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Alberto da Silva Jones O MITO DA LEGALIDADE DO LATIFÚNDIO ...

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<strong>Alberto</strong> <strong>da</strong> <strong>Silva</strong> <strong>Jones</strong><br />

O <strong>MITO</strong> <strong>DA</strong> LEGALI<strong>DA</strong>DE <strong>DO</strong> <strong>LATIFÚNDIO</strong><br />

Legali<strong>da</strong>de e Grilagem no Processo de Ocupação <strong>da</strong>s Terras Brasileiras<br />

(Do Instituto de Semarias ao Estatuto <strong>da</strong> Terra)<br />

SÃO PAULO<br />

2003<br />

1


INDICE<br />

INTRODUÇÃO<br />

CAPÍTULO 1<br />

A POLÍTICA FUNDIÁRIA COLONIAL : O INSTITUTO <strong>DA</strong>S SESMARIAS<br />

1. Considerações Gerais<br />

2. Sistema Sesmarial e Formação <strong>da</strong> Proprie<strong>da</strong>de Rural na Colônia<br />

3. Considerações Finais<br />

CAPÍTULO 2<br />

CRISE <strong>DO</strong> SISTEMA SESMARIAL E REESTRUTURAÇÃO <strong>DA</strong>S RELAÇÕES DE<br />

PROPRIE<strong>DA</strong>DE<br />

1. Contexto e Conjuntura <strong>da</strong> Crise<br />

2. O Império <strong>da</strong>s Posses<br />

3. A Lei de Terras: Legitimação dos Privilégios<br />

3.1. Considerações Básicas<br />

3.2. A Questão <strong>da</strong> Proprie<strong>da</strong>de Territorial<br />

3.2.1. As Terras Devolutas<br />

3.2.2. As Sesmarias Legaliza<strong>da</strong>s<br />

3.2.3. As Sesmarias Caí<strong>da</strong>s em Comisso<br />

3.2.4. A Legitimação <strong>da</strong>s Posses<br />

4 . Colonização e Imigração Estrangeira<br />

4.1. Colonização Sistemática : O Projeto de Wakefield<br />

4.2. Colonização Dirigi<strong>da</strong> : O Projeto do Latifúndio<br />

5. Considerações Finais : Heranças <strong>da</strong> Política de Terras do Império<br />

CAPÍTULO 3<br />

LEGISLAÇÃO FUNDIÁRIA E LUTA PELA TERRA NA REPÚBLICA: (1889-1964)<br />

1. Considerações Preliminares<br />

2. Legislação e Proprie<strong>da</strong>de Territorial: Legitimação de Privilégios<br />

3. Constituição de 1891: União, Estados e Legitimação <strong>da</strong> Proprie<strong>da</strong>de<br />

4. Legislação Federal e Terras Devolutas (dos Estados?)<br />

CAPÍTULO 4<br />

A POLÍTICA FUNDIÁRIA <strong>DO</strong> REGIME MILITAR : 1964 - 1984<br />

1. Antecedentes Mediatos <strong>da</strong> Conspiração Militar e Questão Agrária<br />

2. Mensagem n o 33 : O Diagnóstico Militar <strong>da</strong> Questão Agrária<br />

3. Instrumentalização Jurídica e Política Fundiária de Governo<br />

3.1. O Estatuto <strong>da</strong> Terra e Legislações Anteriores<br />

3.2. O Estatuto <strong>da</strong> Terra e a Política Fundiária<br />

3.2.1 Execução <strong>da</strong> Política Fundiária: "Intenção e Gesto"<br />

3.2.2. Instrumentos de Ação Fundiária<br />

3.2.2.1. Discriminação de Terras Públicas<br />

3.2.2.2 Arreca<strong>da</strong>ção de Terras Devolutas<br />

2


3.2.2.3. Desapropriação de Imóveis Rurais<br />

3.2.2.4. Aquisição de Imóveis Rurais e PROTERRA<br />

3.2.2.5. Colonização<br />

3.2.3. Titulação de Terras Públicas: Alienação e Privilégios<br />

3.2.3.1. Legitimação de Posses<br />

3.2.3.2 .Alienação com Dispensa de Licitação<br />

3.2.3.3. Concessão com Dispensa de Licitação<br />

3.2.3.4. Alienação em Concorrência Pública: Licitação<br />

3.2.3.5. Alienação com Licitação e Direito de Preferência<br />

3.2.3.6. Concessões Especiais<br />

3.2.3.7. Doação de Terras Públicas<br />

3.2.3.8. Usucapião Especial<br />

CAPÍTULO 5<br />

POLÍTICA FUNDIÁRIA <strong>DO</strong> REGIME MILITAR: RECONCENTRAÇÃO E<br />

PRIVILÉGIOS<br />

1. Considerações Preliminares<br />

2. Alienação e Apropriação de Terras Novas<br />

3. Reconcentração Fundiária e População : Uma face <strong>da</strong> Excludência<br />

4. Destinação e Utilização <strong>da</strong>s Terras: Caráter Parasitário <strong>da</strong> Privatização<br />

CONCLUSÕES<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

3


PREFÁCIO<br />

Sedi Hirano<br />

4


AGRADECIMENTOS<br />

Agradecer é realçar afetos. Atos solidários de amigos: de amor. De aju<strong>da</strong> e de<br />

companheirismo. Na ver<strong>da</strong>de, a presença no momento <strong>da</strong> aflição ou do contentamento. Por tudo<br />

isso, quero reconhecer a aju<strong>da</strong> e a amizade que nunca me faltaram. E sobretudo, o incentivo e o<br />

apoio, sem os quais jamais seria possível realizar este trabalho.<br />

Agradeço, por tudo isso:<br />

À Maria Armin<strong>da</strong> do Nascimento Arru<strong>da</strong>, que acreditou na possibili<strong>da</strong>de deste trabalho<br />

e que, com a sua amizade e apoio, tornou esta possibili<strong>da</strong>de em reali<strong>da</strong>de. A sua aju<strong>da</strong>, lendo e<br />

analisando os primeiros rascunhos, incentivou-me e, mais que isto, deu-me motivação para<br />

desenvolvê-los. Sem a sua soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, jamais poderia escrever a presente Tese.<br />

À Sedi Hirano, que aceitando orientar-me, ajudou-me, entusiasticamente, a caminhar,<br />

caminhando comigo: como o amigo, aju<strong>da</strong>ndo-me nas dificul<strong>da</strong>des; como mestre, ensinando-me<br />

que caminhar pode ser penoso, mas, que é gratificante. Além <strong>da</strong> amizade de sua família, que<br />

fizeram de minha estadia em São Paulo um momento de muita satisfação e alegria.<br />

À José César Gnaccarini que, na hora mais difícil, no abismo prenunciado, foi luz e foi<br />

ponte: iluminando e indicando caminhos novos e seguros. Que lendo os meus rascunhos, deume<br />

motivação para transformá-los num trabalho decente e sério. Modesto, mas produto de um<br />

esforço construtivo e esperançoso. Devo muito a seu incentivo, e apoio. Sobretudo a sua<br />

amizade e carinho, construídos na caminha<strong>da</strong>, desde o momento crítico, do Exame de<br />

Qualificação, e que nunca me faltaram, especialmente, nos momentos de que mais os<br />

necessitava.<br />

Ao professor Gildo Marçal, pelas críticas que se tornaram efetivas contribuições, vin<strong>da</strong>s<br />

no bojo do Exame de Qualificação, e que me aju<strong>da</strong>ram a escolher com mais objetivi<strong>da</strong>de o<br />

caminho a trilhar na pesquisa.<br />

Ao professor Francisco de Oliveira, com quem aprendi muito. Sobretudo com o seu<br />

entusiasmo para debater e com a sua humil<strong>da</strong>de para ensinar, como poucas vezes se pode<br />

testemunhar. “Chico”- permita-me o tratamento afetuoso - foi para mim um exemplo de<br />

esperança e de trabalho.<br />

Ao professor José de Souza Martins e aos colegas e amigos do Curso sobre a obra de<br />

Henri Lefebvre, com os quais tive a alegria de experimentar a poesia <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, <strong>da</strong> esperança e <strong>da</strong><br />

necessi<strong>da</strong>de de construir um mundo melhor, mais belo: representativo <strong>da</strong> beleza necessária.<br />

À Socorro Gomes, deputa<strong>da</strong> do povo do Pará, amiga dos posseiros e dos sem terra de<br />

todo o Brasil, que luta no Congresso e no campo, contra a “grilagem especializa<strong>da</strong>”, a<br />

apropriação privilegia<strong>da</strong> e a vergonhosa ilegitimi<strong>da</strong>de, que sempre foram as gêmeas prediletas<br />

do latifúndio especulativo e parasitário neste País. Devo agradecer a ela e aos seus<br />

5


companheiros de trabalho que me apoiaram efetivamente, remetendo-me vasta documentação<br />

do Parlamento, sem a qual, dificilmente eu poderia ter realizado as análises que sustentam este<br />

estudo.<br />

A Carlos Lorena, saudoso amigo, que, em 1986, foi o meu primeiro grande incentivador<br />

para que estu<strong>da</strong>sse as ilegitimi<strong>da</strong>des inerentes aos imóveis rurais, quando então, ocupava o<br />

Cargo de Diretor de Ca<strong>da</strong>stro do INCRA. Lorena foi, para mim, um grande exemplo de luta e<br />

de trabalho.<br />

A Maurinho Luiz dos Santos, amigo e colega do Departamento de Economia Rural <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de Federal de Viçosa, que sempre me incentivou com imenso entusiasmo e, desta<br />

forma, tornou possível a superação dos momentos de desânimo e, quiçá, de desespero, por que<br />

passam todos os estu<strong>da</strong>ntes, ao realizar suas pesquisas. Também ao colega Fernando Antônio<br />

Silveira <strong>da</strong> Rocha, que sempre me incentivou e efetivamente, apoiou-me na realização do Curso<br />

na USP.<br />

A colega e amiga Valéria Aroeira Braga, que foi uma grande incentivadora desta<br />

pesquisa. Que me colocou à disposição todos os seus livros de Direito Agrário e, desta forma,<br />

ajudou-me objetivamente, a executar este trabalho.<br />

Aos colegas Francisco Armando <strong>da</strong> Costa e Wilson <strong>da</strong> Cruz Vieira, do DER/UFV, que<br />

sempre me incentivaram, inclusive resolvendo problemas, diante <strong>da</strong>s minhas dificul<strong>da</strong>des em<br />

li<strong>da</strong>r com a construção de gráficos pelo computador. Foi um apoio relevante, e que me liberou<br />

de imensas horas que certamente eu perderia tentado fazer a “arte final” desses materiais.<br />

Gostaria de registrar um agradecimento especial à Folha de São Paulo, que, ao se<br />

mostrar interessa<strong>da</strong> pelo estudo que eu estava fazendo, inclusive comentando comigo e<br />

publicando um breve artigo sobre o tema, deu-me esperança de que o mesmo não fosse, apenas,<br />

um exercício acadêmico, mas que, de fato, pudesse vir a se constituir em uma contribuição para<br />

o debate e, quem sabe, para a busca de novos caminhos para se combater a grilagem<br />

especializa<strong>da</strong>, a ilegitimi<strong>da</strong>de e a usura <strong>da</strong> terra, que têm destruído o sonho e a vi<strong>da</strong> de tantas<br />

pessoas e entravado as possibili<strong>da</strong>de de desenvolvimento independente e sustentado <strong>da</strong><br />

economia e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileiras. Além de me fazer voltar a acreditar no papel crítico e<br />

combativo <strong>da</strong> imprensa independente.<br />

Um agradecimento especial à Tedinha e ao “Russo”, do Departamento de Economia<br />

Rural, sempre solidários comigo em todos os momentos; a Sônia e Isabel, <strong>da</strong> Secretaria de Pós-<br />

Graduação em Sociologia <strong>da</strong> USP, pelo apoio constante, mas, sobretudo pela soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de,<br />

simpatia e amizade. Sem a sua aju<strong>da</strong> preciosa seria dificílimo fazer este trabalho.<br />

Devo, igualmente, agradecer a tantas outras pessoas, que seria impossível registrar aqui.<br />

Por outro lado, também é preciso reconhecer o apoio de pessoas que, embora não<br />

liga<strong>da</strong>s diretamente aos esforços de elaboração <strong>da</strong> tese, foram de preciosa soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de,<br />

trazendo amizade, carinho e alegria, ingredientes fun<strong>da</strong>mentais à vi<strong>da</strong> e ao trabalho.<br />

Assim foi a minha família. Meus irmãos, minha esposa, Patrícia, e meus filhos, Caio e<br />

Carlos. Agradecer a esposa é quase um ato impossível. Assim, prefiro lembrar o seu apoio<br />

carinhoso, dedicado, de afeto e soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de. Aquele calor de todos os momentos que aquece e<br />

ilumina, que aconchega e constrói. Espiritual, muito mais que simplesmente material. Mas foi,<br />

igualmente, a labuta conjunta, em muitas noites de trabalho, discutindo as idéias, debatendo os<br />

textos: juntos, sempre juntos na vigília do árduo trabalho de construir uma tese a partir de<br />

documentos, <strong>da</strong>dos, literaturas... hipóteses... Ato impossível, sim, porque a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de é<br />

incomensurável, é puro sentimento. É uni<strong>da</strong>de. Esta tese é também dela.<br />

6


Assim, também foram outros amigos preciosos, como Carlinhos Marighella, Gey<br />

Espinheira, Adna Aguiar, José Guilherme <strong>da</strong> Motta, Edgard de Vasconcelos Barros, Eliel<br />

Judson Pinheiro, Ricardo Albinati e o meu colega de curso, Antônio César e sua família, que<br />

nunca faltaram com sua amizade e carinho em todo o nosso árduo percurso.<br />

Finalmente, desejo agradecer a Universi<strong>da</strong>de Federal de Viçosa, especialmente aos<br />

meus colegas do Departamento de Economia Rural, indistintamente, pelo apoio que nunca me<br />

negaram. À CAPES, pela Bolsa de Estudos e, muito em particular à Universi<strong>da</strong>de de São Paulo,<br />

a USP, pela oportuni<strong>da</strong>de que me ofereceu para participar de um excelente Curso de Pós-<br />

Graduação, que, independentemente de qualquer outra referência, deu-me a oportuni<strong>da</strong>de única<br />

de conviver em um ambiente acadêmico crítico, profundo, criativo, e sobretudo, de serie<strong>da</strong>de.<br />

Quali<strong>da</strong>des que têm sido raras de se encontrar.<br />

A todos, indistintamente, agradeço com um beijo e um aceno.<br />

7


RESUMO<br />

Partindo do fato de que as terras brasileiras são originalmente públicas, buscou-se nesta<br />

pesquisa, a análise objetiva do processo de formação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra no Brasil: um<br />

processo, de fato, de privatização, de transferência, para o domínio privado, de um patrimônio<br />

territorial que nasceu público.<br />

Deu-se ênfase particular a análise <strong>da</strong> Política Fundiária desenvolvi<strong>da</strong> no período do<br />

Regime Militar, que se estendeu de 1964 a 1984. Por um imperativo metodológico e de análise,<br />

foi realizado um estudo sistemático <strong>da</strong>s características e <strong>da</strong>s conjunturas fun<strong>da</strong>mentais em que<br />

este processo de transferência <strong>da</strong>s terras públicas para o domínio particular foi realizado em<br />

outros distintos períodos <strong>da</strong> história agrária brasileira. Este procedimento teve o objetivo,<br />

apenas, de permitir a análise comparativa do processo de privatização <strong>da</strong>s terras no País, tal<br />

como ocorrido em distintos períodos.<br />

Ficou evidenciado, pela análise - <strong>da</strong>s legislações, atos administrativos, projetos e outros<br />

documentos e <strong>da</strong>dos, assim como <strong>da</strong> literatura especializa<strong>da</strong> - que, desde as suas origens mais<br />

remotas, no instituto sesmarial, o processo de transferência <strong>da</strong>s terras para a iniciativa de<br />

particulares, no Brasil - necessário e inevitável, à sua incorporação ao processo de produção e<br />

reprodução econômico-social - sempre se fundou no privilégio, quanto à alienação ou<br />

concessão, e na ilegali<strong>da</strong>de, quanto a sua configuração jurídica e formal. Portanto, torna-se<br />

legítima a hipótese de que não se efetivou, juridicamente, a transferência de domínio sobre estas<br />

terras para a proprie<strong>da</strong>de particular. É neste sentido específico que se pode afirmar que elas<br />

permaneceram públicas.<br />

Neste contexto, a análise comparativa dos diversos períodos, não deixou dúvi<strong>da</strong>s que,<br />

apesar <strong>da</strong>s formas e conjunturas diferentes que assumiu, sempre persistiu, neste processo, uma<br />

característica fun<strong>da</strong>mental: a privatização privilegia<strong>da</strong> e juridicamente questionável. Esta foi a<br />

hipótese de trabalho desenvolvi<strong>da</strong>, e que ficou amplamente evidencia<strong>da</strong> neste estudo.<br />

Neste contexto, a Política Fundiária posta em prática pelos Governos Militares, fun<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

no Estatuto <strong>da</strong> Terra, aliás, informado este, politicamente, pela Mensagem 33, do General<br />

Castelo Branco, significou a continuação, sob novas formas e em uma nova conjuntura - tanto<br />

interna quanto internacional - <strong>da</strong>s mesmas condições de privatização e legitimação privilegia<strong>da</strong>s<br />

e juridicamente questionáveis.<br />

Mais do que isto. A análise <strong>da</strong> legislação, dos atos administrativos e dos projetos de<br />

desenvolvimento rural e outros, postos em prática neste período, demonstraram, de forma<br />

veemente, de que é exatamente nele, que o processo de privatização privilegia<strong>da</strong> e juridicamente<br />

questionável, assume a sua forma mais acaba<strong>da</strong> de grilagem especializa<strong>da</strong>. Na qual o próprio<br />

privilégio e ilegali<strong>da</strong>de são incorporados ao ordenamento jurídico e administrativo e assumem,<br />

enfim, o “estatuto de lei”.<br />

8


Assim, em conclusão, ficou evidenciado que a Política Fundiária implementa<strong>da</strong> pelos<br />

Governos Militares representou, efetivamente, a consagração destes “antigos” métodos de<br />

alienação privilegia<strong>da</strong> e legitimação questionável, que vinham persistindo no Brasil desde o<br />

instituto sesmarial. Que isto significa, por um lado, que foi amplia<strong>da</strong>, em escala nunca antes<br />

registra<strong>da</strong> na história agrária do País, a excludência social e a expulsão ilegal e ilegítima, de<br />

pequenos produtores, posseiros e indígenas, sobretudo fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s no fato de que a maioria destes,<br />

como sempre foi comum no ordenamento agro-fundiário brasileiro, não dispunham <strong>da</strong> titulação<br />

legal <strong>da</strong>s terras que possuíam ou ocupavam - embora detivessem, legitimamente, o direito real<br />

de posse sobre estas.<br />

Este direito é que foi, ilegalmente, esbulhado pelos ver<strong>da</strong>deiros processos de grilagem<br />

especializa<strong>da</strong>, praticados, inclusive, diretamente pelo próprio “Poder Público”.<br />

Como em nenhum outro momento do passado histórico, desde o período colonial, a<br />

legitimação <strong>da</strong>s terras possuí<strong>da</strong>s efetivou-se de forma relevante; e como os atos praticados pelas<br />

autori<strong>da</strong>des fundiárias, durante o período do regime militar, foram, e continuam sendo,<br />

juridicamente questionáveis - por ferirem preceitos constitucionais e princípios elementares do<br />

Direito Administrativo, que afirma que a nenhum servidor público é permitido praticar qualquer<br />

ato que não os expressamente delimitados em Lei - pode-se concluir que as terras brasileiras<br />

continuam, em sua maior ou mais relevante parte, públicas.<br />

São “proprie<strong>da</strong>des”, juridicamente, questionáveis.<br />

9


INTRODUÇÃO<br />

No Brasil, onde as terras são, originalmente, públicas, a sua incorporação ao<br />

processo de produção social não prescindiu <strong>da</strong> transferência do seu domínio para a<br />

iniciativa priva<strong>da</strong>. Assim, uma dimensão relevante para a análise <strong>da</strong> estrutura agrária<br />

brasileira, refere-se à institucionalização do processo de reconhecimento e legitimação<br />

<strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> territorial rural pelo Estado. Trata-se de um processo, de fato, de<br />

privatização <strong>da</strong>s terras públicas: de transferência, para a esfera priva<strong>da</strong>, do domínio<br />

sobre um território que nasceu público. Este é exatamente o caso do Brasil que está<br />

sendo estu<strong>da</strong>do neste trabalho.<br />

Como afirma Hely Lopes Meirelles:<br />

“No Brasil to<strong>da</strong>s as terras foram, originalmente públicas, por pertencerem à<br />

nação portuguesa, por direito de conquista. Depois passaram ao Império e à<br />

República, sempre como domínio do Estado. A transferência <strong>da</strong>s terras<br />

públicas para os particulares se deu paulatinamente, por meio de concessões<br />

de sesmarias e de <strong>da</strong>tas (instituto sesmarial), compra e ven<strong>da</strong>, permuta e<br />

legitimação de posses (Lei 601). Daí a regra de que to<strong>da</strong> terra sem título de<br />

proprie<strong>da</strong>de particular é de domínio público. 1 ”<br />

Apenas cabe acrescentar, que a exigência legal, refere-se ao título legítimo,<br />

portanto, não a qualquer título. Este problema, que é central a este estudo, é tratado de<br />

forma objetiva nos diversos capítulos, que se ocupam de momentos diferentes <strong>da</strong><br />

Política Fundiária implementa<strong>da</strong> no Brasil.<br />

Neste contexto, a análise <strong>da</strong> dimensão jurídico-política assume uma relevância<br />

específica. A importância e eficácia concretas <strong>da</strong> dimensão jurídica, política e<br />

ideológica é enfatiza<strong>da</strong>, neste trabalho, por se entender que essa dimensão, geralmente<br />

conceitua<strong>da</strong> como "superestrutural", não pode ser reduzi<strong>da</strong> à condição de mero<br />

"reflexo" <strong>da</strong> "base econômica", sem influência efetiva sobre as condições de<br />

sociabili<strong>da</strong>de. Muito pelo contrário. O debate acerca <strong>da</strong> problemática <strong>da</strong><br />

"determinação em última instância" não caberia neste trabalho. Por isto, apenas se<br />

procura aqui definir claramente a posição teórica que será adota<strong>da</strong>. Concor<strong>da</strong>-se, neste<br />

contexto, com a seguinte perspectiva, defendi<strong>da</strong> por Sedi Hirano:<br />

1 MEIRELLES, 1971, p. 447. Grifos nossos.<br />

10


"em suma, o que afirmamos reitera<strong>da</strong>mente é que as estruturas ideológicas e<br />

jurídico-políticas não podem ser desqualifica<strong>da</strong>s na análise <strong>da</strong> constituição <strong>da</strong><br />

formação social(... ). 2 "<br />

É nesse sentido que é analisado, neste trabalho, o problema específico <strong>da</strong>s<br />

políticas fundiárias propostas e postas em prática no Brasil: Enquanto respostas<br />

específicas aos problemas agrários objetivos, gestados em distintas conjunturas, desde o<br />

seu descobrimento. No sentido, portanto, de que formam uma totali<strong>da</strong>de dinâmica, em<br />

movimento, cujas múltiplas articulações e determinações, antes de serem, apenas,<br />

subsumi<strong>da</strong>s, necessitam ser esclareci<strong>da</strong>s. Analisa<strong>da</strong>s.<br />

Busca-se esclarecer os instrumentos e mecanismos, sobretudo jurídicos e<br />

institucionais, através dos quais o Estado procurou regular e imprimir sua marca aos<br />

processos concretos de ocupação e exploração do território brasileiro. Trata-se,<br />

portanto, de um amplo e complexo processo de privatização territorial, cujas<br />

especifici<strong>da</strong>des necessitam ser investiga<strong>da</strong>s objetivamente.<br />

Este processo de privatização de terras, necessariamente mediado por iniciativas<br />

do Estado - no campo jurídico, administrativo econômico, etc. - assumiu características<br />

distintas e implicou situações diversas, conforme os diferentes momentos e conjunturas<br />

históricas, econômicas, sociais, políticas, jurídicas e culturais, entre outras igualmente<br />

relevantes, vivi<strong>da</strong>s ou enfrenta<strong>da</strong>s pelo Brasil, desde as suas origens coloniais. E neste<br />

sentido, que a análise do processo de alienação de terras públicas e de sua legitimação,<br />

poderá se constituir numa contribuição relevante ao estudo <strong>da</strong> questão agrária brasileira.<br />

Esta é a contribuição que se espera oferecer com o presente trabalho.<br />

Atualmente, quando mais uma vez, a necessi<strong>da</strong>de de realização <strong>da</strong> reforma<br />

agrária é coloca<strong>da</strong> na ordem do dia, o problema <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> rural, no Brasil,<br />

é reposto de forma contundente.<br />

Em primeiro lugar, porque o pressuposto fun<strong>da</strong>mental, reitera<strong>da</strong>mente colocado<br />

pelas autori<strong>da</strong>des do Estado, como restritivo à realização <strong>da</strong> reforma agrária, refere-se<br />

aos “custos elevados” implicados nos processos de desapropriação. Desapropriação<br />

esta, assumi<strong>da</strong>, aprioristicamente, como sua condição necessária, fun<strong>da</strong>mental,<br />

inevitável.<br />

Em segundo lugar, porque a resistência oposta ao processo de reforma agrária,<br />

por grupos autodenominados de “ruralistas”, fortemente organizados e ativos<br />

politicamente, tem levado o Estado e, às vezes, a opinião pública, à aceitação do falso<br />

pressuposto de que a maioria, senão, to<strong>da</strong>s as terras ocupa<strong>da</strong>s no País, são,<br />

efetivamente, proprie<strong>da</strong>des priva<strong>da</strong>s legítimas. Neste caso, representando, a reforma<br />

agrária, antes de mais na<strong>da</strong>, um grave atentado à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, que é um dos<br />

pilares <strong>da</strong> ordem econômica nacional, assegurado pela Constituição Federal.<br />

Este estudo, que realiza uma ampla e cui<strong>da</strong>dosa revisão e análise dos processos<br />

de alienação, apossamento e legitimação <strong>da</strong>s terras públicas no Brasil, recuando aos<br />

primórdios do seu descobrimento e avançando até a aprovação do Estatuto <strong>da</strong> Terra, em<br />

novembro de 1964, e sua implementação pelos Governos Militares, questiona, com<br />

veemência, estes dois pressupostos.<br />

Para consubstanciar este questionamento, fun<strong>da</strong>menta-se, por um lado, no<br />

levantamento e análise objetivos <strong>da</strong>s principais legislações conti<strong>da</strong>s nos ordenamentos<br />

2 HIRANO, 1988, p.47.<br />

11


jurídico e fundiário brasileiros, (e portugueses, referentes ao período Colonial) vigentes<br />

em diferentes momentos <strong>da</strong> história agrária do país, e através dos quais, o Estado<br />

regulamentou e conduziu o referido processo de privatização territorial. Por outro lado,<br />

analisa-se, <strong>da</strong> mesma forma, o processo concreto de apossamento e ocupação <strong>da</strong>s terras<br />

públicas e as respectivas iniciativas do Estado, para efetivar o seu reconhecimento legal.<br />

Estas análises são complementa<strong>da</strong>s pelo estudo de determina<strong>da</strong>s estatísticas referentes à<br />

distribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> utilização <strong>da</strong>s terras apropria<strong>da</strong>s e dos movimentos<br />

demográficos, especificamente em relação ao período do Regime Militar.<br />

Com base nestas análises, argumenta-se, nesta pesquisa, e contrariamente aos<br />

pressupostos citados acima, no sentido de que a alienação <strong>da</strong>s terras públicas brasileiras,<br />

tanto através <strong>da</strong>s concessões, inicialmente postas em prática pela Coroa Portuguesa,<br />

quanto pelas demais formas de apropriação e legitimação de posses, que se lhes<br />

seguiram, fun<strong>da</strong>ram-se, de modo relevante, no privilégio, quanto à alienação; e na<br />

ilegali<strong>da</strong>de, quanto aos registros. Trata-se, por conseguinte, neste sentido específico, de<br />

construir e de defender a hipótese de que são processos de apropriação e legitimação<br />

privilegia<strong>da</strong>s.<br />

Por outro lado, os processos de legalização e registros dos imóveis rurais em<br />

poder de particulares - sobretudo no que se refere à grandes áreas -, na medi<strong>da</strong> em que,<br />

na maioria absoluta dos casos, se furtaram ao cumprimento <strong>da</strong>s formali<strong>da</strong>des legalmente<br />

sanciona<strong>da</strong>s - especialmente, desde a Lei de Terras de 1850 - são juridicamente<br />

questionáveis.<br />

Estas posições e hipóteses, tais como defendi<strong>da</strong>s neste trabalho têm, de<br />

imediato, pelo menos, duas implicações importantes:<br />

A primeira refere-se ao fato de que os alegados custos com “desapropriação”<br />

para fins de reforma agrária, são ampla e objetivamente questionáveis. Poderão estar,<br />

com certeza, infinitamente abaixo <strong>da</strong>s estimativas do Governo, se este levar em<br />

consideração que boa parte <strong>da</strong>s terras ocupa<strong>da</strong>s priva<strong>da</strong>mente no País, continuam<br />

públicas, logo não implicando, necessariamente, custos com indenização territorial.<br />

Quando muito, poderão implicar, apenas - se estas posses gozarem do benefício <strong>da</strong><br />

“boa-fé” e forem efetivamente explora<strong>da</strong>s - a indenização de possíveis benfeitorias<br />

úteis, e necessárias. E nos casos <strong>da</strong>s posses mansas e pacíficas, explora<strong>da</strong>s diretamente<br />

pelas famílias que nelas residem, nos termos <strong>da</strong> legislação em vigor, cabe ao Estado<br />

legitimá-las, fornecendo os respectivos títulos de proprie<strong>da</strong>de. Neste caso, a legitimação<br />

destas posses seria parte relevante do próprio processo de reforma agrária que se<br />

pleiteia. Entretanto, como será visto nos diversos capítulos deste trabalho,<br />

especialmente nos capítulos 4 e 5 que se ocupam <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> Política Fundiária<br />

implementa<strong>da</strong> pelos Governos Militares, exatamente estes casos foram,<br />

contraditoriamente, penalizados, o que dificultou, ain<strong>da</strong> mais, qualquer alternativa ao<br />

desenvolvimento de uma reforma agrária efetiva no País.<br />

No caso contrário, nem isto. Porque ao Executivo não cabe indenizar à terceiros<br />

por terras devolutas, que, “ipso facto”, pertencem ao Estado, sendo, ao contrário, dever<br />

de ofício do Poder Público, promover as respectivas ações discriminatórias para dirimir<br />

estas dúvi<strong>da</strong>s, antes de qualquer iniciativa no âmbito indenizatório.<br />

Desta forma, os “custos de desapropriação para fins de Reforma Agrária”<br />

poderão, de fato, ser infinitamente inferiores aos que são estimados e, portanto, a<br />

possibili<strong>da</strong>de de execução <strong>da</strong> Reforma poderá ser amplamente viável e possível, ao<br />

12


contrário do que tem sido argüido pelos seus executores ou opositores. Porque, não se<br />

trata, no caso, nem sequer de se argüir as formas de pagamento <strong>da</strong>s indenizações, mas,<br />

se elas são efetivamente devi<strong>da</strong>s. No caso em que forem devi<strong>da</strong>s, caberão as<br />

indenizações, que devem ser pagas na forma legalmente estabeleci<strong>da</strong>.<br />

A segun<strong>da</strong> implicação que pode ser retira<strong>da</strong> <strong>da</strong>s análises realiza<strong>da</strong>s nesta<br />

pesquisa, refere-se ao fato de que a legali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des rurais, sobretudo<br />

quando se referem à grandes áreas - independentemente de serem ou não produtivas - é,<br />

juridicamente, questionável. Este fato, que será evidenciado neste estudo de forma<br />

efetiva e exaustiva, reforça a asserção anterior.<br />

Como registra Hely Lopes Meirelles 3 , entre outros juristas e estudiosos <strong>da</strong><br />

questão fundiária consultados na realização deste trabalho, as terras brasileiras são,<br />

originalmente, públicas. Sendo assim, uma dimensão relevante no estudo <strong>da</strong> questão<br />

agrária, que necessita ser contempla<strong>da</strong> de forma específica, refere-se ao problema <strong>da</strong><br />

legitimi<strong>da</strong>de dos processos de privatização <strong>da</strong>s terras agrícolas do País. Trata-se,<br />

portanto, de analisar o problema jurídico e concreto <strong>da</strong> transferência, para particulares,<br />

do domínio sobre terras, cuja proprie<strong>da</strong>de era, originalmente, pública. E <strong>da</strong>s condições<br />

concretas em que esses processos foram implementados. Esta é a proposta de estudo<br />

desenvolvi<strong>da</strong> nesta pesquisa.<br />

A dimensão de legitimi<strong>da</strong>de do processo de alienação <strong>da</strong>s terras públicas é<br />

referi<strong>da</strong>, neste estudo, em relação às formas institucionais específicas - jurídicas e<br />

concretas - através <strong>da</strong>s quais o Estado, em diferentes momentos <strong>da</strong> história do país,<br />

consentiu, ou impediu, a aquisição ou o reconhecimento legal <strong>da</strong> ocupação particular, de<br />

terras do seu patrimônio, procurando regulamentá-las.<br />

É preciso não perder de vista, entretanto, que o reconhecimento legal <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> rural, pelo Estado, envolve, necessariamente, processos sociais e de<br />

sociabili<strong>da</strong>de, que se materializam na inclusão, ou excludência, de determina<strong>da</strong>s<br />

cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> população em relação à proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra. É neste nível que se situa, ou<br />

engendra-se, a apropriação e a legitimação privilegia<strong>da</strong>s.<br />

Trata-se, portanto, de analisar as formas e meios jurídicos, institucionais e<br />

administrativos concretos, através dos quais, o Estado buscou, não apenas reconhecer e<br />

assegurar o acesso à proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra e sua respectiva legalização formal, para<br />

determina<strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s sociais <strong>da</strong> população. Porque este processo significou,<br />

igualmente, a negação deste mesmo direito para um amplo conjunto <strong>da</strong> população que,<br />

desde os primeiros momentos <strong>da</strong> colonização e durante todo o processo de consoli<strong>da</strong>ção<br />

<strong>da</strong> ocupação territorial do País, havia-se alojado, com ou sem o consentimento do<br />

Estado, em pequenas posses, destina<strong>da</strong>s à agricultura de subsistência, utilizando-se do<br />

trabalho <strong>da</strong> própria família.<br />

Foi desta forma, historicamente constituí<strong>da</strong>, que, pela instituição de um conjunto<br />

de instrumentos administrativos e de procedimentos jurídicos, ou pela simples omissão<br />

do Estado diante <strong>da</strong> violência priva<strong>da</strong>, pratica<strong>da</strong> reitera<strong>da</strong>mente pelos grandes<br />

detentores de terras contra os pequenos posseiros e indígenas, que estes foram,<br />

paulatina, mas sistematicamente, transformados em “invasores” e “intrusos”, nas terras<br />

que secularmente ocupavam e nas quais sempre viveram e trabalharam. Até serem<br />

expulsos.<br />

3 Op. cit.<br />

13


Por uma questão de necessi<strong>da</strong>de metodológica e com o objetivo de facilitar o<br />

estudo comparativo destes processos, tais como implementados em diferentes<br />

momentos e conjunturas <strong>da</strong> história agrária do Brasil, privilegiou-se a análise <strong>da</strong> Política<br />

Fundiária posta em prática no período do Regime Militar (1964-1984).<br />

Neste período a alienação de terras devolutas e a legitimação de to<strong>da</strong> a sorte de<br />

grandes ocupações ou posses, foram amplamente incentiva<strong>da</strong>s e pratica<strong>da</strong>s pelo Estado,<br />

com base na regulamentação estabeleci<strong>da</strong> pelo Estatuto <strong>da</strong> Terra, de 1964, que, depois<br />

do Regulamento de 1854, referente à Lei 601 de 1850, foi a grande tentativa do Estado<br />

brasileiro de assumir a iniciativa do controle efetivo na condução <strong>da</strong> Política Fundiária<br />

do País, muito especialmente, no que se referia à alienação de terras devolutas e à<br />

legitimação de posses em domínio particular. Na ver<strong>da</strong>de foi a segun<strong>da</strong> tentativa, após a<br />

Independência Nacional, de subordinar a alienação de terras devolutas ao processo mais<br />

amplo de desenvolvimento <strong>da</strong> economia nacional. A primeira foi em 1850.<br />

E também, porque foi exatamente neste período, que o processo de privatização<br />

de terras públicas e de legitimação de grandes áreas de terras devolutas em poder de<br />

particulares, assumiu, do ponto de vista aqui defendido - de alienação e legitimação<br />

privilegia<strong>da</strong>s - sua dimensão de maior radicali<strong>da</strong>de, especialmente se comparado aos<br />

demais momentos <strong>da</strong> história fundiária brasileira.<br />

O Estatuto <strong>da</strong> Terra foi, depois do fracasso na implementação <strong>da</strong> Política<br />

Fundiária do Império, tal como posta no Regulamento <strong>da</strong> Lei 601/1850, a primeira<br />

tentativa sistemática e legalmente constituí<strong>da</strong> de regulamentar o processo de alienação<br />

de terras públicas e de legitimação <strong>da</strong>s posses sobre estas. A Lei 4.504, de 30 de<br />

novembro de 1964, referia-se à regulamentação do imperativo Constitucional, de 1946,<br />

de permitir “a justa distribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de com igual oportuni<strong>da</strong>de para<br />

todos”. Entretanto, era muito mais do que isto. A aprovação do Estatuto <strong>da</strong> Terra,<br />

sobretudo se se tiver em consideração a conjuntura em que se materializou, significava<br />

colocar, juridicamente, nas mãos do Poder Executivo, a plena possibili<strong>da</strong>de de dispor de<br />

to<strong>da</strong>s as terras devolutas do país, inclusive permitindo, pelo instituto <strong>da</strong><br />

“desapropriação por necessi<strong>da</strong>de social e para fins de reforma agrária” a<br />

intervenção do Estado na esfera <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des priva<strong>da</strong>s legítimas e, em determina<strong>da</strong>s<br />

circunstâncias, nas terras devolutas dos Estados e Municípios.<br />

Essas são as razões metodológicas e objetivas, que explicam a ênfase <strong>da</strong> análise<br />

neste período. Este procedimento foi fun<strong>da</strong>mental para permitir o estudo comparativo<br />

do processo de alienação ou ocupação de terras públicas noutros períodos <strong>da</strong> história do<br />

Brasil, sem o qual seria improfícua qualquer avaliação. Desta forma, buscou-se ampliar<br />

as possibili<strong>da</strong>des de compreensão do processo e realçar suas respectivas especifici<strong>da</strong>des.<br />

Também porque era necessário investigar se, em algum outro momento <strong>da</strong> história<br />

agrária brasileira, o processo de alienação e legitimação de terras públicas, foi efetiva e<br />

legalmente realizado de forma relevante. A análise feita nos diversos capítulos<br />

evidenciaram que a resposta a esta pergunta é negativa.<br />

Considerando-se, que desde os primeiros momentos do processo de colonização,<br />

o Estado Português sempre teve o cui<strong>da</strong>do de apenas ceder a "posse útil" e não o<br />

domínio sobre as terras agrícolas, a formação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> territorial rural no<br />

Brasil, sempre esteve marca<strong>da</strong> pela problemática do privilégio, em sua concessão, e <strong>da</strong><br />

ilegali<strong>da</strong>de, em sua confirmação ou titulação. Ou seja, o processo de legitimação <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> territorial, que só assume a forma moderna de proprie<strong>da</strong>de absoluta<br />

14


<strong>da</strong> terra (proprie<strong>da</strong>de burguesa) a partir <strong>da</strong> promulgação <strong>da</strong> Lei 601 de 1850, sempre<br />

esteve eivado de impedimentos políticos e, sobretudo jurídicos e burocráticos. Como<br />

Registra oportunamente Costa Porto,<br />

"(...)talvez a linguagem <strong>da</strong>s cartas dos donatários por esta<br />

concepção de que el-Rei cedera direitos dominiais sobre o<br />

solo, quando, na ver<strong>da</strong>de, se limitara a outorgar 'poderes<br />

políticos', largos, sim, 'direitos majestáticos quase absolutos'<br />

mas de nenhum modo, direitos sobre o solo. 4 "<br />

Tratavam-se <strong>da</strong>s concessões de posse com cláusulas de resolubili<strong>da</strong>de, ou seja,<br />

que a qualquer momento poderiam ser reverti<strong>da</strong>s ao domínio <strong>da</strong> Coroa. Raymundo<br />

Faoro registra magistralmente o sentido profundo, político e econômico desse instituto<br />

jurídico:<br />

"Os forais - a carta foral - , pacto entre o rei e o povo,<br />

asseguravam o predomínio do soberano, o predomínio já em<br />

caminho para o absolutismo, ao estipularem que a terra não teria<br />

outro senhor senão o rei. 5 "<br />

Não se tratavam, portanto de proprie<strong>da</strong>des priva<strong>da</strong>s no sentido liberal, de<br />

proprie<strong>da</strong>de absoluta, perspectiva esta, que seria aberta, apenas, com a aprovação <strong>da</strong> Lei<br />

de Terras. Donde a sua relevância para a análise dessa problemática.<br />

Esses impedimentos ao processo de reconhecimento real (confirmação de<br />

sesmarias) e, posteriormente, de reconhecimento legal (legalização ou revali<strong>da</strong>ção, nos<br />

termos <strong>da</strong> Lei 601 de 1850, sobretudo), em última análise, apenas serão ultrapassados<br />

em circunstâncias muito especiais e por determinados grupos muito particulares:<br />

geralmente os mais próximos (social, política ou economicamente) aos círculos do<br />

poder 6 . Esta situação sempre facilitou, historicamente, a ação destes grupos em<br />

detrimento <strong>da</strong> maioria <strong>da</strong> população rural. Neste sentido - e esta é uma <strong>da</strong>s<br />

particulari<strong>da</strong>des que se pretende evidenciar neste estudo - e mesmo tendo em estrita<br />

consideração o conceito de "Estado de Direito", no qual o processo de legitimação <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de territorial não prescinde do atendimento <strong>da</strong>s formali<strong>da</strong>des legais e de<br />

requisitos juridicamente instituídos, tem-se, forçosamente que se concluir, que a<br />

proprie<strong>da</strong>de fundiária, no Brasil, sempre se construiu, historicamente, como proprie<strong>da</strong>de<br />

não-absolutiza<strong>da</strong> (até 1850) e, na melhor <strong>da</strong>s hipóteses, de legitimação privilegia<strong>da</strong>,<br />

desde sempre.<br />

É neste sentido que aqui se entende que a proprie<strong>da</strong>de fundiária no Brasil, do<br />

ponto de vista do Direito, mas, também <strong>da</strong> praxis social, sempre esteve eiva<strong>da</strong> de<br />

privilégio e <strong>da</strong> ilegitimi<strong>da</strong>de. Assim, tratam-se, ain<strong>da</strong> hoje, de proprie<strong>da</strong>des<br />

juridicamente questionáveis<br />

Pode-se afirmar que as Políticas Fundiárias postas em prática no Brasil, por um<br />

lado, e o processo de avanço indiscriminado e extra-legal, <strong>da</strong>s posses, por outro,<br />

geraram uma espécie de "estado hobbesiano" ao nível <strong>da</strong> prática, fenômeno este,<br />

4 COSTA PORTO (S.d., p. 21). Grifos nossos.<br />

5 FAORO (1996, p.7).<br />

6 Esta é, aliás, uma <strong>da</strong>s críticas fun<strong>da</strong>mentais de Wakefield ao processo de concessão de terras nas colônias, contra o<br />

qual ele propunha a ven<strong>da</strong> de terras pelo Estado, como será visto no capítulo 2.<br />

15


sobretudo agravado, no período compreendido entre 1822 e 1850, conhecido como o<br />

"império <strong>da</strong>s posses". Este período corresponde, na história fundiária do Brasil, ao <strong>da</strong><br />

formação e consoli<strong>da</strong>ção definitiva do latifúndio, e está na base <strong>da</strong> formação <strong>da</strong>s<br />

oligarquias rurais, possibili<strong>da</strong>de até então ve<strong>da</strong><strong>da</strong>, <strong>da</strong>do o próprio caráter <strong>da</strong> legislação<br />

agrária <strong>da</strong>s sesmarias e <strong>da</strong> política econômica de feição absolutista e mercantil de<br />

Portugal 7 . O curioso é que essa espécie de "estado hobbesiano" reaparece com todo o<br />

seu vigor em consonância com a implementação <strong>da</strong> Política Fundiária do pós-1964.<br />

Foi no período de 1822 a 1850 quando, tendo sido suspensa a concessão de<br />

sesmarias (julho de 1822) e, "decaí<strong>da</strong>", com a Independência do Brasil, em setembro<br />

<strong>da</strong>quele ano, to<strong>da</strong> a legislação portuguesa, por um lado, e não tendo sido aprova<strong>da</strong><br />

nenhuma outra regulamentação do acesso à proprie<strong>da</strong>de rural, por outro lado, que<br />

grassaram, sobretudo, as grandes posses, muito mais que as pequenas. Entretanto, se por<br />

um lado, a ausência de regulamentação sobre a proprie<strong>da</strong>de territorial facilitou o avanço<br />

<strong>da</strong>s posses, por outro, esta mesma ausência impossibilitava a legalização <strong>da</strong>s ocupações.<br />

Ou seja, não permitia, formal e juridicamente, a formação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de legítima. O<br />

problema assim criado pelo desenvolvimento <strong>da</strong>s posses extra-legais, ficará sem solução<br />

até 1850. Exatamente o equacionamento deste problema <strong>da</strong> legitimação<br />

(reconhecimento pelo Estado) dessas posses, além de outros problemas gestados no<br />

período anterior, estará no cerne do debate legislativo <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1840, que terá como<br />

resultado a aprovação <strong>da</strong> Lei de Terras de 1850.<br />

O relevante neste processo, como se pretende evidenciar neste estudo e<br />

comparar com a situação do pós-1964, é que, apesar <strong>da</strong>s alternativas legais e políticas<br />

abertas pela Lei 601, - que diga-se de passagem, mantinha o mesmo caráter de<br />

legitimação privilegia<strong>da</strong> e excludente anterior - sua aplicabili<strong>da</strong>de foi sistematicamente<br />

sabota<strong>da</strong>, tanto no que se referia à arreca<strong>da</strong>ção e à discriminação de terras devolutas,<br />

quanto no que tocava à política tributária (inviabiliza<strong>da</strong>), quanto ain<strong>da</strong>, o que é mais<br />

relevante, à legitimação e ao registro <strong>da</strong>s terras que se encontravam no patrimônio<br />

privado e poderiam, obedeci<strong>da</strong>s as formali<strong>da</strong>des legais estabeleci<strong>da</strong>s, ser legaliza<strong>da</strong>s e<br />

titula<strong>da</strong>s. O outro fracasso na implementação <strong>da</strong> Lei 601, referia-se ao fato <strong>da</strong> "ven<strong>da</strong><br />

de terras em hasta pública" que não se materializou como era esperado, por motivos<br />

que serão oportunamente analisados neste estudo 8 .<br />

Não se tratava, neste contexto, de se ter transformado a Lei 601 de 1850 em letra<br />

morta, como se defenderá neste trabalho. Trata-se, antes, de se assegurar, manter e<br />

ampliar os privilégios de legitimação pelas vias <strong>da</strong> pressão priva<strong>da</strong>, por um lado e, por<br />

outro, <strong>da</strong> tentativa, sempre presente na história política do Brasil, de subordinar aos<br />

interesses privados as ações do aparelho burocrático do Estado. Esse processo sempre<br />

implicou a articulação entre a violência priva<strong>da</strong> e a manipulação <strong>da</strong>s ações <strong>da</strong><br />

burocracia pública em benefício <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s privilegia<strong>da</strong>s, então já ciosas, embora<br />

ilegal e ilegitimamente, do domínio territorial, e não apenas de posses condiciona<strong>da</strong>s,<br />

como anteriormente a 1822. Por isso, o próprio processo de legalização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de<br />

7 A respeito <strong>da</strong> discussão detalha<strong>da</strong> desta dimensão fun<strong>da</strong>mental do desenvolvimento e <strong>da</strong> formação econômica,<br />

social, cultural e política do Brasil, que fugiria aos objetivos desta pesquisa, ver os excelentes trabalhos de FAORO<br />

(1996) e NOVAES (1978). Ver, ain<strong>da</strong>, os estudos clássicos de Caio Prado Júnior (1977 e 1979), publicados no final<br />

<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1930 e durante os anos 40; a História Econômica de Roberto Simonsen (1978) e os trabalhos pioneiros<br />

de Nestor Duarte (1939), Malheiro Dias (1924), entre muitos outros. A respeito, especificamente <strong>da</strong> problemática <strong>da</strong>s<br />

sesmarias em Portugal, ver, especialmente o trabalho de Virgínia Rau (1982).<br />

8 Ver o capítulo 2.<br />

16


priva<strong>da</strong> moderna, burguesa, no Brasil é, na sua origem, eivado do privilégio, <strong>da</strong><br />

ilegali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> excludência.<br />

É tendo como referência esse contexto e sentido que, neste trabalho, defende-se<br />

a hipótese de que há uma determina<strong>da</strong> lógica, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na excludência e no privilégio,<br />

que vem presidindo todo o processo de formação, desenvolvimento e legitimação <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de territorial rural no Brasil. Esse processo assume seu caráter efetivo de<br />

absolutização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de e seus meandros fun<strong>da</strong>mentais de violência ilegítima, a<br />

partir <strong>da</strong> promulgação <strong>da</strong> Lei de Terras de 1850 que, ao estabelecer critérios legais para<br />

o processo de privatização, típicos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de burguesa, criou, juridicamente, o<br />

divisor de águas, que possibilitava a separação entre o que era e o que não era legítimo,<br />

no âmbito <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária. Portanto, ao persistirem as ações de incorporação<br />

de áreas (públicas ou não) ao domínio de terceiros, fora dos critérios legalmente<br />

sancionados pelo Estado, pode-se caracterizar tais ações como ilegítimas. De igual<br />

forma, as proprie<strong>da</strong>des gesta<strong>da</strong>s nestas circunstâncias são, também, ilegítimas. Esse é o<br />

contexto <strong>da</strong> argumentação que aqui será desenvolvi<strong>da</strong>, fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> e defendi<strong>da</strong>.<br />

Com o advento do Estatuto <strong>da</strong> Terra, na segun<strong>da</strong> e relevante tentativa de<br />

enquadramento legal do problema fundiário brasileiro após a Independência, em 1964, a<br />

situação fundiária encontra<strong>da</strong> permanecia caótica. Aliás, uma <strong>da</strong>s justificativas de sua<br />

promulgação era exatamente o reconhecimento desta situação 9 . As medi<strong>da</strong>s propostas<br />

nesta Lei e nos atos administrativos que a complementaram, aparentemente indicavam<br />

alternativas importantes para o equacionamento de inúmeros problemas, especialmente<br />

no campo <strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> superação <strong>da</strong> estrutura agrária concentra<strong>da</strong><br />

e excludente que persistia no País.<br />

Diz-se aparentemente, posto que, como a Lei 601 de 1850, o Estatuto <strong>da</strong> Terra<br />

de 1964, também era uma lei de proprie<strong>da</strong>de, porém os seus resultados implicaram<br />

numa radicali<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong> maior no que toca aos processos de legitimação privilegia<strong>da</strong> e<br />

excludência social. Neste sentido, a Lei 4.504/1964 não realizou nenhuma Reforma<br />

Agrária, ou, como concluiu Octávio Ianni, realizou, na prática, uma contra-reforma<br />

agrária 10 . Se o regime militar operou uma profun<strong>da</strong> transformação na estrutura <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de territorial no Brasil ou não, não é o aspecto mais fun<strong>da</strong>mental desta<br />

questão. E é óbvio que foi opera<strong>da</strong> uma transformação importante na estrutura agrária.<br />

Só que uma transformação que significou, ao contrário do que era, aparentemente,<br />

proposto na Mensagem 33 e no Estatuto <strong>da</strong> Terra, a consagração <strong>da</strong> legitimação<br />

privilegia<strong>da</strong> e <strong>da</strong> excludência. Embora seja forçoso admitir que as medi<strong>da</strong>s postas em<br />

prática, possibilitaram mu<strong>da</strong>nças relevantes do âmbito <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de rural, <strong>da</strong><br />

produtivi<strong>da</strong>de do trabalho agrícola e <strong>da</strong> própria diversificação <strong>da</strong> cesta de produtos <strong>da</strong><br />

agricultura brasileira.<br />

Para aqueles que concor<strong>da</strong>m com as teses do senhor Roberto Campos 11 no<br />

sentido de que o desenvolvimento econômico exige, como pré-condição,<br />

necessariamente, alguma forma de autoritarismo e violência antidemocrática, a Política<br />

9 Vide Mensagem 33 do Presidente General Humberto de Alencar Castelo Branco, analisa<strong>da</strong> em pormenor no<br />

capítulo 4. (BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Brasília: 1964).<br />

10 Ou seja, reforçando a alienação de terras públicas e a legitimação privilegia<strong>da</strong> e excludente, inversamente ao que,<br />

aparentemente, era proposto na Mensagem 33. Cf. IANNI (1979).<br />

11 Vide SIMONSEN e CAMPOS (1976). Especialmente o Capítulo X, pp. 223 a 257, onde essas teses são<br />

defendi<strong>da</strong>s por Roberto Campos, ao relacionar as “premissas cruéis” que, segundo ele, acompanharam sempre o<br />

desenvolvimento econômico.<br />

17


Fundiária do Regime Militar representou um grande avanço técnico. Caso contrário, há<br />

que se discutir as várias alternativas históricas possíveis. Neste rumo é que esta proposta<br />

de estudo é desenvolvi<strong>da</strong>. Discutir a questão do desenvolvimento econômico, na<br />

perspectiva de uma comparação com o desenvolvimento de um processo de<br />

legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial brasileira é o sentido mesmo deste trabalho.<br />

Por estas razões é que se considerou relevante a análise e recuperação, ain<strong>da</strong> que<br />

em suas linhas fun<strong>da</strong>mentais, dos diversos momentos e <strong>da</strong>s diferentes políticas de terras<br />

postas em prática no Brasil, desde o seu descobrimento até o Estatuto <strong>da</strong> Terra e sua<br />

implementação e resultados. Talvez por esta via seja possível contribuir para o debate e<br />

a crítica acerca <strong>da</strong> suposta legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s grandes proprie<strong>da</strong>des rurais do Brasil, cuja<br />

origem legal, é, geralmente pouco conheci<strong>da</strong>. E que, ain<strong>da</strong> assim, constitui-se em<br />

ver<strong>da</strong>deira muralha fantasmática a opor-se à reforma agrária no País.<br />

A análise desse amplo e complexo processo é realiza<strong>da</strong> nos diferentes capítulos<br />

deste estudo, na forma a seguir sumariza<strong>da</strong>:<br />

O capítulo 1 ocupa-se do estudo do período colonial, no qual o acesso às terras<br />

brasileiras subordinou-se ao instituto <strong>da</strong>s sesmarias. Discute, de forma sistemática, as<br />

transformações opera<strong>da</strong>s na implementação deste instituto na Colônia, em face <strong>da</strong>s<br />

especifici<strong>da</strong>des de sua situação econômica e política, o que explica os resultados<br />

contraditórios <strong>da</strong> implementação deste instrumento pelo Estado Português, quer fosse na<br />

Metrópole, onde consolidou, sobretudo, as pequenas proprie<strong>da</strong>des produtivas, quer<br />

fosse na Colônia, onde deu ensejo à formação de grandes proprie<strong>da</strong>des, nas quais<br />

permaneciam grandes áreas de terras ociosas 12 .<br />

Neste sentido, no capítulo 1 procura-se colocar em evidência, que este<br />

fenômeno de formação de grandes uni<strong>da</strong>des de exploração decorreu de algumas<br />

conjunturas específicas, presentes na Colônia, especialmente, nas etapas iniciais do<br />

processo de ocupação do território, quando era prioriza<strong>da</strong> a sua consoli<strong>da</strong>ção e defesa,<br />

contra ambições estrangeiras. Este processo implicava a necessi<strong>da</strong>de de assegurar-se as<br />

condições de reprodução econômica <strong>da</strong> colônia, o que significava estabelecer processos<br />

produtivos em larga escala, voltados para a realização no mercado mundial. Este fato<br />

está na origem <strong>da</strong> formação de uma estrutura agrária fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em grandes proprie<strong>da</strong>des e<br />

sustenta<strong>da</strong>s pelo trabalho escravo. É neste contexto que se pode compreender o<br />

privilégio embutido nas grandes concessões de sesmariais: elas exigiam, que o<br />

concessionário, mais do que simples títulos de nobreza, tivesse recursos para suportar o<br />

empreendimento 13 .<br />

O objetivo deste capítulo é levantar os pontos fun<strong>da</strong>mentais para o<br />

desenvolvimento <strong>da</strong>s análises ulteriores, ao apresentar, como base no estudo <strong>da</strong>s<br />

legislações e atos <strong>da</strong> Corte Portuguesa, por um lado, e em diversos trabalhos,<br />

especialmente, de Virgínia Rau, Cirne Lima, Roberto Simonsen, Prado Júnior e Costa<br />

Porto, citados, por outro, uma síntese do sentido fun<strong>da</strong>mental do processo de<br />

privatização <strong>da</strong>s terras brasileiras, tal como implícito no instituto <strong>da</strong>s sesmarias. A<br />

conclusão desta análise aponta para o fato, relevante e fun<strong>da</strong>mental, de que, se por um<br />

12 Ver a este respeito, especialmente, SIMONSEN (1978), LIMA (1954), COSTA PORTO (S.d.), GUIMARÃES<br />

(1981), RAU (1982), SMITH (1990), MEIRELLES (1991), entre muitos outros estudiosos dos quais alguns<br />

citaremos no decorrer deste trabalho.<br />

13 Especificamente a este respeito, ver os argumentos de PRA<strong>DO</strong> JR.(1975), SIMONSEN (1978) e GUIMARÃES<br />

(1981).<br />

18


lado, nascia, com a aplicação do instituto de sesmarias ao Brasil, o processo de<br />

concessão privilegia<strong>da</strong> de terras, por outro lado, não se configurava a transferência<br />

plena, absoluta, <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de sobre as terras concedi<strong>da</strong>s, que estavam sujeitas às<br />

cláusulas resolutivas. Assim, nesta etapa <strong>da</strong> história agrária brasileira, salvo algumas<br />

concessões que foram confirma<strong>da</strong>s pela Corte e não caíram, ulteriormente, em comisso,<br />

poucas foram as proprie<strong>da</strong>des efetivamente legitima<strong>da</strong>s.<br />

A legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, cuja origem pode ser encontra<strong>da</strong> neste<br />

período, apenas terá a possibili<strong>da</strong>de de realizar-se com a Lei 601, de 1850.<br />

Partindo <strong>da</strong>s conclusões do primeiro capítulo, no capítulo 2 busca-se a análise<br />

detalha<strong>da</strong> e objetiva do amplo processo de reestruturação <strong>da</strong>s relações de proprie<strong>da</strong>de,<br />

engendrados pela crise do sistema sesmarial, e, muito mais do que isto, pela crise <strong>da</strong><br />

transição para a Independência e consoli<strong>da</strong>ção do Estado Nacional, na nova conjuntura<br />

do desenvolvimento do capitalismo em escala mundial, em meados do século XIX.<br />

Iniciando a análise no contexto <strong>da</strong> ruptura institucional com a Metrópole e <strong>da</strong><br />

continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s relações com a economia mundial em sua condição de país<br />

independente, no capítulo 2 procura-se discutir o problema fundiário como parte<br />

importante de conjunturas e problemas de maior relevância e gravi<strong>da</strong>de: a manutenção<br />

<strong>da</strong> independência e uni<strong>da</strong>de nacionais, a consoli<strong>da</strong>ção do Estado, etc. Nesse contexto,<br />

são estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s as propostas de reestruturação <strong>da</strong> política fundiária e econômica, que<br />

vinham sendo coloca<strong>da</strong>s ao debate parlamentar desde 1821; especialmente no que se<br />

referia à suspensão <strong>da</strong>s concessões de sesmarias e a alternativa à implementação de um<br />

mercado de terras, estritamente associado à implementação de uma política específica<br />

de promoção <strong>da</strong> imigração estrangeira, particularmente fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s nas teses <strong>da</strong><br />

“colonização sistemática”, de Wakefield 14 , publica<strong>da</strong>s em 1834, visando à substituição<br />

gradual, mas sistemática, do trabalho escravo.<br />

Nesse sentido, é analisado o processo de promulgação <strong>da</strong> Lei 601 de 1850 e suas<br />

possíveis articulações com as teses <strong>da</strong> colonização sistemática, de Wakefield, enquanto<br />

uma alternativa à absolutização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> e implementação do trabalho<br />

livre na agricultura. O capítulo 2 conclui, com base na análise detalha<strong>da</strong> <strong>da</strong> Lei 601, do<br />

seu Regulamento, de 1854 e de suas implicações concretas ao nível <strong>da</strong> sua<br />

implementação, que a Política Fundiária e a tentativa de estruturação de um mercado de<br />

trabalho livre, formula<strong>da</strong>s inicialmente na déca<strong>da</strong> de 1840, foram subverti<strong>da</strong>s. Assim,<br />

persistiu, senão o processo de concessões privilegia<strong>da</strong>s, do antigo instituto sesmarial,<br />

certamente, o processo de apropriação privilegia<strong>da</strong> de terras públicas, fun<strong>da</strong>do nas<br />

posses. O <strong>da</strong>do novo, que é engendrado neste contexto, refere-se ao fato de que, ao<br />

determinar a proibição do apossamento de terras públicas, e ao condicionar a<br />

legitimação de posses e sesmarias em comisso, ao processo de registro, subordinado<br />

este às exigências de medição, demarcação, residência habitual e exploração efetiva <strong>da</strong><br />

terra, era cria<strong>da</strong>, objetivamente, a possibili<strong>da</strong>de legal para a caracterização do fenômeno<br />

<strong>da</strong>s apropriações, como legítimas ou não, conforme cumprissem ou não as exigências<br />

formalmente instituí<strong>da</strong>s.<br />

Será com base na análise destas condições, que a legitimi<strong>da</strong>de e legali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

proprie<strong>da</strong>des poderão ser, de modo objetivo - e juridicamente - questiona<strong>da</strong>s. Esses são<br />

os produtos mais evidentes do fracasso <strong>da</strong> Política Fundiária do Império, e que são<br />

14 Teses estas desenvolvi<strong>da</strong>s em WAKEFIELD (1967).<br />

19


her<strong>da</strong>dos pela República. Este período corresponde, na história fundiária no Brasil, ao<br />

de formação e consoli<strong>da</strong>ção definitiva do latifúndio; e está na base <strong>da</strong> formação <strong>da</strong>s<br />

oligarquias rurais, possibilita<strong>da</strong> pelo desenvolvimento do liberalismo conservador e<br />

derroca<strong>da</strong> do absolutismo mercantil na ex-colônia portuguesa.<br />

O capítulo 3 analisa esta herança. Coloca em evidência, com base no estudo<br />

cui<strong>da</strong>doso <strong>da</strong>s legislações agrárias e atos administrativos dos Governos do período que<br />

se estende de 1889 a 1964, que o problema <strong>da</strong> legitimação de posses é efetivamente<br />

posto em plano absolutamente secundário. Ao nível Federal, o Estado apenas apresenta<br />

algumas tentativas esporádicas e casuísticas, no sentido de regulamentar a utilização dos<br />

bens <strong>da</strong> União. Fica claramente documentado, neste capítulo, o fato de que o acesso às<br />

terras públicas brasileiras continuou amplamente entregue ao sabor <strong>da</strong>s ambições <strong>da</strong>s<br />

oligarquias estaduais, fato que vem a reforçar o caráter, não apenas do privilégio na<br />

apropriação, mas, sobretudo na titulação dos imóveis rurais. A regulamentação do<br />

processo de alienação e legitimação de terras públicas, sempre argüido neste período, é<br />

tão só, e apenas timi<strong>da</strong>mente, tentado em 1946.<br />

Nas conclusões deste capítulo evidência-se que, também neste período, o<br />

processo de apropriação e legitimação de terras públicas, no Brasil, não foi efetivamente<br />

enfrentado. Este fato é, sobremaneira, agravado no segundo pós-guerra, tanto pela<br />

implementação de políticas públicas objetivando a aceleração do desenvolvimento e<br />

integração nacionais, que ampliaram a especulação com terras em áreas, até então,<br />

pouco valoriza<strong>da</strong>s, como a região Centro-Oeste e Norte; como, por outro lado, pela<br />

nova face que passa a acompanhar a luta pela terra e pelas condições de trabalho, pela<br />

população excluí<strong>da</strong> <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial e dos meios de trabalho; população esta,<br />

que passa a organizar-se em ligas e sindicatos de trabalhadores rurais, para lutar em<br />

defesa de seus direitos, sistematicamente anulados.<br />

O capítulo 4 ocupa-se <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> Política Fundiária implementa<strong>da</strong> pelo<br />

Regime Militar. Partindo de uma análise <strong>da</strong> conjuntura que engendrou a conspiração,<br />

procura compreender o contexto em que o Estatuto <strong>da</strong> Terra é proposto e implementado.<br />

Analisa cui<strong>da</strong>dosa e objetivamente a Mensagem 33 e a Lei 4.504, buscando colocar em<br />

evidência que formam uma uni<strong>da</strong>de, na qual é apresentado um determinado Projeto de<br />

Política Fundiária e de Desenvolvimento Rural, claramente colocados e fun<strong>da</strong>mentados<br />

em determinado modelo de desenvolvimento econômico. Neste sentido, põe em<br />

evidência, com base no estudo objetivo, principalmente, <strong>da</strong> Mensagem 33, enquanto<br />

justificativa do projeto de lei de Estatuto <strong>da</strong> Terra, mas também de outros documentos<br />

oficiais, bem como de documentos de organizações liga<strong>da</strong>s aos trabalhadores rurais e<br />

outros, que o Projeto, então, encaminhado ao Congresso Nacional, o Estatuto <strong>da</strong> Terra,<br />

foi efetivamente implementado nos termos propostos pelas autori<strong>da</strong>des fundiárias do<br />

Governo, e que, portanto, é equivoca<strong>da</strong> a noção que parte do pressuposto de sua não<br />

realização.<br />

Ao contrário <strong>da</strong> leitura geralmente feita, especialmente no que se refere à<br />

Reforma Agrária, tal como exposta na Lei 4.504/64, esta pesquisa procura demonstrar<br />

que esta era concebi<strong>da</strong> no Estatuto <strong>da</strong> Terra, apenas como uma alternativa, entre outras,<br />

para a promoção do desenvolvimento econômico nacional. Na ver<strong>da</strong>de, a Reforma<br />

Agrária era concebi<strong>da</strong>, neste contexto, apenas com o objetivo de aliviar tensões sociais.<br />

Exatamente por esta razão pôde, efetivamente, ser reduzi<strong>da</strong> aos programas de<br />

assentamento, no bojo dos projetos de colonização. Entretanto, era esta a assim<br />

20


chama<strong>da</strong> “reforma agrária distributivista” posta no Estatuto. Ou seja, ao contrário do<br />

que geralmente é colocado, a análise feita neste trabalho evidencia que o Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra em nenhum momento incorporou uma real Reforma Agrária distributivista.<br />

Na ver<strong>da</strong>de, o objetivo explícito no Projeto de Desenvolvimento Rural<br />

representado pelo Estatuto <strong>da</strong> Terra, conforme se referia a Mensagem 33, do Governo<br />

Castelo Branco, era fun<strong>da</strong>mentado tão só na busca do aumento <strong>da</strong> produção e<br />

produtivi<strong>da</strong>de agropecuária, o que significava, para os teóricos deste modelo, o<br />

incentivo e apoio à formação e ao desenvolvimento de empresas rurais médias e,<br />

sobretudo grandes, nas quais, por suposto, haveria maior “eficiência” econômica. É<br />

neste contexto que, no capítulo 4, é apresenta<strong>da</strong> e defendi<strong>da</strong> a hipótese de que o Projeto<br />

de Desenvolvimento Rural dos Governos Militares, fun<strong>da</strong>-se no pressuposto <strong>da</strong><br />

necessi<strong>da</strong>de de se promover instrumentos de política agrícola que incentivassem a<br />

formação de médias e grandes empresas agropecuárias, por um lado e a formação de<br />

uma “classe média rural”, por outro. No âmbito deste modelo, a “reforma agrária” era<br />

pensa<strong>da</strong> apenas, e em última instância, como alternativa para acomo<strong>da</strong>r tensões e<br />

conflitos sociais graves. Esta a “reforma agrária” que, realmente implementaram. Isto<br />

era exatamente o que estava proposto, com clareza, no texto <strong>da</strong> Mensagem 33 e<br />

regulamentado no Estatuto <strong>da</strong> Terra. Esta foi a proposta efetivamente executa<strong>da</strong> pelos<br />

Governos Militares.<br />

Assim, o capítulo 4 busca aprofun<strong>da</strong>r as hipóteses fun<strong>da</strong>mentais defendi<strong>da</strong>s<br />

nesta Introdução. A análise objetiva dos “instrumentos de ação fundiária” e <strong>da</strong>s “formas<br />

de alienação de terras públicas”, implementados pelos Governos Militares, não deixa<br />

dúvi<strong>da</strong>s de que o processo de apropriação e legitimação privilegia<strong>da</strong>s, que vinha, desde<br />

longa <strong>da</strong>ta, estruturando-se na história agrária no Brasil, assume a sua forma mais<br />

acaba<strong>da</strong>, de grilagem especializa<strong>da</strong>, neste período. Este conceito é criado neste<br />

trabalho, para definir os atos de expropriação ilegítima de terras devolutas ou objeto de<br />

exploração ou posses legítimas por pequenos produtores rurais, geralmente fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s na<br />

exploração de artifícios legais e jurídicos, quando não, na falsificação de documentos,<br />

com o objetivo de “criar a aparência de legali<strong>da</strong>de” <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de. Este processo é<br />

também caracterizado quando as autori<strong>da</strong>des fundiárias, com base em meros atos<br />

administrativos e geralmente contrariando exigências <strong>da</strong> legislação em vigor, promovem<br />

a alienação de terras em licitação pública ou não; ou, mais grave que isto, instituem<br />

“formas de titulação” visivelmente volta<strong>da</strong>s para o privilegiamento de determina<strong>da</strong>s<br />

situações ou cama<strong>da</strong>s sociais, como fica amplamente evidenciado nos capítulos 4 e 5<br />

deste trabalho. Neste caso, caracterizam atos de improbi<strong>da</strong>de administrativa e, em<br />

determina<strong>da</strong>s situações, de “crimes de colarinho branco” ou simples corrupção. De<br />

qualquer maneira, tratam-se de atos de titulação, alienação ou legitimação juridicamente<br />

questionáveis. Esta é a conclusão básica deste capítulo, e que procura fechar o conjunto<br />

<strong>da</strong> análise comparativa do processo de privatização <strong>da</strong>s terras brasileiras.<br />

O capítulo 5 apenas procura reforçar com ampla documentação as conclusões do<br />

capítulo anterior, colocando em evidência alguns <strong>da</strong>dos e estatísticas sobre áreas<br />

privatiza<strong>da</strong>s no período, sua distribuição por regiões e estratos, e assim a utilização ou<br />

destinação <strong>da</strong>s terras apropria<strong>da</strong>s, isto por um lado; e, por outro lado, <strong>da</strong>dos referentes<br />

aos movimentos <strong>da</strong> população rural e urbana no mesmo período e por regiões.<br />

Esta introdução não poderia ser encerra<strong>da</strong> sem uma referência à vasta literatura<br />

que, no Brasil, ocupou-se, desde várias perspectivas teóricas e analíticas, <strong>da</strong>s questões<br />

21


levanta<strong>da</strong>s por este estudo. As referências bibliográficas específicas serão desenvolvi<strong>da</strong>s<br />

no âmbito dos diferentes capítulos, na medi<strong>da</strong> em que sejam suscita<strong>da</strong>s as questões<br />

pertinentes e respectivas análises. Por esta razão, neste momento apenas será traçado um<br />

perfil amplo <strong>da</strong>s diferentes perspectivas teóricas e analíticas desenvolvi<strong>da</strong>s acerca dos<br />

problemas pertinentes à questão agrária e à política fundiária brasileiras.<br />

Até porque seria impossível numa Introdução proceder-se à revisão exaustiva <strong>da</strong><br />

literatura que, em diferentes momentos e de diversas formas e perspectivas teóricas e<br />

analíticas, se ocuparam <strong>da</strong> análise dos problemas ligados à estrutura agrária brasileira.<br />

Além disso, fugiria à capaci<strong>da</strong>de intelectual e de síntese do autor proceder a tão<br />

ampla e relevante revisão, sem cometer omissões indesculpáveis. Assim, e com o<br />

objetivo apenas de indicar as trajetórias fun<strong>da</strong>mentais do debate, este tópico procura,<br />

apenas, pôr em realce as linhas gerais segui<strong>da</strong>s pelos diversos estudos, indicando suas<br />

características e pontos de vista fun<strong>da</strong>mentais.<br />

A questão agrária tem sido estu<strong>da</strong><strong>da</strong> de diversas perspectivas por diferentes<br />

pesquisadores e analistas brasileiros. Neste sentido há uma ampla literatura científica, -<br />

cujas referências específicas serão apresenta<strong>da</strong>s na medi<strong>da</strong> em que as diferentes<br />

dimensões do problema sejam abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s no decorrer deste trabalho -, e a qual se ocupa<br />

<strong>da</strong> investigação <strong>da</strong> questão agrária nas suas especifici<strong>da</strong>des e relações com o processo<br />

de formação e desenvolvimento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira, por um lado, e <strong>da</strong>s implicações<br />

gera<strong>da</strong>s neste contexto pela trajetória histórica <strong>da</strong> estruturação e desenvolvimento <strong>da</strong><br />

produção capitalista e <strong>da</strong> economia de mercado.<br />

Tratam-se de estudos que abrangem uma vasta área no âmbito <strong>da</strong>s Ciências<br />

Sociais. Ocupam-se de problemas que vão, desde as análises acerca do caráter do<br />

processo de colonização e <strong>da</strong> economia colonial, até aos processos de modernização <strong>da</strong><br />

agricultura e suas relações com desenvolvimento do capitalismo na produção<br />

agropecuária. No contexto destes estudos, são relevantes os trabalhos de Oliveira<br />

Vianna (1923), onde é formula<strong>da</strong> de forma sistemática a tese do "feu<strong>da</strong>lismo colonial",<br />

acompanha<strong>da</strong> de perto pelo trabalho de Malheiro Dias (1924) que, retomando as<br />

conclusões de Vianna busca desenvolver uma análise, fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> nos instrumentos<br />

jurídicos de concessão de terras pela Coroa Portuguesa, para concluir pelo caráter feu<strong>da</strong>l<br />

<strong>da</strong> formação colonial. A tese do feu<strong>da</strong>lismo é posta em questão por Roberto Simonsen<br />

(1937), seguido de perto por Caio Prado Júnior (1939), ambos defendendo a tese de que<br />

a economia colonial possuía caráter capitalista, embora, estes autores se fun<strong>da</strong>mentem<br />

em argumentações teóricas distintas. Na defesa contundente do "Feu<strong>da</strong>lismo Colonial"<br />

encontra-se, ain<strong>da</strong>, Nestor Duarte (1939), com seu estudo, que se tornou clássico, "A<br />

Ordem Priva<strong>da</strong> e a Organização Política Nacional".<br />

Ain<strong>da</strong> acerca deste debate, muitos outros autores poderão ser arrolados, como<br />

Celso Furtado que em 1959, já no novo contexto do debate nascido no segundo pós-<br />

Guerra, publica um livro, que se tornou, também clássico, Formação Econômica do<br />

Brasil, no qual defende a tese do capitalismo colonial; entretanto, apresentando<br />

distinções importantes em relação aos argumentos defendidos nos trabalhos de<br />

Simonsen e Prado Júnior, sobretudo, ao admitir que, as transformações do mercado<br />

mundial ao deprimirem as exportações brasileiras, provocaram, em determinados<br />

setores <strong>da</strong> economia, uma atrofia e uma regressão à formações pré-capitalistas. Segundo<br />

Furtado, portanto, o sistema colonial era capitalista em sua origem, mas as estruturas<br />

agrárias atuais regridiram a um estado semi-feu<strong>da</strong>l, depois de um longo processo de<br />

22


involução. Furtado, na ver<strong>da</strong>de, já se filia à nova corrente "dualista" que se desenvolve a<br />

partir dos anos 50. Nesse grupo de analistas pode-se incluir ain<strong>da</strong> Lambert (1959), Paul<br />

Singer (1961). Em 1964 é publicado o trabalho clássico de Passos Guimarães, Quatro<br />

Séculos de Latifúndio, retomando a tese do feu<strong>da</strong>lismo colonial, reforçando os<br />

argumentos de Nestor Duarte. Para uma excelente análise desse debate ver TOPALOV<br />

(1978); HIRANO (1988), especialmente o capítulo 1, onde é realiza<strong>da</strong> uma análise<br />

crítica <strong>da</strong>s teses acerca do sistema colonial. Recentemente, estas teses receberam forte<br />

crítica, e especialmente, entre outros estudiosos, por parte de OLIVEIRA (1983 e 1984).<br />

Por outro lado, no que se refere a análise <strong>da</strong> dimensão jurídica e suas<br />

articulações com a dinâmica concreta <strong>da</strong> ocupação produtiva <strong>da</strong> terra e <strong>da</strong> formação <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> rural, persiste a necessi<strong>da</strong>de de se desenvolver investigações mais<br />

especializa<strong>da</strong>s. É neste contexto particular que a análise específica <strong>da</strong> política fundiária<br />

necessita, do ponto de vista aqui defendido, ser aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong> e realiza<strong>da</strong> com maior<br />

detalhamento. Especialmente no que se refere ao estudo objetivo <strong>da</strong>s Políticas de posse<br />

e uso <strong>da</strong> terra, implementa<strong>da</strong>s pelo Estado, em diferentes conjunturas do<br />

desenvolvimento brasileiro. Trata-se <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de estudo sistemático do amplo e<br />

diversificado conjunto de instrumentos jurídicos, políticos, administrativos, e<br />

econômicos, dentre outros, instituídos com o objetivo específico de assegurar e oferecer<br />

caráter de legitimi<strong>da</strong>de, burguesa ain<strong>da</strong>, isto é uma legitimi<strong>da</strong>de histórica e por isso<br />

transitória na sua forma específica, ao processo de apropriação absoluta do território,<br />

enquanto condição prévia e necessária à ocupação produtiva <strong>da</strong> terra sob o capitalismo.<br />

É neste contexto e nesta direção que se situa este estudo.<br />

23


CAPÍTULO 1<br />

A POLÍTICA FUNDIÁRIA COLONIAL: O INSTITUTO <strong>DA</strong>S SESMARIAS<br />

1. Considerações Gerais<br />

"No dia 21 de abril de 1500, quando aqui chegaram os portugueses, o país<br />

que viria a ser chamado Brasil perdeu a autonomia sobre o seu território e<br />

iniciou-se o processo de grilagem. Os anos se passaram e estão-se<br />

completando cinco séculos de história de dominação, exploração e grilagem,<br />

por um lado, e de escravatura, miséria e luta pela reconquista <strong>da</strong> terra, por<br />

outro.” 15<br />

"Com o descobrimento do Brasil, no preciso momento do seu descobrimento,<br />

automaticamente, todo o seu território passa ao domínio de Portugal. Não só<br />

no sentido político-estatal, que se pode extrair <strong>da</strong> palavra domínio -<br />

autori<strong>da</strong>de e poder portugueses sobre a terra submissa - mas, identicamente,<br />

no que se contém como sinônimo de proprie<strong>da</strong>de - todo território brasileiro,<br />

como objeto de relação jurídico-real, passa a ser integralmente, de<br />

proprie<strong>da</strong>de do Reino." 16<br />

É significativo que os dois comentários acima, um de um religioso envolvido<br />

com a luta pela reforma agrária no Brasil contemporâneo, outro, de um professor de<br />

Direito, coinci<strong>da</strong>m no fun<strong>da</strong>mental: a história <strong>da</strong> soberania brasileira começa com a<br />

per<strong>da</strong> <strong>da</strong> soberania; e a história <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial, no Brasil, inicia-se pela per<strong>da</strong><br />

de domínio sobre o seu território, e sua respectiva anexação ao patrimônio dominial de<br />

um outro Estado. Desta forma também o entende Ruy de Cirne Lima, quando afirma<br />

que "a história territorial brasileira começa em Portugal" e que a ocupação do seu<br />

território pelos portugueses, em nome <strong>da</strong> Coroa, "transportou inteira, como um grande<br />

vôo de águias, a proprie<strong>da</strong>de de nosso imensurável território para além-mar. 17 ”<br />

Duas situações objetivas derivam-se deste fato histórico:<br />

Primeira, que ao ser descoberto o Brasil, e integrado ao patrimônio do Estado<br />

Português, por direito de conquista, ficava implícita à transformação de todo o seu<br />

território em proprie<strong>da</strong>de colonial do Reino de Portugal, passando a constituir-se em<br />

15 ASSELIN (1982, p.11).<br />

16 NASCIMENTO (1985, p.7).<br />

17 LIMA (1954, p.11)<br />

24


uma espécie particular de “proprie<strong>da</strong>de” estatal, pública. Isso significava, igualmente,<br />

que a partir deste ato formal de toma<strong>da</strong> de posse - um ato não apenas jurídico e político,<br />

mas, sobretudo econômico - deixou de existir, no Brasil, terra adéspota, sem dono.<br />

To<strong>da</strong>s as terras passam, desde então, formalmente, à condição de domínio <strong>da</strong> Coroa<br />

Portuguesa.<br />

Segun<strong>da</strong>, que esta sujeição - jurídica, política e econômica - significava,<br />

objetivamente, que o acesso e a exploração (produtiva ou não) <strong>da</strong>s terras coloniais,<br />

passava, necessariamente, a ser mediados pelo consentimento do Governo de Portugal.<br />

Tratava-se, portanto, de um processo de privatização, de transferência de direitos,<br />

fossem do uso ou, em alguns casos, do próprio domínio, sobre as terras coloniais.<br />

Porque, Portugal, ao deter, juridicamente, a proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Colônia, detinha, “ipso<br />

facto”, o direito de autorizar ou impedir o acesso ou a exploração <strong>da</strong>s terras coloniais,<br />

que eram do seu domínio.<br />

Entretanto, para explorá-las e torná-las produtivas, e desta forma poder auferir<br />

concretamente os frutos desta proprie<strong>da</strong>de colonial, necessariamente, a Coroa<br />

Portuguesa teria que submeter-se às condições objetivas <strong>da</strong>s conjunturas políticas e<br />

econômicas, tanto internas ao Reino quanto, sobretudo internacionais. Estas condições<br />

situavam-se para além <strong>da</strong> vontade do Estado Português e não dependiam, <strong>da</strong> sua<br />

condição de “proprietário formal” <strong>da</strong> Colônia. É nesta conjuntura objetiva que o Estado<br />

Colonial Português se verá obrigado a implementar um determinado e específico<br />

processo de ocupação e exploração <strong>da</strong> Colônia, ao integrá-la ao seu patrimônio.<br />

Portanto, a colonização do Brasil e as formas jurídicas e administrativas concretas,<br />

implementa<strong>da</strong>s pelo Estado Português, para assegurar o seu domínio e a exploração<br />

sobre o espaço colonial, exigirão de Portugal um determinado e específico processo de<br />

colonização. Este processo é fun<strong>da</strong>do no consentimento, ain<strong>da</strong> que oneroso,<br />

possibilitando à determina<strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> população portuguesa empreender, em<br />

socie<strong>da</strong>des ou individualmente, o povoamento e a exploração <strong>da</strong> Colônia.<br />

Este consentimento, nas condições objetivas <strong>da</strong> época, implicaram a necessi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> concessão de determinados privilégios, em troca <strong>da</strong> garantia do domínio colonial<br />

português. Disto derivam, os amplos poderes consentidos pelo Estado Português aos<br />

primeiros colonizadores, na ver<strong>da</strong>de, autênticos delegados políticos do Rei. Por outro<br />

lado, estes concessionários, ao receberem, em certo sentido, a transferência do direito de<br />

exploração <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, estavam, <strong>da</strong> mesma forma, sujeitos às condições objetivas,<br />

impostas pela situação <strong>da</strong> Colônia. Isto significa que, para poderem exercer este direito<br />

de exploração - de proprie<strong>da</strong>de -, necessariamente teriam que promover os meios, antes<br />

de tudo, econômicos, capazes de assegurá-lo. Isto significava que deveriam estes<br />

concessionários, reproduzir o mesmo modelo de realização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de recebi<strong>da</strong>,<br />

promovendo a concessão de sesmarias para pessoas que pudessem diretamente explorar<br />

a terra e promover a defesa e ocupação <strong>da</strong> Colônia. Desta forma era assegura<strong>da</strong> a<br />

reprodução <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de do sistema.<br />

25


É nesta conjuntura que o instituto <strong>da</strong>s sesmarias será implementado no Brasil,<br />

adquirindo as especifici<strong>da</strong>des que efetivamente o caracterizaram aqui, e que se<br />

distanciaram, em muitos sentidos, <strong>da</strong> forma e atributos que possuía, primitivamente, no<br />

Reino. Se na Metrópole este sistema de colonização implicou a formação de pequenas<br />

proprie<strong>da</strong>des produtivas e, aqui, o contrário, isto deveu-se certamente às condições<br />

coloniais. E não apenas, nem fun<strong>da</strong>mentalmente, ao fato de que na Colônia existiam<br />

terras abun<strong>da</strong>ntes - embora este fato fosse relevante. Também porque, a produtivi<strong>da</strong>de<br />

do trabalho, sobretudo em face <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des de incorporação de meios técnicos,<br />

implicava a exploração extensiva <strong>da</strong> terra, para tornar possível a produção na<br />

quanti<strong>da</strong>de e volume necessários à sua realização no mercado mundial, sem o que não<br />

seria possível a reprodução do sistema. Esta mesma espécie de limitação concreta, no<br />

que se refere à possibili<strong>da</strong>de de consecução de força-de-trabalho local ou oriun<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

Metrópole, implicaria no imperativo <strong>da</strong> importação de escravos africanos. Dessas<br />

limitações impostas à exploração <strong>da</strong> Colônia, derivam-se a formação de grandes<br />

plantações e a exploração <strong>da</strong> mão-de-obra escrava.<br />

Portanto, privilégios - nas concessões -, escravismo, como forma de produzir, e<br />

latifúndio, não são invenções ou reinvenções do processo de colonização portuguesa,<br />

mas exigências <strong>da</strong>s próprias condições objetivas <strong>da</strong> Colônia e de sua inserção no<br />

processo de reprodução <strong>da</strong> economia portuguesa, na conjuntura do mercantilismo 18 .<br />

Colocar clara e objetivamente este ponto de parti<strong>da</strong> no que toca ao processo de<br />

formação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial rural no Brasil é fun<strong>da</strong>mental para que se possa<br />

compreender a imensa complexi<strong>da</strong>de e as especifici<strong>da</strong>des que envolveram a formação<br />

<strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de rural brasileira e o confuso quadro - econômico, jurídico e político - no<br />

âmbito do qual se processou a sua legitimação.<br />

No que se refere, especificamente, à formação e desenvolvimento <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de territorial rural no Brasil, há que se registrar, em decorrência <strong>da</strong> conjuntura<br />

esboça<strong>da</strong> acima, um fato relevante e que, em certo sentido, está na sua origem e que<br />

condicionará, objetivamente, o seu processo de consoli<strong>da</strong>ção e desenvolvimento: tratase<br />

do fato de que no Brasil, assim como em todos os países de origem colonial, as<br />

terras, antes de se tornarem proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, são, genéticamente, proprie<strong>da</strong>de<br />

estatal, pública. O problema que se colocava, portanto, a este nível, era o de transferir o<br />

direito de exploração, portanto de proprie<strong>da</strong>de real, <strong>da</strong> esfera pública para a esfera<br />

priva<strong>da</strong>. Por outro lado, tatava-se de definir, juridicamente 19 , os objetivos deste processo<br />

de privatização e os meios de legitimação desta transferência de domínio. Ou seja,<br />

instituir e viabilizar as formas para materializar esse direito real de proprie<strong>da</strong>de,<br />

18 Ver a respeito dessa conjuntura e de suas implicações para o sistema colonial em Portugal e no Brasil, os<br />

excelentes trabalhos de SIMONSEN (1978), PRA<strong>DO</strong> JÚNIOR (1977), FAORO (1996), NOVAES (1978),<br />

GORENDER (1978), entre muitos outros que serão estu<strong>da</strong>dos no decorrer deste trabalho. Esta conjuntura é discuti<strong>da</strong><br />

com alguma riqueza de detalhes neste e no próximo capítulo deste estudo.<br />

19 Ver a este respeito, os argumentos de Fernando Novaes (NOVAES, 1978).<br />

26


transformando-o em direito formalmente assegurado. Tal é o problema a ser enfrentado<br />

no Brasil, que neste trabalho é posto em questão.<br />

Como já foi observado, com o descobrimento, o território brasileiro passou a<br />

integrar o domínio colonial português. Passou, portanto, como observa, com razão<br />

Novaes 20 , a integrar, de forma subordina<strong>da</strong>, a economia mercantil e colonial portuguesa<br />

e, neste sentido, a configurar-se como uma “colônia de exploração”, isto é, vincula<strong>da</strong> às<br />

deman<strong>da</strong>s políticas e aos interesses econômicos do país colonizador. Dessa conjuntura<br />

concreta engendram-se as especifici<strong>da</strong>des de sua formação, sobretudo no que se refere<br />

às condições de sua reprodução econômico-social enquanto nação coloniza<strong>da</strong>.<br />

É neste sentido que a formação e desenvolvimento <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial<br />

brasileira não pode ser desvincula<strong>da</strong> <strong>da</strong> tradição jurídica e <strong>da</strong> situação política e<br />

econômica de Portugal e do Brasil enquanto colônia. Por outro lado, embora exista<br />

necesariamente esse nexo, ele não deve ser interpretado como significando que a<br />

transposição <strong>da</strong> experiência jurídica, política, administrativa e econômica de Portugal<br />

para a situação do Brasil, tenha ocorrido sem transformações e ajustamentos relevantes.<br />

Estas transformações efetivamente foram observa<strong>da</strong>s e eram resultado do próprio<br />

contexto <strong>da</strong>s condições materiais de reprodução econômico-social <strong>da</strong> Colônia e <strong>da</strong> sua<br />

inserção no âmbito <strong>da</strong> economia mercantil, subordina<strong>da</strong> aos interesses metropolitanos.<br />

Por isso, a gênese e, sobretudo, o desenvolvimento do direito de proprie<strong>da</strong>de no<br />

Brasil e, mais do que isso, o próprio processo de ocupação e apropriação dos seus solos<br />

agrários, não são produtos de uma mera extensão do Direito Português e <strong>da</strong>s formas de<br />

apropriação territorial existentes em Portugal. Esta a razão, por exemplo, do instituto de<br />

sesmarias ter apresentado características e, sobretudo, resultados diferentes em Portugal<br />

e no Brasil. Lá promovendo a colonização interna e ocupação produtiva dos solos<br />

agrícolas, sobretudo após a fase <strong>da</strong>s presúrias, na época <strong>da</strong> Reconquista, tendendo à<br />

formação de pequenas proprie<strong>da</strong>des. Como registra Virgínia Rau:<br />

"Com o terminar <strong>da</strong>s campanhas <strong>da</strong> Reconquista, a presúria<br />

morre e desaparece paulatinamente como sistema de aquisição<br />

de terras, ao passo que o sedentarismo e a paz trazem consigo a<br />

divisão <strong>da</strong>s glebas, o sesmar os territórios conselhios (...)<br />

Primeiro, integra<strong>da</strong>s nesse movimento de colonização interna em<br />

que o homem ganha direito à terra pelo cultivo e em que a<br />

organização municipal alastra acolhendo o trabalhador à sombra<br />

protectora dos forais, as sesmarias garantiram a fixação do<br />

povoador e o aproveitamento do solo. 21 ”<br />

Aqui, pelo contrário, gestando o desenvolvimento <strong>da</strong> grande proprie<strong>da</strong>de agroexportadora<br />

escravista e não conseguindo impor a condição de exploração efetiva à<br />

totali<strong>da</strong>de do solo concedido. Mesmo em Portugal, como registra Virgínia Rau:<br />

"(...)quando a atracção periférica do mar e o incremento <strong>da</strong>s<br />

ativi<strong>da</strong>des e imuni<strong>da</strong>des urbanas fizeram tomar novos rumos ao<br />

desenvolvimento social e económico do país, elas serviram para<br />

20 NOVAES, op. cit.<br />

21 RAU (1982, p. 142).<br />

27


enfrentar problemas diversos <strong>da</strong>queles que a viram<br />

desabrochar. 22 “<br />

Virgínia Rau refere-se, neste trecho, às mu<strong>da</strong>nças promovi<strong>da</strong>s no instituto de<br />

sesmarias, no âmbito <strong>da</strong> Carta Régia de 25 de junho de 1375, objetivando, distintamente<br />

de sua formulação original, volta<strong>da</strong> para a colonização interna e ocupação efetiva do<br />

solo, após a Reconquista, a superação <strong>da</strong> grave crise por que atravessava o Reino,<br />

especialmente em virtude <strong>da</strong> que<strong>da</strong> na população trabalhadora rural, causa<strong>da</strong> "pela<br />

peste ou pela fuga", por um lado, e pela "hipertrofia dos centros urbanos". Neste<br />

contexto de crise, a Lei de 1375 visava obstar o abandono <strong>da</strong>s terras aráveis, além de<br />

enfrentar outros problemas de ordem econômica, como a falta de alimentos e mão-deobra<br />

rural e o consequente aumento dos salários, que inviabilizavam a exploração <strong>da</strong>s<br />

proprie<strong>da</strong>des rurais 23 . Esse contexto de crise é assim descrito por Virgínia Rau:<br />

"No meio do século XIV a economia <strong>da</strong> terra tinha perdido o<br />

equilíbrio e a desorganização agrária corria a par com a<br />

instabili<strong>da</strong>de monetária e a alteração dos valores sociais. A<br />

rarefação <strong>da</strong> população campesina, pela peste ou pela fuga, a<br />

hipertrofia dos centros urbanos, conjuntamente com a nova<br />

autori<strong>da</strong>de social de mesteirais e mercadores, geravam o grande<br />

drama econômico português e europeu. Para se opor ao êxodo <strong>da</strong><br />

população do campo para as ci<strong>da</strong>des, à escassez de mão-deobra<br />

e ao encarecimento dos salários, à decadência agrícola e ao<br />

aumento <strong>da</strong> indústria pastoril, os legistas jungiram todos os<br />

elementos julgados susceptíveis de suster a crise e deram corpo<br />

a uma norma jurídica, mais tarde denomina<strong>da</strong> <strong>da</strong>s Sesmarias. 24 "<br />

No caso do Brasil, as transformações neste instituto serão ain<strong>da</strong> mais relevantes.<br />

O contexto em que Portugal decide-se por iniciar a ocupação efetiva e a colonização do<br />

território brasileiro é colocado por Roberto Simonsen nos seguintes termos:<br />

"Era por demais violento o contraste que uma terra inteiramente<br />

selvagem, habita<strong>da</strong> por povos ain<strong>da</strong> no limiar <strong>da</strong> civilização,<br />

oferecia aos mercadores e navegantes portugueses. De na<strong>da</strong><br />

valiam aqui os processos de força com que Portugal impôs a<br />

sua suserania e o seu monopólio comercial na Ásia (...)<br />

Produtos prontos para o tráfico comercial normal não existiam;<br />

povoações de caráter estável, para serem ocupa<strong>da</strong>s e<br />

explora<strong>da</strong>s, que pagassem com tributos o direito de existência,<br />

também não eram encontra<strong>da</strong>s. O Brasil era problema novo em<br />

face a expansão comercial e marítima que os povos europeus<br />

estavam iniciando. 25 ”<br />

Donde, conclui Simonsen:<br />

"A situação exigia... solução radical por parte do reino. A colônia,<br />

com as per<strong>da</strong>s infringi<strong>da</strong>s pelos corsários e pelos naufrágios, tão<br />

comuns na época, não <strong>da</strong>va saldo à Coroa, mesmo porque, tudo<br />

nos leva a crer que era irregularíssimo o comércio português do<br />

22 Id., loc. cit., p. 142.<br />

23 Idem., loc. cit. Ver também, a este respeito, CIRNE LIMA (1954; especialmente o capítulo 1).<br />

24 RAU (1982, pp.142 e 143). Também CIRNE LIMA (1954; especialmente o capítulo. l).<br />

25 SIMONSEN (1978, p. 52).<br />

28


pau-brasil. Mas a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> colônia representava um risco para<br />

a navegação portuguesa <strong>da</strong>s Índias Orientais e golpe nas suas<br />

esperanças de encontrar metais preciosos, cujas possibili<strong>da</strong>des<br />

se acentuaram com a descoberta <strong>da</strong>s minas do Peru e México e<br />

as notícias do acesso ao Rio <strong>da</strong> Prata. Estava em jogo o<br />

prestígio do Império Colonial Português, em pleno fastígio do<br />

poder e em franca competição de empreendimentos marítimos<br />

com a Espanha." 26<br />

Diante desta perspectiva e nesta determina<strong>da</strong> conjuntura, Portugal toma a<br />

iniciativa de proceder a ocupação do território brasileiro e de promover a sua<br />

colonização. Entretanto, tal empreendimento implicava investimentos que não poderiam<br />

ser suportados pelo orçamento do Reino 27 . Dai buscar-se a associação com a iniciativa<br />

de particulares, gestando-se, desta forma, o sistema de Capitanias, ain<strong>da</strong> que fun<strong>da</strong>do no<br />

instituto sesmarial, que impunha restrições aos concessionários. Para a consecução<br />

desse projeto específico de colonização, que nesta primeira formulação, não conseguiu<br />

atingir os objetivos almejados de ocupação e defesa do território, por um lado, e de<br />

carrear riquezas e tributos para a Coroa, por outro, recorreu Portugal, como afirma,<br />

entre outros, Marcelo Caetano, a<br />

"soluções já antes experimenta<strong>da</strong>s... Quando D. João III resolve<br />

ocupar-se <strong>da</strong> colonização do Brasil, estende aqui a fórmula<br />

ensaia<strong>da</strong>, primeiramente, no reino e, depois, experimenta<strong>da</strong> nas<br />

ilhas atlânticas. 28 ”<br />

Do ponto de vista de sua interpretação jurídica e concreta, o sistema de<br />

concessões de terras adotado por Portugal para o Brasil apresenta, como observa Costa<br />

Porto dois ângulos fun<strong>da</strong>mentais. O primeiro, refere-se ao problema <strong>da</strong> repartição<br />

política - <strong>da</strong> jurisdição e do “imperium” - aspecto este sobre o qual se têm <strong>da</strong>do maior<br />

ênfase e que se ocupa dos poderes políticos-administrativos, adstritos aos grandes<br />

concessionários. O segundo reporta-se à questão específica <strong>da</strong> distribuição propriamente<br />

dita do solo, ou seja, <strong>da</strong> distribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial entre concessionários,<br />

que, segundo aquele autor, é mais relevante:<br />

"A leitura <strong>da</strong>s cartas de doação desvela-nos singelamente em que consistia o sistema<br />

de donatárias sob o primeiro aspecto: a determinado número de vassalos foi <strong>da</strong><strong>da</strong> uma<br />

porção de terras - delimita<strong>da</strong>s ao longo <strong>da</strong> costa e, para o interior, 'tanto quanto<br />

poderem penetrar e fôr de minhas conquistas' - outorgando-se-lhes poderes largos,<br />

imensos, 'majestáticos', mas, convém sempre inistir, poderes 'políticos', de comando,<br />

jurisdicionais pois, como cousa própria, apenas receberam aquele nastro de dez<br />

léguas, que lhes constituem o domínio privado. 29 "<br />

No que se refere à proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra, esta continuaria integrando o patrimônio<br />

<strong>da</strong> Coroa, encarna<strong>da</strong> no Rei. Tratam-se de “reguengos” que, por definição do instituto,<br />

deveriam ser repartidos e distribuídos entre os moradores, isentos de qualquer foro ou<br />

onus, exceto o dízimo <strong>da</strong> Ordem de Cristo, sobre os frutos colhidos na terra. É neste<br />

26 Id., p. 58. Grifos nossos.<br />

27 SIMONSEN (1978).<br />

28 CAETANO (1980, p.13).<br />

29 COSTA PORTO (S.d., pp.24 e 25. Grifos nossos).<br />

29


sentido específico, que o instituto de sesmarias, no Brasil, não possibilitava a<br />

constituição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de absoluta <strong>da</strong> terra 30 , mas apenas a posse útil, sujeita a<br />

cláusulas resolutivas. Estas, no caso do Brasil Colonial, eram rigorosas: proibiam o<br />

arren<strong>da</strong>mento, exigiam a residência habitual do concessionário ou prepostos, a cultura<br />

permanente e a respectiva medição, como condições para sua Confirmação pela Coroa.<br />

Proibia, ain<strong>da</strong>, a concessão de mais de uma sesmaria ao mesmo concessionário,<br />

familiares ou herdeiros em linha direta. Tudo isso, além <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des burocráticas e<br />

de natureza geográfica e técnica, contribuía para dificultar o processo de legitimação<br />

<strong>da</strong>s sesmarias recebi<strong>da</strong>s, no período colonial.<br />

To<strong>da</strong>s estas medi<strong>da</strong>s administrativas e jurídicas não foram, outrossim,<br />

suficientes para impedir que as sesmarias, enquanto posses ilegítimas, pudessem ser<br />

amplia<strong>da</strong>s, como, de fato, sempre ocorreu durante todo o período colonial e, sobretudo,<br />

nos primeiros anos após a Independência Nacional. Apesar dessas restrições e<br />

dificul<strong>da</strong>des, como observara Costa Porto, é no instituto <strong>da</strong>s sesmarias "que se baseia<br />

to<strong>da</strong> a história de nossa evolução fundiária. 31 "<br />

Pela análise do texto <strong>da</strong> “Lei de Sesmarias”, a Carta Régia de 1375, que "obriga<br />

a prática de lavoura e o semeio <strong>da</strong> terra pelos proprietários, arren<strong>da</strong>tários, foreiros e<br />

outros, e dá outras providências"; e que, ao mesmo tempo, criava o instituto <strong>da</strong>s terras<br />

devolutas, passíveis de serem transferi<strong>da</strong>s a "quem as lavre, e semeie", verifica-se<br />

como o Estado, diante de uma situação de crise profun<strong>da</strong>, reintroduz formalmente, no<br />

Direito de Proprie<strong>da</strong>de, em Portugal, o instituto do confisco 32 e, implicitamente, vincula<br />

a manutenção e reconhecimento <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial rural ao cumprimento de<br />

determina<strong>da</strong> “função social”, mas, sobretudo econômica, como fica evidente no<br />

seguinte trecho <strong>da</strong> Carta Régia de 1.375:<br />

"Se os senhores <strong>da</strong>s her<strong>da</strong>des não quiserem estar por aquele<br />

arbitramento, e por qualquer maneira o embargarem por seu<br />

poderio, devem perdê-las para o uso comum, a que serão<br />

aplica<strong>da</strong>s para sempre(...). 33 ”<br />

Foi dito: "reintroduz formalmente", no sentido de que, o sistema de sesmarias,<br />

que já se achava consoli<strong>da</strong>do nos costumes do Reino - her<strong>da</strong>do <strong>da</strong> tradição "romana,<br />

visigo<strong>da</strong>, e mesmo, talvez, sarracena, de repulsa ao solo inculto 34 ", - vir a ser<br />

consoli<strong>da</strong>do em Lei no Reinado de D. Fernando, diante de grave crise econômica e<br />

social, como registram, por exemplo, Costa Porto e Virgínia Rau 35 .<br />

Referindo a este problema <strong>da</strong> consoli<strong>da</strong>ção do direito português diante <strong>da</strong>s<br />

condições concretas do desenvolvimento conturbado do pequeno Reino, Faoro registra<br />

que<br />

30 Ver a respeito deste aspecto o excelente estudo de Roberto Smith. SMITH (1990).<br />

31 COSTA PORTO (S.d.: loc. cit.).<br />

32 NASCIMENTO (1985)<br />

33 In.: MEAF, op. cit. p.356.<br />

34 COSTA PORTO, s.d. p. 26.<br />

35 COSTA PORTO (op. cit.); RAO (1980).<br />

30


"os costumes, além do extenso território <strong>da</strong>s práticas extralegais,<br />

conservam caráter godo, sobrepondo-se, em muitos<br />

assuntos, à ordem jurídica formaliza<strong>da</strong>. De outro lado, a<br />

dispersão <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de, fenômeno geral na I<strong>da</strong>de Média,<br />

conspirava em favor do predomínio do direito costumeiro do<br />

costume <strong>da</strong> terra, réplica continental do Common Law. Sobre<br />

esse manto de muitas cores e de muitos retalhos, o direito<br />

romano já se impõe como modelo de pensamento e ideal de<br />

justiça(...) Não subsistiria se não o fecun<strong>da</strong>sse o adubo dos<br />

interesses que se aproveitaram <strong>da</strong> armadura espiritual,<br />

conservando-a por fora e dilacerando-a na intimi<strong>da</strong>de. 36 "<br />

“Conservando-a por fora e dilacerando-a na intimi<strong>da</strong>de”, assim Faoro traduz de<br />

forma contundente uma <strong>da</strong>s características mais fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> consoli<strong>da</strong>ção do<br />

Direito na história de Portugal e que terá continui<strong>da</strong>de zelosa na Colônia brasileira,<br />

estendendo-se pelo Império, chegando fortalecido ao Brasil republicano. É dessa forma<br />

que o Direito passa a se constituir num conjunto de normas jurídicas, "formalmente<br />

neutras" (váli<strong>da</strong>s para todos: pois "todos são iguais perante a lei") - conservado, assim.<br />

por fora, no dizer <strong>da</strong> Faoro -, mas econômica e politicamente direcionado - contexto em<br />

que é dilacerado na intimi<strong>da</strong>de, para usar os termos de Faoro. A conclusão desse<br />

raciocínio por Raymundo Faoro é cristalina:<br />

"Serviu-se para esta obra gigantesca, do Direito Romano, o qual justificava<br />

legalmente (os) privilégios, revelando-se um instrumento ideal para cumprir uma<br />

missão e afirmar um predomínio. 37 ”<br />

O que é importante reter neste momento, e ao que se retornará em outros pontos<br />

deste estudo, é que fica evidenciado na legislação sesmarial um fato <strong>da</strong> maior<br />

relevância, e que irá permear to<strong>da</strong>s as políticas de terras e to<strong>da</strong>s as legislações agrárias<br />

brasileiras até os dias atuais. Trata-se <strong>da</strong> per<strong>da</strong> de proprie<strong>da</strong>de, pelo não cumprimento<br />

de sua função social, bem como de outras exigências explicita<strong>da</strong>s nos diferentes Forais e<br />

Cartas de Doação. Essas terras, devolutas, retornavam ao domínio do Estado, que<br />

promovia a sua redistribuição a quem as lavrasse, nas mesmas condições anteriores,<br />

quer se tratassem de terras sujeitas ou não a tributos. Ou seja, nesse processo de<br />

confisco de terras improdutivas pelo Estado, e sua redistribuição a terceiros, que<br />

obedecia a rito próprio e graduado de expropriação - especialmente no Reino - as terras<br />

eram redistribui<strong>da</strong>s nas mesmas condições em que se encontravam anteriormente<br />

concedi<strong>da</strong>s: se sujeitas a foro ou não, continuavam sujeitas às mesma condições. Não<br />

podiam ser grassa<strong>da</strong>s com nenhum ônus, além dos anteriormente existentes.<br />

Mantinha-se, outrossim, as mesmas exigências. Especialmente com relação ao<br />

cultivo e exploração <strong>da</strong> terra.<br />

Tratavam-se <strong>da</strong>s clausulas de resolubili<strong>da</strong>de, que eram parte relevante de todo<br />

documento de concessão de sesmarias. Eram exatamente estas cláusulas que impediam<br />

a absolutização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de e que condicionavam todo o processo de sua<br />

36 FAORO (1996, p.11).<br />

37 FAORO (1996, p.11. Grifos nossos).<br />

31


confirmação por parte do Estado. Entre outros motivos, de caráter estritamente<br />

econômico, esta é, certamente, uma <strong>da</strong>s razões <strong>da</strong> desvalorização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de<br />

territorial rural, sobretudo no Brasil Colonial. As terras eram, em última instância,<br />

domínio <strong>da</strong> Coroa, como que permanecessem hipoteca<strong>da</strong>s. Por isso não podiam cobrir<br />

as funções hipotecárias nem servirem de garantias para dívi<strong>da</strong>s. No caso do Brasil,<br />

muito rigorosamente, esse problema é persistente, posto que aqui era ve<strong>da</strong>do<br />

formalmente, aos concessionários, arren<strong>da</strong>rem as terras que recebiam, sob pena de<br />

confisco, posto que a condição sob a qual recebiam as sesmarias era a de explorá-las e<br />

torná-las produtivas, com o seu trabalho ou com a aju<strong>da</strong> de subordinados (vinculandose,<br />

assim, aos objetivos de colonização e defesa). A concessão ou arren<strong>da</strong>mento de<br />

terras, na Colônia, eram atributos dos prepostos <strong>da</strong> Coroa Portuguesa.<br />

Deste corolário jurídico fica evidente a estreita vinculação econômico-social do<br />

Direito de Proprie<strong>da</strong>de 38 . Resta claro, neste caso, que o objetivo do instituto era obrigar<br />

aos concessionários à exploração efetiva <strong>da</strong>s terras que recebiam - ou diretamente, por<br />

seus próprios meios, ou, nos casos em que a esses meios excedesse, "legitimamente 39 ",<br />

cedendo-as, sob foro, a quem a pudesse explorar, "de modo que to<strong>da</strong>s venham ser<br />

aproveita<strong>da</strong>s 40 ". Se o não cumprimento dessa exigência legal ocorresse "por<br />

negligência ou contumácia" (...) "as Justiças territoriais, ou as pessoas que<br />

sobre isso tiverem intendência", estavam legalmente autoriza<strong>da</strong>s e, mais que isto,<br />

obriga<strong>da</strong>s, a <strong>da</strong>r início ao processo de expropriação ou confisco, procurando redistribuílas,<br />

"a quem as lavre, e semeie por certo tempo, a pensão ou quota<br />

determina<strong>da</strong>". Por fim, estabelecia-se que, não havendo acordo do concessionário com<br />

o foro estabelecido, pelos árbitros próprios, ou se o concessionário tentasse, por<br />

qualquer meio, embargar o processo, as suas terras seriam confisca<strong>da</strong>s: deveriam<br />

"perdê-la para o comum, a que serão aplica<strong>da</strong>s para sempre" 41 .<br />

É relevante registrar que esse conjunto de normas, conti<strong>da</strong>s na Carta Régia de<br />

1375, não apenas procurava ser fortemente rigoroso quanto às exigências que<br />

estabelecia em relação aos sesmeiros, mas, o que é ain<strong>da</strong> mais relevante, definia<br />

claramente as alternativas e condições em que deveriam ser aplica<strong>da</strong>s as respectivas<br />

sanções. Admitia, por exemplo, a possibili<strong>da</strong>de de determinados concessionários,<br />

eventualmente, possuírem mais terras do que poderiam diretamente explorar. Esta<br />

situação, no Reino, advinha do fato de que, na tradição jurídica e consuetudinária<br />

portuguesa, sempre foi respeita<strong>da</strong> a titulari<strong>da</strong>de legítima, anteriormente existente.<br />

Quando <strong>da</strong> implementação do sistema de sesmarias - após a pacificação do Reino, e<br />

38 A outra dimensão <strong>da</strong> concessão de sesmarias, que merece maior destaque do que tem sido <strong>da</strong>do pelos diversos<br />

estudos, refere-se ao fato de que ela permitia a racionalização e implementação <strong>da</strong> cobrança de tributos por parte do<br />

Estado. Segundo Faoro (op. cit., p.7) "a concessão de forais permitiu melhor sistema de cobrança, com o<br />

arren<strong>da</strong>mento dos direitos aos concelhos, mais tarde substituído pelo arren<strong>da</strong>mento a particulares,<br />

Facilitava-se com a medi<strong>da</strong>, além disso, o amoe<strong>da</strong>mento <strong>da</strong>s arreca<strong>da</strong>ções, numa prematura<br />

transformação <strong>da</strong> economia natural para a economia monetária."<br />

39 Na Metrópole.<br />

40 Carta Régia de 1375. In.: MEAF; p. 355.<br />

41 Idem, p. 355.<br />

32


supera<strong>da</strong> a fase <strong>da</strong>s presúrias - estes direitos foram, sempre, assegurados. Esta situação<br />

não existia no Brasil colonial, eis porque, aqui, não seria permitido o arren<strong>da</strong>mento a<br />

terceiros, <strong>da</strong>s terras recebi<strong>da</strong>s, sobretudo porque, na origem <strong>da</strong> concessão de sesmarias<br />

estava a presunção de que as terras seriam efetivamente explora<strong>da</strong>s. Por isto era<br />

estabelecido que "não se desse a pessoa mais terras do que ela boamente<br />

pudesse explorar."<br />

Logo, na ocorrência de subestabelecimento de terras negava-se aquela presunção<br />

jurídica. Neste caso, a concessão não teria respeitado a este requisito legal <strong>da</strong> efetiva<br />

exploração, além de ferir o preceito de que apenas aos prepostos <strong>da</strong> Coroa era <strong>da</strong>do o<br />

direito de fazer concessões territoriais. Haviam ain<strong>da</strong> outras razões associa<strong>da</strong>s a esse<br />

contexto no Brasil colonial, como já registrado 42 .<br />

Em Portugal, no caso de possuir-se terras em excesso, possibilitava-se, aos<br />

beneficiários, cedê-las sob foro, a quem as pudesse aproveitar, ficando subentendido<br />

que se mantinham na posse <strong>da</strong>s respectivas áreas. Na Colônia, não. A preocupação,<br />

aparentemente precoce, <strong>da</strong> Coroa Portuguesa, em assegurar o povoamento e a<br />

exploração agrícola, como condições para assegurar a defesa de sua soberania sobre a<br />

Colônia terá implicações importantes no que toca à manutenção <strong>da</strong> integri<strong>da</strong>de<br />

territorial brasileira, cujos resultados mais relevantes, além dos de haver atendido aos<br />

objetivos imediatos citados, aparecerão, sobretudo, após a Independência do Brasil.<br />

Embora essa dimensão <strong>da</strong> questão fuja aos objetivos deste estudo, é interessante<br />

registrar algumas observações de Álvaro Lins, a respeito do instituto do "utipossedetis",<br />

que segundo aquele autor ficará historicamente ligado ao nome dos<br />

"dois Rio-Branco: o primeiro, porque o definiu com precisão e<br />

segurança e o segundo, porque lhe deu aplicação vitoriosa numa<br />

série de litígios e negociações. 43 "<br />

Gilberto Freire, referindo-se ao papel <strong>da</strong>s “Bandeiras” enquanto forma de<br />

assegurar o povoamento e soberania portuguesas sobre as terras <strong>da</strong> Colônia, assim se<br />

expressa:<br />

"O bandeirante torna-se desde os fins do século XVI um fun<strong>da</strong>dor<br />

de sub-colônias e já se faz senhor <strong>da</strong>s alheias num imperialismo<br />

que tanto tem de ousado quanto de precoce. Com o bandeirante o<br />

Brasil auto-coloniza-se. 44 "<br />

O instituto do "uti-possedetis" será o princípio utilizado pelo Império para<br />

assegurar a soberania brasileira sobre territórios em litígios com nações limítrofes e<br />

estabelece que deveria manter-se a soberania territorial com base na comprovação <strong>da</strong><br />

ocupação produtiva de terras por ci<strong>da</strong>dãos <strong>da</strong>s respectivas nações pleiteantes:<br />

"O governo de S.M., o Imperador do Brasil, reconhecendo a falta<br />

de direito escrito para a demarcação de suas raias com os<br />

Estados vizinhos, tem adotado e proposto as únicas bases<br />

42 A este respeito ver Virgínia Rau, Costa Porto e Cirne Lima, citados.<br />

43 LINS (1965, p.193).<br />

44 FREYRE (op. cit., p. 120).<br />

33


azoáveis e equitativas que podem ser invoca<strong>da</strong>s: o utipossedetis,<br />

onde este existe, e as estipulações do Tratado de<br />

1777, onde elas se conformam ou não vão de encontro às<br />

possessões atuais de uma ou outra parte contratante (26 de<br />

novembro de 1857). 45 ”<br />

O objetivo era sempre econômico: manter e ampliar a exploração agrícola;<br />

assegurar o povoamento e ocupação do território e, na Colônia, além destes objetivos,<br />

buscava-se garantir a defesa e integri<strong>da</strong>de territorial contra pretensões estrangeiras.<br />

Numa expressão, tratava-se de salvaguar<strong>da</strong>r a soberania portuguesa, o que,<br />

necessariamente, implicava a implementação de processos de produção relevantes,<br />

voltados para o mercado mundial, capazes de sustentar a reprodução de todo o sistema.<br />

Além, é claro, de promover a política tributária <strong>da</strong> Coroa, ampliando seus ingressos.<br />

Por outro lado, a referi<strong>da</strong> Carta Régia de 1375, previa, na sua versão originária e<br />

na conjuntura de crise na qual foi outorga<strong>da</strong>, em Portugal, igualmente, restrições à<br />

facul<strong>da</strong>de de serem mantidos animais de trabalho, conforme as necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

exploração, por um lado; e, por outro lado, estabelecia que<br />

"para obviar o desaproveitamento <strong>da</strong>s couta<strong>da</strong>s e her<strong>da</strong>des, que<br />

em prejuízo <strong>da</strong> agricultura se deixarem exclusivamente para<br />

pastos, proibe-se a todo que não for lavrador, ou não tiver a<br />

lavoura, ou não servir lavrador em ministério relativo à economia<br />

rural, o ter ou conservar gados." 46<br />

Finalmente, a Lei de Sesmarias estabelecia, claramente, as condições sob as<br />

quais se deveria proceder ao confisco <strong>da</strong>s terras não aproveita<strong>da</strong>s: 1. Por "contumácia<br />

ou negligência", caso em que o concessionário seria constrangido a cedê-la, por algum<br />

tempo, sob foro, convertido "ao bem do comum". 2. Ou a perdê-la para sempre, caso<br />

o concessionário tentasse, por qualquer meio, embargar a aplicação <strong>da</strong> sanção<br />

legalmente estabeleci<strong>da</strong>, como já registrado. Ressalve-se, ain<strong>da</strong> uma vez, que a<br />

possibili<strong>da</strong>de de arren<strong>da</strong>r ou ceder a terra a terceiros, admiti<strong>da</strong> no Reino, não será<br />

permiti<strong>da</strong> no Brasil colonial. Afora isto, as demais facul<strong>da</strong>des e exigências do instituto<br />

sesmarial eram aplicáveis integralmente ao Brasil colonial.<br />

2. Sistema Sesmarial e Formação <strong>da</strong> Proprie<strong>da</strong>de Rural na Colônia.<br />

O sistema sesmarial, gestado na conjuntura econômica e sociocultural de<br />

Portugal <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do século XIV, destinado originalmente à tentativa de<br />

reorganização <strong>da</strong>s relações de proprie<strong>da</strong>de, na conjuntura <strong>da</strong> grave crise de<br />

abastecimento interno do Reino e no bojo de uma formação social emergente, que se<br />

houvera estruturado sobre conquistas e conflitos territoriais, e desenvolvera no âmbito<br />

do mercantilismo, será afetado por frequentes crises e sofrerá várias reestruturações,<br />

ain<strong>da</strong> em Portugal, desde as suas origens remotas, no Reinado de D. Fernando I . Do<br />

ponto de vista jurídico-econômico, o sistema sesmarial é instituído no contexto de grave<br />

45 Citado por LINS (op. cit., p.193. Grifos nossos).<br />

46 Carta Régia de 1375. In: MEAF (1983: 355 -356).<br />

34


crise política e no bojo <strong>da</strong> Revolução de Avis, pela Carta Régia 47 de 1375, visando a<br />

reorganização <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des de exploração agropecuária, regulando determina<strong>da</strong>s<br />

relações de sociabili<strong>da</strong>de.<br />

No Brasil, o sistema sesmarial sofrerá, inúmeras alterações, tanto jurídicas<br />

quanto no âmbito de sua aplicabili<strong>da</strong>de jurídico-real, conforme as exigências<br />

econômicas, sociais e políticas, específicas <strong>da</strong> sua situação colonial, e <strong>da</strong> sua inserção<br />

no âmbito <strong>da</strong> política mercantil do Império Português. As mu<strong>da</strong>nças verifica<strong>da</strong>s no<br />

sistema em sua aplicação à situação <strong>da</strong> Colônia, nascem, como se registrou acima,<br />

vinca<strong>da</strong>s pela necessi<strong>da</strong>de de ocupação, manutenção e defesa do território 48 , muitas<br />

vezes ameaçado por incursões de mercadores concorrentes, e sobretudo de nações<br />

estrangeiras, especialmente as que relutavam em aceitar pacificamente os Direitos<br />

Políticos de jurisdição, portugueses, sobre a Colônia, fun<strong>da</strong>dos nas “Bulas Papais”.<br />

Resulta desta conjuntura, muito mais que <strong>da</strong> mera extensão do território, o fato de que,<br />

no Brasil, as sesmarias venham a assumir as características de grandes áreas territoriais.<br />

A necessi<strong>da</strong>de de povoar as terras tinha exatamente esse sentido de ocupar (isto é,<br />

garantir a defesa) do território contra estas incursões. Por outro lado, o baixo nível de<br />

desenvolvimento <strong>da</strong>s técnicas de exploração agrícola e, sobretudo, <strong>da</strong> carência de mãode-obra,<br />

- ou seja, <strong>da</strong>s forças produtivas - bem assim, como <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de<br />

inserção <strong>da</strong> Colônia no mercado exportador de produtos de alto valor comercial,<br />

contribuíram, efetivamente, para o alargamento <strong>da</strong>s dimensões <strong>da</strong>s sesmarias<br />

concedi<strong>da</strong>s na Colônia. E, alia<strong>da</strong>s a estas limitações, estava o desenvolvimento do<br />

trabalho compulsório, sobretudo através <strong>da</strong> escravidão africana. Entretanto, permanecia<br />

o caráter de concessão real sujeita a cláusulas resolutivas; ou seja, tratavam-se de<br />

condições que impossibilitaram a absolutização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra. Como registra<br />

Roberto Smith:<br />

"A resultante <strong>da</strong> colonização portuguesa no Brasil foi responsável<br />

por uma característica relevante no contexto de sua formação<br />

social - a não-absolutização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária até a<br />

segun<strong>da</strong> metade do séc. XIX.(...) O absolutismo português, desde<br />

muito cedo, encontrou o seu rumo mercantil que o projetaria em<br />

escala mundial. Ao mesmo tempo, colocou sob controle qualquer<br />

possibili<strong>da</strong>de de toma<strong>da</strong> de poderes territoriais dispersos, de<br />

cunho feu<strong>da</strong>l, por parte <strong>da</strong> nobreza fundiária. Como decorrência, a<br />

proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra em Portugal não se objetivava através de um<br />

caráter de autonomia de domínio privado, em relação ao Estado,<br />

na sua vinculação mercantil ao lucro, como acontecia na<br />

Inglaterra. A proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra, além <strong>da</strong> grande parcela<br />

pertencente à Coroa, constitui-se, antes, em posses, com área<br />

47 Id., loc. cit.<br />

48 Por isso, tratavam-se de "poderes políticos", cf. COSTA PORTO (S.d., p.21), e não de domínio pessoal sobre todo<br />

o solo doado aos capitães-mores, exceto a parte especificamente a eles destina<strong>da</strong> que, de resto não poderia ser<br />

demarca<strong>da</strong> em terras contíguas. Disto derivava o seu poder de jurisdição e a sua autori<strong>da</strong>de para, em nome <strong>da</strong> Coroa,<br />

promover a doação de sesmarias aos habitantes <strong>da</strong> terra, assim como prover a administração e a justiça, conforme os<br />

termos regulamentados pelas Ordenações do Reino.<br />

35


limita<strong>da</strong>, objeto de concessão revogável, condiciona<strong>da</strong> a sua<br />

efetiva exploração. 49 "<br />

É neste contexto que, ao ser transposto para o Brasil, onde o sistema de<br />

sesmarias é introduzido juntamente com as chama<strong>da</strong>s Capitanias Hereditárias, o<br />

objetivo <strong>da</strong> Coroa, era proceder a concessão de terras a particulares visando a ocupação<br />

do território, sua defesa e sua exploração econômica. Por esta razão o processo de<br />

concessão era amplamente privilegiado, entretanto, ao mesmo tempo, buscava<br />

assegurar, não apenas o domínio territorial, mas a ampliação <strong>da</strong> massa de tributos<br />

destinados à Metrópole. Esse fato está explícito, por exemplo, no Foral de doação <strong>da</strong><br />

Capitania de Duarte Coelho, onde estão, claramente estabelecidos, os poderes que lhes<br />

são delegados pela Coroa portuguesa, para que promova a ocupação, colonização,<br />

administração e defesa do território:<br />

"O capitão <strong>da</strong> dita capitania e seus sucessores <strong>da</strong>rão e repartirão<br />

as terras de ca<strong>da</strong> sesmaria (...) às quais(...)<strong>da</strong>rão na forma e<br />

maneira que se contem em minhas Ordenações e não poderão<br />

tomar terra alguma em sesmaria para si nem para sua mulher,<br />

nem para seu filho primogênito, herdeiro <strong>da</strong> dita capitania. 50 "<br />

Do ponto de vista estritamente patrimonial, como registra Costa Porto, o que<br />

pertence efetivamente aos donatários eram:<br />

"ren<strong>da</strong>s e direitos & foros e trebutos que a elas (alcai<strong>da</strong>rias)<br />

pertencerem"; "as moen<strong>da</strong>s <strong>da</strong>gua, marynhas de sal e quaesquer<br />

outros enjenhos de qualquer caly<strong>da</strong>de que seya; "metade <strong>da</strong><br />

dizima do pescado" - a vintena; a "redizima de to<strong>da</strong>s as ren<strong>da</strong>s"<br />

<strong>da</strong> Capitania, isto é, "que todo rendimento... aya...huma dizima<br />

que he de dez partes huma"; "a vintena parte do que<br />

lyquy<strong>da</strong>mente render para mym foro (forro) de todos os custos do<br />

brasyll <strong>da</strong> capitania"; a facul<strong>da</strong>de de venderem a ca<strong>da</strong> ano 24<br />

peças de escravos que "resgatarem e ouverem na dita terra";<br />

dispensa dos "direitos de sysas, emposições de saboaryas,<br />

trebutos de sall, etc." 51<br />

Fica evidenciado, na citação acima, que os poderes concedidos aos donatários se<br />

caracterizavam, antes de tudo, como poderes políticos, não de domínio territorial sobre<br />

a terra. Com relação ao direito de proprie<strong>da</strong>de sobre a terra não resta dúvi<strong>da</strong>s de que era<br />

profun<strong>da</strong> e estritamente limitado. Das sessenta léguas doa<strong>da</strong>s, por exemplo a Duarte<br />

Coelho, que se dividiam em duas partes, apenas uma destas, de dez léguas, pertencia<br />

privativamente ao donatário, que exercia, apenas sobre esta área, o domínio pleno,<br />

alodial, desde que preenchi<strong>da</strong>s as exigências constantes <strong>da</strong>s Ordenações, estando esta<br />

área "lyvre, izenta" de qualquer ônus ou tributo, exceto o dízimo a ser pago à Ordem de<br />

Cristo. O Capitão-Mor, após vinte anos de posse <strong>da</strong> capitania, poderia separar e<br />

demarcar essa área onde quisesse, "não as tomando porém, juntas sanam<br />

49 SIMITH (1990, p. 149).<br />

50 Citado por Costa Porto, op. cit., p.21.<br />

51 Id., p.22.<br />

36


eparty<strong>da</strong>s em quatro ou cynco partes" respeitando distância, entre ca<strong>da</strong> parte, de,<br />

pelo menos, duas léguas.<br />

No que tocava às cinquenta léguas restantes, deveria o donatário proceder à<br />

distribuição, em sesmarias, entre os moradores, sobre estas terras não exercendo<br />

nenhum poder de domínio alodial. Por isso, comenta Costa Porto, citando um<br />

documento <strong>da</strong> época:<br />

"o donatário não hé senhor absoluto <strong>da</strong>s terras senam sesmeiro e<br />

repartidor (...) e enquanto sesmeiro não é mais sesmeiro que<br />

outros sesmeiros, conforme a verba de sua <strong>da</strong>çam." 52<br />

O mesmo princípio jurídico vinha explícito na seguinte Carta de Doação, feita<br />

pela Coroa Portuguesa, a Martim Afonso de Souza:<br />

"A quantos minha carta virem, faço saber, que as terras que<br />

Martim Afonso de Souza do meu conselho achar e descobrir na<br />

terra do Brasil, onde o envio por meu capitão-mor, que possa<br />

aproveitar, por esta minha carta que lhe dou poder para que ele<br />

(...) possa <strong>da</strong>r às pessoas que consigo levar, e as que na dita<br />

terra quizerem viver e povoar, aquelas partes (...) que bem lhe<br />

parecer, e segundo lhe o merecer por seus serviços e quali<strong>da</strong>des,<br />

e as terras que assim der será para eles e todos os seus<br />

descendentes (...) Que dentro de dois anos de <strong>da</strong><strong>da</strong>, ca<strong>da</strong> um<br />

aproveite a sua e que se no dito tempo assim não o fizer, as<br />

poderá <strong>da</strong>r a outras pessoas para que as aproveitem, com a<br />

dita condição." 53<br />

Como se pode verificar, a implantação do sistema de Capitanias, em 1532, em<br />

na<strong>da</strong> alterou a lógica que presidia a concessão de terras com base no instituto de<br />

sesmarias. O sistema de Capitanias operou, entretanto, pequenas mu<strong>da</strong>nças, de cunho<br />

especificamente administrativo: as concessões de sesmarias, de forma diferente de como<br />

ocorria na Metrópole, passaram, por delegação, a ser outorga<strong>da</strong>s aos Capitães-Mores,<br />

entretanto, sempre sujeitas à confirmação real. Esta mu<strong>da</strong>nça representava, na prática,<br />

um mecanismo jurídico regulacionista mais complexo e que possibilitava determinado<br />

controle sobre todo o processo de ocupação territorial. Que originalmente, em Portugal,<br />

e como assimilação do Direito Romano, se constituía num dos instrumentos<br />

fun<strong>da</strong>mentais de popularização produtiva <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial, vinculado aos<br />

Conselhos, e estritamente associado à municipali<strong>da</strong>de. Segundo Faoro, por exemplo, a<br />

hierarquia formal, jurídica, assim estabeleci<strong>da</strong> para resolver pendências e problemas nas<br />

questões associa<strong>da</strong>s à proprie<strong>da</strong>de rural, tinha um forte caráter centralizador e, em<br />

última análise, representava, politicamente uma espécie de aliança entre "o rei e o<br />

povo" e que funcionava como um forte bloqueio à possíveis pretensões políticas <strong>da</strong><br />

aristocracia agrária. Neste sentido, tratava-se de uma medi<strong>da</strong> que bloqueava o caminho<br />

ao enfeu<strong>da</strong>mento.<br />

52 COSTA PORTO (S.d. p.22).<br />

53 Citado em NASCIMENTO (1985, p.11. Grifos nossos).<br />

37


Esse "modus operandi" irá persistir, igualmente, durante o período dos Governos<br />

Gerais, no qual, o sistema de sesmarias permanece praticamente inalterado, porém,<br />

administrativamente, passa a ser integrado por mais um escalão de delegação<br />

burocrática, no que toca ao poder de conceder sesmarias. Pela ordem de hierarquia<br />

burocrática, cabia os Governadores Gerais e aos Capitães-Mores <strong>da</strong>s Províncias, por<br />

delegações sucessivas e hierarquiza<strong>da</strong>s, o poder de realizar determina<strong>da</strong>s concessões,<br />

sendo que as destes últimos estavam sujeitas a Confirmação pelos Governadores Gerais,<br />

e to<strong>da</strong>s, à Confirmação pelo Rei de Portugal. Permanecem as cláusulas de<br />

resolubili<strong>da</strong>de, ou seja, as concessões continuavam sujeitas ao efetivo aproveitamento,<br />

residência habitual e medição; não sendo permitido, por outro lado, aos concessionários,<br />

o arren<strong>da</strong>mento de terras a terceiros. Esse sistema permanecerá operacional no Brasil,<br />

até a sua suspensão em julho de 1822 e a sua definitiva extinção, com a Independência<br />

Política <strong>da</strong> Colônia, em setembro de 1822.<br />

Outra característica relevante do sistema sesmarial referia-se as restrições<br />

impostas quanto ao tempo de duração <strong>da</strong>s concessões que, inicialmente, assim como em<br />

Portugal, também no Brasil, era limitado, como pode-se apreender <strong>da</strong> análise do texto<br />

<strong>da</strong> Carta de Doação de Martim Afonso de Souza, de 1530, "somente na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>queles<br />

a quem der e não mais". Entretanto essa limitação temporal será modifica<strong>da</strong>, no Brasil<br />

colonial, passando as sesmarias a serem concedi<strong>da</strong>s em caráter perpétuo, embora<br />

permanecessem as cláusulas resolutivas, que possibilitavam a revogação <strong>da</strong> concessão<br />

qualquer tempo, fosse de forma onerosa ou não.<br />

O fato mais relevante a ser registrado, nesse contexto, refere-se à permanente e<br />

sistemática preocupação do Estado Português em estabelecer limites bastante precisos à<br />

formação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra no Brasil. Todos esses impedimentos de ordem<br />

administrativa, jurídica, econômica e burocrática, que se está <strong>da</strong>ndo destaque neste<br />

trabalho, se, por um lado, não impediram a formação de imensas proprie<strong>da</strong>des<br />

territoriais no Brasil, muito pelo contrário; por outro lado, também não permitiram a<br />

legalização dos abusos sobejamente cometidos à revelia <strong>da</strong> legislação. Este fenômeno<br />

está na origem <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des impostas ao processo de legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de<br />

territorial rural, no Brasil, constituindo-se no fun<strong>da</strong>mento legal para a definição do seu<br />

caráter de ilegitimi<strong>da</strong>de, especialmente do ponto de vista jurídico.<br />

Entretanto, como se fez notar, contrariando as normas régias, as sesmarias<br />

brasileiras passaram a ser, concedi<strong>da</strong>s à título perpétuo, ain<strong>da</strong> que permanecessem<br />

sujeitas às condições de resolubili<strong>da</strong>de referi<strong>da</strong>s, e que persistirão por todo o período.<br />

Tal fato introduz significativa mu<strong>da</strong>nça entre a implementação do sistema, quer fosse na<br />

Colônia ou em Portugal. É assim que, no Brasil, o concessionário passaria a dispor<br />

livremente <strong>da</strong> terra recebi<strong>da</strong>, apenas com a obrigação de lhe <strong>da</strong>r aproveitamento nos<br />

prazos e condições determinados nas Cartas de Doação, (que giravam em torno de dois<br />

a cinco anos) sob pena de multa ou confisco. Entretanto, os estudiosos dessa questão<br />

são unânimes, como se tem registrado, em reconhecer que tais sanções raras vezes eram<br />

38


aplica<strong>da</strong>s; sobretudo quando se tratavam de multas, às quais, mesmo quando aplica<strong>da</strong>s,<br />

não eram pagas.<br />

É neste contexto de extrema burocratização, quando a Coroa portuguesa buscava<br />

consoli<strong>da</strong>r a organização de um sistema complexo de controle sobre a concessão e<br />

exploração <strong>da</strong>s terras rurais, visando coibir o já vasto processo de multiplicação de<br />

sesmarias e apossamento de terras "públicas", à margem <strong>da</strong>s determinações legais, que<br />

se pode tentar explicitar e compreender alguns dos problemas mais relevantes, no que se<br />

refere à formação e desenvolvimento <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> <strong>da</strong> terra no Brasil, por um<br />

lado; e o seu flagrante caráter de ilegali<strong>da</strong>de, por outro.<br />

A hipótese desenvolvi<strong>da</strong>, neste trabalho, a respeito desta problemática, fun<strong>da</strong>-se<br />

no fato de que, desde a sua origem, a proprie<strong>da</strong>de territorial no Brasil foi sempre o<br />

resultado <strong>da</strong> luta concreta e desigual (política, jurídica, social e econômica), pelo<br />

apossamento de áreas importantes do território brasileiro. Esse processo de apropriação<br />

de terras, sempre ocorreu concomitante e paralelamente às concessões legítimas;<br />

entretanto, quase sempre, se forjou à margem do consentimento legal. É neste contexto<br />

que a luta pela posse <strong>da</strong> terra tendeu a agravar-se ca<strong>da</strong> vez mais, à medi<strong>da</strong> em que a<br />

economia se desenvolvia e integrava-se ao mercado primário-exportador, provocando o<br />

aumento <strong>da</strong> deman<strong>da</strong> por terras. Este fenômeno agravou-se, sobretudo, após à<br />

