignidade humana, por mais que seja o corolário de todos os princípios<br />
constitucionais e infraconstitucionais, sofre violações arrebatadoras. E<br />
tal adversidade se torna perceptível quando se analisa, por exemplo,<br />
o sistema penal pátrio.<br />
No cumprimento do jus puniendi, o sistema penal brasileiro é<br />
absolutamente falho, revelando-se uma total e completa relativização<br />
da dignidade da pessoa humana (ÁLVA<strong>RE</strong>S, 20<strong>08</strong>, p. 31). Em suas<br />
explicações, Sarlet (2012, p. 151) aduz que a prisão de alguém<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 79
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />
condenado por homicídio qualificado em um estabelecimento com<br />
inconveniente de superlotação, por exemplo, constitui uma violação<br />
efetiva de sua dignidade, visto que está se respondendo a uma ofensa<br />
ao bem jurídico mais importante, a vida.<br />
Expõe ainda que há, neste caso, a utilização do princípio da<br />
dignidade da pessoa humana como “tarefa, no sentido específico de<br />
que ao Estado [...] incumbe o dever de proteger (inclusive mediante<br />
condutas positivas) os direitos fundamentais e a dignidade dos<br />
particulares”. Por fim, esclarece Sarlet (2012, p. 151) que<br />
a dignidade, ainda que não se a trate como espelho no qual<br />
todos veem o que desejam, inevitavelmente já está sujeita a uma<br />
relativização [...] no sentido de que alguém (não importa aqui se<br />
juiz, legislador, administrador ou particular) sempre irá decidir qual<br />
o conteúdo da dignidade e se houve, ou não, uma violação no<br />
caso concreto.<br />
Nesse sentido, convém salientar que o Processo Penal brasileiro<br />
é pautado e exercido em consonância com as normas constitucionais<br />
positivadas. Conforme José J. G. Canotilho (1941, p. 377), se não<br />
houvesse a positivação das normas, os direitos dos homens seriam<br />
apenas “esperanças, aspirações, ideias, impulsos, ou, até, por vezes,<br />
mera retórica política, mas não direitos protegidos sob a forma de<br />
normas de direito constitucional”.<br />
Essas normas constitucionais conferem ao acusado, polo<br />
passivo em um processo penal, direitos e garantias. Logo, sem a sua<br />
observância, pode haver inclusive a anulação do processo. Essas<br />
garantias constitucionais deram origem à máxima nulla poena sine<br />
judicio, confirmando ao acusado, que caso ele tenha que cumprir uma<br />
pena, esta será justa e conforme os ditames legais. Para Canotilho<br />
(1941, p. 405), estas garantias correspondem a “garantias ou meios<br />
processuais adequados para a defesa dos direitos”.<br />
Sendo assim, tem-se no Brasil uma Constituição que assegura a<br />
seus cidadãos garantias processuais em caso de processamento na<br />
esfera criminal. Isto porque a Constituição brasileira é democrática, e<br />
assim o processo penal, que dela deriva, será por óbvio democrático<br />
80 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />
e “visto como um instrumento a serviço da máxima eficácia do sistema<br />
de garantias constitucionais do indivíduo” (LOPES JR., 2012, p. 70).<br />
As garantias processuais se fazem presentes no processo penal<br />
para afirmar que sua legitimação “enquanto instrumento a serviço do<br />
projeto constitucional” se dê de forma efetiva, tendo “por conteúdo a<br />
máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais da Constituição,<br />
pautando-se pelo valor dignidade da pessoa humana submetida à<br />
violência do ritual judiciário” (LOPES JR., 2012, p. 90).<br />
Como já referido anteriormente, não há possibilidade de se ter no<br />
Brasil uma condenação sem que haja processo. Assim, os princípios do<br />
contraditório e da ampla defesa – previstos no inciso LV, do art. 5º da<br />
Constituição Federal – se encaixam neste cenário como condição de que<br />
o acusado que responde a um processo legal faça valer suas garantias<br />
constitucionais em nome da sua dignidade como ser humano. Assim, o<br />
processo penal representa antes de qualquer outro tema, um instrumento<br />
de defesa do indivíduo contra o arbítrio punitivo estatal.<br />
Quanto ao princípio da presunção de inocência – contido no inciso<br />
LVII da Constituição Federal e, também, nos artigos XI, nº 1 e 8, da<br />
Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Pacto de São José da<br />
Costa Rica, respectivamente –, Silvio Carlos Álvares (20<strong>08</strong>, p. 46) ensina<br />
que este princípio tem consequências sobre a busca da verdade real 18<br />
relacionada à culpabilidade do réu, bem como em relação a todos os<br />
demais atos do processo, que devem respeitar a honra, a integridade, a<br />
moral, o contraditório e a ampla defesa do acusado.<br />
A dignidade da pessoa humana tem uma ligação vultosa com a<br />
vedação à prática da tortura (com previsão nos incisos XLVII, “e”; XLIX<br />
18 Em relação à verdade real, diz Avena (2011, p. 21, grifo do autor) que devem se adotar todas as providências para que se descubra<br />
como os fatos realmente ocorreram e, desta forma, o jus puniendi seja desempenhado efetivamente quanto àquele que praticou<br />
ou concorreu para a infração penal. Afirma ainda que o juiz deve motivar o processo, objetivando “aproximar-se ao máximo da<br />
verdade plena, apurando os fatos até onde for possível elucidá-los, para que, ao final, possa proferir sentença que se sustente em<br />
elementos concretos, e não em ficções ou presunções”. Oliveira (2012, p. 323, grifo do autor), aduz que a busca pela verdade real<br />
legitimou, em tempos não tão remotos, “desvios das autoridades públicas, além de justificar a ampla iniciativa probatória reservada<br />
ao juiz [...]. A expressão, [...], autorizava uma atuação judicial supletiva e substitutiva da atuação ministerial (ou acusação)”.<br />
Alega, ainda, que esta situação se verificava antes da Constituição Federal de 1988, já que, depois da entrada em vigor deste<br />
texto constitucional com suas garantias, já não podia mais se justificar tais atitudes. Por fim, ressalva Oliveira (2012, p. 324), que é<br />
absolutamente inadequado discorrer sobre o alcance da verdade real, por dois motivos, o primeiro frisa que essa busca versa sobre<br />
um fato que já ocorreu, ou seja, trata-se de um fato histórico e, ainda, por demonstrar que se assemelha muito – e tal semelhança<br />
não é recomendável – com o processo penal medieval, “quando a excessiva preocupação com a sua realização (da verdade real)<br />
legitimou inúmeras técnicas de obtenção da confissão do acusado e de intimação da defesa”.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 81
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />
do art. 5º da Constituição Federal, também, no art. 5º, nº 2 do Pacto<br />
de São José da Costa Rica e, no art. 5º da Convenção Interamericana<br />
para prevenir e punir a tortura). Para Sarlet (2012, p. 156),<br />
o exemplo da vedação da tortura [...] bem ilustra a já referida<br />
função da dignidade da pessoa humana como cláusula (ética e<br />
jurídica) de barreira, que fundamenta uma espécie de ‘sinal de<br />
pare, inclusive no sentido de operar como ‘tabu’ [...], a estabelecer<br />
um ‘território proibido’, onde o Estado não pode intervir e onde,<br />
além disso, lhe incumbe assegurar a proteção da pessoa (e sua<br />
dignidade) contra terceiros.<br />
Por fim, o direito constitucional de permanecer em silêncio<br />
(previsto no art. 5º, inciso LXIII da Constituição Federal) corresponde<br />
ao princípio de que ninguém pode ser obrigado a fazer prova contra si<br />
mesmo, já que isso ajudaria o Estado a relativizar de forma explícita<br />
a dignidade humana e, de acordo com Eugênio Pacelli de Oliveira<br />
(2012, p. 41, grifo do autor),<br />
o direito ao silêncio, ou a garantia contra a autoincriminação, não<br />
só permite que o acusado ou aprisionado permaneça em silêncio<br />
durante toda a investigação e mesmo em juízo, como impede que<br />
ele seja compelido – compulsoriamente, portanto – a produzir ou<br />
a contribuir com a formação da prova contrária ao seu interesse.<br />
Diante das considerações acerca das garantias processuais, tem-<br />
-se que um processo penal que respeite as garantias individuais só<br />
reforça a aplicação íntegra do princípio da dignidade humana, antes,<br />
durante e após a persecução penal (ÁLVA<strong>RE</strong>S, 20<strong>08</strong>, p. 47). Contudo,<br />
percebe-se que a sociedade brasileira jamais observou, tanto no<br />
passado quanto no presente, todas as regras do jogo democrático<br />
que se estabeleceu no país a partir da promulgação da Constituição<br />
Federal em 1988. Esta se traduziu em um pacto ofertado a um novo<br />
tipo de sociedade que nascia após o período ditatorial, fundada no<br />
arquétipo de um Estado Democrático de Direito (COPETTI, 2000, p.<br />
82).<br />
Nos moldes de um Estado Democrático de Direito, a Constituição<br />
Federal deve ser considerada como a instituição do Estado e da<br />
comunidade. Diante dessa afirmativa, é tida como necessária a<br />
82 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />
proteção constitucional contra as ações arbitrárias e ilegítimas do<br />
Estado em frente ao indivíduo. André Copetti (2000, p. 83) esclarece<br />
que no projeto de democracia social vigente “deve ser observada uma<br />
expansão dos direitos dos cidadãos e, correlativamente, dos deveres<br />
do Estado, o que em outros termos importa uma maximização das<br />
liberdades e expectativas e uma minimização dos poderes”.<br />
Para Copetti (2000, p. 83), surge uma proposta de Estado liberal<br />
mínimo e de um Estado social máximo acarretando “[...] um Estado e<br />
um Direito mínimo na esfera penal e, por outro lado, um Estado e um<br />
Direito máximo na esfera social”. Acredita o autor ser essa uma chance<br />
de recuperar grande parte das aspirações de um Estado Democrático<br />
de Direito. Mas o que vem a ser um direito penal mínimo?<br />
Para dirimir a dúvida suscitada, traz-se a seguinte afirmação:<br />
direito penal mínimo é um tipo de ordenamento jurídico, no qual o poder<br />
penal do Estado esteja minuciosamente vinculado e limitado à lei e<br />
subjugado a um plano processual (FERRAJOLI, 2002, p. 83). O direito<br />
penal mínimo configura, então, um protótipo de racionalidade e de<br />
certeza. Para Luigi Ferrajoli (2002, p. 83), esta disposição refere que,<br />
quando indeterminados ou incertos os requisitos da responsabilidade<br />
penal, esta deverá ser excluída.<br />
Ferrajoli (2002, p.84) salienta que uma norma que se refere a<br />
este modelo de direito penal é o critério do favor rei, pois ele exige<br />
que sejam feitas valorações acerca da exclusão ou da atenuação da<br />
responsabilização, quando existir dúvida quanto aos requisitos da<br />
pena.<br />
Propõe o direito penal mínimo que “nenhum inocente seja punido<br />
à custa da incerteza de que também algum culpado possa ficar<br />
impune”. Esta certeza se traduz em razão do princípio in dubio pro<br />
reo, ou seja, há a certeza de não culpabilidade do acusado, até que se<br />
prove o contrário. Exige-se a prova da culpabilidade, “não se tolerando<br />
a condenação, mas exigindo-se a absolvição em caso de incerteza”<br />
(FERRAJOLI, 2002, p. 85).<br />
Corroborando com a análise realizada, Copetti (2000, p. 87)<br />
afirma que,<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 83
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />
sendo o direito penal o mais violento instrumento normativo de<br />
regulação social, particularmente por atingir, pela aplicação das<br />
penas privativas de liberdade, o direito de ir e vir dos cidadãos,<br />
deve ser ele minimamente utilizado. Numa perspectiva político-<br />
-jurídica deve-se dar preferência a todos os modos extrapenais<br />
de solução de conflitos. A repressão penal deve ser o último<br />
instrumento utilizado, quando já não houver mais alternativas<br />
disponíveis [...].<br />
Em relação ao contexto esboçado acima, Maiquel Ângelo Dezordi<br />
Wermuth (2011, p. 143, grifo do autor) assegura que, em razão de<br />
uma avalanche legislativa em matéria penal, que visa remediar a falta<br />
de atuação do Estado, o direito penal que deveria ser usado de forma<br />
subsidiária, acaba por se tornar a prima ratio de um sistema falho e<br />
sem qualquer controle. O direito penal, em suma, torna-se<br />
repressivo – o que se revela a partir do aumento da população<br />
carcerária, bem como da elevação qualitativa e quantitativa dos<br />
níveis da pena privativa de liberdade – e simbólico – o que se<br />
revela a partir da proliferação das já referidas ‘leis manifesto’,<br />
manipuladas pela classe política como resposta às acusações<br />
feitas pela mídia de ‘afrouxamento’ do sistema punitivo na sua<br />
tarefa de ‘combate ao crime’.<br />
Esta simbologia do direito penal se dá em razão de que o<br />
legislador busca simbolicamente atender às reinvindicações cidadãs<br />
de segurança pública e eficiência estatal no combate à criminalidade<br />
com leis que tem por escopo punir mais e mais severamente, sem,<br />
contudo, observar as garantias e princípios penais e processuais.<br />
Nas palavras de Laura Frade (20<strong>08</strong>, p. 58),<br />
como ferramenta, a lei não é boa, nem ruim. Depende do uso que<br />
lhe é atribuído. Mas um fato é indiscutível: é ela quem estabelece<br />
o limite, que traça o marco entre o legal e o ilegal, o que pode e o<br />
que não pode. Ultrapassada a margem, ocorre o desvio, torna o<br />
indivíduo criminoso.<br />
Buscando sanar o frenesi popular quanto à segurança jurídica, os<br />
legisladores brasileiros fornecem sumariamente mais e mais normas,<br />
com o único intento de ludibriar o povo no sentido de que trabalha<br />
84 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />
para garantir-lhes mais segurança. Ocorre que, ao criar essas normas<br />
simbólicas, o legislador brasileiro não aprecia os fundamentos de um<br />
Estado Democrático de Direito (WERMUTH, 2011, p. 144).<br />
Esta situação impõe àqueles que aumentam a massa carcerária,<br />
já existente no país, condições de sobrevivência sub-humanas,<br />
condições higiênicas insalubres, casos de abuso por parte daqueles<br />
que deveriam salvaguardar a integridade física e mental dos detentos,<br />
bem como abusos dos detentos entre si (ÁLVA<strong>RE</strong>S, 20<strong>08</strong>, p. 32).<br />
Portanto, de nada adianta o legislador buscar frear a criminalidade<br />
criando normas penais mais severas para tentar contentar um lado da<br />
massa social, enquanto impõe ao outro, no caso a massa carcerária, o<br />
cumprimento de penas em um formato e locais desumanos.<br />
Assim, no intuito de diminuir o número de vítimas das atrocidades sociais<br />
e penais, que surgiu no ordenamento pátrio um instituto que busca amainar<br />
as consequências do processo penal impostas aos apenados. Trata-se da<br />
revisão criminal, instituto com o qual se ocupa o tópico a seguir.<br />
A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE<br />
POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS<br />
DIGNITATIS DO CONDENADO<br />
Como esclarece Hidejalma Muccio (2009, p.991), “nem sempre,<br />
[...], o selo do trânsito em julgado confere à decisão a certeza de sua<br />
correção, a qualidade de verdadeira”. Assim como existem recursos,<br />
em função de o homem não aceitar decisões injustas, a revisão<br />
criminal assume a função de possibilidade de retificação de sentença<br />
condenatória após o trânsito em julgado, pois nada poderia justificar o<br />
cumprimento de pena por alguém que não deve cumpri-la.<br />
Além de retificar a sentença condenatória, a revisão criminal tem<br />
o intuito de conceder ao cidadão o resgate do seu status dignitatis,<br />
seja modificando a sentença condenatória para absolutória ou, pelo<br />
menos, desclassificando a conduta, ou até mesmo atribuindo ao<br />
Estado o dever de indenizar o cidadão como forma de amenizar<br />
os danos sofridos em razão do processo criminal e consequente<br />
condenação em virtude de erro.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 85
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />
Como afirma Paulo Rangel (2012, p. 1060), em todo o meio social<br />
ocorrem erros e, com o Poder Judiciário, não seria diferente, já que<br />
estes equívocos configuram uma realidade em nossa sociedade e,<br />
em sendo este erro identificado e o judiciário devidamente provocado,<br />
aquele deve ser remediado. Aury Lopes Jr. (2012, p. 13<strong>08</strong>), ao tratar<br />
sobre o assunto, faz a seguinte afirmação:<br />
a revisão criminal situa-se numa linha de tensão entre a<br />
“segurança jurídica” instituída pela imutabilidade da coisa julgada<br />
e a necessidade de desconstituí-la em nome do valor justiça. Se<br />
de um lado estão os fundamentos jurídicos, políticos e sociais da<br />
coisa julgada, de outro está a necessidade de relativização deste<br />
mito em nome das exigências da liberdade individual.<br />
A revisão criminal está contemplada pelo ordenamento jurídico<br />
pátrio nos artigos 621 a 631, do Código de Processo Penal.<br />
Erroneamente, está alocada na lei como tendo natureza recursal.<br />
Contudo, sua natureza jurídica varia no entender de cada doutrinador.<br />
Ada Pelegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho e Antônio<br />
Scarance Fernandes (2009, p.239), por exemplo, aduzem ser a revisão<br />
criminal uma “ação autônoma, impugnativa da sentença passada em<br />
julgado, de competência originária dos tribunais”.<br />
O entendimento acima narrado é compartilhado por Rangel (2012,<br />
p. 1061) e por Lopes Jr. (2012, p. 1307), sendo a majoritária entre<br />
os doutrinadores e a jurisprudência. Contudo, não é entendimento<br />
isento de controvérsias, já que, para Hidejalma Muccio (2009, p. 996)<br />
e Guilherme de Souza Nucci (2012, p. 460), trata-se de uma ação<br />
penal de natureza constitutiva, enquanto que, para Norberto Cláudio<br />
Pâncaro Avena (2011, p. 1249), a revisão criminal configura uma ação<br />
penal de conhecimento de caráter desconstitutivo.<br />
A doutrina pátria é pacífica ao afirmar que o pressuposto para que se<br />
admita uma revisão criminal é possuir uma sentença penal condenatória<br />
transitada em julgado. Nas palavras de Muccio (2009, p. 997),<br />
transitada em julgado a sentença condenatória, a providência fica<br />
admitida, em tese. Nesse caso, pouco importa saber a natureza<br />
da pena aplicada (pecuniária ou privativa de liberdade) e sua<br />
quantidade, bem como se foi ou não iniciada ou já cumprida, e<br />
também se é vivo ou morto o sentenciado.<br />
86 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />
Nesse sentido, e em concordância 19 com o disposto no caput do<br />
artigo 622, do Código de Processo Penal, que dispõe que “a revisão<br />
poderá ser requerida a qualquer tempo, antes da extinção da pena ou<br />
após”, argumenta-se acerca do prazo para se ingressar com a revisão<br />
criminal.<br />
Francis Rafael Beck (2009, p. 334), afirma que o pleito da revisão<br />
criminal não obedece a nenhum decurso de prazo prescricional ou<br />
decadencial, sendo cabida após o cumprimento da pena, e inclusive,<br />
após a morte do condenado. Avena (2011, p. 1256), explica que<br />
essa maleabilidade temporal do prazo para intentar uma revisão<br />
criminal fundamenta-se na “circunstância de que o seu objetivo<br />
é, primordialmente, evitar a consolidação de uma injustiça com a<br />
subsistência de decisão condenatória injusta”.<br />
Quanto às possibilidades de cabimento, elas estão legalmente<br />
previstas nos incisos I, II e III, do art. 621, do Código de Processo<br />
Penal. A primeira hipótese, prevista no inciso I do referido artigo, prevê<br />
a possibilidade de revisão criminal quando a sentença condenatória<br />
for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos. A<br />
segunda hipótese, referida no artigo citado, se dá quando a sentença<br />
condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos<br />
comprovadamente falsos. Por fim, a terceira hipótese de cabimento de<br />
revisão criminal, se confirma quando, após a sentença, se descobrirem<br />
novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que<br />
determine ou autorize diminuição especial da pena.<br />
Avena (2011, p. 1251), ao abordar as hipóteses de cabimento<br />
de revisão criminal, aduz que elas são taxativas, ou seja, não há<br />
19 Apesar de indicar como requisito para a revisão criminal a existência de uma sentença condenatória transitada em julgado,<br />
muitos doutrinadores aduzem ser possível a utilização da revisão criminal em caso de sentenças absolutórias impróprias. Tais<br />
sentenças impõem ao condenado não o cumprimento de pena no sentido literal da palavra, o indivíduo é internado em um hospital<br />
penitenciário, até que se recupere. Beck (2009, p. 342), afirma que a sentença é suscetível de execução forçada, representando,<br />
portanto, uma carga condenatória. Lopes Jr. (2012, p. 1309) aduz que, geralmente, a situação vivenciada por quem cumpre medida<br />
de segurança é até mais grave do que aquele que cumpre pena privativa de liberdade. Assim, é pacífico o entendimento de que a<br />
revisão criminal tanto pode ser originária de uma sentença condenatória, quanto de uma sentença absolutória imprópria, buscando<br />
sempre, a devolução do “status dignitatis” do condenado. Também se discute a possibilidade de revisão criminal em se tratando<br />
de sentença homologatória de transação penal. Ansanelli Junior (2007) aduz que a sentença homologatória de transação penal faz<br />
coisa julgada material, conferindo a ela condição de sentença condenatória, já que homologa um acordo entre as partes e outorga<br />
a uma delas a satisfação de uma obrigação. Para o autor, caso seja vedada a possibilidade de intentar uma revisão criminal nesses<br />
casos, “estar-se-ia violando o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal) que fundamenta<br />
a própria revisão”, sendo assim, perfeitamente cabível a revisão criminal de sentença homologatória de transação penal.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 87
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />
possibilidade de revisão criminal fora do rol do art. 621 do CPP.<br />
Rangel (2012, p. 1067) também afirma que as hipóteses previstas<br />
são numerus clausus, e constituem o mérito da ação revisional, pois,<br />
em caso de ausência de qualquer uma das hipóteses elencadas em<br />
lei, como fundamento da revisão criminal proposta, esta será julgada<br />
improcedente, com julgamento do mérito.<br />
Quanto aos legitimados, apesar de ter a lei especificado um<br />
rol (artigo 623, Código de Processo Penal – “a revisão poderá ser<br />
pedida pelo próprio réu ou por procurador legalmente habilitado ou,<br />
no caso de morte do réu, pelo cônjuge, ascendente, descendente ou<br />
irmão”), há na doutrina e na jurisprudência discussão a respeito da<br />
possibilidade de o órgão do Ministério Público ser ou não legitimado<br />
para intentar revisão.<br />
Manifestamente contra é o posicionamento de Lopes Jr. (2012,<br />
p. 1315), pois entende ser uma distorção total do processo penal.<br />
Diz o autor que não é possível conceber a ideia de que o Ministério<br />
Público, órgão sinteticamente criado para se contrapor à parte passiva<br />
no processo penal, ser legitimado para propor a revisão criminal “a<br />
favor do réu, para desconstituir uma sentença penal condenatória que<br />
somente se produziu porque houve uma acusação (levada a cabo<br />
pelo mesmo Ministério Público, uno e indivisível)”.<br />
Nucci (2012, p. 461) segue a mesma linha de raciocínio<br />
supracitada ao afirmar não ser razoável ter legitimidade o Ministério<br />
Público para ingressar com ação de revisão criminal, visto que não<br />
está prevista em lei. Fernando Capez e Rodrigo Colnago (2013, p.<br />
311) também alegam ter o órgão em tela a legitimidade para propor<br />
a ação penal pública, objetivando a satisfação do jus puniendi, o que<br />
não justificaria ter este mesmo órgão a possibilidade ou o interesse de<br />
promover ação em favor do réu.<br />
Em oposição, surge o entendimento de Muccio (2009, p. 1001)<br />
que diz que, apesar de a legitimidade do Ministério Público não<br />
estar prevista em lei, faz parte de sua incumbência controlar a justa<br />
aplicação da lei corrigindo injustiças. Sob uma óptica mais recente do<br />
Processo Penal, apesar de silente a lei, o Ministério Público deve ser<br />
88 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />
legitimado para promover a ação de revisão criminal, cumprindo com<br />
seu status de fiscal da lei (BECK, 2009, p.332).<br />
Nestor Távora e Rosmar Antoninni (2009, p. 894) aduzem que, por<br />
mais que o Código de Processo Penal não faça menção à legitimidade<br />
do órgão do Ministério Público para propor a ação, a Constituição<br />
Federal, no artigo 127, autoriza o órgão a propor a ação. Este também<br />
perfaz o entendimento de Oliveira (2012, p. 930) que aduz não haver<br />
razão para que não seja admitida a legitimidade do Ministério Público,<br />
já que se justifica pelo cumprimento de norma constitucional, além<br />
do fato de que tem o órgão legitimidade para “impedir a privação da<br />
liberdade de quem esteja injustamente dela privado, seja por meio de<br />
habeas corpus, seja pela via da revisão criminal”.<br />
Rangel (2012, p. 1064, grifo do autor) coaduna com a afirmação<br />
acima e sustenta que<br />
há que se interpretar a lei ordinária de acordo com a Constituição<br />
e não a Constituição de acordo com a lei ordinária, o que significa<br />
dizer: a lei (art. 623, CPP), realmente não legitima o Ministério<br />
Público a propor a revisão criminal, porém, a Constituição,<br />
em seu art. 127, caput, incumbe o Ministério Público de<br />
defender a ordem jurídica, o regime democrático e os<br />
interesses sociais e individuais indisponíveis, e, óbvio<br />
que, se incumbe, deve dar a ele todos os meios legais para, via<br />
jurisdicional, cumprir sua incumbência.<br />
Pinto (2006, grifo do autor) afirma que o Ministério Público há tempos<br />
deixou de ser o órgão que atuava como acusador profissional e buscava<br />
a todo custo a condenação. Hoje, o Ministério Público faz as vezes do<br />
interesse estatal, que busca uma sentença justa, independentemente de<br />
ser absolutória ou condenatória. Alega ainda que, quando da entrada em<br />
vigência do Código de Processo Penal em 1941, o papel do Ministério<br />
Público era muito diferente daquele que é representado hoje e, por essa<br />
razão, não consta no rol exemplificativo do art. 623.<br />
Para findar o estudo relativo às características gerais da ação de<br />
revisão criminal, apresenta-se a análise doutrinária acerca dos efeitos<br />
da procedência do instituto. O art. 626 do Código de Processo Penal<br />
traz a seguinte informação: “Julgando procedente a revisão, o tribunal<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 89
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />
poderá alterar a classificação da infração, absolver o réu, modificar<br />
a pena ou anular o processo”, e, no parágrafo único, traz a seguinte<br />
afirmação: “de qualquer maneira, não poderá ser agravada a pena<br />
imposta pela decisão revista” (grifo nosso).<br />
Em relação à dualidade de julgamentos, trazem-se as figuras<br />
da revisão criminal pro societate, que busca a revisão de sentenças<br />
absolutórias transitadas em julgado, e a revisão criminal pro reo,<br />
prevista na legislação brasileira, que admite a revisão de sentenças<br />
condenatórias ou absolutórias impróprias, conforme já amplamente<br />
explanado.<br />
Em países como a Alemanha, Suíça, Suécia e Áustria, por<br />
exemplo, a revisão criminal pro societate é aceita em determinados<br />
casos previstos em lei. Na República da Colômbia, a revisão<br />
criminal pro societate é aceita quando, depois da sentença, houver<br />
comprovação, com sentença transitada em julgado, de cometimento<br />
de crime praticado pelo julgador ou por terceiro, que tenha influenciado<br />
no resultado do primeiro julgamento. A segunda hipótese se dá quando<br />
o julgamento tenha se pautado, total ou parcialmente, em prova falsa<br />
(ARRUDA, 2009, p. 254).<br />
Outro país que aceita a ocorrência da revisão pro societate é<br />
Cuba. O Código de Procedimiento Penal cubano (Lei 05/1977) prevê<br />
a revisão quando a sentença absolutória tenha se pautado em provas<br />
falsas, desde que também reconhecido por sentença transitada em<br />
julgado, ou quando fatos ou circunstâncias que foram ignorados<br />
quando do julgamento por si só ou unidos aos fatos já constantes no<br />
processo demonstram a responsabilidade de quem fora absolvido ou<br />
quando há participação em delito mais grave (ARRUDA, 2009, p. 256).<br />
Por fim, traz-se a legislação sueca, que, em seu Código de<br />
Procedimentos Judiciais (1948), classifica a revisão criminal como um<br />
recurso extraordinário e possibilita a revisão quando o juiz, jurado,<br />
integrante do Ministério Público, autoridade policial, perito, testemunha<br />
ou advogado, tenha cometido alguma ação ou negligência de caráter<br />
criminoso com impacto na decisão; quando o juiz ou promotor tenham<br />
sido desqualificados, tendo sua atuação efeitos sobre o julgamento;<br />
90 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />
o julgamento se orientar em evidências ou provas falsas; e, ainda,<br />
quando houver evidências ou circunstâncias não consideradas no<br />
julgamento original que ostentaram aptidão a conduzir à condenação<br />
(ARRUDA, 2009, p. 261).<br />
No Brasil, como já referido, este desdobramento do instituto não é<br />
aceito, já que não é previsto em lei, por ser, nas palavras de Lopes Jr.<br />
(2012, p. 1309), “uma autêntica reformatio in pejus”. Marjorie Kelli M.<br />
Maia (2005, p. 62) afirma que a Constituição brasileira é pautada pelos<br />
princípios da razoabilidade e da igualdade, então, por mais que não se<br />
tenha a previsão de revisão criminal pro societate, não deve ser esta<br />
possibilidade dispensada do ordenamento e da prática jurídica, pois<br />
não seria razoável nem mesmo igualitário, garantir o direito de revisão<br />
apenas ao condenado.<br />
A questão maior suscitada nesta espécie de revisão criminal diz<br />
respeito ao tempo decorrido entre o trânsito em julgado da sentença<br />
absolutória e o aparecimento da prova da culpabilidade do autor do<br />
delito. Como exposto, não há prazo para o ingresso com a revisão<br />
criminal pro reo, portanto, partindo da igualdade e da razoabilidade,<br />
não haveria prazo também para o ingresso da revisão pro societate.<br />
Por esta razão que Muccio (2009, p. 994) propõe que deveria ser<br />
permitido o ingresso da revisão pro societate legalmente, utilizando-se<br />
para tanto um limite de tempo. Este limite se daria nos termos do art.<br />
109, do Código Penal, utilizando-se do prazo prescricional em abstrato<br />
do delito, ou, em parecendo ser este um prazo muito extenso, poderia<br />
se usar o prazo da pena mínima cominada ao delito.<br />
Uma vez analisadas as questões dogmáticas acerca do instituto, é<br />
quanto à possibilidade de resgatar a dignidade do condenado por meio<br />
da revisão criminal que o foco deste estudo se volta neste momento.<br />
O instituto da revisão criminal se utiliza de duas possibilidades<br />
para que se proceda com o resgate do status dignitatis do condenado.<br />
A primeira possibilidade consiste em se requerer a revisão da<br />
sentença criminal transitada em julgado. A segunda possibilidade é a<br />
de reconhecer o direito à indenização pelos prejuízos sofridos, como<br />
será demonstrado a seguir.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 91
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />
Em sendo julgado procedente o pedido de revisão e tendo o<br />
revisando requerido expressamente, poderá o Tribunal reconhecer o<br />
direito à justa indenização pelos danos sofridos. Tal disposição está<br />
contida no artigo 630 do Código de Processo Penal. Além disso, há<br />
previsão constitucional expressa sobre o tema, como se lê no artigo<br />
5º, inciso LXXV:<br />
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer<br />
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros<br />
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,<br />
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:<br />
[...]<br />
LXXV - o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim<br />
como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença.<br />
Porém, assim como na relação de hipótese de cabimento de<br />
revisão criminal, deve estar provado quando do ingresso com a ação<br />
revisional o erro judiciário, sob pena de se ter provida a revisão da<br />
sentença, mas não a fixação de indenização. Muccio (2009, p. 1021)<br />
explica que, para que se possa ter direito à indenização, é necessário<br />
que a condenação se origine de dolo ou culpa pelos representantes<br />
do Estado no processo (peritos, juízes, membros do Judiciário,<br />
representantes do Ministério Público, delegados de polícia, entre<br />
outros).<br />
Avena (2011, p. 1258) menciona haver na lei duas situações<br />
capazes de impedir a busca de indenização por erro judiciário, ambas<br />
contidas no §2º, alíneas “a” e “b” do art. 630 do Código de Processo<br />
Penal. A primeira alínea refere que não será possível o pedido de<br />
indenização se “o erro ou a injustiça da condenação proceder de<br />
ato ou falta imputável ao próprio impetrante, como a confissão ou<br />
a ocultação de prova em seu poder”, ou seja, em ocorrendo esta<br />
situação, o próprio revisando deu causa ao erro judiciário, portanto,<br />
não terá direito à indenização, por mais que a revisão criminal possa<br />
ter sido julgada procedente.<br />
Muccio (2009, p. 1021), em estudo ao presente caso, afirma que a<br />
disposição da alínea “a” do §2º, sob a óptica da Constituição Federal,<br />
92 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />
não é mais observada, visto que, por mais que o acusado confesse a<br />
prática delituosa ou venha a ocultar prova a seu favor, o Estado falhou<br />
com a sua obrigação de comprovar a culpa do acusado no processo<br />
e, assim, deve indenizar o revisando, mesmo que tenha ele concorrido<br />
ou colaborado para a ocorrência do erro judiciário.<br />
Percebe-se que, de acordo com o modelo de processo penal<br />
vigente no Brasil, o entendimento acima delineado deveria ser o<br />
entendimento majoritário, seguido de decisões jurisprudenciais<br />
neste sentido. Como já anteriormente referido, o processo penal<br />
está formatado com base no princípio da dignidade da pessoa<br />
humana, sendo necessária a observação do princípio em todos os<br />
entendimentos e decisões, deixando de lado os juízos pessoais que<br />
são irrelevantes quando há a incidência de garantias processuais.<br />
A alínea “b” do §2º do citado artigo indica que não será caso<br />
de indenização se a acusação houver sido meramente primária. De<br />
uma forma geral, a doutrina rechaça este entendimento, visto que,<br />
ao dispor sobre o erro judiciário, o constituinte não fez qualquer<br />
referência quanto à natureza jurídica da ação penal que antecedeu<br />
a sentença penal condenatória. Assim é o entendimento de Lopes Jr.<br />
(2012, p. 1321) ao discorrer que, se privada a ação penal, não há<br />
qualquer incongruência ou isenção quanto à responsabilidade objetiva<br />
do Estado, pois a ação que gerou prejuízo foi a sentença condenatória<br />
proferida pelo magistrado e não a acusação.<br />
Apresentadas as características e vantagens de se obter o<br />
julgamento positivo de uma revisão criminal, observando seus<br />
requisitos e características particulares, resta agora o estudo acerca<br />
da possibilidade de o instituto efetivamente contribuir para o resgate<br />
do status dignitatis do condenado.<br />
Pimentel (20<strong>08</strong>, p. 3), em estudo do princípio da dignidade da<br />
pessoa humana e sua aplicação no Processo Penal, afirma que,<br />
quando da transformação social do Estado, configurando o Estado<br />
Democrático de Direito, a dignidade humana sofreu uma transformação<br />
que deu lugar a um conceito mais amplo e prático, compreende-se a<br />
partir de então a “segurança da vida individual e social, a proteção<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 93
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />
jurídica a salvaguarda da identidade e da natureza humana, a limitação<br />
do poder do Estado e o respeito da integridade corporal do indivíduo”.<br />
Assim, em um histórico do processo penal,<br />
se no passado os princípios tradicionais (da ampla defesa e<br />
do contraditório, acusatório, da publicidade, da presunção da<br />
inocência, da verdade, etc.) moldaram-lhe o rito, agora é o princípio<br />
da dignidade da pessoa humana que nos dirige à modernização do<br />
processo. É ele quem determina que incorporemos ao processo<br />
penal soluções inovadoras para otimizá-lo como instrumento da<br />
apuração e punição dos fatos delituosos e como anteparo do<br />
imputado (PIMENTEL, 20<strong>08</strong>, p. 10).<br />
Então, abarcando tanto o social quanto o individual, o princípio<br />
da dignidade humana se divide em duas vertentes. De um lado, dá<br />
validade à repressão estatal, do outro, também impõe limite à atividade<br />
repressora do Estado quando da ocorrência de algum fato típico, em<br />
decorrência da observância da dignidade ínsita a cada um dos seres<br />
humanos.<br />
Desta forma, tem-se um processo penal com garantias aos<br />
acusados, mas também com a possibilidade estatal de punir os<br />
indivíduos que transgredirem as normas. Portanto, “mesmo que<br />
toda carga acusatória atinja o acusado, este continua sendo pessoa<br />
humana, sujeito processual e não objeto do processo; é sujeito de<br />
direitos e garantias processuais” (GIACOMOLLI, 2007).<br />
Contudo, mesmo que com todo o aparato constitucionalmente<br />
legalizado de defesa dos interesses individuais do réu durante o<br />
trâmite de um processo penal, este vier a ser condenado ilegalmente,<br />
o Estado, também constitucionalmente, oferece uma saída, qual seja,<br />
a revisão criminal. E é com base neste instituto que o condenado,<br />
vendo-se renegado pela sociedade e muitas vezes pela própria<br />
família, pode alcançar a restituição da sua dignidade.<br />
Conhecida de todo o meio jurídico é a famosa e sofrida história<br />
dos irmãos Joaquim e Sebastião Naves, vendedores de arroz, que teve<br />
início em meados de 1937. Em novembro daquele ano, Benedito, filho<br />
de um rico fazendeiro mineiro, simplesmente desapareceu, sumindo<br />
juntamente com ele uma grande quantia em dinheiro. Apavorados, os<br />
94 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />
irmãos Naves procuram o sócio por toda a parte sem sucesso, quando<br />
decidem contatar com a polícia.<br />
Passado algum tempo, em 29 de dezembro do mesmo ano, o<br />
1 o Tenente Francisco Vieira, que acabara de assumir a Delegacia de<br />
Araguari, conclui que os irmãos eram responsáveis pelo sumiço de<br />
Bendito e manda prendê-los. A partir de então, os irmãos passam a<br />
sofrer maus tratos, a viver em condições sub-humanas e insalubres<br />
na cadeia pública de Araguari. Diante de todo o horror sofrido, acabam<br />
inventando uma confissão para o crime não cometido. Apesar de não<br />
existir cadáver nem corpo de delito, os irmãos são pronunciados.<br />
Cabe ressalvar que naquela época o promotor de justiça do caso<br />
era um farmacêutico, substituindo o promotor efetivo, cujo cargo se<br />
encontrava vago, enquanto que o juiz de direito responsável era juiz<br />
de paz, substituindo eventualmente o juiz criminal (ALAMY FILHO,<br />
1993, p. 83).<br />
Depois de passar por dois julgamentos populares, os irmãos são<br />
condenados a 25 anos e 6 meses de prisão celular e multa de 16 ¼ por<br />
cento sobre o valor do objeto roubado. Em julho de 1940, o advogado<br />
dos irmãos ingressa com a primeira revisão criminal. Juntando como<br />
prova novos depoimentos dos irmãos e de testemunhas obtidos por<br />
meio de ação de justificação, ele buscou demonstrar que toda a<br />
confissão acostada aos autos do processo de conhecimento foi obtida<br />
sob coação e tortura. As Câmaras Criminais Reunidas do Tribunal de<br />
Apelação do Estado de Minas Gerais reduziram as penas dos irmãos<br />
cominadas anteriormente em grau submáximo para grau submédio,<br />
ou seja, passaram a ter uma pena de 16 anos e 6 meses de prisão<br />
celular (ALAMY FILHO, 1993, p. 320).<br />
Anos depois, em 1948, Joaquim Naves morre doente e vivendo<br />
como indigente. Qual a surpresa de Sebastião, quando usufruindo de<br />
livramento condicional em julho de 1952, encontra Benedito Caetano<br />
vivo! Com a maior prova do não cometimento do delito em mãos, o<br />
advogado dos irmãos Naves ingressou novamente com uma revisão<br />
criminal. E é o relator da revisão criminal que em seu voto aduz que o<br />
pedido de revisão foi fundado no art. “621, n. 3, 1 a hipótese, do Código<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 95
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tamyse de Christo Marques<br />
de Processo Penal”, aduzindo que “o fato novo foi a ressurreição do<br />
referido Benedito, o qual, em carne e osso surgiu após longa e frutuosa<br />
peregrinação pelo Brasil” (ALAMY FILHO, 1993, p. 352).<br />
Diante do erro absurdo cometido pelo Judiciário, o Tribunal de<br />
Justiça mineiro julgou a nova revisão criminal, e somente em 1960 o<br />
Supremo Tribunal Federal concedeu a Sebastião e aos herdeiros de<br />
Joaquim Naves o direito à justa indenização pelo cometimento de erro<br />
judiciário.<br />
Diante desse evento e de tantos outros, é que se percebe que o<br />
instituto efetivamente é capaz de colaborar com o resgate da dignidade<br />
do condenado vítima de erro judiciário, pois mesmo em tempos da<br />
história brasileira em que a dignidade humana não tinha nenhuma<br />
relevância em frente ao sistema, foi somente a partir da revisão<br />
criminal que a família Naves pôde reconstruir e recontar a imagem e a<br />
história, respectivamente, de Sebastião e Joaquim.<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Diante da exposição supra, percebe-se que a dignidade da pessoa<br />
humana, por ser característica inerente a todos os seres humanos, é<br />
dever do Estado. A Constituição Federal, ao contemplar o princípio<br />
