14.04.2015 Views

as marcas da homoafetividade em the blind man - Revista Mundo ...

as marcas da homoafetividade em the blind man - Revista Mundo ...

as marcas da homoafetividade em the blind man - Revista Mundo ...

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>Revista</strong> <strong>Mundo</strong> & Letr<strong>as</strong> 122<br />

AS MARCAS DA HOMOAFETIVIDADE EM THE BLIND MAN (2004) DE D. H.<br />

LAWRENCE<br />

PASSERI, Karine 1<br />

RESUMO: Fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> nos estudos sobre a sexuali<strong>da</strong>de de Michel Foucault, a teoria<br />

queer analisa os discursos que envolv<strong>em</strong> a sexuali<strong>da</strong>de e o desejo n<strong>as</strong> relações sociais,<br />

principalmente no âmbito d<strong>as</strong> minori<strong>as</strong> de gênero, como por ex<strong>em</strong>plo, os homossexuais.<br />

Portanto, b<strong>as</strong>eado nos queer studies, analisar<strong>em</strong>os como <strong>as</strong> fal<strong>as</strong> dos personagens e os<br />

el<strong>em</strong>entos simbólicos do conto The Blind Man (2004) de David Herbert Lawrence estão<br />

relacionados com a homoafetivi<strong>da</strong>de, ou seja, com o amor entre iguais. Como resultado,<br />

espera-se que ambos mostr<strong>em</strong> o poder do discurso patriarcalista e machista na vi<strong>da</strong> dos<br />

homossexuais, que, apesar disso, consegu<strong>em</strong> ultrap<strong>as</strong>sar os obstáculos impostos pela<br />

socie<strong>da</strong>de heg<strong>em</strong>ônica.<br />

Introdução<br />

Os Estudos Culturais envolv<strong>em</strong> campos de pesquisa a respeito <strong>da</strong> comunicação e<br />

cultura. Seu objetivo principal é estu<strong>da</strong>r essa última como um espaço <strong>em</strong> que ocorr<strong>em</strong><br />

lut<strong>as</strong> entre <strong>as</strong> cultur<strong>as</strong> d<strong>as</strong> cl<strong>as</strong>ses sociais com menos influência, ou seja, os Estudos<br />

Culturais propõ<strong>em</strong> a análise d<strong>as</strong> prátic<strong>as</strong> culturais de grupos inferiorizados, tais como: a<br />

mulher, o não-cristão, o negro, o gay, o novo. Assim, torna-se possível observar <strong>as</strong><br />

diferenç<strong>as</strong>, o contr<strong>as</strong>te entre a cultura do subalterno e a cultura dominante (PARADISO;<br />

PELINCER, 2007).<br />

A partir dos Estudos Culturais e <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de sexual na déca<strong>da</strong> de 70 e o<br />

fortalecimento de grupos gays nos Estados Unidos durante a déca<strong>da</strong> de 80, começou-se<br />

a se falar <strong>em</strong> queer studies.<br />

Impulsionados pelos Estudos Culturais, os quais criticam <strong>as</strong> concepções<br />

patriarcais d<strong>as</strong> divers<strong>as</strong> form<strong>as</strong> de opressões d<strong>as</strong> minori<strong>as</strong> sociais (MISKOLCI, 2009),<br />

os queer studies têm como principal ícone o pensador Michel Foucault (WOLHEYS,<br />

2006), o qual escreveu três livros: A história <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de 1 (1988), A história <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong>de 2 (1984) e A história <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de 3 (1985) nos quais faz uma análise<br />

crítica de como a sexuali<strong>da</strong>de é vista e trata<strong>da</strong> pela socie<strong>da</strong>de a partir do século XVIII.<br />

A teoria queer objetiva estu<strong>da</strong>r a dinâmica <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de e do desejo n<strong>as</strong><br />

relações sociais, enfatizando o heg<strong>em</strong>ônico como objeto de estudo e análise crítica, pois<br />

essa estrutura social cria sujeitos tidos como normais e naturais e outros vistos como<br />

perversos ou patológicos (MISKOLCI, 2009).<br />

A respeito <strong>da</strong> nomenclatura, Louro (2001) afirma que o termo queer pode ser<br />

entendido <strong>em</strong> língua portuguesa como estranho ou esquisito. M<strong>as</strong> ele é usado como uma<br />

forma pejorativa de nomear os homens e mulheres homossexuais. Diante disso, os<br />

críticos escolheram esse nome porque ele caracteriza a intenção de oposição contra a<br />

heteronormativi<strong>da</strong>de, para eles queer significa colocar-se contra a normalização <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong>de.<br />