Independência Política <strong>da</strong> Colônia, em 1822.<br />

De qualquer maneira, o fato, juridicamente relevante, no que toca à política<br />

fundiária posta em prática no período em que esteve em vigor o instituto <strong>da</strong>s sesmarias,<br />

- que se estende até julho de 1822, quando é defini<strong>da</strong> a suspensão de sesmarias - é que<br />

este sempre representou a tentativa do Estado Colonial Português em manter estrito<br />

controle sobre to<strong>da</strong>s as terras <strong>da</strong> Colônia, inclusive as doa<strong>da</strong>s, que permaneciam sujeitas<br />

às cláusulas resolutivas.<br />

Por outro lado, como apenas através do reconhecimento formal do Estado era<br />

possível assegurar o domínio legítimo <strong>da</strong>s terras ocupa<strong>da</strong>s, persistiu, na Colônia, uma<br />

situação, na qual predominavam “proprie<strong>da</strong>des ilegítimas”: ou porque não tinham sido<br />

confirma<strong>da</strong>s pela Coroa Portuguesa, ou porque não foram registra<strong>da</strong>s (tomba<strong>da</strong>s),<br />

conforme as exigências <strong>da</strong> legislação vigente no período; ou, ain<strong>da</strong>, porque tiveram as<br />

suas áreas acresci<strong>da</strong>s de terras livres, para além <strong>da</strong>s concedi<strong>da</strong>s formalmente; ou,<br />

finalmente, por se tratarem de sesmarias e concessões caí<strong>da</strong>s em comisso, pelo não<br />

cumprimento <strong>da</strong>s cláusulas resolutivas. Além destas situações, existiam, ain<strong>da</strong>, as<br />

posses estabeleci<strong>da</strong>s sobre terras públicas, independentemente de qualquer<br />

consentimento por parte do Estado.<br />

Tratavam-se, neste amplo contexto, to<strong>da</strong>s estas, de “possessões ilegítimas”, quer<br />

se tratassem de sesmarias irregularmente manti<strong>da</strong>s - caí<strong>da</strong>s em comisso, ou nunca<br />

confirma<strong>da</strong>s - quer, de simples posses, sendo indiferente o fato de se tratarem de<br />

grandes ou de pequenas áreas. Em todos estes casos, persistia, portanto, a necessi<strong>da</strong>de<br />

de revali<strong>da</strong>ção, para os casos de concessões que se tornaram irregulares por não<br />

preencherem as exigências formais; ou, de legitimação, no caso <strong>da</strong>s posses procedi<strong>da</strong>s à<br />

39


evelia do consentimento formal do Estado, mas que preenchiam determina<strong>da</strong>s<br />

exigências, em especial referentes à exploração efetiva e mora<strong>da</strong> habitual do posseiro,<br />

além de terem sido estabeleci<strong>da</strong>s com “boa-fé”.<br />

3. Considerações Finais<br />

Após a consoli<strong>da</strong>ção do domínio de Portugal sobre a Colônia, tentado<br />

inicialmente através <strong>da</strong> instituição <strong>da</strong> chama<strong>da</strong>s Capitanias Hereditárias, cujos<br />

resultados econômicos e, sobretudo políticos, se mostraram insuficientes para a<br />

consecução dos objetivos de colonização e defesa do território, Portugal adota, ain<strong>da</strong><br />

com base no instituto de sesmarias, um novo modelo de administração, baseado na<br />

concentração do poder em mãos de Governadores Gerais. Os Regimentos, que passam a<br />

regulamentar a Política de Terras, com a instituição dos Governos Gerais, a partir de<br />

1549, além de tornarem mais complexos a hierarquia e o sistema burocrático para a<br />

concessão e reconhecimento <strong>da</strong>s sesmarias, pelo Estado, estabeleceram novas e<br />

fun<strong>da</strong>mentais exigências.<br />

Torna-se mais rigorosa, entre outras, as exigências <strong>da</strong> residência habitual e<br />

cultivo efetivo <strong>da</strong>s terras, assim como a proibição de alienar as terras recebi<strong>da</strong>s por um<br />

prazo mínimo de três anos. Exige-se, em relação às concessões de terras destina<strong>da</strong>s à<br />

construção de engenhos, isto é, à produção <strong>da</strong> cana e fabricação do açúcar - que era o<br />

produto de maior valor e interesse comercial na época -, que apenas fossem doa<strong>da</strong>s à<br />

pessoas que "tinhão possibili<strong>da</strong>des para o poderem fazer dentro do prazo que<br />

limitardes"; e que se obrigasse, aos seus concessionários, à construção de torres e casas<br />

fortes "de feição e grandeza que lhe declarasse na carta" de concessão, o que<br />

significava que este tipo de concessões apenas se destinavam à pessoas de posses, muito<br />

mais que de “cali<strong>da</strong>des” 54 .<br />

É nesse sentido, que se pode afirmar que a preocupação do Estado Português era<br />

específica e estava volta<strong>da</strong> para a implementação <strong>da</strong> agricultura mercantil, do<br />

povoamento e <strong>da</strong> defesa e consoli<strong>da</strong>ção de sua soberania territorial na Colônia. De<br />

forma semelhante, as concessões de terras se definiam de maneira privilegia<strong>da</strong> e<br />

excludente: voltava-se para a formação de grandes proprie<strong>da</strong>des destina<strong>da</strong>s à agricultura<br />

de exportação e passava a exigir, em face às dificul<strong>da</strong>des de consecução de mão-de-obra<br />

livre, migrante, a incorporação do trabalho escravo, que era facilita<strong>da</strong> pelo tráfico préexistente.<br />

Em face de to<strong>da</strong>s estas contigências e necessi<strong>da</strong>des, as concessões eram feitas<br />

apenas em favor dos "homens de posses ou cali<strong>da</strong>de". Segundo <strong>Alberto</strong> Passos<br />

Guimarães, mais de posses que de “cali<strong>da</strong>de”, sendo, neste sentido, excludente, em<br />

relação à população em geral.<br />

Apesar disso, as medi<strong>da</strong>s reguladoras instituí<strong>da</strong>s, acabaram por se constituir em<br />

obstáculos à legitimação <strong>da</strong>s terras possuí<strong>da</strong>s, mesmo quando formalmente concedi<strong>da</strong>s<br />

54 GUIMARÃES, 1981.<br />

40


pelo Estado. Este fenômeno será, sobretudo, agravado em face <strong>da</strong>s exigências legais, do<br />

formalismo jurídico e <strong>da</strong>s implicações e exigências de ordem burocrática, que o<br />

processo de legalização <strong>da</strong>s terras possuí<strong>da</strong>s exigia.<br />

Considerando-se, por um lado, que o direito sobre a terra, isso é, o<br />

reconhecimento formal <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, apenas poderia ser materializado após a<br />

confirmação real; e que, por outro lado, ao nível <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de concreta <strong>da</strong> Colônia, <strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

as suas dimensões, condições geográficas e à ausência de especialistas habilitados para<br />

realizar os levantamentos topográficos, medições, etc., raras vezes estas exigências<br />

legais foram cumpri<strong>da</strong>s. Sob alegações desta natureza, além dos custos efetivamente<br />

envolvidos nas ativi<strong>da</strong>des que o processo de legitimação impunha, o fato é que, a<br />

legalização <strong>da</strong>s sesmarias, apenas em raras ocasiões, foi realizado. E, ain<strong>da</strong> assim,<br />

quando era realizado, geralmente fun<strong>da</strong>va-se em procedimentos meramente<br />

declaratórios: em estimativas genéricas de áreas, limites e confrontações, feitas pelos<br />

próprios sesmeiros.<br />

Este fenômeno está na origem do processo de emissão de títulos de proprie<strong>da</strong>de<br />

que não apresentam coerência e, na maioria dos casos, não coincidem com as áreas, às<br />

quais se deveriam referir.<br />

Por outro lado, mesmo quando confirma<strong>da</strong>s, muitas sesmarias caíram em<br />

comisso, por não terem cumprido, com o passar do tempo e em face <strong>da</strong>s sucessivas<br />

crises econômicas, às exigências defini<strong>da</strong>s nas cláusulas resolutivas, especialmente no<br />

que se referia à exploração efetiva e mora<strong>da</strong> habitual do cossessionário ou de seu<br />

representante. Ou pelo puro e simples abandono <strong>da</strong>s terras recebi<strong>da</strong>s. Tais fenômenos<br />

<strong>da</strong>vam ensejo às terras devolutas, isto é, devolvi<strong>da</strong>s ao patrimônio do Estado, conceito<br />

este, que com o tempo, passou a estender-se, no Brasil, à qualquer área que não tivesse<br />

nenhuma destinação ou utilização, por parte do Estado nem pertencessem, por título<br />

legítimo, a particulares.<br />

Outra particulari<strong>da</strong>de relevante para a situação brasileira, referia-se às dimensões<br />

<strong>da</strong> áreas cedi<strong>da</strong>s em sesmarias. As normas reguladoras, conti<strong>da</strong>s nos Regimentos, assim<br />

como nos diversos atos administrativos em vigor na Colônia, faziam apenas referências<br />

vagas e subjetivas à dimensão <strong>da</strong>s áreas que deveriam ser concedi<strong>da</strong>s, recomen<strong>da</strong>ndo<br />

"não <strong>da</strong>r a ca<strong>da</strong> pessoa mais terra que aquela que boamente, segundo suas<br />

possibili<strong>da</strong>des, vos parecer poderá aproveitar." Se forem associa<strong>da</strong>s essas<br />

condições, puramente formais e subjetivas, à reali<strong>da</strong>de econômica concreta <strong>da</strong><br />

agricultura colonial, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na exploração extensiva e no escravismo, portanto,<br />

"pre<strong>da</strong>dora de terras e de homens 55 ", na qual era baixíssima a produtivi<strong>da</strong>de do<br />

trabalho, tornam-se compreensíveis as razões <strong>da</strong>s concessões <strong>da</strong>s imensas sesmarias,<br />

especialmente no Nordeste brasileiro, onde se destinavam à produção do açúcar ou à<br />

pecuária rústica, nos sertões; e, mais tarde, nas regiões produtoras de café,<br />

especialmente no Vale do Paraíba.<br />

55 GUIMARÃES (1981).<br />

41


A Carta Régia de 1695 assinala a primeira tentativa efetiva <strong>da</strong> Coroa Portuguesa<br />

no sentido de restringir o tamanho <strong>da</strong>s áreas a serem <strong>da</strong><strong>da</strong>s em sesmarias e a impor<br />

outras exigências além do dízimo. Este diploma legal estabelecia que para as pessoas a<br />

quem fossem, no futuro, concedi<strong>da</strong>s sesmarias, ser-lhe-iam exigi<strong>da</strong>s, além <strong>da</strong> obrigação<br />

de pagar o dízimo <strong>da</strong> Ordem de Cristo e as demais exigências costumeiras, que,<br />

igualmente, fossem obriga<strong>da</strong>s ao pagamento de "um foro segundo a grandeza e<br />

bon<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra" e que, "não se conce<strong>da</strong> a ca<strong>da</strong> morador de sesmaria mais de<br />

quatro léguas de cumprimento e uma de largura."<br />

As medi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Coroa Portuguesa, sobretudo, as referentes às exigências de<br />

limitação de áreas, número de sesmarias por concessionários e suas famílias, bem como<br />

ao pagamento de tributos, além do dízimo de Cristo, que vinham desde a origem do<br />

sistema em 1375, oscilavam, ora restringindo, ora possibilitando, a expansão <strong>da</strong>s<br />

sesmarias, sobretudo no que toca à áreas e ao número de concessões por sesmeiros. Por<br />

exemplo, após a Carta Régia de 1695 cita<strong>da</strong> acima, restringindo as dimensões para ca<strong>da</strong><br />

concessionário, a Carta de 1698 fixava a área em duas léguas, no máximo. Menos de um<br />

ano depois, a Carta Régia de 20 de janeiro de 1699, enquanto estabelecia um foro por<br />

légua concedi<strong>da</strong> e reafirma a exigência de medição e demarcação, abria a possibili<strong>da</strong>de<br />

de expansão dos limites <strong>da</strong>s sesmarias, para "as pessoas que tivessem terras e<br />

sesmarias, ain<strong>da</strong> que de muitas léguas, se as tivesse povoado e cultivado. 56 "<br />

Nesses casos, poderiam ser concedi<strong>da</strong>s novas sesmarias.<br />

Esses avanços e recuos <strong>da</strong> legislação verificaram-se por todo o período colonial<br />

e estavam, sobretudo, associados às expectativas econômicas do Reino e as pressões dos<br />

proprietários de sesmarias, em determina<strong>da</strong>s conjunturas e regiões determina<strong>da</strong>s.<br />

Entretanto, a legislação vai tornando ca<strong>da</strong> vez mais rígidos os critérios de legitimação<br />

<strong>da</strong>s sesmarias e demais posses territoriais, sobretudo, na medi<strong>da</strong> em que as<br />

confirmações reais passam a ser, permanentemente, dificulta<strong>da</strong>s pela ausência de<br />

condições de demarcação e definição de limites e confrontações. É nesse sentido que a<br />

proprie<strong>da</strong>de territorial rural no Brasil permanece, na hipótese defendi<strong>da</strong> neste trabalho,<br />

ilegítima: ou seja, que salvo em raríssimos casos, as concessões ou não foram<br />

confirma<strong>da</strong>s ou não foram legalmente titula<strong>da</strong>s. Essa questão <strong>da</strong> legalização será<br />

retoma<strong>da</strong> em detalhes, ao se discutir, nos capítulos 2, 3 e 4, as formas legais de registro<br />

e suas condições de efetivi<strong>da</strong>de. No caso acima, referente ao período colonial, as<br />

concessões ulteriores evidenciam que tais determinações, na prática, não foram<br />

implementa<strong>da</strong>s 57 .<br />

A Carta Régia de outubro de 1753, ordenava que não fossem concedi<strong>da</strong>s<br />

sesmarias a quem já as houvesse recebido, e estabelecia como critério, para reforçar tal<br />

impedimento, que fosse exigido dos pleiteantes, que "jurassem... não possuírem<br />

sesmaria alguma." 58 De qualquer maneira, apesar do seu caráter subjetivo, esta<br />

56 COSTA PORTO (S.d.).<br />

57 Ver a este respeito, LIMA (1954) e COSTA PORTO (S.d.).<br />

58 Carta Régia de 20 de outubro de 1753.<br />

42


determinação oferece a perspectiva para que se compreen<strong>da</strong> o emaranhado processo de<br />

privilegiamento na concessão de proprie<strong>da</strong>de, que vinha persistindo na Colônia, e que já<br />

se configurava em uma situação de grave concentração <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial, na<br />

época. Bem entendido, tratavam-se <strong>da</strong>s terras passíveis de serem economicamente<br />

explora<strong>da</strong>s, ou seja, as que se situavam, em termos de localização e fertili<strong>da</strong>de,<br />

próximas às regiões mais densamente povoa<strong>da</strong>s e acessíveis. Neste sentido, tem razão<br />

<strong>Alberto</strong> Passos Guimarães ao defender o ponto de vista de que as posses agiram como<br />

alternativa à quebra de monopólio do latifúndio; entretanto é necessário registrar e ter<br />

em estrita consideração, que essas pequenas posses, a que se refere, certamente, Passos<br />

Guimarães, apenas tinham a possibili<strong>da</strong>de de se implantarem sob duas condições:<br />

(a) A margem do consentimento legal por parte do Estado, portanto,<br />

ilegitimamente, sendo, por este motivo, sempre passíveis de expropriação,<br />

confisco, ou de mera incorporação pelo latifúndio, ou<br />

(b) nas franjas ou periferia <strong>da</strong>s regiões latifundiárias, logo nas "piores terras"<br />

em termos de localização e fertili<strong>da</strong>de, sujeitas aos ataques indígenas, e outras<br />

limitações, e, ain<strong>da</strong> assim, igualmente ilegítimas e sempre passíveis de<br />

incorporação pela expansão do latifúndio. Esse tipo de formação de pequenas<br />

posses sempre ocorreu em todo o período colonial e coexistiu com o sistema<br />

de sesmarias 59 .<br />

De qualquer forma, as determinações conti<strong>da</strong>s nestas Cartas de Doação, Forais,<br />

etc., nunca, ou quase nunca, interferiram de maneira efetiva na formação e<br />

desenvolvimento do processo de apropriação, especialmente quando se tratavam dos<br />

latifúndios. Estes grassavam, tanto sob o manto protetor <strong>da</strong> legislação vigente, quando<br />

eram legitimados; quanto, sobretudo, à margem <strong>da</strong> lei, especialmente, pelo avanço <strong>da</strong>s<br />

grandes posses. Esta situação estará na ordem do dia, quando é posta a questão <strong>da</strong><br />

“legitimação <strong>da</strong>s posses”, no âmbito do debate parlamentar que precedeu a<br />

aprovação <strong>da</strong> primeira Lei de Terras do Brasil Independente, na déca<strong>da</strong> de 1840.<br />

Por outro lado, é necessário ter muito claro que a legislação, enquanto tal, isto é,<br />

em seu aspecto estritamente jurídico, formal, nunca impediu que, preenchi<strong>da</strong>s as<br />

exigências estabeleci<strong>da</strong>s, os sesmeiros pudessem ampliar as áreas de suas concessões,<br />

mediante processos legais de compra, troca, doação de terceiros, ou outro qualquer meio<br />

ou instrumento sancionado de transferência de proprie<strong>da</strong>de. Entretanto, a pura anexação<br />

de terras públicas contíguas, ou mesmo de pequenas posses existentes nas fronteiras de<br />

expansão dos latifúndios, parece ter sido, desde sempre, o método efetivamente<br />

utilizado pelos grandes detentores de terras, para ampliarem ca<strong>da</strong> vez mais os seus<br />

domínios.<br />

59 Esta questão será estu<strong>da</strong><strong>da</strong> com maior detalhamento no capítulo 2, onde será discutido o contexto <strong>da</strong> aprovação <strong>da</strong><br />

Lei 601 de 1850 e suas implicações.<br />

43


Adquirido o domínio, isto é, a confirmação, ou titulação legal <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, o<br />

sesmeiro poderia fazer <strong>da</strong> terra quase tudo o quanto quisesse, inclusive, incorporar as<br />

terras públicas contíguas. Só lhe era ve<strong>da</strong>do o direito de arren<strong>da</strong>r a terra recebi<strong>da</strong>,<br />

"por não serem <strong>da</strong><strong>da</strong>s as sesmarias senão para os sesmeiros as<br />

cultivarem e não para repartirem e <strong>da</strong>rem a outros, o que só é<br />

permitido aos capitães e donatários." 60<br />

Em suma, a Confirmação Real <strong>da</strong> doação restringia-se ao concessionário que<br />

houvesse cumprido, no prazo definido, as cláusulas resolutivas, em particular no que<br />

referia à ocupação e exploração <strong>da</strong> terra recebi<strong>da</strong>, diretamente, ou por prepostos seus. A<br />

referência, aos “prepostos”, é relevante, posto que se encontra na origem de<br />

determinados processos de sociabili<strong>da</strong>de, através dos quais, os latifundiários começaram<br />

desenvolver a prática de permitir a residência de famílias pobres, geralmente nos limites<br />

e confrontações de suas proprie<strong>da</strong>des, mas sobretudo, <strong>da</strong>s novas áreas a elas<br />

incorpora<strong>da</strong>s, muito especialmente quando se tratavam de grandes posses, ilegítimas,<br />

sob a condição de, eventualmente, fazerem prova ou testemunharem a sua<br />

titulari<strong>da</strong>de, em caso de qualquer dissídio ou contencioso sobre a posse <strong>da</strong> terra. Além, é<br />

claro, de servirem como mão-de-obra eventual, quer fosse para o trabalho na<br />

agricultura, quer fosse para outras tarefas "menos nobres", como servirem na condição<br />

capangas, jagunços, etc.<br />

Esse fenômeno assumirá particular relevância no contexto que se seguiu à<br />

aprovação <strong>da</strong> Lei 601 de 1850, - analisado no próximo capítulo - e está na origem de<br />

determina<strong>da</strong>s relações de sociabili<strong>da</strong>de, tais como as fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s no compadrio, nos<br />

chamados “moradores de condição”, e em todo um conjunto de relações sociais de<br />

dependência e subordinação pessoal, como a de agregados e de determinados tipos de<br />

parceria etc., relações essas que sofrerão profun<strong>da</strong>s transformações 61 com o passar do<br />

tempo e, sobretudo, com a incorporação de novas áreas, em face do desenvolvimento <strong>da</strong><br />

economia nacional.<br />

É na conjuntura de meados do século XVIII que se verificam alguma mu<strong>da</strong>nças<br />

relevantes na implementação <strong>da</strong>s exigência conti<strong>da</strong>s no instituto de sesmarias. São<br />

adota<strong>da</strong>s providências legais no sentido de se efetivar a reincorporação <strong>da</strong>s áreas<br />

pertencentes às antigas Capitanias Hereditárias, ao patrimônio do Reino, embora<br />

mediante compensações financeiras ou mobiliárquicas, aos antigos donatários. Ain<strong>da</strong><br />

neste contexto, a Carta Régia de 3 de setembro de 1759, determinava o confisco dos<br />

bens dos jesuítas, incorporando ao patrimônio do Estado, uma vasta área territorrial, que<br />

se encontrava em poder <strong>da</strong> Companhia de Jesus, tornando-a passível de redistribuição<br />

nos termos do Instituto <strong>da</strong>s Terras Devolutas. Junte-se a estas providências, as já<br />

menciona<strong>da</strong>s iniciativas legislativas, no sentido de exigir maior rigor no aproveitamento<br />

60 Determinações estas, constante <strong>da</strong>s diferentes Cartas de Doação e dos Regimentos. Cf. COSTA PORTO (S.d.)<br />

61 A respeito, especificamente, destas transformações nas condições de sociabili<strong>da</strong>de e suas implicações para a<br />

“formação do proletariado brasileiro”, consultar o excelente estudo de José César Gnaccarini, especialmente, a<br />

Introdução e os capítulos 1, 3 e 4. (GNACCARINI, 1980).<br />

44


econômico <strong>da</strong>s terras, sob pena de multa ou confisco, por um lado; e outras medi<strong>da</strong>s<br />

legais, no sentido de impor a redução <strong>da</strong>s áreas a serem concedi<strong>da</strong>s.<br />

Estas medi<strong>da</strong>s administrativas e legais, ain<strong>da</strong> que tendo a sua eficácia social<br />

comprometi<strong>da</strong> por um conjunto de dificul<strong>da</strong>des, e mesmo que tendo, como,<br />

efetivamente, parece que tiveram, pequeno ou quase nenhum efeito sobre o processo<br />

concreto de apossamento e de luta pela terra; ain<strong>da</strong> assim, eram indicativas de uma<br />

conjuntura na qual o Estado estava atento aos movimentos do processo de ocupação<br />

territorial e aos desmandos, especulação, ou mera ganância e usura, que, desde sempre,<br />

acompanharam a expansão do processo de apropriação territorial na Brasil.<br />

Tais mu<strong>da</strong>nças, não por coincidência, são implementa<strong>da</strong>s no momento em que as<br />

ativi<strong>da</strong>des mineradoras ganham certo corpo no âmbito <strong>da</strong> economia colonial. Nesse<br />

contexto é que pode ser li<strong>da</strong> a problemática <strong>da</strong> tentativa, por Lisboa, de regulamentar<br />

restritivamente as áreas a serem concedi<strong>da</strong>s em sesmarias, por um lado e, por outro,<br />

como se afirmou acima, procurar equacionar o problema <strong>da</strong>s antigas capitanias,<br />

instando pela sua reincorporação ao patrimônio do Estado. No mesmo sentido, <strong>da</strong>tam<br />

deste período, outras medi<strong>da</strong>s administrativas e legais tendentes a preservar as terras sob<br />

o controle do Estado. To<strong>da</strong>s essas medi<strong>da</strong>s estão associa<strong>da</strong>s às expectativas abertas pelo<br />

chamado Ciclo <strong>da</strong> Mineração. Mesmo porque, diante <strong>da</strong> incerteza <strong>da</strong> Coroa em relação<br />

à potenciali<strong>da</strong>de e, sobretudo a localização <strong>da</strong>s prováveis jazi<strong>da</strong>s minerais, a cautela<br />

orientava o Estado a optar por limitar de forma rigorosa o processo de concessões, por<br />

um lado, e a ampliar suas exigências tributárias, por outro lado.<br />

Neste contexto, é enfatizado o princípio contido no instituto <strong>da</strong>s sesmarias, que<br />

restringia a proprie<strong>da</strong>de territorial, reforçando seu caráter de proprie<strong>da</strong>de não<br />

absolutiza<strong>da</strong>, como bem registra Roberto Smith 62 . É neste sentido que a Carta Régia de<br />

1777 reforça o princípio de que ao sesmeiro cabia apenas a posse útil <strong>da</strong> terra, sujeita às<br />

condições de resolubili<strong>da</strong>de. Ou seja, reforça-se o caráter de concessão limita<strong>da</strong> de uso,<br />

enquanto atributo fun<strong>da</strong>mental do processo de concessões de sesmarias, estabelecendose,<br />

além do dízimo <strong>da</strong> Ordem de Cristo, a cobrança de um foro por légua, conforme a<br />

"generosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra", exigência esta, já instituí<strong>da</strong> desde a Carta de 1695, quando<br />

foram, igualmente reforça<strong>da</strong>s, as exigências de medição, demarcação, cultura<br />

permanente e mora<strong>da</strong> habitual, com um rigor nunca antes verificado.<br />

Apesar dessa vasta produção legislativa, - e Portugal era pródigo em produzir<br />

legislações, normas e regulamentos 63 -, a eficácia social desse vasto aparato jurídico (e<br />

<strong>da</strong> burocracia a ele associa<strong>da</strong>) era mínima, sobretudo quando se referia aos direitos "dos<br />

comuns". Ao nível <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de concreta, continuava a expansão do processo de<br />

incorporação de terras públicas (e <strong>da</strong>s terras indígenas e ocupa<strong>da</strong>s por pequenos<br />

posseiros) ao patrimônio privado de grandes sesmeiros, à margem <strong>da</strong> Lei.<br />

62 SMITH (1990).<br />

63 Aliás, uma característica que será incorpora<strong>da</strong> à tradição administrativa e legislativa brasileira.<br />

45


Entretanto, se por um lado a eficácia jurídico-prática <strong>da</strong> legislação era mínima, e<br />

possibilitava efetivamente a legitimação privilegia<strong>da</strong>, ou seja, era mais fácil e ágil para<br />

os "homens de posses e cali<strong>da</strong>des", acima de todos, os que viviam na órbita <strong>da</strong><br />

Corte; por outro lado, esta mesma legislação, criava uma rigorosa barreira jurídica à<br />

legitimação <strong>da</strong>s terras, tanto <strong>da</strong>s sesmarias não confirma<strong>da</strong>s, ou caí<strong>da</strong>s em comisso,<br />

quanto, sobretudo, <strong>da</strong>s posses, fossem elas grandes ou pequenas.<br />

Entre as muitas restrições à legitimação, isto é, à confirmação régia, <strong>da</strong>s<br />

sesmarias concedi<strong>da</strong>s, particularmente, no que tocava às exigências de cultura<br />

permanente, mora<strong>da</strong> habitual e demarcação, como foi mencionado muitas vezes neste<br />

capítulo, estavam as condições estabeleci<strong>da</strong>s no Alvará de 25 de Janeiro de 1809, que<br />

determinava a proibição de se passar Cartas de Concessão, ou de efetivar qualquer<br />

confirmação de sesmarias anteriormente concedi<strong>da</strong>s por Governadores e autori<strong>da</strong>des<br />

provinciais, sem que houvessem sentenças transita<strong>da</strong>s em julgado. Esse fato dá uma<br />

idéia <strong>da</strong> dimensão assumi<strong>da</strong> pelo problema <strong>da</strong> ilegali<strong>da</strong>de liga<strong>da</strong> ao processo de<br />

apropriação de terras. E de como o Estado procurava criar uma barreira jurídica à<br />

legitimação desta situação que, já nessa época, era caótica e eiva<strong>da</strong> de arbitrarie<strong>da</strong>des e<br />

conflitos.<br />

É óbvio que essa decisão, como as demais de caráter jurídico ou judicial, não<br />

irão impedir que o processo de apropriação ilegítima e seus respectivos conflitos<br />

continuem. Entretanto, significarão, efetivamente, uma barreira à sua legitimação, que,<br />

por suposto, teria que ser decidi<strong>da</strong> em juízo e conforme os critérios estabelecidos em<br />

Lei, por exemplo, quanto à medição, delimitação de confrontações e limites, por um<br />

lado, e exploração e mora<strong>da</strong> habitual, por outro. Tais serão os critérios que persistirão<br />

para dirimir as deman<strong>da</strong>s judiciais pela legitimação de posses e sesmarias, no período, e<br />

que serão reafirmados pela Lei 601 de 1850. E depois desta, por to<strong>da</strong>s as legislações que<br />

se ocuparam <strong>da</strong> matéria.<br />

Nesse sentido, são relevantes os argumentos de Roberto Smith de que, no que<br />

toca ao sistema sesmarial e suas implicações para a formação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial<br />

no Brasil, ele se "constituiu sempre um campo amorfo e indefinido por onde<br />

vicejaram os interesses econômicos”. E que, no sentido de tentar impedir a<br />

formação de grandes proprie<strong>da</strong>des impordutivas, o sistema de sesmarias foi tornado<br />

"letra morta". E arremata, de forma contundente:<br />

"o que nem sempre é compreendido, e às vezes até<br />

obscurecido pelo viés <strong>da</strong> ortodoxia - que procura sempre<br />

enfatizar que as leis não modificam a 'base econômica' - é que a<br />

vigência <strong>da</strong> ordenação sesmarial foi, sobretudo, impeditiva<br />

<strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> fundiária. 64 "<br />

Esse problema, agravou-se ain<strong>da</strong> mais pelo avanço desenfreado <strong>da</strong>s posses, no<br />

período de 28 anos que se estendeu de julho de 1822, quando o sistema sesmarial é<br />

extinto no Brasil sem que tenha sido substituído por nenhum tipo de regulamentação no<br />

64 SMITH (1990., pp.344 - 345. Grifos nossos).<br />

46


que toca ao acesso à terra, até a aprovação <strong>da</strong> Lei de 601, de 1850. Este período é<br />

conhecido como o "Império <strong>da</strong>s Posses”. Apesar <strong>da</strong> extinção do regime sesmarial e<br />

<strong>da</strong> suspensão de concessões, pela Resolução 76, de 17-07-1822, e de não entrar em<br />

vigor nenhuma regulamentação jurídica que disciplinasse o assunto, o processo de<br />

incorporação <strong>da</strong>s terras públicas, mas não só destas, ao patrimônio privado, continuou<br />

mais célere que nunca. Tanto o Governo Imperial procedeu a concessões de sesmarias<br />

neste período, por expressa determinação do Imperador e contrariando à norma<br />

estabeleci<strong>da</strong> - que man<strong>da</strong>va "suspender a concessão de sesmarias até a<br />

convocação <strong>da</strong> Assembleia Nacional Constituinte e Legislativa" - quanto<br />

prosseguiu o avanço <strong>da</strong>s posses. Sobretudo <strong>da</strong>s grandes posses.<br />

Esse é um fenômeno característico nas relações entre o direito e a socie<strong>da</strong>de no<br />

Brasil, e que persistirá até os dias atuais: sempre que a Lei cria restrições ou abre<br />

exceções, na prática, as restrições destinam-se a impedir o avanço dos direitos do grosso<br />

<strong>da</strong> população, enquanto as exceções, destinam-se a permitir e mesmo, facilitar, o avanço<br />

<strong>da</strong>s regalias <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s privilegia<strong>da</strong>s, sobretudo <strong>da</strong>s suas frações próximas do poder,<br />

ou que lhe dão sustentação e legitimi<strong>da</strong>de. Desta forma permitem, objetivamente, a que<br />

essas cama<strong>da</strong>s de classe continuem a expandir seus privilégios e, sobretudo, seu<br />

patrimônio. Sob a proteção <strong>da</strong>s "exceções abertas pela Lei", e como será visto nos<br />

próximos capítulos, <strong>da</strong>s "Leis de exceção", como ocorrerá no Regime Militar, (no qual<br />

o próprio Estado passa a ser um "Estado de Exceção"), são cria<strong>da</strong>s as condições<br />

efetivas para assegurar os privilégios e, sobretudo o poder econômico, político e<br />

patrimonial, etc., dessas cama<strong>da</strong>s privilegia<strong>da</strong>s, por um lado, e radicalizar a excludência,<br />

por outro, processo este, geralmente fun<strong>da</strong>do no direito e na violência fora <strong>da</strong> lei. Essa é<br />

a lógica que vem presidindo as Políticas de Terras no Brasil, desde o período Colonial:<br />

privilégio e excludência: Direitos formalmente garantidos, e violência, pública e,<br />

sobretudo, priva<strong>da</strong> (sob a proteção pública) como forma de exercício do poder, na luta<br />

pela consoli<strong>da</strong>ção e alargamento dos privilégios, antes de todos, os ligados à<br />

proprie<strong>da</strong>de territorial e ao "poder local". Uma dialética perversa que pode, muito bem,<br />

caracterizar a dinâmica <strong>da</strong>s políticas de Terras, desde a Colônia e o Império, e que<br />

atinge seu ápice no período do Regime Militar, onde a "simbiose" entre a violência<br />

'legítima' exerci<strong>da</strong> pelo Estado" e a violência ilegítima, exerci<strong>da</strong> por grupos privados,<br />

passam a fazer parte do cotidiano <strong>da</strong> luta pela terra no País.<br />

Como se vinha afirmando, - antes <strong>da</strong>s ilações mais gerais do parágrafo anterior -<br />

os problemas agravados no período do “império <strong>da</strong>s posses” eclodirão durante o<br />

acirrado debate legislativo que levou a aprovação <strong>da</strong> Lei de Terras e, sobretudo, após a<br />

sua regulamentação, em 1854.. Esse problema, <strong>da</strong><strong>da</strong> a sua relevância para este estudo,<br />

será objeto de análise detalha<strong>da</strong> no próximo capítulo.<br />

Cirne Lima, citando as memórias de Gonçalves Chaves, resume nos seguintes<br />

termos os resultados implicados para a agricultura e estrutura agrária brasileiras pelo<br />

Regime de Sesmarias:<br />

47


"Segundo a memória aludi<strong>da</strong>, os resultados produzidos pela<br />

legislação de sesmarias foram os seguintes: 1 o - Nossa população<br />

é quasi na<strong>da</strong>, em comparação com a imensi<strong>da</strong>de do terreno que<br />

ocupamos há tres séculos. 2 o - As terras estão quasi to<strong>da</strong>s<br />

reparti<strong>da</strong>s e poucas há a distribuir que não estejam sujeitas a<br />

invasão dos índios. 3 o - Os abarcadores possuem até 20 léguas de<br />

terreno e raras vêzes consentem a alguma família estabelecer-se<br />

em alguma parte de suas terras e mesmo quando consentem, he<br />

sempre temporariamente e nunca por ajuste, que deixe ficar a<br />

família por alguns anos. 4 o - Há muitas famílias pobres, vagando<br />

de lugar em lugar, segundo o favor e capricho de proprietários <strong>da</strong>s<br />

terras e sempre faltas de meios de obter algum terreno em que<br />

façam um estabelecimento permanente. 5 o - Nossa agricultura<br />

está em o maior atraso e desalento, a que ela pode reduzir-se<br />

entre qualquer povo agrícola, ain<strong>da</strong> o menos avançado em nossa<br />

civilização. 65 "<br />

Como registra Tupinambá Nascimento 66 , "a idéia de distribuição de terras<br />

conti<strong>da</strong> no regime de sesmarias é eficiente, vista sob o aspecto do cultivo do<br />

terreno e justiça social, mas se abstraindo <strong>da</strong> visão executiva do Regime", quer<br />

dizer, ele é negado pela prática do processo de ocupação e legitimação <strong>da</strong>s grandes<br />

possessões, que não atendiam às exigência de moradia habitual e cultivo efetivo do solo.<br />

Esta é, inclusive a visão de <strong>Alberto</strong> Passos Guimarães, ao afirmar:<br />

"a legislação de sesmarias, traí<strong>da</strong> em suas origens pelo<br />

monopólio feu<strong>da</strong>l, revela-se incapaz de servir às finali<strong>da</strong>des<br />

expressamente declina<strong>da</strong>s em seus textos: a disseminação de<br />

culturas e povoamento <strong>da</strong> terra. 67 ”<br />

Entretanto, dois fenômenos interessam, diretamente, neste Capítulo. Primeiro, o<br />

fato, brilhantemente defendido por Roberto Smith, de que o regime sesmarial significou<br />

um bloqueio à legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de absoluta (burguesa) <strong>da</strong> terra no Brasil.<br />

Significa isto que, se por um lado, o processo de ocupação privilegia<strong>da</strong>, seja ou não à<br />

margem <strong>da</strong> lei, avançou, no Brasil, por outro lado, com o tempo, e <strong>da</strong>do ao fato de que<br />

muitas dessas "apropriações" ou mesmo concessões, não preencheram os requisitos<br />

legais exigidos para sua confirmação pela Coroa, na ver<strong>da</strong>de, tornaram-se ilegítimas.<br />

Portanto, passíveis de serem verti<strong>da</strong>s ao patimônio do Estado, enquanto terras<br />

devolutas.<br />

Segundo, que o fato acima significa, do ponto de vista do Estado de Direito, do<br />

acato com vali<strong>da</strong>de social ao princípio jurídico de proprie<strong>da</strong>de, não permitir o sistema<br />

de sesmarias a constituição legal <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de absoluta, embora não tenha impedido a<br />

formação real <strong>da</strong>s grandes posses, torna<strong>da</strong>s em latifúndios, e seu sistema iníquo,<br />

privilegiado, que passou a dominar a paisagem do Brasil Rural. Tratam-se, portanto, de<br />

proprie<strong>da</strong>des ilegítimas em sua origem, salvo os raros casos de sesmarias confirma<strong>da</strong>s<br />

65 LIMA (op. cit., pp. 42 e 43).<br />

66 NASCIMENTO (1985, p.13).<br />

67 GUIMARÃES (1981, p.57).<br />

48


que não caíram em comisso ou as revali<strong>da</strong><strong>da</strong>s pela Lei 601, ou <strong>da</strong>s posses que foram<br />

ulteriormente legitima<strong>da</strong>s.<br />

Tendo-se em consideração este contexto, aqui se antecipa uma argumentação<br />

fun<strong>da</strong>mental desta pesquisa. Como será posto em evidência no decorrer deste estudo,<br />

em nenhum momento foram plenamente preenchidos os requisitos, legalmente exigidos,<br />

para a legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, sobretudo no que toca à efetiva exploração, mora<strong>da</strong><br />

habitual e o mais importante, juridicamente, a demarcação de limites e confrontações e<br />

registros de proprie<strong>da</strong>de. Portanto, que também não foram, na esmagadora maioria dos<br />

casos, lavrados os documentos (Registros, Escrituras) na forma exigi<strong>da</strong> pela legislação<br />

pertinente. No próximo capítulo, ao discutir a Lei 601 de 1850, ter-se-á a oportuni<strong>da</strong>de<br />

de por em evidência, que as maiores divergências em relação ao Projeto de Lei de<br />

Terras, pautavam-se ao problema <strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong>s posses e revali<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s sesmarias<br />

caí<strong>da</strong>s em comisso ou irregulares, por um lado; e acerca dos impostos e tributos, por<br />

outro. Os aspectos ligados à colonização estrangeira, enquanto alternativa à substituição<br />

do trabalho escravo, constituiram-se, quase, que em unanimi<strong>da</strong>de, entre os legisladores.<br />

As divergências, neste caso, referiam-se à questionamentos quanto às formas do<br />

financiamento do processo de emigração. É por esta razão, como será detalhado no<br />

próximo capítulo, que é importante enfatizar que a lei 601 de 1850 é uma lei de terras<br />

e não de imigração: sua preocupação e objetivo central era, portanto, assegurar a<br />

legitimação privilegia<strong>da</strong> <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, contra a possibili<strong>da</strong>de de sua democratização.<br />

Daí sua vinculação à detemina<strong>da</strong>s teses de Wakefield. Talvez aí se encontre, também, a<br />

explicação para o fato, aparentemente contraditório, desta Lei ter sido conduzi<strong>da</strong> e<br />

aprova<strong>da</strong> por gabinetes conservadores e sob vigorosa oposição dos liberais. Este<br />

assunto será objeto do próximo capítulo.<br />

Esta situação ganha maior relevância após a Independência e com o<br />

desenvolvimento e integração <strong>da</strong> economia nacional, nas primeiras déca<strong>da</strong>s do século<br />

XIX. Neste contexto, o vazio criado pela omissão administrativa e legal, sobretudo no<br />

período de do Império <strong>da</strong>s Posses (1822-1850) quando não existia nenhuma norma<br />

especificamente reguladora do acesso à terra, gerou o ambiente propício ao<br />

apossamento desordenado de terras públicas, que desde então tornou-se uma constante<br />

na história agrária do Brasil, agravando ain<strong>da</strong> mais o quadro caótico her<strong>da</strong>do do sistema<br />

sesmarial, como será estu<strong>da</strong>do com detalhes no próximo capítulo.<br />

49


CAPÍTULO 2<br />

CRISE <strong>DO</strong> SISTEMA SESMARIAL E REESTRUTURAÇÃO <strong>DA</strong>S RELAÇÕES<br />

DE PROPRIE<strong>DA</strong>DE<br />

1. Contexto e Conjuntura <strong>da</strong> Crise<br />

O sistema sesmarial, gestado em uma conjuntura econômica e sócio-cultural<br />

longínqua, destinado, originalmente, à tentativa de reorganização <strong>da</strong>s relações de<br />

proprie<strong>da</strong>de no contexto de uma formação social emergente que se estruturara sobre<br />

conflitos territoriais e desenvolveria no âmbito do mercantilismo, sofrerá inúmeras<br />

crises e reestruturações, ain<strong>da</strong> em Portugal, desde as suas origens remotas no século<br />

XIV 68 . Do ponto de vista jurídico, o próprio instituto é institucionalizado no contexto<br />

de grave crise 69 e no bojo <strong>da</strong> Revolução de Avis, no reinado de D. Fernando, em 1375.<br />

Passará, ulteriormente, por um conjunto complexo de redefinições e consoli<strong>da</strong>ções na<br />

medi<strong>da</strong> em que Portugal articula-se com a corrente cau<strong>da</strong>losa do desenvolvimento<br />

mercantilista e <strong>da</strong> expansão colonial 70 , entretanto, perdendo, ca<strong>da</strong> vez mais, a sua<br />

relevância e eficácia social e econômica, sobretudo, na medi<strong>da</strong> em que o poder político<br />

no Pequeno Reino desloca seu ponto de sustentação para os setores ligados à economia<br />

mercantil e ao lucro de alienação.<br />

Segundo Faoro 71 , Portugal desde muito cedo deixa de ser uma Monarquia<br />

Agrária para fun<strong>da</strong>r-se numa forte aliança com o capital mercantil 72 . Faoro vale-se <strong>da</strong><br />

68 Vide capítulo 1 deste estudo. Para uma análise mais detalha<strong>da</strong> e profun<strong>da</strong> dessa conjuntura ver o excelente<br />

trabalho de Virgínia Rau (op. cit.).<br />

69 Esse contexto de crise é assim descrito por Virgínia Rau: "No meio do século XIV a economia <strong>da</strong> terra tinha<br />

perdido o equilíbrio e a desorganização agrária corria a par com a instabili<strong>da</strong>de monetária e a alteração<br />

dos valores sociais. A rarefação <strong>da</strong> população campesina, pela peste ou pela fuga, a hipertrofia dos<br />

centros urbanos, conjuntamente com a nova autori<strong>da</strong>de social de mesteirais e mercadores, geravam o<br />

grande drama econômico português e europeu. Para se opor ao êxodo <strong>da</strong> população do campo para as<br />

ci<strong>da</strong>des, à escassez de mão-de-obra e ao encarecimento dos salários, à decadência agrícola e ao<br />

aumento <strong>da</strong> indústria pastoril, os legistas jungiram todos os elementos julgados susceptíveis de suster a<br />

crise e deram corpo a uma norma jurídica, mais tarde denomina<strong>da</strong> <strong>da</strong>s Sesmarias." (op. cit.,pp.142-143).<br />

70 Acerca <strong>da</strong> problemática e especifici<strong>da</strong>de do sistema colonial em sua feição moderna, articula<strong>da</strong> ao<br />

desenvolvimento do capitalismo mercantilista, ver o trabalho de NOVAIS (op. cit).<br />

71 op. cit. capítulo I.<br />

50


formulação de L. Trotsky sobre o “desenvolvimento desigual e combinado” para<br />

explicar o destaque do Estado português e sua política colonial no Brasil em relação à<br />

socie<strong>da</strong>de; os “saltos” <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> retar<strong>da</strong>tária em relação à evolução “normal” face aos<br />

acicates impostos pelo mercado mundial; a combinação de fases distintas e amálgama<br />

de formas “arcaicas” com modernas. Nesse novo contexto o sistema sesmarial é<br />

retomado nos contornos do colonialismo moderno, muito mais como recurso de<br />

ocupação, colonização e defesa 73 contra possíveis ingerências territoriais estrangeiras,<br />

na conjuntura do acirramento <strong>da</strong> contradições gesta<strong>da</strong>s pela concorrência internacional<br />

mercantilista, ain<strong>da</strong> que mantendo, como sempre, o seu caráter administrativo, fiscal e,<br />

sobretudo tributário.<br />

É neste sentido que, ao ser transposto para o Brasil, o instituto, necessariamente,<br />

sofrerá profun<strong>da</strong>s transformações, e não poderá, evidentemente, cumprir as suas funções<br />

e realizar os seus objetivos primitivos, sobretudo, o de garantir a legitimação, apenas,<br />

<strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des produtivas. No caso do Brasil, desde o início do período colonial, o<br />

seu objetivo fun<strong>da</strong>mental era a garantia de ocupação e defesa do território, enquanto<br />

domínio do Estado e <strong>da</strong> Coroa, muito mais do que a sua ocupação efetivamente<br />

produtiva, embora esta, é claro, fosse condição mínima necessária, fun<strong>da</strong>mental para<br />

assegurar a reprodução do sistema econômico e político como um todo. E neste sentido,<br />

estrutura-se com base na grande proprie<strong>da</strong>de escravista e mercantil agro-exportadora<br />

açucareira 74 , uni<strong>da</strong>de produtiva esta que, dita<strong>da</strong> pelas necessi<strong>da</strong>des impostas pela<br />

reali<strong>da</strong>de econômica e política <strong>da</strong> Colônia, representava, de fato, um determinado nível<br />

de desvirtuamento do Instituto, estando na origem <strong>da</strong> formação do latifúndio, sobretudo<br />

improdutivo, no Brasil.<br />

Provavelmente, esse fato, concreto, real, explique a "tolerância" por parte do<br />

Estado português, em relação a determinado nível de "desvirtuamento" do instituto<br />

sesmarial na Colônia. Segundo Raymundo Faoro,<br />

"depois de perder o caráter administrativo que lhe fora infundido<br />

pelos legisladores de Portugal, para acentuar seu conteúdo<br />

dominial, o regime de sesmarias gera, ao contrário de seus<br />

propósitos iniciais, a grande proprie<strong>da</strong>de. Para chegar a essas<br />

linhas de contorno, muito se deve ao influxo <strong>da</strong> escravidão e ao<br />

aproveitamento extensivo <strong>da</strong> pecuária, fatores que se aliam ao<br />

fato de que, para requerer e obter sesmaria, era necessário o<br />

72 FAORO (op. cit). Esse aspecto é igualmente realçado por Roberto Smith (op. cit.) Ver especialmente, as páginas<br />

343-344.<br />

73 Características essas que, aliás, também estiveram associa<strong>da</strong>s à organização primitiva do sistema sesmarial em<br />

Portugal desde o período que Virgínia Rau (op. cit.) denomina de "Reconquista". Tratava-se, portanto, de um recurso<br />

de colonização efetiva do território, inicialmente fun<strong>da</strong>do nas antigas "Presúrias", meras ocupações <strong>da</strong>s terras<br />

conquista<strong>da</strong>s aos mouros. O sistema de sesmarias, portanto, deveria, consoli<strong>da</strong><strong>da</strong> a paz, constituir-se em uma política<br />

específica de colonização, fun<strong>da</strong>do em concessões de caráter administrativo e tributário, pelo Estado, e tendo como<br />

condição básica, a exploração efetiva do solo. Portanto, desde suas origens mais primitivas o instituto <strong>da</strong>s sesmarias<br />

já era estabelecido como alternativa à ocupação produtiva do solo, enquanto forma pacífica de garantir o domínio<br />

territorial pelo Estado.<br />

74 Ver a respeito dessa conjuntura: PRA<strong>DO</strong> JR (op. cit.); FAORO (op. cit.); GUIMARÃES (op. cit.); SIMONSEN<br />

(op. cit.) entre muitos outros estudiosos <strong>da</strong> História Econômica e <strong>da</strong> economia brasileira, citados no decorrer deste<br />

trabalho.<br />

51


prévio prestígio político, confia<strong>da</strong> a terra não ao cultivador<br />

eventual, mas ao senhor de cabe<strong>da</strong>is ou titular de serviços<br />

públicos". Instaura-se plenamente a figura dominante <strong>da</strong><br />

“sesmaria de engenho. 75 ”<br />

Daí também que, na medi<strong>da</strong> em que os riscos de per<strong>da</strong> <strong>da</strong> hegemonia e do<br />

domínio territorial <strong>da</strong> Colônia sejam superados, ocorram as reitera<strong>da</strong>s tentativas,<br />

mediante os diferentes Alvarás que, em distintos períodos e conjunturas econômicas,<br />

são propostos com o objetivo de fazer o instituto <strong>da</strong>s sesmarias retornar ao seu eixo<br />

primitivo de garantir, apenas, as concessões territoriais condiciona<strong>da</strong>s à ocupação<br />

produtiva <strong>da</strong> terra e ao cumprimento <strong>da</strong>s demais cláusulas de resolubili<strong>da</strong>de,<br />

particularmente, no tocante ao pagamento de foros e tributos que, paulatinamente, são<br />

acrescidos ao primitivo dízimo <strong>da</strong> Ordem de Cristo, sobretudo na medi<strong>da</strong> em que a<br />

economia colonial crescia e se tornava mais complexa e importante para o Orçamento<br />

Metropolitano. Entretanto, apesar de todos os possíveis desvirtuamentos e crises, uma<br />

característica, efetivamente a mais importante do instituto de sesmarias, é manti<strong>da</strong> - pelo<br />

menos formalmente 76 - em todo o período de aproxima<strong>da</strong>mente cinco séculos: a de não<br />

possibilitar a absolutização (embora, não também, o enfeu<strong>da</strong>mento) <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de<br />

territorial, especialmente, a rural, no caso do Brasil 77 . Especialmente a partir de meados<br />

do século XVIII, quando, diante <strong>da</strong> anarquia reinante na estrutura fundiária, começa a<br />

impor limitações muito rigorosas ao reajustamento produtivo <strong>da</strong> economia às novas<br />

condições de produção, situação esta que se tornará insustentável nas primeiras déca<strong>da</strong>s<br />

do século XIX. O enquadramento legal dessa característica <strong>da</strong> Colônia, frontalmente<br />

contrário às Ordenações Filipinas, é exposto sucintamente por Ruy Cirne Lima, quando<br />

afirma:<br />

75 Op. cit., p. 407.<br />

76 Aqui se diz "formalmente" no sentido de que a exigência é legalmente assegura<strong>da</strong>, portanto se constituindo em<br />

condição "sine qua non" à legalização <strong>da</strong>s possíveis ocupações territoriais que, de fato, isto é, à margem <strong>da</strong>s normas<br />

reguladoras do acesso à proprie<strong>da</strong>de, nunca deixaram de ocorrer. Entretanto, ao serem formalmente, isto é,<br />

legalmente, manti<strong>da</strong>s as normas reguladoras do acesso e legitimação <strong>da</strong>s terras, de fato, era cria<strong>da</strong> uma situação, na<br />

qual, as apropriações que não se ajustassem a essa exigência, também apenas "aparentemente" se constituíam em<br />

ver<strong>da</strong>deiras proprie<strong>da</strong>des, posto que dependiam sempre de confirmação, isto é, reconhecimento, por parte do Estado.<br />

Isso fazia com que todo o processo retornasse aos termos do instituto de sesmarias, portanto podendo, nestes casos,<br />

fazer valer as exigências formais, e implicar, assim, o confisco <strong>da</strong> terra e, mais que isso, até a prisão, dependendo <strong>da</strong><br />

conjuntura e do "status" do ocupante ou posseiro. Portanto, esse "formalismo jurídico" em sua contradição com o fato<br />

concreto <strong>da</strong>s ocupações, era uma carta forte na manga do Estado Colonial, sobretudo porque, mesmo as concessões<br />

legalmente feitas, não asseguravam a absolutização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de. Tratava-se de um duplo artificio legal a impedir a<br />

efetivação do processo de apropriação. Esta característica do instituto jurídico <strong>da</strong> sesmaria dá razão a Faoro ao<br />

defender a tese de que, em Portugal, a proprie<strong>da</strong>de territorial, nos termos do instituto <strong>da</strong> sesmaria, bloqueia o<br />

enfeu<strong>da</strong>mento; e a Roberto Smith ao referir-se ao fato de que a proprie<strong>da</strong>de territorial, neste contexto, tanto em<br />

Portugal como no Brasil, não se absolutiza: isto é, que embora não sendo feu<strong>da</strong>l, também, não assume o caráter<br />

absoluto, mercantil, <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de burguesa. Este ponto de vista é aqui defendido, constituindo-se num dos<br />

pressupostos básicos <strong>da</strong> hipótese de trabalho.<br />

77 Sim, porque a proprie<strong>da</strong>de imobiliária urbana estava igualmente sujeita ao mesmo instituto em Portugal e, depois,<br />

no Brasil Colonial. As implicações e relevância desse fato, será claramente senti<strong>da</strong> no Brasil, em 1808, com a<br />

chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> Corte portuguesa após à fuga decorrente <strong>da</strong> invasão <strong>da</strong>s tropas de Junot, quando diversas residências,<br />

sítios, quintas e até fazen<strong>da</strong>s, são simplesmente requisitados pelo Poder Real, para alojar a Corte, passando a ser<br />

efetivamente incorpora<strong>da</strong> ao patrimônio <strong>da</strong> Coroa, embora sob determina<strong>da</strong> ren<strong>da</strong> arbitra<strong>da</strong> pelo Estado, com a<br />

simples afixação <strong>da</strong>s iniciais "PR" (Proprie<strong>da</strong>de Real) em suas facha<strong>da</strong>s. Esse fenômeno será, desde então marcado<br />

no imaginário e na consciência "nativista" brasileira, em relação à sujeição "reinol" e será um dos móveis ideológicos<br />

<strong>da</strong> resistência que permeará to<strong>da</strong> a crise que levou a independência e ao Segundo Reinado.<br />

52


“o espírito dominialista inspira as disposições novas: as<br />

concessões de sesmarias são meramente concessões<br />

administrativas (e não priva<strong>da</strong>s) sobre o domínio público.” 78<br />

Por outro lado, permanece, em letra de lei, a obrigação ao cultivo <strong>da</strong> terra<br />

sesmarial, como expresso no Alvará de 5 de janeiro de 1785 (que consoli<strong>da</strong> a<br />

legislação). Ao lado <strong>da</strong> concessão sesmarial, obtém-se a proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra, não<br />

legitima<strong>da</strong> pelo Estado, pelo simples apossamento. Quando a legislação de sesmarias é<br />

aboli<strong>da</strong>, em 1822, cria-se um vácuo legal que, segundo o entendimento de Cirne Lima -<br />

do qual se discor<strong>da</strong> neste trabalho - dá lugar ao apossamento de terras como único modo<br />

legítimo de apropriação, tanto mais legítimo quando a Lei de Terras de 1850 irá torná-lo<br />

legal - pelo apelo ao direito consuetudinário, conforme a argumentação de Cirne Lima -<br />

valendo-se do instituto <strong>da</strong> legitimação.<br />

Neste entendimento, esta legitimação não se ateve ao propósito tão somente de<br />

evitar uma hecatombe na grande lavoura - no caso de as grandes posses não se haverem<br />

legitimado - mas, acima de tudo porque a posse com trabalho produtivo é fonte<br />

antiquíssima de apropriação no direito português, e, pela via legítima do costume, se<br />

arraigou por igual no direito brasileiro. Provisão de 14 de março de 1822, cita<strong>da</strong> por<br />

Cirne Lima, ao regular medições e demarcações de sesmarias proíbe prejuízos a<br />

eventuais ocupantes com cultura efetiva do terreno, conservando-os em suas posses 79 .<br />

Por outro lado, como registra Smith, "a sempre presente tentativa <strong>da</strong> Coroa de<br />

disciplinar a ordem econômica gerou dois tipos de acomo<strong>da</strong>mento", por um lado,<br />

sob o amparo e proteção do Estado e, por outro, ao nível concreto, "sob um mundo<br />

situado fora <strong>da</strong> concessão <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de estatal." 80<br />

Este último se constituiu sempre, segundo aquele autor, em um campo amorfo e<br />

indefinido por onde vicejaram os interesses econômicos. "A coroa, até o fim do<br />

regime sesmarial, em 1822, vetou a grande proprie<strong>da</strong>de fundiária e procurou<br />

de certa forma proteger a pequena posse produtiva", afirma Smith, o que parece<br />

ser uma conclusão que encontra pouco fun<strong>da</strong>mento empírico, posto que o grande<br />

problema enfrentado nessa conjuntura situava-se entre grandes posseiros e antigos<br />

sesmeiros, embora a aparência, cria<strong>da</strong> pela dimensão jurídica e pelo caráter<br />

generalizante <strong>da</strong> representação normativa, dê a impressão que se tratava de assegurar as<br />

pequenas posses, o que não correspondia aos fatos concretos.<br />

Por outro lado, ao referir-se de forma abrangente à to<strong>da</strong>s as posses (incluía<br />

grandes e pequenas) e, formalmente, assegurava os interesses destas últimas. Entretanto,<br />

como a realização de um direito formalmente garantido exige, concretamente, a<br />

"provocação" de ações no judiciário, este era e continua sendo um fator impeditivo de<br />

materialização ao nível do Direito Real. Além, é claro, <strong>da</strong>s pressões efetivamente<br />

exerci<strong>da</strong>s, ao nível concreto do quotidiano, pelos grandes posseiros e sesmeiros na luta<br />

78 Pequena história territorial do Brasil. Sesmarias e terras devolutas, 2 a ed. Porto Alegre, Sulina, 1954, p.39.<br />

79 Citado em LIMA (1954, p.52).<br />

80 SMITH (1990, p.334).<br />

53


pela terra, como aliás é vastamente documentado pela crônica <strong>da</strong> época 81 . Por outro<br />

lado, tem razão Smith, ao afirmar, na página 345, que "a grande proprie<strong>da</strong>de fez<br />

parte <strong>da</strong> economia submersa, enquanto grande posse ou sesmaria nunca<br />

confirma<strong>da</strong> 82 ", o que tem outra significação completamente distinta de "pequenas<br />

posses produtivas." Compram-se e vendem-se as terras assim apropria<strong>da</strong>s, ao arrepio<br />

<strong>da</strong> lei, porque, como diz Smith,<br />

“o escravismo conduz ao latifúndio e não o inverso. Escravo é<br />

estoque, enraizado na tradição dos valores mercantilistas” (...)<br />

“Escravo é riqueza (não o é a terra) e substrato de status <strong>da</strong><br />

classe proprietária, é garantia de dívi<strong>da</strong> (pela hipoteca, só a ele<br />

aplicável, não à terra).” 83<br />

Idêntica é a compreensão de José de Souza Martins, posto que, como afirma, no<br />

regime <strong>da</strong> subordinação <strong>da</strong> produção colonial ao capital mercantil, a condicionante<br />

maior é que a terra não pode expressar a relação-valor, na espécie de “valor” <strong>da</strong> terra,<br />

mas apenas o escravo a expressa na forma do “valor” do escravo. É nesse nexo que se<br />

manifesta a acumulação mercantil, do ponto de vista <strong>da</strong> colônia 84 . Conforme Smith:<br />

“O estatuto <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de não absolutiza<strong>da</strong> (isto é, a não<br />

instauração no plano jurídico <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial priva<strong>da</strong><br />

moderna), que conjuga as relações superestruturais do direito<br />

com a base <strong>da</strong> produção, que é mercantil, objetiva a incorporação<br />

estatal no cerne <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária, como elemento<br />

desencadeador e impulsionador dos interesses (associa<strong>da</strong>mente)<br />

mercantis e fiscais.” 85<br />

É nesse contexto mais amplo e no bojo de suas diferentes conjunturas, que se<br />

agudiza a crise do sistema sesmarial, já reconheci<strong>da</strong> pelo Estado Português 86 desde as<br />

últimas déca<strong>da</strong>s do século XVIII, e que levará a sua extinção e a tentativa de<br />

reestruturação <strong>da</strong>s relações de proprie<strong>da</strong>de no decorrer <strong>da</strong> primeira metade no século<br />

XIX.<br />

No caso do Brasil, a força <strong>da</strong>s contradições que estão envolvi<strong>da</strong>s neste processo<br />

de transição e desenvolvimento, que transcende, em muito, a mera questão <strong>da</strong><br />

regulamentação fundiária, far-se-á sentir em sua plenitude, tendo sido a parteira, tanto<br />

<strong>da</strong> sua independência política, quanto, sobretudo, <strong>da</strong> própria estruturação do poder e do<br />

Estado independentes, no bojo de uma nova ordem econômica e política, tanto interna,<br />

81 Ver Ruy Cirne Lima, op. cit.<br />

82 Op. cit. Grifos nossos.<br />

83 Op. cit. p.335.<br />

84 MARTINS (1990).<br />

85 Op. cit., p. 158.<br />

86 "Tantas foram as liberali<strong>da</strong>des nas concessões de sesmarias, com áreas e 10, 20 e até 100 léguas,<br />

com diversas doações a um mesmo requerente, que em 1822, não havia mais terras a distribuir." (Faoro,<br />

op. cit., p.407). É com essa argumentação que Faoro, baseando-se nos argumentos de Cirne Lima, afirma, a respeito<br />

suspensão formal do regime de sesmarias, que ele estava, de fato, abolido, pela ausência de terras para distribuição,<br />

mesmo antes <strong>da</strong> Resolução n o 76 de 14 de julho de 1822, que o suspendeu.<br />

54


quanto internacional 87 . Uma nova ordem fun<strong>da</strong><strong>da</strong>, agora, não nos enfraquecidos laços <strong>da</strong><br />

concorrência mercantilista, mas na hegemônica exigência de ampliação dos mercados<br />

(tanto consumidores quanto, sobretudo, de investimentos) no bojo <strong>da</strong> lógica do<br />

capitalismo industrial em franco desenvolvimento. É nesse novo contexto que devem<br />

ser localizados, tanto os processos de independência nas diversas colônias, e de ruptura<br />

do "pacto colonial", quanto os diferentes processos que engendraram Leis de terras em<br />

diversos países, assim como os processos abolicionistas.<br />

O regime de sesmarias, por outro lado, embora não impedisse o alargamento <strong>da</strong>s<br />

apropriações de terras pela via <strong>da</strong> posse ("extra-legal" ou ilegalmente), não permitia,<br />

entretanto, a legitimação <strong>da</strong>s terras assim obti<strong>da</strong>s 88 . A não ser em casos nos quais<br />

ficassem comprova<strong>da</strong>s a mora<strong>da</strong> habitual, a exploração efetiva e a medição <strong>da</strong>s terras<br />

ocupa<strong>da</strong>s por apossamentos. Tratava-se, outrossim, de uma excepcionali<strong>da</strong>de, como o<br />

caso ilustrado pela Resolução de julho de 1822, posto que a via normal apenas era<br />

assegura<strong>da</strong> pela concessão real. Daí que os posseiros fossem sistematicamente acusados<br />

de intrusos, invasores, sobretudo quando se tratavam de pequenas áreas. Mas esses<br />

casos estavam sempre regulados, ao nível <strong>da</strong> praxis, por um lado, pela ação dos<br />

latifúndios e, por outro, pelas dificul<strong>da</strong>des e riscos inerentes a esse processo de<br />

ocupação, que apenas poderia ocorrer em terras afasta<strong>da</strong>s, estando sempre sujeito a<br />

resistência dos indígenas.<br />

No caso <strong>da</strong>s grandes posses, apenas as dificul<strong>da</strong>des interpostas pelas terras<br />

sertanejas e pelos indígenas eram limitações a serem considera<strong>da</strong>s; dificul<strong>da</strong>des essas<br />

sempre supera<strong>da</strong>s pela prea aos indígenas e pelos sistemáticos massacres que, de resto,<br />

sempre afetaram os pequenos posseiros, quando esses se encontravam no caminho <strong>da</strong><br />

87 Trata-se, como bem registra Roberto Smith, <strong>da</strong> conjuntura do último quartel do século XVIII e <strong>da</strong>s primeiras<br />

déca<strong>da</strong>s do século XIX, "onde se enquadra mais significativamente a Revolução Industrial. Diante de uma<br />

perspectiva colonial, essa é a fase <strong>da</strong> desagregação do ordem colonial, onde a Independência dos<br />

Estados Unidos é evento marcante. A Revolução Francesa, a revolta dos escravos de São Domingos e o<br />

espraiamento <strong>da</strong>s idéias igualitárias e do pensamento liberal conjugam forte inflexão histórica, revelando<br />

significativa mu<strong>da</strong>nça nas relações entre os homens e dos homens com a natureza, através <strong>da</strong> técnica e<br />

do conhecimento científico acionados para a valorização do capital. Tal mu<strong>da</strong>nça estava fa<strong>da</strong><strong>da</strong> a ter<br />

grande influência econômica e política em todo o mundo colonial.” (op. cit., p.342).<br />

88 Como oportuna e corretamente registra Roberto Smith (op. cit.,p.347), em to<strong>da</strong> a sua evolução o aparato jurídico<br />

estatal colonial não serviu aos interesses de apropriação priva<strong>da</strong> <strong>da</strong> terra, dificultando sua legitimação e não<br />

permitindo sua absolutização. "O Direito público, constituiu antes, um balizamento a ser observado pelos<br />

interesses particulares e locais dos latifundiários" . Por outro lado, ain<strong>da</strong> segundo aquele autor, "os grandes<br />

proprietários... não detinham suficiente poder sobre o Estado para redirecionar o estatuto <strong>da</strong> sesmaria a<br />

seu favor."(Id. Ibidem). Entretanto, cabe registrar que isso não significa de forma alguma que as pequenas posses<br />

fossem beneficiárias do sistema. Nesse aspecto parece ter razão Faoro ao associar as dificul<strong>da</strong>des jurídicas cria<strong>da</strong>s<br />

pela legislação territorial do Reino, ao problema de assegurar, por um lado, sempre, o domínio eminente <strong>da</strong> Coroa<br />

sobre to<strong>da</strong>s as terras e, por outro, e com base no fato de que o "Rei era o maior proprietário."(Faoro, op. cit.),<br />

assegurar as condições de exploração efetiva <strong>da</strong> terra e, sobretudo, seu caráter administrativo e tributário e, dessa<br />

forma, impedir a possibili<strong>da</strong>de de qualquer espécie de enfeu<strong>da</strong>mento. No caso do Brasil o equaciomento dessa<br />

questão <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de será claramente abor<strong>da</strong>do no seio <strong>da</strong> Lei 601 de 1850 e dá razão, em sentido estritamente<br />

jurídico, às teses de Roberto Smith: pode-se observar no texto legal citado, como se verá, a distinção, aliás<br />

importantíssima, entre "Legitimação" (art. 5 o <strong>da</strong> Lei 601), destina<strong>da</strong> às posses, portanto, por suposto, considera<strong>da</strong>s<br />

ilegítimas até então; e "Revali<strong>da</strong>ção" (art. 4 o <strong>da</strong> mesma Lei), destina<strong>da</strong> às "sesmarias e outras Concessões do<br />

Governo Geral ou provincial que se acharem cultiva<strong>da</strong>s ou com princípios de cultura e mora<strong>da</strong> efetiva(...)<br />

embora não tenha sido cumpri<strong>da</strong> qualquer <strong>da</strong>s outras condições com que foram concedi<strong>da</strong>s." Como se<br />

verá, a Lei 601 assegurará a ambos os casos, o que não significa, de nenhuma forma, privilegiar a pequena posse em<br />

detrimento <strong>da</strong>s sesmarias ou latifúndios.<br />

55


expansão latifundiária. Mais uma vez, como se pode observar, a saga do privilégio e <strong>da</strong><br />

violência priva<strong>da</strong> facilitava tanto a expansão pelas grandes posses, quanto as<br />

possibili<strong>da</strong>des de sua legitimação. Havia, igualmente, o problema de grandes posses que<br />

se estabeleceram em sesmarias "abandona<strong>da</strong>s", sobretudo na área de expansão <strong>da</strong><br />

economia cafeeira. Este problema <strong>da</strong> expansão <strong>da</strong>s posses nesta áreas, sobre antigas<br />

sesmarias mais ou menos abandona<strong>da</strong>s após a decadência <strong>da</strong> mineração, estará no cerne<br />

dos conflitos entre posseiros e sesmeiros e será um dos pontos centrais do debate<br />

parlamentar, na déca<strong>da</strong> de 1840, quando se estavam definindo os critérios legais de<br />

regularização ou legitimação <strong>da</strong>s terras no Brasil e que vierem a ser a Lei 601 de 1850.<br />

Mesmo quando se tratavam <strong>da</strong>s concessões legalmente realiza<strong>da</strong>s pela Coroa, na<br />

medi<strong>da</strong> em que estavam sujeitas às clausulas de resolubili<strong>da</strong>de, permaneciam sempre<br />

limita<strong>da</strong>s pelo estatuto jurídico e concreto de proprie<strong>da</strong>des condiciona<strong>da</strong>s, nãoabsolutiza<strong>da</strong>s<br />

ou seja, que poderiam, a qualquer momento, geralmente com fun<strong>da</strong>mento<br />

nas cláusulas claramente estabeleci<strong>da</strong>s nos documentos de doação, ser confisca<strong>da</strong>s e<br />

retornar ao domínio <strong>da</strong> Coroa. Exatamente por isso não poderiam servir para fins<br />

mercantis e, sobretudo, hipotecários.<br />

Entretanto, as contradições entre a legislação e prática <strong>da</strong> apropriação efetiva,<br />

gesta<strong>da</strong>s pelo avanço <strong>da</strong>s posses e pelo não cumprimento <strong>da</strong>s cláusulas de<br />

resolubili<strong>da</strong>de (que legalmente ensejariam a anulação <strong>da</strong>s concessões), aliados à<br />

anarquia e ao privilégio, - que se transformaram em ver<strong>da</strong>deira instituição na Colônia -<br />

gestaram a situação caótica <strong>da</strong> estrutura fundiária brasileira que, já no final do século<br />

XVIII, era insustentável e que se prolongará, apesar <strong>da</strong>s tentativas reguladoras ao nível<br />

jurídico, até ou dias atuais.<br />

Esta caótica situação era claramente exposta no Alvará de 5 de outubro de 1795,<br />

que tratava de tentar regularizar de forma global a questão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária na<br />

Colônia, em cujo preambulo referia-se a "(...) abusos e irregulari<strong>da</strong>des e desordens<br />

que têm grassado...em todo o estado do Brasil". O entendimento de Cirne Lima é,<br />

entretanto, diverso deste. De acordo com ele, o sistema de posses não era ilegítimo,<br />

mas, sobretudo, pertencia aos costumes em conformi<strong>da</strong>de com abun<strong>da</strong>nte jurisprudência<br />

que cita. Esta situação impusera-se em Portugal em virtude do despovoamento<br />

resultante <strong>da</strong>s navegações e guerras de conquista e <strong>da</strong> influência crescente do direito<br />

romano. Reporta ain<strong>da</strong> que, na Lei <strong>da</strong>s Sesmarias, incorporou-se, desde então, o<br />

princípio <strong>da</strong> retenção pelo, ocupante, <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de cujo titular se ausentasse e não a<br />

lavrasse. Deste modo manifesta-se a opinião de Cirne Lima:<br />

“Era a ocupação, tomando o lugar <strong>da</strong>s concessões do Poder<br />

Público, e era, igualmente, o triunfo do colono humilde, do rústico<br />

desamparado, sobre o senhor de engenhos ou fazen<strong>da</strong>s.” 89<br />

Deste entendimento poder-se-ia concluir que a expansão inusita<strong>da</strong> <strong>da</strong>s posses a<br />

partir de 1822 estivesse sendo feita em cima <strong>da</strong>s terras de sesmarias incultas e<br />

89 Op. cit., pp. 20-1 e 47.<br />

56


abandona<strong>da</strong>s, (a maioria <strong>da</strong>s terras, se é certo que praticamente to<strong>da</strong>s as terras estavam<br />

já distribuí<strong>da</strong>s em sesmarias) e, indiferentemente, por grandes e pequenos posseiros. É<br />

este, sem dúvi<strong>da</strong>s, o raciocínio que está na base <strong>da</strong> afirmação de Maurício Vinhas de<br />

Queiroz, a <strong>da</strong> predominância historicamente possível <strong>da</strong> pequena proprie<strong>da</strong>de, não<br />

fosse a Lei de Terras de 1850.<br />

De qualquer modo, qualquer que fosse o caso, esta situação, concretamente,<br />

indicava a necessi<strong>da</strong>de de redefinição dos critérios jurídicos de legitimação <strong>da</strong>s terras<br />

que se encontravam em poder privado. As inúmeras tentativas realiza<strong>da</strong>s através dos<br />

Alvarás encontraram, sistematicamente, a resistência, tanto dos latifundiários, quanto<br />

<strong>da</strong>s burocracias <strong>da</strong> Colônia, sobretudo ao nível provincial ou local, <strong>da</strong><strong>da</strong> a estreita<br />

dependência entre a burocracia e os potentados locais que se consoli<strong>da</strong>ram<br />

definitivamente no Brasil desde o período <strong>da</strong>s Regências (Faoro).<br />

Essa necessi<strong>da</strong>de de reestruturação do estatuto legal <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de devia-se,<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente aos permanentes conflitos que começaram a aparecer entre os<br />

antigos sesmeiros e os novos grandes posseiros, que, por exemplo, assumirá<br />

características de iminente radicali<strong>da</strong>de no contexto <strong>da</strong> expansão do café sobre as<br />

antigas sesmarias, quase abandona<strong>da</strong>s, do vale do Paraíba, entendimento este, comum a<br />

Faoro e a Caio Prado Júnior. Essa problemática dos conflitos entre grandes posseiros e<br />

antigos sesmeriros está no âmago do debate parlamentar <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1840, que<br />

desembocaria na conturba<strong>da</strong> elaboração e aprovação <strong>da</strong> Lei 601 de 1850.<br />

Tal é o caso, por exemplo, do Alvará de 1795, que buscava tornar mais rigorosos<br />

os processos de doação e confirmação de sesmarias, reafirmando a exigência do<br />

cumprimento <strong>da</strong>s cláusulas de resolubili<strong>da</strong>de, pactua<strong>da</strong>s, especialmente exigindo a<br />

medição, registro, residência e exploração efetiva. Esse Alvará foi revogado, por<br />

decreto, pouco mais de um ano depois. Permanece, assim, a situação de ilegali<strong>da</strong>de para<br />

a maioria <strong>da</strong>s terras ocupa<strong>da</strong>s na Colônia, situação essa que se estenderá e agravará, até<br />

a suspensão do instituto de sesmarias, em julho de 1822, pouco antes <strong>da</strong> Independência<br />

do país, recrudescendo-se durante todo o período do "Império <strong>da</strong>s Posses" (1822-1850),<br />

quando o Estado virtualmente se retira, envolvido em problemas políticos mais<br />

emergentes, <strong>da</strong> questão específica <strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, limitando-se, apenas,<br />

ao estabelecimento de um preceito genérico acerca do problema <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de na<br />

Constituição de 1824.<br />

É nesse contexto que se articulam, ou entram em choque, as contradições,<br />

conflitos e conciliações entre o exercício legal <strong>da</strong> violência pelo Estado, por um lado, e<br />

a violência priva<strong>da</strong>, dos latifundiários, por outro, contradições estas, que sempre<br />

estiveram presentes no processo de desenvolvimento e reorganização <strong>da</strong> estrutura agrofundiária<br />

brasileira.<br />

Na ver<strong>da</strong>de o Estado, propriamente, não se retirou <strong>da</strong> questão, mas, face à<br />

conjuntura de instabili<strong>da</strong>de política do período e incapaz de fazer face às oligarquias<br />

latifundiárias <strong>da</strong>s províncias, os governantes optam por uma estratégia jurídico-política<br />

hábil e inteligente: por um lado asseguram o pleno direito de proprie<strong>da</strong>de na<br />

57


Constituição, evitando, desta forma o conflito direto com os latifundiários; por outro<br />

lado, não promovem a regulamentação infra-constitucional do preceito constitucional<br />

(artigo 179, XXII <strong>da</strong> Constituição de 1824), evitando, desta forma, envolverem-se num<br />

confronto direto com o latifúndio num momento delicado de consoli<strong>da</strong>ção do Poder<br />

Político e do Estado Independente em formação. Só que, com os direitos<br />

constitucionalmente assegurados e sem nenhuma norma reguladora que limitasse a sua<br />

ação, as grandes posses avançaram celeremente, consoli<strong>da</strong>ndo definitivamente sua<br />

posição na estrutura fundiária brasileira. Essa questão só será retoma<strong>da</strong> na déca<strong>da</strong> de<br />

1840, quando se inicia a consoli<strong>da</strong>ção do poder mediante o chamado "Golpe <strong>da</strong><br />

Maiori<strong>da</strong>de", embora na conjuntura de um equilíbrio político eminentemente instável.<br />

É neste sentido e contexto, também, que a certeza do privilégio e <strong>da</strong> impuni<strong>da</strong>de,<br />

fará com que o próprio processo de legalização (titulação) <strong>da</strong>s terras ocupa<strong>da</strong>s, sejam<br />

por posses (que necessitavam ser legitima<strong>da</strong>s) ou se tratassem, simplesmente, de<br />

sesmarias não confirma<strong>da</strong>s ou caí<strong>da</strong>s em comisso mas não arreca<strong>da</strong><strong>da</strong>s pelo Estado (que<br />

exigiam revali<strong>da</strong>ção), nunca tenha preocupado seriamente os grandes proprietários 90 . É<br />

assim que, na sua maioria, os processos de confirmação <strong>da</strong>s sesmarias, durante o<br />

período colonial, e a titulação dos diversos tipos de imóveis rurais, ulterior a Lei 601 de<br />

1850 91 , - permanecendo sempre neste último caso, como não poderia deixar de ser em<br />

um Estado de Direito, a alta exigência de que fossem realizados dentro <strong>da</strong>s formali<strong>da</strong>des<br />

legalmente estabeleci<strong>da</strong>s, inclusive prazos 92 - nunca tenham sido rigorosamente<br />

efetivados. Este fato concreto, real, torna a maioria <strong>da</strong>s terras até então apropria<strong>da</strong>s,<br />

ilegais ou, no mínimo, de legitimi<strong>da</strong>de questionável.<br />

As justificativas para o não cumprimento <strong>da</strong>s cláusulas e exigências legalmente<br />

estabeleci<strong>da</strong>s ou pactua<strong>da</strong>s eram as mais diversas: dificul<strong>da</strong>des naturais, deficiência <strong>da</strong><br />

burocracia agrária, falta de pessoal habilitado, geômetras, topógrafos, etc. Entretanto,<br />

tais alegações não podem revogar exigências legais. Portanto, o fato concreto, no<br />

entendimento aqui proposto, é que as proprie<strong>da</strong>des não legitima<strong>da</strong>s ou legitima<strong>da</strong>s à<br />

revelia <strong>da</strong>s exigências legais, são juridicamente questionáveis: em termos jurídicos esses<br />

títulos são nulos.<br />

Apesar <strong>da</strong>s resistências contra as grandes posses e do debate acirrado que gerou<br />

no que toca a sua limitação ou não-legalização, acabou, a Lei 601, por assegurar, na<br />

prática, to<strong>da</strong>s as posses mansas e pacíficas, que se formaram, sobretudo no período que<br />

vai de julho de 1822 até a <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> promulgação <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> Lei. A partir desta <strong>da</strong>ta, por<br />

suposto legal, apenas seria permitido o acesso à proprie<strong>da</strong>de pela via <strong>da</strong> compra e<br />

ven<strong>da</strong>, fato este que, entretanto, como se verá, não será efetivamente materializado,<br />

90 Este fato, mais do que qualquer outro, está na base do fracasso na implementação <strong>da</strong> Lei 601 de 1850 e de todos os<br />

fracassos que continuaram acompanhando a luta pela terra no Brasil até os dias atuais, e que ganhou profun<strong>da</strong><br />

radicali<strong>da</strong>de no contexto do regime autoritário, entre 1964-1984, como se verá nos capítulos 4 e 5 deste estudo.<br />

91 É neste sentido que se pode afirmar que no Brasil nunca ocorreu nenhum processo de reforma agrária; ao<br />

contrário, como bem coloca Octavio Ianni para o período do Regime Militar, que será objeto dos dois últimos<br />

capítulos deste trabalho, o que houve, de fato, foi uma "contra-reforma" agrária.<br />

92 Na ver<strong>da</strong>de, essa situação persistirá até os dias atuais, como se pretende por em evidência neste trabalho.<br />

58


persistindo, sobretudo no que toca às terras não ocupa<strong>da</strong>s ou do Estado, genericamente<br />

denomina<strong>da</strong>s de devolutas, o simples acesso privado pela via <strong>da</strong> posse. A persistir esse<br />

tipo de apropriação, o problema <strong>da</strong>s posses permanece, nunca tendo sido seriamente<br />

enfrentado pelo Estado Imperial e, depois, pela República, limitando-se o Estado, por<br />

um lado, a legitimar as posses, por suposto produtivas, ou vender as terras devolutas a<br />

"preço vil", e por outro lado, simplesmente deixando esse processo ao livre jogo <strong>da</strong>s<br />

forças do latifúndio, no qual a violência, sobretudo contra a massa de pequenos<br />

produtores rurais permanece ca<strong>da</strong> vez mais radicaliza<strong>da</strong>, assumindo a forma crônica e<br />

ilegítima que se pode observar nos dias atuais.<br />

Em 1850, após um longo período de convulsões internas e um acirrado debate<br />

parlamentar específico que durou 7 anos para aprovação e mais 4 até a sua<br />

regulamentação, a Lei 601, cujas teses centrais já vinham sendo postas desde 1821 por<br />

José Bonifácio, estabelece critérios jurídicos para a legitimação de to<strong>da</strong>s as terras<br />

ocupa<strong>da</strong>s até então, fosse de forma legal (sesmarias) ou não (as posses). Na origem do<br />

processo parlamentar esteve a grande expansão cafeeira a partir de 1830. A produção de<br />

café nos anos 1831-1840 triplicou em relação à déca<strong>da</strong> anterior, e na déca<strong>da</strong> seguinte<br />

duplicou, quando inicia seu deslocamento em direção ao “Oeste” paulista, conforme<br />

<strong>da</strong>dos de Taunay elaborados por Sérgio S. <strong>Silva</strong> 93 . Como escreve Emília Viotti <strong>da</strong><br />

Costa:<br />

“A caótica situação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de rural e os problemas <strong>da</strong> força<br />

de trabalho impeliram os setores dinâmicos <strong>da</strong> elite brasileira a<br />

reavaliar as políticas de terras e de trabalho. A Lei de Terras de<br />

1850 expressou os interesses desses grupos e representou uma<br />

tentativa de regularizar a proprie<strong>da</strong>de rural e o fornecimento de<br />

trabalho (...). O assunto foi discutido pela primeira vez no<br />

Conselho de Estado em l842 e um projeto de lei apresentado à<br />

Câmara dos Deputados no ano seguinte. O projeto baseava-se<br />

nas teorias de Wakefield e inspirava-se na suposição de que<br />

numa região onde o acesso à terra era fácil seria impossível obter<br />

pessoas para trabalhar nas fazen<strong>da</strong>s a não ser que elas fossem<br />

compeli<strong>da</strong>s pela escravidão. A única maneira de obter trabalho<br />

livre nessas circunstâncias seria criar obstáculos à proprie<strong>da</strong>de<br />

rural. (...) O projeto foi elaborado tanto para regularizar a situação<br />

<strong>da</strong>quelas proprie<strong>da</strong>des que tinham sido ilegalmente adquiri<strong>da</strong>s,<br />

como também, ao mesmo tempo, para estender o controle<br />

governamental sobre as terras em geral.” 94<br />

Foram mu<strong>da</strong>nças legais sem que, contudo, se modificassem as condições reais<br />

do processo de apropriação territorial, que permanece, ou sem legalização (registro,<br />

titulação) <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des ou, simplesmente, fun<strong>da</strong>do em "registros de vigário",<br />

vagos e, geralmente, suspeitos, relatos de áreas, limites e confrontações, realizados<br />

pelos próprios latifundiários. Assim, persistirão os mesmos problemas de apropriação<br />

93 Sérgio S. <strong>Silva</strong>. Expansão cafeeira e origens <strong>da</strong> indústria no Brasil, São Paulo: Alfa-Ômega, 1976, p. 49.<br />

94 Emília Viotti <strong>da</strong> Costa. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: Grijalbo, 1977. p.133.<br />

59


privilegia<strong>da</strong> e legitimação (titulação) questionável, que sempre estiveram presentes na<br />

formação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial brasileira.<br />

O processo de consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial rural no Brasil, assim, na<br />

prática, sempre assumiu a forma de uma violência legitima<strong>da</strong> pelo fato consumado <strong>da</strong><br />

apropriação, fun<strong>da</strong>do na força e no poder local dos latifundiários, processo esse que será<br />

consoli<strong>da</strong>do nos primeiros anos <strong>da</strong> emergência do Brasil como nação independente,<br />

envolvendo um quadro complexo de articulações e cooptações, que sempre estiveram<br />

no íntimo do processo de legitimação política do poder no Estado 95 independente,<br />

sobretudo no período transicional <strong>da</strong>s Regências 96 . Essa situação, provavelmente, está<br />

na base do fenômeno amplamente conhecido no Brasil de que o processo legislativo<br />

territorial sempre é deflagrado a reboque do efetivo processo de ocupação e, quase<br />

sempre, procurando legitimar os privilégios conquistados pela força do latifúndio e dos<br />

potentados locais, tornando, assim, de certa forma, o Estado, como mero legitimador do<br />

"fato consumado".<br />

2. O Império <strong>da</strong>s Posses<br />

Após o período conturbado por que passou entre 1808, com a transmigração, e o<br />

retorno <strong>da</strong> Corte Portuguesa, em 1821, gestou-se, no Brasil, profun<strong>da</strong> incerteza quanto<br />

ao caráter e consoli<strong>da</strong>ção do Poder do Estado e <strong>da</strong> sua própria integri<strong>da</strong>de territorial.<br />

Tratam-se, portanto, de questões que transcendiam, em muito, à problemática<br />

específica <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de rural, embora a ela não fossem indiferentes, sobretudo na<br />

medi<strong>da</strong> em que as condições estruturadoras <strong>da</strong> sociabili<strong>da</strong>de estavam estritamente<br />

articula<strong>da</strong>s ao poder local, numa comuni<strong>da</strong>de de bases institucionais frouxas e dispersas<br />

pela vastidão do território. Nesse contexto, a articulação <strong>da</strong>s condições que pudessem<br />

servir de base à sustentação de um poder emergente, em um país que inevitavelmente<br />

marchava para uma ruptura institucional com sua antiga metrópole, numa conjuntura<br />

internacional em franca ebulição e desenvolvimento, ameaçava o tênue equilíbrio que<br />

poderia assegurar qualquer base segura ao poder de um Estado Unitário.<br />

Havia, de imediato, vários riscos envolvidos nesta transição: o retorno à<br />

condição de colônia, que era uma ameaça presente, embora fortemente rechaça<strong>da</strong><br />

internamente; contrapondo-se a esta ameaça, a alternativa à independência era<br />

francamente ameaça<strong>da</strong> pelo perigo <strong>da</strong> cessessão e <strong>da</strong> república, que alias, assume os<br />

contornos iminentes nos diversos levantes que ocorrerão após a Independência política<br />

do país, sobretudo na fase <strong>da</strong>s Regências. Além <strong>da</strong>s mediações coloca<strong>da</strong>s imediatamente<br />

às opções e alternativas internas ao país, Portugal não seria indiferente a esses<br />

95 Referindo-se a esse contexto, Faoro (op. cit., p.329) afirma que, nesse período de consoli<strong>da</strong>ção do poder no<br />

contexto <strong>da</strong> estruturação e consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> nação independente, "governar, <strong>da</strong><strong>da</strong> a estrutura que os interesses<br />

articulam, consistia em proteger, guiar, orientar a cama<strong>da</strong> que detinha o poder econômico. Para que a<br />

combinação funcione será necessária a concentração do governo, o entendimento com os especuladores,<br />

o alargamento <strong>da</strong> cama<strong>da</strong> dirigente, com muitos funcionários às ordens de um estado-maior."<br />

96 Ver a respeito deste contexto, especialmente, os capítulos VII, VIII e IX do excelente trabalho de Raymundo<br />

Faoro (op. cit).<br />

60


movimentos, e tentaria impor suas posições 97 , que, em última instância, foram<br />

negocia<strong>da</strong>s em termos de uma significativa indenização e na continui<strong>da</strong>de monárquica e<br />

dinástica, como os fatos evidenciaram.<br />

Nesse contexto de conflitos, muito mais imediatamente colocados em termos <strong>da</strong><br />

consoli<strong>da</strong>ção do poder nacional, e <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de econômica do Brasil, digladiam-se<br />

diversas facções tentando fazer valer seus privilégios e posições na estrutura do poder.<br />

Economicamente, por um lado, havia a exigência, imposta pelo novo contexto<br />

internacional, que apontava para a impossibili<strong>da</strong>de do desenvolvimento do País, se<br />

manti<strong>da</strong> a tradicional estrutura escravista, de baixa produtivi<strong>da</strong>de e impedidora do<br />

desenvolvimento do mercado interno, livre, fun<strong>da</strong>do no novo contexto <strong>da</strong> concorrência,<br />

inerente à integração a um mercado mundial capitalista, agora em sua fase industrial.<br />

Por outro lado, seria impossível a manutenção <strong>da</strong> subordinação aos interesses mercantis<br />

metropolitanos e o retorno ao antigo e superado (desde 1808) "pacto colonial". Haviase,<br />

há muito, encerrado a lógica do mercantilismo e, portanto, as possibili<strong>da</strong>des de<br />

sobrevivência e reprodução <strong>da</strong> economia nacional em bases escravistas e agroexportadoras<br />

estavam profun<strong>da</strong>mente comprometi<strong>da</strong>s.<br />

É nesse contexto que se situam as pressões inglesas no sentido <strong>da</strong> libertação <strong>da</strong>s<br />

colônias 98 e <strong>da</strong> extinção <strong>da</strong> escravatura. Entretanto, concretamente, no Brasil, as<br />

exigências implica<strong>da</strong>s nesta profun<strong>da</strong> transição, impunham alternativas e opções<br />

econômicas dificilmente conciliáveis e de materialização problemática, sobretudo no<br />

curto prazo 99 . Tratava-se de consoli<strong>da</strong>r a integri<strong>da</strong>de nacional, contra a cessessão;<br />

reorganizar as bases políticas do poder de Estado emergente, contra os riscos de<br />

restauração colonial; pacificar as lutas entre facções locais; <strong>da</strong>r fluidez e efetivi<strong>da</strong>de ao<br />

problema grave <strong>da</strong> produção agro-exportadora e <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial, caóticos<br />

desde muitos anos - portanto, de redefinir o instituto <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de rural - e,<br />

finalmente, transitar para o trabalho livre, em sua socie<strong>da</strong>de sustenta<strong>da</strong> nas colunas<br />

corroí<strong>da</strong>s <strong>da</strong> escravidão.<br />

Portanto, não se tratava apenas de <strong>da</strong>r fluidez, racionali<strong>da</strong>de e legitimi<strong>da</strong>de à<br />

estrutura agrofundiária. Ao contrário, este problema emergia como relevante no bojo do<br />

equacionamento de questões políticas e econômicas mais graves e emergentes.<br />

Provavelmente por isso, e não por motivos especificamente ligados à proprie<strong>da</strong>de<br />

97 Como ficou evidente na convocação <strong>da</strong> "Cortes Portuguesas" após o retorno de D. João VI a Portugal que se reúne<br />

na ausência dos Deputados brasileiros e adotam medi<strong>da</strong>s que indicavam francamente o rumo <strong>da</strong> re-colonização do<br />

Brasil (vide a esse respeito, entre muitos outros estudos, SMITH (op. cit); FAORO (op. cit.).<br />

98 Bentham: "Emancipate your Colonies" (In.: SMITH, op. cit. p. 248).<br />

99 Este fato talvez explique a posição ambígua e contraditória de José Bonifácio de Andra<strong>da</strong> e <strong>Silva</strong>, por exemplo, a<br />

respeito <strong>da</strong> extinção do trabalho escravo. Como se sabe, desde 1821, antecipando-se inclusive, a publicação <strong>da</strong>s teses<br />

de Wakefield, Bonifácio já expunha as linhas mestras que fun<strong>da</strong>mentariam as teses <strong>da</strong> Colonização Sistemática e que,<br />

na déca<strong>da</strong> de 1840 iriam fun<strong>da</strong>mentar os preceitos consagrados na Lei 601, especialmente a abolição do sistema de<br />

doações de terras com base no instituto <strong>da</strong>s sesmarias, que deveria ser substituído pelo processo de compra e ven<strong>da</strong>; a<br />

necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> colonização estrangeira, como alternativa à substituição, no médio ou longo prazos do trabalho<br />

escravo. Não é, portanto, coincidência que na Resolução 76, de 14 de julho de 1822, a ele atribuí<strong>da</strong> e ratifica<strong>da</strong><br />

apenas em 1823 pelo Imperador, tenha sido "abolido" sumariamente o regime de sesmarias e consagrado o princípio<br />

<strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong>s posses produtivas, contra a presença de sesmarias abandona<strong>da</strong>s ou deficitárias.<br />

61


territorial em si, é que o instituto de sesmarias é revogado, em 14 de julho de 1821 100<br />

sem que tenha sido substituído por nenhuma outra regulamentação territorial até 1850, a<br />

não ser as garantias fun<strong>da</strong>mentais ao Direito (genérico) de proprie<strong>da</strong>de assegura<strong>da</strong>s na<br />

Constituição de 1824.<br />

Finalmente, o funcionamento <strong>da</strong> economia enfrentava problemas de outra<br />

natureza, como as pressões externas <strong>da</strong> Inglaterra, em franco desenvolvimento industrial<br />

e sequiosa por assegurar a expansão dos mercados, tanto para seus produtos industriais,<br />

quanto fornecedores de matérias-primas; mas sobretudo, como ficará claro nas teses<br />

neo-colinalistas, particularmente de Bentham e Wakefield, no sentido de assegurar a<br />

ampliação do mercado para a exportação de capitais, então vigorosamente defendi<strong>da</strong>,<br />

sobretudo por Wakefield, com base nas teses de A<strong>da</strong>m Smith, enquanto alternativa para<br />

superar a crise de excedentes de capital na "mother country" (Smith. op. cit.). É neste<br />

contexto, por exemplo, que se fun<strong>da</strong>m as teses <strong>da</strong> Colonização Sistemática 101 .<br />

Tratavam-se, portanto, de problemas que não eram especificamente adstritos à<br />

regulamentação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial. Demais, legal ou ilegalmente, as terras<br />

estavam sendo incorpora<strong>da</strong>s ao sistema produtivo <strong>da</strong> economia, sobretudo, através de<br />

sua articulação e subordinação aos segmentos básicos <strong>da</strong> economia, ligados à ativi<strong>da</strong>de<br />

agro-exportadora. Neste contexto a abolição era uma exigência mais vigorosa,<br />

entretanto de difícil equacionamento, posto que os escravos compunham a força de<br />

trabalho fun<strong>da</strong>mental, de difícil substituição, no curto prazo, sobretudo pela ausência de<br />

um sistema oficial de crédito e <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong>de de viabilizá-lo de forma adequa<strong>da</strong>.<br />

Até 1850 nenhum dos dois problemas será efetivamente enfrentado, apesar de to<strong>da</strong>s as<br />

pressões internas e, sobretudo, internacionais.<br />

Essa conjuntura, interna e internacional, talvez explique porque com a suspensão<br />

<strong>da</strong> concessões de sesmarias em 14 de julho de 1822, e com a revogação de to<strong>da</strong> a<br />

legislação agrária portuguesa, com a Independência dois meses depois, a questão do<br />

acesso à proprie<strong>da</strong>de territorial permaneça sem nenhuma regulamentação específica até<br />

1850. De fato, o que ocorre é que a questão genérica do direito de proprie<strong>da</strong>de, em seus<br />

contornos efetivamente burgueses de proprie<strong>da</strong>de absoluta, ficará assegurado,<br />

genericamente, na Constituição Política do Império do Brasil de 1824, nos seguintes<br />

termos:<br />

"Art. 179. A inviolabili<strong>da</strong>de dos Direitos Civis e Políticos dos<br />

Ci<strong>da</strong>dãos Brasileiros, que têm por base a liber<strong>da</strong>de, a segurança<br />

individual e a proprie<strong>da</strong>de, é garanti<strong>da</strong> pela Constituição do<br />

Império, pela maneira seguinte. (...)”<br />

100 Como comenta Roberto Smith (op. cit. p.284) "o regime sesmarial, em desagregação há longo tempo no<br />

Brasil colônia, termina por ser extinto em 1822, pouco tempo antes <strong>da</strong> Independência. Isso parece ter<br />

ocorrido em circunstâncias marca<strong>da</strong>s pela discrição, onde institucionalmente não se procurava<br />

fazer alarde sobre seu fim" (grifos nossos). Essa discrição a que se refere Smith é relevante e, certamente, está<br />

associa<strong>da</strong> à preocupação do Governo, na época, em não contribuir, ain<strong>da</strong> mais, para a radicalização dos conflitos,<br />

especialmente nas Províncias.<br />

101 "A preocupação central de Wakefield era, portanto, com o fenômeno de rebaixamento geral <strong>da</strong> taxa de<br />

lucro na Inglaterra desde 1815, tendo em vista o excesso de capital, e não como decorrência <strong>da</strong> elevação<br />

do custo <strong>da</strong> reprodução <strong>da</strong> força de trabalho." (SMITH, R. op. cit., p. 250).<br />

62


"XXII - É garantido o Direito de Proprie<strong>da</strong>de em to<strong>da</strong> a sua<br />

plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o uso, e<br />

emprego <strong>da</strong> Proprie<strong>da</strong>de do Ci<strong>da</strong>dão, será ele previamente<br />

indenizado do valor dela. A Lei marcará os casos, em que terá<br />

lugar esta única exceção, e <strong>da</strong>rá as regras para determinar a<br />

indenização." 102<br />

É nesse contexto, de vazio <strong>da</strong> regulamentação infra-constitucional com relação,<br />

especificamente à proprie<strong>da</strong>de territorial, que se configura a situação conheci<strong>da</strong> como<br />

"Império <strong>da</strong>s Posses", ou seja, fun<strong>da</strong>do no fato de que não havia, legalmente, o<br />

estabelecimento de instrumentos legais que assegurassem a legalização <strong>da</strong>s aquisições<br />

de terras, nem regulassem o seu acesso. Neste sentido o Estado realmente, e não apenas<br />

virtualmente, retira-se <strong>da</strong> luta pela terra. Império <strong>da</strong>s Posses, sim, posto que, nesse<br />

contexto de impossibili<strong>da</strong>de de legalização e, portanto de reconhecimento formal, <strong>da</strong>s<br />

proprie<strong>da</strong>des pelo Estado, apenas era possível o acesso à terra, pela via <strong>da</strong> mera<br />

ocupação, sem nenhum limite ou restrição. Daí a agudização <strong>da</strong> profun<strong>da</strong> anarquia que<br />

já vinha ocorrendo, à margem <strong>da</strong> legislação sesmarial, antes, quando as posses sempre<br />

avançaram à revelia do instituto de sesmarias. É óbvio que, nessa conjuntura, os grandes<br />

posseiros, mais que os pequenos, tinham concretamente a possibili<strong>da</strong>de de fazer valer,<br />

pela força priva<strong>da</strong> e fun<strong>da</strong>dos no prestígio, as suas ambições e pretensões territoriais.<br />

Neste sentido, discor<strong>da</strong>-se frontalmente <strong>da</strong> noção que Maurício Vinhas de Queiroz<br />

fornece do “Império <strong>da</strong>s Posses”. Segundo a interpretação <strong>da</strong>quele autor, o vazio<br />

jurídico, a perpetuar-se num lapso de tempo maior, teria gerado uma autêntica reforma<br />

agrária, a saber:<br />

“a expansão livre e impetuosa <strong>da</strong> economia dos posseiros, os<br />

quais se atiravam sobre as terras inexplora<strong>da</strong>s em um ritmo até<br />

então desconhecido. Em 1850 esse processo - que levado às<br />

últimas consequências tornaria o Brasil um país de estrutura<br />

agrária muito diversa <strong>da</strong> atual - foi drasticamente interrompido;”<br />

e, por isso, representou uma<br />

102 ” Constituição Política do Império do Brasil", jura<strong>da</strong> em 25 de março de 1824 (In.: MEAF, 1983, p.357. Grifos<br />

nossos). Verifica-se, dessa forma que a questão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra não fica absolutamente à revelia; pelo<br />

contrário, a proprie<strong>da</strong>de é vigorosamente assegura<strong>da</strong> pela Lei Magna. O problema é que, como sempre acontecerá no<br />

Brasil, adia-se a regulamentação do preceito, jogando-a para "a Lei Ordinária", Lei essa, que como a prática histórica<br />

parlamentar demonstrou, só será aprova<strong>da</strong> em 1850 e regulamenta<strong>da</strong> apenas em 1854. Fato relevante a ser observado<br />

é que a Constituição do Império atribui valor monetário e a proprie<strong>da</strong>de absoluta à terra, incentivando, por esse meio,<br />

a especulação e a usura, já então em franco desenvolvimento no País. Por outro lado, com o vazio na regulamentação,<br />

criado pela extinção <strong>da</strong> legislação sesmarial, com a Independência, não haverá nenhuma regulamentação que limite,<br />

por um lado, as possibili<strong>da</strong>des de apossamento de terras e, por outro, lhe assegure as condições de legalização. Assim,<br />

com o direito genérico à proprie<strong>da</strong>de assegurado, e na falta <strong>da</strong> regulação estatal fará com que, na prática, subsista um<br />

espécie de "estado hobbesiano", onde imperará sempre a "lei do mais forte", o que tornará definitivamente assegura<strong>da</strong><br />

as possibili<strong>da</strong>des de hegemonia do poder local-latifundiário, sobretudo numa conjuntura de instabili<strong>da</strong>de política<br />

liga<strong>da</strong> à consoli<strong>da</strong>ção do Estado Independente, quando então, as facções em luta pela hegemonia no poder, não<br />

permitirão que o Governo se atreva a ferir interesses locais. Essa conjuntura é evidencia<strong>da</strong> pelos inúmeros levantes e<br />

conflitos rurais que ocorreram entre 1821 e 1850, que só serão efetivamente controlados, no Segundo Reinado. É<br />

obvio que nessa conjuntura, o vazio <strong>da</strong> regulamentação agrária possibilitasse, sobretudo, a consoli<strong>da</strong>ção do latifúndio<br />

e do poder local, instituindo no Brasil independente, os sistemas de cooptação entre o poder local-regional e as<br />

facções em luta pela hegemonia no poder central, que <strong>da</strong>í para frente sempre estarão presentes no cenário político<br />

brasileiro, sobretudo no Parlamento.<br />

63


“severa limitação dos direitos que tinham sido conquistados pelos<br />

posseiros, conduzindo destarte à gradual passagem <strong>da</strong>s formas<br />

escravistas a outras formas de trabalho no campo mais ou menos<br />

livres, dentro dos mesmos latifúndios.” 103<br />

Por outro lado, essa mesma situação <strong>da</strong>rá origem a um grave problema de<br />

legitimação de terras. Se por um lado, nesse período, não poderia ser argui<strong>da</strong> nenhuma<br />

hipótese de ilegali<strong>da</strong>de com relação aos processos possessórios, por mais que estes<br />

fossem nocivos aos interesses econômicos ou mesmo “injustos”; por outro lado, <strong>da</strong><strong>da</strong><br />

essa mesma ausência de legislação específica, as terras então apropria<strong>da</strong>s, não podiam<br />

ser legaliza<strong>da</strong>s, reconheci<strong>da</strong>s formal e legalmente pelo Estado. Essa questão só retornará<br />

à ordem do dia na déca<strong>da</strong> de 1840 e após a aprovação <strong>da</strong> Lei 601, que tentará<br />

regulamentar as formas e o conteúdo do direito de proprie<strong>da</strong>de territorial na Brasil.<br />

Nesse sentido, o Império <strong>da</strong>s Posses foi, na ver<strong>da</strong>de, o império dos latifundiários<br />

e dos potentados locais: nesse período eles consoli<strong>da</strong>ram não apenas seu patrimônio<br />

territorial, mas sobretudo, o seu poder político local 104 que, <strong>da</strong><strong>da</strong>s suas articulações<br />

políticas, enquanto possível base de sustentação dos grupos no poder, esse período<br />

correspondeu, igualmente, ao <strong>da</strong> consoli<strong>da</strong>ção do papel fun<strong>da</strong>mental que passaram a<br />

ocupar os potentados locais e latifundiários, enquanto base de sustentação dos diferentes<br />

governos nacionais.<br />

Essa situação estará, <strong>da</strong>í em diante, fortemente presente nas diferentes políticas<br />

do Estado Nacional e, seu primeiro teste será realizado no debate parlamentar de 1843-<br />

1850, em relação, especificamente, ao problema <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária 105 .<br />

3. A Lei de Terras: Legitimação dos Privilégios<br />

103 Maurício Vinhas de Queiroz. Notas sobre o processo de modernização no Brasil. Revista do Instituto de Ciências<br />

Sociais, 3(1). Rio de Janeiro: 1966, p. 141.<br />

104 Neste sentido, contribuiu efetivamente para a consoli<strong>da</strong>ção do poder <strong>da</strong>s oligarquias locais, a instituição <strong>da</strong><br />

Guar<strong>da</strong> Nacional, no período Regencial, que atribui formal e efetivamente aos latifundiários patentes militares (de<br />

"Coronéis"). Esse fato, associado outras mu<strong>da</strong>nças jurídicas, políticas e administrativas relevantes, promovi<strong>da</strong>s, no<br />

período Regencial, consoli<strong>da</strong>rá definitivamente o poder <strong>da</strong>s oligarquias locais latifundiárias (vide Raymundo Faoro,<br />

op. cit.).<br />

105 Um problema relevante nesse contexto é exatamente o <strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong>s posses (grandes posses, bem<br />

entendido), contra as pretensões de antigos sesmeiros. Não se tratava, como às vezes interpretam alguns autores (Vg.<br />

Faoro, op. cit.; Passos Guimarães, op. cit.) <strong>da</strong> defesa <strong>da</strong>s posses (por suposto pequenas) contra os latifúndios<br />

(representados pelos sesmeiros). Ao contrário, representava os interesses <strong>da</strong>s grandes posses, - que se formaram no<br />

período que se estende entre o processo político <strong>da</strong> Independência e a consoli<strong>da</strong>ção do poder nacional, - contra os<br />

antigos sesmeiros, sobretudo aqueles representados por elementos ligados aos privilégios <strong>da</strong> antiga Corte portuguesa.<br />

Trata-se, sobretudo, de grandes posses que se formaram, por exemplo, entre o Rio de Janeiro, Minas e São Paulo,<br />

durante a expansão <strong>da</strong> cultura do café, que afetaram interesses de antigos sesmeiros do vale do Paraíba (Faoro, op.<br />

cit.). É nesse sentido que o problema se coloca de forma diferente no Nordeste, cuja estrutura fundiária, concentra<strong>da</strong>,<br />

fora consoli<strong>da</strong><strong>da</strong> com base nas sesmarias durante o ciclo áureo <strong>da</strong> cana-de-açúcar e na região do café, que será<br />

consoli<strong>da</strong><strong>da</strong> sob o "império <strong>da</strong>s posses". Por essa razão não se pode, simplesmente, como o faz Passos Guimarães, e<br />

em parte Emília Viotti <strong>da</strong> Costa, entre outros, atribuir a aprovação <strong>da</strong> Lei de Terras "aos interesses cafezistas.":<br />

tratava-se, na ver<strong>da</strong>de de uma questão que, política e economicamente, ultrapassava os interesses difusos, embora<br />

concretamente manifestados, de oligarquias locais. Na ver<strong>da</strong>de, envolvia a mu<strong>da</strong>nça de hegemonia do eixo<br />

econômico, que passa a se deslocar para a região centro-sul, desde 1808 e sobretudo na segun<strong>da</strong> metade do século<br />

XIX. E sobretudo, tratava-se de assegurar o monopólio <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial: é neste sentido que a Lei 601 é uma<br />

lei de terras, muito antes de uma lei de colonização (cf. Faoro, op. cit.; Prado Jr. op. cit.; Linhares [1981], entre<br />

muitos outros).<br />

64


3.1. Considerações Básicas<br />

É nesse contexto, - acima explicitado apenas em suas linhas fun<strong>da</strong>mentais 106 -<br />

que se pode afirmar que a Lei 601, de 1850, é, efetivamente, uma lei de proprie<strong>da</strong>de<br />

territorial, uma lei de terras, e não um Projeto de colonização, embora esse tema não lhe<br />

fosse estranho, sobretudo se se tiver em consideração o contexto em que a problemática<br />

<strong>da</strong> economia agrária brasileira vinha sendo coloca<strong>da</strong> desde 1821 107 .<br />

Os debates Parlamentares que antecederam a aprovação <strong>da</strong> Lei 601 evidenciam a<br />

centrali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> questão <strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de. É exatamente no contexto de se<br />

assegurar a proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terras, por um lado revali<strong>da</strong>r as sesmarias e, por outro,<br />

legitimar as posses (grandes posses), que se travam os debates e as divergências mais<br />

acirra<strong>da</strong>s e relevantes. É nesse contexto, por exemplo, que se deve situar o problema dos<br />

impostos e tributos, sobretudo o Direito de Chancelaria, que equivalia ao pagamento do<br />

registro <strong>da</strong>s terras. O fato de que a arreca<strong>da</strong>ção desses impostos, assim como dos<br />

recursos arreca<strong>da</strong>dos com a ven<strong>da</strong> de terras, serem destinados à importação de colonos<br />

estrangeiros livres, não é argumento suficiente para se afirmar que tal representasse um<br />

rateio de tais dispêndios, entre proprietários de distintas regiões e condições. Na<br />

ver<strong>da</strong>de, como se verá neste capítulo, tais recursos têm a seguinte destinação, conforme<br />

o artigo 19 o . <strong>da</strong> Lei 601 de 1850: "1. ulterior medição <strong>da</strong>s terras devolutas”; “2.<br />

importação de colonos livres(...)."<br />

As questões <strong>da</strong> força de trabalho e <strong>da</strong> imigração 108 sempre foram preocupações<br />

permanentes no processo de colonização brasileira, tendo sido, num primeiro momento,<br />

equaciona<strong>da</strong>s pela "imigração força<strong>da</strong>" de escravos africanos.<br />

Assim, duas questões aparecem claramente coloca<strong>da</strong>s na déca<strong>da</strong> de 1840, no que<br />

toca, especificamente à questão agro-fundiária, ao Parlamento: (1) A <strong>da</strong> legalização <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de territorial e <strong>da</strong> regularização efetiva <strong>da</strong> questão fundiária, que envolvia as<br />

terras que se encontravam no domínio privado por algum título legítimo (como era o<br />

caso <strong>da</strong>s antigas sesmarias, mesmo quando em comisso pelo não cumprimento de<br />

algumas <strong>da</strong>s cláusulas resolutivas); e as posses mansas e pacíficas, por um lado e, por<br />

outro, a arreca<strong>da</strong>ção e demarcação <strong>da</strong>s terras públicas e devolutas e, (2) A questão <strong>da</strong><br />

colonização e <strong>da</strong> migração estrangeira, envolvendo problemas <strong>da</strong> maior relevância na<br />

medi<strong>da</strong> em que se direcionava em duas frentes articula<strong>da</strong>s: (a) a importação de colonos<br />

livres e pobres, que deveriam ser destinados às ativi<strong>da</strong>des assalaria<strong>da</strong>s nas proprie<strong>da</strong>des<br />

106 Posto que entrar em todos os seus detalhes, embora <strong>da</strong> maior relevância, fugiria em muito dos objetivos desse<br />

estudo, que se ocupa <strong>da</strong> questão específica <strong>da</strong> luta pela legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária. Portanto, os aspectos<br />

acima indicados em suas linhas gerais e mais significativas, não teve a pretensão de oferecer um quadro completo <strong>da</strong><br />

conjuntura do século XIX no Brasil, mas apenas de tentar localizar o contexto em que a questão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de<br />

fundiária e <strong>da</strong> estrutura agrária brasileira estava coloca<strong>da</strong>.<br />

107 Ver o documento “Lembranças e Apontamentos do Governo Provisório para os Senhores Deputados <strong>da</strong> Província<br />

de São Paulo” encaminhado à Constituinte Portuguesa (5.10.1821), onde são antecipa<strong>da</strong>s as teses básicas adota<strong>da</strong>s na<br />

Lei de Terras (In. SMITH, op. cit. p. 286).<br />

108 Entretanto, deve-se ter bem claro para efeitos de qualquer análise dessa questão, que o problema <strong>da</strong> mão-de-obra<br />

nunca esteve dissociado do problema <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial. Neste sentido, como ficou explicitado até aqui, o<br />

instituto de sesmarias na<strong>da</strong> mais era do que uma forma determina<strong>da</strong> de propor uma solução adequa<strong>da</strong> a essa<br />

problemática em determinado contexto histórico, econômico e político.<br />

65


urais na condição de trabalhadores livres e (b) à organização de colônias, pelo Estado,<br />

em determina<strong>da</strong>s regiões, sobretudo nas fronteiras 109 .<br />

Assim, na ver<strong>da</strong>de a Lei de Terras se destinava à regulamentação de duas<br />

situações distintas e não tão articula<strong>da</strong>s como é comum supor-se.<br />

1 a . A questão <strong>da</strong> legalização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, que significava reconhecer<br />

e transferir para o domínio privado, to<strong>da</strong>s as terras economicamente destina<strong>da</strong>s à<br />

exploração agropecuária; e destacar as terras remanescentes, devolutas, que deveriam<br />

funcionar como um fundo de reserva de terras a servir de atração à imigração<br />

estrangeira livre, então importante, face ao aumento <strong>da</strong>s pressões externas e internas,<br />

contra o trabalho escravo, na nova conjuntura econômica que se estruturava no país.<br />

Como se sabe, argumentação básica <strong>da</strong> tese de Wakefield 110 a respeito <strong>da</strong> "colonização<br />

sistemática" tinha como pressuposto fun<strong>da</strong>mental a existência de terras livres e estatais,<br />

que deveriam servir como meio de regulação do mercado (de terras e de trabalho), com<br />

o objetivo explícito, de facilitar a atração de colonos livres, (pobres e capitalistas) por<br />

um lado, e impedir a dispersão <strong>da</strong> força de trabalho (colonos pobres) sobre a vastidão de<br />

terras disponíveis, que segundo a argumentação wakefieldiana, dificultaria ou mesmo<br />

poderia impedir a formação e, sobretudo, o desenvolvimento, de uni<strong>da</strong>des produtivas<br />

capitalistas 111 . O controle dessa possibili<strong>da</strong>de à inversão de capital na agricultura <strong>da</strong>s<br />

colônias, segundo aquele economista, apenas poderia ser eficiente se promovido através<br />

<strong>da</strong> intervenção do Estado, pela via Legal: isto é, criando óbices jurídicos à dispersão do<br />

processo de apropriação territorial. Isto seria feito mediante o recurso à ven<strong>da</strong> de terras<br />

e, especialmente, pelo controle <strong>da</strong> emissão dos títulos legais de proprie<strong>da</strong>de 112 .<br />

No caso do Brasil esses óbices enfrentavam, a resistência imposta pelos<br />

latifundiários, que tentavam "privatizar" (em lugar do Estado) em seu beneficio próprio<br />

a quase totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s terras economicamente aproveitáveis ou importantes. Ora, na<br />

ocorrência desse fato, esvaziava-se o pressuposto fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> colonização<br />

sistemática 113 , tal como teoriza<strong>da</strong> por Wakefield, que seria a existência de terras livres e<br />

109 O que já se constituía no desvirtuamento <strong>da</strong>s teses <strong>da</strong> “colonização sistemática”, tal como formula<strong>da</strong> por<br />

Wakefield como se verá oportunamente. Pode-se dizer que essa é a concepção latifundiária <strong>da</strong>s teses <strong>da</strong> colonização<br />

sistemática de Wakefield que, evidentemente tem um sentido diferente e era uma alternativa ao desenvolvimento de<br />

um projeto capitalista, onde o controle <strong>da</strong>s terras pelo Estado era condição básica para regular o mercado de terra e<br />

trabalho, em apoio a investimentos capitalistas: assegurar fluxo contínuo de mão-de-obra assalaria<strong>da</strong>, pela via <strong>da</strong><br />

imigração, custea<strong>da</strong> pelo Estado com o fundo arreca<strong>da</strong>do pela ven<strong>da</strong> de terras aos assalariados que desejassem<br />

abandonar o mercado de trabalho (que Marx dirá que corresponde ao resgate pago pelo trabalhador ao capitalista para<br />

libertar-se do trabalho assalariado); assim como reservas de terras passíveis de serem privatiza<strong>da</strong>s para eventuais<br />

investidores. (Ver a respeito: MARX, 1975; Livro I, capítulo XXV; WAKEFIELD, op. cit.; SMITH, op. cit.)<br />

110 Que serviu de inspiração às teses defendi<strong>da</strong>s no Parlamento por ocasião <strong>da</strong> discussão do Projeto de Lei que<br />

resultaria, em 1850, na Lei 601.<br />

111 As teses de Wakefield, <strong>da</strong><strong>da</strong> a sua relevância, serãp trata<strong>da</strong>s de forma específica no item 4 deste capítulo.<br />

112 Ver a respeito MARX (1975) e SMITH, (op. cit).<br />

113 Como oportunamente registra Marx (op. cit., p. 892) “se de um só golpe, se transformassem to<strong>da</strong>s as terras<br />

de proprie<strong>da</strong>de comum em terras de proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, destruir-se-ia o mal pela raiz, mas as colônias<br />

seriam também destruí<strong>da</strong>s.” Na prática, no Brasil, a negativa latifundiária em demarcar e legalizar suas terras,<br />

assim como os óbices impostos, à arreca<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s terras devolutas do Estado, funcionaram neste sentido apontado<br />

por Marx: acabaram por impossibilitar o Estado de controlar a “emissão de bom título” preconiza<strong>da</strong> como<br />

fun<strong>da</strong>mental na estratégia de Wakefield. Era uma situação que funcionava, na prática, como se to<strong>da</strong>s as terras, ou<br />

pelo menos sua porção mais relevante, houvesse sido “privatiza<strong>da</strong>” em favor do latifúndio. Nisso reside, na opinião<br />

66


estatais, passíveis de serem transferi<strong>da</strong>s à iniciativa priva<strong>da</strong>. Como se verá, advém desse<br />

fato o fracasso <strong>da</strong> “colonização sistemática” e <strong>da</strong> atração de imigrantes europeus para<br />

o Brasil. É neste sentido que a legalização e o controle rigoroso sobre as terras,<br />

sobretudo improdutivas e devolutas, era fun<strong>da</strong>mental para o Estado; e é neste sentido<br />

que tentará atuar, inicialmente, a Lei 601. A esta tentativa de controle sobre as terras<br />

públicas é que se opõem todos os latifundiários, fossem, ou não, cafeicultores. Este fato<br />

coloca o segundo nível do problema enfrentado pela Lei 601 de 1850 - a colonização<br />

estrangeira.<br />

2 a . A questão <strong>da</strong> Colonização e, conjuntamente a esta, o problema <strong>da</strong> imigração<br />

estrangeira, sobretudo a européia, como se pôde antever pelos problemas levantados no<br />

item anterior, é de fato, esvazia<strong>da</strong>, embora permaneça no discurso e na Legislação<br />

aprovados. Porquê? Porque, na indisponibili<strong>da</strong>de, para o Estado, de terras<br />

economicamente aproveitáveis, que seriam as terras, no mínimo, mais próximas aos<br />

circuitos produtivos e mercantis, apenas sobrariam as terras distantes, que não tinham a<br />

possibili<strong>da</strong>de, como não tiveram, de cumprir o objetivo de servir como fundo de reserva<br />

para atrair colonos livres europeus, como acontecera, por exemplo, com os Estados<br />

Unidos e na Austrália.<br />

Esta situação era muito mais relevante, enquanto bloqueio à imigração, por<br />

exemplo, do que o fato <strong>da</strong> persistência <strong>da</strong> escravatura no Brasil, (embora esta também<br />

levantasse suspeitas nos Governos Europeus). Além de impedir a alternativa de oferta<br />

de terras enquanto atrativo para a emigração estrangeira, criava uma situação<br />

importante, que permanecerá como um profundo e permanente entrave à reestruturação<br />

<strong>da</strong>s relações de proprie<strong>da</strong>de no Brasil: por um lado era bloqueado o processo de<br />

legalização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra, fazendo-se perpetuar o estado de incerteza quanto à<br />

proprie<strong>da</strong>de, limites e confrontações <strong>da</strong>s fazen<strong>da</strong>s; "incerteza" esta que, em última<br />

instância, resolvia-se pela violência priva<strong>da</strong> ou pela manipulação de privilégios junto às<br />

burocracias locais e provinciais. Por outro lado, o que é de relevância ain<strong>da</strong> maior,<br />

deslocava o centro do problema <strong>da</strong> regularização fundiária, para a colonização.<br />

Neste último caso, a estratégia dos interesses latifundiários, que persistirá até os<br />

dias atuais, foi esvaziar o debate e sobretudo os processos legais e administrativos que<br />

pudessem estabelecer claramente os limites dos domínios privados e sobretudo a sua<br />

execução no campo, deslocando a questão para o âmbito amorfo e discutível <strong>da</strong><br />

migração e colonização, sobretudo, como desbravamento.<br />

Assim, na incerteza quanto a situação efetiva <strong>da</strong> estrutura agro-fundiária, a tese<br />

<strong>da</strong> colonização era sempre, desde então, coloca<strong>da</strong> em duas direções: (a) promover a<br />

vin<strong>da</strong> de colonos pobres para servirem de mão-de-obra, submissa, porque endivi<strong>da</strong><strong>da</strong>,<br />

para os latifúndios; e (b) promover a colonização estatal em núcleos e áreas afasta<strong>da</strong>s<br />

aqui defendi<strong>da</strong>, a causa básica do fracasso do Projeto econômico associado à Política de Terras do Império, para o<br />

Brasil: tanto no sentido <strong>da</strong> atração de migrantes estrangeiros, quanto, sobretudo, do desenvolvimento de uma<br />

agricultura fun<strong>da</strong><strong>da</strong> no trabalho livre, com to<strong>da</strong>s as suas consequências, hoje conheci<strong>da</strong>s. Este específico projeto<br />

capitalista para o Brasil , neste caso, em face <strong>da</strong> rigorosa oposição latifundiária, morreu ao nascer.<br />

67


dos domínios latifundiários - inicialmente nas fronteiras do Império ou em áreas de<br />

risco pelo interior do país. Esta era uma proposta absolutamente distinta <strong>da</strong><br />

“colonização sistemática” de Wakefield: na ver<strong>da</strong>de, negava-a. Era, certamente a<br />

“colonização sistemática dos grades detentores de terras”. Nessa perspectiva<br />

residem, primitivamente, as teses que ain<strong>da</strong> hoje são defendi<strong>da</strong>s pelo latifúndio e suas<br />

organizações e representantes parlamentares, ao <strong>da</strong>rem ênfase na colonização 114 no<br />

sentido de desbravamento 115 .<br />

Como se vinha dizendo, a Lei 601 ocupa-se, antes de tudo, <strong>da</strong> delimitação do<br />

direito de proprie<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s formas de acesso legal às terras, no contexto de um país<br />

emergente e no âmbito de uma conjuntura econômica internacional em franco<br />

desenvolvimento e amplamente competitiva. Neste sentido, a Lei 601 representa uma<br />

espécie de marco zero 116 <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de do acesso à proprie<strong>da</strong>de territorial brasileira, e<br />

disso vem, na posição aqui defendi<strong>da</strong>, a sua maior relevância teórica e concreta.<br />

Já no preambulo <strong>da</strong> Lei de Terras é definido, clara e transparentemente, o seu<br />

nível de abrangência - a totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s terras do Brasil, excluindo-se as sesmarias<br />

confirma<strong>da</strong>s e que não se achavam em comisso que, por suposto, eram aceitas como<br />

proprie<strong>da</strong>des priva<strong>da</strong>s legítimas e como tais reconheci<strong>da</strong>s pelo Estado. É assim que a<br />

Lei 601,<br />

"Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca <strong>da</strong>s que<br />

são possuí<strong>da</strong>s por título de sesmarias sem preenchimento <strong>da</strong>s<br />

condições legais, bem como por simples títulos de posse mansa e<br />

pacífica: e determina que, medi<strong>da</strong>s e demarca<strong>da</strong>s as primeiras<br />

(devolutas), sejam elas cedi<strong>da</strong>s a título oneroso, assim para<br />

empresas particulares, como para o estabelecimento de colônias<br />

de nacionais e estrangeiros, autorizando o Governo a promover a<br />

colonização estrangeira na forma que se declara." 117<br />

A situação fundiária ficava, desta forma, claramente delimita<strong>da</strong>: 1. As sesmarias<br />

que se encontravam legalmente assegura<strong>da</strong>s, isto é, que preenchiam as clausulas de<br />

114 E mesmo no âmbito deste processo de imigração, na medi<strong>da</strong> em que passa a adquirir alguma importância o<br />

mercado de terras, começará a ser defendi<strong>da</strong> a tese de que o processo de colonização deveria ser entregue à iniciativa<br />

priva<strong>da</strong> e não ao Estado. Tentava-se, dessa forma, manter e ampliar o domínio <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s privilegia<strong>da</strong>s sobre o<br />

mercado de terras em todos os níveis. A articulação dessas teses, que se gestam historicamente desde esse período, é<br />

um capítulo importante <strong>da</strong> subordinação <strong>da</strong> terra e <strong>da</strong> ampliação dos privilégios no trato dos negócios agro-fundiários.<br />

A análise específica desta estratégia de controle <strong>da</strong>s terras públicas merece pesquisas mais detalha<strong>da</strong>s, que fogem aos<br />

objetivos deste trabalho. Fica aqui essa sugestão.<br />

115 Ver adiante, os capítulos 4 e 5 onde este tema é discutido detalha<strong>da</strong>mente.<br />

116 Como é evidenciado no decorrer deste capítulo e com base na análise cui<strong>da</strong>dosa e objetiva dos termos <strong>da</strong> Lei 601,<br />

ela de fato e de direito, estabelece um marco zero em relação à proprie<strong>da</strong>de territorial no Brasil Independente. Isso<br />

não significa que ela revogue a situação de fato existente na estrutura agrária brasileira naquele <strong>da</strong>do momento. Pelo<br />

contrário, a Lei 601 toma como referência exatamente a diversi<strong>da</strong>de de situações concretamente existentes e, realiza<br />

duas distinções fun<strong>da</strong>mentais: 1. separa claramente o que sejam terras públicas (devolutas e do Estado) <strong>da</strong>s terras que<br />

se encontravam no domínio privado (sesmarias ou concessões anteriores ou meras posses); 2. estabelece dois critérios<br />

e âmbitos distintos de reconhecimento, pelo Estado, <strong>da</strong>s terras que se encontravam no domínio privado (Revali<strong>da</strong>ção,<br />

para as terras que advinham de concessões ou sesmarias; e Legitimação para as demais terras que apenas se<br />

fun<strong>da</strong>vam nas posses). Finalmente, estabelece que a única forma de acesso às terras devolutas, <strong>da</strong>li para adiante seria<br />

a ven<strong>da</strong>.<br />

117 In.: MEAF (op. cit., p. 357).<br />

68


esolubili<strong>da</strong>de, vale dizer, estavam com exploração efetiva e mora<strong>da</strong> habitual de seus<br />

respectivos concessionários, medi<strong>da</strong>s e demarca<strong>da</strong>s, etc., eram reconheci<strong>da</strong>s como<br />

proprie<strong>da</strong>des priva<strong>da</strong>s, legalmente 118 ; 2. As sesmarias e outras concessões que não<br />

preenchessem as condições acima, necessitavam de revali<strong>da</strong>ção, e para tanto eram<br />

estabelecidos determinados critérios que serão analisados adiante; 3. As posses mansas<br />

e pacíficas, que teriam que ser legitima<strong>da</strong>s (o que implicava a admissão tácita, mas<br />

efetiva, de que não eram legítimas), e para tanto eram estabelecidos, igualmente,<br />

critérios que serão também analisados neste estudo. 4. Finalmente, definia as terras<br />

devolutas <strong>da</strong> União (as que não se enquadrassem nas condições acima, e não estivessem<br />

destina<strong>da</strong>s a algum domínio ou uso do Estado, Províncias ou Municípios), ficando<br />

definido, assim, o conceito de proprie<strong>da</strong>de do Estado em oposição às terras devolutas do<br />

Estado.<br />

O que distingue, essencialmente, estas situações, sendo de interesse para a<br />

argumentação básica deste estudo, é o termo “revali<strong>da</strong>ção”. Por esta terminologia, o<br />

legislador sinalizou que as terras nesta situação necessitavam apenas de se verificar se<br />

cumpriam as cláusulas de resolubili<strong>da</strong>de ou se feriam interesses fundiários constituídos,<br />

como posses produtivas em seu interior ou outras condições, juridicamente<br />

estabeleci<strong>da</strong>s, após o processo de concessão. Mas significou igualmente que, em<br />

princípio, eram proprie<strong>da</strong>des considera<strong>da</strong>s legítimas, podendo apenas sofrer algumas<br />

limitações ou restrições, sobretudo em função do não cumprimento de cláusulas legais<br />

ou de sentenças judiciais eventualmente pronuncia<strong>da</strong>s contra elas ou a favor de<br />

terceiros.<br />

Em relação às posses, a situação é absolutamente distinta <strong>da</strong>s anteriores:<br />

tratavam-se de áreas apossa<strong>da</strong>s, por suposto ilegal ou extra-legalmente, e que tinham a<br />

expectativa de direito de serem legaliza<strong>da</strong>s pela Lei 601, nos termos claramente<br />

estabelecidos nesta mesma Lei. Na medi<strong>da</strong> em que a lei assegurava a legitimação <strong>da</strong>s<br />

posses mansas e pacíficas produtivas, exceto quando se encontrassem no interior de<br />

sesmarias não caí<strong>da</strong>s em comisso, a situação dos posseiros (grandes posseiros, como se<br />

verá) estará plenamente assegura<strong>da</strong>. Mesmo contra os interesses de determina<strong>da</strong>s<br />

sesmarias, sobretudo as que haviam caído em comisso. Este é o cerne <strong>da</strong> questão entre<br />

posseiros e sesmeiros, e não tem nenhuma relação fun<strong>da</strong>mental com pequenos posseiros<br />

como se verá adiante.<br />

Portanto, tratava-se, de estabelecer os critérios jurídicos fun<strong>da</strong>mentais que<br />

passaram a nortear os processos de legalização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial, por um lado; e<br />

de definir, claramente, por outro lado, a posição do Estado em termos do<br />

reconhecimento formal, jurídico, <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial, aliás, consagrado na<br />

Constituição de 1824. Em suma, a Lei 601 de 1850 apresenta-se como uma legislação<br />

específica de proprie<strong>da</strong>de e estabelece claramente, todos os marcos jurídicos e<br />

118 Este era o caso, sobretudo, <strong>da</strong>s terras do nordeste açucareiro, cuja estrutura agro-fundiária consoli<strong>da</strong>ra-se, do<br />

ponto de vista jurídico e, em grande parte, concreto, sob a égide do instituto <strong>da</strong>s sesmarias (Cf. SMITH, op. cit. e<br />

FAORO, op. cit.)<br />

69


administrativos, fun<strong>da</strong>mentais, no âmbito do Estado de Direito, para a constituição legal<br />

<strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> <strong>da</strong> terra.<br />

Por esta razão, estritamente jurídica, mas também concreta, é que as sesmarias<br />

que preenchiam as cláusulas de resolubili<strong>da</strong>de, foram considera<strong>da</strong>s, legalmente, como<br />

parte do domínio privado e, portanto, não estavam abrangi<strong>da</strong>s pela Lei 601, que se<br />

destinava à legitimação ou revali<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s situações que se encontravam em conflito<br />

com as normas legais até então estabeleci<strong>da</strong>s.<br />

Esclareça-se, entretanto, que a Constituição de 1824 consagrava o Direito de<br />

proprie<strong>da</strong>de. Entretanto, na medi<strong>da</strong> em que não definia os critérios para materialização<br />

deste direito, permitiu, durante o período do império <strong>da</strong>s posses (1822-1850), o avanço<br />

indiscriminado <strong>da</strong>s posses sobre as terras disponíveis (fossem públicas ou não), situação<br />

que gestou um profundo conflito, especialmente entre grandes posseiros e antigos<br />

sesmeiros, que a Lei 601 buscava conciliar. Observe-se, "en passant" a esse respeito,<br />

que as posses que se estabeleceram sobre antigas sesmarias que preenchiam as<br />

condições de resolubili<strong>da</strong>de, portanto, legalmente reconheci<strong>da</strong>s como conti<strong>da</strong>s no<br />

domínio privado, eram considera<strong>da</strong>s ilegais, e <strong>da</strong>vam apenas direito à indenizações por<br />

possíveis benfeitorias. Caso contrário <strong>da</strong>s posses sobre sesmarias ou concessões caí<strong>da</strong>s<br />

em comisso, como já registrado.<br />

Esta a razão fun<strong>da</strong>mental que pode ser argui<strong>da</strong> em defesa do fato de que, nos<br />

debates parlamentares, dois pontos concentraram as maiores polêmicas:<br />

1 o ) O problema <strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong>s posses e <strong>da</strong> revali<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s sesmarias ou<br />

outras concessões que não preenchiam as condições legais (que era sobretudo, embora<br />

não apenas, o caso do vale do Paraíba) e;<br />

2 o ) Os problemas dos impostos e tributos, sobretudo o Direito de Chancelaria 119 .<br />

Os problemas referentes à necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> promoção <strong>da</strong> migração e <strong>da</strong><br />

colonização, como pode ser deduzido <strong>da</strong> análise dos debates parlamentares que<br />

antecederam a aprovação <strong>da</strong> Lei 601, não apresentaram maiores divergências. Na<br />

ver<strong>da</strong>de havia, praticamente, consenso quanto a este ponto 120 . As mu<strong>da</strong>nças ocorri<strong>da</strong>s na<br />

legislação sobre o trabalho livre, nos anos 1830 e 1837 referen<strong>da</strong>vam o sistema de<br />

controle <strong>da</strong> mão-de-obra própria ao escravismo dominante. Como diz Brasílio Sallum<br />

Jr.: Se era ver<strong>da</strong>de que essas leis<br />

“protegiam de forma mais eficaz que as Ordenações o dinheiro<br />

adiantado pelos fazendeiros bem como a disciplina <strong>da</strong>s fazen<strong>da</strong>s,<br />

não resolviam, de um lado o problema do endivi<strong>da</strong>mento dos<br />

imigrantes e, de outro, permitiam tal dose de parciali<strong>da</strong>de no<br />

julgamento <strong>da</strong>s questões em que se envolviam os trabalhadores<br />

119 Veja-se a respeito dessas questões, entre outros, os excelentes trabalhos de Raymundo Faoro e, sobretudo, para<br />

uma análise mais sistemática desta problemática, os estudos de Roberto Smith e José Murilo de Carvalho, todos<br />

citados. Este tema é retomado, em suas linhas fun<strong>da</strong>mentais, no capítulo 3.<br />

120 Ver a respeito os trabalhos citados na nota anterior, particularmente, Roberto Smith e José Murilo de Carvalho.<br />

70


que dificultavam a imigração, já que contribuíam para a má fama<br />

que as colônias <strong>da</strong> Província tinham na Europa.” 121<br />

Apesar de o sistema de parceria haver sido abandonado nos anos 50, os novos<br />

contratos de locação de serviços eram firmados de tal modo que, como diz Sallum,<br />

“permitiam que fossem enquadrados nas leis de locação de serviços <strong>da</strong>ta<strong>da</strong>s<br />

de 1830 e 1837 122 .” Apenas a partir dos anos 60 iriam alguns fazendeiros adotar-se<br />

uma espécie de contratos, só generaliza<strong>da</strong> nos anos 80 - <strong>da</strong> grande imigração (em 1884 é<br />

que o problema <strong>da</strong> dívi<strong>da</strong> dos colonos com os fazendeiros resolve-se definitivamente<br />

com o subsídio total <strong>da</strong> imigração pelo governo paulista) - que suavizavam para o<br />

colono as condições draconianas anteriores. E apenas em 1879, uma nova lei veio<br />

representar<br />

“em comparação com as leis anteriores (...) um grande avanço na<br />

proteção aos trabalhadores”, (posto que) “procurou reduzir a<br />

dependência dos imigrantes em relação aos proprietários,<br />

impedindo que estes cobrassem mais do que 50% dos gastos que<br />

tivessem feito com a sua importação, além de estabelecer prazos<br />

máximos para os contratos de trabalho.” 123<br />

As divergências e, sobretudo, as resistências mais importantes, no debate<br />

Parlamentar, eram levanta<strong>da</strong>s em relação aos impostos e vinham, muito mais, de uma<br />

tradição antiga do Direito português, que sempre se caracterizou por uma fraca ou nula<br />

tributação territorial, em oposição a uma forte tributação dos processos de transmissão<br />

<strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de (Faoro, op.cit.). Assim, pode-se afirmar com relativa segurança, que as<br />

divergências com relação a esse ponto <strong>da</strong> Lei 601/1850 advinham do fato efetivo de que<br />

os latifundiários não desejavam pagar os referidos impostos 124 ; donde as frequentes<br />

referências, no debate parlamentar <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1840, a "estelionato público", que o<br />

Estado estaria pretendendo promover em relação aos "proprietários" de terras no<br />

Brasil 125 . Além, é claro, <strong>da</strong> ameaça, pelo não pagamento dos impostos, de per<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de 126 ou de sua conversão em mera posse, com to<strong>da</strong>s as implicações que tal<br />

fato significava.<br />

121 Brasílio Sallum Júnior, Capitalismo e cafeicultura. Oeste paulista: 1888-1930. São Paulo: Duas Ci<strong>da</strong>des, 1982, p.<br />

85.<br />

122 Idem, p. 83.<br />

123 Idem, pp. 84 -5; 86 - 89.<br />

124 Essa questão é levanta<strong>da</strong> reitera<strong>da</strong>mente pelas autori<strong>da</strong>des Coloniais ao se reportarem aos processos de<br />

confirmação de sesmarias, que sistematicamente não era requeri<strong>da</strong> pelos concessionários, em boa medi<strong>da</strong> para evitar<br />

os custos tributários (ver a respeito, sobretudo, Ruy Cirne Lima e Raymundo Faoro, ambos citados).<br />

125 Como bem registra José Murilo de Carvalho, "oposição maior ain<strong>da</strong> seria feita, no entanto, às taxas e<br />

impostos, e às cláusulas de expropriação, salientando-se no ataque, Galvão e Urbano. Este último diria,<br />

ao discutir o direito de chancelaria, que por em dúvi<strong>da</strong> a legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s posses mansas e pacíficas era<br />

princípio 'anárquico e subversivo <strong>da</strong> ordem pública e destruidor de todo o direito'. Mais tarde rejeitaria tudo<br />

que não se referisse à colonização por ser 'extorsão violentíssima, um ver<strong>da</strong>deiro estelionato público.'<br />

"(op. cit., p. 42).<br />

126 O que, segundo Urbano, citado por Murilo de Carvalho, tornar-se-ia um atentado à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> em geral,<br />

além de inconstitucional, e representava um risco à ordem pública (p.43).<br />

71


Portanto, parece frágil a tese de que a resistência aos impostos devia-se ao fato<br />

de que os mesmos beneficiariam aos cafeicultores em detrimento de outros<br />

latifundiários, especialmente nordestinos, por se destinarem à cobertura de despesas<br />

com a migração estrangeira 127 . Simplesmente porque não era este o caso. O fato dos<br />

dois problemas aparecerem associados nos debates parlamentares não é prova suficiente<br />

de que houvesse uma associação direta entre ambos: quer dizer, o imposto de<br />

chancelaria não estava sendo criado para promover a imigração. A imigração, sim, é que<br />

seria, parcialmente, financia<strong>da</strong> com recursos advindos deste imposto, assim como <strong>da</strong><br />

ven<strong>da</strong> de terras devolutas 128 . Tratava-se, de fato, no caso do “Direito de Chancelaria”,<br />

que era o mais criticado, de um imposto de transmissão "inter vivos" sobre a<br />

proprie<strong>da</strong>de, que, como se sabe, é uma prática tributária corrente em qualquer transação<br />

mercantil-imobiliária no universo do direito burguês, que se encontrava em vias de<br />

implantação no Brasil 129 . Nesse sentido, pode-se arguir a hipótese de que a<br />

argumentação, que associava o imposto sobre a transmissão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, ao rateio de<br />

eventuais custos de imigração de estrangeiros livres para a lavoura cafeeira; que a<br />

mesma atuava com o sentido de um argumento "demagógico" contra qualquer imposto<br />

sobre a proprie<strong>da</strong>de latifundiária 130 e, em última instância, visava desviar o cerne <strong>da</strong><br />

questão, (<strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de para a tributação vincula<strong>da</strong> à colonização dirigi<strong>da</strong>) na tentativa<br />

de abortá-la.<br />

A questão mais grave e mais relevante, entretanto, era a que opunha antigos<br />

sesmeiros e posseiros. Vale registrar que ambos, sesmeiros e posseiros, têm que ser<br />

claramente qualificados: tratavam-se de grandes posseiros que se estabeleceram em<br />

terras devolutas (públicas), ou “particulares” (sesmarias abandona<strong>da</strong>s) e de sesmeirios<br />

que haviam caído em comisso, por estarem suas concessões ou abandona<strong>da</strong>s, ou não<br />

confirma<strong>da</strong>s, pela falta de cumprimento <strong>da</strong>s condições legais estabeleci<strong>da</strong>s nas cláusulas<br />

resolutivas.<br />

127 Embora, é evidente, a migração de colonos pobres, de fato beneficiasse sobretudo essa cama<strong>da</strong> dos latifundiários.<br />

Mas o que fica claro nos debates e, depois no texto <strong>da</strong> Lei 601, é que a resistência estava nas restrições que a Lei 601<br />

estabelecia em relação à revali<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s sesmarias e à legitimação <strong>da</strong>s posses, sobretudo no que se referia à restrições<br />

aos tamanhos <strong>da</strong>s posses (e sesmarias em comisso), o seu condicionamento à efetiva exploração e residência habitual<br />

e à exigência do imposto de chancelaria.<br />

128 Na ver<strong>da</strong>de, segundo a lógica <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> “colonização sistemática”, então argui<strong>da</strong>, o financiamento de migrantes<br />

era assegurado pela ven<strong>da</strong> de terras aos ex-assalariados que, após fazerem um pecúlio, trabalhando para os<br />

capitalistas, e portanto, promovendo a acumulação de capital, ao pagarem pelas terras, estavam de fato, financiando,<br />

através do Estado, a vin<strong>da</strong> de seus substitutos. Logo, essa idéia de financiar migração com imposto é, realmente,<br />

estranha à tese <strong>da</strong> colonização sistemática (vide Wakefield, op. cit. e Marx, op. cit.). Aliás, o artigo <strong>da</strong> Lei 601 que se<br />

refere a esse problema afirma que os recursos advindos dos impostos de chancelaria e <strong>da</strong> ven<strong>da</strong> de terras serão<br />

aplicados “1 o à ulterior medição de terras devolutas e 2 o à importação de colonos livres.”<br />

129 Ver a esse respeito o excelente estudo de Roberto Smith, que procura evidenciar a relevância de Lei 601 no<br />

sentido de possibilitar, no Brasil, a gênese <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de absoluta e mercantil <strong>da</strong> terra, enquanto pressuposto à<br />

mercantilização <strong>da</strong> força de trabalho, numa perspectiva teórica enriquecedora e criativa na abor<strong>da</strong>gem deste tema.<br />

130 Embora fosse ver<strong>da</strong>deira a parte <strong>da</strong> argumentação referente ao fato de que a imigração beneficiaria especialmente<br />

os cafeicultores. Só que os objetivos perseguidos pelos que assim argumentavam era impedir a tributação <strong>da</strong> terra;<br />

não fazer oposição à imigração estrangeira, de que aliás não havia cogitação imediata, o que dá um sentido<br />

completamente distinto ao fato. Isso fica claro nos debates parlamentares <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de quarenta do século XIX (Cf.<br />

CARVALHO, op. cit.)..<br />

72


Como esse conflito opunha, basicamente, latifundiários (grandes posseiros e<br />

sesmeiros) dos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo (embora fosse um<br />

fenômeno extensivo a todo o país), sobretudo porque a expansão <strong>da</strong> cultura cafeeira,<br />

especialmente no Vale do Paraíba, ocorrerá sobre terras de antigas sesmarias mais ou<br />

menos abandona<strong>da</strong>s, desde a decadência do ciclo <strong>da</strong> mineração (Cf. Faoro e Prado<br />

Júnior, citados), valorizando-as; vem à tona um conflito que tem sido interpretado no<br />

sentido de que a Lei 601 achava-se subordina<strong>da</strong> aos interesses destes cafeicultores 131 :<br />

paulistas, por exemplo, na opinião de <strong>Alberto</strong> Passos Guimarães, ou fluminenses,<br />

segundo Murilo de Carvalho.<br />

3.2 A Questão <strong>da</strong> Proprie<strong>da</strong>de Territorial<br />

A desorganização <strong>da</strong> estrutura fundiária brasileira, como reitera<strong>da</strong>s vezes<br />

registrou-se, era um problema reconhecido desde os últimos lustros do período colonial.<br />

Estava na origem, não apenas de conflitos entre latifundiários - fossem, estes, sesmeiros<br />

ou grandes posseiros - como afetava, negativamente, as possibili<strong>da</strong>des de<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> produção agro-exportadora, fun<strong>da</strong>mental, sobretudo após a<br />

Independência, à estabili<strong>da</strong>de econômica, política e social <strong>da</strong> nação emergente. Os<br />

conflitos pela terra politizaram-se e ganharam radicali<strong>da</strong>de no período de consoli<strong>da</strong>ção<br />

<strong>da</strong> Independência nacional, numa fase de instabili<strong>da</strong>de econômica, política e social, que<br />

iria persistir por um longo período, que se estenderá desde 1821 aos finais <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de<br />

1840, projetando-se, outrossim para adiante, e marcando endelevelmente todo o<br />

processo de desenvolvimento ulterior <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> economia política Brasileiras.<br />

É nessa conjuntura de crise que será encaminha<strong>da</strong> a discussão do Projeto que<br />

redun<strong>da</strong>rá na Lei 601 de 1850. Tratava-se de tentar por termo à situação caótica <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de rural por um lado e, por outro, de criar alternativas econômicas à<br />

organização <strong>da</strong> produção, sobretudo no que se referia à oferta de força-de-trabalho livre,<br />

necessária ao desenvolvimento <strong>da</strong> produção agro-exportadora, e alternativa à<br />

escravidão. Neste contexto, como se observou acima, dois problemas aparecem<br />

claramente colocados na Lei 601: 1. Resolver o problema <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />

terras e separar clara e legalmente o patrimônio territorial público do privado; e 2.<br />

131 Neste sentido pode-se afirmar que se os cafeicultores tiveram interesses nesse processo - e é obvio que tiveram -<br />

tais interesses referiam-se fun<strong>da</strong>mentalmente à legitimação de suas posses: à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> <strong>da</strong> terra que<br />

detinham, o seu reconhecimento pelo Estado. Por isso não opunham grande resistência aos impostos, por exemplo, o<br />

de chancelaria, embora, como os demais latifundiários, defendessem sua redução ao mínimo, por ser esta uma<br />

alternativa para legitimar suas vastas posses. Tratavam-se, portanto, de interesses que eles defendiam enquanto<br />

latifundiários e não enquanto cafeicultores. O objetivo era sempre, antes de tudo, assegurar a legitimação <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra. É obvio que haviam outros interesses envolvidos neste processo, como, por exemplo, o interesse<br />

no financiamento, pelo Estado, <strong>da</strong> imigração de estrangeiros pobres, processo esse, aliás, que sistematicamente<br />

fracassará, sem que seja afetado seriamente o desenvolvimento inicial <strong>da</strong> economia cafeeira. Trata-se, como parece<br />

claro, de um conflito sobre legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de e não, especificamente, ou prioritariamente, sobre<br />

colonização. É necessário fazer, como o faz Paula Beiguelman (A grande Imigração. In.: Pequenos Estudos de<br />

Ciência Política), a distinção entre o período histórico-econômico de 1840-1890 (imigração restrita) e o de 1890 em<br />

diante (imigração de massa).<br />

73


encaminhar alternativas ao problema <strong>da</strong> mão-de-obra livre, autorizando o Estado a<br />

promover a colonização estrangeira. Serão essas duas, as questões fun<strong>da</strong>mentais<br />

coloca<strong>da</strong>s para equacionamento pela Lei 601 de setembro de 1850. Em torno delas é<br />

que girarão os demais problemas candentes a respeito <strong>da</strong> Política agrícola e de terras do<br />

Império.<br />

Neste tópico será analisa<strong>da</strong> a questão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial, na perspectiva<br />

de sua legitimação pelo Estado e suas respectivas implicações. No tópico seguinte deste<br />

capítulo serão discutidos os problemas <strong>da</strong> migração estrangeira e <strong>da</strong> colonização, assim<br />

como as suas diversas articulações com o problema <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial e o seu<br />

controle.<br />

A Lei 601 é conheci<strong>da</strong>, desde a sua promulgação, como a Lei de Terras, numa<br />

referência contundente a respeito do seu objetivo fun<strong>da</strong>mental: regular e estabelecer os<br />

critérios jurídicos, com base nos quais seria (ou não), de então para adiante,<br />

reconheci<strong>da</strong>, pelo Estado, a proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> e legítima <strong>da</strong> terra. Neste sentido<br />

estabelecia também, como observa Roberto Smith, as condições institucionais e<br />

jurídicas fun<strong>da</strong>mentais para a transformação <strong>da</strong> antiga proprie<strong>da</strong>de resolutiva, fun<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

no instituto de sesmarias, em proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> plena, absoluta, mercantil, <strong>da</strong> terra.<br />

Demarca, dessa forma, claramente, os limites legais e legítimos <strong>da</strong> separação entre a<br />

proprie<strong>da</strong>de territorial pública e priva<strong>da</strong> no Brasil, e portanto, as condições<br />

institucionais <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de mercantil, burguesa, <strong>da</strong> terra.<br />

Antes de se entrar no âmago <strong>da</strong> discussão dos diversos artigos e parágrafos <strong>da</strong><br />

Lei 601 e suas implicações para a reali<strong>da</strong>de agro-fundiária brasileira, alguns<br />

esclarecimentos são necessários com relação a proprie<strong>da</strong>de territorial e ao acesso à terra<br />

no Brasil. A Lei 601 estabelece, juridicamente, e com base na situação efetivamente<br />

existente na reali<strong>da</strong>de agrária e econômica brasileira <strong>da</strong> época, uma clara distinção<br />

quanto ao estatuto jurídico <strong>da</strong>s terras do país em relação à proprie<strong>da</strong>de territorial, e<br />

indica as formas institucionais para a sua legitimação e reconhecimento pelo Estado:<br />

a. Haviam as terras devolutas, parte do domínio do Estado. Tratavamse<br />

de terras que não se confundiam nem com a proprie<strong>da</strong>de do Estado, como as<br />

destina<strong>da</strong>s a algum uso <strong>da</strong> União, <strong>da</strong>s Províncias ou dos Municípios; nem com<br />

as demais terras que se encontravam, legitimamente, no domínio privado. As<br />

terras devolutas, por suposto, livres, sem nenhuma destinação ou utilização<br />

pública ou priva<strong>da</strong>, que sempre estiveram sujeitas aos diversos modos e formas<br />

de apossamento, são estritamente regulamenta<strong>da</strong>s pela Lei 601, ficando, logo<br />

no seu artigo primeiro, o acesso a essas terras, condicionado à compra ao<br />

Estado. A única exceção aberta, referia-se a possibili<strong>da</strong>de de cessão, por parte<br />

do Estado, a terceiros, na faixa de fronteira do Império com países estrangeiros.<br />

Portanto, no caso <strong>da</strong>s terras devolutas, fica definitivamente ve<strong>da</strong>do, como<br />

74


ilegítimo e ilegal, logo, sujeito às sanções - que vão do despejo com idenização<br />

e multas à prisão -, o seu apossamento 132 .<br />

b. Haviam as sesmarias ou outras concessões oficiais legítimas e<br />

como tais reconheci<strong>da</strong>s, que, portanto, eram parte efetiva do domínio privado,<br />

legalmente destacado do patrimônio público. Tratavam-se <strong>da</strong>s sesmarias<br />

confirma<strong>da</strong> e não caí<strong>da</strong>s em comisso, assim como outras concessões do<br />

Governo Geral, Provincial ou municipal. Referiam-se as antigas sesmarias e<br />

concessões que se achavam integra<strong>da</strong>s efetivamente à produção econômica e<br />

de exportação, (como era, por exemplo, a situação <strong>da</strong>s terras <strong>da</strong> zona açucareira<br />

do Nordeste, embora houvessem outras situações que tais, em todo o território<br />

do país). Esse problema será analisado detalha<strong>da</strong>mente mais adiante. Estas,<br />

junto com as terras de domínio efetivo do patrimônio do Estado (as que tinham<br />

algum uso público, Nacional, Provincial ou Municipal), são legalmente<br />

reconheci<strong>da</strong>s como parte legal do patrimônio legítimo - público e privado - e<br />

como tais ficam fora do âmbito de abrangência do Universo <strong>da</strong><br />

regulamentação <strong>da</strong> Lei 601, que se destinava ao estabelecimento <strong>da</strong>s condições<br />

legais para a legitimação <strong>da</strong>s terras considera<strong>da</strong>s de ocupação irregular: extralegal<br />

e ilegítima.<br />

c. Haviam as sesmarias ou outras concessões anteriores não<br />

confirma<strong>da</strong>s ou caí<strong>da</strong>s em comisso pelo não cumprimento de algumas ou<br />

to<strong>da</strong>s as condições de resolubili<strong>da</strong>de, ou simplesmente abandona<strong>da</strong>s pelos<br />

concessionários ou sesmeiros. Essas concessões e sesmarias, que eram parte<br />

dos latifúndios, têm, na Lei 601, a expectativa de direito à sua revali<strong>da</strong>ção,<br />

entretanto, estando esse processo sujeito à determina<strong>da</strong>s condições claramente<br />

estabeleci<strong>da</strong>s na Lei 601, referentes, sobretudo à presença de posses em seus<br />

interiores, que deveriam, em determina<strong>da</strong>s condições, ter priori<strong>da</strong>de. Disto<br />

deriva o sério conflito, como se verá adiante, entre sesmeiros (estes sesmeiros)<br />

e posseiros (grandes, sobretudo).<br />

d. Finalmente, haviam as posses, geralmente grandes, mas também as<br />

pequenas, que se formaram, sobretudo no período que se estendeu entre 1822,<br />

quando é suspensa a Lei de Sesmarias e 1850, quando a Lei 601 é aprova<strong>da</strong>. As<br />

grandes posses formaram-se nesse período, acompanhando as possibili<strong>da</strong>des<br />

abertas ao desenvolvimento <strong>da</strong> economia agrícola, e <strong>da</strong>s amplas perspectivas<br />

gesta<strong>da</strong>s pela Independência nacional, e se estabeleceram sobre sesmarias mais<br />

ou menos abandona<strong>da</strong>s, ou pela decadência econômica, como o caso de boa<br />

parte <strong>da</strong>s sesmarias do Vale do Paraíba, de Minas Gerias e parte de São Paulo,<br />

após o final do ciclo <strong>da</strong> mineração (Faoro, op. cit.); ou pelas pressões<br />

132 Esse princípio, referente à proibição <strong>da</strong> invasão de terras legítimas (do Estado ou particulares), e a punição de tais<br />

atos de invasão com despejo sem nenhum direito, multa e prisão, é claramente estabelecido no artigo segundo; sendo<br />

ressalvado apenas os casos de "hereus confinantes" que deveriam ser resolvidos no campo do direito civil. Isto, de<br />

certa forma permitia a invasão de áreas estatais, quando confinantes com proprie<strong>da</strong>des particulares, recurso, aliás,<br />

muito usado pelo latifúndio.<br />

75


decorrentes de outros conflitos engendrados no processo de independência e de<br />

consoli<strong>da</strong>ção do Estado Nacional, quando muitos portugueses, beneficiários de<br />

sesmarias pela antiga Corte metropolitana, caíram em desgraça. Haviam posses<br />

que se formaram igualmente, em terras devolutas estatais, o que era mais raro<br />

no período, sobretudo, nas zonas economicamente mais vantajosas, inclusive<br />

no Nordeste, face às imensas dimensões que tiveram as sesmarias concedi<strong>da</strong>s<br />

no período colonial.<br />

Ain<strong>da</strong> quanto as posses, haviam também as pequenas posses, que sempre se<br />

constituíram, por diversas formas e em diferentes conjunturas nas diversas regiões do<br />

país, dentro ou fora <strong>da</strong>s sesmarias ou em terras devolutas, mas sempre em áreas<br />

afasta<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s melhores terras, e geralmente com a anuência ou omissão do Estado ou<br />

dos latifundiários. Embora essas pequenas posses, enquanto tais, fossem assegura<strong>da</strong>s<br />

pela Lei 601, sobretudo elas, que preenchiam as condições básicas de legitimação, que<br />

seriam a mora<strong>da</strong> habitual e a cultura efetiva, serão exatamente as que não conseguirão<br />

fazer valer sua expectativa "líqui<strong>da</strong> e certa" de direito, passando, seus ocupantes a fazer<br />

parte, desde então, do imenso exército dos expulsos <strong>da</strong> terra e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de civil (ver<br />

Faoro, op. cit.). Esses pequenos posseiros, por motivos de diversas ordens, nunca, ou<br />

raramente, terão a possibili<strong>da</strong>de de fazer valer os seus direitos civis, sobretudo quanto à<br />

proprie<strong>da</strong>de, e desde essa época passam a constituir o imenso exército dos excluídos <strong>da</strong><br />

terra, (os "sem terra") e do trabalho livre, como será analisado adiante.<br />

3.2.1. As Terras Devolutas<br />

Como já registrado, a Lei 601, em primeiro lugar,<br />

"Dispõe sobre as terras devolutas do Império (...) e determina<br />

que, medi<strong>da</strong>s e demarca<strong>da</strong>s, (...) sejam elas cedi<strong>da</strong>s a título<br />

oneroso, assim para empresas particulares, como para o<br />

estabelecimento de colônias de nacionais e estrangeiros (...). 133<br />

“<br />

Com esse enunciado, o Estado define claramente o estatuto jurídico <strong>da</strong>s terras<br />

devolutas do Império, ou seja, define claramente, as terras devolutas como integra<strong>da</strong>s<br />

ao acervo <strong>da</strong>s terras públicas do Estado, portanto excluí<strong>da</strong>s do patrimônio privado. E<br />

mais, estabelece, no artigo segundo <strong>da</strong> Lei 601, que quem se apossar de terras devolutas<br />

(tal como de alheias), serão obrigados a despejo, sem nenhum direito a benfeitorias ou<br />

outros, além de estarem sujeitos a penas que vão de dois a seis meses de prisão e multa,<br />

além <strong>da</strong> obrigação de ressarcimento dos <strong>da</strong>nos eventualmente causados pela queima e<br />

derruba<strong>da</strong> de florestas. O enunciado desse artigo deixa evidente o estatuto <strong>da</strong>s terras<br />

devolutas enquanto terras do Estado e que apenas poderiam ser adquiri<strong>da</strong>s pela compra<br />

ou através de sua anuência (no caso <strong>da</strong>s fronteiras). Desta forma o Estado, de fato e de<br />

direito, constitui um patrimônio efetivo de terras públicas. Esse patrimônio, embora<br />

133 Lei 601 de 1850. (grifos nossos).<br />

76


passível de ser privatizado, nos mesmos termos <strong>da</strong> legislação estabeleci<strong>da</strong> pela Lei 601,<br />

apenas poderia sê-lo, através <strong>da</strong> transação de compra com o Estado ou de sua cessão por<br />

este. Qualquer outra forma de apossamento ficava, portanto, defini<strong>da</strong> não apenas como<br />

ilegal e ilegítima, mas como crime.<br />

A dilapi<strong>da</strong>ção, pelo apossamento, desse acervo de terras estatais, ocorreu<br />

portanto de forma ilegal e ilegítima. É neste sentido que a hipótese aqui defendi<strong>da</strong><br />

afirma o caráter de ilegitimi<strong>da</strong>de e de juridici<strong>da</strong>de questionável com relação à maioria<br />

<strong>da</strong>s terras brasileiras, situação esta que se prolonga até os dias atuais. Como se verá, o<br />

mesmo fenômeno, em outro contexto e sentido, ocorrerá com as demais terras do país.<br />

Parece plausível a hipótese de que o objetivo fun<strong>da</strong>mental do Estado ao definir o<br />

estatuto <strong>da</strong>s terras devolutas (artigo 3 o <strong>da</strong> Lei 601) tenha sido o de separar esse conjunto<br />

de terras públicas, <strong>da</strong>s terras do domínio privado (artigo 1 o , parágrafos 2 o e 3 o ), conjunto<br />

esse, que deveria funcionar como "reserva de terras livres e estatais", passível de<br />

sustentar possíveis alternativas de empreendimentos agrícolas avançados, sustentados<br />

no trabalho livre e apoiados na emigração e colonização (estrangeira e nacional), por um<br />

lado e, por outro, tentar regular o confuso mercado de terras em expansão no Império.<br />

O que era, aliás, o argumento central <strong>da</strong> colonização sistemática, tal como<br />

formula<strong>da</strong> por Wakefield. Portanto, não se tratava primariamente, de impedir a<br />

formação de pequenas proprie<strong>da</strong>des (embora essa fosse uma de suas implicações<br />

fun<strong>da</strong>mentais), mas de assegurar as condições para a atração de investimentos na<br />

agricultura, o que significava, colocar à disposição dos capitais interessados, reservas de<br />

mão-de-obra e de terras. Por isso não, se pode simplesmente, afirmar que o objetivo <strong>da</strong><br />

colonização sistemática fosse impedir o acesso à terra, pelos trabalhadores para, assim,<br />

colocá-los à disposição do capital. Ou seja, para isso não seria necessário impedir a<br />

genericamente aos trabalhadores de terem acesso à essa possibili<strong>da</strong>de: bastava, e esta<br />

era a tese de Wakefield, fazer com que os trabalhadores empregados pagassem, com a<br />

compra <strong>da</strong> terra, a continui<strong>da</strong>de do processo de exploração <strong>da</strong> força de trabalho. Essa<br />

argumentação de Wakefield será analisa<strong>da</strong> no item 4 adiante. Portanto, tratava-se antes,<br />

de criar as condições para a subordinação <strong>da</strong> força-de-trabalho ao capital, gravando a<br />

terra com determinado ônus: isto é, mercantilizando-a, como bem observa Roberto<br />

Smith, e por essa via, possibilitar a estruturação <strong>da</strong>s condições de reprodução do capital,<br />

enquanto relação social na agricultura. Isso é diferente de pensar a lei como uma espécie<br />

de demiurgo do trabalho assalariado. Tanto isso é ver<strong>da</strong>de que, apesar <strong>da</strong> Lei 601<br />

estabelecer estes pré-requisitos, as relações de trabalho na agricultura brasileira ain<strong>da</strong><br />

permanecerão por muito tempo assumindo mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des diversas do assalariato.<br />

Neste sentido, o Estado ve<strong>da</strong> terminantemente (artigo 1 o ) "as aquisições de<br />

terras devolutas por outro título que não seja a compra", permitindo, como única<br />

exceção, "as terras situa<strong>da</strong>s nos limites do Império com países estrangeiros em<br />

uma zona de 10 léguas, as quais poderiam ser concedias gratuitamente."<br />

(artigo 1 o ). Distingue, igualmente (artigo 3 o , parágrafo 1 o ) as terras públicas devolutas,<br />

subordina<strong>da</strong>s ao controle e administração fundiária do Estado e destina<strong>da</strong>s à ven<strong>da</strong>, <strong>da</strong><br />

77


proprie<strong>da</strong>de estatal (as destina<strong>da</strong>s a algum uso público nacional, provincial ou<br />

municipal).<br />

É provável que o detalhamento <strong>da</strong>do ao problema <strong>da</strong>s terras devolutas revelasse<br />

a intenção de um projeto inspirado nas teses de Wakefield 134 . Ou como registra Roberto<br />

Smith, considerando que essas idéias vinham sendo defendi<strong>da</strong>s desde 1821, por José<br />

Bonifácio, portanto, antes <strong>da</strong> publicação dos trabalhos de Wakefield, pode-se arguir,<br />

igualmente, que essas teses tenham sido produto <strong>da</strong> própria experiência de diversas<br />

colônias, ulteriormente sistematiza<strong>da</strong>s por aquela estudioso. Difícil definir essa questão.<br />

Entretanto, mais importante é o fato de que a problemática <strong>da</strong> arreca<strong>da</strong>ção de<br />

terras, pelo Estado, era condição fun<strong>da</strong>mental para a implementação de uma política de<br />

terras, capaz de servir de suporte ao desenvolvimento <strong>da</strong> agricultura, por suposto mais<br />

produtiva e eficiente, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> no trabalho livre, e parece ter sido esse o sentido<br />

econômico fun<strong>da</strong>mental que subjazia a essa decisão. Além, é claro, de tentar impor um<br />

termo, pela via <strong>da</strong> regulamentação, à situação caótica e conflitiva que vinha grassando,<br />

no Brasil, desde os últimos anos do período colonial, em termos de invasão ilegal e<br />

especulativa <strong>da</strong>s terras públicas e livres, deixando o Estado quase sem nenhuma<br />

alternativa à implementação de uma economia política e de uma política de terras<br />

capazes de criar as condições necessárias ao desenvolvimento econômico e social do<br />

país.<br />

Assim, fica claramente delimitado o objetivo central do Estado no que se referia<br />

à situação desse conjunto importante <strong>da</strong>s terras do país: as terras livres estatais, que são<br />

definitiva e legalmente separa<strong>da</strong>s do domínio privado, ao mesmo tempo em que se<br />

distiguem <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de estatal. São assim, de fato, delimita<strong>da</strong>s como terras públicas<br />

estatais, no sentido definido por Wakefield: logo condição e pré-requisito fun<strong>da</strong>mental à<br />

colonização sistemática (vide Smith, op. cit.). Não se tratando de terras "aplica<strong>da</strong>s a<br />

algum uso público nacional, provincial ou municipal" nem de terras inclusas no<br />

domínio privado por título legítimo (sesmarias confirma<strong>da</strong>s ou revalidáveis pela Lei 601<br />

e as posses mansas e pacíficas, legitimáveis pela mesma Lei), to<strong>da</strong>s as demais terras são<br />

incluí<strong>da</strong>s no rol de terras devolutas do Império o que, em termos jurídicos, significa que<br />

integram o conjunto <strong>da</strong>s terras públicas. Com isso, do ponto de vista <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de, do<br />

Estado de Direito, deixa de existir, no Brasil, terras "sem dono", "adéspotas" 135 .<br />

134 Sobretudo as teses de Wakefield em relação ao equilíbrio necessário entre disponibili<strong>da</strong>de de terras e população,<br />

que aquele autor coloca claramente em diversos momentos de sua obra, e que fica especialmente claro na seguinte<br />

passagem: "Eles não podem alterar a proporção entre população e terra(...); mas a proporção entre<br />

população e terra com bom título está dentro do seu controle (...) o governo, assim, é capaz de<br />

regular a proporção entre o tamanho <strong>da</strong> população e acres de terra apropria<strong>da</strong>" (WAKEFIELD, E. G.<br />

England & América. op. cit. p. 94).Grifos nossos.<br />

135 E como é evidente, to<strong>da</strong>s as terras tendo dono (seja o Estado ou proprietários privados), apenas podem ser<br />

transferi<strong>da</strong>s para terceiros por alguma forma legalmente estabeleci<strong>da</strong>. Qualquer outra forma de apossamento ou<br />

apropriação, que não as ajusta<strong>da</strong>s às exigências estritamente estabeleci<strong>da</strong>s e reconheci<strong>da</strong>s pelo Direito, são formas<br />

ilegítimas e ilegais, independentemente de se tratarem de terras públicas ou particulares. É neste sentido que aqui se<br />

faz referência ao fato de que a proprie<strong>da</strong>de territorial no Brasil, em sua maior parte, é juridicamente questionável: ou<br />

porque nunca foi legaliza<strong>da</strong>, ou porque o foi de forma incorreta ou fraudulenta.<br />

78


Isso significa, concretamente, que to<strong>da</strong>s as terras devolutas são patrimônio do<br />

Império (isto é, do Estado) e apenas pela via <strong>da</strong> compra a (ou, excepcionalmente, de<br />

concessões), poderão ser transferi<strong>da</strong>s ao domínio privado, sendo ve<strong>da</strong><strong>da</strong> qualquer outra<br />

forma de aquisição dessas terras, como ilegítima. Assim, as terras existentes no país, ou<br />

eram públicas ou priva<strong>da</strong>s; ou seja, to<strong>da</strong>s as terras que não se encontrassem (e<br />

encontrarem <strong>da</strong>í para adiante), comprova<strong>da</strong>mente, legalmente, no domínio particular,<br />

são terras públicas 136 . Isso incluía, antes <strong>da</strong> Lei 601, as sesmarias caí<strong>da</strong>s em comisso e<br />

depois desta lei, to<strong>da</strong>s as terras que não foram revali<strong>da</strong><strong>da</strong>s (caso <strong>da</strong>s sesmarias em<br />

comisso) ou posses que não foram legitima<strong>da</strong>s (vide o artigo 8 o <strong>da</strong> Lei 601 de 1850).<br />

Em suma, a partir <strong>da</strong> Lei 601, to<strong>da</strong>s as terras, indistintamente, que não foram<br />

legitima<strong>da</strong>s, passaram ao domínio do Estado, ficando estabelecido que<br />

"os possuidores que deixarem de proceder à medição nos<br />

prazos marcados pelo Governo serão reputados em<br />

comisso, e perderão, por isso o direito que tenham a ser<br />

preenchidos <strong>da</strong>s terras concedi<strong>da</strong>s por seus títulos, ou por<br />

favor <strong>da</strong> presente Lei, conservando-os somente para serem<br />

mantidos na posse do terreno que ocuparem com efetiva<br />

cultura havendo-se por devoluto o que se achar inculto."<br />

(Atrigo 8 o Lei 601/1850. Grifos deste autor).<br />

Embora, de fato, a quase totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s terras que não cumpriu as determinações<br />

deste preceito legal continuando, entretanto, no domínio privado. Mas não resta<br />

dúvi<strong>da</strong>s, que ilegalmente, do ponto de vista do Estado de Direito. Tratam-se, portanto,<br />

de "proprie<strong>da</strong>des ilegítimas". Neste caso era apenas assegurado a posse <strong>da</strong> área<br />

efetivamente ocupa<strong>da</strong> com mora<strong>da</strong> habitual e cultura efetiva. Essa situação, como se<br />

verá no decorrer desse estudo, persistirá virtualmente, até o período inaugurado pela<br />

regime militar, sobretudo pela "valorização" <strong>da</strong>s terras em decorrência do "milagre<br />

econômico", quando tem início um vigoroso e radical processo de "legalização" <strong>da</strong>s<br />

terras, ou pela "compra a preço vil" ao Estado, em negociatas amplamente denuncia<strong>da</strong>s<br />

na época e demonstra<strong>da</strong> por muitos estudos e pelo que foi apurado pelas várias<br />

Comissões Parlamentares de Inquérito, como se verá neste trabalho. Será essa a<br />

característica desse fase, onde com base nas alternativas abertas pela Política Fundiária<br />

do Regime Militar, sobretudo pela "nova regulamentação" representa<strong>da</strong> pelo Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra, de 1964, atuará um ver<strong>da</strong>deiro exército de grileiros e especuladores, apoiados por<br />

advogados e pistoleiros, que tratam de "formalizar" a titulação de terras, numa<br />

ver<strong>da</strong>deira subversão <strong>da</strong> ordem jurídica e institucional, expulsando violentamente<br />

pequenos produtores rurais, posseiros e índios. Esses fatos serão estu<strong>da</strong>dos nos capítulos<br />

4 e 5 desse trabalho. Aqui são referidos apenas para registrar a sua gênese neste período<br />

específico <strong>da</strong> história agrária brasileira e sua mu<strong>da</strong>nça, apenas, de forma, embora<br />

imposta pela nova conjuntura aberta a partir de 1964, como se tentará por em evidência.<br />

136 É interessante registrar a esse respeito, o racioncínio de Cirne Lima (op. cit.p.111): "terra devoluta, nos primeiros<br />

tempos, era todo nosso território."<br />

79


Parece portanto, muito claro o sentido atribuído às terras devolutas: assegurar<br />

para o Estado um fundo de terras livres, capaz se sustentar uma política fundiária<br />

ajusta<strong>da</strong> às novas exigências econômicas que se colocavam ao país. Nesse sentido<br />

parece igualmente clara a influência <strong>da</strong>s teses wakefildeanas, sobretudo no que refere à<br />

manutenção de determinado equilíbrio entre a "oferta de terras com bom título" e a<br />

população, enquanto condição necessária ao desenvolvimento de uma agricultura<br />

mercantil e capitalista.<br />

Na ver<strong>da</strong>de, a colonização sistemática baseava-se na disponibili<strong>da</strong>de de terras<br />

públicas e livres, que pudessem ser privatiza<strong>da</strong>s e, assim, atrair colonos ricos,<br />

investidores, por um lado, e pobres, por outro, que não podendo pagar, estes últimos,<br />

pelas terras "livres estatais" teriam que trabalhar para aqueles, até poderem adquirir sua<br />

própria terra. Assim seria formado um fundo de terras, por um lado, e de trabalhadores<br />

pobres, por outro: os pressupostos e ingredientes fun<strong>da</strong>mentais e básicos aos<br />

empreendimentos capitalistas na agricultura. Esta era, em síntese, a argumentação<br />

básica e justificadora <strong>da</strong> colonização sistemática de Walkefield que, ain<strong>da</strong> assim, no<br />

Brasil, foi completamente escamotea<strong>da</strong> pela vigorosa oposição do latifúndio.<br />

Por um lado, a arreca<strong>da</strong>ção de terras devolutas, públicas, que deveriam formar o<br />

fundo de terras para a dinamização <strong>da</strong> agricultura foi bloquea<strong>da</strong> na prática: os<br />

latifundiários não providenciaram efetivamente a legalização e registro de suas terras e,<br />

associados às burocracias locais, geralmente a eles atrela<strong>da</strong>s, bloquearam qualquer<br />

alternativa à demarcação e, sobretudo, a arreca<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s terras devolutas. Por outro<br />

lado, a colonização foi reduzi<strong>da</strong> à importação de colonos pobres para servirem de mãode-obra<br />

barata nos latifúndios ou para colonizarem zonas de risco, como as áreas de<br />

fronteira do Império. Assim, fracassou, na origem, qualquer possibili<strong>da</strong>de de<br />

desenvolvimento deste Projeto agro-fundiário para o Brasil, com as consequências hoje<br />

amplamente conheci<strong>da</strong>s e que aqui estão sendo analisa<strong>da</strong>s.<br />

Desde essa época, a legalização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de rural no Brasil foi impedi<strong>da</strong> ou,<br />

na melhor <strong>da</strong>s hipóteses, profun<strong>da</strong>mente dificulta<strong>da</strong>, pelos latifundiários, que<br />

deslocaram a solução do problema fundiário, jogando-o para o campo amorfo <strong>da</strong><br />

colonização, afastando-o do âmbito <strong>da</strong> separação legal entre as terras públicas e<br />

particulares. Assim engendraram-se as condições para a perpetuação <strong>da</strong> situação caótica<br />

<strong>da</strong> estrutura agrária e, junto a esta, as possibili<strong>da</strong>des ao apossamento desenfreado e<br />

ilegal <strong>da</strong>s terras do país. Daí por diante jamais se falará em legalização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de,<br />

mas em colonização, por suposto, sempre pensa<strong>da</strong> em terras distantes dos domínios<br />

latifundiários. Por essa razão, fracassou, até mesmo, o processo de importação de<br />

colonos, fossem pobres ou, sobretudo, ricos, para a agricultura. Colonização em terras<br />

afasta<strong>da</strong>s e não reforma agrária torna-se, desde então, o lema básico defendido pelo<br />

latifúndio e pelos Governos.<br />

O desvirtuamento, no debate Parlamentar <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1840, e o esvaziamento,<br />

depois de 1850, dessa alternativa ao fundo de terras livres estatais, pelo deslocamento<br />

do problema para a migração de estrangeiros pobres, e <strong>da</strong> colonização como<br />

80


desbravamento, por um lado; e por outro, pela inviabilização efetiva do processo de<br />

discriminação <strong>da</strong>s terras devolutas e do registro <strong>da</strong>s terras do domínio privado,<br />

implicaram no retumbante fracasso <strong>da</strong> política de terras do Império e, muito mais que<br />

isso, de qualquer alternativa ao desenvolvimento sustentado <strong>da</strong> agricultura e do<br />

processo de colonização sistemática no país.<br />

O duplo desvirtuamento desta alternativa - a não legalização do domínio<br />

privado, logo também do público - por um lado; e, por outro, a transformação <strong>da</strong><br />

colonização sistemática, em mero processo de atração de trabalhadores pobres para<br />

servirem de mão-de-obra de fácil exploração pelos latifúndios, alia<strong>da</strong> a formação de<br />

colônias em áreas de risco 137 - o que era apenas uma dimensão <strong>da</strong>s propostas<br />

wakefildianas - implicou na inviabilização de qualquer alternativa para o “take-off” <strong>da</strong><br />

economia agrária brasileira, que assim persistiria nos velhos padrões agro-exportadores,<br />

de baixa produtivi<strong>da</strong>de e fun<strong>da</strong>dos, ain<strong>da</strong> por mais quase quatro déca<strong>da</strong>s, no trabalho<br />

escravo, sem muita margem, ou alternativa, de transformação. A outra alternativa,<br />

referia-se à possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> aplicação de capitais de alguma monta, valendo-se <strong>da</strong><br />

impossibili<strong>da</strong>de imediata de imigrantes pobres poderem adquirir terras, portanto,<br />

transformando-se, de fato, em exército de reserva de força-de-trabalho para os capitais<br />

que se aplicassem nas terras, as quais assim, igualmente, funcionariam como um fundo<br />

de terras regulado pelo Estado e à disposição dos capitais. Esta era a essência <strong>da</strong> tese <strong>da</strong><br />

colonização sistemática de Wakefield.<br />

O fracasso <strong>da</strong> política de terras tenta<strong>da</strong> pela Lei 601 de 1850, na leitura aqui feita<br />

e no contexto até aqui apresentado, está na origem do fracasso brasileiro, mesmo em<br />

atrair imigrantes pobres, como é fenômeno vastamente conhecido; muito mais ain<strong>da</strong>, em<br />

atrair "investidores" capitalistas estrangeiros, numa economia desregra<strong>da</strong> ao nível <strong>da</strong><br />

“praxis”. Na opinião de Wakefield, apenas através do controle, pelo Estado, <strong>da</strong> emissão<br />

de “bons títulos” era possível manter-se a correlação adequa<strong>da</strong> entre população e terra.<br />

Duas implicações estão envolvi<strong>da</strong>s nessa formulação:<br />

1. Não se tratava, apenas, de impedir o acesso à proprie<strong>da</strong>de, pelo menos por<br />

algum tempo, aos imigrantes pobres: estes teriam que ter a expectativa de<br />

poderem-se tonar proprietários, senão a imigração seria comprometi<strong>da</strong>;<br />

2. Tratava-se, igualmente, para os capitalistas que pretendessem investir nas<br />

colônias, de terem assegura<strong>da</strong>s duas condições fun<strong>da</strong>mentais: (a) a<br />

possibili<strong>da</strong>de de acesso legal e legítimo às terras necessárias ao seu<br />

investimento (com bom título - e “bom preço”); e (b) a possibili<strong>da</strong>de de<br />

abastecerem-se continuamente de mão-de-obra.<br />

Conforme muito acerta<strong>da</strong>mente apontou Sallum, a atração de imigrantes<br />

estrangeiros pobres só ocorreu numa contingência histórica especial em que<br />

“países que, no continente americano, concorriam com o Brasil<br />

na captação de imigrantes - Estados Unidos e Argentina -<br />

137 E distante dos domínios latifundiários.<br />

81


sofriam, no fim <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 80 e durante a déca<strong>da</strong> de 90,<br />

uma que<strong>da</strong> no seu ritmo de crescimento econômico.” 138<br />

Dessa forma, o problema <strong>da</strong> reestruturação agro-fundiária brasileira é, já em<br />

1850, negado, na prática, pelos potentados <strong>da</strong> terra, reduzido ou a um processo de<br />

colonização, sempre em terras distantes; ou à simples atração de mão-de-obra migrante<br />

e barata para servir nos latifúndios. É, como se tem demonstrado, neste estudo - com<br />

base na análise <strong>da</strong> legislação, do debate parlamentar <strong>da</strong> época e <strong>da</strong> literatura<br />

especializa<strong>da</strong> - através destes e de outros diversos expedientes que, no Brasil, tem sido<br />

esvazia<strong>da</strong> qualquer possibili<strong>da</strong>de de regularização fundiária, persistindo, assim, aquilo<br />

que neste trabalho se têm denominado de uma espécie de "estado hobbesiano", no que<br />

toca ao problema fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária. Disso advém a ilegitimi<strong>da</strong>de e<br />

ilegali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> maior parte <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des territoriais rurais do Brasil.<br />

3.2.2. As Sesmarias Legaliza<strong>da</strong>s<br />

Tratavam-se <strong>da</strong>s antigas sesmarias confirma<strong>da</strong>s antes <strong>da</strong> aprovação <strong>da</strong> Lei 601<br />

de 1850. Eram as sesmarias que não haviam caído em comisso, ou seja, que<br />

preencheram as exigências <strong>da</strong>s cláusulas resolutivas: medição, demarcação e, sobretudo,<br />

exploração efetiva <strong>da</strong> terra. Nesta categoria de proprie<strong>da</strong>des legítimas estavam, por<br />

exemplo, a maioria <strong>da</strong>s sesmarias nordestinas, especialmente as dedica<strong>da</strong>s à exploração<br />

canavieira, cuja legitimi<strong>da</strong>de, assegura<strong>da</strong> pela confirmação real, consoli<strong>da</strong>ra-se ain<strong>da</strong> no<br />

período colonial (FAORO, op. cit.). Nessa situação encontravam-se, igualmente, muitas<br />

outras sesmarias espalha<strong>da</strong>s pelas diversas regiões do país.<br />

Essas terras serão reconheci<strong>da</strong>s como pertencentes, legitimamente, ao<br />

patrimônio privado pela Lei de Terras. E, neste sentido, passam a gozar de todos os<br />

requisitos <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de absoluta, burguesa, como bem registra Roberto Smith 139 , ou<br />

seja, são eximi<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s antigas cláusulas resolutivas 140 , assumindo, assim o caráter<br />

amplamente mercantil.<br />

Estas sesmarias estão excluí<strong>da</strong>s do âmbito de abrangência <strong>da</strong> Lei 601 de 1850,<br />

que se destinava à regulamentação <strong>da</strong>s terras devolutas do Império e <strong>da</strong>s possuí<strong>da</strong>s por<br />

título de sesmarias, sem preenchimento <strong>da</strong>s condições legais; ou as resultantes de posses<br />

mansa e pacíficas. Esse procedimento regulador torna essas sesmarias distintas e<br />

autônomas em relação ao patrimônio público, do Estado, para todos os fins, econômicos<br />

e jurídicos 141 etc. Desta forma, e acompanhando a tradição <strong>da</strong> regulamentação fundiária<br />

138 SALLUM JR. (1982: 91)<br />

139 op. cit.<br />

140 Como se verá nos capítulos 4 e 5 deste estudo, com o Estatuto <strong>da</strong> Terra, de novembro de 1964, aparentemente são<br />

restabeleci<strong>da</strong>s cláusulas restritivas, como o caso <strong>da</strong> exigência do cumprimento <strong>da</strong> função social <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, o que,<br />

<strong>da</strong>ria ensejo à expropriação para fins de reforma agrária. Mas como será evidenciado, estas exigências funcionam<br />

mais como exceção que como regra.<br />

141 O artigo 23 do Decreto 1318, de 30 de janeiro de 1854, que regulamentava a Lei 601, afirmava claramente que<br />

"estes possuidores, bem como os que tiverem terras havi<strong>da</strong>s por sesmarias e outras concessões do<br />

82


de Portugal, são assegurados plenamente os direitos estabelecidos pela situação anterior.<br />

Talvez esse fato explique a posição distinta de muitos sesmeiros, especialmente do<br />

Nordeste, em relação a Lei 601 de 1850. Eles, ao terem os seus direitos de proprie<strong>da</strong>de<br />

plenamente assegurados e, mais que isso, ampliados pela decadência <strong>da</strong>s antigas<br />

cláusulas resolutivas <strong>da</strong>s sesmarias, além de não serem atingidos pelo imposto de<br />

chancelaria, posto que não necessitavam revali<strong>da</strong>r nem adotar nenhuma outra<br />

providência em relação aos seus títulos, amplamente aceitos como legítimos pela Lei,<br />

não eram, por isso mesmo, afetados pelo problema específico <strong>da</strong>s posses, posto que<br />

estas, em caso de existirem em domínios legítimos, que era caso dessas sesmarias,<br />

ficavam sujeitas a despejo sem direito algum, e outras penas legalmente previstas, por<br />

serem considera<strong>da</strong>s meras invasões, ilegais, de domínio privado legítimo. É ver<strong>da</strong>de que<br />

esses sesmeiros legítimos opunham-se, como sempre, à imposição de novos impostos,<br />

aliás pelos motivos já apontados nas páginas anteriores.<br />

Em suma, os direitos e privilégios adquiridos e ampliados por esse grupo de<br />

latifundiários são amplamente acatados, sem qualquer restrição, pela Lei 601 de 1850,<br />

portanto, pelo Estado, o que contribuirá de maneira efetiva para a consoli<strong>da</strong>ção desse<br />

tipo de latifúndios, uma vez que, como se sabe, no período colonial, foram muitos, os<br />

abusos consentidos na concessão de sesmarias, e que quase nunca eram coibidos pelo<br />

processo de confirmação real, que como já se registrou amplamente no capítulo anterior,<br />

muitas vezes era consegui<strong>da</strong> pela influência ou “status” do concessionário, sobretudo a<br />

sua proximi<strong>da</strong>de à corte portuguesa. O fato <strong>da</strong> Lei 601 de 1850 não determinar qualquer<br />

restrição a esse tipo de latifúndio, muito provavelmente deve ser atribuído à conjuntura<br />

em que a mesma foi elabora<strong>da</strong> que, como se viu no início deste capítulo, era de extrema<br />

instabili<strong>da</strong>de, sobretudo no que se referia à consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> independência política e<br />

integri<strong>da</strong>de nacionais, processos esses que tinham seu ponto fun<strong>da</strong>mental assentado no<br />

poder local.<br />

3.2.3. As Sesmarias Caí<strong>da</strong>s em Comisso<br />

As sesmarias ou outras concessões anteriores à Lei 601, caí<strong>da</strong>s em comisso, isso<br />

é, que não preenchiam as condições resolutivas, são fortemente penaliza<strong>da</strong>s. Estavam<br />

sujeitas à revali<strong>da</strong>ção, o que significava colocá-las “sub judice”. Aparentemente, a Lei<br />

de Terras assegurava a legitimação dessas sesmarias. Entretanto, ao exigir a sua<br />

revali<strong>da</strong>ção enquanto condição “sine qua non” para a efetivação do seu reconhecimento<br />

pelo Estado, levantava a legítima suspeita de que nem to<strong>da</strong>s essas sesmarias deveriam<br />

Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta de cumprimento <strong>da</strong>s condições de<br />

medição, confirmação e cultura, não têm precisão de revali<strong>da</strong>ção, nem de legitimação, nem de<br />

novos títulos para poderem gozar, hipotecar ou alienar os terrenos de que se acham no domínio."<br />

Portanto, igualmente não estavam sujeitos ao contestado imposto de chancelaria, que correspondia aos processos de<br />

legitimação <strong>da</strong>s posses ou de revali<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s sesmarias caí<strong>da</strong>s em comisso. A oposição maior dos proprietários dessa<br />

categoria de terras legítimas estava com relação aos demais tributos gravados sobre a proprie<strong>da</strong>de. Daí a diferente<br />

posição desses sesmeiros em relação a Lei 601, quando compara<strong>da</strong> com a posição dos latifundiários (sesmeiros e<br />

posseiros) <strong>da</strong>s regiões do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo.<br />

83


ser legitima<strong>da</strong>s ou, pelo menos, mesmo as que o fossem, apenas o seriam em<br />

determina<strong>da</strong>s circunstâncias.<br />

Parece plausível supor que a restrição não se limitasse aos problemas de<br />

exploração efetiva do solo, mora<strong>da</strong> habitual do sesmeiro ou seu representante, nem tão<br />

pouco, aos problemas de medição, limites e confrontações, caso em que teriam que ser<br />

incluí<strong>da</strong>s as demais sesmarias que, igualmente, não atendiam a to<strong>da</strong>s essas exigências<br />

legais. Assim sendo, qual o fato distintivo que justificava esse procedimento<br />

discriminatório <strong>da</strong> Lei 601 em relação a esse grupo específico de latifundiários?<br />

A resposta a essa pergunta é, evidentemente, complexa e exige uma pesquisa<br />

histórica detalha<strong>da</strong>, que ain<strong>da</strong> estar por ser feita. Embora a análise detalha<strong>da</strong> dessa<br />

questão específica fuja aos objetivos e limites deste estudo, pode-se aventar algumas<br />

hipóteses a esse respeito. Mas, qualquer que seja a resposta que se possa <strong>da</strong>r a essa<br />

discriminação, uma coisa parece ficar muito clara: esses sesmeiros, ou haviam caído em<br />

desgraça em face dos conflitos de interesses que envolveram a transição para o Estado<br />

independente ou, na melhor <strong>da</strong>s hipóteses, não possuíam prestígio suficiente para fazer<br />

valer os seus interesses, ou ambas as coisas.<br />

Maria Yê<strong>da</strong> Linhares e Francisco Carlos Teixeura <strong>da</strong> <strong>Silva</strong>, a esse respeito,<br />

oferecem uma resposta conjuntural, embora plausível e, muito provavelmente, os fatos<br />

por eles aventados tiveram grande influência nesse processo. Eles se pronuncia nos<br />

seguintes termos:<br />

“O fato novo residia, fun<strong>da</strong>mentalmente, numa alteração do peso<br />

relativo dos diversos segmentos de classe que integravam o<br />

aparelho estatal do Império: ao lado <strong>da</strong> tradicional aristocracia<br />

latifundiária nordestina e <strong>da</strong> burguesia mercantil, principalmente<br />

do Rio de Janeiro, surgia um riquíssimo lobby de fazendeiros<br />

fluminenses, mineiros e paulistas, dispostos a tomar parcelas de<br />

poder.(...) Uma lei de terras e uma firme política imigracionista<br />

eram fun<strong>da</strong>mentais para esses novos ricos: suas terras não<br />

tinham origem nas antigas sesmarias mas na toma<strong>da</strong> pura e<br />

simples de terras devolutas. Fazia-se necessário regularizar uma<br />

situação que já beirava a violência e, simultaneamente, fechar a<br />

porta pela qual esses mesmos homens passaram. Talvez<br />

mais importante que impedir a formação de um campesinato livre<br />

ou uma via ‘farmer’ de desenvolvimento agrícola, era impedir que<br />

a violência que dividia a classe dominante, como diria Warren<br />

Dean, se exacerbasse(...).” 142<br />

Todos os argumentos apresentados acima por LINHARES & SILVA são<br />

ver<strong>da</strong>deiros, entretanto, nenhum deles dá conta do fato de não terem sido estendi<strong>da</strong>s, às<br />

demais sesmarias, as mesmas restrições. O fato distintivo mais importante arguido por<br />

LINHARES & SILVA refere-se à formação de grandes posses, que estiveram na origem<br />

<strong>da</strong> formação, especialmente, <strong>da</strong>s novas fazen<strong>da</strong>s de café no Vale do Paraíba,<br />

142 LINHARES (1981. p. 32). Grifos nossos.<br />

84


estendendo-se por Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Entretanto, mesmo esse<br />

fato necessita ser qualificado, uma vez que grandes posses existiam por to<strong>da</strong>s as regiões<br />

do Brasil e, porque, a Lei 601 ve<strong>da</strong> terminantemente, como se viu acima, as posses,<br />

fossem grandes ou pequenas, sobre as antigas sesmarias confirma<strong>da</strong>s e legitima<strong>da</strong>s.<br />

Assim, a esses argumentos devem ser acrescentados alguns outros, que possam <strong>da</strong>r<br />

conta <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong>de que envolvia o caso <strong>da</strong>s sesmarias passíveis de revali<strong>da</strong>ção. Ao<br />

se discutir as posses no próximo item essa questão será melhor retoma<strong>da</strong>.<br />

Mas vale a pena, ain<strong>da</strong> aqui, registrar os argumentos de Raymundo Faoro, para o<br />

caso específico <strong>da</strong> região do Vale do Paraíba. Ele argumenta no sentido de que as terras<br />

do Vale foram incorpora<strong>da</strong>s, no período <strong>da</strong> decadência do ciclo <strong>da</strong> mineração e,<br />

sobretudo, acelerado com o desenvolvimento <strong>da</strong> cafeicultura. Tratavam-se de terras de<br />

antigas sesmarias “abandona<strong>da</strong>s” em virtude <strong>da</strong> decadência <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de mineradora,<br />

tendo sido parcialmente ocupa<strong>da</strong>s por pequenos posseiros, com o consentimento dos<br />

antigos concessionários e, ulteriormente, por grandes posseiros, com a expansão <strong>da</strong><br />

cultura do café. Com a valorização dessas terras, decorrente do avanço e <strong>da</strong> importância<br />

assumi<strong>da</strong> pela cafeicultura, segundo Faoro, os antigos sesmeiros tentaram recuperar<br />

suas concessões, gerando-se, neste contexto, os conflitos entre eles e os posseiros, que o<br />

debate Parlamentar <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1840 registra.<br />

Embora esta argumentação de Faoro seja parcialmente convincente, e que,<br />

provavelmente, correspon<strong>da</strong> à reali<strong>da</strong>de de alguns contenciosos que envolveram<br />

determina<strong>da</strong>s sesmarias <strong>da</strong> região do Vale, ain<strong>da</strong> assim, parece insuficiente para<br />

permitir a sua generalização a respeito <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> discriminação.<br />

Assim, ain<strong>da</strong> que a guisa de hipótese, posto que este trabalho não comportou<br />

nenhuma pesquisa especificamente histórica desse problema, o que fugiria aos seus<br />

limites, parece que uma hipótese provável para explicar essa discriminação é a de que<br />

muitos sesmeiros dessa e de outras regiões, próximos à antiga Corte Portuguesa quando<br />

<strong>da</strong> sua permanência no Brasil (1808-1821) e beneficiários de concessões, especialmente<br />

nesta área, tenham, ou retornado à Portugal com a Corte, ou caído em desgraça política<br />

em decorrência dos conflitos que levaram à Independência. Ulteriormente, com a<br />

definição <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de monárquica e dinástica, após a consoli<strong>da</strong>ção do Estado<br />

Nacional, é provável que alguns desses antigos sesmeiros desejassem, sobretudo pela<br />

valorização <strong>da</strong>s terras provoca<strong>da</strong> pelos preços favoráveis do café, recuperar seus<br />

domínios. Impedí-los seria, nessa hipótese, o objetivo claro <strong>da</strong> discriminação legal.<br />

Por outro lado, têm razão Linhares & <strong>Silva</strong>, num aspecto fun<strong>da</strong>mental, mas que<br />

se refere ao problema específico <strong>da</strong>s posses: “fazia-se necessário regularizar uma<br />

situação que já beirava a violência” e, simultaneamente, “fechar a porta pela<br />

qual esses mesmos homens (grandes posseiros) passaram . 143 ”<br />

Ao analisar-se a questão <strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong>s posses, algumas especifici<strong>da</strong>des<br />

fun<strong>da</strong>mentais desse problema serão melhor esclarecidos. O fato é que as sesmarias e<br />

143 Id. Ibidem.<br />

85


outras concessões oficiais que se enquadravam no caso <strong>da</strong> revali<strong>da</strong>ção (artigo 4 o <strong>da</strong> Lei<br />

601/1850), estavam condiciona<strong>da</strong>s, para a sua revali<strong>da</strong>ção legal, a uma análise “caso a<br />

caso”, sendo sempre assegurados todos os direitos <strong>da</strong>s posses produtivas porventura<br />

instala<strong>da</strong>s no seu interior. Esse procedimento operacional, como se pode concluir,<br />

permitiria a identificação dos casos de sesmeiros que foram beneficiários <strong>da</strong> antiga corte<br />

portuguesa e que com ela retornaram à Portugal - o que caracterizava o “abandono” -;<br />

os caídos em desgraça política e, igualmente, aqueles que simplesmente estavam em<br />

comisso por motivos estritamente econômicos, como o caso aludido, por Faoro, de<br />

muitas sesmarias do Vale do Paraíba, que se encontravam mais ou menos abandona<strong>da</strong>s<br />

ou ocupa<strong>da</strong>s por posses (grandes e pequenas) em face <strong>da</strong> decadência do ciclo <strong>da</strong><br />

mineração. Mesmo com essas especifici<strong>da</strong>des a serem ti<strong>da</strong>s em consideração, era<br />

sempre prioritário, como se verá no próximo item, assegurar os direitos de legitimação<br />

dos posseiros (grandes, bem entendido), aliás como fica evidente no artigo 5 o , parágrafo<br />

3 o <strong>da</strong> Lei 601. Entretanto, neste último caso, saem “vitoriosos os sesmeiros” (Faoro, op.<br />

cit.).<br />

Será exatamente em função dos conflitos engendrados no bojo <strong>da</strong>s relações entre<br />

esse tipo de sesmarias e as grandes posses (sobretudo, posto que as pequenas, como se<br />

verá, enfrentavam outras pressões e restrições), que se travarão os debates mais radicais<br />

na elaboração <strong>da</strong> Lei 601. Vale, por outro lado, registrar que os conflitos entre posseiros<br />

e sesmeiros legitimados pela Lei 601 ou, antes; igualmente regulados no artigo citado<br />

acima, estabelecia critérios estritamente jurídicos, que procuravam assegurar<br />

amplamente, os direitos de ambos: em todos os casos, aos posseiros passíveis de<br />

legitimação que se encontrassem nas sesmarias não incursas em comisso cabia apenas a<br />

indenização <strong>da</strong>s benfeitorias; sendo ressalvados os casos: 1. de ter sido declara<strong>da</strong> boa a<br />

posse por sentença passa<strong>da</strong> em juízo entre as partes; 2. ter sido a posse estabeleci<strong>da</strong><br />

antes <strong>da</strong> medição <strong>da</strong> sesmaria ou concessão e não perturba<strong>da</strong> por cinco anos (usucapião)<br />

e 3. ter sido a posse estabeleci<strong>da</strong> depois <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> medição e não perturba<strong>da</strong> por dez<br />

anos (usucapião). Como se verifica, mais uma vez a discriminação fica evidente: aos<br />

sesmeiros não caídos em comisso, legitimados, eram assegurados todos os recursos,<br />

sendo assegurados, igualmente, às posses, recursos jurídicos semelhantes, todos<br />

perfeitamente regulamentados. Quanto às sesmarias e às concessões em comisso,<br />

sujeitas à revali<strong>da</strong>ção, apenas poderiam ser revali<strong>da</strong><strong>da</strong>s após a comprovação do<br />

preenchimento <strong>da</strong>s condições resolutivas e só após serem destaca<strong>da</strong>s as posses mansas e<br />

pacíficas, o que evidencia o tratamento desigual <strong>da</strong>do a ambos os casos.<br />

No primeiro caso, pondo em condições de igual<strong>da</strong>de jurídica posseiros (grandes,<br />

reitere-se) e sesmeiros; no segundo, privilegiando largamente os posseiros:<br />

“Da<strong>da</strong> a exceção do parágrafo antecedente 144 , os posseiros<br />

gozarão do favor que lhes assegura o artigo 1 o , competindo ao<br />

respectivo sesmeiro ou concessionário ficar com o terreno que<br />

144 Que se refere às sesmarias legítimas ou legitima<strong>da</strong>s pela Lei 601 de 1850.<br />

86


sobrar <strong>da</strong> divisão feita entre os ditos posseiros, ou considerar-se<br />

também posseiro para entrar em rateio igual com eles.” 145<br />

O que todos os estudiosos desta questão registram, é que esse problema assumiu<br />

relevância fun<strong>da</strong>mental exatamente na região de expansão <strong>da</strong> produção cafeeira, cujas<br />

terras foram incorpora<strong>da</strong>s ao patrimônio privado pela via <strong>da</strong>s posses e não <strong>da</strong>s<br />

sesmarias, como no caso <strong>da</strong> maior parte <strong>da</strong>s terras ocupa<strong>da</strong>s no Brasil, sobretudo na<br />

região Nordeste, e quanto a isso não parece pairar maiores dúvi<strong>da</strong>s. Certamente a<br />

relevância econômica <strong>da</strong> produção cafeeira teve profun<strong>da</strong> influência, aliás, muito mais<br />

pelo que o café representava em termos de divisas para a nação e economia emergentes<br />

do que, especificamente, para o atendimento de situações particulares.<br />

Exatamente por fazer essa leitura é que aqui se defende a hipótese de que os<br />

interesses que, certamente, tiveram os cafeicultores na aprovação <strong>da</strong> Lei 601, situavamse,<br />

antes de tudo, na legitimação de suas posses, antes mesmo <strong>da</strong> colonização e<br />

migração estrangeira: tratava-se, portanto, de interesses que eles tinham enquanto<br />

latifundiários e não enquanto cafeicultores. Assim é que aqui se defende que Lei de<br />

Terras é uma legislação sobre a proprie<strong>da</strong>de, onde a migração aparece apenas de forma<br />

subsidiária e acessória, embora de muita relevância, sobretudo diante <strong>da</strong>s pressões<br />

concretas <strong>da</strong> Inglaterra para a supressão definitiva do tráfico e, em última análise <strong>da</strong><br />

abolição do trabalho escravo 146 .<br />

3.2.4. A Legitimação <strong>da</strong>s Posses<br />

Como já se registrou, o período que se estendeu entre a suspensão <strong>da</strong> Legislação<br />

Sesmarial, em 14 de julho de 1822 e, mais que isso, <strong>da</strong> decadência de to<strong>da</strong> a legislação<br />

portuguesa, com a Independência do Brasil, em setembro <strong>da</strong>quele ano, até 1850, quando<br />

é aprova<strong>da</strong> a Lei 601, é conhecido como o “Império <strong>da</strong>s Posses”.<br />

Neste período o Estado limita-se, pelos motivos amplamente discutidos nas<br />

páginas anteriores, a assegurar o direito genérico de proprie<strong>da</strong>de na Constituição de<br />

1824. É, assim, assegurado e ampliado o direito sobre a proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s terras, na<br />

medi<strong>da</strong> em que, decaído o instituto de sesmarias, ficavam igualmente revoga<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s<br />

as suas demais disposições reguladoras, particularmente, no que aqui interessa, as<br />

cláusulas resolutivas: as limitações de tamanho e as concessões de mais de uma<br />

sesmaria por concessionário etc.<br />

Criava-se, dessa forma, objetivamente, a oportuni<strong>da</strong>de para o avanço<br />

desenfreado do apossamento de terras, sobretudo públicas. Diz-se, sobretudo públicas,<br />

posto que as posses avançaram, igualmente, sobre terras particulares, em partes não<br />

aproveita<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s imensas sesmarias, mas sobretudo, sobre as pequenas posses e terras<br />

tribais. É necessário ter muito claro que o processo de apossamento não tem a sua<br />

145 Artigo 5<br />

o , parágrafo 3<br />

o <strong>da</strong> Lei 601/1850.<br />

146 A análise <strong>da</strong>s relações entre estas duas questões: mercantilização <strong>da</strong> terra como pressuposto para o<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> mercantilização <strong>da</strong> força de trabalho é brilhantemente discuti<strong>da</strong> por Roberto Smith (op. cit.)<br />

87


origem na legislação ou na ausência desta: ele se deve às oportuni<strong>da</strong>des abertas, com a<br />

independência política, e as novas perspectivas de desenvolvimento econômico, como<br />

será, sobretudo o caso <strong>da</strong>s terras apossa<strong>da</strong>s pelo avanço extensivo <strong>da</strong>s fazen<strong>da</strong>s de café<br />

nas regiões de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. A ausência ou improprie<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> legislação apenas facilitou a exacerbação do processo.<br />

A falta <strong>da</strong> regulamentação infra-constitucional, isto é de uma legislação<br />

específica que regulamentasse o acesso e o uso <strong>da</strong>s terras e que estabelecesse as<br />

condições jurídicas efetivas sob às quais o novo Estado orientaria sua política de terras,<br />

apenas criou a oportuni<strong>da</strong>de para o avanço desregrado <strong>da</strong>s posses, como de fato ocorreu<br />

no período. Neste sentido e contexto, parece plausível supor que, na ausência de uma<br />

legislação que estabelecesse limites claros e precisos ao acesso e apossamento de terra,<br />

beneficiaram-se, sobretudo na conjuntura política e econômica do Brasil <strong>da</strong> época,<br />

muito mais os latifundiários (grandes posseiros e sesmeiros) e potentados locais, do que<br />

a massa do povo que, apesar disso também tinha a oportuni<strong>da</strong>de “legal” - isto é, apenas<br />

formal - de ocupar áreas de terras 147 e nestas se manter.<br />

Entretanto, se a oportuni<strong>da</strong>de legal, é condição necessária, não é condição<br />

suficiente para o ci<strong>da</strong>dão pobre realizar seu desejo de tornar-se proprietário de terras. E<br />

menos ain<strong>da</strong> de manter a sua proprie<strong>da</strong>de. Por um lado, parece óbvio que esses ci<strong>da</strong>dãos<br />

não tinham a oportuni<strong>da</strong>de, senão provisória e eventual, de alojar-se em terras devolutas<br />

ou dos latifundiários; por outro lado, longe delas, no sertão hostil, de natureza, de<br />

segurança e sujeito aos ataques de nativos, eles igualmente teriam poucas oportuni<strong>da</strong>des<br />

de se constituírem efetivamente. Assim, o Império <strong>da</strong>s Posses foi, efetivamente, como já<br />

se registrou acima, o império do latifúndio: <strong>da</strong>s grandes posses.<br />

147 Posto que a quebra do monopólio legal imposto pelo instituto de sesmarias, muito bem captado por <strong>Alberto</strong><br />

Passos Guimarães (op. cit., p.113), não implicava, por outro lado, necessariamente, na quebra do monopólio<br />

fundiário, sempre subordinado às condições econômicas de valorização <strong>da</strong>s terras. É neste sentido que a implicação<br />

tira<strong>da</strong> por Passos Guimarães a respeito <strong>da</strong> quebra do monopólio <strong>da</strong> “aristocracia”, pelas posses, não parece ter base<br />

empírica e histórica sóli<strong>da</strong>: o monopólio passa, de fato, <strong>da</strong>s mãos <strong>da</strong> coroa concedente, para os latifundiários que o<br />

exercem com todo o rigor. Mesmo porque, pequenas posses sempre se instalaram, independentemente do monopólio<br />

estabelecido pela legislação sesmarial, e continuarão existindo sempre no Brasil. Portanto o Império <strong>da</strong>s Posses, não<br />

representou a consoli<strong>da</strong>ção e, menos ain<strong>da</strong>, a democratização do acesso à proprie<strong>da</strong>de; ao contrário, foi a grande<br />

oportuni<strong>da</strong>de para a consoli<strong>da</strong>ção definitiva do latifúndio no Brasil. Nesse particular Roberto Smith (op. cit.), ao<br />

contrário de Passos Guimarães, parece estar no rumo de interpretação mais coerente. Cirne Lima, em trecho citado<br />

por Passos Guimarães (op. cit., p.114), defende ponto de vista semelhante ao deste, ao afirmar que, “apoderar-se de<br />

terras devolutas e cultivá-las, tornou-se coisa corrente entre nossos colonizadores, e tais proporções essa<br />

prática atingiu que pôde, com o correr dos anos, vir a ser considera<strong>da</strong> como meio legítimo de aquisição<br />

de domínio, paralelamente, a princípio e, após, em substituição ao nosso desvirtuado regime de<br />

sesmarias(...). Depois <strong>da</strong> abolição <strong>da</strong>s sesmarias, então, passou a campear livremente, ampliando-se de<br />

zona para zona à proporção que a civilização dilatava a sua expansão geográfica. Era a ocupação<br />

tomando o lugar <strong>da</strong>s concessões do poder público, e era igualmente o triunfo do humilde, do<br />

rústico, sobre o senhor de engenhos e fazen<strong>da</strong>s, o latifundiário sob favor <strong>da</strong> metrópole.” (grifos<br />

nossos). Que “era a ocupação tomando o lugar <strong>da</strong>s concessões do poder público”, não resta dúvi<strong>da</strong>s. Mas que<br />

era “o triunfo do humilde, do rústico, sobre o senhor de engenhos e fazen<strong>da</strong>s”, parece não se confirmar<br />

historicamente. Aliás, o próprio Passos Guimarães (op. cit., p.118) ao afirmar que “ressalve-se, porém, que onde<br />

o velho tipo de latifúndio colonial, feu<strong>da</strong>l e escravista lançara raízes, como por exemplo no nordeste<br />

açucareiro, a posse dificilmente teria tomado, àquela época, proporções muito extensas” (grifos<br />

nossos), apenas reforça esse argumento.<br />

88


Na déca<strong>da</strong> de 1840, quando o Estado toma a iniciativa de propor uma Lei de<br />

Terras, será a questão <strong>da</strong> legitimação dessas posses, e o controle do seu avanço sobre as<br />

terras livres (estatais), sobretudo pelos latifúndios, e, certamente em menor escala,<br />

também por pequenos posseiros, a que se colocará no centro do debate e, depois, no<br />

ponto mais relevante <strong>da</strong> Lei 601 de 1850. É assim que, inclusive, o problema <strong>da</strong>s terras<br />

devolutas do Império, nesse contexto, é colocado como uma via ao bloqueio do avanço<br />

<strong>da</strong>s posses sobre essas terras. E, com certeza, o Governo não estava preocupado com as<br />

“pequenas posses” ao estabelecer as restrições ao acesso às terras devolutas do Estado,<br />

determinando que este apenas poderia ocorrer mediante à compra. Estava, sim,<br />

preocupado com o avanço especulativo <strong>da</strong>s grandes posses, posto que, apenas estas<br />

teriam, como de fato tiveram, a possibili<strong>da</strong>de de inviabilizar a política de terras, de<br />

desenvolvimento e de colonização do Estado.<br />

É nesse contexto <strong>da</strong> consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s grandes posses, que o Estado aprova uma<br />

Lei de Terras, assegurando amplamente a legitimação <strong>da</strong>s posses mansas e pacíficas. É<br />

relevante registrar que são dois, os pontos fun<strong>da</strong>mentais, pacificamente estabelecidos na<br />

Lei 601 de 1850: 1. Reconhecer como legítimas as sesmarias confirma<strong>da</strong>s e 2.<br />

Assegurar todos os meios para a legitimação <strong>da</strong>s posses. As restrições recairão, apenas,<br />

nas sesmarias e grandes concessões inexplora<strong>da</strong>s e não confirma<strong>da</strong>s ou em comisso,<br />

como já foi explicitado acima. Em relação às terras devolutas, a legislação é rigorosa,<br />

mas inócua 148 do ponto de vista prático. Foi quase que imediatamente inviabiliza<strong>da</strong>,<br />

sobretudo pelos potentados locais, qualquer possibili<strong>da</strong>de de sua demarcação e<br />

arreca<strong>da</strong>ção para o patrimônio <strong>da</strong>s terras livres do Estado, assim permanecendo, a sua<br />

maior parte, até os dias atuais, sempre sujeitas ao avanço <strong>da</strong>s posses e disponíveis para<br />

a incorporação ao patrimônio latifundiário.<br />

Em princípio, pode-se dizer que na Lei 601 de 1850 os legisladores seguiram a<br />

mesma lógica <strong>da</strong> tradição reguladora portuguesa, assegurando o reconhecimento <strong>da</strong>s<br />

situações anteriormente consoli<strong>da</strong><strong>da</strong>s. Assim é que se estabelece o critério de<br />

reconhecimento <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s sesmarias confirma<strong>da</strong>s, como se registrou acima e,<br />

por exclusão destas e <strong>da</strong>s demais terras legitimáveis do patrimônio privado e <strong>da</strong>s terras<br />

públicas, define-se o âmbito do estatuto <strong>da</strong>s terras devolutas do Império. Entretanto,<br />

com relação às demais terras em poder privado (posses e sesmarias passíveis de<br />

revali<strong>da</strong>ção), a postura é de sujeitá-las, não apenas às condições anteriores de<br />

exploração e mora<strong>da</strong> efetiva, mas de colocar boa parte delas disponíveis para um<br />

determinado Projeto de exploração econômica. Antes de tudo tratava-se, do ponto de<br />

vista do Estado, de assegurar um fundo de terras livres estatais capaz de sustentar uma<br />

determina<strong>da</strong> política de transição para uma agricultura fun<strong>da</strong><strong>da</strong> no trabalho livre,<br />

provavelmente, com base nas formulações <strong>da</strong> colonização sistemática. Em segundo<br />

lugar, tratava-se, ain<strong>da</strong> do ponto de vista do Estado, de assegurar a proprie<strong>da</strong>de para os<br />

148 Como é largamente registrado por muitos pesquisadores aqui citados. Veja-se, por exemplo, o excelente trabalho<br />

de José Murilo de Carvalho (op. cit.).<br />

89


grandes posseiros, sobretudo os cafeicultores, <strong>da</strong><strong>da</strong> a relevância desse ramo <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

agro-exportadora para a economia <strong>da</strong> nação nascente. Finalmente, tratava-se de tentar<br />

disciplinar a estrutura fundiária e promover a migração estrangeira.<br />

Entretanto, o problema <strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong>s posses é posto em oposição a<br />

revali<strong>da</strong>ção de uma vastidão de sesmarias mais ou menos abandona<strong>da</strong>s, como acima se<br />

discutiu. Disso advém o amplo conflito, no parlamento, entre posseiros e sesmeiros.<br />

Triunfam, num primeiro momento os sesmeiros na disputa pelas terras do Vale do<br />

Paraíba (FAORO op. cit.). Mas, afora este caso, triunfam os grandes posseiros,<br />

sobretudo de Minas e São Paulo; e a Lei 601 registra de forma transparente esse fato, no<br />

seu artigo 5 o ao enunciar que:<br />

“serão legitima<strong>da</strong>s as posses mansas e pacíficas, adquiri<strong>da</strong>s por<br />

ocupação primária, ou havi<strong>da</strong>s do primeiro ocupante, que se<br />

achem cultiva<strong>da</strong>s ou com princípios de cultura e mora<strong>da</strong> habitual<br />

do respectivo posseiro ou de quem o represente, guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as<br />

regras seguintes:<br />

“ 1 o Ca<strong>da</strong> posse em terras de cultura ou campos de criação,<br />

compreenderá, além do terreno aproveitado ou do necessário<br />

para pastagem dos animais que tiver o posseiro, outro tanto mais<br />

de terreno devoluto que houver contíguo, contanto que em<br />

nenhum caso a extensão total <strong>da</strong> posse exce<strong>da</strong> a de uma<br />

sesmaria para cultura ou criação, igual às últimas concedi<strong>da</strong>s na<br />

mesma comarca ou na mais vizinha;<br />

“ 2 o As posses em circunstância de serem legitima<strong>da</strong>s, que se<br />

acharem em sesmarias ou outras concessões do Governo, não<br />

incursas em comisso ou revali<strong>da</strong><strong>da</strong>s por esta Lei, só <strong>da</strong>rão direito<br />

à indenização pelas benfeitorias.”<br />

“Exceptua-se desta regra o caso de verificar-se a favor <strong>da</strong> posse<br />

qualquer <strong>da</strong>s seguintes hipóteses: 1. o ter sido declara<strong>da</strong> boa por<br />

sentença passa<strong>da</strong> em julgado entre os sesmeiros ou<br />

concessionários e os posseiros; 2. ter sido estabeleci<strong>da</strong> antes <strong>da</strong><br />

medição <strong>da</strong> sesmaria ou concessão e não perturba<strong>da</strong> por cinco<br />

anos; 3. ter sido estabeleci<strong>da</strong> depois <strong>da</strong> dita medição, e não<br />

perturba<strong>da</strong> por dez anos.<br />

“ 3 o Da<strong>da</strong> a exceção do parágrafo antecedente, os posseiros<br />

gozarão do favor que lhes assegura o 1 o competindo ao<br />

respectivo sesmeiro ou concessionário ficar com o terreno que<br />

sobrar <strong>da</strong> divisão feita entre os ditos posseiros, ou considerar-se<br />

também posseiro para entrar no rateio igual com eles.”<br />

Como se pode observar, o parágrafo primeiro marca o triunfo <strong>da</strong>s teses dos<br />

posseiros com relação ao tamanho <strong>da</strong>s posses passíveis de serem legitima<strong>da</strong>s: assegura,<br />

inclusive, além <strong>da</strong>s áreas efetivamente explora<strong>da</strong>s, mais “outro tanto(...)de terreno<br />

devoluto que houver contíguo” indo até o tamanho <strong>da</strong>s sesmarias concedias na<br />

região. A referência à terreno devoluto deixa claro que se tratavam de áreas não<br />

90


explora<strong>da</strong>s, ou não demarca<strong>da</strong>s de antigas sesmarias ou de terras públicas, o que dá a<br />

dimensão exata do atendimento, por parte do Estado, <strong>da</strong>s reivindicações dos posseiros.<br />

O parágrafo segundo, contrariamente, deixa claro o respeito, por parte do<br />

Estado, aos direitos <strong>da</strong>s sesmarias legítimas e revali<strong>da</strong><strong>da</strong>s pela Lei 601, assegurando<br />

aos posseiros apenas o direito a idenização de benfeitorias 149 e ressalvando os casos em<br />

que teriam priori<strong>da</strong>de as posses: ter sentença favorável, transita<strong>da</strong> em julgado; ter sido<br />

processa<strong>da</strong> antes <strong>da</strong> medição e não perturba<strong>da</strong> por cinco anos; ou, finalmente, no caso<br />

de ter sido efetiva<strong>da</strong> antes <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> medição, não haver sido perturba<strong>da</strong> por dez anos.<br />

Os dois últimos casos caracterizam situações típicas de usucapião.<br />

O relevante a ser registrado nesse conjunto de regulações, é o fato de estar<br />

implícita a necessi<strong>da</strong>de de se acionar o poder público 150 , especialmente, o judiciário,<br />

para fazer valer tais direitos. Isso, efetivamente, excluía os pequenos posseiros e mesmo<br />

dos muitos médios posseiros, aliás, como observa Faoro (op. cit., p. 410), posto que<br />

estes não dispunham de recursos e, menos ain<strong>da</strong>, de condições materiais, para<br />

contratarem advogados e mesmo se deslocarem ou manterem-se nas capitais <strong>da</strong>s<br />

Províncias ou do Império. Nem prestígio na Corte, para garantir privilégios.<br />

É nesse contexto do funcionamento do poder judiciário que sempre residirão os<br />

entraves efetivos à materialização dos direitos de proprie<strong>da</strong>de pelos pequenos e médios<br />

posseiros, por mais que tais direitos estejam amplamente assegurados em Legislação. É<br />

neste sentido que as normas jurídicas, embora possam <strong>da</strong>r uma boa indicação de<br />

determinados avanços sociais, na ver<strong>da</strong>de tratam-se de avanços formais, de simples<br />

indicadores de avanços reais, cuja materialização estão em “devir”: exige outras<br />

mediações que, em última instância, podem levar a resultados profun<strong>da</strong>mente<br />

contraditórios. Neste caso, <strong>da</strong><strong>da</strong> a necessária generali<strong>da</strong>de que a norma teria de<br />

apresentar para assegurar as posses, necessariamente referia-se à to<strong>da</strong>s as elas (grandes<br />

e pequenas). Na prática, apenas as grandes posses, e só excepcionalmente, as pequenas,<br />

terão a possibili<strong>da</strong>de efetiva de realizar esse direito “legalmente assegurado.” 151<br />

Finalmente, o parágrafo terceiro, <strong>da</strong> Lei 601/1850, deixa clara a posição<br />

assumi<strong>da</strong> pelo Estado frente ao conflito entre posseiros e os demais sesmeiros e<br />

concessionários em processo de revali<strong>da</strong>ção. A estes sesmeiros caberia apenas as terras<br />

que restassem após o rateio entre as posses legitimáveis. Essa posição contrária a esse<br />

conjunto de sesmeiros é tão evidente, que chega a sugerir a que esses sesmeiros ou<br />

concessionários podem “considera-se posseiros para entrar no rateio igual<br />

149 Observe-se que, neste caso, o confronto não era entre posseiros e sesmeiros em comisso; mas entre aqueles e<br />

sesmeiros legítimos.<br />

150 Para uma discussão detalha<strong>da</strong> desta questão ver o capítulo 3 deste trabalho.<br />

151 Essa especifici<strong>da</strong>de do formalismo jurídico e suas contradições com sua aplicabili<strong>da</strong>de prática, será explora<strong>da</strong><br />

sistematicamente por todos os latifundiários de todos os tempos no Brasil, para fazerem valer seus direitos. Para<br />

tanto, dependendo <strong>da</strong> conjuntura, armar-se-ão de ver<strong>da</strong>deiros exército de assessores jurídicos, advogados(...) e<br />

jagunços. Esse fenômeno adquirirá grande relevância no período do regime militar, assumindo a forma acaba<strong>da</strong> de<br />

“grilagem especializa<strong>da</strong>”, como se verá nos capítulos 4 e 5 deste estudo. De qualquer maneira, no caso específico <strong>da</strong><br />

luta pela terra, além <strong>da</strong> batalha judicial, os latifundiários e seus prepostos, utilizarão vastamente de muitos outros<br />

recursos, como a violência direta, a morosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> justiça, a coação, o suborno e o assassinato.<br />

91


com eles”. Como no caso anterior, esse processo discirminatório exige a mediação do<br />

Estado e, quase sempre, através do judiciário, o que, como se afirmou acima, exclui, em<br />

princípio, os pequenos e médios posseiros 152 . Portanto fica claro que, efetivamente, não<br />

seriam os pequenos e médios posseiros os beneficiários <strong>da</strong> Lei 601, por mais que,<br />

formalmente, estes tivessem a possibili<strong>da</strong>de de se manterem legalmente na posse.<br />

Essa problemática continuará, portanto, eclodindo no bojo dos inúmeros<br />

movimentos sociais de resistência de pequenos posseiros contra a sua expulsão para<br />

áreas ca<strong>da</strong> vez mais afasta<strong>da</strong>s dos interesses do latifúndio, sobretudo à medi<strong>da</strong> em que a<br />

valorização <strong>da</strong>s terras vá engendrando a necessi<strong>da</strong>de do seu monopólio efetivo pelos<br />

poderosos e especuladores de terras.<br />

É por esse conjunto de artifícios e deliberações de Políticas de Terras e de<br />

desenvolvimento, que os diferentes Governos, no Império e na República,<br />

sistematicamente, deslocarão o problema <strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de para o campo<br />

amorfo e nebuloso <strong>da</strong> colonização 153 , sobretudo entendi<strong>da</strong> como desbravamento: como<br />

alternativa ao assentamento de trabalhadores pobres nas áreas ain<strong>da</strong> não pleitea<strong>da</strong>s pelo<br />

avanço latifundiário e especulativo.<br />

4 COLONIZAÇÃO E IMIGRAÇÃO ESTRANGEIRA<br />

A questão <strong>da</strong> colonização colocou-se para o Brasil, desde os primeiros anos após<br />

o seu descobrimento, sobretudo, no sentido <strong>da</strong> atração de mão-de-obra para atender às<br />

necessi<strong>da</strong>des produtivas e assegurar a sua ocupação territorial. É neste sentido que os<br />

problemas <strong>da</strong> colonização e <strong>da</strong> consecução de mão-de-obra (compulsória ou livre) para<br />

a produção imediata, sempre estiveram associados. As formas, politicamente adota<strong>da</strong>s,<br />

para o equacionamento desses problemas, é que se articularam de modos diferentes e<br />

sofrem mu<strong>da</strong>nças relevantes, à medi<strong>da</strong> em que a formação econômico-social<br />

desenvolve-se na Colônia.<br />

Como se sabe, a opção imposta pela conjuntura econônica <strong>da</strong>s primeiras déca<strong>da</strong>s<br />

do século XVI, foi a do trabalho escravo 154 , aliado ao sistema de concessão de grandes<br />

áreas de terras, com base no antigo instituto <strong>da</strong>s sesmarias. Tratava-se, portanto, de um<br />

modo específico de colonização do território brasileiro, fun<strong>da</strong>do na lógica <strong>da</strong><br />

acumulação mercantilista, portanto, na subordinação <strong>da</strong> produção ao comércio 155 e no<br />

“lucro de alienação”.<br />

Na conjuntura do século XIX, como ficou esclarecido nas páginas anteriores, é<br />

reposto, pelo Conselho de Estado, o problema <strong>da</strong> colonização. Desta vez, em uma<br />

152 Ver também FOWERAKER (1982) e os capítulos 4 e 5 deste estudo.<br />

153 E <strong>da</strong>s “Políticas Agrícolas”.<br />

154 A respeito de uma análise sistemática dessa questão ver, especialmente, o excelente estudo de Gorender (op. cit.).<br />

155 Em suas linhas fun<strong>da</strong>mentais essa conjuntura foi exposta e analisa<strong>da</strong> no capítulo 1 e nos itens iniciais deste<br />

capítulo 2. Entretanto, para uma análise mais detalha<strong>da</strong> dessa problemática, e <strong>da</strong>s controvérsias em torno do caráter<br />

<strong>da</strong> economia colonial, há uma vastíssima literatura, algumas delas cita<strong>da</strong>s neste trabalho, especialmente, os trabalhos<br />

clássicos de Oliveira Vianna, Nestor Duarte, Malheiro Dias, Caio Prado Júnior, Fernando Novais, Raymundo Faoro,<br />

Celso Furtado, Passos Guimarães, Sedi Hirano (todos citados) entre outros.<br />

92


conjuntura completamente distinta, articulado a uma nova política de terras, nasci<strong>da</strong><br />

sobre os escombros do antigo sistema sesmarial e condicionado pelas novas exigências<br />

do mercado mundial capitalista em franco desenvolvimento industrial. Entretanto, essas<br />

novas exigências não poderiam ser atendi<strong>da</strong>s “ex abrupto”, à revelia <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de efetiva<br />

do país, em grande parte ain<strong>da</strong> fun<strong>da</strong><strong>da</strong> nos ditames do antigo sistema produtivo, no<br />

trabalho escravo e na desorganização fundiária gesta<strong>da</strong> pelas contradições do antigo<br />

instituto de sesmarias: a estrutura agro-fundiária vigente. Assim, a reorganização <strong>da</strong>s<br />

relações de proprie<strong>da</strong>de e de trabalho, exigi<strong>da</strong>s pelo novo contexto interno e<br />

internacional, e propostas pelo Conselho de Estado, na déca<strong>da</strong> de 1840, deparava-se,<br />

objetivamente, com as resistências <strong>da</strong> antiga conjuntura colonial e escravista (as<br />

relações de produção e proprie<strong>da</strong>de vigentes): sobretudo, a resistência dos latifundiários.<br />

É nesse sentido que a alternativa a um Projeto de “colonização sistemática”, ao<br />

estilo wakefieldiano, não é bem aceita no Parlamento e será escamotea<strong>da</strong> na prática.<br />

A proposta de “colonização sistemática” feria frontalmente os interesses de boa<br />

parte dos latifundiários, sobretudo, na medi<strong>da</strong> em que implicava uma determina<strong>da</strong><br />

política de terras, cujo objetivo fun<strong>da</strong>mental seria a regulamentação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de<br />

priva<strong>da</strong>, pelo Estado, e <strong>da</strong> mesma forma, a regularização <strong>da</strong>s terras públicas (devolutas),<br />

que deveriam ser, legal e concretamente, separa<strong>da</strong>s do domínio particular, sendo ve<strong>da</strong>do<br />

o seu apossamento privado, senão pela via onerosa ou pela anuência do Estado. Isto<br />

significava separar legalmente o patrimônio territorial público do particular e, portanto,<br />

impedir a apropriação livre de terras públicas, sobretudo pela expansão desregra<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />

grandes posses e sesmarias.<br />

Embora o Estado, <strong>da</strong><strong>da</strong> a conjuntura de instabili<strong>da</strong>de do período, já analisa<strong>da</strong> nas<br />

páginas anteriores, se apressasse em assegurar a legitimação de quase to<strong>da</strong>s as terras em<br />

domínio privado 156 por título legítimo ou legitimável; na medi<strong>da</strong> em que pressupunha a<br />

arreca<strong>da</strong>ção de terras devolutas, - que sempre se constituíram em um campo aberto para<br />

a ampliação dos latifúndios -, levantou forte resistência ao projeto.<br />

É assim que o projeto de “colonização sistemática” é, na prática, completamente<br />

desvirtuado, e reconvertido em uma política de migração que se resumia à atração de<br />

colonos pobres para os lavouras ou para a formação de colônias de ocupação de<br />

fronteiras. Por outro lado, a dimensão fun<strong>da</strong>mental do projeto wakefieldiano, que<br />

deveria servir de vetor à imigração - a legitimação <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de pública e priva<strong>da</strong> - foi inviabiliza<strong>da</strong>: os latifundiários (sesmeiros e<br />

posseiros) por um lado, não legalizaram suas terras ou o fizeram de forma escamotea<strong>da</strong>,<br />

e por outro lado, inviabilizaram completamente, a arreca<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s terras devolutas<br />

estatais. Isso, na prática, correspondia a impedir o controle do Estado sobre a oferta de<br />

“terras com bom título”, fun<strong>da</strong>mental, no modelo de Wakefield, para sustentar a<br />

correlação adequa<strong>da</strong> entre população e titulação <strong>da</strong>s terras, e, portanto, à viabilização <strong>da</strong><br />

156 Além disso, ain<strong>da</strong> admitindo a legitimação de “outro tanto mais de terra que houver contíguo” até o limite de<br />

antigas semarias, como já visto, o que significava a permissão para a expansão de área, dos latifúndios.<br />

93


colonização sistemática. Esse “novo projeto” nascido do Parlamento <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1840,<br />

na<strong>da</strong> ou muito pouco tinha a ver com o projeto de Wakefield.<br />

4.1 Colonização Sistemática: O Projeto de Wakefield<br />

A primeira e, talvez, mais importante observação a fazer-se com relação ao<br />

projeto de colonização sistemática de Wakefield, é que ele, na ver<strong>da</strong>de, fun<strong>da</strong>va-se em<br />

uma teoria <strong>da</strong> crise de subconsumo de capital, tendo em consideração a situação <strong>da</strong><br />

Inglaterra dos inícios do século XIX e, por fun<strong>da</strong>mento as teses <strong>da</strong> extensão do mercado<br />

de A<strong>da</strong>m Smith.<br />

Neste sentido, a colonização sistemática, em Wakefield, aparece enquanto uma<br />

alternativa pragmática à crise de subconsumo: visava, portanto, abrir, pela via <strong>da</strong><br />

exploração econômica <strong>da</strong>s alternativas representa<strong>da</strong>s pelas colônias, possibili<strong>da</strong>des de<br />

aplicação para os excedentes de capital metropolitano, impossibilitados de manter a taxa<br />

média de lucro e acumulação, caso fossem reinvestidos na metrópole 157 . Assim,<br />

segundo Wakefield, esse excedente de capitais, em vez de ser emprestado para outros<br />

países, sem criar emprego na Inglaterra, poderia ser investido nas colônias, gerando<br />

dessa forma, pela ampliação do campo de emprego do capital e do trabalho, riquezas<br />

que se converteriam, em última análise, em favor <strong>da</strong> “mother country”, evitando os<br />

riscos acima mencionados. Esse era o contexto geral <strong>da</strong> formulação <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong><br />

colonização sistemática, por Wakefield:<br />

“Os objetivos de uma velha socie<strong>da</strong>de em promover a<br />

colonização parecem ser três: primeiro, a extensão de mercado<br />

para colocação <strong>da</strong> sua própria produção excedente; segundo,<br />

alívio do número excessivo (de habitantes); terceiro, ampliação<br />

do campo de emprego do capital... (...) Esses três objetivos<br />

podem ser reunidos sob um só: uma ampliação do campo<br />

de emprego do capital e de trabalho.” 158<br />

Tratava-se, portanto de um projeto de desenvolvimento do capitalismo em escala<br />

mundial (visando manutenção <strong>da</strong>s taxas de acumulação de capital nas metrópoles) pela<br />

extensão dos mercados (de capital e trabalho) aos espaços coloniais 159 . Disso deriva as<br />

propostas de Wakefield, em relação aos problemas específicos, relativos aos processos<br />

de legitimação, pelo Estado, <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial nas colônias, onde as terras eram<br />

formal e efetivamente livres, o que criava a possibili<strong>da</strong>de - que deveria ser evita<strong>da</strong>, do<br />

seu ponto de vista - <strong>da</strong> “colonização expontânea”. Segundo essa perspectiva, para que<br />

fosse possível a implementação de um projeto de colonização sistemática - em oposição<br />

157 Como observa corretamente Roberto Smith (op. cit., p.250) “a preocupação central de Wakefield era,<br />

portanto, com o fenômeno do rebaixamento geral <strong>da</strong> taxa de lucro na Inglaterra desde 1815, tendo em<br />

vista o excesso de capital, e não como decorrência <strong>da</strong> elevação do custo de reprodução <strong>da</strong> força de<br />

trabalho.”<br />

158 Wakefield (op. cit., p. 250. Grifos nossos).<br />

159 Neste sentido, tem razão SIMITH (op. cit.) ao localizar esta problemática no âmbito do imperialismo nascente no<br />

período.<br />

94


à “expontânea” - era fun<strong>da</strong>mental que as terras não apenas fossem incultas, mas estatais<br />

e passíveis de privatização por via onerosa. Quer dizer, era necessário que as terras<br />

livres passassem ao domínio do Estado, permanecendo passíveis de privatização. A<br />

explicação de Wakefield para a esta proposição - de resto estranha ao ideário liberal, por<br />

pressupor a intervenção do Estado - era a de que, na ocorrência de homens e terras<br />

livres, seria impossível a combinação 160 do trabalho: ou seja, a acumulação de capital.<br />

Esse raciocínio fica claro em duas situações descritas por Wakefield 161 :<br />

- Uma, refere-se a história de um tal senhor Peel que, mesmo tendo tomado<br />

to<strong>da</strong>s as precauções para assegurar seu empreendimento, tendo levando consigo para<br />

Swan River, Austrália, víveres, meios de produção no valor de 50.000 libras esterlinas,<br />

3.000 trabalhadores, etc., foi surpreendido pelo abandono completo, por parte dos<br />

trabalhadores, ficando o senhor “Peel sem um criado para fazer a sua cama ou<br />

trazer-lhe água do rio 162 .” Comentando essa história, Marx, afirma ironicamente:<br />

“Infeliz Peel, que previu tudo, menos trazer as relações de<br />

produção <strong>da</strong> Inglaterra para Swan River!” 163 .<br />

- A outra situação refere-se às críticas de alguns investidores que estiveram com<br />

o próprio Wakefield no Canadá e no Estado de Nova Iorque, as quais são assim<br />

resumi<strong>da</strong>s:<br />

“Nosso capital estava pronto para muitas operações que exigem<br />

prazo muito longo para sua execução; mas poderíamos começar<br />

essas operações com trabalhadores que, sabíamos, logo nos<br />

<strong>da</strong>riam as costas? Se tivéramos, então, a certeza de contar com o<br />

trabalho continuado desses imigrantes, imediatamente e com<br />

satisfação os teríamos contratado e a alto preço. Aliás, para<br />

contratá-los não era impecilho a certeza de perdê-los;<br />

bastava-nos saber que contávamos com novo suprimento de<br />

trabalhadores, segundo nossas necessi<strong>da</strong>des.” 164<br />

Nesta segun<strong>da</strong> situação narra<strong>da</strong> por Wakefield, ficam ain<strong>da</strong> mais claros, do que<br />

na anterior, os objetivos perseguidos pela colonização sistemática. O risco de perder<br />

alguns trabalhadores que, eventualmente, pudessem se estabelecer como produtores<br />

independentes, não era o maior problema a ser enfrentado pelos investidores<br />

capitalistas; desde que lhes fosse assegurado um fluxo permanente e continuado de<br />

trabalhadores. Isso poderia ser assegurado, segundo Wakefield, usando de uma dupla<br />

estratégia: por um lado, através <strong>da</strong> intervenção do Estado, assegurando a possibili<strong>da</strong>de<br />

de acesso à proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra, sem o que não haveria motivação para atração de<br />

migrantes; por outro, garantindo este acesso, apenas mediante a via onerosa, basea<strong>da</strong> no<br />

160 quer dizer, subordinação por compulsão econômica, como traduz Marx, esse “eufemismo” do economista político<br />

Wakefield.<br />

161 WAKEFIELD, op. cit.<br />

162 Id., Ibidem., p.33.<br />

163 MARX, (op. cit., p. 885). Grifos nossos.<br />

164 Wakefield, England and America. Citado por Marx (op. cit., p. 891)<br />

95


“preço suficiente” e, assim, condicionanando a aquisição de terras, sobretudo pelos<br />

migrantes mais pobres, - que certamente eram a maioria -, à necessi<strong>da</strong>de de trabalharem<br />

como assalariados por algum tempo, até formarem uma poupança “suficiente” para a<br />

compra <strong>da</strong> sua proprie<strong>da</strong>de ao Estado e, assim poderem abandonar o mercado de<br />

trabalho.<br />

Dessa forma, como bem registra Marx, atingia-se dois objetivos com uma só<br />

medi<strong>da</strong> - a arreca<strong>da</strong>ção de terras pelo Estado: 1 o ao se garantir a possibili<strong>da</strong>de efetiva e<br />

legal do acesso a terra (com “bom título”), criava-se a motivação fun<strong>da</strong>mental para<br />

atrair imigrantes (sobretudo pobres); 2 o ao se estabelecer que a aquisição <strong>da</strong> terra<br />

apenas poderia <strong>da</strong>r-se pela via onerosa, agregava aquela “expectativa-motivação” dos<br />

imigrantes pobres, a necessi<strong>da</strong>de de assalariar-se, por algum tempo, a fim de formarem<br />

o seu pecúlio e, dessa forma, poderem-se tornar produtores independentes. Veja-se,<br />

neste caso, que essa “expectativa-motivação”, na medi<strong>da</strong> em que era alimenta<strong>da</strong> pela<br />

possibili<strong>da</strong>de, de fato, de aquisição de terras por colonos pobres, poderia reverter-se em<br />

maior dedicação e produtivi<strong>da</strong>de do trabalhador, levando-o a suportar maiores taxas de<br />

exploração e, portanto, produzir, também, maiores taxas de lucro e de acumulação.<br />

Tudo no mais perfeito figurino <strong>da</strong> lógica <strong>da</strong> acumulação capitalista. Além dessas<br />

duas, outras implicações podem ser anota<strong>da</strong>s: primeira, ao trabalharem como<br />

assalariados, por algum tempo, estavam os trabalhadores promovendo a acumulação de<br />

capital; segundo, ao abandonarem o mercado de trabalho e adquirirem terras ao Estado,<br />

através do pagamento <strong>da</strong> ren<strong>da</strong> capitaliza<strong>da</strong>, estavam, estes trabalhadores, de fato,<br />

pagando para que o Estado formasse um fundo público para importação de novos<br />

trabalhadores que deveriam substituí-los. No dizer de Marx pagando seu resgate, pelo<br />

direito de abandonar o mercado de trabalho.<br />

Segundo Marx, esta posição intervencionista de Wakefield poderia ser explica<strong>da</strong><br />

pelo fato de que “se de um golpe se transformasse to<strong>da</strong>s as terras de<br />

proprie<strong>da</strong>de comum em terras de proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, destruir-se-ía o mal” (<strong>da</strong><br />

autonomização do trabalhador) “pela raiz, mas as colônias seriam também<br />

destruí<strong>da</strong>s.” 165<br />

4.2. Colonização Dirigi<strong>da</strong>: O Projeto do Latifúndio<br />

Exatamente a negativa imposta, na prática, pelos latifundiários, ao não<br />

demarcarem e não registrarem, ou ao registrarem de forma incorreta, as terras em seu<br />

domínio, por um lado, e a inviabilização <strong>da</strong> arreca<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s terras devolutas do Império,<br />

por outro lado, correspondia, objetivamente, a uma espécie de “privatização” de to<strong>da</strong>s<br />

as terras do Brasil. Na melhor <strong>da</strong>s hipótese, impossibilitava o Estado de dispor de terras<br />

que pudessem ser ofereci<strong>da</strong>s, com “bom título”, enquanto atração de migrantes,<br />

sobretudo investidores.<br />

165 Marx, op. cit. p. 892.<br />

96


Esse argumento é perfeitamente compreensível se se tiver em consideração as<br />

imensas dimensões <strong>da</strong>s concessões de antigas sesmariais, por um lado, e o fato de que<br />

elas ocupavam, efetivamente, to<strong>da</strong>s as terras de melhor localização e fertili<strong>da</strong>de. Assim,<br />

além <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong>de jurídica, fun<strong>da</strong>mental, ao esquema wakefieldiano, havia a<br />

impossibili<strong>da</strong>de concreta, pela falta de terras economicamente interessantes para o<br />

Capital. Desta forma criava-se, na prática, no Brasil pós-1854, uma situação em que o<br />

capital, se se quisesse instalar no país, teria que proceder a um significativo desembolso<br />

de imobilização, na medi<strong>da</strong> em que teria que adquirir as terras nas condições correntes<br />

de um mercado que já era<br />

especulativo; e não ao Estado, como pressupunha o projeto de Wakefield. O preço<br />

suficiente <strong>da</strong> terra estatal de Wakefield, embora estivesse acima <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des de<br />

aquisição dos assalariados, estaria, certamente abaixo dos preços especulativos do<br />

mercado privado de terras, ain<strong>da</strong> mais se se imaginar a situação de desorganização<br />

fundiária brasileira, na qual, poucas terras tinham “bom título” (quando tinham).<br />

Aqui começa a derroca<strong>da</strong> do projeto de colonização capitalista de Wakefield e<br />

sua reconversão em projeto de colonização dirigi<strong>da</strong> para os latifúndios.<br />

Nessas condições, nem mesmo a atração de colonos pobres poderia funcionar 166 ,<br />

haja vista os sistemáticos protestos e as proibições dos Governos de países europeus<br />

com relação a imigração para o Brasil. Na maioria dos casos, os colonos eram colocados<br />

nos latifúndios em condições quase servis de trabalho, onde os salários eram<br />

sistematicamente aviltados e corroídos por dívi<strong>da</strong>s com os patrões, em fenômeno já<br />

muito bem documentado pela historiografia. A situação mais comum, e perfeitamente<br />

ajusta<strong>da</strong> às condições do latifúndio cafeeiro, era a parceria, cujo exemplo magistral <strong>da</strong><br />

época era <strong>da</strong>do pela parcerias do Senador Vergueiro, logo generaliza<strong>da</strong>s como<br />

sistema 167 .<br />

Em suma, o projeto de colonização sistemática de Wakefield, que teria inspirado<br />

os legisladores <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de quarenta do século XIX ficou mesmo só como inspiração.<br />

A colonização foi reduzi<strong>da</strong> à mera importação de colonos pobres que deveriam servir,<br />

por certo tempo no latifúndio, não para ganharem seus salários e formarem um pecúlio<br />

para aquisições de terras 168 , no futuro previsível; mas antes, para cobrirem as dívi<strong>da</strong>s<br />

decorrentes <strong>da</strong>s despesas de viagem e contraí<strong>da</strong>s nos barracões <strong>da</strong>s fazen<strong>da</strong>s. Portanto,<br />

numa situação ain<strong>da</strong> mais desvantajosa do que a antevista por Marx, no modelo<br />

wakefieldiano, quando os colonos ao comprarem terras estavam financiando seus<br />

substitutos. Na colonização dirigi<strong>da</strong> do latifúndio brasileiro, esses colonos teriam que<br />

166 como, de fato, não funcionou.<br />

167 Ver a esse respeito os trabalhos de José Murilo de Carvalho, Roberto Smith e <strong>Alberto</strong> Passoas Guimarães, todos<br />

citados neste estudo. Ver igualmente os estudos de Paula Beiguelman, A Grande Imigração em São Paulo (I), Revista<br />

do Instituto de Estudos Brasileiros. n o 3, 1969, p. 99; Emília Viotti <strong>da</strong> Costa, Da Senzala à Colônia, Difel, São Paulo,<br />

1966, págs. 104-105; Sérgio Buarque de Holan<strong>da</strong>, Prefácio, In.: Tomás Davatz, Memórias de um Colono no Brasil<br />

(1850), Livraria Martins, 1972, pág. XLI; o próprio texto de Davatz, cit., pág. 64; Brasílio Sallum Jr., Capitalismo e<br />

Cafeicultura. Oeste paulista (1888-1930), Duas Ci<strong>da</strong>des, São Paulo, 1982, págs. 76-78.<br />

168 Embora essa aparência ou ilusão persistisse, alimenta<strong>da</strong> no ideário e na legislação. Na prática a materialização<br />

dessa possibili<strong>da</strong>de era remota ou inexistente<br />

97


pagar, e muito caro, pela sua própria transferência para o Brasil 169 . Ou seja, a se adotar o<br />

raciocínio de Marx, eles teriam que pagar um duplo resgate: o dele próprio e o do seu<br />

substituto.<br />

Diante <strong>da</strong> situação exposta acima, parece que esses fatos, muito mais do que a<br />

presença do escravismo no Brasil, podem permitir a compreensão do porque o projeto<br />

de colonização brasileiro fracassou retumbantemente; do porque, muitos imigrantes<br />

vindos ao Brasil, aqui apenas transitavam rumo a outros países, sobretudo <strong>da</strong> Bacia do<br />

Prata. Explica, igualmente, porque a economia agrária brasileira permaneceu entreva<strong>da</strong><br />

na improdutivi<strong>da</strong>de, assim como as dificul<strong>da</strong>des, por ela, enfrenta<strong>da</strong>s, para transitar ao<br />

trabalho livre e à economia de escala.<br />

Pode-se dizer que a colonização dirigi<strong>da</strong> pelo latifúndio é a pré-história, de uma<br />

história inacaba<strong>da</strong>: a história <strong>da</strong>s diversas formas, sobretudo arcaicas e anacrônicas, de<br />

subordinação indireta do trabalho ao capital no campo. E, por outro lado, que a negativa<br />

dirigi<strong>da</strong> pelo latifúndio, aos processos de legitimação <strong>da</strong>s terras brasileiras, neste<br />

período é, “mutatis mutandis”, a pré-história <strong>da</strong> história inacaba<strong>da</strong> <strong>da</strong> reforma agrária<br />

brasileira, que em 1964, cento de dez anos depois, é novamente reposta para ser<br />

novamente, escamotea<strong>da</strong>, como se pretende evidenciar na segun<strong>da</strong> parte deste trabalho.<br />

5. Considerações Finais: Heranças <strong>da</strong> Política de Terras do Império<br />

De julho de 1822 à promulgação <strong>da</strong> Lei 601, em 1850, consoli<strong>da</strong>ra-se<br />

definitivamente, no Brasil, o latifúndio fun<strong>da</strong>do na posse. Através do expediente de<br />

incorporar, pura e simplesmente, vastas áreas de terras, por suposto, devolutas, porém<br />

raramente desocupa<strong>da</strong>s, os grandes detentores de terras e, com eles, outros<br />

especuladores imobiliários 170 , expandem de forma célere seus domínios e seu controle<br />

sobre as terras devolutas, esmagando, afugentando, ou assimilando, índios, posseiros<br />

pobres ou pequenos agricultores de “subsistência”, que sempre encontraram em seu<br />

caminho.<br />

Se o antigo instituto sesmarial foi um instrumento que permitiu a concessão e<br />

acesso privilegiados à proprie<strong>da</strong>de territorial no Brasil, o “império <strong>da</strong> posse”, como é<br />

conhecido esse período, foi ain<strong>da</strong> mais, porque reforçado pelas novas garantias<br />

constitucionais 171 , permitiu a ampliação, ao nível concreto, de tais privilégios. Esse<br />

período significou a transferência, de fato, do controle sobre as terras devolutas, que,<br />

169 Caso em que, de fato, pode-se falar de resgate.<br />

170 Octávio Ianni, referindo-se a situação de Sertãozinho, que em certo sentido pode-se considerar semelhante ao que<br />

vinha acontecendo em outras áreas <strong>da</strong> expansão <strong>da</strong>s apropriações de terras rurais no período, afirma que “a área fora<br />

ocupa<strong>da</strong>, desde meados do século XIX, por criadores, agricultores e comerciantes de terras vindos do<br />

Oeste Paulista, <strong>da</strong>s vizinhanças de Minas Gerais e de outras partes. (...) Na déca<strong>da</strong> de oitenta, o café<br />

tomou conta <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> econômica <strong>da</strong> área que passou a fazer parte do município de Sertãozinho; <strong>da</strong><br />

mesma forma que estava tomando conta, <strong>da</strong>s terras devolutas, fazen<strong>da</strong>s e sítios em to<strong>da</strong> a região<br />

que circun<strong>da</strong> Ribeirão Preto.” IANNI (op. cit., p.11. Grifos nossos)<br />

171 Trata-se <strong>da</strong> Constituição de 1824, que assegurou o pleno direito de proprie<strong>da</strong>de (art. 179; XXII).<br />

98


embora formalmente, permanecendo na esfera do Estado, passou, na prática, para o<br />

campo de influência direta dos poderosos locais.<br />

Como ficou evidenciado no capítulo anterior, na vigência do instituto <strong>da</strong><br />

sesmaria, apesar <strong>da</strong>s amplas possibili<strong>da</strong>des abertas à incorporação latifundiária, no<br />

Brasil, a sua legitimação, ou o reconhecimento de domínio sobre as terras possuí<strong>da</strong>s,<br />

estava, ain<strong>da</strong> assim, sob o controle do Estado. Este, a qualquer momento poderia<br />

exercer o seu direito de negar, ou não, o reconhecimento <strong>da</strong>s ocupações, fun<strong>da</strong>do nos<br />

dispositivos legais e, sobretudo nas cláusulas resolutivas, que eram parte substantiva dos<br />

documentos de doação.<br />

Se, por um lado, ao nível <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, tais limitações não foram suficientes para<br />

conter o avanço desordenado <strong>da</strong>s ambições, sobretudo, latifundiárias 172 , por outro lado,<br />

ao nível jurídico e institucional, entretanto, esse avanço estava inevitavelmente limitado,<br />

ou mesmo condenado, pelo seu caráter de ilegitimi<strong>da</strong>de.<br />

Ilegitimi<strong>da</strong>de, aliás, duplamente configura<strong>da</strong>. Primeiro, juridicamente, pelos<br />

termos <strong>da</strong> própria legislação de terras, expressos nos documentos de concessão, e<br />

cabalmente caracteriza<strong>da</strong> pela ausência <strong>da</strong> confirmação explícita por parte do Estado,<br />

antes <strong>da</strong> Lei 601; e pela ausência de registros ou por tê-los feito em contradição com as<br />

normas legais, depois <strong>da</strong>quela Lei. Segundo, pela própria tradição e pelos costumes, que<br />

sempre estiveram ligados ao instituto de sesmarias, e que pressupunham a exploração<br />

efetiva <strong>da</strong> terra como única alternativa para assegurar o seu efetivo reconhecimento,<br />

pela comuni<strong>da</strong>de e, em última instância, pelo Estado 173 , princípios estes, aliás,<br />

igualmente consagrados na legislação.<br />

Esses princípios, mas, sobretudo, as exigências legais formalmente instituí<strong>da</strong>s,<br />

eram particularmente rigorosos para a situação <strong>da</strong>s terras do Brasil. Na Colônia era,<br />

explicitamente, ve<strong>da</strong><strong>da</strong> a possibili<strong>da</strong>de do arren<strong>da</strong>mento, ou de cessão de terras à<br />

terceiros, por parte dos beneficiários de doações de sesmarias. Tal se fun<strong>da</strong>va no<br />

pressuposto, explicitamente, aliás, colocado nos Forais, nas Cartas de Doação e nos<br />

Regimentos, de que as terras eram concedi<strong>da</strong>s para serem efetiva e diretamente<br />

explora<strong>da</strong>s, cabendo, apenas, e privativamente, aos prepostos <strong>da</strong> Coroa, o poder para<br />

arrendá-las ou doá-las. Esta regra, radicalmente diferente <strong>da</strong> que vigia em Portugal<br />

(onde era permitido, ao concessionário, ou explorar diretamente a sua sesmaria, ou fazêla<br />

explorar por terceiros, sob determina<strong>da</strong> pensão ou foro 174 ), indicava, de forma clara, o<br />

objetivo do Estado Português em relação às terras Coloniais.<br />

172 Porque, a bem <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, há que se reconhecer que também ci<strong>da</strong>dãos pobres e despossuídos, igualmente tinham<br />

“o sonho <strong>da</strong> terra”, e puderam, naquela ocasião, estabelecerem-se em pequenas posses nas quais passaram a fun<strong>da</strong>r<br />

suas “roças”, <strong>da</strong>ndo origem à uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de específica de produção direta, independente, que veio a ser conheci<strong>da</strong><br />

na literatura como “agricultura de subsistência”. Ver a respeito, entre outros KARÁVAEV (1989).<br />

173 Ver a esse respeito a excelente análise feita por Virgínia Rau (op. cit.), especificamente para as sesmarias<br />

portuguesas; e Cirne Lima (op. cit.) e Costa Porto (op. cit.), para a situação específica <strong>da</strong> aplicabili<strong>da</strong>de do instituto<br />

nas condições do Brasil Colonial. Parte dessa discussão encontra-se no capítulo 1 deste estudo.<br />

174 Carta Régia de 1375.<br />

99


No Brasil, tratava-se de assegurar não apenas a exploração efetiva <strong>da</strong> terra, mas,<br />

sobretudo, a consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> ocupação e do domínio do Estado Colonial sobre o<br />

território. Provavelmente, a essa filosofia inscrita na política fundiária colonial, deve-se<br />

a tendência do instituto de sesmarias, na colônia, a estabelecer, com rigor, profun<strong>da</strong>s<br />

dificul<strong>da</strong>des para a concentração <strong>da</strong> terra em cadeias intra-familiais de proprie<strong>da</strong>des.<br />

Portanto, dificultando a formação, estrutura<strong>da</strong>, de núcleos locais de poder, de caráter<br />

feu<strong>da</strong>lizante.<br />

Esta é, aliás, a hipótese defendi<strong>da</strong> por Raymundo Faoro 175 , para afirmar o caráter<br />

anti-feu<strong>da</strong>lizante <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial fun<strong>da</strong><strong>da</strong> no instituto de sesmarias, tanto em<br />

Portugal quanto no Brasil, através do qual, a Coroa mantinha o pleno controle e, em<br />

última instância, o domínio, sobre to<strong>da</strong>s as terras <strong>da</strong> nação. Por este meio o Estado<br />

tinha, pelo menos formalmente, a possibili<strong>da</strong>de (ou virtuali<strong>da</strong>de) de manter o controle<br />

sobre as terras coloniais, podendo exigir ou indicar a sua destinação ou uso específico e,<br />

em última instância, manter em suas mãos, formalmente, isto é, juridicamente, a única<br />

alternativa de legitimação: A exigência <strong>da</strong> confirmação real.<br />

A contradição entre essas duas alternativas de acesso à proprie<strong>da</strong>de territorial, a<br />

possibili<strong>da</strong>de concreta, real, <strong>da</strong> posse (sempre extra ou ilegal) de terras; e as concessões<br />

ou doações (e depois de 1850, a compra), através do Estado, que assegurava<br />

determinado estatuto <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, persistirá no Brasil e será sempre o grande<br />

problema de política fundiária, a ser enfrentado pelo Estado.<br />

Esse problema seria, como se viu, profun<strong>da</strong>mente agravado no período que vai<br />

de julho de 1822 (quando e suspenso o instituto de sesmarias) à setembro de 1850,<br />

quando é promulga<strong>da</strong> a Lei 601. Nesse período, na ausência de qualquer<br />

regulamentação específica, pelo Estado, a respeito do acesso a terra e <strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de territorial, apenas o apossamento de fato, permanecia como recurso para a<br />

ocupação dos espaços territoriais. Esse problema seria, sobremaneira, agravado pela<br />

Constituição de 1824, que modificara o estatuto <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial, tornando-a<br />

proprie<strong>da</strong>de absoluta, ou seja, não sujeita a nenhuma cláusula restritiva ou condição,<br />

face à decadência legal <strong>da</strong>s cláusulas resolutivas que vigiam no regime de proprie<strong>da</strong>de<br />

anterior.<br />

Criou-se, assim, uma situação ain<strong>da</strong> mais complexa e intrinca<strong>da</strong>: era assegurado<br />

o pleno direito à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, mas não eram assegurados, juridicamente, nem os<br />

instrumentos, nem os meios, nem os critérios, que servissem de parâmetros para a<br />

definição dos limites e legitimação referentes à proprie<strong>da</strong>de territorial.<br />

Nessa conjuntura, embora, genericamente, a todos ficasse faculta<strong>da</strong> a<br />

possibili<strong>da</strong>de de apossarem-se de terras nacionais, tal facul<strong>da</strong>de, de fato, era muito mais<br />

vantajosa para os grandes detentores de sesmarias e outros poderosos que, por essa<br />

grande brecha aberta nas possibili<strong>da</strong>des de acesso a terra, apressaram-se em ampliar os<br />

175 Op. cit.<br />

100


limites de seus já vastos domínios. A Lei de Terras, de 1850 assegura a legitimação<br />

exatamente dessa situação privilegia<strong>da</strong>.<br />

Assim, aos pequenos posseiros, para usar um eufemismo comum em lógica<br />

jurídica, caberia a condição, (embora formalmente assegurados os seus direitos de<br />

posse, pela isonomia legal com os demais posseiros), de “exceção que confirmava a<br />

regra”. Melhor seria usar, para esse caso, uma expressão mais ajusta<strong>da</strong>: eles estavam na<br />

condição “de regra que legitimava a exceção”. Porque, assegurar, juridicamente, as<br />

grandes posses era, de fato, a regra consagra<strong>da</strong> em 1850.<br />

Por essa razão é que, neste estudo, se propõe a distinção entre grandes e<br />

pequenos posseiros. E se faz referência à apropriação privilegia<strong>da</strong>. É evidente que<br />

havia, legal e efetivamente - mais legal, que efetivamente -, a possibili<strong>da</strong>de para todos,<br />

de ocuparem (e depois <strong>da</strong> Lei 601, de legitimarem) determina<strong>da</strong>s parcelas do território<br />

brasileiro e aí se estabelecerem como pequenos agricultores de subsistência ou grandes<br />

plantadores. Entretanto, como se viu neste capítulo, os estudiosos do problema são<br />

unânimes em reconhecer, evidentemente com base na análise de documentos <strong>da</strong>quela<br />

época, que é exatamente nesse período que o latifúndio se consoli<strong>da</strong><strong>da</strong> definitivamente<br />

no Brasil. E é exatamente essa situação que se busca assegurar com a Lei de Terras.<br />

Portanto, também, legitimação privilegia<strong>da</strong>.<br />

Assim, a Política Fundiária do Império 176 configurou-se, efetivamente, como<br />

uma política de legitimação privilegia<strong>da</strong> <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial rural no Brasil.<br />

176 Como bem observa FOWERAKER (op. cit.) , “no apogeu do Império, o Estado recompensou o posseiro e criou<br />

o incentivo para a exploração econômica do interior. Dessa época em diante a posse tem-se constituído um direito em<br />

potencial à proprie<strong>da</strong>de no Brasil, mas um direito que requer a intervenção do Estado para tornar-se real, e isso tem<br />

acontecido apenas raramente.” E, mais adiante, na mesma página, comenta que “é apenas o Estado quem define o<br />

que é proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, o que é posse e o que são terras devolutas (...); em resumo, é quem define as regras básicas<br />

para a luta vindoura sobre a terra. Durante o Império, (...) o estado monopolizou a terra e deu somente títulos aos que<br />

a compraram, deixando assim pouca folga legal onde se apoiarem os reclamantes. É ver<strong>da</strong>de que o Estado pode não<br />

ter jamais exercido o controle integral sobre a terra (...) mas pelo menos a linha de demarcação entre o público e o<br />

privado era clara.” (p. 122).<br />

101


CAPÍTULO 3<br />

LEGISLAÇÃO FUNDIÁRIA E LUTA PELA TERRA NA REPÚBLICA:<br />

(1889 - 1964)<br />

1. Considerações Preliminares<br />

O problema fundiário posto para o Estado brasileiro, desde a sua consoli<strong>da</strong>ção<br />

na déca<strong>da</strong> de 40 do século XIX, era o de viabilizar as condições institucionais e efetivas<br />

para disciplinar, juridicamente, o acesso e a garantia à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> territorial<br />

rural. Isto significava envi<strong>da</strong>r esforços no sentido de demarcar, legalmente, a separação<br />

entre as terras do domínio público e as de domínio privado, por um lado; e materializar,<br />

por outro, esta demarcação ao nível <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Tratava-se, portanto, de tentar oferecer<br />

caráter de legitimi<strong>da</strong>de à to<strong>da</strong>s as terras, quer fossem públicas ou particulares, na nova<br />

conjuntura de país independente e de sua inserção na economia e no conserto mundial<br />

<strong>da</strong>s Nações.<br />

As respostas apresenta<strong>da</strong>s a este problema, e sobretudo os seus resultados<br />

concretos, foram objetivamente diferentes, conforme os distintos movimentos de<br />

conjunturas mais amplas vivi<strong>da</strong>s pelo país, em momentos diversos do seu<br />

desenvolvimento histórico. Provavelmente por motivos dessa natureza, é que a maioria<br />

<strong>da</strong>s iniciativas no campo político, econômico, legislativo, e judiciário, embora se<br />

apresentassem como logicamente coerentes, do ponto de vista de sua estrutura jurídica e<br />

legal, sempre se depararam com limitações e bloqueios dificilmente superáveis ao nível<br />

administrativo e concreto de implementação no contexto <strong>da</strong> formação econômico-social.<br />

Tratavam-se de limites decorrentes ou impostos ao nível <strong>da</strong> “praxis”, tanto pelas<br />

conjunturas econômicas, quanto sociais, políticas, culturais, regionais, administrativas,<br />

etc.<br />

A efetiva regulamentação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> <strong>da</strong>s terras - que virtualmente<br />

possibilitaria a implementação do projeto de alienação <strong>da</strong>s terras devolutas, e a<br />

implementação do mercado de trabalho livre, na perspectiva wakefieldiana 177 - apenas<br />

177 Segundo <strong>Alberto</strong> Passos Guimarães (op. cit., p. 111), “as teses de Wakefield correspondiam a um período<br />

em que a terra já se tinha convertido em mercadoria, o que ain<strong>da</strong> não se havia verificado em nosso país,<br />

102


seria posta em prática pela Lei de Terras de 1850, sendo regulamenta<strong>da</strong>, somente em<br />

1854. Entretanto, o seu instrumento operativo mais importante, que seria a demarcação<br />

e o registro <strong>da</strong>s terras possuí<strong>da</strong>s e a discriminação e arreca<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s terras devolutas,<br />

que deveriam ficar sob o controle do Estado, fracassou de forma contundente.<br />

Este fracasso <strong>da</strong> Política Fundiária do Império, tenta<strong>da</strong> após a consoli<strong>da</strong>ção do<br />

Estado independente, na déca<strong>da</strong> de 1840, e formaliza<strong>da</strong> juridicamente pela Lei 601 de<br />

1850, foi apenas o primeiro.<br />

O controle efetivo <strong>da</strong>s terras devolutas brasileiras, que formalmente permanecia<br />

nas mãos do Estado, desde o “império <strong>da</strong>s posses” e, sobretudo, no período regencial,<br />

tinha passado, de fato, às mãos do latifúndio, <strong>da</strong>s oligarquias locais e dos especuladores<br />

imobiliários que, já na segun<strong>da</strong> metade do século XIX, com a valorização <strong>da</strong>s terras,<br />

sobretudo pela expansão <strong>da</strong> cafeicultura, começaram a se organizar em empresas de<br />

imigração e colonização.<br />

Pode-se dizer que o controle sobre as terras era exercido por duas vias: 1. “De<br />

fato”, isto é, à margem <strong>da</strong>s normas juridicamente instituí<strong>da</strong>s - direta e imediatamente, ao<br />

nível local, pela força e autori<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>s dos latifundiários: sobretudo quando os<br />

conflitos não se publicizavam e quando as disputas pela terra, se estabeleciam contra<br />

pequenos posseiros e indígenas. 2. “De direito”, isto é, fun<strong>da</strong>do, pelo menos<br />

formalmente, nas normas juridicamente sanciona<strong>da</strong>s. Neste caso, o controle era<br />

exercido de forma mediata e institucional, pela via administrativa ou judicial. Sofria este<br />

processo, geralmente, a influência, ou mediação, dos representantes dos interesses<br />

latifundiários, quer fosse no Parlamento e no Executivo, quer fosse, em última instância,<br />

no próprio Judiciário que, localmente, sempre sofreu a forte influência, quando não a<br />

pressão direta, e nem sempre discreta 178 , <strong>da</strong>s oligarquias, geralmente incrusta<strong>da</strong>s nas<br />

burocracias <strong>da</strong> Administração Pública, sobremaneira poderosas ao nível local. Isso não<br />

quer significar, linearmente, que as oligarquias dispusessem <strong>da</strong> plena direção e controle<br />

do aparelho administrativo do Estado, mas que, as medi<strong>da</strong>s adota<strong>da</strong>s, política,<br />

administrativa e judicialmente, raramente feriam os seus interesses, muito<br />

particularmente quando se tratavam de temas referentes a apropriação de terras<br />

antes do século XIX.” Nessa conjuntura, segundo Passos Guimarães, e neste sentido concor<strong>da</strong>-se aqui com a sua<br />

argumentação, “a aristocracia rural portuguesa, no Brasil colonial, e a ‘nobreza’ rural brasileira, logo depois<br />

<strong>da</strong> independência, não precisavam recorrer a esses artifícios do sistema mercantil, porque no seu tempo<br />

a terra era ain<strong>da</strong> um privilégio (...) e não uma mercadoria. Bastava impedir, por meios jurídicos, as<br />

doações e, por meios violentos, as ocupações, àqueles que, ao arbítrio dos grandes senhores<br />

dominantes na Metrópole ou no Estado nacional nascente, não possuíssem dotes de nobreza ou<br />

fartura de dinheiro para merecer sesmarias.” (Id. Ibidem, p. 111).<br />

178 A influência <strong>da</strong>s oligarquias, sobretudo ao nível local, é expressa nos seguintes termos por Raymundo Faoro: “O<br />

coronel tem capangas, elementos sem vontade própria, como os têm os subcoronéis (...). Em regra o<br />

compadrio une os aderentes ao chefe, enquanto goza <strong>da</strong> confiança do grupo dirigente estadual e<br />

enquanto presta favores, com o domínio do mecanismo policial, muitas vezes do promotor público, não<br />

raro expresso na boa vontade do juiz de direito. As autori<strong>da</strong>des estaduais - inclusive o promotor<br />

público e o juiz de direito - são removi<strong>da</strong>s, se em conflito com o coronel. Até a supressão <strong>da</strong><br />

comarca, seu desmembramento, elevação <strong>da</strong> entrância são expedientes hábeis para arre<strong>da</strong>r a<br />

autori<strong>da</strong>de incômo<strong>da</strong>.” (FAORO, op. cit. p. 632. Negritos nossos).<br />

103


devolutas e sobretudo, quando contenciosos 179 sobre a terra envolviam pequenos<br />

posseiros e indígenas. Esses processos estão na origem <strong>da</strong> consoli<strong>da</strong>ção “legal” do<br />

imenso domínio que os latifúndios, efetivamente, sempre detiveram no Brasil. Daí a<br />

necessi<strong>da</strong>de de se questionar a sua legitimi<strong>da</strong>de.<br />

Cabe relembrar, a essa altura, que os debates parlamentares que antecederam a<br />

aprovação <strong>da</strong> Lei 601 giraram, exatamente sobre questões desta ordem, que já se<br />

mostravam pertinentes à conjuntura agrária brasileira <strong>da</strong>quela época, como foi<br />

amplamente discutido no capítulo anterior.<br />

Os fazendeiros do Vale do Paraíba, por exemplo, detinham, nessa época dos<br />

debates sobre a Lei de Terras, a liderança <strong>da</strong> produção de café, beneficiando-se, por um<br />

lado, <strong>da</strong> revali<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s sesmarias, que assegurava suas proprie<strong>da</strong>des; e, por outro lado,<br />

pelo fato de disporem <strong>da</strong> mão-de-obra escrava, que já possuíam, assim como, do fato<br />

<strong>da</strong>s suas lavouras de café, já instala<strong>da</strong>s, se encontrarem em plena fase de maturação<br />

(FAORO, op. cit.). Esta liderança <strong>da</strong> cafeicultura fluminense apenas começaria a ser<br />

ameaça<strong>da</strong> pela cafeicultura paulista, sobretudo do chamado “Oeste Paulista” e<br />

adjacências, a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1860, quando perde aquela vantagem comparativa<br />

inicial, entretanto, por outras razões 180 que não as especificamente liga<strong>da</strong>s à proprie<strong>da</strong>de<br />

territorial.<br />

Pode-se então concluir que a maior oposição posta a Lei 601 de 1850 devia-se<br />

ao fato de ser ela uma lei de proprie<strong>da</strong>de. Neste sentido e contexto, uma lei que indicava<br />

a intenção do Governo em retirar às oligarquias rurais, pelo menos formalmente,<br />

juridicamente, o controle absoluto e direto, que exerciam sobre as terras. Logo, também,<br />

boa parcela do seu poder político. Referia-se ao fato do Estado pretender imiscuir-se, do<br />

ponto de vista <strong>da</strong>s oligarquias latifundiárias, em assuntos específicos de esfera priva<strong>da</strong>,<br />

no âmbito <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial 181 . Daí as freqüentes acusações de “estelionato<br />

público” e as ameaças, nem sempre vela<strong>da</strong>s, de violência social e política, ou mesmo de<br />

179 Ain<strong>da</strong> Faoro faz uma referência a um dito popular dos sertões “quem tem padrinho não morre pagão”, que dá<br />

bem a medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mediação dos poderosos locais nas relações com as situações correntes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

quotidiana do ci<strong>da</strong>dão comum. Continua ele, “li<strong>da</strong>r com a polícia, com a justiça, com os cobradores de<br />

impostos, obter uma estra<strong>da</strong>, pleitear uma ponte, são tarefas que exigem a presença de quem possa<br />

recomen<strong>da</strong>r o pobre ci<strong>da</strong>dão (...). Esse benfeitor, de seu lado, detentor de conexões, tem, à medi<strong>da</strong> que<br />

a socie<strong>da</strong>de se torna complexa, um corpo de assessores: o médico, o advogado, o padre, o coletor.<br />

Os auxiliares, em breve, na medi<strong>da</strong> em que se institucionalizam e se homogeneizam os vínculos legais e<br />

costumeiros, disputarão o lugar do coronel” (op. cit., p. 633. Grifos nossos).<br />

180 Referiam-se, especialmente, ao esgotamento <strong>da</strong>s terras, ao retar<strong>da</strong>mento na substituição do trabalho escravo, que<br />

desde 1850 já <strong>da</strong>va indicações de ter o seu fluxo cortado, e, conseqüentemente, aumentado o seu peso relativo nos<br />

custo de produção, sobretudo pela depreciação do capital imobilizado em escravos - pelo seu desgaste físico e<br />

envelhecimento - que causavam prejuízos, pelo fato corretamente registrado por Francisco de Oliveira, de situar-se na<br />

categoria do Capital Constante (In.: OLIVEIRA: 1984, Capítulo 1); junte-se a esses problemas o endivi<strong>da</strong>mento com<br />

os comissários e, sobretudo, com os Bancos que ganham impulso, na época, incentivados pela nova conjuntura de<br />

ampliação <strong>da</strong> produção e produtivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> cafeicultura, sobretudo nas zonas novas e fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s no trabalho livre e na<br />

incorporação do progresso técnico, que, por outro lado, passaram a exigir recursos para o financiamento <strong>da</strong> produção<br />

que, do ponto de vista financeiro agregado, dificilmente podiam ser cobertos pelas ações priva<strong>da</strong>s de comissários.<br />

Apesar do imposto territorial ter sido eliminado pelo Senado (ver Murilo de Carvalho, op. cit., p. 50). Permanecia<br />

apenas o imposto de chancelaria, que correspondia a um imposto de transmissão de bens imobiliários.<br />

181 Que era assegura<strong>da</strong> pela Constituição de 1824. Daí a acusação de inconstitucionali<strong>da</strong>de imputa<strong>da</strong> a Lei 601/1850.<br />

Ver a respeito, CARVALHO (op. cit., p. 42 - 44 ).<br />

104


convulsão nacional 182 , caso a Lei de Terras fosse posta efetivamente em prática. Nesse<br />

sentido, pode-se imputar esse viés “ultra-liberal” do latifúndio à ampliação <strong>da</strong><br />

autonomia local, célere, no período do "império <strong>da</strong>s posses" e, de certa forma e até certo<br />

ponto, consoli<strong>da</strong><strong>da</strong>s no poder político, que efetiva e realmente, passaram a deter as<br />

oligarquias no período regencial. Poder este, sobretudo, reforçado pela criação <strong>da</strong><br />