como fundamento da República, teve este intuito.<br />
No entanto, o Processo Penal brasileiro, por mais que seja<br />
pautado por normas garantistas, nem sempre garante aos cidadãos<br />
a certeza jurídica em razão de vícios e erros cometidos no decorrer<br />
da instrução, o que significa uma afronta ao princípio em questão.<br />
A revisão criminal se apresenta, então, como um meio eficaz de<br />
garantir ao cidadão a retomada de seu status dignitatis relativizado<br />
em razão da condenação injusta por processo criminal. Se durante<br />
a instrução não for possível garantir ao cidadão, apesar de todo o<br />
sistema de garantias formulado pela Constituição, a concretização da<br />
sua dignidade, é por meio da revisão criminal que o condenado, vítima<br />
de erro judiciário, terá a possibilidade de retomar seu status quo ante.<br />
Desta forma, entende-se que a revisão criminal é uma das<br />
condições de possibilidade para que se recupere a dignidade de<br />
96 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />
um condenado, vítima de erro judiciário. E é com base em institutos<br />
como este que os legisladores devem se pautar no momento da<br />
redação de novas leis penais no Brasil. Como já referido, não se irá<br />
resolver o problema da criminalidade brasileira apinhando pessoas<br />
sobre pessoas dentro de penitenciárias insalubres e com tratamentos<br />
desumanos e degradantes.<br />
A solução está em aprimorar o direito penal e processual penal<br />
de forma que se satisfaçam ambas as correntes em que se parte<br />
do princípio da dignidade da pessoa humana, ou seja, do individual<br />
– referente ao indivíduo transgressor das normas, que, também é<br />
dotado de dignidade – e também do social – para que o Estado possa<br />
punir sem exceder os limites. Assim, cada vez mais será possível<br />
adequar o ordenamento jurídico aos postulados que embasam o<br />
Estado Democrático de Direito brasileiro.<br />
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98 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
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(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 99
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Recebido: 16-5-2014<br />
Aprovado: 20-8-2014<br />
100 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />
DI<strong>RE</strong>ITO<br />
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM<br />
A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE<br />
ATUAL<br />
ENVIRONMENTAL LAW AND INTERFACE WITH<br />
ENVIRONMENTAL EDUCATION IN SOCIETY TODAY<br />
Resumo<br />
Juliane Colpo 20<br />
Roberto Colpo 21<br />
O presente artigo tem por objetivo verificar se a coletividade se apropriou ou não dos valores inerentes ao direito<br />
ambiental como forma de prover a si mesma dos elementos essenciais à sadia qualidade de vida, dissociando ou<br />
associando a sustentabilidade do meio natural com os processos de desenvolvimento, partindo-se da abordagem<br />
da sociedade atual na visão de Leonardo Boff e Gilles Lipovetzky. Em seguida, traçando interface com o Código de<br />
Defesa do Consumidor, relacionar a posição das partes envolvidas na relação de consumo e seu papel transformador<br />
daquela sociedade paradigma em novo modelo social, com desenvolvimento econômico, porém nas dimensões da<br />
sustentabilidade, a partir da conscientização dos efeitos, danosos ou não, decorrentes da liberdade de consumir.<br />
Segue-se com a leitura da educação ambiental no direito positivo brasileiro, conceito, partícipes e objetivos, e a par<br />
da reflexão da sociedade atual na abordagem dos autores referidos, perquire-se acerca da sustentabilidade nesta<br />
sociedade dita como de mercantilização dos valores, bem como o papel da educação ambiental e se esta age<br />
como vetor de transformação social para a concretização do direito a um meio ambiente equilibrado como garantia<br />
a sadia qualidade de vida. Por todo o exposto, conclui-se, sem a pretensão de esgotar o tema, que a educação<br />
ambiental não está cumprindo seu objetivo na sociedade atual, na forma e modelo em que está sendo realizada,<br />
senão em pequenas células sociais. Apropriando-se do pensamento de Henrique Leff, há que se direcionar a<br />
uma nova racionalidade ambiental capaz de subverter a ordem imperante entre as lógicas de vida e o destino das<br />
sociedades. Mas, não obstante a riqueza de metodologias verificadas como possíveis de alcançar este objetivo,<br />
suas implementações práticas requerem o esforço de toda sociedade, dos educadores e do Estado.<br />
Palavras-chave: Direito Ambiental. Sociedade de consumo. Educação ambiental. Sustentabilidade.<br />
Abstract<br />
The purpose of this paper is to verify whether collectivity has appropriated environmental law values as<br />
a way to provide itself with the crucial elements to a healthy quality of life, associating or dissociating<br />
sustainability from the natural context and development processes based on the present society approach<br />
according to Leonardo Boff and Gilles Lipovetzky. The next step was to establish an interface with the<br />
Consumer Defense Code, analyze the positions of the parts involved in relation to consumption and its<br />
20 Graduada em Psicologia, Especialista em Psicologia nos Processos Educacionais (PUC), Pós-graduada em Aprendizagens Psicológicas<br />
na Universidade (IESA), Especialização em MBA em Gestão Educacional (FACUS), Mestre em Educação nas Ciências<br />
(Unijuí). Docente universitária (IESA), nos cursos de Pedagogia, Administração e Ciências Contábeis, cursos de extensão e Pós-<br />
Graduação. E-mail: julianecolpo@hotmail.com<br />
21 Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais; Pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil pela URI; Pós graduado em Direito<br />
Ambiental e Urbanístico pelo LFG. Foi Diretor Jurídico Municipal entre 2001 e 2002 e desde então até 20<strong>08</strong> Procurador Geral do<br />
Município de Santa Rosa( RS). Email: robertocolpo@terra.com.br<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 101-144
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
role of changing the paradigm into a new social model, under the economic development. However, the<br />
sustainability dimension, from the realization of effects, harmful or not, emerge from the free choice of<br />
consumption. Next, we analyze the environmental education context taking into consideration the Brazilian<br />
positive law, concept, participants and purposes based on a thorough examination of current society<br />
drawing on the mentioned authors. We also inquiry about sustainability in such society where values are<br />
presumably commercialized as well as the role of environmental education and, most crucially, if such<br />
education works as a driving force capable of promoting social changes and guarantee the right of a<br />
balanced environment and therefore a better and healthier quality of life. Taking the previous context into<br />
consideration and, by no means, depleting the topic under discussion, we come to the conclusion that<br />
environmental education, in the way it is being implemented, is not playing its role in our present society,<br />
with the exception of very limited and small social cells. Drawing on Henrique Leff, a new environmental<br />
rationale needs to be developed in order to overturn the current social order concerning the logic of life and<br />
the destiny of societies. However, despite the numerous methodological alternatives to achieve such goal,<br />
practical implementations require a bundling of efforts from the whole society, educators and the State.<br />
Keywords: Action adhesive. Procedural system . Civil procedure .<br />
Keywords: Law environment. Society of consumption. Environmental education. Sustainability.<br />
SUMÁRIO:<br />
Introdução; 1. Reflexões sobre a sociedade atual; 1.1. A sociedade atual segundo Leonardo Boff; 1.2. A<br />
sociedade atual segundo Gilles Lipowetsky; 1.3. Código de Defesa do Consumidor como fator de equilíbrio<br />
na sociedade de consumo brasileira; 2. A educação ambiental no Brasil; 2.1. Classificação e conceito; 2.2.<br />
Educação ambiental no Direito brasileiro; 2.3. Objetivos da educação ambiental; 3. Educação ambiental,<br />
desenvolvimento e sustentabilidade; 3.1. Educação ambiental como vetor de transformação social; 3.2.<br />
Educação ambiental e direito de informação; 4. Conclusão; 5. Referências.<br />
INTRODUÇÃO<br />
A premissa investigada parte da análise dos valores incorporados<br />
à sociedade atual, segundo Boff e Lipovetzky, de mercantilização,<br />
desculpabilização pelo consumo desenfreado e individualismo,<br />
conjunto de fatores que contribuem para a autoexclusão da qualidade<br />
de corresponsável pela situação de risco no equilíbrio do planeta e à<br />
própria qualidade de vida das pessoas.<br />
A par desta incorporação de valores mercantilistas pelas pessoas<br />
está a educação ambiental como princípio constitucional e integrante<br />
da política nacional do meio ambiente voltada a criar condições que<br />
formem uma nova consciência baseada em conceitos de ética e<br />
sustentabilidade.<br />
O Poder público, a sociedade e os indivíduos que a integram<br />
passaram a dividir responsabilidades sobre sua existência no planeta,<br />
haja vista a incorporação do meio ambiente equilibrado como garantia<br />
de qualidade de vida de todos, bem de uso comum do povo, assim<br />
previsto na Constituição Federal.<br />
102 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
A classificação do meio ambiente como bem de uso comum<br />
do povo sugere sua proteção contra os excessos quantitativos e<br />
qualitativos da produção econômica que afetem a sustentabilidade.<br />
Entretanto, os indivíduos agem como se não fossem partícipes<br />
do direito nem da obrigação, voltando-se exclusivamente para ações<br />
de satisfação pessoal, motivadas pelo mercado. Há ignorância e/ou<br />
conformismo com a situação de risco atual, embora as informações<br />
alarmantes estejam acessíveis a todos, e a educação ambiental, a<br />
partir do regramento pela constituição e normas infraconstitucionais,<br />
associou-se às finalidades do Estado, impulsionando ações afirmativas<br />
visando à conscientização para a necessidade de mudança do modelo<br />
social atual.<br />
O comportamento das pessoas é ditado pelas estratégias<br />
de marketing geradas pelas intenções do desenvolvimento<br />
socioeconômico, no qual a exigência é cada vez mais produção para<br />
atender à demanda dos consumidores. Entretanto, neste modelo,<br />
avançam as desigualdades sociais e o desrespeito aos limites da<br />
natureza como fonte dos recursos de produção.<br />
O Estado, por intermédio de ações como a positivação do Código<br />
de Defesa do Consumidor, age de forma a equalizar a relação entre<br />
sociedade e mercado, impondo regras de conduta na produção e<br />
oferta dos bens de consumo, permitindo ao consumidor exercer o<br />
direito de escolha a partir da informação e conscientização de que<br />
é parte social, podendo contribuir na transformação do mercado em<br />
favor de melhora na sua qualidade de vida, equacionando a liberdade<br />
de consumir e a preocupação com o meio ambiente.<br />
A educação ambiental nasceu dessa realidade crescente<br />
objetivando criar uma cultura ecológica para transformar as relações<br />
do homem com a natureza, desenvolver a cidadania com ética em<br />
relação ao consumo individual, a inclusão social e a proteção e<br />
conservação do meio ambiente.<br />
Diante disso, geram-se expectativas em relação às possibilidades da<br />
educação ambiental, cada vez mais sendo essa colocada como um dos<br />
pilares para a efetivação de um modelo de desenvolvimento sustentável.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 103
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
Divide-se o artigo em três capítulos. O primeiro trata da sociedade<br />
atual a partir da visão de Leonardo Boff e de Gilles Lipovetsky,<br />
retratando uma mercantilização de valores e desculpabilização<br />
pelo consumo desenfreado e individualismo, tornando a pessoa um<br />
sujeito passivo e não cidadão transformador. Ainda verifica o papel do<br />
Código de Defesa do Consumidor como instrumento de equilíbrio na<br />
sociedade brasileira.<br />
O segundo capítulo trata da educação ambiental, informando-se<br />
como está inserida no ordenamento jurídico brasileiro, seu conceito,<br />
partícipes e suas obrigações, bem como seus objetivos.<br />
Reserva-se o terceiro capítulo a verificar a sustentabilidade na<br />
sociedade atual, bem como o papel da educação ambiental neste<br />
processo e se esta se revela como instrumento (vetor) de transformação<br />
social. Discorre-se, a seguir, a partir das constatações sobre a educação<br />
ambiental, as relações entre esta e o direito de informação.<br />
<strong>RE</strong>FLEXÕES SOB<strong>RE</strong> A SOCIEDADE ATUAL<br />
A SOCIEDADE ATUAL SEGUNDO LEONARDO BOFF<br />
Boff (2003) entende que há uma nova civilização influenciada<br />
pela comunicação, imagem e informatização, formando uma nova<br />
concepção de vida, em que o papel da pessoa na sociedade vai<br />
transformado, importando mais as ações que ele conceitua como<br />
‘espetáculo’, em que a preocupação principal das pessoas é a<br />
realização de si mesmo.<br />
No entendimento do autor citado, a sociedade-espetáculo promoveu<br />
a transformação das pessoas em espectadores e esses querem sê-los,<br />
se contemplando e projetando sua identidade pela imagem. Conclui que<br />
“[...] são participantes passivos, meros consumidores e não cidadãos que<br />
opinam, criticam, negam certo tipo de adesão e reforçam conscientemente<br />
certas causas” (BOFF, 2003. p.19).<br />
Nesse contexto social, entretanto, há dois terços da humanidade<br />
que têm suas necessidades fundamentais ligadas apenas à<br />
sobrevivência e ao dia a dia do trabalho. Sequer têm acesso à<br />
104 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
infraestrutura mínima necessária à vida com dignidade. Diante disso,<br />
segundo o autor (p. 28), “uns participam, realmente, desta realidade<br />
nova através dos enclaves modernos, do consumo, da nova tecnologia;<br />
outros, pelo imaginário e pela imagem”.<br />
A produção de imagens, entretanto, tem capacidade ilimitada de<br />
manipulações e falsificações, distorcendo limites entre verdadeiro e<br />
falso e são largamente utilizadas na comunicação de massas, alterando<br />
comportamentos na sociedade atual. Tais processos tendem a desviar<br />
as pessoas do sentido de copilotos da natureza, com ela e não acima<br />
dela, pois ela é parte e parcela da Terra, perdendo-se o sentido ético<br />
que permite que aquelas se co-responsabilizem pelo mundo (BOFF,<br />
2003. p.35).<br />
Boff (2003) atribui à globalização o fenômeno que produz uma<br />
grande homogeneização, implicando levar os mesmos valores do<br />
sistema global, as mesmas tendências culturais, o mesmo estilo<br />
de consumo. Passa-se a ideia de que não há alternativa para esse<br />
modelo de sociedade. Segundo o autor, o capitalismo fez com que<br />
na sociedade moderna se socializassem os sonhos, amplamente<br />
propagados pelos meios de comunicação, especialmente pela<br />
propaganda, porém só permite que eles se realizem dentro dos limites<br />
impostos pelos interesses do capital.<br />
Em consequência, a sociedade moderna é marcada por desvios,<br />
dentre eles o reducionismo na concepção de ser humano e o<br />
desrespeito à natureza.<br />
O norte social é o desenvolvimento e a propriedade material,<br />
classificando o homem como um ser de necessidades. Sabendo-se<br />
que as necessidades humanas são ilimitadas, para satisfazê-las,<br />
imagina-se que o desenvolvimento assim também deve ser.<br />
Trata-se de falácia, pois todas as necessidades humanas nunca<br />
poderão ser satisfeitas plenamente. Com isso, há insatisfação<br />
permanente, gerando crise de identidade, de esperança e de futuro.<br />
Por tais motivos, neste contexto social a Terra e a natureza são<br />
reduzidas a um conjunto de recursos disponíveis à ganância do ser<br />
humano que se entende como seu senhor (BOFF, 2003. p.90).<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 105
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
Conclui, então, Boff (2003) que, pela necessidade de transformação<br />
do modelo atual, lentamente a sociedade incorpora uma nova forma<br />
de globalização, que não passa pelo mercado, pela economia e pela<br />
tecnociência, mas pela solidariedade, pelo intercâmbio aberto e pelo mútuo<br />
aprendizado. Espécie de desenvolvimento social, com inclusão de todos os<br />
seres humanos, onde dois terços são conformados com a miséria.<br />
A SOCIEDADE ATUAL SEGUNDO GILLES LIPOWETSKY<br />
Lipovetsky (2007, p.24-25, 28), filósofo e pesquisador francês,<br />
entende que a sociedade atual, em vista da revolução das tecnologias<br />
da informação e da comunicação, que suscitaram mudança de<br />
valores e atitudes, deu ênfase no bem estar material, no dinheiro e<br />
na segurança física, mercantilizando as necessidades e modos de<br />
vida das pessoas. Traz a lógica do “sempre mais, sempre novo”.<br />
Em síntese, é a sociedade do hiperconsumismo, oriunda de uma<br />
construção cultural, social e educacional dos consumidores.<br />
Outras fases antecederam a forma atual. Inicialmente, a era<br />
moderna conduziu um projeto de democratização do acesso aos<br />
bens mercantis, ou seja, pôs os produtos ao alcance das massas.<br />
“Agregado a esta dinâmica foi inventado o marketing de massa,<br />
educando o consumidor a consumir marcas de produtos pela ação da<br />
publicidade“ (LIPOVETSKY, 2007, p. 29-30).<br />
Pôs-se em marcha, a partir deste momento, um processo de<br />
democratização do desejo, voltado a estimular a necessidade de<br />
consumir, a excitar gostos pelas novidades e pela moda. Ressalta que<br />
“[...] desculpabilizaram o ato de compra”, transformando-a em forma<br />
de ocupar o tempo e estilo de vida das classes médias (LIPOVETSKY,<br />
2007, p. 31).<br />
Com a estabilidade e desenvolvimento econômico, instala-se<br />
um sentimento de abundância, democratizando ainda mais o acesso<br />
aos bens, especialmente os duráveis, acessíveis às classes mais<br />
pobres. A produção também foi massificada e com isso políticas de<br />
diversificação dos produtos e processos visando reduzir o tempo de<br />
vida das mercadorias (LIPOVETSKY, 2007, p. 34).<br />
106 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
Nesta fase social, a ordem econômica ordena-se pelos princípios<br />
da redução e do efêmero, mobilizando toda sociedade em torno de<br />
um projeto de um cotidiano de conforto, fácil, sinônimo de felicidade.<br />
Resulta desse contexto uma substituição de valores em prol de um<br />
imaginário de felicidade consumidora, que produziu uma mutação<br />
cultural (LIPOVETSKY, 2007, p.35).<br />
O poder do mercado e das marcas se impõe cada vez mais,<br />
visto que cada vez menos os estilos de vida são comandados pela<br />
ordem social e pelos sentimentos de inclusão de classes (2007, p.50).<br />
O hiperconsumidor responde à transformação de valores que lhe<br />
foi imposta, participando de uma corrida desenfreada à renovação<br />
acelerada de produtos e modelos (LIPOVETSKY, 2007, p. 87).<br />
A lógica do mercado avança em todos os ramos de atividades,<br />
impondo um capitalismo midiático dominado pelo aumento da<br />
velocidade e do descartável acelerado.<br />
Diante disso, as desigualdades econômicas se aprofundam, as<br />
aspirações consumistas se aproximam; as práticas sociais divergem,<br />
e o sistema referencial é idêntico (2007, p.117), pela incorporação do<br />
costume da realização do sujeito.<br />
A realização do sujeito na fase atual da sociedade exige que<br />
este seja um turboconsumidor, ressaltando que não significa dizer<br />
consumidor insensível. Entende que o turboconsumidor caminha para<br />
um acréscimo de sensibilidade para o consumo de produtos oriundo<br />
do comércio socialmente correto, que respeita normas ecológicas e<br />
éticas. Buscam selos e produtos com sentidos associados à defesa<br />
das crianças, dos famintos, dos animais, do meio ambiente, das<br />
vítimas de todo o tipo (LIPOVETSKY, 2007, p. 133-134).<br />
Assim, a mercadoria responsável tem como complemento um<br />
consumo de ações humanitárias e expansão da beneficência de massa.<br />
As forças do mercado invadiram a quase totalidade dos aspectos da<br />
existência humana, que não significa necessariamente a degradação<br />
da sociabilidade, da empatia e dos valores da humanidade, embora<br />
a sociedade atual tenha sofrido transformação nas relações sociais,<br />
porquanto essas não se reduzem a atividades consumistas.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 107
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
A fase atual da sociedade é de onimercantilização do mundo<br />
em que, se existem diferentes políticas econômicas ou sociais, não<br />
existe, por ora, solução alternativa à sociedade do hiperconsumo, cujo<br />
império devastador propaga o conformismo generalizado, a preguiça<br />
do espírito, a incultura, a superficialidade e a incoerência dos seres.<br />
Acabaram-se as significações e os ideais elevados; os únicos objetivos<br />
nos quais os indivíduos se reconhecem são o dispêndio fútil, o bem-<br />
-estar e a saúde.<br />
CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR COMO<br />
FATOR DE EQUILÍBRIO NA SOCIEDADE DE CONSUMO<br />
BRASILEIRA<br />
Ruscheinsky (2002) infere que na sociedade de consumo há<br />
uma cumplicidade forçada do indivíduo consumidor no que chama de<br />
corrupção de valores, espécie de ‘servilismo consentido’, o que lhe retira<br />
a capacidade de consentimento e compromisso com o meio ambiente<br />
numa participação ativa que pudesse refletir o exercício à cidadania.<br />
Pontilho justifica esse comportamento como presente em todas<br />
as culturas em que os bens funcionam como exaltação de valores<br />
e posição social do indivíduo. Logo, consumir refletiria um anseio<br />
de inserção e identificação social. Entende que há espécie de<br />
centralização em si mesmo no ato de consumir do indivíduo, “sem<br />
se preocupar com as consequências de suas escolhas. O cidadão é<br />
reduzido ao papel de consumidor, sendo cobrado por uma espécie de<br />
obrigação moral e cívica de consumir”.<br />
Entretanto, prossegue a autora citada, o consumo vai além deste<br />
interesse individual, representando uma atividade política de coesão<br />
social, criação e reprodução de valores. Infere ainda que “existe<br />
uma conexão entre valores éticos, escolhas políticas, visões sobre a<br />
natureza e comportamentos com relação às atividades de consumo”.<br />
Desse modo, em razão deste viés de atividade política de coesão<br />
social, criação e reprodução de valores gerais, como consequências<br />
do ato de consumir individual, evidenciou-se a necessidade de<br />
interferência do Estado nas relações de consumo.<br />
1<strong>08</strong> Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
O Código de Defesa do Consumidor surge como uma reação ao<br />
quadro social que destina posição de inferioridade do consumidor em<br />
face do poder econômico, em vista dos protagonistas deste serem os<br />
fornecedores dos produtos, do acesso a eles pelo crédito e do poder<br />
indutivo verificado pelas técnicas de marketing e propaganda.<br />
A desigualdade cultural/educacional acaba por restringir o direito<br />
à informação, em vista da incapacidade de exercê-lo, levando, por<br />
vezes, o consumidor a lesionar-se na sua integridade econômica,<br />
físico-psíquica, afetando o direito a um meio ambiente que lhe garanta<br />
qualidade de vida. Além de padronizar espécie de conformismo com<br />
a desigualdade.<br />
Repisa-se, pois, que o Código de Defesa do Consumidor surgiu,<br />
então, para equalizar as relações das partes inseridas na sociedade<br />
de consumo. Primeiro, a Constituição Federal de 1988, no art. 5º,<br />
inc. XXXII, consolidou como cláusula pétrea a defesa do consumidor.<br />
Depois, normatizou-se por força do art. 48 do ADCT da CF/88, pela<br />
promulgação da Lei nº 8.078, de 11-8-1990, vigorando a partir de 11-<br />
3-1991.<br />
Reconheceu-se, já no art. 1º, inc. I, do Código de Defesa<br />
do Consumidor, a vulnerabilidade do consumidor no mercado de<br />
consumo, haja vista que este não escolhe o que é produzido e nem<br />
de que maneira é produzido, ficando à deriva do que é produzido e<br />
ofertado. Erradicar o desequilíbrio em que se encontra no mercado<br />
de consumo, buscando alcançar uma realidade social mais justa, em<br />
face desta vulnerabilidade, é objetivo convergente com a dignidade da<br />
pessoa humana, fundamento da República do Brasil.<br />
Com precisão, Benjamin (2001, p.325) conceitua a vulnerabilidade<br />
como “[...] um traço universal de todos os consumidores, ricos ou<br />
pobres, educadores ou ignorantes, crédulos ou espertos”.<br />
Infere-se, pois, que a relação na sociedade de consumo tem, de<br />
um lado, uma parte detentora dos mecanismos de induzimento ao<br />
consumo (fornecedor) e de outra que é a todo instante bombardeada<br />
por anúncios apelativos ao consumo, tanto necessário como<br />
exagerado e desnecessário. Com o Código de Defesa do Consumidor,<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 109
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
este passa a ter efetiva possibilidade de escolha e controle por meio<br />
da informação e seleção de produtos que atendam suas necessidades<br />
com manutenção ou melhoria da qualidade de vida.<br />
Trata-se de um avanço em direção ao exercício da cidadania do<br />
consumidor, especialmente pela crescente conscientização motivada<br />
pelo acesso às informações mais claras e precisas sobre os produtos.<br />
Em decorrência de obrigação legal, as empresas obrigam-se, de<br />
igual forma, a um processo de adaptação a essa nova realidade. A<br />
propósito, os efeitos vão, além disso, verificando o crescimento do<br />
número de empresas que superam estas obrigações legais, tornandose<br />
socialmente responsáveis.<br />
Constata-se, pois, que o Código de Defesa do Consumidor é um<br />
instrumento eficaz de influência comportamental, tanto do consumidor<br />
quanto do fornecedor, partes da sociedade de consumo. Aos<br />
primeiros, garantiu proteção com acesso à informação sobre o produto<br />
a fim de exercitar o direito de escolha e mecanismos satisfativos de<br />
direitos como a saúde, integridade física, de não ser lesado, entre<br />
outros, essenciais para suscitar conscientização da necessidade de<br />
equacionar a liberdade de consumir com a preocupação com o meio<br />
ambiente ecologicamente equilibrado, diretamente relacionado a sua<br />
qualidade de vida. Aos segundos, a incorporação de posturas de<br />
transformação estrutural na relação de forças nas áreas ambiental,<br />
econômica e social.<br />
Por tais razões, aduz-se que o Código de Defesa do Consumidor,<br />
harmonizando-se com os interesses da questão ambiental, pode ser<br />
considerado como instrumento de educação ambiental, pelo promissor<br />
viés na construção de valores sociais, atitudes e habilidades nos<br />
indivíduos que compõem a coletividade, pelo fomento de um espírito<br />
crítico de liberdade de escolhas que podem preferir consumir somente<br />
o que garanta a sadia qualidade de vida, diretamente vinculada a um<br />
desenvolvimento sustentável.<br />
Percebe-se que o direito ao meio ambiente ecologicamente<br />
equilibrado passa a ser buscado pelo consumidor na seleção dos<br />
produtos postos a sua disposição. A informação, acessível por força<br />
110 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
das regras, permite a escolha e com isso a participação ativa das<br />
pessoas naquilo que pode influenciar diretamente sua qualidade de<br />
vida. Pode-se dizer que a normatização protecionista do Código de<br />
Defesa do Consumidor impulsionou o exercício da cidadania que, por<br />
sua vez, é essencial para uma postura critica sobre o atual modelo<br />
de sociedade, podendo influir nas dimensões social, ambiental e<br />
econômica da sustentabilidade dos meios de produção e consumo.<br />
A conscientização do consumidor e o controle estatal, por meio de<br />
um sistema punitivo, instiga a mudança de comportamento do fabricante,<br />
que passa a adotar padrões novos para seus produtos, respeitando a<br />
ética normatizada, implantando um sistema de responsabilidade social<br />
preocupado com a qualidade de vida do consumidor.<br />
Anota-se, em vistas das razões elencadas, que o Código de Defesa<br />
do Consumidor se constitui em vigorosa ferramenta de cidadania, com<br />
normas de ordem pública e interesse social, quando se percebe a<br />
dimensão coletiva que se pretendeu dar àquela norma. De igual sorte,<br />
estabelece regras e princípios adequados à realidade presente, no<br />
momento de relevantes transformações socioeconômicas operadas<br />
em todo o mundo.<br />
A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO BRASIL<br />
CLASSIFICAÇÃO E CONCEITO<br />
Consumo e consumismo não devem ser confundidos. Aquele é<br />
essencial à vida humana, pois serve ao atendimento das necessidades<br />
cotidianas das pessoas, tais como: habitação, alimentação,<br />
saneamento, instrução, energia, entre outros, que são utilizados para<br />
o gozo da vida humana com dignidade. Consumismo, por sua vez,<br />
é o excesso calcado em necessidades desnecessárias, criadas pela<br />
ação massificante da mídia, instrumento largamente utilizado pelos<br />
detentores dos meios de produção na sociedade atual.<br />
Milaré (2009, p.80-81) admite haver uma mentalidade arraigada<br />
em hábitos mórbidos e compulsivos, uma degeneração que agrega<br />
fatores culturais, sociais, econômicos e psicológicos, com adeptos<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 111
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
em quantidade suficiente a representar uma ameaça global ao meio<br />
ambiente porquanto sua ânsia não observa as limitações do planeta<br />
e contribui para o desequilíbrio econômico/social com visível aumento<br />
das desigualdades.<br />
Exemplificando, o consumo excessivo por um, de água potável,<br />
tanto para irrigar jardins imensos, quanto lavar calçadas e carros de<br />
forma desmedida, contribui para a escassez deste recurso natural.<br />
Entretanto, todos, sem distinção entre quem desperdiçou ou não,<br />
podem sentir os efeitos de um racionamento.<br />
Cada vez mais se percebe a necessidade de refletir se é possível<br />
e aceitável manter uma sociedade tão desigual e despreocupada<br />
com o outro e com o futuro das próximas gerações. Não obstante<br />
o vigor de instrumentos como o CDC, que objetivam a participação<br />
consciente do indivíduo neste processo, como se viu no capítulo<br />
anterior, incorporar espírito crítico sobre as informações lançadas<br />
diariamente, especialmente enquanto revestidas de um continuísmo<br />
do interesse econômico, parece não refletir na sociedade de forma a<br />
operar mudança significativa.<br />
Entretanto, o Estado, partícipe da sociedade, deve perseguir, a<br />
par dos integrantes desta, o objetivo do desenvolvimento e bem-estar<br />
da coletividade, buscando uma ordem social em que as atividades<br />
econômicas não podem gerar problemas que afetem ou impeçam o<br />
atingimento dos escopos sociais.<br />
Neste contexto, a Constituição Brasileira de 1988 estabeleceu<br />
fundamentos, objetivos e princípios/garantias com o propósito de<br />
salvaguardar a pessoa humana na sua plenitude individual e em suas<br />
relações com o semelhante.<br />
A Carta Magna trouxe no artigo 1°, inc. III, a dignidade da pessoa<br />
humana como fundamento da República Federativa do Brasil, impondo<br />
como um dever-ser no qual toda norma deve convergir.<br />
Nesse mesmo norte, o inc. IV, do art. 3°, da Constituição Federal,<br />
enumera como objetivo fundamental da República a “promoção do<br />
bem de todos”.<br />
112 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
Por tais motivos, o Poder Público (Estado) tem obrigação<br />
constitucional de promover o bem de todos, visando à dignidade<br />
da pessoa humana como mínimo existencial. Dentre este dever<br />
estatal está o de efetivar o direito de todos a um meio ambiente<br />
ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida,<br />
como preceitua o caput do art. 225 da CF/88. Esse direito nasce em<br />
vista da necessidade, por meio das ações humanas, de compatibilizar<br />
desenvolvimento econômico e social com a utilização racional dos<br />
recursos naturais, pensando na presente e futuras gerações.<br />
A educação ambiental está inserida no texto constitucional como<br />
uma meta de efetivação, pelo Estado, de garantir o direito a um meio<br />
ambiente ecologicamente equilibrado para preservação da vida. O<br />
inc. VI, do art. 225, da CF/88, assim dispõe: “promover a educação<br />
ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública<br />
para a preservação do meio ambiente”.<br />
Em razão de ser uma regra constitucional que impõe um dever ao<br />
Poder Público para garantir um direito fundamental às pessoas, podese<br />
entender que a educação ambiental deve ser classificada como<br />
princípio.<br />
Os princípios, como regras constitucionais, possuem um caráter<br />
deontológico, à medida que dizem o que deve ser. Stumm (1995, p.43)<br />
sintetiza a conceituação entendendo, como a maioria da doutrina, que<br />
“os princípios são mandados de otimização, quer dizer que o seu<br />
comando deve ser realizado da melhor maneira possível”.<br />
Princípios, então, poderiam ser classificados como premissas<br />
introduzidas no direito, porém oriundas, especialmente, das noções<br />
básicas de filosofia acerca do ser humano, deste como pessoa e de<br />
suas necessidades individuais e coletivas, em todas as acepções<br />
conceitualísticas.<br />
Mas os princípios são normas, são regras, valores ou outro? A<br />
questão não é pacífica, embora haja alguma convergência doutrinária.<br />
Dworkin (apud SANTOS,1999, p. 41) acredita que os princípios são<br />
exigências de justiça, de equidade ou de qualquer outra dimensão<br />
da moral, indicam um objetivo a ser alcançado, em geral, um<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 113
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
melhoramento em algum aspecto econômico, político, social da vida<br />
da comunidade. Seriam Standarts para cada área de aplicação do<br />
direito.<br />
Para Esser (apud ÁVILA, 2005, p.27), “[...] princípios são aquelas<br />
normas que estabelecem fundamentos para que determinado<br />
mandamento seja encontrado”. A diferença entre princípios e regras,<br />
para o autor citado, seria uma distinção qualitativa. No mesmo norte,<br />
Larentz, citado por Ávila (2005, p.27), entende que “[...] os princípios<br />
seriam pensamentos diretivos de uma regulação jurídica existente<br />
ou possível, mas que ainda não são regras suscetíveis de aplicação<br />
[...]”. Significa dizer que aos princípios faltaria a conexão entre uma<br />
hipótese de incidência e uma consequência jurídica.<br />
A doutrina não converge neste ponto, embora aquela ideia seja a<br />
mais aceitável. Alexy (apud SANTOS,1999, p.48) entende que tanto<br />
as regras quanto os princípios são normas, pois dizem o que devem<br />
ser pertencendo ao âmbito deôntico. Conclui que<br />
os princípios, tal qual as regras, são razões para juízos concretos<br />
de dever ser, ainda que sejam razões de diferentes tipos. Enfim, a<br />
distinção entre os dois é, pois, uma distinção entre duas espécies<br />
de normas. Toda norma ou é uma regra ou é um princípio<br />
Nota-se, pois, que há divergências na conceituação dos princípios<br />
e, não bastasse isso, igualmente não convergem os autores quando<br />
tentam traçar distinções entre regras e princípios, especialmente no<br />
tocante aos critérios escolhidos por um e outro. A doutrina segue três<br />
caminhos diferentes para a conceituação dos princípios, a saber: o<br />
primeiro, refere-se à impossibilidade de qualquer separação entre<br />
regras e princípios; o segundo sustenta que a dessemelhança é tão<br />
somente de grau; e o terceiro aponta não apenas uma diferença de<br />
grau, mas qualitativa.<br />
Princípios e regras guardam significados diferentes, embora<br />
possam convergir na ideia de eficácia, por se tratarem de dever-<br />
-ser, muito embora aqueles serem normas mais abertas que estas.<br />
Observe-se que, quando há conflitos entre regras, esses podem ser<br />
resolvidos em face da hierarquia das normas ou da especialidade.<br />
114 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
Tratando-se de princípios, o conflito somente seria resolvido na<br />
dimensão de ‘peso’, de valoração, fazendo com que um dos dois em<br />
conflito ceda em frente ao outro, mantendo-se, destarte, a validade de<br />
ambos. Regra e princípio são, pois, diferentes.<br />
Os princípios distinguem-se, de igual forma, dos valores, não<br />
obstante alguns autores insistirem na exclusiva ideia axiológica dos<br />
princípios. Princípios, como se disse antes, na esteira de Fernando<br />
Ferreira dos Santos, existem no âmbito deontológico, na esfera do<br />
dever-ser (juízos de obrigação: X é devido). Os valores, porém, são<br />
conceitos axiológicos na esfera do bom (Juízos de valor: X é bom)<br />
(SANTOS, 1999).<br />
Regras, princípio e valor têm convergências entre si e cada um<br />
está para o outro de forma a complementar-se. Bonavides, citado<br />
por Santos (1999, p.54), entende que “a jurisprudência dos valores<br />
é a mesma jurisprudência dos princípios e, se interpenetrando com<br />
a jurisprudência dos problemas, forma a espinha dorsal da Nova<br />
Hermenêutica”, proporcionando critérios e meios de interpretação<br />
visando melhor acesso à tríade normativa – regra-princípio e valor.<br />
Com efeito, a educação ambiental, como princípio, não se insere<br />
no campo da discricionariedade administrativa, ou seja, não se cogita<br />
em submetê-la a segundo plano em razão de escolha de prioridades<br />
pelos governos. Há, pois, obrigação de atuação.<br />
Consoante o caráter principiológico, de dever-ser, da educação<br />
ambiental na Constituição Federal, para prosseguimento de sua<br />
efetividade, foi publicada a Lei nº 9.795, de 27-4-1999, tratando da<br />
Política Nacional de Educação Ambiental, regulamentada pelo Decreto<br />
nº 4281, 25-6-2002.<br />
Do pensamento essencial do princípio constitucional, a educação<br />
ambiental ganhou conceito de contornos específicos, no art. 1º da<br />
lei acima referida, como sendo “os processos por meio dos quais o<br />
indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos,<br />
habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação<br />
do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia<br />
qualidade de vida e sua sustentabilidade”.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 115
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO DI<strong>RE</strong>ITO BRASILEIRO<br />
A par da referência constitucional citada, v.g. caput e inc. VI,<br />
do § 1º, do art. 225, específica no tocante ao meio ambiente e o<br />
princípio da educação ambiental, cumpre-nos salientar que o art.<br />
6º, caput, da mesma Carta, elegeu a educação como direito social<br />
e de competência comum entre a União, Estados, Distrito Federal e<br />
Municípios proporcionar os meios de acesso à educação (inc. V, do<br />
art. 23, CF/88), bem como, excetuando-se os Municípios, aqueles<br />
entes estatais concorrem na competência de legislar sobre educação<br />
(inc. IX, art. 24, CF/88).<br />
Entretanto, a educação, além de ser um direito social de todos e<br />
dever do Estado, também é dever da família, devendo ser promovida<br />
e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno<br />
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania<br />
e sua qualificação para o trabalho, a teor do disposto no art. 205 da<br />
CF/88.<br />
Antes, porém, de a educação ambiental ser elevada ao status<br />
constitucional (na Carta de 1988), o instituto já havia sido referido na<br />
Lei nº 6.938, de 31-8-1981, que dispôs sobre a Política Nacional do<br />
Meio Ambiente, como um princípio a ser atendido pelo Estado com o<br />
fim de preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental<br />
propícia à vida, visando assegurar o desenvolvimento socioeconômico<br />
aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da<br />
vida humana (art. 2º). O inc. X, do art. 2º, disciplina que para atingir<br />
os fins antes citados deve-se atender à “educação ambiental a todos<br />
os níveis de ensino inclusive a educação da comunidade, objetivando<br />
capacitá-la para participação ativa na defesa do meio ambiente”.<br />
Posteriormente a Lei nº 6.938/81 veio a ser regulamentada<br />
pelo Decreto nº 99.274, de 6-6-1990, que repisou a atribuição do<br />
Poder Público, nos seus diferentes níveis de governo, “orientar a<br />
educação, em todos os níveis, para a participação ativa do cidadão<br />
e da comunidade na defesa do meio ambiente, cuidando para que os<br />
currículos escolares das diversas matérias obrigatórias contemplem o<br />
estudo da ecologia” (inc. VII, do art. 1º).<br />
116 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
A legislação infraconstitucional posterior também não se descurou<br />
dos preceitos constitucionais, reiterando-os, como se verifica na Lei<br />
nº 9.394, de 20-12-1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação<br />
Nacional – LDB, em cujo caput do art. 2º estabelece que “A educação,<br />
dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade<br />
e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno<br />
desenvolvimento do educado, seu preparo para o exercício da<br />
cidadania e sua qualificação para o trabalho”.<br />
Importante salientar que, mesmo antes da publicação da política<br />
nacional de educação ambiental pela Lei nº 9.795/99, a LDB impunha<br />
esse viés específico nos objetivos do ensino fundamental quando,<br />
no inc. II, do art.32, infere que aquela formação se dá mediante “a<br />
compreensão do ambiente natural e social, do sistema político,<br />
da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a<br />
sociedade”.<br />
Não obstante a igualdade de tema, mesmo que a educação<br />
ambiental esteja inserida na generalidade educação, a LDB orienta-<br />