1<br />

Centro Universitário de Maringá (CESUMAR). Graduação <strong>em</strong> Letr<strong>as</strong> português/inglês.<br />

karinep<strong>as</strong>seri@hotmail.com<br />

<strong>Mundo</strong> & Letr<strong>as</strong>, José Bonifácio/SP, v. 2, Julho/2011


<strong>Revista</strong> <strong>Mundo</strong> & Letr<strong>as</strong> 123<br />

Os estudos de Foucault (1988) exerceram fun<strong>da</strong>mental importância para o<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> pesquisa no mundo queer. Devido a seus conceitos a respeito <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong>de e do discurso, pod<strong>em</strong>os, hoje, analisar um texto literário de acordo com<br />

esses <strong>as</strong>pectos.<br />

Uma d<strong>as</strong> concepções mais conhecid<strong>as</strong> de Foucault (1988) é a do poder. O crítico<br />

afirma que poder nunca deve ser tratado como algo coerente, unitário e estável, m<strong>as</strong>, ao<br />

contrário, é algo relativo. Assim, na socie<strong>da</strong>de, t<strong>em</strong>os relações de poder e não um único<br />

poder determinante e fixo. Sob esse ponto de vista, entend<strong>em</strong>os que tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> pesso<strong>as</strong><br />

são ao mesmo t<strong>em</strong>po dotad<strong>as</strong> de poder e influenciad<strong>as</strong> por poderes externos, portanto,<br />

não existe “fora” do poder (FOUCAULT, 1988).<br />

A carga s<strong>em</strong>ântica do termo “homossexuali<strong>da</strong>de” é um ex<strong>em</strong>plo disso. No<br />

século XIX vivenciamos um aumento significativo de discursos a respeito <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong>de. Cientist<strong>as</strong>, religiosos, psiquiatr<strong>as</strong> e sexólogos começaram a estu<strong>da</strong>r essa<br />

t<strong>em</strong>ática e determinaram o que era “normal” e “anormal”, o que era perverso e o que<br />

não era; desde então, criou-se a divisão hetero/homossexual e construíram o<br />

homossexual como um ser “anormal”, “perverso” e “patológico”.<br />

Como o nome “homossexuali<strong>da</strong>de” surgiu nesse contexto histórico, ele p<strong>as</strong>sou a<br />

carregar uma significação pejorativa, por isso, hoje, tal nomenclatura entrou <strong>em</strong> desuso.<br />

P<strong>as</strong>sou-se a utilizar palavr<strong>as</strong> como homoerotismo ou homoafetivi<strong>da</strong>de.<br />

Costa (1992) discorre a respeito dessa terminologia:<br />

[...] homoerotismo é preferível a “homossexuali<strong>da</strong>de” ou “homossexualismo”<br />

porque tais palavr<strong>as</strong> r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> qu<strong>em</strong> <strong>as</strong> <strong>em</strong>prega ao vocabulário do século<br />

XIX, que deu orig<strong>em</strong> a idéia do “homossexual”. Isto significa, <strong>em</strong> breves<br />

palavr<strong>as</strong>, que to<strong>da</strong> vez que <strong>as</strong> <strong>em</strong>pregamos, continuamos pensando, falando e<br />

agindo <strong>em</strong>ocionalmente inspirados na crença de que exist<strong>em</strong> uma<br />

sexuali<strong>da</strong>de e um tipo hu<strong>man</strong>os “homossexuais”, independentes do hábito<br />

lingüístico que os criou. Eticamente, sugiro que persistir utilizando tais<br />

noções significa <strong>man</strong>ter costumes morais prisioneiros do sist<strong>em</strong>a de<br />

nominação preconceituoso que qualifica certo sujeitos como moralmente<br />

inferiores pelo fato de apresentar<strong>em</strong> inclinações erótic<strong>as</strong> por outros do<br />

mesmo sexo biológico (COSTA, 1992, p. 11).<br />

Consoante com os argumentos expostos por Costa (1992), será utilizado o termo<br />

homoafetivi<strong>da</strong>de ou homoerotismo para designar qualquer relação de cunho<br />