Guar<strong>da</strong> Nacional e, até certo ponto, pela desmobilização do Exército, na conjuntura <strong>da</strong><br />

transição para a Independência e consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de e do Estado Nacional.<br />

Nesse contexto, e nesta conjuntura específica, a centralização promovi<strong>da</strong> com a<br />

ascensão do Imperador Pedro II e a efetiva e vigorosa instituição do Poder Moderador, e<br />

do Conselho de Estado, efetivamente soavam, às oligarquias, como um forte golpe nas<br />

suas pretensões de autonomia local.<br />

Efetivamente tratava-se de uma oposição política 183 , a que era contraposta à Lei<br />

de Terras de 1850. Tratava-se de assegurar, sobre as bases <strong>da</strong> manutenção do domínio<br />

territorial, o poder local dos latifundiários, elevados, desde o período regencial, à<br />

condição de coronéis <strong>da</strong> Guar<strong>da</strong> Nacional, medi<strong>da</strong> esta que eqüivalia, na prática e<br />

politicamente, à institucionalização e, portanto, ao reconhecimento, pelo Estado, do<br />

poder efetivo destas oligarquias. Nessa época consolidou-se o seu poder e influência<br />

políticos que, de resto, sobreviverão no período Republicano. Neste período, esse poder,<br />

de fato oligárquico em suas origens, desenvolve-se, sobretudo com base nos<br />

permanentes arranjos e alianças, que se materializam, apesar <strong>da</strong>s diferenças e<br />

contradições que efetivamente, sempre existiram, entre famílias e grupos de potentados<br />

locais, conflitos estes que geralmente giravam em torno do controle sobre a proprie<strong>da</strong>de<br />

territorial e a consecução de favores econômicos, políticos e financeiros do Governo.<br />

A oposição à Lei 601 fica evidencia<strong>da</strong> quase que imediatamente após a sua<br />

regulamentação, em 1854. Mesmo antes de sua aprovação, durante os debates<br />

parlamentares, atribuía-se à radicali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> Lei, o sentido de um forte indicador<br />

de que a mesma não seria implementa<strong>da</strong>, como registra Murilo de Carvalho 184 , suspeita,<br />

aliás, que se mostrou plausível. A respeito, especificamente, <strong>da</strong> oposição concreta à<br />

implementação <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s práticas preconiza<strong>da</strong>s na Lei 601 e seu Regulamento,<br />

afirma Murilo de Carvalho:<br />

“A leitura dos Relatórios dos Ministros do Império (até 1860) e <strong>da</strong><br />

Agricultura, Comércio e Obras Públicas (de 1860 a 1889) são um<br />

contínuo reafirmar de frustrações dos ministros e dos funcionários<br />

<strong>da</strong>s repartições encarrega<strong>da</strong>s de implementar a lei, frente aos<br />

obstáculos de várias naturezas que se lhes apresentavam. No<br />

que se refere especificamente a terras, os pontos mais<br />

importantes para implementação eram o registro paroquial, a<br />

182 Idem. p. 43.<br />

183 No sentido captado por Joe Foweraker ao firmar que “a história legal é também uma história política,<br />

enquanto resultado <strong>da</strong>s iniciativas do Estado para exercer o controle sobre a terra.” (FOWERAKER, op.<br />

cit.: 124).<br />

184 Op. cit., p. 45.<br />

105


separação e medição <strong>da</strong>s terras públicas, a revali<strong>da</strong>ção de<br />

sesmarias e a legitimação de posses com a respectiva medição e<br />

demarcação.” 185<br />

Ou seja, a oposição dirigia-se ao cerne <strong>da</strong> Lei 601: a problemática <strong>da</strong><br />

legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial rural. Como foi analisado no capítulo anterior, os<br />

senhores de terras recusaram-se contundentemente, por um lado, a regularizar e registrar<br />

as áreas que possuíam; e, por outro lado, tentaram impedir, de forma sistemática e<br />

eficiente, a discriminação <strong>da</strong>s terras devolutas. Isto significava, efetivamente, o<br />

impedimento à institucionalização <strong>da</strong> estrutura fundiária, na forma jurídica exigi<strong>da</strong> pela<br />

nova conjuntura econômica, social e política do país. A contraparti<strong>da</strong> desse fato,<br />

entretanto, para os latifundiários, seria que a maioria <strong>da</strong>s terras possuí<strong>da</strong>s, por esta<br />

mesma razão, também permaneciam ilegítimas.<br />

As terras devolutas, desconheci<strong>da</strong>s pelo Estado, mas evidentemente, muito bem<br />

conheci<strong>da</strong>s pelas oligarquias locais 186 , continuaram, entretanto, à mercê <strong>da</strong> ocupação<br />

desordena<strong>da</strong>, mas <strong>da</strong> legitimação privilegia<strong>da</strong>. Assim, ao perpetuarem a desorganização<br />

fundiária, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na incerteza quanto ao domínio sobre o que seriam terras públicas ou<br />

priva<strong>da</strong>s, ficavam, na prática, assegura<strong>da</strong>s, as condições efetivas para a perpetuação de<br />

poder oligárquico, sobretudo ao nível local. E por meio de alianças e outras formas de<br />

articulações políticas, que sistematicamente sempre foram celebra<strong>da</strong>s entre as<br />

oligarquias, até certo ponto, o poder e influência configurados nelas, se estendiam ao<br />

nível provincial e, até mesmo, em determina<strong>da</strong>s conjunturas, ao Governo central.<br />

A desorganização fundiária, que permaneceu no rastro <strong>da</strong> Política de Terras <strong>da</strong><br />

Monarquia, seria um dos problemas mais graves a ser enfrentado pelos Governos<br />

republicanos. A alternativa à transferência <strong>da</strong> gestão dessa questão para a alça<strong>da</strong> dos<br />

Estados <strong>da</strong> Federação, consagra<strong>da</strong> na Constituição Republicana de 1891, como se verá<br />

neste capítulo, eqüivalia, mais uma vez, a colocar to<strong>da</strong>s as terras do país sob arbítrio <strong>da</strong>s<br />

forças oligárquicas 187 , fortemente arraiga<strong>da</strong>s nas diferentes burocracias dos Estados.<br />

Como se argumentou no capítulo anterior, a falta de controle do Estado sobre as<br />

terras devolutas, eqüivalia, na prática, a uma ampla e total privatização de to<strong>da</strong>s as<br />

terras do país. Esse fato inviabilizava qualquer tentativa mais ampla de reorganização<br />

fundiária e, portanto, de atração de colonos. O Estado ficava, de fato, impedido de poder<br />

oferecer terras com “bom título”, para usar os termos de Wakefield, capazes de servir de<br />

atrativo à imigrantes estrangeiros, sobretudo quando se tratassem de imigrantes que<br />

desejassem investir, ou estabelecerem-se como pequenos produtores independentes na<br />

agricultura brasileira.<br />

185 Op. cit., p. 47.<br />

186 Pelos sertões do Brasil, to<strong>da</strong>s as pessoas, sobretudo aqueles que detinham o conhecimento <strong>da</strong> máquina do Estado,<br />

detinham uma noção mais ou menos clara <strong>da</strong>s terras devolutas existentes, as chama<strong>da</strong>s terras “sem dono”.<br />

187 Essa hipótese de que à transferência do domínio sobre as terras devolutas para a alça<strong>da</strong> dos Estados representou,<br />

objetivamente, a sua entrega ao controle <strong>da</strong>s oligarquias e defendi<strong>da</strong> pela maioria dos estudiosos desse tema. Ver,<br />

entre outros já citados neste estudo, WESTPHALEN (1968) e ALVES (1995).<br />

106


Nesse contexto, restou apenas a alternativa à atração de imigrantes pobres que<br />

deveriam servir nas grandes plantações, sobretudo na cafeicultura 188 .<br />

Efetivamente, diante de tais condições, não se pode falar em “colonização<br />

sistemática”, apesar <strong>da</strong>s críticas que possam ser feitas a este caminho <strong>da</strong> transição, nas<br />

colônias, para a economia de mercado, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> no trabalho livre. Entretanto, esse foi o<br />

produto mais visível do fracasso <strong>da</strong> política fundiária do Império, que se estenderia à<br />

República, e cujo vigor apenas seria abalado pelo movimento, historicamente registrado<br />

como Revolução de 1930.<br />

Apesar <strong>da</strong> tentativa ao nível institucional, para regulamentar a proprie<strong>da</strong>de<br />

territorial, pela via jurídica, sobretudo pela exigência do registro, os grandes detentores<br />

de terras, ao que tudo indica, tinham um outro projeto, que acabou por se impor.<br />

Tratava-se de um projeto que se situava, como parece evidente, para além (ou aquém)<br />

do “Estado de Direito”: o Estado inspirado nos princípios do liberalismo econômico e<br />

jurídico, e que supunha, como condição necessária à legitimação - sobretudo a <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de territorial - a alternativa à lei. Esta deveria ser assegura<strong>da</strong> pela via<br />

legislativa e, em última instância, judiciária. Este parecia ser o projeto que estava sendo<br />

proposto pelas elites governantes do Brasil e que, no que se referia à questão fundiária,<br />

foi vetado pelo latifúndio. Se se quisesse utilizar outra terminologia, poder-se-ia dizer<br />

que o caminho eleito pelos grandes detentores de terras, fun<strong>da</strong>va-se em um projeto que<br />

optara pela barbárie, em oposição a via civiliza<strong>da</strong>, pacífica, negocia<strong>da</strong>, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em<br />

princípios estabelecidos, ain<strong>da</strong> que formalmente, em Leis e regulamentos, social e<br />

politicamente sancionados.<br />

Dessa forma, pode-se levantar a hipótese de que, tendo-se em consideração o<br />

cenário que emergiu com o fracasso <strong>da</strong> Política Fundiária do Império, o ordenamento<br />

188 Verena Stolcke (1986) faz uma brilhante defesa do colonato, procurando demonstrar que esse sistema de<br />

exploração de trabalho "que os fazendeiros adotaram como substituto para o trabalho escravo não só provia<br />

as fazen<strong>da</strong>s cafeeiras em expansão de trabalhadores baratos e disciplinados, mas oferecia uma<br />

vantagem adicional sobre o trabalho assalariado. O colonato deu aos produtores de café uma flexibili<strong>da</strong>de<br />

diante <strong>da</strong>s flutuações de preços que de outra forma não teriam (...). Esse sistema permitia aos<br />

fazendeiros comprimir os salários em dinheiro nas épocas de baixa de preços do café, sem por em risco a<br />

oferta de mão-de-obra(...)." (loc. Cit., p.54). Com essa argumentação e apoiando-se em depoimentos <strong>da</strong> época,<br />

procura, aquela autora, defender a tese de que o colonato era a melhor alternativa para a cafeicultura, inclusive<br />

argumentando, na página 56, de que uma prova "de que o colonato não estava vinculado às condições<br />

especiais sob as quais o café penetrou e se expandiu no estado é a sua persistência praticamente<br />

inaltera<strong>da</strong> até o início dos anos 60."(Idem.; negritos nossos). Entretanto, se essa forma de exploração do<br />

trabalho era a mais adequa<strong>da</strong> àquela conjuntura, isso não quer significar que outras alternativas, como o assalariato<br />

não fossem possíveis ou mais eficientes. Prova apenas que, certamente, não o eram naquela conjuntura, onde o<br />

bloqueio ao acesso e à formação de pequenas proprie<strong>da</strong>des, impedia que se constituísse e desenvolvesse um mercado<br />

permanente de mão-de-obra livre, sobretudo <strong>da</strong> mão-de-obra excedente <strong>da</strong> produção familiar, ou de imigrantes pobres<br />

que, como supunha Wakefield, que, na expectativa de adquirir sua pequena proprie<strong>da</strong>de, sujeitassem-se ao árduo<br />

trabalho assalariado. Visto deste ângulo pode-se dizer que o colonato não foi a melhor, mas a única opção que restou<br />

à cafeicultura, diante do bloqueio à via <strong>da</strong> "colonização sistemática". Nesse sentido específico, pode-se concor<strong>da</strong>r<br />

com Verena Stolcke, no sentido de que era a alternativa mais eficiente naquela conjuntura, isto é, "no ponto". A<br />

hipótese de Verena, embora fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> em referências empíricas, tinha referência pontual. Essas observações têm<br />

apenas o objetivo de esclarecer o problema do desvio do projeto de colonização sistemática, tal como formulado por<br />

Wakefield. A discussão específica do problema levantado brilhantemente por Verena Stolcke fugiria aos objetivos<br />

deste trabalho. Para uma visão diferente desta problemática ver OLIVEIRA (1984, capítulo 1) e OHLWEILLER<br />

(S.d.).<br />

107


jurídico foi, em boa parte, colocado à margem do processo, ou subvertido 189 .<br />

Convertido em ordenador ou legitimador quase-passivo <strong>da</strong> des-ordem que se<br />

estabelecera: do “fato consumado”. Daí a permanente e persistente alternativa aos<br />

Registros, por suposto, de Direitos Reais sobre a terra, anteriormente constituídos. Daí a<br />

profusa e confusa legislação agro-fundiária brasileira, sempre eiva<strong>da</strong> por casuísmos e<br />

minudências, aparentemente irrelevantes, mas que eram fun<strong>da</strong>mentais a perpetuação <strong>da</strong><br />

estrutura fundiária enrijeci<strong>da</strong>. Daí as promulgações e revogações de Leis e decretos<br />

administrativos e simples portarias, que serão uma constante em todo o ordenamento<br />

jurídico-fundiário brasileiro, como está sendo analisado neste estudo. Daí as<br />

permanentes crises institucionais e de “governabili<strong>da</strong>de” e a impuni<strong>da</strong>de, que se<br />

tornaram ca<strong>da</strong> vez mais freqüentes no país, muito especialmente no período<br />

republicano.<br />

É no contexto deste tipo de análise e interpretação <strong>da</strong> eficácia legal, que se torna<br />

possível formular a hipótese teórica de que, ain<strong>da</strong> quando uma determina<strong>da</strong> lei, ou<br />

conjunto de leis, não tenham sido implementa<strong>da</strong>s, elas efetivamente têm seus efeitos<br />

assegurados ao nível <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de social, ain<strong>da</strong> que pela via <strong>da</strong> negação.<br />

É neste sentido que se faz, neste trabalho, referência às expressões “legitimação<br />

privilegia<strong>da</strong>” e “proprie<strong>da</strong>des juridicamente questionáveis”. A suposição que subjaz a<br />

estas expressões é de que há uma contradição em termos na política fundiária que nasce<br />

com a Lei 601 e que permeará de forma indelével, to<strong>da</strong>s as políticas ulteriores que<br />

tentaram trazer o ordenamento fundiário brasileiro para o campo <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de e do<br />

direito burguês, liberal. O ordenamento jurídico, na prática, acabou por configurar-se<br />

em oposição à própria ordem burguesa, supostamente estabeleci<strong>da</strong>, ou pretendi<strong>da</strong>. Uma<br />

ordem que consagrava - e ain<strong>da</strong> consagra - formalmente, os princípios <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de<br />

priva<strong>da</strong> absoluta (especialmente a fundiária), <strong>da</strong> isonomia legal ou <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de perante<br />

a lei; do respeito ao direito adquirido, ou legalmente assegurado, à coisa julga<strong>da</strong>, etc.<br />

Entretanto, na prática a maioria destes princípios fora subverti<strong>da</strong>, acabando por servir<br />

primordialmente para assegurar os privilégios de determinados grupos sociais<br />

fortemente estabelecidos 190 . É neste sentido que a luta para <strong>da</strong>r legitimi<strong>da</strong>de, do ponto<br />

de vista jurídico, a proprie<strong>da</strong>de fundiária no Brasil, será o grande desafio <strong>da</strong> República<br />

nascente, sobretudo após a promulgação <strong>da</strong> Constituição de 1891, como se analisará em<br />

segui<strong>da</strong>.<br />

189 Essa referência pode ser esclareci<strong>da</strong> com os seguintes comentários de Joe Foweraker: “A maior parte dos<br />

litígios sobre a terra não é entre indivíduos, mas entre grandes grupos de interesses econômicos e<br />

setores <strong>da</strong> administração pública (o Estado e suas várias manifestações burocráticas). Isso acontece não<br />

somente porque são esses os atores que dispõem de recursos para fazer frente às custas dos litígios,<br />

como também porque os julgamentos legais podem ser firmemente vistos como dependendo do<br />

quanto de pressão política possam os diferentes litigantes exercer sobre o sistema legal. Só o<br />

poder político pode garantir o controle legal <strong>da</strong> terra(...).” (Op. cit., pp. 123-124. Grifos nossos).<br />

190 Um exemplo de subversão <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de estabeleci<strong>da</strong> é <strong>da</strong>do pelo caso <strong>da</strong> luta pelas terras do Oeste do Paraná,<br />

que envolveu, após a exclusão dos pequenos posseiros <strong>da</strong> região do Contestado, um acirrado contencioso entre a<br />

União, o Governo do Paraná e as Companhias priva<strong>da</strong>s de ferrovias e colonização, que se prolongou por mais de<br />

cinco déca<strong>da</strong>: os privilégios criados nesse tempo foram, enfim, assegurados.<br />

108


2. Legislação e Proprie<strong>da</strong>de Territorial : Legitimação de Privilégios<br />

As crescentes dificul<strong>da</strong>des enfrenta<strong>da</strong>s pela implementação <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s<br />

propostas na Lei de Terras, já amplamente discuti<strong>da</strong>s, geraram, ain<strong>da</strong> no Império,<br />

algumas tentativas de reformulação <strong>da</strong> legislação de 1850. Objetivamente, segundo José<br />

Murilo de Carvalho, dois projetos, neste sentido, foram encaminhados, entretanto, sem<br />

êxito. Um deles, elaborado na gestão do Ministro <strong>da</strong> Agricultura de 1878, Sinimbu, foi,<br />

posteriormente, enviado ao Conselho de Estado, em 1880, por iniciativa do ministro<br />

Buarque de Macedo, que o sucedeu, tendo sido neste mesmo ano apresentado à Câmara,<br />

que o aprovou em primeira discussão, sem entretanto, ter continui<strong>da</strong>de. O outro Projeto<br />

foi apresentado, já nos últimos anos do Império, por Antônio Prado, tendo sido,<br />

igualmente, aprovado pela Câmara em 1886 e enviado ao Senado, onde sofreu solução<br />

de continui<strong>da</strong>de em face <strong>da</strong> proclamação <strong>da</strong> República 191 .<br />

A primeira medi<strong>da</strong> legislativa <strong>da</strong> República, no sentido de enfrentar os<br />

problemas her<strong>da</strong>dos do fracasso <strong>da</strong> política fundiária do Império 192 , particularmente no<br />

que se referia à legitimação <strong>da</strong>s posses, revali<strong>da</strong>ção de sesmarias e seus respectivos<br />

registros; e, sobretudo, à discriminação, arreca<strong>da</strong>ção e ven<strong>da</strong> <strong>da</strong>s terras devolutas do<br />

Estado, sobre as quais os processos de posse e ocupação aceleraram-se na segun<strong>da</strong><br />

metade do século XIX, apesar <strong>da</strong> proibição expressa na Lei 601, vem sob a forma do<br />

Decreto n o 451 B, de 31 de maio de 1890, seis meses após a Proclamação, que<br />

“estabelece o Registro e Transmissão de Imóveis pelo Sistema Torrens.”<br />

Tratava-se, em princípio, como fica evidente pela análise de conteúdo do<br />

referido Decreto, de uma tentativa do Governo, para enfrentar, pela via administrativa,<br />

dos registros, à desorganização fundiária que persistia. Particularmente, visava-se, por<br />

este meio, evitar o avanço <strong>da</strong>s posses sobre terras devolutas, utilizando-se de uma<br />

estratégia fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na garantia de proprie<strong>da</strong>de, que era ofereci<strong>da</strong> pelo Estado, para as<br />

terras que fossem, efetivamente, registra<strong>da</strong>s neste novo sistema. Este Decreto indicava a<br />

fragili<strong>da</strong>de e o fracasso <strong>da</strong>s formas de registros anteriores, sobretudo o paroquial, e<br />

representava uma alternativa legal e adminstrativa à substituição do registro de terras<br />

em poder de particulares.<br />

De resto, cabe recor<strong>da</strong>r, após a publicação do Regulamento de 1854, foram<br />

exigidos registros, apenas, <strong>da</strong>s sesmarias por revali<strong>da</strong>r e <strong>da</strong>s posses por legitimar;<br />

ficando isenta<strong>da</strong>s <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de registro to<strong>da</strong>s as demais terras possuí<strong>da</strong>s por título<br />

legítimo (artigos 22 e 23, do Decreto 1.318/1854). Em sendo assim, pode-se concluir<br />

que o problema a ser enfrentado era, efetivamente, o avanço <strong>da</strong>s posses sobre terras<br />

devolutas; bem como a continui<strong>da</strong>de, sem regularização nem legitimação, de terras<br />

191 Ver Murilo de Carvalho (op. cit., p. 50).<br />

192 Esta medi<strong>da</strong> legislativa, situa<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> na perspectiva de se enfrentar indiretamente o problema fundiário pela via<br />

dos Registros Públicos, antecede à promulgação <strong>da</strong> primeira Constituição Republicana, de 1891, que transferirá a<br />

administração <strong>da</strong> maior parte <strong>da</strong>s terras devolutas, para os Estados <strong>da</strong> Federação.<br />

109


possuí<strong>da</strong>s desde antes <strong>da</strong> Lei 601. Quanto as posses constituí<strong>da</strong>s após a Lei 601 eram<br />

efetivamente ilegítimas e ilegais, portanto nulas (artigos 1 o e 2 o <strong>da</strong> Lei 601/1850).<br />

Diante desta situação e <strong>da</strong> persistência <strong>da</strong>s práticas de apossamento ilegítimo de<br />

terras devolutas do Estado, que se agravaram na segun<strong>da</strong> metade do século XIX,<br />

sobretudo com a valorização <strong>da</strong>s terras e dos sensíveis prejuízos que esta situação<br />

causava à arreca<strong>da</strong>ção, além dos freqüentes conflitos que se vinham agudizando, o<br />

Governo tentará, mais uma vez, enfrentar o problema, ain<strong>da</strong> que pela via indireta dos<br />

registros. Virtualmente o Estado abandona, ou pelo menos, releva para um plano<br />

absolutamente secundário, a política de discriminação e arreca<strong>da</strong>ção de terras devolutas,<br />

contentado-se com medi<strong>da</strong>s específicas de colonização 193 e <strong>da</strong> indução aos registros de<br />

terras possuí<strong>da</strong>s, na expectativa de, por essa via, conseguir algum tipo de controle sobre<br />

as terras do Estado.<br />

O que é curioso, neste contexto, e parece merecer melhor atenção, é o fato do<br />

novo sistema de registros apresentar duas peculiari<strong>da</strong>des relevantes: A primeira é que se<br />

tratava de um registro facultativo, apesar <strong>da</strong>s evidentes vantagens que apresentava aos<br />

detentores de imóveis que optassem por esta forma de registro. A segun<strong>da</strong> refere-se ao<br />

fato de que o Registro Torrens era instituído de forma paralela e concomitante ao<br />

Registro Imobiliário existente, que passou a ser denominado de “Registro Comum”.<br />

Essa duplici<strong>da</strong>de de alternativas para registro de imóveis, sobretudo rurais,<br />

poderia <strong>da</strong>r, e parece ter <strong>da</strong>do, oportuni<strong>da</strong>de, a ver<strong>da</strong>deiros processos de expropriação<br />

por via registral. De grilagem especializa<strong>da</strong>. Isso porque, aos imóveis registrados<br />

neste novo sistema eram assegurados plenamente os direitos de proprie<strong>da</strong>de, logo, a<br />

proprie<strong>da</strong>de legalmente reconheci<strong>da</strong> com priori<strong>da</strong>de sobre quaisquer outras formas de<br />

direitos reais sobre a terra, (como, por exemplo, as posses mansas e pacíficas),<br />

ressalva<strong>da</strong>s apenas as hipóteses de fraudes no decorrer do próprio processo de registro<br />

no Sistema Torrens, como será analisado adiante.<br />

Eram admiti<strong>da</strong>s ações judiciais, tanto reivindicatórias quanto contestatórias,<br />

apenas quando tempestivas, sob pena de prescrição. Isto é, quaisquer ações ou oposição<br />

em relação à proprie<strong>da</strong>de do imóvel registrado no Sistema Torrens, deveriam ser<br />

propostas no decorrer do prazo, rigorosamente estabelecido na Lei ou pelo juiz para a<br />

sua propositura. Decorridos os prazos decadencial (do direito) e prescricional (para<br />

propositura <strong>da</strong>s ações) configurava-se a per<strong>da</strong> de todo e qualquer direito sobre o imóvel.<br />

Tupinambá Nascimento, esclarece a questão do Registro Torrens nos seguintes<br />

termos:<br />

“O sistema Torrens se baseia numa idéia simples. A depuração do título a<br />

registrar deve ser feita antes do registro, oportunizando-se a qualquer<br />

interessado obstaculizar seja o imóvel transcrito em nome de quem o está<br />

pretendendo. Mas essa oportuni<strong>da</strong>de de oposição deve ser executa<strong>da</strong><br />

dentro de um prazo previsto em lei. A não-oponibili<strong>da</strong>de tempestiva significa<br />

que aquele que poderia se opor precluiu deste direito, trazendo como<br />

193 Um estudo sistemático e competente sobre as políticas de colonização desenvolvi<strong>da</strong>s pelos Governos brasileiros<br />

desde a déca<strong>da</strong> de 1930 até 1984, foi realizado por José Vicente Tavares dos Santos (SANTOS, 1993).<br />

110


conseqüência jurídica o silêncio para todo sempre a respeito desta<br />

oposição. Em outras palavras, ao em vez de se permitir que após o registro,<br />

os interessados fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>mente o desfaçam, se obriga que os mesmos<br />

ou, de logo, no prazo que o juiz lhes dá, impugnem fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>mente o<br />

registro ou, pelo silêncio, tem-se como renunciado implicitamente o seu<br />

direito de oposição, precluindo para todo sempre qualquer direito de<br />

reclamação. 194 ”<br />

Não se trata, do ponto de vista defendido neste estudo, de se questionar a<br />

instituição do Sistema Torrens no que toca à sua relevância jurídica e administrativa,<br />

menos ain<strong>da</strong>, de questionar a sua eficácia enquanto um sistema rigoroso de Registro<br />

Público, capaz de contribuir efetivamente para a racionalização dos sistemas de<br />

registros de proprie<strong>da</strong>de, sobretudo rural, cujas imperfeições já foram até certo ponto,<br />

analisa<strong>da</strong>s. O problema reside em outro nível.<br />

Para além <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des experimenta<strong>da</strong>s na implementação dos sistemas de<br />

registros anteriores, - o que pode, em certo sentido, explicar o caráter facultativo do<br />

novo sistema - de fato, a possibili<strong>da</strong>de de utilizá-lo, não apenas como alternativo, mas<br />

como contraposto à presumíveis direitos assegurados pelas outras formas de registro -<br />

para não se falar no vasto número de posses mansas e pacíficas, sobretudo pequenas,<br />

sem registro algum - poderia erigir, assegurando, direitos novos sobre proprie<strong>da</strong>des ou<br />

posses mais antigas, ou não registra<strong>da</strong>s, ou ain<strong>da</strong>, que apenas tinham a presunção de<br />

direito assegura<strong>da</strong> pelas outras formas registrais. Exatamente nesse ponto está a<br />

distinção fun<strong>da</strong>mental que separa o Sistema Torrens, <strong>da</strong>s formas de Registros Públicos<br />

que lhe antecederam. Nos Registros comuns, havia apenas a “presunção do direito”.<br />

Como argumenta Pontes de Miran<strong>da</strong>,<br />

“presunção é menos que fé pública. Presunção por si só não protege o<br />

terceiro, porque a presunção se elimina, cancelando-se o registro, ou<br />

modificando-se, em virtude de retificação.” 195<br />

Ou seja, o registro comum de imóveis não assegura plenamente o direito sobre o<br />

imóvel, posto que pode ser anulado por erro, fraude, etc. Por outro lado, a negligência<br />

ou o desconhecimento do detentor do direito real, em relação às normas jurídicas que<br />

regulam determinados procedimentos de registro, podem ensejar registros viciados ou<br />

de má-fé, sobretudo se consoli<strong>da</strong>dos pela decadência dos prazos. Desconhecimento este,<br />

que, legalmente, não pode ser argüido em defesa 196 <strong>da</strong> parte eventualmente lesa<strong>da</strong>.<br />

Esta sempre foi uma grande porta aberta a grilagem especializa<strong>da</strong>, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> nas brechas<br />

abertas pela lei e que, como se verá nesta pesquisa, aperfeiçoou-se, na medi<strong>da</strong> em que<br />

os problemas fundiários se tornaram mais complexos e as terras mais valoriza<strong>da</strong>s. Essa<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de “legal” e especializa<strong>da</strong> de grilagem será ca<strong>da</strong> vez mais desenvolvi<strong>da</strong> com o<br />

194 NASCIMENTO, 1985, p. 104 (Itálicos de Nascimento; negritos nossos).<br />

195 PONTES DE MIRAN<strong>DA</strong> (op. cit., Tomo XI, p. 234).<br />

196 Artigo 3 o do Decreto-lei n o 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução do Código Civil Brasileiro,<br />

“ninguém se excusa de descumprir a lei, alegando que não a conhece.”(BRASIL. Presidência <strong>da</strong><br />

República. Rio de Janeiro: 1942).<br />

111


suporte de ver<strong>da</strong>deiras assessorias jurídicas, tornando-se, em si mesma, um forte<br />

obstáculo aos processos de regularização fundiária e de reforma agrária.<br />

Nestes casos configurar-se-ia o que aqui se está denominando de<br />

“expropriação 197 por via registral” que, como se tentará pôr em evidencia no decorrer<br />

deste estudo, sempre se constituiu em uma porta aberta à grilagem especializa<strong>da</strong>,<br />

promovi<strong>da</strong>, ca<strong>da</strong> vez mais, com apoio e assessoria jurídica qualifica<strong>da</strong>. Essa é uma<br />

hipótese que necessita ser explora<strong>da</strong> em estudos específicos.<br />

Pelo Decreto 451-B (artigos 46 a 48) era assegura<strong>da</strong> a possibili<strong>da</strong>de, de se opor<br />

ações contra os registros, entretanto, em prazos críticos, rigorosamente estabelecidos:<br />

“nunca menor de cinqüenta dias, nem maior que quatro meses, para a<br />

matrícula” (ou seja, para se opor ao registro) “se não houver oposição” (artigo 8 o ); e<br />

seis meses, para se opor sentença e man<strong>da</strong>do, ou seja, qualquer outra ação como as<br />

reivindicatórias. Afora esses prazos, apenas caberiam ações de indenização por per<strong>da</strong>s e<br />

<strong>da</strong>nos e, ain<strong>da</strong> assim, em face de quem se beneficiou de erros ou fraudes. Nunca contra<br />

o proprietário adquirente, que não poderia ser incomo<strong>da</strong>do em sua posse, como explicita<br />

o Decreto (artigo 20). Afora essas alternativas, só restava a opção à ações indenizatórias<br />

por per<strong>da</strong>s e <strong>da</strong>nos, como resta claro no artigo 76 do referido decreto:<br />

“Art. 76. Salvo o disposto no artigo antecedente, o indivíduo privado de um<br />

imóvel ou direito real, por erro ou omissão na matrícula ou fraude de terceiro,<br />

pode acionar por indenização o que do erro ou fraude se houver aproveitado.<br />

1 o Prescreverá esta ação em cinco anos, a contar <strong>da</strong> per<strong>da</strong> <strong>da</strong> posse e,<br />

para os incapazes, do dia em que cessar a incapaci<strong>da</strong>de.<br />

2 o O adquirente ou credor hipotecário de boa fé não podem ser perturbardos<br />

na posse, ain<strong>da</strong> quando o título do alienante haja sido matriculado<br />

fraudulentamente, ou tenha ocorrido erro na delimitação.” 198<br />

A tentativa de indução ao registro no novo sistema <strong>da</strong>s terras em domínio<br />

privado, pelos presumíveis proprietários, explícita nos diversos artigos do Decreto 451-<br />

B, por suposto, fun<strong>da</strong>dos nas vantagens representa<strong>da</strong>s pela ampla garantia de<br />

proprie<strong>da</strong>de, que efetivamente era assegura<strong>da</strong>, não deixava dúvi<strong>da</strong>s sobre os objetivos<br />

desta Legislação. Em primeiro lugar, disciplinar e regularizar as terras em poder de<br />

particulares, buscando minimizar, dessa forma, e pela via jurídica <strong>da</strong> garantia do<br />

registro, os conflitos, que se agudizavam, entre grandes fazendeiros e entre estes,<br />

pequenos sitiantes e o Estado. Em segundo lugar, buscava o Governo, pela via indireta<br />

197 Esse é um problema que sempre existiu na luta pela proprie<strong>da</strong>de no Brasil desde o período colonial. Por exemplo,<br />

a resolução de julho de 1822, acerca do pleito de um posseiro que foi atingido pela concessão de sesmaria dá uma<br />

idéia <strong>da</strong>s implicações deste problema. Entretanto, será após a Constituição de 1891 que esse tipo de ação trará<br />

maiores conseqüências. Os caso <strong>da</strong> CITLA/LUPION, no Paraná, do Grupo Laranjeiras, no Mato Grosso, são apenas<br />

dois exemplos <strong>da</strong> gravi<strong>da</strong>de dessa problemática. A esse respeito, como comenta Foweraker, “evidentemente o<br />

sistema legal é usado e abusado na prolonga<strong>da</strong> luta pelo controle <strong>da</strong> terra; e as pressões exerci<strong>da</strong>s sobre<br />

o sistema legal, tanto por capitais privados como por setores do Estado, fazem dele um instrumento<br />

parcial do controle político, ao invés de um instrumento imparcial de justiça.” (op cit., p. 145).<br />

198 Decreto 451-B de 31 de maio de 1890. In.: MEAF (op. cit. Grifos nossos)<br />

112


do registro <strong>da</strong>s terras em domínio privado, proceder à discriminação ou o controle do<br />

acesso às terras públicas, devolutas - por exclusão <strong>da</strong>quelas.<br />

Dessa forma, e na medi<strong>da</strong> em que os registros fossem implementados, e gerando<br />

as cadeias dominiais, o Estado teria, teoricamente, a possibili<strong>da</strong>de de, regulariza<strong>da</strong> a<br />

situação fundiária, poder assumir efetivamente o controle do processo de privatização<br />

<strong>da</strong>s terras do seu domínio. Essa segun<strong>da</strong> alternativa, em especial, foi inócua, como os<br />

resultados <strong>da</strong> situação <strong>da</strong>s terras devolutas o demonstrou.<br />

O artigo terceiro do Decreto em questão faz referência explícita à vantagem<br />

maior ofereci<strong>da</strong> pelo novo sistema de registro, ou seja, a plena e “irrefragável” garantia<br />

de proprie<strong>da</strong>de do imóvel matriculado. Por outro lado, provavelmente em face <strong>da</strong>s<br />

dificul<strong>da</strong>des já enfrenta<strong>da</strong>s no âmbito <strong>da</strong> execução dos registros paroquiais, o seu artigo<br />

primeiro estabelecia como facultativo o registro de terras havi<strong>da</strong>s por transações entre<br />

particulares, ao colocá-lo nos seguintes termos:<br />

“Art. 1 o Todo imóvel, suceptível de hipoteca e ônus real pode ser inscrito sob o<br />

regime deste decreto.<br />

“As terras públicas, porém, aliena<strong>da</strong>s depois <strong>da</strong> publicação dele serão sempre<br />

submeti<strong>da</strong>s a esse regime, (sob) pena de nuli<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alienação, sendo o preço<br />

restituído pelo Governo, com dedução de 25% 199 .”<br />

Como se observou acima, o artigo 3 o do Decreto em questão reforça as garantias<br />

do registro ao estabelecer que “todo documento exibido como ato do oficial do<br />

registro e por ele assinado ou por seu aju<strong>da</strong>nte, será recebido como prova<br />

irrefragável” de proprie<strong>da</strong>de, salvo o disposto nos parágrafos 2 o e 3 o do artigo 75. Estes<br />

parágrafos referem-se aos atos ilícitos, e que dão ensejo a anulação dos títulos, após<br />

trânsito em julgado, nos termos dos artigos 70 a 73, que se referem, respectivamente: (a)<br />

à fraudes no processo de registro ou transcrições; (b) negligência, “má-fé” ou erro,<br />

cometidos pelos oficiais de registro; (c) falsificação dos atos de registro e, finalmente,<br />

(d) detenção, não autoriza<strong>da</strong>, de título alheio.<br />

Todos esses atos encontram-se classificados no Capítulo <strong>da</strong>s “Penali<strong>da</strong>des” e<br />

implicam, respectivamente, nas penas de estelionato (art. 70), de multa e indenização<br />

por per<strong>da</strong>s e <strong>da</strong>nos além <strong>da</strong>s penas previstas no “Código Criminal” (art. 71), falsi<strong>da</strong>de<br />

ideológica (art.72) e penas estabeci<strong>da</strong>s para o crime de furto, para o detentor de título<br />

alheio (art.73).<br />

O rigor, formalmente, estabelecido no Decreto 451-B oferece o sentido <strong>da</strong> relevância<br />

atribuí<strong>da</strong>, pelo legislador, à necessi<strong>da</strong>de de tornar rígidos os procedimentos de<br />

legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de. Independentemente de se questionar a eficácia ou não, ao<br />

nível <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> aplicação destes preceitos, há que se ter em consideração que este<br />

Decreto abria, efetivamente, a possibili<strong>da</strong>de para se tentar enfrentar com alguma<br />

possibili<strong>da</strong>de de êxito, as irregulari<strong>da</strong>des existentes, muito especialmente as fraudes.<br />

Mas, com a mesma veemência, abria as portas a apropriação ou expropriação por via<br />

199 Idem., p. 475.( Grifo nosso).<br />

113


egistral e a grilagem especializa<strong>da</strong>, como se referiu acima. Joe Foweraker, refere-se a<br />

esta questão ao analisar o período que se seguiu à promulgação <strong>da</strong> Constituição de<br />

1891, quando a gestão <strong>da</strong>s terras públicas passam para os Estados. Segundo ele,<br />

“a mu<strong>da</strong>nça no controle <strong>da</strong>s terras devolutas favoreceu mais uma vez a<br />

concessão de terras para companhias priva<strong>da</strong>s e para o capital particular. Esta<br />

circunstância, mais que qualquer outra, marcou o início <strong>da</strong> luta legal pela terra<br />

no Brasil.” 200<br />

Cabe lembrar que, desde a promulgação do Decreto em análise, a ven<strong>da</strong> de<br />

terras públicas implicava, necessariamente, seu registro pelo Sistema Torrens, com<br />

to<strong>da</strong>s as garantias cita<strong>da</strong>s. Como era freqüente o Estado alienar terras quase sempre já<br />

ocupa<strong>da</strong>s por posses ou por pequenas proprie<strong>da</strong>des legítimas, estes posseiros e<br />

proprietários, necessariamente tornavam-se passíveis de despejo. É nessa conjuntura<br />

que uma<br />

“(...)legião de advogados ambiciosos, mais o longo desenrolar <strong>da</strong>s disputas<br />

legais que ‘progridem’ sucessivamente através de uma pirâmide de injustiça,<br />

compreendendo os diferentes tribunais, desencorajam e desqualificam (...)<br />

mesmo os indivíduos mais poderosos.” 201<br />

Portanto, junto ao rigor deste do Decreto, talvez tivesse sido oportuno o<br />

estabelecimento de salvaguar<strong>da</strong>s legais, que assegurassem, contra a má-fé, e a fraude<br />

especializa<strong>da</strong>, os direitos reais de uma vastidão de proprie<strong>da</strong>des sem registro,<br />

especialmente, de pequenas posses, espalha<strong>da</strong>s pelo território brasileiro. Ao contrário<br />

disso, e esse fato em si mesmo já mereceria estudos especializados, o Decreto 451-B,<br />

limita-se, rigi<strong>da</strong>mente, a assegurar a proprie<strong>da</strong>de em favor de quem detém o registro,<br />

ain<strong>da</strong> quando este tenha origem vicia<strong>da</strong> ou mesmo fraudulenta (artigo 76, parágrafo 2 o ).<br />

E possível contra argüir, qualificando estas observações de meta jurídicas, que,<br />

efetivamente, são. Apesar disto, pode-se dizer que o parágrafo 2 o do artigo 76 legitima,<br />

no caso <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária, o furto e a receptação de terras. Como é sabido, o<br />

furto e a receptação de produtos ou coisas de origem ilegal sempre se constituíram em<br />

crimes nos termos dos Códigos Criminal e Penal brasileiros. Portanto, o tratamento<br />

distinto <strong>da</strong>do a esses delitos quando se referem à proprie<strong>da</strong>de territorial, configura<br />

efetivamente um privilégio e trata-se, nesse sentido, de um assunto que, no mínimo,<br />

mereceria análise especializa<strong>da</strong>.<br />

Por outro lado, ao estabelecer que as alienações de terras públicas teriam,<br />

necessariamente, que sujeitar-se ao registro Torrens, abria esta regulamentação,<br />

igualmente, a perspectiva para se racionalizar e, em certo sentido, tentar por termo, às<br />

fraudes nos negócios com as terras do Estado 202 , pelo menos pelas vias administrativa<br />

ou judiciária. Quer dizer, a partir desse momento, as fraudes eventual ou efetivamente<br />

200 FOWERAKER, op. cit., 123.<br />

201 Id. Ibidem.<br />

202 Convém lembrar que este Decreto é anterior à Constituição de 1891, que transferiu para os Estados a<br />

competência sobre as terras devolutas em seus territórios, o que, certamente, iria dificultar a gestão <strong>da</strong>s terras<br />

públicas, como se verá adiante.<br />

114


cometi<strong>da</strong>s, assim como as irregulari<strong>da</strong>des, colocavam-se à margem <strong>da</strong> lei. Tornando,<br />

portanto, nulas, as alienações de terras devolutas que não fossem registra<strong>da</strong>s no novo<br />

sistema, inclusive, prevendo o retorno <strong>da</strong>s terras ao Estado mediante restituição de<br />

apenas 75% do valor recebido, ao adquirente infrator (art.1 o , Decreto 451-B).<br />

Entretanto, ao que tudo indica, este artigo foi efetivamente negligenciado. Não há<br />

notícias de nenhuma devolução de terras ao Estado com a dedução de 25% prevista<br />

naquele artigo. Aqui, como se vê, mais uma vez se configura o direito do privilégio,<br />

neste caso, pelo não cumprimento <strong>da</strong>s exigências estabeleci<strong>da</strong>s formalmente 203 .<br />

Quanto ao registro <strong>da</strong>s terras em domínio privado, haviam as exigência<br />

explicita<strong>da</strong>s nos artigos 7 o a 9 o referentes à instalação do processo de Registro:<br />

“Art. 7 o O requerimento virá instruído com os títulos de proprie<strong>da</strong>de, e<br />

quaisquer atos que a modifiquem, ou limitem, um memorial indicativo de todos<br />

os seus encargos, no qual se designarão os nomes e residências dos<br />

interessados, ocupantes e confrontantes, e, sendo rural o imóvel, a planta<br />

dele.”<br />

Assim, pode-se supor, tornava-se problemático e, no limite, profun<strong>da</strong>mente<br />

dificultado, o registro fraudulento ou viciado, por exemplo, de terras sobre as quais não<br />

se dispusessem de alguma documentação. O que não quer dizer que houvesse a garantia<br />

efetiva de que tais fraudes e delitos não ocorreriam, ou que não tenham ocorrido. Esta<br />

hipótese, aliás, é presumi<strong>da</strong> no texto do próprio Decreto, a julgar pelas penali<strong>da</strong>des<br />

previstas e caracteriza<strong>da</strong>s nos artigos 70 a 73 indicados acima. O maior problema,<br />

entretanto, continuava a persistir na rigidez dos prazos prescricionais e decadenciais,<br />

que poderiam ser, com a aju<strong>da</strong> e habili<strong>da</strong>de de advogados e conivência de Oficiais de<br />

Registros, utilizados para legitimar situações duvidosas e mesmo fraudulentas.<br />

Entretanto, como será visto adiante, não houve como impedir, após a Constituição de<br />

1891, que vários Estados alienassem terras, supostamente do seu domínio, e<br />

fornecessem os respectivos registros, sem contudo, respeitarem sequer os próprios <strong>da</strong><br />

União, menos ain<strong>da</strong> as posses (legítimas ou legitimáveis) efetivamente existentes nas<br />

áreas que privatizavam, evidentemente, de forma ilegítima, posto que, neste caso se<br />

tratavam de terras que não pertenciam ao patrimônio estadual. Entretanto, isto não<br />

impediu a expulsão e, muitas vezes, como no Paraná, Pará e Mato Grosso, para ficar só<br />

nesses casos, a violência direta e o massacre de indígenas, pequenos proprietários e<br />

posseiros que secularmente viviam nas áreas.<br />

No que toca ao formalismo exigido para a instalação do processo de registro,<br />

que, de resto, gerava o pleno direito sobre o imóvel, e sobre o qual, inclusive, era<br />

assegurado que “nenhuma ação reivindicatória será recebi<strong>da</strong> contra o proprietário<br />

do imóvel matriculado” (artigo 75) sendo:<br />

203 No imaginário popular brasileiro há inclusive, uma expressão que traduz exatamente essa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de<br />

privilégio: “Aos amigos tudo. Aos inimigos a lei” ou “aos amigos tudo, aos inimigos o rigor <strong>da</strong> lei”; e uma outra, que<br />

traduz a dimensão mais complexa desse fenômeno, que diz: “man<strong>da</strong> que pode, obedece quem tem juízo”. Neste<br />

último caso ficando claramente expresso o fato do poder direto de vigiar e punir.<br />

115


“a exibição judicial do título ou outro ato de registro, (...) obstáculo absoluto a<br />

qualquer litígio contra o conteúdo de tais documentos e contra a pessoa nele<br />

designa<strong>da</strong>.” (artigo 75; 1 o ).<br />

Ressalvados os casos de fraudes e erros de registro, já mencionados, pode-se<br />

afirmar que se tratava de um instrumento efetivo, no sentido de possibilitar a<br />

constituição do direito de proprie<strong>da</strong>de e, em certo sentido, a contenção de determinados<br />

abusos na área de legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, especialmente rural.<br />

Tratava-se de um formalismo, em tese, rigoroso. Neste sentido, portanto, apenas<br />

podendo ser burlado por ato deliberado de fraude, logo, por dolo. Apesar disto, era<br />

admitido o ato culposo, “involuntário” do oficial de registro ou de seus prepostos,<br />

especialmente argüidos pelos advogados de defesa de possíveis frau<strong>da</strong>dores e falsários.<br />

Por outro lado, como as questões judiciais, especialmente os contenciosos, são<br />

dispendiosos, profun<strong>da</strong>mente morosos e de resultados imprevisíveis, havia,<br />

especialmente para aqueles que conheciam os meandros do Judiciário e <strong>da</strong> burocracia<br />

Pública, a presunção de que dificilmente tais ações seriam propostas, especialmente<br />

quando se tratassem de pequenos proprietários e, sobretudo de indígenas e posseiros.<br />

Estes, aliás, uma vez despejados ou expulsos de suas posses, jamais teriam como fazer<br />

prova delas em juízo. Tudo conspirava, portanto, contra a massa dos pobres do campo.<br />

Feitas essas ressalvas, há que se admitir que o Registro Torrens se configurava<br />

em um instrumento bastante atraente, e certamente eficaz, para aqueles que<br />

efetivamente possuíssem terras legítimas ou passíveis de legitimação. Entretanto, isto<br />

não excluía a má-fé de outros. É neste contexto que os prazos prescricionais e<br />

decadenciais funcionam como uma faca de dois gumes. Poderiam ser, <strong>da</strong> mesma forma,<br />

utilizados por pretendentes de má-fé, especuladores e grileiros especializados, que, de<br />

posse do conhecimento <strong>da</strong>s alternativas jurídicas e dos prazos legais, associados ao<br />

conhecimento <strong>da</strong> existência de terras devolutas ou ain<strong>da</strong> não registra<strong>da</strong>s, ou fragilmente<br />

assegura<strong>da</strong>s por registros, como o paroquial, para se apressarem em requerer a matrícula<br />

de imóveis, sob o novo Sistema e, por esse meio obter a proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra. Neste<br />

caso, decorridos os prazos legais e não havendo contestação, assegurariam em seu<br />

benefício o direito sobre a proprie<strong>da</strong>de.<br />

Essa era a outra alternativa assegura<strong>da</strong> pelo Decreto 465-B. Esse fenômeno foi<br />

muito comum na aquisição de terras devolutas aos Estados. O pretendente ou requeria<br />

ou candi<strong>da</strong>tava-se a aquisição <strong>da</strong> suposta terra devoluta, aos órgãos próprios dos<br />

Estados e, feita a compra, e não havendo oposição, recebiam os títulos e imitiam-se na<br />

posse. Sucede que os Estados raramente cumpriam as exigências legais de verificar se<br />

se tratavam, de fato, de terras devolutas, isto é, livres 204 . Sempre existiram posseiros<br />

ou indígenas na maioria dessas áreas que, por desconhecerem os procedimentos que<br />

estavam sendo adotados, eram surpreendidos pelo “proprietário” <strong>da</strong>s terras que<br />

ocupavam, já munidos dos respectivos títulos “legítimos”.<br />

204 A este respeito ver o capítulo 4, adiante.<br />

116


Tendo-se em consideração que muitos pequenos posseiros e até proprietários,<br />

espalhados pelos vastos interiores do país, não detinham o domínio desse tipo de<br />

conhecimento, posto que, nem sequer de outros recursos dispunham, muitos deles nem<br />

mesmo possuindo o seu próprio Registro Civil, - e portanto, muito menos o de suas<br />

posses ou proprie<strong>da</strong>des 205 - pode-se deduzir as implicações que essa alternativa abria à<br />

especulação imobiliária e a grilagem especializa<strong>da</strong>, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na expropriação por via<br />

dos registros. Este seria o lado problemático do Registro 4Torrens, amplamente<br />

agravado pelas “ven<strong>da</strong>s” de terras devolutas realiza<strong>da</strong>s pelos Estados <strong>da</strong> Federação após<br />

a Constituição de 1891.<br />

Além disso, há que se ter em consideração, que a burocracia e o formalismo<br />

jurídico exigidos para a instalação dos procedimentos de registro e, sobretudo, as<br />

dificul<strong>da</strong>des postas para a proposição de ações contra imóveis registrados de forma<br />

vicia<strong>da</strong>, de fato, excluíam a maioria <strong>da</strong> população, sobretudo os pequenos posseiros e<br />

proprietários. Além, é claro, <strong>da</strong> ameaça direta e nem sempre discreta dos latifundiários<br />

sobre a multidão de pequenos posseiros e indígenas.<br />

Em suma, mesmo admitindo que, formalmente, o Decreto 451-B tenha sido<br />

baixado pelo Governo Federal para tornar legalmente possível o combate às freqüentes<br />

e já conheci<strong>da</strong>s fraudes e irregulari<strong>da</strong>des no processo de regularização fundiária, tem-se,<br />

necessariamente que se admitir a hipótese de que o mesmo tenha sido utilizado, (e os<br />

fatos parecem indicar, com suficiência, que efetivamente o foi) por outro lado, ao nível<br />

concreto, e <strong>da</strong><strong>da</strong>s as limitações e dificul<strong>da</strong>des impostas, sobretudo aos pequenos<br />

posseiros, mas não apenas a estes, pelos motivos já apontados, para <strong>da</strong>r ensejo a<br />

ver<strong>da</strong>deiros processos de expropriação 206 e grilagem especializa<strong>da</strong> de terras.<br />

3. Constituição de 1891: União, Estados e Legitimação <strong>da</strong> Proprie<strong>da</strong>de<br />

A Proclamação <strong>da</strong> República trouxe uma profun<strong>da</strong> transformação na gestão <strong>da</strong><br />

política fundiária do Brasil. Com a promulgação <strong>da</strong> primeira Constituição Republicana,<br />

em 1891, e consagrado o Sistema Federativo, cinde-se a autonomia política e<br />

administrativa sobre a implementação <strong>da</strong> política de terras devolutas, entre União e<br />

Estados. Cinde-se, também, o processo legislativo sobre o acesso à proprie<strong>da</strong>de<br />

territorial rural no país.<br />

Para além de qualquer inferência de cunho puramente abstrato a respeito dessa<br />

opção política, o fato é que ela vinha de encontro a antigos anseios <strong>da</strong>s oligarquias<br />

205 Referem-se aqui ao fato comum no meio rural, sobretudo, de que muitas vezes as transações com pequenos lotes<br />

de terra eram feitas com base em instrumentos particulares, muitos deles sequer sendo registrados. Ver a respeito <strong>da</strong>s<br />

condições de registro de terra no Brasil, Nascimento (op. cit., pp.95-107), Octávio Ianni, Ditadura e Agricultura.<br />

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira (1979(a)).<br />

206 Como será estu<strong>da</strong>do nos próximos capítulos, essa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de expropriação de pequenos posseiros, no qual o<br />

suposto proprietário já aparece diante deles munido do respectivo título de proprie<strong>da</strong>de, tornou-se uma prática ca<strong>da</strong><br />

vez mais comum de grileiros especializados na medi<strong>da</strong> em que as terras se valorizavam e o desenvolvimento<br />

econômico passava a incluir novas terras ao circuito produtivo, especialmente com o avanço <strong>da</strong>s ferrovias, em finais<br />

do século XIX e, a partir dos anos de 1950, <strong>da</strong>s rodovias. No período do regime militar, esse fenômeno foi<br />

amplamente denunciado e documentado, como será demonstrado nos próximos capítulos.<br />

117


egionais, de consoli<strong>da</strong>ção e fortalecimento do poder ao nível local. Segundo a maioria<br />

dos estudiosos desta problemática, como será visto neste capítulo, este fato significava<br />

transferir formal e efetivamente para os Estados e, por essa via, para o controle <strong>da</strong>s<br />

oligarquias locais fortemente arraiga<strong>da</strong>s nestes, o poder de decisão sobre os problemas<br />

regionais, particularmente no que se referia ao controle do acesso <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de<br />

territorial.<br />

Na história política do Brasil, desde o período de consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong><br />

Independência, como foi visto no capítulo anterior, sempre que pairava alguma ameaça<br />

a desestabilizar o poder central, as oligarquias locais tentavam de forma veemente<br />

ampliar seus poderes ou conquistar novos espaços. Tal aconteceu após a abdicação de<br />

Pedro I, assumindo maior radicali<strong>da</strong>de no período regencial, e tal volta a acontecer,<br />

embora em uma conjuntura profun<strong>da</strong>mente distinta, com a que<strong>da</strong> <strong>da</strong> Monarquia. Se no<br />

período regencial foi possível a reação centralizadora com o Golpe <strong>da</strong> Maiori<strong>da</strong>de e a<br />

consoli<strong>da</strong>ção do II Reinado, tal não ocorrerá com a Proclamação <strong>da</strong> República, na qual<br />

as oligarquias, fortaleci<strong>da</strong>s com a importância <strong>da</strong> cafeicultura na balança exportadora,<br />

impõem o seu projeto, que apenas será ameaçado seriamente, com a Revolução de 1930<br />

e, ain<strong>da</strong> assim, resultando numa solução de compromisso, pela qual as oligarquias<br />

passam a dividir a hegemonia no bloco do poder, sobretudo ao nível federal, mas<br />

mantém virtualmente intocados os seus privilégios aos níveis locais e regionais,<br />

sobretudo no que se referia ao controle quase absoluto <strong>da</strong>s políticas de terra e agrícola.<br />

A alternativa federativa, nesse sentido, representou uma vitória <strong>da</strong>s oligarquias<br />

locais que, sempre que se instalava qualquer crise no bloco de poder, especialmente, ao<br />

nível central, aproveitavam-se para reforçar a sua autonomia política, sobretudo no que<br />

se referia aos processos de administração e controle <strong>da</strong>s terras devolutas e do acesso<br />

privilegiado às finanças do Estado.<br />

Foi assim na crise <strong>da</strong> transição para a Independência, quando o poder<br />

oligárquico local foi fortemente consoli<strong>da</strong>do, atingindo seu ápice político no período<br />

regencial. A reação centralizadora, com o chamado Golpe <strong>da</strong> Maiori<strong>da</strong>de, que<br />

representou o enfraquecimento, embora provisório, <strong>da</strong>s oligarquias locais em relação ao<br />

poder central, trouxe no seu bojo, como se viu no capítulo anterior, a tentativa de se<br />

promover o processo de regulação institucional do acesso à terra, com a promulgação <strong>da</strong><br />

Lei 601. Por outro lado, a resistência imposta ao nível <strong>da</strong> implementação desta Lei, na<br />

ver<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>va a indicação segura de que o poder e a influência <strong>da</strong>quelas oligarquias,<br />

entretanto, permaneciam amplamente arraigados.<br />

A crise que levou ao fim do Império, até certo ponto, representou uma dimensão<br />

relevante <strong>da</strong> resistência <strong>da</strong>s oligarquias contra a centralização do poder 207 . É nesse<br />

contexto que a opção pela Federação correspondeu, de fato, aos interesses fun<strong>da</strong>mentais<br />

<strong>da</strong>s oligarquias rurais, especialmente as que se achavam vincula<strong>da</strong>s à cafeicultura,<br />

207 Este argumento é defendido pela maioria dos estudiosos: Veja-se, em particular, Raymundo Faoro, Joe<br />

Foweraker, Westphalen, Octávio Ianni, Fábio Alves, Caio Prado Júnior, José de Souza Martins, Otto Ohlweiler, todos<br />

já citados neste estudo.<br />

118


sobretudo paulista e mineira, que já então, se estruturara de forma amplamente<br />

sustenta<strong>da</strong> pela mão-de-obra livre, embora ain<strong>da</strong> sob a forma do colonato, mas<br />

amplamente assenta<strong>da</strong> nos mecanismos de “eficiência econômica” típicos do<br />

capitalismo. O processo de produção e organização do trabalho, nestas fazen<strong>da</strong>s,<br />

consoli<strong>da</strong>ram suas vantagens comparativas em relação à cafeicultura escravista do Vale<br />

do Paraíba, beneficiária ain<strong>da</strong>, <strong>da</strong>s políticas econômicas implementa<strong>da</strong>s pelos Gabinetes<br />

do Império, e que sofrerá o golpe final com a Abolição em 1888; um ano antes <strong>da</strong><br />

desagregação <strong>da</strong> Monarquia e <strong>da</strong> entra<strong>da</strong> do País na fase republicana.<br />

É nessa conjuntura que as teses republicana e federativa realmente vinham de<br />

encontro às reivindicações dos fazendeiros, sobretudo os cafeicultores paulistas e<br />

mineiros. É nesse sentido, por exemplo, que Raymundo Faoro desenvolve sua análise a<br />

respeito <strong>da</strong> adesão à estas teses, pelos fazendeiros de café, especialmente de São Paulo e<br />

Minas Gerais:<br />

“As mu<strong>da</strong>nças <strong>da</strong> estrutura interna <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong>, mais empresa do<br />

que baronia, com a necessi<strong>da</strong>de de ordenar racionalmente os<br />

cálculos econômicos, reivindica autonomia regional, próxima aos<br />

latifundiários. A fórmula federalista servirá à nova reali<strong>da</strong>de em<br />

todos seus termos, aproximando as decisões políticas do<br />

complexo econômico. Por essa via as idéias republicanas<br />

entram nas fazen<strong>da</strong>s - nas fazen<strong>da</strong>s não essencialmente<br />

escravistas - com impacto inquietador.” 208<br />

No mesmo sentido vão os argumentos de Joe Foweraker 209 , ao comentar,<br />

fun<strong>da</strong>mentando-se no trabalho de Westphalen 210 , que<br />

“com o final do Império, pela Constituição de 1891, a proprie<strong>da</strong>de<br />

legal e o controle político <strong>da</strong>s terras devolutas passaram aos<br />

estados e, <strong>da</strong>í para as oligarquias locais e proprietários de<br />

terras.” 211<br />

Para Ohlweiler a Proclamação <strong>da</strong> República e a opção pelo federalismo tinham o<br />

mesmo sentido apontado pelos autores citados:<br />

“A república federativa contemplava os interesses gerais do setor<br />

agroexportador: o imposto sobre as exportações favorece as<br />

uni<strong>da</strong>des mais ricas; o imposto sobre importações, que afeta o<br />

custo de vi<strong>da</strong> do conjunto, destina-se a União; as terras públicas<br />

ficam sob a responsabili<strong>da</strong>de dos Estados assim permitindo<br />

que as oligarquias regionais controlem sua distribuição; e,<br />

por fim, o princípio de intervenção federal nos Estados, pode ser<br />

usado para fins <strong>da</strong> política do governo central dita<strong>da</strong> pelas<br />

oligarquias regionais 0mais poderosas.” 212<br />

208 FAORO (op. cit. , p. 456. Grifos nossos).<br />

209 Op. cit.<br />

210 WESTPHALEN (1968).<br />

211 FOWERAKER, (op. cit., p. 123)<br />

212 OHLWEILER (S. d., p. 102. Grifos nossos).<br />

119


A Constituição de 1891 como foi registrado acima, transferiu para os Estados <strong>da</strong><br />

Federação a autonomia política, legislativa e administrativa sobre<br />

“as minas e terras devolutas situa<strong>da</strong>s nos seus respectivos<br />

territórios, cabendo a União apenas a porção de território que for<br />

indispensável para a defesa <strong>da</strong>s fronteiras, fortificações,<br />

construções militares e estra<strong>da</strong>s de ferro federais.” 213<br />

Desta forma, passaram para a jurisdição dos Estados, não apenas as terras do<br />

domínio público, mas, o que é ain<strong>da</strong> mais relevante, o poder de legislar sobre a sua<br />

concessão, discriminação e legitimação <strong>da</strong>s que fossem possuí<strong>da</strong>s 214 . À União restou<br />

apenas as terras devolutas situa<strong>da</strong>s numa estrita faixa de fronteira com países<br />

estrangeiros (66 quilômetros) e a pequena faixa costeira - os chamados terrenos de<br />

marinha - uma faixa de 33 metros, sujeita às influências <strong>da</strong>s marés. Pode-se dizer,<br />

portanto, que neste contexto, a União se retira <strong>da</strong> questão fundiária, limitando-se apenas<br />

à gestão <strong>da</strong> restrita parcela de terras devolutas incursas no seu patrimônio, deixando<br />

para os Estados o poder, assegurado, aliás, pela sua autonomia constitucional, para<br />

administrar to<strong>da</strong>s as terras dos seus domínios.<br />

Portanto, ao serem transferi<strong>da</strong>s para os Estados a proprie<strong>da</strong>de e a competência<br />

legislativa sobre a maioria <strong>da</strong>s terras devolutas, pelo fato de se situarem em seus<br />

respectivos territórios, quase na<strong>da</strong> restou à União para administrar. Este fato significa,<br />

efetivamente, que os problemas de legitimação de posses e de alienação de terras<br />

públicas, antes mesmo de serem enfrentados de forma efetiva pelo poder Central, foram<br />

colocados sob o arbítrio dos Estados e, como se observou acima, <strong>da</strong>s oligarquias locais.<br />

Exatamente as mesmas oligarquias que, desde a promulgação <strong>da</strong> Lei 601, vinham<br />

impondo um conjunto de restrições e dificul<strong>da</strong>des, muito particularmente em relação à<br />

implementação <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s relativas à legitimação e registro <strong>da</strong>s terras havi<strong>da</strong>s por<br />

particulares e à discriminação <strong>da</strong>s terras devolutas 215 . Nesse contexto, como observa<br />

Foweraker ao estu<strong>da</strong>r o caso do Paraná, poderiam os governos estaduais administrar as<br />

terras com tanto maior<br />

“impuni<strong>da</strong>de, quanto mais conseguisse o seu próprio sistema<br />

legal criar uma autori<strong>da</strong>de legal separa<strong>da</strong>, sendo os sistemas<br />

213 Constituição <strong>da</strong> República dos Estados Unidos do Brasil, de 1891. Artigo 64 (In.: MEAF, op. cit., p.477. Grifo<br />

nosso).<br />

214 Ressalvados apenas os processos de ação discriminatória que continuavam privativos à alça<strong>da</strong> <strong>da</strong> União.<br />

215 Essas terras que como já se explicitou nesse trabalho englobavam a totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s terras que pertencem ao<br />

domínio público e que não se encontravam afetas a alguma utilização pública, eram “terras que nunca deixaram<br />

de pertencer ao domínio público, ou que, tendo sido transpassa<strong>da</strong>s a particulares, retornaram ao Poder<br />

Público por não terem seus donatários cumprido com suas obrigações” (BASTOS, 1990, p. 265). Tais terras<br />

até a Proclamação <strong>da</strong> República pertenciam ao patrimônio <strong>da</strong> Nação, tendo sido, pela Constituição de 1891<br />

transferi<strong>da</strong>s para o domínio dos Estados <strong>da</strong> Federação (art. 64 <strong>da</strong> Constituição de 1891) que passaram a administrálas.<br />

Essa situação irá gerar conflitos importantes sobre a autonomia e a competência para a gestão dessas terras,<br />

sobretudo entre a União e os Estados e, muitas vezes, entre diferentes Estados <strong>da</strong> Federação. Nesse contexto, que<br />

Foweraker (op. cit.) caracteriza de “autori<strong>da</strong>de dual”, os conflitos reais e legais sobre a proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra<br />

agudizam-se, beneficiando-se dele, sobretudo, os grupos mais poderosos de especuladores imobiliários e as<br />

“companhias colonizadoras”. Mas persistirá o problema <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de dos títulos de proprie<strong>da</strong>de, questão esta cujo<br />

contencioso geralmente envolve dissídios entre os Estados e a União, e que apenas poderão ser dirimidos pela via<br />

judicial.<br />

120


estaduais apenas frouxamente articulados ao Federal, numa<br />

subordinação ambivalente.” 216<br />

Cabe registrar, por outro lado, que a Constituição Republicana de 1891<br />

assegurava plenamente o direito de proprie<strong>da</strong>de nos mesmos termos <strong>da</strong> Constituição de<br />

1824, ao admitir no artigo 72, parágrafo 17, a possibili<strong>da</strong>de de “desapropriação por<br />

necessi<strong>da</strong>de ou utili<strong>da</strong>de pública, mediante indenização prévia”, e neste sentido<br />

representava, de fato, um retrocesso em relação a Carta Régia de 1375 e à Lei 601 de<br />

1850, que condicionavam a proprie<strong>da</strong>de territorial rural à sua exploração efetiva, sob<br />

pena de cair em comisso.<br />

Os preceitos <strong>da</strong>s duas Constituições, a de 1824 e a de 1891, neste sentido são<br />

simétricos 217 : referem-se a obrigação, por parte dos proprietários privados, e sob a<br />

condição <strong>da</strong> prévia indenização, de permitirem obras públicas, como servidões, abertura<br />

de ruas, estra<strong>da</strong>s, construção de prédios e obras públicas, etc. Não se referiam a<br />

subutilização ou a não exploração <strong>da</strong> terra. O que é profun<strong>da</strong>mente diferente de<br />

expropriação pelo não cumprimento <strong>da</strong> função social, seja <strong>da</strong> concessão, como no caso<br />

do instituto de sesmarias (pelo qual as terras eram concedi<strong>da</strong>s para serem explora<strong>da</strong>s),<br />

seja no caso <strong>da</strong> Lei 601 e de outras Constituições Republicanas, a partir <strong>da</strong> de 1934, que<br />

formalmente estabelecem a figura <strong>da</strong> desapropriação por interesse social ou utili<strong>da</strong>de<br />

pública. Ain<strong>da</strong> assim, na Constituição de 1934 esse preceito é formulado de forma<br />

negativa:<br />

“Art. 113. A Constituição assegura a todos os brasileiros e a<br />

estrangeiros residentes no país a inviolabili<strong>da</strong>de dos direitos<br />

concernentes à liber<strong>da</strong>de, à subsistência, à segurança individual<br />

e à proprie<strong>da</strong>de nos termos seguintes:<br />

(...)<br />

17. É garantido o direito de proprie<strong>da</strong>de, que não poderá ser<br />

exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a<br />

lei determinar. A desapropriação por necessi<strong>da</strong>de ou utili<strong>da</strong>de<br />

pública far-se-á nos termos <strong>da</strong> lei, mediante prévia e justa<br />

indenização 218 ...”<br />

Convém registrar, entretanto, que não havia no horizonte desse preceito<br />

constitucional nenhuma intencionali<strong>da</strong>de no sentido de algum tipo de<br />

reordenamento <strong>da</strong> distribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de rural e, menos ain<strong>da</strong>, de reforma agrária,<br />

tal como se entende atualmente, mas, como sempre foi <strong>da</strong> tradição jurídica portuguesa,<br />

no sentido de possibilitar o desenvolvimento de servidões públicas, obras de infraestrutura<br />

e urbanismo, como construção de praças, cemitérios, prédios públicos,<br />

216 Op. cit., p. 124. Grifos nossos.<br />

217 Observe-se que com a revogação <strong>da</strong>s cláusulas resolutivas do instituto sesmarial pela Constituição Imperial de<br />

1824, alia<strong>da</strong> à garantia <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> plena <strong>da</strong> terra, assegura<strong>da</strong> naquela Constituição, criam-se as condições<br />

jurídicas fun<strong>da</strong>mentais que asseguraram o império <strong>da</strong>s posses, no qual, durante 28 anos, o latifúndio expande-se e<br />

firma-se em todo o país para nunca mais ceder. Neste sentido, a omissão <strong>da</strong> exigência de exploração <strong>da</strong> terra, na<br />

Constituição de 1891, <strong>da</strong> mesma forma abre amplas possibili<strong>da</strong>des para a constituição e avanço do latifúndio no país.<br />

218 Artigo 113 <strong>da</strong> Constituição <strong>da</strong> República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934. In.: MEAF, op.<br />

cit., p. 502. Grifos nossos).<br />

121


estra<strong>da</strong>s, etc. Ou seja, não se pode assimilar esse preceito ao <strong>da</strong> “função social <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de” ou similares. Geralmente as medi<strong>da</strong>s que poderiam ser, em certo sentido,<br />

interpreta<strong>da</strong>s como obrigando os proprietários a explorarem efetivamente suas<br />

concessões, como se viu nos capítulos 1 e 2 deste trabalho, eram grafados em leis<br />

específicas, de caráter infra constitucional. O sentido atualmente atribuído à função<br />

social <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de aparecerá claramente na Constituição de 1934 (artigo 113; 17).<br />

A referência à desapropriação por necessi<strong>da</strong>de ou utili<strong>da</strong>de pública ou por<br />

interesse social, como se verá no decorrer <strong>da</strong> análise do período republicano, aparecerá<br />

em todos os textos constitucionais. Entretanto, as formas e condições para execução dos<br />

procedimentos de desapropriação variará no decorrer do tempo, indo desde a referência<br />

ampla, como no caso <strong>da</strong> Constituição de 1891 à “prévia e justa indenização”, sem fazer<br />

referência à sua forma de pagamento, até a especificação <strong>da</strong> exigência <strong>da</strong> indenização<br />

prévia e em dinheiro, como no caso <strong>da</strong> Constituição de 1946 219 . É evidente que<br />

dependendo <strong>da</strong> forma como tenha sido definido o pagamento <strong>da</strong> indenização, o processo<br />

de desapropriação para fins de interesse social poderá ser facilitado ou até impedido.<br />

Esse problema será analisado no momento oportuno no decorrer deste trabalho.<br />

Entretanto, há uma dimensão fun<strong>da</strong>mental que antecede ao problema <strong>da</strong><br />

desapropriação e que, portanto, é mister que seja colocado de imediato. Trata-se do fato<br />

de que só há a possibili<strong>da</strong>de de desapropriar terras que tenham sido, ou sejam, objeto de<br />

proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> anterior e legítima. Falar em desapropriação 220 é admitir, “a<br />

priori”, a existência legal <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> sobre a terra. Exatamente nesse ponto<br />

residem os problemas que aqui se estão analisando.<br />

A titulação <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des rurais no Brasil, como se vem tentando demonstrar<br />

neste trabalho e como se pretende deixar evidenciado ao final do mesmo, é,<br />

juridicamente, questionável 221 . Dificilmente os títulos de proprie<strong>da</strong>de resistem a uma<br />

análise jurídica mais objetiva 222 .<br />

E, como no Brasil não existe “res nullis”, isto é, terras sem dono, adéspotas,<br />

como já se analisou em outra parte deste trabalho, as terras ou são de domínio privado, e<br />

219 Este problema, de grande relevância, é nesse momento apenas levantado, posto que será objeto de análise<br />

detalha<strong>da</strong> quando do estudo <strong>da</strong> Política Fundiária do regime militar, no qual o mesmo aparece de forma mais efetiva.<br />

Entretanto, vale a pena antecipar a respeito as seguintes observações de José Gomes <strong>da</strong> <strong>Silva</strong>: “De 25 de março de<br />

1824, quando foi promulga<strong>da</strong> a Constituição Política do Império, até a Emen<strong>da</strong> Constitucional n o 27 de 28<br />

de novembro de 1985, quando foi feita a última modificação na Carta Magna, é possível registrar algumas<br />

tendências muito claras no perfil do tratamento constitucional <strong>da</strong> questão agrária. (...) Enquanto na<br />

Constituição de 1824 ‘a proprie<strong>da</strong>de era garanti<strong>da</strong> em to<strong>da</strong> a sua plenitude’ (art. 179, parágrafo 22), na de<br />

1969 é imposto um condicionamento social, depois de ter passado pelos estádios intermediários que<br />

admitiam apenas restrições em função <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de e utili<strong>da</strong>de pública (art. 153, parágrafo 22).Essa<br />

evolução reflete-se no instituto de Desapropriação por Interesse Social para Fins de Reforma Agrária e na<br />

forma de pagamento <strong>da</strong>s desapropriações”. (In.: Reforma Agrária. ABRA, novembro/88, pp.14 -15). Esse<br />

problema será objeto de análise no capítulo 4.<br />

220 Segundo Bandeira de Mello, a “desapropriação consiste, do ponto de vista teórico, no procedimento<br />

administrativo através do qual o Poder Público compulsória e unilateralmente que despoja alguém de uma<br />

proprie<strong>da</strong>de e a adquire para si, mediante indenização, fun<strong>da</strong>do em um interesse público.”(BANDEIRA<br />

DE MELLO, 1996, p. 504).<br />

221 Ver os capítulos 4 e 5, onde esta questão é amplamente estu<strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />

222 Ver a esse respeito o depoimento do Sr. Ol<strong>da</strong>ir Zanata à Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a política de<br />

incentivo fiscal na Amazônia (In.: INCRA, 1980).<br />

122


para isso é condição “sine qua non” a exibição do título legal de proprie<strong>da</strong>de, ou <strong>da</strong>s<br />

condições efetivas que caracterizam as posses legitimáveis; ou são terras devolutas,<br />

portanto, públicas. Quanto a estas últimas, como é evidente, não cabe desapropriação:<br />

elas são, por definição, proprie<strong>da</strong>des públicas, terras do Estado. E o Estado não pode<br />

desapropriar-se a si mesmo. E menos ain<strong>da</strong>, auto-indenizar-se ou indenizar a terceiros<br />

por terem invadido suas terras.<br />

No caso <strong>da</strong>s terras devolutas se encontrarem em posse de terceiros, caberia, por<br />

princípio, conforme a Lei 601 de 1850 - princípio este mantido pelas legislações<br />

ulteriores - o despejo sem direito algum, nem mesmo a benfeitorias, e “pena de dois a<br />

seis meses de prisão” e multa, além <strong>da</strong> satisfação de <strong>da</strong>nos causados, como já<br />

observado. Até porque é ve<strong>da</strong>do o usucapião em terras públicas.<br />

Entretanto, ao nível <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de objetiva, e também legal, sempre foi admiti<strong>da</strong> a<br />

hipótese de que, estando terras, devolutas ou não, em posse de particulares, que nelas<br />

residissem e as tornassem produtivas com o seu trabalho e de sua família, por<br />

determinado período de tempo e sem oposição, havia a possibili<strong>da</strong>de legítima, do<br />

Estado vir a legalizá-las, pela ven<strong>da</strong> ou por sentença declaratória.<br />

Na Constituição de 1934, o art. 125, repetido pelo art. 148 <strong>da</strong> Constituição de<br />

1937, assegurava o domínio de até 10 hectares a todo brasileiro, que não sendo<br />

proprietário ocupasse por 10 anos contínuos um trecho de terra, sem oposição,<br />

tornando-o produtivo, o que seria legitimado por sentença declaratória. Na Constituição<br />

de 1946, esse preceito é modificado pelo artigo 156, que no 1 o abre a perspectiva de<br />

se assegurar aos “posseiros de terras devolutas, que nelas tenham mora<strong>da</strong><br />

habitual, preferência para aquisição de até 25 hectares”; e no 3 o do mesmo<br />

artigo, amplia a área (referi<strong>da</strong> nos artigos 125 <strong>da</strong> Constituição de 1934 e 148 <strong>da</strong> de<br />

1937), para 25 hectares, mantendo iguais as demais exigências de moradia e exploração<br />

efetiva e de não possuir proprie<strong>da</strong>de rural nem urbana.<br />

Assegurando a preferência para esses posseiros, no caso de ven<strong>da</strong>s de terras<br />

devolutas, ou lhes reconhecendo a proprie<strong>da</strong>de, pela via de sentenças declaratórias,<br />

sempre que se referissem à posses efetivamente explora<strong>da</strong>s. Entretanto, transformar esta<br />

possibili<strong>da</strong>de constitucional em pretexto para legalização de imensas áreas, como vem<br />

sistematicamente ocorrendo no país, não encontra nenhuma justificativa ou respaldo na<br />

legislação.<br />

Tratam-se, portanto, nestes casos, de apropriações e, se registra<strong>da</strong>s, de<br />

legitimações, privilegia<strong>da</strong>s. Mesmo quando esses processos possam estar ou tenham<br />

sido mascarados por leilões ou “licitações” para “alienação”, pelo Estado, a preço<br />

vil 223 . Nesses casos o que efetivamente existe é um simulacro de compra, através do<br />

qual, busca-se oferecer legitimi<strong>da</strong>de e substância, pelo aparente cumprimento do<br />

formalismo <strong>da</strong> ven<strong>da</strong> exigido pela legislação. Pode-se afirmar que nesses casos, aliás<br />

223 Situações estas que serão analisa<strong>da</strong>s nos capítulos 4 e 5 e que caracterizam situações de “grilagem<br />

especializa<strong>da</strong>”.<br />

123


como alguns depoimentos à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário<br />

deixará claro, de um mero simulacro de compra e ven<strong>da</strong> de terras devolutas: o Estado<br />

“finge” que vende (só que efetivamente vende); e o adquirente privilegiado “finge” que<br />

compra, (só que, efetivamente, compra). O processo em si é que é completamente<br />

viezado, fun<strong>da</strong>do no privilégio. Na melhor <strong>da</strong>s hipóteses, fun<strong>da</strong>dos na utilização de<br />

informação privilegia<strong>da</strong>.<br />

Bastam essas observações, neste momento, para levantar este problema que será<br />

detalha<strong>da</strong>mente analisado no próximo capítulo, que se ocupa do período do Regime<br />

Militar, quando o mesmo ganhou maior intensi<strong>da</strong>de e relevância. A introdução desta<br />

problemática é importante para a sua localização no âmbito desse estudo e até porque<br />

esse artifício <strong>da</strong> “compra a preço vil”, ao Estado, sempre esteve presente no período<br />

Republicano, agravando-se à medi<strong>da</strong> em que a expansão <strong>da</strong> produção agrícola e,<br />

sobretudo, <strong>da</strong>s redes de comunicação e transportes, começaram a facilitar a<br />

incorporação de novas áreas à economia agrícola nacional e, portanto a despertar o<br />

interesse e a cobiça, em face <strong>da</strong> valorização <strong>da</strong>s terras. Esse fenômeno, que tem início<br />

com a expansão <strong>da</strong>s ferrovias, ain<strong>da</strong> no Império, adquirirá grande impulso durante todo<br />

o período republicano Torna-se especialmente grave na segun<strong>da</strong> metade deste século,<br />

trazendo no seu bojo um conjunto complexo de problemas fundiários e de conflitos,<br />

quase sempre violentos, pela posse <strong>da</strong> terra.<br />

Nesse contexto cabe questionar-se o direito de proprie<strong>da</strong>de, ou seja, a<br />

legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ocupação ou a legali<strong>da</strong>de dos títulos de proprie<strong>da</strong>de. Dirimir essa<br />

dúvi<strong>da</strong> tem sido desde sempre o problema primordial, senão fun<strong>da</strong>mental, a ser<br />

enfrentado para que se possa assegurar o acesso democrático e produtivo à terra no<br />

Brasil.<br />

Veja-se que distribuir terras é diferente de redistribuir a proprie<strong>da</strong>de.<br />

Redistribuir a proprie<strong>da</strong>de supõe a existência de uma distribuição anterior <strong>da</strong> mesma,<br />

quando na ver<strong>da</strong>de o que houve, pelo menos em relação à maioria <strong>da</strong>s terras do Brasil,<br />

foi uma apropriação privilegia<strong>da</strong> e, muitas vezes, ou geralmente, em oposição à<br />

legislação vigente; ou seja, contra o consentimento formal do Estado.<br />

No primeiro caso, distribuir a terra, significa assegurar o acesso à terra que, no<br />

Brasil, é originalmente pública, ain<strong>da</strong> que pela via <strong>da</strong> compra ao Estado. No segundo<br />

caso, acrescente-se, ao se falar de desapropriação, fica pressuposto o reconhecimento<br />

dos privilégios construídos pela apropriação anterior (geralmente fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em simples<br />

processos de posse ilegítima de grandes áreas) inclusive, motivando a sua recompensa<br />

destes atos com indenizações, não importa a forma de pagamento. Falar em<br />

desapropriação, sem se questionar a legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de e o processo de sua<br />

constituição, no Brasil, é, além do exposto, oferecer argumentos em defesa do<br />

latifúndio. Oferecer subsídios para as defesas ideológicas <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, sob alegação<br />

de que, com a reforma agrária, se pretende atentar contra a proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong><br />

(legítima?), quando de fato, o que a história fundiária brasileira tem evidenciado é que<br />

124


houve (e continua havendo) um sistemático atentado ao patrimônio público <strong>da</strong>s terras<br />

devolutas do país.<br />

Portanto, no caso brasileiro, qualquer iniciativa de “reorganização” fundiária, ou<br />

qualquer medi<strong>da</strong> de reforma agrária, necessariamente tem que transitar pela verificação<br />

<strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de dos títulos de proprie<strong>da</strong>de em poder de particulares, especialmente nas<br />

áreas de reforma agrária 224 .<br />

A relevância desse fato parece óbvia: se as terras em domínio privado não<br />

estiverem fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s em títulos legítimos, não cabem processos de desapropriação e,<br />

menos ain<strong>da</strong>, qualquer indenização por parte do Poder Público, independentemente de<br />

cumprir ou não a função social. Posto que, não sendo proprie<strong>da</strong>de legítimas, não há,<br />

sequer, porque se argüir <strong>da</strong> sua função social. No limite, esse procedimento legal<br />

poderia representar uma redução significativa dos gastos públicos com desapropriações.<br />

Poderia, por outro lado, facilitar a ação do Estado no sentido de assumir o controle<br />

sobre as terras devolutas, sobre as quais, como se vem analisando neste trabalho, desde<br />

1850, quando tal processo foi legalmente instituído, jamais o Estado brasileiro teve<br />

efetivas condições de exercer.<br />

Quanto as proprie<strong>da</strong>des legítimas, que estejam fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s em títulos legítimos, - e<br />

tudo indica que são muito poucas - caberiam as desapropriações, conforme previstas nos<br />

textos constitucionais ou estabeleci<strong>da</strong>s pela legislação pertinente, ou seja, com base nos<br />

princípios do cumprimento de sua função social. A verificação <strong>da</strong> consistência ou<br />

inconsistência legal dos títulos, supondo-se o efetivo combate à fraude e a participação<br />

efetiva de organizações civis especializa<strong>da</strong>s, além do Judiciário e instituições públicas<br />

específicas, poderia efetivamente ser realiza<strong>da</strong>. A morosi<strong>da</strong>de na decisão judicial ou<br />

mesmo administrativa a respeito deste problema, que sempre foi uma constante em to<strong>da</strong><br />

a história do país desde os tempos do instituto de sesmarias, apenas vem reforçar a<br />

hipótese de que o processo de registro e titulação, ou seja, <strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de rural no Brasil é efetivamente, fun<strong>da</strong>do no privilégio.<br />

Entretanto, exatamente a possibili<strong>da</strong>de de controle efetivo sobre a alienação <strong>da</strong>s<br />

terras públicas é que, ao ser passa<strong>da</strong> para a alça<strong>da</strong> dos Estados, pela Constituição de<br />

1891, tornou-se profun<strong>da</strong>mente problemática.<br />

Como se registrou no capítulo anterior, até os últimos anos do Império, a<br />

maioria <strong>da</strong>s sesmarias por revali<strong>da</strong>r e <strong>da</strong>s posses por legitimar não haviam sido<br />

efetivamente registra<strong>da</strong>s, além de ter-se agravado a prática do avanço <strong>da</strong>s posses sobre<br />

as terras devolutas existentes. Como registra José Murilo de Carvalho, em 1886, três<br />

anos antes <strong>da</strong> Proclamação <strong>da</strong> República, o Relatório do Ministro <strong>da</strong> Agricultura,<br />

Comércio e Obras Públicas informava que, naquele ano, “grande número de<br />

sesmarias e posses permaneciam sem revali<strong>da</strong>r e sem legitimar, e as terras<br />

224 O que não impede que, paralelamente, se implementem os processos de desapropriação para fins de reforma<br />

agrária, dentro de uma política específica nesses termos, e quando a desapropriação couber, ou seja, quando se<br />

tratarem de áreas legitimamente de domínio particular; o “ônus <strong>da</strong> prova” cabendo sempre ao suposto proprietário,<br />

como aliás determina a legislação em vigor. Porque a referência básica é a de que as terras brasileiras são,<br />

originalmente, públicas.<br />

125


públicas continuavam a ser invadi<strong>da</strong>s. 225 ” Assim, permaneciam, nos primeiros anos<br />

<strong>da</strong> República, os problemas <strong>da</strong> desorganização e ilegitimi<strong>da</strong>de fundiárias, por um lado; e<br />

do apossamento de terras públicas, por outro, a essa altura de forma efetivamente ilegal,<br />

posto que explicitamente proibi<strong>da</strong> pela Lei 601 de 1850, então em vigor. Esta era a<br />

situação encontra<strong>da</strong> à época <strong>da</strong> promulgação <strong>da</strong> Constituição de 1891, que transferiu a<br />

gestão <strong>da</strong>s terras devolutas para o âmbito <strong>da</strong> Administração Estados.<br />

Ou seja, a situação <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, sobretudo no que se referia à<br />

titulação de terras, no final do Império, era absolutamente inconsistente do ponto de<br />

vista <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de e do direito. Foi diante desse contexto e nesta conjuntura, que o<br />

primeiro Governo Republicano, seis meses após a Proclamação <strong>da</strong> República, como<br />

analisado acima, editou o Decreto 451-B, instituindo o Registro Torrens. Entretanto,<br />

como se viu, este registro era obrigatório apenas para os processos de alienação de<br />

terras públicas, permanecendo facultativo para as transações entre particulares.<br />

Agrava-se, por outro lado, o problema <strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des rurais e,<br />

mais do que isso, do próprio acesso às terras devolutas, com a transferência <strong>da</strong><br />

competência para tanto, <strong>da</strong> União para os Estados. Fun<strong>da</strong>mentados na autonomia que<br />

lhes era assegura<strong>da</strong> pela Constituição, os Estados dão início aos processos de alienação<br />

de terras devolutas, ca<strong>da</strong> um, no decorrer do tempo, promulgando suas próprias<br />

legislações fundiárias e criando suas instituições específicas para administração <strong>da</strong>s<br />

terras públicas.<br />

O problema, como é óbvio, não se situava, efetivamente, na promulgação de<br />

princípios gerais e normas ou regulamentos, proclamados pelas diferentes legislações<br />

estaduais, ou mesmo indicados na Constituição Federal. Situava-se, objetivamente, no<br />

amplo processo de concessão e alienação de terras promovidos pelos diferentes Estados<br />

<strong>da</strong> Federação, assim como na continui<strong>da</strong>de de ocupação privilegia<strong>da</strong> de terras devolutas,<br />

sobretudo pela via de grandes posses ou concessões pelos Estados, sob os mais<br />

diferentes pretextos. Pode-se dizer que o avanço <strong>da</strong>s grandes posses continuou durante<br />

todo o período republicano, paralelamente à concessão ou ven<strong>da</strong>s de terras pelos<br />

Estados. A ven<strong>da</strong> ou a concessão de terras públicas eram realiza<strong>da</strong>s, geralmente, como<br />

registrou José de Souza Martins e muitos analistas desta questão, para grandes grupos e<br />

empresas priva<strong>da</strong>s.<br />

Fugiria aos objetivos deste estudo a análise específica <strong>da</strong> legislações estaduais e<br />

dos diversos conflitos fundiários criados pela ação imediata, ou pela omissão, dos<br />

Estados <strong>da</strong> Federação. Referências a essas questões serão feitas na medi<strong>da</strong> em que<br />

contribuam para a melhor explicitar ou esclarecer as hipóteses defendi<strong>da</strong>s neste estudo.<br />

Os problemas fundiários serão agravados, após a Constituição de 1891, em face<br />

dos diversos conflitos acerca <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> competência dos Estados e <strong>da</strong> União<br />

para alienarem terras devolutas ou titularem terras que se encontravam em domínio<br />

privado. Ou seja, o processo de legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial ficará<br />

225 (In.: CARVALHO, op. cit., p. 47).<br />

126


profun<strong>da</strong>mente comprometido com essa mu<strong>da</strong>nça. É nesse sentido que se pode afirmar,<br />

como o fizeram os estudiosos citados neste trabalho, que o controle sobre as terras<br />

passou efetivamente às mãos <strong>da</strong>s oligarquias estaduais, perpetuando-se a apropriação e<br />

legitimação privilegia<strong>da</strong>s.<br />

O fato mais importante a registrar com relação a Constituição de 1891 é que a<br />

União renuncia ao controle, ain<strong>da</strong> que formal, <strong>da</strong> maior parte <strong>da</strong>s terras devolutas do<br />

país. Esta situação <strong>da</strong>rá origem a um acirrado e permanente contencioso com os<br />

Estados, sobretudo envolvendo problemas de competência legal para alienar e titular<br />

terras públicas. Desse contencioso acerca <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s competências sobre as<br />

terras devolutas valem-se, efetivamente, to<strong>da</strong> a sorte de especuladores, como muito bem<br />

observa Foweraker:<br />

“Como o título <strong>da</strong> terra, porém, sempre se origina em alguma área<br />

administrativa (no domínio público), onde esses títulos conflitam com a história<br />

legal atravessa contradições políticas maiores, que pode provocar o confronto<br />

direto entre diferentes setores federativos.” (op. cit.:145).<br />

Ao desenvolver esta argumentação, Foweraker chama a atenção para o fato de<br />

que, enquanto os diferentes órgãos federais e estaduais se encontram envolvidos em<br />

imensas e complexas disputas legais acerca <strong>da</strong> competência sobre determina<strong>da</strong>s áreas,<br />

os grupos econômicos efetivamente passam a ter maior liber<strong>da</strong>de para avançar e ocupar<br />

imensas áreas, especialmente nas regiões de fronteira, onde esses grupos<br />

“dispõem de maior liber<strong>da</strong>de para as suas operações econômicas<br />

precisamente porque a situação legal é tão mal defini<strong>da</strong> (ao<br />

contrário <strong>da</strong>s relações institucionaliza<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des<br />

maiores, onde a relação legal de proprie<strong>da</strong>de é essencial à<br />

ativi<strong>da</strong>de econômica e à acumulação).” 226<br />

Nessa conjuntura complexa de interesses em conflito perpetuam-se os dissídios<br />

e contenciosos entre União, Estados, grandes corporações e proprietários, dificultando,<br />

em grande parte qualquer possibili<strong>da</strong>de, ain<strong>da</strong> que formal, que o Estado pudesse ter para<br />

interferir na estrutura agrária. As grandes vítimas, de fato, nesse contexto, são os<br />

pequenos posseiros e indígenas, que só não se pode afirmar que foram ignorados,<br />

porque foram brutalmente esmagados quando não simplesmente dizimados.<br />

4. Legislação Federal e Terras Devolutas (dos Estados?)<br />

Com a transferência <strong>da</strong> autonomia política e administrativa sobre a maior parte<br />

<strong>da</strong>s terras devolutas para os Estados, restringiu-se a autonomia federal às terras públicas<br />

<strong>da</strong> União, que eram basicamente a faixa de fronteira e os terrenos de marinha. As<br />

diretrizes gerais, que persistentemente tentará a União imprimir, sob a forma de uma<br />

política fundiária, de fato, terão, neste contexto, a sua eficácia restrita às terras devolutas<br />

federais.<br />

226 FOWERAKER. (op. cit., p. 145)<br />

127


Por um lado, a adequação 227 entre as legislações dos Estados e a Federal,<br />

pressuposta na Constituição Federal, como se observou, era frágil e, por outro lado,<br />

gozando os Estados de autonomia sobre seus territórios, dificilmente a União poderia<br />

impor, mesmo que o desejasse, exigências legais no campo <strong>da</strong> política fundiária.<br />

Efetivamente, portanto, a União procurará ater-se, em última análise, às terras de seu<br />

domínio e, apenas em situações especiais, entrará em disputas e contenciosos com os<br />

Estados, sobretudo quando as questões sobre terras envolverem retornos tributários<br />

relevantes para o orçamento <strong>da</strong> União. Nunca os contenciosos têm por referência a<br />

defesa de direitos sobre as posses, sobretudo quando se tratam de pequenos ocupantes,<br />

como no caso do Oeste do Paraná, do Mato Grosso e, mais recentemente, do Pará 228 .<br />

Após o Decreto 451-B, já analisado, outra tentativa de regulamentação federal<br />

sobre as terras devolutas vai aparecer, indiretamente, no Decreto 2.453-A de 5 de<br />

janeiro de 1912. Diz-se indiretamente posto que este Decreto reportava-se de forma<br />

particular ao incentivo <strong>da</strong> produção do látex, na conjuntura de crise que se apresentava<br />

para a produção e exportação nacional <strong>da</strong> borracha sob o impacto <strong>da</strong> concorrência<br />

britânica; e para uma específica política de colonização e integração <strong>da</strong> Amazônia à<br />

economia nacional. Como observa Edilson Martins 229 ,<br />

“De 1870 a 1912 o Brasil torna-se o maior exportador mundial de<br />

borracha, chegando a contribuir com 100% de to<strong>da</strong> a produção do<br />

mercado internacional. Os ingleses, cuja tradição colonialista<br />

nunca foi posta em dúvi<strong>da</strong>, contrabandearam no final do século<br />

XIX 70 mil mu<strong>da</strong>s de seringa de nosso país, e racionalizaram o<br />

cultivo em suas colônias asiáticas(...).”<br />

O Decreto 2.453-A, de 5 de janeiro de 1912, como será visto, destina-se<br />

especificamente ao incentivo à produção do látex, e, mais que isto, a uma determina<strong>da</strong><br />

política de colonização e ocupação <strong>da</strong> Amazônia, indicando medi<strong>da</strong>s objetivas para a<br />

implantação de um amplo programa de desenvolvimento, que envolvia a construção de<br />

infra-estrutura ferroviária e outras ações específicas, na área <strong>da</strong> de colonização, <strong>da</strong><br />

concessão de terras para a instalação de colônias agrícolas e de grandes empresas<br />

agropecuárias e de pesqueiras, envolvendo inclusive, a instalação de estruturas para<br />

227 É pressuposto do ordenamento jurídico federativo que as legislações ordinárias, inclusive as Constituições<br />

estaduais, não podem ferir preceitos estabelecidos na Constituição Federal. Nesse sentido, to<strong>da</strong>s as Leis de Terras dos<br />

Estados, por definição não poderão ferir os preceitos constitucionais. Como se verá, será exatamente através <strong>da</strong><br />

argüição destes preceitos constitucionais que a União procurará redefinir a sua autonomia sobre boa parte <strong>da</strong>s terras<br />

devolutas estaduais, ampliando a abrangência dos seus bens. Por outro lado, como é igualmente preceito<br />

constitucional o respeito “aos direitos adquiridos, o ato jurídico, à coisa julga<strong>da</strong>”, assegurados em to<strong>da</strong>s as<br />

Constituições brasileiras. Assim, as situações anteriormente consoli<strong>da</strong><strong>da</strong>s - mais uma vez o “fato consumado”,<br />

dificilmente podem ser reverti<strong>da</strong>s. Isso faz com que os contenciosos sobre as terras devolutas prolonguem-se<br />

indefini<strong>da</strong>mente, acabando por assegurar privilégios e, sobretudo atos ilegítimos, como se verá neste trabalho.<br />

Apenas a Constituição de 1967 (após a Emen<strong>da</strong> Constitucional n o 1, de 1969. BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República.<br />

Brasília: 1969) embora assegurando aqueles princípios (art. 153), e provavelmente em face do “estado de<br />

exceção” em que vigorava, interferiu efetivamente nessa questão como será visto em lugar próprio deste estudo.<br />

228 Há uma vasta literatura a respeito dessas questões. Ver em especial FOWERAKER (op. cit.); MEDEIROS,<br />

(1989) e FACÓ (op. cit.).<br />

229 MARTINS, E . 1982., p. 24.<br />

128


eneficiamento <strong>da</strong> produção, assistência técnica e social, além de uma conjunto amplo<br />

de outras medi<strong>da</strong>s relevantes:<br />

“Estabelece medi<strong>da</strong>s destina<strong>da</strong>s a facilitar e desenvolver a<br />

cultura <strong>da</strong> seringueira, do caucho, <strong>da</strong> maniçoba e <strong>da</strong><br />

mangabeira e a colheita e beneficiamento <strong>da</strong> borracha<br />

extraí<strong>da</strong> dessas árvores e AUTORIZA o Poder Executivo não<br />

só a abrir os créditos precisos à execução de tais medi<strong>da</strong>s,<br />

mas ain<strong>da</strong> a fazer as operações de crédito que para isso<br />

forem necessárias.” 230<br />

Parece lícito, neste sentido, levantar-se a hipótese de que este Decreto, na<br />

ver<strong>da</strong>de um vasto projeto de desenvolvimento e integração econômica, o primeiro<br />

efetivamente estruturado neste sentido para a Amazônia, tivesse, pelo menos, duas<br />

metas latentes: 1.uma, claramente explicita<strong>da</strong> no seu texto, referia-se à tentativa de<br />

recuperar a hegemonia perdi<strong>da</strong> pelo incentivo à produção racional <strong>da</strong> borracha,<br />

inclusive a sua pré-industrialização; 2. Outra, referia-se a tentativa efetiva de ocupar<br />

produtivamente esse espaço ameaçado de internacionalização 231 , promovendo além do<br />

incentivo à produção e beneficiamento <strong>da</strong> borracha, o incentivo à instalação de<br />

indústrias pesqueiras e de conservas, de produção de alimentos e pecuária; além de<br />

indicar um amplo projeto de construção de ferrovias integrando a Amazônia, por um<br />

lado, às fronteiras com o Peru, atravessando todo o Território do Acre (pouco antes<br />

incorporado ao território brasileiro) e, por outro lado, integrando a Região à Pirapora<br />

(MG), ao Maranhão e ligações “aos portos iniciais e terminais de navegação dos<br />

rios Araguaia, Tocantins, Parnaíba e São Francisco.” (art. 6 o , incisos I, II e III) 232 .<br />

Ol<strong>da</strong>ir Zanata, ocupando-se <strong>da</strong> problemática <strong>da</strong> titulação <strong>da</strong> terra rural no Brasil,<br />

refere-se nos seguintes termos a respeito, especificamente, deste Decreto:<br />

“(...) Em 1904, porém, depois de soluciona<strong>da</strong>s as dúvi<strong>da</strong>s de<br />

limites com a Bolívia, foram incorpora<strong>da</strong>s ao Brasil partes <strong>da</strong>s<br />

terras que viriam constituir o Território Federal (hoje Estado) do<br />

Acre. A situação fundiária peculiar ali verifica<strong>da</strong>, que incluía terras<br />

titula<strong>da</strong>s pela Bolívia, pelo Estado do Amazonas e pelo ex-Estado<br />

Independente do Acre, levou o Governo Federal a baixar o<br />

Decreto 2.543-A, de 1912, que estabelecia normas a serem<br />

aplica<strong>da</strong>s no então Território Federal.” 233<br />

Como se pode observar, colocado o problema desta maneira, fica a impressão,<br />

de que o Decreto 2.543-A foi baixado para equacionar a situação fundiária específica do<br />

230 Decreto 2.543-A/1912; intróito (BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Rio de Janeiro: 1912 ).<br />

231 Nesse sentido Edilson Martins (op. cit., p.50. Grifos nossos) registra que “no dia 31 de outubro de 1853, o<br />

Governo dos Estados Unidos solicitava oficialmente ao Brasil que abrisse a Amazônia à navegação<br />

internacional (...). Até 1912 - ano que o Brasil perde a hegemonia mundial <strong>da</strong> produção de borracha,<br />

que mantinha desde 1870 - não foram poucas as pressões no sentido de internacionalizar a Amazônia,<br />

nem menores as lutas internas entre países formadores de sua bacia.<br />

232 Vide, Decreto 2.543-A, de 5.01.1912.Op. loc. cit.<br />

233 Zanatta, Ol<strong>da</strong>ir . A titulação de terra rural no Brasil . INCRA. Simpósio Internacional de Experiência<br />

Fundiária. (MEAF. Salvador-Bahia: agosto de 1984, p. 9. Grifos nossos).<br />

129


Território Federal do Acre 234 após o acordo com a Bolívia, em 1904 e com o Peru, em<br />

1909. Efetivamente este não é o caso. O que se pode dizer, em relação à situação<br />

fundiária do Território do Acre, que é trata<strong>da</strong> no Artigo 10 do referido Decreto,<br />

especificamente nos parágrafos 1 o e 2 o , é que a União reporta-se à providências no<br />

sentido <strong>da</strong> regularização fundiária do mesmo, reconhecendo todos os títulos legítimos (<br />

1 o , alínea “a”) e as posses mansas e pacíficas que se achem com efetiva exploração e<br />

mora<strong>da</strong> habitual dos posseiros ou de quem os represente ( 1 o , alínea “b”); e no<br />

parágrafo 2 o determinava a área máxima de 10 quilômetros de quadra para ca<strong>da</strong> lote de<br />

terra.<br />

Trata-se, inclusive de um parágrafo que implica dúbia interpretação, posto que,<br />

enquanto, como se viu, o “caput” do artigo 10 e seus dois primeiros parágrafos<br />

reportam-se à situação específica do território do Acre, o parágrafo 3 o deste mesmo<br />

artigo refere-se a uma situação genérica e nacional:<br />

“ 3 o O governo reverá as disposições <strong>da</strong> Lei 601, de 18 de<br />

setembro de 1850 e Decreto 1.318, de 30 de janeiro de 1854,<br />

expedindo novo regulamento de terra com as modificações <strong>da</strong><br />

presente lei e as que mais convenientes parecerem à atual<br />

situação dos territórios federais.” 235<br />

Voltando à análise de conteúdo do Decreto, observa-se que to<strong>da</strong> a sua estratégia<br />

de promoção <strong>da</strong> política de melhoramento <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de e beneficiamento <strong>da</strong><br />

borracha fun<strong>da</strong>m-se, em primeiro lugar, sobre uma determina<strong>da</strong> política de isenções<br />

fiscais e prêmios de produtivi<strong>da</strong>de e eficiência. Pode-se, dizer que o Decreto é inovador,<br />

inaugurando, em certo sentido, as políticas de incentivos fiscais para a Amazônia.<br />

É neste contexto que, logo no seu artigo 1 o , é estabeleci<strong>da</strong> a isenção de impostos<br />

de exportação e expediente para a aquisição de “todos os utensílios e materiais<br />

destinados a essas culturas, seja extrativa ou não”. No artigo 2 o “institui prêmios<br />

para plantações inteiramente novas” e estabelece uma série de incentivos à<br />

produção. Institui, igualmente, (artigo 3 o ) “estações experimentais e de assistência<br />

técnica, distribuição de sementes seleciona<strong>da</strong>s” etc., em diversos Estados<br />

produtores de seringueira, maniçoba e mangabeira. Estabelece, “além dos prêmios e<br />

incentivos” indicados nos artigos primeiro e segundo,<br />

234 A relevância do Acre no contexto deste Decreto deve-se, sobretudo, ao fato, registrado por Edilson Martins de<br />

sua “vocação para a produção do látex (ser) inquestionável, tamanhas são as reservas naturais dessa<br />

árvore em todo o seu território.” (op. cit., p.27). E ain<strong>da</strong> como observa aquele autor (op. cit. p. 50). “O Brasil<br />

anexou o atual Estado do Acre, antes pertencente à Bolívia e ao Peru, nos primeiros anos deste século,<br />

depois de uma guerra antiimperialista que se estendeu durante três anos, lidera<strong>da</strong> pelo caudilho gaúcho<br />

Plácido de Castro.”<br />

235 É importante recor<strong>da</strong>r que ao se referir aos territórios federais, na ver<strong>da</strong>de a União referia-se, genericamente às<br />

terras de sua alça<strong>da</strong> administrativa - as terras devolutas <strong>da</strong> União. Por outro lado, as demais medi<strong>da</strong>s do referido<br />

Decreto, inclusive destina<strong>da</strong>s à instalação de hospe<strong>da</strong>rias em Belém e Manaus, além do Acre, assim como a<br />

referência às ferrovias, deixam evidente que esse Decreto foi inscrito sob a inspiração de um incentivo à ampliação e<br />

aperfeiçoamento <strong>da</strong> produção de borracha, inclusive de maniçoba, mangabeira e caucho, que envolviam vários<br />

Estados <strong>da</strong> Federação (ver artigo 3 o ), particularmente <strong>da</strong> Região Nordeste. Portanto, parece equivocar-se o Dr. Ol<strong>da</strong>ir<br />

Zanatta ao reduzir a abrangência do Decreto apenas ao Território do Acre.(Negritos nossos na citação).<br />

130


“Art. 4 o A título de prêmios de animação, até 400$000 à primeira<br />

Usina de refinação de borracha seringa que reduza as diversas<br />

quali<strong>da</strong>des a um tipo uniforme e superior de exportação e que se<br />

estabelecer em ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des de Belém e Manaus(...).”<br />

To<strong>da</strong>s essas medi<strong>da</strong>s situam claramente o espírito e os objetivos deste decreto:<br />

tratava-se efetivamente de um esforço desesperado para recuperar a competitivi<strong>da</strong>de<br />

brasileira no mercado internacional <strong>da</strong> borracha, que neste ano de 1912, caíra a limites<br />

críticos sob o impacto <strong>da</strong> concorrência britânica. Segundo <strong>da</strong>dos do estudo de Fernando<br />

Henrique Cardoso e Geraldo Muller 236 , citado por Edilson Martins:<br />

“em 1878, 100% <strong>da</strong> produção mundial de borracha cabia ao Brasil. Em 1890, a<br />

produção decresce para 90%. Nos quatro qüinqüênios consecutivos a partir de<br />

1900, isto é, de 1900 a 1919, a participação cai de 70% para 53%, 34%, 12%;<br />

no quinquênio 1925/29, mal atinge 2%.”<br />

Entretanto, jamais o Brasil conseguirá recuperar sua posição no mercado<br />

exportador de borracha e esse fato talvez explique o abandono <strong>da</strong>s diversas medi<strong>da</strong>s<br />

preconiza<strong>da</strong>s neste Decreto, voltando a Amazônia a ser relega<strong>da</strong> ao quase completo<br />

abandono, do ponto de vista <strong>da</strong>s políticas públicas de incentivo à produção e à<br />

integração nacional, que apenas serão efetivamente recoloca<strong>da</strong>s na ordem <strong>da</strong>s<br />

preocupações federais na segun<strong>da</strong> metade deste século, sobretudo com a instituição do<br />

PIN - Programa de Integração Nacional - no período militar, que será estu<strong>da</strong>do nos<br />

próximos capítulos.<br />

Mas, é relevante fazer algumas referências a outras medi<strong>da</strong>s preconiza<strong>da</strong>s no<br />

Decreto 2.543-A, senão pelos seus resultados, que foram inócuos diante <strong>da</strong> crise<br />

aponta<strong>da</strong>, pelo menos pelo pioneirismo em propor medi<strong>da</strong>s de integração <strong>da</strong> Amazônia<br />

e antecipando-se na sua defesa contra as diferentes tentativas de sua<br />

internacionalização 237 .<br />

No que se refere a uma política específica de imigração, o seu artigo 5 o<br />

estabelece a meta de man<strong>da</strong>r o Governo construir três hospe<strong>da</strong>rias “em Belém,<br />

Manaus e em ponto apropriado do Acre”, para alojar imigrantes; hospitais<br />

interiores, “cercados de pequenas colônias agrícolas, nos quais possam ser<br />

recebidos doentes a tratamento, pratica<strong>da</strong> a vacinação gratuita, etc.” Estas<br />

medi<strong>da</strong>s idealiza<strong>da</strong>s no referido Decreto dão a dimensão <strong>da</strong> preocupação <strong>da</strong> Governo<br />

Federal em implementar uma política específica de ocupação <strong>da</strong> Região Amazônica - e<br />

não apenas do Acre, como parece supor Zanatta - muito provavelmente em decorrência,<br />

tanto <strong>da</strong> expectativa em recuperar a produção de borracha e desenvolver outras<br />

ativi<strong>da</strong>des de exportação, como a pesqueira, assim como <strong>da</strong> implementação <strong>da</strong> produção<br />

de alimentos para o abastecimento interno <strong>da</strong> Região, como evidenciam as claras<br />

referências às metas de estabelecimento de colônias de pequenos produtores, muito<br />

236 Citado por Edilson Martins (op. cit., p. 50)<br />

237 Ver a esse respeito, Edilson Martins (MARTINS, E. op. cit.); Osni Duarte Pereira (PEREIRA,1971); Octávio<br />

Ianni (IANNI, 1979 e 1979(a)); Lúcio Flávio Pinto (PINTO, 1980 e 1986), entre muitos outros.<br />

131


provavelmente visando à assegurar a ocupação efetiva <strong>da</strong> Região e, por este meio, tentar<br />

obstar possíveis pretensões territoriais alienígenas.<br />

Neste mesmo sentido pode-se situar o ambicioso projeto de transportes,<br />

sobretudo ferroviário, estabelecido no artigo 6 o :<br />

“Art. 6 o O governo fará executar no menor prazo possível os<br />

seguintes melhoramentos e medi<strong>da</strong>s complementares:<br />

I. Construção de estra<strong>da</strong>s de bitola reduzi<strong>da</strong> ao longo dos rios<br />

Xingu, Tapajós e outros do Pará e Mato Grosso e do Rio Negro,<br />

Rio Branco e outros do Amazonas (...)<br />

II. Construção de uma estra<strong>da</strong> de ferro que partindo de um ponto<br />

conveniente <strong>da</strong> Estra<strong>da</strong> de Ferro Madeira-Mamoré (...) passe pelo<br />

Vale do Rio Branco e por um ponto entre Sena Madureira e Cataí<br />

e termine na Vila Traumaturgo, com um ramal para a fronteira do<br />

Peru, pelo Vale do Rio Purus (...)<br />

III. Construção de uma estra<strong>da</strong> de ferro partindo de Belém e ligando-se à rede<br />

geral de vias férreas, em Pirapora, no Estado de Minas Gerais e em Coroatá,<br />

no Estado do Maranhão, com ramais necessários à ligação dos portos iniciais<br />

ou terminais de navegação dos rios Araguaia, Tocantins, Parnaíba e São<br />

Francisco.” (In.: Op. cit. Grifos deste autor).<br />

Tratava-se, portanto, de um projeto que ia muito além <strong>da</strong> dimensão particular <strong>da</strong><br />

regularização fundiária, no bojo do qual, inclusive, esta se constituía apenas um tópico,<br />

muito especialmente em se tratando <strong>da</strong> questão do Acre, cuja relevância, como se<br />

observou acima, vinha exatamente de sua importância quanto ao projeto de exploração<br />

do látex. Portanto, a inviabili<strong>da</strong>de desse projeto deve-se, muito provavelmente, aos seus<br />

custos elevados, por um lado, e à decadência <strong>da</strong> posição brasileira no mercado<br />

internacional <strong>da</strong> borracha, em última análise. Esse fato é igualmente relevante para se<br />

compreender o fracasso do próprio projeto de colonização que, apesar <strong>da</strong>s ofertas<br />

atraentes de incentivos de todos os tipos, desde a concessão de terras para colonos e<br />

empresários, até incentivos fiscais de to<strong>da</strong>s as ordens, - <strong>da</strong>s isenções fiscais amplas,<br />

tanto para importação de equipamentos, como de insumos, mu<strong>da</strong>s, pestici<strong>da</strong>s, animais<br />

de trabalho, etc., até a aquisição de embarcações fluviais - acrescidos do pagamento de<br />

prêmios em dinheiro.<br />

No que se refere, especificamente, à questão fundiária, como já foi comentado, o<br />

Decreto em questão delimita duas referências bastante específicas: Numa primeira, e<br />

repetindo os preceitos <strong>da</strong> Lei 601 de 1850, reporta-se especificamente à questão<br />

fundiária acreana, buscando oferecer legitimi<strong>da</strong>de a to<strong>da</strong>s as terras possuí<strong>da</strong>s, quer seus<br />

títulos tivessem origem no Governo boliviano, no do próprio “ex-Estado Independente”<br />

do Acre, ou do Amazonas, quer se fun<strong>da</strong>ssem em posses mansas e pacíficas, ficando<br />

estas, sujeitas às mesmas condições estabeleci<strong>da</strong>s pela Lei 601/1850 e respectivo<br />

Regulamento. Para as terras a serem aliena<strong>da</strong>s, estabelecia-se o limite de dez<br />

quilômetros em quadra, o que dá a idéia <strong>da</strong>s dimensões latifundiárias em prática no<br />

132


território 238 . Numa segun<strong>da</strong>, extrapola a situação do território e projeta-se no sentido <strong>da</strong><br />

situação <strong>da</strong>s terras devolutas <strong>da</strong> União.<br />

Por esta segun<strong>da</strong> via são repostas as antigas pretensões de se promover a revisão<br />

<strong>da</strong> Lei 601 de 1850 e seu o respectivo Regulamento. Tratava-se, evidentemente de uma<br />

referência à situação <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s terras devolutas do país e não apenas a questão<br />

do Acre, como pretendeu Ol<strong>da</strong>ir Zanatta, ex-diretor do Departamento de Ca<strong>da</strong>stro do<br />

INCRA. De resto, aquele autor atribui à falta de estrutura operacional do Ministério <strong>da</strong><br />

Agricultura, criado pelo Decreto 1.606/1906, que deveria superintender a execução <strong>da</strong><br />

política de terras públicas e registro de terras possuí<strong>da</strong>s, etc., o fracasso na execução do<br />

Decreto em questão que, segundo ele, não foi efetivamente executado 239 . Aliás pelas<br />

razões que foram acima aludi<strong>da</strong>s, e não, apenas, pela falta de estrutura operacional do<br />

Ministério, embora essa variável certamente fosse restritiva, no caso de se realizarem as<br />

demais condições preconiza<strong>da</strong>s no Decreto.<br />

A revisão <strong>da</strong>s disposições <strong>da</strong> Lei 601/1850 e respectivo Regulamento, indica<strong>da</strong>s<br />

no 3 o do artigo 10, do Decreto 2.543-A/1912, viria a ser realiza<strong>da</strong> um ano depois<br />

mediante o Decreto 10.105 de 5 de março de 1913, que “aprova o novo regulamento<br />

de terras devolutas <strong>da</strong> União.” 240<br />

Como se pode observar pelo próprio teor deste Decreto, ele, aparentemente se<br />

refere, de forma genérica, à to<strong>da</strong>s as terras devolutas <strong>da</strong> União, entretanto,<br />

imediatamente abaixo faz referência ao “disposto no art. 10 e seus respectivos<br />

parágrafos, <strong>da</strong> Lei 2.543, de 5 de janeiro de 1912 (...)”, que se refere, como se viu<br />

acima, em princípio, à situação do Território Federal do Acre. Assim, permanece uma<br />

profun<strong>da</strong> dubie<strong>da</strong>de: trata-se, em ambos os casos, de normas jurídicas destina<strong>da</strong>s aquele<br />

território, ou ao conjunto <strong>da</strong>s terras devolutas <strong>da</strong> União? Esta referência dúbia é efetiva<br />

nos dois casos. Tanto do Decreto 241 2.453/1912 como o Decreto 10.105 de 1913,<br />

embora em princípio refiram-se à situação do Acre, em ambos os casos, estendem boa<br />

parte de suas disposições ao conjunto <strong>da</strong>s terras devolutas <strong>da</strong> União.<br />

Esse tipo de confusão quanto à própria definição <strong>da</strong> abrangência territorial <strong>da</strong><br />

norma, dá uma idéia <strong>da</strong> insegurança como a questão fundiária tem sido trata<strong>da</strong>. No<br />

238 Veja-se a respeito o Decreto 10.320, de 7 de julho de 1913( BRASIL.Presidência <strong>da</strong> República. Rio de Janeiro:<br />

1913.), que modifica os artigos 1 o e 3 o do Regulamento aprovado pelo Decreto 10.105/1913, dá as seguintes<br />

re<strong>da</strong>ções: “Artigo 1 o As terras devolutas, situa<strong>da</strong>s no Território Federal do Acre (...) só podem ser<br />

adquiri<strong>da</strong>s por compra, na forma estabeleci<strong>da</strong> pelo presente regulamento e mais disposições em vigor”;<br />

e “Artigo 3 o São reconhecidos como legítimos os títulos expedidos pelos governos <strong>da</strong> Bolívia e do Peru,<br />

do Estado do Amazonas e do ex-Estado Independente do Acre, antes <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção de ca<strong>da</strong><br />

departamento, em virtude <strong>da</strong> Lei 5.188, de 7 de abril de 1904.” (Grifos nossos).<br />

239 Zanatta (op. cit., pp. 9-10)<br />

240 Esse regulamento viria substituir o Regulamento criado pelo Decreto 1.318 de 1854, referente à Lei 601 de 1850.<br />

Tal como o Decreto 2.543 analisado anteriormente, também este não foi efetivamente implementado, tendo sido<br />

revogado pelo Decreto 11.485/1915, cujo artigo único determinava: “Fica suspenso, até que se organize a lei<br />

de terras, que será submeti<strong>da</strong> ao voto do Congresso Nacional, o regulamento a que se referem os<br />

Decretos 10.105, de 5 de março de 1913, e 10.320, de 7 de julho do mesmo ano; revoga<strong>da</strong>s as<br />

disposições em contrário.” (BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Rio de Janeiro:1915).<br />

241 Trata-se de um Decreto e não de uma Lei, como consta do intróito do Decreto 10.105, o que pode <strong>da</strong>r uma<br />

idéia, ain<strong>da</strong> que superficial <strong>da</strong> forma “descui<strong>da</strong><strong>da</strong>” como eram trata<strong>da</strong>s as legislações fundiárias.<br />

133


mínimo pode ser um indicador objetivo <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des do Governo Federal em tentar<br />

disciplinar as posturas administrativa e legislativa acerca <strong>da</strong>s terras do seu domínio. As<br />

implicações desse tipo de dubie<strong>da</strong>de, do ponto de vista jurídico e administrativo - que é<br />

um indicador de dificul<strong>da</strong>des maiores ao nível <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de - implicam sérios óbices ao<br />

encaminhamento do processo de administração <strong>da</strong>s terras devolutas, tanto <strong>da</strong> União<br />

quanto dos Estados, o que facilitará, enormemente, os processos de grilagem<br />

especializa<strong>da</strong>.<br />

Essa confusão fica evidente ao se comparar o texto do Decreto 10.105/1913 ao<br />

do Regulamento que institui. No seu artigo 1 o fica defini<strong>da</strong> a aprovação<br />

“(...) do novo regulamento de terras devolutas <strong>da</strong> União que<br />

com este baixa, assinado pelo Ministro de Estado dos Negócios<br />

<strong>da</strong> Agricultura, Indústria e Comércio.” 242<br />

Pelo enunciado deste artigo é evidente que o mesmo de refere à instituição de<br />

um novo regulamento de terras públicas <strong>da</strong> União, em substituição ao anterior, de 1854.<br />

Entretanto, no texto do próprio regulamento instituído por este Decreto, já no seu<br />

primeiro artigo, retoma-se, de forma abertamente contraditória com o enunciado geral e<br />

o “intróito”, referindo-se à questão específica do Acre, como se a apenas aquele<br />

território se referisse:<br />

“Art. 1 o As terras devolutas, situa<strong>da</strong>s no Território Federal do<br />

Acre, dentro dos limites declarados no tratado assinado em<br />

Petrópolis aos 17 de novembro de 1903, e de acordo com o<br />

Decreto 1.915, de 2 de maio de 1910, só podem ser adquiri<strong>da</strong>s<br />

por título de compra, na forma estabeleci<strong>da</strong> pelo presente<br />

regulamento e mais disposições em vigor.”<br />

E assim, prosseguem os diversos artigos deste contraditório Decreto, ora <strong>da</strong>ndo a<br />

clara impressão de referir-se à totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s terras devolutas <strong>da</strong> União, ora parecendo<br />

referir-se apenas à situação específica <strong>da</strong>s terras devolutas do Acre. Por exemplo, no<br />

artigo 2 o ao definir o que são terras devolutas, reproduz quase na íntegra o texto <strong>da</strong> Lei<br />

601/1850, numa indicação que não deixa dúvi<strong>da</strong>s de se referir ao conjunto <strong>da</strong>s terras <strong>da</strong><br />

União.<br />

Fun<strong>da</strong>mentalmente, este Regulamento aplica os mesmos critérios estabelecidos<br />

pela Lei Imperial de 1850, acrescidos de algumas poucas modificações, especialmente,<br />

no que se referia aos critérios de registros a aos procedimentos de legitimação e<br />

revali<strong>da</strong>ção de posses e concessões, aperfeiçoando esses procedimentos, tanto no que se<br />

referia aos aspectos meramente administrativos, quando houvesse consenso entre o<br />

Estado e os pleiteantes à legitimação de posses; ou a procedimentos contenciosos, ou<br />

judiciais, quando aquele consenso não fosse passível de ser conseguido.<br />

O Capítulo III deste Regulamento ocupa-se do “Registro de Terras” e estabelece<br />

um prazo de “três anos, prorrogável pelo Ministro <strong>da</strong> Agricultura, Indústria e<br />

242 Decreto 10.105 (BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Rio de Janeiro:1913.).<br />

134


Comércio” (art.19) para que todos os concessionários fizessem as declarações de suas<br />

posses de forma detalha<strong>da</strong>, fun<strong>da</strong>mentando-se em documentos ou - na inexistência<br />

destes - no testemunho de pessoas idôneas 243 , de que preenchiam as condições para<br />

requerer a legitimação de suas posses, estando, como sempre, estas, condiciona<strong>da</strong>s à<br />

exploração efetiva e mora<strong>da</strong> habitual.<br />

Entretanto, fato relevante a ser registrado, é que se tratavam apenas de<br />

“declarações”, feitas pelos interessados, de áreas que, supostamente, estavam em seu<br />

domínio e preenchiam as condições de revali<strong>da</strong>ção e legitimação. Nesse sentido,<br />

enquanto meras declarações, aliás como na Lei 601/1850, deveriam, necessariamente<br />

ser toma<strong>da</strong>s à termo pelos oficiais de registro. Exatamente por isso não constituíam<br />

prova suficiente de proprie<strong>da</strong>de, aliás, como explicitamente expõe o artigo 24 do<br />

Decreto em análise:<br />

“Art. 24. As declarações do registro não conferem direito algum<br />

aos possuidores, devendo ser aceitas tais como forem<br />

apresenta<strong>da</strong>s; quando não contiverem as competentes<br />

especificações, poderão ser feitas aos representantes as<br />

observações necessárias, não podendo, porém ser recusa<strong>da</strong>s<br />

as declarações, se as partes insistirem no seu registro.”<br />

“Parágrafo único. No livro de registro serão lança<strong>da</strong>s<br />

resumi<strong>da</strong>mente as observações que forem feitas.” 244<br />

Verifica-se, portanto, a cautela explícita nesse artigo para evitar-se, por um lado,<br />

a recusa arbitrária de se tomar a termos possíveis reivindicações de posses por<br />

presumíveis posseiros e, por outro lado, acautelar contra a utilização <strong>da</strong>s certidões<br />

declaratórias - que apenas serviam para comprovar o cumprimento dos prazos para<br />

apresentação <strong>da</strong>s respectivas declarações - como documentos hábeis de comprovação do<br />

direito de proprie<strong>da</strong>de.<br />

Entretanto, ao que tudo indica, apesar destas cautelas legais, que distingem estas<br />

certidões de declaração de posses, dos títulos definitivos de proprie<strong>da</strong>de, legalmente<br />

regulamentados, parece que muitas certidões declaratórias foram ulteriormente<br />

utiliza<strong>da</strong>s para gerar títulos de proprie<strong>da</strong>de 245 , em evidente afronta à legislação, gerando<br />

portanto, junto com a grilagem especializa<strong>da</strong> e com a simples fraude, uma<br />

ver<strong>da</strong>deira indústria <strong>da</strong> titulação. Esta é uma <strong>da</strong>s situações mais graves gesta<strong>da</strong>s no<br />

processo de ocupação e legitimação privilegia<strong>da</strong>s <strong>da</strong> terra no Brasil e que, antes de mais<br />

243 “Art. 31. Na falta do título <strong>da</strong>s posses de terras, deverá o possuidor fazer, no foro <strong>da</strong> situação do<br />

imóvel, justificação <strong>da</strong> existência <strong>da</strong>s condições estabeleci<strong>da</strong>s nos arts. 5 o , 6 o , 7 o e 8 o , por meio de<br />

testemunhas idôneas, residentes no lugar em questão, ou em suas circunvizinhanças, desde antes <strong>da</strong><br />

soberania do Brasil, nos termos do art. 3 o deste regulamento.” (Decreto 10.105/1913). Note-se que esse<br />

artigo volta a <strong>da</strong>r a clara referência de que o Regulamento se refere à situação específica do Território Federal do<br />

Acre.<br />

244 Decreto 10.105/1913 (Loc. cit.).<br />

245 Fato que ocorrerá sistematicamente, sobretudo no período do Regime Militar, onde essas certidões foram<br />

habilmente utiliza<strong>da</strong>s pela grilagem especializa<strong>da</strong> para “gerar” documentos legitimados, e assegurar supostos<br />

direitos, como tem sido, muitas vezes, denunciado por vários depoentes. Ver a respeito o capítulo 5 deste trabalho e o<br />

Relatório Final <strong>da</strong> CPI do Sistema Fundiário (CÂMARA <strong>DO</strong>S DEPUTA<strong>DO</strong>S, 1979).<br />

135


na<strong>da</strong>, tem que ser enfrenta<strong>da</strong> pelo Estado. Tal constitui-se em medi<strong>da</strong> prévia, portanto,<br />

para o reconhecimento e equacionamento <strong>da</strong> situação fundiária caótica que persiste no<br />

país desde os tempos remotos <strong>da</strong> Colônia e do Império. Este ain<strong>da</strong> se constitui em um<br />

problema atual a ser enfrentado pelo Estado.<br />

No campo <strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong>s terras possuí<strong>da</strong>s, o decreto em análise,<br />

aparentemente apresenta um rigor maior, se comparado com o estabelecido na Lei<br />

601/1850. No artigo 29 fica regulamentado:<br />

“o prazo máximo de quatro anos” para revali<strong>da</strong>ção e legitimação<br />

de posses e concessões, sob pena de as ver cair em comisso e<br />

de serem em to<strong>da</strong> a sua extensão reputa<strong>da</strong>s devolutas;”<br />

ao contrário <strong>da</strong> Lei imperial, que reputava em comisso, apenas, a parte não aproveita<strong>da</strong><br />

efetivamente pelo posseiro ou concessionário que não providenciassem o registro, como<br />

se viu no capítulo anterior. Outra observação relevante a este respeito, refere-se ao fato<br />

de que a revali<strong>da</strong>ção de que trata este artigo, uma vez procedi<strong>da</strong>, nos termos exigidos,<br />

gerava um título processado sob o Sistema de Registro Torrens que, como observado<br />

acima, assegurava plenamente o direito de proprie<strong>da</strong>de ( 1 o do art. 29 do Decreto<br />

10.105/1913).<br />

Por outro lado, o princípio <strong>da</strong> proibição <strong>da</strong> formação de posses sobre terras<br />

devolutas, já consagrado na Lei 601, é reafirmado neste Regulamento (art. 43), ficando<br />

as mesmas sujeitas a ação de despejo e multas, com a per<strong>da</strong> de benfeitorias.<br />

Neste caso está implícita neste Decreto a lógica <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de burguesa: quer<br />

seja proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> ou estatal. E exatamente por se constituir em proprie<strong>da</strong>de, não<br />

poderiam ser passíveis de apossamento, apropriação ou uso, sem o consentimento<br />

explícito de seu titular de direito. Por isso, ou seja, pelo fato mesmo de se fun<strong>da</strong>rem no<br />

princípio liberal <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, é que são proibi<strong>da</strong>s, por definição, as ocupações de<br />

terras públicas; aliás, como são ve<strong>da</strong>dos, pela mesma razão, a formação de posses sobre<br />

as proprie<strong>da</strong>des particulares legítimas. Essas atitudes ou ações - de ocupação de terras<br />

alheias - salvo quando assegura<strong>da</strong>s por outros requisitos legalmente estabelecidos, são<br />

considera<strong>da</strong>s invasões <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de (estatal ou priva<strong>da</strong>) sendo, “ipso facto”<br />

sanciona<strong>da</strong>s negativamente - com multas, despejo, per<strong>da</strong> de benfeitorias, indenizações<br />

por <strong>da</strong>nos etc. Assim sendo, as grandes invasões de terras públicas, pelo latifúndio, fato<br />

notavelmente conhecido na história <strong>da</strong> terra do Brasil é, antes de tudo um ato de afronta<br />

a socie<strong>da</strong>de ao Estado de Direito e à legislação.<br />

No capítulo VIII deste Decreto, que se ocupa <strong>da</strong>s “multas e penali<strong>da</strong>des”, são<br />

mais uma vez defini<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as espécies de atos ilícitos em relação à formação<br />

fraudulenta <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial, que vão desde as “declarações falsas para fins<br />

de obtenção de revali<strong>da</strong>ção ou legitimação de terras” (art.138); à exibição dolosa<br />

de documentos falsos, que ficam sujeitas às penas do Código Penal (art. 139); à<br />

dificultação <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des de demarcação e estabelecimento de divisas e confrontações<br />

(art. 140); à aquisição, por meios fraudulentos, de maior extensão de terras do que a<br />

legalmente permiti<strong>da</strong> (art. 141) - cuja penali<strong>da</strong>de, além de multas, recaía na devolução<br />

136


<strong>da</strong>s terras compra<strong>da</strong>s em excesso com per<strong>da</strong> do preço pago pelas mesmas ao Estado -; a<br />

destruição de marcos demarcatórios de trabalhos topográficos, a dilapi<strong>da</strong>ção de terras<br />

públicas e finalmente, a sabotagem ou bloqueio à execução <strong>da</strong> Lei (respectivamente,<br />

artigos 142 a 145) 246 . Todos estes atos ilícitos são claramente concebidos como<br />

impeditivos à titulação efetiva, podendo e, em certos casos, implicando, a anulação dos<br />

títulos, sem detrimento de outras sanções.<br />

Apesar disso as terras públicas continuaram a ser invadi<strong>da</strong>s e, o que é ain<strong>da</strong> mais<br />

grave, titula<strong>da</strong>s, em evidente contradição com as exigências legais mais elementares,<br />

quando não fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s em documentos falsos, delibera<strong>da</strong>mente frau<strong>da</strong>dos para<br />

fun<strong>da</strong>mentar o registro de proprie<strong>da</strong>des, no contexto do processo que aqui se está<br />

denominando de grilagem especializa<strong>da</strong> 247 . Esse ver<strong>da</strong>deiro fenômeno <strong>da</strong> grilagem<br />

especializa<strong>da</strong> sempre ocorreu, tanto contra os princípios mais elementares <strong>da</strong> política de<br />

ocupação de terras devolutas, assegurados em todos os diplomas legais vigentes no País,<br />

desde a Constituição Federal até o mais simples Decreto ou Portaria de Órgãos do<br />

Executivo e, como é evidente, tanto em prejuízo <strong>da</strong> multidão de pequenos posseiros,<br />

quanto <strong>da</strong> economia do País. Os pequenos posseiros, diga-se de passagem, que<br />

efetivamente residiam em suas posses e as exploravam e que, por isso, sempre tiveram o<br />

direito de proprie<strong>da</strong>de assegurado legalmente, mas, negado pela ação privilegia<strong>da</strong> do<br />

latifúndio e dos oficiais de registro, quando não encoberto pela ação ou omissão do<br />

próprio Judiciário. Este, sempre célere ao reconhecer os “direitos” dos grandes<br />

posseiros, elevados à condição de proprietários legítimos, e sempre omisso, quando não<br />

delibera<strong>da</strong>mente “moroso”, quando se tratava de reivindicações, ain<strong>da</strong> que legítimas, de<br />

pequenos posseiros. Esse fenômeno esta amplamente denunciado, documentado e<br />

reconhecido na história <strong>da</strong>s terras no Brasil 248 .<br />

Apesar dos aspectos relevantes e inovadores do Decreto 10.105/1913, que<br />

procurou retomar o eixo liberal aberto pela Lei 601/1850, para implementar o processo<br />

de regularização fundiária no Brasil, pelo menos no que se referia às terras devolutas <strong>da</strong><br />

União, não foi efetivamente implementado, tendo sido sumariamente revogado dois<br />

anos depois, em 1915, pelo Decreto 11.485, de 10 de fevereiro, cujo único artigo<br />

prescrevia:<br />

“Artigo único. Fica suspenso, até que se organize a lei de terras,<br />

que será submeti<strong>da</strong> ao voto do Congresso Nacional, o<br />

Regulamento a que se referem os Decretos 10.105, de 5 de<br />

246 Ver Decreto 10.105/1913 (Loc. cit.).<br />

247 Ver a esse respeito, entre outros depoimentos <strong>da</strong> CPI do Sistema Fundiário, que é analisa<strong>da</strong> no último capítulo<br />

deste estudo, e o citado depoimento de Ol<strong>da</strong>ir Zanatta à CPI dos Incentivos Fiscais <strong>da</strong> Amazônia, onde este senhor,<br />

então Diretor de Ca<strong>da</strong>stro do INCRA, portanto, pessoa insuspeita para se referir a tais fatos, faz referência ao<br />

conjunto de equívocos, mas, sobretudo, de fraudes nos registros de terras, especialmente ao se referir a deflagração de<br />

“ver<strong>da</strong>deiros processos de grilagem de terras” (Zanatta. Op. cit.).<br />

248 Ver a respeito, as conclusões e os depoimentos <strong>da</strong>s CPI’s - Comissões Parlamentares de Inquérito - do Sistema<br />

Fundiário (1979); dos Incentivos Fiscais <strong>da</strong> Amazônia (1980) e <strong>da</strong>s Causas <strong>da</strong> Violência no Campo (1991). As<br />

referências específicas a estas CPI’s são feitas no capítulo 5.<br />

137


março de 1913 e 10.320 de 7 de julho do mesmo ano; revoga<strong>da</strong>s<br />

as disposições em contrário.”<br />

É, no mínimo curiosa, a coincidência dos termos deste decreto de 1915, com a<br />

“Resolução 249 de Consulta <strong>da</strong> Mesa do Desembargo do Paço”, de 17 de julho de 1822,<br />

que suspendia a concessão de sesmarias até a convocação <strong>da</strong> Assembléia Geral<br />

Constituinte. No caso <strong>da</strong> Resolução n o 76/1822 abriu-se, como foi visto no capítulo 2,<br />

vinte e oito anos de “império <strong>da</strong>s posses”, período no qual o latifúndio avançou de<br />

forma célere, incorporando as terras devolutas do Império, consoli<strong>da</strong>ndo-se<br />

definitivamente na estrutura agrária brasileira 250 , para nunca mais perder este espaço e a<br />

posição política e econômica a ele inerentes.<br />

O Decreto de 1915, de forma semelhante à Resolução de 1822, reporta-se à<br />

“nova lei de terras” que seria submeti<strong>da</strong> ao voto do Congresso Nacional. Esta lei, apenas<br />

será vota<strong>da</strong> em 1946, portanto, trinta e um anos depois 251 , constituindo-se no Decretolei<br />

9.760, de 5 de setembro <strong>da</strong>quele ano. Neste período, como nos 28 anos do “império<br />

<strong>da</strong>s posses”, o Governo Federal virtualmente retira-se <strong>da</strong>s disputas pelas terras<br />

devolutas, deixando-as, neste novo “novo império do latifúndio”, sob a guar<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />

oligarquias regionais arraiga<strong>da</strong>s fortemente nos Estados; com a agravante de que, neste<br />

caso, os direitos de gestão sobre as terras devolutas do País estavam, juridicamente,<br />

assegurados e nas mãos <strong>da</strong>s oligarquias estaduais. Este fato facilitou o avanço <strong>da</strong><br />

legitimação formal <strong>da</strong> ação privilegia<strong>da</strong> sobre a apropriação e alienação de terras<br />

devolutas, especialmente no que se referia ao acesso às terras no âmbito dos Estados <strong>da</strong><br />