-se na limitação dos currículos e conteúdos mínimos fixados em<br />
diretrizes (inc. IV do art. 9º), baseada no princípio de ministração do<br />
ensino dentro do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas<br />
(inc. III do art. 3º), regrando que a educação ambiental não deve ser<br />
implantada como disciplina específica no currículo de ensino.<br />
Porém a incumbência do Poder Público prevista na Lei n. 9.795,<br />
de 27 de abril de 1999, e o Decreto nº 4.281, de 25 de junho de 2002,<br />
que dispõe sobre a educação ambiental e institui a Política Nacional<br />
de Educação Ambiental, parece ser mais abrangente. Estas normas<br />
específicas deixam claro que a educação ambiental é um componente<br />
essencial e permanente da educação nacional, com presença de forma<br />
articulada em todos os níveis e modalidades do processo educativo,<br />
seja em caráter formal ou não formal. No inc. I, do art. 3º da Lei nº<br />
9.795/99, está a incumbência de o Poder Público definir as políticas<br />
públicas que incorporem a dimensão ambiental, promovendo-a<br />
em todos os níveis de ensino e no engajamento da sociedade na<br />
preservação, recuperação e melhoria do meio ambiente.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 117
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
Convergem as regras gerais de educação da LDB com as<br />
disposições das leis específicas (§ 1º, do art. 10, da Lei nº 9.795/99)<br />
quanto à exclusão da educação ambiental como disciplina específica<br />
no currículo de ensino, evidenciando-se uma restrição distante da<br />
incumbência pública acima referida.<br />
Ainda na Lei nº 9.795/99, a educação ambiental divide-se<br />
em formal e não formal. Segundo seu art. 9º, a educação formal é<br />
a educação escolar, desenvolvida no âmbito dos currículos das<br />
instituições de ensino, públicas e privadas, englobando educação<br />
básica (infantil, fundamental e média); educação superior; educação<br />
especial; educação profissional; educação de jovens e adultos.<br />
Antes desse regramento, a LDB, Lei nº 9.394/96, já disciplinava o<br />
formalismo em cada uma das mesmas modalidades, começando pelo<br />
art. 21 (educação básica), desdobrada no art. 29 (educação infantil),<br />
art. 32 (ensino fundamental), art. 35 (ensino médio), art. 37 (educação<br />
de jovens e adultos), art. 39 (educação profissional), art. 43 (educação<br />
superior) e, finalmente, art. 58 (educação especial). Nota-se, portanto,<br />
que a modalidade de educação formal se revela em mais uma estreita<br />
ligação entre as normas referidas na medida em que tratam do tema<br />
‘educação’.<br />
Por outro lado, a educação não formal, que não encontra<br />
correspondente na LDB, segundo o art. 13, da Lei nº 9.795/99,<br />
compreende as ações e práticas educativas voltadas à sensibilização<br />
da coletividade sobre as questões ambientais e à sua organização e<br />
participação na defesa da qualidade do meio ambiente.<br />
O Direito brasileiro, como se viu, em face da obrigação estatal de<br />
garantir, por meio da educação ambiental, o direito ao meio ambiente<br />
ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida,<br />
prevê vasta legislação afirmativa e assecuratória daquele que é um<br />
bem de uso comum do povo.<br />
OBJETIVOS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL<br />
O art. 5º e seus incisos, da Lei nº 9.795/99, enumera os objetivos<br />
fundamentais da educação ambiental como sendo “o desenvolvimento<br />
118 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
de uma compreensão integrada do meio ambiente em suas múltiplas<br />
e complexas relações, envolvendo aspectos ecológicos, psicológicos,<br />
legais, políticos, sociais, econômicos, científicos, culturais e éticos<br />
(inc. I); a garantia de democratização das informações ambientais<br />
(inc. II); o estímulo e o fortalecimento de uma consciência crítica sobre<br />
a problemática ambiental e social (inc. III); o incentivo a participação<br />
individual e coletiva, permanente e responsável na preservação do<br />
equilíbrio do meio ambiente, entendendo-se a defesa da qualidade<br />
ambiental como um valor inseparável do exercício da cidadania ( inc. IV);<br />
o estímulo à cooperação entre as diversas regiões do País, em níveis<br />
micros e macrorregionais, com vistas à construção de uma sociedade<br />
ambientalmente equilibrada, fundada nos princípios da liberdade,<br />
igualdade, solidariedade, democracia, justiça social, responsabilidade<br />
e sustentabilidade (inc. V); o fomento e o fortalecimento da integração<br />
com a ciência e a tecnologia (inc. VI); e o fortalecimento da cidadania,<br />
autodeterminação dos povos e solidariedade como fundamento para<br />
o futuro da humanidade” (inc. VII).<br />
Com efeito, esse conjunto de objetivos fundamentais constitui-se<br />
em metas permanentes para assegurar a efetividade do direito a um<br />
meio ambiente ecologicamente equilibrado, em todas as dimensões,<br />
essencial à sadia qualidade de vida de todos desta e das futuras<br />
gerações, como preconizado no art. 225, caput, da CF/88.<br />
EDUCAÇÃO AMBIENTAL, DESENVOLVIMENTO E<br />
SUSTENTABILIDADE<br />
A ideologia da sociedade industrial, baseada em noções sobre<br />
crescimento econômico, padrões de vida cada vez melhores,<br />
necessidades tecnológicas e efemeridade dos produtos, contribuiu<br />
para a presente crise ambiental, da qual a maioria das pessoas não<br />
percebe sua existência.<br />
Edis Milaré (2009) entende que a sociedade atual é de incertezas,<br />
porém dispõe de informações razoáveis da trajetória humana<br />
percorrida até o momento para perceber e agir em relação ao estado<br />
das coisas atuais que chama de ‘questão ambiental’.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 119
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
Infere que a evolução histórica atesta alterações nos ecossistemas<br />
planetários impostas pela presença do homem, por vezes intencionais,<br />
cujos efeitos, hoje visíveis, acarretaram a dilapidação do patrimônio<br />
natural formado lentamente pelos tempos geológicos e biológicos,<br />
sem possibilidade de retorno.<br />
Lembra, na perspectiva da trajetória humana referida, ter havido<br />
um equívoco nos processos de desenvolvimento das nações, visto<br />
que “[...] o processo de desenvolvimento dos países se realiza,<br />
basicamente, à custa dos recursos naturais vitais, provocando<br />
deterioração das condições ambientais em ritmo e escala até ontem<br />
ainda desconhecidos” (MILARÉ, 2009, p. 59).<br />
Resultou, deste processo de desenvolvimento, um desequilíbrio<br />
ecológico que se acentua a cada dia. Destacam-se consequências<br />
como florestas devastadas, lençol freático, rios e lagos contaminados,<br />
chuva ácida, dejetos e lixo urbano sem tratamento e em excesso,<br />
poluição de toda espécie, ar irrespirável, contaminação do solo<br />
e do mar, construções desordenadas das cidades, crescentes<br />
desigualdades sociais, epidemias, desemprego, sub-emprego,<br />
alimentos contaminados, extinção de espécies animais, alteração<br />
climática pelo aquecimento global, entre outras.<br />
Milaré (2009) não tem dúvidas de que a ‘questão ambiental’, neste<br />
contexto revelador da utilização desmedida dos recursos naturais, “é<br />
uma questão de vida ou morte, tanto de animais e plantas quanto<br />
do próprio homem e do Planeta que nos abriga”. Apesar disso, nem<br />
sempre sensibiliza a sociedade e seus dirigentes.<br />
Em 1972, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio<br />
Ambiente, em Estocolmo, com a participação de 113 países, entre<br />
eles o Brasil, foi dado o alerta da gravidade dos riscos presentes e<br />
futuros à medida em que os países ricos industrializados revelaram<br />
a degradação ambiental por si produzidas em decorrência do modelo<br />
econômico utilizado, resultando na escassez de recursos naturais.<br />
Leff (2009, p. 27-28) destaca a divisão entre as nações<br />
desenvolvidas e as subdesenvolvidas, atribuindo àquelas a geração<br />
do processo de subdesenvolvimento destas em razão da globalização<br />
120 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
do capital com intercâmbios desiguais e transferências de riquezas.<br />
Por tais razões, entre outras, não houve consenso na Conferência das<br />
Nações Unidas sobre Meio Ambiente havida em Estocolmo em 1972,<br />
não obstante o alerta dos países ricos, porém a questão ambiental<br />
ganhou visibilidade pública.<br />
Conclui Leff (2009, p. 33) “[...] que o sistema capitalista rompeu<br />
a harmonia entre os sistemas naturais e as formações sociais”.<br />
Milaré (2009, p. 60-61), do mesmo modo, considerando os vários<br />
aspectos deste quadro, e em vista deste, percebe que “houve uma<br />
perda de identidade do homem com a natureza e do sentido de<br />
mútua dependência, fomentando uma ruptura artificial entre ambos e<br />
repercutindo profundamente naquilo que se convencionou chamar de<br />
qualidade de vida”.<br />
Além da degradação do meio ambiente natural pela sociedade<br />
industrial de contínuo crescimento econômico, Guimarães (2004)<br />
amplia o debate sobre as dimensões da crise, informando que a<br />
sociedade atual também é marcada pela urbanização, que o fenômeno<br />
de concentração urbana é igualmente um fenômeno da sociedade<br />
industrializada, baseada em fábricas e serviços desvinculados do<br />
produto natural da terra. Revela-se uma urbanização crescente no<br />
Brasil, dado que a população urbana era de 32% em 1940, 50% em<br />
1970 e 80% em 2000, não sendo difícil concluir que atualmente já<br />
ultrapassou esse patamar.<br />
A conscientização deste momento de risco em que todos perdem<br />
suscitou a necessidade de mudanças na sociedade humana, visando<br />
à adoção de padrões adequados de utilização dos recursos naturais<br />
por parte das sociedades e nações. Surge, então, a sustentabilidade<br />
como uma saída para a crise.<br />
Silva (2005, p. 441-468), envidando a perspectiva histórica, indica<br />
que a primeira referência conceitual do que seria um desenvolvimento<br />
sustentável foi dada por Maurice Strong, Diretor Executivo do PNUMA,<br />
na primeira Reunião do Conselho Administrativo deste órgão, em<br />
1973, quando referiu o termo “ecodesenvolvimento” para definir<br />
um estilo de desenvolvimento adaptado às áreas rurais do Terceiro<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 121
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
Mundo, baseado na utilização dos recursos locais e na sabedoria<br />
tradicional, com o objetivo de não comprometer a natureza e satisfazer<br />
as necessidades das gerações futuras.<br />
Prossegue a autora informando que posteriormente o termo<br />
foi utilizado pelo economista Ignacy Sachs, que lhe deu concepção<br />
mais ampla e não apenas às áreas rurais. Segundo Sachs, o<br />
ecodesenvolvimento deve ser compreendido como a planificação do<br />
desenvolvimento que integra os seguintes aspectos de viabilidade:<br />
a viabilidade social, por meio de maior justiça na repartição das<br />
riquezas e das rendas; a viabilidade econômica, por uma repartição<br />
e uma gestão mais eficiente dos recursos, bem como um fluxo<br />
regular de investimentos públicos e privados; a viabilidade ecológica,<br />
considerando a capacidade de suporte do meio, o consumo de<br />
combustíveis fósseis e de bens materiais, incentivos às tecnologias<br />
limpas e regras para uma adequada proteção do meio ambiente; a<br />
viabilidade espacial pela manutenção do equilíbrio entre cidade e<br />
campo, e a repartição da população e da atividade econômica sob a<br />
integralidade do território; a viabilidade cultural fundada no respeito às<br />
tradições culturais e à pluralidade de soluções para cada ecossistema,<br />
assim como para cada cultura e para determinada situação.<br />
Seguindo-se na perspectiva histórica, revela a autora que em<br />
1987 a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento,<br />
das Nações Unidas (ONU), criada em 1983 com o objetivo de propor<br />
estratégias ambientais e cooperação entre países de diferentes<br />
estágios de desenvolvimento, lançou O Nosso Futuro Comum ou<br />
Relatório Brundtland (referência a Harlem Brundtland, quem presidiu<br />
a comissão) como um alerta contra a permanência dos modelos e<br />
padrões de produção e consumo. A fórmula enunciada no Relatório<br />
tornou popular o termo ‘desenvolvimento sustentável’, conceituando<br />
como “aquele que atende às necessidades do presente sem<br />
comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as<br />
suas próprias necessidades. Ele contém dois conceitos chaves: o<br />
conceito de “necessidade”, sobretudo as necessidades essenciais dos<br />
pobres do mundo, que devem receber a máxima prioridade; a noção<br />
122 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
de limitações que o estágio da tecnologia e da organização social<br />
impõe no meio ambiente, impedindo-o de atender as necessidades<br />
presentes e futuras”.<br />
A reflexão da autora citada conclui por distinguir três pilares<br />
indissociáveis na base do conceito de desenvolvimento sustentável: o<br />
econômico, o social e o ambiental.<br />
Outro marco dessa integração foi lançado pela agenda 21 Global,<br />
na Rio 92 à medida que considerou a complexa relação entre o<br />
desenvolvimento sustentável e o meio ambiente numa variedade de<br />
áreas, apontando como dimensões do conceito o cálculo econômico,<br />
aspecto biofísico e componente sóciopolítico como referências para<br />
modelo de sociedade.<br />
A sustentabilidade em qualquer atividade passa obrigatoriamente<br />
pela integração do aspecto temporal, significando que as ações<br />
devem atender a curto, médio e longo prazo, sendo intergeracional; do<br />
aspecto espacial, significa que as ações devem observar as questões<br />
físicas, biológicas e antrópicas; e da participação da sociedade de<br />
forma efetiva, na definição lançada por Machado (2004).<br />
Milaré (2009, p.66) sintetiza as dimensões da sustentabilidade<br />
ao efeito de atingir o equilíbrio, antes mencionado, entre sociedade<br />
humana e meio natural, como sendo as que abrangem o aumento<br />
de produtividade, criação de oportunidades políticas, econômicas e<br />
sociais iguais a todos, porém sem pôr em risco a atmosfera, a água, o<br />
solo, os ecossistemas, fundamentais à vida na Terra.<br />
O conceito não é pacífico, porém há convergência substancial<br />
nos conceitos citados, bem como entre estes e os quase sessenta<br />
significados encontrados na doutrina, diferindo-se entre si, por<br />
vezes, em maior ou menor amplitude acerca das dimensões que a<br />
sustentabilidade deve observar. Sintetizando os anseios contidos<br />
nos diversos conceitos, Velasco (2002, p.45) clama à sociedade para<br />
pensar a sustentabilidade “como significando melhorar a qualidade<br />
da vida humana sem ultrapassarmos a capacidade de suporte dos<br />
ecossistemas que a sustentam”.<br />
No Brasil, o alerta da crise ambiental global ecoou na positivação do<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 123
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
conceito de sustentabilidade tanto na legislação constitucional quanto<br />
na infraconstitucional, bem como em resoluções e regulamentações<br />
de vanguarda, impondo a si e à sociedade a transformação salutar na<br />
salvaguarda do meio ambiente em todas as suas dimensões.<br />
Estabeleceu como fundamento da República a dignidade da<br />
pessoa humana (in. III, do art. 1º, da CF/88) como norma matriz do<br />
dever-ser, fixando um mínimo existencial às pessoas que nenhuma<br />
outra norma pudesse suplantar sob pena de serem invalidadas. Fixou<br />
garantias personalíssimas de mesma ordem constitucional (art. 5º,<br />
caput e incs., da CF/88) e, entre elas, o direito ao meio ambiente<br />
ecologicamente equilibrado necessário à sadia qualidade de vida<br />
(art. 225, da CF/88); determinou responsabilidade social ambiental às<br />
atividades econômicas (inc. VI, do art. 170, da CF/88); o controle na<br />
produção comercial (inc. V, do § 1º, do art. 225, da CF/88); criou a<br />
Política Nacional do Meio Ambiente pela Lei nº 6.938, de 31-8-1981;<br />
o Estatuto da Cidade, pela Lei nº 10.257/2001, que, no inc. 1º, do<br />
art. 2º, estabelece a “garantia do direito às cidades sustentáveis,<br />
entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento<br />
ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços<br />
públicos, a trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.<br />
Não bastasse isso, na norma do inc. VIII do mesmo art. 2º transparece<br />
a adoção da sustentabilidade como objetivo da lei quando determina<br />
a adoção de padrões e consumo de bens e serviços e de expansão<br />
urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental,<br />
social e econômica do Município e do território sob sua influência”. A<br />
legislação que regulamenta norma constitucional de política urbana<br />
(art. 182) assinou tratados internacionais de controle de emissão de<br />
poluentes e em tantas outras matérias pontuais, condizentes com a<br />
sustentabilidade; publicou o Código de Defesa do Consumidor; a lei<br />
de educação ambiental, entre outras centenas de normas.<br />
A par da vasta legislação e regulamentação das atividades<br />
econômicas, o País vem atingindo metas de desenvolvimento<br />
econômico, mas com razoável transformação da realidade social, o<br />
que é facilmente verificado pela concentração de rendas havidas nos<br />
124 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
centros urbanos, pela concentração territorial da infra-estrutura urbana<br />
nas áreas centrais, pelo processo de favelização dos centros urbanos,<br />
pela devastação florestal em favor da agricultura, sem discussão com<br />
a sociedade, pelas deficiências nos serviços de educação, segurança<br />
e saúde pública. Tratam-se de condições que refletem na qualidade<br />
de vida da sociedade.<br />
Importante repisar que a sociedade atual, na sua grande maioria,<br />
vive nas cidades, onde devem gozar sua existência com qualidade de<br />
vida sadia e equilibrada.<br />
A respeito das cidades, convém trazer à baila o alerta de Fernandes<br />
(2006, p.3-23), ressaltando que as conquistas legais não poderiam, por<br />
si sós, ser tomadas como garantidas, pois a verdadeira reforma urbana<br />
ainda depende de diversos fatores, especialmente da renovação da<br />
mobilização social e política em torno da questão urbana.<br />
A mobilização social depende da participação das pessoas nos<br />
processos democráticos, tornando-se corresponsável na proteção da<br />
sua qualidade de vida que é umbilicalmente ligada à existência de um<br />
meio ambiente ecologicamente equilibrado.<br />
Com efeito, o que se vê na sociedade atual, ao contrário, é a<br />
busca de um crescimento econômico sem ética, voltado para um<br />
consumismo incapaz de existir sem a destruição do mundo natural e<br />
sem um olhar voltado para a coletividade, especialmente diante das<br />
desigualdades sociais.<br />
Destaca-se que a sociedade atual ainda age voltada para a<br />
realização individual, enquanto aumentam as massas de excluídos<br />
como resultado deste mundo social desestruturado e privatizado pelo<br />
império do consumo mercantil, por novos modos de vida centrados no<br />
dinheiro, pela vida do presente, pela satisfação imediata dos desejos.<br />
Há consumo insustentável.<br />
Os limites da natureza como fonte dos recursos desta produção<br />
não parecem ser levados em conta pelo indivíduo da sociedade<br />
atual. Logo, o desenvolvimento parece não estar sendo evidenciado<br />
dentro das dimensões que conferem a sustentabilidade consoante os<br />
conceitos referenciais citados.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 125
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
Carlos Gabaglia Penna, referido por Milaré (2009, p.66), declina<br />
que “[...] o desenvolvimento sustentável, por enquanto, é apenas um<br />
conceito, uma formulação de objetivos, e tem se incluído, cada vez<br />
mais, na retórica desenvolvimentista, nos discursos dos que pregam<br />
o crescimento econômico constante. É um novo instrumento de<br />
propaganda para velhos e danosos modelos de desenvolvimento”.<br />
A observação ganha relevância quando somada à lição de<br />
Machado (2004), já citada no texto, de que esse momento da sociedade<br />
atual está vinculado à conformação do Estado com a ficção legal do<br />
Direito Ambiental. Observa-se das posições a ausência de efetividade<br />
prática dos mecanismos legais.<br />
Escolher um comportamento prejudicial à sociedade como um todo<br />
fere uma exigência moral baseada na reciprocidade, na qual as pessoas<br />
morais devem respeito umas às outras, ensina Raz (2004, p.118-119), e<br />
justifica esse dever de respeito nas razões morais aduzindo que<br />
as razões morais advêm de quaisquer interesses morais válidos<br />
que possam gerar razões, e, uma vez que sabemos o que a<br />
moral exige em virtude desses motivos independentes, podemos<br />
saber o que devemos fazer para respeitar as pessoas (ou o meio<br />
ambiente, ou o que quer que seja), isto é, devemos nos adaptar<br />
às exigências morais válidas<br />
Há um conflito entre o comportamento dos indivíduos e as<br />
necessidades da sociedade como um todo, impedindo a efetiva<br />
sustentabilidade capaz de garantir a qualidade de vida das pessoas e<br />
do planeta, verificada apenas em pequenas células sociais. As razões<br />
são várias, e entre estas se inclui a necessidade de conscientização<br />
para a construção de novos valores que atendam o indivíduo e a<br />
coletividade como um todo.<br />
EDUCAÇÃO AMBIENTAL COMO VETOR DE<br />
TRANSFORMAÇÃO SOCIAL<br />
Como se viu no aspecto anterior, há entraves à ocorrência da<br />
sustentabilidade na sociedade atual, sendo a falta de conscientização<br />
da gravidade da situação ambiental e o comportamento voltado para<br />
126 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
a satisfação dos anseios pessoais em prejuízo da qualidade de vida<br />
da coletividade os mais destacados. Ressaltam-se, de igual forma, os<br />
valores da sociedade atual.<br />
No sentir de Jacobi (2005), este contexto implica principalmente<br />
a necessidade de estimular uma participação mais ativa da sociedade<br />
no debate dos seus destinos como uma forma de estabelecer um<br />
conjunto socialmente identificado de problemas, objetivos e soluções.<br />
Assim, a ideia de sustentabilidade implica a prevalência da premissa<br />
de que é preciso estabelecer uma limitação definida nas possibilidades<br />
de crescimento e um conjunto de iniciativas que levem em conta<br />
a existência de interlocutores e participantes sociais relevantes e<br />
ativos por meio de práticas educativas e de um processo de diálogo<br />
informado, inclusive permitindo que a população participe em nível<br />
mais alto dos processos decisórios, o que reforça um sentimento de<br />
corresponsabilização e de constituição de valores éticos.<br />
Logo, conclui Jacobi, o caminho para uma sociedade sustentável<br />
se fortalece na medida em que se desenvolvam práticas educativas<br />
que, pautadas pelo paradigma da complexidade, aportem para a<br />
escola e os ambientes pedagógicos uma atitude reflexiva em torno<br />
da problemática ambiental e os efeitos gerados por uma sociedade<br />
cada vez mais pragmática e utilitarista, visando à formação de novas<br />
mentalidades, conhecimentos e comportamentos.<br />
Segundo o autor, a carência de acessibilidade à informação e o<br />
déficit de práticas comunitárias sugerem maior provocação do papel<br />
indutivo do poder público nos conteúdos educacionais e informativos<br />
de sua oferta, como caminhos possíveis para alterar o quadro atual de<br />
degradação socioambiental.<br />
Nesse contexto, refere Jacobi, as práticas educativas devem<br />
apontar para propostas pedagógicas centradas na conscientização,<br />
mudança de comportamento e atitudes, desenvolvimento de<br />
competências, capacidade de avaliação e participação dos<br />
educandos. Isto desafia a sociedade a elaborar novas epistemologias<br />
que possibilitem o que Edgar Morin denomina de “uma reforma do<br />
pensamento”.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 127
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
Brandão (1985, p.7), como educador, pensa que<br />
ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na<br />
escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da<br />
vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar.<br />
Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias<br />
misturamos a vida com a educação.<br />
Para Brandão (1985), a educação se revela em formas diversificadas,<br />
livres, e entre todos pode ser uma das maneiras que as pessoas criam<br />
para tornar ‘comum’, como saber, como ideia, como crença, aquilo que<br />
é comunitário como bem, como trabalho ou como vida. Ela pode existir<br />
imposta por um sistema centralizado de poder, que usa o saber e o<br />
controle sobre o saber como armas que reforçam a desigualdade entre<br />
os homens na divisão dos bens, do trabalho, dos direitos e dos símbolos.<br />
Brandão (1985, p.10-11) infere ainda que<br />
[...] a educação é, como outras, uma fração do modo de vida<br />
dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras<br />
invenções de sua cultura, em sua sociedade. Formas de educação<br />
que produzem e praticam, para que elas reproduzam, entre todos<br />
os que ensinam-e-aprendem, o saber que atravessa as palavras<br />
da tribo, os códigos sociais de conduta, as regras do trabalho, os<br />
segredos da arte ou da religião, do artesanato ou da tecnologia<br />
que qualquer povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida<br />
do grupo e a de cada um dos sujeitos, através de trocas sem fim<br />
com a natureza e entre os homens, trocas que existem dentro do<br />
mundo social onde a própria educação habita, e desde onde ajuda<br />
a explicar – às vezes a ocultar, às vezes a inculcar – de geração<br />
em geração, a necessidade da existência de sua ordem.<br />
Educar é transformar pela teoria em confronto com a prática e<br />
vice-versa (práxis), com consciência adquirida na relação entre o eu<br />
e o outro, nós (em sociedade) e o mundo. É desvelar a realidade e<br />
trabalhar com os sujeitos concretos, situados espacial e historicamente.<br />
É, portanto, exercer a autonomia para uma vida plena,<br />
modificando-nos individualmente pela ação conjunta que nos conduz<br />
às transformações estruturais. Logo, a categoria educar não se esgota<br />
em processos individuais e transpessoais, engloba tais esferas, mas<br />
vincula-as às práticas coletivas, cotidianas e comunitárias que nos<br />
dão sentido de pertencimento à sociedade.<br />
128 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
Repisa-se que tanto a educação em si quanto a educação<br />
ambiental, que está inserida naquela, são direitos positivados na<br />
legislação brasileira. No tocante ao Direito à Educação Ambiental<br />
e à Conscientização de todos, Custódio (20<strong>08</strong>) infere que se torna<br />
patente que a educação ambiental, inseparável da permanente<br />
educação geral e da educação econômico-ambiental, da educação<br />
político-ambiental em geral ou da educação jurídico-ambiental em<br />
particular, constitui, na verdade, o caminho fundamental, o meio único<br />
capaz de conduzir qualquer pessoa ao imprescindível grau de real<br />
sensibilidade e de responsável tomada de consciência, aliado ao firme<br />
propósito, por meio de efetiva participação, contribuição ou ação, no<br />
sentido de explorar ou utilizar racionalmente a propriedade (própria<br />
ou alheia, pública ou privada), os recursos ambientais (naturais ou<br />
culturais) nela integrantes, bem como integrantes do meio ambiente<br />
e da natureza, em permanente defesa e preservação do patrimônio<br />
ambiental saudável, como condição essencial à continuidade da vida<br />
em geral e à sobrevivência da própria humanidade.<br />
Barcelos (20<strong>08</strong>) reflete que aprender a viver juntos se constitui,<br />
hoje, numa necessidade, sob pena de a barbárie sair vencedora, em<br />
vista de que nossa identidade é planetária e as consequências afetam<br />
todos neste mundo globalizado que incita o compartilhamento do<br />
mesmo consumo. Traz à reflexão o fato de que se estamos insatisfeitos<br />
com o caminho seguido até agora, há que pensar, inventar, recriar<br />
outro ou outros caminhos. Sugere um pensar e agir a partir de outras<br />
metodologias que passam pela educação ambiental.<br />
A educação ambiental assume parcela de responsabilidade pela<br />
edificação de um mundo social e ecologicamente mais justo, em<br />
contrapartida ao modo de pensar e agir que a sociedade continua<br />
adotando, mesmo que devastador ao ambiente natural e de negação<br />
ao outro do acesso ao básico (BARCELOS, 20<strong>08</strong>).<br />
Diante desta sociedade paradoxal, a construção de um mundo<br />
mais justo pela atuação da educação ambiental passa pela invenção de<br />
metodologias que auxiliem na construção de espaços de convivência<br />
a partir da solidariedade, cooperação, tolerância e amor com os seres<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 129
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
humanos e com as demais formas de vida existentes no planeta. Mas<br />
Barcelos (20<strong>08</strong>) adverte que para percorrer este caminho novo não se<br />
pode estabelecer previamente uma metodologia a ser utilizada numa<br />
determinada situação. A abordagem deve ser nova, outra, e sugere<br />
uma conversa com o grupo que se quer trabalhar e, a partir disso,<br />
desenvolver as atividades com o grupo.<br />
Barcelos (20<strong>08</strong>) rejeita o copiar modelos e estereótipos, visto<br />
que assim foi feito até agora e os resultados negativos se conhece,<br />
caracterizando-se em tradição que não dá mais conta dos desafios<br />
contemporâneos. Acredita no que nomeia como um aceitar-escutar<br />
em atitude de pausa, criando um espaço tempo em que os fatos que<br />
acontecem possam ser experienciados para transformar aquilo que<br />
acontece em algo significativo em nosso viver. Conclui o autor (20<strong>08</strong>,<br />
p.30-31), a partir do pensamento de Boaventura de Souza Santos,<br />
“[...] que o momento é de transição paradigmática, onde os mapas que<br />
até o momento nos orientavam e guiavam nossas viagens, perderam<br />
a confiabilidade e deixaram de ser-nos familiares”. Daí a necessidade,<br />
como dito, de construirmos novas metodologias de educação ambiental<br />
para que esta efetive seu papel transformador.<br />
Entende que sua proposta de criar novas metodologias a partir da<br />
referida ‘atitude de pausa’, com dever de permanente diálogo com a<br />
diversidade da sociedade, se presta a permitir que os educandos se<br />
sintam integrados à sociedade e não a serviço dela, como se percebe<br />
no modelo atual. Crê, pois, numa transformação, haja vista, segundo<br />
Paulo Freire, que “somos seres inacabados e, como tal, podemos<br />
aprender o tempo todo e em todos os lugares”.<br />
Tristão (2002) convalida esse pensamento de que não é possível<br />
buscar uma base conceitual única para lidar com as diferenças e<br />
antagonismos. Percebe a educação ambiental como multirreferencial<br />
na sua essência, visto que na pretensão de constituir um campo de<br />
conhecimento, noções e conceitos podem ser originários de várias<br />
áreas do saber. Ensina que a educação é auto-eco-organizativa,<br />
no sentido de que uma dimensão é atravessada por várias outras<br />
dimensões, assim como o sujeito é atravessado por várias identidades.<br />
130 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
Por isso, ainda que deva enfrentar desafios na contemporaneidade,<br />
de modo geral a educação ambiental deve ser entendida como prática<br />
transformadora, comprometida com a formação de cidadãos críticos<br />
e corresponsáveis por um desenvolvimento que respeite as mais<br />
diferentes formas de vida.<br />
Por tais razões, a educação ambiental pode ser identificada<br />
como um vetor de transformação social, porém essa transformação<br />
pode ecoar em vários destinos, revelando-se a necessidade de uma<br />
percepção renovada de mundo, uma forma integral de ler a realidade<br />
e de atuar sobre ela, suscitando novas metodologias que dialoguem<br />
entre os vários saberes, bem como inserindo o indivíduo como<br />
integrante da sociedade e corresponsável, é que poderá alcançar<br />
a sustentabilidade e a melhoria da qualidade de vida das pessoas,<br />
integradas ao planeta.<br />
EDUCAÇÃO AMBIENTAL E DI<strong>RE</strong>ITO DE INFORMAÇÃO<br />
A Lei nº 9.795, de 27-4-1999, que trata da Política Nacional de<br />
Educação Ambiental, regulamentada pelo Decreto nº 4281, 25-6-2002,<br />
divulgou conceito de contornos específicos da educação ambiental no<br />
seu art. 1º, como sendo,<br />
[...] os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade<br />
constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes<br />
e competências voltadas para a conservação do meio ambiente,<br />
bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida<br />
e sua sustentabilidade.<br />
Um dos processos de construção da educação ambiental é o<br />
direito de informação que, pelo acesso ao seu conteúdo, é capaz<br />
de qualificar o cidadão a atuar na sociedade. Segundo Milaré (200),<br />
a participação é um direito que pressupõe a informação e também<br />
um princípio (da participação comunitária) que expressa a ideia de<br />
cooperação entre Estado e sociedade pela participação dos diferentes<br />
grupos sociais na formulação e execução da política ambiental a fim<br />
de resolver os problemas do ambiente.<br />
O acesso à informação é uma garantia e se traduz no fornecimento<br />
dos meios efetivos de disponibilizar a informação que, somados à<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 131
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
capacidade individual e coletiva de usá-los, resulta no que chama de<br />
‘cidadania informacional’, o que seria uma espécie de ponto de partida<br />
para a conscientização do cidadão. Do contrário, não ter acesso à<br />
informação levaria a incompreensão.<br />
Porém a participação na vida social e política pode ser variável no<br />
tipo e intensidade dependendo da qualidade e quantidade de informação<br />
disponibilizada, refere Machado (2006), igualmente verificando estreita<br />
relação entre informação e participação. Neste aspecto, exalta a<br />
importante contribuição da sociedade civil que interfere no debate público<br />
e ajuda a balizar a opinião pública pela informação.<br />
A relevância do acesso à informação pode ser constatada em sua<br />
constitucionalização no rol das garantias fundamentais, disposta no<br />
inc. XIV, do art. 5º, da CF/88.<br />
À informação, podem-se atribuir diversos conceitos delimitados<br />
a partir de suas finalidades. Machado (2006, p. 25-27) diz que “[...] a<br />
informação é um registro do que existe ou do que está em processo de<br />
existir” em que os informes são identificados e organizados. Informar,<br />
por sua vez, segundo o autor, seria transmitir conhecimento, visto<br />
que, quando se informa, dá-se ciência ou notícia de um fato existente.<br />
Nesta transmissão do conhecimento, a informação vai ensejar da<br />
parte do informado a criação de novos saberes, por meio do estudo,<br />
da comparação ou da reflexão. Logo, entende que a transmissão da<br />
informação é condição sem a qual não há sociedade organizada como<br />
vida social continuada.<br />
Ao Estado cumpre a tarefa de sistematizar as informações e<br />
transformar em informação útil, difundindo-a para que alcance o<br />
maior número de pessoas e entidades. Objetivando sistematizar as<br />
informações necessárias para apoiar o processo de tomada de decisão<br />
na área ambiental em todos os níveis, foi criado o SINIMA – Sistema<br />
Nacional de Informações sobre Meio Ambiente –, como instrumento da<br />
Política Nacional do Meio Ambiente, e está previsto no inc. VII, do art.<br />
9º, da Lei nº 6938/81. Milaré (2007, p. 463-466) comenta que o SINIMA<br />
possui três aspectos fundamentais, a saber: 1 – desenvolvimento<br />
de ferramentas de acesso à informação baseadas em programas<br />
132 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
computacionais livres; 2 – sistematização de estatísticas e elaboração<br />
de indicadores ambientais; 3 – integração e interoperacionalidade de<br />
sistemas de informação.<br />
A informação se torna um instrumento de auxílio e detecção<br />
de problemas, busca de alternativas para a solução, avaliação e<br />
monitoramento das medidas adotadas e possibilita o controle social<br />
relacionado ao acesso a essas informações.<br />
O Estado também garantiu o acesso público aos dados e à<br />
informação que dispõe nos órgãos e entidades integrantes dos<br />
SISNAMA – Sistema Nacional do Meio Ambiente –, pela publicação<br />
da Lei nº 10.650, de 16 de abril de 2003 (vide art. 2º), podendo ser<br />
acessado por qualquer indivíduo, sem que se lhe exija comprovação<br />
de interesse sobre o que pretende acessar (vide § 1º, do art. 2º).<br />
Entretanto, Machado (2006, p.91, 209) infere que esta lei se tornou<br />
insuficiente diante da velocidade e da intensidade dos fatos poluidores<br />
dos ecossistemas, podendo comprometer a eficiência da informação<br />
ambiental, que deve se revelar com as características da tecnicidade,<br />
por sistemas informativos padronizados; da compreensibilidade,<br />
sendo imparcial, sem privilegiar pontos de vista, e da rapidez.<br />
Diante disso, Milaré (2009, p.472) conclui que a produção e a<br />
divulgação de informações ambientais, ou seja, versando sobre<br />
variáveis socioeconômicas, poluição, recursos naturais e o próprio<br />
ecossistema planetário constituem pressupostos lógicos e inafastáveis<br />
do desempenho eficiente da promoção da educação ambiental e da<br />
conscientização para a preservação do meio ambiente.<br />
No mesmo norte, a Lei nº 9.795/99, que dispõe sobre a educação<br />
ambiental e instituiu a política nacional de educação ambiental, determina<br />
que a educação ambiental deve ser desenvolvida por meio de linhas de<br />
atuação, interralacionadas, de desenvolvimento de estudos, pesquisas e<br />
experimentação voltadas para a difusão de conhecimentos, tecnologias e<br />
informação sobre a questão ambiental (art. 8º, inc. II, § 3º, inc. II).<br />
A toda evidência, a orientação serve para a persecução do objetivo<br />
da educação ambiental de garantir a democratização das informações<br />
ambientais (vide art. 5º, inc. II, da Lei nº 9.795/99).<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 133
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
Por tais razões, verifica-se que o Estado, de um lado, tem o dever<br />
de informar, e o cidadão, de outro lado, tem o direito à informação,<br />
servindo tais regulamentações para equalizar essa cooperação/<br />
dever/participação. Machado (2006) ressalva que a única maneira de<br />
exercer-se o direito à informação e de cumprir o dever de informar é<br />
fazê-lo livremente, o que denota responsabilidade ética. Contudo, essa<br />
liberdade só se completa com a liberdade de opinião e expressão que<br />
se efetiva com a liberdade de participação. Constata que a informação<br />
pode agir para libertar o ser humano e que a ausência dela pode<br />
provocar a subordinação e a opressão.<br />
Por outro lado, exceto pela informação disponibilizada pelos<br />
órgãos governamentais referidos acima, a qual o indivíduo precisa<br />
acessar, ou seja, buscá-la, de modo geral a informação precisa ser<br />
transmitida e, nesse processo, destacam-se os meios de comunicação<br />
de massa, partícipes na permanente disseminação de informações<br />
(vide art. 3º, inc. IV, da Lei nº 9.795/99) para conscientizar e ajudar a<br />
criar valores na sociedade.<br />
Machado (2006, p.196-194) refere que a conscientização é<br />
uma forma de instruir, porém não se processa só na intimidade das<br />
consciências. Os meios de comunicação social exercem inegável<br />
papel de formação de um sentido de responsabilidade pelo nosso<br />
destino coletivo. Provoca uma empatia em relação aos outros,<br />
desprovidos socialmente, aos animais ameaçados de extinção, às<br />
vítimas de ações humanas inescrupulosas, suscitando um sentimento<br />
de culpa ou tristeza. Assim, a difusão de imagens e informações pelos<br />
meios de comunicação ajudam a estimular e aprofundar um sentido de<br />
responsabilidade pelo mundo da natureza e pelo universo dos outros<br />
que não compartilham as mesmas condições de vida.<br />
Entretanto, há que se frisar que os meios de comunicação<br />
nem sempre cumprem a finalidade referida, porquanto, em vista do<br />
modelo atual de sociedade de consumo, percebe-se uma distorção<br />
na publicidade, que deveria ser instrumento de informação, passando<br />
a ser instrumento de persuasão, concorrência e até manipulação<br />
(MACHADO, 2006).<br />
134 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
Diante do exposto, subssume-se que a educação ambiental só é<br />
possível se garantido um direito fundamental anterior, que é o direito<br />
de informação, que se revela pelo direito ao acesso à informação<br />
ambiental, constituindo-se ambos em vetores da participação popular,<br />
corolário da democracia.<br />
CONCLUSÃO<br />
Da análise da concepção da sociedade atual por Boff e Lipowetky,<br />
constatou-se que vivemos uma nova civilização influenciada pela<br />
comunicação e imagem e informatização, formando uma nova<br />
concepção de vida, em que o valor das pessoas está na realização<br />
de si mesmas.<br />
Trata-se de um contexto social em que se verificam dois terços da<br />
humanidade apenas sobrevivendo. Significa que o acesso igualitário<br />
aos bens de consumo, postos como necessários à realização da<br />
pessoa, seja uma falácia, pois apenas os sonhos foram socializados<br />
pelos meios de comunicação.<br />
Poderia se admitir que a sociedade atual é a sociedade do<br />
hiperconsumismo, oriunda de uma construção cultural, social e<br />
educacional das pessoas como consumidores, onde o ato da compra<br />
é desculpabilizado, baseado num falso sentimento de abundância.<br />