“homossexual” e, ain<strong>da</strong>, concor<strong>da</strong>mos com a seguinte afirmação: “homoerotismo é uma<br />

noção mais flexível e que descreve melhor a plurali<strong>da</strong>de d<strong>as</strong> prátic<strong>as</strong> ou desejos dos<br />

homens same-sex oriented. [...] exclui to<strong>da</strong> e qualquer alusão à doença, desvio,<br />

anormali<strong>da</strong>de, perversão” (COSTA, 1992, p. 21)<br />

Assim, para entendermos melhor como a homoafetivi<strong>da</strong>de é identifica<strong>da</strong> no<br />

conto The <strong>blind</strong> <strong>man</strong> (2004), inicialmente, discutir<strong>em</strong>os a biografia de D. H. Lawrence e<br />

a fábula do conto citado.<br />

D. H. Lawrence & The <strong>blind</strong> <strong>man</strong> (2004)<br />

David Herbert Lawrence n<strong>as</strong>ceu <strong>em</strong> 1885, no vilarejo de E<strong>as</strong>twood, próximo a<br />

Nottingham, na Inglaterra. Escreveu dez ro<strong>man</strong>ces ao longo dos 20 anos de carreira,<br />

poesia, crítica literária, contos, livros de história, filosofia, peç<strong>as</strong> e ensaios. Lawrence<br />

começa sua vi<strong>da</strong> literária <strong>em</strong> 1908 quando abandona definitivamente os estudos e p<strong>as</strong>sa<br />

a se dedicar integralmente à literatura. Sua carreira iniciou quando seus po<strong>em</strong><strong>as</strong> foram<br />

publicados no English Review, <strong>em</strong> Londres. Três anos depois, publica seu primeiro<br />

ro<strong>man</strong>ce O pavão branco, o qual obteve aceitação e um sucesso razoável se comparado<br />

com O a<strong>man</strong>te de Lady Chatterley, ro<strong>man</strong>ce que gerou polêmica por causa d<strong>as</strong><br />

<strong>Mundo</strong> & Letr<strong>as</strong>, José Bonifácio/SP, v. 2, Julho/2011


<strong>Revista</strong> <strong>Mundo</strong> & Letr<strong>as</strong> 124<br />

considerações étic<strong>as</strong> e sociais feit<strong>as</strong> pelo autor, por isso foi proibido por 32 anos na<br />

Inglaterra. Em 1930, diagnosticado com tuberculose, D. H. Lawrence falece no<br />

sanatório Ad Astra, na França (GOMES, 1985).<br />

Em seu conto The <strong>blind</strong> <strong>man</strong> 2 (2004), o protagonista Maurice Pervin, cego e<br />

possuidor de uma horren<strong>da</strong> cicatriz no rosto, é c<strong>as</strong>ado com Isabel. Moram <strong>em</strong> uma<br />

fazen<strong>da</strong>, se amam e desejam ter filhos. Entretanto, os dois começam a notar que faltava<br />

algo na relação, alguma coisa estava incompleta entre eles. Certo dia, Bertie Reid,<br />

amigo e primo distante de Isabel, do qual Maurice não gosta, escreve para ela<br />

rel<strong>em</strong>brando a amizade antiga, e o c<strong>as</strong>al consente que Bertie venha visitá-los. Durante a<br />

visita, os três na sala, Maurice sai <strong>em</strong> direção à c<strong>as</strong>a do c<strong>as</strong>eiro. Após um t<strong>em</strong>po, Isabel<br />

e Bertie se preocupam, então o velho amigo vai atrás dele. Esse o encontra no curral,<br />

local onde acontece o clímax <strong>da</strong> diegese, pois nesse contato ambos trocam sutis e<br />

íntimos toques. Maurice, <strong>the</strong> <strong>blind</strong> <strong>man</strong>, pede para ser tocado <strong>em</strong> sua cicatriz e solicita<br />

que Bertie deixe ser tocado no rosto também, após a troca recíproca, se direcionam para<br />

c<strong>as</strong>a ao encontro de Isabel. A partir desse acontecimento, o sentimento que envolvia os<br />

três mu<strong>da</strong>. Isabel diz que depois que Maurice veio do curral com Bertie, ele p<strong>as</strong>sou a se<br />

sentir completo, na<strong>da</strong> mais faltava <strong>em</strong> sua vi<strong>da</strong>, ele voltou a ser feliz e também cessou<br />

seu sentimento de ódio por Bertie.<br />

As marc<strong>as</strong> <strong>da</strong> homoafetivi<strong>da</strong>de<br />