Federação.<br />

A esse respeito, assim se pronunciou Ol<strong>da</strong>ir Zanatta em Depoimento à<br />

Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Política de Incentivos Fiscais <strong>da</strong> Amazônia:<br />

“A experiência no trato <strong>da</strong>s terras públicas tem demonstrado que<br />

uma significativa parte dos Estados, não soube <strong>da</strong>r a devi<strong>da</strong><br />

destinação às terras devolutas incorpora<strong>da</strong>s ao seu patrimônio.<br />

Alguns conduziram-nas com próprios federais, com próprios<br />

estaduais e até com terrenos de marinha. Outros titularam a<br />

mesma área mais de uma vez, havendo também diversos casos<br />

de alienação por um Estado de terras devolutas pertencentes a<br />

outro.(...) Mudou também de modo substancial, a sistemática de<br />

alienações de terras públicas: o que antes era para ser<br />

regularizado em função de mora<strong>da</strong> habitual e exploração<br />

efetiva, deu lugar aos processos de aquisição de terras<br />

mediante requerimento.” 252<br />

249 Ver, Resolução 76 de Consulta <strong>da</strong> Mesa do Desembargo do Paço de 17.07.1822 (In.: MEAF, Op. cit., p. 356).<br />

250 Ver capítulos 1 e 2 deste estudo.<br />

251 Apenas à guisa de curiosi<strong>da</strong>de, entre 1850 (ou 1854) e 1964, portanto, aproxima<strong>da</strong>mente 100 a 110 anos de<br />

história agrária do Brasil, somando-se os 28 anos do “império <strong>da</strong>s posses” (1822-1850) aos 31 anos do “novo império<br />

do latifúndio” (1915 a 1946), tem-se que, neste período de 110 anos, durante 60 anos as terras públicas foram<br />

saquea<strong>da</strong>s ilegal e ilegitimamente pela grilagem especializa<strong>da</strong>, passado a se constituírem nas “grandes proprie<strong>da</strong>des”<br />

hoje conheci<strong>da</strong>s.<br />

252 CPI dos Incentivos Fiscais <strong>da</strong> Amazônia (op. cit. pp. 3 - 4. Grifos e sublinhados nossos).<br />

138


Por outro lado, a União, no período de 1915 a 1946, baixou um conjunto<br />

numeroso de normas legais específicas e regulamentos, entretanto, to<strong>da</strong>s eles voltados<br />

para a regulamentação <strong>da</strong> disposição e uso dos bens federais, isto é, que não atingiam<br />

diretamente as terras devolutas dos Estados <strong>da</strong> Federação. Como registra, de forma<br />

correta, Ol<strong>da</strong>ir Zanatta, a respeito destas normas,<br />

“to<strong>da</strong>s, no entanto tinham caráter especial e destinavam-se a regular aspectos<br />

acidentais de matéria mais ampla: os bens imóveis <strong>da</strong> União.<br />

São desse período, por exemplo, normas relativas a aforamentos<br />

e alienações de imóveis, terrenos de marinha, criação de colônias<br />

agrícolas e fun<strong>da</strong>ção de núcleos coloniais, florestas, parques<br />

nacionais, administração de bens públicos, etc., compreendendo<br />

um vasto conjunto de leis e atos caracterizados, na sua maior<br />

parte, pelo casuísmo, oportuni<strong>da</strong>de e conveniência políticoadministrativa.”<br />

253<br />

É importante registrar que um ano depois, em 1 o de janeiro 254 de 1916, com a<br />

Lei 3.071, é sancionado o Código Civil, que “regula os direitos e obrigações de<br />

ordem priva<strong>da</strong> concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações” 255 . O<br />

Código Civil de 1916, juridicamente bem elaborado e, inclusive, considerado um dos<br />

mais avançados do mundo, um “ver<strong>da</strong>deiro monumento jurídico”, apesar disso, em seu<br />

artigo 65 define, apenas genericamente, os bens públicos, distinguindo-os dos<br />

particulares nos seguintes termos:<br />

“São públicos os bens do domínio nacional, pertencentes a União,<br />

aos Estados e aos Municípios. Todos os outros são particulares,<br />

sejam quais forem as pessoas a que pertençam.” 256<br />

Por outro lado, o Código Civil de 1916 contempla dois institutos jurídicos<br />

relevantes para o problema do direito de proprie<strong>da</strong>de, em especial, para o caso que aqui<br />

interessa mais de perto, o Direito Agrário. Tratam-se, por um lado, do instituto do<br />

Direito <strong>da</strong>s Coisas, em particular as questões liga<strong>da</strong>s à posse e à proprie<strong>da</strong>de; e por<br />

outro lado, do Capítulo que se ocupa dos Direitos Reais.<br />

Este último é especialmente relevante para o caso <strong>da</strong>s posses agrárias, haja vista<br />

que estas sempre se fun<strong>da</strong>ram em direito real sobre as terras ocupa<strong>da</strong>s, sem contudo ter<br />

assegurados, formalmente, a plena proprie<strong>da</strong>de - o que apenas poderia ser materializado<br />

pela titulação 257 conforme as formali<strong>da</strong>des legais estabeleci<strong>da</strong>s. É nesse contexto que a<br />

253 Zanatta (op. cit., p. 10. Grifos nossos).<br />

254 Curiosamente em um feriado universal.<br />

255 Lei 3.071, de 1 o . de janeiro de 1916. Código Civil, artigo 1 o (BRASIL: Congresso Nacional. Rio de Janeiro:<br />

1916).<br />

256 Art. 65 do Código Civil de 1916. Ver a esse respeito os comentários de Nascimento (op. cit.,p.104),<br />

MEIRELLES (1991, p. 448) e ALVES (1995, p. 97).<br />

257 Como argumenta com proprie<strong>da</strong>de Nascimento (Op. cit., p. 101. Grifos nossos) “o registro imobiliário, nas<br />

transmissões ‘inter vivos’ entre particulares é fun<strong>da</strong>mental, porque fato gerador <strong>da</strong> constituição do direito.<br />

Sem ele, o direito real não se caracteriza, não há oponibili<strong>da</strong>de ‘erga omnes’, há simples direito pessoal<br />

que se circunscreve a uma relação obrigacional entre duas pessoas. Mas, enten<strong>da</strong>-se, sem o registro na<br />

circunscrição imobiliária não se forma o direito de proprie<strong>da</strong>de. Isso é absolutamente correto nos<br />

139


questão dos registros, conforme abor<strong>da</strong><strong>da</strong> anteriormente apresentava relevância<br />

fun<strong>da</strong>mental e será quase sempre sobre ela que insistirá o Governo no sentido de<br />

disciplinar a proprie<strong>da</strong>de territorial.<br />

De qualquer maneira, mais uma vez, a questão <strong>da</strong> legitimação e reconhecimento,<br />

pelo Estado, <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial é apenas genericamente trata<strong>da</strong> na legislação,<br />

permanecendo, portanto, sujeita às flutuações <strong>da</strong>s ações objetivas de apropriação<br />

priva<strong>da</strong>, especialmente por parte dos mais poderosos, posto que apenas estes, como se<br />

tem evidenciado neste estudo, e como foi vastamente documentado por inúmeros<br />

estudiosos - muitos citados neste estudo - tinham, de fato, poder suficiente para<br />

apoderar-se de grandes parcelas de terras públicas (e particulares, no caso em que<br />

incorporavam inúmeras pequenas posses) e legitimar suas pretensões territoriais.<br />

Inclusive pela via <strong>da</strong> subversão do sistema de registros, sobretudo pela alternativa à<br />

fraude, ou aproveitando-se <strong>da</strong> ignorância a respeito <strong>da</strong>s leis e de direitos que estas<br />

asseguravam, por parte de pequenos posseiros e proprietários. Estes, na maioria dos<br />

casos, foram surpreendidos pelos “donos <strong>da</strong>s terras” que ocupavam há muitas<br />

gerações.” 258<br />

A Constituição de 1934, nasci<strong>da</strong> na nova conjuntura <strong>da</strong> derrota, embora parcial,<br />

<strong>da</strong>s oligarquias agrárias, na “Revolução de 1930”, tenta recuperar o terreno cedido pela<br />

Constituição oligárquica e ultra-federativa de 1891.<br />

No seu artigo 20, ao delimitar os bens <strong>da</strong> União, procede a uma ampliação de<br />

sua abrangência, incorporando parte <strong>da</strong>s terras devolutas que até então tinham sido<br />

transferi<strong>da</strong>s ao domínio dos Estados, incorporando-as aos bens <strong>da</strong> União; e no artigo<br />

166 amplia a faixa de fronteira para cem quilômetros, estabelecendo o parágrafo 3 o<br />

deste artigo, a sua subordinação à regulamentação <strong>da</strong> União e sujeição <strong>da</strong> sua alienação<br />

ao Poder Legislativo, o que limitava a autonomia dos Executivos estaduais. Entretanto<br />

tratava-se, ain<strong>da</strong> assim, de uma modesta incursão neste sentido, o que pode ser um<br />

indicador <strong>da</strong> força que ain<strong>da</strong> mantinham as oligarquias estaduais.<br />

Ao assegurar, no “caput” do art. 113, “a inviolabili<strong>da</strong>de dos direitos<br />

concernentes à liber<strong>da</strong>de, a subsistência, à segurança individual e a proprie<strong>da</strong>de” a<br />

Constituição de 1934 parece confirmar o seu caráter “pós-revolucionário”; entretanto, o<br />

negócios entre vivos.” O que não quer dizer que esse direito seja absolutamente assegurado. Por outro lado, o<br />

registro imobiliário pressupõe alguma fonte anterior de direito: seja a posse legitimável, comprova<strong>da</strong> ou qualquer<br />

outra forma legítima de acesso à proprie<strong>da</strong>de, como as concessões pelo Estado. Nesse sentido, a matrícula do imóvel<br />

e seu respectivo registro apenas dão fé pública, no caso do Registro Torrens, ao título de proprie<strong>da</strong>de caracterizando a<br />

oponibili<strong>da</strong>de ‘erga omnes’. Nesse mesmo sentido, o registro comum de imóveis não trás no seu bojo, senão<br />

segurança relativa, porque assegura apenas a presunção de direito, podendo tal presunção ser desfeita quando, por<br />

exemplo, há defeito na cadeia dominial. Trata-se, portanto de uma presunção “juris tantum" (Cf. Paulo Tormin<br />

Borges, “O imóvel rural e seus problemas jurídicos”, Ed. Saraiva, 1981: 102). Também porque “se quem<br />

transmitiu não era dono, a transcrição também não transmite, porque o título não tem vali<strong>da</strong>de<br />

jurídica”, como afirma Nascimento (Id. Ibdem).<br />

258 Edilson Martins dá um excelente exemplo de situações como esta ao citar o seguinte depoimento de um posseiro<br />

<strong>da</strong> Região do Araguaia: “(...) Quando aqui cheguei tinha minha terra. E quem não tinha? Terra nessas<br />

ban<strong>da</strong>s nunca teve dono, os donos chegaram depois, havia roça, criava umas cabeças de gado e até<br />

bode.(...) Um dia apareceu os donos <strong>da</strong> minha terra, e não é que tentei resistir? E não é que me dei<br />

mal? Não é que tive de fugir depois de estrepar um filho <strong>da</strong> puta, o primeiro na minha vi<strong>da</strong>, na ponta de<br />

um punhal? Uma desgraça !”. (MARTINS, E. op. cit., p. 142. Grifos nossos).<br />

140


item 3, ao assegurar que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico<br />

perfeito e a coisa julga<strong>da</strong>”, embora, aparentemente indique o respeito a um preceito<br />

genérico do direito liberal, na ver<strong>da</strong>de, criava óbices especialmente no que se referia à<br />

tentativa de regularização fundiária, uma vez que poderia ser argüido em defesa de<br />

“direitos” adquiridos em conseqüência de efeitos do “fato consumado” e pela sua<br />

persistência no tempo: como já se fez referência, os célebres prazos decadenciais e<br />

prescricionais, ou simplesmente, ao longo tempo havido na posse, independentemente<br />

de sua magnitude ou utilização.<br />

Fato relevante nesta Constituição de 1934, no que toca a proprie<strong>da</strong>de territorial,<br />

era a referência feita no item 17 do artigo 113 afirmando que:<br />

“É garantido o direito de proprie<strong>da</strong>de, que não poderá ser<br />

exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a<br />

lei determinar. A desapropriação por necessi<strong>da</strong>de ou utili<strong>da</strong>de<br />

pública far-se-á nos termos <strong>da</strong> lei, mediante prévia e justa<br />

indenização (...).” 259<br />

Ao estabelecer que o direito de proprie<strong>da</strong>de era assegurado na condição de não<br />

ser exercido contra o interesse social ou coletivo, esta Constituição dá um largo passo<br />

para consagrar o princípio <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de condiciona<strong>da</strong> à sua função social. É evidente<br />

que a mera proclamação ou mesmo a consagração legal deste princípio não implica<br />

mu<strong>da</strong>nças ao nível concreto <strong>da</strong>s relações sociais de proprie<strong>da</strong>de. Entretanto, por um<br />

lado, esse fato é indicador de que a luta por essas novas condições de existência já se<br />

havia estabelecido ao nível <strong>da</strong>s relações de sociabili<strong>da</strong>de; e, por outro lado, cria<br />

efetivamente, a possibili<strong>da</strong>de, ao nível jurídico, de ampliar estas lutas sociais ain<strong>da</strong> mais<br />

profun<strong>da</strong>mente, na medi<strong>da</strong> em que se constituia em restrição legal a ação discricionária<br />

do latifúndio.<br />

Ain<strong>da</strong> relevante no contexto <strong>da</strong> questão fundiária é a referência Constitucional<br />

ao direito, assegurado no artigo 125, a adquirir o domínio de até 10 hectares de áreas<br />

que possuam e na qual resi<strong>da</strong>m e trabalhem, desde que não sejam proprietários rurais<br />

nem urbanos, e desde que não tenham sido incomo<strong>da</strong>dos por oposição alheia por dez<br />

anos, ou seja, reconhecendo o direito a usucapião sobre terras inexplora<strong>da</strong>s, se<br />

particulares, ou o direito à legitimação de posse sobre terras públicas, recolocando,<br />

desta forma o direito secular de proprie<strong>da</strong>de fun<strong>da</strong>do na exploração efetiva do solo e<br />

residência habitual, assegurado por to<strong>da</strong>s as legislações anteriores, desde o instituto <strong>da</strong>s<br />

sesmaria.<br />

A consagração deste direito na Constituição é relevante, posto que tem sua<br />

vali<strong>da</strong>de obrigatória para todos os Estados <strong>da</strong> Federação e para to<strong>da</strong>s as terras fossem<br />

públicas ou priva<strong>da</strong>s. Isso não quer significar que tal preceito assegurou - e de fato não<br />

o fez - o acesso à legitimação <strong>da</strong>s pequenas posses; entretanto, instituía a possibili<strong>da</strong>de<br />

legal para a defesa dos pequenos posseiros e para a sua luta pela legalização <strong>da</strong>s terras<br />

259 Constituição <strong>da</strong> República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, art. 113, inciso 17. Cabe<br />

registrar a curta duração desta Constituição, substituí<strong>da</strong> pela de 1937, como será comentado adiante.<br />

141


possuí<strong>da</strong>s. Na pior <strong>da</strong>s hipóteses servirá, este preceito, para se documentar a<br />

expropriação e expulsão ilegal de pequenos posseiros <strong>da</strong>s terras que sempre ocuparam.<br />

Assegura, ain<strong>da</strong>, a Constituição de 1934, o “respeito” às posses dos silvícolas,<br />

onde se acharem “permanentemente localizados 260 ”, sendo proibi<strong>da</strong> a alienação.<br />

Finalmente, outro preceito relevante é estabelecido pelo artigo 130, que limita as<br />

concessões a dez mil hectares. Para além desse limite estava sujeita à prévia autorização<br />

do Senado. Tratava-se de uma área efetivamente imensa, o que dá a dimensão <strong>da</strong>s<br />

pressões no sentido de que fosse estabelecido o limite <strong>da</strong>s concessões livres do controle<br />

federal o mais amplamente possível 261 . Tudo isso dá a exata dimensão <strong>da</strong> influência que<br />

as oligarquias agrárias mantinham sobre assuntos de seu interesse direto, mesmo<br />

quando sob a alça<strong>da</strong> do Governo Federal.<br />

A Constituição de 1937, outorga<strong>da</strong> após o Golpe do Estado Novo, restringe os<br />

direitos assegurados pela anterior. Por um lado, mantém inalterados os mesmos limites<br />

assegurados pela Constituição de 1934 para os bens de domínio <strong>da</strong> União e dos Estados<br />

( artigos 36 e 37 <strong>da</strong> Constituição de 1937). Por outro lado, limita sutil, mas efetiva e<br />

amplamente, os direitos sociais assegurados na Constituição de 1934, pelo artigo 113, e<br />

que são reduzidos pelo artigo 122 <strong>da</strong> Constituição de 1937 nos seguintes termos:<br />

“Art. 122. A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no<br />

país o direito à liber<strong>da</strong>de, à segurança individual e a proprie<strong>da</strong>de nos seguintes<br />

termos:<br />

(...)<br />

14. O direito de proprie<strong>da</strong>de, salvo desapropriação por necessi<strong>da</strong>de ou<br />

utili<strong>da</strong>de pública, mediante indenização prévia. O seu conteúdo e os seus<br />

limites serão definidos nas leis que lhes regulares o exercício.”<br />

Observe-se que esse artigo <strong>da</strong> Constituição de 1937 elimina, em seu “caput” a<br />

referência ao fato de que “o direito de proprie<strong>da</strong>de (...) não poderá ser exercido<br />

contra o interesse social ou coletivo.” Por outro lado, mantém, apenas, a<br />

desapropriação por necessi<strong>da</strong>de social ou utili<strong>da</strong>de pública mediante indenização prévia,<br />

entretanto reportando o seu conteúdo e limites para definição “nas leis que regularem<br />

o exercício.” (art.122, 14, <strong>da</strong> Constituição de 1937). Ora, na medi<strong>da</strong> em que se retira a<br />

referência ao fato de o direito de proprie<strong>da</strong>de não poder ser exercido contra o interesse<br />

social ou coletivo, a desapropriação por necessi<strong>da</strong>de ou utili<strong>da</strong>de pública retorna aos<br />

termos conservadores <strong>da</strong> Carta de 1891, já comentados, e que se limitavam a realização<br />

260 Essa expressão “permanentemente localizados”, aparentemente desproposital, foi ulteriormente utiliza<strong>da</strong> para<br />

se tentar a expropriação <strong>da</strong>s reservas indígenas, sob a alegação de que se estes se deslocaram para outras áreas - o que<br />

sempre ocorria pelo fato de serem nômades - caracterizava-se o descumprimento desse preceito previsto no artigo<br />

125 <strong>da</strong> Constituição, perdendo, portanto, a proteção assegura<strong>da</strong> neste artigo, e assim, <strong>da</strong>ndo ensejo a sua ocupação ou<br />

alienação para terceiros. Há nesse sentido até súmula do STF.<br />

261 Como nos debates parlamentares <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1840, que acabaram assegurando na Lei 601 a possibili<strong>da</strong>de de<br />

legitimar posses do tamanho <strong>da</strong>s sesmarias havi<strong>da</strong>s na região ou na mais próxima, sendo ain<strong>da</strong> assegurado a<br />

possibili<strong>da</strong>de de se acrescer a essas posses novas áreas contíguas, havendo, até aquele limite (ver capítulo 2 deste<br />

trabalho). Há muita semelhança nessas duas situações, o que permite levantar a hipótese <strong>da</strong> persistente tentativa de<br />

grandes posseiros em assegurar seus privilégios. Esta será uma constante <strong>da</strong> questão fundiária brasileira, responsável<br />

pela persistente concentração <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de rural por um lado e, pela sistemática e crescente exclusão <strong>da</strong> vasta<br />

população de pequenos proprietários, posseiros, trabalhadores rurais e índios, apesar <strong>da</strong>s “garantias” proclama<strong>da</strong>s em<br />

to<strong>da</strong>s as legislações que a eles se referiam.<br />

142


de obras públicas, servidões, etc. nenhum limite, de fato, imposto a proprie<strong>da</strong>de<br />

territorial enquanto tal, que poderia continuar improdutiva etc. Essa restrição que<br />

reaparece na Constituição de 1937, pode ser li<strong>da</strong> como produto <strong>da</strong>s novas articulações<br />

entre Vargas e as oligarquias, na nova conjuntura de sustentação do Estado Novo 262 .<br />

Nesse contexto, são mantidos os limites de 10 hectares para a legitimação de pequenas<br />

posses mansas e pacíficas (art.148), tal como na Constituição de 1934, e de 10.000<br />

hectares, para a concessão, independentemente de autorização, federal, no caso<br />

transferi<strong>da</strong> do Congresso, para o Conselho Federal (art.155). Esse último artigo indica<br />

claramente a influência do latifúndio na conjuntura agrária enfrenta<strong>da</strong> durante o Estado<br />

Novo.<br />

A novi<strong>da</strong>de, em termos de terras devolutas <strong>da</strong> União vai aparecer no artigo 165,<br />

onde a faixa de fronteira é amplia<strong>da</strong> de 100 para 150 quilômetros, que passam a ser<br />

controla<strong>da</strong>s pelo Conselho Superior de Segurança Nacional. Esta medi<strong>da</strong>, de fato,<br />

ampliava arbitrariamente a área abrangi<strong>da</strong> pelas terras devolutas <strong>da</strong> União em<br />

detrimento <strong>da</strong>s dos Estados. Entretanto, apesar disso a autonomia dos Estados sobre<br />

essas áreas pouco será afeta<strong>da</strong> por esta nova diretriz federal.<br />

Em suma, efetivamente a Constituição de 1937 representou um amplo retrocesso<br />

quanto aos problemas de política fundiária, o que pode ser uma evidência de que o<br />

poder e a influência <strong>da</strong>s oligarquias locais, não foram afetados seriamente pela política<br />

do Estado Novo. Por outro lado, um sintoma evidente desse acordo tácito 263 do Estado<br />

Novo com as oligarquias rurais é o fenômeno, amplamente conhecido, de que as<br />

profun<strong>da</strong>s reformas introduzi<strong>da</strong>s por Vargas nas relações trabalhistas, não são<br />

estendi<strong>da</strong>s ao campo, que continuou tranqüilamente sua trajetória de sempre.<br />

Como escreveu José de Souza Martins:<br />

“É significativo que Vargas não tenha estendido aos trabalhadores<br />

rurais direitos legais semelhantes aos dos trabalhadores urbanos.<br />

Vargas não quis ou não pôde, enfrentar os grandes proprietários<br />

de terra e seus aliados. Foi em seu governo que se<br />

estabeleceram as bases para um pacto político tácito, ain<strong>da</strong><br />

hoje vigente, com modificações, em que os proprietários <strong>da</strong><br />

terra não dirigem o Governo, mas não são por ele<br />

contrariados.” 264<br />

262 Ver a respeito Foweraker, op. cit.<br />

263 “É significativo que Vargas não tenha estendido aos trabalhadores rurais direitos legais semelhantes aos dos<br />

trabalhadores urbanos. Vargas não quis ou não pôde, enfrentar os grandes proprietários de terra e seus aliados. Foi<br />

em seu governo que se estabeleceram as bases para um pacto político tácito, ain<strong>da</strong> hoje vigente, com<br />

modificações, em que os proprietários <strong>da</strong> terra não dirigem o governo, mas não são por ele contrariados”.<br />

Assim se refere José de Souza Martins à conjuntura política de sustentação e alianças entre o Estado Novo e as<br />

oligarquias rurais, embora tenha sido precedido pela conjuntura <strong>da</strong> Revolução de 1930, que colocara na direção do<br />

bloco de poder “uma aliança de militares e oligarquias regionais marginaliza<strong>da</strong>s pelo sistema oligárquico, aliança de<br />

inspiração centralizadora, desenvolvimentista e, em princípio, anti-oligárquica” (In.: MARTINS, J.S. 1994, p. 71-72.<br />

Grifos nossos). Ver a esse respeito, além dos estudos citados, Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxa<strong>da</strong> e voto”,<br />

Editora Alfa-ômega, São Paulo, 1975.<br />

264 MARTINS, J.S (1994, pp. 71-72). Grifos nossos. Ver a este respeito, além dos estudos citados, Victor Nunes<br />

Leal, “Coronelismo, Enxa<strong>da</strong> e Voto”. São Paulo: Alfa-ômega, 1975.<br />

143


Assim se refere Martins à conjuntura política de sustentação e alianças entre o<br />

Estado Novo e as oligarquias rurais, embora, tenha sido precedi<strong>da</strong> pela conjuntura <strong>da</strong><br />

Revolução de 1930, que colocara na direção do bloco de poder “uma aliança de<br />

militares e oligarquias regionais marginaliza<strong>da</strong>s pelo sistema oligárquico,<br />

aliança de inspiração centralizadora, desenvolvimentista e, em princípio, antioligárquica<br />

265 .” Ou, nas palavras de Francisco C. Weffort:<br />

“Este tipo de atitude política (de puro equilíbrio) teve suas<br />

condições de eficiência no compromisso fun<strong>da</strong>mental entre a<br />

estrutura agrária e a indústria incipiente e relativamente marginal<br />

à ativi<strong>da</strong>de econômica básica que era a agricultura. Permaneceu<br />

possível sua eficiência enquanto foi possível a coexistência entre<br />

estes dois setores de produção 266 .”<br />

No que se refere aos problemas especificamente fundiários, como se afirmou<br />

acima, a União apenas retomará a ação legislativa 31 anos após a revogação do Decreto<br />

10.105, em 5 de setembro de 1946, com o Decreto-lei 9.760, que “dispõe sobre os<br />

bens imóveis <strong>da</strong> União e dá outras providências”, treze dias antes <strong>da</strong> promulgação<br />

<strong>da</strong> Constituição de 1946 e após o fim <strong>da</strong> ditadura do Estado Novo.<br />

Segundo Cláudio José Ribeiro 267 , diretor do Departamento de Desenvolvimento<br />

Rural do INCRA, em painel no Simpósio Internacional de Experiência Fundiária,<br />

realizado em Salvador, Bahia, em 1984, o Decreto-lei 9.760 de 1946 foi a maior<br />

inovação introduzi<strong>da</strong> na Lei 601 de 1850. Dispondo sobre os bens imóveis <strong>da</strong> União,<br />

esse decreto-lei regulamentou a discriminação <strong>da</strong>s terras públicas, alterando os<br />

procedimentos puramente administrativos para instituir o processo administrativocontencioso.<br />

Conforme explicitamente estabelecido no Capítulo II - “Da indentificação<br />

dos Bens”, nas partes que se ocupam <strong>da</strong> discriminação <strong>da</strong>s Terras <strong>da</strong> União, (artigos<br />

19 a 31) 268 , regulamenta a discriminação administrativa e na Subseção III, “Da<br />

discriminação Judicial”, estabelece o procedimento contencioso:<br />

“Art.32. contra aqueles que discor<strong>da</strong>rem em qualquer termo <strong>da</strong><br />

instância administrativa ou por qualquer motivo não entrarem em<br />

composição amigável, abrirá a União, por seu representante em<br />

Juízo, a instância judicial contenciosa.” 269<br />

Como se pode inferir pela análise deste Decreto-lei, em certo sentido, ele<br />

corresponde a uma consoli<strong>da</strong>ção e aperfeiçoamento dos princípios jurídicos e regras<br />

estabelecidos desde a Legislação de 1850, incorporando, inclusive todo o conjunto<br />

265 Id. Ibidem.<br />

266 WEFFORT, F. C. 1965, p. 197.<br />

267 RIBEIRO (1984).<br />

268 Esses artigos, pela Lei 6.383 de 7 de dezembro de 1976, que dispõe sobre o processo discriminatório <strong>da</strong>s terras<br />

devolutas <strong>da</strong> União, deixaram de ser aplicados aos imóveis rurais (artigo 32 <strong>da</strong> Lei 6.383/76).<br />

269 Está é a previsão normativa, infra constitucional do “Princípio <strong>da</strong> Universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Jurisdição”, para ser<br />

exercitado em favor <strong>da</strong> União, possibilitando expressamente a revisão <strong>da</strong> matéria aprecia<strong>da</strong> na esfera administrativa,<br />

perante o Poder Judiciário.<br />

144


confuso <strong>da</strong>s legislações republicanas, especialmente após 1915. Tratava-se, de fato, <strong>da</strong><br />

referi<strong>da</strong> “Nova Lei de Terras” referi<strong>da</strong>s no Decreto de 1915, e viria com o intuito de<br />

substituir o Regulamento de 1854.<br />

Entretanto, parafraseando Faoro ao se referir à Lei de Terras de 1850, pode-se<br />

afirmar que essa “nova” Lei de Terras já vinha com, pelo menos 31 anos de atraso. De<br />

1915 a 1946 passaram-se 31 anos de intenso desenvolvimento <strong>da</strong> economia brasileira,<br />

de determinado nível de consoli<strong>da</strong>ção industrial e, sobretudo, de profun<strong>da</strong>s<br />

transformações tanto no âmbito internacional (a Grande Depressão e a II Guerra<br />

Mundial, em particular) quanto no âmbito interno. Como é evidente, nesse período,<br />

igualmente, avançaram e consoli<strong>da</strong>ram-se celeremente as grandes apropriações, em boa<br />

parte sob o patrocínio aparentemente legal, “ven<strong>da</strong>s” pelos Estados; pela expulsão<br />

sistemática, mais uma vez - como no império <strong>da</strong>s posses - dos pequenos posseiros além<br />

<strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de de ver<strong>da</strong>deiros genocídios contra populações indígenas. Ou seja, nesse<br />

período consoli<strong>da</strong>-se, no que toca a questão fundiária, a estrutura do “novo<br />

latifúndio”: mais arrogante e cioso de “seu papel na vocação agrícola do país.”<br />

Assim, juntou-se ao argumento do privilégio, a suposta relevância <strong>da</strong> grande<br />

proprie<strong>da</strong>de para o desenvolvimento <strong>da</strong> economia e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileiras. Mu<strong>da</strong>-se,<br />

desta forma, o discurso do latifúndio, mascarando-se de uma justificativa econômica.<br />

Será, <strong>da</strong>í para adiante, em nome de seu papel fun<strong>da</strong>mental para economia brasileira, e<br />

sempre, para as exportações, que a sua manutenção, modernização e continui<strong>da</strong>de serão<br />

sistematicamente assegurados, inclusive, e ca<strong>da</strong> vez mais, com forte suporte<br />

institucional e apoio dos programas de Governo, especialmente pela via de subsídios,<br />

concessões territoriais e créditos subsidiados. Esses procedimentos, supostamente<br />

fun<strong>da</strong>dos na ciência econômica e na técnica, atingirão seu ápice no período do Regime<br />

Militar.<br />

No início do Governo Juscelino Kubitscheck, na Mensagem presidencial de 15<br />

de março de 1956, propõe-se, uma política de Reforma Agrária que desse solução à<br />

problemática situação do campo, marca<strong>da</strong> conforme o diagnóstico oficial, pelo<br />

“desequilíbrio entre o número reduzido dos proprietários rurais e o número<br />

elevado dos que trabalham em gleba alheia 270 .”<br />

No entanto, ao final de seu Governo, Juscelino “afirmará como justificativa à<br />

sua gestão omissa, posição inversa, ao declarar que mu<strong>da</strong>nças em<br />

profundi<strong>da</strong>de na agricultura teriam sido inócuas sem um respaldo de um<br />

desenvolvimento industrial que o sustentasse 271 .” Em entrevista a jornais do País, o<br />

Presidente <strong>da</strong> República afirmava que, tão somente agora, a “Reforma Agrária é uma<br />

necessi<strong>da</strong>de inadiável (...) pois já existe no Brasil uma indústria de base capaz<br />

270 Citado em Aspásia de Alcântara Camargo. “A questão agrária: crise de poder e reformas de base (1930-1964).<br />

In.: História Geral <strong>da</strong> Civilização Brasileira. [Org. por Boris Fausto, t.III, v. 3, São Paulo: Difel, 2 a ed., 1983, p. 154.<br />

271 CAMARGO, A. A. (1983, p. 154).<br />

145


não só de <strong>da</strong>r cobertura a um tal programa como de levá-lo às conseqüências<br />

mais objetivas.” 272<br />

Deste modo (como no Governo Vargas) a “política do possível” - na<br />

interpretação de Maria Vitória de Mesquita Benevides, no que é segui<strong>da</strong> por Aspásia<br />

Camargo - parece ter sido a de conseguir <strong>da</strong> facção ruralista uma posição de<br />

neutrali<strong>da</strong>de diante do Programa de Metas, em troca <strong>da</strong> conservação <strong>da</strong>s<br />

relações sociais no campo.” 273 A tentativa de aplicação por medi<strong>da</strong> legislativa <strong>da</strong>s<br />

Leis trabalhistas ao campo, feita pelo PTB, é bloquea<strong>da</strong>, no governo Juscelino e só será<br />

aprova<strong>da</strong> no governo Jânio Quadros. A estratégia conciliadora do governo Kubitscheck,<br />

implicou significativo reforço do Departamento Nacional de Obras Contras as Secas<br />

(DNOCS), autarquia Federal, que esteve sempre sob o controle oligárquico 274 , e a<br />

criação <strong>da</strong> Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste, sob direção de Celso<br />

Furtado, declara<strong>da</strong>mente avesso à Reforma Agrária:<br />

“É certo que as concepções que norteiam a criação <strong>da</strong> SUDENE<br />

não implicam ataque frontal à má distribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de do<br />

Nordeste. Enfatizando, porém, uma estratégia global de<br />

racionalização <strong>da</strong> produção agrícola (combina<strong>da</strong> à implantação<br />

industrial e à expansão <strong>da</strong>s fronteiras agrícolas) o objetivo é<br />

confinar a resolução dos conflitos sociais à tensa Zona <strong>da</strong> Mata,<br />

onde se pretende ao mesmo tempo estimular a elevação <strong>da</strong><br />

produtivi<strong>da</strong>de e liberar parte <strong>da</strong>s terras para o cultivo familiar<br />

de alimentos” (...) “a intenção é diluir medi<strong>da</strong>s mais<br />

redistributivas e conflituosas no bojo de um amplo programa<br />

em que muitos interesses serão beneficiados e poucos<br />

radicalmente descartados.” 275<br />

Não obstante, se aos interesses industriais contemplados no Programa de Metas<br />

contentava o mero controle <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s cambiais produzi<strong>da</strong>s por uma agricultura<br />

latifundiária volta<strong>da</strong> à exportação e já estruturalmente esgota<strong>da</strong>, os demais interesses e a<br />

Socie<strong>da</strong>de abriram, no apagar <strong>da</strong>s luzes do governo Juscelino, um amplo debate sobre a<br />

proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra e o conseqüente distino histórico <strong>da</strong>s massas excluí<strong>da</strong>s no campo.<br />

As organizações dos trabalhadores rurais expandem-se e no governo seguinte, de Jânio<br />

Quadros, o debate é retomado em um âmbito mais vasto e complexo, ao efetivar-se<br />

também fora dos quadros institucionais oficiais - Executivo e Congresso. Ao mesmo<br />

tempo, como avalia Aspásia Camargo, é possível deslocar do “governo Goulart para o<br />

governo Jânio o início <strong>da</strong> implementação de um programa oficial de reformas,<br />

que se frusta em virtude de sóli<strong>da</strong>s resistências que encontra no Congresso, na<br />

Socie<strong>da</strong>de Civil, e no âmbito do próprio Estado (Executivo).” Como diz Camargo,<br />

torna-se necessário “captar o impacto <strong>da</strong>s propostas de Reforma Agrária como<br />

272 Id. Ibidem.<br />

273 Idem, p. 155.<br />

274 Cf. Francisco de Oliveira. Elegia para uma re(li)gião. Sudene, nordeste, planejamento e conflito de classes. Rio<br />

de Janeiro: Paz e Terra, 1977.<br />

275 CAMARGO A.A., op. cit., p. 165. Grifos nossos.<br />

146


evelador de uma nova crise de poder” , ou a crise do ciclo populista que tivera<br />

início com Vargas 276 .<br />

Como bem registra José de Souza Martins 277 ,<br />

“O fim do governo Vargas promoveu a restauração <strong>da</strong><br />

democracia(...) e também o retorno ao poder dos representantes<br />

dos interesses oligárquicos e rurais, mantidos sob controle<br />

durante a ditadura. Vargas, em princípio não necessitara <strong>da</strong>s<br />

oligarquias para governar, já que seu governo não dependia<br />

necessariamente do voto (quando dependeu, a opção foi pela<br />

ditadura)...”<br />

A Constituição Federal de 1946, aparentemente, inaugura uma nova fase no<br />

tratamento do problema fundiário brasileiro ao estabelecer no seu artigo 147 que<br />

“o uso <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de será condicionado ao bem estar social. A<br />

lei poderá, com observância do disposto no artigo 141, .16,<br />

promover a justa distribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de com igual<br />

oportuni<strong>da</strong>des para todos.”<br />

Diz-se que, apenas aparentemente estavam lança<strong>da</strong>s as bases para uma nova<br />

postura em relação à questão fundiária, porque, de fato, os preceitos constitucionais de<br />

1946, na forma como foram formulados, realmente não abriam, em nenhum sentido,<br />

espaço para tal perspectiva.<br />

Primeiro porque, na ver<strong>da</strong>de, o artigo 147 <strong>da</strong> Constituição de 1946, representava<br />

um recuo em relação ao preceito no mesmo âmbito, estabelecido pela Constituição de<br />

1934, que era categórico ao afirmar que o direito de proprie<strong>da</strong>de era garantido, mas que<br />

não poderia<br />

“(...) ser exercido contra o interesse social ou coletivo na<br />

forma que a lei determinar.”(Art. 113, 17 <strong>da</strong> Constituição de 1934).<br />

Segundo, porque o artigo 147 é facultativo, ao afirmar que a “Lei poderá”<br />

promover a justa distribuição, o que significa dizer que poderá ou não. Finalmente, o<br />

que é muito relevante e que tem sido realçado por todos os estudiosos, além de se referir<br />

apenas à possibili<strong>da</strong>de, condiciona-a às exigências do artigo 141, 16, que finalmente<br />

condiciona as desapropriações por utili<strong>da</strong>de pública e interesse social, à “prévia e justa<br />

indenização em dinheiro”. Assim, ve<strong>da</strong>-se efetivamente qualquer possibili<strong>da</strong>de de<br />

promoção <strong>da</strong> “justa distribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de com igual oportuni<strong>da</strong>de para<br />

todos.” Tratam-se, claramente de artifícios legislativos muito bem estruturados para<br />

impedir qualquer processo de desapropriação de latifúndios, a menos que lhe seja paga -<br />

neste caso, sim, é categórico - “prévia e justa indenização em dinheiro”.<br />

Entretanto, um fato importante que tem sido negligenciado, e que igualmente é<br />

uma sutileza <strong>da</strong> linguagem cifra<strong>da</strong> do direito, refere-se ao fato, que se tem insistido<br />

neste trabalho, de que, ao se falar em desapropriação, fica subsumido o reconhecimento,<br />

276 Idem. p.169.<br />

277 MARTINS, J. S. (1994, p. 71). Grifos nossos.<br />

147


tácito, mas efetivo, <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de sobre as terras. Esse fato é sempre omisso nas<br />

diversas legislações, mas sempre assegurado tacitamente, e como nos textos legais,<br />

formalmente. Assim, os privilégios são legalmente assegurados.<br />

Como as leis se interpretam, também, à luz <strong>da</strong>s leis anteriores e <strong>da</strong> coerência dos<br />

Sistemas Jurídicos, deu-se no momento histórico uma forte polêmica a respeito <strong>da</strong><br />

intenção <strong>da</strong> lei e <strong>da</strong> jurisprudência (interpretação teleológica-sistemática-histórica).<br />

Voltam à cena medi<strong>da</strong>s já propostas durante o segundo governo Vargas, pelo mesmo<br />

que a havia defendido antes Carlos Medeiros <strong>Silva</strong>. Como disse então esse jurista, a<br />

desapropriação por interesse social que é<br />

“ela sim concebi<strong>da</strong> (como mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de diversa <strong>da</strong> desapropriação<br />

por necessi<strong>da</strong>de ou utili<strong>da</strong>de pública) na elaboração<br />

constitucional, mas a corrente conservadora não aceita a<br />

inovação e pretende identificá-la com as fórmulas tradicionais,<br />

incompatíveis, por sua natureza com a reven<strong>da</strong> do bem<br />

expropriado. Para vender tal resistência, manifesta<strong>da</strong> na Câmara<br />

dos Deputados, Hermes Lima redigiu, emen<strong>da</strong> ao artigo 147 <strong>da</strong><br />

Constituição, libertando-a <strong>da</strong> remissão ao artigo 141, parágrafo<br />

16, como membro <strong>da</strong> Comissão de Juristas, organiza<strong>da</strong> pelo<br />

ministro Nereu Ramos em 1956 278 .”<br />

Com este procedimento procurava-se estabelecer formas de pagamento<br />

estabeleci<strong>da</strong>s em lei, consoante, aliás, na interpretação do jurisconsulto, ao espírito do<br />

legislador constitucional. Já, em outra direção, o substitutivo do deputado José Jofilly,<br />

que ganhara o apoio público de Jânio previa a indenização prévia em dinheiro pelo valor<br />

declarado pelo proprietário para fins de Imposto Territorial Rural, um valor sempre<br />

muito abaixo do preço de mercado 279 .<br />

Nesse contexto, prefere-se neste trabalho, a leitura feita por José de Souza<br />

Martins, em oposição a de Ol<strong>da</strong>ir Zanatta, por exemplo. Este último, afirma de forma<br />

“ufanante”, que<br />

“a Constituição de 1946 inaugurou uma nova fase na evolução do<br />

sistema fundiário brasileiro ao consignar no seu artigo 147, que o<br />

uso <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de será condicionado ao bem estar social.” 280<br />

José de Souza Martins argumenta no sentido contrário, e corretamente, de que<br />

“a Constituição de 1946 não alterou substancialmente esse pacto,<br />

antes o reforçou (...). Uma garantia essencial <strong>da</strong> ordem era o<br />

dispositivo constitucional que estabelecia como restrição às<br />

desapropriações de terra para fins sociais (inclusive, pois, a<br />

reforma agrária) a obrigatorie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> indenização prévia e em<br />

dinheiro ao proprietário. Esse dispositivo tornava a reforma<br />

agrária economicamente inviável. Sendo dispositivo <strong>da</strong><br />

278 Citado em CAMARGO (1983, p. 175).<br />

279 Idem, p. 176.<br />

280 Zanatta, (op. cit., p. 12)<br />

148


Constituição, tornava essa possibili<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong> mais remota (...).”<br />

281<br />

Enfim, tratava-se de assegurar constitucionalmente que as terras em poder dos<br />

latifúndios seriam intoca<strong>da</strong>s. Neste sentido, pode-se afirmar que a Constituição de 1946,<br />

por trás de uma facha<strong>da</strong> “democrática” - democrática, aliás, no sentido de ter sido<br />

promulga<strong>da</strong> na conjuntura que sucedeu à ditadura do Estado Novo - na ver<strong>da</strong>de, era<br />

absolutamente autoritária no que se referia à questão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária. Como de<br />

outras vezes em que se tentou a reestruturação do ordenamento jurídico-institucional no<br />

País, como em 1822, 1850, 1889 e 1930, as oligarquias latifundiárias aparentemente<br />

abrem mão de suas prerrogativas, na Lei, para assegurá-las, na prática. Ain<strong>da</strong> assim,<br />

utilizando-se sempre, e sistematicamente, dos artifícios amplamente permitidos pela<br />

hermenêutica jurídica.<br />

No que toca aos problemas fundiários, uma análise atenta de outros artigos <strong>da</strong><br />

Constituição de 1946 não deixa margem à dúvi<strong>da</strong>s quanto à manutenção <strong>da</strong> mesma<br />

estratégia jurídica e política adota<strong>da</strong> após a aprovação <strong>da</strong> Lei 601 de 1850: a de deslocar<br />

a questão <strong>da</strong> legitimação de to<strong>da</strong>s as terras em domínio particular e <strong>da</strong> arreca<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s<br />

terras públicas, para o campo amorfo e pantonoso <strong>da</strong> colonização oficial, sempre em<br />

áreas externas ao latifúndio. Projeto esse, como sempre, apresentado, sob as vestes de<br />

uma ver<strong>da</strong>deira política de colonização, bem-estar e justiça social.<br />

Tal caso fica evidente no artigo 156 e parágrafos <strong>da</strong> Constituição de 1946:<br />

“Art. 156. A lei facilitará a fixação do homem no campo<br />

estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento de<br />

terras públicas. Para esse fim, serão preferidos os nacionais e,<br />

dentre eles, os habitantes <strong>da</strong>s zonas empobreci<strong>da</strong>s e os<br />

desempregados.”<br />

1 o Os Estados assegurarão aos posseiros de terras devolutas,<br />

que nelas tenham mora<strong>da</strong> habitual, preferência para aquisição<br />

até 25 hectares.<br />

2 o Sem prévia autorização do Senado Federal não se fará<br />

qualquer alienação ou concessão de terras públicas com área<br />

superior a10.000 hectares.<br />

3 o Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano,<br />

ocupar, por dez anos ininterruptos, sem oposição nem<br />

reconhecimento do domínio alheio, trecho de terra não superior a<br />

25 hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele<br />

mora<strong>da</strong>, adquirir-lhe-á a proprie<strong>da</strong>de, mediante sentença<br />

declaratória devi<strong>da</strong>mente transcrita.”<br />

A referência “à preferência para aquisição” fun<strong>da</strong>-se no fato de que as terras<br />

devolutas, públicas, não são, legalmente, passíveis de usucapião (assunto tratado no 3 o<br />

deste mesmo artigo); por isso tinham que ser adquiri<strong>da</strong>s por ven<strong>da</strong> e não adquiri<strong>da</strong>s por<br />

sentença declaratória, como no caso <strong>da</strong> ocupação mansa e pacífica, no tempo, e sem ser<br />

281 MARTINS, J.S. (1994., p.72)<br />

149


perturba<strong>da</strong>, de terras particulares. Neste caso, o suposto é de que estas terras<br />

“particulares” não estavam “cumprindo a sua função social”. Ou seja, os conceitos e<br />

preceitos jurídicos são rigorosamente definidos, o que implica a aceitação <strong>da</strong> hipótese<br />

de que, quando se trata <strong>da</strong> legislação sobre a proprie<strong>da</strong>de territorial, não ocorrem<br />

equívocos involuntários.<br />

Mais uma vez , fica claro o zelo em assegurar a manutenção do privilégio de<br />

acesso às terras públicas, em áreas de até 10.000 hectares; cuja coincidência com a<br />

mesma filosofia posta na Lei 601 pelos, então, grandes posseiros, não pode ser atribuí<strong>da</strong><br />

a mero exercício de rotina. Mais uma vez, trata-se de assegurar privilégios de grandes<br />

posseiros e de excluir os pequenos. Observe-se que o parágrafo terceiro, referido acima,<br />

é repleto de artifícios jurídicos que, em última análise, acabarão por anular o suposto<br />

direito a proprie<strong>da</strong>de por ele assegurado aos pequenos posseiros, em termos do<br />

Usucapião. A exigência de que a aquisição do direito de proprie<strong>da</strong>de, no caso do<br />

usucapião, apenas poderá ser assegura<strong>da</strong> por sentença declaratória devi<strong>da</strong>mente<br />

transcrita, o pressupõe a instalação do processo judicial, com a exigência de to<strong>da</strong>s as<br />

formali<strong>da</strong>des a este necessárias. Como se verá, muitos pequenos posseiros, que<br />

objetivamente tinham direito a esse benefício nos termos do usucapião, por não o terem<br />

requerido (ou sido impedidos de o requerer) pela ação delibera<strong>da</strong> de terceiros, inclusive,<br />

por expulsões, etc.), Não puderam obter as necessárias “sentenças declaratórias”,<br />

acabaram <strong>da</strong>ndo ensejo à expropriação por via registral e <strong>da</strong> grilagem especializa<strong>da</strong>.<br />

Além de se tornarem, esses pequenos posseiros, objeto <strong>da</strong> violência priva<strong>da</strong>,<br />

sobretudo na segun<strong>da</strong> metade deste século, cujo objetivo era a expulsão e a<br />

descaracterização de suas posses, isto é, de seus direitos, como se verá adiante.<br />

Cabe aqui, apenas acrescentar alguma ilustração do que é o procedimento<br />

normal de titulação de terras no Brasil de hoje. Em estudo sobre o Vale do<br />

Jequitinhonha, em Minas Gerais, Maria Apareci<strong>da</strong> de Moraes <strong>Silva</strong> reconstruiu este<br />

procedimento-padrão através do qual as terras de antigos ocupantes são expropria<strong>da</strong>s:<br />

“o cenário amedrontou os camponeses <strong>da</strong>s partes baixas (dos chapadões), <strong>da</strong>s<br />

vere<strong>da</strong>s e <strong>da</strong>s grotas. A linguagem comum era de que ao governo pertenciam<br />

to<strong>da</strong>s aquelas terras e de que ele tomaria tudo.(...) O medo de ficar sem as<br />

terras fez com que os camponeses as “vendessem”, a qualquer preço, aos<br />

compradores paulistas. (...) As terras compra<strong>da</strong>s foram em segui<strong>da</strong> revendi<strong>da</strong>s<br />

às grandes companhias. (...) Nesta ven<strong>da</strong>, ocorreram as retificações de<br />

áreas, um ardil jurídico para disfarçar o roubo <strong>da</strong>s terras 282 .”<br />

A empresa estatal Rural Minas faz a medição e legitimação (expede um título de<br />

domínio) e o Cartório de Registro de Imóveis faz a inscrição titulatória. Pagam-se<br />

pequenas posses com área em torno de 10 hectares e titulam-se latifúndios de até 5.000<br />

hectares e mais 283<br />

282 Cf. SILVA, M.A.M., Fome: a marca de uma história. In.: Maria Antonieta M. Galeazzi (org.) Segurança<br />

Alimentar e Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, 1996, pp. 41-42. Grifos nossos.<br />

283 Id. Ibidem.<br />

150


Após a II Guerra Mundial, especialmente no que se estende de 1946 a 1964, a<br />

par com a nova conjuntura <strong>da</strong>s tensões internacionais, colocava-se o problema <strong>da</strong><br />

“Guerra Fria” e, com ele, o <strong>da</strong> “nova” geopolítica dos grandes blocos ideológicos. Neste<br />

contexto, a economia brasileira desenvolve-se e consoli<strong>da</strong> seu processo de<br />

industrialização, como parte do Bloco Ocidental. Nesse amplo processo de<br />

desenvolvimento e integração hemisférica, a agricultura brasileira expande-se,<br />

sobretudo, pela incorporação de novas áreas produtivas, especialmente, ao longo <strong>da</strong>s<br />

rodovias construí<strong>da</strong>s ou simplesmente projeta<strong>da</strong>s; fato que viria agudizar ain<strong>da</strong> mais a<br />

situação fundiária do país.<br />

Nesse contexto abre-se um amplo debate na Socie<strong>da</strong>de sobre a justificativa<br />

social <strong>da</strong> forma atual <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra. O presidente Jânio afirma no Cairo que “a<br />

era <strong>da</strong>s vastas plantações está terminando.” 284<br />

Enquanto a proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> indústria não é objeto de questionamento, apesar de o<br />

crescimento industrial ser concentrador de ren<strong>da</strong> e fazer-se as expensas de apropriação<br />

priva<strong>da</strong> de vultosos fundos públicos, a proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> grande lavoura é incrimina<strong>da</strong> em<br />

amplos setores <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>de Civil, a que faz coro a Mensagem Presidencial de 1961 e a<br />

conseqüente criação do Grupo de Trabalho para o Estatuto <strong>da</strong> Terra e o apoio à ação<br />

parlamentar do deputado José Jofilly, <strong>da</strong> ala jovem do PSD e <strong>da</strong> Frente Parlamentar<br />

Nacionalista como Relator <strong>da</strong> Comissão Especial <strong>da</strong> Reforma Agrária. O próprio vicepresidente<br />

<strong>da</strong> Associação Comercial e Deputado Federal pela Paraíba, sai a público para<br />

defender medi<strong>da</strong>s semelhantes à <strong>da</strong> Revisão Agrária do Governador Carvalho Pinto, de<br />

São Paulo. E o Instituto Brasileiro de Ação Democrática, promove Simpósio, em cujas<br />

conclusões, insere esta recomen<strong>da</strong>ção:<br />

“Não é possível recuperar o homem do campo no Brasil, isto é,<br />

65% de sua população sem lhe <strong>da</strong>r o instrumento por excelência<br />

que é a proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra. (...) A reforma agrária é um<br />

instrumento eficaz de democratização e promoção social de que<br />

lançam mão hoje os governos dos mais diversos matizes (...)<br />

todos obedientes à necessi<strong>da</strong>de de ascensão <strong>da</strong>s massas<br />

camponesas, que é uma <strong>da</strong>s constantes de nossa época. 285<br />

Os movimentos sociais e a resistência dos pequenos posseiros e proprietários -<br />

especialmente contra a sua expulsão de áreas de terras devolutas que ocupavam, na<br />

maioria <strong>da</strong>s vezes, há muitas gerações - que sempre existiram no país e que sempre<br />

foram objeto <strong>da</strong> repressão oficial ou <strong>da</strong> violência quotidiana e priva<strong>da</strong> dos latifundiários,<br />

entrará na “era <strong>da</strong> guerra fria”, sendo “ipso facto” incorpora<strong>da</strong>s ao campo <strong>da</strong> nova<br />

geopolítica <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do século. Por essa via, a questão agrária, já tantas vezes<br />

trata<strong>da</strong> como caso de polícia, de banditismo social ou de fanatismo religioso, passa a<br />

ganhar “status” de “ameaça à estabili<strong>da</strong>de política e à segurança nacional e<br />

hemisférica.”<br />

284 Cf. Jornal do Comércio, 12 de junho de 1959, cit. em CAMARGO (1983, p. 170.).<br />

285 Apud. CAMARGO (1983, pp. 172-173).<br />

151


Neste novo contexto, o poder dos latifúndios assume, igualmente, a nova<br />

vitali<strong>da</strong>de de aliados paramilitares na “guerra suja” que se anunciara. O problema<br />

fundiário, efetivamente um problema social, passa, nessa conjuntura, a ser encarado<br />

como um problema adstrito à segurança interna, sendo, por isso, militarizado.<br />

Os posseiros, especialmente, aqueles que tentam lutar por seus direitos à terra,<br />

assumem, juntamente com seus aliados - políticos, intelectuais, sindicalistas, membros<br />

do clero, etc. - a condição de “inimigos internos”.<br />

São os novos tempos que se avizinham, e que trarão vinte anos de regime<br />

autoritário, nos quais a questão fundiária, nunca resolvi<strong>da</strong> até então, será trata<strong>da</strong> e<br />

retrata<strong>da</strong> com as cores, ora eufóricas, <strong>da</strong> integração e desenvolvimento nacionais; ora<br />

sombrias, enquanto grave ameaça à segurança interna e hemisférica. Neste contexto, <strong>da</strong><br />

questão fundiária e <strong>da</strong> luta pela terra, a legislação e o privilégio, têm um novo<br />

fun<strong>da</strong>mento: o serviço de defesa <strong>da</strong> pátria.<br />

152


CAPÍTULO 4<br />

A POLÍTICA FUNDIÁRIA <strong>DO</strong> REGIME MILITAR: 1964-1984<br />

1. Antecedentes Mediatos <strong>da</strong> Conspiração Militar e Questão Agrária<br />

Não caberia, num estudo desta natureza e tendo em consideração os seus<br />

objetivos específicos, uma análise detalha<strong>da</strong> <strong>da</strong>s diversas conjunturas que, no decorrer<br />

de um razoável período de tempo, implicaram na conspiração de 1964.<br />

Entretanto, o tratamento <strong>da</strong>do pelos Governos Militares à questão <strong>da</strong> luta pelo<br />

acesso à proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra e pelas condições de trabalho no campo, por um lado, e a<br />

compreensão, nesse contexto, <strong>da</strong> Política Fundiária posta em movimento, por outro<br />

lado, não poderiam ser adequa<strong>da</strong>mente fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s sem uma referência, ain<strong>da</strong> que<br />

“en passant”, às diversas conjunturas e movimentos que se vinham gestando no País<br />

desde, pelo menos, o segundo Pós-Guerra; e que, finalmente, implicaram na vitoriosa<br />

conspiração, em 1964, que repôs no poder as forças mais conservadoras do país 286 .<br />

Na conjuntura deste período, certamente, a questão agrária era relevante.<br />

Entretanto, apenas uma, entre outras questões, igualmente relevantes, como a cambial, a<br />

<strong>da</strong> remessa de lucros, a <strong>da</strong> nacionalização de empresas, especialmente as refinarias de<br />

petróleo, etc. Em suma, tratava-se de um conjunto de questões econômicas e políticas<br />

importantes, e que transcendiam, em muito, aos problemas estritamente ligados à<br />

questão fundiária.<br />

Tendo-se em consideração os profundos e complexos problemas políticos e<br />

econômicos, entre outros - tanto internos quanto nas relações com o exterior -<br />

envolvidos na conjuntura do segundo pós-guerra, pode-se afirmar com certa<br />

tranqüili<strong>da</strong>de, que o destaque assumido pela questão agrária, apesar <strong>da</strong>s contradições e<br />

<strong>da</strong> gravi<strong>da</strong>de que, efetivamente, apresentava, estava, apesar disso, muito mais associado<br />

à alega<strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pobreza rural vir a se constituir em base para uma possível<br />

286 Para uma descrição e análise detalha<strong>da</strong>s, desse período, remetemos o leitor aos seguintes estudos, entre outros<br />

também relevantes: SKIDMORE, T (1994; 1982-1996 E 1988/1994); BASBAUM, L. (1995-1996); CARONE, (1980<br />

e 1982); ALBUQUERQUE. (1984). Para um estudo mais detalhado <strong>da</strong> conjuntura imediata <strong>da</strong> Conspiração, ver o<br />

livro de “Diários e Memórias” do Senador Auro Moura Andrade, publicado postumamente, em 1985, por Glauco<br />

Carneiro (MOURA ANDRADE, 1985).<br />

153


evolução, de fundo agrário e de caráter socialista, nos moldes <strong>da</strong>s Revoluções Chinesa<br />

ou Cubana, do que a qualquer outra pretensão dos conspiradores em promover a “justa<br />

e eqüitativa distribuição <strong>da</strong> terra”.<br />

Aquela argumentação, aliás, seria a tecla, reitera<strong>da</strong>mente aciona<strong>da</strong>, tanto pelos<br />

militares 287 e grupos conservadores do Brasil, quanto por alguns organismos<br />

internacionais, especialmente dos Estados Unidos 288 , como a “Agência Internacional de<br />

Desenvolvimento” (AID) e a “Aliança Para o Progresso 289 ” que exerceram forte<br />

influência, na época, sobre os países latino-americanos, entre eles o Brasil .<br />

Por outro lado, a sucessão de golpes e tentativas de golpes de estado, no Brasil,<br />

deixam evidente que a luta pelo poder, que se travava no País, tinha razões que<br />

transcendiam, em muito, a questão agrária e a pobreza rural, embora não fosse a estas<br />

indiferentes. Somando-se a isto o contexto do acirramento <strong>da</strong>s contradições políticas e<br />

ideológicas engendra<strong>da</strong>s no âmbito <strong>da</strong> Guerra Fria 290 , pode-se ter uma noção mais ou<br />

menos objetiva <strong>da</strong> gravi<strong>da</strong>de dos problemas envolvidos no período. Tratavam-se, no<br />

caso brasileiro, do golpe de 1945, que pôs fim ao Estado Novo; <strong>da</strong> tentativa de golpe de<br />

1954, frustra<strong>da</strong> pelo suicídio de Vargas, e, sobretudo, pela vigorosa reação popular<br />

contra os conspiradores; <strong>da</strong> nova tentativa de golpe, contra o Governo Kubitschek 291 ,<br />

também sufoca<strong>da</strong>; <strong>da</strong> renúncia do Presidente Jânio Quadros, após, aparentemente,<br />

afastar-se <strong>da</strong>s expectativas políticas <strong>da</strong> UDN e <strong>da</strong> implementação do programa de<br />

austeri<strong>da</strong>de do FMI; e, finalmente, <strong>da</strong> tentativa de golpe para impedir a posse, legítima<br />

e constitucional, do Vice-Presidente João Goulart, em 1961.<br />

287 Como se pode verificar pela seguinte passagem do “Manifesto dos Ministros Militares”, de 30 de agosto de<br />

1961, apresentando ao Congresso Nacional as alegações para impedir o retorno e, conseqüentemente, a posse do<br />

Vice-Presidente João Goulart: “(...) As Forças Arma<strong>da</strong>s do Brasil, através <strong>da</strong> palavra autoriza<strong>da</strong> de seus<br />

Ministros, manifestam à Sua Excelência o Sr. Presidente <strong>da</strong> República (Ranieri Mazzilli) como já foi<br />

amplamente divulgado, a absoluta inconveniência, na atual situação, do regresso ao País do Vice-<br />

Presidente, Sr. João Goulart.” (Vem) “(...) agora com aquiescência do Sr. Presidente <strong>da</strong> República,(...)<br />

ressaltar, de público, algumas <strong>da</strong>s muitas razões em que fun<strong>da</strong>mentam aquele juízo (...) Já ao tempo<br />

em que exercia o cargo de Ministro do Trabalho, o Sr. João Goulart demonstrara, bem às claras, suas<br />

tendências ideológicas, incentivando e mesmo promovendo agitações(...) E não menos ver<strong>da</strong>deira foi a<br />

infiltração que, por essa época, se processou no organismo <strong>da</strong>quele Ministério, até em pontos-chaves de<br />

sua administração( ...) de ativos e conhecidos agentes do comunismo internacional, além de<br />

incontáveis elementos esquerdistas”. (In.: MOURA ANDRADE, op. cit. pp. 66-67. Grifos nossos).<br />

288 A respeito, especificamente, <strong>da</strong> manipulação ideológica dos problemas econômicos, sociais, políticos, etc.<br />

especialmente com relação ao espaço latino-americano, ver o excelente estudo de KATCHATUROV, K.A. (1980),<br />

muito particularmente, os Capítulos II, III e IV. Com relação, especificamente, à doutrina <strong>da</strong> Segurança Nacional, e o<br />

caso do Brasil, ver COMBLIN, J. (1978), especialmente os capítulos 1, 2 e 4.<br />

289 Formulado em 1961, o Programa <strong>da</strong> “Aliança para o Progresso” era parte fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> Política de “Novas<br />

Fronteiras” do Governo Kennedy. Na ver<strong>da</strong>de este Programa representava a continuação, sob novas formas, dos<br />

mesmos princípios formulados pela “Doutrina Monroe” (de 1833) nunca abandona<strong>da</strong>, e <strong>da</strong> Política do “Big-Stick”,<br />

instituí<strong>da</strong> no Governo Roosevelt, de 1901-1909 (ver. KATCHATUROV, op. cit. Capítulo 1).<br />

290 O “Manifesto dos Ministros Militares”, acima referido, assim se referia a este problema: “Ora, no quadro de<br />

grave tensão internacional, em que vive dramaticamente o mundo de nossos dias, com a comprova<strong>da</strong><br />

intervenção do comunismo internacional na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s nações democráticas e, sobretudo, <strong>da</strong>s mais<br />

fracas, avultam, à luz meridiana os tremendos perigos a que se acha exposto o Brasil” com a possibili<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> posse de João Goulart na Presidência <strong>da</strong> República. (In.: MOURA ANDRADE, op. cit. 67. Grifos nossos). José<br />

de Souza Martins localiza, com proprie<strong>da</strong>de, a relevância do contexto criado pela “Guerra Fria” no sentido <strong>da</strong><br />

radicali<strong>da</strong>de com que as lutas camponesas passaram a ser trata<strong>da</strong>s e reprimi<strong>da</strong>s pelo Estado brasileiro no segundo<br />

pós-guerra. Ver MARTINS, J.S. (1994).<br />

291 Ver a respeito desta tentativa de golpe, o conjunto de documentos publicados por Edgard Carone (CARONE,<br />

1980: 142 a 148). Ver também (MOURA ANDRADE, op. cit., especialmente as páginas 27-31).<br />

154


Todos esses fatos são indicadores bastante objetivos de que o Golpe de 1964 não<br />

era um fato isolado, nem muito menos novo, mas que, ao contrário, apenas representou<br />

o momento vitorioso desse conjunto de tentativas frustra<strong>da</strong>s de retoma<strong>da</strong> do poder pelas<br />

elites mais conservadoras do país, amplamente comprometi<strong>da</strong>s com um determinado<br />

projeto, supostamente liberal, de “abertura” e internacionalização <strong>da</strong> economia<br />

brasileira, mas, sobretudo, de alinhamento do Brasil no âmbito <strong>da</strong> aliança Ocidental. Ou<br />

seja, no âmbito do “bloco anti-soviético”.<br />

Neste sentido, é evidente que não se tratava, apenas, de um Golpe,<br />

especificamente voltado contra o Governo de João Goulart 292 , fun<strong>da</strong>do no fato de que o<br />

Presidente ter-se-ia guinado para as esquer<strong>da</strong>s, ou de haver sido deflagrado em<br />

decorrência <strong>da</strong> inabili<strong>da</strong>de política do Presidente para li<strong>da</strong>r com uma crise,<br />

supostamente, conjuntural, como argumenta Skidmore 293 . Este era, certamente, o<br />

pretexto, nunca o motivo <strong>da</strong> conspiração. Tratava-se, como os fatos ulteriores vieram a<br />

deixar evidente, de um golpe contra qualquer aspiração à auto-determinação política do<br />

País, e sobretudo, contra à escolha, que aparentemente estava sendo feita, por uma via<br />

democrática e independente de desenvolvimento <strong>da</strong> economia nacional, e de nãoalinhamento<br />

no campo político. Tudo isto feria os princípios consagrados na “Doutrina<br />

Monroe”, nunca abandona<strong>da</strong>, especialmente tendo-se em consideração a conjuntura <strong>da</strong><br />

“Guerra Fria” e <strong>da</strong> alega<strong>da</strong> “ameaça do comunismo internacional”.<br />

Os motivos 294 e, sobretudo, os objetivos do Golpe, ao que as evidências parecem<br />

indicar, eram outros, e estavam fortemente marcados pelas posições políticas e<br />

ideológicas deriva<strong>da</strong>s <strong>da</strong> “doutrina Monroe” e, em especial, <strong>da</strong> sua concretização na<br />

“política preventiva”, estrutura<strong>da</strong> no início do século, e que lançava as primeiras bases<br />

para o “direito” de intervenção dos Estados Unidos nos assuntos internos dos países<br />

latino-americanos sob o pretexto de combater “a anarquia reinante e as<br />

292 O Senador Auro de Moura Andrade, presidente do Senado e do Congresso Nacional, na oportuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

renúncia de Jânio Quadros, assim avalia aquele fato: “Está claro que João Goulart acabaria sendo o<br />

herdeiro dos males advindos <strong>da</strong>quele grande crime praticado por Jânio Quadros (...). Foi ele quem,<br />

com sua fuga aos deveres, desamparou e cassou a própria geração e a geração de nossos filhos, os<br />

direitos, as garantias, as liber<strong>da</strong>des de nosso povo no dia em que praticou o supremo crime <strong>da</strong><br />

infideli<strong>da</strong>de à democracia. Todos os jovens que até hoje não puderam votar num Presidente <strong>da</strong><br />

República saibam que isto se dá pelo ato irresponsável do Sr. Jânio Quadros”. Este depoimento, de<br />

Auro Moura Andrade deixa claro que o Golpe de 1964 ganha vigor nesta conjuntura. O importante, no depoimento,<br />

não é a acusação ao Sr. Jânio Quadros, mas o fato de localizar, na sua renúncia, o terreno fértil, o pretexto, como se<br />

afirma neste trabalho, para a aceleração do movimento conspiratório. Por outro lado, fica sub-explícito, neste mesmo<br />

depoimento, o fato de que João Goulart e o seu Governo não foram a causa nem provocaram o Golpe, mas, sim, que<br />

foram surpreendidos por este.<br />

293 SKIDMORE, T. (1988). Ver, especialmente, os capítulos I e II, onde, apesar de uma vigorosa e sistemática<br />

análise de vasto material empírico e de ampla literatura, Skidmore procura argumentar no sentido de minimizar o<br />

papel dos Estados Unidos nos acontecimentos de 1964, tendendo a argumentar no sentido de que, caso o Presidente<br />

João Goulart fosse um político mais hábil, poderia ter evitado a sua deposição e o Golpe de Estado. Entretanto, outros<br />

trabalhos, especialmente, o excelente estudo-denúncia de Marcos Sá Corrêa (CORRÊA, 1977), fun<strong>da</strong>mentado em<br />

vasta documentação, inclusive do Departamento de Estado Norte Americano e <strong>da</strong> CIA, põe em evidência a hipótese<br />

contrária.<br />

294 Segundo Ianni vários eram os motivos alegados para o Golpe: “A inflação, a que<strong>da</strong> <strong>da</strong> taxa de inversões, as<br />

greves operárias, a politização crescente <strong>da</strong>s classes assalaria<strong>da</strong>s, na ci<strong>da</strong>de e no campo, a luta pelas<br />

reformas de base (agrária, bancária, habitacional, educacional e outras), vários foram os motivos<br />

alegados pelo imperialismo e seus aliados no País, para justificar e apressar o Golpe de Estado de 31 de<br />

março <strong>da</strong> 1964”. (IANNI, 1979(a), p. 17)<br />

155


‘transformações políticas indesejáveis’, e, mais tarde (...) a ‘ameaça do<br />

comunismo.” 295 Essas posições doutrinárias dos Estados Unidos assumiram grande<br />

relevância no contexto <strong>da</strong> Guerra Fria.<br />

Por outro lado, a expressão ideológica e unificadora dessa ver<strong>da</strong>deira doutrina de<br />

ação política, fun<strong>da</strong>va-se no discurso, aparentemente científico, mas prosélito, do<br />

anticomunismo, baseado na falsa oposição entre “democracia e socialismo” 296 , e<br />

tendo a sua estratégia pragmática de ação, “teoricamente”, elabora<strong>da</strong> com base na<br />

concepção do combate ao “inimigo interno” e fun<strong>da</strong>do na doutrina <strong>da</strong> Segurança<br />

Nacional e na defesa hemisférica 297 . Pode-se mesmo afirmar que essa doutrina era a<br />

base de uma espécie particular de “marketing político” do capitalismo ou, mais<br />

exatamente, do capitalismo norte-americano. Por outro lado, como argumenta Thomas<br />

Skidmore 298 , os problemas e as questões associa<strong>da</strong>s à conspiração de 1964 vinham-se<br />

desenvolvendo desde longa <strong>da</strong>ta:<br />

“O desenlace do Governo Vargas de 1951-54 criou o contexto<br />

político e as linhas de ação para a déca<strong>da</strong> seguinte. Havia, em<br />

primeiro lugar, a questão do nacionalismo econômico. Como o<br />

Brasil deveria tratar os investidores estrangeiros? Que áreas<br />

(como petróleo, minérios, etc.) deveriam ser reserva<strong>da</strong>s para o<br />

capital nacional, público ou privado? Como poderia o país<br />

maximizar seus ganhos com o comércio exterior?<br />

(...)<br />

“As relações trabalhistas no setor agrícola também<br />

reclamaram atenção durante o governo de Getúlio Vargas. No<br />

início de 1954 o presidente autorizou o ministro do Trabalho, João<br />

Goulart, a <strong>da</strong>r começo à organização dos trabalhadores agrícolas<br />

do estado de São Paulo. O maior índice de pobreza do Brasil era<br />

apresentado no campo, onde a ren<strong>da</strong> e os serviços públicos eram<br />

muito precários em relação aos <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des. Faltava, entretanto,<br />

a Vargas, qualquer apoio político mobilizável para aquela<br />

295 KATCHATUROV (Op. cit., p.19).<br />

296 Essa falsa dicotomia é explicitamente utiliza<strong>da</strong> na Mensagem 33, do General Humberto de Alencar Castelo<br />

Branco, que encaminha a Lei 4.504, o Estatuto <strong>da</strong> Terra, ao Congresso Nacional, ao tentar caracterizar as duas<br />

alternativas possíveis, segundo os teóricos do documento, para a Reforma Agrária. (BRASIL. Presidência <strong>da</strong><br />

República. Brasília: 1964).<br />

297 Esses fenômenos são explicitamente reconhecidos por Skidmore: “Os conspiradores sustentavam idéias<br />

marca<strong>da</strong>mente anticomunistas desenvolvi<strong>da</strong>s na ESG (Escola Superior de Guerra), segundo o modelo do<br />

National War College dos Estados Unidos. No Brasil a ESG já era um centro altamente influente de<br />

estudos políticos através de seus cursos de um ano de duração freqüentados por igual número de civis e<br />

militares destacados em suas áreas de ativi<strong>da</strong>de. Da doutrina ali ensina<strong>da</strong>, constava a teoria <strong>da</strong> ‘guerra<br />

interna’ introduzi<strong>da</strong> pelos militares no Brasil, por influência <strong>da</strong> Revolução Cubana. Segundo essa teoria, a<br />

principal ameaça vinha não <strong>da</strong> invasão externa, mas dos sindicatos trabalhistas de esquer<strong>da</strong>, dos<br />

intelectuais, <strong>da</strong>s organizações de trabalhadores rurais, do clero, dos estu<strong>da</strong>ntes e dos professores<br />

universitários. To<strong>da</strong>s essas categorias representavam séria ameaça para o país e por isso, teriam<br />

que ser to<strong>da</strong>s elas neutraliza<strong>da</strong>s ou extirpa<strong>da</strong>s através de ações DECISIVAS.” (SKIDMORE,<br />

1988/1994, p. 22. Grifos nossos).<br />

298 A respeito <strong>da</strong>s conjunturas, especialmente, políticas, do amplo período que vai do Governo Vargas, em 1930 à<br />

Tancredo Neves, em 1985, ver os excelentes trabalhos de Thomas Skidmore (SKIDMORE, 1988/1994 e 1982/1996).<br />

Foi dos trabalhos de deste autor que retiramos o termo “conspiração” que é usado, neste estudo, para se referir ao<br />

movimento que derrubou o Governo Constitucional de João Goulart.<br />

156


iniciativa. Por outro lado os grandes proprietários de terras<br />

estavam bem representados em todos os níveis<br />

governamentais, <strong>da</strong>í resultando o aumento do número dos<br />

inimigos ativos do presidente sem que conseguisse realizar<br />

qualquer reforma.” 299<br />

É nesse contexto, que a resistência dos pequenos agricultores sem terra ou com<br />

pouca terra, dos trabalhadores rurais e, sobretudo, dos posseiros, começa, no pós-guerra,<br />

a assumir novas formas de organização e de luta. A politização destas lutas sociais no<br />

campo começa a assustar, ca<strong>da</strong> vez mais, as oligarquias agrárias e as elites políticas<br />

conservadoras, em particular, os militares. Sobretudo, na medi<strong>da</strong> em que passava a<br />

articular os movimentos e reivindicações rurais com as lutas urbanas, especialmente no<br />

âmbito sindical, oferecendo, desta forma, maior organici<strong>da</strong>de às reivindicações de<br />

acesso às terras, em particular, as devolutas. Por outro lado, ganha certa expressão as<br />

reivindicações de direitos trabalhistas e a extensão destes ao campo 300 , particularmente<br />

no Nordeste.<br />

Mais uma vez, e desta vez de forma sistemática e organiza<strong>da</strong>, os pequenos<br />

posseiros e trabalhadores rurais procuram garantir o seu direito de permanência ou<br />

acesso à terra e aos frutos do seu trabalho, em franca oposição ao livre acesso, que<br />

sempre tiveram à terra e à subordinação do trabalho, os latifundiários, os “grandes<br />

posseiros” privilegiados. Nesse sentido, tem razão José de Souza Martins ao afirmar<br />

que:<br />

“Depois de déca<strong>da</strong>s de imobilismo, quebrado eventualmente<br />

pelos movimentos messiânicos e por anárquicas manifestações<br />

de banditismo rural no Nordeste, mas também em São Paulo e<br />

Santa Catarina, os trabalhadores rurais de várias regiões, durante<br />

os anos cinqüenta, começaram a manifestarem-se de modo<br />

propriamente político.” 301<br />

O que se quer realçar, com as referências acima, é o fato de que a luta pela terra,<br />

em particular, e os movimentos de resistência dos pobres do campo, de modo geral,<br />

sempre estiveram presentes no Brasil. Portanto, tratavam-se de questões e de problemas<br />

que não eram, em nenhum sentido, uma novi<strong>da</strong>de no contexto <strong>da</strong> conspiração de 1964,<br />

nem, menos ain<strong>da</strong>, produtos de ações ou de omissões delibera<strong>da</strong>s do Governo João<br />

Goulart.<br />

A novi<strong>da</strong>de, em relação ao problema, residia no fato de que as reivindicações<br />

dos pequenos posseiros, pequenos proprietários e trabalhadores rurais passaram a<br />

assumir formas reivindicatórias organiza<strong>da</strong>s e públicas, fugindo, assim, ao estrito<br />

arbítrio <strong>da</strong> patronagem. Até então, a luta efetiva pela proprie<strong>da</strong>de territorial e pela<br />

299 SKIDMORE, T. (1988/1994, pp. 26 e 27). Grifos nossos.<br />

300 Que, como se viu na citação acima, havia sido levanta<strong>da</strong> na gestão Vargas, em 1954, <strong>da</strong>ndo origem à que<strong>da</strong> do<br />

Ministro do Trabalho, João Goulart.<br />

301 MARTINS, J. S. (1994, p. 60). Grifos nossos.<br />

157


defesa contra a exploração do trabalho, restrita ao âmbito dos grupos privilegiados,<br />

sempre foram, de uma ou de outra formas, resolvidos, como se viu nos capítulos<br />

anteriores, ou nos bastidores <strong>da</strong> administração do Estado, ou fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s na violência<br />

direta dos latifundiários e poderosos. E sempre em detrimento <strong>da</strong> massa dos pequenos<br />

posseiros e dos pobres do campo. Estes, na melhor <strong>da</strong>s hipóteses, ou eram empurrados<br />

para regiões ca<strong>da</strong> vez mais distantes, ou assimilados como agregados, “arren<strong>da</strong>tários”<br />

ou “parceiros” 302 . Quando não eram pura e simplesmente eliminados fisicamente,<br />

situação, aliás, não desprezível em qualquer análise desta problemática, considerando-se<br />

a sua magnitude e seu significado nos processos de expropriação territorial.<br />

Como foi amplamente discutido no capítulo 2, ao deslocar a questão <strong>da</strong><br />

legalização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, pretendia pela Lei 601 de 1850, para a alternativa à<br />

colonização (reduzi<strong>da</strong> esta, ou ao colonato nas fazen<strong>da</strong>s de café; ou ao<br />

“desbravamento”), o latifúndio empurrou, igualmente, o problema <strong>da</strong> aquisição <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra, pelos pobres, para distante de suas áreas de influência ou interesse.<br />

E, sobretudo, para as margens <strong>da</strong>s determinações legais.<br />

Era, como pôde ser verificado em detalhes nos capítulos anteriores,<br />

formalmente, reconhecido o direito ao acesso à proprie<strong>da</strong>de terra pelos pequenos<br />

posseiros, desde que este direito fosse exercido de forma estritamente limita<strong>da</strong>, tanto em<br />

termos <strong>da</strong> dimensão <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des, quanto realizado em regiões afasta<strong>da</strong>s dos<br />

domínios do latifúndio: o que significava uma referência clara à colonização 303 no<br />

sentido de ocupação e desbravamento <strong>da</strong>s fronteiras. A outra alternativa, a esta<br />

associa<strong>da</strong>, era a incorporação de imigrantes, inicialmente estrangeiros e depois, também,<br />

nacionais, às grandes explorações. Em síntese, o acesso à terra sempre esteve, na<br />

prática, ve<strong>da</strong>do ao grosso <strong>da</strong> população pobre do campo, embora fosse, formalmente,<br />

assegurado.<br />

O fato é que, juridicamente, não havia como assegurar os direitos de proprie<strong>da</strong>de<br />

para as grandes posses sem assegurar o mesmo direito, ain<strong>da</strong> que formalmente, para<br />

to<strong>da</strong>s as posses, independentemente dos seus respectivos tamanhos: Portanto, teriam<br />

que ser extensivos, também, às pequenas posses. Tratava-se de manter, pelo menos<br />

formalmente, o instituto jurídico <strong>da</strong> “isonomia”, um dos pilares do Direito.<br />

302 Ver a este respeito, entre muitos outros, por exemplo, IANNI (1984).<br />

303 José Vicente Tavares dos Santos, em seu excelente artigo “Colonização de novas terras: a continui<strong>da</strong>de de<br />

uma forma de dominação, do Estado Novo à Nova República.” (SANTOS, 1995), coloca com muita proprie<strong>da</strong>de o<br />

sentido do processo de colonização, tal como proposto e posto em prática no Brasil, nos seguintes termos: “Há trinta<br />

anos, a socie<strong>da</strong>de brasileira aguar<strong>da</strong> a implementação ampla <strong>da</strong> reforma agrária prevista no Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra, razão suficiente para analisar o seu alcance pelo seu inverso, ou seja, o processo de<br />

colonização de novas terras, o qual não supõe uma redefinição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária, mas a<br />

incorporação de novas terras, devolutas ou públicas, ao processo de ocupação humana do território”<br />

(loc. cit., p. 39. Grifos nossos). Ou seja, sempre em terras afasta<strong>da</strong>s dos domínios do latifúndio. A respeito desta<br />

questão, ver, além do artigo citado, o excelente estudo de José Vicente Tavares dos Santos, Matuchos: Exclusão e<br />

Luta - do Sul para a Amazônia (SANTOS, 1993) e MINC (1985).<br />

158


Por outro lado, os direitos dos pequenos posseiros, embora, diante dessa<br />

contingência legal, estivessem, juridicamente assegurados, acabaram por ser<br />

efetivamente anulados. Sobretudo, na medi<strong>da</strong> em que apenas poderiam ser<br />

materializados pela via judiciária, ou seja, pela respectiva proposição do processo de<br />

legitimação e registro, ou do requerimento do direito de usucapião.<br />

Assim, por exemplo, especialmente no caso <strong>da</strong> aquisição de proprie<strong>da</strong>de pela via<br />

do usucapião - que era, basicamente, a única forma efetiva do pequeno posseiro tentar 304<br />

adquirir a proprie<strong>da</strong>de sobre terras inexplora<strong>da</strong>s ou abandona<strong>da</strong>s - apenas poderia ser<br />

alcança<strong>da</strong> pela alternativa judicial, na medi<strong>da</strong> em que este processo dependia de<br />

sentenças declaratórias. Sem este procedimento processual, os pequenos posseiros<br />

continuavam apenas com o chamado direito real de uso: ou seja, permaneciam meros<br />

posseiros.<br />

Como se argüiu no capítulo anterior, de diversas formas, mas sobretudo, pela via<br />

registral - especialmente após a instituição do Registro Torrens - os posseiros poderiam<br />

ter a sua “presunção” de direito real de posse 305 , anula<strong>da</strong>. Por isso, a ação primeira dos<br />

supostos proprietários de terras ocupa<strong>da</strong>s por posses, mas sobretudo, dos grileiros,<br />

sempre foi a destruição de tudo quanto pudesse caracterizar ou configurar as posses.<br />

Quando não do puro e simples assassinato dos posseiros e seus familiares e <strong>da</strong><br />

respectiva ocultação dos cadáveres.<br />

Quanto à legitimação de posses, que se destinavam às posses estabeleci<strong>da</strong>s em<br />

terras devolutas, e sobre as quais era ve<strong>da</strong><strong>da</strong> a alternativa ao usucapião, exigia-se todo<br />

um rito jurídico e de registro, que, efetivamente, sempre dificultou, quando não,<br />

simplesmente, afastou, desta alternativa, a maioria dos pequenos posseiros. Nos termos<br />

<strong>da</strong> Lei 601 de 1850, como foi visto no capítulo 2, cabia aos posseiros a iniciativa deste<br />

processo. Em face do sistemático fracasso <strong>da</strong> política de registros e de arreca<strong>da</strong>ção de<br />

terras devolutas, analisados naquele capítulo e no capítulo 3, a maioria <strong>da</strong>s posses<br />

permaneceram sem registro, por um lado e, por outro, propagando-se de diversas formas<br />

e dimensões, por to<strong>da</strong>s as regiões do País. Por suposto, um dos principais móveis do<br />

Estatuto <strong>da</strong> Terra seria regular essa forma “ilegal” de ocupação de terras devolutas, que<br />

se vinha agravando desde 1850. A partir <strong>da</strong> regulamentação conti<strong>da</strong> no Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra, fun<strong>da</strong>mentalmente, a única forma legal de se adquirir a proprie<strong>da</strong>de fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na<br />

304 Aqui se diz “tentar” porque, como é fato conhecido, e como bem registra o Documento <strong>da</strong> CONTAG “Posição<br />

<strong>da</strong> CONTAG Sobre o Programa Nacional de Política Fundiária”: “Historicamente, o usucapião foi<br />

sempre considerado ineficaz no que se refere à proprie<strong>da</strong>de particular, para garantir ao posseiro a sua<br />

aquisição quando verificado o conflito pela posse <strong>da</strong> terra, eis que o Direito Possessório, desde o Direito<br />

Romano, caracteriza esse conflito como oposição à posse, tornando, desse modo, inaplicável o<br />

Usucapião”. (CONTAG, 1982, p. 7. Grifos nossos).<br />

305 Veja-se a este respeito, por exemplo, o insuspeito comentário de Paulo Yokota, Presidente do INCRA no último<br />

Governo Militar, ao afirmar que: “A evolução <strong>da</strong> legislação agrária reconheceu sempre na posse um<br />

elemento gerador de uma expectativa de direito, desde que obedeci<strong>da</strong>s as condições mínimas de<br />

exploração agropecuária efetiva e mora<strong>da</strong> habitual” (YOKOTA, s.d., p. 1). Na página seguinte o Presidente do<br />

INCRA volta a se referir a estas posses, como posses legítimas e que teriam que ser assegura<strong>da</strong>s nos processos<br />

discriminatórios. Esta questão voltará a ser discuti<strong>da</strong> no decorrer deste capítulo, na análise do Estatuto <strong>da</strong> Terra, neste<br />

e no próximo capítulo.<br />

159


posse mansa e pacífica de terras devolutas, que corresponderia à “legitimação <strong>da</strong>s<br />

posses”, seria através dos processos discriminatórios. Este assunto será discutido<br />

detalha<strong>da</strong>mente neste capítulo.<br />

Na ver<strong>da</strong>de, foi através dessas alternativas que as grandes posses sempre se<br />

consoli<strong>da</strong>ram e legitimaram, em ver<strong>da</strong>deiros e sistemáticos processos de grilagem<br />

especializa<strong>da</strong> 306 <strong>da</strong>s terras públicas. É evidente que estas ações, também tiveram seus<br />

efeitos sobre uma infini<strong>da</strong>de de pequenas posses mansas e pacíficas de pequenos<br />

produtores familiares, que sempre se instalaram pelos sertões do Brasil, desde tempos<br />

imemoriais. Assim, o privilégio na apropriação e legitimação, por um lado, e a violência<br />

sistemática contra os pequenos posseiros, por outro, sempre foram os meios para a<br />

consoli<strong>da</strong>ção dos latifúndios em todos os rincões deste país e a causa original dos<br />

conflitos pela terra no Brasil.<br />

Em suma, a rápi<strong>da</strong> recapitulação, feita acima, <strong>da</strong>s formas de luta pela terra e de<br />

acesso à proprie<strong>da</strong>de rural, já estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s nos capítulos anteriores, teve apenas o objetivo<br />

de introduzir a assertiva de que, no Brasil, para os pequenos posseiros, a luta pela terra,<br />

sempre se constituiu em uma guerra constante, permanente, sistemática, sem fronteiras.<br />

Sobretudo, uma guerra sem quartel, sem regras jurídicas defini<strong>da</strong>s, sem ética. Sempre<br />

foi uma guerra trava<strong>da</strong> fora <strong>da</strong> Lei: uma “guerra suja” 307 .<br />

Afora os casos limites de lutas dos pobres rurais contra a opressão por meio de<br />

movimentos messiânicos, cangaços etc., que poderiam ser considerados como uma<br />

espécie de “proto-história” <strong>da</strong> resistência dos pobres do campo no Brasil, a sua luta pela<br />

terra e pelo trabalho começa a organizar-se, politicamente, na segun<strong>da</strong> metade deste<br />

século. Até porque, com o desenvolvimento econômico do país, especialmente após a<br />

Segun<strong>da</strong> Guerra, e sobretudo no período Kubitschek, em face <strong>da</strong> transferência <strong>da</strong><br />

Capital Federal para a região Centro-Oeste e do intensivo programa de rodovias<br />

implementado, passou-se, ca<strong>da</strong> vez mais, a apertar o cerco contra a massa de pequenos<br />

posseiros dos distantes sertões, sobretudo, na medi<strong>da</strong> em que vastas áreas do território<br />

brasileiro passaram a ser incorpora<strong>da</strong>s à economia nacional, senão produtivamente, pelo<br />

menos especulativamente, pela implementação de grandes projetos de obras públicas,<br />

especialmente, ferrovias, açudes e rodovias 308 .<br />

306 No capítulo 5 são feitas referências a respeito <strong>da</strong> grilagem no Brasil pós-1964.<br />

307 Ver a respeito dessas formas específicas de Grilagem e Violência, entre muitos outros, os trabalhos de ASSELIN,<br />

V (1982); MARTINS, E. (1979 e 1972 ); PUREZA (1982); KOTSCHO (1982); PEREIRA (1971) e MOVIMENTO<br />

<strong>DO</strong>S TRABALHA<strong>DO</strong>RES RURAIS SEM TERRA (1987).<br />

308 Neste sentido, vale a pena, mais uma vez, citar o Presidente do INCRA Paulo Yokota, ao proclamar<br />

elogiosamente que: “Nem todos os brasileiros possuem a clara consciência de que nestas três<br />

déca<strong>da</strong>s, o Brasil dobrou efetivamente de dimensão. Desde 1500 a 1960, portanto, em 460 anos,<br />

ocupou-se a metade litorânea, e alguns pontos isolados junto a alguns rios interiores (...) A partir dos anos<br />

70, a ocupação do Centro-Oeste e <strong>da</strong> Amazônia passou a ser sistemática e contínua. Aragarças,<br />

Jacareacanga, entre outros, eram pontos somente conhecidos pelos pioneiros <strong>da</strong> FAB, e ligados a alguns<br />

acontecimentos políticos. Hoje, a ocupação entre Brasília e Cuibá é sistemática (...) O Brasil dobrou de<br />

tamanho em três déca<strong>da</strong>s” (YOKOTA. Op. cit., pp.7 e 8. Grifos nossos).<br />

160


Como a lógica que, sistematicamente, presidiu a esses processos de expansão<br />

dos interesses capitalistas no campo brasileiro, sempre foi a de empurrar para ca<strong>da</strong> vez<br />

mais longe os pequenos posseiros, proprietários e indígenas, - inclusive não<br />

reconhecendo seus direitos efetivos à legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s terras que<br />

possuíam - foram-se engendrando, nesse contexto, novos confrontos e novos sujeitos 309 ,<br />

<strong>da</strong>ndo novo impulso e caráter à resistência popular nos sertões do País. Tratava-se do<br />

aprofun<strong>da</strong>mento e <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira instituição <strong>da</strong>quilo que, neste trabalho, se está<br />

denominado de grilagem especializa<strong>da</strong>, que se tornou em um dos instrumentos mais<br />

importantes <strong>da</strong> legitimação privilegia<strong>da</strong> de “falsas posses” e “proprie<strong>da</strong>des”, sobretudo<br />

após a aprovação do Estatuto <strong>da</strong> Terra.<br />

Os casos de Trombas, em Goiás, e do Oeste do Paraná, em relação,<br />

especificamente, à luta pelo acesso à proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra; e <strong>da</strong>s “Ligas camponesas”,<br />

em relação à defesa <strong>da</strong>s condições de existência e reprodução dos trabalhadores rurais<br />

empregados nos “novos” latifúndios canavieiros, são particularmente esclarecedores do<br />

novo colorido que passou a ser impresso aos movimentos de resistência dos pobres e<br />

excluídos do campo no segundo pós-guerra. Estes movimentos prolongar-se-ão, de<br />

forma sombria e dolorosa, no contexto <strong>da</strong> repressão violenta desencadea<strong>da</strong> 310 após os<br />

acontecimentos de 1964.<br />

No Paraná 311 , para tomar um exemplo particular, a luta pela garantia de posse <strong>da</strong><br />

terra era antiga, e vinha-se desenrolando desde os últimos anos do Império, com a<br />

doação, pela Coroa, de uma faixa de nove quilômetros de ca<strong>da</strong> lado <strong>da</strong> ferrovia que<br />

seria construí<strong>da</strong>, ligando São Paulo ao Rio Grande. Havia, um contencioso entre os<br />

Estados do Paraná e Santa Catarina, acerca dos direitos sobre as terras <strong>da</strong> região<br />

fronteiriça, na divisa destes Estados, “ipso facto”, conheci<strong>da</strong> como “Contestado”.<br />

Nesta região, o Governo havia concedido à companhia Southern Brazil Lumber<br />

and Colonization uma área de 180 mil hectares. Os posseiros, que desde muito se<br />

encontravam instalados na região, foram sumariamente expulsos, e a eles vieram se<br />

juntar, a partir de 1908, a massa de desempregados <strong>da</strong>s obras <strong>da</strong> ferrovia, <strong>da</strong>ndo início a<br />

uma acirra<strong>da</strong> luta, que culminou com o violento confronto, que ficou, historicamente,<br />

conhecido como a “Guerra do Contestado”, cujo ápice ocorreu entre 1912 e 1916,<br />

309 Ver a respeito, MARTINS, J. S. 1994, especialmente o Capítulo II.<br />

310 “Assim, o terror foi desencadeado, na zona do açúcar, diretamente por usineiros e senhores de<br />

engenho. To<strong>da</strong> a ampla organização sindical dos trabalhadores rurais foi destruí<strong>da</strong> e ain<strong>da</strong> hoje não se<br />

tem idéia do número de dirigentes camponeses assassinados nos primeiros dias <strong>da</strong> repressão. (...) Ao<br />

correr dos meses, as prisões permanecem abarrota<strong>da</strong>s. Alguns milhares de camponeses, trabalhadores,<br />

estu<strong>da</strong>ntes, intelectuais encontram-se detidos. As torturas, espancamentos, violações de domicílio,<br />

passam a constituir fatos de rotina. Voltam a dirigir a polícia velhos torturadores do período<br />

estadonovista” . Nesses termos é descrita a conjuntura de terror e repressão que se seguiu imediatamente a toma<strong>da</strong><br />

do Poder pelos Militares, em 1964. (In. ARRAES, M. s. d.). Grifos nossos. Ver também, a este respeito, Carlos<br />

Minc (MINC, op. cit.).<br />

311 A breve reconstituição aqui feita deste, episódio, deve-se, em particular aos trabalhos de Joe Foweraker, Fábio<br />

Alves e José de Souza Martins, entre outros, todos citados (vide Referências Bibliográficas ao final deste estudo).<br />

161


quando os posseiros foram violentamente massacrados, aliás, num genocídio similar ao<br />

que acontecera em Canudos, nos sertões <strong>da</strong> Bahia, poucos anos antes.<br />

Mas a derrota na Guerra do Contestado não colocou um ponto final nas lutas<br />

desta região. Elas se estenderam, após liqui<strong>da</strong>dos os primeiros posseiros, num profundo<br />

e grave contencioso acerca <strong>da</strong>s concessões territoriais, que envolveu o Governo do<br />

Paraná, as Companhias ferroviárias e de colonização e a União, e que se prolongarão até<br />

os primeiros meses do golpe de 1964. Segundo Joe Foweraker:<br />

“Em geral, essas concessões de terras eram feitas em lugar de pagamentos<br />

em dinheiro, exigindo as companhias garantias por seus investimentos. As<br />

companhias eram de origem estrangeira (tal como a Companhia Brazil<br />

Railways, dos Estados Unidos e a sua subsidiária Southern Brazil Lumber and<br />

Colonization, isto é, Madeira e Colonização do Sudoeste do Brasil, e Chémins<br />

de Fer Sud-Ouest Brésiliens, <strong>da</strong> França, ou Estra<strong>da</strong>s de Ferro do Sudoeste<br />

Brasileiro), e a disposição dos governos Estadual e Federal para abrirem mão<br />

do território nacional reflete a dificul<strong>da</strong>de em atrair capital para esse tipo de<br />

empresa (...)<br />

“O estado, a princípio, recusou-se a reconhecer a vali<strong>da</strong>de dessa<br />

concessão, que havia sido feita a uma distância de 9 quilômetros<br />

para ca<strong>da</strong> lado <strong>da</strong> linha férrea projeta<strong>da</strong>, argüindo que apenas ele<br />

administrava as terras dentro <strong>da</strong>s suas fronteiras. No sentido<br />

estrito, entretanto, a concessão havia sido feita antes <strong>da</strong><br />

Constituição de 1891 e, finalmente, parece que o estado teve que<br />

se curvar... Neste momento (1917) porém, não havia mais<br />

hipótese para a concessão de terra ao longo <strong>da</strong> ferrovia, porque<br />

essa terra se estendia próxima ao litoral e já estava povoa<strong>da</strong>.<br />

Assim, em seu lugar, extensas concessões foram feitas bem no<br />

interior do estado, francamente dentro <strong>da</strong> área de fronteira.” 312<br />

Observe-se que esse “novo” conflito, agora entre as companhias particulares, o<br />

Estado do Paraná e a União, se estabelece em torno do espólio <strong>da</strong> Guerra do Contestado,<br />

encerra<strong>da</strong> com a liqui<strong>da</strong>ção militar dos posseiros. Observe-se, igualmente, que a<br />

conciliação de interesses, acabaram, em princípio, assegurando o reconhecimento <strong>da</strong>s<br />

concessões do Império às Companhias Ferroviárias e de “Colonização”, por um lado; e,<br />

por outro, permitindo compensações, com a abertura de novas concessões e <strong>da</strong><br />

possibili<strong>da</strong>de de titulação de terras nas fronteiras. Assim, o conflito apenas é adiado.<br />

A Constituição de 1937 incorporou terras desta região aos bens <strong>da</strong> União, ao<br />

estender a 150 quilômetros a faixa de fronteira 313 , fazendo reacender o contencioso<br />

entre o Estado do Paraná, a União e as empresas de colonização e ferrovias. Observe-se,<br />

igualmente, que nesse conflito de grandes interesses, os remanescentes dos pequenos<br />

posseiros, boa parte elimina<strong>da</strong> fisicamente na Guerra do Contestado em 1916, não<br />

aparecem como interlocutores nas conten<strong>da</strong>s entre os grandes interesses fundiários.<br />

Nesse sentido, como registra Martins,<br />

312 FOWERAKER (op. cit., p. 125).<br />

313 Artigo 165 <strong>da</strong> Constituição de 1937 (In.: MEAF, op. cit.).<br />

162


“Desde o século XIX, a grilagem de terras era uma questão<br />

restrita a litígios no interior <strong>da</strong>s próprias oligarquias, envolvendo<br />

número restrito de pessoas, casos quase sempre debatidos e,<br />

bem ou mal, resolvidos no judiciário como sendo apenas casos de<br />

dúvi<strong>da</strong>s, quanto a direitos ou de notória falsificação de<br />

documentos.” 314<br />

Neste contexto, chama a atenção, José de Souza Martins, para o fato de que a<br />

questão <strong>da</strong> grilagem passa a assumir as feições de uma questão<br />

“política moderna no caso do sudoeste do Paraná, nos anos<br />

cinqüenta, quando as terras federais começaram a ser vendi<strong>da</strong>s<br />

pelo governo do estado, provocando a duplici<strong>da</strong>de de títulos.” 315<br />

Na ver<strong>da</strong>de, o contencioso sobre as terras do Oeste do Paraná, dá uma noção<br />

bastante objetiva <strong>da</strong> luta pela terra, quando deflagra<strong>da</strong> por grandes grupos econômicos<br />

e, geralmente com o patrocínio ou participação de autori<strong>da</strong>des do Estado <strong>da</strong> Federaçãp,<br />

e <strong>da</strong> grilagem especializa<strong>da</strong>. Como registra Foweraker, nos anos cinqüenta,<br />

aproveitando-se do amplo contencioso que se estabelecera, e <strong>da</strong> indefinição acerca <strong>da</strong><br />

autonomia legal sobre as terras <strong>da</strong> região, tanto o Governo do Estado do Paraná, quanto<br />

o Federal, como as próprias companhias de Colonização estavam titulando terras na<br />

região, ca<strong>da</strong> uma delas alegando agir dentro do seu estrito direito sobre as respectivas<br />

áreas 316 ; segundo aquele autor, “muitas vezes sequer obedecendo a esse<br />

imperativo legal.”<br />

Ain<strong>da</strong> segundo Foweraker, a liber<strong>da</strong>de de ação do Estado do Paraná dependia <strong>da</strong><br />

correlação e <strong>da</strong> constelação de forças em movimento no período. Dessa conjuntura<br />

valeu-se o então Governador do Estado, Moisés Lupion:<br />

“(...) No seu man<strong>da</strong>to anterior ele havia sido um dos pilares <strong>da</strong><br />

administração Dutra e continuou influente até 1955. Como foi<br />

mencionado...ele próprio havia encabeçado um grupo econômico<br />

com importantes interesses no oeste, entre os quais<br />

encontravam-se na<strong>da</strong> menos do que títulos em Missões e parte<br />

de Chopin (formando juntos uma grande proprie<strong>da</strong>de de 425.731<br />

hectares) que a firma de Lupion, a CITLA, havia obtido <strong>da</strong> SEIPU<br />

em 1951. Essa transação era absolutamente ilegal e<br />

inconstitucional, envolvendo extenso suborno, nepotismo e<br />

corrupção (...).” 317<br />

É nesse contexto, de uma prolonga<strong>da</strong> luta contra as populações pobres <strong>da</strong> região,<br />

uma luta que foi leva<strong>da</strong> às raias <strong>da</strong> violência pela deflagração <strong>da</strong> Guerra do Contestado<br />

contra os posseiros e pequenos colonos, entre 1912 e 1916, que ressurge com muito<br />

vigor, o movimento de resistência de pequenos proprietários, em 1957. As raízes desta<br />

nova luta eram antigas, como se vê, e não pode, pura e simplesmente, ser imputa<strong>da</strong> à<br />

314 MARTINS (1994, p. 64).<br />

315 Id. Ibidem., p. 65<br />

316 Ver, FOWERAKER (op. cit., pp. 128-130); e MARTINS, J.S. (1994, p. 67).<br />

317 FOWERAKER,( op. cit., pp. 129-130. Grifos nossos).<br />

163


presença do Partido Comunista na Região. Quer dizer, não se tratava de uma luta<br />

promovi<strong>da</strong> por “elementos alienígenas”, dotados de “ideologias exóticas” nem mesmo<br />

insufla<strong>da</strong> “irresponsável e demagogicamente” pela SUPRA ou pelo Governo João<br />

Goulart, como tentou fazer crer o discurso de sustentação ideológica do Governo<br />

Castelo Branco 318 .<br />

A presença de militantes de esquer<strong>da</strong> neste, como em outros movimentos<br />

populares de resistência contra a secular opressão e excludência, de que sempre foram<br />

vítimas os pobres <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e do campo, é muito mais conseqüência, do que causa, <strong>da</strong><br />

radicali<strong>da</strong>de assumi<strong>da</strong> por esses movimentos. Portanto, tais argumentos aparecem,<br />

claramente, como o pretexto para se mover novas formas de extermínio, de “cerco e<br />

destruição” . As causas sempre foram a excludência social dos pobres, o desrespeito aos<br />

seus direitos de proprie<strong>da</strong>de, a violência sistemática contra estes direitos e suas<br />

reivindicações, especialmente, sobre a posse <strong>da</strong>s terras de trabalho, aliás, legalmente<br />

assegura<strong>da</strong>.<br />

Enfim, as causas sempre se fun<strong>da</strong>ram no processo de apropriação privilegia<strong>da</strong> e<br />

de legitimação questionável, como se vem tentando demonstrar neste estudo, que<br />

remonta ao instituto de sesmarias. E, como será evidenciado objetivamente, esse<br />

processo assume novos e mais efetivos contornos no pós-1964, sendo este fato o ponto<br />

fun<strong>da</strong>mental, dentre outros, como é óbvio, <strong>da</strong> análise crítica que se está desenvolvendo<br />

<strong>da</strong> Política Fundiária dos Governos Militares, enquanto continui<strong>da</strong>de, sob novas formas<br />

do mesmo processo de apropriação privilegia<strong>da</strong> e legitimação, juridicamente<br />

questionável, que se vem aprimorando no Brasil desde 1854.<br />

Diversos sempre foram, portanto, os pretextos para se mobilizar as armas <strong>da</strong><br />

repressão violenta e do genocídio contra as populações pobres do meio rural brasileiro:<br />

“acusação de monarquistas”, contra os habitantes de Canudos; “infiltração comunista”,<br />

como nos casos do pobres de Porecatu, do Araguaia, de Trombas do Formoso, <strong>da</strong>s Ligas<br />

Camponesas, dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais e tantos outros movimentos<br />

populares no pós-1964. Como se pode concluir pela pequena revisão feita acima,<br />

sempre foram argüidos os mesmos pretextos para justificar a mesma violência contra os<br />

pobres do campo. Apenas, a ca<strong>da</strong> circunstância e dependendo <strong>da</strong>s diferentes conjunturas<br />

ou objetivos políticos dos que o promoveram institucionalmente, mu<strong>da</strong>ndo-se os<br />

pretextos e as justificativas 319 .<br />

318 Ver a respeito a Mensagem n o 33, do General Castelo Branco ( Loc. cit.).<br />

319 Fugiria aos objetivos deste estudo a análise detalha<strong>da</strong> dos diversos movimentos de resistência popular no campo<br />

e <strong>da</strong>s formas de violência (oficial e priva<strong>da</strong>) usa<strong>da</strong>s para reprimí-los. A abor<strong>da</strong>gem, feita acerca do Caso do Oeste do<br />

Parará teve, apenas, o objetivo de exemplificar a historici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s lutas <strong>da</strong>s populações rurais em defesa de seu<br />

legítimo e legal direito à proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra onde residem e trabalham. Assim, a idéia é evitar que a abor<strong>da</strong>gem de<br />

casos específicos dêem a impressão de que surgiram naquela determina<strong>da</strong> conjuntura específica, quando na ver<strong>da</strong>de,<br />

a maioria dos focos de tensão social no campo, embora possam aparecer em determinado momento, são pontas de um<br />

“iceberg” que se vinha estruturando desde muito antes; certamente, desde os finais do século passado, como o caso<br />

estu<strong>da</strong>do acima deixou claro. A respeito, especificamente, desses movimentos sociais há uma vastíssima literatura.<br />

Sobre o tema remetemos o leitor, em especial, às seguintes: MARTINS, J.S. (1994; 1993; 1992; 1990; 1983; 1985);<br />

FOWERAKER (1982); IANNI (1979; 1979(a); 1981 e 1984); BASTOS, E. (1984); FACÓ (1980); ARRAES, M.<br />

(S.d.); CARVALHO M. (1980); CONCEIÇÃO, M. (1980); CONTAG (1981 (a); D’INCAO (1983); MEDEIROS,<br />

L.S. (1989); MARIGHELLA, et. alii. (1980); MARTINS, E. (1979); KOTSCHO (1982).<br />

164


2. Mensagem n o 33: O Diagnóstico Militar <strong>da</strong> Questão Agrária<br />

A Mensagem 33, do General Humberto de Alencar Castelo Branco, que<br />

encaminhou o Projeto de Lei do Estatuto <strong>da</strong> Terra ao Congresso Nacional, constitui-se<br />

em um documento <strong>da</strong> maior relevância para a compreensão do encaminhamento <strong>da</strong>do à<br />

questão agrária e agrícola pelo Regime Militar. Ela resume as noções teóricas e<br />

ideológicas fun<strong>da</strong>mentais do modelo de “Reforma Agrária e de Desenvolvimento<br />

Rural” proposto pelo Governo. Neste sentido, a Mensagem pode ser interpreta<strong>da</strong> como<br />

um documento que expõe as Diretrizes de Governo para orientar a Política Fundiária e<br />

de Desenvolvimento Rural, que seria implementa<strong>da</strong>.<br />

Nela é realizado um amplo, ain<strong>da</strong> que superficial, balanço do que, então, se<br />

denominava, de “problema agrário” brasileiro e de suas articulações e implicações para<br />

com o processo mais amplo de desenvolvimento econômico nacional, sendo indica<strong>da</strong>s,<br />

nesse contexto, as linhas e diretrizes gerais que, no entendimento do Governo que se<br />

instalava, deveriam orientar o encaminhamento <strong>da</strong>s soluções necessárias às diversas<br />

exigências <strong>da</strong> conjuntura fundiária e agrícola do País.<br />

Desven<strong>da</strong>r, portanto, a lógica e o contexto em que este documento foi elaborado<br />

e proposto, o sentido do diagnóstico que realizava <strong>da</strong> questão agrária e as propostas de<br />

solução que apresenta, torna-se condição fun<strong>da</strong>mental para se compreender o sentido<br />

<strong>da</strong>s reformas indica<strong>da</strong>s e, mais do que isto, os rumos pretendidos e objetivos<br />

perseguidos na busca do desenvolvimento econômico e social brasileiro 320 e, dentro<br />

deste, o papel que era atribuído à proprie<strong>da</strong>de rural, em geral, e à agricultura, em<br />

particular. Fora do contexto <strong>da</strong> Mensagem 33, que lhe dá o necessário enquadramento<br />

de uma Política de Governo - e não, apenas, nem necessariamente, de uma “política<br />

pública” - o Estatuto <strong>da</strong> Terra é mera abstração sem sentido.<br />

Pode-se, de imediato, afirmar que a Mensagem apresenta duas dimensões<br />

absolutamente distintas e articula<strong>da</strong>s. Em primeiro lugar, procura, aparentemente,<br />

desenvolver um diagnóstico geral do problema agrário brasileiro e <strong>da</strong>s formas como o<br />

mesmo teria sido abor<strong>da</strong>do e enfrentado pelo Governo João Goulart. Neste contexto, o<br />

documento desenvolve-se em dois sentidos: (a) Um, recuperando o diagnóstico geral <strong>da</strong><br />

questão agrária, <strong>da</strong> concentração fundiária e <strong>da</strong> ren<strong>da</strong>, <strong>da</strong> baixa produtivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

agricultura, etc. Estas características, concebi<strong>da</strong>s como bloqueios, deveriam ser<br />

ultrapassa<strong>da</strong>s para viabilizar o pretendido desenvolvimento econômico nacional,<br />

sobretudo pela integração do setor agrícola ao industrial. (b) Noutro sentido, era uma<br />

severa crítica ao Governo Goulart, argumentando que o mesmo, ao invés de enfrentar<br />

320 Segundo a lúci<strong>da</strong> interpretação de Octávio Ianni, “desde o primeiro momento, o governo militar instalado<br />

com o golpe de 1964 foi levado a adotar uma política de portas abertas ao capital estrangeiro, isto é, para<br />

o imperialismo. O conjunto do aparelho estatal, em suas condições econômicas e políticas de atuação, foi<br />

posto a serviço dos interesses <strong>da</strong> empresa imperialista multinacional e nacional. Desse modo<br />

inaugurou-se uma época de desenvolvimento capitalista intenso e generalizado, na indústria e<br />

agricultura, na ci<strong>da</strong>de e no campo. Daí a política agressiva e repressiva, em termos econômicos e<br />

políticos, no sentido de superexplorar a força de trabalho do proletariado industrial e agrícola.”<br />

(IANNI,1979(a). Pp.19-20. Grifos nossos).<br />

165


“realisticamente” os problemas agrários, ter-se-ia aproveitado <strong>da</strong> pobreza rural para<br />

promover a inquietação social, criar expectativas demagógicas, insuflar a luta de<br />

classes, e obter por essas formas, dividendos políticos e, enfim, apoio, para um<br />

determinado projeto socializante, e portanto, contrário aos interesses nacionais 321 .<br />

Em segundo lugar, e com base no diagnóstico apresentado nos termos acima,<br />

procurava o Documento, fun<strong>da</strong>mentar a sua proposta de solução para o problema<br />

agrário brasileiro. A solução aponta<strong>da</strong>, fun<strong>da</strong>va-se em duas diretrizes básicas: (a)<br />

promover a regulamentação do preceito <strong>da</strong> Constituição de 1946 referente à promoção<br />

<strong>da</strong> “justa distribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, com igual oportuni<strong>da</strong>de para todos”,<br />

estabelecendo medi<strong>da</strong>s tendentes a realização de uma “reforma agrária” nos termos<br />

Carta de Punta Del Este; e (b) avançando, para além <strong>da</strong> distribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de,<br />

implícita na diretriz Constitucional, através <strong>da</strong> implementação de um conjunto de<br />

medi<strong>da</strong>s e instrumentos de apoio à produção agrícola e à sua integração com o<br />

desenvolvimento urbano e industrial. Neste sentido, como é explicitamente referido na<br />

Mensagem 33, o Projeto que encaminhava ao Congresso Nacional, não era apenas uma<br />

lei de reforma agrária, mas<br />

“visava também a modernização <strong>da</strong> política agrícola do País,<br />

tendo por isso mesmo objetivo mais amplo e ambicioso; é uma<br />

lei de Desenvolvimento Rural.”<br />

Assim, pode-se afirmar que a Mensagem 33 compunha-se de dois tipos de<br />

discursos cui<strong>da</strong>dosamente articulados: Um discurso “técnico” - por suposto,<br />

teoricamente fun<strong>da</strong>mentado - até certo ponto, fun<strong>da</strong>do em uma análise de <strong>da</strong>dos<br />

objetivos referentes à reali<strong>da</strong>de rural brasileira; e um discurso ideológico, fun<strong>da</strong>do nos<br />

preceitos doutrinários desenvolvidos na Escola Superior de Guerra, muito em particular,<br />

referentes à ideologia <strong>da</strong> defesa interna e <strong>da</strong> segurança nacional e hemisférica, cuja base<br />

era o anticomunismo.<br />

Os dois discursos, como se verá, se completavam. Conjuntamente,<br />

representavam, por um lado, a fun<strong>da</strong>mentação teórica e, por outro, a justificativa<br />

política e ideológica do projeto Fundiário e de Desenvolvimento Rural do Governo. Do<br />

ponto de vista do discurso, pode-se afirmar que se tratava de um documento bem<br />

elaborado e, do ponto de vista de um Projeto de Governo, tratava-se de um projeto<br />

coerente com os princípios que defendia e bem fun<strong>da</strong>mentado. Por isso mesmo a<br />

análise, tanto <strong>da</strong> Mensagem 33, como do Estatuto <strong>da</strong> Terra não pode ser feita de forma<br />

separa<strong>da</strong>, exigindo, portanto, um estudo cui<strong>da</strong>doso de suas proposições fun<strong>da</strong>mentais.<br />

A Mensagem e o Estatuto <strong>da</strong> Terra importam, assim, em dois diagnósticos<br />

específicos. Um, <strong>da</strong> própria estrutura agrária e <strong>da</strong> economia agrícola brasileira. Outro,<br />

acerca <strong>da</strong>s formas como estas questões foram trata<strong>da</strong>s pelo Governo Goulart, portanto,<br />

321 Estes argumentos, se ver<strong>da</strong>deiros, seriam uma justificativa legalista <strong>da</strong> intervenção militar, constitucionalmente<br />

prevista. Não se trataria, portanto de um Golpe de Estado, posto que estariam apenas, as Forças Arma<strong>da</strong>s<br />

“restabelecendo a Ordem Constitucional”, feri<strong>da</strong> pelo Presidente <strong>da</strong> República. (Ver a este respeito, SKIDMORE,<br />

1988/1994).<br />

166


um diagnóstico <strong>da</strong> dimensão política do problema. Por isso mesmo, as soluções<br />

aponta<strong>da</strong>s caminham em dois sentidos: por um lado, pela proposição de uma política de<br />

“distribuição” de terras e de apoio à produção e, por outro lado, definindo, com bastante<br />

clareza, o sentido que era atribuído, pelo novo projeto, tanto ao problema do acesso à<br />

terra, quando, sobre as formas de se combater o atraso e a pobreza rural. O Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra oferecia a forma jurídica ao Projeto de Desenvolvimento Rural.<br />

Quer dizer, a Reforma Agrária, no sentido que lhe era atribuído, de<br />

“distribuição” de terras para aliviar tensões sociais, era complementar ao<br />

desenvolvimento econômico <strong>da</strong> agricultura. Especialmente quando se referisse ao<br />

atendimento a pequenos agricultores - por suposto, condicionado ou à existência de<br />

tensões ou a projetos de “desbravamento” (Colonização) 322 - a distribuição de terras era<br />

defini<strong>da</strong> como medi<strong>da</strong> social, quer dizer, na linguagem de seus teóricos, “nãoeconômica”.<br />

Ou seja, destinava-se a resolver problemas “sociais” de pobreza, ou<br />

tensões e conflitos sociais, não a maximizar a eficiência econômica. É neste contexto<br />

que a Reforma Agrária é defini<strong>da</strong> como um projeto “social” e “não-econômico”.<br />

Neste sentido, busca-se <strong>da</strong>r à Reforma Agrária um caráter específico. Ela<br />

deveria se fun<strong>da</strong>mentar na regulamentação do preceito Constitucional de 1946. Isso<br />

significava manter, em princípio, o acesso à terra nos termos <strong>da</strong>quela Constituição que,<br />

como se viu no capítulo anterior, estabelecia limites para as pequenas e para as grandes<br />

concessões ou aquisições de terras: até 25 hectares 323 , para preferência de compra ou<br />

aquisição de terras devolutas com base nas posses mansas e pacíficas, ou por usucapião,<br />

para terras “particulares” inexplora<strong>da</strong>s ou “abandona<strong>da</strong>s”; e até 10.000 hectares 324 , para<br />

alienações ou concessões de terras públicas, independentemente de autorização do<br />

Congresso Nacional. Portanto, no contexto <strong>da</strong> Reforma Agrária em pauta, a proposta do<br />

Governo Castelo Branco era regulamentar os preceitos que já constavam <strong>da</strong><br />

Constituição de 1946. Esta era a Reforma Agrária proposta claramente na Mensagem 33<br />

e no Estatuto <strong>da</strong> Terra.<br />

Esse fato, em si mesmo, tem-se que reconhecer, representava um grande avanço,<br />

porque como se sabe, a maioria dos “imperativos” constitucionais não são,<br />

juridicamente, auto aplicáveis. Necessitam de regulamentação pela legislação infra<br />

constitucional para terem vigência prática. E é exatamente a ausência <strong>da</strong><br />

regulamentação por lei ordinária que faz com que muitas conquistas assegura<strong>da</strong>s pelas<br />

Constituições nunca se materializem, sendo esta, inclusive, uma alternativa geralmente<br />

usa<strong>da</strong> pelas forças contrárias a determina<strong>da</strong>s iniciativas, quando não conseguem,<br />

322 O termo “desbravamento” é explicitamente usado na Mensagem 33, com o sentido de colonização em áreas<br />

pioneiras. Como registra YOKOTA (op. cit., p. 8) “Os projetos de colonização oficial estão mais presentes<br />

em frentes realmente pioneiras, procurando atender a uma cama<strong>da</strong> mais modesta <strong>da</strong> população,<br />

<strong>da</strong>ndo eleva<strong>da</strong> priori<strong>da</strong>de àqueles que foram obrigados a se deslocar de seus antigos locais de trabalho<br />

(...).” (Grifos nossos).<br />

323 Parágrafos 1 o e 3 o do Artigo 156 <strong>da</strong> Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946.<br />

324 Parágrafo 2 o , art. 156 <strong>da</strong> Constituição de 1946, referi<strong>da</strong> na nota anterior. Esta área foi reduzi<strong>da</strong> para 3.000<br />

hectares, pelo Governo Militar, para alienação independente de alienação pelo Senado Federal.<br />

167


conjunturalmente, fazer valer seus pontos de vista na Constituição. Assim, através <strong>da</strong><br />

obstrução, no Legislativo, impedem a elaboração <strong>da</strong> necessária regulamentação infra<br />

constitucional e, com ela, a materialização do direito assegurado na Constituição. Esta é<br />

uma prática corrente no Brasil, como se sabe, e que torna ineficaz, por omissão do<br />

Legislativo, parte relevante dos preceitos constitucionais.<br />

Isso significa, por outro lado, que o Estatuto <strong>da</strong> Terra, ao regulamentar o<br />

preceito Constitucional citado, criava, juridicamente, a possibili<strong>da</strong>de para se poder<br />

viabilizá-lo. Ou seja, de por em prática, legalmente, o processo de alienação <strong>da</strong>s terras<br />

devoluta: de privatizá-las. O que não quer dizer que esta regulamentação por si só<br />

assegurasse que isto seria realizado. E, menos ain<strong>da</strong> que este processo de alienação de<br />

terras públicas seria realizado em benefício <strong>da</strong> pequena proprie<strong>da</strong>de ou dos pequenos<br />

posseiros e sem terras. Aliás, os fatos que se seguiram à sua promulgação mostraram<br />

exatamente o contrário. A simples leitura do modelo de desenvolvimento rural<br />

explicitamente insinuado na Mensagem 33 já era suficiente para se verificar que,<br />

naquele contexto, a integração <strong>da</strong> população marginaliza<strong>da</strong> do setor agrícola, não seria<br />

prioritariamente processa<strong>da</strong> mediante a alternativa a uma reforma distributivista de<br />

terras, mas pela alternativa à “modernização” <strong>da</strong> agricultura, pelo incentivo à empresas<br />

rurais, empresas estas, não necessariamente pequenas, ao contrário.<br />

A via escolhi<strong>da</strong>, portanto, era a <strong>da</strong> incorporação <strong>da</strong> população rural pelo<br />

emprego e, não necessariamente pela doação ou distribuição de terras. E pela<br />

dinamização paralela do processo de industrialização e urbanização. Neste contexto,<br />

pode-se concluir que a reforma agrária era, efetivamente, complementar à política de<br />

desenvolvimento rural, e não o contrário. Os fatos e to<strong>da</strong>s as criticas ulteriores à política<br />

fundiária do período militar comprovam essa afirmação. Entretanto esta proposta estava<br />

claramente formula<strong>da</strong> na Mensagem 33, de novembro de 1964.<br />

Com base na regulamentação conti<strong>da</strong> no Estatuto <strong>da</strong> Terra pôde, o Governo,<br />

promover, efetivamente, por um lado, um amplo processo de alienação de terras<br />

devolutas em todo o território nacional 325 e, por outro lado, implementar um amplo e<br />

eficiente conjunto de instrumentos de políticas agrícolas e de crédito rural que,<br />

inegavelmente, deram grande impulso à produção e a produtivi<strong>da</strong>de do setor agrícola<br />

brasileiro. A contraparti<strong>da</strong> <strong>da</strong> implementação deste modelo foi a reprodução, nas “áreas<br />

novas 326 ” incorpora<strong>da</strong>s à agricultura, <strong>da</strong> mesma concentração fundiária. Esta foi a<br />

“reforma agrária”, e, sobretudo agrícola, de fato, feita pelo regime militar. É neste<br />

sentido específico, que não procede a afirmação de que o Estatuto <strong>da</strong> Terra não foi<br />

executado.<br />

325 Esse fato será analisado no capítulo 5, ao ser estu<strong>da</strong>do o problema <strong>da</strong>s terras novas incorpora<strong>da</strong>s ao patrimônio<br />

privado no período 1964 a 1980.<br />

326 Este problema é objetivamente estu<strong>da</strong>do no capítulo 5, adiante.<br />

168


Ele efetivamente o foi, como os <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> incorporação de novas áreas ao<br />

patrimônio privado, entre 1960 a 1980, na ordem de 114.965.285 hectares 327 , ou seja,<br />

um acréscimo de 47,9% de área nova, no período, em relação a 1960, não deixa dúvi<strong>da</strong>.<br />

Para se ter uma idéia, esta cifra correspondia a 31,10% do total <strong>da</strong> área de todos os<br />

estabelecimentos agrícolas recenseados em 1980 328 . A estratégia de desenvolvimento<br />

implementa<strong>da</strong> e os resultados perseguidos estavam claramente contidos <strong>da</strong> Mensagem<br />

33 e, portanto, no instrumental normativo que compunha, o Estatuto <strong>da</strong> Terra. Que era<br />

uma alternativa de desenvolvimento excludente e concentracionista, não resta dúvi<strong>da</strong>.<br />

Mas era exatamente esta a alternativa proposta pela Mensagem 33 e, portanto, pelo<br />

Estatuto <strong>da</strong> Terra, e que tem que ser coloca<strong>da</strong> clara e objetivamente. O problema,<br />

portanto, como muito bem levantou a Confederação Nacional dos Trabalhadores <strong>da</strong><br />

Agricultura (CONTAG), não estava em negar que o Governo tenha executado o<br />

Estatuto <strong>da</strong> Terra, mas em identificar para que extratos de área essas terras novas<br />

discrimina<strong>da</strong>s foram efetivamente destina<strong>da</strong>s 329 e sob que condições. Este problema será<br />

analisado no próximo capítulo.<br />

Esta “Reforma Agrária” era coerente com o modelo proposto de maneira clara<br />

na Mensagem 33, e, portanto, também no Estatuto <strong>da</strong> Terra, ao identificar tanto o<br />

latifúndio quanto o minifúndio como pontos de estrangulamento, igualmente nocivos,<br />

ao desenvolvimento <strong>da</strong> economia rural. Neste contexto, inclusive, nota-se claramente a<br />

tendência a qualificar o minifúndio como ain<strong>da</strong> mais problemático para a agricultura, do<br />

que o latifúndio, na medi<strong>da</strong> em que este último poderia vir a modernizar-se,<br />

transformando-se em empresa rural, ou pela incorporação de novas tecnologias e<br />

processos, se incentivados adequa<strong>da</strong>mente (aliás, os incentivos eram assegurados pela<br />

política de desenvolvimento rural) ou, noutra alternativa, se a isto fosse induzido pelo<br />

ITR progressivo. Esse fato está explicitado em dois artigos distintos do Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra, além de ser claramente colocado na Mensagem 33. No Parágrafo Único, letra “a”<br />

do artigo 4 o , onde se lê:<br />

“Parágrafo Único. Não se considera Latifúndio:<br />

327 Este número foi calculado pelo autor com base nos Censos Agropecuários do IBGE (JONES, 1987). Paulo<br />

Yokota apresenta, curiosamente, <strong>da</strong>dos semelhantes, ao se referir às áreas discrimina<strong>da</strong>s pelo INCRA: “Desde a<br />

criação do Estatuto <strong>da</strong> Terra o Brasil já discriminou 115 milhões de hectares, o que significa cerca<br />

de um terço <strong>da</strong> área de jurisdição Federal, sendo mais de 70 milhões de hectares só no Governo João<br />

Figueiredo. Desta área, mais de 35 milhões de hectares localizam-se na região Centro-Oeste, preparando<br />

uma firme base documental para a expansão agropecuária.” (op. cit.. p. 3. Grifos nossos). Como se verá no<br />

próximo capítulo, estes <strong>da</strong>dos são coerentes com a expansão <strong>da</strong>s áreas novas incorpora<strong>da</strong>s ao patrimônio privado no<br />

período 1960 a 1980.<br />

328 Tratam-se de cálculos feitos pelo autor com base nos Censos. Estes <strong>da</strong>dos são apresentados de forma detalha<strong>da</strong><br />

no capítulo 5 adiante. Parte desses <strong>da</strong>dos foram apresentados na Dissertação de Mestrado do autor (JONES: 1987).<br />

329 No documento “Posição <strong>da</strong> CONTAG sobre a Política Fundiária”, esta questão é levanta<strong>da</strong> nos seguintes termos:<br />

“Recentemente, o Presidente <strong>da</strong> República e o Ministro Extraordinário para Assuntos Fundiários<br />

declararam a imprensa que o Governo estava executando o Estatuto <strong>da</strong> Terra, tendo titulado, desde<br />

1964, cerca de 31 milhões de hectares, área correspondente ao estado do Rio Grande do Sul. To<strong>da</strong>via<br />

não esclareceu quantos desses 31 milhões de hectares foram titulados para as grandes<br />

proprie<strong>da</strong>des e quantos foram destinados aos trabalhadores rurais (...) Estamos convencidos de<br />

que foram os latifundiários os grandes beneficiários dessa titulação” (CONTAG, 1984, p. 8. Ver<br />

também, JONES, 1987, p.180). Ver o capítulo 5, deste trabalho, onde esses <strong>da</strong>dos são cui<strong>da</strong>dosamente estu<strong>da</strong>dos.<br />

169


a) O imóvel rural, qualquer que seja sua dimensão, cujas<br />

características recomendem, sob o ponto de vista técnico e<br />

econômico, a exploração florestal racionalmente realiza<strong>da</strong>,<br />

mediante planejamento adequado.” 330<br />

O curioso é que o art. 4 o refere-se às definições gerais, inclusive, de Latifúndio<br />

(ver, item “V” deste artigo). Mas insere um parágrafo único, após ter definido o que é<br />

latifúndio, para também definir o que “não se considera latifúndio”. Não que se queira<br />

aqui fazer uma análise tendenciosa do Estatuto <strong>da</strong> Terra, mas, realmente, é curioso esta<br />

reafirmação pelo oposto. Alhures, neste estudo, já se fez referência às exceções abertas<br />

pelas normas jurídicas.<br />

A mesma salvaguar<strong>da</strong> às grandes áreas é assegura<strong>da</strong> no parágrafo 3 o , alínea “c”<br />

do artigo 19 do Estatuto <strong>da</strong> Terra, onde se pode ler:<br />

“ 3 o Salvo por motivo de utili<strong>da</strong>de pública, estão isentos de<br />

desapropriação:<br />

(...)<br />

c) os imóveis que, embora não classificados como empresas<br />

rurais situados fora <strong>da</strong> área prioritária de Reforma Agrária,<br />

tiverem aprovados pelo IBRA, e em execução, projetos<br />

que, em prazos determinados o elevem àquela categoria.”<br />

331<br />

Veja-se que esta norma refere-se aos imóveis que se subsumem efetivamente na<br />

definição de latifúndios. Basta que apresentem projeto ao IBRA para se tornarem<br />

isentos <strong>da</strong> desapropriação por interesse social para fins de Reforma Agrária. Veja-se,<br />

igualmente, que, ao ficarem fora <strong>da</strong>s “áreas prioritárias de Reforma Agrária” já teriam,<br />

em princípio, a segurança de não correrem o risco deste tipo de desapropriação; apesar<br />

disso, assegurou-se-lhes mais esta salvaguar<strong>da</strong>. Com relação ao ITR, <strong>da</strong> mesma forma,<br />

bastava a apresentação de Projeto para ter o imposto ou reduzido em até 90%, ou por<br />

um prazo de carência de três anos (art. 50, 5 o e 12 <strong>da</strong> Lei 4.504, de 30 de novembro<br />

de 1964).<br />

Quanto ao minifúndio, este não teria, por suposto do modelo econômico,<br />

nenhuma destas possibili<strong>da</strong>des, <strong>da</strong><strong>da</strong> a limitação “endógena”, representa<strong>da</strong> pela sua<br />

diminuta dimensão territorial que, sequer, seria suficiente para a manutenção de uma<br />

família de trabalhadores rurais. Essa questão é coloca<strong>da</strong> nos seguintes termos na<br />

Mensagem 33:<br />

“Essa distorção fundiária pode ser ain<strong>da</strong> avalia<strong>da</strong> pelo aumento<br />

<strong>da</strong> percentagem <strong>da</strong> área ocupa<strong>da</strong> pelos estabelecimentos rurais<br />

que se enquadram nos extremos <strong>da</strong>s classes de área. Dados<br />

referentes ao último período intercensitário revelam, na ver<strong>da</strong>de,<br />

um inconveniente aumento <strong>da</strong> ocupação de área tanto no que<br />

tange às proprie<strong>da</strong>des com área superior a 10.000 hectares,<br />

330 Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964 (BRASIL. Congresso Nacional. Brasília: 1964. Grifos nossos).<br />

331 Lei 4.504, cita<strong>da</strong>.<br />

170


como nos estabelecimentos com superfícies inferiores a 10<br />

hectares.<br />

“Particularmente com relação a estes últimos, o aumento<br />

verificado - mais de 76% - identifica uma inconveniente anomalia<br />

estrutural que cabe a uma Reforma Agrária corrigir.”<br />

“Corrigir”, na linguagem do modelo de desenvolvimento rural em pauta, quer<br />

dizer eliminar.<br />

Isto, com certeza, não significava, no contexto <strong>da</strong> estratégia de<br />

desenvolvimento, implícita no projeto de Política Fundiária do Governo na época, que<br />

as áreas dos minifúndios seriam amplia<strong>da</strong>s. Pelo contrário, significava, claramente, que<br />

ele deveria ceder espaço para a formação empresas familiares, o que é uma outra coisa<br />

completamente diferente. Os <strong>da</strong>dos que evidenciam a sua redução tanto em termos de<br />

número, quanto de área média 332 no período entre 1960 e 1980 são a prova eloqüente<br />

deste fato.<br />

Por outro lado, a Mensagem 33, faz clara referência no sentido <strong>da</strong> manutenção e<br />

do reconhecimento <strong>da</strong> relevância <strong>da</strong>s grandes proprie<strong>da</strong>des, transforma<strong>da</strong>s em empresas<br />

rurais, que seriam incentiva<strong>da</strong>s. Esta referência era coerente com a política de incentivo<br />

ao desenvolvimento <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de do trabalho agrícola, fun<strong>da</strong>do na iniciativa<br />

priva<strong>da</strong>, como fica claro no seguinte trecho <strong>da</strong> Mensagem:<br />

“A extrema variação de situações regionais no Brasil impõe<br />

entretanto que não se criem restrições à manutenção e<br />

formação de grandes empresas rurais em áreas, onde a<br />

pressão demográfica é modera<strong>da</strong> e onde a natureza do solo ou o<br />

tipo de cultivo tornem tecnicamente aconselhável a exploração<br />

em grandes uni<strong>da</strong>des desde que garantidos os princípios de<br />

justiça social e o uso adequado <strong>da</strong> terra com alto índice de<br />

produtivi<strong>da</strong>de. O projeto 333 anexo não interfere nem se<br />

contrapõe às empresas rurais existentes ou a serem cria<strong>da</strong>s;<br />

antes as reconhece como legítimas formas de exploração <strong>da</strong><br />

terra, <strong>da</strong>ndo-lhes o merecido relevo, dentro <strong>da</strong> definição do<br />

inciso V do art. 4 o , e propiciando-lhe ain<strong>da</strong> as numerosas<br />

medi<strong>da</strong>s preconiza<strong>da</strong>s no título relativo à Política de<br />

Desenvolvimento Rural.” 334<br />

Este trecho <strong>da</strong> Mensagem 33 deixa claro o sentido atribuído pelo Projeto do<br />

Governo à solução do problema agrário. Não omite, sequer, a possibili<strong>da</strong>de,<br />

efetivamente aberta, para a promoção de uma política de formação de grandes<br />

proprie<strong>da</strong>des, por suposto, empresariais, nas regiões “onde a pressão demográfica é<br />

modera<strong>da</strong> e onde a natureza do solo ou o tipo de cultivo tornem tecnicamente<br />

aconselhável”. Ou seja, estava efetivamente assegura<strong>da</strong> a alternativa para a<br />

implementação de grandes concessões ou “ven<strong>da</strong>s” de terras na Amazônia, no Centro<br />

332 Ver Quadro 2.C (anexo 2).<br />

333 Isto é, a Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, que dispõe sobre Estatuto <strong>da</strong> Terra e dá outras providências.<br />

334 Mensagem 33 (Loc. cit. Grifos nossos).<br />

171


Oeste, etc., por suposto mediante a implantação de grandes empresas agropecuárias. O<br />

problema não está, efetivamente, na proposição <strong>da</strong> diretriz, de se implementar ou<br />

incentivar a estruturação de empresas agropecuárias eficientes, independentemente de<br />

seus respectivos tamanhos físicos, mas na suposição apriorística de que tais empresas<br />

deveriam ser estrutura<strong>da</strong>s sobre grandes áreas, especialmente nas regiões de “baixa<br />

densi<strong>da</strong>de populacional”.<br />

Este fato, sim, é que levanta suspeita com relação ao Projeto de Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra do Governo Castelo Branco. Parece que mais uma vez se está diante do mesmo<br />

projeto dos “grandes posseiros” e sesmeiros <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1840, ou seja, dos<br />

latifundiários e especuladores. Os <strong>da</strong>dos sobre áreas novas, que são analisados no<br />

capítulo seguinte, evidenciam os resultados implicados por esta diretriz.<br />

Paulo Yokota, discursando sobre a região Centro-Oeste, ao defender com<br />

clareza cristalina esta “idéia força” do Estatuto <strong>da</strong> Terra, procura, inclusive justificá-la<br />

“teoricamente” nos seguintes termos:<br />

“Registra-se que a disseminação de grandes proprie<strong>da</strong>des na região Centro-<br />

Oeste, com base nos incentivos fiscais, antes mesmo <strong>da</strong> multiplicação dos<br />

meios de comunicação, não pode ser considera<strong>da</strong> como uma tendência<br />

anormal. A própria teoria <strong>da</strong> localização, com comprovações empíricas<br />