Espécie de fase social em que a ordem econômica se ordena pelos<br />
princípios da redução e do efêmero, mobilizando a sociedade em<br />
torno de um cotidiano fácil e de conforto.<br />
A consequência deste contexto é que o planeta Terra e a natureza<br />
são reduzidos a um conjunto de recursos disponíveis à ganância do<br />
ser humano amparados na ideia de que somos seus proprietários.<br />
Em decorrência desses valores, especialmente o de que consumir<br />
reflete um anseio e identificação social, as desigualdades econômicas<br />
se aprofundam e o olhar para o outro se perde no individualismo<br />
descompromissado com as consequências de suas escolhas.<br />
Em razão de tal diagnóstico, o Estado obrigou-se a interferir na<br />
sociedade de consumo, especialmente pelo desequilíbrio havido na<br />
relação entre fornecedor e consumidor, na desigualdade cultural/<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 135
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
educacional entre as pessoas levando a restrição do direito ao acesso<br />
à informação sobre os produtos postos à venda por meio de técnicas<br />
de marketing e propaganda. Criou-se, então, o Código de Defesa do<br />
Consumidor como reação e como rumo ao exercício da cidadania.<br />
Pode-se dizer que, por esse caráter, o CDC se arvora como<br />
instrumento de educação ambiental. Porém não se evidencia como<br />
instrumento de reflexão, mas tão só de proteção numa relação de<br />
continuidade do ato de consumir.<br />
Mas a persecução do Estado não se limita à regulação das<br />
relações de consumo, haja vista a obrigação constitucional do Poder<br />
Público de promover o bem de todos, visando à dignidade da pessoa<br />
humana como um mínimo existencial.<br />
Insere-se neste dever estatal o de efetivar o direito de todos ao meio<br />
ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de<br />
vida (art. 225, da CF/88), que surge da necessidade de compatibilizar<br />
desenvolvimento econômico e social com a utilização racional dos<br />
recursos naturais, pensando na presente e nas futuras gerações.<br />
A propósito, para o exercício de qualquer direito, exige-se a<br />
consciência dele, fator que suscitou a criação de mecanismos, entre os<br />
quais, a educação ambiental, inserida na educação geral do País. Revela-<br />
-se a educação como um direito social, dever do Estado e da família,<br />
com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da<br />
pessoa e a seu preparo para o exercício da cidadania.<br />
A legislação é farta, desde a Constituição Federal à Lei de<br />
Diretrizes e Bases da Educação até a instituição da política nacional<br />
da educação ambiental.<br />
Importante ressaltar que as normas que tratam da educação<br />
ambiental estão na direção ambiental e não na educacional, logo,<br />
as normas estão distanciadas da prática administrativa usual da<br />
educação geral (LDB). Talvez neste ponto resida uma das dificuldades<br />
de implementação prática daquela, visto que se dissocia da tradicional<br />
educação formal já pela não implementação em currículo de ensino e<br />
sim implementada de maneira transversal.<br />
Com efeito, a par disso, num contexto de atingimento de metas de<br />
desenvolvimento econômico, se vê uma transformação social tímida,<br />
136 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
com concentração de renda, concentração territorial de infraestrutura<br />
urbana, favelização, deficiências na saúde pública, educação e<br />
segurança, enfim, percebe-se que o modelo de desenvolvimento não<br />
pode ser considerado sustentável senão como conceito e formulação<br />
de objetivos. É de se frisar que há retórica desenvolvimentista em<br />
discursos que só pregam o crescimento econômico.<br />
Igualmente não se verifica a participação ativa da sociedade<br />
nos debates dos seus destinos, revelando um distanciamento<br />
de identificação com a realidade e, pois, com a necessidade de<br />
transformação.<br />
Ainda, observou-se que sem confrontar a teoria com a prática<br />
não se desvela a realidade e não se cria consciência do outro na<br />
diversidade. O sentido de pertencimento à sociedade só se instalaria<br />
com a vinculação às práticas coletivas, cotidianas e comunitárias.<br />
A educação ambiental, por seus propósitos legais e pela situação<br />
de crise ambiental instalada, deveria induzir a uma reflexão se de fato<br />
estamos insatisfeitos com esse caminho percorrido e seus resultados.<br />
Se a resposta for positiva, de insatisfação, a ação e a prática deveriam<br />
estar voltadas para um pensar, inventar, criar ou recriar outro ou outros<br />
caminhos para se obterem resultados diferentes dos atuais.<br />
Daí decorre que a educação ambiental assume uma parcela<br />
de responsabilidade nesta edificação. O desvelamento da realidade<br />
socioambiental na forma proposta não está ocorrendo no ritmo<br />
exigido para a consciência da necessidade de um desenvolvimento<br />
sustentável ou em uma nova proposta de desenvolvimento, resultando<br />
na mantença da situação de sociedade de risco contemporânea.<br />
Evidentemente que o acesso à informação passa a ter papel<br />
fundamental para balizamento da opinião pública e surge por parte do<br />
Poder Público e da sociedade organizada, tratando-se de elemento<br />
necessário à persecução dos objetivos da educação ambiental.<br />
Desse modo, a educação ambiental se relacionaria com a<br />
cidadania, na qual cada cidadão pode ser sujeito de direitos e deveres,<br />
convertendo-se em ator responsável na defesa da qualidade de vida<br />
da coletividade.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 137
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
Por todo o exposto, conclui-se, sem a pretensão de esgotar o<br />
tema, que a educação ambiental não está cumprindo seu objetivo na<br />
sociedade atual, na forma e modelo em que está sendo realizada,<br />
senão em pequenas células sociais. Apropriando-se do pensamento<br />
de Henrique Leff, há que se direcionar a uma nova racionalidade<br />
ambiental capaz de subverter a ordem imperante entre as lógicas<br />
de vida e o destino das sociedades. Mas, não obstante a riqueza de<br />
metodologias verificadas como possíveis de alcançar este objetivo,<br />
suas implementações práticas requerem o esforço de toda sociedade,<br />
dos educadores e do Estado.<br />
Repise-se, porém, que o esforço referido não se verifica pela<br />
aparente falta de apropriação, pela sociedade, dos valores inerentes<br />
ao direito ambiental como forma de prover a si mesma dos elementos<br />
essenciais à sadia qualidade de vida, dissociando a sustentabilidade,<br />
nas dimensões ambiental, econômica e social, dos processos de<br />
desenvolvimento.<br />
Parece que a curto prazo os seres humanos terão que conviver<br />
com o estado de crise ambiental permanente no rumo do esgotamento,<br />
talvez sem volta aos padrões de equilíbrio do planeta e sociedade.<br />
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(FOBSIC) – Diputación de Barcelona, Consellería de Innovación<br />
e Industria de La Xunta de Galícia, Ayuntamiento de Cornellà de<br />
Llobregat e Secretaria de Telecomunicacions i Societat de la Informació<br />
da Generalitat de Catalunya, novembro-dezembro de 2006. Material<br />
da 4ª aula da Disciplina Direito Ambiental Constitucional, ministrada no<br />
Curso de Pós-graduação lato sensu televirtual em Direito Ambiental e<br />
Urbanístico – UNIDERP / <strong>RE</strong>DE LFG.<br />
RUSCHEINSKY, Aloísio . Educação ambiental – Abordagens<br />
Múltiplas. Porto Alegre: Artmed, 2002.<br />
______. As rimas da ecopedagogia: uma perspectiva ambiental. In:<br />
RUSCHEINSKY, Aloísio e colaboradores. Educação ambiental –<br />
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In: RUCHEINSKY, Aloísio e colaboradores. Educação ambiental<br />
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da pessoa humana. São Paulo: Celso Bastos, 1999.<br />
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MERCADANTES, Aramunta; MAGALHÃES, José Carlos de. (Orgs.).<br />
Reflexões sobre os 60 anos da ONU. Ijuí: Unijuí, 2005.<br />
SORJ, Bernardo. A democracia inesperada – Cidadania, direitos<br />
humanos e desigualdade social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,<br />
2004.<br />
STUMM, Raquel Denize. Princípio da proporcionalidade no direito<br />
constitucional brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 143
Juliane Colpo - Roberto Colpo<br />
TRISTÃO, Martha. As dimensões e os desafios da educação<br />
ambiental na sociedade do conhecimento. In: RUCHEINSKY, Aloísio<br />
e colaboradores. Educação ambiental abordagens múltiplas. Porto<br />
Alegre: Artmed, 2002.<br />
WALTER, Alice. Os valores da fast food e os valores da slow food.<br />
In: CAPRA, Fritjof, et.al. Alfabetização ecológica – A educação das<br />
crianças para um mundo sustentável. Tradução de Carmem Fischer.<br />
São Paulo: Cultrix, 2006.<br />
Recebido: 14-7-2014<br />
Aprovado: 20-9-2014<br />
144 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
Resumo<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />
DI<strong>RE</strong>ITO<br />
A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O<br />
DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />
The importance of bioethics to right: a reflection required<br />
Isabel Cristina Brettas Duarte 22<br />
O progresso da ciência tem causado mudanças na sociedade mundial e enseja relações jurídicas cada vez<br />
mais complexas, além de novos questionamentos, para os quais a legislação vigente não tem uma resposta<br />
exata e imediata. Vive-se uma crise de paradigmas na dogmática jurídica mistificada na neutralidade da<br />
ciência, além do descortinar de novas reflexões, assim como o surgimento de uma nova juridicidade,<br />
fundada nos princípios bioéticos, em especial na dignidade da pessoa humana e na responsabilidade, nos<br />
quais é balizada a utilização das novas biotecnologias.<br />
Palavras-chave: Direito. Bioética. Novas realidades. Novos olhares.<br />
Abstract<br />
The progress of science has caused changes in global society and in legal relations more complex, and new<br />
questions, to which the legislation not have an immediate and accurate response. We live in a paradigm<br />
crisis in legal dogmatic mystified the neutrality of science, as well as uncover new ideas as well as the<br />
emergence of a new juridical founded on the principles of bioethics, especially in human dignity and<br />
responsibility, in which is marked out the use of new biotechnologies.<br />
Keywords: Right. Bioethics. New realities. New looks.<br />
Sumário:<br />
1. Considerações iniciais; 2. Bioética: novas realidades, novos olhares; 3. Direito: novas realidades, novos<br />
olhares; 4. Considerações finais; 5. Referências.<br />
CONSIDERAÇÕES INICIAIS<br />
Os debates bioéticos são relativamente recentes na seara do<br />
Direito, tanto que se pode afirmar que eles fazem parte de uma moderna<br />
cultura jurídica, surgida a partir das novas exigências da sociedade em<br />
termos de novas interpretações e novas práticas jurídico-processuais.<br />
Nesse sentido, é importante lembrar o teor do famoso ditado romano,<br />
segundo o qual o Direito é feito por e para pessoas; pessoas não em<br />
22 Mestre em Direito, Mestre em Letras e Licenciada em Letras-Espanhol, todos pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai<br />
e das Missões (URI). Advogada da Procuradoria-Geral do Município de Santo Ângelo. Professora do curso de graduação em Direito<br />
do Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo (CNEC/IESA). E-mail: isabelcristinabd@yahoo.com.br.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 145-160
Isabel Cristina Brettas Duarte<br />
sua dimensão abstrata, mas em sua dimensão concreta, de acordo<br />
com suas especificidades, com a diversidade de características e<br />
papéis sociais que desempenham: internauta, velho, adolescente,<br />
enfermo, índio, criança, etc. Isso porque “os novos direitos materializam<br />
exigências permanentes da própria sociedade diante das condições<br />
emergentes da vida e das crescentes prioridades determinadas<br />
socialmente” (WOLKER, 2003, p. 3).<br />
O Direito é um fenômeno do mundo da cultura, a qual está<br />
imbricada na sociedade, demonstrando que a discussão ultrapassa<br />
as lindes jurídicas, penetrando nas diferentes formas de culturas e<br />
sociedades que coexistem na contemporaneidade – numa situação<br />
multicultural por excelência. E do reconhecimento de que a ciência<br />
também é falha decorre a insegurança – pode-se dizer que hostilizada<br />
na seara jurídica –, que traz o medo e a desconfiança ao novo. Nesse<br />
sentido, lembra ao Direito – em sua arraigada busca pela segurança<br />
jurídica – que a insegurança, a provisoriedade e a relatividade fazem<br />
parte da nossa condição humana.<br />
Apesar de e justamente por ser um tema polêmico sobre o qual<br />
não há respostas objetivas e imediatas, o importante e gratificante é<br />
trilhar o caminho, descobrindo que a cada passo dado, haverá muitos<br />
outros passos. Por isso, o papel do Direito é trilhar esse caminho<br />
juntamente com outras áreas do conhecimento, de forma a estar num<br />
permanente processo de discussão e reflexão. O Direito emerge das<br />
relações sociais, seu desenvolvimento através dos tempos obedeceu<br />
inexoravelmente aos vetores culturais, que trazem implicações<br />
jurídicas. Assim, se mudam os tempos, muda o Direito, que necessita<br />
amparar eficazmente as novas demandas que lhe são colocadas.<br />
Nesse contexto, partimos da premissa de que é preciso pensar<br />
a mudança de paradigmas 23 trazida pela ciência, situação esta<br />
vivenciada na sociedade multicultural. Afinal, tais rupturas não só têm<br />
o condão de transformar conceitos, mas também de transformar a vida<br />
das pessoas, ensejando, também, transformações no conhecimento<br />
23 Segundo Morin, “o paradigma é aquilo que está no princípio da construção das teorias, é o núcleo obscuro que orienta discursos<br />
teóricos neste ou naquele sentido. Existem paradigmas que dominam o conhecimento científico numa certa época e as grandes<br />
mudanças de uma revolução científica acontecem quando um paradigma cede seu lugar a um novo paradigma, isto é, há uma<br />
ruptura das concepções do mundo de uma teoria para outra” (MORIN, 2000, p. 45).<br />
146 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />
jurídico e, principalmente, o anseio por novos conhecimentos que<br />
precisam se integrar ao arcabouço jurídico para que o Direito possa<br />
dar respostas satisfatórias e coerentes às novas questões que lhe são<br />
postas.<br />
O estudo proposto direciona-se em busca de uma prática jurídica<br />
reflexiva voltada às necessidades, aos conflitos e aos problemas da<br />
vida humana em seus aspectos social, cultural, político e filosófico,<br />
pois a complexidade da vida humana apresenta novos desafios ao<br />
Direito. Ela exige reflexão, novas posturas, cuidados específicos e,<br />
principalmente, “instrumentos jurídicos adequados para viabilizar a<br />
materialização dos novos direitos e garantir sua tutela jurisdicional, [...]<br />
por meio da construção de um novo paradigma para a teoria jurídica,<br />
capaz de contemplar o constante e o crescente aparecimento histórico<br />
dos novos direitos” (WOLKER, 2003, p. 4).<br />
BIOÉTICA: NOVAS <strong>RE</strong>ALIDADES, NOVOS OLHA<strong>RE</strong>S<br />
A revolução biotecnológica ocorrida de algumas décadas para<br />
cá trouxe a estranha e paradoxal sensação de fascínio e temor e a<br />
consequente pergunta: para onde vamos? Para responder a esta<br />
pergunta, surge a Bioética como uma “ciência que se propõe a estabelecer<br />
uma ponte entre as mais diversas tecnologias. Encontrando-se no ponto<br />
de convergência de uma multiplicidade de saberes, a Bioética é uma das<br />
esperanças de que, em meio às possibilidades oriundas de tamanho<br />
saber e de tamanho poder, acabe triunfando o bom senso” 24 .<br />
Hoje, postula-se uma mudança de paradigmas, pois não mais se<br />
admite o dualismo cartesiano como modelo científico, embora haja<br />
o entendimento de que o modelo hegemônico de métodos científico<br />
continua sendo o cartesiano. Nesse sentido, interessante trazer o<br />
que Capra mencionou a respeito do modelo cartesiano: “sua rigorosa<br />
24 Nesse bom senso, o questionamento passa pela reflexão: “ser humano é ousar, sim, avançar, progredir, crescer; não obstante,<br />
para onde e para quê? Para ser feliz [...] Tecnologia para ser feliz? Comumente, quem é feliz vive com amor ou sabe amar e lutar.<br />
Por conseguinte, progresso verdadeiro, é amar, amizade, solidariedade, vida sem estresse, ser humano respeitado, aceitação do<br />
outro, medicina promotora da saúde. Como nossas instituições sociais têm priorizado tais fins humanos? Que impacto tem em nossa<br />
consciência a precariedade dada nas doenças da pobreza, e mais, das grandes doenças causadas pela riqueza, ou acumulação<br />
dela? Quais os direitos das gerações futuras? Somos máquinas nas mãos de médicos-mecânicos ou seres afetivo-simbólicos<br />
culturais? Somos passíveis de melhoramento genético ou é melhor investir mais no progresso humano-pessoal?” (PELIZZOLI, 2007,<br />
p. 11).<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 147
Isabel Cristina Brettas Duarte<br />
divisão entre corpo e mente levou os médicos a se concentrarem<br />
na máquina corporal e a negligenciarem os aspectos psicológicos,<br />
sociais e ambientais da doença” 25 , para então tratar da nova realidade,<br />
que exige uma concepção sistêmica da vida, baseada na consciência<br />
do estado de inter-relação e interdependência essencial de todos os<br />
fenômenos – físicos, biológicos, psicológicos, sociais e culturais, visão<br />
esta que transcende as atuais fronteiras disciplinares e conceituais.<br />
A humanidade como um todo está contextualizada num ambiente<br />
de diferenças e contradições, tendo que conviver com diversos pontos<br />
de vista, muitas vezes incompatíveis entre si. E a Bioética, por seu<br />
caráter multidisciplinar, tem muitas contribuições a dar, justamente<br />
porque abrange diversas áreas do conhecimento científico, como<br />
a Biologia, a Medicina, a Sociologia, a Psicologia, a Filosofia, a<br />
Antropologia, o Direito, entre outros.<br />
Certamente, o Direito, que não pode se furtar aos desafios<br />
levantados pela ciência: deve estar imiscuído nessa interface entre<br />
as ciências. Para tanto, é necessário abrir-se a novos campos<br />
conceituais, terminologias até então estranhas ao seu arcabouço, o<br />
que de certa forma explica o desinteresse com que muitas vezes a<br />
Bioética é tratada no âmbito jurídico 26 .<br />
A importância da Bioética quando se trata de questões envolvendo a<br />
biotecnologia reside em evitar que o homem avance sobre a humanidade,<br />
manipulando a natureza humana de maneira a por em risco a vida<br />
humana, pois deve ser deixada de lado a “doutrina ingênua segundo a<br />
qual toda ciência é necessariamente verdadeira e todo conhecimento<br />
verdadeiro é necessariamente científico” (ZIMAN, 1996, p. 12-13). Daí a<br />
comparação de Hernández com uma lendária história mitológica:<br />
25 Segundo Capra, “o modelo biomédico está firmemente assente no pensamento cartesiano. Descartes introduziu a rigorosa<br />
separação entre mente e o corpo, a partir da ideia de que corpo é uma máquina que pode ser completamente entendida em<br />
termos da organização e do funcionamento de suas peças. Uma pessoa saudável seria como um relógio bem construído e em<br />
perfeitas condições mecânicas; uma pessoa doente, um relógio cujas peças não estão funcionando apropriadamente” (p. 132), e<br />
que “a divisão cartesiana influenciou a prática da assistência à saúde em vários e importantes aspectos: em primeiro lugar, dividiu<br />
a profissão em dois campos distintos com muito pouca comunicação entre si. Os médicos ocupam-se do tratamento do corpo, os<br />
psiquiatras e psicólogos, da cura da mente” (CAPRA, 1982, p. 134).<br />
26 Nesse sentido, “para que seja possível a discussão jurídico-filosófica sobre os avanços da manipulação genética, faz-se<br />
imprescindível que os pesquisadores das ciências humanas tomem conhecimento de aspectos técnicos da reprodução, estudando<br />
conceitos da Biologia bem como da Medicina, que propiciem um alicerce para seus estudos e suas futuras conclusões. Além de<br />
conhecer os aspectos técnicos da manipulação genética, o filósofo bioético tem que se manter atento às investigações e seus<br />
resultados” (PELIZZOLI, 2007, p. 90).<br />
148 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />
A engenharia genética abriu a caixa de Pandora de nossos medos<br />
ancestrais. De repente, algumas das nossas seguranças mais<br />
íntimas tornaram-se inseguras, e fomos forçados a desenvolver<br />
respostas a perguntas complexas para as quais não estávamos<br />
preparados. Na confusão, buscamos referências claras e fomos<br />
forçados a legislar rapidamente e, por vezes desordenadamente,<br />
sobre questões duvidosas e de uma considerável dificuldade<br />
conceitual e tecnológica (HERNÁNDEZ, 2000, p. 12, Tradução<br />
nossa).<br />
A Bioética é justamente uma das facetas da ética, sendo que uma<br />
das suas principais atribuições é conter e impor limites, utilizando-se dos<br />
ensinamentos e princípios bioéticos, já que este ramo da ética filosófica<br />
surgiu recentemente para analisar teoricamente os valores, normas<br />
e princípios que ordenam os avanços científicos e tecnológicos. A<br />
magnitude alcançada pela Bioética na atualidade é revelada justamente<br />
pela diversidade de tópicos que florescem e evoluem desde a sua<br />
gênese, descortinando o rol das complexas preocupações de ordem<br />
ética:<br />
As condições de origem da Bioética nos revelam um forte<br />
sentimento de defesa e salvaguarda do homem, em sua<br />
singularidade, individualidade e na universalidade de sua<br />
humanidade. Isto ocorreu juntamente com uma inequívoca<br />
afirmação do respeito à condição humana e do valor incondicional<br />
do próprio homem. Há uma orientação aceita no sentido de<br />
impor limites ao vasto campo da investigação científica aplicada<br />
ao ser humano, na multiplicidade de seus modos de ser e de<br />
existir. A generalização das inquietudes sociais deve ser limitada<br />
a um plano da normatividade e de reflexão enquanto exigência<br />
de fundamentação do comportamento. Não basta, porém,<br />
estabelecer como se deve atuar (formular normas), mas, também,<br />
por que se deve agir dessa maneira (determinação dos princípios<br />
bioéticos) (SANTOS, 1998, p. 37).<br />
O avanço da biotecnologia demonstra o surgimento de complexas<br />
e novas relações sociais e jurídicas, que envolvem valores religiosos,<br />
morais, culturais, políticos, econômicos. Diante da complexidade<br />
dessas relações, a Bioética não pode limitar-se à abstração teórica, já<br />
que é constantemente chamada a dar uma solução ou uma resposta<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 149
Isabel Cristina Brettas Duarte<br />
aos questionamentos práticos, uma justificativa racional e legítima<br />
dentro de um equilíbrio com o Direito.<br />
O termo “Bioética” foi empregado pela primeira vez por Potter<br />
num sentido ecológico, considerando-a a ciência da sobrevivência,<br />
com objetivo moral-pedagógico. Em sua concepção alargada,<br />
conforme Barreto, passou a designar os problemas éticos gerados<br />
pelos avanços nas ciências biológicas e médicas, como algo de<br />
grande problemática, envolvendo o ser humano no que diz respeito à<br />
sua dignidade e à crescente interferência do homem no processo de<br />
nascimento e morte. Então, “essa possibilidade de controle da vida,<br />
despertou na humanidade a necessidade de estabelecer limites para<br />
o atuar da ciência” (2000, p. 43).<br />
Porém, no início dos anos 1990, começaram a surgir críticas<br />
ao principialismo e à universalidade dos seus princípios a partir,<br />
principalmente, da necessidade de que fossem respeitados os<br />
diferentes contextos sociais e culturais existentes em um mundo<br />
globalizado. Assim, no final do século XX, a Bioética passou a<br />
expandir seu campo de estudo e ação, incluindo temas como o dos<br />
direitos humanos e da cidadania, a preservação da biodiversidade, a<br />
finitude dos recursos naturais planetários, o equilíbrio do ecossistema,<br />
os alimentos transgênicos, o racismo, outras formas de discriminação,<br />
etc.<br />
Segundo Volnei Garrafa, até 1998, a epistemologia da Bioética<br />
se restringia a caminhos que apontavam para temas e problemas/<br />
conflitos preferencialmente individuais em relação aos coletivos: “o<br />
eu deixou o nós em posição secundária, pois a teoria principialista<br />
se mostrava impotente para desvendar, entender, propor soluções e<br />
intervir nas gritantes questões coletivas [...]” (GARRAFA, 2006, p. 12-<br />
13).<br />
A Bioética, desde o princípio, impôs-se como uma reação à<br />
realidade da pesquisa científica no campo da vida humana, que estava<br />
mergulhada em um “vazio ético”, já que se negava a existência de<br />
qualquer valor ético universal, surgindo como uma limitação a essas<br />
pesquisas. A discussão Bioética foi suscitada quando se percebeu que<br />
150 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />
o rumo dos acontecimentos, principalmente envolvendo a pesquisa<br />
em seres vivos, poderia levar a conseqüências graves e indesejadas<br />
pela falta de conscientização da responsabilidade ética, situação esta<br />
que exige o compasso entre a ciência e o Direito:<br />
A Bioética tem estimulado o Direito a se mover no compasso<br />
das ciências biológicas e da tecnologia, não com o atraso que<br />
o caracterizava até recentemente, abordando a interpretação<br />
jurídica das consequências de suas aplicações. Em instituições e<br />
regras internacionais em muitos países, as normas jurídicas e de<br />
direito têm acompanhado a comunidade científica, a atualização,<br />
sincronizando-se com os feitos científicos e tecnológicos quando<br />
estes se produzem e reclamam sua atenção, no futuro, a<br />
velocidade das descobertas científicas e avanços tecnológicos<br />
podem tornar difícil manter esse ritmo (PALACIOS, 2000, p. 17)<br />
(Tradução nossa).<br />
Assim, a Bioética é uma disciplina que amalgama conhecimentos<br />
teóricos de ética, se submete aos rigores do debate analítico, abre-se<br />
para o conhecimento empírico e o incorpora à medida que o requer<br />
para avaliar as realidades, as projeções, os dilemas e as situações<br />
problemáticas que ocorrem no âmbito da reflexão. O discurso da<br />
Bioética se submete a critérios de racionalidade, razoabilidade ou<br />
plausibilidade, prudência, coerência interna dos pronunciamentos e<br />
coerência externa do que é asseverado em relação aos antecedentes<br />
históricos e à realidade social contemporânea (GARRAFA, 2006, p.<br />
35).<br />
E como o ser humano é um ser cultural, que se socializa, acultura-<br />
-se, profissionaliza-se, politiza-se, enfim, estrutura-se dinamicamente<br />
em contato com o meio em que vive, então se constrói a partir do<br />
contexto em que está inserido, de forma que é de suma importância<br />
considerar a temporalidade da Bioética ao tratar dos diferentes temas<br />
que ela enfrenta em diferentes épocas. Afinal, os valores não se<br />
encontram nos genes, nem são produtos espontâneos da genética,<br />
mas são culturais, frutos de uma longa experiência e tradição humana,<br />
pois<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 151
Isabel Cristina Brettas Duarte<br />
o processo evolutivo não nos deu de saúde um código de valores<br />
éticos, mas deu-nos as condições e a capacidade de adquiri-los. [...]<br />
A ciência nunca descobrirá ou isolará um valor ético no laboratório:<br />
este pode nos revelar tudo o que somos do ponto de vista biofísico e<br />
bioquímico, mas nunca terá condições científicas para revelar o que<br />
seja uma pessoa, um valor, pois estes conceitos fundamentalmente<br />
foram construídos lentamente pela tradição filosófica, ética,<br />
religiosa, jurídica... (PALÁCIOS, 2001, p. 52).<br />
Sendo a ética a ordenação destinada a conduzir o homem de<br />
acordo com uma hierarquia de bens, uma tábua de valores, um sistema<br />
axiológico de referência, tornando-o cada vez mais homem, cada vez<br />
mais aquele ser que a natureza dotou de consciência e espiritualidade,<br />
então a reflexão Bioética nada mais é do que um antigo esforço em<br />
reconhecer o valor ético da vida humana e de agir conforme esse valor.<br />
DI<strong>RE</strong>ITO: NOVAS <strong>RE</strong>ALIDADES, NOVOS OLHA<strong>RE</strong>S<br />
O Direito emerge das relações sociais, seu desenvolvimento através<br />
dos tempos obedeceu inexoravelmente aos vetores culturais, que trazem<br />
implicações jurídicas. Assim, se mudam os tempos, mudam as vontades –<br />
e muda o Direito, que necessita amparar eficazmente as novas demandas<br />
que lhe são colocadas.<br />
Assim, entendemos que é na Bioética que a experiência ética adquire<br />
essa angústia existencial profunda. Já dizia o poeta que o caminho se faz<br />
caminhando 27 . Porém, talvez o caminho seja à luz de velas. Talvez leve a<br />
um oásis, ou a um deserto. Talvez. Movemo-nos no campo das incertezas e<br />
das complexidades, as quais avultam a importância da responsabilidade a<br />
conduzir a conduta humana. Mas, como afirma Boff, o certo é que há uma<br />
crise ética que traz perplexidade e confusão, e que estamos entrando num<br />
novo patamar de consciência (2003, p. 13).<br />
27 Dizia o poeta espanhol andaluz Antônio Machado, em “Provérbios y Cantares XXIX” (In: Poesías Completas. Editorial ESPASA<br />
CALPE: Madrid, 1973, p. 158):<br />
Caminante, son tus huellas<br />
Caminhante tuas pegadas<br />
el camino y nada más;<br />
São caminho, nada mais<br />
Caminante, no hay camino,<br />
Caminhante não há caminho<br />
se hace camino al andar.<br />
Se faz caminho ao andar<br />
Al andar se hace el camino, Ao andar se faz caminho<br />
y al volver la vista atrás<br />
E ao voltar a vista atrás<br />
se ve la senda que nunca<br />
Se vê a estrada que nunca<br />
se ha de volver a pisar.<br />
Se vai voltar a pisar<br />
Caminante no hay camino<br />
Caminhante não há caminho<br />
sino estelas en el mar.<br />
Só estrelas sobre o mar (tradução nossa).<br />
152 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />
Na medida em que as potencialidades tecnológicas, que tanto<br />
podem ser destruidoras quanto transformadoras, podem provocar<br />
consequências imprevisíveis no futuro, verifica-se o temor expressado<br />
por Morin: “pressentimos que a engenharia genética tanto pode<br />
industrializar a vida como biologizar a indústria” (2000, p. 18). Essa<br />
ideia pode parecer extremista, mas ao analisar as vicissitudes da<br />
história humana, percebe-se que nunca houve nada que pudesse<br />
representar um caminho tão dicotômico como a manipulação genética,<br />
que causa fascinação e perplexidade, aliados ao sentimento de medo<br />
e insegurança (SANTOS, 1998).<br />
Porém, a principal preocupação hoje não é julgar a ciência, mas<br />
sim de chamar atenção sobre a sua ambivalência, bem como sobre<br />
os novos contornos que se desenham na manipulação genética, cujos<br />
questionamentos eram até pouco tempo inimagináveis. Vê-se, pois,<br />
que o fenômeno social é complexo e assim deve ser compreendido e<br />
tratado, também pelos profissionais do Direito.<br />
Dessa forma, um dos aspectos da complexidade especialmente<br />
analisados por Morin diz respeito à ciência, a qual ocupa especial<br />
atenção do Direito em uma disciplina que se encontra no rol dos<br />
“novos” direitos – o Biodireito. Referida disciplina busca unir à cultura<br />
jurídica, à letra fria da lei, a cultura humanista e a cultura científica,<br />
num elo de consciência e responsabilidade, pois<br />
a cultura humanista é uma cultura genérica que, via filosofia, afronta<br />
as grandes interrogações humanas, estimula a reflexão sobre o<br />
saber e favorece a integração pessoal dos conhecimentos. A cultura<br />
científica, de outra natureza, separa os campos do conhecimento; ela<br />
suscita admiráveis descobertas, teorias geniais, mas não a reflexão<br />
sobre o destino humano e sobre o vir-a-ser dela própria enquanto<br />
ciência. [...] A cultura científica, privada da reflexividade sobre os<br />
problemas gerais e globais, se torna incapaz de pensar a si própria e<br />
de pensar os problemas sociais e humanos que ela coloca 28 .<br />
A teoria jurídica formalista, instrumental e individualista vem<br />
sendo constantemente questionada, de forma que “os impasses e<br />
28 MORIN; LE MOIGNE, 2000, p. 9. Há uma ênfase no sentido de que a cultura científica é de outra natureza (em relação à cultura<br />
humanística) “porque se fundamenta cada vez mais sobre uma enorme quantidade de informações e de conhecimentos que nenhum<br />
espírito humano saberia nem poderia armazenar” (p. 30).<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 153
Isabel Cristina Brettas Duarte<br />
as insuficiências do atual paradigma da ciência jurídica tradicional<br />
entreabrem, lenta e constantemente, o horizonte para as mudanças e a<br />
construção de novos paradigmas, direcionados para uma perspectiva<br />
pluralista, flexível e interdisciplinar” (WOLKER, 2003, p. 3). 29 Essa<br />
preocupação aflorou em razão da existência de juristas com interesses<br />
filosóficos e filósofos com interesses jurídicos, sendo que essa junção<br />
de saberes muito tem agregado ao Direito, na medida em que<br />
o paradigma tradicional da ciência jurídica, da teoria do Direito<br />
(na esfera pública e privada) e do Direito Processual convencional<br />
vem sendo desafiado a cada dia em seus conceitos, institutos e<br />
procedimentos. Diante das profundas e aceleradas transformações<br />
por que passam as formas de vida e suas modalidades complexas<br />
de saber (genética, biotecnologia, biodiversidade, realidade<br />
virtual, etc), o Direito não consegue oferecer soluções corretas e<br />
compatíveis com os novos fenômenos, o Direito tem-se mostrado<br />
inerte, com seu equipamento conceitual defasado em relação<br />
aos avanços sociais impostos pelas ciências relacionadas com<br />
a Bioética, e com sua visão centrada preponderantemente na<br />
norma (2003, p. 21).<br />
Assim, o Direito precisa servir-se dos conhecimentos da Filosofia,<br />
da Antropologia, da Medicina, da Biologia, da Sociologia, enfim, das<br />
mais variadas áreas do conhecimento, pois todas elas lhe dizem<br />
respeito e se interligam, de uma ou de outra forma. Essa inter/<br />
multidisciplinariedade entre o Direito e as outras áreas do conhecimento<br />
é importante, na medida em que não se pode negar que há um conflito<br />
entre o imperativo do conhecimento e os imperativos éticos, que são<br />
objeto das discussões bioéticas.<br />
Daí Morin ter afirmado que a ciência é complexa porque é<br />
inseparável de seu contexto histórico e social, e que a ciência não é<br />
científica, pois sua realidade é multidimensional, ou seja, os efeitos<br />
da ciência envolvem riscos e não são simples nem para o melhor,<br />
nem para o pior; são profundamente ambivalentes. Isso tudo porque<br />
“a ciência é, intrínseca, histórica, sociológica e eticamente, complexa.<br />
29 Entende o autor que essa nova realidade está indissociavelmente atrelada às transformações tecno-científicas, às práticas de vida<br />
diferenciadas, à complexidade crescente de bens valorados e de necessidades básicas, à emergência de atores sociais, portadoras<br />
de novas subjetividades, individuais e coletivas.<br />
154 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />
A ciência tem necessidade não apenas de um pensamento apto a<br />
considerar a complexidade do real, mas desse mesmo pensamento<br />
para considerar sua própria complexidade e a complexidade das<br />
questões que ela levanta para a humanidade” (2000, p. 9).<br />
É altamente provável que a ciência seja a mais complexa, poderosa<br />
e influente das instituições contemporâneas. Desde seu nascimento, há<br />
muitos séculos, a ciência nada faz, senão se sofisticar, se multiplicar e<br />
estabelecer parâmetros de existência e validade em todas as dimensões<br />
da vida: “o ser humano acabou por fazer da ciência a sua verdade<br />
racional, tendendo, especialmente na cultura ocidental, a fazer dela o seu<br />
ídolo ao qual tudo o mais – especialmente outras formas de racionalidade<br />
– é sacrificado” (PELIZZOLI, 2007, p. 114).<br />
Porém, essa racionalidade tem uma faceta objetiva e outra<br />
subjetiva, pois as teorias científicas são construções do espírito, não<br />
são reflexos do real, por mais que tentem aplicá-lo: são traduções<br />
do real numa linguagem que é a nossa, ou seja, aquela de uma<br />
dada cultura, num dado tempo. De um lado, as teorias científicas<br />
são produzidas pelo espírito humano; portanto, elas são subjetivas.<br />
De outro, estão fundamentadas em dados verificáveis e, portanto,<br />
objetivos (MORIN; LE MOIGNE, 2000, p. 38).<br />
Segundo Morin, os cientistas formados segundo os modelos<br />
clássicos do pensamento se afastam dessa complexidade, mais<br />
precisamente no que se refere ao dogma clássico da separação entre<br />
ciência e filosofia, e não conseguem entender que<br />
todas as ciências avançadas deste século encontraram e<br />
reascenderam as questões filosóficas fundamentais: o que é o<br />
mundo? a natureza? a vida? o homem? a realidade? Os maiores<br />
cientistas desde Einsten, Boher e Heisenberg transformaram-se<br />
em filósofos selvagens. É de se esperar que as transformações que<br />
começaram a arruinar a concepção clássica de ciência vão continuar<br />
em verdadeira metamorfose. [...] Não haverá transformação sem<br />
reforma do pensamento, ou seja, revolução nas estruturas do próprio<br />
pensamento. O pensamento deve se tornar complexo 30 .<br />
30 MORIN, 2000, p. 9-10. Para o autor, “o progresso da ciência é ideia que comporta em si incerteza, conflito e jogo. Não se pode<br />
conceber absoluta ou alternativamente progresso e regressão, conhecimento e ignorância. E para que haja novo e decisivo<br />
progresso no conhecimento, temos de superar esse tipo de alternativa e conceber em complexidade as noções de progresso e de<br />
conhecimento” (p. 105).<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 155
Isabel Cristina Brettas Duarte<br />
O desaparecimento das sociedades como sistemas integrados e<br />
portadores de um sentido geral, definido ao mesmo tempo em termos<br />
de produção, de significação e de interpretação, coloca os seres<br />
humanos diante de um mundo objetivo, em que há uma “crise dos<br />
indivíduos sobrecarregados de problemas para cuja solução já não<br />
encontram nenhuma ajuda nas instituições nem civis nem jurídicas<br />
nem religiosas, redundando na inquietude, e mesmo angústia,<br />
que nascem da perda de nossos pontos de referência habituais”<br />
(TOURAINE, 2006, p. 60).<br />
É sabido que uma das facetas da modernidade é a ciência, e como<br />
afirmou Beck, duas guerras mundiais, a invenção de armas destrutivas,<br />
a crise ecológica global e outros desenvolvimentos do presente<br />
século poderiam esfriar o ardor até dos mais otimistas defensores<br />
do progresso por meio da investigação científica desenfreada. Mas<br />
“a ciência pode – e deve – ser encarada como problemática nos<br />
termos de suas premissas” (BECK; GIDDENS; LASH, 1997, p. 109).<br />
Dessa forma, uma das facetas da modernização – e, portanto, da<br />
globalização e também do multiculturalismo – é o desenvolvimento<br />
científico e tecnológico, que aumenta a chamada complexidade.<br />
Segundo Morin, há que fazer um progresso da ideia de progresso,<br />
o qual deve deixar de ser noção linear, simples, segura e irreversível<br />
para tornar-se complexa e problemática: “a noção de progresso deve<br />
comportar auto-crítica e reflexividade” (2000, p. 98). O dinamismo<br />
desse progresso do conhecimento científico sustenta uma curiosidade<br />
inesgotável, pois um conhecimento, uma descoberta, a resolução de<br />
um enigma faz surgir novos enigmas, novos mistérios: “a aventura do<br />
conhecimento é non stop, porque, quanto mais se sabe, menos se<br />
sabe. Quanto mais sábio, mais ignorante. Essa aprendizagem da nossa<br />
ignorância é positiva já que nos tornamos conscientes da ignorância<br />
de que éramos inconscientes. Portanto, existe um dinamismo que<br />
está no seu próprio movimento” (MORIN; LE MOIGNE, 2000, p. 76.).<br />
Portanto, é preciso despertar uma crescente consciência ética em<br />
relação a diversos desafios levantados pelos avanços científicos e pelo<br />
progresso econômico e técnico, pois começou a se perceber que “nem<br />
156 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />
toda descoberta científica e nem toda vantagem tecnológica trazem<br />
sempre efeitos puramente benéficos para as pessoas e a sociedade.<br />
Ela acorda da visão ingênua de uma ciência isenta de interesses<br />
espúrios e de uma técnica limpa e benéfica” (JUNGES, 1999, p. 9),<br />
mesmo porque não há instante isolado, neutro ou indiferente para a<br />
vida. Esta é sua essencial não-neutralidade, pois o ser humano é um<br />
ser não-neutro por excelência.<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
As discussões bioéticas conduzem a compromissos provisórios e,<br />
por isso, segundo Morin (2000), deve-se estar ciente da arbitrariedade das<br />
decisões. Em razão dessa provisoriedade, que gera a alegada incerteza,<br />
o autor utiliza-se do termo “aposta” em uma decisão mais correta possível<br />
quando se leva em consideração a complexidade da relação posta, já<br />
que a certeza nessa área inexiste, ou se existe, ainda está longe do<br />
conhecimento humano, apesar de todas as pesquisas científicas.<br />
Na área jurídica, a incerteza e a provisoriedade das decisões<br />
também resta evidenciada, especialmente no que se refere ao<br />
julgamento de casos que envolvam os “novos” direitos. Isso porque não<br />
se mostra viável a aplicação de um tipo específico de conhecimento,<br />
ou de um único critério para determinar a solução do conflito, ante a<br />
pluridimensionalidade do objeto, bem como dos efeitos deste para as<br />
partes e para a sociedade. Por tudo isso, é que se exige do julgador<br />
um conhecimento que extravase o saber jurídico: o conhecimento<br />