Iniciar<strong>em</strong>os nossa análise pelo título do conto, o qual nos permite fazermos<br />

inferênci<strong>as</strong> a respeito do texto literário. The <strong>blind</strong> <strong>man</strong> se refere a Maurice, o<br />

protagonista. Então, t<strong>em</strong>os logo no primeiro instante um título que r<strong>em</strong>ete a cegueira, ou<br />

seja, há um personag<strong>em</strong> que não consegue enxergar o que acontece no mundo real<br />

devido a uma cicatriz <strong>em</strong> seu rosto. Ess<strong>as</strong> característic<strong>as</strong> transmitid<strong>as</strong> ao interlocutor são<br />

considerad<strong>as</strong> relevantes para o desenlace <strong>da</strong> trama, pois tanto a cegueira como a cicatriz<br />

serão cl<strong>as</strong>sificad<strong>as</strong> como el<strong>em</strong>entos simbólicos dentro <strong>da</strong> narrativa, isto é, são <strong>da</strong>dos<br />

conotativos.<br />

Maurice é c<strong>as</strong>ado com Isabel, a qual está grávi<strong>da</strong>. Eles viv<strong>em</strong> b<strong>em</strong> e satisfeitos,<br />

apesar de vivenciar<strong>em</strong> crises conjugais. Certo dia, Bertie, um velho amigo de Isabel,<br />

com o qual ela havia rompido contato, por Maurice não concor<strong>da</strong>r com a amizade,<br />

escreveu para ela. Na carta, Bertie comenta que gostaria de visitá-los, então, ela<br />

conversa com seu marido, Maurice, e ele aceita o seu amigo de infância venha até a c<strong>as</strong>a<br />

deles.<br />

Quando chega o dia <strong>da</strong> visita, os três personagens estão na sala <strong>da</strong> c<strong>as</strong>a de<br />

Maurice, todos sentados, conversando. É no decorrer <strong>da</strong> conversa, descrita pelo<br />

narrador, que Maurice e Bertie começam a revelar su<strong>as</strong> ver<strong>da</strong>deir<strong>as</strong> identi<strong>da</strong>des.<br />

Ao descrever Bertie, o narrador deixa marc<strong>as</strong> de uma possível homoafetivi<strong>da</strong>de<br />

(LAWRENCE, 2004, p. 84): “He w<strong>as</strong> <strong>as</strong>hamed of himself because he could not marry,<br />

could not approach women physically. He wanted to do so. But he could not” 3 . Essa<br />

descrição mostra que Bertie era um frac<strong>as</strong>sado <strong>em</strong> seus relacionamentos heteros, pois<br />

não conseguia estabelecer um relacionamento satisfatório com uma mulher. Diante<br />

desse conflito, observamos que essa dificul<strong>da</strong>de de Bertie se relacionar com o sexo<br />

oposto era porque ele, provavelmente, tinha atração pelo sexo igual, ou seja, ele era<br />

homossexual.<br />

Enquanto conversavam, <strong>the</strong> <strong>blind</strong> <strong>man</strong>, Maurice, pediu educa<strong>da</strong>mente para ir até<br />

a c<strong>as</strong>a do c<strong>as</strong>eiro. Então, ele se retira do local, e deixa Isabel e Bertie sozinhos. Esses<br />

2 “O hom<strong>em</strong> cego”.<br />

3 Ele estava envergonhado de si mesmo porque ele não conseguia c<strong>as</strong>ar, não conseguia se aproximar<br />

fisicamente de mulheres. Ele queria fazer isso. M<strong>as</strong> não conseguia (traduções nossa).<br />

<strong>Mundo</strong> & Letr<strong>as</strong>, José Bonifácio/SP, v. 2, Julho/2011


<strong>Revista</strong> <strong>Mundo</strong> & Letr<strong>as</strong> 125<br />

começam a falar sobre Maurice. Até que <strong>em</strong> um <strong>da</strong>do momento, Isabel declara o que vê<br />

<strong>em</strong> seu companheiro:<br />

[...] There is something else, something <strong>the</strong>re, which you never knew w<strong>as</strong><br />

