Versao em Pdf (3,14 mb) - Ministério Público de Santa Catarina
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houve rupturas que <strong>de</strong>terminaram uma nova (e talvez fundamental)<br />
escala histórica, a intermédia, <strong>em</strong> a qual o processo <strong>de</strong> civilização <strong>de</strong>ixa<br />
<strong>de</strong> refletir sobre o hom<strong>em</strong>, criando uma experiência cultural teocêntrica,<br />
enquanto que as expressões <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r político são plurais, dificultando<br />
a concepção <strong>de</strong> idéia <strong>de</strong> Estado nacional (a b<strong>em</strong> da verda<strong>de</strong>, então absolutamente<br />
inexistente) e, por isso, do próprio relacionamento entre<br />
auctoritas e povo. Para uns, como S. Agostinho, Roma não po<strong>de</strong>ria ser o<br />
esteio para novos t<strong>em</strong>pos justamente por ter-se tornado auto<strong>de</strong>strutiva,<br />
na medida <strong>em</strong> que não só proliferou as guerras <strong>de</strong> sedição, como, ta<strong>mb</strong>ém,<br />
seus costumes levaram à corrupção dos espíritos 36 ; para história – a<br />
que se conta <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ocaso <strong>de</strong> Roma –, as invasões bárbaras e o choque<br />
cultural causado pelo cristianismo foram <strong>de</strong>cisivos para a fragmentação<br />
daquela civilização.<br />
O cristianismo primitivo, aquele que buscou sua afirmação inclusive<br />
pelas guerras, como as que vivenciou Agostinho <strong>de</strong> Hipona, qu<strong>em</strong>,<br />
nascido cidadão romano, tornou-se lui-même divulgador panfletário da<br />
nova religião, <strong>de</strong> facto, contribuiu para minar as bases da civilização dos<br />
césares. E não só. Conseguiu, ao longo dos séculos, reverter a cosmovisão<br />
do hom<strong>em</strong> oci<strong>de</strong>ntal que surgia a partir do mundo heleno-latino,<br />
36 Em passag<strong>em</strong> eloqüente <strong>de</strong> A cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, o bispo <strong>de</strong> Hipona refere contra os<br />
historiadores romanos: “Se, portanto, estes historiadores pensaram que o que caracteriza<br />
uma honesta liberda<strong>de</strong> é não escon<strong>de</strong>r as mazelas <strong>de</strong> sua própria pátria (que<br />
<strong>de</strong> resto noutras ocasiões não <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> exaltar com altos encómios), quando não<br />
tinham outra melhor razão para imortalizar os seus cidadãos – que nos convém a nós<br />
fazer (a nós <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> quanto maior e mais certa é a esperança <strong>em</strong> Deus, tanto maior<br />
<strong>de</strong>ve ser a liberda<strong>de</strong>), quando eles imputam ao nosso Cristo os males presentes para<br />
alienar<strong>em</strong> os espíritos mais débeis e menos esclarecidos <strong>de</strong>sta cida<strong>de</strong> [a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Deus], única na qual <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os viver para s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> felicida<strong>de</strong>? Nós não diz<strong>em</strong>os<br />
contra os seus <strong>de</strong>uses coisas mais horríveis do que os seus autores cuja obra eles lê<strong>em</strong><br />
e elogiam. Deles é que colh<strong>em</strong>os os factos que relatamos – apenas não somos capazes<br />
<strong>de</strong> os relatar n<strong>em</strong> tão b<strong>em</strong> n<strong>em</strong> tão completamente.” E, após várias indagações que<br />
põ<strong>em</strong> <strong>em</strong> causa as crenças e os próprios <strong>de</strong>uses romanos, Agostinho prossegue: “<br />
– On<strong>de</strong> estavam [os <strong>de</strong>uses] quando <strong>em</strong> Roma, após d<strong>em</strong>oradas e graves sedições,<br />
a plebe, abrindo as hostilida<strong>de</strong>s, acabou por se retirar para o Janículo, tendo sido<br />
tão funesta esta calamida<strong>de</strong> que se resolveu (o que só <strong>em</strong> perigo extr<strong>em</strong>o se fazia)<br />
nomear Hortênsio ditador? [...] De resto as guerras multiplicavam-se então por<br />
toda parte a tal ponto que, por falta <strong>de</strong> soldados, se recrutavam proletários (assim<br />
chamados porque tinham por missão única gerar prole para o Estado, uma vez que,<br />
<strong>de</strong>vido à sua pobreza, não podia fazer parte do exército).” AGOSTINHO, Santo. A<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. V. I. 2. ed. Tradução, prefácio, nota biográfica e transcrições <strong>de</strong> J.<br />
Dias Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996, p. 330 e 333 (as interpolações com<br />
colchetes são nossas). Título original: De civitate Dei.