da realidade social onde aplica a lei, assim como um conhecimento<br />
mais aprofundado da complexidade das relações que ensejaram a<br />
demanda judicial que lhe cabe julgar.<br />
Utilizando-se das palavras de Von Hayeck, citado por Morin,<br />
é interessante referir e exemplificar que “ninguém será um grande<br />
economista se for somente um economista”, pois “em economia tudo<br />
depende de tudo, tudo age sobre o todo” (MORIN; LE MOIGNE, 2000,<br />
p. 76). O mesmo ocorre com o profissional do Direito, pois este não será<br />
um grande jurista se for somente jurista. Ele deve viver e compreender o<br />
meio no qual vive e no qual tem de aplicar e interpretar a lei.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 157
Isabel Cristina Brettas Duarte<br />
Como dito alhures, tudo que é humano deve ser compreendido<br />
a partir de um jogo complexo, pois para conhecer melhor as partes<br />
deve-se conhecer o todo e vice-versa, como em um movimento<br />
circular ininterrupto. Nesse sentido, não se pode, também, entender o<br />
julgador sem entender o objeto ou o ser julgado, de modo que se deve<br />
compreender também essa relação entre eles – o julgador e o julgado.<br />
Sabe-se que a ciência moderna, dentre elas o Direito, por<br />
vezes, está longe da ética que não seja a do conhecimento, o que<br />
é criado pelo cegamento causado pelo conhecimento objetivo, da<br />
hiperespecialização, que pode ser desastroso para a sociedade, já<br />
que, partindo da premissa de Morin (2000), um pensamento cego<br />
ao global não pode captar aquilo que une os elementos separados.<br />
Quando se fala em conhecimento objetivo na seara jurídica, está a<br />
falar do conhecimento formal, teórico e da aplicação da letra fria da lei,<br />
apenas considerado em seu aspecto literal, desvinculado da realidade<br />
social e da função social que deve ser dada à norma.<br />
Nesse contexto, não se pode olvidar que a complexidade dos<br />
conflitos que são postos diariamente em juízo em busca da tutela<br />
jurisdicional é cada vez maior e decorrente dos avanços sociais.<br />
Estes, por sua vez, são decorrentes dos avanços tecnológicos, do<br />
crescimento populacional, da alteração de valores sociais, etc., em<br />
um processo contínuo, assim como a própria vida, cujos limites são<br />
incertos, o que confirma a teoria da incerteza trazida por Morin. Diante<br />
dessa realidade, surge a premência de nos libertarmos das amarras<br />
cartesianas e adentrarmos no estudo do pensamento complexo, capaz<br />
de lidar satisfatoriamente com situações complexas.<br />
O Direito, até então determinador de regras fundadas no consenso,<br />
passa a ser gerador de propostas úteis aos debates democráticos.<br />
O estudo dos ‘novos’ direitos relacionados à Bioética, renunciando<br />
à segurança das normas antigas, passa a indicar o caminho da<br />
interrogação, da elucidação das finalidades e do estabelecimento de<br />
referências provisórias para a ação. E é claro que isso gera importantes<br />
repercussões no mundo jurídico, do que a Bioética é apenas um<br />
exemplo, assim como a propriedade intelectual e outros.<br />
158 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />
Nesse novo paradigma, o Direito, até então pautado pelo<br />
normativo e pelo legal, passa a exercer uma função mais indicadora<br />
de condutas justas, bem como procedimentos apropriados para que<br />
as decisões e as opções tenham todas as chances de resolver os<br />
problemas suscitados pelas novas tecnologias, o que é de suma<br />
importância num momento em que há a problematização de tantas<br />
questões e situações não previstas. Portanto, é preciso encarar o<br />
desafio de aprofundar o estudo da Bioética e em especial dos novos<br />
direitos encarando o fenômeno jurídico, assim como o fenômeno social,<br />
como uma desordem e/ou ordem com possibilidade de mudança e<br />
aperfeiçoamento.<br />
Agora, efetivamente, “há questões que nunca antes foram objeto<br />
de legislação, caindo sob a alçada das leis com que a cidade global<br />
tem de se dotar para que possa haver um mundo sustentável para as<br />
gerações humanas que ainda virão” (PELIZZOLI, 2007, p. 83). Diante<br />
disso, finalizamos afirmando que essa breve contribuição é apenas uma<br />
tentativa de reflexionar sobre a Bioética, principalmente quando inserida<br />
na realidade cada vez mais emergente dos “novos” direitos, desafio<br />
este que certamente encontrou limitações inerentes à toda pesquisa.<br />
Assim, esperamos ter contribuído para aproximar o compasso<br />
entre a ciência e o Direito e também outras áreas do conhecimento,<br />
com vistas à constante construção de uma sociedade cujas leis<br />
estejam à altura das intensas transformações ocorridas no seio do<br />
multiculturalismo que permeia a era biotecnológica vivenciada pela<br />
sociedade brasileira. Portanto, cientes de que o modelo tradicional do<br />
Direito não é capaz de responder a todos os anseios dessa realidade,<br />
ousamos afirmar que nunca foi tão importante que novos olhares<br />
sejam lançados à vastidão do mundo jurídico, somente comparável<br />
à vastidão do mundo social e cultural que cerca os seres humanos.<br />
<strong>RE</strong>FERÊNCIAS<br />
BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização<br />
reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Trad.<br />
Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1997.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 159
Isabel Cristina Brettas Duarte<br />
BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca dos fundamentos. Petrópolis:<br />
Vozes, 2003.<br />
GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel; SAADA, Alya (Orgs.). Bases<br />
conceituais da Bioética: enfoque latino-americano. Trad. Luciana<br />
Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006.<br />
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. de<br />
Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A,<br />
2005.<br />
HERNÁNDEZ, Miquel Osset. Ingeniería genética y derechos<br />
humanos: legislación y ética ante el reto de los avances<br />
biotecnológicos. Barcelona, España: Icaria Antrazyt, 2000.<br />
JUNGES, José Roque. Bioética: perspectivas e desafios. Porto<br />
Alegre: Ed. Unisinos, 1999.<br />
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. de Maria D. Alexandre<br />
e Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.<br />
MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean Louis. A inteligência da complexidade.<br />
Trad. de Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000.<br />
PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo<br />
modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis: Vozes, 2007.<br />
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do pêndulo:<br />
Bioética e a lei implicações médico-legais. São Paulo: Ícone, 1998.<br />
SG<strong>RE</strong>CCIA, Elio. A bioética e o novo milênio. Trad. Claudio Antonio<br />
Pedrini. Bauru: EDUSC, 2000.<br />
TOURAINE, Alain. Um novo paradigma para compreender o mundo<br />
de hoje. Trad. de Gentil Agelino Titton. Petrópolis: Vozes, 2006.<br />
WOLKER, Antônio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (Orgs.).<br />
Os novos direitos no Brasil: natureza e perspectivas. São Paulo:<br />
Saraiva, 2003.<br />
Recebido: 10-7-2014<br />
Aprovado: 20-10-2014<br />
160 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />
DI<strong>RE</strong>ITO<br />
FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA<br />
NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />
Bankruptcy and recovery company the perspective of law n.<br />
11.101/05<br />
Resumo<br />
José Lauri Bueno de Jesus 31<br />
Neste trabalho, pretende-se demonstrar o longo caminho que as empresas têm percorrido, na história, para<br />
poderem atingir o patamar de recuperação ao invés de ingressarem na falência, diretamente. Entretanto,<br />
é necessário observar alguns princípios, que deverão ser analisados quando a empresa se encontrar em<br />
crise, a fim de verificar a viabilidade ou não da continuidade das suas atividades, inclusive, deve ser sempre<br />
voltado para o aspecto social, inserindo-se nessa situação a quitação dos débitos de todos os credores e<br />
a mantença do emprego dos funcionários. Faz-se também uma breve retrospectiva histórica das leis dos<br />
principais países, especialmente sobre os aspectos relativos à recuperação da empresa.<br />
Palavras-chave: Crises. Falência. Recuperação judicial. Princípios.<br />
Abstract<br />
In this work, we intend to demonstrate the long way that companies have traversed, in history, in order<br />
to reach the level of recovery rather than join the bankruptcy directly. However, it is necessary to observe<br />
some principles that should be examined when the company is in crisis in order to verify the feasibility or<br />
otherwise of the continuity of its operations, including, should always be focused on the social aspect,<br />
inserting themselves in this situation the discharge of the debts of all creditors and the maintenance of<br />
employment of employees. Also, a brief historical overview of the laws of major countries, a special way,<br />
those aspects of the company’s recovery.<br />
Keywords: Crises. Bankruptcy. Judicial recovery. Principles.<br />
Sumário:<br />
1. Introdução; 2. A insolvência e as crises empresariais; 3. A dissonância das relações e a insolvência<br />
empresarial; 4. Breve evolução histórica da falência e recuperação; 5. Princípios do regime de insolvência<br />
do agente econômico; 6. Considerações finais; 7. Referências.<br />
INTRODUÇÃO<br />
O empresário ou sociedade empresária que exerce atividade<br />
de empresa, atualmente, protegido pela Teoria da Empresa, que é<br />
propugnada pelo Código Civil de 2002, pode, em algum momento,<br />
não ter condições de efetuar o pagamento de seus débitos, por uma<br />
31 Mestre em Direito pela Unisinos, Especialização em Segurança Pública pela PUC-RS e Especialização em Docência para o Ensino<br />
Superior pela CNEC-IESA. Graduado em Direito pela FADISA (hoje CNEC-IESA), professor no Instituto Cenecista de Ensino<br />
Superior de Santo Ângelo (CNEC-IESA), Tenente-coronel da Reserva Remunerada da Brigada Militar. E-mail: laurijb@terra.com.br.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 161-180
José Lauri Bueno de Jesus<br />
situação que se apresente de maneira insanável, à primeira análise,<br />
em virtude do acometimento de algum tipo de crise. Se for verificado<br />
no Decreto-Lei n. 7.661/45, as soluções eram bastante preocupantes,<br />
haja vista que levava a empresa a fechar as suas portas e, com isso,<br />
afetava a sociedade. Entretanto, com o advento da nova lei de falências<br />
e recuperação de empresas (Lei n. 11.101/05), tal situação é vista de<br />
forma diferente, preocupando-se com a empresa que está diretamente<br />
envolvida na sua atividade e o mercado em que ela está inserida.<br />
A INSOLVÊNCIA E AS CRISES EMP<strong>RE</strong>SARIAIS<br />
No momento em que se diz que uma empresa está em crise,<br />
isso pode significar muitas coisas. Pode estar em crise econômica,<br />
financeira e patrimonial. Tais patologias do organismo empresarial,<br />
muitas vezes, pode levar a empresa à morte e, isso ocorrendo, vai<br />
prejudicar as pessoas que dependam dela, direta ou indiretamente.<br />
Além disso, é preciso que fique claro que “a raiz das crises por que<br />
passa o organismo empresarial também é de matriz diversa. Não há<br />
linearidade”, segundo afirma Waldo Fazzio Junior (20<strong>08</strong>, p. 5).<br />
Nesse diapasão, é importante a distinção entre elas, pois,<br />
normalmente, uma desencadeia a outra, devido à complexidade da<br />
economia e das relações jurídicas, mesmo que não sejam vistas de<br />
forma lineares.<br />
Então, por crise econômica (COELHO, 2010, p. 231), entende-<br />
-se como uma “retração considerável nos negócios desenvolvidos<br />
pela sociedade empresária” ou pelo empresário. Por exemplo, se os<br />
consumidores não mais adquirem igual quantidade dos produtos ou<br />
serviços oferecidos, o empresário ou sociedade empresária pode sofrer<br />
queda de faturamento. Esta crise pode ser generalizada, segmentada<br />
ou atingir especificamente uma empresa. O empreendedor deve<br />
avaliar o que está ocorrendo, visto que é necessário diagnosticar o<br />
motivo dessa retração, pois pode, inclusive, ser um atraso tecnológico<br />
do seu estabelecimento ou incapacidade de sua empresa competir, ou<br />
ainda, o produto que está sendo comercializado não é mais do agrado<br />
das pessoas.<br />
162 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />
Por outro lado, segundo Fábio Ulhoa Coelho,<br />
a crise financeira revela-se quando a sociedade empresária ou<br />
empresário não tem caixa para honrar seus compromissos. É a<br />
chamada crise de liquidez. As vendas podem estar crescendo e<br />
o faturamento satisfatório, mas a empresa tem dificuldades de<br />
pagar as suas obrigações. A forma de exteriorização jurídica da<br />
crise financeira se apresenta através da impontualidade (2010,<br />
p. 231-232).<br />
A outra crise é a patrimonial, isto é, a insolvência. Esta ocorre<br />
no momento em que os bens existentes no ativo forem insuficientes<br />
para atender à satisfação do passivo. É uma crise estática, pois a<br />
empresa tem menos bens em seu patrimônio que o total de suas<br />
dívidas, parecendo apresentar uma condição temerária e indicativa de<br />
grande risco para os credores. Entretanto, é comum acontecer que o<br />
patrimônio líquido negativo pode significar apenas que a empresa está<br />
passando por uma fase de expressivos investimentos na ampliação<br />
de suas atividades e/ou tecnologia (COELHO, 2010, p. 232).<br />
Esses índices de crise, às vezes, acabam sendo relativos, pois<br />
não se revelaram úteis à análise de mercado em algumas situações.<br />
Por exemplo, no fim do séc. XX, com o início da difusão do comércio<br />
eletrônico via internet, muitas empresas que realizavam ainda<br />
incipientes negócios por intermédio da rede mundial de computadores,<br />
registravam prejuízos consideráveis e ostentavam patrimônio líquido<br />
acentuadamente negativo. Mesmo assim, foram negociados por<br />
milhões de dólares. Tudo dependerá do lucro que a empresa tiver<br />
(COELHO, 2010).<br />
Ainda com Fábio Ulhoa Coelho (2010, p. 233), apoiando-se nessa<br />
linha de pensamento, pode-se afirmar que “em geral, cabe dizer, que<br />
determinada empresa está em crise após a manifestação das três<br />
formas pela qual se manifesta. A queda das vendas acarreta falta<br />
de liquidez e, em seguida, insolvência: este é o quadro crítico que<br />
preocupa os credores, trabalhadores, investidores, etc.”.<br />
A crise fatal de uma empresa significa o fim de postos de<br />
trabalho, desabastecimento de produtos ou serviços, diminuição de<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 163
José Lauri Bueno de Jesus<br />
arrecadação de impostos, paralisação de atividades satélites e muitos<br />
outros problemas. Por isso, muitas vezes, o Direito se ocupa em criar<br />
mecanismos jurídicos e judiciais de recuperação de empresa.<br />
Como se pode observar, tais crises não são lineares, elas<br />
ocorrem por motivos diversos, inclusive, geralmente, são causados<br />
por vícios de origem, como por exemplo, a escolha do tipo societário<br />
inadequado, estruturação administrativa insuficiente, a estimação<br />
imprópria do capital social, a obsolescência do objeto social eleito,<br />
restrições de crédito bancário, política econômica nacional, elevação<br />
da taxa de juros, crise de abastecimento, etc. (COELHO, 2010).<br />
Assim, não se pode esquecer que o mesmo mercado que ajudou<br />
a empresa a promover suas atividades agora encurta sua sobrevida,<br />
considerando-a um organismo em coma.<br />
A DISSONÂNCIA DAS <strong>RE</strong>LAÇÕES E A INSOLVÊNCIA<br />
EMP<strong>RE</strong>SARIAL<br />
Existia no sistema jurídico brasileiro uma dissonância muito grande<br />
nas relações emergentes da insolvência empresarial com o moderno<br />
perfil da empresa e as características da economia globalizada.<br />
Devido a isso, o alvo não era a atividade econômica organizada, mas<br />
a pessoa do empresário paciente de concordatas e da falência.<br />
Dessa forma, surgiu o Decreto-lei n. 7.66l/45 logo após a Segunda<br />
Guerra Mundial. Esse decreto-lei concebia um modelo de empresa<br />
próprio da economia nacional, que se encontrava muito defasada e<br />
refletia as coordenadas da ordem capitalista, instaurada em 1944, na<br />
Conferência de Bretton Woods (FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>).<br />
Com a antiga legislação falimentar, o crédito era concebido<br />
como, simplesmente, mais uma espécie de relação obrigacional,<br />
pois desconsiderava a repercussão da insolvência no mercado e<br />
concentrava-se no ajustamento das relações entre os credores e o<br />
ativo devedor. A falência e concordata, então regulada pelo Dec.-Lei<br />
n. 7.661/45, não dava conta dos intrincados problemas gerados pelos<br />
processos de concordata e de falência, cada vez mais complexos,<br />
burocratizados e inócuos.<br />
164 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />
Foi grande o impacto dos projetos sobre o regime de insolvência<br />
editados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial<br />
em países como Espanha, Portugal, Itália, França, México, Argentina.<br />
No Brasil, iniciou com a edição da LFC (DL 7.661/45), mas desde<br />
1990 começou a implementação dos andaimes da nova normação da<br />
insolvência empresarial. Nessa época, os juízes, por meio de suas<br />
sentenças judiciais, começaram a implantação da Teoria da Empresa<br />
em substituição à Teoria dos Atos de Comércio, então vigente (FAZZIO<br />
JUNIOR, 20<strong>08</strong>).<br />
Rápidas transformações econômicas e hesitações políticas<br />
ocorreram até a entrada em vigor da Lei n. 11.101, de 9 fevereiro de<br />
2005 (nova lei de recuperação de empresa e falência) que surgiu para<br />
dilatar os tímidos e frustrados horizontes, consagrando justificável<br />
preferência por outras estratégias legais predispostas a assegurar<br />
sobrevida útil às empresas viáveis em crise econômico-financeira. O<br />
objetivo da recuperação judicial é viabilizar a superação da situação de<br />
crise do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora,<br />
do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores,<br />
promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e<br />
o estímulo à atividade econômica, conforme dispõe em seu art. 47.<br />
Essa nova lei (11.101/05) traz como divisa a reestruturação<br />
empresarial como meio de proporcionar maiores possibilidades de<br />
satisfazer aos credores, minimizar o desemprego, fortalecer e facilitar o<br />
crédito e, em consequência, poupar o mercado dos reflexos perversos<br />
da insuficiência dos agentes econômicos.<br />
A nova lei de falência e recuperação de empresa não é perfeita,<br />
pois como diz Waldo Fazzio Junior (20<strong>08</strong>, p. 3), contém “imprecisões,<br />
interrogações e, provavelmente, nem sempre vai oferecer as melhores<br />
alternativas para os vários problemas oriundos das crises que hoje<br />
assolam as empresas brasileiras”. Vai ocorrer, e já ocorreram,<br />
resistências do empresariado mais conservador. Entretanto, deve ficar<br />
bem claro, que é impossível ajustar, sem rupturas, ordens econômicas<br />
diferentes.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 165
José Lauri Bueno de Jesus<br />
É sabido que “o Direito das Concordatas e Falências era um<br />
instrumento do atávico princípio romano, ou seja, quem deve tem que<br />
pagar”. Com essa lei, “os credores eram amparados, garantiam-se<br />
os haveres públicos, incriminavam-se os empresários malsucedidos,<br />
menosprezavam-se o desemprego e aniquilavam-se as empresas em<br />
crise” (FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p. 4).<br />
Assim, o Direito Positivo brasileiro “alterou a natureza de sua<br />
instrumentalidade, optando pela despersonalização da empresa”, quando<br />
necessário, “e pela composição de interesses de credores e devedores.<br />
Ainda na fala de Fazzio Junior,<br />
o Direito Concursal é, hoje, o Direito da empresa em crise, por que<br />
superou a fase da vindita dos credores, ultrapassando os estreitos<br />
limites da liquidação falitária, haja vista que se apresenta como<br />
solução jurídica mais pragmática e mais sintonizada com o Direito<br />
Econômico, deixou de ser um mero complexo regulador de relações<br />
estritamente privadas para encampar o interesse público e as<br />
repercussões sociais das isquemias das empresas (20<strong>08</strong>, p.4).<br />
Foi, portanto, alterada a via de solução. Isso ocorreu porque, “a<br />
reestruturação da empresa passou a integrar o elenco de objetivos<br />
das modernas legislações concursais, tendo como finalidade atender<br />
os direitos dos credores e direcionar a atividade empresarial para não<br />
comprometer a segurança do mercado e sua periferia social” (FAZZIO<br />
JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p. 4).<br />
Dessa forma, o Direito da empresa em crise é, na realidade, “um<br />
conjunto de medidas de natureza econômico-administrativa, acordadas<br />
entre o agente econômico devedor e seus credores, supervisionados<br />
pelo Estado-juiz, como expediente preventivo da liquidação” que<br />
objetiva “o soerguimento da empresa em crise, para que os credores<br />
tenham melhores perspectivas de realização de seus haveres, os<br />
fornecedores não perdem o cliente, os empregados mantêm seus<br />
empregos, o mercado sofre menos os impactos e as repercussões da<br />
insolvência empresarial” (FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p. 4-5).<br />
Então, quando verificada a história das empresas em crise,<br />
percebe-se, claramente, como diz Waldo Fazzio Junior (20<strong>08</strong>, p. 7),<br />
166 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />
que elas podem ser vistas “necessariamente pelo reconhecimento<br />
de quatro fases: o Direito Concursal como regulador da execução<br />
dos bens do devedor; b) a judicialização da execução concursal; c)<br />
prevenção do estado de liquidação; e d) a recuperação da empresa”.<br />
Nessa mesma linha de pensamento, percebe-se na fala de André<br />
Luiz Santa Cruz Ramos, que<br />
o direito falimentar não tem como característica a preocupação<br />
preponderante de punir o devedor insolvente, criminalizando<br />
sua conduta e excluindo-o do mercado a todo custo. A grande<br />
preocupação do direito falimentar atual é a preservação da<br />
empresa, razão pela qual a legislação tenta fornecer ao devedor<br />
em crise todos os instrumentos necessários à sua recuperação,<br />
reservando a falência apenas para os devedores realmente<br />
irrecuperáveis (2013, p. 616).<br />
As soluções para as crises empresariais dependem muito da<br />
perspectiva segundo a qual essas crises são abordadas. Agora são<br />
vistas sob a óptica do empresário e dos credores, o que vai ser, em<br />
princípio, menos danosa a todos.<br />
B<strong>RE</strong>VE EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FALÊNCIA E<br />
<strong>RE</strong>CUPERAÇÃO<br />
Para facilitar a compreensão da falência e recuperação da empresa<br />
nos dias atuais, é imperioso que se busque na história, mesmo que<br />
brevemente, os seus fundamentos e problemas que antecederam a<br />
legislação em vigor, para que não se incorra nas mesmas situações<br />
do pretérito e, inclusive, em países e estrangeiros.<br />
Assim, é possível verificar que no Direito Romano a execução<br />
incidia sobre a pessoa do devedor, autorizava ao credor manter o<br />
devedor em cárcere privado ou escravizá-lo. Ou seja,<br />
houve um período em que o devedor respondia por suas<br />
obrigações com a própria liberdade e às vezes até mesmo com a<br />
própria vida. A garantia do credor era, pois, a pessoa do devedor.<br />
Assim, este poderia [...] tornar-se escravo do credor por certo<br />
tempo, bem como entregar-lhe em pagamento da dívida uma<br />
parte do seu corpo (RAMOS, 2013, p. 614).<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 167
José Lauri Bueno de Jesus<br />
Depois, passou para o sistema de constrição patrimonial (lei<br />
Paetelia Papiria, 428 a.C.), que admitia a execução forçada das<br />
condenações em dinheiro, “proibindo o encarceramento, a venda<br />
como escravo e a morte do devedor. [...] passou-se a entender que os<br />
bens do devedor, e não a sua pessoa, deveriam servir de garantia do<br />
credores” (RAMOS, 2013, p. 614).<br />
Por exemplo, o credor munido da sentença, procurava o magistrado<br />
e este o autorizava por decreto para que entrasse na posse de todos os<br />
bens do devedor, procedendo depois a venda mediante determinadas<br />
formalidades. Não despia o devedor da propriedade dos bens e nem<br />
da posse jurídica, privava-o apenas da administração. O patrimônio<br />
do devedor constituía um penhor em benefício dos credores (FAZZIO<br />
JUNIOR, 20<strong>08</strong>).<br />
No final dessa época surgiu a administração da massa, a<br />
assembleia de credores, a classificação dos créditos e a revogação<br />
dos atos fraudulentos do devedor. O procedimento concursal do<br />
Direito Romano aplicava-se a qualquer espécie de devedor, até porque<br />
inexistia legislação específica regente da atividade empresária.<br />
Walfo Fazzio Junior (20<strong>08</strong>), refere que foi no Direito Medieval,<br />
por intermédio dos estatutos corporativos das cidades, especialmente<br />
nas italianas, que surgiu o instituto da falência, restringindo o caráter<br />
privado da execução, embora isso não significasse a emancipação<br />
física do devedor. No séc. XIII, surgiram as primeiras regras que<br />
constituíram o instituto da falência como típica execução criminal.<br />
São bastantes utilizados os usos e costumes e aplicado ao insolvente<br />
sanções cruéis, tanto física como moral. Um pressuposto da época<br />
era que, quando o devedor fugisse em decorrência de sua insolvência,<br />
automaticamente passava para o estado de falência.<br />
Nessa época, também foi isolada a insolvência em seus<br />
elementos conceituais e era relevada no aspecto formal pelo<br />
sequestro, inventário, apreensão e o encerramento dos inscritos. O<br />
caráter penal incidia muito forte na pessoa do devedor. Já no séc. XV,<br />
surgiu uma espécie de concordata mediada pela autoridade pública<br />
que a homologava. E foi estabelecido o salvo-conduto que permitia ao<br />
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FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />
devedor fugitivo retornar para a conclusão da concordata. Entretanto,<br />
o concurso creditício italiano não era exclusivo dos mercadores, tinha<br />
feição predominantemente penal, que se transformou lentamente de<br />
execução pessoal em patrimonial. Também trouxe à luz as primeiras<br />
acordanças tendentes a evitar a liquidação (FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>).<br />
Corroborando com tal posição, André Luiz Santa Cruz Ramos<br />
(2013, p. 614-615), menciona que apesar de terem sido identificadas<br />
“regras especiais para a execução dos devedores insolventes,<br />
[...] ainda se tratava de regras que se aplicavam indistintamente a<br />
qualquer espécie de devedor, comerciante ou não, e que mantinham<br />
seu caráter extremamente repressivo”<br />
No Direito Moderno,<br />
o Estado surgiu como entidade política e jurídica, com sensível<br />
interferência na disciplina das relações de crédito, inclusive na<br />
regência dos casos de insolvência. Os Estados arrogaram-se à<br />
exclusividade da imposição de sanções e judicializaram o deslinde<br />
de situações jurídicas criadas pela insatisfação obrigacional. A<br />
liquidação do patrimônio do devedor passou a ser assegurada<br />
pelos organismos judiciais encarregados de aplicar a lei (FAZZIO<br />
JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p. 9).<br />
Ainda no “séc. XVII, as Ordenanças Filipinas trataram das quebras<br />
dos mercadores. Sendo que no Alvará Real de 1756, em Lisboa,<br />
estabeleceu-se um processo peculiar para os negociantes falidos”<br />
(FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p. 9). Por exemplo, o homem de negócio<br />
que faltasse ao crédito deveria se apresentar perante uma Junta de<br />
Comércio para explicitar as causas das quebras e entregar as chaves<br />
de seu estabelecimento, oferecer a relação dos bens e apresentar os<br />
livros e papéis de seu comércio (FER<strong>RE</strong>IRA apud FAZZIO JUNIOR,<br />
20<strong>08</strong>).<br />
Na França, no ano de 1673, a Codificação Savary, regulamentou<br />
o regime de insolvência sem particularizar os comerciantes. Somente<br />
ocorreu após, com Napoleão Bonaparte, quando no início do séc.<br />
XIX promoveu a cisão legislativa das normas mercantis. Editou um<br />
Código Civil em 1804 e um Código Comercial em 18<strong>08</strong>. Nesse Código<br />
Comercial de 18<strong>08</strong>, imperava a Teoria dos Atos de Comércio (o Brasil,<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 169
José Lauri Bueno de Jesus<br />
em 1850, também adotou a mesma teoria, mas que foi alterada para<br />
a Teoria da Empresa, em 2002, com o advento do novo Código Civil<br />
brasileiro).<br />
Independentemente de qualquer outro motivo,<br />
a mudança que o Code de Commerce de Napoleão trouxe<br />
para o direito comercial atingiu, consequentemente, o direito<br />
falimentar, que passou a constituir um conjunto de regras<br />
especiais, aplicáveis restritamente aos devedores insolventes<br />
que revestiam a qualidade de comerciantes. Para o devedor<br />
insolvente de natureza civil, não se aplicavam as regras do direito<br />
falimentar, mas disposições constantes do regime jurídico geral,<br />
qual seja, o direito civil (RAMOS, 2013, p. 615).<br />
Mesmo com o codificação napoleônica não foi alterada uma<br />
característica do direito falimentar desde os seus primórdios, ou seja,<br />
“o caráter repressivo e punitivo do devedor” (RAMOS, 2013, p. 615).<br />
Assim, o Direito Concursal ingressou na Idade Contemporânea<br />
como sendo a liquidação do ativo do devedor insolvente, sob a<br />
égide do Poder Judiciário. Entretanto, com o transcurso do tempo, a<br />
sociedade evoluiu e a economia avançou em uma velocidade muito<br />
rápida e o direito falimentar necessitou acompanhar esse processo de<br />
mudanças para adaptar-se aos novos paradigmas (RAMOS, 2013).<br />
A partir da Revolução Industrial ocorreu um acentuado e<br />
progressivo desenvolvimento econômico por meio do chamado<br />
“processo de globalização, o qual trouxe relevantes alterações na<br />
conjuntura socioeconômica, que exigiram do operador de direito uma<br />
completa reformulação dos princípios e institutos falimentares do<br />
direito falimentar” (RAMOS, 2013, p. 615).<br />
Consoante Waldo Fazzio Junior (20<strong>08</strong>), no Direito Contemporâneo,<br />
ocorreram duas guerras mundiais até a metade do século passado.<br />
Viveu-se uma fase de valorização das concordatas como expedientes<br />
preventivos ou suspensivos do estado de liquidação. Muitas crises<br />
econômicas, desastres financeiros e flagrante favorecimento dos<br />
credores majoritários. O entendimento na época era que o empresário<br />
honesto e infeliz nos negócios deveria desfrutar de favor legal, com<br />
concordatas dilatórias e remissórias.<br />
170 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />
Era preciso mudar, superando o caráter de conflito particular<br />
inerente às falências e concordatas com a presença mais efetiva<br />
do Estado nas crises econômicas sobre as empresas públicas,<br />
sociedades estatais e instituições financeiras. Ganhou realce o lado<br />
social da empresa.<br />
Nessa época, segundo Fazzio Junior (20<strong>08</strong>, p. 10), “a crescente<br />
unificação do Direito Privado e a interpenetração do Direito Público e do<br />
Direito Privado, a valorização do Direito Fiscal, do Direito do Consumidor,<br />
do Direito Previdenciário e do Direito Financeiro, obrigou a procura de<br />
desfechos mais construtivos e menos radicais para as crises”.<br />
É possível verificar tais situações em alguns países que se<br />
apresentavam preocupados com as falências que pudessem ocorrer,<br />
mas queriam a recuperação como norte. Dessa forma, com uma nova<br />
concepção do direito falimentar, contraposta à antiga concepção que<br />
consagrava regaras extremamente punitivas ao devedor, influenciou<br />
a reformulação da legislação em diversos países, como afirma André<br />
Luiz S. C. Ramos (2013) ao manifestar-se sobre o assunto.<br />
Assim, segundo Waldo Fazzio Junior (20<strong>08</strong>), em 1867, nos<br />
Estados Unidos, surgiu o primeiro procedimento de recuperação<br />
judicial, sob o nome de Lei da Companhia Ferroviária. Em 1898, esse<br />
procedimento ampliou-se para atingir outras pessoas jurídicas. Foi<br />
aprimorado em 1938 e consolidado em 1994. Entretanto, para Fábio<br />
Ulhoa Coelho (2010, p. 233), “o primeiro diploma de direito estatutário,<br />
dispondo sobre recuperação judicial de empresas surgiu em 1934,<br />
visando atenuar os efeitos da crise provocada pela Bolsa de Valores<br />
de Nova York em 1929”. Mas isso não faz muito diferença de qual<br />
data foi anterior ou não, o que importa é que a preocupação com a<br />
recuperação das empresas em crise era um assunto em questão e<br />
que também era preocupação dos governantes.<br />
No Japão, em 1952, foi aprovada uma lei de reorganização das<br />
Sociedades por Ações e, em 1992, foi substituída por uma nova lei<br />
marcadamente recuperatória.<br />
Na França, em 1984, é aprovada uma lei reguladora da prevenção<br />
e composição amigável das dificuldades da empresa. Em 1985,<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 171
José Lauri Bueno de Jesus<br />
foi criada uma lei para saneamento e reorganização da empresa<br />
em crise. Em 1994, uma lei reforçando os meios preventivos da<br />
insolvência, simplificando os procedimentos, moralizando os planos<br />
de recuperação e trazendo medidas mais eficazes para assegurar os<br />
direitos dos credores.<br />
Na Itália, em 1991, é aprovada uma lei com as mesmas<br />
características de salvaguarda da empresa da França.<br />
Em Portugal, o critério é a viabilidade da empresa desde que criou<br />
em 1976 a declaração da empresa economicamente difícil, que serviu<br />
de embrião para o Código dos Processos Especiais de Recuperação<br />
da Empresa e de Falência de 1993, o qual instituiu o procedimento<br />
judicial de recuperação da empresa.<br />
Na Espanha, em 2003, a lei aprovada, além de superar a<br />
diversidade de instituições concursais para comerciantes, flexibiliza<br />
o procedimento calcado na insolvência e institui o convênio entre<br />
credores e o devedor, tudo assentado num plano de viabilidade.<br />
Como se pode perceber até aqui, a recuperação judicial, na<br />
maioria dos países ocidentais, reconhece a importância social da<br />
empresa, passando a exigir do devedor a apresentação de um plano,<br />
o qual estabelecerá os meios, dentre os mais diversos, que pretende<br />
utilizar para reerguimento da atividade empresarial. Pela lei brasileira,<br />
além disso, a concessão da recuperação, que substitui a concordata,<br />
prevista na lei n.11.101/05, passa a depender da anuência dos<br />
credores, reunidos em assembleia.<br />
Assim, a tendência dos atuais sistemas jurídicos regentes<br />
da insolvência, é a realização dos direitos dos credores mediante<br />
a recuperação da empresa devedora, ficando a falência como<br />
antídoto residual, de cunho liquidatório, dirigida exclusivamente aos<br />
empreendimentos inviáveis.<br />
PRINCÍPIOS DO <strong>RE</strong>GIME DE INSOLVÊNCIA DO<br />
AGENTE ECONÔMICO<br />
Dentre alguns dos princípios que regem a insolvência e a<br />
recuperação da empresa, é possível destacar os principais, os quais<br />
172 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />
deverão ser analisados, criteriosamente e em conjunto, antes de ser<br />
tomada qualquer tipo de decisão. São eles: a) Viabilidade da empresa,<br />
como critério distintivo básico entre a recuperação e a falência; b)<br />
Predominância do interesse imediato dos credores; c) Publicidade dos<br />
procedimentos; d) Par conditio creditorum (equidade); e) Conservação<br />
e maximização dos ativos do agente econômico devedor; e f)<br />
Preservação da atividade empresarial.<br />
Estes princípios não devem ser considerados como<br />
compartimentos isolados e autossuficientes, pois mantêm entre si um<br />
nexo de complementaridade e equilíbrio. Para facilitar, sucintamente,<br />
será feita uma breve análise de cada princípio, a fim de tentar<br />
esclarecer o significado de cada um deles.<br />
Para o Princípio da Viabilidade da Empresa, existe uma dicotomia<br />
entre as empresas economicamente viáveis e inviáveis. A recuperação<br />
pode ser judicial (art. 47) e extrajudicial (art.161), mas somente é<br />
indicada para as empresas viáveis. A aferição dessa viabilidade está<br />
ligada a fatores endógenos e exógenos. Os endógenos referem-se ao<br />
ativo e passivo, ao faturamento anual, ao nível de endividamento e ao<br />
tempo de constituição. Já os exógenos dizem respeito à relevância<br />
socioeconômica da atividade.<br />
Para possibilitar a formulação de um diagnóstico, segundo Fazzio<br />
Junior (20<strong>08</strong>, p. 16), devem ser feitas as seguintes perguntas, no<br />
mínimo: “1) Existe um plano de recuperação? 2) Que critérios devem<br />
ser eleitos para sua avaliação? 3) Essa avaliação autoriza a expectativa<br />
de êxito do plano? 4) Como custodiar sua concretização?”.<br />
Além de tais questionamentos, também, devem ser observados<br />
os meios de recuperação judicial previstos, principalmente, no art. 50<br />
(L<strong>RE</strong>), como por exemplo, a concessão de prazos e condições especiais<br />
para pagamento das obrigações vencidas ou vincendas, alteração do<br />
controle societário, substituição total ou parcial dos administradores<br />
do devedor ou modificação de seus órgãos administrativos, aumento<br />
do capital social, trespasse ou arrendamento do estabelecimento,<br />
redução salarial, constituição de sociedades de credores, venda parcial<br />
de bens, equalização de encargos financeiros, usufruto da empresa,<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 173
José Lauri Bueno de Jesus<br />
administração compartilhada, emissão de valores mobiliários, etc.<br />
Depois disso, e devidamente estruturado num plano de recuperação,<br />
é que se oferecerá à consideração judicial.<br />
Caso verificada, desde logo, a impossibilidade de cumprimento<br />
do plano proposto, é de rigor, o indeferimento da pretensão pelo juiz.<br />
A constatação posterior de que a continuidade da empresa é inviável,<br />
implica a conversão (convolação), ou seja, decretação da falência do<br />
processo de recuperação em solução liquidatória, conforme prevê o<br />
art. 73, nas seguintes hipóteses: a) por deliberação da assembleia<br />
geral, isto é, quando a proposta obtiver votos favoráveis de credores<br />
que representem mais da metade do valor total dos créditos<br />
presentes à assembleia geral; b) quando houver sido rejeitado o<br />
plano de recuperação judicial pela assembleia de credores; e c)<br />
por descumprimento de qualquer obrigação assumida no plano de<br />
recuperação judicial.<br />
A reorganização da empresa deve ser tanto administrativa como<br />
financeira e isso pressupõe um mínimo de condições e a presença de<br />
pressupostos legais. A recuperação empresarial não pode almejar a<br />
plena recriação da empresa, mas atender aos objetivos inicialmente<br />
propostos de viabilidade.<br />
Pelo Princípio da Relevância do Interesse dos Credores, diz<br />
Waldo Fazzio Junior que<br />
[...] qualquer regime de insolvência visa satisfazer, equitativamente,<br />
pretensões creditícias legítimas [...]. A reestruturação da empresa<br />
em dificuldades é instrumental da satisfação dos credores, desde<br />
que observados níveis mínimos de paridade. Percebe-se que desde<br />
a sua origem a insolvência [...]é uma postura jurídica estabelecida<br />
para atender os direitos dos credores. Tais direitos predominam e, no<br />
mínimo, [...] constituem o estopim para a deflagração processual da<br />
conjuntura universal de insolvência (20<strong>08</strong>, p. 17).<br />
A prevalência do interesse dos credores deve ser entendida<br />
em sentido genérico, abrangente da coletividade dos detentores<br />
de créditos e não em razão deste ou daquele credor. Também, não<br />
pode ser identificado como a realização de pronto de seus haveres.<br />
O processo de insolvência não pode se protrair indefinidamente,<br />
174 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />
pois deve ocorrer uma satisfação célere dos créditos, observando os<br />
parâmetros adequados e de pagamentos satisfatórios.<br />
A predominância do interesse dos credores deve identificar-se<br />
com o interesse público inerente à empresa. É lícito, e possível, afirmar<br />
que a manutenção da empresa pode ser a chave para o atendimento<br />
adequado das pretensões creditícias, pois nenhum credor é movido<br />
pelo ânimo liquidatório, haja vista que empresa liquidada não paga<br />
seus débitos na totalidade.<br />
Por sua vez, o Princípio da Publicidade dos Procedimentos,<br />
conforme Fazzio Junior traz à baila que a<br />
[...] transparência é a palavra que abre as portas de um processo<br />
de insolvência, ou seja, transparência em sentido estrito de<br />
todos os atos processuais e também a clareza e objetividade na<br />
definição dos diversos atos que os integram. Deve haver uma<br />
previsão bem clara da estipulação de requisitos, fundamentos<br />
e prazos para impedir a adoção de manobras procedimentais e<br />
expedientes protelatórios (20<strong>08</strong>, p. 18-19).<br />
Nesse contexto, uma fiscalização permanente e zelosa do juiz, do<br />
administrador judicial e do Ministério Público, certamente, vai facilitar<br />
muito o andamento das atividades da empresa. Também, “é desejável<br />
a ampla participação dos credores e dos segmentos integrantes<br />
da empresa insolvente”, pois a adoção de soluções que atendam<br />
à maioria dos envolvidos, ampliarão as possibilidades de êxito das<br />
medidas eleitas.<br />
No que diz respeito ao Princípio do Par Conditio Creditorum<br />
(equidade), vislumbra-se a existência de um tratamento dos credores<br />