<strong>the</strong>re, and which you can’t express. […] I don’t know – it’s awfully hard to<br />

define it – but something strong and immediate. There’s something strange in<br />

Maurice’s presence – indefinable. (LAWRENCE, 2004, p. 86). 4<br />

Esse discurso de Isabel deixa claro que ela sabe que o marido carece de algo,<br />

falta alguma coisa na vi<strong>da</strong> dele para torná-lo realmente completo, sujeito, dono de sua<br />

própria história e de sua felici<strong>da</strong>de.<br />

Após essa afirmação, eles continuam conversando até que sent<strong>em</strong> falta de<br />

Maurice, então Bertie sai sozinho a sua procura. Depois de muito o chamar, se depara<br />

com um celeiro, onde estava Maurice. Aos poucos eles dão início a um diálogo, e, <strong>em</strong><br />

certo instante, Maurice declara a respeito de si: “Sometimes I feel horrible” 5<br />

(LAWRENCE, 2004, p. 89). Essa pequena oração dita por Maurice é muito importante<br />

para nossa análise, pois, ver<strong>da</strong>de, ela é uma metáfora sobre tudo o que está acontecendo<br />

desde o início <strong>da</strong> trama, pois o que gera esse sentimento ou sensação <strong>em</strong> Maurice não é<br />

por causa <strong>da</strong> sua cicatriz, m<strong>as</strong> porque <strong>em</strong> seu íntimo, ele sabe que possui desejos<br />

homoafetivos. Assim, também perceb<strong>em</strong>os que o que falta nele, como Isabel afirma, é a<br />

ausência do amor de outro hom<strong>em</strong>, por isso ele se sente uma pessoa incompleta.<br />

Há ain<strong>da</strong> outros trechos que contribu<strong>em</strong> para a análise sob o ângulo <strong>da</strong><br />

homoafetivi<strong>da</strong>de, como por ex<strong>em</strong>plo, no momento <strong>em</strong> que Maurice insiste sobre a<br />

cicatriz: “Is my face much disfigured?” 6 (LAWRENCE, 2004, p. 89), ou seja, como<br />

sab<strong>em</strong>os que a socie<strong>da</strong>de patriarcal e machista repugna to<strong>da</strong> <strong>man</strong>ifestação homoerótica,<br />

a intenção de Maurice é questionar se é realmente tão feio viver esse sentimento<br />

homoafetivo e se o homossexual é realmente um ser desfigurado, como a heg<strong>em</strong>onia<br />

prega.<br />

O fato de Maurice questionar o padrão estabelecido revela sua tentativa <strong>em</strong> se<br />

tornar sujeito e deixar de ser objeto, pois conhec<strong>em</strong>os o discurso heg<strong>em</strong>ônico o qual<br />

trata os gays como objetos, pesso<strong>as</strong> marginalizados, além disso, qualquer d<strong>em</strong>onstração<br />

homoerótica é caracteriza<strong>da</strong> como uma forma de perversão social. Esse contexto<br />

preconceituoso e injusto <strong>em</strong> que os gays e lésbic<strong>as</strong> viv<strong>em</strong> afetam-nos diretamente,<br />

tornando-os pesso<strong>as</strong> com sentimentos inferiores e traum<strong>as</strong>, ou como no personag<strong>em</strong><br />

desse conto, portadores de cicatrizes etern<strong>as</strong> <strong>em</strong> seus corpos, sendo que, eles, <strong>as</strong>sim<br />

como os outros seres hu<strong>man</strong>os, buscam, simplesmente, a felici<strong>da</strong>de <strong>em</strong> um igual.<br />

Maurice, ain<strong>da</strong> lutando pela sua subjetificação, transgride tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> “leis”<br />

patriarcais, e pede a Bertie: “Do you mind if I touch you?” 7 (LAWRENCE, 2004, p. 89)<br />

e obtêm a doce resposta: “Not at all” 8 (LAWRENCE, 2004, p. 89), <strong>as</strong>sim, ambos se<br />

tocam. Entretanto, Maurice não se sente completo, e solicita: “Touch my eyes, will you?<br />