(sic) indica a tendência à instalação <strong>da</strong>s grandes proprie<strong>da</strong>des mais distantes<br />

dos principais centros do mercado nacional ou pontos de deslocamento para o<br />

mercado internacional. Anormal seria a multiplicação de grandes proprie<strong>da</strong>des<br />

nos arredores dos maiores centros urbanos.” 335<br />

O problema é que esta possibili<strong>da</strong>de representou, efetivamente, a abertura para a<br />

reprodução do latifúndio e <strong>da</strong> concentração fundiária em vastas áreas de terras<br />

devolutas, tornando ain<strong>da</strong> mais grave a situação <strong>da</strong> excludência social e <strong>da</strong> violência no<br />

campo, inclusive, sem a pressuposta contraparti<strong>da</strong> <strong>da</strong> formação de empresas<br />

agropecuárias de alta produtivi<strong>da</strong>de.<br />

Veja-se que este posicionamento de Política Fundiária do Governo indica um<br />

sentido contrário, em termos de tratamento, ao que é definido para o minifúndio. Como<br />

se afirmou acima, essa diferença no tratamento do problema de um e de outro casos, era<br />

perfeitamente coerente com o modelo de desenvolvimento agrícola proposto. O vetor do<br />

modelo de desenvolvimento defendido pelo Governo, era assegurar a eficiência<br />

econômica na alocação de recursos na agricultura. Entre estes recursos, a própria terra,<br />

que deveria cumprir uma “função social, o que, por suposto, necessariamente implicava<br />

em possuir uma dimensão mínima de área para suportar esta condição e tornar viáveis<br />

outros investimentos. Isto, quer dizer que, por não possuir, endogenamente, esta<br />

possibili<strong>da</strong>de, o minifúndio era, por definição, descartado. A par dessa condição prévia,<br />

apenas seria possível superar os supostos bloqueios ao desenvolvimento, pelo incentivo<br />

à iniciativa priva<strong>da</strong> e à concorrência, no setor agrícola. Nesses parâmetros <strong>da</strong> economia<br />

de mercado é que se fun<strong>da</strong>va o princípio <strong>da</strong> “igual<strong>da</strong>de de oportuni<strong>da</strong>des no acesso à<br />

335 Op. cit. Grifos nossos.<br />

172


terra para todos”. O sentido liberal do Projeto, inclusive assegurado no Capítulo <strong>da</strong><br />

Constituição Federal referente à ordem econômica.<br />

De qualquer maneira, a tendência exacerba<strong>da</strong> à defesa <strong>da</strong> manutenção e<br />

incentivo à formação de grandes proprie<strong>da</strong>des rurais, especialmente nas regiões de<br />

pouca densi<strong>da</strong>de populacional, não encontra maiores justificativas, considerando-se o<br />

caráter de desenvolvimento capitalista que, supostamente, subjazia ao projeto. Parece,<br />

neste sentido e contexto, portanto, muito mais um projeto latifundiário para a<br />

subordinação do desenvolvimento do capitalismo 336 aos seus interesses agrários, por<br />

mais que isto pareça um contra-senso. Trata-se, efetivamente, de uma contradição.<br />

Como foi analisado no capítulo 2, a tentativa de 1850, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na teoria <strong>da</strong> colonização<br />

sistemática de Wakefield, sofreu o mesmo desvio que, aparentemente, volta a tentar<br />

insinuar-se com o modelo de desenvolvimento econômico e de superação <strong>da</strong> pobreza<br />

rural, tal como proposto e viabilizado pelos governos militares após assumirem o poder<br />

em 1964.<br />

Neste contexto e sentido, a solução defendi<strong>da</strong> era a promoção <strong>da</strong> modernização<br />

do setor agrícola, que, por suposto, implicaria, uma melhor e mais eficiente “alocação<br />

de recursos e de fatores econômicos” na agricultura, em particular, e uma nova<br />

dinâmica na absorção e aproveitamento <strong>da</strong> mão-de-obra na agricultura e do emprego no<br />

meio rural. Em conseqüência ter-se-iam efeitos dinâmicos nas ativi<strong>da</strong>des industriais, em<br />

decorrência <strong>da</strong> pressuposta ampliação do mercado interno, pela incorporação do setor<br />

agrícola e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de rural, tanto à rede de consumo produtivo, como de bens de<br />

salários. Desta forma, e indiretamente, seria promovi<strong>da</strong> a otimização do emprego, pela<br />

via <strong>da</strong> integração intersetorial, exigi<strong>da</strong>, segundo os teóricos do modelo, pelo novo<br />

estágio de desenvolvimento <strong>da</strong> economia nacional, o que, inclusive, poderia implicar em<br />

uma nova estruturação para o mercado de terras. Esta problemática é coloca<strong>da</strong> nos<br />

seguintes termos na Mensagem 33:<br />

“O problema agrava-se agu<strong>da</strong>mente com a crescente<br />

industrialização do País e com a concentração populacional nos<br />

grandes centros urbanos. To<strong>da</strong> essa população absorvi<strong>da</strong> no<br />

trabalho urbano cria exigências ca<strong>da</strong> vez maiores de suprimento<br />

de alimentos, deman<strong>da</strong>ndo uma organização mais<br />

sistematiza<strong>da</strong> de sua produção, transporte e distribuição. Em<br />

contraposição, o crescimento <strong>da</strong> produção industrial gera a<br />

necessi<strong>da</strong>de de alargamento do mercado consumidor, ou seja, a<br />

incorporação de novas áreas <strong>da</strong> população ao consumo dos<br />

produtos industriais, o que se obterá pela elevação dos<br />

336 Referindo-se à conjuntura <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 40 do século passado, quando se desenvolveu o debate parlamentar que<br />

precedeu a promulgação <strong>da</strong> Lei 601 de 1850, Murilo de Carvalho conclui dizendo que, “mesmo a modernização<br />

conservadora ao estilo prussiano, esboça<strong>da</strong> em 1843 e em 1850, não se verificaria. Faltariam alguns<br />

ingredientes básicos: do lado <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de os barões do aço se unirem aos barões <strong>da</strong> ceva<strong>da</strong>; do lado do<br />

Estado, um Exército ao mesmo tempo reformista e confiável à grande proprie<strong>da</strong>de, capaz de garantir<br />

pelo militarismo a implantação <strong>da</strong>s reformas.”(CARVALHO, Op. cit. p. 54. Grifos nossos). A imaginar-se,<br />

por analogia, a hipótese acima, levanta<strong>da</strong> por Murilo de Carvalho, para o contexto de 1964, pode-se supor que o<br />

modelo, então proposto, a sair vitorioso, pelo menos no que toca ao desenvolvimento <strong>da</strong> agricultura, estariam os<br />

mentores <strong>da</strong> política fundiária e do desenvolvimento rural de 1964, optando pela utilização de uma via “ultraprussiana”<br />

para o desenvolvimento do capitalismo na agricultura brasileira.<br />

173


padrões econômicos <strong>da</strong> população rural, facultando-lhe<br />

poder aquisitivo para acesso aos produtos industrializados. A<br />

interdependência entre campo e o meio urbano e industrial é<br />

contingência do próprio desenvolvimento econômico do País e<br />

essa interdependência traduz-se nos seguintes aspectos<br />

fun<strong>da</strong>mentais do processo de crescimento e integração<br />

nacionais, <strong>da</strong>ndo a Política de Desenvolvimento Rural várias<br />

e insubstituíveis atribuições.” 337<br />

Neste sentido, fica claro que o parâmetro fun<strong>da</strong>mental seria a incorporação do<br />

progresso técnico à agricultura, por um lado e, por outro, à implementação de<br />

instrumentos de política agrícola, como, por exemplo, o crédito rural subsidiado,<br />

voltado para o financiamento <strong>da</strong> produção (tanto de custeio como de investimentos), o<br />

benefeciamento, a estocagem e a comercialização dos produtos agropecuários. No<br />

contexto de um modelo desta natureza, a reforma agrária “distributivista” era,<br />

efetivamente, uma ação complementar, não prioritária. Era concebi<strong>da</strong> enquanto um<br />

solução “social”, ou seja, uma espécie de “mal necessário”.<br />

Isto significa que a pequena produção 338 , embora não tendo maior relevância<br />

econômica - <strong>da</strong><strong>da</strong> a impossibili<strong>da</strong>de, pressuposta no modelo, de gerar os excedentes<br />

necessários à dinamização <strong>da</strong> economia como um todo - entretanto, em determina<strong>da</strong>s<br />

situações bastante específicas, possuía relevância “social”. Em particular, face às<br />

necessi<strong>da</strong>des imediatas de minorar a miséria rural, ou para apoiar os processos de<br />

transferência de populações de áreas prioritárias de desenvolvimento, como, por<br />

exemplo, nos casos de construção de barragens, hidro-elétricas, vias de comunicação<br />

etc. Finalmente, no outro extremo do caso brasileiro <strong>da</strong> época, quando este<br />

procedimento fosse necessário para amortecer as tensões sociais, no sentido de evitar-se<br />

implicações políticas “indesejáveis”.<br />

Assim, a priori<strong>da</strong>de na solução do “problema agrário” deveria recair, como de<br />

fato recaiu, na implementação <strong>da</strong> política de desenvolvimento rural, sendo a reforma<br />

agrária “distributivista” reduzi<strong>da</strong> aos limites estritamente definidos pelos projetos de<br />

colonização, em particular em áreas de grande incidência de posseiros, arren<strong>da</strong>tários e,<br />

sobretudo de tensões e conflitos sociais. Ou seja, o pressuposto continuava sendo o <strong>da</strong><br />

existência de uma situação dual na economia brasileira, donde inclusive, a ênfase, por<br />

um lado, em duas formas de soluções, uma fun<strong>da</strong><strong>da</strong> nos instrumentos de<br />

desenvolvimento econômico e outra na “colonização oficial” e reforma agrária<br />

“distributivista”. Neste contexto, é idealizado o grande esforço na integração nacional,<br />

consagrado no PIN - Programa de Integração Nacional - em 1970.<br />

A alternativa prioritária, proposta para a superação <strong>da</strong> pobreza rural, neste<br />

contexto, era “o aumento <strong>da</strong> produção, <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> ren<strong>da</strong> líqui<strong>da</strong> do<br />

337 Mensagem 33 (Loc. cit.). Grifos nossos.<br />

338 Um excelente estudo acerca “<strong>da</strong>s potenciali<strong>da</strong>des do pequeno produtor na oferta de produtos agrícolas”, e suas<br />

relações na economia brasileira, foi realizado por Maurinho Luiz dos Santos (SANTOS, M.L. 1993). Outro estudo<br />

igualmente importante, referente especificamente, ao problema dos “condicionantes <strong>da</strong> modernização” <strong>da</strong> pequena<br />

produção, foi feito por Sebastião Teixeira Gomes (GOMES, 1986).<br />

174


produtor”, como pode ser lido em quase todos os documentos operacionais <strong>da</strong>s<br />

instituições governamentais liga<strong>da</strong>s ao setor agrícola do período que se seguiu à<br />

implementação desse modelo de desenvolvimento rural. Portanto, o modelo era<br />

coerente, em sua totali<strong>da</strong>de, com a solução do problema rural, tal como apresenta<strong>da</strong> pelo<br />

diagnóstico do Governo e tendo em consideração a conjuntura <strong>da</strong> época.<br />

Neste contexto, a distribuição de terras para a formação de pequenas<br />

proprie<strong>da</strong>des, na medi<strong>da</strong> em que estas não tinham (ou tinham de forma muito limita<strong>da</strong>),<br />

por definição, a possibili<strong>da</strong>de de responder, em termos <strong>da</strong> oferta de excedentes para o<br />

mercado, de forma relevante, teria que ser, necessariamente, limita<strong>da</strong> ao mínimo<br />

imprescindível para amortecer ou conter as tensões. E é exatamente isto que fica claro<br />

na definição <strong>da</strong>s áreas prioritárias para fins de reforma agrária. Os demais problemas <strong>da</strong><br />

pobreza rural, neste modelo, seriam resolvidos efetivamente, na medi<strong>da</strong> em que a<br />

economia se modernizasse ampliando a produção e a produtivi<strong>da</strong>de agrícolas e a sua<br />

capaci<strong>da</strong>de de dinamizar os processos de absorção de mão-de-obra e geração de ren<strong>da</strong><br />

no campo. Mas, também, no setor industrial ou agro-industrial. Por isso a Mensagem 33<br />

se refere ao fato de que tinha um objetivo mais amplo e ambicioso, sendo uma lei de<br />

desenvolvimento rural. 339<br />

Neste contexto, a reforma agrária, tal como proposta, tinha, de fato, apenas o<br />

estatuto de objetivo complementar ao processo de desenvolvimento rural. O<br />

fun<strong>da</strong>mental era a promoção do desenvolvimento, assegurado pelos instrumentos de<br />

política agrícola. É neste sentido que se está, aqui, afirmando que o Regime Militar<br />

implementou, efetivamente, o seu (e não outro) projeto de reforma agrária. E sobretudo,<br />

implementou, com veemência, o seu projeto de desenvolvimento rural.<br />

To<strong>da</strong>s essas questões estão claramente coloca<strong>da</strong>s na Mensagem 33 e<br />

rigorosamente regulamenta<strong>da</strong>s no Estatuto <strong>da</strong> Terra. Portanto, neste sentido, não se<br />

pode argüir que o Governo apresentou um determinado Projeto de Reforma Agrária na<br />

Lei 4.504/64, e executou outro. Ou que não executou nenhum Projeto. O que, de fato, se<br />

pode afirmar, é que a Política Fundiária do período pós-1964, fracassou<br />

contundentemente, em termos de sua alega<strong>da</strong> meta de cumprir o imperativo<br />

constitucional de “promover a justa distribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, com igual<strong>da</strong>de<br />

de oportuni<strong>da</strong>de para todos”. Neste caso, entretanto, a crítica situa-se noutro<br />

patamar: refere-se ao fato de que a Política Fundiária dos Governos Militares foi,<br />

efetivamente, a continui<strong>da</strong>de, por outros meios, do mesmo processo de apropriação e<br />

legitimação privilegia<strong>da</strong>s. Por isto a concentração <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária persistiu e<br />

agudizou-se, assumindo novo sentido no contexto do período. Desta forma, é<br />

procedente a seguinte crítica realiza<strong>da</strong> pela CONTAG:<br />

“Hoje, não se trata apenas <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des de acesso à terra em<br />

função de uma distribuição historicamente desigual de<br />

proprie<strong>da</strong>de e do zelo dos latifundiários para com a integri<strong>da</strong>de<br />

339 Veja a Mensagem n o 33 (Loc. cit.).<br />

175


de proprie<strong>da</strong>des que, mesmo improdutivas, consideram ‘suas’ por<br />

tradição.<br />

“Hoje, têm os trabalhadores de enfrentar to<strong>da</strong> uma política<br />

agrária cuja tônica tem sido a separação do trabalhador <strong>da</strong><br />

terra, através <strong>da</strong> penalização do minifúndio e do apoio, quase<br />

sem limites, à grande proprie<strong>da</strong>de. A intervenção<br />

governamental no campo cresceu nesses 20 anos, não no<br />

sentido de atender às necessi<strong>da</strong>des dos trabalhadores rurais<br />

de que falava a Mensagem 33 que encaminhou o Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra ao Congresso Nacional, mas sim no de favorecer a grande<br />

proprie<strong>da</strong>de, através de isenções e subsídios, de suporte<br />

financeiro a projetos anti-sociais ou, mais diretamente, de<br />

grandes obras públicas que se tornaram, elas próprias, motivo de<br />

desassossego para a população trabalhadora rural.<br />

“(...) A grande proprie<strong>da</strong>de, que já se sabia um aliado precioso do autoritarismo político,<br />

tornou-se um suporte econômico fun<strong>da</strong>mental à implementação de uma política<br />

econômica... de favorecimento irrestrito ao grande capital.” 340<br />

Esta postura oficial era seqüência normal, como contra-propositura, a um<br />

processo de feições muito interessantes, que nos planos ideológico e político se foi<br />

configurando nos primeiros anos <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1960. Uma tendência de pensamentoação<br />

que reuniu governadores estaduais, setores <strong>da</strong> Igreja Católica, intelectuais e uma<br />

parcela importante <strong>da</strong> opinião pública urbana em grandes centros. Aspásia de Alcântara<br />

Camargo enfatizou a aliança que Jânio Quadros procurou estabelecer com<br />

governadores, consubstancia<strong>da</strong><br />

“em aju<strong>da</strong> financeira e administrativa através <strong>da</strong>s ‘reuniões de<br />

governadores’ que tinham como objetivo reforçar o<br />

desenvolvimento regional e reduzir os desequilíbrios internos (em<br />

oposição à “severi<strong>da</strong>de juscelinista” que se nutria de reforço <strong>da</strong><br />

órbita federal) ... no sentido de neutralizar o clientelismo e o<br />

tradicionalismo. Nesse particular é bem sugestiva a amarga<br />

hostili<strong>da</strong>de que o presidente retrospectivamente revela contra o<br />

DNOCS e os latifúndios. ... Em contraparti<strong>da</strong>, as alianças no<br />

Nordeste parecem tecer-se na órbita dos executivos<br />

modernizantes - como Cid Sampaio, Pedro Gondim e outros,<br />

bafejados por uma política de composição mais aberta com<br />

grupos até então excluídos, e comprometidos com<br />

transformações sociais na região.” 341<br />

Essa tendência mostra-se uma vez ain<strong>da</strong> na tentativa do governador de São<br />

Paulo, Carvalho Pinto, de reformar a estrutura agrária paulista com a Lei de Revisão<br />

Agrária (Lei Estadual no. 5944/60) 342 , de iniciativa de seu Governo, e que Caio Prado<br />

Júnior saudou como um válido sinal em defesa <strong>da</strong> Reforma Agrária. Não obstante, o<br />

contra-ataque <strong>da</strong>s forças latifundiárias foi imediato e fulminante. Na avaliação de T.<br />

340 CONTAG (1984, pp. 3-4. Grifos nossos).<br />

341 CAMARGO, 1983, pp. 183-84).<br />

342 Cf. A revisão agrária em São Paulo, separata de Agricultura em São Paulo, abril de 1961.<br />

176


Lynn Smith, essa tentativa não passou de mero protesto “que se perdeu sem eco no<br />

curso <strong>da</strong> história”, posto que a medi<strong>da</strong><br />

“foi anula<strong>da</strong> em 1963 por uma emen<strong>da</strong> constitucional que proibiu<br />

aos Estados a tributação de um imposto geral sobre a<br />

proprie<strong>da</strong>de, atribuindo, sem qualquer preparação, aos<br />

municípios.” 343<br />

Formara-se então, nos grandes centros urbanos, uma opinião pública favorável a<br />

teses de “democratização de estruturas arcaicas” no campo, a que, entre outros,<br />

Smith e Celso Furtado dão expressão. Furtado refere-se naquele momento às précondições<br />

revolucionárias no Nordeste, atribuindo-as a uma estrutura agrária<br />

caracteriza<strong>da</strong> pelo bloqueio <strong>da</strong> mobili<strong>da</strong>de social - requisito de uma socie<strong>da</strong>de moderna<br />

de classes. Smith endossa as teses de um escritor católico conservador (Gustavo<br />

Corção) que, falando em 1961, faz entretanto, o mesmo diagnóstico <strong>da</strong> estrutura agrária:<br />

“baixo índice de mobili<strong>da</strong>de social vertical e alto grau de mobili<strong>da</strong>de<br />

geográfica” e diz ser uma <strong>da</strong>s razões suficientes para uma reforma agrária no Brasil 344 .<br />

O texto de Smith é uma espécie de recensão dessas idéias generaliza<strong>da</strong>s. Ele afirmava,<br />

em contra-ofensiva aos argumentos anti-reformistas que privilegiam terras totalmente<br />

inexplora<strong>da</strong>s além-fronteira agrícola:<br />

“Mesmo no Brasil, na Colômbia, na Bolívia, na Venezuela e nos<br />

outros países em que grande porção do território nacional ain<strong>da</strong><br />

permanece por desbravar, uma reforma agrária genuína é, em<br />

grande parte um projeto que na<strong>da</strong> tem a ver com a ocupação de<br />

novas terras. Por isso cresce entre as técnicas de reforma a<br />

importância <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s pelas quais o Estado torna a imitir-se<br />

nos direitos de proprie<strong>da</strong>de de uma porção considerável <strong>da</strong>s<br />

terras aráveis e <strong>da</strong>s pastagens dentro de seus limites.” 345<br />

Smith refere-se a várias dessas medi<strong>da</strong>s, como a não indenização em dinheiro e<br />

pelo valor comum (de mercado) <strong>da</strong> terra, a fixação de tetos à proprie<strong>da</strong>de (ao seu<br />

tamanho), e a necessi<strong>da</strong>de de uma agência pública destina<strong>da</strong> a comprar as terras onde<br />

elas se ofereçam no mercado para formar um fundo de terras e pressionar os preços de<br />

mercado pela oferta (volta<strong>da</strong> aos pequenos compradores).<br />

Na citação a Corção, Smith endossa uma outra avaliação que se tornara lugarcomum<br />

nessa corrente de idéias: a altamente problemática “deficiência legal e técnica<br />

no registro dos títulos <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial.” 346 Inquinava-se a proprie<strong>da</strong>de<br />

territorial no campo de fraudulenta e iníqua, posto que calca<strong>da</strong> no privilégio. No já<br />

citado estudo de Maria Apareci<strong>da</strong> Moraes <strong>da</strong> <strong>Silva</strong>, consta uma exemplificação dos<br />

343 T.Lynn Smith. Organização rural. Problemas e soluções. São Paulo: Pioneira, 1971, p. 48 e nt.<br />

344 Palestra de Gustavo Corção no simpósio sobre Reforma Agrária patrocinado pelo Instituto Brasileiro de Ação<br />

Democrática, cita<strong>da</strong> em LYNN SMITH (1971, p. 55 e nt).<br />

345 LYNN SMITH (1971, pp. 64-65).<br />

346 Op. cit., p. 55.<br />

177


procedimentos e ações jurídico-políticas que conduzem a essa “deficiência legal e<br />

técnica.”<br />

Portanto, outro tem de ser, necessariamente, o sentido <strong>da</strong> análise e sobretudo, <strong>da</strong><br />

crítica à Política Fundiária implementa<strong>da</strong> pelo Governo, especialmente no que se refere<br />

à ampliação <strong>da</strong> violência e <strong>da</strong> repressão aos movimentos sociais no campo e, sobretudo<br />

<strong>da</strong>quilo que, neste trabalho, se está denominando de grilagem especializa<strong>da</strong> 347 . Neste<br />

âmbito específico, pode-se afirmar que o discurso de justiça social e de realização de<br />

uma reforma agrária “democrática” foi, efetivamente, contraditório com a prática <strong>da</strong> sua<br />

implementação no período dos governos militares. Que, ao contrário do que foi<br />

proposto e, sobretudo, o que é grave, contra as determinações explicitamente conti<strong>da</strong>s<br />

nas diversas legislações, inclusive no próprio Estatuto <strong>da</strong> Terra, os direitos legalmente<br />

assegurados à multidão de pequenos posseiros que preenchiam as exigências de mora<strong>da</strong><br />

habitual e exploração efetiva, (assim como <strong>da</strong>s populações indígenas) não foram<br />

respeitados, ao contrário; em ver<strong>da</strong>deira afronta a lei, inclusive e sobretudo, pelo<br />

próprio Estado. Neste caso, caracterizando a ilegitimi<strong>da</strong>de e inconstitucionali<strong>da</strong>de de<br />

inúmeros atos <strong>da</strong>s Autori<strong>da</strong>des Fundiárias do Governo, especialmente no que se referia<br />

aos processos de alienação, ven<strong>da</strong> e concessão de terras públicas. Atos que, portanto,<br />

necessitam ser revistos, especialmente quanto a sua vali<strong>da</strong>de jurídica, aliás como<br />

preceituado pela Constituição de 1988 348 .<br />

Neste sentido, a Política Fundiária do Estado apenas “modernizou” o processo<br />

de apropriação e legitimação privilegia<strong>da</strong>s, ampliando-o a uma escala sem precedentes<br />

na História do Brasil, tanto em termos <strong>da</strong> área envolvi<strong>da</strong> (em torno de 114.000.000 de<br />

hectares), como pela violência brutal exerci<strong>da</strong> pelo próprio Estado através de seus<br />

Órgãos de repressão e de “Ordem Política e Social”, contra os posseiros e trabalhadores<br />

rurais, então reduzidos à condição de “inimigos internos” ou de “agentes do<br />

comunismo internacional”. Estes fatos estão na base do processo de militarização<br />

<strong>da</strong> questão agrária 349 .<br />

A segun<strong>da</strong> dimensão do diagnóstico apresentado na Mensagem 33, como se<br />

anotou acima, referia-se a forma como o Governo Goulart vinha se ocupando do<br />

problema agrário. Neste contexto, o diagnóstico transfigura-se abertamente num<br />

genérico e confuso discurso ideológico, aparentemente com o duplo objetivo, de colocar<br />

a relevância do problema, por um lado, e justificar o golpe contra o Governo Goulart,<br />

por outro.<br />

Partindo de algumas estatísticas gerais a respeito <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de social no<br />

campo e <strong>da</strong> concentração exacerba<strong>da</strong> <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de rural, aponta<strong>da</strong>s como raízes dos<br />

profundos e graves problemas enfrentados pelo País no seu processo de<br />

347 Ver a respeito o próximo capítulo, a CPI do Sistema Fundiário (CÂMARA <strong>DO</strong>S DEPUTA<strong>DO</strong>S, 1979), IANNI<br />

(1979(a), especialmente o capítulo 5).<br />

348 Ver a este respeito as referências feitas por GUEDES PINTO (1995).<br />

349 Ver a respeito <strong>da</strong> militarização <strong>da</strong> questão agrária o excelente estudo de José de Souza Martins (MARTINS,<br />

1985).<br />

178


desenvolvimento, a análise apresenta<strong>da</strong> na Mensagem 33, desvia-se para acusações ao<br />

Governo Goulart, afirmando que este, ao invés de enfrentar “realisticamente” os<br />

problemas agrários, propondo soluções adequa<strong>da</strong>s, utilizava-se <strong>da</strong> situação para<br />

promover a subversão <strong>da</strong> ordem no meio rural, como se pode verificar pelo seguinte<br />

trecho do documento:<br />

“(...) A necessi<strong>da</strong>de de se <strong>da</strong>r à terra uma nova regulamentação,<br />

modificando-se a estrutura agrária do País, é de si mesma<br />

evidente, ante os anseios de reforma e justiça social de legiões de<br />

assalariados, parceiros, arren<strong>da</strong>tários, ocupantes e posseiros que<br />

não vislumbram, nas condições atualmente vigentes,<br />

qualquer perspectiva de se tornarem proprietários <strong>da</strong> terra<br />

que cultivam. A ela se soma, entretanto, no sentido de<br />

acentuar-lhe a urgência, a exasperação <strong>da</strong>s tensões sociais<br />

cria<strong>da</strong>s, quer pelo inadequado atendimento <strong>da</strong>s exigências<br />

normais do meio agrário, como assistência técnica e<br />

financiamentos, quer pela proposital inquietação, que para fins<br />

políticos subalternos, o Governo anterior propagou pelas<br />

áreas rurais do País, contribuindo para desorganizar o sistema<br />

de produção agrícola existente, sem o substituir por outro mais<br />

adequado.<br />

“Ao invés de <strong>da</strong>r ao problema uma solução de direção e<br />

construção, a ação governamental, só se exerceu na<br />

exasperação <strong>da</strong>s tensões, no agravamento <strong>da</strong>s contradições<br />

do sistema rural brasileiro, levando inquietação a to<strong>da</strong> a parte<br />

(...).” 350<br />

Trata-se, efetivamente, como se pode verificar, de um discurso simplesmente<br />

ideológico, sem maior relevância, enquanto análise, dos problemas enfrentados pelo<br />

Governo Goulart e, menos ain<strong>da</strong>, <strong>da</strong>s formas propostas, por este, para enfrentar o<br />

problema agrário. Veja-se, por exemplo, que a premissa básica deste parágrafo, “a<br />

necessi<strong>da</strong>de de se <strong>da</strong>r a terra uma nova regulamentação”, que efetivamente era<br />

<strong>da</strong> maior relevância, já vinha sendo proposta desde os anos que se seguiram ao fracasso<br />

do Regulamento <strong>da</strong> Lei 601 de 1850, tendo sido reitera<strong>da</strong>s vezes propostas em 1912 351 ,<br />

1913 352 1915 353 e 1946 354 , como já analisado no segundo e no terceiro capítulos deste<br />

estudo.<br />

Pode-se afirmar, ao analisar a argumentação exposta na Mensagem 33 a este<br />

respeito, portanto, o seguinte: os <strong>da</strong>dos apresentados acerca <strong>da</strong> concentração <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de rural e <strong>da</strong> exasperação dos conflitos no campo eram ver<strong>da</strong>deiros, mas na<strong>da</strong><br />

tinha a ver com a gestão João Goulart. Portanto, a imputação, ao Governo<br />

Constitucional deposto, de estar promovendo a inquietação social e a subversão <strong>da</strong><br />

350 Mensagem 33 (Loc. cit. Grifos nossos).<br />

351 Decreto 2.543-A, de 5 de janeiro de 1912. (Loc. cit.).<br />

352 Decreto 10.105, de 5 de março de 1913. (Loc. cit.).<br />

353 Decreto 11.485, de 10 de fevereiro de 1915.<br />

354 Decreto-lei 9.760, de 5 de setembro de 1946. (BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Rio de Janeiro: 1946.).<br />

179


ordem no campo e na ci<strong>da</strong>de, realmente soa como mera justificativa <strong>da</strong> conspiração e do<br />

Golpe de Estado.<br />

No que se referia à acusação de falta de proposição de alternativas à solução dos<br />

problemas Agrários, pelo Governo João Goulart, a afirmação é efetivamente falaciosa e<br />

não se sustenta empiricamente: Além <strong>da</strong> estruturação <strong>da</strong> SUPRA, o Governo Goulart<br />

havia decretado, em 13 de março de 1964 a desapropriação, para fins de reforma<br />

agrária, <strong>da</strong> faixa de 10 quilômetros ao longo <strong>da</strong>s margens <strong>da</strong>s rodovias, ferrovias e<br />

açudes de responsabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> União e, em 15 do mesmo mês de março, em Mensagem<br />

de abertura <strong>da</strong> Legislatura de 1964, propunha uma série de outras medi<strong>da</strong>s necessárias<br />

ao equacionamento de diversos problemas sociais, entre os quais, um dos mais<br />

importantes, senão o mais importante, referia-se a Reforma Agrária.<br />

Antes disto, em 1962, com a promulgação <strong>da</strong> Lei 4.132, de 10 de setembro, era<br />

instituído e regulamentado o instituto jurídico <strong>da</strong> desapropriação por interesse social,<br />

“visando a promover a justa distribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de ou condicionar o seu<br />

uso ao bem estar social.” 355<br />

Havia, inclusive, na mensagem de abertura <strong>da</strong> legislatura referi<strong>da</strong> acima, o<br />

Governo Goulart, proposto mu<strong>da</strong>nças 356 na Constituição de 1946, em particular visando<br />

a modificação do dispositivo que exigia a indenização prévia e em dinheiro para a<br />

desapropriação por interesse social e utili<strong>da</strong>de pública. Quinze dias depois, a<br />

conspiração militar interrompia estas medi<strong>da</strong>s, depondo o Presidente <strong>da</strong> República.<br />

Como se sabe, to<strong>da</strong>s essas medi<strong>da</strong>s propostas pelo Governo deposto, foram<br />

ulteriormente apresenta<strong>da</strong>s, pelo próprio Regime Militar, sendo que, no caso dos<br />

modestos 10 quilômetros pretendidos pelo Governo Goulart, o Governo Militar<br />

estendeu, em 1971, para 100 quilômetros de ca<strong>da</strong> lado <strong>da</strong>s rodovias federais construí<strong>da</strong>s<br />

ou projeta<strong>da</strong>s para a área <strong>da</strong> Amazônia Legal 357 .<br />

Portanto, os argumentos contra o Governo Constitucional do Presidente João<br />

Goulart, incluídos na Mensagem 33, expunham claramente, a face ideológica <strong>da</strong><br />

avaliação 358 . Era, de fato, uma tentativa de justificar a Conspiração contra o Presidente<br />

João Goulart, por um lado e, por outro, de lançar as primeiras sementes para a violenta<br />

repressão que imediatamente seria deflagra<strong>da</strong> no campo (e também nas ci<strong>da</strong>des).<br />

Ao mesmo tempo funcionava como uma introdução justificadora, do ponto de<br />

vista do planejamento, para o amplo processo de privatização de terras devolutas e <strong>da</strong><br />

355 Vide, RIBEIRO (1984, p. 9): “Esse instrumento jurídico (Desapropriação por Interesse Social) foi<br />

instituído com a Lei n o 4.132, de 10 de setembro de 1962, visando a promover a justa distribuição <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de ou condicionar o seu uso ao bem-estar social”. Convém registrar que o Dr. Cláudio José<br />

Ribeiro, era Diretor do Departamento de Desenvolvimento Rural do INCRA, no Governo do General João<br />

Figueiredo.<br />

356 Que foram, depois, reedita<strong>da</strong>s com a Emen<strong>da</strong> Constitucional n o 10, de 9 de novembro de 1964, e que foi<br />

apresenta<strong>da</strong> pelos tecnocratas e juristas do Governo Castelo Branco, como resultado de “exaustivos estudos” de um<br />

Grupo de Trabalho especialmente criado com a finali<strong>da</strong>de de propor um Projeto Agrário.<br />

357 Ver. Decreto-lei 1.164, de 1 o de abril de 1971, “intróito”.( BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Brasília: 1971.).<br />

358 Ver a respeito desses fatos, MINC (1985), GUEDES PINTO (1995), CONTAG (1984), SINATORA e outros<br />

(1985)<br />

180


concentração <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial rural, fun<strong>da</strong>dos num determinado modelo de<br />

desenvolvimento econômico de cunho liberal e, portanto, na “igual<strong>da</strong>de formal de<br />

oportuni<strong>da</strong>des 359 ” por um lado, e na “concorrência” efetiva entre desiguais, em última<br />

instância.<br />

3. Instrumentalização Jurídica e Política Fundiária de Governo<br />

3.1. O Estatuto <strong>da</strong> Terra e Legislações Anteriores<br />

Como se estudou nos capítulos anteriores, desde 1854 vêm, os diferentes<br />

governos brasileiros, tentando disciplinar, administrativa e juridicamente, o processo de<br />

acesso às terras públicas no Brasil: na ver<strong>da</strong>de, a sua privatização. O objetivo <strong>da</strong>s<br />

diferentes tentativas reguladoras sempre foi a de buscar conter e combater a ocupação<br />

ilegítima e, sobretudo, especulativa, de grandes áreas de terras públicas. É neste sentido<br />

que to<strong>da</strong>s as diversas normas reguladoras do acesso e legitimação de posses e<br />

proprie<strong>da</strong>des foram propostas. Entretanto, sempre esbarraram na oposição sistemática<br />

dos grandes detentores de terras, especuladores e posseiros, ao nível concreto <strong>da</strong> sua<br />

implementação prática.<br />

A última tentativa, anterior ao Estatuto <strong>da</strong> Terra, de novembro de 1964, neste<br />

sentido, foi, como discutido no capítulo 3, o Decreto-lei 360 n o 9.760, de 1946 que,<br />

entretanto, continuava limitado às terras devolutas federais. Apesar do rigor<br />

formalmente estabelecido neste Decreto-lei, como se pode observar pelos artigos abaixo<br />

mencionados, os processos discriminatórios e de arreca<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s terras públicas<br />

federais continuaram a ser protelados quando não, efetivamente inviabilizados, pelo<br />

grandes posseiros e especuladores de terras:<br />

“Art.61. O SPU exigirá de todo aquele que estiver ocupando<br />

imóvel presumivelmente pertencente à União, que lhe<br />

apresente os documentos e títulos comprobatórios de seus<br />

direitos sobre os mesmos”.<br />

(...)<br />

“Art. 63. Não exibidos os documentos na forma prevista no art. 61,<br />

o SPU declarará irregular a situação do ocupante, e,<br />

imediatamente, providenciará no sentido de recuperar a União a<br />

posse do imóvel esbulhado.” 361<br />

Outras tentativas foram realiza<strong>da</strong>s, desde então, para fazer frente aos problemas;<br />

entretanto, to<strong>da</strong>s sem resultados concretos ao nível de campo. Foi assim, por exemplo,<br />

com a criação do INIC - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - em<br />

1954, instituído pela Lei 2.163 de 5 de janeiro, que, entretanto, tinha como objetivos a<br />

359 Isto é, o acesso à proprie<strong>da</strong>de rural estava livremente assegurado à todos, entretanto, subordinado ao princípio <strong>da</strong><br />

liber<strong>da</strong>de de competição, ou seja, ao mercado.<br />

360 Em 1956, a Lei 3.081, procurou, mais uma vez, disciplinar o processo discriminatório de terras federais,<br />

estaduais e municipais, entretanto não obtendo êxito em face <strong>da</strong> resistência encontra<strong>da</strong>, por um lado; e <strong>da</strong><br />

complexi<strong>da</strong>de estabeleci<strong>da</strong> para o referido processo, por outro.<br />

361 Decreto-lei n o 9.760, de 5.09.1946 (Loc. cit.).<br />

181


assistência e encaminhamento de trabalhadores migrantes nacionais e estrangeiros para<br />

as diversas regiões, a sua seleção, orientação e estabelecimento em colônias agrícolas e,<br />

finalmente, a coordenação de um programa nacional de colonização. Um ano depois,<br />

em 1955, pela Lei 2.613, de 23 de setembro, foi instituído o SSR - Serviço Social Rural<br />

- com objetivo genérico de atender “as necessi<strong>da</strong>des sociais dos homens do<br />

campo”. Estes órgãos pouco puderam realizar diante <strong>da</strong>s resistências de diversas ordens<br />

encontra<strong>da</strong>s, sobretudo no que se referia ao acesso à áreas em condições adequa<strong>da</strong>s para<br />

a instalação de seus projetos. As terras devolutas para as finali<strong>da</strong>des de colonização e<br />

assentamento, geralmente não reuniam as mínimas possibili<strong>da</strong>des de assegurar o<br />

sucesso destes, sobretudo pela suas condições de localização: as melhores terras<br />

continuavam sob o controle efetivo de grupos privilegiados, profun<strong>da</strong>mente arraigados<br />

na estrutura social rural e, em particular, nas burocracias encarrega<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />

implementação <strong>da</strong>s políticas de terra, agrícola e de colonização.<br />

Em 1962, já no período inicial <strong>da</strong> crise do Governo João Goulart, estes órgãos<br />

são substituídos pela SUPRA - Superintendência <strong>da</strong> Reforma Agrária - que tinha,<br />

institucionalmente, o objetivo mais ambicioso de elaborar e executar um Programa de<br />

Reforma Agrária. A SUPRA, como se registrou acima, teve vi<strong>da</strong> curta, ao ter sido o<br />

Governo João Goulart, surpreendido pelo movimento conspiratório de 1964. Aliás, um<br />

dos motivos de justificação ideológica <strong>da</strong> conspiração seria a própria atuação desta<br />

Superintendência, considera<strong>da</strong> como de caráter estritamente ideológico e de promoção<br />

<strong>da</strong> inquietação social no campo.<br />

Tendo-se em consideração todo esse amplo conjunto de medi<strong>da</strong>s normativas,<br />

tanto no campo jurídico - com as leis - quanto administrativos - pelo conjunto de<br />

decretos, portarias, instruções, etc. dos Órgãos do Executivo - o que se pode afirmar a<br />

respeito do Estatuto <strong>da</strong> Terra é que, ao contrário <strong>da</strong> ampla propagan<strong>da</strong> oficial de que a<br />

Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, seria uma construção legislativa avança<strong>da</strong>,<br />

elabora<strong>da</strong> depois de minuciosos e sistemáticos estudos por um específico grupo de<br />

especialistas, na ver<strong>da</strong>de esta Lei representa, como sempre foi <strong>da</strong> tradição legislativa<br />

portuguesa, uma consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s diversas normas que a antecederam, a começar pela<br />

Lei 601 de 1850 e fechando, com o Decreto-lei 9.760, de 1946.<br />

O fato de ter sido uma consoli<strong>da</strong>ção de normas anteriores 362 , diga-se, não<br />

constitui, em si mesmo nenhum demérito. Mas este fato necessita ser colocado com<br />

362 Como foi visto nos capítulos anteriores, desde 1850, muitas normas foram propostas para tentar por termo aos<br />

processos de apossamento ilegítimo de terras devolutas do país. Assim, os conceitos de discriminação e arreca<strong>da</strong>ção<br />

de terras devolutas, o próprio conceito de terras devolutas, o de legitimação de posses, de ratificação de títulos<br />

legítimos de proprie<strong>da</strong>de, de colonização etc., todos estes conceitos consagrados no Estatuto <strong>da</strong> Terra, já se<br />

encontravam claramente postos e regulamentados na Lei 601 de 1850 e respectivo Regulamento de 1854. O mesmo<br />

pode-se dizer com relação aos processos de registros públicos, aperfeiçoados, quer pelo Decreto 415-B, de 31 de<br />

maio de 1890, que instituiu o Registro Torrens, quer pelo Próprio Código Civil de 1916. Todos esses construtos<br />

jurídicos e normativos são reitera<strong>da</strong>mente aperfeiçoados pelas normas e decretos Federais, desde 1912 até 1946,<br />

como se viu no capítulo 3. Até mesmo com relação à integração e desenvolvimento <strong>da</strong> Amazônia, o Decreto 2.543,<br />

de 5 de janeiro de 1912, como foi visto, antecipou medi<strong>da</strong>s similares às, depois, proclama<strong>da</strong>s, pelos dirigentes dos<br />

Governos Militares, como criações de sua “lavra”, como o Estatuto <strong>da</strong> Terra e as medi<strong>da</strong>s preconiza<strong>da</strong>s no PIN -<br />

Programa de Integração Nacional. (Ver a respeito os capítulos 2, 3 e 5 deste trabalho).<br />

182


objetivi<strong>da</strong>de para se evitar a “legitimação” do “bias” que passou a ser uma característica<br />

<strong>da</strong> tecnoburocracia que se instalara no período, de pretender apresentar todos os seus<br />

projetos e iniciativas - seja no campo legislativo como em qualquer outro - como<br />

construções originais e avança<strong>da</strong>s, geralmente, omitindo as fontes onde beberam<br />

determina<strong>da</strong>s idéias, conceitos e propostas e, mais que isto, tentando fazer “tabula rasa”<br />

<strong>da</strong>s experiências anteriores, quando não, simplesmente, de negar a sua existência.<br />

Com isso não se pretende desqualificar o Estatuto <strong>da</strong> Terra e, menos ain<strong>da</strong>,<br />

desconhecer que o mesmo tenha oferecido a sua contribuição específica ao tratamento<br />

<strong>da</strong> questão fundiária. Mas trata-se de localizar a Lei 4.504, de 1964 no seu lugar<br />

adequado, no conjunto <strong>da</strong> construção histórica do ordenamento jurídico brasileiro.<br />

Acima já se fez referência à sua relevância pelo simples fato de representar a<br />

regulamentação do preceito Constitucional (de 1946), de fazer-se cumprir a função<br />

social <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de e promover a justa distribuição <strong>da</strong> mesma com igual oportuni<strong>da</strong>de<br />

para todos. Sem esta regulamentação este imperativo constitucional era de fato, mas<br />

também de direito, uma proclamação vazia - porque impossível de ser viabilizado e<br />

avaliado legalmente. Assim, a Lei 4.504/64 criava, de direito, a possibili<strong>da</strong>de de o<br />

Executivo poder, efetivamente, implementar o processo de regularização fundiária e de<br />

privatização <strong>da</strong>s terras públicas. Porque se tratava de privatizar as terras públicas para<br />

incorporá-las ao processo produtivo.<br />

As formas como isto seria feito dependiam, efetivamente, <strong>da</strong>s diretrizes de<br />

Política Econômica, ou seja, <strong>da</strong> opção, feita pelo Governo, por um determinado Projeto<br />

ou modelo de Desenvolvimento Econômico e Rural. Por isto mesmo não se pode<br />

separar o Estatuto <strong>da</strong> Terra <strong>da</strong> Mensagem 33, do General Castelo Branco.<br />

Por outro lado, o Estatuto <strong>da</strong> Terra efetivamente realizou alguns avanços no<br />

campo normativo, especialmente ao elaborar alguns construtos, como o de módulo<br />

familiar, empresas rurais, latifúndio e minifúndio, de tal forma que, em certo sentido<br />

possibilitaria a sua avaliação em termos do preceito constitucional. Entretanto, como<br />

será abor<strong>da</strong>do adiante, estes “construtos”, ao se fun<strong>da</strong>rem, como aliás, não poderia ser<br />

de outra forma, em parâmetros arbitrários, necessariamente se prestariam a<br />

interpretações diversas. Neste sentido, poderiam ser utilizados tanto para promover<br />

como para impedir o acesso ou a legitimação a determinados tipos de proprie<strong>da</strong>de rural.<br />

Os critérios, neste contexto, continuavam fortemente vinculados, por um lado, às<br />

priori<strong>da</strong>des defini<strong>da</strong>s no modelo de desenvolvimento; e, ao nível dos casos concretos, às<br />

mediações <strong>da</strong>s burocracias locais, fortemente influenciáveis, ain<strong>da</strong> mais em função do<br />

contexto de radicali<strong>da</strong>de ideológica e repressão que se instituiu, muito especialmente<br />

após 1968. Essa situação seria ain<strong>da</strong> mais agrava<strong>da</strong>, com as sistemáticas exceções<br />

abertas na Lei e, sobretudo nos Decretos e atos do Executivo, como, por exemplo, no<br />

caso <strong>da</strong> definição de latifúndio e, no mesmo artigo, “do que não se considerava<br />

latifúndio”.<br />

3.2. O Estatuto <strong>da</strong> Terra e a Política Fundiária<br />

183


O Estatuto <strong>da</strong> Terra propunha-se a ser uma “Lei de Desenvolvimento Rural”,<br />

fun<strong>da</strong>mentando-se na Mensagem 33 do General Humberto de Alencar Castelo Branco.<br />

Exatamente para isto era fun<strong>da</strong>mental estabelecer os critérios de acesso à proprie<strong>da</strong>de<br />

rural legítima. Guedes Pinto refere à Lei 4.504/64 nos seguintes termos, buscando<br />

enfatizar o fato de que a mesma pretendia <strong>da</strong>r forma e regulamentação a este projeto de<br />

desenvolvimento, tal como formulado, em suas linhas fun<strong>da</strong>mentais pela Mensagem 33<br />

que a encaminhava à análise e aprovação pelo Congresso Nacional:<br />

“Trata-se de texto longo (128 artigos), detalhista, abrangente, e<br />

deve-se dizer, bem elaborado. Na ver<strong>da</strong>de, como dizia a<br />

Mensagem 33 que encaminhou o projeto ‘não se contenta o<br />

projeto em ser uma lei de reforma agrária. Visa também a<br />

modernização <strong>da</strong> política agrícola do País, tendo por isso mesmo<br />

objetivo mais amplo e ambicioso; é uma lei de Desenvolvimento<br />

Rural 363 .”<br />

A persistir a confusão e incerteza jurídicas acerca <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de territorial, que vinham desde os primórdios <strong>da</strong> Independência, qualquer<br />

possibili<strong>da</strong>de de um projeto de desenvolvimento rural fun<strong>da</strong>do nos pressupostos <strong>da</strong><br />

economia de mercado capitalista, como o que se pretendia, seria profun<strong>da</strong>mente<br />

dificulta<strong>da</strong>. Os riscos embutidos nesta incerteza legal impunha, necessariamente,<br />

“custos adicionais” ao investimentos na agricultura ao perturbar de forma relevante o<br />

“mercado de terras” e de trabalho na agricultura 364 . Portanto, era necessário assegurar-se<br />

o acesso à proprie<strong>da</strong>de territorial legítima, por um lado, e por outro, legitimar as<br />

ocupações existentes, discriminando as terras públicas <strong>da</strong> particulares. Além de se<br />

prover os instrumentos econômicos de apoio à produção agropecuária.<br />

Curiosamente, tratava-se do mesmo problema enfrentado em 1850, que, como<br />

amplamente analisado no capítulo 2, havia sido permanente adiado, nunca tendo<br />

conseguido o Estado, apesar de seus inúmeros esforços legislativos e administrativos,<br />

equacioná-lo, em face <strong>da</strong> oposição sistemática <strong>da</strong> especulação latifundiária.<br />

Entretanto, após 1964, o contexto era outro. Internamente, por um lado, o Golpe<br />

de Estado havia assegurado o poder de grupos comprometidos com um projeto<br />

econômico e político liberal, fortemente arraigado, tanto interna quanto externamente,<br />

fun<strong>da</strong>do um determinado modelo de integração à economia capitalista Ocidental e ao<br />

mercado mundial. Por outro lado, o receio de que a pobreza rural servisse de estopim à<br />

deflagração de revoluções de caráter socializante colocava, para os grupos que<br />

integravam o bloco no poder, a necessi<strong>da</strong>de de amenizar a pobreza rural, promovendo<br />

“reformas agrárias” específicas e limita<strong>da</strong>s 365 , buscando a formação de uma “cama<strong>da</strong><br />

363 GUEDES PINTO. Op. cit., p. 12. Grifos nossos.<br />

364 Ver J. Foweraker a respeito <strong>da</strong> relevância <strong>da</strong> dimensão jurídica para as relações de proprie<strong>da</strong>de e de mercado na<br />

agricultura, especialmente o capítulo 4 “A história Legal <strong>da</strong> terra na fronteira e a questão <strong>da</strong> Autori<strong>da</strong>de dual.”<br />

(FOWERAKER, op. cit. , pp. 121-146).<br />

365 Como muito bem registra Otávio Ianni, (1979), tratava-se <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de “distribuir alguma terra, para não<br />

distribuir terra nenhuma” no sentido de promover uma ampla reforma <strong>da</strong> estrutura agrária.<br />

184


média rural” que, por suposto, funcionaria como uma barreira à penetração de<br />

tendências radicais e de “ideologias exóticas”. É neste contexto, característico <strong>da</strong><br />

“Guerra Fria”, que se colocam os problemas rurais do ponto de vista do modelo<br />

defendido na época. E é neste contexto, igualmente, que se pode situar as propostas de<br />

Reforma Agrária de Punta Del Este, à qual se reportava, explicitamente, a Mensagem<br />

33.<br />

Assim sendo, to<strong>da</strong> a construção normativa do Estatuto <strong>da</strong> Terra estava<br />

objetivamente direciona<strong>da</strong>. Tratava-se de <strong>da</strong>r legitimi<strong>da</strong>de a este determinado projeto de<br />

desenvolvimento rural e, dentro dele, de acesso à proprie<strong>da</strong>de territorial. No caso do<br />

Brasil, os seculares problemas colocados pela simples ocupação de terras públicas pela<br />

via <strong>da</strong> posse, sem a necessária providência de legalização, impunha duas ordens de<br />

medi<strong>da</strong>s por parte do Executivo. Por um lado, providenciar a legitimação <strong>da</strong>s terras<br />

efetivamente em poder de particulares por título legítimo ou legitimável (as posses); e,<br />

por outro lado, arreca<strong>da</strong>r as terras públicas, as quais deveriam servir de base e<br />

sustentação ao projeto de desenvolvimento rural, podendo o Governo aliená-las<br />

conforme as diretrizes politicamente estabeleci<strong>da</strong>s e as necessi<strong>da</strong>des econômicas<br />

pressupostas no modelo.<br />

É neste sentido que o Estatuto <strong>da</strong> Terra, ao regulamentar o preceito<br />

constitucional referido representava uma medi<strong>da</strong> efetivamente <strong>da</strong> maior relevância.<br />

Entretanto, sua implementação, como se referiu acima, e como será visto no próximo<br />

capítulo, mais uma vez, será fortemente vieza<strong>da</strong> no sentido de preservar os grandes e<br />

poderosos interesses (e, mesmo, os escusos), aliás, como foram reconhecidos pelas<br />

próprias autori<strong>da</strong>des do Executivo 366 , sobretudo os <strong>da</strong> grilagem especializa<strong>da</strong>.<br />

Indícios <strong>da</strong> influência destes interesses podem ser claramente detectados já no<br />

texto <strong>da</strong> Lei 4.504/64 e, mais ain<strong>da</strong>, no conjunto de atos normativos que a<br />

complementaram ou suplementaram, sobretudo, mas não apenas, após a implementação<br />

do PIN - Programa de Integração Nacional - em 1970, que implicou a ampliação, em<br />

escala sem precedentes, <strong>da</strong> especulação imobiliária, especialmente, na Amazônia Legal.<br />

Esclarecer estas questões é o objetivo específico deste tópico.<br />

Já nas “disposições preliminares” (Título I) 367 , ao proceder, no Capítulo I, à<br />

formulação dos diferentes “princípios e definições” começam a se configurar, com<br />

clareza, os objetivos específicos e os princípios fun<strong>da</strong>mentais que norteariam a sua<br />

consecução, na ótica proposta pelo Governo.<br />

Nos parágrafos 1 o e 2 o do artigo primeiro do Estatuto <strong>da</strong> Terra são defini<strong>da</strong>s - e,<br />

veja-se, de forma separa<strong>da</strong> - as medi<strong>da</strong>s concernentes à reforma agrária e à política<br />

agrícola. Ao serem assim formulados, indicam que se tratam de dois conjuntos distintos<br />

de ações a serem implementa<strong>da</strong>s no contexto de um mesmo Projeto. Em sendo assim,<br />

ficam implícitas, como é normal em qualquer Plano de Governo, priori<strong>da</strong>des distintas,<br />

366 Ver a respeito: YOKOTA (op. cit.); ZANATTA (op. cit.) e RIBEIRO (op. cit.).<br />

367 Ver Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964 ( BRASIL. Congresso Nacional. Brasília: 1964.).<br />

185


hierarquiza<strong>da</strong>s. Estas, não podem ser apreendi<strong>da</strong>s, como a aparência pode levar a crer,<br />

pela sua ordem na exposição do documento, mas pela ênfase que lhe é imputa<strong>da</strong> no<br />

contexto do Projeto. Assim, embora a Reforma Agrária venha conceitua<strong>da</strong> antes <strong>da</strong><br />

Política Agrícola, isso não quer significar que a sua priori<strong>da</strong>de esteja assegura<strong>da</strong> em<br />

relação àquela. Na ver<strong>da</strong>de, o problema neste caso, refere-se ao fato de que a “reforma<br />

agrária” é conceitua<strong>da</strong> de forma qualifica<strong>da</strong>: destina-se a “distribuição” <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de,<br />

de forma específica e localiza<strong>da</strong>, objetivando promover a paz social, necessária à<br />

implementação do amplo projeto de desenvolvimento rural, no bojo do qual a variável<br />

fun<strong>da</strong>mental é a geração de excedentes econômicos relevantes para o conjunto <strong>da</strong><br />

economia nacional e fun<strong>da</strong>do, não <strong>da</strong> pequena proprie<strong>da</strong>de familiar, mas no aumento <strong>da</strong><br />

produtivi<strong>da</strong>de, sobretudo em “médias” e grandes empresas agropecuárias.<br />

Assim, reforma agrária passa a perseguir dois objetivos distintos e não<br />

necessariamente correlacionados ou, pelo menos, correlacionados de formas distintas e<br />

específicas, conforme a sua relevância no conjunto do Projeto e do modelo de<br />

desenvolvimento referido:<br />

1. Um, o mais importante, referia-se ao estabelecimento do princípio de que o<br />

Executivo poderia, legalmente, interferir, modificando, a distribuição e o<br />

acesso à proprie<strong>da</strong>de fundiária - e não só com relação às terras públicas, mas<br />

também às particulares, pelo instituto <strong>da</strong> desapropriação por interesse social.<br />

2. O outro, referia-se ao aumento <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de agrícola e <strong>da</strong> ren<strong>da</strong>: neste<br />

caso, não bastava apenas o acesso à proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra, mas a um<br />

determinado tipo de proprie<strong>da</strong>de - a empresa agropecuária - capaz, por<br />

suposto do modelo - de valorizar-se e tornar eficientes os demais<br />

instrumentos e recursos econômicos postos a serviço <strong>da</strong> promoção do Projeto<br />

de Desenvolvimento Rural. Ou seja, cuja materialização dependia <strong>da</strong>s demais<br />

medi<strong>da</strong>s e instrumentos de política agrícola.<br />

Assim, pode-se dizer que havia duas propostas de reforma agrária no Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra: uma de caráter “social” visando tão-somente à resolução de problemas de<br />

pobreza extrema e tensões sociais: esta acabaria sendo resolvi<strong>da</strong> (ou reduzi<strong>da</strong>, segundo<br />

alguns 368 analistas) pelos mecanismos e instrumentos <strong>da</strong> colonização. A outra - fun<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

na formação de médias e grandes proprie<strong>da</strong>des 369 - prioriza<strong>da</strong> e, efetivamente.<br />

executa<strong>da</strong> pelo Governo, básica em seu projeto, destinava-se a promover o aumento <strong>da</strong><br />

produção e produtivi<strong>da</strong>de agropecuárias e à geração de excedentes econômicos,<br />

relevantes para a economia nacional e para a exportação. Esta reforma fun<strong>da</strong>va-se na<br />

estruturação, fortemente incentiva<strong>da</strong> e subvenciona<strong>da</strong>, pelo Governo, de um complexo<br />

368 Ver, entre muitos outros analistas do tema, por exemplo, GUEDES PINTO (op. cit.); CONTAG (op. cit.);<br />

GRAZIANO <strong>DA</strong> SILVA (1980, 1982 e 1985).<br />

369 Mas, sobretudo, fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s em grandes proprie<strong>da</strong>des territoriais, especialmente nas regiões de fronteira agrícola,<br />

como a Amazônia Legal e a Centro-Oeste. Ver a este respeito YOKOTA (op. cit.) para uma referência oficial a este<br />

tipo de priori<strong>da</strong>de. E também a continui<strong>da</strong>de deste capítulo e o capítulo 5, em particular.<br />

186


de empresas agropecuárias de dimensões e ativi<strong>da</strong>des diversas espalha<strong>da</strong>s por to<strong>da</strong>s as<br />

regiões do País.<br />

Vistos desta perspectiva, pode-se compreender com mais clareza como os<br />

instrumentos de política agrícola articulam-se com os (“dois”) projetos de “reforma<br />

agrária” implícitos no Estatuto <strong>da</strong> Terra:<br />

1. Uma Reforma Agrária “distributivista”, volta<strong>da</strong> para a solução de problemas<br />

emergentes de pobreza e tensão social, cuja implementação acabou sendo<br />

resolvi<strong>da</strong> pela colonização. Esta, por seu turno, era estratifica<strong>da</strong> em<br />

Colonização Oficial, volta<strong>da</strong> para os mais pobres e implementa<strong>da</strong>s em regiões<br />

geralmente desprovi<strong>da</strong>s de infra-estruturas; e em Colonização Particular,<br />

destina<strong>da</strong> à agricultores de melhor situação econômica, geralmente, oriundos<br />

de regiões minifundiárias tradicionais, especialmente do Rio Grande do Sul e<br />

Paraná 370 , que se destinavam a assentamento em glebas de melhor localização<br />

e fertili<strong>da</strong>de 371 nas regiões de expansão <strong>da</strong> fronteira agrícola, em particular no<br />

Mato Grosso, inicialmente, e na Amazônia Legal, sobretudo em Rondônia, na<br />

seqüência.<br />

2. Outra, que foi, efetivamente, a “grande reforma fundiária” implementa<strong>da</strong><br />

pelos Governos Militares, fun<strong>da</strong>va-se num vasto e amplo programa de<br />

concessões, ven<strong>da</strong>s e legitimação de terras e proprie<strong>da</strong>des, geralmente médias<br />

e grandes (em termos de áreas), por suposto, to<strong>da</strong>s, destina<strong>da</strong>s à estruturação<br />

de empresas 372 , e fortemente sustenta<strong>da</strong>s pelos instrumentos de política<br />

agrícola: em particular, o crédito subvencionado, os subsídios, os incentivos<br />

fiscais e, em casos mais específicos, contando, inclusive com o<br />

financiamento, em condições facilita<strong>da</strong>s, para aquisição <strong>da</strong> própria terra,<br />

como nos casos do PROTERRA e do FUNTERRA 373 . Esses casos serão<br />

abor<strong>da</strong>dos na continui<strong>da</strong>de deste tópico, ao serem analisados os<br />

“instrumentos de ação fundiária” e os processos de “titulação de terras <strong>da</strong><br />

União” assim como as suas implicações para a estrutura fundiária do País.<br />

É neste amplo contexto que são definidos, no artigo 4 o <strong>da</strong> Estatuto <strong>da</strong> Terra 374 ,<br />

os “construtos” instrumentais básicos do Projeto: “imóvel rural”, “proprie<strong>da</strong>de<br />

370 Ver a respeito <strong>da</strong> articulação entre os Projetos de Colonização deste período e os movimentos de reconcentração<br />

fundiária na região Sul, os excelentes trabalhos de IANNI (1979 e 1981) e SANTOS (1993). A respeito,<br />

especificamente do sentido e objetivos <strong>da</strong> Colonização Particular, tal como concebidos pelo INCRA, ver os trabalhos<br />

citados de Paulo Yokota, Ol<strong>da</strong>ir Zanatta e Cláudio Ribeiro. Ver também MINC (op. cit.) a respeito destas medi<strong>da</strong>s e<br />

suas relações com os interesses do latifúndio.<br />

371 Ver a respeito, Ol<strong>da</strong>ir Zanatta, Paulo Yokota e Cláudio Ribeiro, todos citados.<br />

372 Cuja caracterização para efeitos de reconhecimento pelo IBRA, e depois pelo INCRA, fun<strong>da</strong>va-se na formali<strong>da</strong>de<br />

de apresentação de um simples Projetos de exploração agropecuária (letra “c” do .3 o do art. 19 <strong>da</strong> Lei 4.504/64). É<br />

ver<strong>da</strong>de que era estabelecido um prazo para sua implementação o que, entretanto, dificilmente poderia ser<br />

efetivamente comprovado, haja vista as liberali<strong>da</strong>des estabeleci<strong>da</strong>s para a implementação do mesmo. Esse assunto<br />

será analisado neste capítulo.<br />

373 Para uma crítica ao PROTERRA e FUNTERRA, ver os documentos <strong>da</strong> CONTAG, citados.<br />

374 Ver a Lei 4.504/64 (Loc. cit.), artigo 4 o , incisos I a IX e respectivo Parágrafo Único. Não se considerou<br />

necessário transcrever aqui todos estes conceitos que, entretanto, serão abor<strong>da</strong>dos no decorrer <strong>da</strong> análise.<br />

187


familiar”, módulo rural, minifúndio, latifúndio, empresa rural, “parceleiro”,<br />

“Cooperativa Integral de Reforma Agrária” e “Colonização”. Duas coisas, de imediato,<br />

chamam a atenção na análise destes conceitos e, curiosamente, ambas com relação ao<br />

“latifúndio”. Trata-se, por um lado, de sua especificação, que poderia ser realiza<strong>da</strong>,<br />

aparentemente, à base de indicadores “técnicos”, em “latifúndio por exploração”,<br />

quando, independentemente de sua área, não alcançasse os níveis médios de<br />

produtivi<strong>da</strong>de em termos de seu tipo de exploração e área disponível agricultável; e<br />

“latifúndio por dimensão”, cujo conceito de aproxima de sua formulação corrente, mas<br />

que é definido em função módulo rural: possuir área superior a seiscentos módulos de<br />

exploração familiar. Esse assunto será retomado. A outra curiosi<strong>da</strong>de, refere-se ao fato<br />

de também se definir “o que não é considerado latifúndio”, como já comentado acima.<br />

Este segundo caso configura-se claramente como uma espécie de salvaguar<strong>da</strong> legal<br />

contra processos de desapropriação.<br />

No caso dos latifúndios (por exploração e por dimensão) vale a pena realizar<br />

uma análise mais cui<strong>da</strong>dosa. Aparentemente, essa conceituação representa um avanço,<br />

sobretudo na medi<strong>da</strong> em que permitiria, em princípio, caracterizar como latifúndios a<br />

quase totali<strong>da</strong>de dos imóveis rurais do país. Uns pelo fato de apresentarem áreas<br />

imensas e inexplora<strong>da</strong>s, outros porque, mesmo detendo pequenas áreas, permaneciam<br />

inexplorados, aguar<strong>da</strong>ndo valorização. Entretanto, o raciocínio inverso é igualmente<br />

aplicável: poderiam estar enquadrados na categoria de empresas, portanto, excluídos do<br />

conjunto dos latifúndios, proprie<strong>da</strong>des imensas, de mais de 100.000 hectares, bastando<br />

para tanto a existência de Projetos aprovados pelo IBRA ou depois, pelo INCRA e<br />

apenas iniciados. “Tecnicamente” seria, como de fato sempre foi, impossível comprovar<br />

uma coisa ou outra. Assim, na melhor <strong>da</strong>s hipóteses os contenciosos de desapropriação<br />

continuariam tramitando por dezenas de anos nos diversos tribunais, inviabilizado,<br />

assim, qualquer alternativa de redistribuição <strong>da</strong> terra. Finalmente, pelo simples fato de<br />

possuir a capaci<strong>da</strong>de de abarcar no seu seio qualquer tipo de proprie<strong>da</strong>de,<br />

independentemente de seu tamanho, acabou por tornar impossível a sua aplicação aos<br />

casos concretos.<br />

Assim, o que, em princípio parecia um preciosismo técnico capaz de <strong>da</strong>r maior<br />

efetivi<strong>da</strong>de e viabili<strong>da</strong>de à identificação dos imóveis rurais que não cumpriam o<br />

imperativo constitucional <strong>da</strong> função social <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, acabou por assumir o efeito<br />

exatamente inverso. Se agregar-se a este fato, as demais salvaguar<strong>da</strong>s e exceções abertas<br />

na Lei 4.504, de fato, o latifúndio nunca, na história agrária brasileira esteve tão imune a<br />

qualquer ameaça de expropriação ou “comisso”. Nem mesmo no período colonial,<br />

quando esteve sujeito às cláusulas resolutivas e às normas conti<strong>da</strong>s nas Ordenações do<br />

Reino e subordinados ao instituto <strong>da</strong>s sesmarias.<br />

Aliás, por este meio, os latifúndios se livraram, inclusive, do Imposto Territorial<br />

Rural, beneficiando-se <strong>da</strong>s reduções conti<strong>da</strong>s no artigo 50, parágrafo 5 o , alíneas “a” e<br />

“b”, além, é claro, dos incentivos fiscais e creditícios a que faziam jus pelo simples fato<br />

de apresentarem um Projeto ao IBRA/INCRA que, uma vez aprovado os faziam, como<br />

188


num toque de mágica, transitar para a condição de “empresas rurais”. Além,<br />

evidentemente, de ficarem isentos do risco de desapropriação por interesse social, como<br />

explicitamente assegurado no parágrafo 3 o , alínea “c” do artigo 19 do Estatuto <strong>da</strong> Terra,<br />

já comentado.<br />

Outra particulari<strong>da</strong>de, esta, ao juízo analítico aqui desenvolvido, ain<strong>da</strong> mais<br />

problemática, refere-se ao diagnóstico fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong>s causas do problema agrário<br />

brasileiro, tal como formulado na Mensagem 33: a dicotomia “latifúndio-minifúndio”.<br />

Aparentemente, como no caso analisado acima, trata-se de um diagnóstico “perfeito”,<br />

preciso, impecável. Só que ele apresenta dois problemas fun<strong>da</strong>mentais que o anulam:<br />

Primeiro, porque o problema agrário no Brasil, como em qualquer outra latitude,<br />

não depende estritamente <strong>da</strong> referência à terra, enquanto “coisa” ou “bem”, como é <strong>da</strong><br />

sua definição no campo jurídico, mas <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de: ou seja, <strong>da</strong>s relações entre os<br />

homens a respeito do domínio <strong>da</strong>s coisas. Portanto, trata-se de questão mais complexa e<br />

que envolve determinados conjuntos de relações de sociabili<strong>da</strong>de: disso advém a sua<br />

complexi<strong>da</strong>de e o fato de que não basta normatizar para resolvê-la. Se se tratasse de<br />

simples relação entre o homem e a coisa, como é colocado, por exemplo no Código<br />

Civil, bastava a norma, senão para resolvê-lo, pelo menos para reduzí-lo à dimensões<br />

irrelevantes ou pelo menos, aceitáveis do ponto de vista <strong>da</strong> sociabili<strong>da</strong>de e, sobretudo do<br />

Direito.<br />

Segundo, e mais complexo e de difícil reconhecimento à primeira vista, é o fato<br />

deste “diagnóstico” atribuir ao latifúndio e ao minifúndio o mesmo grau de<br />

responsabili<strong>da</strong>de pelas dificul<strong>da</strong>des enfrenta<strong>da</strong>s pela estrutura fundiária brasileira,<br />

estando na raiz <strong>da</strong> injusta distribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> ren<strong>da</strong>. Observe-se que esta<br />

conceituação só se tronava possível pela condição, anteriormente aponta<strong>da</strong>, de se tratar<br />

a terra como uma coisa e não como uma mercadoria, ou seja, uma relação social: um<br />

imóvel rural. Segundo porque, de forma sutil e aparentemente “técnica”, coloca no<br />

mesmo patamar as grandes e as pequenas proprie<strong>da</strong>des, logo, tanto os especuladores e<br />

os latifundiários quanto os trabalhadores e pequenos produtores. Desta forma, torna<br />

profun<strong>da</strong>mente difícil localizar as causas mais profun<strong>da</strong>s <strong>da</strong> concentração fundiária e de<br />

suas implicações para a economia rural, sua reprodução e desenvolvimento.<br />

Esta construção “teórica”, tal como posta no Estatuto <strong>da</strong> Terra, permite e implica<br />

qualquer interpretação ou diagnóstico: Ou seja, será, por um lado, a concentração, mas<br />

por outro, a dispersão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, a causa fun<strong>da</strong>mental dos problemas agrários.<br />

Assim, volta-se, como no caso anterior, à estaca zero.<br />

O agravante, neste diagnóstico desenvolvido na Mensagem 33, é que ele aponta<br />

no sentido <strong>da</strong> reconcentração fundiária. Como o minifúndio é, por definição,<br />

problemático por não possuir, endógena e intrinsecamente, a possibili<strong>da</strong>de de assegurar<br />

o sustento de uma família de trabalhadores, portanto, menos ain<strong>da</strong>, de gerar “excedentes<br />

econômicos”, a única alternativa é excluí-lo <strong>da</strong> solução do problema. Ou seja, o<br />

minifúndio, enquanto tal, é apenas parte do problema, nunca <strong>da</strong> solução.<br />

189


Quanto ao latifúndio, se por um lado, era considerado parte do problema, por<br />

outro lado, era, igualmente, considerado parte <strong>da</strong> solução, sobretudo na medi<strong>da</strong> em que<br />

pudesse incorporar os progressos técnicos, administrativos, gerenciais, adequando-se,<br />

desta forma, às exigências econômicas e constitucionais de respeito à função social <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de. Para tanto, como não possuía restrições endógenas, bastava, apenas, ao<br />

Governo, assegurar-lhe os meios adequados, como crédito, subsídios, assistência<br />

técnica, etc. e o problema seria resolvido. Este foi o caminho eleito pelo Projeto do<br />

Governo.<br />

Tudo isto estaria bem posto, pelo menos teoricamente, se fosse possível<br />

correlacionar, objetivamente, as possibili<strong>da</strong>des de desenvolvimento <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de do<br />

trabalho na agricultura de forma relevante e unívoca à “variável” área passível de<br />

exploração. Ain<strong>da</strong> assim, por exemplo, há que se considerar que a área média dos<br />

minifúndios brasileiros, pouco diverge <strong>da</strong> área de proprie<strong>da</strong>des familiares de caráter<br />

empresarial em outras latitudes, como por exemplo, a França, o Reino Unido 375 , etc.,<br />

onde, apesar <strong>da</strong> pequena área agricultável, o excedente econômico gerado por estes<br />

produtores é relevante, em termos comparativos, em relação às suas respectivas<br />

economias nacionais.<br />

Portanto, o problema não está, necessariamente, relacionado à dimensão <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de em si mesma, mas à excludência com relação a esta e a outras condições de<br />

apoio à ativi<strong>da</strong>de produtiva no campo que, no Brasil, sempre que implementa<strong>da</strong>s, foram<br />

efetivamente apropria<strong>da</strong>s privilegia<strong>da</strong>mente, por determina<strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s sociais. Tais os<br />

casos <strong>da</strong>s diversas medi<strong>da</strong>s e recursos colocados, por exemplo, à disposição do<br />

Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) para enfrentar os<br />

problemas <strong>da</strong> seca no Nordeste; <strong>da</strong>s regiões ribeirinhas do Vale do São Francisco e de<br />

outros rios brasileiros; do sistema de preços mínimos, do sistema de assistência técnica,<br />

do sistema de crédito rural, etc.<br />

Após 1964, o mesmo processo volta a repetir-se, como no caso do crédito rural,<br />

do PROTERRA/FUNTERRA, do seguro agrícola - o PROAGRO, para ficar apenas<br />

nestes exemplos mais conhecidos, que raras vezes chegaram efetivamente aos<br />

“pequenos produtores” ou flagelados <strong>da</strong>s secas ou <strong>da</strong>s enchentes, aos quais, por suposto,<br />

eram destinados O mesmo pode-se dizer, em sentido inverso, com relação aos<br />

latifúndios 376 no Brasil: sempre foram objeto de to<strong>da</strong>s as regalias, incentivos e<br />

privilégios e, apesar disso, as únicas coisas que conseguiram efetivamente desenvolver<br />

foram as suas áreas, as suas cercas, e o percentual de terras improdutivas.<br />

As implicações deste diagnóstico do problema agrário brasileiro, tal como<br />

realizado na Mensagem 33 e no Estatuto <strong>da</strong> Terra, e dos meios e estratégias<br />

estabelecidos para resolvê-lo podem ser efetivamente evidenciados por um lado, pelos<br />

instrumentos de ação fundiária e respectivos métodos de alienação, ou reconhecimento<br />

375 Ver a respeito ABRAMOVAY (1992), CHONCHOL (1986).<br />

376 Ver a respeito a nossa Dissertação de Mestrado (JONES, 1987).<br />

190


de domínio particular sobre terras públicas e, por outro lado, pelos resultados <strong>da</strong><br />

implementação destes procedimentos em termos de suas conseqüências efetivas sobre a<br />

distribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial rural e a destinação <strong>da</strong><strong>da</strong> às novas terras, assim<br />

apropria<strong>da</strong>s.<br />

3.2.1 - Execução <strong>da</strong> Política Fundiária: “Intenção e Gesto 377 ”<br />

Na reali<strong>da</strong>de, o problema fundiário brasileiro, antes de ser posto em termos de<br />

urgência na “redistribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de” territorial rural (que é necessária),<br />

continuava sendo o de proceder à clara separação entre as terras públicas e as que se<br />

encontravam em domínio privado.<br />

Por inusitado que possa parecer, persistia, no Brasil dos anos 60, deste século, o<br />

mesmo problema já posto nos anos 40 e 50 do século passado e a mesma herança do<br />

fracasso <strong>da</strong> Política Fundiária do Império.<br />

Por isso, admitir, “a priori”, que o problema fundiário fun<strong>da</strong>va-se na desigual<br />

distribuição <strong>da</strong> “proprie<strong>da</strong>de”, apesar de parecer uma posição teoricamente correta e<br />

progressista, significava cometer um equívoco de princípio. Porque significa admitir,<br />

igualmente, que as grandes posses sobre terras devolutas, públicas, que pertencem, de<br />

direito 378 , ao Estado, seriam proprie<strong>da</strong>des priva<strong>da</strong>s legítimas, sem questionar a sua<br />

origem legal. Estas podem, até, apresentarem-se, na aparência, como grandes<br />

“proprie<strong>da</strong>des” priva<strong>da</strong>s, porém, não legítimas. E não são, de direito, proprie<strong>da</strong>des<br />

legítimas, como demonstrado nos capítulos anteriores, e por várias razões:<br />

Primeiro, juridicamente, por não preencherem os requisitos mínimos, legais,<br />

exigidos para caracterizá-las. Segundo, porque, a grande parte <strong>da</strong>s terras ocupa<strong>da</strong>s no<br />

Brasil, sobretudo, por grandes posses, ocorreu a partir dos anos cinqüenta deste século,<br />

muito particularmente, nas déca<strong>da</strong>s dos sessenta e setenta. Os <strong>da</strong>dos apresentados no<br />

próximo capítulo, sobre “áreas novas” incorpora<strong>da</strong>s ao patrimônio privado, entre 1960 e<br />

1980 dão conta deste fato. Aliás, o senhor Paulo Yokota, na época Presidente do<br />

INCRA refere-se exatamente a este problema nos seguintes termos:<br />

“Nem todos os brasileiros possuem a clara consciência de que<br />

nestas três últimas déca<strong>da</strong>s o Brasil dobrou efetivamente de<br />

dimensão... Desde 1500 a 1960, portanto, 460 anos, ocupou-se a<br />

metade litorânea e alguns pontos isolados junto aos rios<br />

interiores (...)<br />

A partir dos anos setenta a ocupação <strong>da</strong> Amazônia e do<br />

Centro-Oeste passou a ser sistemática e contínua(...).” 379<br />

377 Essa expressão é aqui utiliza<strong>da</strong> em referência ao sentido <strong>da</strong>do à mesma na poesia de Chico Buarque de Holan<strong>da</strong> e<br />

Ruy Guerra (1973), “Fado Tropical”: “É que há distância entre intenção e gesto (...).”<br />

378 Ver Hely Lopes Meirelles : “No Brasil to<strong>da</strong>s as terras foram, originalmente, públicas, por pertencerem à<br />

nação portuguesa, por direito de conquista. Depois passaram ao Império e à República, sempre como<br />

domínio do Estado” (MEIRELLES, 1991, p. 447).<br />

379 YOKOTA (op. cit., p.8). Grifos nossos.<br />

191


Portanto, o problema agrário brasileiro não é de “redistribuir a proprie<strong>da</strong>de”,<br />

mas, sim, de distribuir a terra, para torná-la efetivamente produtiva, o que é outra<br />

coisa, completamente distinta. Quanto à proprie<strong>da</strong>de, esta terá que ser questiona<strong>da</strong>,<br />

especialmente no que se refere ao estatuto jurídico <strong>da</strong> sua legali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> sua<br />

legitimi<strong>da</strong>de de direito, muito particularmente quando se tratarem dos imensos<br />

“domínios” fun<strong>da</strong>dos, ou na simples posse, ou em títulos juridicamente duvidosos, ou<br />

simplesmente falsos, portanto nulos. Se o título é falso, é nulo, logo, não se pode argüir,<br />

com base nele, o direito de proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, posto que as terras, no Brasil, nunca<br />

foram “res nullius”, ou seja, sempre foram, originalmente, proprie<strong>da</strong>de do Estado 380 .<br />

Portanto, para se tornarem proprie<strong>da</strong>de de terceiros há, necessariamente, que possuir o<br />

documento, juridicamente hábil, que legitime a transferência de domínio, ou seja, é<br />

imprescindível a transcrição legítima do imóvel. Em suma, que se funde<br />

indubitavelmente a cadeia sucessória legalmente exigível. Estes procedimentos são,<br />

juridicamente, irrecusáveis. O “ônus <strong>da</strong> prova” de proprie<strong>da</strong>de não é do Estado, mas do<br />

suposto proprietário.<br />

Redistribuir a terra significa, efetivamente, possibilitar a implementação do<br />

imperativo constitucional de 1946, referido pela Mensagem 33, de assegurar o acesso<br />

democrático e justo à terra, de resto, como se afirmou no parágrafo anterior, um<br />

patrimônio que sempre pertenceu à nação. Como tem sido defendido pelos juristas mais<br />

respeitados, a terra, no Brasil, é originalmente pública. Portanto, para se encontrar em<br />

domínio privado tem que possuir, claramente estabelecido, em algum momento de sua<br />

história, o instrumento legal, através do qual, o Estado transferiu o domínio, ou<br />

reconheceu transferência anterior, ou a posse legítima, de parcelas de seu território. Este<br />

é, efetivamente o problema fundiário a ser resolvido no Brasil. Ele é, aliás, claramente<br />

reconhecido, inclusive, pelas autori<strong>da</strong>des fundiárias do Governo Militar, quando<br />

propuseram a regulamentação do preceito constitucional referente ao acesso à<br />

proprie<strong>da</strong>de rural e ao reconhecimento, enquanto condição prévia deste, <strong>da</strong> priori<strong>da</strong>de<br />

dos processos discriminatórios.<br />

Portanto, estes processos têm um papel fun<strong>da</strong>mental e insubstituível no contexto<br />

do problema fundiário e <strong>da</strong> questão agrária brasileira. Sem se identificar, clara e<br />

legalmente, quais são as terras devolutas <strong>da</strong> União, Estados e Municípios e quais as que<br />

se encontram, legitimamente, em domínio privado, sejam posses legitimáveis ou<br />

proprie<strong>da</strong>des legalmente titula<strong>da</strong>s, soa como apócrifa, qualquer proposição de<br />

redistribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de rural no Brasil.<br />

380 Cabe registrar que há controvérsias, entre os juristas, a respeito <strong>da</strong> existência, ou não, de terras “sem dono”,<br />

adéspotas, no Brasil. Neste trabalho, aceita-se o argumento que defende o fato de que, desde, pelo menos, a Lei 601<br />

de 1850, não mais se poderia falar em terras sem dono no Brasil. Como foi amplamente discutido no capítulo 2 deste<br />

estudo, a Lei 601 referia-se claramente ao fato de que não estando determina<strong>da</strong>s terras, “aplica<strong>da</strong>s a algum uso<br />

público nacional, provincial ou municipal” e não estando, por qualquer título legítimo, incorpora<strong>da</strong> à proprie<strong>da</strong>de<br />

particular, são terras devolutas (artigo 3 o <strong>da</strong> Lei 601/1850): ou seja, tratam-se de terras incorpora<strong>da</strong>s ao acervo <strong>da</strong>s<br />

terras públicas <strong>da</strong> nação”. Ver a respeito <strong>da</strong> questão, PONTES DE MIRAN<strong>DA</strong> (op. cit), MEIRELLES (op. cit.);<br />

NASCIMENTO (op. cit.) e CARVALHO SANTOS (op. cit.), entre muitos outros.<br />

192


É exatamente por esta razão que o latifúndio, os grileiros especializados e os<br />

especuladores imobiliários sempre se opuseram, em todos os momentos <strong>da</strong> história<br />

agrária brasileira, aos processos discriminatórios em geral, e aos registros de imóveis,<br />

em especial.<br />

Quando a exigência de registros públicos, em face do desenvolvimento<br />

econômico e do aperfeiçoamento do ordenamento jurídico do país, tornou necessária a<br />

titulação e matrícula dos imóveis, especialmente nos anos que se seguiram ao 1964, a<br />

recorrência aos métodos e processos fraudulentos, à grilagem especializa<strong>da</strong> ou à “nova”<br />

violência, “politicamente justifica<strong>da</strong>”, tornaram-se os instrumentos privilegiados por<br />

esses grupos que sempre tiveram, como se vem demonstrando nos capítulos anteriores,<br />

o controle efetivo <strong>da</strong>s terras no Brasil.<br />

Por isso persiste o processo de apropriação privilegia<strong>da</strong>, fun<strong>da</strong>do nas grandes<br />

posses de legitimação questionável, posto que os títulos de que dispõem (quando<br />

dispõem de títulos) geralmente não resistem a uma análise jurídica, ain<strong>da</strong> que<br />

superficial 381 . Em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a<br />

Política de Incentivos Fiscais <strong>da</strong> Amazônia, o Diretor do Departamento de Recursos<br />

Fundiários do INCRA, pronunciou-se a respeito desta questão nos seguintes termos:<br />

“No exame <strong>da</strong> situação dominial, o estado de precarie<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

documentação é uma constante. Grande parte dos títulos<br />

examinados não resistem a uma análise jurídica mais profun<strong>da</strong>,<br />

pois não só apresentam uma filiação dominial imperfeita,<br />

como os <strong>da</strong>dos que estabelecem, relativos à área, limites e<br />

confrontações, não correspondem à localização física dos<br />

imóveis a que se referem.<br />

“Outro fato relevante que tem dificultado a ação do INCRA diz<br />

respeito à deficiência dos registros públicos. Muitos Cartórios de<br />

Registro de Imóveis (...) deram ensejo à inúmeras<br />

irregulari<strong>da</strong>des, algumas pratica<strong>da</strong>s de “boa fé”, sem a intenção<br />

de lesar o patrimônio público, outras com a evidente finali<strong>da</strong>de<br />

de <strong>da</strong>r cobertura à invasões, num autêntico processo de<br />

grilagem de terras 382 .”<br />

O reconhecimento <strong>da</strong> fragili<strong>da</strong>de jurídica e <strong>da</strong> fraude na emissão de “títulos” de<br />

proprie<strong>da</strong>de é quase um consenso entre os juristas e especialistas <strong>da</strong> área. Geralmente a<br />

defesa <strong>da</strong> tese contrária fun<strong>da</strong>-se no argumento, amplamente questionável e, de qualquer<br />

forma, juridicamente ineficaz e inaceitável, de que se tratam de proprie<strong>da</strong>des que,<br />

embora tendo origens vicia<strong>da</strong>s, são produtivas, portanto devendo ser respeita<strong>da</strong>s. De<br />

qualquer forma, trata-se de um problema que necessita ter uma solução objetiva.<br />

Paulo Yokota, então Presidente do INCRA, após reafirmar o princípio, sempre<br />

assegurado por to<strong>da</strong>s as legislações agrárias brasileiras, desde o período colonial, de que<br />

381 Ver a este respeito, o depoimento de Ol<strong>da</strong>ir Zanatta, Diretor do Departamento de Recursos Fundiários do INCRA<br />

na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre política de incentivo fiscal na Amazônia (In.: ZANATTA, 1980).<br />

382 Idem. p. 26. Grifos nossos).<br />

193


a posse se constitui em elemento gerador de “expectativa de direito, obedeci<strong>da</strong>s as<br />

condições mínimas de exploração agropecuária efetiva e mora<strong>da</strong> habitual”, faz<br />

referência à importância <strong>da</strong> discriminatória para separar as áreas “legitimamente<br />

priva<strong>da</strong>s” <strong>da</strong>s privatizáveis e <strong>da</strong>s áreas públicas, que poderiam, estas últimas, ser<br />

mobiliza<strong>da</strong>s pelo Governo, para ações fundiárias específicas. Neste contexto, Paulo<br />

Yokota faz a seguinte referência ao conceito jurídico de proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> legítima:<br />

“(...) Estas devem contar com uma origem perfeita, ou seja, um<br />

claro processo de destaque do patrimônio público para o privado;<br />

uma cadeia dominial perfeita, ou seja, uma história contínua e<br />

obedecendo a todos os preceitos <strong>da</strong> legislação, desde a sua<br />

origem até o presente; localização e dimensão indiscutíveis,<br />

devi<strong>da</strong>mente identifica<strong>da</strong>s por pontos geodésicos ou acidentes<br />

geográficos bem definidos, com demarcações e medições<br />

tecnicamente aceitáveis 383 .”<br />

Por outro lado, aponta as seguintes exceções:<br />

“A legislação prevê algumas situações onde as insuficiências parciais <strong>da</strong>s condições de<br />

um documento de terras rurais podem ser sana<strong>da</strong>s pelo reconhecimento explícito<br />

<strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des fundiárias. Tais autori<strong>da</strong>des contam com limites claros de sua<br />

competência, estabelecidos pela legislação, não sendo válidos os atos que<br />

extravasem tais limites 384 .”<br />

Trata-se do princípio fun<strong>da</strong>mental do Direito Administrativo que afirma que, ao<br />

servidor público, só é <strong>da</strong>do o direito de praticar atos explicitamente autorizados em lei.<br />

Ao contrário do princípio aplicado ao ci<strong>da</strong>dão comum que pode praticar qualquer ato<br />

não ve<strong>da</strong>do pela lei. Por este princípio <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de, em vigor, no país, os atos<br />

administrativos que exorbitaram são nulos por definição.<br />

Portanto, continua em aberto, pelo menos juridicamente, a possibili<strong>da</strong>de de ser<br />

rever as “aquisições” e “alienações”, pelo Estado, de imóveis rurais no País, inclusive os<br />

atos ilícitos praticados por autori<strong>da</strong>des fundiárias, na via jurisdicional do Estado, sendo<br />

que, a revisão <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de destes atos administrativos é pacífica, quer pela doutrina<br />

jurídica, que pela jurisprudência. Esta revisão <strong>da</strong>s “concessões de terras” foi prevista na<br />

Constituição de 1988.<br />

Ou seja, legalmente, qualquer imóvel que não preencha todos estes requisitos<br />

legais, não é, do ponto de vista <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de de direito e do ordenamento jurídico<br />

vigente, efetivamente, proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> legítima. É neste sentido que aqui é feita a<br />

referência a hipótese de que estas “proprie<strong>da</strong>des” são juridicamente questionáveis. E as<br />

análises realiza<strong>da</strong>s, até o momento, neste trabalho, já permitem afirmar, com certa<br />

tranqüili<strong>da</strong>de que, efetivamente, o são.<br />

A análise dos meios e instrumentos, através dos quais, foram promovi<strong>da</strong>s as<br />

ações fundiárias pelo Governo, após a aprovação do Estatuto <strong>da</strong> Terra, especialmente as<br />

383 YOKOTA (op. cit., p. 2. Grifos nossos).<br />

384 Idem, loc. cit.<br />

194


que se destinaram a enfrentar os problemas de legitimação <strong>da</strong>s terras em poder de<br />

particulares e sua clara separação em relação às terras públicas, interessa,<br />

especificamente, a este estudo.<br />

A arreca<strong>da</strong>ção destas terras e seu respectivo registro pelo Estado, contidos no<br />

âmbito dos processos discriminatórios e de arreca<strong>da</strong>ção de terras públicas, são a<br />

primeira instância relevante, para se compreender como estas questões foram<br />

enfrenta<strong>da</strong>s e suas respectivas conseqüências, enquanto implementação de determina<strong>da</strong><br />

Política Fundiária ou de acesso à proprie<strong>da</strong>de territorial.<br />

A outra instância relevante, nesta dimensão específica <strong>da</strong> Política Fundiária,<br />

refere-se às ações de Governo no sentido de promover determina<strong>da</strong>s intervenções na<br />

estrutura <strong>da</strong>s relações de proprie<strong>da</strong>de: tratam-se <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s específicas - uma vez<br />

resolvi<strong>da</strong> a questão <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de de domínio sobre as terras - no sentido de adequar a<br />

sua distribuição e uso. Nesta segun<strong>da</strong> instância, com base no ordenamento jurídico<br />

implementado a partir do Estatuto <strong>da</strong> Terra, os Governos Militares desenvolveram ações<br />

nos campos <strong>da</strong> desapropriação de imóveis rurais, aquisição de proprie<strong>da</strong>des e,<br />

finalmente, no âmbito <strong>da</strong> colonização. Por suposto do modelo implícito no Projeto <strong>da</strong><br />

Lei 4.504/64, estas seriam, objetivamente, as ações <strong>da</strong> “reforma agrária”, tal como<br />

subjacente ao Projeto de Desenvolvimento Rural do Governo.<br />

É neste contexto que podem ser caracterizados e analisados as formas e os meios<br />

de regulação e intervenção do Estado na proprie<strong>da</strong>de territorial e na estrutura agrária<br />

brasileira, conceituados, genericamente, pelo Governo, como “instrumentos de ação<br />

fundiária”. São estes, o processo discriminatório de terras; a arreca<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s terras<br />

devolutas, públicas; a desapropriação de imóveis rurais; a aquisição de imóveis pelo<br />

Estado; e, finalmente, os processos de colonização 385 . Conjuntamente a estes<br />

instrumentos, foram implementados, pelo Governo, os processos de alienação e<br />

titulação <strong>da</strong> terras públicas, ou seja, o efetivo processo de privatização de terras, provido<br />

pelo Estado, fun<strong>da</strong>do na regulamentação expedi<strong>da</strong> com base no Estatuto <strong>da</strong> Terra.<br />

Este capítulo não poderia ser concluído, portanto, sem a análise destes<br />

instrumentos, posto que foi exatamente através deles que o Estado pôde implementar o<br />

seu Projeto de Política Fundiária e Desenvolvimento Rural.<br />

3.2.2. Instrumentos de Ação Fundiária<br />

Como já foi registrado, os principais instrumentos de ação fundiária utilizados<br />

pelo Estado, após 1964, e com base no conjunto de legislações e atos administrativos<br />

que se seguiram à Lei 4.504/64, são: a Discriminação de Terras; a Arreca<strong>da</strong>ção e<br />

Matrícula <strong>da</strong>s Terras Públicas; a Desapropriação de Imóveis Rurais; a Aquisição de<br />

Imóveis e, finalmente, a Colonização. Estes, portanto, são os meios efetivos pensados<br />

385 Ver a respeito dessa classificação e respectivas conceituações, ZANATTA (op. cit.) e RIBEIRO (op. cit.).<br />

Poderão ser igualmente compulsados os “manuais” técnicos e operacionais do INCRA.<br />

195


pelas autori<strong>da</strong>des fundiárias para transformar a “injusta” estrutura agrária existente no<br />

País 386 .<br />

Observe-se que nesta classificação operacional dos instrumentos de ação<br />

fundiária ofereci<strong>da</strong> pelo INCRA 387 , não aparece a “Reforma Agrária” como instrumento<br />

de ação fundiária. Esse fato é significativo, posto que deixa evidente que a Reforma<br />

Agrária, tal como pensa<strong>da</strong> pelos dirigentes <strong>da</strong> Política Fundiária, não se constituía,<br />

sequer em um instrumento operacional para a transformação <strong>da</strong> estrutura agrária. A<br />

análise dos diferentes processos, neste sentido, implementados pelo INCRA, indica que<br />

a Reforma Agrária era pensa<strong>da</strong>, apenas, como última instância que, de resto, seria<br />

alcança<strong>da</strong> em resultado <strong>da</strong> ação destes instrumentos, evidentemente, entendidos como<br />

articulados aos demais instrumentos de política agrícola e desenvolvimento rural, como<br />

subsídios, crédito, assistência técnica, etc. Tudo isto é coerente com o Projeto de<br />

Desenvolvimento Rural e Fundiário, tal como arquitetado pelo Governo e claramente<br />

regulamento no Estatuto <strong>da</strong> Terra, como se pode verificar pelas análises aqui<br />

desenvolvi<strong>da</strong>s.<br />

3.2.2.1. Discriminação de Terras Públicas<br />

As ações discriminatórias, que consistem em separar as terras devolutas,<br />

públicas, <strong>da</strong>s que se encontram em domínio particular legítimo, são considera<strong>da</strong>s,<br />

inclusive pelas autori<strong>da</strong>des fundiárias, como o instrumento fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> ação<br />

fundiária.<br />

Segundo Cláudio Ribeiro, diretor do Departamento de Desenvolvimento Rural<br />

do INCRA, a discriminatória é um criação “genuinamente brasileira” e se deve às<br />

especifici<strong>da</strong>des do processo de desenvolvimento <strong>da</strong> organização fundiária do País, cujas<br />

terras, originalmente públicas, foram ocupa<strong>da</strong>s de forma desordena<strong>da</strong> e, quase sempre,<br />

atropelando as iniciativas legais e administrativas.<br />

Este processo, amplamente analisado nos capítulos anteriores, sempre se fundou<br />

na apropriação privilegia<strong>da</strong>, quer estivesse, ou não, baseado no consentimento do<br />

Estado. O curioso, neste processo de ocupação de terras públicas, e realmente peculiar à<br />

história agrária brasileira - neste caso, efetivamente uma “criação genuinamente<br />

brasileira”, para utilizar aquela expressão de Cláudio Ribeiro - foi o fato de que,<br />

também o processo de legitimação, ter sido privilegiado e juridicamente questionável.<br />

Apenas essa dupla configuração do privilégio pode explicar como e porque, até os dias<br />

atuais, persiste a necessi<strong>da</strong>de prioritária <strong>da</strong>s ações discriminatórias, cujo objetivo é<br />

exatamente separar, legalmente, as terras públicas <strong>da</strong>s particulares.<br />

Tendo em consideração a persistência desta característica dos processos de<br />

ocupação <strong>da</strong>s terras brasileiras e a extensão dos privilégios à própria esfera jurídica, a<br />

questão que persiste junto a ela, refere-se ao fato de se saber se a proposta, tão<br />

386 Vide Estatuto <strong>da</strong> Terra (Lei 4.504/64). Loc. cit.<br />

387 Ver, por exemplo, Cláudio. J. Ribeiro, op. cit., pp. 6-7.<br />

196


enfaticamente anuncia<strong>da</strong> pelos mentores do Estatuto <strong>da</strong> Terra e <strong>da</strong> Política Fundiária do<br />

Estado Militar, realmente significou, pelo menos, a minimização deste problema. Ou<br />

seja, se este duplo privilégio no acesso e na legitimação <strong>da</strong>s terras públicas foi, ou não,<br />

efetivamente enfrentado e combatido.<br />

Parte <strong>da</strong> resposta a esta questão será <strong>da</strong><strong>da</strong> neste capítulo, ao serem analisa<strong>da</strong>s as<br />

formas, processos, instrumentos e métodos, administrativa e juridicamente<br />

estabelecidos, tanto para as ações discriminatórias, como de arreca<strong>da</strong>ção, quanto,<br />

sobretudo, no que se refere às diferentes formas de desapropriação de terras em domínio<br />

privado ou de privatização de terras públicas.<br />

Por definição, o processo discriminatório tem por objetivo identificar as terras<br />

devolutas, públicas, e separá-las, legalmente <strong>da</strong>s terras particulares. Os procedimentos<br />

para este mister se fun<strong>da</strong>m, desde a Lei de Terras 388 de 1850, que o introduziu no<br />

ordenamento jurídico brasileiro, num processo de exclusão <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>de particulares<br />

legitimamente constituí<strong>da</strong>s.<br />

Veja-se que é uma constante no ordenamento jurídico-fundiário brasileiro a<br />

referência à expressão “legitimamente constituí<strong>da</strong>” para se referir às terras em poder<br />

de particulares. Isto significa que as terras que tenham origem duvidosa ou abertamente<br />

fraudulenta - e como se viu acima, é a esmagadora maioria, pelo menos antes <strong>da</strong><br />

implementação <strong>da</strong>s “ações fundiárias” dos Governos 389 Pós-1964 - não são proprie<strong>da</strong>des<br />

legítimas. São juridicamente questionáveis. Responder a esta questão sempre foi a<br />

tentativa dos diferentes governos brasileiros, desde, pelo menos, 1850. Como já vinha<br />

sendo, antes <strong>da</strong> Independência, preocupação <strong>da</strong> Coroa portuguesa 390 .<br />

O processo discriminatório é privativo <strong>da</strong> União e implementado pelo ICRA no<br />

âmbito <strong>da</strong>s terras de seu domínio 391 , ou seja, as terras devolutas situa<strong>da</strong>s na faixa<br />

fronteira, amplia<strong>da</strong> esta, para 150 quilômetros de largura, paralela a linha divisória do<br />

território nacional com outros países, tal como redefini<strong>da</strong> pela Lei n o 6.634, de 2 de<br />

maio de 1979 392 . Como foi analisado nos capítulos anteriores, a faixa de fronteira foi<br />

inicialmente defini<strong>da</strong> em 66 quilômetros (Lei n o 601/1850), posteriormente foi<br />

aumenta<strong>da</strong> para 100 quilômetros (Constituição de 1934, art. 166). Estão igualmente<br />

incluí<strong>da</strong>s, entre as erras devolutas <strong>da</strong> União, a faixa de 100 quilômetros, situa<strong>da</strong> de ca<strong>da</strong><br />

lado <strong>da</strong>s rodovias federais, construí<strong>da</strong>s ou projeta<strong>da</strong>s na Amazônia Legal 393 .<br />

Os processos discriminatórios sempre enfrentaram a oposição sistemática e<br />

persistente dos grandes detentores de terras do Brasil. Exatamente porque, nestes<br />

388 Ver o capítulo 2 deste estudo, onde o tema é detalha<strong>da</strong>mente discutido.<br />

389 Quantos a estas, há que se questionar a legali<strong>da</strong>de dos atos <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des fundiárias do período.<br />

390 Ver o capítulo 1 deste trabalho, que se ocupa do período colonial.<br />

391 Ou em convênios com os Órgãos de Terras dos Estados <strong>da</strong> Federação, quando for o caso.<br />

392 Lei 6.634, de 2 de 1979: “Dispõe sobre a Faixa de Fronteira, altera o Decreto-lei n o 1.135, de 3 de<br />

dezembro de 1970, e dá outras providências”. (BRASIL. Congresso Nacional. Brasília: 1979.). Ver<br />

especialmente, o Arts. 1 o e 2 o , parágrafos 1 o , 2 o . e 3 o , que se referem à instalação de indústrias nas áreas de fronteira.<br />

393 Decreto-lei 1.164, de 1 o de abril de 1971, que “Declara indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento<br />

nacionais terras devolutas situa<strong>da</strong>s na faixa de cem quilômetros de largura em ca<strong>da</strong> lado do eixo de<br />

rodovias na Amazônia Legal e dá outras providências”. (Loc. cit.).<br />

197


processos, os supostos detentores de terras têm o “ônus”, legalmente previsto, de<br />

apresentar as provas <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de de seus domínios, quer sejam títulos, quer sejam<br />

testemunhos idôneos, no caso de posses. Como já foi mencionado acima, os títulos de<br />

proprie<strong>da</strong>de apresentados não resistem, segundo Carlos Ribeiro, “ao primeiro embate<br />

jurídico”, e conclui :<br />

“Têm-se constatado titulações irregulares promovi<strong>da</strong>s por<br />

Estados-Membros <strong>da</strong> Federação, transcrições ou registros<br />

irregulares em cartórios, processados em decorrência de<br />

‘grilagens’, gerando presunção de domínio, assim como<br />

ocupações especulativas, muitas <strong>da</strong>s quais sem exploração <strong>da</strong><br />

terra, além de outras situações adversas ao encerramento <strong>da</strong><br />

instância administrativa.” 394<br />

Quando, neste trabalho faz-se referência à “grilagem especializa<strong>da</strong>” refere-se<br />

aos processos fraudulentos de legitimação de terras devolutas (mas geralmente ocupa<strong>da</strong>s<br />

por posseiros e indígenas, especialmente nas regiões afasta<strong>da</strong>s dos sertões), promovidos<br />

com a aparência legal e, geralmente com orientação jurídica e conivência de Cartórios e<br />

dos órgãos oficiais de terras dos Estados. A fraude de documentos vai desde o furto à<br />

emissão de documentos falsos ou ao “aquecimento” de documentos frios, utilizando-se<br />

de artifícios abertos pela legislação. A pesquisa já cita<strong>da</strong>, sobre o Vale do<br />

Jequitinhonha, de autoria de Maria Apareci<strong>da</strong> de Moraes <strong>Silva</strong>, reconstrói os<br />

mecanismos de expropriação <strong>da</strong> massa de posseiros e de legalização <strong>da</strong>s novas<br />

proprie<strong>da</strong>des. Esta pesquisa confirma as anteriormente cita<strong>da</strong>s avaliações sobre a ilegal<br />

e injusta titulação de terras no Brasil. Conforme o seu relato, no Vale do Jequitinhonha,<br />

durante o período militar, as grandes companhias se apossaram <strong>da</strong>s áreas eleva<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s<br />

chapa<strong>da</strong>s e procederam à derruba<strong>da</strong> <strong>da</strong> mata e limpeza do terreno pelas queima<strong>da</strong>s e<br />

pelos tratores. Fizeram espalhar pelas redondezas, a notícia de que to<strong>da</strong> aquela área era<br />

proprie<strong>da</strong>de pública e que o governo iria retomar as terras; assim infundindo o medo de<br />

per<strong>da</strong> <strong>da</strong> terra nos camponeses que as detinham como posses mansas e pacíficas desde<br />

tempos imemoriais nas grotas e vere<strong>da</strong>s como terra pessoal, e nas chapa<strong>da</strong>s como terra<br />

comum. Compradores, vindos de São Paulo, ou simplesmente identificados como<br />

“paulistas” passaram então a comprar os direitos de posse a preços irrisórios.<br />

As compras referem-se a áreas pequenas - 2,4 ha., 4,8 ha., 9,8 ha., 10,9 ha -<br />

algumas maiores, sendo uma de 217,6 ha e outra de 969,1 ha. - mas, ao proceder-se, em<br />

segui<strong>da</strong>, à medição e legitimação de domínio, procedimento de que se encarrega a<br />

estatal do governo mineiro, a autarquia Rural Minas, de conformi<strong>da</strong>de com o relato <strong>da</strong><br />

pesquisadora, neste procedimento, já sob patrocínio e tutela <strong>da</strong>s grandes companhias<br />

que compraram as áreas aos “paulistas”, as pequenas posses se transubstanciam em<br />

vastos latifúndios, com áreas de 807 ha, 2.934 ha, l.620 ha., 217 ha., 898 ha., 3.684 ha.,<br />

o que representou acréscimos descomunais. Na chapa<strong>da</strong>, os sitiantes detinham o uso de<br />

394 RIBEIRO (op. cit., p.7. Grifos nossos). A mesma posição é exposta por Paulo Yokota e Ol<strong>da</strong>ir Zanatta, citados.<br />

198


parcelas <strong>da</strong> terra apossa<strong>da</strong> em comum para a extração de madeira e para pastagem do<br />

gado nas beira<strong>da</strong>s <strong>da</strong> mata. Alguns deles até já haviam feito pagamentos para a medição,<br />

mas não tiveram o dinheiro suficiente para pagar o documento oficial e o registro em<br />

cartório. Mas a maioria nem mesmo sequer procedeu à demarcação, de sorte que uma<br />

compradora final, a Companhia. ACESITA, adquirira através de terceiros as posses com<br />

documentos antigos, já cerca<strong>da</strong>s, nos demais casos simplesmente derrubou cercas e<br />

construções e procedeu ao cercamento <strong>da</strong>s terras devolutas.<br />

Já a Companhia. SUZANO, essa não respeitou até terrenos demarcados,<br />

segundo relato de sitiantes à pesquisadora 395 . As terras ali haviam sido, por meio de<br />

decreto governamental, - tipificando a ação burocrático-autoritária - declara<strong>da</strong>s<br />

impróprias à agricultura e só adequa<strong>da</strong>s ao reflorestamento, conforme legislação de<br />

incentivos fiscais que beneficiou essa ativi<strong>da</strong>de destina<strong>da</strong> a grandes empresas. Pois,<br />

conforme o relato <strong>da</strong> pesquisadora, a<br />

“lei de 1966, ao definir a área dos distritos florestais imprimindo a<br />

esta região tais características, negou to<strong>da</strong> uma história passa<strong>da</strong><br />

de ocupação <strong>da</strong> terra, além do modo de vi<strong>da</strong> destas populações e<br />

<strong>da</strong> história natural. Neste sentido, baseando-se nos projetos<br />

modernizantes, todo um mundo assentado em relações<br />

específicas com a terra e dos homens entre si foi determinado a<br />

desaparecer. O modo de vi<strong>da</strong> secular assentado nas relações<br />

homem-natureza, no direito costumeiro <strong>da</strong> posse pessoal e <strong>da</strong><br />

terra comum e na existência de uma história <strong>da</strong> natureza<br />

sucumbiu, em menos de duas déca<strong>da</strong>s, diante do fogo nas<br />

chapa<strong>da</strong>s, <strong>da</strong>s grandes máquinas de terraplenagem, <strong>da</strong>s motoserras,<br />

<strong>da</strong>s invasões <strong>da</strong>s terras nas vere<strong>da</strong>s, <strong>da</strong> destruição dos<br />

marcos naturais que separavam as posses, <strong>da</strong>s destruições <strong>da</strong>s<br />

nascentes de água. Neste processo avassalador, nem mesmo os<br />

mortos foram poupados. Muitos cemitérios desapareceram sob o<br />

nivelamento do solo feito pelas máquinas.” 396<br />

As citações acima, como outras referi<strong>da</strong>s neste estudo, como uma infini<strong>da</strong>de de<br />

outros pronunciamentos no mesmo sentido, tanto de autori<strong>da</strong>des fundiárias, como de<br />

depoentes nas diferentes Comissões Parlamentares de Inquérito sobre o problema<br />

fundiário, que seria impossível e desnecessário, até, arrolar neste estudo, dão a prova<br />

mais cabal e objetiva a respeito dos problemas que se encontram na raiz <strong>da</strong><br />

concentração fundiária brasileira: a apropriação privilegia<strong>da</strong> e a legitimação<br />

questionável, juridicamente, de imensas áreas que, noutro contexto, poderiam<br />

efetivamente ser incorpora<strong>da</strong>s à economia rural, possibilitando o acesso produtivo à<br />

milhões de pequenos e médios produtores e trabalhadores rurais. E, neste caso, sem<br />

nenhum custo de aquisição de Terra, pelo Estado, posto que se tratam de terras públicas.<br />

Pelo contrário, podendo, inclusive gerar as receitas necessárias à implementação de um<br />

efetivo Projeto de Desenvolvimento Econômico para a agricultura brasileira. E sem que<br />

395 MORAES E SILVA (1996:, pp.41-46 e 47-52).<br />

396 Idem, p. 39.<br />

199


isto significasse nenhuma restrição, “a priori”, para o apoio efetivo, por parte do<br />

Estado, à implantação e implementação de empresas agropecuárias de diversos portes e<br />

produtivi<strong>da</strong>de.<br />

É exatamente neste nível, que o diagnóstico apresentado na Mensagem 33 e no<br />

Estatuto <strong>da</strong> Terra é um profundo e estrondoso equívoco. O maior problema a ser<br />

enfrentado na questão fundiária brasileira, não se situa na eliminação dos minifúndios,<br />

mas nos latifúndios ilegítimos (e não importa se produtivos ou não. O problema é que<br />

são ilegítimos e ilegais: em sua maioria produto <strong>da</strong> fraude e efetivamente<br />

especulativos). Este é o primeiro problema a ser enfrentado.<br />

Enquanto não for assegurado o acesso legal e legítimo à terra, como estabelece o<br />

preceito Constitucional de 1946, não se pode discutir com objetivi<strong>da</strong>de as formas e<br />

meios para o crescimento <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de na agricultura. Por outro lado, estando<br />

assegurado o acesso produtivo e legal, à terra, torna-se, inclusive, possível implementar,<br />

de forma objetiva, uma política tributária conseqüente: não para “punir” os<br />

“improdutivos”, mas para premiar a produtivi<strong>da</strong>de.<br />

É neste sentido, o próprio minifúndio, como todos os problemas que,<br />

efetivamente, apresenta, na<strong>da</strong> mais é do que o resultado <strong>da</strong> política de apropriação<br />

privilegia<strong>da</strong> e de legitimação questionável, que provocou a profun<strong>da</strong> excludência social<br />

em relação ao acesso à terra no Brasil, aponta<strong>da</strong> por to<strong>da</strong>s as estatísticas e estudos<br />

especializados sobre o tema, desde o período em que vigia o instituto de sesmarias.<br />

Até porque é profun<strong>da</strong>mente difícil, senão impossível, <strong>da</strong><strong>da</strong>s as exceções e<br />

liberali<strong>da</strong>des permiti<strong>da</strong>s pelas diversas normas e regulamentos, classificar, qualquer que<br />

seja o imóvel rural, de “improdutivo”. Assim, uma política fundiária, tributária e fiscal<br />

que procurasse premiar o trabalho, a eficiência e a produtivi<strong>da</strong>de, ao contrário <strong>da</strong> visão<br />

“repressiva” e “autoritária”, que só imagina a via <strong>da</strong> “punição”, certamente <strong>da</strong>ria os<br />

resultados até agora nunca conseguidos. Neste contexto - nunca proposto nem tentado<br />

pelos Governos Militares - tornar-se-ia, provavelmente, possível uma profun<strong>da</strong><br />

transformação <strong>da</strong> estrutura fundiária e <strong>da</strong> economia rural brasileira.<br />

É neste sentido que, também, a política tributária “progressiva e regressiva”,<br />

proposta no Estatuto <strong>da</strong> Terra (independentemente <strong>da</strong>s exceções que abre e que<br />

possibilitam, de fato, a fuga e a sonegação) é, na melhor <strong>da</strong>s hipóteses, produto de uma<br />

má compreensão <strong>da</strong> questão fundiária brasileira e de sua história de privilégios,<br />

impuni<strong>da</strong>de e sonegação e, na pior <strong>da</strong> hipóteses, produto de mera demagogia. Os<br />

resultados alcançados pela aplicação desta política é a prova mais evidente do seu<br />

equívoco.<br />

De qualquer maneira, como já mencionado anteriormente, o processo<br />

discriminatório teve, efetivamente, resultados relevantes. Significou a arreca<strong>da</strong>ção de<br />

aproxima<strong>da</strong>mente 129,6. milhões de hectares, segundo Cláudio Ribeiro; 111,8 milhões<br />

de hectares, segundo Ol<strong>da</strong>ir Zanatta e 115 milhões de hectares, conforme Paulo<br />

200


Yokota 397 , ou seja, segundo as estatísticas do INCRA. Como será visto no próximo<br />

capítulo, esta área é coerente com a registra<strong>da</strong> pelo IBGE, para a incorporação de áreas<br />

novas aos estabelecimentos agrícolas entre os Censos de 1960 e 1980, ou seja, à<br />

proprie<strong>da</strong>de particular. As duas citações abaixo, respectivamente, de Cláudio Ribeiro e<br />

Ol<strong>da</strong>ir Zanatta, registram este fato:<br />

“Nas áreas sob jurisdição federal, num total de aproxima<strong>da</strong>mente, 357,5 milhões de<br />

hectares, o INCRA já discriminou até junho de 1984, em torno de 129,6 milhões de<br />

hectares 398 (...).”<br />

“A arreca<strong>da</strong>ção de terras devolutas possibilitou a incorporação ao patrimônio <strong>da</strong> União<br />

até o momento, um total de 111,8 milhões de hectares na Amazônia Legal e na Faixa<br />

se fronteira. Deste total, estima-se que 70% encontra-se ocupado, titulado ou em fase<br />

de titulação 399 (...).”<br />

A diferença entre as estatísticas apresenta<strong>da</strong>s pelos três diretores do INCRA,<br />

muito provavelmente devi<strong>da</strong>s a períodos diferentes, é menos importante do que o fato<br />

de que, entre 1960 e 1980 foram discriminados em torno de 112 milhões de hectares de<br />

terras no âmbito federal. O problema, de fato, reside em como ou se estas terras foram,<br />

ou não, arreca<strong>da</strong><strong>da</strong>s para o patrimônio <strong>da</strong> União; ou “transferi<strong>da</strong>s” para particulares. E,<br />

sobretudo, isto sim, é relevante, em favor de quem 400 estas terras foram privatiza<strong>da</strong>s.<br />

Este assunto será tratado no próximo capítulo.<br />

Este problema é referido por Ol<strong>da</strong>ir Zanatta, nos termos abaixo, fato que já dá<br />

um idéia de que o seu tratamento continuaria, como desde sempre a ser protelado sob os<br />

mais diversos pretextos:<br />

“Esse processo acelerado de discriminação tem possibilitado<br />

resguar<strong>da</strong>r terras devolutas <strong>da</strong> ação de ‘grileiros’. To<strong>da</strong>via, a<br />

impossibili<strong>da</strong>de de sua destinação imediata por problemas<br />

de técnica, ou até mesmo de mercado, coloca-as à mercê <strong>da</strong><br />

invasão de NOVOS POSSEIROS. Isso vale dizer que a<br />

destinação de uma área, após algum tempo de sua<br />

discriminação, impõe a necessi<strong>da</strong>de de novo<br />

levantamento.” 401<br />

Como foi analisado nos capítulos 1 e 2, desde o período Colonial os grandes<br />

detentores de terras apresentavam os mais diversos argumentos para justificar a<br />

ausência de registro <strong>da</strong>s terras em seu domínio, ain<strong>da</strong> que legítimo. Sempre se referiam<br />

à falta de condições efetivas para executar as exigência legais: ausência de técnicos<br />

especializados; a “imensidão” do território (e certamente, <strong>da</strong>s concessões ou posses);<br />

397 YOKOTA (op. cit., pp. 2-3).<br />

398 RIBEIRO (op. cit., p. 7). Grifos nossos.<br />

399 ZANATTA (op. cit., p. 18). Grifos nossos. A diferença entre os <strong>da</strong>dos de Zanatta e Cláudio Ribeiro, deve-se ao<br />

fato de que este último trabalha com <strong>da</strong>dos até 1984, enquanto os de Zanatta computa estatísticas até o ano de 1980.<br />

O <strong>da</strong>do do IBGE para o período, refere-se a um total de 1114.965.285 de hectares de áreas incorpora<strong>da</strong>s aos<br />

estabelecimentos rurais, entre os anos de 1960 e 1980. A análise destes <strong>da</strong>dos será realiza<strong>da</strong> no próximo capítulo, ao<br />

se estu<strong>da</strong>r os resultados <strong>da</strong> Política Fundiária do Regime Militar.<br />

400 Esta questão, de fato, pertinente, foi, como visto acima, levanta<strong>da</strong> pela CONTAG (op. cit., pp.1984: 8-9).<br />

401 ZANATTA (op. cit., p. 7-8).<br />

201


falta de aparelhamento dos órgãos públicos encarregados de executar a política de<br />

terras, etc. Como se vê pelas palavras de Ol<strong>da</strong>ir Zanatta, em pleno final de século XX,<br />

os pretextos não de modernizaram.<br />

Isso eqüivale a dizer, completando a exposição de Zanatta, que o processo de<br />

ocupação privilegia<strong>da</strong> é absolutamente ilegal, e continua. Ilegal, posto que agora se<br />

tratam de terras discrimina<strong>da</strong>s pelo Governo Federal, portanto de invasões de terras<br />

legalmente incorpora<strong>da</strong>s, enquanto imóvel, ao patrimônio público. Isto significa que<br />

persiste o privilégio e a impuni<strong>da</strong>de dos grandes invasores. Sim, posto que os pequenos<br />

posseiros, nestes casos, no máximo, poderiam ser incorporados a algum programa de<br />

colonização oficial.<br />

Na ver<strong>da</strong>de, essa confissão feita pelo Diretor de Recursos Fundiários do INCRA,<br />

em um Simpósio Internacional de Experiência Fundiária, dá a dimensão dos grandes<br />

interesses que continuavam, em pleno final do Regime Militar (o documento é de<br />

agosto de 1984) a vigir no campo.<br />

Destes problemas se tratam, ao se discutir uma efetiva política de reforma<br />

agrária para o Brasil, e não <strong>da</strong> mera re-distribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de 402 . O primeiro passo<br />

de um processo efetivo de Reforma Agrária, portanto, é identificar as proprie<strong>da</strong>des<br />

legítimas 403 . O instrumento para deflagração deste processo já existe legalmente e é a<br />

ação discriminatória. Veja-se, que neste caso, não há sequer, a necessi<strong>da</strong>de dos famosos<br />

e intermináveis debates parlamentares acerca do estabelecimento do “rito sumário”, do<br />

“rito sumaríssimo 404 ”, etc. Tratam-se de simples processos de reintegração de posse<br />

em favor <strong>da</strong> União. Senão, as grandes indenizações, geralmente indevi<strong>da</strong>s,<br />

transformarão a Reforma Agrária em um “big business” para os latifúndios e<br />

especuladores imobiliários. Aliás como efetivamente sempre ocorreu no período aqui<br />

estu<strong>da</strong>do, conforme registrado por muitos estudiosos e amplamente denunciado pela<br />

imprensa e pelos órgãos representativos dos trabalhadores rurais.<br />

Os juizes têm sido céleres em deferir liminares de reintegração de posse em<br />

favor de supostos proprietários e contra pequenos posseiros, sem sequer argüirem, com<br />

certeza, a legitimi<strong>da</strong>de dos pleitos que lhes são propostos. Certamente poderiam, <strong>da</strong><br />

mesma forma, serem céleres em deferir as liminares de reintegração de posse, com<br />

maior rigor jurídico ain<strong>da</strong>, porque fun<strong>da</strong>dos numa discriminatória legítima, em favor <strong>da</strong><br />

União. E disto se trata.<br />

402 Porque para re-distribuir a proprie<strong>da</strong>de, é necessário que hajam proprie<strong>da</strong>des legítimas. E, no caso do Brasil, é<br />

exatamente esta legitimi<strong>da</strong>de que se deve questionar. Portanto, na pior <strong>da</strong>s hipóteses, se se quiser colocar o problemas<br />

nestes termos, tratar-se-ia de re-distribuir as terras públicas.<br />

403 Ver por exemplo: (a) Foweraker, citado, que faz ampla referência “a indústria <strong>da</strong> posse”, promovi<strong>da</strong> pelas<br />

grandes empreiteiras e especuladores de terra, analisando, em especial, o caso Lupion, no Paraná; (b) CONTAG, no<br />

documento citado, sobre a Política Fundiária do Regime Militar. Também poderão ser compulsados os Relatórios <strong>da</strong>s<br />

CPIs.: (a) do Sistema Fundiário; (b) dos Incentivos Fiscais <strong>da</strong> Amazônia e, mais recentemente, a CPI <strong>da</strong>s Causas <strong>da</strong><br />

Violência no Campo.<br />

404 Processos estes que, sob a aparência de virem a contribuir para a agilização <strong>da</strong>s desapropriações necessárias à<br />

execução <strong>da</strong> Reforma Agrária, na ver<strong>da</strong>de sempre foram o caminho mais curto para retardá-la e, no limite, impedir<br />

que ela fosse implementa<strong>da</strong>.<br />

202


O fato é que tem sido, praticamente, impossível a implementação <strong>da</strong><br />

discriminatória administrativa. As discriminatórias leva<strong>da</strong>s para a via contenciosa,<br />

legalmente previstas para os casos em que não haja o “acordo”, fun<strong>da</strong>mental àquela,<br />

permanecem tantos anos nos tribunais, que acabam por se tornarem inócuas. Até<br />

porque, durante este tempo, os especuladores os grileiros “comuns” e “especializados” e<br />

os latifundiários - que nem sempre são pessoas diferentes - já encontraram alguma<br />

“destinação” para as “suas” terras: ain<strong>da</strong> que seja, a de transferí-las a terceiros. Os<br />

depoimentos contidos nas Comissões Parlamentares de Inquérito, especialmente a que<br />

se ocupou do Sistema Fundiário, documentam amplamente estes processos.<br />

3.2.2.2. Arreca<strong>da</strong>ção de Terras Devolutas<br />

A arreca<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s terras devolutas, públicas, é uma implicação recorrente, em<br />

princípio, <strong>da</strong>s ações discriminatórias, aliás, constituindo-se no seu primeiro e mais<br />

importante objetivo. Assim, as terras extrema<strong>da</strong>s no processo discriminatório, sendo<br />

devolutas, são incorpora<strong>da</strong>s, formalmente, ao patrimônio <strong>da</strong>s terras públicas, seja <strong>da</strong><br />

União ou dos Estados <strong>da</strong> Federação. Sendo ou estando, legitimamente, em poder de<br />

particulares, por suposto, procede-se a titulação em favor de destes.<br />

Os processos de discriminação e arreca<strong>da</strong>ção de terras devolutas estão, do ponto<br />

de vista legal, intimamente correlacionados. Entretanto, tantas têm sido as resistências<br />

encontra<strong>da</strong>s na implementação destes processos, que os mesmos passaram a ser<br />

executados de forma separa<strong>da</strong>, um complementando o outro. Como explica Cláudio<br />

Ribeiro:<br />

“Não obstante a arreca<strong>da</strong>ção esteja implícita na discriminatória, o<br />

INCRA sempre adotou a política de arreca<strong>da</strong>r as terras devolutas<br />

apura<strong>da</strong>s, após a lavratura do termo <strong>da</strong> instância,<br />

matriculando-as em nome <strong>da</strong> União. O procedimento é feito pelos<br />

Estados, exceção ao <strong>da</strong> Bahia, cuja legislação pertinente faculta<br />

dessa prática, que se segui<strong>da</strong>, obriga o órgão fundiário<br />

estadual à aplicação do dispositivo <strong>da</strong> licitação pública,<br />

como pré-condição para outorga de título de<br />

proprie<strong>da</strong>de.” 405<br />

Em continui<strong>da</strong>de à mesma argumentação, Ribeiro esclarece que, apesar do fato<br />

de existir, entre os juristas uma forte corrente doutrinária que entende como dispensável<br />

o registro de terras devolutas, com base no argumento de que, historicamente, to<strong>da</strong>s as<br />

terras brasileiras são públicas, exceto aquelas por algum título legítimo, transferi<strong>da</strong>s<br />

para o domínio particular, portanto não necessitando de outra publici<strong>da</strong>de senão aquela,<br />

ficando o ônus <strong>da</strong> prova para os pretensos proprietários particulares; entretanto,<br />

“a própria experiência adquiri<strong>da</strong> pelo INCRA no campo <strong>da</strong><br />

administração fundiária recomendou a efetivação do registro,<br />

como forma salutar de publicizar o domínio <strong>da</strong> União (...)<br />

405 RIBEIRO (op. cit., p. 8. Grifos nossos).<br />

203


Assim, as terras devolutas apura<strong>da</strong>s pelo INCRA foram sempre<br />

leva<strong>da</strong>s a registro imobiliário, iniciando-se, a partir de então, a<br />

filiação dominial <strong>da</strong> terra pública federal. Essa providência tem<br />

evitado que imensas extensões de terras devolutas sejam<br />

incorpora<strong>da</strong>s ilegalmente ao domínio particular, por ação <strong>da</strong><br />

‘grilagem’ fabrica<strong>da</strong> por indivíduos inescrupulosos.” 406<br />

As citações acima, do Diretor de Desenvolvimento Rural do INCRA, permitem<br />

esclarecer algumas questões importantes. A primeira refere-se a um fato central na<br />

problemática <strong>da</strong>s ações discriminatórias, que seria o de extremar as proprie<strong>da</strong>des<br />

públicas e particulares. Esse procedimento, instituído, formalmente, em 1850, com a Lei<br />

de Terras, não tem sentido se não estiver estritamente associado ao processo de<br />

arreca<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s terras devolutas enquanto patrimônio efetivo <strong>da</strong> Nação. Até porque,<br />

para se delimitar e reconhecer como legítimas, as terras particulares, é necessário<br />

extremá-las <strong>da</strong>s devolutas, o que significa, a delimitação de ambas, e, é evidente, o<br />

reconhecimento recíproco e concomitante. Como sempre coube ao Estado a legitimação<br />

<strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des particulares, teoricamente, este não deveria ter tido dificul<strong>da</strong>des para<br />

legitimar o reconhecimento do seu próprio patrimônio.<br />

Entretanto, como se vem demonstrando até aqui, neste trabalho, o Estado nunca<br />

conseguiu, efetivamente, sequer, fazer valer o reconhecimento de seus domínios. Este<br />

fato é um forte indício de que o controle efetivo sobre as terras do País sempre lhe<br />

fugiram.<br />

Estritamente associado a este problema, está o fato de o INCRA, com base na<br />

“experiência adquiri<strong>da</strong>” na administração fundiária, ter optado pelo registro, ain<strong>da</strong> que<br />

isso não fosse, legalmente, necessário. Por que? Porque, se assim não procedesse,<br />

abriria, ain<strong>da</strong> mais, as portas à grilagem especializa<strong>da</strong> e à fraude. É o que fica claro nos<br />

argumentos de Cláudio Ribeiro e Ol<strong>da</strong>ir Zanatta. Resta saber se este procedimento foi<br />

suficiente para impedí-las. Segundo Zanatta, não.<br />

De qualquer maneira, era melhor adotar este procedimento do que não fazê-lo,<br />

até porque, e este parece o resultado mais relevante, por este meio se fun<strong>da</strong>va a cadeia<br />

de filiação dominial, com base na qual, a qualquer momento, poderia o Estado,<br />

questionar a legitimi<strong>da</strong>de de determinados títulos de “proprie<strong>da</strong>de”. Se ele assim não<br />

tem agido, as razões necessitam ser esclareci<strong>da</strong>s, senão teórica, com certeza,<br />

juridicamente, porque é dever de ofício, portanto irrecusável, <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des fundiárias,<br />

cumprir e fazer cumprir as determinações conti<strong>da</strong>s no ordenamento jurídico. A omissão<br />

ou, mais grave, a conivência com os reconhecidos processos ilegítimos de alienação e<br />

aquisição de proprie<strong>da</strong>des, caracteriza crime de improbi<strong>da</strong>de administrativa.<br />

Finalmente, cabe uma análise à referência feita à legislação fundiária do Estado<br />

<strong>da</strong> Bahia que, segundo Cláudio Ribeiro, permite a arreca<strong>da</strong>ção de terras devolutas<br />

estaduais, sem a exigência do respectivo registro. Neste caso particular, pode-se argüir<br />

por que os baianos, aliás de reconheci<strong>da</strong> tradição jurídica, optaram pela doutrina que se<br />

406 RIBEIRO (op. cit., p. 8). Grifos nossos.<br />

204


fun<strong>da</strong>va na publici<strong>da</strong>de historicamente constituí<strong>da</strong>, logo, tornando desnecessário o novo<br />

registro com a mesma finali<strong>da</strong>de. Entretanto, o arremate do raciocínio do Diretor do<br />

INCRA é sutil e profundo, ao afirmar que, procedendo desta forma, estaria o órgão<br />

fundiário do Estado <strong>da</strong> Bahia desobrigado de submeter os processos de alienação de<br />

terras devolutas às exigências legais de licitação pública. Por que? A resposta parece<br />

óbvia. Esse tipo de problema será discutido adiante quando <strong>da</strong> análise dos<br />

procedimentos de alienação de terras públicas.<br />

De qualquer maneira, a Lei 6.383, de 7 de dezembro de 1976, introduziu a<br />

obrigatorie<strong>da</strong>de de matricular no Cartório de Registro de Imóveis, as terras devolutas<br />

arreca<strong>da</strong><strong>da</strong>s, segundo Ribeiro 407 , sob a influência <strong>da</strong> experiência do INCRA.<br />

Outra mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de arreca<strong>da</strong>ção, cria<strong>da</strong> pela Lei 6.383/76, era a chama<strong>da</strong><br />

arreca<strong>da</strong>ção sumária, discrimina<strong>da</strong> pela via cartorial. Consistia em procedimento<br />

aparente simples de se levantar nos cartórios de registro de imóveis, a inexistência de<br />

domínios particulares em determina<strong>da</strong>s áreas previamente seleciona<strong>da</strong>s 408 . Na medi<strong>da</strong><br />

em que não houvesse oposição ou pleitos de terceiros quanto ao domínio ou posse,<br />

especialmente em áreas declara<strong>da</strong>s indispensáveis à segurança e desenvolvimento<br />

nacionais, poderiam as terras, assim considera<strong>da</strong>s devolutas, ser matricula<strong>da</strong>s em nome<br />

<strong>da</strong> União. Todo o processo se fun<strong>da</strong>va na emissão de certidões negativas 409 , lavra<strong>da</strong>s<br />

pelos Cartórios de Registro de Imóveis e pelo SPU - Serviço de Patrimônio <strong>da</strong> União -<br />

e, complementarmente, pelos Órgãos Estaduais de Terras.<br />

Para não fazer longos comentários sobre este problema que já tantas vezes tem<br />

sido mencionado neste trabalho, pode-se afirmar que, embora este procedimento pareça<br />

um grande avanço, na ver<strong>da</strong>de ele só afeta os pequenos posseiros, que sequer tomam<br />

conhecimento de sua instalação. Assim, pode-se afirmar, o próprio Estado pratica, por<br />

este meio, efetivamente, um processo de expropriação por via registral, como já se fez<br />

referência neste trabalho ao se analisar as implicações do Registro Torrens. A este<br />

respeito pode-se dizer que muitas licitações e alienações de terras devolutas, realiza<strong>da</strong>s<br />

por diferentes Estados <strong>da</strong> Federação, implicaram na transferência para particulares, de<br />

enormes áreas, onde viviam e trabalhavam milhares de posseiros e indígenas 410 . Apenas<br />

para fazer uma referência insuspeita a respeito, especificamente, deste problema, vale a<br />

407 Op. cit.<br />

408 Note-se que este procedimento inverte o “instituto” do “ônus <strong>da</strong> prova”, passando-o ao Estado, e não aos<br />

particulares, a investigar a legali<strong>da</strong>de de seus domínios. É assim que, procedimentos “técnicos” aparentemente<br />

criativos e inovadores são “virtualmente inventados” para facilitar certas ações ou ativi<strong>da</strong>des administrativas, mas,<br />

que na ver<strong>da</strong>de, apenas servem para “legitimar” procedimentos “alternativos” e que acabam por complicar, ain<strong>da</strong><br />

mais, os processos normais <strong>da</strong> administração. Na ver<strong>da</strong>de apenas aparecem como complicadores dos procedimentos,<br />

inviabilizando-os.<br />

409 Como os pequenos posseiros nunca detinham título de suas posses, portanto, não podiam as mesmas estar<br />

registra<strong>da</strong>s nos Cartórios, as certidões negativas, referi<strong>da</strong>s, faziam “tabula rasa”, dessas posses. Assim muitos<br />

posseiros foram vítimas <strong>da</strong> expropriação cartorial, como se tem referido neste estudo.<br />

410 Fatos desta natureza têm sido documentados e denunciados de várias formas e em várias oportuni<strong>da</strong>des. Apenas<br />

para referir algumas fontes, veja-se: FOWERAKER (op. cit.), MARTINS, E. (op. cit.); IANNI (1979 e 1981) e<br />

YOKOTA (op. cit.). Veja-se igualmente: CÂMARA <strong>DO</strong>S DEPUTA<strong>DO</strong>S (1979); CONTAG (1984); e MORAES E<br />

SILVA (1996).<br />

205


pena anotar o seguinte trecho do trabalho de Paulo Yokota, na oportuni<strong>da</strong>de, Presidente<br />

do INCRA:<br />

“Também a vastidão do território dificultou o exame acurado <strong>da</strong>s<br />

ocupações pioneiras existentes. No passado, infelizmente,<br />

autori<strong>da</strong>des foram induzi<strong>da</strong>s a promover licitações de terras,<br />

com grandes lotes definidos na prancheta, sem um prévio<br />

trabalho discriminatório. Assim foram titula<strong>da</strong>s áreas que<br />

contavam com posseiros, sem que os direitos dos mesmos,<br />

previstos na legislação, fossem respeitados, criando-se um<br />

conflito de pretendentes.” 411<br />

Yokota refere-se a “autori<strong>da</strong>des do passado” que realizaram trabalhos de<br />

alienação de grandes áreas de terras, levanta<strong>da</strong>s na “prancheta”, o que é, de fato,<br />

ver<strong>da</strong>de. Entretanto, não se vê qual a diferença entre lotear terras na prancheta, ou<br />

arrecadá-las por via cartorial, como no caso <strong>da</strong> “arreca<strong>da</strong>ção sumária”: é claro, como<br />

este estudo vem demonstrando, e como muitos outros também já o indicaram, que os<br />

pequenos posseiros nunca, ou apenas raramente, registraram legalmente, suas posses.<br />

Talvez isso explique o porque <strong>da</strong> “arreca<strong>da</strong>ção sumária”.<br />

3.2.2.3. Desapropriação de Imóveis Rurais<br />

Como foi amplamente analisado nos capítulos anteriores, o instituto <strong>da</strong><br />

desapropriação foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro desde a Constituição<br />

Imperial de 1824 412 . Entretanto, sempre com o sentido específico de “desapropriação<br />

por necessi<strong>da</strong>de ou utili<strong>da</strong>de pública”, ou seja, estritamente vinculado à idéia de<br />

realização de obras públicas, do interesse específico do Estado, tais como estra<strong>da</strong>s,<br />

servidões, ferrovias, barragens, edificações públicas, fortificações e construções<br />

militares, ruas, aveni<strong>da</strong>s, etc. Nesse contexto, por exemplo, as áreas destina<strong>da</strong>s à<br />

formação de colônias, fossem agrícolas ou militares, seriam sempre e, por definição, em<br />

terras devolutas, públicas.<br />

A desapropriação “por interesse social”, concebi<strong>da</strong> numa perspectiva mais<br />

abrangente de promoção - além <strong>da</strong>s obras acima referi<strong>da</strong>s, de necessi<strong>da</strong>de ou utili<strong>da</strong>de<br />

pública 413 - de outras iniciativas, objetivando mu<strong>da</strong>nças relevantes no ordenamento<br />

social, apenas será introduzi<strong>da</strong> no ordenamento jurídico brasileiro com a Constituição<br />

de 1946 (art. 141, 16) 414 . E, certamente esse novo sentido atribuído aos processos de<br />

desapropriação, deveu-se à toma<strong>da</strong> de consciência por parte de determinados grupos<br />

411 YOKOTA (op. cit., p. 5). Grifos nossos.<br />

412 Art. 179, inciso XXII, <strong>da</strong> Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824 (In.: MEAF. op.<br />

cit., p. 357). Ver a discussão desse problema no capítulo 2 deste estudo.<br />

413 Tais são os casos <strong>da</strong>s Constituições de 1891 (art. 72, 17); de 1934 (art. 113, 17); de 1937 (art. 122, 14).<br />

414 A Constituição de 1967, mantém este princípio <strong>da</strong> Constituição de 1946, em seu artigo 153, 22 na re<strong>da</strong>ção<br />

altera<strong>da</strong> pela Emen<strong>da</strong> Constitucional n o 1, de 17 de outubro de 1969. Antes, porém, com a Emen<strong>da</strong> Constitucional n o<br />

10, de 9 de novembro de 1964, alterava o, então, 16, do artigo 141, instituindo, o pagamento <strong>da</strong> indenização prévia,<br />

em títulos <strong>da</strong> dívi<strong>da</strong> pública, para os casos de desapropriação por interesse social (art. 5 o ). (In.: MEAF, op. cit.. pp.<br />