em igualdade de condições, pois<br />
[...] a equidade é um princípio geral de Direito que, aqui, se<br />
manifesta em toda a sua intensidade. O tratamento equitativo dos<br />
créditos é a máxima regente de todos os processos concursais,<br />
considerando o mérito das pretensões antes que a celeridade na<br />
sua dedução (FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p. 19).<br />
Nesse diapasão, quando se fala em equidade, deve-se “observar<br />
o sítio em que cada crédito a lei lhe reserva na classificação geral nos<br />
art. 83 e 84 da Lei n. 11.101/05, assegurando-se, de modo decisivo,<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 175
José Lauri Bueno de Jesus<br />
que a índole preferencial de alguns seja respeitada” ”(FAZZIO JUNIOR,<br />
20<strong>08</strong>, p. 19). A regra diz respeito à proporcionalidade na consideração<br />
dos créditos, ou seja, deve-se respeitar as peculiaridades da lei.<br />
É inegável a posição de paridade dos credores, o que não traduz,<br />
necessariamente, nivelamento.<br />
Assim, a ordem dos créditos a serem pagos, prevista em tais<br />
artigos, deve ser, inicialmente, os créditos extraconcursais (art. 84), os<br />
créditos trabalhistas limitados a 150 salários mínimos, os decorrentes<br />
de acidentes de trabalho, os créditos com garantia real até o limite do<br />
valor do bem gravado, os créditos tributários, os créditos com privilégio<br />
especial, os créditos com privilégio geral, os créditos quirografários e<br />
os créditos subordinados. Essa é a ordem que, obrigatoriamente, deve<br />
ser seguida e observada no momento dos pagamentos dos créditos<br />
aos credores.<br />
O Princípio da Conservação e Maximização dos Ativos diz o<br />
seguinte: “para que se cumpram as finalidades do processo de<br />
insolvência, os ativos (bens) da empresa precisam ser preservados<br />
e, se possível, maximizados”, isto é, se necessário aliená-los, devem<br />
ser feitos com os valores mais altos possíveis. É comum a dissipação<br />
dos ativos pela ação de credores mais “ligeiros”, em prejuízo da<br />
coletividade dos credores e da observância do mérito que assiste a<br />
cada pretensão.<br />
Sobretudo na falência, em que os titulares da empresa devedora<br />
perdem sua capacidade de gestão para um administrador judicial,<br />
a fiscalização da massa de bens é atitude indispensável para<br />
salvaguardar a garantia comum dos credores e assegurar que seja,<br />
se não suficiente, ao menos apta a resolver a maior faixa possível<br />
de créditos. A preservação dos ativos “deve ser meta anelada com o<br />
intuito de satisfazer à solução dos débitos e dos encargos sociais”.<br />
Não é tutelar os ativos para a fruição e gozo do empresário, pois “o<br />
que deve ser recuperado é a empresa” (FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p.<br />
20).<br />
Por fim, o Princípio da Preservação da Empresa diz que “a<br />
empresa é uma unidade econômica que interage no mercado”, seja<br />
176 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />
insolvente ou não, pois é “uma unidade de distribuição de bens e/<br />
ou serviços. É um ponto de alocação de trabalho”, por ser um “elo<br />
na imensa corrente do mercado e, por isso, não pode desaparecer,<br />
simplesmente, sem causar sequela”, como afirma Fazzio Junior (20<strong>08</strong>,<br />
p. 20).<br />
De certa forma, “a atividade empresarial desborda dos limites<br />
estritamente singulares para alcançar dimensão socioeconômica<br />
bem mais ampla, pois afeta o mercado e a sociedade e isso é mais<br />
que singela conotação pessoal” (20<strong>08</strong>, p. 20). Daí, por que basta<br />
a presunção de insolvência para justificar a busca de uma solução<br />
jurisdicional.<br />
A preservação da atividade empresarial “é o ponto mais delicado<br />
do regime jurídico de insolvência. Ao contrário da concepção cirúrgica<br />
adotada pela extinta Lei de Falências e Concordata (DL 7.661/45),<br />
pretende-se com a nova Lei de Recuperação de Empresas (Lei n.<br />
11.101/05), na medida do possível, priorizar a recuperação sobre a<br />
falência” (20<strong>08</strong>, p. 20). Assim, “somente deve ser liquidada a empresa<br />
inviável, [...] aquela que não comporta uma reorganização eficiente ou<br />
não justifica o desejável resgate” (FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p.21).<br />
Frise-se que “a preservação da empresa não significa a preservação<br />
do empresário ou dos administradores da empresa”. Implica apartar<br />
os reais interesses envolvidos na empresa dos interesses dos seus<br />
mentores. Como diz Lobo (apud FAZZIO JUNIOR, 20<strong>08</strong>, p. 21) ao<br />
manifestar-se sobre o princípio em estudo, pois ele representa “um<br />
valor objetivo de organização que deve ser preservado, pois toda crise<br />
da empresa causa um prejuízo à comunidade”.<br />
O objetivo econômico da preservação da empresa previsto no art.<br />
47 da Lei n. 11.101/05, deve preponderar, em regra, sobre o objetivo<br />
jurídico da satisfação do título executivo, se este for considerado<br />
apenas como a realização de pretensão singular. Assim, o regime<br />
jurídico de insolvência não deve ficar preso ao maniqueísmo que se<br />
revela no embate entre a pretensão dos credores e o interesse do<br />
devedor. A empresa não é mero elemento da propriedade privada,<br />
pois nas crises, sofrem o próprio devedor, os credores e a sociedade.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 177
José Lauri Bueno de Jesus<br />
Decorrentemente desses princípios elencados, surge o princípio<br />
geral da solvabilidade jurídica, no qual as obrigações (legais ou<br />
convencionais) devem ser voluntariamente cumpridas, ou o Estado<br />
deverá aplicar as consequências jurídicas previstas para o seu<br />
descumprimento, exercendo (o Estado), para tanto, o seu poder de<br />
coerção. Claro está o art. 91, do Código Civil de 2002, em que afirma<br />
ser uma universalidade de direito o complexo das relações jurídicas,<br />
de uma pessoa, dotadas de valor econômico. Também, o art. 391,<br />
do Código Civil, confirma que pelo inadimplemento das obrigações<br />
respondem todos os bens do devedor.<br />
Obviamente, o princípio geral da solvabilidade jurídica pressupõe<br />
que o patrimônio ativo (positivo) da pessoa tenha capacidade<br />
econômica de suportar as obrigações constantes no seu patrimônio<br />
passivo (negativo). Por outro lado, entretanto, deve ficar claro que a<br />
insolvência civil e insolvência do empresário ou sociedade empresária<br />
são regimes jurídicos diversos, pois o primeiro é raro, e o segundo é<br />
muito comum.<br />
Assim, a empresa é bem jurídico cuja proteção se justifica não<br />
apenas em função dos interesses de seus sócios, mas de seus<br />
empregados, fornecedores, consumidores, investidores, do Estado<br />
e, enfim, da sociedade, que, mesmo indiretamente, se beneficia de<br />
suas atividades. E, sendo assim, o regime alternativo à falência é a<br />
recuperação de empresa.<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Em uma breve análise, percebe-se que a antiga legislação<br />
falimentar (Decreto-lei n. 7661/45), padecia de diversas incoerências<br />
com a realidade brasileira, desprestigiando a importância social da<br />
empresa, em virtude da existência de muitas dissonâncias que<br />
aconteciam na época. Com o intuito de sanar tais deficiências, dentre<br />
outras, foi criado o instituto da recuperação judicial e extrajudicial,<br />
por meio da Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, cujo principal<br />
objetivo é viabilizar a preservação da empresa, a sua função social e<br />
o estímulo à atividade econômica, para minimizar o desemprego.<br />
178 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />
Assim, esse novo e moderno instituto jurídico se compatibiliza<br />
com as tendências internacionais, ao atender as peculiaridades<br />
e necessidades da empresa em crise, em um esforço criativo para<br />
viabilizar a sua continuidade, como ocorre na maioria dos países<br />
desenvolvidos, a exemplo dos Estados Unidos, Itália, Portugal, Japão,<br />
Espanha e França.<br />
Contudo, é imperioso ressaltar que a nova lei de falência e<br />
recuperação de empresa também foi, e ainda é, alvo de severas<br />
críticas, especialmente ao outorgar aos credores o poder de decisão<br />
quanto ao plano de recuperação apresentado pelo devedor, limitando,<br />
dessa forma, as atribuições da autoridade judiciária. Com isso, os<br />
credores irão aprovar ou rejeitar a recuperação judicial, segundo as<br />
suas conveniências, evitando dar margem a fraudes e conluios, além<br />
de não privilegiar os interesses dos grandes credores, em detrimento<br />
do previsto na legislação.<br />
Além disso, alguns juristas e empresários conservadores tecem<br />
críticas à nova sistemática legal por não retirar do Poder Judiciário os<br />
procedimentos mais demorados, quais sejam, a verificação do crédito<br />
e a habilitação dos credores, uma vez que cada impugnação ainda<br />
precisará de parecer do Ministério Público e sentença judicial. Não<br />
houve, portanto, qualquer avanço quanto à morosidade da justiça.<br />
Contudo, apesar da lei nova ter trazido uma inovação importante e<br />
digna de aplausos pelos juristas ao ampliar o rol de créditos submetidos<br />
à recuperação, exigir a apresentação e cumprimento de um plano de<br />
recuperação e ao disponibilizar meios variados para tanto, não se<br />
pode olvidar que o instituto restou fragilizado por ter outorgado vultoso<br />
poder aos credores.<br />
Concluindo, embora ainda apresente imperfeições, a nova Lei de<br />
Falências e Recuperação de Empresas (Lei n. 11.101/05) é fundamental<br />
para a economia brasileira e representa, inequivocadamente, um<br />
enorme avanço no tratamento dado às empresas em dificuldades, ao<br />
preservar empregos, privilegiar a recuperação financeira e viabilizar<br />
créditos, nos moldes dos países mais avançados.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 179
José Lauri Bueno de Jesus<br />
<strong>RE</strong>FERÊNCIAS<br />
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. Direito de<br />
empresa. 10. ed., São Paulo: Saraiva, 2010. Vol. 3.<br />
FAZZIO JUNIOR, Waldo. Lei de falência e recuperação de empresas.<br />
4. ed., São Paulo: Atlas, 2009.<br />
MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro. Falência e<br />
recuperação de empresa. 3. ed., São Paulo: Atlas, 2009. Vol. 4.<br />
OLIVEIRA, Celso Marcelo. Comentários à nova lei de falências.<br />
São Paulo: IOB Thomson, 2005.<br />
RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial sistematizado.<br />
Recebido: 11-7-2014<br />
Aprovado: 10-10-2014<br />
180 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />
DI<strong>RE</strong>ITO<br />
A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA<br />
COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA<br />
FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADO<strong>RE</strong>S<br />
DO DI<strong>RE</strong>ITO<br />
The importance of criminology as an independent discipline<br />
in higher education law of operators<br />
Clarissa Bohrer 32<br />
Resumo<br />
A Criminalística tem demonstrada a sua importância ao longo da evolução do estudo da Medicina Legal e<br />
do Processo Penal, cadeiras integrantes do curso superior de Ciências Jurídicas e Sociais. O profissional do<br />
Direito, entretanto, conclui a sua formação tendo apenas uma breve noção de conceitos que serão por ele<br />
utilizados sê membro das carreiras do Judiciário, do Ministério Público, das Promotorias e Defensorias ou<br />
na qualidade de advogado. Entretanto, caso opte por uma das carreiras da Segurança Pública (Polícias civil<br />
e militar e Perícia oficial) terá uma abrangência de conhecimentos que lhes capacitarão verdadeiramente<br />
para labutar na seara criminal. Assim, será proposta a inclusão da Criminalística como disciplina autonôma<br />
dos cursos superiores de Direito, dada a sua importância para todos os operadores do Direito, sejam<br />
profissionais da Segurança Pública ou não.<br />
Palavras-chave: Criminalística. Autonomia. Educação superior.<br />
Abstract<br />
The Criminalistics has demonstrated its importance during the evolution of the study of Forensic Medicine<br />
and Criminal Procedure, members of chairs degree in Law and Social Sciences. The professional law,<br />
however, concluded his training with only a brief notion of concepts that will be used by him a member of<br />
the careers of the Judiciary, the Public Ministry, the Prosecutors and Defenders or as a lawyer. However, if<br />
you opt for a career in Public Safety (civil and military official and Expertise Police) will have a breadth of<br />
knowledge that will enable them truly to toil in the criminal realm. Thus, the inclusion of Criminology will be<br />
proposed as an autonomous discipline of higher education in law, given its importance to all operators of<br />
Law, Public Safety are professionals or not.<br />
Keywords: Criminalistics. Top autonomia. Educação.<br />
Sumário:<br />
1. Introdução; 2. Revisão de literatura; 2.1. Histórico da criminalística; 2.2 A criminalística como disciplina<br />
autônoma; 3. A criminalística como disciplina autônoma nos cursos de formação para profissionais da<br />
segurança pública; 3.1. A crise na educação e os novos paradigmas; 4. Considerações finais; 5. Referências<br />
32 Docente do Instituto Cenecista de Santo Ângelo (IESA) na Faculdade de Direito e leciona a disciplina de Medicina Legal. Perita<br />
Criminal do Instituto – Geral de Perícias (IGP) lotada no Posto de Criminalística de Santo Ângelo. Especialista em Direito Público<br />
pela Escola da Magistratura Federal (ESMAFE) e em Docência para o Ensino Superior pelo IESA. Graduada em Ciências Jurídicas<br />
e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Email: clabohrer13@hotmail.com<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 181-192
Clarissa Bohrer<br />
INTRODUÇÃO<br />
O mais antigo tratado de medicina forense conhecido é o livro<br />
chinês Hsi Yuan Lu (O desaparecer dos erros), datado do século XIII.<br />
Acima de tudo, esse trabalho já sublinhava a importância de examinar<br />
a cena de um crime, afirmando que “a diferença de um cabelo é a<br />
diferença de mil li” 33 (BENFICA, 2003).<br />
No final do século XVIII, a Medicina Legal obteve o reconhecimento<br />
de sua condição como disciplina autônoma vinculada ao Direito.<br />
Podem-se citar como obras de fundamental importância a publicada<br />
por Johannes Bohn, de Liipzig, Lesões Corporais – Lesões em vida<br />
e post-mortem, e o primeiro tratado espanhol de Medicina Legal, de<br />
autoria de Juan Fernandez de Valles.<br />
A partir do século XIX, nos primórdios da fase técnico-científica,<br />
cabia à Medicina Legal, além dos exames de integridade física do corpo<br />
humano, toda a pesquisa, busca e demonstração de outros elementos<br />
relacionados com a materialidade do fato penal, como o exame dos<br />
instrumentos do crime e de mais evidências extrínsecas ao corpo humano.<br />
Assim, pode-se afirmar que a perícia médica precedeu, em<br />
muitos séculos, à perícia criminalística, e que essa disciplina é um<br />
desdobramento da medicina legal.<br />
Com o advento de novos conhecimentos e o desenvolvimento<br />
das áreas técnicas, como a física, a química, a biologia, a matemática,<br />
a toxicologia e outras, tornou-se necessária a criação de uma nova<br />
disciplina de pesquisa, análise e interpretação dos vestígios materiais<br />
encontrados em locais de crime. Isso se tornaria fonte imperiosa de<br />
apoio à Polícia e à Justiça, para o fiel cumprimento de sua missão, no<br />
intuito de esclarecer e provar fatos.<br />
Assim, tem-se o surgimento da Criminalística como disciplina<br />
autônoma, auxiliar e informativa do Direito Judiciário Penal. É autônoma<br />
por não estar inserida dentro de outra cadeira material ou processual<br />
das Ciências Jurídicas ou Sociais, ou mesmo, da Medicina; por outro<br />
lado, é considerada auxiliar do Direito Penal e do Processo Penal,<br />
disciplinas que se ocupam da descoberta e verificação científica do<br />
33 Um “li” representa uma milha chinesa.<br />
182 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADO<strong>RE</strong>S DO DI<strong>RE</strong>ITO<br />
delito e do delinquente, e servem de auxílio aos órgãos encarregados<br />
da administração da Justiça.<br />
<strong>RE</strong>VISÃO DE LITERATURA<br />
Histórico da Criminalística<br />
Criminalística é a disciplina que tem por objetivo o reconhecimento<br />
e a interpretação dos indícios materiais extrínsecos, relativos ao crime<br />
ou à identidade do criminoso. Os exames, nos vestígios intrínsecos e<br />
na pessoa, seriam da alçada da Medicina Legal (disciplina integrante<br />
da Perícia Criminal). Ou seja, é a parte das ciências criminais que,<br />
ao lado da Medicina Legal, tem por finalidade os estudos técnicos e<br />
científicos dos indícios materiais do delito e da possível identificação<br />
do seu autor, auxiliando, desse modo, os outros campos do Direito<br />
que dela necessitem.<br />
O perito criminal José Lopes Zarzuela (1996), profissional com<br />
mais de trinta anos de atuação na área da Perícia Oficial e conhecedor<br />
de que a criminalística é, eminentemente, dinâmica e sua evolução<br />
doutrinária acompanha o desenvolvimento da química, da física,<br />
da biologia, da medicina, da engenharia, dentre outras disciplinas,<br />
formulou conceito que se ajusta à revolução de idéias que o mundo<br />
contemporâneo atravessa:<br />
[...] a criminalística constitui o conjunto de conhecimentos científicos, técnicos,<br />
artísticos, etc., destinados à apreciação, interpretação e descrição escritas dos<br />
elementos de ordem material encontrados no local do fato, no instrumento de crime<br />
e na peça de exame, de modo a relacionar uma ou mais pessoas envolvidas em um<br />
evento, às circunstâncias que deram margem a uma ocorrência, de presumível ou<br />
evidente interesse judiciário.<br />
Entre os principais postulados que visam a esclarecer o significado<br />
da criminalística é possível destacar aquele que diz: “o conteúdo de<br />
um laudo pericial é invariante com relação ao perito que o produziu”,<br />
ou seja, os resultados são, invariavelmente, baseados em métodos<br />
científicos, por meio de teorias e experiências já consagradas, sendo<br />
que qualquer perito que recorra às leis, para analisar um fenômeno<br />
criminalístico, obterá um resultado que independerá dele como pessoa.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 183
Clarissa Bohrer<br />
Também há aquele que refere que “as conclusões de uma perícia<br />
criminalística não dependem dos meios utilizados para alcançá-las”.<br />
Significa que é preciso o uso de meios adequados para se concluir<br />
a respeito do fenômeno criminalístico; essa conclusão, ao serem<br />
reproduzidos os exames, seja para confirmação do resultado, seja<br />
para contraprova da defesa em um crime doloso contra a vida, será<br />
constante, independentemente de terem sido utilizados meios mais<br />
rápidos, mais precisos, mais modernos ou não.<br />
Por fim, “a perícia criminalística é independente do fator temporal”,<br />
pois é do conhecimento de todos os operadores do direito que a<br />
verdade é imutável em relação ao tempo decorrido.<br />
Além dos postulados criminalísticos, há os princípios considerados<br />
fundamentais a respeito da perícia criminalística que se referem à<br />
observação, análise, interpretação, descrição e documentação da<br />
prova.<br />
No tocante ao postulado da observação, é possível aludir que<br />
todo o contato deixa uma marca. Isso se comprova quando, no local<br />
do crime, ocorre a pesquisa e a busca por vestígios, missão que, nem<br />
sempre, é fácil em razão dos vestígios deixados no local, seja pela<br />
vítima, seja pelo autor.<br />
Ao falar do princípio da análise pericial, é preciso apontar que ela<br />
deve sempre seguir o método científico, uma vez que a perícia científica<br />
visa a definir como o fato ocorreu por meio de uma análise criteriosa,<br />
seguida de uma coleta de dados, as quais permitam estabelecer como<br />
ocorreu o fato e formular, inclusive, hipóteses coerentes sobre ele. Às<br />
vezes, é possível o desenvolvimento desse método ainda no local do<br />
crime, quando não for preciso auxílio de algum aparelho ou exame<br />
complementar.<br />
A respeito do princípio da interpretação, há o entendimento de que<br />
dois objetos podem ser semelhantes, mas nunca idênticos. É preciso<br />
individualizá-los sendo que, para tal, ocorre a identificação genérica, a<br />
específica e a individual. Os exames periciais devem alcançar sempre<br />
este último grau em suas coletas.<br />
184 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADO<strong>RE</strong>S DO DI<strong>RE</strong>ITO<br />
O princípio da descrição aponta, sempre, para o resultado de um<br />
exame pericial que é constante em relação ao tempo, e sua exposição<br />
deve ser feita em linguagem ética e juridicamente perfeita.<br />
Por fim, há o princípio da documentação que refere que toda a<br />
amostra deve ser documentada, desde o seu nascimento, no local<br />
do crime, até sua análise e descrição final, com o objetivo único de<br />
estabelecer um histórico fiel e completo de sua origem. Assim, há<br />
proteção e fidelidade da prova, evitando considerações sobre provas<br />
forjadas para incriminar ou inocentar alguém (DO<strong>RE</strong>A, QUINTELA;<br />
STUMVOLL, 2005).<br />
A Criminalística como disciplina autônoma<br />
A criação da disciplina de Criminalística é atribuída ao Professor<br />
Hans Gross, eminente catedrático de Direito Penal, na Universidade de<br />
Graz, na Áustria, e ex-juiz instrutor, em livro publicado em 1886, Manual<br />
do Juiz de Instrução – Todos os sistemas de criminalística (System<br />
der Kriminalistik) 34 . A obra abrange a gama de conhecimentos<br />
científicos e práticos, úteis e necessários ao Juiz instrutor do processo<br />
penal, estando incluídas as diversas disciplinas da perícia forense:<br />
a Medicina Legal, a Antropologia Criminal, a Psicologia Criminal, a<br />
Psicologia do Testemunho, a Psiquiatria e a Psicopatologia Forense.<br />
Para Hans Gross, Criminalística seria o estudo da fenomenologia do<br />
crime e dos métodos práticos de sua investigação.<br />
O juiz, entretanto, na maior parte das vezes, havia de se socorrer<br />
das diversas categorias de peritos leigos, ou seja, profissionais<br />
de respectivas áreas do conhecimento, todavia carentes de<br />
preparo intelectual capaz de habilitá-los a articularem respostas<br />
necessariamente precisas e claras aos questionamentos formulados<br />
a serem esclarecidos.<br />
Assim, o elo natural entre o jurista e os peritos leigos, esses carentes<br />
de preparo intelectual, aquele com formação intelectual superior, ocorreu<br />
entre o juiz e o médico, este detentor de cultura geral e formação<br />
específica equivalente ao do magistrado (RABELLO, 1996).<br />
34 Originalmente, Handbuch fürUntersuchungsrichter als System der Kriminalistik<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 185
Clarissa Bohrer<br />
Paralelamente à criação da criminalística, na Argentina, Juan<br />
Vucentich, funcionário do Departamento de Polícia da Província de<br />
La Plata, encarregado da Oficina de Identificação, criava, em 1891,<br />
e colocava em funcionamento, em 1892, na repartição em que<br />
trabalhava, o Sistema Datiloscópico, considerado, até hoje, o mais<br />
perfeito sistema prático de identificação datiloscópica.<br />
O Sistema foi, pela primeira vez, utilizado, com êxito, no famoso<br />
caso Teresa Rojas de Necochea, o homicídio de duas crianças de<br />
forma brutal em que a mãe atribuía a autoria a determinado homem.<br />
Entretanto, de acordo com as impressões papilares deixadas no cabo<br />
do instrumento do crime, foi constatado que a autoria do delito fora<br />
da própria mãe das crianças. Com isso, resolveu-se, em definitivo,<br />
o problema de determinação científica da identidade física do ser<br />
humano, proporcionando à Justiça a prova irrefutável da identidade<br />
da autoria do delito.<br />
A partir do desenvolvimento da Medicina Legal, da Criminalística<br />
e da Papiloscopia, foi a Polícia quem primeiro fez uso da Perícia<br />
Criminal, durante a persecução penal.<br />
A Polícia, no setor de investigação criminal, já possuía, em seu<br />
quadro funcional, o médico legista, que resolvia, em definitivo, o<br />
problema da verificação e da prova da identidade física do indivíduo,<br />
inclusive pelos vestígios materiais deixados no local do crime e nos<br />
objetos vinculados ao fato.<br />
A evolução da Perícia Criminal ocorreu, basicamente, no interior<br />
das instituições policiais, o que ensejou as incorretas denominações<br />
de Polícia Técnica, Polícia Científica e, até, Policiologia.<br />
Via de regra, é da Polícia a incumbência das primeiras providências<br />
na ocorrência de significado jurídico penal. Quando toma conhecimento<br />
do fato, é dela a missão de investigá-lo, de apurar, devidamente, a<br />
sua natureza e suas circunstâncias de possível interesse para o juízo<br />
criminal, cumprindo, dentro das regras de Direito, valer-se de todos os<br />
recursos disponíveis.<br />
Ocorre que o investigador criminal é um profissional desprovido<br />
de conhecimentos técnicos, podendo, até mesmo, concorrer para<br />
186 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADO<strong>RE</strong>S DO DI<strong>RE</strong>ITO<br />
a destruição ou perda de elementos indiciários valiosos que, se<br />
devidamente preservados por ele e adequadamente examinados por<br />
um especialista, podem conduzir a investigação penal com brevidade<br />
e certeza à completa elucidação do fato investigado.<br />
Tem-se, então, a criação da figura do perito criminal, agente que<br />
concorre com seus conhecimentos e recursos de ordem técnico-<br />
-científica, na investigação, para o esclarecimento e a prova de<br />
questões de fato, cujo exame estiver compreendido no seu setor<br />
particular de especialização.<br />
Ao policial, portanto, há a incumbência de solicitar ou requisitar<br />
o atendimento especializado dos peritos criminais que não atuam de<br />
ofício, mas tão somente em atendimento à solicitação da autoridade −<br />
quer policial, quer judiciária.<br />
A CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA<br />
AUTÔNOMA NOS CURSOS DE FORMAÇÃO PARA<br />
PROFISSIONAIS DA SEGURANÇA PÚBLICA<br />
Os ramos da perícia criminal são quatro, a saber: a Medicina Legal,<br />
a Criminalística, a Papiloscopia e o Laboratório de Perícias, sendo<br />
que a Criminalística abrange todas as demais análises técnicas, como<br />
as perícias de: Documentoscopia, Grafoscopia, Balística, Impressões<br />
Papilares, Computação Forense, Engenharia Legal, Meio Ambiente,<br />
Audiovisual, Acidentes de Tráfego, Mortes Violentas, Crimes contra<br />
o Patrimônio, Identificação de Veículos, Reprodução Simulada de<br />
Fatos, dentre outras.<br />
No Rio Grande do Sul, existem quatro orgãos que compõem a<br />
Segurança Pública (Polícia Civil, Brigada Militar, Instituto Geral de<br />
Perícias - IGP e Superintendencia de Serviços Penintenciários –<br />
SUSEPE). Após o ingresso por meio de concurso público de provas e/<br />
ou títulos, os membros desses orgãos – seja na qualidade de agente,<br />
seja na de autoridade – deverão obrigatoriamente frequentar um<br />
curso de formação, que será parte integrante do processo seletivo. Na<br />
matriz curricular desses cursos de formação, cada um em sua área<br />
específica, deverá ser ministrada a disciplina de Criminalística. Essa<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 187
Clarissa Bohrer<br />
disciplina é, preponderantemente, ofertada por peritos oficiais, dentre<br />
eles, peritos criminais, papiloscopistas e médicos-legistas.<br />
Inconteste a necessidade da oferta dessa disciplina nos cursos<br />
de formação, pois os profissionais da segurança pública irão<br />
verdadeiramente lidar com os conceitos necessários e fornecidos pela<br />
Criminalística para buscar preservar o trabalho, principalmente, dos<br />
peritos na busca da verdade real.<br />
A Crise na Educação e os Novos Paradigmas<br />
Nas IES (Instituição de Ensino Superior) do Brasil, não existe<br />
a cadeira da Criminalística como disciplina autônoma nos cursos<br />
superiores de Direito. Em algumas, como, em especial, no Rio Grande<br />
do Sul, existe o conteúdo programático da Criminalistica inserido na<br />
disciplina de Medicina Legal e na disciplina de Processo Penal.<br />
Em decorrência da formação acadêmica que, na quase totalidade<br />
das Faculdades de Direito não contempla a Criminalística na<br />
grade curricular, muitos profissionais da área jurídica − advogados,<br />
promotores, defensores, juízes − encontram dificuldades para elaborar,<br />
corretamente, os quesitos ao perito, apresentar questionamentos em<br />
audiência, solicitar o adequado exame pericial, construir uma tese de<br />
defesa ou de acusação com base no laudo pericial.<br />
As IES, atualmente, devem, segundo Dias Sobrinho(2002),<br />
responder a desafios ou ao menos ajudar na solução de problemas,<br />
tais como na formação de mão-de-obra de alto nível para o<br />
atendimento de demandas imediatas no mundo do trabalho, formação<br />
qualificada para novas ocupações, além da formação para a inovação,<br />
preservação e desenvolvimento da alta cultura. Importante, ainda,<br />
na visão desse pensador, a capacitação de professores de todos os<br />
níveis e a formação de novos pesquisadores.<br />
O que as IES devem pretender, na atualidade das diversas “crises<br />
de paradigmas” é a melhoria do processo-ensino aprendizagem no<br />
seio da universidade. O novo paradigma científico requer novas<br />
perspectivas para a apreensão e compreensão dos fenômenos<br />
educacionais. Tal perspectiva é necessária do processo educacional<br />
188 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADO<strong>RE</strong>S DO DI<strong>RE</strong>ITO<br />
desenvolvido nas universidades, pois é a partir de sua formação<br />
acadêmica que os profissionais das IES, terão a capacidade de<br />
atribuirem sentido aos dados e fatos apresentados pela realidade,<br />
numa tentativa de compreendê-los e convertê-los em discurso, o que<br />
é fundamental para a renovação da prática pedagógica (WERLE,<br />
2011).<br />
Primeiramente deve-se tratar o que é a crise de paradigmas. Sabe-<br />
-se que é uma questão limitada a um pequeno círculo intelectual, pois<br />
a grande parte da população sequer sabe o que significa “paradigma”.<br />
Com relação à Educação, o modelo então vigente é colocado em xeque,<br />
gerando verdadeira “orfandade ideológica” (GARCIA, 1994, p.58).<br />
Numa primeira visão, “paradigma” refere-se à teoria (leis,<br />
conceitos, modelos, analogias, regras) mas, também, implica em<br />
valores em visões e compreensões de mundo. Ainda se refere a<br />
quadros de referência teórico-metodológicos.<br />
Para Mendonça (1994), a crise sentida no campo da educação é<br />
justificada pelo isolamento do campo – de ensino – e a inconsistência<br />
teórica, ou seja, a delimitação de fronteiras de outros campos<br />
enquanto que a natureza da Educação, enquanto objeto de estudo – é<br />
necessariamente interdisciplinar<br />
O mercado exige e a universidade deve atender aos anseios dele.<br />
O mercado necessita do conhecimento produzido no meio acadêmico.<br />
Isso porque o aluno que está na universidade é aquele que irá para<br />
o mercado, então, já deve ir preparado para ter as reais condições<br />
de competitividade. A universidade não se transformará em simples<br />
marca, mas, sim, em responsável pelo futuro empreendedor, no futuro<br />
empregado e empregador. E esse é o seu papel, o de responsável<br />
social pela formação de seus alunos.<br />
Com base nisso, os futuros operadores do Direito têm a<br />
necessidade de se equipararem no estudo da ciência da Criminalística,<br />
enquanto servidores públicos dos diversos órgãos da Administração<br />
Direta, do Poder Judiciário, Ministério Público e Defensorias, ou na<br />
qualidade de advogados, pois iram labutar em condições de igualdade<br />
no embate criminal dos servidores da Segurança Pública.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 189
Clarissa Bohrer<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Este artigo apresentou a importância do estudo da Criminalística<br />
para os futuros operadores do Direito. Em que pese a ciência estar<br />
sendo tratada como conteúdo programático das disciplinas de Medicina<br />
Legal e de Processo Penal, faz-se necessária a sua transcendência<br />
para o patamar de disciplina autônoma dos cursos de Direito, haja<br />
vista já estar assim sendo tratada nos cursos de formação para os<br />
profissionais de Segurança Pública.<br />
Hoje, juízes, promotores, defensores e advogados não sabem<br />
interpretar um laudo oficial, pura e simplesmente, por falta de formação<br />
acadêmica. Não é apenas o profissional da Segurança Pública que<br />
deve deter esse conhecimento: são todos os envolvidos na persecução<br />
penal. Todavia, para que isso ocorra, é necessário haver alterações na<br />
estrutura curricular, a fim de que, finalmente, os futuros bacharéis em<br />
Ciências Jurídicas e Sociais possam se equiparar em conhecimentos<br />
com os agentes da Segurança Pública.<br />
Com a transformação e as reflexões advindas das instituições de<br />
ensino superior (IES), conforme demonstrado ao longo deste trabalho,<br />
o momento é propício para se inserir nas matrizes curriculares o<br />
estudo da metodologia científica da investigação criminal, no mundo<br />
da ciência Criminalística, com o intuito da emancipação profissional<br />
dos operadores do Direito.<br />
Importante frisar que o relacionamento entre as disciplinas<br />
permite, além de descobrir o entendimento específico de cada uma<br />
quanto ao seu objeto, mas motivar a autorreflexão sobre os próprios<br />
olhares restritos que delimitam seus questionamentos. (FLICKINGER,<br />
2007).<br />
Pode-se inferir, por fim, que os conhecimentos oferecidos pela<br />
perícia criminal são imprescindíveis para todos os profissionais que<br />
lidam com o processo penal, desde os agentes públicos da Segurança<br />
Pública, até advogados, defensores públicos, promotores e juízes<br />
criminais. E esse conhecimento deve ser ofertado nas Instituições de<br />
Ensino Superior (IES), nos Cursos de Direito.<br />
190 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADO<strong>RE</strong>S DO DI<strong>RE</strong>ITO<br />
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(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 191
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Acesso em: 15 mar. 2011.<br />
Recebido: 5-8-2014<br />
Aprovado: 17-10-2014<br />
192 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />
DI<strong>RE</strong>ITO<br />
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES,<br />
CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA<br />
APLICAÇÃO<br />
Dignity of the human person: limits, criteria and assumptions<br />
for your application<br />
Resumo<br />
Adriana Liberalesso 35<br />
Bruna Escobar 36<br />
Carla Dóro de Oliveira 37<br />
Tainá Borges 38<br />
Vera Maria Werle 39<br />
O presente trabalho tem por objetivo a apresentação das noções principais acerca do princípio<br />
constitucional da dignidade da pessoa humana, especialmente no que tange à delimitação de um conceito<br />
jurídico possível, bem como da delimitação de conteúdos mínimos para a sua correta aplicação pelo<br />
operador do direito. Por fim, buscar-se-á demonstrar de que forma tem se dado a utilização desse princípio<br />
pela jurisprudência brasileira frente ao caso concreto.<br />
Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana. Princípio da ponderação. Conteúdos mínimos. Mínimo<br />
existencial.<br />
Abstract<br />
The present work aims at presenting the main notions of the constitutional principle of human dignity,<br />
especially with regard to the delimitation of a possible legal concept, as well as the delimitation of minimum<br />
content for their correct application by the operator on the right. Finally, we will seek to demonstrate is that<br />
form has been given the use of this principle by the Brazilian jurisprudence opposite case.<br />
Keywords: Dignity of the human person. Principle of weighting. Minimum contents. Existential minimum.<br />
Sumário:<br />
Introdução; 1. Evolução histórica; 2. Natureza jurídica; 3. A aplicação do princípio da dignidade da pessoa<br />
humana tendo como parâmetro o princípio da ponderação, a delimitação de conteúdos e o mínimo<br />
existencial; 4. A utilização do princípio da dignidade da pessoa humana pela jurisprudência atual; 5.<br />
Conclusão; 6. Referências.<br />
35 Acadêmica do 8º período do curso de Direito da Universidade de Passo Fundo. E-mail: adri_liberalesso@hotmail.com.<br />
36 Acadêmica do 8º período do curso de Direito do Instituto de Ensino Superior de Santo Ângelo. E-mail: bruna-escobar@hotmail.com.<br />
37 Acadêmica do 8º período do curso de Direito do Instituto de Ensino Superior de Santo Ângelo. E-mail: carlinha_doro@hotmail.com.<br />
38 Acadêmica do 8º período do curso de Direito do Instituto de Ensino Superior de Santo Ângelo. E-mail: tainathaisb@hotmail.com.<br />
39 Mestre em Desenvolvimento, Gestão e Cidadania. Orientadora. Professora do Curso de Direito do Instituto de Ensino Superior de<br />
Santo Ângelo.E-mail: verawerle@brturbo.com.br.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 193-216
Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />
INTRODUÇÃO<br />
O presente estudo tem por objetivo a busca por uma melhor<br />
compreensão da dignidade da pessoa humana. Vê-se que,<br />
hodiernamente, os operadores do Direito têm dificuldade na<br />
conceituação da dignidade humana, vendo nessa um instituto, muitas<br />
vezes, vazio de significado. O principal escopo desse trabalho é evitar<br />
que a dignidade da pessoa humana seja vista, conforme destaca Luis<br />
Roberto Barroso, como um espelho “no qual cada um projeta sua<br />
própria imagem de dignidade” (2010, p. 3). Para tanto, far-se-á uma<br />
análise da evolução história desse princípio, buscando-se entender<br />
de que forma ele alcançou tamanha importância nos diversos<br />
ordenamentos jurídicos ao redor do mundo. Ademais, examinar-se-á<br />
a natureza jurídica da dignidade humana, expondo-se conceitos e<br />
fazendo-se alusão à atual jurisprudência brasileira, e a forma como a<br />
dignidade humana vem sendo aplicada.<br />
EVOLUÇÃO HISTÓRICA<br />
A dignidade da pessoa humana, na forma como é tratada<br />
atualmente, tem origem religiosa. Foi com o cristianismo que a<br />
dignidade humana teve traçados seus primeiros contornos, a partir<br />
do reconhecimento do homem como imagem e semelhança de Deus.<br />
Cabe destacar que esse reconhecimento se dava muito mais no plano<br />
espiritual, uma vez que, mesmo durante o cristianismo, homens eram<br />
escravizados e transformados em objetos a serviço de um fim.<br />
É esse o entendimento de Luís Roberto Barroso, para quem a<br />
dignidade da pessoa humana tem origem bíblica, já tendo passado<br />
pela filosofia, para posteriormente se tornar um objetivo político e, por<br />
fim, ingressar no mundo jurídico. O autor ainda explica que somente<br />
com o Iluminismo, com o advento da visão antropológica de mundo, a<br />
dignidade da pessoa humana passa para o campo da Filosofia, tendo por<br />
fundamento a razão e a capacidade de autodeterminação do indivíduo.<br />
Immanuel Kant, importante filósofo do Iluminismo, é o principal<br />
responsável pela ideia contemporânea da dignidade da pessoa<br />
humana. Barroso expõe que, segundo Kant, “tudo tem um preço ou<br />
194 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />
uma dignidade. As coisas que não têm preço podem ser substituídas<br />
por outras equivalentes. Mas quando uma coisa está acima de todo<br />
o preço, e não pode ser substituída por outra equivalente, ela tem<br />
dignidade” (2010, p. 17). O autor ainda afirma que, segundo tal<br />
pensamento,<br />
[...] todo homem é um fim em si mesmo, não devendo ser<br />
funcionalizado a projetos alheios; as pessoas humanas não têm<br />
preço nem podem ser substituídas, possuindo um valor absoluto,<br />
a qual se dá o nome de dignidade (2010, p. 18).<br />
De acordo com Rafael Diogo Diógenes Lemos, o conceito de<br />
dignidade da pessoa humana proposto por Kant assumiu especial<br />
relevância, principalmente porque conseguiu “consolidar a laicidade<br />
do conceito, permitindo sua adoção por toda a humanidade,<br />
independentemente de religião” (20<strong>08</strong>, p. 44). Desse modo, foi graças<br />
a Kant que o conceito de dignidade da pessoa humana foi finalmente<br />
apartado do conceito religioso de dignidade.<br />
Luís Roberto Barroso explica que, ao longo do século XX, no<br />
entanto, foi que a dignidade humana ganhou uma denotação política,<br />
de forma a se tornar um objetivo a ser buscado pelo Estado e por toda<br />
a sociedade (2010, p. 4).<br />
Somente após a 2ª Guerra Mundial, a ideia de dignidade migrou<br />
para o mundo jurídico. Tal fenômeno ocorreu, especialmente, em<br />
razão das atrocidades produzidas nas duas grandes guerras mundiais,<br />
crueldades essas autorizadas pela lei, fundadas no Direito. É nesse<br />
contexto que surge um novo modelo ético-jurídico, pautado pela<br />
preocupação com a construção de uma sociedade justa e igualitária,<br />
baseada no respeito à liberdade individual e na consagração do<br />
respeito à pessoa humana.<br />
A inserção da dignidade da pessoa humana no plano jurídico se dá<br />
graças a dois movimentos, conforme explica Barroso. Primeiramente,<br />
“pelo surgimento de uma cultura pós-positivista, que reaproximou o<br />
direito da filosofia moral e da filosofia política”, e, em outro plano, pela<br />
“inclusão da pessoa humana em diferentes documentos internacionais<br />
e constituições de Estados Democráticos” (2010, p. 4).<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 195
Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />
Foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que<br />
possibilitou a maior valoração da dignidade da pessoa humana, uma<br />
vez que, em seu art. 1º, preconiza que “Todas as pessoas nascem livres<br />
e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência<br />