– touch my scar.” 9 (LAWRENCE, 2004, p. 90). Nesses atos, verificamos uma<br />

concretização d<strong>as</strong> caríci<strong>as</strong> homoerótic<strong>as</strong> entre os personagens, portanto, observamos que<br />

eles realmente são gays.<br />

4 Há algo a mais, algo lá, que você nunca sabia que existia, e você não pode expressar. [...] Eu não sei – é<br />

terrivelmente árduo definir isso – m<strong>as</strong> há algo estranho e imediato. Há algo estranho na presença de<br />

Maurice – indefinível.<br />

5 Ás vezes eu me sinto horrível.<br />

6 A minha face é muito desfigura<strong>da</strong>?<br />

7 Você se importa se eu tocar você?<br />

8 Não.<br />

9 Toque meus olhos, você tocará? Toque minha cicatriz (traduções noss<strong>as</strong>).<br />

<strong>Mundo</strong> & Letr<strong>as</strong>, José Bonifácio/SP, v. 2, Julho/2011


<strong>Revista</strong> <strong>Mundo</strong> & Letr<strong>as</strong> 126<br />

A respeito desses trechos citados, a cicatriz de Maurice pode ser considera<strong>da</strong><br />

como el<strong>em</strong>ento simbólico. Pois, na ver<strong>da</strong>de, uma cicatriz representa a dor mais íntima<br />

que um ser hu<strong>man</strong>o pode ter ou o ponto mais fraco de alguém, portanto, quando<br />

Maurice se expõe à Bertie e pede para ele tocar <strong>em</strong> sua feri<strong>da</strong> mais íntima, observamos<br />

que a dor desse corpo é não pode vivenciar e <strong>da</strong>r vazão a todo esse sentimento<br />

homoafetivo, o qual fica guar<strong>da</strong>do, escondido atrás <strong>da</strong> cicatriz, afinal, a<br />

heteronormativi<strong>da</strong>de trata com preconceito o gay que revelar e ter uma vi<strong>da</strong> amorosa<br />

satisfatória. Assim, notamos que a dificul<strong>da</strong>de de Bertie e Maurice se permitir<strong>em</strong> trocar<br />

caríci<strong>as</strong> é devido ao sist<strong>em</strong>a patriarcal, o qual prega que a união t<strong>em</strong> de ser feita entre<br />

homens e mulheres e não entre corpos iguais.<br />

Relacionando a socie<strong>da</strong>de machista com o local onde aconteceram os toques<br />

homoafetivos entre os personagens, perceb<strong>em</strong>os outra forma de marginalização e<br />

objetificação deles, pois eles estão <strong>em</strong> um celeiro, ou seja, só puderam revelar seus<br />

sentimentos quando estavam <strong>em</strong> um local escuro, escondido, onde moram animais, ou<br />

seja, é como se eles foss<strong>em</strong> animais liberando seus instintos carnais, às escur<strong>as</strong>, no<br />

silêncio.<br />

Bertie não resiste às sugestões do amigo, m<strong>as</strong> também na<strong>da</strong> afirma a respeito dos<br />

toques recíprocos, então, v<strong>em</strong>os Bertie como um corpo deslocado, que se estabelece no<br />

silêncio, no armário, no não-dito “Bertie could not answer” 10 (LAWRENCE, 2004, p.<br />

90), e <strong>as</strong>sim comprova-se o quanto inferiorizados e marginalizados são os gays.<br />

Enquanto Bertie continua escondendo seus desejos e sua felici<strong>da</strong>de, o narrador<br />

fala <strong>da</strong> realização pessoal de Maurice: “The new delicate fulfillment of mortal<br />

friendship had come <strong>as</strong> revelation and surprise to him, someting exquisite and unhopedfor.”<br />

11 (LAWRENCE, 2004, p. 91). Por meio dess<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>, v<strong>em</strong>os que, agora, ele se<br />

sente completo, afinal, falando do sentimento amoroso entre iguais, que antes era<br />

ausência p<strong>as</strong>sou a ser presença, ele não carece mais disso, porque Bertie supriu seu<br />

desejo. Isso chega a ser percebido por Isabel: “You’ll be happier now, dear.” 12<br />