575 e 576). Que passa a ser do artigo 153, 22, na re<strong>da</strong>ção final <strong>da</strong><strong>da</strong> a Constituição de 1976, pela Emen<strong>da</strong><br />

Constitucional N o 9 de 17 de outubro de 1979. (Idem , pp. 3-4).<br />

206


integrantes do bloco no poder, de que muitas áreas ocupa<strong>da</strong>s ilegal e improdutivamente,<br />

estariam dificultando ações de interesse para o desenvolvimento econômico e social,<br />

especialmente, a dinamização de ativi<strong>da</strong>des produtivas, em particular, no setor<br />

agropecuário. Por isso mesmo, a introdução desta nova mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de desapropriação<br />

começa a ser introduzi<strong>da</strong> no ordenamento político e jurídico brasileiro a partir dos anos<br />

trinta deste século, muito especialmente no contexto <strong>da</strong> Constituição do “Estado Novo”<br />

quando começam a se consoli<strong>da</strong>r outras forças sociais no bloco do poder, com a per<strong>da</strong><br />

paulatina <strong>da</strong> hegemonia pelas oligarquias agrárias. Entretanto, como foi visto no<br />

capítulo anterior, como essa per<strong>da</strong> de hegemonia implicou, por outro lado, apenas uma<br />

nova correlação de forças, mantendo, as oligarquias, o seu prestígio no meio rural, a<br />

separação entre a desapropriação por utili<strong>da</strong>de e necessi<strong>da</strong>de pública, volta<strong>da</strong> sobretudo<br />

para o meio urbano, e a desapropriação por interesse social, mais direciona<strong>da</strong> ao<br />

reordenamento rural, passam a obedecer à critérios diferenciados.<br />

A desapropriação por utili<strong>da</strong>de e necessi<strong>da</strong>de pública, no sentido acima<br />

explicitado, destinando-se, basicamente, à obras de “infra-estrutura” econômica e social,<br />

terá critérios que possibilitam maior agili<strong>da</strong>de na imissão na posse pelo “Poder<br />

Expropriante”, cabendo ao expropriados, apenas, a discussão dos valores e condições de<br />

desapropriação no campo judiciário, entretanto, sem nenhuma possibili<strong>da</strong>de de impedir<br />

ou retar<strong>da</strong>r o processo de desapropriação.<br />

No caso <strong>da</strong> desapropriação por interesse social e, especialmente, para “fins de<br />

reforma agrária”, o processo expropriatório obedece a critérios que, em última instância,<br />

praticamente inviabilizam, senão a desapropriação em si mesma - que poderá ser<br />

consegui<strong>da</strong> pela via contenciosa no curso de um longo espaço de tempo - pelo menos,<br />

certamente, a consecução <strong>da</strong> sua finali<strong>da</strong>de.<br />

O instituto jurídico <strong>da</strong> desapropriação por interesse social, apenas veio a ser<br />

regulado, infra-constitucionalmente, pela Lei 4.132, de 10 de setembro de 1962, no<br />

Governo João Goulart, com o objetivo de facilitar ações de reforma agrária, ou, como<br />

afirma Cláudio Ribeiro 415 :<br />

“esse instrumento jurídico foi instituído pela Lei 4.132 de 10 de<br />

setembro de 1962, visando promover a justa distribuição <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra ou condicionar o seu uso ao bem-estar<br />

social.”<br />

Em assim sendo, também quanto a esta dimensão relevante do ordenamento<br />

jurídico referente à desapropriação por interesse social, o Estatuto <strong>da</strong> Terra apenas o<br />

incorporou. Como se disse acima, apenas no que toca ao problema <strong>da</strong> forma de<br />

pagamento <strong>da</strong> indenização, que passou, a partir <strong>da</strong> Emen<strong>da</strong> n o 10, a ser permiti<strong>da</strong> em<br />

títulos <strong>da</strong> dívi<strong>da</strong> pública, o Governo Militar conseguiu avançar. Entretanto, mesmo esta<br />

medi<strong>da</strong> já havia sido proposta pelo Governo cessante.<br />

415 RIBEIRO, op. cit., p. 9. Grifos nossos.<br />

207


A reiteração destes argumentos tem, apenas, o objetivo de registrar o fato,<br />

historicamente, posto que, geralmente, o Estatuto <strong>da</strong> Terra tem sido apresentado como<br />

um “monumento jurídico” elaborado pela competência e criativi<strong>da</strong>de dos tecnocratas<br />

dos Governos Militares, o que, de fato, não corresponde à reali<strong>da</strong>de. De qualquer forma,<br />

pode-se afirmar que, em princípio, o Governo teve o mérito, que não é desprezível, de<br />

fazer aprovar a mu<strong>da</strong>nça na forma <strong>da</strong> indenização, o que poderia ter facilitado profun<strong>da</strong>s<br />

transformações na distribuição “justa” <strong>da</strong> terra, especialmente se associado à<br />

regulamentação, já referi<strong>da</strong>, do preceito Constitucional referente à função social <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de.<br />

De qualquer maneira, como reitera<strong>da</strong>s vezes já se referiu neste estudo,<br />

desapropriar é um ato que apenas pode ser praticado a respeito de quem detém,<br />

legalmente, a proprie<strong>da</strong>de legítima do imóvel. Quer dizer, admiti<strong>da</strong> a hipótese <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de ser legítima, a desapropriação poderá ser promovi<strong>da</strong>, segundo Ribeiro,<br />

quando os demais instrumentos jurídico-legais tornam-se ineficazes para proporcionar o<br />

acesso à proprie<strong>da</strong>de rural. Por outro lado, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello,<br />

"à luz do direito positivo brasileiro, a desapropriação se define<br />

como o procedimento através do qual o Poder Público, fun<strong>da</strong>do<br />

em necessi<strong>da</strong>de pública, utili<strong>da</strong>de pública ou interesse<br />

social, compulsoriamente despoja alguém de um bem certo,<br />

adquirindo-o originariamente mediante indenização prévia, justa e<br />

pagável em dinheiro, salvo no caso de certos imóveis urbanos ou<br />

rurais em que, por estarem em desacordo com a função social<br />

legalmente caracteriza<strong>da</strong> para eles, a indenização far-se-á em<br />

títulos <strong>da</strong> dívi<strong>da</strong> pública, resgatáveis em parcelas anuais e<br />

sucessivas, preservado seu valor real.” 416<br />

A desapropriação, em face do exposto, funciona, em termos de sua aplicação,<br />

como uma faca de dois gumes: Por um lado, possibilita a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de por parte<br />

do particular e, por outro lado, é forma de aquisição originária <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, sob a<br />

perspectiva do Poder Público. Esta é a interpretação e aplicação do instituto, em face<br />

dos sujeitos envolvidos: Estado e particular.<br />

Neste sentido, em face dos pressupostos informados e inferidos neste trabalho,<br />

pode-se concluir que a aplicação prática <strong>da</strong> desapropriação, resta completamente<br />

subverti<strong>da</strong> e sem observância de seus pressupostos e objetivos teóricos e jurídicos. É,<br />

portanto, impossível perder um bem do qual formalmente não se é proprietário e, ao<br />

mesmo tempo, é impossível, outrossim, adquirir-se e, ain<strong>da</strong> mais originariamente, algo<br />

ou, mais especificamente, um bem imóvel que já se possui. A aplicabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

desapropriação, como se pode observar, nestes termos, caracteriza ato de improbi<strong>da</strong>de<br />

do Estado e, ao mesmo tempo, enriquecimento ilícito para o particular 417 que se<br />

beneficiou do mesmo.<br />

416 Curso de direito administrativo. (BANDEIRA DE MELLO, 1996., p. 504).<br />

417 Os dois comportamentos, portanto, ensejam providências criminais. Para o Administrador Público aplicador<br />

irregular do instituto <strong>da</strong> desapropriação, implica a per<strong>da</strong> do cargo, em termos administrativos, sem contar com as<br />

208


A desapropriação por interesse social tem os seus objetivos definidos no artigo<br />

18 do Estatuto <strong>da</strong> Terra 418 , que, na ver<strong>da</strong>de, busca regulamentar o preceito<br />

constitucional <strong>da</strong> função social <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, recaindo, em princípio e por definição,<br />

sobre os minifúndios e latifúndios que se encontrem nas áreas declara<strong>da</strong>s prioritárias<br />

para fins de reforma agrária por Decreto do Governo Federal. Segundo Ol<strong>da</strong>ir Zanata,<br />

que argumenta fun<strong>da</strong>mentando-se no artigo 18 do Estatuto <strong>da</strong> Terra, tratam-se de<br />

imóveis que, pelas suas próprias características, dimensões ou formas de exploração,<br />

não cumprem a exigência legal de sua função social. Neste contexto, Cláudio Ribeiro,<br />

argumenta que<br />

“o INCRA tem acionado esse instrumento em regiões onde se<br />

apresentem eleva<strong>da</strong> incidência de conflitos quanto à proprie<strong>da</strong>de,<br />

posse e uso <strong>da</strong> terra, no intuito de corrigir a estrutura fundiária <strong>da</strong><br />

região-problema.” 419<br />

Entretanto, a posição defendi<strong>da</strong> pelos trabalhadores rurais, pequenos<br />

proprietários e posseiros, nos Congressos <strong>da</strong> CONTAG - Confederação Nacional dos<br />

Trabalhadores <strong>da</strong> Agricultura - apontam críticas fun<strong>da</strong>mentais à implementação deste<br />

instrumento. Entre as críticas apresenta<strong>da</strong>s, por exemplo, nos 3 o e 4 o Congressos, os<br />

Trabalhadores Rurais denunciam:<br />

“que nas áreas já desapropria<strong>da</strong>s por interesse social tem<br />

ocorrido com freqüência casos em que os latifúndios, através<br />

de fraudes no ca<strong>da</strong>stro, inclusive com a conivência do<br />

INCRA, têm conseguido manter grandes áreas irregularmente<br />

classifica<strong>da</strong>s como empresa rural.” 420<br />

(...)<br />

“que em várias dessas áreas os trabalhadores que lutaram pela<br />

desapropriação... têm sofrido inúmeras pressões de latifundiários<br />

e grileiros devido à demora do INCRA em se imitir na posse <strong>da</strong><br />

terra;” 421<br />

“que os últimos governos não cumpriram as recomen<strong>da</strong>ções do Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra em relação às áreas desapropria<strong>da</strong>s por interesse social.” 422 Ou<br />

seja, não promovendo o acesso aos pequenos posseiros, trabalhadores,<br />

arren<strong>da</strong>tários, etc., existentes nestas áreas, geralmente de tensão e conflito;<br />

pelo contrário, incorporando-as ao patrimônio do INCRA e depois, transferindoas<br />

à iniciativa priva<strong>da</strong>.<br />

“que os projetos de colonização, bem como em casos de<br />

desapropriação por tensão social, os critérios de seleção<br />

providências civis (restituição do dinheiro ao erário público) e demais tipificações criminais. Ao particular, por seu<br />

turno, a mesma sorte de providências e punições, no âmbito administrativo, civil e criminal.<br />

418 Ver Lei 4.504/64 (Loc. cit.).<br />

419 RIBEIRO, op. cit., p. 11. Grifos nossos.<br />

420 CONTAG (1985, p. 75). Grifos nossos.<br />

421 Idem, p. 75.<br />

422 Idem., p. 75; grifos nossos.<br />

209


marginalizam os trabalhadores rurais do acesso à terra, além de<br />

beneficiar pessoas sem passado nem vocação agrícola.” 423<br />

A respeito de questões desta natureza, ver, por exemplo, o seguinte depoimento -<br />

e há muitos depoimentos semelhantes - citado por Octávio Ianni, a respeito <strong>da</strong><br />

privatização <strong>da</strong>s “áreas de interesse para o desenvolvimento e segurança, nacionais”, na<br />

faixa de 100 quilômetros <strong>da</strong>s rodovias na Amazônia, que, pelas normas <strong>da</strong> Lei 5.504,<br />

deveriam ser destina<strong>da</strong>s à “reforma agrária”:<br />

“Essas são terras de barão. Quando abriram essa estra<strong>da</strong>.<br />

Disseram que ia ter terra para os pequenos, que ia haver<br />

loteamento para os agricultores que quisessem ocupar lote de<br />

terra e tal. Quando abriram as inscrições já estava tudo<br />

tomado e só por gente <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.” 424<br />

Fenômenos semelhantes, que caracterizam o privilégio de grandes interesses ou<br />

o desrespeito aos direitos legalmente assegurados aos pequenos posseiros, proprietários<br />

e indígenas, são evidenciados nos chamados processos de desapropriação por “utili<strong>da</strong>de<br />

pública”, especialmente nos casos de construção de barragens e hidroelétricas. As<br />

seguintes críticas foram postas no 3 O Congresso <strong>da</strong> CONTAG, realizado em Brasília, de<br />

21 a 25 de maio de 1979:<br />

“(...) que as desapropriações por utili<strong>da</strong>de pública têm sido causa de<br />

desagregação de comuni<strong>da</strong>des rurais e de agravamento do êxodo rural;<br />

(...) que os trabalhadores dessas regiões não têm recebido do<br />

Poder Público nem mesmo as indenizações justas e prévias<br />

estabeleci<strong>da</strong>s pela Constituição Federal.;<br />

que, ao contrário, têm tido suas posses e benfeitorias destruí<strong>da</strong>s<br />

e, quando muito recebem indenizações irrisórias e tardias.” 425<br />

Finalmente, cabe reiterar as afirmações que vêm sendo desenvolvi<strong>da</strong>s a respeito<br />

dos processos de desapropriação, de que os mesmos têm como pressuposto necessário a<br />

existência <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de legítima. Isto significa que as autori<strong>da</strong>des responsáveis pela<br />

gestão <strong>da</strong> Política Fundiária, especialmente as vincula<strong>da</strong>s ao INCRA, que é o Órgão<br />

especializado do Executivo, legalmente responsável por esta área, não podem, em<br />

nenhuma hipótese cometer “equívocos” de propor “desapropriações” e, menos ain<strong>da</strong>,<br />

indenizações, de terras que, no decorrer do processo, vêm a ser revela<strong>da</strong>s como sendo<br />

públicas, nem, muito menos, desapropriá-las para, em segui<strong>da</strong>, revendê-las ou concedêlas<br />

aos antigos “proprietários”, como foi denunciado no Congresso <strong>da</strong> CONTAG e<br />

como se pode deduzir <strong>da</strong> seguinte Acórdão de Agravo de Instrumento, contra o INCRA:<br />

“EMENTA: Ação de desapropriação - Se no seu curso o órgão<br />

desapropriante verificar que o domínio do bem que pretender<br />

423 CONTAG (1979, p.158).<br />

424 (IANNI, 1984, p. 179, grifos nossos). Ver detalhes a respeito de processos similares no Estado do Pará, Paraná e<br />

Mato Grosso em FOWERAKER (op. cit.).<br />

425 CONTAG (1979, pp. 166-167).<br />

210


incorporar compulsoriamente ao seu patrimônio já lhe<br />

pertence, o que lhe cumpre fazer é desistir <strong>da</strong> ação e, pela via<br />

própria, obter reconhecimento <strong>da</strong> condição de proprietário, nunca,<br />

porém, pleitear tal reconhecimento na mesma<br />

expropriatória.” 426<br />

É realmente curioso o “equívoco” cometido pelo “órgão expropriante”, isto<br />

é, o INCRA, como fica evidente nesta sentença do TRF do Mato Grosso. Primeiro, fica<br />

evidente que o INCRA estaria pleiteando a desapropriação de imóvel que “já lhe<br />

pertencia”; segundo, que havia cometido um erro jurídico elementar, de “Petição”, ao<br />

requerer na mesma expropriatória, o reconhecimento de sua condição de proprietário, o<br />

que, como indefere o Juiz, deveria ser proposto “pela via própria”. Parece incrível que a<br />

Procuradoria Jurídica do próprio INCRA desconhecesse tão elementarmente o<br />

procedimento que lhe competia exigir de terceiros.<br />

Entretanto, fatos como este são comuns quando se trata de por em prática<br />

qualquer que seja o tipo de ação fundiária, especialmente quando implica interferir nos<br />

grandes interesses dos especuladores de terras. Que esse tipo de “equívoco” é suspeito,<br />

não resta dúvi<strong>da</strong>s. Especialmente, em se tendo em consideração que as ações de<br />

desapropriação são propostas e conduzi<strong>da</strong>s pela Procuradoria Jurídica do INCRA.<br />

3.2.2.4. Aquisição de Imóveis Rurais e PROTERRA<br />

Em 1971, dentro <strong>da</strong> perspectiva do Governo, de “promover o mais fácil acesso<br />

do homem à terra 427 ”, é instituído, com base no Decreto-lei n o 1.179, de 6 de julho, o<br />

Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agro-indústria do Norte e<br />

Nordeste (PROTERRA) conforme enunciado no artigo 1 o :<br />

“É instituído o Programa de Redistribuição de Terras e de<br />

Estímulo à Agro-indústria do Norte e Nordeste (PROTERRA),<br />

com o objetivo de promover o mais fácil acesso do homem à<br />

terra, criar melhores condições de emprego de mão-de-obra e<br />

fomentar a agro-indústria nas regiões compreendi<strong>da</strong>s nas áreas<br />

de atuação <strong>da</strong> SU<strong>DA</strong>M e <strong>da</strong> SUDENE.” 428<br />

Para se ter uma idéia <strong>da</strong> importância atribuí<strong>da</strong> a este mecanismo de aquisição de<br />

imóveis, foram destinados na<strong>da</strong> menos que quatro bilhões de Cruzeiros, na época, ao<br />

Programa (art. 2 o ), que deveriam ser aplicados nos seguintes fins (art. 3 o ):<br />

“a) aquisição de terras ou sua desapropriação, por interesse<br />

social, inclusive mediante prévia e justa indenização em<br />

dinheiro, nos termos que a lei estabelecer, para posterior ven<strong>da</strong><br />

426 Agravo de Instrumento n o 38.461 - MT. TRF, 3 a Turma, de 21 de março de 1979 9 (In.: Diário <strong>da</strong> Justiça de 24<br />

de outubro de 1979).<br />

427 RIBEIRO (op. cit., p. 11)<br />

428 Decreto-lei n o 1.179, de 6 de julho de 1971 (BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Brasília: 1979.).<br />

211


a pequenos e médios produtores rurais <strong>da</strong> região, com vistas<br />

à melhor e mais racional distribuição de terras cultiváveis; 429<br />

b) empréstimos fundiários a pequenos e médios produtores rurais, para<br />

aquisição de terra própria cultivável ou ampliação de proprie<strong>da</strong>de considera<strong>da</strong><br />

de dimensões insuficientes para exploração econômica e ocupação <strong>da</strong> família<br />

do agricultor;<br />

c) financiamento de projetos destinados à expansão <strong>da</strong><br />

agroindústria, inclusive a açucareira, e <strong>da</strong> produção de<br />

insumos destinados à agricultura;<br />

d) assistência financeira à organização e modernização de<br />

proprie<strong>da</strong>des rurais, à organização ou ampliação de serviços de<br />

pesquisa e experimentação agrícola, a sistemas de armazenagem<br />

e silos, assim como a meios de comercialização, transportes,<br />

energia elétrica e outros;<br />

e) subsídio ao uso de insumos modernos;<br />

f) garantia de preços mínimos para os produtos de exportação;<br />

e<br />

g) custeio de ações discriminatórias de terras devolutas e<br />

fiscalização do uso e posse <strong>da</strong> terra.” 430<br />

Como se pode verificar, tratava-se de um Programa ambicioso e relevante.<br />

Entretanto, evidentemente, seus objetivos não eram facilitar o acesso à terra aos<br />

pequenos produtores, especialmente os sem terra ou com pouca terra. Tratava-se, como<br />

fica evidente no enunciado de seus diferentes objetivos, de incentivar a formação de<br />

empresas rurais, muito especialmente volta<strong>da</strong>s para a “modernização” dos processos<br />

produtivos, entendi<strong>da</strong> esta, como a incorporação de processos e métodos mais<br />

“avançados” de produção, mediante a incorporação de novos insumos e tecnologias,<br />

assim como, pela implementação de métodos de gerência “racional” e, sobretudo,<br />

voltados para a produção de energéticos e exportáveis. Ou seja, tratava-se de um<br />

Programa perfeitamente coerente com o “espírito” defendido na Mensagem 33. Quanto<br />

à sua formulação, pode-se dizer que se tratava de um projeto bem elaborado e que, se<br />

executado como preconizado, apesar de não ter a possibili<strong>da</strong>de de efetivar a “justa”<br />

distribuição <strong>da</strong> terra, teria promovido um relevante incremento <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de e<br />

organização <strong>da</strong> agroindustria nas Regiões Norte e Nordeste. O problema é que, mesmo<br />

neste sentido, o PROTERRA/FUNTERRA fracassaram retumbantemente em atingir os<br />

objetivos a que se propunha 431 .<br />

429 Para este fim foi criado o FUNTERRA (Fundo de Redistribuição de Terras), art. 2 o do Decreto 70.677, de 6 de<br />

junho de 1972 ( BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Brasília: 1972.).<br />

430 Decreto-lei n o 1.179/71 (Loc. cit.)<br />

431 Posição contrária a esta é defendi<strong>da</strong> por Cláudio Ribeiro (RIBEIRO, op. cit., p.12): “Este programa, ao longo<br />

de 13 anos (...) tem proporcionado resultados bastante expressivos com a aquisição de 626 mil hectares<br />

nos Estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará, Piauí e Maranhão, beneficiando cerca de 20 mil<br />

famílias.”<br />

212


O que efetivamente promoveram foi o mais fácil acesso à terra à grupos<br />

específicos, inclusive de profissionais liberais, especialmente <strong>da</strong> área de ciências<br />

agrárias 432 (agrônomos, veterinários, e outros). Esses grupos, além de sempre terem sido<br />

os tradicionais beneficiários de todos os programas oficiais, tiveram, assim, a<br />

possibili<strong>da</strong>de de, não apenas obter recursos para a aquisição <strong>da</strong> terra, mas, também, de<br />

assegurarem amplos e vantajosos financiamentos aos seus projetos. Mais uma vez,<br />

pode-se dizer, foi promovi<strong>da</strong> uma determina<strong>da</strong> e específica “redistribuição” de terras e<br />

recursos, entretanto, não para as populações trabalhadoras, sem terra ou com pouca<br />

terra.<br />

Entretanto, como se vem tentando evidenciar neste capítulo, esta era a “Reforma<br />

Agrária e Agrícola” conti<strong>da</strong> no Projeto encaminhado pela Mensagem 33 e posta em<br />

prática pelos Governos Militares. Este era o cerne de sua Política Fundiária e de<br />

Desenvolvimento Rural então proposta.<br />

Essas afirmações podem ser confirma<strong>da</strong>s, entre outros <strong>da</strong>dos e depoimentos,<br />

pelas seguintes colocações levanta<strong>da</strong>s pela CONTAG ao apresentar, em 1984, uma<br />

avaliação sobre o Programa Nacional de Política Fundiária dos Governos Militares:<br />

“No que diz respeito à redistribuição de terras o PROTERRA não<br />

só representou um retrocesso na Reforma Agrária(...)<br />

Ressuscitou o pagamento em dinheiro <strong>da</strong>s indenizações por<br />

desapropriação, em flagrante contradição com o que<br />

preconizava a legislação em vigor, isto é, o pagamento <strong>da</strong>s<br />

indenizações em Títulos <strong>da</strong> Dívi<strong>da</strong> Pública.<br />

Na prática ficou evidenciado que o PROTERRA não passou de<br />

um mecanismo de crédito e incentivo financeiro fáceis e vultosos<br />

para o latifundiário e como instrumento de liberação de mão-deobra<br />

e seu aviltamento.” 433<br />

3.2.2.5. Colonização.<br />

Como foi amplamente discutido nos capítulos anteriores, no Brasil os processos<br />

de colonização, especialmente após a aprovação <strong>da</strong> Lei 601 de 1.850, sempre foram<br />

concebidos como forma de atração e fixação de populações pobres, inicialmente, de<br />

migrantes estrangeiros, depois, já nas primeiras déca<strong>da</strong>s do século XX, de migrantes<br />

nacionais, ou em regiões de fronteira, como o objetivo genérico de ocupação e<br />

desbravamento, ou nas áreas domina<strong>da</strong>s pela produção para exportação, como forma de<br />

assegurar a mão-de-obra necessária a estes empreendimentos.<br />

Nesta perspectiva, os processos de colonização, apesar de incorporar tais<br />

objetivos, na ver<strong>da</strong>de, situavam-se em um contexto mais amplo de política de ocupação<br />

de terras e desbravamento: tratava-se de demarcar com clareza a relevância e os<br />

432 Ver o inciso V do artigo 25 <strong>da</strong> Lei 4.504/64, que regula as priori<strong>da</strong>des para ven<strong>da</strong> <strong>da</strong>s terras públicas, e que são<br />

os mesmos que regulam as ações, neste sentido, para os financiamentos do PROTERRA/FUNTERRA.<br />

433 CONTAG (1982, pp. 3-4). Grifos nossos.<br />

213


objetivos deste processo. Ele teria que ser implementado de forma complementar e não<br />

antagônica com os interesses do latifúndio ou <strong>da</strong>s “grandes empresas” agropecuárias:<br />

deveriam, ao contrário, funcionar como suporte ao desenvolvimento destas 434 .<br />

Exatamente por isso os processos de colonização sempre foram pensados, pelos<br />

Governos brasileiros, ou com a característica de desbravamento de novas fronteiras ou<br />

como celeiro de mão-de-obra para as grandes fazen<strong>da</strong>s. E sempre longe dos domínios<br />

do latifúndio, especialmente quando se tratasse de colonização volta<strong>da</strong> para a fixação de<br />

populações pobres mediante o acesso a pequenas parcelas de terra.<br />

Na concepção do Estatuto <strong>da</strong> Terra, apesar de se ter utilizado de uma<br />

terminologia atualiza<strong>da</strong>, aparentemente, coerente com determina<strong>da</strong>s concepções<br />

“teóricas avança<strong>da</strong>s”, o espírito do Projeto de colonização continuava o mesmo.<br />

Especialmente quando se tratava <strong>da</strong> “resolução” de problemas de tensão e conflitos<br />

sociais. Desde o início, mas especialmente a partir <strong>da</strong> implementação do Programa de<br />

Integração Nacional (PIN), no Governo do General Emílio Garastazu Médici, a idéia era<br />

associar as terras “vazias” <strong>da</strong> Amazônia aos homens sem terra, especialmente do<br />

Nordeste.<br />

Mas não apenas isto: logo começaram a aparecer os argumentos referentes à<br />

“crise minifundiária” <strong>da</strong> região Sul, em especial do Paraná e do Rio Grande do Sul, que,<br />

por suposto, passava a exigir o deslocamento de populações dessas áreas para as regiões<br />

onde houvesse maior disponibili<strong>da</strong>de de terras. É no contexto deste tipo de<br />

argumentação que será promovido um amplo programa de aliciamemto de pequenos<br />

sitiantes 435 desta região para que vendessem suas áreas e se deslocassem para áreas<br />

maiores nas Regiões pioneiras - inicialmente, no Mato Grosso e, na seqüência, na<br />

Amazônia, especialmente Rondônia 436 . Assim, surge um novo argumento: aliar a<br />

experiência destes agricultores à formação de pequenas e médias empresas, na<br />

Amazônia e no Centro-Oeste.<br />

Com base nestas duas “concepções”, começam a ganhar corpo, “teoricamente”<br />

as teses <strong>da</strong> Colonização Particular em oposição à Colonização Oficial. Esta destinandose<br />

aos migrantes mais pobres e desprovidos de recursos materiais e experiência agrícola<br />

“mais avança<strong>da</strong>”; aquela, destina<strong>da</strong> a agricultores, especialmente <strong>da</strong> Região Sul, ou<br />

434 São relevantes, a este respeito, os trabalhos de José Vicente Tavares dos Santos (citados), que procedem a uma<br />

análise fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> dos processos de colonização desenvolvidos no Brasil, muito particularmente, as articulações<br />

entre a Colonização promovi<strong>da</strong> sob a égide do Estatuto <strong>da</strong> Terra e suas repercussões na luta pela terra no Rio Grande<br />

do Sul. Muito importante é o estudo de Octávio Ianni, “Colonização e Contra-Reforma Agrária”, onde ele realiza<br />

uma excelente análise <strong>da</strong> articulação dos processos de colonização com a reconcentração fundiária, sobretudo nas<br />

regiões sul e sudeste, numa perspectiva que antecipa, até certo ponto, as constatações feitas por José Vicente Tavares<br />

dos Santos.<br />

435 Ver a respeito, especificamente do problema dos Projetos de Colonização envolvendo pequenos sitiantes do Rio<br />

Grande do Sul, o excelente estudo de José Vicente Tavares dos Santos (SANTOS, 1993).<br />

436 Essa questão foi trata<strong>da</strong> de forma competente e profun<strong>da</strong> por Octávio Ianni, em seu livro Colonização e Contra-<br />

Reforma Agrária. José Vicente Tavares dos Santos procedeu a um excelente estudo deste problema em Matuchos,<br />

Exclusão e Luta (ambos citados). Ver igualmente a tese de Mestrado do Autor (JONES, 1987). Ver o depoimento do<br />

Presidente <strong>da</strong> Associação de Empresários a Amazônia à CPI do Sistema Fundiário (citado por JONES, 1987, p. 95).<br />

214


estrangeiros, que pudessem aliar experiência agrícola a alguma disponibili<strong>da</strong>de de<br />

recursos, sobretudo financeiros. Estes, por suposto, poderiam pagar pelos lotes, com o<br />

produto <strong>da</strong> ven<strong>da</strong> de suas pequenas parcelas no Sul, resultando assim, num duplo efeito:<br />

por um lado, possibilitando a reconcentração <strong>da</strong>s áreas de empresas agropecuárias no<br />

Sul, por outro lado, assegurando os lucros <strong>da</strong> especulação imobiliária 437 promovi<strong>da</strong><br />

pelas Empresas de Colonização Particular. Este fato é claramente colocado por Paulo<br />

Yokota, então Presidente do INCRA, nos seguintes termos:<br />

“Nas conjunturas agropecuárias favoráveis, os resultados colhidos<br />

no Centro-Sul foram utilizados na ampliação de áreas nas regiões<br />

Centro-Oeste, principalmente para assentamento de filhos de<br />

colonos que foram pioneiros no Sul. Aproveitando mão-de-obra<br />

qualifica<strong>da</strong>, treina<strong>da</strong> numa agropecuária de melhor nível<br />

tecnológico, a colonização priva<strong>da</strong> está gerando uma classe<br />

média rural de grande importância, tanto na produção pecuária,<br />

de cereais, como em alguns produtos de alto valor comercial,<br />

como café, cacau, pimenta(...). As necessi<strong>da</strong>des de<br />

investimento são eleva<strong>da</strong>s e as limitações de financiamentos<br />

a médio e longo prazos constituem restrições para a<br />

ampliação dos projetos de colonização priva<strong>da</strong>. Na nova<br />

conjuntura de fretes mais caros e custos financeiros mais realistas<br />

as ativi<strong>da</strong>des exerci<strong>da</strong>s nestes projetos deverão se deslocar<br />

para os que proporcionam retornos reais positivos,<br />

obrigando a uma maior racionali<strong>da</strong>de.”<br />

“Os projetos de colonização oficial estão mais presentes em<br />

frentes realmente pioneiras, procurando atender a uma<br />

cama<strong>da</strong> mais modesta <strong>da</strong> população, <strong>da</strong>ndo eleva<strong>da</strong> priori<strong>da</strong>de<br />

aqueles que foram obrigados a se deslocar de seus antigos locais<br />

de trabalho, pela formação de reservas indígenas, pela<br />

construção de projetos de hidrelétricos, por questões fundiárias.<br />

Isso além de atender à corrente de migração expontânea.” 438<br />

É exatamente este o sentido em que é regulamenta<strong>da</strong> a Colonização Oficial, no<br />

Capítulo II, Seção I, <strong>da</strong> Lei 4.504 de novembro de 1964, e a Colonização Particular, na<br />

seção II do mesmo capítulo. Portanto, mais uma vez, os projetos implementados nesta<br />

áreas estavam claramente postos no Estatuto <strong>da</strong> Terra e claramente referidos nas<br />

diretrizes expostas na Mensagem 33 do General Humberto Castelo Branco.<br />

Aliás, essas conclusões são claramente coloca<strong>da</strong>s por Cláudio Ribeiro, Diretor<br />

do INCRA, no texto citado, ao afirmar que:<br />

“A colonização propriamente dita é o complemento essencial<br />

<strong>da</strong> desapropriação e intervenção do Poder Público na<br />

proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> <strong>da</strong> terra rural, que não cumpre sua<br />

função social, defini<strong>da</strong> em Lei. É também o instrumento<br />

utilizado pelo Poder Público para colocar em uso terras<br />

discrimina<strong>da</strong>s e arreca<strong>da</strong>s, transferindo-as ao domínio<br />

437 Ver detalhes acerca deste processo no próximo capítulo.<br />

438 YOKOTA, op. cit., p.8. Grifos nossos.<br />

215


privado. Ressalte-se a colonização como instrumento de<br />

desenvolvimento em áreas pioneiras, regulando e <strong>da</strong>ndo<br />

tratamento aos fluxos migratórios naturais ou orientados por<br />

ações do Governo.” 439<br />

Assim, também em se tratando <strong>da</strong>s ações de Colonização, pode-se afirmar que<br />

elas foram implementa<strong>da</strong>s exatamente como eram concebi<strong>da</strong>s no corpo do modelo de<br />

desenvolvimento rural e de “reforma agrária” proposto pela Mensagem 33 e pelo<br />

Estatuto <strong>da</strong> Terra. Se estas ações não promoveram, efetivamente, como de fato não o<br />

fizeram, a ampla distribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de para os posseiros e pequenos agricultores<br />

com pouca terra ou para os trabalhadores rurais sem terra, é porque o sentido <strong>da</strong><br />

proposta do Governo não pressupunha esta alternativa como uma meta relevante ao<br />

desenvolvimento rural, mas apenas como um meio de amenizar as tensões sociais mais<br />

graves e suprimir conflitos no campo.<br />

Ou seja, o Projeto de Reforma Agrária do Governo era distinto <strong>da</strong> leitura feita do<br />

mesmo pelas cama<strong>da</strong>s pobres e pelos trabalhadores rurais do campo, que tinham a<br />

expectativa de ter acesso a um pequeno pe<strong>da</strong>ço de terra, ou, como bem colocou, José<br />

Vicente do Santos, que alimentavam o “sonho <strong>da</strong> terra”. Mas isso não significa que o<br />

Estatuto <strong>da</strong> Terra, tal como foi concebido não tenha sido executado, ao contrário: ele o<br />

foi em to<strong>da</strong> a sua essência. A análise dos instrumentos acima não deixa dúvi<strong>da</strong>s quanto<br />

a este fato.<br />

3.2.3. Titulação de Terras Públicas: Alienação e Privilégios<br />

Este capítulo, que analisa a proposta <strong>da</strong> Política Fundiária do Governo, tal como<br />

exposta na Mensagem 33 e regulamenta<strong>da</strong> pela Lei 4.504/64 e normas e decretos que se<br />

lhes seguiram durante todo o período dos Governos Militares, não poderia ser concluído<br />

sem uma análise <strong>da</strong>s formas de alienação ou privatização <strong>da</strong>s terras públicas.<br />

Afinal, este foi o objetivo fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> regulamentação do imperativo<br />

constitucional de 1946, proposto na Mensagem 33, que encaminhava o Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra ao Congresso Nacional. Antípo<strong>da</strong>, do Estatuto do Trabalhador Rural, reduzia o<br />

problema <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de enquanto condição inseparável <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de produtiva,<br />

portanto envolvendo relações entre o capital e o trabalho, à uma simples relação formal<br />

entre o sujeito e a coisa: o homem e a terra.<br />

Neste contexto, o Estatuto <strong>da</strong> Terra era, efetivamente, “<strong>da</strong> Terra” e não do<br />

Trabalhador Rural, configurando-se, neste contexto, exatamente como o instrumento<br />

normativo que possibilitaria ao Governo, assegurar a subordinação do trabalho pela<br />

subordinação do processo de acesso à terra a determinados interesses bastante<br />

específicos. Tratava-se, senão de regulamentar efetivamente to<strong>da</strong>s as terras ilegalmente<br />

em poder particular (o “fato consumado”), pelo menos, de promover, dentro de um<br />

439 RIBEIRO, op. cit., p. 12. Grifos nossos.<br />

216


determinado e específico projeto de desenvolvimento econômico, e de integração <strong>da</strong><br />

agricultura à economia nacional, a alienação <strong>da</strong>s terras públicas dentro de uma<br />

específica finali<strong>da</strong>de.<br />

Subordinado, desta forma, o acesso à terras aos imperativos <strong>da</strong> geração de<br />

excedentes econômicos, o modelo de desenvolvimento proposto de fato colocava o<br />

acesso à proprie<strong>da</strong>de fora - e longe - do alcance dos trabalhadores rurais.<br />

Era, portanto, efetivamente um Estatuto <strong>da</strong> Terra e não do trabalhador rural.<br />

Pois, como bem acerta<strong>da</strong>mente José de Souza Martins definiu o Estatuto <strong>da</strong> Terra:<br />

“O que os militares tentaram fazer (...) juntamente com a<br />

elaboração do Estatuto <strong>da</strong> Terra, foi desenvolver uma política de<br />

ocupação <strong>da</strong> Amazônia, como meio de resolver a contradição que<br />

dificultava a solução política para o problema <strong>da</strong> associação do<br />

grande capital com a proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra. O Estatuto viabilizou<br />

essa associação, e a política para a Amazônia, com a criação <strong>da</strong><br />

Superintendência do Desenvolvimento <strong>da</strong> Amazônia - SU<strong>DA</strong>M - ,<br />

tornou-se real.(...) Através do governo militar, os grandes<br />

capitalistas passaram a ser subsidiados para se tornarem,<br />

também, grandes proprietários de terra. (...) No caso brasileiro, os<br />

militares constataram que, se a proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra representa<br />

um impecilho ao desenvolvimento do capital na agricultura, é<br />

necessário remover esse impecilho, sem impugnar ou limitar o<br />

direito de proprie<strong>da</strong>de, que ocorreria através <strong>da</strong> nacionalização <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de (<strong>da</strong> terra) ou através <strong>da</strong> reforma agrária.” 440<br />

Para o bem ou para o mal, foi efetivamente promovi<strong>da</strong> uma ampla modificação<br />

no caráter e na forma <strong>da</strong> estrutura fundiária brasileira. Se isso implicou - como de fato<br />

implicou - a manutenção e, até, agravamento, <strong>da</strong> concentração <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária,<br />

talvez a explicação deste fato possa ser <strong>da</strong><strong>da</strong> pelo próprio caráter do modelo de<br />

desenvolvimento econômico proposto que, fun<strong>da</strong>do na necessi<strong>da</strong>de de aporte de<br />

recursos de forma concentra<strong>da</strong>, implicava determinado nível de excludência dos<br />

trabalhadores com relação à proprie<strong>da</strong>de territorial: esta era uma restrição do próprio<br />

modelo, aliás, implícita no conceito do minifúndio como uni<strong>da</strong>de de produção<br />

impossível de ser manti<strong>da</strong>, por suas próprias condições e características endógenas.<br />

É, portanto, no contexto deste modelo e desta concepção do desenvolvimento<br />

econômico, segundo os quais, os problemas <strong>da</strong> superação <strong>da</strong> pobreza e <strong>da</strong> excludência,<br />

social, em particular, a rural, apenas poderiam ser efetivamente resolvidos pela<br />

ampliação <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> economia rural (e industrial) de absorver mão-de-obra e<br />

gerar ren<strong>da</strong>s, economias de escala e excedentes, sobretudo, exportáveis, e não<br />

440 José de Souza Martins. As lutas dos trabalhadores rurais na conjuntura adversa. In: Direito insurgente II. 1988-<br />

1989. Anais <strong>da</strong> reunião do conselho do Instituto Apoio Jurídico Popular. Rio de Janeiro: S.d., p. 11.<br />

217


necessariamente pela “distribuição” de pequenas parcelas 441 de terras, que o processo de<br />

privatização <strong>da</strong>s terras públicas é colocado.<br />

Destarte, apenas tendo em consideração estas características do modelo é que se<br />

poderá compreender as diferentes formas de alienação de terras públicas ou de<br />

legitimação de terras devolutas em poder de particulares, conforme os instrumentos<br />

jurídicos e administrativos legalmente estabelecidos para este mister pelos Governos<br />

Militares.<br />

3.2.3.1. Legitimação de Posses<br />

O processo de legitimação de posses, legalmente assegurado desde o longínquo<br />

instituto de sesmaria e, sobretudo, consagrado na Lei 601 de 1850 442 , sofreu, com a<br />

instituição <strong>da</strong>s normas e regulamentos que se seguiram à promulgação <strong>da</strong> Lei 4.504, de<br />

novembro de 1964, um profundo e imenso recuo. Foram estabeleci<strong>da</strong>s as regras<br />

fun<strong>da</strong>mentais que iriam possibilitar um amplo e sistemático processo ilegítimo (mas,<br />

aparentemente, “legal”) de expulsão dos pequenos posseiros de suas terras de trabalho.<br />

Pelas novas regras e regulamentos estabelecidos a partir de 1964, a legitimacão<br />

de posses <strong>da</strong>r-se-á para áreas de até 100 hectares e consiste, não no fornecimento, pelo<br />

Estado, do título de proprie<strong>da</strong>de, mas em uma Licença de Ocupação (ou Concessão de<br />

Direito Real de Uso, assegurado, em princípio, Constituição Federal de 1967, no seu<br />

Art. 171) 443 , com prazo mínimo de quatro anos, aos posseiros que preenchessem as<br />

exigências de mora<strong>da</strong> habitual e cultura efetiva, diretamente efetua<strong>da</strong>s pelo mesmo e<br />

sua família, desde que não fossem proprietários rurais. Ao final deste prazo, teria ain<strong>da</strong><br />

o posseiro (pequeno posseiro, bem entendido) que comprovar a sua “capaci<strong>da</strong>de para<br />

desenvolver a área”. Ain<strong>da</strong> assim, ele teria apenas a preferência para adquirir o lote,<br />

pagando pelo mesmo o “valor histórico <strong>da</strong> terra nua”, constante na tabela do INCRA,<br />

sujeitando-se além destas, as seguintes condições:<br />

“Art. 29 O ocupante de terras públicas, que as tenha tornado<br />

produtivas com o seu trabalho e o de sua família, fará jus à<br />

legitimação <strong>da</strong> posse <strong>da</strong> área contínua até 100 (cem) hectares,<br />

desde que preencha os seguintes requisitos:<br />

I. não seja proprietário de imóvel rural;<br />

II. comprove mora<strong>da</strong> permanente e cultura efetiva, pelo prazo<br />

mínimo de 1 (um) ano.<br />

1 o A legitimação <strong>da</strong> posse de que trata o presente artigo<br />

consistirá no fornecimento de uma licença de ocupação, pelo<br />

prazo mínimo de 4 (quatro) anos, findo o qual, o ocupante terá a<br />

441 Ou, como dizia o Senhor Roberto Campos, “pela distribuição de um bolo insuficiente”: Ver, o capítulo 5<br />

adiante, onde estes argumentos de Roberto Campo são discutidos. Também, SIMONSEN & CAMPOS (1976),<br />

especialmente o Capítulo X.<br />

442 Ver capítulos 1 e 2 deste estudo.<br />

443 Esta mesma condição é, inclusive, manti<strong>da</strong> na Constituição Federal de 1988, no seu Art. 183, parágrafo 1 o .<br />

218


preferência para a aquisição do lote, pelo valor histórico <strong>da</strong><br />

terra nua, satisfeitos os requisitos de mora<strong>da</strong> permanente e<br />

cultura efetiva e comprova<strong>da</strong> a sua capaci<strong>da</strong>de para desenvolver<br />

a área ocupa<strong>da</strong>.” 444<br />

Observe-se que se tratava, evidentemente, de uma arbitrarie<strong>da</strong>de e, além disso,<br />

em absoluta afronta ao ordenamento jurídico brasileiro, que sempre assegurou o direito<br />

de aquisição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra com fun<strong>da</strong>mento na posse mansa e pacífica,<br />

explora<strong>da</strong> diretamente pelo posseiro e sua família 445 .<br />

Como será analisado no estudo acerca <strong>da</strong>s “outras formas” de alienação e<br />

titulação de terras públicas, a restrição acima, que se referia exatamente aos pequenos<br />

posseiros, não terá o menor efeito sobre as pretensões de grandes especuladores,<br />

posseiros e grileiros especializados.<br />

Apenas para se fazer uma comparação entre as duas regras de legitimação de<br />

posses - a de 1850 e a atual - veja-se como esta questão era coloca<strong>da</strong> na Lei de Terras:<br />

“Art. 5 o Serão legitima<strong>da</strong>s as posses mansas e pacíficas,<br />

adquiri<strong>da</strong>s por ocupação primária, ou havi<strong>da</strong>s do primeiro<br />

ocupante, que se acharem cultiva<strong>da</strong>s ou com princípio de cultura<br />

e mora<strong>da</strong> habitual do respectivo posseiro ou de quem o<br />

represente, guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as regras seguintes:<br />

1 o Ca<strong>da</strong> posse em terras de cultura ou em campos de criação,<br />

compreenderá, além do terreno aproveitado ou do necessário<br />

para pastagem dos animais que tiver o posseiro, outro tanto mais<br />

de terreno devoluto que houver contíguo, contanto que em<br />

nenhum caso a extensão total <strong>da</strong> posse exce<strong>da</strong> a uma sesmaria<br />

para cultura ou criação, igual às últimas concedi<strong>da</strong>s na mesma<br />

comarca ou na mais vizinha 446 .<br />

Só que neste caso, como foi estu<strong>da</strong>do e discutido no capítulo 2, o objetivo era<br />

assegurar os direitos e, evidentemente, os privilégios <strong>da</strong>s grandes posses. Na Lei de<br />

444 Lei 6.383, de 7 de dezembro de 1976 (BRASIL. Congresso Nacional. Brasília: 1976.). Grifos nossos. Embora<br />

esteja para além do período de análise deste trabalho, é interessante tecer-se alguns comentários a respeito <strong>da</strong><br />

continui<strong>da</strong>de destas questões: A Constituição Federal de 1988 introduziu o contraditório nos processos<br />

administrativos (Art. 5 o , LV). Como avalia Luiz Lanzellotti Baldez: “Os juizes ... não podem mais conceder<br />

liminares sem a audiência e defesa <strong>da</strong> parte ré - a comuni<strong>da</strong>de dos posseiros ocupantes <strong>da</strong> terra<br />

(litisconsórcio), presença necessária no processo para que tenha caracterizado o contraditório. Esse é o<br />

maior ganho <strong>da</strong>s ocupações na Constituição.” Cf. A terra na Constituição. In: Direito insurgente II. 1988-1989.<br />

Anais <strong>da</strong> reunião do conselho do Instituto Apoio Jurídico Popular. Rio de Janeiro: S.d., p. 88.<br />

445 O 3 o do artigo 153 <strong>da</strong> Constituição Federal de 1967, ao afirmar que “a lei não prejudicará o direito<br />

adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julga<strong>da</strong>”, rigorosamente assegurava as “posses legitimas”, assim<br />

defini<strong>da</strong>s desde a Lei 601 de 1850, e por to<strong>da</strong>s as legislações ulteriores, as posses mansas e pacíficas, adquiri<strong>da</strong>s de<br />

boa-fé e efetivamente explora<strong>da</strong>s pelos respectivos posseiros e suas famílias. Esse direito à legitimação, amplamente<br />

assegurado na Lei 601 de 1850, como se viu no capítulo 2, (para garantir privilégios dos grandes posseiros) mas que<br />

também se estendiam aos pequenos, foi, para estes últimos, gra<strong>da</strong>tivamente restringido, até reduzir-se a 25 hectares.<br />

A Constituição de 1967, aparentemente, beneficia os pequenos posseiros, ampliando o limite para 100 hectares<br />

(art.171). Entretanto, transforma o direito líquido e certo de legitimação, restringido apenas pela exploração efetiva e<br />

mora<strong>da</strong> habitual, em um “direito” que será disposto pela Lei Federal, que, como se vê acima é reduzido a quase na<strong>da</strong>.<br />

Trata-se <strong>da</strong> antiga tradição do Executivo de se utilizar <strong>da</strong> alternativa legal para “<strong>da</strong>r” formalmente, com uma mão e<br />

“retirar”, efetivamente, com a outra.<br />

446 Lei 601 , de 18 de setembro de 1850 (In.: MEAF, op. cit., pp.357-361).<br />

219


1976 e no Estatuto <strong>da</strong> Terra, as formas de assegurar os mesmos privilégios são<br />

juridicamente efetivas e especializa<strong>da</strong>s, como será evidenciado pela análise que realiza a<br />

seguir.<br />

3.2.3.2. Alienação com Dispensa de Licitação<br />

Esta mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de alienação, que procura, aparentemente, compensar as per<strong>da</strong>s<br />

impostas aos pequenos posseiros, aproxima-se <strong>da</strong> norma consagra<strong>da</strong> na Lei 601 de 1850<br />

e respectivo Regulamento, em vários sentidos. Destina-se à alienação de grandes áreas,<br />

até 3.000 hectares, mantidos os requisitos de posse mansa e pacífica por mais de dez<br />

anos, residência habitual e cultura efetiva e direta pelo posseiro e sua família. Trata-se,<br />

outrossim, de um processo de alienação de terras públicas, precedido de Decreto Federal<br />

que autorize a dispensa de licitação, além do pagamento do “valor <strong>da</strong> terra nua”. Então<br />

não se trata de legitimação, mas de ven<strong>da</strong> de terras públicas; não se trata, também, de<br />

reconhecimento do direito de posse, de quem trabalha na terra e a torna produtiva, mas,<br />

de assegurar de forma seletiva, o direito de adquirir a proprie<strong>da</strong>de mediante<br />

determinados critérios de seleção de clientes.<br />

Veja-se que tais exigências, efetivamente, colocam fora desse tipo de<br />

procedimento a grande massa de pequenos posseiros. Além do pagamento do preço <strong>da</strong><br />

terra nua, que apesar de ser “irrelevante” para os grandes posseiros e, sobretudo para<br />

grileiros especializados e especuladores; era “proibitivo” para os pequenos posseiros e<br />

agricultores - neste caso, fazendo lembrar os critérios o preço adequado, de Wakefield.<br />

Além disto, a exigência de Decreto Federal de dispensa de licitação deixa claro que este<br />

procedimento era exclusivo para os processos de apropriação privilegia<strong>da</strong> e excludentes,<br />

em relação ao resto <strong>da</strong> população que, legitimamente, explorava suas pequenas posses,<br />

muitas vezes há muitas gerações. Este procedimento se constituiu, de fato, em um dos<br />

métodos <strong>da</strong> “grilagem especializa<strong>da</strong>” na qual o “proprietário” já se apresentava diante<br />

do posseiro munido do respectivo “título legítimo de proprie<strong>da</strong>de.” 447 Como se pode<br />

verificar, mais uma vez as autori<strong>da</strong>des fundiárias se utilizam <strong>da</strong> linguagem cifra<strong>da</strong> do<br />

jargão jurídico, não apenas para restringir os direitos reais dos pequenos posseiros, mas,<br />

sobretudo, para facilitar a alienação de terras públicas, inclusive, ocupa<strong>da</strong>s por posseiros<br />

e indígenas, para a iniciativa priva<strong>da</strong>. Este tipo de procedimento consagra, portanto,<br />

legalmente, privilégios.<br />

3.2.3.3. Concessão com Dispensa de Licitação.<br />

Essa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de alienação e titulação de terras públicas, de forma mais<br />

profun<strong>da</strong> que a anterior, configura-se em um ver<strong>da</strong>deiro monumento jurídico à grilagem<br />

447 Ver a respeito, o Relatório <strong>da</strong> CPI do Sistema Fundiário (CÂMARA <strong>DO</strong>S DEPUTA<strong>DO</strong>S, 1979).<br />

220


especializa<strong>da</strong>, à ilegali<strong>da</strong>de e à fraude. Trata-se de uma ver<strong>da</strong>deira “obra prima” do<br />

estelionato no campo <strong>da</strong> legislação fundiária.<br />

Ocupa-se, essa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de titulação de terras públicas em favor de<br />

particulares, de legitimar títulos ilegítimos. Ou seja, “em áreas de até 600 vezes o<br />

módulo de exploração indefini<strong>da</strong> 448 ” - isto é, de latifúndios, conforme a definição do<br />

Estatuto <strong>da</strong> Terra - contemplando, indistintamente,<br />

“pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, detentoras de<br />

áreas transcritas no registro imobiliário, com vícios insanáveis,<br />

cuja cadeia dominial tenha sido INICIA<strong>DA</strong> EM 28 DE JUNHO DE<br />

1966 449 .”<br />

Só faltou a esta regra a referência ao nome ou nomes <strong>da</strong>s “pessoas físicas ou<br />

jurídicas de direito privado” a que se destinava este privilégio. “vícios insanáveis”<br />

em linguagem jurídica, significa fraude, nuli<strong>da</strong>de, documento forjado, ilegal. Como<br />

então proceder à mágica de tornar legítimos títulos sabi<strong>da</strong>mente ilegítimos? Como se<br />

disse acima, este fato dispensa maiores comentários: trata-se de um monumento ao<br />

privilégio. Por isso mesmo preferiu-se explicitar este procedimento com base na citação<br />

de trecho do Trabalho do Diretor de Departamento de Desenvolvimento Rural do<br />

INCRA, Cláudio José Ribeiro, portanto, pessoa absolutamente insuspeita, neste caso<br />

específico, para a definição dessa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de “alienação, ven<strong>da</strong> e titulação” de<br />

terras públicas.<br />

É claro que havia, também, determina<strong>da</strong>s exigências: “o prévio cancelamento<br />

dos registros” - que seria desnecessário, posto se tratam, juridicamente, de títulos<br />

nulos - e a “implementação de projeto de relevante interesse nacional”,<br />

naturalmente, definido como tal pelas mesmas autori<strong>da</strong>des que tornaram legítimos<br />

qualquer documento ilegal.<br />

“A concessão se formaliza com a expedição de Contrato de<br />

Concessão de Terras Públicas, antecedido de Resolução do<br />

Senado Federal, de Decreto Federal autorizativo de dispensa<br />

de licitação e o pagamento <strong>da</strong> terra nua pela pauta vigente no<br />

INCRA.” 450<br />

Segundo Ol<strong>da</strong>ir Zanatta, diretor do Departamento de Recursos Fundiários do<br />

INCRA, tentando minimizar a formulação absolutamente casuística desta norma de<br />

alienação de terras devolutas <strong>da</strong> União para a iniciativa priva<strong>da</strong>, defendia, no Simpósio<br />

Internacional de Experiência Fundiária, realizado em Salvador, em 1984, que o Contrato<br />

de Concessão de Domínio de Terras Públicas,<br />

448 RIBEIRO, op. cit., p.16.<br />

449 Citado em RIBEIRO, op. cit., p.16. Grifos nossos.<br />

450 RIBEIRO, op. cit.: 16. Grifos nossos.<br />

221


“foi uma forma adota<strong>da</strong> para proteger investimentos<br />

pioneiros na Amazônia. Teve pouca aplicação e está<br />

praticamente em desuso.”<br />

Difícil compreender uma norma tão casuística, ilegal e <strong>da</strong>nosa a probi<strong>da</strong>de<br />

administrativa e ao patrimônio <strong>da</strong> União. Observe-se que, diante de seu flagrante caráter<br />

de fraude contra o patrimônio do país, busca-se agregar um conjunto de “exigências” e<br />

especificações com a níti<strong>da</strong> intenção de oferecer-lhe uma “estética” de justificação:<br />

afirma-se que se destinava a “proteger investimentos pioneiros” (de 28 de junho<br />

de 1968!).<br />

Por outro lado, segundo os defensores deste procedimento, o mesmo<br />

pressupunha a “implantação de projetos de relevante interesse regional”, além de<br />

exigir a aprovação do Senado Federal (o que significa afirmar que se tratam de áreas<br />

que excediam ao limite constitucionalmente estabelecido para alienação de terras<br />

públicas independentemente de autorização). Para finalizar, afirmam que o rigor do<br />

procedimento exigia, ain<strong>da</strong>, o necessário “Decreto Federal” dispensando a licitação<br />

pública (ou seja, a concorrência). Tudo isto, na ver<strong>da</strong>de não justifica nem consegue<br />

ocultar o evidente caráter de apropriação e legitimação privilegia<strong>da</strong> 451 e de “grilagem<br />

altamente especializa<strong>da</strong>”, assegurados por esta norma.<br />

3.2.3.4. Alienação em Concorrência Pública: Licitação 452<br />

Trata-se de outra mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de transferência de domínio de grandes extensões<br />

de terras públicas para particulares, sob a capa, mais uma vez, “do interesse<br />

nacional”, pressupostamente compatibilizados os interesses privados, com os planos<br />

de desenvolvimento 453 . Trata-se de alienação de áreas públicas de até 3.000 hectares,<br />

ou seja, o limite máximo permitido pela Constituição Federal, independentemente <strong>da</strong><br />

autorização do Senado Federal. O negócio se concretiza através de um “Contrato de<br />

Alienação de Terras Públicas” ou “Promessa de Compra e Ven<strong>da</strong>”, conforme o caso, no<br />

qual o adquirente obrigava-se a determina<strong>da</strong>s cláusulas resolutivas que, se não<br />

cumpri<strong>da</strong>s, <strong>da</strong>riam, teoricamente, ensejo à anulação do processo de alienação,<br />

retornando a área ao Patrimônio <strong>da</strong> União. Segundo Ol<strong>da</strong>ir Zanatta esse tipo de negócio<br />

foi amplamente utilizado nas “regiões pioneiras, especialmente Pará e Rondônia.”<br />

Mais uma vez, estava aberta a possibili<strong>da</strong>de de “Ven<strong>da</strong>s” de grandes extensões<br />

de terras públicas <strong>da</strong> União, bastando que fossem apresentados Projetos que,<br />

formalmente, fossem considerados como “relevantes ao desenvolvimento regional” e<br />

compatíveis com os Planos de Desenvolvimento.<br />

451 Além disto, se to<strong>da</strong>s estas exigências fossem cumpri<strong>da</strong>s, especialmente a autorização do Senado e o Decreto<br />

Presidencial, isto apenas forneceria a prova material de que se tratava de uma fraude em larga escala, envolvendo<br />

vários escalões do Governo, inclusive, a “Presidência” Militar <strong>da</strong> República.<br />

452 Esse procedimento é regulamentado pelo Decreto n o 71.615, de 1972; Instruções Especiais do INCRA, números<br />

6-A , 11 e 12; artigo 135 do Decreto-lei n o 9.760, de 1946 e artigo 143 do Decreto-lei n o 200/67.<br />

453 RIBEIRO, op. cit., p. 16<br />

222


3.2.3.5. Alienação com Licitação e Direito de Preferência<br />

Trata-se de uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de específica <strong>da</strong> forma anterior, onde, curiosamente,<br />

“há” concorrência entretanto, é mantido o “direito” de preferência de um dos<br />

concorrentes: portanto não há, efetivamente, a concorrência.<br />

Refere-se, esta mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de concessão de terras públicas, à alienação de áreas<br />

de até 3.000 hectares 454 , nas quais os pleiteantes não preenchem as exigências legais<br />

mínimas para a legitimação de posse ou para alienação sem concorrência (ou seja,<br />

cultura efetiva e mora<strong>da</strong> habitual, para legitimação de posse; e projeto de relevante<br />

interesse nacional, no outro caso). E, nem mesmo, possuem os referidos “títulos com<br />

títulos insanáveis”. Ol<strong>da</strong>ir Zanatta coloca claramente esta questão nos seguintes<br />

termos:<br />

“Trata-se de procedimento que consiste na ven<strong>da</strong> de áreas<br />

ocupa<strong>da</strong>s, nas quais não ocorrem os pressupostos para<br />

legitimação de posse ou para alienação sem concorrência.<br />

São áreas de até 3.000 hectares, cujos ocupantes geralmente<br />

não satisfazem o requisito de mora<strong>da</strong> permanente. Essas<br />

áreas são aliena<strong>da</strong>s em concorrência pública, ocasião em que é<br />

deferi<strong>da</strong> aos ocupantes a preferência na aquisição (...).” 455<br />

Ou seja, com esta mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de ficava assegura<strong>da</strong> a possibili<strong>da</strong>de de transferir de<br />

forma seletiva e privilegia<strong>da</strong>, - a “ocupantes que não preenchem o requisito <strong>da</strong><br />

mora<strong>da</strong> permanente”, portanto “ocupantes que não ocupam”, portanto, que não<br />

são ocupantes - grandes áreas de terras públicas, na ver<strong>da</strong>de, independentemente de<br />

qualquer que seja o critério estabelecido ou situação dos pretendentes, como se vê.<br />

Restrições, rigorosamente, apenas recaíam sobre os pequenos posseiros. Como se<br />

afirmou acima, nunca o latifúndio teve tanta regalia e segurança na história fundiária do<br />

Brasil.<br />

Além <strong>da</strong> ampla garantia de legitimação de “títulos com vícios insanáveis”,<br />

foi cria<strong>da</strong> mais essa possibili<strong>da</strong>de para assegurar a apropriação e legitimação<br />

privilegia<strong>da</strong>s de terras devoltas, num ver<strong>da</strong>deiro assinte ao ordenamento jurídico e à<br />

consciência nacionais, o que apenas poderia ser explicado pela presença de um “Estado<br />

de exceção” e de um regime autoritário em to<strong>da</strong> a sua plenitude: cerceamento <strong>da</strong><br />

independência do Legislativo - pelas sistemáticas cassassões de opositores do regime - e<br />

do Judiciário; desorganização <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de civil, violentamente reprimi<strong>da</strong>, e imprensa<br />

sob censura prévia rigorosa. Prisões, torturas...<br />

Assim, como explica Ol<strong>da</strong>ir Zanatta, em sua brilhante defesa deste instrumento<br />

“técnico” de incentivo ao Desenvolvimento Rural:<br />

454 Sempre e rigorosamente, 3.000 hectares, ou seja, a área máxima situa<strong>da</strong> fora do “controle” mediante a aprovação<br />

do Senado Federal, prevista na Constituição, o que agilizaria, ain<strong>da</strong> mais, as transações.<br />

455 ZANATTA (op. cit., p. 22). Grifos nossos.<br />

223


“Essas áreas são aliena<strong>da</strong>s em concorrência pública, ocasião em<br />

que é deferi<strong>da</strong> aos ocupantes a preferência de aquisição,<br />

assegurando-lhes sempre o direito de indenização <strong>da</strong>s<br />

benfeitorias edifica<strong>da</strong>s de ‘boa-fé’, caso não sejam considerados<br />

vencedores na concorrência ou não lhes interesse a aquisição <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de.” 456<br />

Veja-se que a argumentação de Zanatta é absolutamente contraditória: primeiro<br />

ele se refere à realização <strong>da</strong> concorrência pública, mas que é “deferi<strong>da</strong> 457 ” a preferência<br />

de aquisição aos “ocupantes”: logo, não há concorrência. Em segui<strong>da</strong>, refere-se ao fato<br />

de que é assegurado aos ocupantes “que não sejam considerados vencedores na<br />

concorrência ou não lhes interesse”, etc., o que não faz nenhum sentido, posto que<br />

se lhes foi deferi<strong>da</strong> a preferência de aquisição, logo não houve concorrência, portanto,<br />

não há a hipótese, de “não serem considerados vencedores na concorrência”, que<br />

nunca houve: uma contradição em termos.<br />

O que pode ocorrer, é que especuladores, pois parece que deles se trata neste<br />

caso, “desistam” <strong>da</strong> aquisição, optando pela indenização. Até porque na<strong>da</strong> assegura<br />

que se impedirá, como se tem demonstrado neste trabalho, que ulteriormente estas<br />

mesmas terras voltem a cair em suas próprias mãos, como chamava a atenção Ribeiro<br />

em citação acima, e, portanto, que todo o processo volte a se repetir, na ver<strong>da</strong>deira<br />

ciran<strong>da</strong> do assalto às terras <strong>da</strong> União que foi cria<strong>da</strong> por esses métodos de “titulação de<br />

terras públicas” promovidos pela tecnoburocracia <strong>da</strong> Política Fundiária dos Governos<br />

Militares, em nome do desenvolvimento e <strong>da</strong> segurança nacionais.<br />

3.2.3.6. Concessões Especiais<br />

Essa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de privatização de terras públicas é regi<strong>da</strong> pelos Decretos:<br />

68.524, de 15 de abril de 1971, que “dispõe sobre a participação <strong>da</strong> iniciativa priva<strong>da</strong><br />

na implantação de projetos de colonização nas áreas prioritárias para Reforma<br />

Agrária, nas áreas do Programa de Integração Nacional e nas terras devolutas <strong>da</strong><br />

União na Amazônia Legal”; 71.615, de 22 de dezembro de 1972, “que regulamenta o<br />

Decreto-lei 1.164/71, e fixa as normas para a implantação de Projetos de Colonização,<br />

concessão de terras e estabelecimento ou exploração de indústrias de interesse <strong>da</strong><br />

segurança nacional, nas terras devolutas localiza<strong>da</strong>s ao longo <strong>da</strong>s rodovias, na<br />

Amazônia Legal”. Além dos Decreto-lei 178/67, que “dispõe sobre a cessão de<br />

imóveis <strong>da</strong> União Federal para as finali<strong>da</strong>des que especifica”; e Instruções Especiais do<br />

INCRA, n os 13/76 e 15/78. Como se vê, tudo era rigorosa e meticulosamente planejado.<br />

Este modo de privatização de terras públicas destina-se à concessão de áreas<br />

para a implantação e o desenvolvimento de Projetos de Colonização através de<br />

456 Id. Ibdem, p. 22.<br />

457 A expressão “deferi<strong>da</strong>”, significa que houve, anteriormente, um “requerimento”. Logo, não se trata de ven<strong>da</strong>,<br />

mas de concessão de terras públicas mediante requerimento. A ven<strong>da</strong>, neste caso, é simbólica, mera formali<strong>da</strong>de,<br />

como o caso do “preço vil” <strong>da</strong> terra nua.<br />

224


Empresas Particulares 458 . A transferência de domínio <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> área é<br />

materializa<strong>da</strong> no “Título de Domínio com Condição Resolutiva”, que se refere à<br />

obrigação <strong>da</strong> Empresa concessionária à executar o Projeto de Colonização previamente<br />

aprovado pelo INCRA. O mesmo procedimento é extensivo às cooperativas, entretanto,<br />

neste caso não há a exigência <strong>da</strong> concorrência por um lado, nem a transferência de<br />

domínio à concessionária, por outro lado.<br />

No caso <strong>da</strong>s cooperativas, apenas é cedido o direito de uso <strong>da</strong> área para<br />

implementar o Projeto de Colonização, sendo que a titulação de lotes, no caso do<br />

projeto ter sucesso em sua implantação e implementação, fica a cargo do INCRA que<br />

emite os títulos, diretamente para os parceleiros.<br />

3.2.3.7 Doação de Terras Públicas<br />

A doação destinava-se à transferência de terras devolutas federais aos<br />

Municípios <strong>da</strong> Amazônia Legal e <strong>da</strong> Faixa de Fronteira, especificamente destina<strong>da</strong>s à<br />

expansão ou construção de ci<strong>da</strong>des, vilas e povoados. Neste caso procedia-se,<br />

juridicamente, à transferência de domínio aos Municípios, com cláusulas resolutivas<br />

vinculando a doação ao respectivo projeto de desenvolvimento municipal. A doação,<br />

materializa<strong>da</strong> no Título de Domínio, exigia a autorização formal, por Decreto do Poder<br />

Executivo Federal, conforme o que era estabelecido pelas Leis 6.431, de 1977 e 6.925,<br />

de 1981, e pelo Decreto 80.511 de 1977.<br />

Além destas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des específicas de alienação de terras públicas <strong>da</strong> União,<br />

havia o procedimento de “Ratificação de Títulos”, que se referia a ações de<br />

regularização fundiária voltado para a convali<strong>da</strong>ção de títulos de proprie<strong>da</strong>de expedidos<br />

pelos Estados-Membros <strong>da</strong> Federação, especialmente em áreas de fronteira e de terras<br />

devolutas pertencentes à União, irregularmente titula<strong>da</strong>s pelos Estados <strong>da</strong> Federação.<br />

Outra mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de legitimação era o “Reconhecimento de Domínio”, que se<br />

referiam ao reconhecimento formal, por parte <strong>da</strong> União, <strong>da</strong> situação dominial existente<br />

na faixa de fronteira e nos Territórios Federais, por ocasião <strong>da</strong> promulgação do Decretolei<br />

9.760 de 1946, amplamente estu<strong>da</strong>do no capítulo anterior.<br />

3.2.3.8. Usucapião Especial<br />

Instituído pela Lei n o 6.969 459 , de 10 de dezembro de 1981, já no último<br />

Governo do ciclo militar, o Usucapião Especial, recupera o antigo preceito<br />

constitucional, que assegurava a legitimação <strong>da</strong>s posses mansas e pacíficas, para os<br />

trabalhadores rurais que residissem nas respectivas posses e que as fizessem produzir<br />

com o seu trabalho e de sua família, anulado pela Constituição de 1967. As áreas para<br />

legitimação de posses, cobertas por este preceito foram sistematicamente reduzi<strong>da</strong>s nas<br />

458 Que, segundo depoimento de D. Moacyr Grechi, Bispo do Acre e Purus à CPI do Sistema Fundiário (ver capítulo<br />

5) poderia atingir a 500.000 hectares, por projeto. Um ver<strong>da</strong>deiro “big business”.<br />

459 Lei n o 6.969, de 10.12.1981 (BRASIL. Congresso Nacional. Brasília: 1981.).<br />

225


sucessivas Constituições Republicanas, sendo inclusive ve<strong>da</strong>do o direito de usucapião<br />

sobre terras devolutas.<br />

Como se discutiu no capítulo 2, a Lei 601 de 1850 permitia a legitimação de<br />

posses imensas, até o tamanho <strong>da</strong>s sesmarias concedi<strong>da</strong>s, anteriormente na região. As<br />

Constituições de 1934 e 1937 reduzem esta área para 10 hectares. A Constituição de<br />

1946 amplia para até 25 hectares, conforme o parágrafo 1 o do artigo 156. De qualquer<br />

maneira, o que fica evidente nestes procedimentos é que sistematicamente eram<br />

impostos limites rígidos à garantia e legitimação de pequenas posses, que passou de<br />

direito líquido e certo, como o era na legislação Colonial e Imperial, à simples<br />

“concessão” do Poder Público. Ou seja, houve, efetivamente, no que se refere aos<br />

pequenos posseiros uma per<strong>da</strong> efetiva de Direito no período Republicano. Com o<br />

regime militar, no Pós-1964, essa per<strong>da</strong> de direito é plenamente assegura<strong>da</strong> e<br />

consagra<strong>da</strong>.<br />

O Usucapião, neste sentido, representou uma abertura para o passado.<br />

Esse ver<strong>da</strong>deiro “avanço para o passado” recupera direitos assegurados pelos<br />

imperativos constitucionais acima mencionados, e que foram negados pela Constituição<br />

de 1967.<br />

Neste sentido e parafraseando Faoro ao se referir à vitória dos sesmeiros na Lei<br />

601 de 1850, afirmando que, apenas tardiamente, aquela legislação viria a assegurar o<br />

direito dos posseiros, em relação aos privilégios dos sesmeiros do Vale do Paraíba,<br />

pode-se dizer que o “avanço” realizado, com o Usucapião Especial, em 1981, com a<br />

restituição do antigo direito de aquisição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de sobre posses mansas e pacíficas<br />

de até 25 hectares, no caso, inclusive, extensivo às terras públicas (para as quais o<br />

usucapião sempre esteve ve<strong>da</strong>do 460 ), também chegou tardiamente.<br />

A esta altura o cerco, a alienação e a legitimação privilegiados <strong>da</strong>s terras públicas<br />

brasileiras já haviam assegurado a maior parte <strong>da</strong>s melhores terras do país para os<br />

grupos privilegiados, como os <strong>da</strong>dos acerca <strong>da</strong> apropriação de áreas novas, analisados<br />

no próximo capítulo evidenciam objetivamente.<br />

460 A Constituição Federal de 1988 reafirma a imprescritibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s terras públicas.<br />

226


CAPÍTULO 5<br />

POLÍTICA FUNDIÁRIA <strong>DO</strong> REGIME MILITAR: RECONCENTRAÇÃO E<br />

PRIVILÉGIOS<br />

1. Considerações Preliminares<br />

Os problemas de legitimação <strong>da</strong>s iniciativas privatizantes e de legalização <strong>da</strong>s<br />

posses em domínio particular, jamais solucionados de forma efetiva, ain<strong>da</strong> que<br />

formalmente tentados, ganharam profun<strong>da</strong> relevância no período que se seguiu a abril<br />

de 1964 e à consoli<strong>da</strong>ção do Regime Militar. Com a aprovação, em novembro <strong>da</strong>quele<br />

ano, <strong>da</strong> Lei 4.504, pela primeira vez, após a aprovação <strong>da</strong> Lei 601 de 1850 e seu<br />

respectivo Regulamento, o Governo Brasileiro conseguiu encaminhar e aprovar uma<br />

Legislação que regulamentava o processo de alienação de terras públicas e de<br />

legitimação <strong>da</strong>s posses que se encontravam em poder de particulares. A regulamentação<br />

do processo de alienação e legitimação de terras, através <strong>da</strong> Lei 4.504, de novembro de<br />

1964, foi o grande mérito que, efetivamente, teve o Governo Militar, no âmbito <strong>da</strong><br />

Política Fundiária.<br />

No capítulo anterior, ao analisar-se esta problemática, ficou evidenciado que<br />

para muito além deste grande mérito - de regulamentar, juridicamente, o acesso às terras<br />

devolutas - estava o fato do Estatuto <strong>da</strong> Terra ter colocado, objetivamente, nas mãos do<br />

Governo, o poder para promover a alienação de terras públicas. Portanto, a<br />

possibili<strong>da</strong>de de conduzir determinado processo de reorganização fundiária, na medi<strong>da</strong><br />

em que assegurava os meios, jurídicos e administrativos, necessários ao processo de<br />

ven<strong>da</strong> de terras devolutas ou de reconhecimento de titulari<strong>da</strong>des legítimas existentes<br />

sobre estas.<br />

Efetivamente, os Governos militares exerceram este poder: promoveram uma<br />

grande transformação na estrutura agrária brasileira, ao implementar um vasto processo<br />

de alienação de terras públicas, ou de reconhecimento de posses sobre estas, em to<strong>da</strong>s as<br />

regiões do país. Este processo foi especialmente relevante nas chama<strong>da</strong>s “regiões de<br />

fronteira”, onde predominavam as terras devolutas ou irregularmente ocupa<strong>da</strong>s, como as<br />

Regiões Centro-Oeste e Norte. Mas, foi também relevante, nas demais regiões do País.<br />

227


Como resultado destas ações do Governo no âmbito <strong>da</strong> Política Fundiária, modificou-se<br />

profun<strong>da</strong>mente o perfil <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> territorial no Brasil. Por um lado,<br />

assegurando a “proprie<strong>da</strong>de absoluta” para determina<strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s, de fato privilegia<strong>da</strong>s,<br />

<strong>da</strong> população e, por outro lado, aprofun<strong>da</strong>ndo a excludência social de uma imensa<br />

massa de pequenos produtores, posseiros e indígenas. A resultante desses processos de<br />

“privatização privilegia<strong>da</strong> e excludente” foi o aumento, sem precedentes na história do<br />

Brasil, de massa de trabalhadores expulsos <strong>da</strong>s terras onde residiam e trabalhavam, que<br />

vieram a se incorporar aos contingentes marginalizados dos centros urbanos, fossem<br />

estes grandes metrópoles ou pequenas ci<strong>da</strong>des do interior <strong>da</strong> Brasil.<br />

Portanto, não quer significar a cita<strong>da</strong> regulamentação que o processo de<br />

privatização de terras, promovido pelo “Regime Militar”, tenha representado o acesso à<br />

proprie<strong>da</strong>de rural para a grande massa de pequenos produtores com pouca terra,<br />

posseiros, ou trabalhadores rurais sem terra 461 , fun<strong>da</strong>do na perspectiva de uma reforma<br />

agrária de caráter distributivista ou “democrática” como era, aparentemente, proclama<strong>da</strong><br />

na Mensagem 33. Como também não significou, sequer, a legalização ou o<br />

reconhecimento de posses legítimas que se encontravam em poder destas cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />

população que vivia e trabalhava no campo.<br />

Entretanto, não deixava, apesar disto, de representar uma profun<strong>da</strong><br />

transformação no ordenamento agrário, sobretudo porque, ao promover a alienação ou a<br />

legitimação de posses sobre vastas áreas do território do País, engendrou as condições<br />

fun<strong>da</strong>mentais para a incorporação ao processo produtivo (e também especulativo) de<br />

porções relevantes <strong>da</strong>s terras agrícolas brasileiras. Este foi o outro resultado <strong>da</strong> Política<br />

Fundiária dos Governos Militares no período, e que pode ser tributado à iniciativa de<br />

aprovação do Estatuto <strong>da</strong> Terra e <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s jurídicas e administrativas que o<br />

complementaram.<br />

Portanto, não se podem situar, singularmente, ao nível destas medi<strong>da</strong>s, as<br />

críticas passíveis de serem feitas à Política de Terras do Regime Militar. Estas críticas<br />

devem centrar-se nas formas assumi<strong>da</strong>s pelo processo de alienação de terras públicas,<br />

que, além de “repetirem erros” do passado, como afirmava o Ministro <strong>da</strong> Agricultura,<br />

Luís Fernando Cirne Lima, em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito do<br />

Sistema Fundiário, na ver<strong>da</strong>de, foram muito além disto. Promoveram, não apenas a<br />

incorporação <strong>da</strong>s terras ao patrimônio particular, mas sobretudo, a apropriação<br />

especulativa destas terras e a expropriação, ilegítima e ilegal, de imensas cama<strong>da</strong>s de<br />

produtores rurais que, secularmente, viviam e trabalhavam nas terras brasileiras. Ou<br />

seja, a crítica deve estar centra<strong>da</strong> no fato de, nos Governos Militares, terem-se<br />

aprofun<strong>da</strong>do de um modo deliberado os seculares processos de privatização,<br />

apropriação e regulamentação privilegia<strong>da</strong>s e excludentes <strong>da</strong>s terras públicas. Além de<br />

possibilitarem o aprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> titulação questionável e ampliar, desta forma, os<br />

461 Ao contrário. A este respeito ver os Capítulos I e II do Livro, Ditadura e Agricultura (IANNI, 1979(a)) onde é<br />

realiza<strong>da</strong> uma análise profun<strong>da</strong> e competente <strong>da</strong>s articulações entre a Política Fundiária e o Modelo Econômico posto<br />

em prática pelo Regime Militar.<br />

228


processos de grilagem especializa<strong>da</strong>, geralmente fun<strong>da</strong>dos na fraude ou sustentados nas<br />

colunas <strong>da</strong> corrupção.<br />

Por questões desta natureza, é que se pode levantar a hipótese de que, apesar<br />

dos possíveis méritos no campo estritamente econômico, - tomado este termo no sentido<br />

estrito definido no Modelo 462 , de aumento <strong>da</strong> oferta de produtos agrícolas, e <strong>da</strong><br />

participação <strong>da</strong> agricultura no mercado interno e externo, <strong>da</strong> sua diversificação, etc. -,<br />

por outro lado, aumentou também, e certamente, mais que proporcionalmente a estes<br />

resultados, a excludência social e a miséria de vastas cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> população rural 463 .<br />

O Ministro <strong>da</strong> Agricultura, Luís Fernando Cirne Lima, no depoimento prestado à<br />

Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário 464 , em 2 de agosto de 1977,<br />

resumiu, nos seguintes termos, a formulação <strong>da</strong> Política Fundiária, tal como posta em<br />

prática, então, pelo Governo Federal:<br />

“Ao assumir responsabili<strong>da</strong>des públicas em 1 de novembro de<br />

1969 elegi, como uma <strong>da</strong>s metas, o que se convencionou<br />

denominar a ocupação dos espaços vazios. A tarefa de ordenar<br />

a ocupação de terras rurais e os deslocamentos dos excedentes<br />

liberados <strong>da</strong> agricultura indicou a fusão de dois órgãos então<br />

existentes: Instituto Brasileiro de Reforma Agrária - IBRA, e<br />

Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrícola - IN<strong>DA</strong>. A<br />

reforma agrária só tem sentido se visar ao desenvolvimento<br />

agrário, já que a distribuição <strong>da</strong> terra, quando<br />

desacompanha<strong>da</strong> <strong>da</strong> assistência técnica e <strong>da</strong>s condições de<br />

escoamento e comercialização do produto agrícola, não<br />

produz conseqüências duradouras. O pequeno proprietário,<br />

desassistido, é presa fácil dos poderosos que acabam por<br />

retomar-lhe a terra dentro <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> “economia de<br />

mercado puro.”<br />

“Fun<strong>da</strong>do o INCRA em 1970, diversos fatores levaram o novo<br />

órgão a enfrentar mais a colonização do que a Reforma<br />

agrária. A decisão, antes de entender que aquela seja mais<br />

importante do que esta, partiu de pressupostos vários que ain<strong>da</strong><br />

entendo como certos.<br />

“É o Brasil um dos poucos países do mundo com<br />

possibili<strong>da</strong>de de aumentar a sua fronteira agrícola, colocando<br />

nas áreas novas os excedentes <strong>da</strong> população rural. Uma<br />

reforma agrária poderia, sem dúvi<strong>da</strong>, cui<strong>da</strong>r de reduzir os<br />

deslocamentos, pela reordenação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, mas a um<br />

custo, na época, talvez muito alto. 465 ”<br />

Observa-se, nestes comentários do Ministro Cirne Lima, que o Governo fazia<br />

uma clara distinção entre colonização e reforma agrária. A Reforma Agrária era pensa<strong>da</strong><br />

como a reorganização <strong>da</strong> estrutura agrária, em áreas amplamente ocupa<strong>da</strong>s, visando a<br />

reorganização <strong>da</strong> posse e uso <strong>da</strong> terra, a modernização e diversificação <strong>da</strong> agricultura e<br />

462 Ver a especificação dos objetivos perseguidos no âmbito destas políticas implementa<strong>da</strong>s pelos Governos<br />

Militares, o Capítulo II “Agricultura e Acumulação” (IANNI, 1979 (a)), especialmente as páginas 37 a 44.<br />

463 Estes fatos podem ser depreendidos <strong>da</strong>s estatísticas acerca <strong>da</strong> incorporação <strong>da</strong>s áreas novas por um lado e, por<br />

outro, <strong>da</strong>s informações referentes à dinâmica <strong>da</strong>s populações rurais e urbanas, no período, analisados adiante, neste<br />

capítulo.<br />

464 CÂMARA <strong>DO</strong>S DEPUTA<strong>DO</strong>S, op. cit.<br />

465 CAMARA <strong>DO</strong>S DEPUTA<strong>DO</strong>S, op. cit. p. 10; grifos nossos.<br />

229


o aumento <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de. Portanto, implicando necessariamente, o processo de<br />

desapropriação, além de outros investimentos. Por estas razões era considera<strong>da</strong> onerosa,<br />

devendo, “ipso facto”, ser evita<strong>da</strong>. Exceto nos casos excepcionais de conflitos e tensões<br />

sociais graves 466 . Por outro lado, a colonização significava o assentamento de<br />

populações em áreas de terras devolutas, evitando-se, desta forma, os custos com o<br />

processo de “desapropriação”. Mas, sobretudo, evitando-se ferir os interesses<br />

latifundiários e especulativos <strong>da</strong>s grandes empresas de colonização particular e<br />

empreiteiras. Ou seja, aproveitando-se <strong>da</strong> “vantagem comparativa” possuí<strong>da</strong> pelo fato<br />

de ser “o Brasil um dos poucos países do mundo com possibili<strong>da</strong>de de aumentar a sua<br />

fronteira agrícola, colocando nas áreas novas os excedentes <strong>da</strong> população rural”. De<br />

ain<strong>da</strong> hoje existirem, no Brasil, amplas reservas de terras livres e públicas.<br />

Entretanto, esta opção significava, também, atender a uma antiga tese do<br />

latifúndio em relação à colonização - entendi<strong>da</strong> “como desbravamento” - ou seja, que<br />

deveria ser realiza<strong>da</strong> longe de seus domínios. Este problema foi cui<strong>da</strong>dosamente<br />

discutido no segundo capítulo deste estudo. A este respeito é interessante registrar as<br />

seguintes observações de Carlos Minc:<br />

“Correspondem, portanto, à instalação de colonos em terras<br />

distantes dos grandes centros nacionais de consumo, em áreas<br />

mal servi<strong>da</strong>s de infraestrutura básica (estra<strong>da</strong>s, irrigação e<br />

eletrificação) e principalmente em zonas distantes <strong>da</strong>s terras<br />

dos poderosos latifundiários do Nordeste e do Sudeste.<br />

Estes assim tiveram seus domínios intocados, ain<strong>da</strong> que<br />

todos os latifúndios sejam passíveis de desapropriação para fins<br />

de reforma agrária, segundo o Estatuto <strong>da</strong> Terra (...).” 467<br />

No âmbito deste diagnóstico, cui<strong>da</strong>dosamente elaborado pelos “técnicos” do<br />

Governo, a colonização apresentava to<strong>da</strong>s as vantagens: significava um móvel<br />

fun<strong>da</strong>mental e pouco oneroso para a integração nacional, a ser promovi<strong>da</strong> pela ocupação<br />

dos “espaços vazios”, mediante os projetos de assentamento, dirigidos às populações<br />

pobres que migravam “expontaneamente”; ou pela via do assentamento dos<br />

“excedentes” potenciais de população de regiões mais “desenvolvi<strong>da</strong>s”. Desta forma,<br />

evitava-se “desorganizar a produção agrícola, em áreas tradicionalmente explora<strong>da</strong>s”,<br />

como se fazia referência na Mensagem 33, do General Castelo Branco, ao acusar o<br />

Governo João Goulart e a SUPRA de promoverem a inquietação no campo e a<br />

desorganização do sistema produtivo <strong>da</strong> agricultura.<br />

Mas, sobretudo, como registraram Carlos Minc 468 e Octávio Ianni 469 entre<br />

muitos outros estudiosos do tema, significava manter intocados os domínios dos<br />

466 Entretanto, mesmo nestes casos, se se tiver em consideração o caráter excepcional do próprio regime, há que se<br />

atentar para o fato de que, muitas vezes, as tensões e conflitos pela terra eram simplesmente encarados como atos<br />

subversivos, sendo os pequenos posseiros e seus líderes perseguidos ou presos, o que reduzia substantivamente a<br />

necessi<strong>da</strong>de de “desapropriação”, e até mesmo, o simples procedimento legal de legitimação de pequenas posses em<br />

favor <strong>da</strong>queles posseiros. Há que se ter ain<strong>da</strong> em consideração, neste contexto, que muitas vezes as próprias milícias<br />

de jagunços atuavam como forças paramilitares, reprimindo “ações subversivas”, como eram geralmente encara<strong>da</strong> a<br />

resistência dos posseiros à expulsão <strong>da</strong>s áreas onde trabalhavam e residiam.<br />

467 MINC (1985, p. 9). Grifos nossos.<br />

468 Op. cit.<br />

230


latifúndios. Neste sentido, o Estatuto <strong>da</strong> Terra, além de não conter nem defender<br />

nenhum Projeto de Reforma Agrária distributivista ou democrática, configurava-se,<br />

efetivamente, como um Projeto de “Contra-reforma Agrária” como corretamente<br />

demonstrou Octávio Ianni 470 .<br />

Aparentemente, as teses defendi<strong>da</strong>s por Fernando Cirne Lima - que eram as<br />

mesmas teses do Governo na época - apresentavam coerência “técnica”. Seria,<br />

aparentemente, menos oneroso e mais “racional” para o processo de desenvolvimento<br />

agrícola, nas condições específicas do Brasil, onde permaneciam imensas áreas de terras<br />

“livres e desocupa<strong>da</strong>s”, incorporá-las ao processo produtivo, e fornecer assistência<br />

técnica e creditícia, etc., antes de promover a desapropriação em áreas onde, bem ou<br />

mal, o processo produtivo caminhava.<br />

Para estes espaços específicos, seriam destinados os diversos instrumentos de<br />

Política Agrícola, de incentivo à incorporação do “progresso técnico e científico” e de<br />

implementação de processos de produção “mais eficientes”, na expectativa de que, por<br />

estes meios, os produtores rurais fossem induzidos a modernizar suas proprie<strong>da</strong>des e<br />

tornarem-se “empresários rurais”, etc.<br />

Segundo esta linha de argumentação, a reforma agrária era desloca<strong>da</strong> para a<br />

promoção <strong>da</strong> colonização. Transforma<strong>da</strong>, esta, no assentamento de populações rurais<br />

excedentes, em áreas de terras devolutas, e, apenas excepcionalmente, em áreas de<br />

ocupação antiga, quando pairassem ameaças de conflitos ou tensões potenciais. Todo o<br />

processo pressupunha-se como acompanhado de um amplo programa de assistência<br />

técnica e creditícia, extensão rural etc. A implementação de um Projeto de<br />

Desenvolvimento Rural deste porte exigia, segundo os “técnicos” e especialistas do<br />

Governo, ações concentra<strong>da</strong>s, para se evitar, a “pulverização de recursos” - como era<br />

afirmado nos documentos <strong>da</strong> época - donde a fusão do IBRA-IN<strong>DA</strong> e nascimento do<br />

INCRA, no bojo do Programa de Integração Nacional.<br />

Esta formulação, aparentemente coerente, entretanto, escondia contradições<br />

importantes. A primeira delas, é que esta estratégia de desenvolvimento rural, ao ser<br />

implementa<strong>da</strong>, mostrou-se contraditória com a tese central do Governo, que se colocava<br />

em termos promover a maior eficiência nas explorações agropecuárias. Isso,<br />

necessariamente, deveria significar, além <strong>da</strong> implementação dos instrumentos de<br />

política agrícola, o combate ao “latifúndio” - quer fosse por dimensão ou, sobretudo,<br />

por exploração. Exatamente esta linha de ação não foi implementa<strong>da</strong>: os latifúndios<br />

proliferaram por todo o país, muito particularmente nas regiões onde predominavam as<br />

terras públicas, como o Centro-Oeste e o Norte 471 , mantendo-se quase intocado nas<br />

demais regiões.<br />

Além disto, os latifúndios, apesar de se beneficiarem do crédito e de to<strong>da</strong> sorte<br />

de incentivos oferecidos pelo Governo, não se modernizaram como pressupunham os<br />

469 IANNI (1979).<br />

470 IANNI (1979 e 1981).<br />

471 Ver os Quadro 1.A e 1.B e a figura 2, adiante.<br />

231


“experts” do Governo. Permaneceram quase, senão inteiramente, no mesmo nível de<br />

“produtivi<strong>da</strong>de” - ou improdutivi<strong>da</strong>de - apesar de terem efetivamente abocanhado a<br />

maior parte dos créditos incentivados e subsídios oferecidos pelo Estado.<br />

Portanto, o que esta proposta do Governo, de fato, significou, do ponto de vista<br />

<strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária, foi a reprodução, sob novas formas, <strong>da</strong> mesma estrutura<br />

agrária concentra<strong>da</strong> e fun<strong>da</strong><strong>da</strong> no privilégio e na ilegali<strong>da</strong>de. E na ampliação do poder<br />

latifundiário, agora amplamente capitalizado pela apropriação priva<strong>da</strong> de fundos<br />

públicos.<br />

Como muito bem analisou IANNI 472 a “estratégia” de proceder a concessões de<br />

pequenas parcelas nas áreas distantes <strong>da</strong>s fronteiras agrícolas, especialmente na<br />

Amazônia, representava uma alternativa à distribuição de pouca terra, para evitar-se a<br />

reforma agrária efetiva, por um lado e, por outro, significava, a promoção <strong>da</strong><br />

reconcentração <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de nas regiões originárias dos migrantes, especialmente as<br />

Regiões Sudeste e, sobretudo, Sul. Neste sentido, realizando o que Otávio Ianni<br />

denominou de Contra-Reforma Agrária 473 .<br />

Por outro lado, continua Luís Fernando Cirne Lima, no depoimento citado, a<br />

esclarecer as formas pelas quais persistia a tendência à manutenção do latifúndio, apesar<br />

<strong>da</strong>s tentativas, <strong>da</strong> sua gestão no Ministério, em sentido contrário:<br />

“Há, contudo, uma superposição de órgãos, por vezes<br />

conflitantes, no trato <strong>da</strong> ocupação de novas áreas. A SU<strong>DA</strong>M e a<br />

SUDENE (organismos de desenvolvimento regional) não<br />

demonstram qualquer desafeição pelo latifúndio. Assim<br />

eram, e suponho que ain<strong>da</strong> o sejam, aprovados projetos<br />

extensos, sem qualquer resguardo <strong>da</strong>s posses porventura<br />

existentes nas áreas.<br />

“Atendendo interesse político-social e acima de tudo por uma<br />

questão de justiça ao pioneirismo expontâneo e desassistido,<br />

propusemos em 1972, o decreto que leva o número 70.430, de 17<br />

de abril desse ano, e que expressamente estabelece que “as<br />

pessoas domicilia<strong>da</strong>s na área de empreendimentos financiados<br />

com incentivos fiscais ou em áreas pioneiras, formem elas ou não<br />

coletivi<strong>da</strong>des urbanas, não poderão ser desaloja<strong>da</strong>s de suas<br />

moradias ou posse de terras por elas cultiva<strong>da</strong>s sem audiência<br />

prévia do Ministério <strong>da</strong> Agricultura.”<br />

“Por outro lado, descrente de que a ocupação dos espaços<br />

pela grande empresa seja a fórmula ideal, pois ela repete<br />

erros, adotou-se uma nova filosofia para a incorporação<br />

<strong>da</strong>quelas áreas sob a jurisdição do INCRA. O começo foi a<br />

retoma<strong>da</strong> pelo governo Federal, a partir do Decreto- lei número<br />

1.164, de abril de 1971, <strong>da</strong> disciplina fundiária <strong>da</strong>s terras<br />

devolutas situa<strong>da</strong>s na faixa de 100 quilômetros de largura de<br />

ca<strong>da</strong> lado do eixo <strong>da</strong>s rodovias federais na Amazônia Legal.<br />

472 IANNI (1979 e 1981).<br />

473 Representa<strong>da</strong> pelo fato, também citado na Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário, pelo Bispo<br />

do Acre e Purus, Dom Moacyr Grechi, de que as mesmas empresas colonizadoras que haviam vendido terras a<br />

pequenos sitiantes no Sul do País, agora passavam a recomprá-las e vender novas áreas nas regiões Centro-Oeste e<br />

Amazônica, num ver<strong>da</strong>deiro círculo vicioso <strong>da</strong> especulação imobiliária e dos privilégios no processo de apropriação<br />

(In.: CAMARA <strong>DO</strong>S DEPUTA<strong>DO</strong>, op. cit.).<br />

232


Elas passaram à condição de áreas necessárias à segurança<br />

e ao desenvolvimento nacionais. (...)<br />

Na experiência de colonização <strong>da</strong> Amazônia, concentra<strong>da</strong><br />

especialmente na região de Altamira, no Pará, mais uma vez<br />

prevaleceu a idéia de criação de uma classe média rural que,<br />

lado a lado com a empresa, dentro dos limites<br />

constitucionais de 2 a 3.000 hectares, começasse a ocupação<br />

de uma área fértil e desse início aos trabalhos práticos que<br />

permitissem decisões mais seguras de conciliação de<br />

interesses coservacionistas <strong>da</strong> floresta amazônica com o<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> região.<br />

“Procurando evitar a especulação e o latifúndio improdutivo,<br />

as terras foram vendi<strong>da</strong>s aos empresários em concorrência e com<br />

a obrigatorie<strong>da</strong>de de apresentação de Projetos agropecuários,<br />

com prazo de início. Foi a primeira licitação de terras públicas<br />

que se fez no Brasil, onde a regra ain<strong>da</strong> copiava os métodos<br />

<strong>da</strong>s sesmarias, mediante doações graciosas ou o<br />

reconhecimento de posses latifundiárias artificialmente<br />

estabeleci<strong>da</strong>s.” 474<br />

Duas dimensões muito importantes <strong>da</strong> questão fundiária, tal como concebi<strong>da</strong><br />

pelas autori<strong>da</strong>des do Governo, são coloca<strong>da</strong>s, claramente, nesta parte do depoimento de<br />

Cirne Lima. Primeiro, que o objetivo do Governo, nesta área, era a formação e<br />

desenvolvimento de uma classe média rural, especialmente, utilizando-se <strong>da</strong> alternativa<br />

de ocupação de áreas novas, ou seja, de terras públicas. Esta alternativa era considera<strong>da</strong><br />

fun<strong>da</strong>mental ao desenvolvimento e integração nacionais. Neste sentido é implementado<br />

o PIN (Programa de Integração Nacional) na gestão do General Emílio G. Médici.<br />

Segundo, ao chamar a atenção para o fato de que pela primeira vez era realiza<strong>da</strong><br />

uma licitação de terras públicas, no Brasil, “onde a regra ain<strong>da</strong> copiava os métodos <strong>da</strong>s<br />

sesmarias, mediante doações graciosas ou o reconhecimento de posses latifundiárias<br />

artificialmente estabeleci<strong>da</strong>s.” 475<br />

Portanto, não se trata de negar, neste contexto, o fato de que os Governos<br />

Militares procederam a uma determina e, em certo sentido, profun<strong>da</strong>, reorganização <strong>da</strong><br />

estrutura agrária e agrícola do País. Trata-se, antes, de compreender o sentido e as<br />

implicações do seu Projeto neste campo. Neste contexto, é mister reconhecer que os<br />

Governos Militares efetivamente, promoveram uma determina<strong>da</strong> e específica reforma<br />

na estrutura agrária e agrícola do País. Uma reforma, inclusive, que reproduziu, sob<br />

novas formas, o mesmo projeto concentracionista, que, aliás, vinha-se gestando desde a<br />

vitória <strong>da</strong>s forças conservadoras após a aprovação <strong>da</strong> Lei 601 de 1850 476 . Foi,<br />

entretanto, uma reforma, especialmente no âmbito <strong>da</strong>s políticas agrícolas, que deu um<br />

474 CÂMARA <strong>DO</strong>S DEPUTA<strong>DO</strong>S (1979, op. cit. p. 10).<br />

475 “Doações graciosas” isto é, privilegia<strong>da</strong>s, e “reconhecimento de posses latifundiárias artificialmente<br />

estabeleci<strong>da</strong>s”, que significa legitimação igualmente privilegia<strong>da</strong> de grandes posses ilegítimas, portanto,<br />

juridicamente questionáveis. E observe-se que Luís Cirne Lima está-se referindo à déca<strong>da</strong> de 1970. Além disso,<br />

considerando as formas de alienação e titulação de terras públicas, analisados no Capítulo anterior, pode-se ter uma<br />

noção exata do que significaram, de fato, esses processos de licitação.<br />

476 Ver a este respeito o trabalho de José Murilo de Carvalho (CARVALHO, op. cit.) e os capítulos 2 e 3 deste<br />

estudo.<br />

233


efetivo impulso à produtivi<strong>da</strong>de do trabalho em determinados setores <strong>da</strong> agricultura<br />

brasileira, se considera<strong>da</strong> de forma agrega<strong>da</strong>. Mas era exatamente este o modelo de<br />

desenvolvimento rural concebido pelo Governo. Os seus “custos sociais” - a<br />

excludência, a marginali<strong>da</strong>de, a repressão aos movimentos de resistência <strong>da</strong>s populações<br />

rurais, etc. - eram parte consistente deste Projeto 477 , e considerados perfeitamente<br />

“racionais” na perspectiva de uma análise de “custo-benefício”. A respeito deste<br />

Modelo de desenvolvimento Octávio Ianni faz os seguintes comentários:<br />

“Desde o primeiro momento, o governo militar instalado com o<br />

Golpe de Estado de 1964 foi levado a adotar uma política de<br />

portas abertas para o capital estrangeiro, isto é, para o<br />

imperialismo. O conjunto do aparelho estatal, em suas condições<br />

econômicas e políticas de atuação, foi posto a serviço dos<br />

interesses <strong>da</strong> empresa imperialista multinacional e nacional.<br />

Desse modo, inaugurou-se uma época de desenvolvimento<br />

capitalista intenso e generalizado, na indústria e na agricultura, na<br />

ci<strong>da</strong>de e no campo. Daí a política agressiva e repressiva, em<br />

termos econômicos e políticos, no sentido de superexplorar a<br />

força de trabalho do proletariado industrial e agrícola.” 478<br />

Portanto, é relevante, neste contexto, procurar compreender o sentido deste<br />

processo de privatização de terras públicas, especialmente em termos de seus<br />

beneficiários imediatos.<br />

Ao analisar-se, no item 3.2.6 do capítulo anterior (“Titulação de Terras Públicas:<br />

Alienação e Privilégios”) as diferentes mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des e critérios de legitimação de posses<br />

e alienação de terras devolutas, ficou claro o sentido de facilitar o acesso à terra ou a<br />

legitimação de posses para determina<strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s privilegia<strong>da</strong>s, inclusive, assegurando<br />

a legitimação e titulação de terras cujos pleiteantes não dispunham de documentação<br />

alguma que lhes assegurasse direitos sobre as terras pretendi<strong>da</strong>s; de pleiteantes que<br />

detinham títulos com “vícios insanáveis” (isto é, falsos ou produto de fraude); ou, ain<strong>da</strong>,<br />

<strong>da</strong>queles que não preenchiam nenhum dos critérios legalmente instituídos para<br />

assegurar o direito à proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s terras 479 . Ou seja, foram assegura<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as<br />

facili<strong>da</strong>des para o acesso à terra a determinados grupos privilegiados, sob o pretexto de<br />

estarem contribuindo para a integração e desenvolvimento nacionais 480 .<br />

Em suma, se até então era, pelo menos, exigi<strong>da</strong> a mora<strong>da</strong> habitual dos posseiros<br />

ou de seus representantes e a cultura efetiva <strong>da</strong> terra possuí<strong>da</strong>, depois dos critérios<br />

477 Ver adiante, as teses de Roberto Campos acerca <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de do autoritarismo enquanto condição para<br />

assegurar “taxas adequa<strong>da</strong>s” de crescimento, ao fazer referência ao que denominava de “premissas cruéis”<br />

(SIMONSEN & CAMPOS, 1976. Pp. 223-225)<br />

478 IANNI. 1979(a) pp. 19-20. Grifos nossos.<br />

479 Ou seja, os privilégios assegurados, neste contexto, eram efetivamente muito mais amplos do que os concedidos<br />

aos grandes posseiros e sesmeiros pela Lei 601 de 1850. Nunca na história <strong>da</strong> terra brasileira, os privilégios na<br />

aquisição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de foram tão amplos quanto os assegurados pela legislação e pelos atos administrativos que<br />

deram forma à implementação do Estatuto <strong>da</strong> Terra. E nunca a ilegali<strong>da</strong>de e a inconstitucionali<strong>da</strong>de destes atos foram<br />

tão amplas e escancara<strong>da</strong>s, quanto neste período.<br />

480 Ver capítulo 4, onde estas questões são ampla e objetivamente detalha<strong>da</strong>s e discuti<strong>da</strong>s.<br />

234


instituídos, sobretudo administrativamente, pelo Governo e por seus Órgãos fundiários,<br />

eram assegurados o reconhecimento ou a legitimação de posses, ou mesmo o direito de<br />

preferência para aquisição de proprie<strong>da</strong>des fundiárias, a grupos e pessoas que não<br />

preenchiam nenhum dos requisitos legalmente estabelecidos.<br />

Nestes casos, cuja incidência maior passa a verificar-se a partir dos finais dos<br />

anos 60 e inícios de 70 deste século, fica absolutamente caracteriza<strong>da</strong> a<br />

inconstitucionali<strong>da</strong>de 481 dos atos administrativos de alienação de terras públicas ou de<br />

legitimação de posses sobre estas, por contrariarem a legislação em vigor. Inclusive, por<br />

ferirem os imperativos constitucionais que regulamentam a matéria. Isto torna<br />

questionável, juridicamente, a maioria dos títulos concedidos pelo Regime Militar,<br />

independentemente dos seus possíveis resultados econômicos 482 .<br />

O Relatório Final <strong>da</strong> Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário<br />

documenta vastamente este fato. Naquele Relatório, ao incorporar e comentar o<br />

depoimento de José Francisco <strong>da</strong> <strong>Silva</strong>, Presidente <strong>da</strong> CONTAG, o Relator <strong>da</strong> Comissão<br />

expressa-se nos seguintes termos, tentando <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> relevância e gravi<strong>da</strong>de deste<br />

fenômeno de privatização privilegia<strong>da</strong>; especialmente enfatizando os riscos de que, por<br />

estes meios, fosse reproduzi<strong>da</strong> a mesma estrutura fundiária concentra<strong>da</strong> em áreas novas,<br />

ou seja, ain<strong>da</strong> não incorpora<strong>da</strong>s ao patrimônio particular:<br />

”Indicou o último reca<strong>da</strong>stramento de imóveis rurais (que), em<br />

1972, foram ca<strong>da</strong>strados apenas 393.230.000 hectares, o que<br />

corresponde a menos de 50% <strong>da</strong> área terrestre do País,<br />

sugerindo, portanto, que mais <strong>da</strong> metade do nosso território está<br />

para ser ocupado, sobretudo a região norte, em que a taxa de<br />

ocupação é estima<strong>da</strong> em 12%.”<br />

“Afirmou o depoente que ‘embora a eleva<strong>da</strong> concentração <strong>da</strong><br />

posse <strong>da</strong> terra possa ser considera<strong>da</strong> oficialmente como<br />

prejudicial ao desenvolvimento econômico e social <strong>da</strong> agricultura,<br />

ao se promover a alienação de grandes extensões de terras<br />

públicas a poucos favorecidos, estamos correndo o grave risco<br />

481 Até porque, os atos administrativos dos órgãos fundiários ou os Decretos do Poder Executivo não podem<br />

contrariar a Legislação pertinente à matéria e, ain<strong>da</strong> menos, a Constituição Federal. Por isso, são juridicamente<br />

questionáveis, porque inconstitucionais.<br />

482 Entretanto, considerando-se as teses de Roberto Campos, um dos mais importantes e prestigiados teóricos do<br />

modelo de desenvolvimento econômico brasileiro <strong>da</strong> época, pode-se concluir que o desprezo pela Constituição ou o<br />

desdém pela excludência social e econômica de boa parte <strong>da</strong> população, eram parte substantiva do Projeto. Isso fica<br />

claramente estabelecido na seguinte passagem do seu trabalho “A Opção Política Brasileira” , publicado como o<br />

Capítulo X no livro “A Nova Economia Brasileira” (SIMONSEN & CAMPOS, 1976. pp. 224 e seguintes): “(...)A<br />

terceira premissa cruel é que no atual contexto histórico, um certo grau de autoritarismo parece<br />

inevitável na fase final de modernização, isto é, na transição para a socie<strong>da</strong>de industrial(...) Essa<br />

desagradável conclusão é acentua<strong>da</strong> mesmo por ‘grandes liberais’, como Raymond Aron e Gunnar<br />

Myr<strong>da</strong>l(...) O problema torna-se ain<strong>da</strong> mais sério nas socie<strong>da</strong>des que sofrem ao mesmo tempo de inflação<br />

e estagnação. Pois então se trava uma espécie de guerra civil incruenta, em que as diversas classes<br />

lutam pela redistribuição de fatias de um bolo insuficiente(...) Não é de estranhar portanto que o<br />

autoritarismo, longe de ser um caso de patologia política, parece ser hoje a forma política<br />

prevalecente na maioria dos Países.” (Grifos nossos).<br />

235


de transplantar, para as áreas ain<strong>da</strong> não ocupa<strong>da</strong>s, a mesma<br />

injusta distribuição <strong>da</strong> terra vigente nas regiões já ocupa<strong>da</strong>s’ 483 .”<br />

Esses trechos dos depoimentos de Luís Fernando Cirne Lima e de José<br />

Francisco <strong>da</strong> <strong>Silva</strong>, transcritos e enfatizados no Relatório Final <strong>da</strong> Comissão<br />

Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário, colocam claramente o cerne <strong>da</strong><br />

contradição embuti<strong>da</strong> no discurso <strong>da</strong> Mensagem 33 e no texto do Estatuto <strong>da</strong> Terra, e<br />

que se refere ao reconhecimento “formal”, pelo Estado, de que a eleva<strong>da</strong> concentração<br />

<strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra e a dicotomia minifúndio-latifúndio são prejudiciais “ao<br />

desenvolvimento econômico e social <strong>da</strong> agricultura” mas que, na prática, age-se de<br />

forma inversa ao diagnóstico, ao promover a reprodução <strong>da</strong> mesma reconcentração em<br />

áreas ain<strong>da</strong> não efetivamente ocupa<strong>da</strong>s pela iniciativa priva<strong>da</strong>. Ou seja, em áreas onde<br />

há predominância de terras públicas e nas quais, se realmente fosse objetivo do Governo<br />

proceder a alguma espécie de reforma agrária, poderia o mesmo ter implementado o<br />

processo de acesso à terra, atendendo ao preceito constitucional referido na Mensagem<br />

33.<br />

Tudo isso significa, como ficou amplamente discutido na capítulo 4, que o<br />

Projeto de Desenvolvimento Rural e de “Reforma Agrária” propostos no âmbito do<br />

Estatuto <strong>da</strong> Terra, efetivamente, caminhavam no sentido <strong>da</strong> consoli<strong>da</strong>ção de “médias” e,<br />

sobretudo, “grandes” empresas agropecuárias, enquanto formas pretensamente<br />

adequa<strong>da</strong>s a superar a miséria no meio rural. Portanto, que não havia, naquele Projeto, o<br />

objetivo de facilitar o acesso à terra à população sem ou com pouca terra. Pior: sequer<br />

se pretendia assegurar os direitos reais de pequenos posseiros, direitos estes, aliás,<br />

garantidos por todos os diplomas legais e pelas Constituições Brasileiras anteriores a<br />

1967, como amplamente documentado nos diversos capítulos deste estudo.<br />

Antes de entrar na análise de alguns <strong>da</strong>dos sobre o processo de privatização <strong>da</strong>s<br />

terras novas por extratos de área nas diferentes regiões do País, convém fazer alguma<br />

referência a um trecho do Relatório Final <strong>da</strong> Comissão Parlamentar de Inquérito do<br />

Sistema Fundiário, que esclarece exatamente este aspecto <strong>da</strong> questão, referente ao tipo<br />

de proprie<strong>da</strong>de e de dimensões de áreas tais como definidos pelo INCRA:<br />

“(...) Além disso o INCRA prevê para 75/79 a instalação de 4 mil<br />

proprie<strong>da</strong>des-famílias (110 ha) e 1.200 médias empresas (até<br />

3.000 ha) e 120 grandes empresas (até 72 mil ha), perfazendo<br />

um total de mais de 10 milhões de hectares.” 484<br />

483 CÂMARA <strong>DO</strong>S DEPUTA<strong>DO</strong>S, op. cit. p. 10. Grifos nossos.<br />

484 Trecho do Depoimento de José Gomes <strong>da</strong> <strong>Silva</strong>, comentado no Relatório Final <strong>da</strong> CPI do Sistema Fundiário<br />

(CÂMARA <strong>DO</strong>S DEPUTA<strong>DO</strong>S op. cit. p. 5). Apenas para uma ilação sem maiores pretensões, esses <strong>da</strong>dos<br />

significam que o INCRA, pelo menos ao nível de “planejamento” imaginava a seguinte proporção na implementação<br />

destas metas: Proprie<strong>da</strong>des-Família = 440.000 ha; Médias Proprie<strong>da</strong>des = 3.600.000 ha; Grandes Empresas =<br />

12.680.000 ha. Essas metas, embora apenas ao nível <strong>da</strong> “imaginação” dos “Planejadores” dispensam maiores<br />

comentários; e dão uma idéia de como era “pretendi<strong>da</strong>” a ação fundiária na época. É a idéia de reforma agrária e<br />

desenvolvimento rural pretendidos.<br />

236


Este trecho extraído do depoimento de José Gomes <strong>da</strong> <strong>Silva</strong> oferece uma pista<br />

para a compreensão <strong>da</strong>s dimensões atribuí<strong>da</strong>s pelo Governo aos conceitos de<br />

“proprie<strong>da</strong>de-famílias” com área em torno de 110 hectares; “médias empresas” com<br />

área de até 3.000 hectares e, finalmente, grandes empresas, com áreas de até 72.000<br />

hectares. Observe-se que o “gap” entre as proprie<strong>da</strong>des familiares (de 110 hectares) e<br />

“médias” (de até 3.000) e, sobretudo, de “grandes empresas” (de até 72.000 hectares!!!),<br />

não deixam margem a nenhuma dúvi<strong>da</strong> de que se tratava de um projeto de manutenção<br />

e, mais que isto, de ampliação, dos interesses do latifúndio.<br />

Ao proceder-se a análise dos <strong>da</strong>dos dos Quadros 1.A e 1.B adiante, referentes à<br />

distribuição do processo de apropriação de áreas novas por estratos e regiões, ficará<br />

mais claro o sentido e implicações deste modelo conceitual, tal como proposto e<br />

implementado pelo INCRA. De qualquer maneira, definir proprie<strong>da</strong>des “médias” como<br />

imóveis com áreas de até 3.000 ha, e “grandes empresas”, com áreas de até 72.000<br />

hectares, é claro indicativo do vínculo latifundiário, ou especulativo, do Projeto<br />

Fundiário do governo.<br />

Por outro lado, e para encerrar estas observações introdutórias ao estudo <strong>da</strong>s<br />

implicações <strong>da</strong> Política Fundiária posta em prática a partir <strong>da</strong> aprovação do Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra, é interessante, ain<strong>da</strong>, fazer mais uma referência ao Relatório Final <strong>da</strong> Comissão<br />

Parlamentar de Inquérito cita<strong>da</strong>, onde é realça<strong>da</strong> a “filosofia do Ministério <strong>da</strong><br />

Agricultura” no âmbito de implementação desta política de distribuição de terras e de<br />

desenvolvimento rural:<br />

“Por outro lado a filosofia do Ministério <strong>da</strong> Agricultura é no sentido<br />

de <strong>da</strong>r cobertura às grandes empresas, relegando por completo a<br />

colonização em sentido social que foi a meta almeja<strong>da</strong> pelo<br />

Governo passado. O próprio Ministro <strong>da</strong> Agricultura teve a<br />

oportuni<strong>da</strong>de de afirmar: “a ausência de regularização fundiária<br />

constitui o principal obstáculo ao desenvolvimento agrícola <strong>da</strong><br />

região, na medi<strong>da</strong> em que o colono, sem possuir legalmente sua<br />

terra, fica marginalizado do processo econômico (...).”<br />

“Da preocupação com a colonização em sentido social, nós<br />

chegamos à filosofia <strong>da</strong> ocupação <strong>da</strong> Amazônia pela pata do boi e<br />

estes frutos estamos colhendo hoje. Prestando depoimento nesta<br />

CPI, na sua reunião de 11.5.77, o Bispo D. Moacyr Grechi, do<br />

Acre afirmava: ‘A respeito <strong>da</strong>s empresas de colonização que, na<br />

Amazônia, podem conseguir a absur<strong>da</strong> extensão de até<br />

500.000 hectares de terra para ca<strong>da</strong> projeto, resta questionar<br />

se a propala<strong>da</strong> experiência delas neste tipo de empreendimento<br />

não camufla o processo típico <strong>da</strong> exploração <strong>da</strong> população<br />

migrante, sendo uma <strong>da</strong>s causas <strong>da</strong> própria migração. Vejam:<br />

empresas que “colonizaram” o Paraná, por exemplo, estão<br />

hoje readquirindo as terras por elas vendi<strong>da</strong>s aos colonos<br />

atraídos do Sul ou do Norte e estão vendendo novas terras aos<br />

mesmos colonos na Amazônia. Tudo isso é normal?” 485<br />

485 CAMARA <strong>DO</strong>S DEPUTA<strong>DO</strong>S op. cit. pp. 5-6. Grifos nossos.<br />

237


Este trecho do Relatório <strong>da</strong> CPI não deixa dúvi<strong>da</strong>s quanto às implicações do<br />

processo de privatização privilegia<strong>da</strong>, promovido pelo Governo, embora, estivesse este,<br />

fun<strong>da</strong>mentado no discurso de justa distribuição <strong>da</strong> terra com igual<strong>da</strong>de de oportuni<strong>da</strong>des<br />

para todos. Nos capítulos 2 e 3 foram feitas referências ao papel que passaram a<br />

desempenhar as “Empresas de Colonização”, enquanto alternativa à promoção do<br />

monopólio e exercício do controle efetivo sobre as terras devolutas do Governo.<br />

Por este meio, estas empresas passaram a adquirir o “direito” de promover, em<br />

nome do Poder Público, o controle sobre o próprio processo de alienação de terras. Quer<br />

dizer, antes de se deflagrar o processo de privatização <strong>da</strong> terra, o próprio controle e<br />

gestão deste processo passa a ser desenvolvido pela “iniciativa priva<strong>da</strong>”. Esta é, de fato,<br />

uma invenção peculiarmente brasileira, para usar a expressão do Ministro Cirne Lima, e<br />

que permitiu a privatização <strong>da</strong>s próprias ações do Estado. No limite, o próprio Estado.<br />

A referência feita, pelo Bispo do Acre e Purus, de que as empresas<br />

colonizadoras conseguem até a “absur<strong>da</strong> extensão de até 500.000 hectares por<br />

projeto” não deixa nenhuma dúvi<strong>da</strong> a este respeito. Esta é a outra forma, mais<br />

avança<strong>da</strong>, <strong>da</strong> grilagem especializa<strong>da</strong> a que se tem feito referência neste trabalho.<br />

Assim, o próprio processo de privatização de terras públicas, no período do regime<br />

militar é “terceirizado” de forma peculiar.<br />

Feitas estas observações gerais, cabe afirmar que este capítulo não tem por<br />

objetivo levantar evidências empíricas, enquanto condição para comprovar hipóteses.<br />

Limita-se, apenas, a apresentar alguns dos resultados relevantes destas políticas de<br />

governo, especialmente no que toca ao problema <strong>da</strong> privatização de terras públicas e <strong>da</strong><br />

sua distribuição por extratos de áreas e por regiões, tal como efetivamente ocorreram no<br />

período, em decorrência <strong>da</strong> implementação <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s preconiza<strong>da</strong>s no Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra e nas diversas normas administrativas e legais que o complementaram.<br />

Especialmente, busca-se a análise desses fenômenos, em relação ao que, neste<br />

estudo, é denominado de “áreas novas”, ou seja, o diferencial de áreas em domínio<br />

privado, computado entre os censos de 1960 e 1980, e que passou, por suposto, a ser<br />

incorporado à proprie<strong>da</strong>de particular neste período. Como foi registrado no capítulo<br />

anterior, estas áreas correspondem, aproxima<strong>da</strong>mente, ao volume <strong>da</strong>s terras<br />

discrimina<strong>da</strong>s 486 pelos órgãos fundiários do Governo, após a aprovação do Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra.<br />

É evidente que a escolha pela análise dos <strong>da</strong>dos referentes às “áreas novas” é<br />

arbitrária. Entretanto, tem a vantagem analítica, de permitir o estudo específico <strong>da</strong>s<br />

formas e meios, através dos quais, se processou a alienação de terras públicas, ou a<br />

legalização de posses sobres estas, em decorrência <strong>da</strong> aplicação dos instrumentos e<br />

ações fundiários definidos pelo Estado, no período, em função <strong>da</strong> Lei 4.504/64 que, ao<br />

regulamentar o “imperativo constitucional” de 1946, na ver<strong>da</strong>de, instrumentalizou<br />

jurídica e administrativamente o Estado para que pudesse promover a alienação de<br />

terras públicas, ou o reconhecimento de domínios particulares sobre estas. Estes <strong>da</strong>dos<br />

486 Ver a respeito <strong>da</strong>s estatísticas correspondentes, YOKOTA e ZANATTA (citados) e o Capítulo 4 deste estudo.<br />

238


serão complementados pela análise de outras estatísticas, particularmente as<br />

relaciona<strong>da</strong>s com os movimentos <strong>da</strong> população rural e urbana, por um lado, e com a<br />

destinação <strong>da</strong><strong>da</strong> às terras agrárias, no país, por outro lado.<br />

Destarte, as análises feitas neste capítulo têm, apenas, o objetivo de lançar mais<br />

alguma luz acerca dos resultados <strong>da</strong> Política Fundiária do Governo no período, tal como<br />

proposta e tal como implementa<strong>da</strong> pelo Governo. Neste sentido específico, o presente<br />

capítulo procura complementar as análises anteriores, buscando esclarecer aspectos<br />

relevantes associados ao projeto e ao discurso de desenvolvimento rural do Governo.<br />

Por outro lado, procura indicar algumas referências gerais que possam permitir a<br />

comparação entre a Política de Terras dos Governos Militares, e iniciativas similares<br />

implementa<strong>da</strong>s em outros momentos <strong>da</strong> história agrária brasileira.<br />

Nesta perspectiva, além <strong>da</strong> constatação do fato concreto de que a estrutura<br />

fundiária brasileira sempre se caracterizou por um elevado grau de concentração,<br />

conforme evidenciaram inúmeros estudos, alguns dos quais citados neste trabalho 487 , é<br />

fun<strong>da</strong>mental que se busque compreender as especifici<strong>da</strong>des e os meandros dos<br />

fenômenos e processos que o engendraram - e como visto nos capítulos anteriores,<br />

ain<strong>da</strong> o engendram - assim como os motivos econômicos, sociais, políticos, etc., que se<br />

encontram subjacentes a esse processo de alienação e apropriação privilegia<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s<br />

terras públicas no Brasil. Neste trabalho, esta problemática é analisa<strong>da</strong> a partir de uma<br />

perspectiva específica: o estudo <strong>da</strong>s mediações entre a formulação de normas jurídicas e<br />

administrativas e suas respectivas relações e implicações, ao nível concreto, <strong>da</strong> sua<br />

implementação.<br />

A tarefa de deslin<strong>da</strong>mento deste processo vem sendo desenvolvi<strong>da</strong> em dois<br />

níveis estritamente articulados: um quantitativo, no qual se buscou colocar em evidência<br />

a dinâmica física e espacial do processo de apropriação e do incremento de quanti<strong>da</strong>des<br />

de terras devolutas incorpora<strong>da</strong>s à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> rural e sua respectiva destinação,<br />

no período, com a referência a estratos de áreas dos estabelecimentos e a regiões do<br />

país; outro, qualitativo, pelo qual se buscou colocar em relevo as formas, meios e<br />

instrumentos, jurídicos e administrativos, utilizados pelo Estado, para justificar e<br />

sustentar a implementação deste processo específico de alienação de terras públicas ou<br />

do reconhecimento de domínios privados sobre estas; e os seus efeitos sobre a estrutura<br />

fundiária e os movimentos <strong>da</strong> população rural e urbana.<br />

A análise, especialmente desta segun<strong>da</strong> perspectiva, oferece a possibili<strong>da</strong>de de<br />

captar e compreender a especifici<strong>da</strong>de do Projeto de Desenvolvimento Rural e <strong>da</strong><br />

Política Fundiária, tal como propostos pelos Governos a partir de 1964. A análise<br />

quantitativa foi desenvolvi<strong>da</strong> com base no levantamento e tratamento estatístico de<br />

<strong>da</strong>dos específicos, relativos: (a) às quanti<strong>da</strong>des de áreas, diferencialmente apropria<strong>da</strong>s,<br />

discrimina<strong>da</strong>s por estratos de área, regiões do país e em nível agregado do país<br />

(Quadros 1.A - Terras novas; e Quadro 1.B - Distribuição Intrarregional e<br />

487 GRAZIANO <strong>DA</strong> SILVA (1980 e 1982); DELGA<strong>DO</strong> (1985); MARTINS (1983), JONES (1987).<br />

239


Interregional); (b) às variações <strong>da</strong> população rural e urbana no período (Quadro 2.A -<br />

População Rural e Urbana; e Quadro 2.B Taxas de Incremento <strong>da</strong> População); e (c) ao<br />

estudo dos <strong>da</strong>dos referentes à utilização ou destinação <strong>da</strong>s terras, produtiva ou<br />

especulativamente (Quadro 3 - Utilização e Destinação <strong>da</strong>s Terras).<br />

Estas análises estão estritamente associa<strong>da</strong>s a, e, em certo sentido, são<br />

informa<strong>da</strong>s pelo modelo de desenvolvimento rural e, muito especialmente, pelos<br />

instrumentos jurídicos e administrativos instituídos e utilizados pelo Governo para<br />

implementar uma determina<strong>da</strong> política de alienação de terras públicas e de legitimação<br />

de terras em poder de particulares.<br />

Isto porque, conforme as diretrizes defini<strong>da</strong>s na Mensagem 33 e nos diversos<br />

atos administrativos e documentos do Governo, elaborados para justificar ou orientar a<br />

execução <strong>da</strong> Política de Terras, as transferências de domínio e o reconhecimento de<br />

proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> sobre as terras públicas, subordinavam-se, sempre, à execução<br />

“projetos relevantes” para o desenvolvimento nacional ou regional - por isso,<br />

amplamente subsidiados - ou para coibir tensões e conflitos sociais considerados<br />

significativos.<br />

Assim sendo, torna-se legítima a expectativa de que a taxa de utilização <strong>da</strong>s<br />

terras agrícolas, então apropria<strong>da</strong>s, fosse, na pior <strong>da</strong>s hipóteses, proporcional à taxa<br />

histórica de ocupação <strong>da</strong>s terras agrícolas. Portanto, que se elevasse no período.<br />

A tendência contrária seria, em certo sentido, indicativa do fracasso <strong>da</strong><br />

“Política” implícita no Projeto de Desenvolvimento Rural do Governo, especialmente a<br />

vincula<strong>da</strong> à implementação do imperativo constitucional de promover a justa e<br />

eqüitativa distribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra. Ou, na melhor <strong>da</strong>s hipóteses,<br />

significaria o desvirtuamento do projeto específico <strong>da</strong> Reforma Agrária, tal como<br />

proclamado pelo Governo. Observe-se que este desvirtuamento <strong>da</strong> idéia <strong>da</strong> promoção<br />

<strong>da</strong> “Reforma Agrária Democrática”, proclama<strong>da</strong> na Mensagem 33 e no Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra, apresenta semelhanças com o desvirtuamento <strong>da</strong>s teses <strong>da</strong> “Colonização<br />

Sistemática” em relação a Lei 601 de 1850, como evidenciado pela análise realiza<strong>da</strong> no<br />

capítulo 2. Em ambos os casos os Projetos Fundiários e de Colonização que se<br />

implementou efetivamente, pouco, ou na<strong>da</strong>, tinham a ver com as teses originalmente<br />

defendi<strong>da</strong>s e incluí<strong>da</strong>s nas respectivas legislações e, menos ain<strong>da</strong>, com os objetivos<br />

originalmente definidos. Ou seja, estes foram apenas pretextos para a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

mesmas tendências anteriores.<br />

Nesta hipótese, pode-se afirmar que persistia o mesmo e antigo processo de<br />

alienação e legitimação privilegia<strong>da</strong>s, embora sob nova roupagem. O que não significa<br />

que o governo não tenha implementado um determinado projeto de reestruturação<br />

fundiária, ao contrário.<br />

Neste contexto, a compreensão objetiva <strong>da</strong> Política Fundiária desenvolvi<strong>da</strong> pelo<br />

Estado, no período, exige procedimento metodológico complexo. Não pode ser reduzi<strong>da</strong><br />

à sua expressão puramente quantitativa, tal como evidencia<strong>da</strong> pelas estatísticas <strong>da</strong><br />

concentração na distribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de rural. Exige, para além destas evidências, a<br />

240


análise cui<strong>da</strong>dosa e objetiva de outras manifestações do processo de ocupação e<br />

legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de e seus efeitos sobre a economia e à socie<strong>da</strong>de rurais. Nesta<br />

conjuntura, a análise dos movimentos interregional e intraregional do processo de<br />

apropriação e privatização de terras públicas exige, no mínimo, o estudo de sua<br />

articulação com a destinação (produtiva ou especulativa) <strong>da</strong><strong>da</strong> às terras incorpora<strong>da</strong>s ao<br />

patrimônio privado, por um lado, e com as variações entre a população rural e urbana,<br />

por outro.<br />

Estritamente associa<strong>da</strong> a esta análise, é fun<strong>da</strong>mental que se procure discutir os<br />

meios e métodos utilizados pelo Estado na efetivação concreta dos processos de<br />

incorporação <strong>da</strong>s terras “novas” ao patrimônio de novos ou de antigos estabelecimentos.<br />

Ou seja, a análise efetiva dos instrumentos de política fundiária, estu<strong>da</strong>dos no capítulo<br />

anterior, em articulação com os seus resultados, no período. Até porque, como vem<br />

sendo registrando reitera<strong>da</strong>s vezes neste estudo, a incorporação de “terras novas”, seja<br />

pela ação ou pela omissão <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des fundiárias do Estado, não significa,<br />

necessariamente, que se trataram de alienação ou de reconhecimento de domínio sobre<br />

terras devolutas, “livres” e desocupa<strong>da</strong>s. Logo, o processo de alienação de terras<br />

públicas, incorpora, necessariamente, determina<strong>da</strong>s e específicas relações de<br />

expropriação de populações ao nível do exercício <strong>da</strong> força bruta e do engodo contra<br />

direitos reais. Portanto, de grilagem especializa<strong>da</strong>. Especialmente quando se referem<br />

aos “pequenos posseiros” e indígenas que, legal e legitimamente, sempre tiveram seus<br />

direitos reais ou civis, de proprie<strong>da</strong>de, assegurados, como se demonstrou amplamente<br />

nos capítulos anteriores.<br />

Direitos estes, sistematicamente anulados na prática, como se vem<br />

documentando nesta pesquisa. Este fato é a evidência mais contundente de que persiste<br />

a legitimação privilegia<strong>da</strong> e juridicamente questionável.<br />

Em sendo assim, pode-se afirmar que a Política Fundiária do Governo, no<br />

período, em vez de promover o imperativo constitucional de assegurar a “justa<br />

distribuição <strong>da</strong> terra, com igual oportuni<strong>da</strong>de para todos” nem sequer, promoveu, na<br />

maioria dos casos que envolveram pequenos posseiros e indígenas, a titulação <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de territorial, legalmente exigi<strong>da</strong>, portanto obrigatória para o Governo. Como<br />

se fez menção no capítulo anterior, este fato caracteriza o ato de improbi<strong>da</strong>de<br />

administrativa por parte <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des fundiárias, por um lado; e de enriquecimento<br />

ilícito, por parte dos ci<strong>da</strong>dãos que dele se beneficiaram 488 , por outro.<br />

Estes fatos, independentemente de que se faça qualquer referência aos atos de<br />

violência pura e simples contra posseiros e indígenas - atos estes, vastamente<br />

conhecidos e documentados - caracterizam ilícitos, do ponto de vista jurídico,<br />

praticados pelas autori<strong>da</strong>des fundiárias e por inúmeros ci<strong>da</strong>dãos que se tornaram<br />

detentores de grandes “proprie<strong>da</strong>des”, muito especialmente, nas Regiões Centro-Oeste,<br />

488 Mas que, na ver<strong>da</strong>de, eram objeto de muitas posses legítimas de terceiros, que portanto, detinham o direito real<br />

sobre a terra e a expectativa de sua legalização, pelo Estado.<br />

241


Nordeste e Norte. Mas, em menor escala, também nas demais regiões. Tratam-se,<br />

portanto, de atos passíveis de questionamento e, mais do que isto, de enquadramento<br />

civil e criminal pelo Poder Judiciário 489 , posto serem atos praticados ao arrepio ou em<br />

clara contradição com preceitos constitucionais.<br />

A caracterização dos atos ilícitos ficou amplamente demonstra<strong>da</strong> no capítulo 4.<br />

Entretanto, considerando-se que esse é um dos traços fun<strong>da</strong>mentais no processo de<br />

“distribuição” de terras púbicas - sob a capa de ven<strong>da</strong>s, licitações, etc.-, convém<br />

destacar como estes atos são praticados: Na medi<strong>da</strong> em que terras públicas são<br />

“concedi<strong>da</strong>s” a particulares, em contradição com determinados preceitos normativos e<br />

legais, o Estado, ou como preferem os juristas, o Poder Público, atua, na prática,<br />

privilegiando poucos ci<strong>da</strong>dãos em detrimento <strong>da</strong> imensa cama<strong>da</strong> <strong>da</strong> população rural, que<br />

efetivamente, detinha direitos reais sobre as terras onde vivia e trabalhava, inclusive<br />

cumprindo os requisitos legais quanto ao acesso, posse e uso <strong>da</strong> terra. Neste sentido, o<br />

ilícito configura-se objetivamente, quando a materialização do direito de proprie<strong>da</strong>de<br />

afeta direitos reais precedentes, fun<strong>da</strong>ndo-se em deliberações privilegia<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s<br />

autori<strong>da</strong>des públicas. É neste sentido, do ponto de vista jurídico, que se consubstancia e<br />

caracteriza, na prática, o ato ilícito. Segundo Hely Lopes Meirelles, o controle judiciário<br />

ou judicial<br />

“é o exercido privativamente pelos órgãos do Poder Judiciário<br />

sobre os atos administrativos do Executivo, do Legislativo e do<br />

próprio Judiciário quando realiza ativi<strong>da</strong>de administrativa. É um<br />

controle a posteriori, unicamente <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de, por restrito à<br />

verificação <strong>da</strong> conformi<strong>da</strong>de do ato com a norma legal que o rege.<br />

Mas é, sobretudo um meio de preservação de direitos<br />

individuais porque visa impor a observância <strong>da</strong> lei em ca<strong>da</strong><br />

caso concreto, quando reclama<strong>da</strong> por seus beneficiários.<br />

Esses direitos podem ser públicos ou privados - não importa -<br />

mas sempre subjetivos e próprios de quem pede a correção<br />

judicial do ato administrativo, salvo na ação popular em que o<br />

autor defende o patrimônio <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de lesado pela<br />

Administração 490 .”<br />

Nesta mesma linha de argumentação, Celso Antônio Bandeira de Mello, salienta<br />

que, acerca do controle judicial dos atos administrativos<br />

“é ao Poder Judiciário e só a ele que cabe resolver<br />

definitivamente sobre quaisquer litígios de direito. Detém, pois, a<br />

universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> jurisdição, quer no que respeita à legali<strong>da</strong>de ou<br />

consonância <strong>da</strong>s condutas públicas com atos normativos<br />

infralegais, quer no que atina à constitucionali<strong>da</strong>de delas. Neste<br />

mister tanto anulará atos inválidos como imporá à Administração<br />

os comportamentos a que esteja de direito obriga<strong>da</strong>, como<br />

proferirá e imporá as condenações pecuniárias cabíveis.” 491<br />

489 Refere-se aqui ao princípio jurídico do “controle <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de dos atos administrativos”, praticados pelas<br />

autori<strong>da</strong>des do Estado.<br />

490 Op. cit., p. 601. Grifos nossos; itálicos de Hely Lopes Meirelles.<br />

491 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 70.<br />

242


Apesar disso, a reprodução, em áreas novas, <strong>da</strong> mesma estrutura agrária<br />

concentra<strong>da</strong> é, entre inúmeras outras, uma evidência contundente de atos ilícitos,<br />

portanto, juridicamente questionáveis.<br />

Por motivos desta natureza, cuja relevância é indiscutível, é que se torna<br />

absolutamente necessária a análise <strong>da</strong>s evidências referentes à luta pela posse <strong>da</strong> terra,<br />

muito especialmente dos movimentos de resistência dos posseiros, lesados em seus<br />

direitos reais e legítimos e escorraçados <strong>da</strong>s terras onde sempre viveram e trabalharam.<br />

A análise desses processos, <strong>da</strong>do o seu caráter eminentemente qualitativo, e até porque<br />

as estatísticas a respeito <strong>da</strong> violência são de difícil levantamento, pode, entretanto, ser<br />

intenta<strong>da</strong> por vias indiretas, como por exemplo, pela estudo <strong>da</strong> dinâmica <strong>da</strong> população<br />

rural e urbana, dos conflitos e dos crimes praticados na luta pela terra, etc.<br />

Igualmente difícil, ao nível agregado, seria aferir o volume e a quali<strong>da</strong>de dos<br />

processos de alienação de terras, pelo Estado, se feitos de forma legal ou não, como<br />

acontece nos casos de grilagem, em particular, quando se trata <strong>da</strong>quilo que neste estudo<br />

se está denominando de “grilagem especializa<strong>da</strong>”. Aquela que é processa<strong>da</strong> sob a<br />

cobertura de procedimentos aparentemente legais, mas que são “legais” apenas na<br />

aparência formal. Na reali<strong>da</strong>de, ferem direitos assegurados legalmente a terceiros.<br />

Entretanto, este método de grilagem especializa<strong>da</strong> está amplamente caracterizado em<br />

diversos depoimentos prestados à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema<br />

Fundiário e analisa<strong>da</strong> no seu Relatório Final. Naquele Relatório, este procedimento de<br />

grilagem é descrito <strong>da</strong> seguinte forma:<br />

“Por sua vez, Dom Moacyr Grechi, Bispo do Acre e Purus,<br />

destacou que, ‘80% <strong>da</strong>s terras do Acre foram vendi<strong>da</strong>s a<br />

investidores do Centro-Sul sem que se procedesse a<br />

regularização fundiária do Estado, e que muitos especuladores<br />

adquiriram seringais a baixo preço para vendê-los mais tarde com<br />

grande margem de lucro’. Ressaltou que os abusos são cometidos<br />

de duas formas: a) pelo esticamento, ou seja, pela compra de<br />

área sem delimitação exata, à qual são, posteriormente anexa<strong>da</strong>s<br />