e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.<br />
Conforme explicam Paulo Gomes de Lima Júnior e Cleide<br />
Aparecida Gomes Rodrigues Fermentão, com a Declaração dos<br />
Direitos Humanos, diversos países passaram a adotar, em suas cartas<br />
constitucionais, o princípio da dignidade da pessoa humana:<br />
Após a segunda guerra mundial, com a Declaração Universal dos<br />
Direitos do Homem em 1948, vários países adotaram o princípio da<br />
dignidade da pessoa humana em suas constituições. A Alemanha (art.<br />
1º, inciso I), a Espanha (preâmbulo e art. 10.1), a Grécia (art.2º, inc.<br />
I), a Irlanda (preâmbulo) e Portugal (art. 1º). A Constituição da Itália<br />
(art. 3º) refere-se à “dignidade social” de todos os cidadãos, embora<br />
não mencione expressamente a expressão “dignidade da pessoa<br />
humana”. A Constituição da Bélgica (art. 23) assegura “aos belgas<br />
e estrangeiros que se encontram em território belga o direito de levar<br />
uma vida de acordo com a dignidade humana”. Na América Latina o<br />
princípio encontra-se positivado expressamente nos seguintes textos<br />
constitucionais: Constituição do Brasil (art.1º, inciso III), Paraguai<br />
(preâmbulo), Cuba (art. 8º), Venezuela (preâmbulo), Peru (art. 4º),<br />
Bolívia (art. 6, inciso II), Chile (art. 1), Guatemala (art. 4). Constituição<br />
da Rússia aprovada em 1993 (art.12-1) (2012, p. 323).<br />
Tais transformações demonstram uma mudança de paradigma.<br />
O homem passa não mais a ser visto na condição de súdito, mas de<br />
cidadão, passa à condição de sujeito de direito. Ou seja, é o Estado<br />
agora que deve servir ao homem, que deve possibilitar a concretização<br />
de seus direitos básicos e zelar pela sua dignidade. Isso se torna ainda<br />
mais evidente nas cartas magnas dos países que inspiraram a atual<br />
constituição brasileira. É o que ocorre com as Constituições alemã,<br />
portuguesa, espanhola e italiana.<br />
Segundo Agenor Casaril, a lei fundamental alemã, promulgada<br />
no ano de 1949, “consagrou a dignidade da pessoa humana em seu<br />
texto, de modo expresso e solene, erigindo-a em direito fundamental,<br />
estabelecido em seu art. 1º” (2009, p. 96).<br />
196 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />
O citado autor faz referência a José Afonso da Silva para explicar<br />
que a positivação deste princípio tem por fundamento as crueldades<br />
produzidas pelo Estado nazista, o qual atacou a dignidade humana<br />
sob a égide da lei (2009). Frisa-se que a Constituição de Portugal,<br />
de 1976, em seu art. 1º e a Constituição italiana, de 1947, também<br />
consagraram a dignidade da pessoa humana em seus textos.<br />
Em nossa Constituição, a dignidade da pessoa humana veio<br />
disposta logo no art. 1º, inciso III, servindo como fundamento da<br />
República e ocupando posição de destaque, antes mesmo dos direitos<br />
fundamentais.<br />
NATU<strong>RE</strong>ZA JURÍDICA<br />
A determinação da natureza jurídica da dignidade humana,<br />
segundo Roberto Barroso, faz-se importante para que seja definido o<br />
seu conteúdo, modo de aplicação, bem como sua eficácia no âmbito<br />
jurídico (2010, p. 12).<br />
Em princípio, a dignidade humana era observada apenas pelo<br />
ramo da Filosofia, sendo por isso considerada como valor, ou seja,<br />
referindo-se apenas à ideia de justiça e de bondade. Contudo, a partir<br />
da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, a dignidade<br />
humana passou a ser incluída nos textos constitucionais de diversos<br />
países, passando pelo fenômeno da positivação no sistema jurídico.<br />
Consequentemente, a dignidade da pessoa humana começou a ser<br />
considerada não apenas no seu sentido axiológico, mas, também,<br />
como uma norma jurídica.<br />
Para melhor entendimento acerca da identificação da natureza<br />
jurídica da dignidade humana, torna-se necessária a definição de norma<br />
jurídica. O ordenamento jurídico é formado por um sistema de normas<br />
que são caracterizadas pela sua imperatividade e coercibilidade, ou<br />
seja, a norma jurídica define um dever-ser do sujeito, englobando<br />
atividades positivas (um agir) ou negativas (não agir), determinando<br />
como deve ser a conduta do indivíduo. Além disso, a norma jurídica<br />
pode fixar enunciados sobre a organização da sociedade e do<br />
Estado. Ademais, conforme Humberto Ávila, citado por Lima Júnior<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 197
Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />
e Fermentão, as normas jurídicas dividem-se em princípios, regras e<br />
postulados normativos, cujas diferenças e conceitos serão explorados<br />
a seguir (2012, p. 317).<br />
Na fase positivista, os princípios eram utilizados apenas como fonte<br />
normativa subsidiária dos textos legais, isto é, eram usados apenas<br />
como instrumento para preencher lacunas da lei. Foi na escola póspositivista<br />
que os princípios transformaram-se em normas vinculantes,<br />
não sendo mais utilizados apenas para preencher lacunas. Conforme<br />
conceituação apresentada por J. J. Gomes Canotilho,<br />
princípios são normas que exigem a realização de algo, da<br />
melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fácticas e<br />
jurídicas. Os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em<br />
termos de ‘tudo ou nada’; impõem a optimização de um direito ou<br />
de um bem jurídico, tendo em conta a ‘reserva do possível’, fáctica<br />
ou jurídica (2003, p. 1255).<br />
Conforme se pode inferir do conceito de princípio apresentado por<br />
Sidney Guerra e Lilian Márcia Balmant Emerique,<br />
os princípios transmitem a ideia de condão do núcleo do próprio<br />
ordenamento jurídico. Como vigas mestras de um dado sistema,<br />
funcionam como bússolas para as normas jurídicas, de modo<br />
que se estas apresentarem preceitos que se desviam do rumo<br />
indicado, imediatamente esses seus preceitos tornar-se-ão<br />
inválidos (2006, p. 7).<br />
Os princípios servem de fundamento para as regras jurídicas,<br />
além disso, servem de guia, de orientação, de critério para a melhor<br />
compreensão do restante do ordenamento jurídico. Os referidos não se<br />
confundem nem com as regras jurídicas e nem com valores jurídicos.<br />
Os valores jurídicos são, de acordo com explicações de Rizzato Nunes,<br />
citado por Lima Júnior e Fermentão, relativos, enquanto os princípios<br />
se “impõem como um absoluto, como algo que não comporta qualquer<br />
espécie de relativização” (2012, p. 316).<br />
Ademais, as regras possuem conteúdo mais objetivo que os<br />
princípios, sendo aplicadas quando o caso concreto coincide com as<br />
situações específicas apresentadas pelo seu texto. Em contrapartida,<br />
os princípios apresentam teor mais subjetivo, incidindo sobre várias<br />
198 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />
situações, sendo que “a demarcação de seu conteúdo estará sujeita à<br />
concepção ideológica ou filosófica do intérprete” (BARROSO, 2003, p.<br />
14). Argumenta, ainda, Luis Roberto Barroso que<br />
um exemplo é fornecido pelo princípio da dignidade da pessoa<br />
humana. Além de não explicitar os comportamentos necessários<br />
para realizar a dignidade humana – esta, portanto, é a primeira<br />
dificuldade: descobrir os comportamentos – poderá haver<br />
controvérsia sobre o que significa a própria dignidade a partir<br />
de um determinado conteúdo essencial, conforme o ponto de<br />
observação do intérprete (2003, p. 14).<br />
Observando estudos realizados por Dworkin e Alexy, citados por<br />
Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2012), a<br />
diferença entre as regras e os princípios é qualitativa. Os princípios<br />
não incidem seus efeitos jurídicos apenas com a ocorrência do fato,<br />
ou seja, não podem ser aplicados diretamente como as regras. Os<br />
princípios, por serem mais vagos e indeterminados, dependem de<br />
ponderação a ser realizada pelo aplicador do direito, podendo ser<br />
aplicados “diversos pesos” nos conflitos de princípios, de acordo com<br />
o caso concreto. Conforme explica Barroso,<br />
princípios são normas jurídicas que não se aplicam na modalidade<br />
tudo ou nada, como as regras, possuindo uma dimensão de<br />
peso ou importância, a ser determinada diante dos elementos<br />
do caso concreto. São eles mandados de otimização, devendo<br />
sua realização se dar na maior medida possível, levando-<br />
-se em conta outros princípios, bem como a realidade fática<br />
subjacente. Vale dizer: princípios estão sujeitos à ponderação<br />
e à proporcionalidade, e sua pretensão normativa pode ceder,<br />
conforme as circunstâncias, a elementos contrapostos (2010,<br />
p.11).<br />
Portanto, no caso de conflito entre regras, somente uma será<br />
válida e deverá prevalecer sobre a outra. Já, havendo conflito entre<br />
dois princípios, sua aplicação será feita conforme o princípio da<br />
ponderação, não será um princípio aplicado excluindo completamente<br />
o outro (não será aplicado no “tudo ou nada”), mas sim, de forma<br />
graduada, levando-se em conta as situações apresentadas.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 199
Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />
Resta ainda o conceito de postulados normativos. Estes são<br />
normas que complementam outras normas, ou seja, que ditam como<br />
outra norma deve ser aplicada ou interpretada pelo juiz.<br />
A dignidade da pessoa humana possui, pois, dupla natureza<br />
jurídica. Levando-se em conta os conceitos apresentados acima, a<br />
dignidade humana é um princípio norteador do ordenamento jurídico,<br />
que coordena os demais princípios e regras jurídicas, atuando não<br />
apenas como um mero princípio, mas também como um postulado<br />
normativo, na medida em que é utilizado como critério na aplicação e<br />
na interpretação das demais normas jurídicas pelo jurista.<br />
Ademais, sendo a dignidade da pessoa humana um princípio<br />
que fundamenta todo o ordenamento jurídico, conforme Art. 1º, III,<br />
da Constituição Federal de 1988, todo o ato que ferir a dignidade da<br />
pessoa humana, estará ferindo consequentemente os demais direitos<br />
fundamentais apresentados em nossa constituição.<br />
A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA<br />
PESSOA HUMANA TENDO COMO PARÂMETRO O<br />
PRINCÍPIO DA PONDERAÇÃO, A DELIMITAÇÃO DE<br />
CONTEÚDOS E O MÍNIMO EXISTENCIAL<br />
Revela-se de elevada importância a questão acerca da conceituação<br />
do princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que, conforme<br />
destacam Lima Júnior e Fermentão, estabelecer um conceito para a<br />
dignidade humana “é buscar os meios necessários para tornar o princípio<br />
efetivo” (2012, p. 324). Ou seja, muitas vezes, a escassez de um conceito<br />
palpável para o referido princípio acaba reduzindo a sua eficácia no<br />
momento de sua aplicação pelo operador do direito.<br />
Entretanto, uma conceituação única e precisa do que é a dignidade<br />
da pessoa humana é de difícil alcance por se tratar de um conceito<br />
polissêmico, isto é, que abrange várias sentidos e vários segmentos<br />
das ciências humanas, conforme já destacado no item que trata da<br />
evolução história deste princípio.<br />
Rafael Lemos (20<strong>08</strong>) apresenta diversas doutrinas acerca do<br />
tema, primeiramente afirmando que a dignidade da pessoa humana<br />
200 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />
não aceita relativizações, ou seja, não admite ponderação com outros<br />
princípios, porque, segundo tal teoria, se a dignidade humana se<br />
tratasse de um princípio como os demais previstos na Carta Magna,<br />
faltariam justificativas para o seu caráter norteador das demais normas.<br />
Portanto, tratar-se-ia de um superprincípio.<br />
O autor segue, no entanto, explicando que<br />
[...] admitir que ela (a dignidade da pessoa humana) não sofre<br />
ponderação – como superprincípio – ou que é possível o<br />
conflito exclusivamente consigo mesma é desvirtuar da moderna<br />
noção de princípios e, em última análise, atentar contra sua força<br />
normativa (20<strong>08</strong>. p. 55).<br />
Diante disso, apresenta-se uma dupla perspectiva da dignidade<br />
da pessoa humana, segundo a qual esse princípio funciona tanto<br />
como elemento limitador quanto como fator integrante dos direitos<br />
fundamentais. Sob esse prisma, a dignidade humana pode ser<br />
relativizada frente ao caso concreto. Rafael Lemos explica que,<br />
conferindo à dignidade humana um caráter absoluto, correr-se-ia o<br />
risco de o Estado vir à ruína, ante a total impossibilidade de efetivar<br />
esse princípio igualmente a todos os cidadãos. De outra banda, conferir<br />
um caráter demasiadamente reduzido, sob a alegação de “não levar<br />
o Estado ‘à falência’, levaria o Estado a efetivá-lo de maneira ínfima,<br />
levando à morte da constituição” (20<strong>08</strong>, p. 56). Corroborando com o<br />
autor supracitado, Igor Lúcio Dantas Araújo Caldas ressalta a<br />
[...] discussão que surge a partir da valoração do princípio<br />
em análise, enquanto princípio absoluto. No âmbito de um<br />
ordenamento jurídico, que valoriza os direitos fundamentais,<br />
torna-se contraditório a construção de uma defesa existente em<br />
torno de um determinado princípio, intitulando-o de princípio<br />
absoluto, uma vez que, tal hipótese confrontaria com a própria<br />
lei da ponderação, em que os princípios são visualizados como<br />
normas relativas, podendo-se afastá-las de acordo com a<br />
casuística (2011, s.p).<br />
A partir do exposto acima, faz-se necessário o entendimento do<br />
que consiste o princípio da ponderação. Tal princípio é utilizado quando,<br />
no caso concreto, dois princípios entram em conflito. Nessa senda, o<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 201
Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />
intérprete deverá sopesar os interesses apresentados, atribuindo um<br />
peso maior a um dos princípios e um valor menor ao outro. Desse<br />
modo, não se estará invalidando determinado princípio, como seria<br />
no caso do conflito entre regras, pois o princípio que recebeu um peso<br />
menor continuará existindo no ordenamento jurídico. Segundo Caldas,<br />
“esse fenômeno de afastamento momentâneo da aplicação de um<br />
princípio ao caso concreto é a chamada ponderação” (2011, s.p.).<br />
Sendo assim, o princípio da ponderação é elemento de<br />
fundamental importância no momento de aplicação do princípio da<br />
dignidade da pessoa humana no caso concreto. Por meio dele, pode-<br />
-se proceder a análise dos valores envolvidos na contenda, chegando-<br />
-se à conclusão mais coerente frente ao caso. Conforme Robert Alexy,<br />
referido no artigo escrito por Igor Caldas,<br />
[...] nos casos em que a dignidade humana é relevante, sua<br />
natureza de regra pode ser percebida por meio da constatação<br />
de que não se questiona se ela prevalece sobre outras normas,<br />
mas tão-somente se ela foi violada, ou não. Contudo, em face<br />
da abertura da norma da dignidade humana, há uma ampla<br />
margem de apreciação na resposta a essa questão [...] Que o<br />
princípio da dignidade humana é sopesado diante de outros<br />
princípios, com a finalidade de determinar o conteúdo da regra da<br />
dignidade humana, é algo que pode ser percebido com especial<br />
clareza na decisão sobre prisão perpétua, na qual se afirma que<br />
‘a dignidade humana [...] tampouco é violada se a execução da<br />
pena for necessária em razão da permanente periculosidade do<br />
preso e se, por razão, for vedada a graça’. Com essa formulação<br />
fica estabelecido que a proteção da ‘comunidade estatal’, sob as<br />
condições mencionadas, tem precedência em face do princípio<br />
da dignidade humana. Diante de outras condições a precedência<br />
poderá ser definida de outra forma (2011, s.p.).<br />
Faz-se necessário ainda, para que o aplicador do direito possa não<br />
mais utilizar a dignidade da pessoa humana apenas como argumento<br />
retórico, a delimitação de um conteúdo mínimo. Para Sarlet, “o acordo<br />
a respeito das palavras ‘dignidade da pessoa humana’ infelizmente<br />
não afasta a grande controvérsia em torno do seu conteúdo” (2007, p.<br />
361). O referido autor se utiliza da lição de Michael Sachs dizendo sobre<br />
202 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />
a dificuldade de definir qual o objeto da dignidade da pessoa humana,<br />
isso porque – diferentemente dos outros direitos fundamentais que<br />
protegem a vida, a intimidade e a integridade físca – a dignidade da<br />
pessoa humana não cuida de aspectos específicos, ela é tida como<br />
um valor que integra a essência do ser humano.<br />
Daí nasce a dificuldade de o âmbito judiciário formar uma<br />
definição genérica e abstrata consensualmente aceita para determinar<br />
o que deve ou não ser protegido pelo princípio da dignidade da pessoa<br />
humana, apesar de que a sua compreensão seja natural e de forma<br />
espontânea quando aplicada em uma situação concreta. Por esta<br />
razão, tentar-se-á delimitar tal princípio por meio de seus elementos<br />
essenciais, demarcando seu conteúdo mínimo, na tentativa de auxiliar<br />
na aplicação do princípio da dignidade humana.<br />
Barroso, com o intuito de dar à dignidade da pessoa humana<br />
“um sentido mínimo universalizável, aplicável a qualquer ser humano,<br />
onde quer que se encontre” (2010, p. 21), caracteriza três elementos<br />
essenciais à dignidade humana, quais sejam: valor intrínseco da<br />
pessoa humana, autonomia e valor social do indivíduo.<br />
O primeiro elemento, valor intrínseco da pessoa humana, refere-<br />
-se à dignidade humana como característica fundamental do ser, ou<br />
seja, todo ser humano nasce com ela e não pode deixar de tê-la. Trata-<br />
-se, conforme dita Barroso, “de um valor objetivo, que independe das<br />
circunstâncias pessoais de cada um” (2010, p. 22), isto é, não importa<br />
a raça, a classe, a religião, a nacionalidade, todos os indivíduos<br />
nascem sendo detentores da dignidade humana. Daí surge o conceito<br />
de Kant, já apresentado no presente artigo, de que o homem tem<br />
um fim em si mesmo e que não pode ser “coisificado”. Corroborando<br />
com a ideia trazida por Barroso, Ingo Wolfgang Sarlet preconiza que<br />
“[...] a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é<br />
irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser<br />
humano como tal e dele não pode ser destacado [...]” (2007, p. 366).<br />
Diante disso, Sarlet (2007) esclarece que a dignidade da pessoa<br />
humana, por ser inerente a todos os seres humanos, só pode ser<br />
reconhecida e respeitada, não se admitindo que seja criada, ou<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 203
Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />
concedida, ou retirada. Ademais, o fato de a dignidade da pessoa<br />
humana ser reconhecida ou não pelo Direito, não influencia na<br />
sua existência, já que é característica pertencente ao ser humano.<br />
Decorrente disso o fato de que mesmo os criminosos que praticam<br />
os crimes mais cruéis e desumanos não podem ter a sua dignidade<br />
desconsiderada.<br />
Contudo, deve-se ter em mente que a dignidade da pessoa<br />
humana não pode ser considerada apenas como algo inerente ao ser<br />
humano, mas, também, deve ser visualizada no âmbito cultural de<br />
cada indivíduo. Isso porque, para determinada pessoa, uma atitude<br />
pode não ferir sua dignidade, contudo, para outra que tenha crescido<br />
dentro de uma cultura específica, a mesma atitude pode feri-la de<br />
forma brutal.<br />
O segundo elemento essencial, a autonomia de vontade, está<br />
interligado a capacidade de autodeterminação do indivíduo. Significa<br />
a capacidade de o indivíduo ter liberdade para pautar sua conduta, de<br />
exercer a sua vontade e fazer suas escolhas (autonomia moral).<br />
A autonomia de vontade apresenta, segundo Barroso (2010),<br />
duas dimensões: a dimensão pública e a privada, sendo que<br />
[...] no plano dos direitos individuais, a dignidade se manifesta,<br />
sobretudo, como autonomia privada, presente no conteúdo<br />
essencial da liberdade, no direito de autodeterminação sem<br />
interferências externas ilegítimas. [...] No plano dos direitos<br />
políticos, a dignidade se expressa como autonomia pública,<br />
identificando o direito de cada um participar no processo<br />
democrático (2010, p. 24) (grifo do autor).<br />
A dignidade da pessoa humana se manifesta diante da autonomia<br />
do indivíduo em decidir o que fazer da própria vida. Todavia, por ser<br />
a dignidade humana intrínseca ao ser humano, mesmo quando o<br />
sujeito perde a autonomia ou quando não mais percebe sua dignidade<br />
sendo atacada, este terá o direito de ser protegido pelo Estado e<br />
pela coletividade. Sendo que, nos casos específicos de saúde em<br />
que por culpa da demência, por exemplo, o indivíduo tenha o seu<br />
discernimento alterado pela doença, este poderá perder o exercício<br />
204 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />
da sua autodeterminação, neste caso, um curador irá decidir por ele<br />
para, assim, ser assegurado o seu direito à tutela estatal.<br />
O terceiro e último elemento essencial da dignidade da pessoa<br />
humana é o valor comunitário. Este elemento ganha a devida<br />
importância quando o sujeito encontra-se dentro do grupo social,<br />
isso porque é dentro das relações interpessoais que nasce a<br />
necessidade de tutelar os direitos do sujeito na medida em que se<br />
torna imprescindível a limitação de onde começa o direito do outro e<br />
onde este termina. Ou seja, o terceiro elemento serve como forma de<br />
delimitação da liberdade individual, servindo como um contrapeso ao<br />
elemento anterior (autonomia).<br />
Ingo Sarlet, tratando do valor comunitário da dignidade humana,<br />
ressalta a lição de Jürgen Habermas, considerando que<br />
a dignidade da pessoa, numa acepção rigorosamente moral e<br />
jurídica, encontra-se vinculada à simetria das relações humanas,<br />
de tal sorte que a sua intangibilidade resulta justamente das<br />
relações interpessoais marcadas pela recíproca consideração e<br />
respeito, de tal sorte que apenas no âmbito do espaço público<br />
da comunidade da linguagem, o ser natural se torna indivíduo e<br />
pessoa dotada de racionalidade (2007, p. 371).<br />
Depois de verificados os três elementos essenciais da dignidade<br />
humana, ainda não se tem esgotada a delimitação do conteúdo<br />
abrangido pelo princípio da dignidade da pessoa humana, ou melhor,<br />
ainda não se tem delimitada qual a responsabilidade do Estado diante<br />
deste direito ou o que o Estado deve prestar e proteger a fim de<br />
garantir a dignidade da pessoa humana. Para isso, parte-se do estudo<br />
realizado por Ingo Sarlet (2007) que esclarece que o referido princípio<br />
divide-se em duas perspectivas. A primeira refere-se à limitação do<br />
poder estatal, isso porque a pessoa não pode ser considerada pelo<br />
Estado como sendo mero objeto, sendo que a dignidade gera direitos<br />
fundamentais chamados de negativos, ou seja, direitos que a protegem<br />
de atos que possam violar essa dignidade (perspectiva protetiva),<br />
ademais, a dignidade não pode ser alienada, pois pertence a cada<br />
indivíduo e se pudesse ser perdida, não existiria mais nenhum limite a<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 205
Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />
ser respeitado. A segunda perspectiva é conhecida como prestacional,<br />
ou seja, o Estado tem o dever de prestar medidas positivas que<br />
assegurem essa dignidade.<br />
Diante disso, referindo-se à perspectiva prestacional do Estado, o<br />
presente estudo depara-se com o conceito do mínimo existencial, cujo<br />
objetivo é conseguir superar a fluidez da ideia de dignidade da pessoa<br />
humana, munindo os operadores do direito de instrumentos capazes<br />
de fazer valer tal preceito constitucional, bem como obrigando o Estado<br />
a cumprir com sua Carta Magna, de forma a atender as garantias<br />
fundamentais às quais têm direito os seus cidadãos.<br />
A delimitação de um conteúdo mínimo essencial da dignidade<br />
da pessoa humana apresenta uma faceta positiva e outra negativa,<br />
pois se, de um lado, dota o operador do direito dos meios necessários<br />
à efetivação desse preceito constitucional, bem como possibilita ao<br />
Estado antever essa relação prestacional, equacionando-a de modo<br />
a garantir ao maior número possível de pessoas os direitos mínimos<br />
vitais à dignidade humana; de outro, sabe-se que a definição das<br />
prestações mínimais indispensáveis à manutenção de uma vida digna<br />
é tarefa não tão fácil de ser executada. Sidney Guerra e Lilian Márcia<br />
Balmant Emerique trazem importante contribuição acerca do tema ao<br />
afirmarem que<br />
[...] a questão do mínimo existencial dentro de uma modalidade<br />
prestacional convive com a complexidade de definição de<br />
quais direitos e em que amplitude podem ser caracterizados<br />
como fundamentais dentre os direitos sociais estipulados na<br />
Constituição (2006, p. 390).<br />
Nessa senda, Rafael Lemos defende arduamente a ideia de que,<br />
a demarcação do mínimo essencial à dignidade humana, fortaleceria<br />
a efetivação desse preceito, uma vez que, viria a tornar<br />
[...] mais exigível o princípio, bem como a pragmática função de<br />
não exigir do Estado mais do que ele pode proporcionar ou menos<br />
do que deve efetivar. Assim, cremos que boa parcela da indecisão<br />
ou das discussões acerca do princípio constitucional positivado<br />
no art. 1º, III da CF/88 esvaziar-se-á de sentido com uma ampla<br />
aceitação de um conteúdo mínimo de dignidade (20<strong>08</strong>, p. 59).<br />
206 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />
Desse modo, a fixação de um mínimo existencial necessário à<br />
efetivação da dignidade da pessoa humana consiste em um fator<br />
que merece especial discussão, uma vez que permite conciliar a<br />
implementação dos direitos indispensáveis à realização de uma vida<br />
digna, com a árdua tarefa do Estado de prover, aos seus cidadãos,<br />
as condições necessárias a tal acontecimento. Isso porque, conforme<br />
alertam Guerra e Emerique, “embora seja preciso ter certa dose de<br />
cautela para não cair no extremo de pensar que o Estado pode tudo,<br />
também não se deve admitir que o Estado não possa nada ou quase<br />
nada em função das crises econômicas” (2006, p. 392).<br />
A dignidade humana é o mínimo vital que o Estado deve<br />
assegurar para a existência da pessoa humana, diante disso, a<br />
proposta da delimitação de um mínimo existencial tem por escopo o<br />
estabelecimento de um rol de direitos que comporia um piso vital, o qual<br />
poderia evitar a total ineficácia jurídica desse preceito constitucional<br />
essencial à concretização de uma vida digna.<br />
Diante disso, Ana Paula de Barcellos (apud LEMOS, 20<strong>08</strong>, p. 59),<br />
defende que, dentre os direitos que devem ser garantidos pelo Estado<br />
a cada cidadão para que esse possa ter assegurada a sua dignidade<br />
estão a educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos<br />
desamparados e o acesso à justiça, típicos direitos sociais, portanto,<br />
de caráter prestacional. Frisa-se que a previsão de tais direitos não<br />
exclui outros, em especial os direitos chamados negativos, que<br />
impõem um “não fazer”, uma abstenção por parte do Estado, como os<br />
da vedação da tortura, de penas cruéis e degradantes, dentre outros.<br />
Daniel Sarmento segue o mesmo posicionamento, afirmando que<br />
[...] o Estado tem não apenas o dever de se abster de praticar<br />
atos que atentem contra a dignidade humana, como também o de<br />
promover esta dignidade através de condutas ativas, garantindo<br />
o mínimo existencial para cada ser humano em seu território.<br />
O homem tem a sua dignidade aviltada não apenas quando se<br />
vê privado de algumas de suas liberdades fundamentais, como<br />
também quando não tem acesso à alimentação, educação básica,<br />
saúde, moradia etc. (apud GUERRA; EMERIQUE, 2006, p. 384-<br />
5).<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 207
Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />
Por outro lado, deve-se deixar claro que o mínimo essencial não<br />
pode ser estabelecido de forma definitiva, sem mais poder sofrer<br />
quaisquer reformas, uma vez que o próprio conceito de dignidade<br />
humana é mutável e vem sofrendo alterações ao longo da história.<br />
Isto posto, vê-se que a demarcação de um mínimo essencial pode<br />
auxiliar de forma significativa ao jurista no momento da aplicação do<br />
princípio da dignidade da pessoa humana. Embora, isoladamente,<br />
tal critério possa não oferecer todos os pressupostos necessários<br />
à eficaz utilização desse preceito constitucional, apoiando-se no já<br />
estudado princípio da ponderação, bem como, com base nos critérios<br />
mínimos anteriormente propostos (autonomia, valor intrínseco e valor<br />
comunitário), pode-se chegar a uma satisfatória noção do real conceito<br />
da dignidade da pessoa humana. Por conseguinte, Lima Júnior e<br />
Fermentão trazem relevante lição a esse respeito:<br />
A proteção à dignidade da pessoa humana é o fundamento de<br />
todo o ordenamento jurídico e também a finalidade última do<br />
Direito. Onde não houver respeito pela vida, integridade física<br />
e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma<br />
existência digna não forem asseguradas, onde não houver<br />
limitação do poder e a igualdade, a liberdade e a autonomia não<br />
forem reconhecidas e minimamente asseguradas, não haverá<br />
espaço para a dignidade da pessoa humana (2012, p. 329).<br />
Nesse sentido, deve-se destacar que cada sociedade tem seus<br />
padrões e convenções a respeito do que constitui a dignidade, isto<br />
é, o conceito de dignidade varia de acordo com o local e a época, de<br />
modo que, o alcance de uma definição única e universal da dignidade<br />
humana é, conforme já demonstrado, tarefa árdua.<br />
Um conceito possível deve se mostrar suficientemente aberto<br />
para abranger os mais diversos casos e, de outra banda, deve<br />
oferecer segurança jurídica, no sentido de não permitir, justamente<br />
por apresentar tal abertura, a violação da dignidade humana. Ou seja,<br />
uma definição plausível deve assegurar que o Estado trabalhe na<br />
implementação dos direitos mínimos para o cidadão ter acesso a uma<br />
vida digna, concomitantemente deve prever a abstenção estatal no<br />
sentido de não ferir a liberdade e a autonomia de cada sujeito.<br />
2<strong>08</strong> Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />
Por derradeiro, Ingo Sarlet nos apresenta valiosa lição a respeito,<br />
uma vez que consegue unir, em uma única conceituação, a faceta<br />
positiva (de implementação de direitos) e negativa (o dever de “não<br />
fazer” do Estado) da dignidade humana, defendendo que<br />
tem-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e<br />
distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor<br />
do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da<br />
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e<br />
deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e<br />
qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe<br />
garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,<br />
além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável<br />
nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os<br />
demais seres humanos (2007, p. 383) (grifo do autor).<br />
Diante disso, a partir da conciliação do princípio da ponderação,<br />
da utilização de critérios mínimos e do mínimo existencial, vê-se que o<br />
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana pode ter sua<br />
aplicação aprimorada se o jurista se preocupar em munir-se de todos<br />
os meios disponíveis no momento da interpretação do direito frente<br />
ao caso concreto, de modo que esse preceito tão indiscutivelmente<br />
importante não seja utilizado tão somente como argumento retórico,<br />
como mero apoio, ou seja, que o operador do direito possa efetivamente<br />
compreender o real alcance da dignidade humana, aplicando-a de<br />
forma coerente.<br />
A UTILIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA<br />
PESSOA HUMANA PELA JURISPRUDÊNCIA ATUAL<br />
Conforme já visto anteriormente, com o fim da segunda guerra,<br />
a dignidade da pessoa humana passou a ter grande relevância nos<br />
textos constitucionais de todo o mundo. Luís Roberto Barroso (2010)<br />
nos mostra que, mesmo nos países que não fazem referência, em<br />
suas Constituições, à dignidade da pessoa humana, esse princípio<br />
vem ganhando força argumentativa em casos de grande relevância<br />
para o direito. A partir de então, cortes constitucionais de todo o<br />
mundo ocidental iniciaram um diálogo transnacional, compartilhando<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 209
Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />
um sentido comum de dignidade.<br />
O Tribunal alemão, por exemplo, se firmou como referência na<br />
questão da dignidade da pessoa humana, servindo, frequentemente, de<br />
base para a doutrina e para a jurisprudência brasileira. Hodiernamente, o<br />
Supremo Tribunal Federal brasileiro tem feito uso da dignidade humana<br />
para fundamental as mais variadas decisões. A esse respeito, Barroso<br />
traz contribuições importantes, ao afirmar o seguinte:<br />
[...] a dignidade da pessoa humana foi um dos fundamentos<br />
para a mudança jurisprudencial do STF em tema de prisão por<br />
dívida, passando-se a considerar ilegítima sua aplicação no caso<br />
do depositário infiel. Foi ela, igualmente, um dos argumentos<br />
centrais pelos quais se negou aplicação, em inúmeros<br />
precedentes, a dispositivo da Lei de Entorpecentes que proibia,<br />
peremptoriamente, a liberdade provisória. Não apenas atos<br />
estatais, mas também condutas privadas podem ser consideradas<br />
violadoras da dignidade humana e, consequentemente, ilícitas.<br />
Em uma das raras ocasiões em que se dispôs a limitar a liberdade<br />
de expressão, o STF considerou ilegítima a manifestação de ódio<br />
racial e religioso. (2010, p. 14).<br />
O referido autor segue explicando que a dignidade da pessoa<br />
humana “passou a ser invocada em cenários distintos e complexos,<br />
que vão da bioética à proteção do meio ambiente, passando pela<br />
liberdade sexual, de trabalho e de expressão” (2010, p. 18).<br />
A alusão à dignidade humana, na jurisprudência do Supremo<br />
Tribunal Federal, é notadamente abundante em matéria penal e<br />
processual penal. Em diversos julgados está expressa ou implícita<br />
a não aceitação da instrumentalização do acusado ou do preso aos<br />
interesses do Estado na persecução penal.<br />
Entretanto, o uso do princípio da dignidade da pessoa humana não<br />
se interrompe aí, uma vez que esse princípio vem sendo amplamente<br />
utilizado para decidir casos em que o direito à saúde está em voga,<br />
quando se faz necessário ponderar valores como a vida, a saúde, o<br />
conflito entre a manutenção da vida e da dignidade da pessoa, ou<br />
entre a saúde e a dignidade de outros.<br />
A variedade é tanta que não se pode deixar de destacar o<br />
210 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />
julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental<br />
(ADPF) n.º 54/DF, a qual descriminalizou o aborto de fetos anencéfalos,<br />
tendo como um dos argumentos a ponderação entre os princípios da<br />
dignidade da pessoa humana, da saúde, da liberdade e da autonomia,<br />
conforme se pode extrair da leitura da ementa que segue:<br />
ADPF - ADEQUAÇÃO - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – FETO<br />
ANENCÉFALO - POLÍTICA JUDICIÁRIA - MACROPROCESSO.<br />
Tanto quanto possível, há de ser dada sequência a processo<br />
objetivo, chegando-se, de imediato, a pronunciamento do<br />
Supremo Tribunal Federal. Em jogo valores consagrados na Lei<br />
Fundamental - como o são os da dignidade da pessoa humana,<br />
da saúde, da liberdade e autonomia da manifestação da vontade<br />
e da legalidade -, considerados a interrupção da gravidez de feto<br />
anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a configuração do<br />
crime de aborto, adequada surge a arguição de descumprimento<br />
de preceito fundamental (BRASIL, Supremo Tribunal Federal,<br />
ADPF 54/DF, Relator: Min. Marco Aurélio, 2012) [grifo nosso].<br />
Cabe ainda, relativamente ao assunto, destacar parte do voto do<br />
Ministro Relator, Marco Aurélio, para o qual,<br />
a incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto,<br />
o será por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer<br />
custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher. No caso, ainda que<br />
se conceba o direito à vida do feto anencéfalo – o que, na minha óptica,<br />
é inadmissível, consoante enfatizado –, tal direito cederia, em juízo de<br />
ponderação, em prol dos direitos à dignidade da pessoa humana,<br />
à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade<br />
física, psicológica e moral e à saúde, previstos, respectivamente, nos<br />
artigos 1º, inciso III, 5º, cabeça e incisos II, III e X, e 6º, cabeça, da Carta<br />
da República. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADPF 54/DF, Relator:<br />
Min. Marco Aurélio, 2012) [grifo nosso].<br />
A atuação do STF no julgamento de lides que envolvem diretamente o<br />
princípio da dignidade humana em aparente conflito com outros princípios<br />
vai além. Mister se faz ressaltar a decisão em que o STF, no ano de 2011,<br />
nos autos da Ação de Declaração de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 4277/<br />
DF, decidiu sobre a legalidade da união de casais homoafetivos. Segundo<br />
o voto de seu relator, Ministro Ayres Britto, o reconhecimento do direito à<br />
preferência sexual é uma “direta emanação do princípio da ‘dignidade da<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 211
Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />
pessoa humana’”. Veja-se:<br />
PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO<br />
DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER<br />
(GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL<br />
DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO P<strong>RE</strong>CONCEITO<br />
COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL.<br />
HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-<br />
POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA<br />
PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS<br />
DI<strong>RE</strong>ITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXP<strong>RE</strong>SSÃO QUE<br />
É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DI<strong>RE</strong>ITO À INTIMIDADE E À<br />
VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉT<strong>RE</strong>A. O sexo das pessoas, salvo<br />
disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não<br />
se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à<br />
luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente<br />
com o objetivo constitucional de ‘promover o bem de todos’. Silêncio<br />
normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos<br />
indivíduos como saque da kelseniana ‘norma geral negativa’, segundo<br />
a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está<br />
juridicamente permitido”. Reconhecimento do direito à preferência<br />
sexual como direta emanação do princípio da ‘dignidade da<br />
pessoa humana’: direito a auto-estima no mais elevado ponto da<br />
consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo<br />
da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade<br />
sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da<br />
vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos<br />
da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia<br />
da vontade. Cláusula pétrea. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADI<br />
4277/DF, Relator: Min. Ayres Britto, 2011) [grifo nosso].<br />
Também no âmbito do Superior Tribunal de Justiça tem se multiplicado<br />
as referências à dignidade da pessoa humana em decisões das mais<br />
variadas, conforme destaca André Gustavo Corrêia de Andrade, segundo<br />
o qual “cada vez mais numerosos são os julgados, por exemplo, que têm<br />
invocado explicitamente o princípio da dignidade humana em conexão<br />
com o direito fundamental à saúde” (20<strong>08</strong>, s.p). A exemplo, o Superior<br />
Tribunal de Justiça julgou o A<strong>RE</strong>sp. n.º 362016, no qual o relator, Ministro<br />
Herman Benjamin, defendeu que o fornecimento de medicamentos, pelo<br />
Estado, é o meio de concretização da dignidade da pessoa humana.<br />
212 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />
CONSTITUCIONAL. SAÚDE. FORNECIMENTO DE<br />
MEDICAMENTO. ACÓRDÃO EMBASADO EM P<strong>RE</strong>MISSAS<br />
CONSTITUCIONAIS. 1. O Tribunal a quo considerou ser<br />
devido o fornecimento do medicamento à recorrida, uma vez<br />
que ‘os artigos 196 e 198 da Constituição Federal asseguram<br />
aos necessitados o fornecimento gratuito dos medicamentos<br />
indispensáveis ao tratamento de sua saúde, de responsabilidade<br />
da União, dos Estados e Municípios, já se encontra consolidado<br />
em nossos Tribunais. Portanto, considerando-se os princípios<br />
constitucionais aplicados ao caso sob testilha, fato é que,<br />
ponderando-se os valores envolvidos nesta demanda, deve<br />
prevalecer o direito à saúde, projeção da dignidade da<br />
pessoa humana, princípio fundamental da República, nos<br />
termos do art. 1°, III, da CRFB/88, a ser resguardado, in casu,<br />
pelo fornecimento de medicamentos pelos Entes réus. E,<br />
cabe ao Poder Judiciário, sempre que possível, superar essa<br />
dificuldade, prestando a tutela jurisdicional em deferência à<br />
concretização do princípio da dignidade da pessoa humana’<br />
(fl. 195, e-STJ). 2. Dessa forma, muito embora tenham sido<br />
citados dispositivos infraconstitucionais, a matéria foi dirimida<br />
sob enfoque eminentemente constitucional. Descabe, pois, a esta<br />
Corte examinar a questão, porquanto reverter o julgado significa<br />
usurpar competência do STF. 3. Agravo Regimental não provido.<br />
(BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, A<strong>RE</strong>sp. n.º 362016,<br />