(LAWRENCE, 2004, p. 91).<br />

Conclusão<br />

Devido a teoria queer, pud<strong>em</strong>os analisar e tecer relações entre os el<strong>em</strong>entos<br />

simbólicos do conto e a homoafetivi<strong>da</strong>de. Portanto, concluímos que Maurice era c<strong>as</strong>ado<br />

com uma mulher, seguia os padrões patriarcais e negava seus sentimentos<br />

homoafetivos. Isso mostra como o discurso heg<strong>em</strong>ônico influencia a vi<strong>da</strong> dos<br />

homossexuais, obrigando-os a se c<strong>as</strong>ar<strong>em</strong> com o sexo oposto, a minimizar<strong>em</strong> seus<br />

sentimentos e só os revelar<strong>em</strong> – ain<strong>da</strong> de forma clandestina – na escuridão, <strong>em</strong> celeiros,<br />

onde viv<strong>em</strong> animais. Diante disso, concluímos também que a socie<strong>da</strong>de não só o<br />

objetifica, m<strong>as</strong> os animaliza, o qual é o c<strong>as</strong>o de Maurice e Bertie, que expuseram seus<br />

sentimentos recíprocos <strong>em</strong> curral, como se fosse animais.<br />

Além disso, concluí-se também que <strong>as</strong> marc<strong>as</strong> homoafetiv<strong>as</strong> do conto <strong>em</strong><br />

questão estabelec<strong>em</strong> satisfatória relação com a concepção foucaultiana de poder, pois <strong>as</strong><br />

fal<strong>as</strong> dos personagens revelam o momento <strong>em</strong> que são submissos ao discurso e ao poder<br />

do patriarcalismo, por outro lado, el<strong>as</strong> também revelam quando eles reconhec<strong>em</strong> seus<br />

ver<strong>da</strong>deiros sentimentos, adquirindo o poder do discurso e, desta forma, rompendo com<br />

tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> barreir<strong>as</strong> sociais. Isso mostra ain<strong>da</strong> que essa minoria social, os gays, pod<strong>em</strong><br />

10 Bertie não conseguia responder.<br />

11 A nova delica<strong>da</strong> realização de uma amizade mortal surgiu como uma revelação e uma surpresa a ele,<br />

algo belo e até então não esperado.<br />

12 Você será mais feliz agora, querido.<br />

<strong>Mundo</strong> & Letr<strong>as</strong>, José Bonifácio/SP, v. 2, Julho/2011


<strong>Revista</strong> <strong>Mundo</strong> & Letr<strong>as</strong> 127<br />

desenvolver seu discurso, e automaticamente seu poder, ultrap<strong>as</strong>sando todo o<br />

preconceito e tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> “norm<strong>as</strong>” impost<strong>as</strong> injustamente por uma <strong>blind</strong> society 13 .<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

COSTA, J. F. A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo. 3ed. Rio de<br />

Janeiro: Relume-Dumará, 1992.<br />

FOUCAULT, M. História <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de I: a vontade de saber. 10 ed. Rio de Janeiro:<br />

Graal, 1988.<br />

GOMES, Á. C. D. H. Lawrence, um escritor contra o seu t<strong>em</strong>po. Visão, São Paulo, p.<br />

70 – 73, 04 set. 1985.<br />

LAWRENCE, D. H. The <strong>blind</strong> <strong>man</strong>. In: BONICI, T. (Org.). Short stories: an<br />

anthology for undergraduates. 2 ed. Maringá: UEM, 2004.<br />

LOURO, G. L. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. <strong>Revista</strong><br />

Estudos F<strong>em</strong>inist<strong>as</strong>, Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 541 – 553, 2001.<br />

MISKOLCI, R. A teoria queer e a sociologia: o desafio de uma analítica <strong>da</strong><br />

normatização. Sociologi<strong>as</strong>, Porto Alegre, v. 11, n. 21, p. 150 – 182, jan./jan. 2009.<br />

PARADISO, S. R.; PELINCER, E. Estudos Culturais: o boom teórico para <strong>as</strong> literatur<strong>as</strong><br />

pós-modern<strong>as</strong> [apostila]. In: S<strong>em</strong>inário Interdisciplinar de Educação, 5, 2007,<br />

Maringá. Mini curso. Maringá: Centro Universitário de Maringá, 2007. p. 1 – 14.<br />

WOLHEYS, J. et al. Key Concepts in literary <strong>the</strong>ory. Edinburgh: Edinburgh<br />

University Press, 2006.<br />

13 “Socie<strong>da</strong>de cega” (traduções noss<strong>as</strong>).<br />

<strong>Mundo</strong> & Letr<strong>as</strong>, José Bonifácio/SP, v. 2, Julho/2011

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!