Relator: Min. Herman Benjamin, 2013) [grifo nosso].<br />
A partir do exposto, após a inclusão nos textos constitucionais dos<br />
mais variados países, verifica-se que a dignidade da pessoa humana<br />
passou a ser vista como princípio norteador de todo o ordenamento<br />
jurídico. Seu papel de princípio fundamental da República Federativa<br />
do Brasil acabou por lhe conferir relevada importância, uma vez que,<br />
como se pode observar na análise da jurisprudência nacional, vem<br />
sendo adotado para legitimar a intervenção do Estado nos mais<br />
variados âmbitos da vida privada. Isso porque, a dignidade da pessoa<br />
humana é interdisciplinar e polissêmica, não sendo usada tão-somente<br />
em determinado ramo do Direito, já que se encontra difundida por<br />
todas as matérias. Por esse motivo, pode-se observar o seu uso como<br />
argumento para o julgamento de lides no âmbito penal, civil, no direito<br />
de família, no acesso à saúde, dentre outros.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 213
Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />
Diante disso, torna-se cada vez mais necessário que os operadores<br />
do direito tenham uma noção mais precisa, mais aprofundada sobre a<br />
dignidade da pessoa humana, uma vez que a falta de uma conceituação<br />
jurídica para tal princípio, muitas vezes, é o principal fator que leva o<br />
seu uso como mero argumento retórico, como uma “muleta” do jurista<br />
no momento da argumentação.<br />
Por isso, para que seja possível esmiuçar, cada vez mais, a aplicação<br />
do princípio da dignidade humana, indispensável conhecer a forma de<br />
sua aplicação pela jurisprudência não só nacional, como estrangeira.<br />
CONCLUSÃO<br />
O presente artigo teve como escopo delimitar o princípio<br />
fundamental da dignidade da pessoa humana, percorrendo sua<br />
evolução histórica, delimitando a sua dupla natureza jurídica como<br />
princípio e postulado normativo que norteia todo o ordenamento<br />
jurídico brasileiro, bem como apresentando de forma aprofundada<br />
seus elementos essenciais – valor intrínseco da pessoa humana,<br />
autonomia e valor social do indivíduo – como também seu conceito<br />
atual, para que o operador do Direito pudesse usar deste princípio não<br />
apenas como argumento retórico, mas dando-lhe a devida importância<br />
e aplicando-lhe da forma mais correta possível.<br />
Conforme já explicitado, a dignidade humana era originalmente<br />
objeto apenas da Filosofia e não do Direito. Contudo, após a Segunda<br />
Guerra Mundial, a dignidade humana passou a ser retratada em diversos<br />
ordenamentos jurídicos, servindo, desde sua positivação na Constituição<br />
Federal de 1988, como pilar da República Federativa do Brasil.<br />
A partir disso, a análise do princípio da dignidade da pessoa humana<br />
pelos operadores do Direito mostra-se de extrema importância, já que<br />
estes não podem se esquivar da competência de julgar causas que<br />
envolvam referido princípio. Portanto, têm o dever de entender seus<br />
aspectos e sua complexidade para sua melhor aplicação diante da lide.<br />
Com isso, pode-se concluir que a dignidade humana é inerente<br />
ao ser humano, ou seja, todos nascem possuindo este direito, mas<br />
conforme o âmbito cultural em que o sujeito vive é que essa dignidade<br />
será desenvolvida.<br />
214 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />
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05 de maio de 2011. Disponível em: . Acesso em: 3 nov. 2013.<br />
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Sant’Anna Leite. Relator: Ministro Herman Benjamin. Brasília, 10<br />
de setembro de 2013. Disponível em: . Acesso em: 3 nov. 2013.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 215
Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle<br />
CALDAS, Igor Lúcio Dantas Araújo. A ponderação de princípios e a<br />
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Recebido: 15-9-2014<br />
Aprovado: 20-10-2014<br />
216 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong><br />
DI<strong>RE</strong>ITO<br />
A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ<br />
DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />
Resumo<br />
The liability of partners in light of current bankruptcy law<br />
Ana Lara Tondo 40<br />
José Lauri Bueno de Jesus 41<br />
O presente trabalho tem por finalidade demonstrar a responsabilidade dos sócios de uma sociedade<br />
empresária quando ocorrer a decretação da falência da mesma. Para isso, serão estudados os tipos de<br />
sociedades empresárias e o procedimento na atual lei de falências e recuperação de empresas, bem como<br />
os sócios identificados em cada uma, como falidos. Além disso, também será analisada a desconsideração<br />
da personalidade jurídica em situações como a falência, por motivo em que ocorrem a confusão e o desvio<br />
do patrimônio por parte dos seus sócios.<br />
Palavras-chave: Sociedade empresária. Responsabilidade. Falência. Personalidade jurídica.<br />
Abstract<br />
This study aims to demonstrate the liability of shareholders of a business corporation when the declaration<br />
of bankruptcy of the same place. For this, the types of business entities and the procedure in the current<br />
bankruptcy law and corporate recovery, as well as the partners identified in each, as bankrupts will be<br />
studied. Besides, we also analyzed the piercing the corporate veil in situations like bankruptcy, in situations<br />
that confusion and diversion of assets from the partners occur.<br />
Keywords: Liability company. Responsibility.Bankruptcy.Legal personality.<br />
Sumário:<br />
Introdução; 1. As sociedades empresariais; 2.A falência no atual ordenamento jurídico; 3. Os sócios<br />
identificados como falidos; 4. A desconsideração da pessoa jurídica; 5. Conclusão; 6. Referências.<br />
INTRODUÇÃO<br />
O presente trabalho tem como objetivo suscitar debates relativos<br />
à situação do sócio na falência da sociedade empresária. Posta assim<br />
a questão, será trabalhado o conceito de empresa, buscando-se<br />
definir e delimitar os tipos de sociedades empresárias mais comuns<br />
40 Acadêmica do 8º período do curso de Direito no Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo (CNEC-IESA), 2014. Email:<br />
aana.tondo@gmail.com.<br />
41 Mestre em Direito pela Unisinos, Especialização em Segurança Pública pela PUC-RS e Especialização em Docência para o Ensino<br />
Superior pela CNEC-IESA.Graduado em Direito pela FADISA (hoje CNEC-IESA),professor no Instituto Cenecista de Ensino Superior<br />
de Santo Ângelo (CNEC-IESA), Tenente-coronel da Reserva Remunerada da Brigada Militar-RS. E-mail: laurijb@terra.com.br.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 217-233
Ana Lara Tondo - José Lauri Bueno de Jesus<br />
no atual ordenamento jurídico. Posteriormente, neste estudo será<br />
exposta a condição que o sócio, seja de responsabilidade ilimitada,<br />
seja de responsabilidade limitada, possui na empresa, devendo arcar<br />
com os ônus advindos da falência.<br />
Também se retratará o instituto da desconsideração da pessoa<br />
jurídica, que visa coibir a fraude contra credores, a má administração,<br />
o abuso de direito e o desvio de finalidade. Finalmente, em última<br />
análise, também será examinado instituto da despersonalização<br />
inversa, que, como se verá, poderá ser utilizado para se responsabilizar<br />
a sociedade empresária por certas atitudes do sócio.<br />
AS SOCIEDADES EMP<strong>RE</strong>SARIAIS<br />
A Lei de Recuperação e Falência, Lei nº 11.101/2005, e o Código<br />
Civil Brasileiro, Lei nº 10.406/2002, em seus artigos 966 a 1195, são<br />
as normas que, no atual ordenamento jurídico, disciplinam sobre o<br />
empresário, os sócios e a sociedade empresarial. Dessa forma, a<br />
própria lei regula sobre a responsabilidade de cada sócio, quando do<br />
momento da falência da empresa, tendo em vista o tipo de sociedade<br />
empresária.<br />
Segundo Vander Brusso da Silva (2009, p. 49), “sociedade<br />
será sempre a união de 2 ou mais pessoas com o mesmo objetivo,<br />
ou seja, explorar uma atividade e partilhar entre si o resultado dessa<br />
exploração”. Complementar a isso, para Tarcisio Teixeira, a sociedade<br />
empresária é um contrato, em que esse contrato assume o papel de<br />
um acordo, criado com a finalidade de constituir, regular ou extinguir<br />
a relação patrimonial existente entre aspartes (2013). Pode-se<br />
comprovar a necessidade da vontade dos sócios no art. 981 do Código<br />
Civil de 2002:<br />
Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que<br />
reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços,<br />
para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos<br />
resultados.<br />
Parágrafo único. A atividade pode restringir-se à realização de um<br />
ou mais negócios determinados.<br />
218 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />
Desse modo, é imprescindível estudar sobre os tipos da sociedade<br />
empresária, sendo a classificação mais usual, quanto à espécie legislativa<br />
e quanto à existência de personalidade jurídica, ou seja, personificadas<br />
ou não personificadas, conforme seu registro na Junta Comercial.<br />
As sociedades não personificadas são assim chamadas por não<br />
estarem registradas no Registro Público de Empresas Mercantis e Afins.<br />
São elas a sociedade em comum e a sociedade em conta de participação.<br />
A sociedade em comum está prevista nos artigos986 a 990 do<br />
Código Civil de 2002. Nela, os sócios responderão ilimitadamente e<br />
solidariamente por todas as obrigações contratuais entre si, e de forma<br />
subsidiária perante terceiros, não havendo, nesse tipo de sociedade,<br />
quaisquer benefícios de ordem, ou seja,<br />
[...] o sócio que não participou da realização de determinado<br />
negócio jurídico pode invocar o direito de ver seus bens excutidos<br />
somente após o esgotamento do patrimônio que responde<br />
primariamente pelas dívidas sociais: os bens da sociedade e do<br />
sócio tratador (NEGRÃO, 2013, p. 69).<br />
Outra sociedade não personificada é a sociedade em conta de<br />
participação, prevista nos artigos 914 a 919 do Código Civil, não livre<br />
de certa divergência doutrinária, em que, para uns, é considerada<br />
investimento. Segundo Silva (2009), nesse tipo de sociedade existe o<br />
sócio ostensivo, que tem o dever de administrar, cuja responsabilidade<br />
é ilimitada, e o sócio participante, que é considerado o investidor, para<br />
quem a responsabilidade se torna limitada.<br />
De outra banda, existem as sociedades personificadas, que<br />
possuem personalidade jurídica, podendo, dessa maneira, “adquirir<br />
direitos e contrair obrigações por ter seu contrato social registrado no<br />
órgão próprio” (TEIXEIRA, 2013, p. 218). As sociedades personificadas<br />
estão expressas entre os artigos 1.039 a 1.092, de acordo com o que<br />
rege o art. 983 do Código Civil vigente:<br />
Art. 983. A sociedade empresária deve constituir-se segundo um<br />
dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092; a sociedade simples<br />
pode constituir-se de conformidade com um desses tipos, e, não o<br />
fazendo, subordina-se às normas que lhe são próprias.<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 219
Ana Lara Tondo - José Lauri Bueno de Jesus<br />
Da simples leitura dos referidos artigos, conclui-se que tais<br />
sociedades personificadas são subdivididas entre sociedades simples,<br />
que são aquelas que exploram atividades intelectuais, de natureza<br />
artística, científica e literária, e em sociedades empresárias, que<br />
existem em número de cinco, sendo elas a em nome coletivo, as em<br />
comandita simples e por ações, a sociedade limitada e a sociedade<br />
anônima.<br />
Para Vander da Silva (2009), como as sociedades simples<br />
apenas exploram atividades intelectuais não organizadas, tais como<br />
uma sociedade de médicos ou advogados, não terão elas caráter<br />
empresarial, não sendo sujeitas à Lei de Falências. Nesse sentido,<br />
explica Tarcísio Teixeira, “a sociedade simples não é uma sociedade<br />
empresária, não tendo assim os direitos inerentes aos empresários,<br />
como recuperação de empresas” (2013, p. 222).<br />
No que concerne à sociedade em nome coletivo, destaca-<br />
-se que apenas poderão fazer parte de uma sociedade como essa<br />
pessoas físicas, haja vista que todos os sócios respondem ilimitada<br />
e solidariamente pelas obrigações sociais. Também, conforme rege o<br />
art. 1.042, a administração desse tipo de empresa só pode ser exercida<br />
pelos sócios, “são os chamados sócios-gerentes, ou então diretores<br />
[...]. Antigamente considerados mandatários, hoje são considerados<br />
órgãos da sociedade” (BULGA<strong>RE</strong>LLI, 2001, p. 47).<br />
Já na sociedade em comandita simples observa-se a existência<br />
de dois tipos distintos de sócios, os sócios comanditários e os sócios<br />
comanditados. Acerca dos sócios comanditários, observa- -se que<br />
podem ser pessoas físicas ou jurídicas, sendo impedidos, entretanto,<br />
de exercerem atos de gestão, cuja responsabilidade se torna limitada,<br />
respondendo apenas pela integralização de sua parte no capital<br />
existente, e somente em relação aos credores preexistentes (NEGRÃO,<br />
2013). Quanto aos sócios comanditados, Silva (2009) explica que<br />
serão sempre pessoas físicas que exercem a administração da<br />
sociedade, tendo responsabilidade ilimitada e solidária.<br />
No que diz respeito às sociedades limitadas, expostas no art.<br />
1.052 do Código Civil, é pertinente ressaltar que o seu capital é dividido<br />
220 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />
em quotas, na qual os sócios respondem limitadamente pela sua<br />
parte e de maneira solidária pela integralização total do capital, “não<br />
alcançando seus respectivos patrimônios pessoais” (TEIXEIRA, 2013,<br />
p. 217), do que, pode-se concluir que, segundo Silva (2009), nesse tipo<br />
de sociedade limitada, a responsabilidade dos sócios estará ligada ao<br />
capital subscrito, e não ao capital integralizado. Nela, segundo Fábio<br />
Coelho (2014), ocorre a separação patrimonial entre a pessoa jurídica<br />
e seus membros, de maneira a limitar a responsabilidade dos sócios,<br />
respondendo apenas pelo capital subscrito e não integralizado.<br />
Quanto à sociedade anônima, é necessário esclarecer que ela é<br />
regulada pela Lei nº 6.404/76, tendo o Código Civil, apenas a definido:<br />
Art. 1.<strong>08</strong>8. Na sociedade anônima ou companhia, o capital divide-se<br />
em ações, obrigando-se cada sócio ou acionista somente pelo preço<br />
de emissão das ações que subscrever ou adquirir.<br />
Art. 1.<strong>08</strong>9. A sociedade anônima rege-se por lei especial, aplicando-<br />
-se-lhe, nos casos omissos, as disposições deste Código.<br />
Ou seja, num conceito de Silva (2009, p. 84), sociedade anônima<br />
“é uma sociedade de capital, empresária e que possui seu capital<br />
social dividido em ações [...]”. Essa sociedade, que “será designada<br />
por denominação acompanhada das expressões ‘companhia’ ou<br />
‘sociedade anônima’ [...]é aberta ou fechada, conforme os valores<br />
mobiliários de sua emissão estejam ou não admitidos à negociação<br />
em bolsa ou no mercado de balcão” (RUSSO, 2001, p. 316).<br />
Por fim, no que se refere à sociedade em comandita por ações,<br />
destaca-se que este é o menos utilizadoentre os tipos societários, pois<br />
[...] trata-se de um modelo híbrido, uma mistura de sociedade em<br />
comandita simples e sociedade anônima. Na responsabilidade<br />
dos sócios e na gestão social, segue o modelo proposto pelas<br />
comanditas: somente os sócios podem administrá-la. Na estrutura<br />
econômica, seu capital é dividido em ações, facultando-lhe emitir<br />
outros valores mobiliários (NEGRÃO, 2013, p. 81).<br />
Assim sendo, embora os sócios comanditários não possam<br />
administrar a empresa, respondendo apenas pelas suas ações no<br />
capital, em certos casos, tais como o falecimento do sócio comanditado,<br />
sua renúncia ou exoneração, os sócios comanditários podem<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 221
Ana Lara Tondo - José Lauri Bueno de Jesus<br />
administrar a empresa, porém responderão como se comanditados<br />
fossem e respondem de maneira subsidiária, solidária e ilimitada.<br />
Nesse âmbito comercial, imprescindível se torna o estudo que<br />
envolva o empresário, ou seja, aquele que exerce empresa. Segundo<br />
Paulo Roberto Colombo Arnoldi (apud BANA, 2014, s.p.),<br />
[...] o comerciante era visto como aquele que apenas praticava<br />
atos de intermediação com finalidade lucrativa, hoje é aquele que<br />
exerce atividade econômica organizada para a produção ou a<br />
circulação de bens ou serviços.<br />
O novo Código Civil, por adotar a teoria de empresa, também<br />
adotou o conceito de empresário, como aquele que “profissionalmente<br />
exerce atividade econômica organizada para a produção ou circulação<br />
de bens e serviços” (SANCHEZ, GIANLUCCA, 2014, p. 25). Entretanto,<br />
como já referido, aquele que exerce atividade intelectual não será<br />
considerado empresário, conforme parágrafo único doart. 966 do<br />
Código Civil de 2002.<br />
Portanto, considera-se empresa a atividade empresarial,<br />
enquanto que a organização dessa atividade é feita pelo empresário.<br />
Para o melhor exercício dessa atividade, é exigida pessoalidade<br />
e periodicidade, pois o empresário não pode exercer a atividade<br />
ocasionalmente. Para Maria Gabriela Gonçalves (2014, p. 19), “a<br />
atividade empresarial é econômica porque está voltada à obtenção de<br />
lucro. Esse lucro pode ser canalizado para o próprio empresário, ser<br />
reinvestido no negócio, ou voltar-se, como exemplo, a fins filantrópicos<br />
[...]”. Ou seja, o fundamental, enquanto empresa, é que a atividade<br />
deve gerar lucro para quem a explore, nesse caso, o empresário.<br />
Para elucidar a questão, também faz-se necessária a leitura do<br />
art. 966 do mesmo diploma legal:<br />
Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente<br />
atividade econômica organizada para a produção ou a circulação<br />
de bens ou de serviços.<br />
Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce<br />
profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística,<br />
ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o<br />
exercício da profissão constituir elemento de empresa.<br />
222 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />
Por todo o exposto, percebe-se que o empresário é aquele<br />
que exerce empresa, profissionalmente e com habitualidade, na<br />
expectativa de gerar lucro. Podem ser pessoas físicas ou jurídicas, que<br />
se distinguem claramente dos sócios, haja vista serem estes apenas<br />
empreendedores, com regras e responsabilidades distintas entre si.<br />
A FALÊNCIA NO ATUAL ORDENAMENTO JURÍDICO<br />
Fábio Coelho (2014) explica que a doutrina registrou episódios<br />
em que, no início da civilização romana, quando a lei era regida pelas<br />
XII Tábuas, caso o devedor não pagasse suas obrigações no prazo<br />
estabelecido, era vendido como escravo no estrangeiro. Ainda, no<br />
século V a.C., com a evolução do direito romano, criou-se ferramentas<br />
de forma a fomentar a execução apenas patrimonial. Hoje, quando<br />
uma obrigação não é cumprida, o credor tem o direito de executar os<br />
bens patrimoniais do devedor, tantos quantos forem necessários para<br />
satisfazer o débito.<br />
Excluídas as empresas públicas e as sociedades de economia<br />
mista, quando o empresário individual ou a sociedade empresária<br />
estiverem sofrendo uma crise econômico-financeira, em que os bens<br />
individuais não são suficientes para satisfazer o crédito, tem-se a<br />
possibilidade de se criar um processo de execução coletiva, em um<br />
concurso de credores, ou seja, uma execução única, em que todos<br />
os bens do falido serão arrecadados e vendidos judicialmente, com a<br />
distribuição igual do valor obtido entre os credores (TEIXEIRA, 2013).<br />
A propósito, oportuno é estabelecer uma diferenciação entre o<br />
regime falimentar, que é direcionado ao empresário desprovido de<br />
bens necessários para satisfazer as dívidas e a insolvência civil,<br />
que ocorre quando “o devedor explora sua atividade econômica sem<br />
empresarialidade, ou não exerce nenhuma atividade econômica”, uma<br />
vez que, aquele que não exerce atividade econômica não deve ter<br />
amparo legal semelhante (COELHO, 2014, p. 3<strong>08</strong>).<br />
Assim, nos dizeres de Silva, a “falência é uma execução coletiva<br />
movida contra um empresário insolvente atingindo seu patrimônio<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 223
Ana Lara Tondo - José Lauri Bueno de Jesus<br />
para uma venda forçada, partilhando o resultado, proporcionalmente,<br />
entre os credores” (2009, p. 152).<br />
De acordo com a Lei de Recuperação e Falência, no seu art.<br />
77, quando for decretada a falência, também se terá o vencimento<br />
antecipado das dívidas, tanto do devedor quanto dos sócios de<br />
responsabilidade ilimitada.<br />
Art. 77. A decretação da falência determina o vencimento<br />
antecipado das dívidas do devedor e dos sócios ilimitada e<br />
solidariamente responsáveis, com o abatimento proporcional dos<br />
juros, e converte todos os créditos em moeda estrangeira para a<br />
moeda do País, pelo câmbio do dia da decisão judicial, para todos<br />
os efeitos desta Lei.<br />
De tal fato decorre que o “estado patrimonial do devedor que<br />
possui o ativo inferior ao passivo é denominado insolvência econômica<br />
ou insolvabilidade” (COELHO, 2014, p. 316). Não obstante, para ser<br />
decretada a falência, a insolvência econômica é irrelevante, visto que a<br />
falência será presumida pela impontualidade, pelos atos falimentares<br />
e pela execução frustrada.<br />
No que concerne à impontualidade, Silva (2009, p. 152) ressalta<br />
que ela ocorre quando o empresário não paga suas dívidas no período<br />
correto, acumulando uma dívida no valor de, no mínimo, 40 (quarenta)<br />
salários mínimos. A respeito dos atos falimentares, Coelho (2014,<br />
p. 322) considera-se como “ato falimentar a liquidação precipitada,<br />
o negócio simulado, a alienação irregular do estabelecimento e a<br />
transferência simulada do principal estabelecimento” e, em relação à<br />
execução frustrada, é considerada a “sociedade empresária devedora<br />
que, executada, não paga, não deposita nem nomeia bens à penhora<br />
no prazo legal” (COELHO, 2014, p. 321-322). Finalmente, com a<br />
ocorrência de um desses pressupostos, poderá ser decretado o estado<br />
falimentar do empresário ou da sociedade empresária, conforme<br />
previsão nos arts. 94 e 99 da Lei nº 11.101/05.<br />
Ademais, diz o art. 126 da LRF acerca do princípio da<br />
universalidade do juízo falimentar, que impõe que todos as ações e<br />
interesses da sociedade falida se submeterão a um mesmo juízo:<br />
224 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />
Art. 126. Nas relações patrimoniais não reguladas expressamente<br />
nesta Lei, o juiz decidirá o caso atendendo à unidade, à<br />
universalidade do concurso e à igualdade de tratamento dos<br />
credores, observado o disposto no art. 75 desta Lei.<br />
Esse juízo falimentar “é dividido em razão da matéria e em razão do<br />
lugar. Da matéria será a justiça cível estadual; já com relação ao lugar,<br />
será a do principal estabelecimento” (SILVA, 2009, p. 153). Coelho (2014,<br />
p. 337) também atenta que a sentença decorrente desse processo não<br />
será declaratória, “mas constitutiva, porque altera as relações entre os<br />
credores em concurso e a sociedade devedora falida”.<br />
No referente ao juízo falimentar, Teixeira (2013, p. 363) explica<br />
que ele é dividido em duas fases. A primeira fase, que se inicia com a<br />
petição inicial e se encerra com a decisão do juiz, que julga o pedido,<br />
concedendo ou não a falência. Na segunda fase, que se inicia com<br />
a decretação da falência, busca-se vender os bens da sociedade<br />
empresária ou do empresário com a finalidade de saldar as dívidas.<br />
Quando isso ocorre, o juiz irá encerrar o processo de falência.<br />
O mesmo autor ressalta, entretanto, que,<br />
[...] com a decretação da falência, o devedor fica proibido de<br />
exercer atividade empresarial, o que ocorre a partir dessa decisão<br />
judicial, que declarou a quebra, até a sentença que extinguir suas<br />
obrigações, podendo ainda perdurar por até 5 anos da decisão<br />
penal (LRF, art. 102, caput, c/c art. 181, § 1º) (2013, P. 369).<br />
A essa situação de proibição dá-se o nome de inabilitação<br />
empresarial, e é uma sanção imposta ao empresário por ter falido. Assim,<br />
[...] é preciso levar em consideração que, a partir da decretação<br />
da falência, o devedor perde o direito de administrar ou dispor de<br />
seus bens [...]. Esse efeito de inabilitação empresarial também é<br />
estendido aos sócios de responsabilidade ilimitada. Quanto aos<br />
sócios de responsabilidade limitada, a inabilitação empresarial<br />
somente os alcançará se forem os administradores da sociedade<br />
(TEIXEIRA, 2013, p. 369-370).<br />
Diante do exposto, percebe-se que o instituto da falência é um<br />
procedimento judicial que visa resguardar o patrimônio da sociedade,<br />
para que, posteriormente, seja utilizado para satisfazer os créditos<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 225
Ana Lara Tondo - José Lauri Bueno de Jesus<br />
não saldados daquela empresa. Uma vez incluída na situação de<br />
falida, a atividade econômica é suspensa e os bens do devedor<br />
ficarão indisponíveis, respondendo por aquela dívida, concedendo ao<br />
empresário mal sucedido o status de falido.<br />
OS SÓCIOS IDENTIFICADOS COMO FALIDOS<br />
O art. 82 da LRF trata da responsabilização dos sócios e dos<br />
administradores da empresa. Dessa maneira, todos os sócios sofrerão<br />
as consequências da falência da empresa.<br />
Tais consequências, porém, destaca Coelho (2014, p. 304), serão<br />
decorrentes da função exercida na empresa, ou seja, “em termos<br />
gerais, a lei atribui ao representante legal da sociedade falidaos<br />
mesmos encargos processuais reservados ao empresário individual”.<br />
Entretanto, alerta ainda o autor, caso a sociedade se tratar de<br />
limitada ou anônima cujo capital estiver integralizado, não será o sócio<br />
responsável pelas obrigações sociais, nem será impedido de continuar<br />
integrando demais entidades que, por acaso, fazer parte, ou mesmo,<br />
ingressar em outra nova. Não obstante, restrições patrimoniais serão<br />
direcionadas ao sócio com responsabilidade ilimitada.<br />
Pormenorizando as consequências direcionadas ao sócio com<br />
responsabilidade ilimitada, cumpre referir que, conforme assevera o<br />
art. 81 da Lei nº 11.101/05, responderá como falido, e, ainda, ficará<br />
impossibilitado de exercer a atividade empresarial.<br />
Art. 81: A decisão que decreta a falência da empresa com sócios<br />
ilimitadamente responsáveis também acarreta a falência destes,<br />
que ficam sujeitos aos mesmos efeitos jurídicos produzidos em<br />
relação à sociedade falida e por isso devem ser citados para<br />
apresentar contestação, se assim o desejarem.<br />
Ressalta-se, ainda, que Valdo Fazzio Júnior corrobora com tal<br />
posicionamento alegando que<br />
[...] a decisão que instaura a liquidação judicial da sociedade<br />
com sócios ilimitadamente responsáveis também acarreta a<br />
falência destes, sujeitos que ficam aos mesmos efeitos jurídicos<br />
produzidos em relação à sociedade que integram. É a projeção,<br />
no regime de insolvência empresarial, da indistinção patrimonial a<br />
que estão expostos (apud SOUZA, 2014, p. 6).<br />
226 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />
Rubens Requião, ademais, destaca que “o sócio de<br />
responsabilidade ilimitada que tenha se retirado há mais de dois anos<br />
a contar da data da declaração da falência não será alcançado pelo<br />
efeito descrito” (2014, s.p.). Ou seja, o sócio ainda fica pendente<br />
de responsabilização por um período de dois anos, a contar da sua<br />
saída de determinada atividade empresarial, mas deve tal ato estar<br />
registrado na Junta Comercial.<br />
No tocante à responsabilidade limitada, é indispensável que<br />
se esclareça que a sociedade empresária, durante a tramitação do<br />
processo de falência, manterá sua personalidade jurídica, entretanto,<br />
perderá a disposição e administração dos bens, que passarão a<br />
ser administrados por um administrador judicial (CALÇAS, 2003).<br />
Relativamente ao sócio de responsabilidade limitada, quando de<br />
sua personificação, ou seja, no momento do seu registro no Registro<br />
Público de Empresas Mercantis, o ente empresário adquire autonomia<br />
em relação às pessoas que compõe o ente empresarial.<br />
Essas pessoas se tornarão os sócios com responsabilidade<br />
limitada, a partir da integralização do capital social, perdendo a<br />
propriedade sobre esses bens, mas ganhando, em contrapartida,<br />
o direito de participar das decisões da empresa. A personificação<br />
ainda garante a separação patrimonial entre a pessoa jurídica recém<br />
constituída e a pessoa física, que adquiriu o status de sócio. Dessa<br />
forma, os bens particulares dos sócios que não foram usados para<br />
integrar o capital social não responderá pelas dívidas da empresa<br />
(NERILO, 2004, p. 38-39).<br />
Portanto, uma vez integralizado o capital social, cada sócio<br />
responde exclusivamente até o valor de suas quotas de capital.<br />
Essa mudança é benéfica para os sócios que não participam<br />
da administração, pois, uma vez integralizado o total do capital<br />
social, tem sua responsabilidade limitada até o valor de suas<br />
quotas (FAB<strong>RE</strong>TTI, 2003, p. 114).<br />
Assim, tendo em vista que a responsabilidade do sócio limitado<br />
é equivalente ao valor de suas quotas, comprometidas no contrato<br />
social, de tal peculiaridade decorre um incentivo para que o empresário<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 227
Ana Lara Tondo - José Lauri Bueno de Jesus<br />
explore sua atividade econômica, tendo em vista que suas perdas<br />
são limitadas, caso essa exploração falhe (FIO<strong>RE</strong>NTINO, 2014).<br />
Complementar a isso, Isiane Fiorentino alerta para uma exceção que,<br />
segundo ela,<br />
[...] se o patrimônio da sociedade limitada for insuficiente para<br />
satisfazer um crédito, o credor poderá cobrar de qualquer sócio<br />
até o limite do valor subscrito e não integralizado, inclusive de seu<br />
patrimônio particular, o que faltar para saldar seu crédito. É certo<br />
que o sócio que houver integralizado todas as suas quotas terá que<br />
pagar integralmente o credor, por causa dessa responsabilidade<br />
solidária, mas terá ação regressiva contra os demais sócios para<br />
reaver o valor despendido (2014, s.p.).<br />
Trata-se essa responsabilização pessoal do sócio da sociedade<br />
limitada, de uma exceção à responsabilidade limitada do sócio. Além<br />
disso, “é preciso que esse tenha exercido poder de gerência, e ainda<br />
que tenha agido com excesso de poder ou infringido a norma legal ou<br />
contrato social” (FIO<strong>RE</strong>NTINO, 2014, s.p.).<br />
A DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA<br />
Em última análise, cabe aqui apreciar o instituto ficcional da<br />
desconsideração da pessoa jurídica. Surgido nas cortes londrinas,<br />
tal instituto nasceu com o intuito de discutir “a possibilidade de<br />
responsabilizar-se particularmente determinado sócio que, valendo-<br />
-se da personificação da sociedade, pratica fraude contra credores”<br />
(CALÇAS, 2003, p. 156). Hoje, a desconsideração da personalidade<br />
jurídica não acarreta a nulidade da sociedade, apenas ocasiona a<br />
ineficácia da personificação em determinados negócios jurídicos.<br />
Tendo isso posto, verifica-se que a desconsideração da pessoa<br />
jurídica serve, no ordenamento jurídico atual, para coibir abusos e<br />
práticas ilícitas no âmbito da sociedade empresária. Coelho (2014)<br />
refere que esse instituto tem natureza excepcional, não devendo<br />
ser utilizado para questionar a sociedade, não sendo justificável o<br />
afastamento da autonomia da pessoa jurídica quando o credor não<br />
puder satisfazer os créditos.<br />
228 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />
Pela teoria da desconsideração, o juiz pode deixar de aplicar<br />
as regras de separação patrimonial entre sociedade e sócios,<br />
ignorando a existência da pessoa jurídica num caso concreto,<br />
porque é necessário coibir a fraude perpetrada graças à<br />
manipulação de tais regras. Não seria possível a coibição se<br />
respeitada a autonomia da sociedade (COELHO, 2014, p. 66).<br />
Logo, nota-se que a dissolução ou anulação da sociedade não é<br />
consequência da aplicação da teoria da desconsideração. Para Fábio<br />
Coelho, mesmo que seja desconsiderada, a autonomia patrimonial da<br />
sociedade empresária será preservada. Essa é uma forma de reprimir<br />
fraudes e atos abusivos sem prejudicar interesses de terceiros<br />
envolvidos, tais como trabalhadores, consumidores ou o fisco.<br />
Fábio Coelho destaca ainda, que essa teoria será aplicada apenas<br />
se “a personalidade jurídica autônoma da sociedade empresária antepõe-<br />
-se como obstáculo à justacomposição dos interesses” (2014, p. 69).<br />
Ainda, para Manoel de Queiroz Calças, é garantido à sociedade um<br />
processo autônomo face aos sócios que praticarem o ato fraudulento,<br />
onde serão descritos quais atos foram praticados, observando-se<br />
aos princípios do contraditório e ampla defesa. Visa-se, nesse caso,<br />
comprovar a presença de pressupostos explícitos, que evidenciam a<br />
fraude contra credores, a má-administração, o abuso de direito e o<br />
desvio de finalidade.<br />
Nesse campo, Coelho ressalta também a teoria da<br />
despersonalização inversa, que tende a conter fraudes relativas à<br />
autonomia processual da empresa, qual seja, o desvio de bens. É<br />
pacífico que essa versão da teoria seja utilizada para responsabilizar a<br />
sociedade por uma obrigação de um sócio, especialmente no que diz<br />
respeito ao direito de família e à possível partilha fraudulenta de bens.<br />
Concluindo-se o exame das disposições acima suscitadas, nas<br />
palavras de Fábio Coelho,<br />
a teoria da desconsideração, como visto, tem pertinência<br />
apenas quando a responsabilidade não pode ser, em princípio,<br />
diretamente imputada ao sócio, controlador ou representante legal<br />
da pessoa jurídica. Se a imputação pode ser direta, se a existência<br />
da pessoa jurídica não é obstáculo à responsabilização de quem<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 229
Ana Lara Tondo - José Lauri Bueno de Jesus<br />
quer que seja, não há por que cogitar do superamento de sua<br />
autonomia. E quando alguém, na qualidade de sócio, controlador<br />
ou representante legal da pessoa jurídica, provoca danos a<br />
terceiros, inclusive consumidores, em virtude de comportamento<br />
ilícito, responde pela indenização correspondente (2014, p. 80).<br />
O referido autor ainda complementa, afirmando que se visa, nesse<br />
caso, a responsabilização pessoal, originada no ato ilícito provocado<br />
pelo sócio, não deixando com que a existência de uma pessoa jurídica<br />
obste esse encargo.<br />
CONCLUSÃO<br />
O presente artigo, além de pontuar os tipos de sociedades<br />
empresárias, também explanou a respeito do instituto da falência<br />
e da consequência que a instauração de um processo dessa<br />
magnitude acarreta aos sócios em cada tipo societário. Assim sendo,<br />
preliminarmente, destacou-se que as sociedades são divididas<br />
em personificadas e não personificadas, de acordo com o registro<br />
efetuado na Junta Comercial.<br />
As sociedades não personificadas são representadas pela<br />
sociedade em comum e a sociedade em conta de participação. Quanto<br />
ao registro, referiu-se que não estão registradas no Registro Público<br />
de Empresas Mercantis.<br />
No tocante às sociedades personificadas, observou-se que<br />
são registradas, estando subdivididas em sociedades simples, que<br />
não são empresárias, em nome coletivo, em comandita simples<br />
e em comandita por ações, e as sociedades anônimas e limitadas.<br />
No trabalho exposto, não coube explorar as particularidades das<br />
sociedades simples, haja vista não possuírem caráter empresarial,<br />
uma vez que exploram apenas atividades intelectuais.<br />
Além disso, tratou-se a respeito do encargo dos sócios de<br />
responsabilidades limitadas e ilimitadas no processo da falência,<br />
tendo-se chegado à conclusão que remete à consideração do sócio<br />
de responsabilidade ilimitada como falido, em observância ao art. 81<br />
da Lei nº 11.101/05. Mister também se fez ressaltar que o sócio de<br />
230 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />
responsabilidade limitada não se torna responsável pelas obrigações<br />
sociais, uma vez estando o capital social integralizado, podendo,<br />
inclusive continuar integrando demais institutos que faça parte, ou<br />
ingressando numa nova sociedade, caso deseje, disposições essas<br />
que são vedadas ao sócio ilimitado.<br />
Ademais, o trabalho exposto também ofereceu uma análise acerca<br />
do tema da desconsideração da pessoa jurídica, tendo concluído pela<br />
utilidade do uso do artifício para fins de reduzir as fraudes e má-fé que<br />
possam advir do sócio, oculto pela presença do ente empresarial.<br />
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Recebido: 18-9-2014<br />
Aprovado: 17-10-2014<br />
(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 233
NORMAS PARA SUBMISSÃO E PUBLICAÇÃO<br />
IESA<br />
CAMPANHA NACIONAL DE ESCOLAS DA COMUNIDADE - CNEC<br />
INSTITUTO CENECISTA DE ENSINO SUPERIOR DE SANTO<br />
ÂNGELO – IESA<br />
FACULDADE DE DI<strong>RE</strong>ITO<br />
<strong>RE</strong>VISTA (<strong>RE</strong>)<strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO<br />
NORMAS PARA SUBMISSÃO E PUBLICAÇÃO<br />
1. Sobre a revista (Re)Pensando Direito<br />
O Curso de Graduação em Direito do Instituto Cenecista de<br />
Ensino Superior de Ângelo– IESA, convida a comunidade acadêmica<br />
brasileira e estrangeira para colaborar com a sétima edição da Revista<br />
(Re)Pensando Direito.<br />
A revista (Re)Pensando Direito tem por objetivo publicar, de<br />
forma impressa e com periodicidade semestral, artigos científicos<br />
inéditos de autores nacionais e estrangeiros, seguindo rigorosamente<br />
as diretrizes para periódicos definidos pelo sistema Qualis – área do<br />
Direito.<br />
2. Envio dos artigos para submissão<br />
Os artigos deverão ser enviados à submissão para o endereço<br />
do correio eletrônico revistadir@iesanet.com.br, sob a forma de<br />
documento anexado à mensagem.<br />
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do autor, sua titulação e seu vínculo institucional; endereços para<br />
correspondência; telefones para contato e endereços eletrônicos e<br />
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(<strong>RE</strong>) <strong>PENSANDO</strong> DI<strong>RE</strong>ITO 235
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avaliados qualitativamente pelo sistema do “DOUBLE BLIND PEER<br />
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e/ou do Comitê Editorial serão encaminhados aos autores, para as<br />
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entre linhas.<br />
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12 e em negrito, bem como a sua tradução em inglês, logo abaixo.<br />
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trabalho em português e inglês; o nome do autor (indicando vinculo<br />
236 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014
NORMAS PARA SUBMISSÃO E PUBLICAÇÃO<br />
institucional, titulação acadêmica e e-mail); resumo (aproximadamente<br />
150 palavras); abstract; palavras-chave; keywords (de três a cinco<br />
palavras); sumário; introdução; desenvolvimento do trabalho;<br />
considerações finais e referências.<br />
f) As páginas devem estar numeradas em folhas A4, com<br />
margens superior e esquerda com 3,0 cm e inferior e direita com 2,0<br />
cm.<br />
g) As citações e as referências bibliográficas deverão seguir as<br />
normas da ABNT.<br />
Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas<br />
Prof. Ms. José Lauri Bueno de Jesus<br />
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<strong>08</strong><br />
AP<strong>RE</strong>SENTAÇÃO<br />
MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: <strong>RE</strong>FLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIA<strong>RE</strong>S NA CONTEMPORANEIDADE<br />
Aline Damian Marques<br />
Denise Tatiane Girardon dos Santos<br />
A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN<br />
Doglas Cesar Lucas<br />
Nadabe Manoel Machado<br />
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE<br />
Paulo Valdemar da Silva Balbé<br />
Salete Oro Boff<br />
A <strong>RE</strong>VISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O <strong>RE</strong>SGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO<br />
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth<br />
Tamyse de Christo Marques<br />
O DI<strong>RE</strong>ITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA SOCIEDADE ATUAL<br />
Juliane Colpo<br />
Roberto Colpo<br />
A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DI<strong>RE</strong>ITO: UMA <strong>RE</strong>FLEXÃO NECESSÁRIA<br />
Isabel Cristina Brettas Duarte<br />
FALÊNCIA E <strong>RE</strong>CUPERAÇÃO DA EMP<strong>RE</strong>SA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05<br />
José Lauri Bueno de Jesus<br />
A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADO<strong>RE</strong>S DO DI<strong>RE</strong>ITO<br />
Clarissa Bohrer<br />
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E P<strong>RE</strong>SSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO<br />
Adriana Liberalesso<br />
Bruna Escobar<br />
Carla Dóro de Oliveira<br />
Tainá Borges<br />
Vera Maria Werle<br />
A <strong>RE</strong>SPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS<br />
Ana Lara Tondo<br />
José Lauri Bueno de Jesus<br />
NORMAS PARA SUBMISSÃO E PUBLICAÇÃO<br />
IESA