áreas subjacentes, com a conivência dos cartórios; b) pela<br />

falsificação de títulos, inclusive na Bolívia.<br />

“Além destas irregulari<strong>da</strong>des, bastante generaliza<strong>da</strong>s, agravamse<br />

os problemas sociais a partir do momento em que começam a<br />

ser derruba<strong>da</strong>s as áreas adquiri<strong>da</strong>s pelas empresas, para formar<br />

pastagens. Sendo que a terra é ocupa<strong>da</strong> geralmente por<br />

famílias de seringueiros ou agricultores; um dos primeiros<br />

objetivos dos fazendeiros é o de “limpar a área”, isto é, tirar<br />

<strong>da</strong>s terras os moradores que nela trabalham há 5, 10, 20 ou 40<br />

anos, sem o menor respeito pelos direitos dessa gente.<br />

Aproveitando-se do fato de que os seringueiros e colonos não<br />

conhecem as leis agrárias e os direitos que elas lhes<br />

garantem, ou por não ter como fazê-los respeitar, é comum a<br />

prática de expulsar posseiros por métodos como: a) não<br />

fornecimento de mercadorias para os seringueiros, obstrução de<br />

varadouros, proibição de desmatar e fazer roçados; b) destruição<br />

243


de plantações, invasão de posses, derruba<strong>da</strong>s até perto <strong>da</strong>s casas<br />

dos posseiros, deixando-os sem ou quase sem terras para<br />

trabalhar; c) compra de posses e benfeitorias por preços irrisórios<br />

ou, quando muito, em troca de uma área muito inferior ao módulo,<br />

que não permitirá ao posseiro e família trabalhar e progredir; d)<br />

atuação de pistoleiros que amedrontam os posseiros numa guerra<br />

psicológica através de ameaças ou mesmo de espancamentos e<br />

outras violências; e) ameaças feitas por policiais a serviço de<br />

proprietários; prisões de posseiros, por questões de terra, sem<br />

ordem judicial ou por ordem judicial sem que tenha sido<br />

movi<strong>da</strong> a ação competente(...).” 492<br />

A métodos similares se fez referência em capítulo anterior. Estes são, em linhas<br />

gerais, os métodos <strong>da</strong> grilagem especializa<strong>da</strong>: <strong>da</strong> apropriação e <strong>da</strong> regulamentação<br />

privilegia<strong>da</strong>s, que caracterizaram de maneira relevante a execução <strong>da</strong> Política de Terras<br />

posta em prática no período Militar.<br />

Tendo em estrita consideração as restrições metodológicas cita<strong>da</strong>s acima, é que<br />

se fez a opção, neste capítulo, por complementar à análise documental, realiza<strong>da</strong> no<br />

capítulo anterior, com algumas estatísticas referentes ao volume e distribuição de terras<br />

incorpora<strong>da</strong>s ao patrimônio privado no período, ao movimento <strong>da</strong> população rural e<br />

urbana, e à destinação <strong>da</strong><strong>da</strong> à terra.<br />

2. Alienação e Apropriação de Terras Novas<br />

O conceito “áreas novas”, tal como definido neste trabalho, não significa que<br />

estas terras estivessem desocupa<strong>da</strong>s ou livres. Na ver<strong>da</strong>de, não há nenhuma razão<br />

lógica, nem histórica, nem jurídica, para esta suposição. Pelo contrário, todos os estudos<br />

anteriores e to<strong>da</strong>s as evidencias dão conta do fato de que essas terras, ao serem<br />

discrimina<strong>da</strong>s ou incorpora<strong>da</strong>s ao patrimônio público ou privado, já haviam sido, na<br />

maior parte dos casos, objeto de ocupação ou posse anterior: por posseiros e pequenos<br />

proprietários, ou eram o “habitat” histórico de indígenas. Todos estes, detendo,<br />

portanto, legitimamente, direitos reais sobre estas terras 493 . Essa situação ficou<br />

amplamente demonstra<strong>da</strong> nos capítulos anteriores.<br />

Portanto, a extinção destas posses não caracteriza, apenas, um processo de<br />

expropriação dessas pessoas em relação ao seu direito real à proprie<strong>da</strong>de, mas uma<br />

expropriação arbitrária e ilegal: uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de qualifica<strong>da</strong> de grilagem especializa<strong>da</strong>,<br />

ilegítima.<br />

Nos casos de posses legítimas, como inclusive reconhecia Paulo Yokota 494 ,<br />

Presidente do INCRA, caberia ao Estado, legitimá-las e fornecer os respectivos títulos<br />

492 CÂMARA <strong>DO</strong>S DEPUTA<strong>DO</strong>S op. cit., p. 13-14. Grifos nossos.<br />

493 Exceto nos casos de áreas reserva<strong>da</strong>s que são, juridicamente, considera<strong>da</strong>s como inalienáveis; o mesmo se<br />

aplicado, em certo sentido às terras tradicionalmente habita<strong>da</strong>s por indígenas que <strong>da</strong> mesma forma estavam<br />

“legalmente protegi<strong>da</strong>s”, sendo que estas últimas necessitavam de demarcação. Entretanto, tanto umas quanto as<br />

outras sempre foram objeto de invasões, sobretudo por latifúndios e, em escala mais reduzi<strong>da</strong>, mas nem por isto<br />

menos relevante, de pequenos posseiros e sobretudo por garimpeiros e madeireiros. Estes últimos, geralmente,<br />

orientados e dirigidos por grandes grupos de especuladores imobiliários e contrabandistas.<br />

494 Op. cit.<br />

244


de Proprie<strong>da</strong>de. A ausência desta providência administrativa e, mais que isto, o<br />

descumprimento deste imperativo legal, pelo Poder Público, está na base <strong>da</strong> apropriação<br />

privilegia<strong>da</strong>, <strong>da</strong> titulação juridicamente questionável, e <strong>da</strong> exacerbação <strong>da</strong> violência na<br />

luta pela terra, que são as características fun<strong>da</strong>mentais deste período. Além de<br />

caracterizar ato delituoso de improbi<strong>da</strong>de administrativa ou, na melhor <strong>da</strong>s hipóteses, de<br />

negligência culposa na gestão <strong>da</strong> “coisa pública”, por parte <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des fundiárias<br />

do Governo. Isto significa afirmar que se tratam, “ipso facto”, de atos nulos: portanto,<br />

que não transmitem a proprie<strong>da</strong>de, que, desta forma, continua ilegal e ilegítima.<br />

Isto posto, o conceito de “áreas novas” refere-se, apenas, ao diferencial de áreas<br />

em poder de particulares, recensea<strong>da</strong>s entre os Censos de 1980 e 1960. Tratam-se de<br />

áreas que, por suposto, foram objeto de apropriação ou alienação neste período. Os<br />

Quadros 1.A e 1.B adiante, permitem uma visão de conjunto <strong>da</strong> dinâmica física do<br />

processo de apropriação diferencial <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária sobre estas áreas no Brasil,<br />

no período, tanto em termos de diferentes regiões como intraregionalmente. Estes <strong>da</strong>dos<br />

estão, para facilitar a sua compreensão, discriminados por estratos de área.<br />

O Quadro 1.A oferece uma visão objetiva <strong>da</strong> distribuição (e direção) segui<strong>da</strong><br />

pela incorporação à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, de áreas novas no Brasil, pelas diferentes<br />

regiões e por estratos de proprie<strong>da</strong>des rurais. Este quadro indica claramente que a maior<br />

quanti<strong>da</strong>de de área incorpora<strong>da</strong> priva<strong>da</strong>mente no País deu-se na Região Centro Oeste,<br />

46,5%, o que significa quase a metade de todo o incremento no período. Isto significa<br />

53.449.893 de um total de 114.965.285 hectares 495 .<br />

QUADRO 1. A<br />

Áreas Novas (1960-1980): Distribuição Inter-regional, Brasil<br />

Especificações:<br />

Estratos de Área<br />

Brasil e Regiões Total 0 - 10 10 - 100 100 - 1000 1000 mais<br />

1. Brasil 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0<br />

2. Norte 15,7 10,0 30,1 25,0 4,7<br />

3. Nordeste 22,1 57,7 38,8 20,0 16,6<br />

4. Sudeste 7,9 (- 4,3) 8,0 13,2 4,4<br />

5. Sul 7,8 32,7 13,7 11,3 1,8<br />

6. Centro-Oeste 46,5 3,9 9,4 30,5 72,5<br />

Fonte: FIBGE - Censo Agrícola de 1960 e Censo Agropecuário de 1980, com <strong>da</strong>dos agrupados e<br />

percentagens calcula<strong>da</strong>s por JONES (1987).<br />

As referências a respeito deste período, feitas pelas autori<strong>da</strong>des fundiárias<br />

brasileiras em relação às ações discriminatórias e ao incentivo à formação de médias e<br />

495 Ver o ANEXO 1 - QUADRO 1 - Distribuição de Áreas Novas Incorpora<strong>da</strong>s ao Patrimônio Privado: 1960-1980 -<br />

Números Absolutos.<br />

245


grandes empresas rurais, especialmente nas chama<strong>da</strong>s “regiões de fronteira”, reforçam<br />

estes <strong>da</strong>dos 496 .<br />

Em segui<strong>da</strong>, curiosamente 497 , vem a Região Nordeste, com 22,1% do total <strong>da</strong>s<br />

áreas incorpora<strong>da</strong>s ao patrimônio privado, o que denuncia, efetivamente, que boa parte<br />

<strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des desta região não se encontravam legalmente regulariza<strong>da</strong>s no período,<br />

configurando-se em posses sobre terras devolutas. Segue-se, em importância, a Região<br />

Norte 498 , com 15,7%, <strong>da</strong> incorporação ao patrimônio privado, de terras novas. Este é,<br />

em linhas gerais, o perfil <strong>da</strong> expansão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, sobre a “fronteira<br />

agrária”, em termos físicos de ocupação de terras, por suposto, devolutas. Reflete, neste<br />

sentido específico, o processo de privatização de terras públicas, ou do reconhecimento<br />

de domínios, que foram “legalizados”, nos termos analisados na capítulo anterior. Nas<br />

regiões Sul e Sudeste, as taxas são de 7,8% e 7,9%, respectivamente, o que indica a<br />

menor disponibili<strong>da</strong>de de terras “devolutas” ou “irregularmente” titula<strong>da</strong>s, além do fato<br />

de se tratar de regiões onde o processo de ocupação <strong>da</strong>s terras se encontrava,<br />

aparentemente, melhor consoli<strong>da</strong>do no período.<br />

QUADRO 1.B<br />

ÁREAS NOVAS (1960-1980): DISTRIBUIÇÃO INTRA-REGIONAL, BRASIL<br />

Especificações:<br />

ESTRATOS DE ÁREA<br />

Brasil e Regiões Total 0 - 10 10 - 100 100 - 1000 1000 mais<br />

1. Brasil 100,0 2,6 14,7 35,5 47,2<br />

2. Norte 100,0 1,7 28,1 56,1 14,1 499<br />

3. Nordeste 100,0 6,9 25,8 32,0 35,3<br />

4. Sudeste 100,0 (- 1,4) 14,9 59,7 26,8<br />

5. Sul 100,0 11,0 26,1 51,9 11,0<br />

6. Centro-Oeste 100,0 0,2 3,0 23,3 73,7<br />

Fonte: FIBGE - Censo Agrícola 1960 e Censo Agropecuário de 1980, com<br />

<strong>da</strong>dos agrupados e diferenciais e correspondentes percentagens<br />

calculados por JONES (1987).<br />

496 Ver, especialmente, os <strong>da</strong>dos citados por YOKOTA (op. cit.) e ZANATTA (op. cit.) no capítulo 4.<br />

497 Diz-se “curiosamente” por se tratar de uma Região de ocupação muito antiga e de estrutura agrária<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente consoli<strong>da</strong><strong>da</strong> já <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 50 do século passado (ver CARVALHO e FAORO, citados). Este<br />

fato é um forte indício de que, também neste caso, a maioria <strong>da</strong>s áreas eram apenas posses que foram legitima<strong>da</strong>s<br />

neste período.<br />

498 Deve-se fazer uma ressalva em relação aos <strong>da</strong>dos referentes à Região Norte, que apresentaram problemas entre<br />

os Censos de 1960 e 1980. Segundo GRAZIANO <strong>DA</strong> SILVA (1974, p.5), “embora o número de<br />

estabelecimentos tenha quase dobrado no período, a área total recensea<strong>da</strong> na região diminuiu<br />

ligeiramente, devido à forte redução apresenta<strong>da</strong> pelos Estados do Acre, Amapá e Amazonas”. Com base<br />

na constatação de que a referi<strong>da</strong> redução afetou sobretudo os estratos de área mais eleva<strong>da</strong>, Graziano <strong>da</strong> <strong>Silva</strong> defende<br />

a suposição de que “não foram recensea<strong>da</strong>s em 1970 algumas <strong>da</strong>s grandes proprie<strong>da</strong>des existentes em<br />

1960, o que explicaria a redução <strong>da</strong> área total apesar de quase ter duplicado o número de<br />

estabelecimentos.” (Id. Ibidem., p.5). Isto talvez explique o segundo posto ocupado pelo Nordeste.<br />

499 Vejam-se as observações de GRAZIANO <strong>DA</strong> SILVA constantes <strong>da</strong> nota anterior.<br />

246


O Quadro 1.B, acima, permite o detalhamento dos <strong>da</strong>dos do quadro anterior, em<br />

termos <strong>da</strong> distribuição interna a ca<strong>da</strong> região. Ao analisar-se, com base nos <strong>da</strong>dos deste<br />

quadro, a distribuição <strong>da</strong> apropriação de áreas novas, por estratos, verifica-se que<br />

47,2%, portanto, virtualmente, metade de todo o incremento observado no País, irá<br />

destinar-se aos estabelecimentos com mais de mil hectares. Por outro lado, 35,3%,<br />

destinam-se à proprie<strong>da</strong>des de área situa<strong>da</strong> entre 100 a 1000 hectares. Estes dois<br />

estratos, em conjunto, totalizam, em relação ao país, a privatização de 82,7% de to<strong>da</strong> a<br />

expansão de áreas novas. Isso significa 95.039.359 hectares, de um total de<br />

114.965.285. Apenas 14,7% e 2,6%, respectivamente, são incorporados aos<br />

estabelecimentos dos estratos de 10 a 100 e de até 10 hectares. Estes <strong>da</strong>dos confirmam a<br />

tendência, e, mais que isso, a proposta e a estratégia de ocupação e privatização de<br />

terras devolutas, tais como defendi<strong>da</strong>s pelos Órgãos Fundiários do Governo, no período,<br />

fatos amplamente discutidos no capítulo anterior.<br />

Este perfil pode ser observado para to<strong>da</strong>s as distintas regiões do País, muito<br />

especialmente para aquelas onde o volume de terras devolutas era mais significativo,<br />

como as regiões Norte e Centro-Oeste.<br />

A maior concentração é observa<strong>da</strong> para os estratos de 100 a 1.000 hectares<br />

(35,5%) e, sobretudo, os acima de 1.000 hectares que, sozinhos, apropriaram-se de<br />

47,2% do total <strong>da</strong> terras devolutas, reconheci<strong>da</strong>s como proprie<strong>da</strong>des priva<strong>da</strong>s no<br />

período 500 .<br />

Por outro lado, apesar <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> Região Norte ficar prejudica<strong>da</strong>, como se<br />

observou acima; ao analisar-se os <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> região Centro-Oeste, que significou 46,5%<br />

do incremento total do País, tem-se que, nesta Região, 73,7% do total <strong>da</strong> área<br />

destinaram-se aos estabelecimentos com mais de 1.000 hectares. Fica, portanto,<br />

evidente o viés latifundiário do Projeto de Política Fundiária do Governo.<br />

Essas informações poder ser visualiza<strong>da</strong>s nos gráficos adiante:<br />

500 Ver figura 2.<br />

247


Figura 1 - Apropriação de áreas novas: Distribuição interregional, em percentagem.<br />

Brasil, 1960-1980<br />

Norte<br />

15,7%<br />

Centro-Oeste<br />

46,5%<br />

Nordeste<br />

22,1%<br />

Sul<br />

7,8%<br />

Sudeste<br />

7,9%<br />

Fonte: Dados <strong>da</strong> Pesquisa<br />

Figura 2 - Apropriação de áreas novas por estratos, em percentuais. Brasil, 1960-<br />

1980<br />

0 - 10<br />

2,6% 10 - 100<br />

14,7%<br />

1000 mais<br />

47,2%<br />

100 - 1000<br />

35,5%<br />

Fonte: Dados <strong>da</strong> Pesquisa<br />

248


De qualquer maneira, é também relevante, o fortalecimento dos<br />

estabelecimentos com área entre 100 a 1.000 hectares, o que é indicativo de que, em<br />

certo sentido, verificou-se o fortalecimento de uni<strong>da</strong>des produtivas considera<strong>da</strong>s como<br />

“médias empresas”, na ótica do modelo do Governo 501 .<br />

Entretanto, o <strong>da</strong>do mais relevante que aparece nestes quadros, é eloqüentemente<br />

documentado pela Região Centro-Oeste. Tratava-se, no período, de uma típica região<br />

onde predominavam terras públicas, e portanto, onde o Governo tinha a plena liber<strong>da</strong>de<br />

de dispor <strong>da</strong>s terras e implementar o seu projeto de desenvolvimento Rural. Exatamente<br />

nesta região, observa-se o privilegiamento de grandes proprie<strong>da</strong>des: As pequenas<br />

proprie<strong>da</strong>des, de menos de 10 hectares detêm apenas 0,2% <strong>da</strong>s áreas novas e as<br />

chama<strong>da</strong>s “proprie<strong>da</strong>des-família”, de até 100 hectares, apenas 3,0%. Por outro lado, as<br />

chama<strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des “médias” (em torno de 100 ha) detêm apenas 23,3% <strong>da</strong> área.<br />

Entretanto, o ver<strong>da</strong>deiro privilégio do processo de alienação de terras devolutas aparece,<br />

com as proprie<strong>da</strong>des do estrato de mais de mil hectares, que se apropriam de 73,7% do<br />

total <strong>da</strong>s áreas novas, nesta Região 502 que, sozinha, representou 46,5% do total de áreas<br />

novas privatiza<strong>da</strong>s no País 503 .<br />

Outra informação importante refere-se à Região Sudeste, onde há uma redução<br />

de 1,4% no estrato de proprie<strong>da</strong>des de até 10 hectares - que significou, em relação à<br />

distribuição <strong>da</strong>s terras deste estrato, para o Brasil, uma redução de 4,3%, conforme se<br />

pode verificar no Quadro 1.A - o que denota que este estrato foi penalizado pela política<br />

de terras do governo. Talvez pelo fato de se situar, em princípio, nos estreitos limites<br />

entre o minifúndio e as chama<strong>da</strong>s “empresas-família”, imagina<strong>da</strong>, pelo modelo do<br />

Governo, como situando em torno de 110 hectares. De qualquer maneira, os<br />

estabelecimentos deste estrato tiveram um comportamento coerente com o processo de<br />

concentração <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de que acompanhou a estratégia de desenvolvimento rural<br />

posto em prática pelo Governo, de privilegiar “médias” e “grandes” empresas rurais 504 .<br />

Observa-se, neste sentido, que o estrato de estabelecimentos com 100 a 1.000 hectares é<br />

o que apresenta maior ganho de área no período, correspondendo a 59,7%, ou seja, mais<br />

<strong>da</strong> metade <strong>da</strong> incorporação de áreas novas, seguido pelos estratos de mais de mil<br />

hectares, correspondendo a 26,8%, e, finalmente, em situação bem mais inferioriza<strong>da</strong>,<br />

aqueles que, pelas conceituações do INCRA, poderiam ser definidos como proprie<strong>da</strong>des<br />

familiares, correspondendo a apenas 14,9%.<br />

Esses <strong>da</strong>dos, certamente, indicam, que para além <strong>da</strong> regulamentação de áreas<br />

novas, isto é, as que foram privatiza<strong>da</strong>s no período, de apenas 7,9% do total do País (ver<br />

Fig.1), houve uma redistribuição de áreas entre as proprie<strong>da</strong>des existentes na Região:<br />

nesta redistribuição, foram amplia<strong>da</strong>s as proprie<strong>da</strong>des de 100 a 1.000 hectares e, em<br />

501 Entretanto, cabe registrar que as áreas médias para as empresas deste tipo, conforme as informações de Ol<strong>da</strong>ir<br />

Zanatta e Paulo Yokota, como se registrou no capítulo anterior, situavam-se em torno de 500 a 700 hectares,<br />

conforme a região.<br />

502 Dados do Quadro 1.B - Áreas Novas: Distribuição Intraregional: Brasil - 1960-1980.<br />

503 Vide Quadro 1.A - Áreas Novas: Distribuição Interregional: Brasil - 1960-1980. Cf. Figura 1.<br />

504 Ver depoimentos de Fernando Cirne Lima e José Gomes <strong>da</strong> <strong>Silva</strong>, na CPI do Sistema Fundiário (op. cit.).<br />

249


certo sentido, de forma também importante, as de mais de mil hectares e, em menor<br />

escala, as de 10 a 100 hectares em detrimento, sobretudo, <strong>da</strong>s pequenas proprie<strong>da</strong>des, de<br />

menos de 10 hectares. Estas últimas, de acordo com os <strong>da</strong>dos de ambos os quadros (1 A<br />

e 1 B), perderam áreas: -4,3% em relação ao estrato no país e -1,4% internamente à<br />

Região Sudeste.<br />

Tratava-se, portanto, de um modelo de desenvolvimento francamente fun<strong>da</strong>do<br />

no pressuposto <strong>da</strong> concentração <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra em grandes áreas, estrutura<strong>da</strong>s<br />

em “empresas agropecuárias”, como estratégia para a promoção do desenvolvimento<br />

rural. É evidente que, neste contexto, não se pode, sequer, imaginar que pretendia o<br />

Governo, no período, proceder a nenhuma espécie de “reforma agrária distributivista”.<br />

E, pelos motivos discutidos no capítulo anterior, menos ain<strong>da</strong>, que ele tivesse interesse<br />

em reforçar o volume ou o número de “pequenas proprie<strong>da</strong>des”, entendi<strong>da</strong>s estas, como<br />

as de área inferior a 110 hectares. Este deveria ser, segundo as autori<strong>da</strong>des fundiárias, o<br />

tamanho mínimo adequado para uma “proprie<strong>da</strong>de-família”, como foi registrado no<br />

depoimento de José Gomes <strong>da</strong> <strong>Silva</strong> à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema<br />

Fundiário, citado acima 505 .<br />

Embora esses <strong>da</strong>dos, referentes à dimensão física <strong>da</strong>s áreas e sua distribuição,<br />

sejam insuficientes para se caracterizar o significado mais profundo do processo de<br />

apropriação territorial, especialmente quanto aos seus efeitos na dinâmica <strong>da</strong><br />

produtivi<strong>da</strong>de do trabalho na agricultura e os seus resultados econômicos fun<strong>da</strong>mentais,<br />

por outro lado, são um indicador seguro do processo de discriminação social e<br />

excludência <strong>da</strong> população rural 506 em relação à proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra, ou seja, aos meios<br />

de vi<strong>da</strong> e de trabalho no campo 507 .<br />

Neste sentido, por exemplo, se se tiver em consideração que o vetor fun<strong>da</strong>mental<br />

do diagnóstico do “problema agrário”, tal como apresentado na Mensagem 33, indicava<br />

a necessi<strong>da</strong>de de eliminação do minifúndio e do latifúndio (o que, em si mesmo, faz<br />

supor que se referia às áreas “antigas”, isto é já ocupa<strong>da</strong>s), a persistência, nas áreas<br />

“novas”, incorpora<strong>da</strong>s ao patrimônio privado no período, <strong>da</strong> mesma tendência<br />

concentracionista e polariza<strong>da</strong>, com certeza, é indicativa de que a proposta do Governo<br />

resumia-se, na prática, aliás, como foi exaustivamente documentado no capítulo<br />

anterior, à simples eliminação dos minifúndios e ao reforço <strong>da</strong>s grandes proprie<strong>da</strong>des,<br />

505 Ver a este respeito, os Depoimentos de José Gomes <strong>da</strong> <strong>Silva</strong>, José Francisco <strong>da</strong> <strong>Silva</strong>, Don Moacyr Grechi,<br />

Edilson Martins Silveira, Luiz Fernando Cirne Lima, João Carlos de Souza Meireles, entre muitos outros, à CPI do<br />

Sistema Fundiário (CAMARA <strong>DO</strong>S DEPUTA<strong>DO</strong>S, 1979). Ver, igualmente, o depoimento do Senhor Ol<strong>da</strong>ir Zanatta<br />

à CPI dos Incentivos Fiscais <strong>da</strong> Amazônia (INCRA, op. cit.).<br />

506 Este fenômeno será evidenciado ao se analisar os movimento <strong>da</strong> população - rural e urbana - adiante.<br />

507 Embora a ênfase nestes <strong>da</strong>dos a respeito do processo de apropriação <strong>da</strong> terra seja de grande relevância para a<br />

análise <strong>da</strong> questão agrária, considera-se procedentes, e por isto, registra-se nesta nota, as críticas e ressalvas de Sérgio<br />

<strong>Silva</strong> (in BELLUZZO & COUTINHO, orgs. 1993., pp. 177 e seguintes), no sentido de que a análise do “processo<br />

de produção brasileiro”, como coloca aquele autor, tem de incluir, além do estudo <strong>da</strong> “distribuição <strong>da</strong> terra<br />

como fator explicativo <strong>da</strong> questão agrária e, em particular <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> produção agrícola no Brasil”,<br />

outras informações e <strong>da</strong>dos que permitam captar a dimensão relevante entre os <strong>da</strong>dos físicos acerca <strong>da</strong>s<br />

áreas e as suas outras relações relativas “à questão <strong>da</strong> terra no capitalismo” (loc. Cit. p.176).<br />

250


fossem ou não defini<strong>da</strong>s como empresas ou latifúndios pelo INCRA, como pode-se<br />

visualizar com clareza na figura 2.<br />

Portanto, persistiam, sob novas formas, os mesmos processos de alienação,<br />

apropriação e legitimação privilegia<strong>da</strong>s, que sempre caracterizaram to<strong>da</strong>s as Políticas de<br />

Terra e respectivas iniciativas de reorganização <strong>da</strong> estrutura fundiária brasileira postas<br />

em prática desde o fracassado Regulamento de 1854. Este fenômeno ficou<br />

objetivamente esclarecido pelos <strong>da</strong>dos do Quadro 1.B .<br />

Aliás, esse procedimento era facilitado, ao nível <strong>da</strong> formulação legislativa, no<br />

âmbito do Estatuto <strong>da</strong> Terra, pelo construto de “empresa rural” que fora habilmente<br />

formulado como oposto (ain<strong>da</strong> que apenas formalmente) ao de “latifúndio” (“por<br />

dimensão” ou “por exploração”), por um lado, e ao de minifúndio, por outro. Este<br />

procedimento permitia transformar, como num toque de mágica, “latifúndios por<br />

dimensão” em “empresas” e minifúndios em “latifúndios por exploração”. Essa<br />

tipologia, cria<strong>da</strong> no Estatuto Terra e aparentemente coerente enquanto uma formulação<br />

de critérios “técnicos”, na ver<strong>da</strong>de, permitia tornar iguais cousas e, sobretudo,<br />

reali<strong>da</strong>des, profun<strong>da</strong>mente diferentes, como o latifúndio e o minifúndio. Além de<br />

permitir, o que é ain<strong>da</strong> mais relevante e grave, na medi<strong>da</strong> em que se definia como<br />

“causa” fun<strong>da</strong>mental dos problemas rurais a persistência <strong>da</strong> dicotomia “latifúndiominifúndio”,<br />

a colocação de grandes proprie<strong>da</strong>des especulativas e geralmente ilegítimas<br />

e de pequenas explorações de subsistência, na mesma situação de “nocivi<strong>da</strong>de” em<br />

relação ao desenvolvimento <strong>da</strong> agricultura brasileira. Inviabilizava-se, desta forma,<br />

qualquer possibili<strong>da</strong>de de ação jurídica ou administrativa coerente neste âmbito.<br />

E, ain<strong>da</strong> mais relevante, colocava o minifúndio apenas como parte do problema,<br />

enquanto os latifúndios, se eficientemente incentivados, poderiam vir a se constituir em<br />

empresas rurais eficientes e, desta forma, transformarem-se num dos suportes<br />

fun<strong>da</strong>mentais do processo de desenvolvimento rural. Este diagnóstico, tal como<br />

realizado pelo Governo, por outro lado, oferecia aos defensores do latifúndio, a<br />

possibili<strong>da</strong>de de justificarem política e economicamente, a sua existência, ain<strong>da</strong> que<br />

calca<strong>da</strong> na ineficiência.<br />

A necessi<strong>da</strong>de de sua existência, neste sentido, seria justifica<strong>da</strong> na medi<strong>da</strong> em<br />

que, por suposto, eles reuniam as condições potenciais, em termos de área, que, se<br />

adequa<strong>da</strong>mente apoia<strong>da</strong>s pelo Estado, poderiam sustentar o crescimento <strong>da</strong> produção<br />

agropecuária e contribuir para o desenvolvimento nacional mediante a oferta de<br />

produtos, tanto para o consumo interno quanto para a exportação, auxiliando, neste<br />

sentido, a amenizar os problemas <strong>da</strong> “balança de pagamentos”, etc. Ou seja, tinham,<br />

potencialmente, a possibili<strong>da</strong>de de <strong>da</strong>r respostas rápi<strong>da</strong>s aos incentivos econômicos e as<br />

oportuni<strong>da</strong>des do mercado. Quanto à sua secular ineficiência, esta seria “explica<strong>da</strong><br />

técnica e cientificamente”, como resultado de determina<strong>da</strong>s conjunturas econômicas e<br />

até mesmo e<strong>da</strong>fo-climáticas, etc. Entretanto, sempre e sobretudo como resultado <strong>da</strong> falta<br />

de incentivos por parte do Governo, sobretudo no que se referia à ausência de políticas<br />

adequa<strong>da</strong>s. Especialmente no que se referia à oferta de créditos, preços, subsídios, etc.<br />

251


Neste contexto, não sendo, portanto, a ineficiência, uma característica intrínseca ao<br />

latifúndio, mas produto <strong>da</strong> “insensibili<strong>da</strong>de” do Governo para com a necessi<strong>da</strong>de de<br />

implementação de políticas agrícolas. Desta forma, o latifúndio passava de “vilão”,<br />

como aparentemente era conceituado na Mensagem 33, à vitima.<br />

Estes argumentos, “teoricamente fun<strong>da</strong>mentados” pelos “especialistas” em<br />

desenvolvimento e economia rural do Governo, forneciam, na ver<strong>da</strong>de os insumos e<br />

instrumentos básicos para a defesa ideológica do latifúndio: a sua linha de<br />

argumentação econômica fun<strong>da</strong>mental. Estes argumentos serão os instrumentos e<br />

recursos ca<strong>da</strong> vez mais utilizados pelos grandes detentores de terras, ou seus<br />

representantes no Legislativo e no Executivo, para exigir créditos subsidiados,<br />

incentivos diversos e, até, para aplicarem calotes ao Banco do Brasil e às agências<br />

públicas de desenvolvimento regional. Além, é claro, e acima de tudo, de servirem para<br />

assegurar a defesa pura e simples <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de latifundiária, mesmo quando pouco<br />

produtiva ou não-explora<strong>da</strong>, posto que a responsabili<strong>da</strong>de sempre caberia, a considerarse<br />

váli<strong>da</strong>s estas teses, ou às “Políticas Agrícolas”, ou às “catástrofes naturais” ou, ain<strong>da</strong>,<br />

até mesmo, à sazonali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> “natureza” ou “<strong>da</strong> deman<strong>da</strong>”, etc.<br />

Afinal, segundo o discurso do Governo, para que os latifúndios pudessem<br />

cumprir esta tarefa e serem classificados como empresas, bastaria que preenchessem<br />

certos requisitos “técnicos”, e, neste sentido, era suficiente que apresentassem Projetos<br />

de aproveitamento agrícola para sua exploração aos Órgãos fundiários. Por esta mágica,<br />

não apenas os latifúndios se transformavam em empresas mas, o que é ain<strong>da</strong> mais<br />

relevante ao caso, passavam a ser beneficiários dos amplos incentivos fiscais e outros,<br />

generosamente postos à sua disposição pelos Governos Militares. Tudo isso estava<br />

claramente posto na Mensagem 33 e rigorosamente definido e regulamentado no<br />

Estatuto <strong>da</strong> Terra 508 .<br />

Neste contexto e sentido, não é de se estranhar que o próximo passo nesta<br />

batalha para a consagração dos seculares privilégios do latifúndio, tenha sido a<br />

estruturação e defesa de um novo construto, o de “latifúndio produtivo”, intentado,<br />

quase que imediatamente após o final do ciclo militar, pelos grupos que se opunham à<br />

realização efetiva de uma reforma agrária no País. Especialmente diante <strong>da</strong> perspectiva<br />

de que fosse retoma<strong>da</strong> a idéia <strong>da</strong> reforma agrária 509 , com o sentido de democratizar o<br />

acesso à proprie<strong>da</strong>de rural e questionar a legitimi<strong>da</strong>de dos latifúndios, na conjuntura<br />

favorável, que então se criara, para estas teses, e que aparentava se consoli<strong>da</strong>r após o<br />

retorno do País à chama<strong>da</strong> “normali<strong>da</strong>de democrática”.<br />

Entretanto, a simples análise dos <strong>da</strong>dos acima já é suficiente para identificar o<br />

sentido <strong>da</strong> política de terras posta em prática pelos governos militares no período. Esta<br />

política estava, como se demonstrou no capítulo anterior, explicitamente coloca<strong>da</strong> no<br />

Projeto de Desenvolvimento Rural do Governo, e era minuciosamente regulamenta<strong>da</strong><br />

no Estatuto <strong>da</strong> Terra. Por esta razão não se pode, em nenhum sentido, argüir que foi<br />

508 Ver Mensagem 33 (BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Brasília: 1964).<br />

509 A análise desse fato, embora <strong>da</strong> maior relevância, situa-se para além do período definido para este estudo.<br />

252


proposta uma reforma agrária avança<strong>da</strong>, no Estatuto <strong>da</strong> Terra, e outra, distinta, na sua<br />

execução.<br />

Neste sentido específico, as análises realiza<strong>da</strong>s neste estudo, não deixam<br />

nenhuma dúvi<strong>da</strong> de que a “reforma agrária” incursa na Lei 4.504, de novembro de 1964,<br />

foi, efetivamente, a que o governo implementou. O que fica, também, evidente neste<br />

contexto, é que a proposta de desenvolvimento rural apresenta<strong>da</strong> na Mensagem 33 e no<br />

Estatuto <strong>da</strong> Terra jamais incluiu a proposição de uma reforma agrária distributivista e<br />

democrática, especialmente se esta é entendi<strong>da</strong> no sentido de beneficiar aos pequenos<br />

posseiros ou aos agricultores sem terra ou com pouca terra, como foi analisado<br />

amplamente no capítulo anterior.<br />

O Projeto de Desenvolvimento Rural proposto e posto em prática pelo Regime<br />

Militar, como se vem demonstrando, era, de fato, concentracionista, aliás, como o era o<br />

próprio “Modelo” de desenvolvimento econômico: fun<strong>da</strong>do na estruturação <strong>da</strong>s<br />

condições fun<strong>da</strong>mentais e dos instrumentos básicos para a assegurar a reprodução<br />

amplia<strong>da</strong> de capital, o que pressupunha a concentração e centralização de determinados<br />

recursos econômicos. Sobretudo a concentração do capital e <strong>da</strong> terra. Isto implicava, o<br />

arrocho salarial, a concentração de ren<strong>da</strong>, dos meios de produção e, evidentemente,<br />

também <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária 510 . Octávio Ianni resume de forma objetiva esse<br />

fenômeno nos seguintes termos:<br />

“Durante os anos 1964-78, o Estado Brasileiro foi levado a realizar<br />

uma política econômica razoavelmente agressiva e sistemática de<br />

subordinação <strong>da</strong> agricultura ao capital. Nesses anos, o processo<br />

de subordinação <strong>da</strong> agricultura à indústria, do campo à ci<strong>da</strong>de,<br />

entrou em uma fase mais intensa e generaliza<strong>da</strong> do que em<br />

ocasiões anteriores de tempo recente. As medi<strong>da</strong>s<br />

governamentais adota<strong>da</strong>s propiciaram a aceleração e a<br />

generalização do desenvolvimento intensivo e extensivo do<br />

capitalismo no campo. Nas ativi<strong>da</strong>des em que já se havia<br />

organizado uma agricultura capitalista, como na cana de açúcar,<br />

por exemplo, o poder estatal foi levado a apoiar ou induzir a<br />

concentração e a centralização do capital, juntamente com a<br />

maquinização e a quimificação do processo produtivo. Nas<br />

ativi<strong>da</strong>des em que eram escassas, dispersas ou inexistentes as<br />

organizações capitalistas de produção, como na pecuária rústica<br />

<strong>da</strong> Amazônia, por exemplo, o poder estatal foi levado a induzir,<br />

incentivar ou apoiar tanto a constituição de empreendimentos<br />

capitalistas como a concentração e a centralização do capital. Por<br />

um lado, principalmente nas ativi<strong>da</strong>des agrícolas localiza<strong>da</strong>s no<br />

Centro-Sul, o Estado foi levado a favorecer o desenvolvimento<br />

intensivo do capitalismo. Por outro lado, como nas terras-do-semfim,<br />

devolutas, tribais ou ocupa<strong>da</strong>s na Amazônia, o Estado foi<br />

levado a favorecer o desenvolvimento extensivo do capitalismo.<br />

Nos dois casos, isto é, nos dois extremos, a atuação do poder<br />

estatal desempenhou-se e desempenha-se de modo<br />

510 Ver especificamente a respeito do Modelo Econômico e de desenvolvimento do período, TAVARES (1983),<br />

BRESSER PEREIRA (1985); DELGA<strong>DO</strong> (1985), entre outros.<br />

253


particularmente agressivo e repressivo, em termos econômicos e<br />

políticos 511 .”<br />

3. Reconcentração Fundiária e População: Uma Face <strong>da</strong> Excludência<br />

Uma <strong>da</strong>s conseqüências do processo de reconcentração fundiária e que denuncia,<br />

objetivamente, o efeito perverso - e inverso ao proclamado na Mensagem 33, a respeito<br />

<strong>da</strong> promoção <strong>da</strong> “justiça social no campo” - pode ser, ain<strong>da</strong> que de forma indireta,<br />

depreendido <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> variação <strong>da</strong>s populações rural e urbana no período.<br />

(Percentuais)<br />

Quadro 2.A - População Rural e Urbana: Brasil e Grandes Regiões 1960 - 1880<br />

ESPECIFICAÇÕES 1960 1970 1980<br />

Brasil e Regiões Rural Urbana Rural Urbana Rural Urbana<br />

1. Brasil 55,3 44,7 44,0 56,0 32,4 67,6<br />

2. Norte 62,6 37,4 55,0 45,0 48,4 51,6<br />

3. Nordeste 66,1 33,9 58,2 41,8 49,5 50,5<br />

4. Sudeste 43,0 57,0 27,3 72,7 17,2 82,8<br />

5. Sul 62,9 37,1 55,7 44,3 37,6 62,4<br />

6. Centro Oeste 65,8 34,2 52,0 48,0 32,2 67,8<br />

FONTE: FIBGE - Anuário Estatístico (1984), com<br />

calculados por JONES (1987).<br />

<strong>da</strong>dos agrupados e correspondentes percentagens<br />

O Quadro 2.A, acima, evidencia que, ao nível agregado do País, a população<br />

rural caiu, entre 1960 e 1980, de 55,3% para 32,4%, enquanto a urbana cresceu,<br />

inversamente, na mesma proporção. Observa-se, por outro lado, que, em to<strong>da</strong>s as<br />

regiões, indistintamente, há uma que<strong>da</strong> relevante <strong>da</strong> população rural em relação a<br />

urbana. Parece óbvio que não se pode explicar esse fenômeno, apenas, afirmando que o<br />

mesmo reflete um comportamento “normal” e inerente, ao “processo de<br />

desenvolvimento econômico”. Primeiro, porque é necessário especificar qual o caráter e<br />

de que tipo de desenvolvimento se trata. Portanto, de qualificá-lo. Segundo, e mais<br />

importante, porque este comportamento, no caso do Brasil, é comum a regiões<br />

profun<strong>da</strong>mente distintas no que se refere aos níveis de desenvolvimento como, por<br />

exemplo, as Regiões Sudeste, Norte e Centro Oeste.<br />

Fugiria aos objetivos deste estudo a análise <strong>da</strong>s causas mais profun<strong>da</strong>s dessas<br />

flutuações <strong>da</strong> população rural e urbana. Entretanto, é interessante observar suas<br />

relações, paralelamente aos movimentos de concentração <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de rural, nas<br />

diferentes regiões do país. Uma observação, ain<strong>da</strong> que genérica a este respeito, parece<br />

indicar que nas regiões onde a apropriação de áreas novas deu-se de forma mais<br />

concentra<strong>da</strong>, privilegiando grandes proprie<strong>da</strong>des, como por exemplo, a Região Centro-<br />

Oeste, é mais acentua<strong>da</strong> a que<strong>da</strong> <strong>da</strong> população rural e mais exacerbado o crescimento <strong>da</strong><br />

511 IANNI (1979(a), pp.,16-17). Grifos nossos.<br />

254


população urbana 512 . No caso desta Região o fenômeno do extremo crescimento <strong>da</strong><br />

população urbana, por exemplo, parece indicar que o mesmo se deveu, por um lado, à<br />

imigração em larga escala de habitantes de outras regiões e, por outro lado, à expulsão<br />

de boa parte <strong>da</strong> população rural desta região em face <strong>da</strong> extrema concentração <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de, como se observou no item anterior.<br />

É ver<strong>da</strong>de que esse fenômeno está associado, fun<strong>da</strong>mental e genericamente, ao<br />

processo de desenvolvimento econômico do País, que amplia a deman<strong>da</strong> efetiva por<br />

novas áreas, em face <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de expansão do processo produtivo, como também,<br />

especulativo, face a valorização <strong>da</strong>s terras. Entretanto, não se limita apenas a isto.<br />

O fenômeno de incorporação de novas áreas, a menos que se tratem de terras<br />

livres e desocupa<strong>da</strong>s, mas, sobretudo, quando essa incorporação é feita de forma<br />

especulativa, implica necessariamente processos de expropriação que, em última<br />

análise, podem representar redução significativa <strong>da</strong> população rural. Por outro lado,<br />

inversamente, a incorporação produtiva de novas áreas agrícolas tende a aumentar, em<br />

números absolutos - embora possa implicar, em determina<strong>da</strong>s condições, reduções em<br />

termos relativos - a população trabalhadora rural.<br />

No caso do Brasil pós-64, a expropriação e expulsão de trabalhadores rurais de<br />

suas posses foi mais do que proporcional à incorporação de “novos” trabalhadores ao<br />

processo produtivo, em face <strong>da</strong> privatização <strong>da</strong>s terras, tal como promovi<strong>da</strong> pelo<br />

Governo. Isso significa, certamente, que estas terras permaneceram inaproveita<strong>da</strong>s,<br />

improdutivas ou, apenas extensivamente explora<strong>da</strong>s. Ou seja, tratou-se de um processo<br />

de privatização privilegia<strong>da</strong> e de caráter amplamente especulativo. Neste caso, negando<br />

o discurso <strong>da</strong> Política Fundiária do Governo: tanto o de promover a ocupação produtiva<br />

<strong>da</strong> terra 513 , quanto no que se referia ao acesso à proprie<strong>da</strong>de pala massa dos pequenos<br />

posseiros e arren<strong>da</strong>tários e a reinstalação de outros trabalhadores expropriados. É neste<br />

sentido que o dignóstico exposto na Mensagem 33 pode ser interpretado como uma<br />

espécie de justificativa ideológica do “Golpe no Campo 514 ”, portanto como simples<br />

“pretexto” para as iniciativas no âmbito <strong>da</strong> alienação privilegia<strong>da</strong> de terras devolutas e<br />

<strong>da</strong> “grilagem especializa<strong>da</strong>”.<br />

Entretanto, não se pode atribuir este fenômeno demográfico, exceto em situações<br />

e regiões específicas, como, possivelmente, o Sudeste, à excludência social de<br />

trabalhadores que se tornaram supérfluos, em resultado do aumento <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de do<br />

trabalho em determinados ramos <strong>da</strong> economia rural. Menos ain<strong>da</strong>, quando a<br />

excludência se referiu aos trabalhadores empregados na produção imediata na<br />

512 É ver<strong>da</strong>de que a transferência do Distrito Federal é um <strong>da</strong>do relevante a ser considerado neste contexto.<br />

Entretanto este <strong>da</strong>do é parte do mesmo fenômeno, não podendo ser dele separado. Ver Quadro 2.B adiante. Para uma<br />

visualização dos resultados dessas relações entre área total privatiza<strong>da</strong>, área utiliza<strong>da</strong> e população rural e urbana, ver<br />

a Figura 5 (vide conclusões)<br />

513 Para uma visualização <strong>da</strong> variação percentual <strong>da</strong> área utiliza<strong>da</strong> por ativi<strong>da</strong>de agroprcuária e florestal, ver a Figura<br />

3.<br />

514 Expressão utiliza<strong>da</strong> por Carlos Minc. Op. cit.<br />

255


agricultura. Ou seja, embora, por um lado, seja ver<strong>da</strong>deira a asserção de que o aumento<br />

<strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de do trabalho agrícola gere certo nível de desemprego, de população<br />

rural excedente em relação às necessi<strong>da</strong>des de mão-de-obra na produção imediata; por<br />

outro lado, este processo apenas opera a ampliação, em escala crescente, desta<br />

excludência, em relação à população trabalhadora já expropria<strong>da</strong> de seus meios de<br />

existência e produção. Ou seja, <strong>da</strong> terra e dos instrumentos de trabalho. Ambos os<br />

fenômenos geram e ampliam a excludência social e a expulsão do trabalhadores em<br />

relação ao processo de produção imediata.<br />

Isso não quer significar que esta situação específica de excludência social <strong>da</strong><br />

força de trabalho não ocorra na agricultura, e menos ain<strong>da</strong>, que este processo não seja<br />

relevante. Significa, contrariamente, que no caso específico <strong>da</strong> maioria <strong>da</strong>s regiões do<br />

país, a excludência social observa<strong>da</strong> é muito mais produto <strong>da</strong> expropriação territorial do<br />

que <strong>da</strong> incorporação do progresso técnico e do aumento <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de do trabalho na<br />

agricultura. Essa afirmação ficará mais reforça<strong>da</strong> ao se analisar a taxa de utilização <strong>da</strong>s<br />

terras agrícolas, adiante.<br />

Feitas estas ressalvas, pode-se afirmar que os <strong>da</strong>dos demográficos referentes ao<br />

comportamento <strong>da</strong>s populações rurais nas Regiões Sul e, em particular, na Sudeste,<br />

podem sugerir, quando associados à dinâmica <strong>da</strong>s áreas dos estabelecimentos e à<br />

relevância dos processos produtivos e sua vinculação mercantil, que, nestas regiões,<br />

parcela significativa <strong>da</strong> redução <strong>da</strong>s populações rurais pode estar associa<strong>da</strong> à<br />

intensificação dos processos de produção, que igualmente, acompanharam a<br />

reconcentração <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des, como se estudou no item anterior. Sem excluir,<br />

evidentemente, a simples expropriação de pequenos posseiros, proprietários e indígenas<br />

pela via especulativa e ilegal, próprias dos métodos <strong>da</strong> grilagem especializa<strong>da</strong> e <strong>da</strong><br />

“acumulação originária”, se se quiser utilizar esta categoria analítica desenvolvi<strong>da</strong> por<br />

Marx.<br />

Esta situação é especialmente significativa para a Região Sudeste. Por outro<br />

lado, no que toca à Região Sul, outros estudos 515 chamaram a atenção para a relevância,<br />

associa<strong>da</strong> a esses processos, do deslocamento de contingentes de pequenos produtores<br />

para as regiões de “fronteira”, particularmente para a Amazônia e Centro-Oeste.<br />

Quer dizer, o deslocamento de contingentes de pequenos produtores para estas<br />

áreas novas de ocupação e colonização, fizeram com que, neste período, o Governo se<br />

utilizasse <strong>da</strong> Política Fundiária com o objetivo, também, de possibilitar a liberação de<br />

terras em determina<strong>da</strong>s regiões, como o caso <strong>da</strong> região Sul e Sudeste. Tratavam-se de<br />

regiões que passavam a exigir, na opinião dos especialistas do Governo 516 , a ampliação<br />

<strong>da</strong> área <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des para torná-las economicamente eficientes, sob pena de se criar<br />

entraves ao desenvolvimento do setor agrícola.<br />

515 Por exemplo, IANNI (1979), TAVARES <strong>DO</strong>S SANTOS (1993), VELHO (1979 e 1981) .<br />

516 E de empresários e especuladores imobiliários, como fica claro no depoimento de João C de Souza Meireles.<br />

256


É neste contexto que o conceito de “minifúndio”, como uma situação impossível<br />

de ser manti<strong>da</strong>, evidencia to<strong>da</strong> a sua exuberância de uma argumentação, aparentemente,<br />

fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> na teoria econômica, mas que, na prática, correspondia muito mais a uma<br />

justificativa ideológica para a implementação do processo de reconcentração fundiária<br />

pretendi<strong>da</strong>.<br />

É neste sentido e contexto que se enuncia, claramente, o depoimento de João<br />

Carlos de Souza Meireles, Presidente <strong>da</strong> Associação de Empresários <strong>da</strong> Amazônia, à<br />

Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário, ao afirmar que:<br />

“...é assim que verificamos que no Rio Grande do Sul o problema<br />

do minifúndio passa a ser um dos mais graves problemas <strong>da</strong>quele<br />

Estado. No Vale do Rio Uruguai, tanto no Rio Grande quanto em<br />

Santa Catarina, existem municípios onde a proprie<strong>da</strong>de média<br />

não tem dimensão superior a 2,5 hectares, ou seja, um<br />

alqueirinho [paulista] ou meio alqueire goiano; não tem<br />

dimensões, portanto, para fazer sobreviver a uma família. Os<br />

estudos <strong>da</strong> Secretaria de Agricultura e <strong>da</strong>s Cooperativas do Rio<br />

Grande do Sul demonstram que no Vale do Rio Uruguai a<br />

dimensão econômica para uma proprie<strong>da</strong>de deveria ser de 45<br />

hectares. Portanto, para ca<strong>da</strong> 18 agricultores <strong>da</strong>quelas regiões<br />

de 2,5 hectares, 17 deveriam ser deslocados para novas<br />

fronteiras, e como lá, como no Paraná, como em Santa Catarina<br />

e São Paulo, e como já começa a acontecer no Sul do Mato<br />

Grosso, a alternativa, se não for aberta uma nova fronteira,<br />

que significa a Amazônia, vai ser o incorporar-se desse<br />

patrimônio <strong>da</strong> Nação, que é a capaci<strong>da</strong>de de trabalho desse<br />

agricultor, que é o seu conhecimento efetivo no trato <strong>da</strong> terra, à<br />

comuni<strong>da</strong>de dos marginais urbanos que, tendo a vi<strong>da</strong> inteira sido<br />

treinado para a lavoura <strong>da</strong> terra, passa a ser o homem que vai à<br />

ci<strong>da</strong>de à busca de alguma coisa que não sabe fazer e não tem<br />

prática para fazer 517 ”.<br />

Observe-se que este discurso do Presidente <strong>da</strong> Associação de Empresários <strong>da</strong><br />

Amazônia, que anteriormente fôra político militante em São Paulo, retomava<br />

exatamente o argumento do INCRA em defesa <strong>da</strong> Colonização Dirigi<strong>da</strong>. Na ver<strong>da</strong>de<br />

estava defendendo, não apenas a abertura <strong>da</strong>s fronteiras, mas, provavelmente, a<br />

aquisição <strong>da</strong>s terras a que se referira, na mesma CPI, o Bispo do Acre e Purus,<br />

destina<strong>da</strong>s ao desenvolvimento de Projetos de “Colonização Particular”, que era um<br />

excelente negócio para as companhias priva<strong>da</strong>s de “colonização”.<br />

Pelo depoimento acima fica evidente a “estratégia” de ocupação <strong>da</strong>s<br />

“fronteiras”, tal como proposta e posta em prática pelos Governos Militares e<br />

coerentemente articula<strong>da</strong> com a sua Política Fundiária. Tratava-se, não apenas de<br />

possibilitar a expansão do capital em condições vantajosas para as regiões de<br />

“desbravamento”, ou pioneiras; mas, sobretudo, e paralelamente, significava também<br />

517 Depoimento prestado à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário (CÂMARA <strong>DO</strong>S<br />

DEPUTA<strong>DO</strong>S (1979, p.48); grifos nossos.<br />

257


uma forma de possibilitar a intensificação <strong>da</strong> produção em escala ca<strong>da</strong> vez maior e mais<br />

profun<strong>da</strong> nas regiões de ocupação antiga como o caso <strong>da</strong>s regiões Sudeste e Sul. Nesse<br />

sentido, o avanço extensivo do capital nas regiões de “fronteira econômica” funcionava<br />

como “motor complementar de acumulação” ao nível do país 518 . Neste contexto é<br />

interessante registrar a referência ao “Sul do Mato Grosso”, atual Mato Grosso do Sul,<br />

típica região de expansão <strong>da</strong> “fronteira econômica” recente, na época, e que, segundo<br />

este depoimento, já se encontrava satura<strong>da</strong> e exigindo a “abertura de nova fronteira que<br />

seria a Amazônia”.<br />

De qualquer maneira, não se poderá estender o raciocínio acima, referente aos<br />

casos <strong>da</strong>s Regiões Sul e Sudeste, generalizando-o para as demais regiões do país,<br />

particularmente as Norte e Centro Oeste. Nestas, o que parece ter acontecido foi o<br />

avanço extensivo do capitalismo, aproveitando-se, sobretudo, <strong>da</strong>s amplas vantagens,<br />

subsídios e privilégios colocados à sua disposição pelo Estado. Antes de to<strong>da</strong>s, as<br />

relativas ao acesso fácil e quase, quando não gratuito, mas sempre privilegiado, à<br />

proprie<strong>da</strong>de de vastas áreas pelo interior do País. Facili<strong>da</strong>de esta, aliás, que uma vez<br />

materializa<strong>da</strong>, abria as portas dos cofres públicos a to<strong>da</strong> a sorte de subsídios e<br />

privilégios. Esta parece ser a conclusão a que chegaram alguns importantes<br />

pesquisadores desta questão, no período, tais como Foweraker 519 , Ianni 520 , Bresser<br />

Pereira 521 , entre muitos outros.<br />

É interessante notar como as maiores reduções observa<strong>da</strong>s em relação à<br />

população rural encontram-se nas Regiões Sudeste e Sul, exatamente as regiões do país<br />

nas quais a agricultura mercantil é mais desenvolvi<strong>da</strong> e integra<strong>da</strong> e nas quais a<br />

emigração, especialmente na região Sul, foi fortemente induzi<strong>da</strong> no período 522 . Nestas<br />

regiões, a população rural registrou uma redução, respectivamente, de 32,5% e 3,2%, no<br />

período. Estes <strong>da</strong>dos encontram-se no Quadro 2.B. No caso <strong>da</strong> Região Sudeste, a<br />

significativa que<strong>da</strong> <strong>da</strong> população rural provavelmente está associa<strong>da</strong>, além do processo<br />

anotado de reconcentração <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, ao desenvolvimento <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de do<br />

trabalho na agricultura, fortemente sustentado pela incorporação de inovações técnicas<br />

ao processo de produção.<br />

Quadro 2.B - População Rural e Urbana: Taxas Percentuais de Incremento, Brasil<br />

e Grandes Regiões, 1960 -1980<br />

E S P E C I F I C A Ç Õ E S Total Rural Urbana<br />

1. B r a s i l 69,8 (-0,5) 157,0<br />

518 JONES (op. cit.).<br />

519 Op. cit.<br />

520 Op. cit.<br />

521 BRESSER PEREIRA (1985).<br />

522 Ver a este respeito, especialmente os trabalhos de TAVARES <strong>DO</strong>S SANTOS (1993 e 1995) e IANNI (1979,<br />

1979(a) 1981 e 1984).<br />

258


2. N o r t e 129,5 77,2 217,1<br />

3. N o r d e s t e 57,0 17,6 133,7<br />

4. S u d e s t e 68,9 (-32,5) 145,3<br />

5. S u l 61,9 (-3,2) 172,4<br />

6. C e n t r o - O e s t e 156.4 25,5 407,7<br />

Fonte: FIBGE - Censos Demográficos 1960 e 1980<br />

Parece evidente que não se pode atribuir essas extremas variações <strong>da</strong> população<br />

ao fato de as pessoas terem “decidido” mu<strong>da</strong>r de região ou de ativi<strong>da</strong>de; ou, ain<strong>da</strong>, que<br />

tenham sido “atraí<strong>da</strong>s pelas luzes <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des”. Nem, simplesmente, pode-se atribuir<br />

este fenômeno, de maneira simplista ou linear às transformações internas aos processos<br />

de produção imediata. Embora estas transformações sejam uma <strong>da</strong>s variáveis que<br />

acelera o processo, ao gestar, em escala crescente, um excedente de população em<br />

relação à deman<strong>da</strong> efetiva por força de trabalho na produção imediata 523 .<br />

É, por outro lado, necessário associar esses <strong>da</strong>dos com os fatos concretos que<br />

subjazem a eles e que podem ser levantados em diversas fontes: estatísticas econômicas<br />

e demográficas, imprensa, pesquisas especializa<strong>da</strong>s, etc. No caso do Brasil, a própria<br />

existência, ca<strong>da</strong> vez mais acentua<strong>da</strong> por pesquisas e noticia<strong>da</strong> pela imprensa, dos níveis<br />

de pobreza, <strong>da</strong> concentração <strong>da</strong> ren<strong>da</strong> e <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, assim como do desemprego, do<br />

subemprego e <strong>da</strong> criminali<strong>da</strong>de nas grandes ci<strong>da</strong>des, são evidências de que essas<br />

pessoas não “emigraram” apenas porque resolveram mu<strong>da</strong>r de vi<strong>da</strong>. Na prática, o que<br />

ocorre é o contrário, elas migram porque mu<strong>da</strong>ram de vi<strong>da</strong>: foram transforma<strong>da</strong>s em<br />

“população excedente”, em elementos excluídos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

estabeleci<strong>da</strong>.<br />

Afinal, fica realmente muito difícil explicar como, “voluntariamente”, essas<br />

pessoas resolveram tornar-se proletários, bóias-frias, desempregados, mendigos,<br />

marginais urbanos, “meliantes”... presidiários.<br />

Essa busca de “melhores condições de vi<strong>da</strong>” na ci<strong>da</strong>de, como a aparência dos<br />

fatos leva a crer, é, ela mesma, uma forma de ilusão que se cria para o homem<br />

expropriado ou em vias de expropriação, sobretudo através dos mecanismos de<br />

manipulação <strong>da</strong> opinião pública. É relevante, neste sentido, lembrar a imensa<br />

publici<strong>da</strong>de acerca <strong>da</strong>s “vantagens existentes nas zonas de colonização” <strong>da</strong>s regiões<br />

Centro Oeste e Norte, amplamente divulga<strong>da</strong>s entre pequenos produtores e sitiantes,<br />

muito particularmente nas Regiões Sul e Sudeste 524 , tanto pelos órgãos fundiários do<br />

Governo quanto por cooperativas e companhias de colonização, etc; com o objetivo<br />

523 Seria de interesse ver, a este respeito, os argumentos desenvolvidos por Marx no capítulo XXIII, especialmente,<br />

seções 3 e 4, paginas 730-752. (MARX, 1975).<br />

524 Ver a este respeito IANNI (1979), TAVARES <strong>DO</strong>S SANTOS (1994), JONES (1987).<br />

259


claro de seduzir 525 os pequenos produtores a alienar seus sítios e emigrarem para as<br />

áreas onde eram executados os Projetos de Colonização.<br />

Na ver<strong>da</strong>de, há de pelo menos suspeitar-se, ao intentar uma análise dessas<br />

questões, de que as mesmas não possuem existência independente dos demais processos<br />

de reprodução econômico-social. Assim, basta uma rápi<strong>da</strong> confrontação entre os <strong>da</strong>dos<br />

demográficos e os referentes à concentração fundiária 526 , para se concluir que<br />

apresentam relações “demais” para não estarem articulados.<br />

Uma informação complementar a esse respeito pode ser retira<strong>da</strong> <strong>da</strong> variação <strong>da</strong>s<br />

populações urbanas. Pela análise dos <strong>da</strong>dos do Quadro 2.B pode-se observar que as<br />

taxas de incremento <strong>da</strong> população urbana foram eleva<strong>da</strong>s em to<strong>da</strong>s as regiões, mas<br />

especialmente nas chama<strong>da</strong>s regiões de fronteira, nas quais a apropriação ou<br />

legitimação de posses sobre áreas novas foram mais relevantes. São os casos <strong>da</strong> Região<br />

Centro-Oeste, com um incremento de 407% e <strong>da</strong> Região Norte, com 217%.<br />

As altas taxas de incremento <strong>da</strong> população urbana nessas regiões devem,<br />

provavelmente, ser atribuí<strong>da</strong>s, para além do grande fluxo migratório, oriundo de outras<br />

regiões, ao próprio “êxodo rural” intrarregional, provocado, este, pelos processos de<br />

reconcentração <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de sobre “áreas novas”, promovi<strong>da</strong> pela alienação de<br />

grandes áreas, por suposto devolutas e livres, mas que, na ver<strong>da</strong>de, abrigavam uma<br />

imensidão de pequenos posseiros que, assim, foram empurrados para os centros<br />

urbanos.<br />

Observa-se, pelo mesmo Quadro, que as Regiões Sudeste, Sul e Nordeste<br />

apresentaram, igualmente, alta taxa de crescimento <strong>da</strong> população urbana. No que se<br />

refere à Região Sudeste, essa taxa deve-se, em boa parte, às migrações interregionais,<br />

fenômeno largamente conhecido. E o qual parece, igualmente, estar acrescido pelo<br />

êxodo rural <strong>da</strong> própria região provocado tanto pela intensificação <strong>da</strong> agricultura, e pelo<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> escala de produção na agropecuária, como, também, pela<br />

reconcentração <strong>da</strong> estrutura agrária.<br />

No que se refere à Região Sul, embora os <strong>da</strong>dos acima não permitam avançar<br />

maiores detalhes, o fenômeno urbano parece ser devido, por um lado, à reconcentração<br />

fundiária intraregional, ao passo que na Região Nordeste, a esses fenômenos de<br />

reconcentração estão, possivelmente, associados tanto a manutenção dos altos padrões<br />

de concentração, como a transformações no processo de produção, que foram acrescidos<br />

às conheci<strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des e<strong>da</strong>foclimáticas, sobretudo provoca<strong>da</strong>s pelas secas. A taxa de<br />

redução na população rural (de -3,2%) é relativamente alta na comparação com o<br />

Sudeste, <strong>da</strong><strong>da</strong> a, ali e ain<strong>da</strong> em 1970, eleva<strong>da</strong> proporção de população rural sobre o<br />

conjunto <strong>da</strong> população (55,7%, se compara<strong>da</strong> a 27,3% no Sudeste).<br />

525 Ver a respeito destes processos de “manipulação <strong>da</strong> opinião pública” os excelentes trabalhos de Hernry Lefebvre<br />

e Norbert Guterman, La Conscience Mistifiee (LEFEBVRE & GUTERMAN, 1979) e La Presencia y la<br />

Ausência - Contribucion a la Teoria de las Representaciones (LEFEBVRE, 1983).<br />

526 Ver a figura 5. Comparar esta com as figuras 1, 2, 3 e 4.<br />

260


Essas informações, como se afirmou acima, têm apenas o caráter complementar,<br />

no sentido de lançar mais alguma luz sobre o fato central em questão. Neste trabalho<br />

não caberia a análise pormenoriza<strong>da</strong> <strong>da</strong>s causas mais específicas e profun<strong>da</strong>s dos<br />

movimentos demográficos, posto que tal fugiria aos objetivos deste trabalho.<br />

4. Destinação e Utilização <strong>da</strong>s Terras: Caráter Parasitário <strong>da</strong> Privatização<br />

Se a análise do volume físico <strong>da</strong>s terras privatiza<strong>da</strong>s neste período indica que<br />

persistiu a tendência, historicamente conheci<strong>da</strong>, à manutenção e agravamento do<br />

elevado padrão de concentração <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária e <strong>da</strong> estrutura agrária, o estudo<br />

<strong>da</strong>s variações entre as populações rurais e urbanas indicaram, ain<strong>da</strong> que genericamente,<br />

que àquela concentração corresponderam determinados padrões de distribuição regional<br />

entre populações rurais e urbanas, a destinação efetivamente <strong>da</strong><strong>da</strong> às terras <strong>da</strong>quela<br />

forma apropria<strong>da</strong>s ou privatiza<strong>da</strong>s pode oferecer a possibili<strong>da</strong>de de se captar o caráter,<br />

sentido e objetivos <strong>da</strong> Política de Terras e de Desenvolvimento Rural postas em prática<br />

pelos Governos Militares.<br />

Mais uma vez, cabe chamar a atenção para o fato de que a análise <strong>da</strong> variável<br />

“Utilização e Destinação <strong>da</strong>s Terras” (Quadro 3) é realiza<strong>da</strong>, neste item, apenas com a<br />

intenção de levantar algumas indicações gerais a respeito de possíveis relações entre<br />

estes fenômenos, e em nenhum momento tem o objetivo de testar hipóteses ou relações<br />

que efetivamente existam entre eles. Este estudo mais aprofun<strong>da</strong>do - embora relevante -<br />

fugiria aos propósitos específicos deste trabalho.<br />

Feitas estas ressalvas, a análise <strong>da</strong> destinação e utilização <strong>da</strong>s terras tomou como<br />

indicadores, os <strong>da</strong>dos gerais constantes dos Censos Agropecuários para os anos de<br />

1960, 1970 e 1980, referentes a, por um lado: áreas total, utiliza<strong>da</strong>, produtiva mas nãoutiliza<strong>da</strong><br />

e improdutiva, por um lado; e por outro lado, os <strong>da</strong>dos referentes ao<br />

detalhamento <strong>da</strong> área utiliza<strong>da</strong> por tipo de exploração: lavouras, pastagens naturais e<br />

planta<strong>da</strong>s, matas naturais e planta<strong>da</strong>s e florestas. Esses <strong>da</strong>dos constam do Quadro 3,<br />

adiante:<br />

261


QUADRO 3 - Utilização e Destinação <strong>da</strong>s Terras: Brasil e Regiões: 1960 - 1980<br />

(Percentuais)<br />

Brasil e Área Produtiva Não Lavouras Patagem: Patagem Pastagem Matas Matas<br />

Regiões Utiliza<strong>da</strong> Utiliza<strong>da</strong> Perm./Temp. Total Natural Cultiva<strong>da</strong> Naturais Planta<strong>da</strong>s<br />

Brasil<br />

1960 83.0 11.7 12.0 46.8 s/r s/r 24.1 s/r<br />

1970 83.6 11.4 11.5 52.4 80.7 19.3 19.1 0.6<br />

1980 85.4 9.2 13.4 47.8 65.3 34.7 22.8 1.4<br />

Norte<br />

1960 84.3 12.8 1.8 9.5 s/r s/r 73.0 s/r<br />

1970 81.8 14.8 2.6 19.2 85.6 14.4 59.8 0.2<br />

1980 86.0 9.7 4.2 18.6 51.2 48.8 62.7 0.5<br />

Nordeste<br />

1960 72.7 20.0 13.8 34.5 s/r s/r 24.4 s/r<br />

1970 73.7 20.6 14.0 37.5 79.4 20.6 22.1 0.1<br />

1980 77.0 18.3 16.0 38.6 69.7 30.3 22.2 0.2<br />

Sudeste<br />

1960 87.5 7.2 15.6 59.6 s/r s/r 12.3 s/r<br />

1970 89.1 5.6 13.8 64.4 76.2 23.8 9.6 1.3<br />

1980 90.3 4.0 16.4 59.3 63.0 37.0 11.0 3.6<br />

Sul<br />

1960 86.0 10.5 20.9 46.7 s/r s/r 18.4<br />

1970 85.6 10.0 24.2 47.5 83.2 16.8 12.5 1.3<br />

1980 88.3 5.8 30.4 44.5 73.6 26.4 10.4 3.0<br />

Cent.-Oeste<br />

1960 89.2 6.5 2.2 69.8 s/r s/r 17.2 s/r<br />

1970 87.5 7.7 2.9 68.0 83.6 16.4 16.6 0.0<br />

1980 87.4 6.6 5.7 59.6 63.6 36.4 21.6 0.5<br />

Fonte: Dados <strong>da</strong> Pesquisa.<br />

A figura 3 - “Área utiliza<strong>da</strong> por tipo de exploração” - e a Figura 4 - “Variação<br />

<strong>da</strong> área utiliza<strong>da</strong> - oferecem uma melhor visualização do caráter parasitário que subjaz<br />

aos processos de apropriação priva<strong>da</strong> <strong>da</strong>s terras neste período.<br />

262


Dado o caráter e propósitos <strong>da</strong> análise acerca do problema em estudo, não se<br />

julgou necessário descer a pormenores em termos de especificação do processo<br />

produtivo, mesmo porque as estatísticas, ao nível agregado, além de serem incompletas<br />

para o período, não contribuiriam de forma relevante para a eluci<strong>da</strong>ção dos objetivos<br />

estabelecidos. Por outro lado, os <strong>da</strong>dos e as evidências que foram trabalhados durante o<br />

processo de pesquisa mostraram-se suficientes para a eluci<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> hipótese básica de<br />

trabalho e objetivos propostos.<br />

Neste item realiza-se a análise <strong>da</strong> destinação (produtiva ou especulativa) que, em<br />

última análise, foi <strong>da</strong><strong>da</strong> às terras. Quando se estudou, acima, a dimensão física <strong>da</strong>s áreas<br />

novas apropria<strong>da</strong>s, pôde-se ter uma visão dos rumos gerais do processo. A análise <strong>da</strong><br />

variação <strong>da</strong> destinação <strong>da</strong><strong>da</strong> às terras no período 1960 a 1980 possibilita a compreensão<br />

do caráter efetivamente assumido pelo mesmo. A uni<strong>da</strong>de destas duas dimensões<br />

oferece as condições necessárias à interpretação do processo de privatização de terras,<br />

tal como posto em prática pelo Governo e suas respectivas articulações no bojo do seu<br />

Projeto de Desenvolvimento Rural.<br />

O Quadro 3, oferece uma visão de conjunto dos padrões de utilização <strong>da</strong>s terras<br />

no período, para o País e pelas diferentes Regiões, com algum detalhamento para os<br />

tipos de exploração 527 .<br />

Analisando-se a coluna referente às terras declara<strong>da</strong>s como utiliza<strong>da</strong>s, verifica-se<br />

que o padrão de utilização <strong>da</strong>s mesmas permanece virtualmente constante em todo o<br />

período 528 , tanto para o conjunto do país, como para to<strong>da</strong>s as regiões, exclusive a<br />

Centro-Oeste, onde este padrão cai, ligeiramente, de 89,2% para 87,4%. Essa que<strong>da</strong> é,<br />

aparentemente, irrelevante, mas se se considerar que esta Região representou a<br />

incorporação de 46% de todo o incremento de área do país, pode-se imaginar o<br />

significado deste <strong>da</strong>do. Esses problemas serão melhor eluci<strong>da</strong>dos adiante. De qualquer<br />

maneira, pode-se perceber que o conceito de “terra utiliza<strong>da</strong>” é de caráter declaratório.<br />

Ou seja, ao responderem ao Censo, os proprietários declaram como utiliza<strong>da</strong>s as terras<br />

indistintamente destina<strong>da</strong>s a explorações efetivas, assim como as terras simplesmente<br />

“aproveita<strong>da</strong>s” de forma extensiva, como as pastagens e matas naturais.<br />

Independentemente de qualquer avaliação subjetiva deste fato, ele efetivamente distorce<br />

a reali<strong>da</strong>de no que diz respeito à utilização efetivamente produtiva <strong>da</strong> terra apropria<strong>da</strong>.<br />

Feitas estas observações, o que se pode depreender, em linhas gerais, pela<br />

análise dos <strong>da</strong>dos do Quadro 3 é que a variação do padrão de aproveitamento ou<br />

utilização <strong>da</strong>s terras, apesar <strong>da</strong> ampliação <strong>da</strong> área apropria<strong>da</strong> no período ficar em torno<br />

de 46%, como se verificou acima, é estatisticamente pouco significativa, nunca<br />

ultrapassando o valor dos 5%. Por outro lado, esse <strong>da</strong>do é ain<strong>da</strong> muito geral e oferece<br />

uma idéia incompleta do quadro efetivamente assumido pelo processo de utilização<br />

produtiva <strong>da</strong>s terras no País e nas diferentes regiões. Uma noção um pouco mais<br />

527 Para uma visualização desse fenômeno, ver a figuras 3 adiante.<br />

528 Ver a figura 4.<br />

263


esclarecedora, entretanto, pode ser consegui<strong>da</strong> ao se analisar este <strong>da</strong>do desagregando-o<br />

por tipos de exploração ou destinação (ver Quadro 3 e fig. 3).<br />

Procedendo desta maneira, percebe-se que o volume significativo <strong>da</strong>s terras em<br />

proprie<strong>da</strong>de particular, no período, destinou-se, sobretudo, às pastagens naturais (isto é,<br />

à pecuária extensiva) e à exploração de florestas e matas naturais (isto é, extrativismo<br />

vegetal), sendo que as áreas destina<strong>da</strong>s à lavouras (incluindo permanentes e<br />

temporárias) permaneceram, em todo o período, efetivamente em segundo plano ( por<br />

exemplo, em relação ao País como um todo, variando, entre os anos de 1960 a 1980,<br />

entre 12 a 13,4% <strong>da</strong> área utiliza<strong>da</strong>) o que, efetivamente, reflete um padrão de utilização<br />

irrelevante, sobretudo se se tiver em consideração a dimensão <strong>da</strong> área incorpora<strong>da</strong>, entre<br />

1960 e 1980 à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>. Esse <strong>da</strong>do torna-se ain<strong>da</strong> mais dramático pelo fato<br />

de ser padrão generalizado em to<strong>da</strong>s as regiões do País.<br />

Para o conjunto do País, observa-se que a utilização <strong>da</strong>s terras, ain<strong>da</strong> que<br />

sobreestima<strong>da</strong> nas declarações, como se observou acima, apresentou os seguintes<br />

resultados:<br />

No ano de 1960 registrou-se que apenas 12,0% <strong>da</strong>s terras em proprie<strong>da</strong>de<br />

particular foram destina<strong>da</strong>s à plantação de lavouras, incluindo temporárias e<br />

permanentes. Por outro lado, 46,8% <strong>da</strong> área, portanto, quase metade, foram destina<strong>da</strong>s à<br />

pastagens, incluindo pastos naturais que, para este ano, os <strong>da</strong>dos censitários não fizeram<br />

distinção com relação às pastagens planta<strong>da</strong>s, o que apenas acontecerá a partir do Censo<br />

Agropecuário de 1970. A exploração de matas naturais representou 24,1% de to<strong>da</strong> a<br />

utilização de terras para o país, isto é, incorporando, indistintamente, as diferentes<br />

regiões. Estes <strong>da</strong>dos não deixam dúvi<strong>da</strong> a respeito do padrão de utilização <strong>da</strong>s terras em<br />

seu sentido mais geral: abstraindo-se dos 11,7% ocupados com as lavouras, pode-se<br />

afirmar que a exploração <strong>da</strong> terra é realiza<strong>da</strong>, sobretudo, extensivamente, pela<br />

exploração de pastos e matas naturais.<br />

Os <strong>da</strong>dos referentes ao ano de 1970 não indicam nenhuma mu<strong>da</strong>nça relevante<br />

neste padrão de utilização que se mantém, virtual e praticamente o mesmo. A área<br />

produtiva e não-utiliza<strong>da</strong>, que em 1960 situava-se em torno de 11,7% permanece neste<br />

patamar (11,4%). Por outro lado, e contraditoriamente à expansão <strong>da</strong>s áreas apropria<strong>da</strong>s,<br />

as terras utiliza<strong>da</strong>s para as lavouras caem meio ponto percentual (para 11,5%) em<br />

relação ao censo anterior, o que é um <strong>da</strong>do significativo se se considerar a expansão de<br />

área referi<strong>da</strong>. As terras destina<strong>da</strong>s às pastagens, isto é, à pecuária, sobem ligeiramente,<br />

de 46,8% em 1960, para 52,4% em 1970; entretanto, 80,7% <strong>da</strong> pecuária é feita em<br />

pastos naturais (a chama<strong>da</strong> “ocupação de fronteiras pela pata do boi”), e apenas 19,3%<br />

é destina<strong>da</strong> a áreas planta<strong>da</strong>s. A exploração de matas e florestas cai de 24,1% para<br />

19,1%, o que denota o avanço do desmatamento para formação de pastagens extensivas,<br />

sendo que apenas 0,6% são indicados como destinados à exploração de matas e florestas<br />

cultiva<strong>da</strong>s.<br />

Finalmente, em 1980, as áreas destina<strong>da</strong>s a lavouras passam para 13,4%, o que é<br />

um incremento absolutamente irrelevante para o período se se considerar a expansão,<br />

264


em torno de 46%, <strong>da</strong> área apropria<strong>da</strong>, o que, efetivamente indica que esse processo de<br />

privatização de terras, realizado sob forte estímulo estatal, como se viu acima, não<br />

implicou, efetivamente, uma ocupação ver<strong>da</strong>deiramente produtiva e, menos ain<strong>da</strong>, a<br />

implantação de lavouras.<br />

Por outro lado, as pastagens, surpreendentemente, regrediram em relação à<br />

déca<strong>da</strong> anterior, em termos de áreas, caindo de 52,4 para 47,8%, retornando,<br />

praticamente, aos níveis de 1960, embora a área de pastos plantados tenha aumentado<br />

em 15,4% em relação a 1970, passando para a casa dos 34,7%, o que, ain<strong>da</strong> assim, deixa<br />

claro que, <strong>da</strong> mesma forma que na agricultura, a expansão <strong>da</strong>s pastagens ficou muito<br />

aquém do que seria de se esperar, tendo-se em consideração a incorporação de áreas<br />

novas, especialmente nas Regiões Centro-Oeste e Norte.<br />

Nestas Regiões, as alienações e “concessões” de imensas áreas de terras<br />

devolutas, eram justifica<strong>da</strong>s sobretudo à base de Projetos agropecuários que, por<br />

suposto, exigiam grandes áreas 529 . Este <strong>da</strong>do deixa evidente de que essas apropriações<br />

não tinham nenhuma pretensão efetivamente produtiva, ain<strong>da</strong> que simplesmente<br />

extensiva - como a alega<strong>da</strong> pela chama<strong>da</strong> “ocupação pela pata do boi”: Destinou-se,<br />

sobretudo à especulação. Tratou-se, de fato de apropriação privilegia<strong>da</strong> 530 : Além <strong>da</strong>s<br />

terras, permitiu, a estas cama<strong>da</strong>s privilegia<strong>da</strong>s, beneficiarem-se - na medi<strong>da</strong> em que a<br />

alienação ou legitimação de grandes áreas era incentiva<strong>da</strong>, exigindo apenas a<br />

apresentação de Projetos Agropecuários aos Órgãos Fundiários - de vultosos recursos,<br />

tanto via incentivos fiscais, mas sobretudo, pelo financiamento de projetos a créditos<br />

fartos e subsidiados.<br />

As áreas de empreendimentos florestais permaneceram sobretudo na forma de<br />

exploração de matas naturais (22,8%), apenas 1,4% destes empreendimentos sendo feito<br />

em “matas planta<strong>da</strong>s”; o que oferece uma noção precisa do avanço do desmatamento,<br />

sobretudo na Amazônia, para a extração pura e simples de madeiras nobres, muito mais<br />

que para a implantação de pastagens ou <strong>da</strong> pecuária extensiva, como se alegava, apesar<br />

<strong>da</strong> nocivi<strong>da</strong>de social e econômica igualmente representa<strong>da</strong> por este tipo de “pecuária<br />

rústica”, como bem a denominou Octávio Ianni 531 .<br />

Esses <strong>da</strong>dos indicam, seguramente, que a agropecuária brasileira, apesar <strong>da</strong><br />

eleva<strong>da</strong> expansão de sua área física e <strong>da</strong> sua concentração em grandes proprie<strong>da</strong>des, no<br />

período, caracterizou-se fun<strong>da</strong>mentalmente, pela implementação de explorações<br />

extensivas, especialmente nas zonas “incentiva<strong>da</strong>s” pelo Governo (como Amazônia<br />

Legal 532 e Centro-Oeste). Ou se destinaram as terras à pura e simples exploração de<br />

recursos naturais e à especulação usurária com os custos não apenas sociais, mas<br />

igualmente econômicos, até aqui indicados: tanto em termos de “excludência social”<br />

dos pequenos posseiros e indígenas, quanto de prejuízo aos cofres públicos, pelos<br />

529 Ver os argumentos de Paulo Yokota, em YOKOTA, loc.cit.).<br />

530 Ver a respeito de detalhes desta problemática, DELGA<strong>DO</strong> (op. cit.) e JONES (op. cit.).<br />

531 IANNI (1979(a)).<br />

532 Que incorporava parte <strong>da</strong>s Regiões Nordeste e Centro-Oeste.<br />

265


vultosos recursos que, por suposto, eram utilizados nos Projetos de Desenvolvimento<br />

Agropecuário, sempre apresentados pelas “empresas” rurais sem retornos sociais ou<br />

econômicos palpáveis. Se estes Projetos tivessem, de fato, sido implementados, ain<strong>da</strong><br />

que em mínima realização, a taxa de utilização produtiva <strong>da</strong> terra, especialmente nas<br />

regiões incentiva<strong>da</strong>s, como na Amazônia Legal e Centro-Oeste, seria certamente muito<br />

mais eleva<strong>da</strong>, assim como teria crescido a oferta de alimentos e matérias-primas, como<br />

sempre se buscava justificar o gasto público e as transferências de proprie<strong>da</strong>de estatal<br />

nos respectivos projetos 533 .<br />

Esta é a dimensão fun<strong>da</strong>mental que pode definir o caráter do processo de<br />

ocupação <strong>da</strong>s áreas novas e de sua privatização, pelo Estado, neste período: tratou-se <strong>da</strong><br />

alienação de grandes áreas de proprie<strong>da</strong>de estatal que, no fun<strong>da</strong>mental, vieram a<br />

transfigurar-se tão só em “pequenas explorações” - <strong>da</strong><strong>da</strong> a insignificância do capital<br />

produtivo investido - e, portanto, permanecendo com o caráter de latifúndio. Este fato<br />

tem levado muitos estudiosos do assunto a afirmar que esta ocupação caracteriza-se pela<br />

apropriação <strong>da</strong> terra como “reserva de valor 534 ”. Este conceito, inclusive, acha-se, pelo<br />

menos aparentemente, embutido no conceito legal de “latifúndio por exploração 535 ” que<br />

relaciona a área do imóvel rural à área efetivamente explora<strong>da</strong> ou passível de<br />

exploração econômica, o que, em última análise, significa classificar os imóveis pelo<br />

seu padrão de exploração. Infelizmente, este conceito, como foi visto, permite também o<br />

contrário, transformar pequenas áreas em latifúndios e, desta forma contribui mais para<br />

obscurecer que para esclarecer o problema.<br />

O Estatuto <strong>da</strong> Terra define como latifúndios por exploração os imóveis que,<br />

mesmo situando-se em termos físicos, dentro dos limites de 600 módulos fiscais ou<br />

familiares, não têm realiza<strong>da</strong> a exploração efetiva de suas áreas, as quais se mantêm<br />

improdutivas, “com fins especulativos ou de exploração deficiente ou inadequa<strong>da</strong>”<br />

(INCRA, 1984). Não fora o adjetivo “inadequa<strong>da</strong>” utilizado pela legislação em vigor e<br />

pelo INCRA, e que se presta a interpretações dúbias, os <strong>da</strong>dos do Quadro 3 acima<br />

permitiriam classificar a quase totali<strong>da</strong>de dos estabelecimentos rurais brasileiros,<br />

independentemente <strong>da</strong>s regiões nas quais se situam, como latifúndios “por dimensão” e<br />

sobretudo “por exploração”. Esses fatos fornecem a outra perspectiva para a análise do<br />

processo de apropriação e privatização <strong>da</strong>s terras devolutas neste período: tratou-se de<br />

um processo de privatização de terras públicas ou irregularmente ocupa<strong>da</strong>s, não<br />

necessariamente volta<strong>da</strong> para a utilização efetiva ou produtiva <strong>da</strong>s terras, uma vez que a<br />

maior parte <strong>da</strong>s mesmas, em to<strong>da</strong>s as regiões, quase que indistintamente, destinaram-se,<br />

na melhor <strong>da</strong>s hipótese, à ocupação extensiva ou ao mero extrativismo vegetal<br />

533 Ver a respeito deste tema e do “enriquecimento ilícito” que se debateu, no contexto <strong>da</strong> análise desses<br />

“incentivos fiscais” e financiamentos, na CPI do Sistema Fundiário, o “Relatório Final” (CÂMARA <strong>DO</strong>S<br />

DEPUTA<strong>DO</strong>S, op. cit.).<br />

534 GRAZIANO <strong>DA</strong> SILVA (1980 e 1982); SILVA (1981); MARTINS (1983); DELGA<strong>DO</strong> (op. cit.)<br />

entre outros.<br />

535 Ver a Lei 4.504/64 do Estatuto <strong>da</strong> Terra (Op. cit.)<br />

266


(sobretudo madeireiro), quando não permaneceram, simplesmente, inexplora<strong>da</strong>s e<br />

aguar<strong>da</strong>ndo valorização. Este fato foi singularmente característico nas Regiões Norte e<br />

Centro-Oeste, onde a maior parte dos estabelecimentos rurais destinaram-se ou à<br />

extração vegetal ou à pecuária extensiva.<br />

A outra dimensão característica deste processo - típico dos chamados métodos<br />

<strong>da</strong> “acumulação primitiva ou originária” de capital - é forneci<strong>da</strong> pela forma violenta sob<br />

a qual se deu a expropriação e a expulsão de posseiros que detinham direitos reais, e de<br />

indígenas, sobretudo pela intervenção efetiva dos Órgãos Fundiários do Estado, na<br />

promoção privilegia<strong>da</strong> <strong>da</strong> alavancagem destes processos. A asserção acima pode ser<br />

documenta<strong>da</strong> pelo seguinte trecho do texto intitulado “Conflitos de Terra”, editado pelo<br />

Ministério <strong>da</strong> Reforma e Desenvolvimento Agrário:<br />

“Certos órgãos públicos ao alocarem no meio, nos últimos anos, um enorme<br />

volume de incentivos, subvenções e concessões de terras públicas, antes de<br />

democratizarem o acesso à terra contribuiram para agravar a<br />

concentração <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária e dos recursos públicos<br />

destinados à agricultura e à pecuária. A maior parte dos projetos<br />

agropecuários aprovados no âmbito <strong>da</strong> SU<strong>DA</strong>M e <strong>da</strong> SUDENE refletem esta<br />

situação. A implantação deste novo tipo de latifundismo não abdicou,<br />

entretanto, <strong>da</strong>s formas tradicionais de imobilização de mão-de-obra (peonagem<br />

<strong>da</strong> dívi<strong>da</strong>) e, além disto, instituiu mecanismos coercitivos, fun<strong>da</strong>dos na<br />

violência, objetivando a desorganização <strong>da</strong> economia dos pequenos<br />

produtores agrícolas que há déca<strong>da</strong>s, senão séculos, cultivam e têm<br />

mora<strong>da</strong> habitual nestas regiões. O resultado mais imediato destas tentativas<br />

tem sido a expulsão de imensos contingentes de trabalhadores rurais <strong>da</strong>s<br />

terras que cultivam e a implantação de um clima de violência sem<br />

precedentes na área rural 536 .”<br />

Enfim, os <strong>da</strong>dos até o momento analisados parecem pôr em evidência que o<br />

processo de privatização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária no período do Regime Militar<br />

reproduziu, sob novas formas e agravando, o mesmo padrão de baixa utilização e<br />

extrema concentração do passado. No caso deste período, to<strong>da</strong>s as evidências indicam<br />

que este processo de apropriação, sobretudo nas ditas “regiões de fronteira” (Centro-<br />

Oeste e, particularmente, Amazônia Legal), não esteve acompanhado <strong>da</strong> intenção de<br />

implantar nenhum processo de produção agropecuária efetivamente relevante, à qual,<br />

por exigência legal e por suposto lógico do “modelo” de desenvolvimento proposto,<br />

deveriam ter-se subordinado as alienações estatais e os subsídios despendidos. Tratouse,<br />

portanto, efetivamente, de um processo de alienação e titulação de proprie<strong>da</strong>de<br />

ofereci<strong>da</strong>s na quali<strong>da</strong>de de privilégio a determina<strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> população contra os<br />

direitos reais de posseiros e indígenas, assegurados legalmente. Portanto, de legali<strong>da</strong>de<br />

questionável.<br />

Um exemplo cristalino deste fato é <strong>da</strong>do pelo depoimento do Senador Alexandre<br />

Costa à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário. No referido<br />

depoimento, o aludido Senador <strong>da</strong> República afirma e esclarece as formas como as<br />

terras adquiri<strong>da</strong>s a “preço vil” ao Governo do Estado do Maranhão, são incorpora<strong>da</strong>s ao<br />

“capital social” de “sua empresa rural” com valor aumentado pela reavaliação <strong>da</strong> mesma<br />

536 Cf. MIRAD/INCRA,Secretaria Geral. Coordenadoria de Conflitos Agrários. Conflitos de Terra. Vol.<br />

I, 1986; grifos nossos.<br />

267


proprie<strong>da</strong>de, tomando por base a existência de “árvores, madeira, benfeitorias”. E como<br />

esta nova avaliação acabou gerando o inesperado enriquecimento dos respectivos sócios<br />

desta “empresa rural”, ao habilitá-la a realizar um “aumento de capital” e por isto<br />

possibilitando a obtenção favoreci<strong>da</strong> de empréstimos de dinheiro à guisa de<br />

financiamento a juros subsidiados e prazos de carência excepcionalmente vantajosos<br />

junto ao Banco do Nordeste do Brasil, etc 537 . Uma história muito interessante.<br />

Processos similares ocorreram em relação aos “incentivos fiscais”,<br />

especialmente na área <strong>da</strong> SU<strong>DA</strong>M, onde, normalmente eram estabelecidos na proporção<br />

de duas uni<strong>da</strong>des de incentivo para uma de “capital próprio” declarado no Projeto a ser<br />

investido pelo “empresário”. Quer isto dizer, na ver<strong>da</strong>de, que o referido “investidor”,<br />

que já havia por incentivos adquirido a terra, recebe, além desta, duas uni<strong>da</strong>des de<br />

capital “como outros tantos incentivos”. Estas são conheci<strong>da</strong>s particulari<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s<br />

formas como se pode “acumular capital” às custas dos fundos públicos sem<br />

necessariamente envolver-se em nenhuma ativi<strong>da</strong>de liga<strong>da</strong> à produção, seja ela<br />

diretamente produtiva ou não. Estas são formas que vigiram de um modo muito especial<br />

no período do Regime Militar, particularmente nas regiões de “fronteira e integração<br />

nacional”.<br />

É neste contexto e sentido que Bresser Pereira refere-se aos processos através<br />

dos quais o Estado, em nome <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> “ocupação dos vazios demográficos”,<br />

<strong>da</strong> modernização e do desenvolvimento <strong>da</strong> agricultura, etc., transfere vultosos recursos<br />

do orçamento nacional para determina<strong>da</strong>s frações de classe do capital, reforçando desta<br />

forma, ain<strong>da</strong> mais, os instrumentos e mecanismos utilizados pela “burguesia em<br />

expansão, na sua luta para a subordinação plena <strong>da</strong> agropecuária ao grande capital” 538 .<br />

Delgado (1985) põe em evidência essas formas e mecanismos através dos quais<br />

“(...)esses capitais encontram também na agricultura possibili<strong>da</strong>des de captura<br />

de margens monopólicas de lucro operacional e ganhos financeiros, oriundos<br />

<strong>da</strong> valorização do patrimônio territorial.”<br />

Assim, em suas linhas fun<strong>da</strong>mentais, ficam caracteriza<strong>da</strong>s as formas de<br />

alienação e legitimação privilegia<strong>da</strong>s, tais como postas em prática no âmbito <strong>da</strong> Política<br />

Fundiária e de desenvolvimento rural do período militar. Por um lado ela possibilitou,<br />

embora sob novas formas, a manutenção e agravamento <strong>da</strong> estrutura fundiária<br />

historicamente concentra<strong>da</strong>, em contradição com o discurso contido na Mensagem 33.<br />

Por outro lado, ampliou em escala sem precedentes a excludência <strong>da</strong>s populações rurais,<br />

fun<strong>da</strong><strong>da</strong>, sobretudo, nos processos de expropriação de posseiros, pequenos proprietários<br />

e índios, provocados pela alienação de terras devolutas sem o necessário - e legalmente<br />

exigido - processo de discriminação, o que transformou estas “ven<strong>da</strong>s” em uma espécie<br />

muito particular de grilagem especializa<strong>da</strong>, ampliando de forma exacerba<strong>da</strong> e iníqua as<br />

populações carentes <strong>da</strong>s áreas urbanas, em particular nas regiões onde sua ação<br />

537 CÂMARA <strong>DO</strong>S DEPUTA<strong>DO</strong>S (op. cit.).<br />

538 BRESSER PEREIRA (1985 e 1986).<br />

268


fundiária foi mais efetiva, como por exemplo o Centro-Oeste. Apesar deste amplo<br />

processo de alienação de terras públicas que, no período, alcançou uma cifra de<br />

aproxima<strong>da</strong>mente 46% <strong>da</strong> área agrícola do país, as taxas de ocupação <strong>da</strong> terra<br />

permaneceram virtualmente estacionárias nos mesmos níveis de 1960 (ver a fig.3), o<br />

que não deixa duvi<strong>da</strong>s de que a apropriação de vastas áreas de terras públicas,<br />

promovi<strong>da</strong> e extremamente facilita<strong>da</strong> no período, nunca teve o objetivo de proceder à<br />

exploração efetiva <strong>da</strong> terra: antes teve caráter especulativo em relação à valorização<br />

meramente financeira dos imóveis. E sobretudo, representaram uma via de acesso fácil,<br />

não apenas à terra, mas através desta, ao crédito favorecido e outros subsídios alocados<br />

especificamente a essas regiões do país, na espécie de privilégios inadmissíveis que<br />

geraram o rápido enriquecimento dos maiores beneficiários desta Política de<br />

Desenvolvimento Rural.<br />

269


CONCLUSÕES<br />

I<br />

Este estudo ocupou-se <strong>da</strong> análise sistemática do processo de formação e<br />

legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> territorial no Brasil, recuando às suas origens no<br />

sistema sesmarial, e avançando até a aprovação do Estatuto <strong>da</strong> Terra, em novembro de<br />

1964, e sua implementação no período dos Governos Militares.<br />

Este recuo no tempo objetivou apenas permitir a análise comparativa <strong>da</strong><br />

materialização deste processo, tal como ocorrido no período do Regime Militar, com a<br />

sua ocorrência, ou não, em outras circunstâncias e conjunturas <strong>da</strong> história <strong>da</strong> terra no<br />

Brasil, por um lado; e, por outro, possibilitar a efetiva verificação <strong>da</strong> ocorrência, em<br />

algum outro momento <strong>da</strong> história fundiária brasileira, <strong>da</strong> efetiva legitimação e<br />

legalização, de forma relevante, <strong>da</strong>s terras em domínio privado. A resposta a esta última<br />

questão, como ficou evidencia<strong>da</strong> no decorrer <strong>da</strong> análise realiza<strong>da</strong>, é negativa.<br />

Muitos estudos relevantes foram realizados em torno desta problemática,<br />

especialmente a abor<strong>da</strong>ndo de perspectivas teóricas e concretas distintas: acerca do<br />

caráter e especifici<strong>da</strong>des <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e economia coloniais; do desenvolvimento do<br />

capitalismo na agricultura, assim como dos efeitos e conseqüências deste processo,<br />

sobre as condições de sociabili<strong>da</strong>de, as relações de trabalho, a produção familiar ou de<br />

subsistência e do desenvolvimento do mercado interno, etc. Muitos desses estudos,<br />

centraram-se na problemática <strong>da</strong> modernização <strong>da</strong> agricultura, <strong>da</strong> incorporação de<br />

inovações e do progresso técnico e científico. Outros ain<strong>da</strong>, discutiram questões<br />

específicas acerca <strong>da</strong> viabili<strong>da</strong>de econômica <strong>da</strong> pequena produção nas condições de uma<br />

economia de mercado, especialmente, as suas possibili<strong>da</strong>des de gerar excedentes<br />

econômicos relevantes e, desta forma, vir a ter a possibili<strong>da</strong>de de contribuir para o<br />

atendimento <strong>da</strong> deman<strong>da</strong> interna de alimentos e de determinados bens de salário, assim<br />

como <strong>da</strong> sua transição ou integração ao mercado e aos chamados complexos<br />

agroindustriais, etc. Ain<strong>da</strong> outros, procuraram demonstrar as possibili<strong>da</strong>des econômicas<br />

do desenvolvimento <strong>da</strong> agricultura vir a se constituir em um forte suporte à consecução<br />

de divisas, fun<strong>da</strong>mentais ao desenvolvimento sustentado <strong>da</strong> economia brasileira.<br />

270


Uma breve referência a essas linhas de pesquisa e análise e à respectiva<br />

bibliografia a respeito foi resenha<strong>da</strong>, em seus traços e características fun<strong>da</strong>mentais, na<br />

Introdução deste trabalho.<br />

No contexto deste amplo e significativo debate, buscou-se, com esta pesquisa,<br />

desenvolver uma linha específica de análise, ain<strong>da</strong> pouco explora<strong>da</strong>, que, por isso,<br />

poderia vir a se constituir em uma contribuição de relativa importância para a<br />

compreensão <strong>da</strong> questão fundiária e do Direito Agrário. Trata-se do estudo do processo<br />

de privatização ou legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial rural, abor<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>da</strong> perspectiva<br />

de sua formulação jurídica e implicações concretas: <strong>da</strong> transferência, para o domínio<br />

privado, do domínio sobre terras que são originalmente públicas.<br />

Como foi amplamente demonstrado no decorrer do estudo, as terras brasileiras<br />

são, originalmente, públicas, pelo fato de terem sido, primitivamente, integra<strong>da</strong>s ao<br />

Império colonial português, por direito de conquista. Passaram, ulteriormente, com a<br />

Independência Política, em 1822, ao Império Brasileiro e, com a Proclamação <strong>da</strong><br />

República, ao domínio <strong>da</strong> União, sempre como proprie<strong>da</strong>de do Estado. Neste contexto,<br />

a sua incorporação ao processo de produção e reprodução social não prescindiu <strong>da</strong> sua<br />

transferência para a iniciativa de particulares. Trata-se, efetivamente, neste sentido<br />

específico, de um amplo e multifacetado processo de privatização territorial. O estudo<br />

deste processo foi o objetivo central deste trabalho, com especial relevância para a<br />

Política Fundiária implementa<strong>da</strong> pelos Governos Militares.<br />

Uma dimensão relevante à análise <strong>da</strong> estrutura agrária brasileira, amplamente<br />

realça<strong>da</strong> nesta pesquisa, refere-se à institucionalização de determinados processos de<br />

alienação ou reconhecimento e legitimação, pelo Estado, <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de territorial rural.<br />

Trata-se de um processo de privatização de terras públicas: <strong>da</strong> transferência, para a<br />

esfera priva<strong>da</strong>, do domínio sobre um território que nasceu público. Este é exatamente o<br />

caso que foi analisado, detalha<strong>da</strong> e objetivamente, neste estudo.<br />

É desta perspectiva e neste contexto, que se pode afirmar com certa<br />

tranqüili<strong>da</strong>de que uma dimensão relevante no estudo <strong>da</strong> questão agrária, que exige<br />

tratamento específico, refere-se a análise do problema <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de dos processos de<br />

privatização <strong>da</strong>s terras agrícolas do País, e <strong>da</strong>s condições concretas e objetivas sob as<br />

quais este processo foi implementado em diferentes momentos <strong>da</strong> história agrária e,<br />

sobretudo econômica do Brasil. Como foi documentado por esta pesquisa, este processo<br />

de legitimação, de reconhecimento, pelo Estado, de domínios privados sobre terras<br />

públicas, ou a alienação destas, está na origem <strong>da</strong> formação e desenvolvimento <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> legítima <strong>da</strong> terra no Brasil e exerce, ain<strong>da</strong> hoje, forte influência<br />

sobre as condições de sociabili<strong>da</strong>de e de reprodução e desenvolvimento <strong>da</strong> agricultura<br />

brasileira. Neste sentido, representando uma dimensão fun<strong>da</strong>mental na discussão <strong>da</strong><br />

Questão Agrária, em particular, <strong>da</strong> Reforma Agrária.<br />

Ficou amplamente esclarecido que a dimensão de legitimi<strong>da</strong>de do processo de<br />

alienação <strong>da</strong>s terras públicas, ou do reconhecimento do domínio privado sobre estas, é<br />

aqui referi<strong>da</strong> em relação às formas institucionais - jurídicas, administrativas e concretas<br />

271


- através <strong>da</strong>s quais o Estado, em diferentes momentos <strong>da</strong> história do País, consentiu - ou<br />

impediu - o acesso, a aquisição ou o reconhecimento de posses ou a ocupação particular,<br />

de terras do seu patrimônio, procurando regulamentá-las.<br />

Neste contexto, foi enfatizado que é necessário, na análise deste problema,<br />

nunca perder de vista, que o reconhecimento legal <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> rural, pelo<br />

Estado, envolve, necessariamente, processos sociais e de sociabili<strong>da</strong>de, que se<br />

materializam na inclusão - ou excludência - de determina<strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> população em<br />

relação ao acesso à proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra. E que é neste contexto muito particular que são<br />

engendra<strong>da</strong>s e efetivamente estrutura<strong>da</strong>s as condições objetivas <strong>da</strong> concessão, alienação<br />

e apropriação privilegia<strong>da</strong>s.<br />

Portanto, como ficou evidenciado pelas análises - <strong>da</strong> legislação, dos <strong>da</strong>dos e de<br />

outros documentos, assim como <strong>da</strong> literatura especializa<strong>da</strong> - e pela abor<strong>da</strong>gem feitas,<br />

trata-se, de estu<strong>da</strong>r as formas e meios jurídicos, administrativos e concretos, através dos<br />

quais, o Estado buscou, não apenas, assegurar o acesso à proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra e sua<br />

respectiva legalização formal, para determina<strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s sociais (privilegia<strong>da</strong>s) <strong>da</strong><br />

população. Porque este processo significou, também, e objetivamente, por outro lado, a<br />

negação deste mesmo direito de acesso à proprie<strong>da</strong>de, ou ao simples uso <strong>da</strong> terra, para o<br />

amplo conjunto <strong>da</strong> população. População esta que, desde os momentos iniciais do<br />

processo de ocupação territorial e colonização do Brasil, havia-se alojado, com ou sem<br />

o consentimento do Estado - mas sempre, e em última análise, em seu interesse - em<br />

pequenas posses, onde se dedicou à agricultura de subsistência, sustenta<strong>da</strong> pelo trabalho<br />

<strong>da</strong> própria família. Até ser expulsa <strong>da</strong> terra.<br />

É assim que o objetivo central deste estudo foi o de evidenciar que o processo de<br />

ocupação e privatização <strong>da</strong>s terras brasileiras, - que assumiu diferentes formas conforme<br />

as diversas conjunturas enfrenta<strong>da</strong>s ou vivi<strong>da</strong>s pelo País desde a sua origem colonial até<br />

os dias atuais - sempre se fundou no privilégio, quanto às concessões ou alienações e na<br />

ilegali<strong>da</strong>de quanto a sua legitimação formal, por parte do Estado.<br />

Esta situação equivale a afirmar que a proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> sobre as terras no<br />

Brasil, ain<strong>da</strong> hoje, carece de legitimi<strong>da</strong>de: que, portanto, a maior parte <strong>da</strong>s terras em<br />

domínio privado, do ponto de vista <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de e do Direito, permanece pública.<br />

Tratam-se, neste sentido, de meras posses, algumas passíveis de legitimação.<br />

Isto equivale, igualmente, a afirmar que, ain<strong>da</strong> hoje, talvez a tarefa política e<br />

administrativa mais relevante do Estado, no âmbito <strong>da</strong> regularização fundiária, ain<strong>da</strong><br />

seja a <strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong>s posses: isto é, do reconhecimento e legalização <strong>da</strong>s posses<br />

legítimas. E, diga-se de passagem, tanto as grandes, quanto, sobretudo as pequenas. Este<br />

processo necessita, como a análise dos problemas criados pela ocupação e alienação<br />

desordena<strong>da</strong> de terras públicas, - sobretudo no Pós-1964 - demonstrou, subordinar-se,<br />

de forma veemente, aos critérios <strong>da</strong> exploração efetiva <strong>da</strong> terra e do cumprimento <strong>da</strong><br />

função social <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de. Especialmente no caso <strong>da</strong> legitimação ou reconhecimento<br />

272


<strong>da</strong>s imensas posses, este processo deve ser regulamentado de forma a assegurar,<br />

rigorosamente, os limites constitucionais estabelecidos 539 .<br />

Aliás, como se verificou, especialmente no capítulo 4, este é,<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente, o objetivo <strong>da</strong>s “ações discriminatórias”. Estas permanecem urgentes<br />

e, na ver<strong>da</strong>de, são a pré-condição necessária - ain<strong>da</strong> que não suficiente - para a<br />

realização de uma Reforma Agrária efetiva no Brasil.<br />

Junto a este procedimento legal, e tão importante quanto ele, é a efetiva<br />

arreca<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s terras devolutas, públicas, separando-as, definitivamente, do espaço <strong>da</strong>s<br />

terras particulares legítimas 540 . Neste contexto é que, espera-se, resi<strong>da</strong> a relevância deste<br />

esforço de investigação e análise.<br />

Embora uma Conclusão não deva ser um resumo <strong>da</strong>s teses ou hipóteses<br />

defendi<strong>da</strong>s nos diferentes capítulos, nem a simples repetição dos mesmos argumentos já<br />

enunciados no texto, mas uma síntese <strong>da</strong>s hipóteses e argumentos defendidos, vale a<br />

pena sumarizar os pontos fun<strong>da</strong>mentais que foram levantados e discutidos.<br />

II<br />

A hipótese central, que orientou a análise realiza<strong>da</strong> neste trabalho, baseou-se no<br />

fato fun<strong>da</strong>mental de que as terras brasileiras, sendo públicas, implicaram, para a sua<br />

incorporação ao processo de produção e reprodução econômico-social, em determinados<br />

processos de alienação e privatização. Ou seja, implicaram, necessariamente, a<br />

mediação do Estado, para que se pudessem configurar como proprie<strong>da</strong>des priva<strong>da</strong>s,<br />

legitimamente reconheci<strong>da</strong>s. Este fato implicou um processo de transição do domínio<br />

público para o privado, sobre as terras agrárias, que assumiu diferentes especifici<strong>da</strong>des e<br />

539 Que, ain<strong>da</strong> assim, permitem a alienação ou a apropriação de terras públicas, sem a verificação pelo<br />

Estado, de ver<strong>da</strong>deiros latifúndios, sobretudo especulativos. O limite constitucional poderia e deveria ser<br />

rigorosamente reduzido no que toca à aquisição de terras públicas, ficando, outrossim, aberta a<br />

possibili<strong>da</strong>de de aquisição de áreas maiores, que a este limite excedessem, pela via <strong>da</strong> aquisição no<br />

mercado privado de Terras. Esta seria uma excelente alternativa para o Estado, de fato, regular a<br />

problemática do cumprimento <strong>da</strong> função social <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de e evitar a formação <strong>da</strong> “proprie<strong>da</strong>de<br />

especulativa”. Esta poderia ser, efetivamente, uma metodologia, uma regra, ou mais que isto, um<br />

corolário, para a realização <strong>da</strong> Reforma Agrária necessária, capaz, neste contexto, de organizar a<br />

ocupação fundiária do País.<br />

540<br />

Procedimentos estes que, como ficou evidenciado neste estudo, necessitam ser revistos, uma vez que<br />

foram profun<strong>da</strong>mente subvertidos, quanto aos seus efetivos e legítimos objetivos, pelas autori<strong>da</strong>des<br />

fundiárias do Período Militar, que os transformaram, de forma ilegal e ilegítima, em ver<strong>da</strong>deiros<br />

monumentos à grilagem especializa<strong>da</strong> e ao privilégio, em ver<strong>da</strong>deira afronta ao ordenamento jurídico, em<br />

particular à Constituição <strong>da</strong> República. O mesmo se aplica às alienações feitas por estes meios no<br />

período, especialmente no que se refere à “licitação”, “ven<strong>da</strong>” ou “titulação” de grandes posses,<br />

particularmente na Amazônia Legal e na Região Centro-Oeste, que necessitam urgentemente ser revistas,<br />

posto que em sua maioria são juridicamente questionáveis, cobrando-se a respectiva responsabili<strong>da</strong>de<br />

civil e penal <strong>da</strong>quelas Autori<strong>da</strong>des que, notoriamente, cometeram atos ilícitos de improbi<strong>da</strong>de<br />

administrativa e, em certos casos, de “crime de colarinho branco” ou mesmo corrupção, na melhor <strong>da</strong>s<br />

hipóteses, passiva.<br />

273


características, conforme os distintos momentos e conjunturas vivi<strong>da</strong>s e enfrenta<strong>da</strong>s<br />

pelo País.<br />

Iniciando-se com base no instituto português <strong>da</strong>s sesmarias - analisado no<br />

capítulo 1 - a transição <strong>da</strong>s terras públicas brasileiras para o âmbito <strong>da</strong> iniciativa<br />

priva<strong>da</strong>, entretanto, não se configurou nos termos <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> absoluta <strong>da</strong><br />

terra. Na ver<strong>da</strong>de, como ficou amplamente discutido e demonstrado nos capítulos 1 e 2,<br />

a Coroa Portuguesa, durante todo o período colonial, apenas cedeu a “posse útil” sobre<br />

as terras. Raras foram as sesmarias efetivamente confirma<strong>da</strong>s, sobretudo se se tiver em<br />

consideração o volume <strong>da</strong>s concessões que nunca o foram ou <strong>da</strong>s que caíram em<br />

comisso após terem sido confirma<strong>da</strong>s. Além, é claro, <strong>da</strong>s imensas áreas dos “grandes<br />

sertões” que não foram efetivamente alcançados neste período.<br />

Isso posto, é necessário nunca esquecer que o Governo Português, desde os<br />

primeiros momentos do processo de colonização, sempre teve o cui<strong>da</strong>do de apenas<br />

ceder a “posse útil”, condiciona<strong>da</strong>, sujeita às cláusulas de resolubili<strong>da</strong>de e não do<br />

domínio pleno sobre as terras agrícolas. Isso fez com que a formação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de<br />

fundiária, no Brasil, sempre estivesse marca<strong>da</strong> pela problemática do privilégio, em sua<br />

concessão, e <strong>da</strong> ilegitimi<strong>da</strong>de, na sua confirmação ou titulação.<br />

É neste contexto que o processo de legitimação <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> <strong>da</strong> terra<br />

no Brasil, apenas teve a oportuni<strong>da</strong>de de se constituir, legitimamente, e assim ter a<br />

possibili<strong>da</strong>de de passar a assumir a sua forma jurídica moderna, de proprie<strong>da</strong>de<br />

absoluta, burguesa, com a aprovação <strong>da</strong> Lei 601 de 1850 - a Lei de Terras - e,<br />

sobretudo, após a sua Regulamentação, em 1854, estu<strong>da</strong>dos no capítulo 2. Ain<strong>da</strong> assim,<br />

o processo de reconhecimento legal <strong>da</strong>s terras possuí<strong>da</strong>s, no âmbito <strong>da</strong> Lei de Terras -<br />

exceto para as sesmarias e outras concessões não devolutas, que foram reconheci<strong>da</strong>s<br />

como proprie<strong>da</strong>des priva<strong>da</strong>s legítimas - permaneceu eivado de impedimentos políticos e<br />

sobretudo jurídicos, administrativos e burocráticos.<br />

Apesar disso, como foi sistematicamente estu<strong>da</strong>do no capítulo 2, a Lei de Terras,<br />

de 1850 - por ter sido a primeira legislação fundiária do Brasil Independente que<br />

regulamentou a matéria - constituiu-se numa espécie de marco zero <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> territorial do País: reconheceu como proprie<strong>da</strong>des legitimas as<br />

antigas sesmarias confirma<strong>da</strong>s e regulou sobre as terras devolutas (sem destinação<br />

pública nem priva<strong>da</strong>), as sesmarias irregulares (sujeitas à revali<strong>da</strong>ção) e as posses, que<br />

poderiam ser legitima<strong>da</strong>s, após medi<strong>da</strong>s, demarca<strong>da</strong>s e verifica<strong>da</strong> a sua exploração<br />

efetiva pelos respectivos posseiros.<br />

Desde então, a legalização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de rural no Brasil foi profun<strong>da</strong>mente<br />

dificulta<strong>da</strong> pelos interesses dos latifundiários, que desviaram a solução do problema<br />

fundiário, jogando-o no campo amorfo <strong>da</strong> colonização, afastando-o do âmbito <strong>da</strong><br />

separação legal entre terras públicas e particulares.<br />

Desta forma, engendraram-se definitivamente as condições fun<strong>da</strong>mentais que<br />

possibilitaram e que são responsáveis, até os dias atuais, pela desorganização e<br />

concentração fundiárias e pelo apossamento e ocupação indiscriminados e ilegais <strong>da</strong>s<br />

274


terras públicas, especialmente pelos grandes posseiros e pela grilagem especializa<strong>da</strong>.<br />

Processos estes, como se viu nos capítulos 2, 3 4 e 5, sobretudo, fun<strong>da</strong>dos no privilégio<br />

e na ilegali<strong>da</strong>de.<br />

De modo geral, como foi discutido no capítulo 2, os estudiosos associam a Lei<br />

de Terras de 1850 às teses <strong>da</strong> colonização sistemática de Wakefield, e o debate<br />

parlamentar <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1840, que a precedeu, parece <strong>da</strong>r-lhes razão. Entretanto, uma<br />

análise mais cui<strong>da</strong>dosa mostra que não é exatamente a proposta <strong>da</strong> colonização<br />

sistemática, tal como teoriza<strong>da</strong> por Wakefield, a que vem a ser implementa<strong>da</strong> após a Lei<br />

601. Na ver<strong>da</strong>de, a colonização sistemática baseava-se na disponibili<strong>da</strong>de de terras<br />

públicas e livres, que pudessem ser privatiza<strong>da</strong>s, servindo, assim, para atrair colonos<br />

ricos, investidores, por um lado e, colonos pobres, por outro, que não podendo pagar<br />

pelas terras "livres estatais" teriam que sujeitar-se ao assalariato, trabalhando para<br />

aqueles, até poderem “poupar” o pecúlio necessário à aquisição de sua própria parcela<br />

de terra. Permanecendo como pressuposta, a possibili<strong>da</strong>de legal de aquisição de<br />

pequenas parcelas de terra por colonos com melhor situação econômica e por<br />

assalariados, após a acumulação de determinado pecúlio.<br />

A idéia subjacente a esta proposta de Wakefield era a criação de um mercado<br />

de trabalho - formalmente livre - permanente, alimentado pelo bloqueio ao acesso livre<br />

e imediato à proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra; acesso este que seria inevitável no caso de se permitir<br />

a “colonização expontânea” e o livre acesso à terra. Daí a expressão “colonização<br />

sistemática” - em oposição a “expontânea”- isto é, promovi<strong>da</strong> e regula<strong>da</strong> pelo Estado.<br />

Entretanto, não foi este o projeto efetivamente implementado no Brasil, após a<br />

aprovação <strong>da</strong> Lei 601, na segun<strong>da</strong> metade do século XIX, onde o colonato e, em<br />

situações críticas, a parceria, e muito poucas vezes o assalariato puro foram as formas<br />

de incorporação do trabalho ao processo produtivo. Ou seja, o mercado de trabalho<br />

(formalmente) livre, suposto pela teoria de Wakefield, foi, na prática, substituído pelo<br />

sistema de colonato; e o acesso à pequena proprie<strong>da</strong>de (familiar) - igualmente suposta<br />

pela teoria <strong>da</strong> colonização sistemática - como rotina do fluxo <strong>da</strong> economia, no Brasil,<br />

apenas se torna uma possibili<strong>da</strong>de nos períodos de crise do setor agro-exportador.<br />

Desta maneira, os pressupostos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> colonização<br />

sistemática, que seriam a formação de um fundo de terras livres e estatais, por um lado,<br />

e de trabalhadores livres e pobres, por outro (os ingredientes básicos à estruturação de<br />

relações capitalistas na agricultura) foram completamente desvirtuados, e efetivamente<br />

subvertidos, no Brasil, senão em sua formulação legislativa, certamente ao nível de sua<br />

implementação: redefinidos em função dos interesses latifundiários. Portanto, <strong>da</strong><br />

persistência <strong>da</strong> apropriação privilegia<strong>da</strong>.<br />

A colonização sistemática foi, como se registrou neste estudo, reduzi<strong>da</strong>, desta<br />

forma e nesta conjuntura, à simples importação de imigrantes pobres para servirem de<br />

mão-de-obra barata para os latifúndios, ou para a colonização - concebi<strong>da</strong> como<br />

desbravamento - em zonas de alto risco, como as fronteiras do Império ou nos sertões.<br />

Em regiões afasta<strong>da</strong>s, portanto, <strong>da</strong>s áreas de interesse imediato dos potentados <strong>da</strong> terra.<br />

275


Por outro lado, a arreca<strong>da</strong>ção de terras devolutas, públicas, que deveriam formar o<br />

fundo de “terras livres e estatais” necessário à implantação <strong>da</strong> agricultura fun<strong>da</strong><strong>da</strong> no<br />

trabalho livre, (autônomo ou assalariado), foi bloquea<strong>da</strong> na prática: os latifundiários não<br />

legalizaram as terras possuí<strong>da</strong>s e, associados às burocracias locais, a ele, geralmente,<br />

atrela<strong>da</strong>s, bloquearam qualquer alternativa à demarcação e sobretudo de arreca<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s<br />

terras devolutas pelo Estado, que assim permaneceram à sua disposição, sobretudo<br />

quando a deman<strong>da</strong> por novas terras exigia a expansão <strong>da</strong>s fronteiras agrícolas,<br />

ampliando, assim de seus domínios.<br />

É no contexto deste processo que os pequenos posseiros, que anteriormente, se<br />

haviam instalado nessas regiões, ou os indígenas, sempre foram, “ciclicamente”<br />

empurrados para terras mais longínquas, originando aquilo que tem sido denominado de<br />

“fronteira pioneira” ou “em movimento”: na ver<strong>da</strong>de constituí<strong>da</strong>, sistematicamente,<br />

pelos “expulsos <strong>da</strong> terra”, os excluídos. Fenômeno este que caracteriza, além do<br />

privilégio, citado acima, a ilegitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des assim constituí<strong>da</strong>s, uma vez<br />

que o direito desta cama<strong>da</strong> <strong>da</strong> população à permanecer na terra onde vivia e trabalhava<br />

sempre esteve assegurado, juridicamente, pela legislação e pelos costumes. Portanto,<br />

privilégio e ilegali<strong>da</strong>de permanecem sendo os traços fun<strong>da</strong>mentais do processo de<br />

apropriação e legitimação destas, pelo Estado, no Brasil.<br />

Foi assim, que fracassou, na origem, a possibili<strong>da</strong>de de desenvolvimento do<br />

projeto agro-fundiário de cunho liberal, tal como inspirado por Wakefield, no Brasil,<br />

com as conseqüências conheci<strong>da</strong>s. Talvez este fato explique a aprovação <strong>da</strong> Lei 601 por<br />

Gabinetes conservadores. Daí para adiante dificilmente se tocará efetivamente na<br />

questão <strong>da</strong> legalização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, menos ain<strong>da</strong>, em reforma agrária, ou<br />

simplesmente em reordenamento fundiário, mas em colonização. Esta, sempre dirigi<strong>da</strong><br />

para terras distantes dos domínios dos latifundiários.<br />

Por isso fracassou, até mesmo, o processo de atração de colonos, fossem<br />

pobres ou, sobretudo, ricos, para a agricultura, na segun<strong>da</strong> metade do século XIX.<br />

Processo este, de imigração de colonos pobres, que apenas se intensificará, nas últimas<br />

déca<strong>da</strong>s do século XIX com a expansão <strong>da</strong> cafeicultura de exportação, portanto, ain<strong>da</strong><br />

aqui, impulsiona<strong>da</strong> pelos interesses latifundiários. Além de algumas iniciativas de<br />

colonização dirigi<strong>da</strong> à terras afasta<strong>da</strong>s (em oposição e antípo<strong>da</strong> <strong>da</strong> reforma agrária),<br />

como se observou nas primeiras quatro déca<strong>da</strong>s <strong>da</strong> República. Colonização e<br />

assentamento, e nunca reforma agrária, torna-se o lema e o tema predileto dos<br />

latifundiários e <strong>da</strong>s diferentes políticas fundiárias governamentais, desde então.<br />

Esta a herança deixa<strong>da</strong> pela política fundiária do Império e que, a rigor, como<br />

se analisou no capítulo 3, jamais foi enfrenta<strong>da</strong> pela República que, de 1891 a 1964,<br />

limitou-se à tími<strong>da</strong>s iniciativas jurídicas e, sobretudo, administrativas, no âmbito <strong>da</strong><br />

regulamentação do uso dos bens <strong>da</strong> União. Enquanto, nos Estados <strong>da</strong> Federação,<br />

prosperava a alienação e legitimação privilegia<strong>da</strong>s, sobretudo subordina<strong>da</strong>s ao comando<br />

e aos interesses <strong>da</strong>s oligarquias locais.<br />

276


Cabe notar, neste contexto, uma interessante curiosi<strong>da</strong>de: entre 1915 e 1946,<br />

ocorre um fenômeno semelhante ao provocado pela “Resolução 76 de 1822”, que<br />

inaugurou os 28 anos de “império <strong>da</strong>s posses”, nos quais o latifúndio expandiu-se e<br />

consolidou-se definitivamente no País. Trata-se do Decreto n o 11.485, de 5 de janeiro de<br />

1915, cujo único parágrafo determinava: “fica suspenso até que se organize a Lei de<br />

terras, que será submeti<strong>da</strong> ao voto do Congresso Nacional”, o Decreto 10.105/1913, que<br />

regulamentava a utilização e acesso às terras devolutas e aos bens <strong>da</strong> União. Esta nova<br />

Lei de Terras, como foi visto no capítulo 3, apenas viria a ser aprova<strong>da</strong>, 31 anos<br />

depois, sob a forma do Decreto 9.760, de 5 de setembro de 1946. Abriu-se assim mais<br />

31 anos de plena possibili<strong>da</strong>de, como de 1822 a 1850, para um novo ciclo de expansão<br />

latifundiária.<br />

Somando-se estes dois períodos, tem-se que, de 1822 à 1946, portanto, em 124<br />

anos de história fundiária, durante 59 anos, não havia nenhum regulamento que<br />

limitasse as possibili<strong>da</strong>des de expansão latifundiária. Se a isto se somarem os períodos<br />

em que as normas instituí<strong>da</strong>s foram sistematicamente desrespeita<strong>da</strong>s, na prática, como<br />

de 1850 a 1891 (quando é promulga<strong>da</strong> a primeira Constituição republicana) tem-se que,<br />

destes 124 de história <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Terra, entre a Independência e o Decreto de<br />

1946, pelo menos durante 100 anos - um século, portanto - os latifundiários foram,<br />

efetivamente os “donos” de to<strong>da</strong>s as terras do País. “Donos”, não proprietários. Posto<br />

que esta mesma “ausência” legal não permitia a legitimação <strong>da</strong>s terras apossa<strong>da</strong>s que,<br />

portanto, permaneceram juridicamente questionáveis.<br />

É assim que a maioria <strong>da</strong>s “proprie<strong>da</strong>des” continuaram ilegítimas e a violência<br />

priva<strong>da</strong> do latifúndio sempre agiu à sombra <strong>da</strong> lei e sob a proteção do Estado,<br />

avançando no campo, expulsando pequenos posseiros e índios, parindo os sem terra e<br />

sem pátria - a miséria rural e urbana - que assume a sua forma mais acaba<strong>da</strong>, de<br />

grilagem especializa<strong>da</strong>, no período do Regime Militar.<br />

III<br />

O breve quadro resumido acima <strong>da</strong>s análises realiza<strong>da</strong>s nos três primeiros<br />

capítulos deixou, entre muitas outros fatos relevantes, evidente, que o processo de<br />

apropriação, apossamento e alienação de terras públicas, sempre se fundou no<br />

privilégio, assim como as ações administrativas, jurídicas e cartoriais de legitimação e<br />

registro, quando efetiva<strong>da</strong>s, geralmente o foram de forma juridicamente questionável.<br />

Juridicamente questionável, sobretudo, porque nunca cumpriram as exigências e<br />

requisitos legais ao procederem os respectivos registros. Na medi<strong>da</strong> em que a socie<strong>da</strong>de<br />

e a economia se desenvolviam, na primeira e, sobretudo, na segun<strong>da</strong> metade do século<br />

XX, passando a exigir a exibição dos títulos formais de proprie<strong>da</strong>de, mais uma vez,<br />

buscou-se, na generali<strong>da</strong>de dos casos, alternativas ilegítimas ou apenas aparentemente<br />

legais, como os instrumentos particulares de compra e ven<strong>da</strong>, quando não, a simples<br />

falsificação de documentos, tanto pela adulteração de escrituras legítimas (alterando<br />

para mais, as áreas), realiza<strong>da</strong>s no interior dos cartórios, quanto, simplesmente, pela<br />

277


geração destas a partir de documentos que não se destinavam a esta finali<strong>da</strong>de, como as<br />

Certidões de Declaração de Posses, quando não, ain<strong>da</strong>, simplesmente forjados e de<br />

falsi<strong>da</strong>de evidente. Fatos que são caracterizados, pelo INCRA e pela legislação,<br />

eufemisticamente, como “vícios insanáveis”.<br />

É no contexto desse amplo processo de falsificação, que tem origem a grilagem<br />

especializa<strong>da</strong>, conceito este, que foi introduzido por este estudo para caracterizar todos<br />

os tipos históricos de falsificação de títulos e documentos, sobre os quais se procuraram<br />

edificar a “legitimi<strong>da</strong>de” <strong>da</strong>s “proprie<strong>da</strong>des ilegítimas”: de autênticos e incontestáveis<br />

processos de grilagem de terras públicas e de posses legítimas, sobretudo pequenas,<br />

assim como <strong>da</strong>s terras reserva<strong>da</strong>s e indígenas.<br />

Este processo surge de forma tími<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> nos finais do período sesmarial e<br />

mais intensamente após o “império <strong>da</strong>s posses”, quando a Lei 601 de 1850 passa a<br />

exigir a legitimação <strong>da</strong>s posses e a revali<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s sesmarias. É desta época, como foi<br />

visto no capítulo 2, que teve início o procedimento de se permitir a ocupação de<br />

pequenos espaços, geralmente nos extremos de áreas apossa<strong>da</strong>s, por trabalhadores<br />

pobres, com a condição de testemunharem a “proprie<strong>da</strong>de” ou “titulari<strong>da</strong>de” em “favor”<br />

do patrão ou “concessionário”. Outra forma utiliza<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong> na época do Império, era a<br />

“cessão” ou ven<strong>da</strong> de “terras públicas”, mediante instrumentos particulares ou<br />

celebração de simples contratos de arren<strong>da</strong>mento, aforamento ou parceria, os quais,<br />

ulteriormente, uma vez registrados em Cartórios, ensejavam uma “espécie” particular de<br />

“prova” - evidentemente ilegítima - que servia para promover o registro <strong>da</strong>s<br />

“proprie<strong>da</strong>des”. Outra forma historicamente conheci<strong>da</strong>, era o próprio registro de vigário,<br />

que deu ensejo a to<strong>da</strong> espécie de arbitarie<strong>da</strong>des e fraudes no processo de legitimação<br />

privilegia<strong>da</strong>. E assim por diante, como foi amplamente discutido neste trabalho. Todo<br />

esse processo era sustentado pelas colunas do privilégio, <strong>da</strong> impuni<strong>da</strong>de e <strong>da</strong><br />

ilegitimi<strong>da</strong>de.<br />

É neste contexto que neste estudo sustenta-se a hipótese de que a maioria <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>des territoriais rurais no Brasil são efetivamente ilegítimas, isto é,<br />

juridicamente questionáveis, fato este, aliás, pressuposto na Legislação pertinente que<br />

sempre previu - e exigiu - nas ações discriminatórias, a comprovação <strong>da</strong> titulari<strong>da</strong>de<br />

legítima, quando se tratavam de terras em domínio particular. O ônus <strong>da</strong> comprovação<br />

de titulari<strong>da</strong>de sempre cabendo, ao suposto proprietário ou posseiro. Entretanto, a<br />

simples exibição de documentos, na maioria dos casos com vícios insanáveis - como<br />

reconhecia o próprio INCRA - geralmente era suficiente, e simplesmente aceita,<br />

servindo destarte, para se proceder ao reconhecimento de titulari<strong>da</strong>de, especialmente <strong>da</strong>s<br />

grandes posses. Isto, para não insistir no fato de que muitos destes títulos tinham a sua<br />

origem efetivamente forja<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong> que mesmo no interior dos Cartórios de Registros,<br />

como foi amplamente documentado neste estudo e como tem sido denunciado e<br />

comprovado por inúmeros outros pesquisadores e admitido pelo próprio INCRA.<br />

O “esticamento <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de” referido pelo Bispo do Acre e Purus perante a<br />

CPI do Sistema Fundiário e levantado em inúmeras pesquisas, algumas delas discuti<strong>da</strong>s<br />

278


neste estudo, era apenas uma <strong>da</strong>s formas que sempre foram utiliza<strong>da</strong>s. A outra era a<br />

grilagem direta, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na violenta intimi<strong>da</strong>ção e expulsão dos pequenos posseiros.<br />

Todos esses fatos, amplamente conhecidos, fazem parte <strong>da</strong> história <strong>da</strong> formação <strong>da</strong><br />

“proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> <strong>da</strong> terra” no Brasil. É evidente que este processo não poderia ter<br />

logrado o êxito que logrou, se não tivesse contado com a omissão ou a conivência<br />

efetiva do Estado, e em especial dos Cartórios e do Poder Judiciário, especialmente em<br />

suas representações ao nível local.<br />

Este processo de apropriação privilegia<strong>da</strong> e legitimação juridicamente<br />

questionável, assume a sua forma mais acaba<strong>da</strong> de grilagem especializa<strong>da</strong> a partir de<br />

novembro de 1964, com a consoli<strong>da</strong>ção do Regime Militar e a aprovação e<br />

implementação <strong>da</strong> Lei 4.504 que instituía o Estatuto <strong>da</strong> Terra. Essa problemática foi<br />

amplamente analisa<strong>da</strong> nos capítulos 4 e 5 deste estudo, mas vale a pena recor<strong>da</strong>r seus<br />

traços fun<strong>da</strong>mentais nesta conclusão.<br />

Como ficou amplamente documentado e discutido naqueles capítulos, os<br />

problemas de legitimação <strong>da</strong>s iniciativas privatizantes e de legalização <strong>da</strong>s posses em<br />

domínio particular, jamais solucionados de forma efetiva pelo Estado, ain<strong>da</strong> que<br />

formalmente tentados, ganharam profun<strong>da</strong> relevância neste período. Com a aprovação<br />

do Estatuto <strong>da</strong> Terra, o Governo Militar conseguiu encaminhar uma legislação que<br />

regulamentava efetivamente o processo de alienação de terras públicas e de legitimação<br />

<strong>da</strong>s posses que se encontravam em poder de particulares. Foi enfatizado neste estudo<br />

que o fato de haver instituído esta regulamentação foi o grande mérito que,<br />

efetivamente, teve o Governo Militar no âmbito <strong>da</strong> Política Fundiária, posto que, desde<br />

o fracasso na implementação do Regulamento de 1854, jamais havia o Estado<br />

conseguido regulamentar efetivamente o procedimento de alienação de terras públicas<br />

ou de reconhecimento de domínios particulares sobre estas.<br />

Como se procurou enfatizar, para além deste grande mérito - de regulamentar<br />

juridicamente o acesso às terras devolutas - estava o fato do Estatuto <strong>da</strong> Terra ter<br />

colocado, objetivamente, nas mãos do Governo, o poder para promover a alienação de<br />

terras públicas; portanto, a ampla possibili<strong>da</strong>de de conduzir determinado processo de<br />

reorganização fundiária, na medi<strong>da</strong> em que assegurava os meios, jurídicos e<br />

administrativos, necessários ao processo de ven<strong>da</strong> de terras devolutas ou do<br />

reconhecimento de “titulari<strong>da</strong>des” sobre estas. Isso tornou possível, contrariamente, a<br />

própria legitimação do privilégio, contra a antiga legitimação privilegia<strong>da</strong>, até então<br />

vigente no País. É neste sentido que a grilagem especializa<strong>da</strong> assume a sua forma<br />

definitiva neste período, como se fun<strong>da</strong>mentou efetivamente nesta pesquisa.<br />

Foi neste contexto e na conjuntura <strong>da</strong> época, que os Governos Militares<br />

exerceram efetivamente este poder. Promoveram uma grande transformação na estrutura<br />

fundiária brasileira, ao implementar um vasto processo de alienação de terras públicas<br />

ou <strong>da</strong> legitimação de grandes posses, ou de concessões privilegia<strong>da</strong>s sobre estas,<br />

especialmente nas regiões Norte e Centro-Oeste, mas em certos limites, em to<strong>da</strong>s as<br />

demais regiões do País. Como resultado deste processo modificou-se profun<strong>da</strong>mente o<br />

279


perfil <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> territorial no Brasil. Por um lado, assegurando e<br />

promovendo a “prorie<strong>da</strong>de absoluta” de grandes extensões de terras para cama<strong>da</strong>s, de<br />

fato, privilegia<strong>da</strong>s, <strong>da</strong> população; por outro, aprofun<strong>da</strong>ndo a excludência social e<br />

provocando a expulsão ilegal de uma imensa massa de pequenos produtores, posseiros e<br />

índios, elevando a um nível jamais conhecido na história agrária brasileira, o processo<br />

de apropriação, concessão e legitimação privilegia<strong>da</strong>s. Instituindo, definitivamente, a<br />

grilagem especializa<strong>da</strong> como meio, método e forma de aquisição e legitimação <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> <strong>da</strong> terra no Brasil.<br />

É neste sentido e contexto que, neste trabalho se defendeu e fun<strong>da</strong>mentou a<br />

hipótese de que o Estatuto <strong>da</strong> Terra jamais contemplou qualquer iniciativa efetiva no<br />

âmbito <strong>da</strong> promoção <strong>da</strong> reforma agrária. Muito pelo contrário. É assim, que a leitura<br />

feita neste estudo a respeito desta problemática diverge <strong>da</strong>quela que supõe que o<br />

Estatuto <strong>da</strong> Terra continha uma efetiva proposta de reforma agrária distributivista e que,<br />

foi subvertido, desvirtuado, tendo o Governo implementado um projeto diferente do<br />

original, desviando a proposta e a reduzindo às iniciativas <strong>da</strong> colonização.<br />

A tese aqui defendi<strong>da</strong> é que esta subversão ocorreu, como foi amplamente<br />

discutido no capítulo 2, no âmbito <strong>da</strong> aprovação <strong>da</strong> Lei 601 de 1850, quando o projeto<br />

de “colonização sistemática” que, efetivamente previa o controle do acesso a terra pelo<br />

Estado, e sua ven<strong>da</strong> a colonos, foi simplesmente reduzido à mera atração de colonos<br />

pobres para servirem nos latifúndios ou desbravarem regiões de fronteira ou de risco. O<br />

Estatuto <strong>da</strong> Terra, neste sentido, apenas foi uma espécie particular de consoli<strong>da</strong>ção<br />

formal e concreta desta proposta em novos termos.<br />

É neste sentido específico que se defendeu a hipótese de que o Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra não se resumiu a um ato de “estética política” mas, ao contrário, que o Projeto de<br />

Política Fundiária e de Desenvolvimento Rural contido no mesmo foi efetivamente<br />

implementado pelo Governo, exatamente nos termos propostos. Assim, ao contrário <strong>da</strong><br />

leitura geralmente feita, especialmente no que se refere ao problema <strong>da</strong> reforma agrária<br />

tal como exposta na Mensagem 33 e no Estatuto <strong>da</strong> Terra, ficou demonstrado que a<br />

mesma era, de fato, concebi<strong>da</strong>, apenas, como uma possibili<strong>da</strong>de, entre outras, para a<br />

promoção do desenvolvimento econômico e integração nacional. Por isto pôde ser<br />

reduzi<strong>da</strong> aos procedimentos de colonização e assentamento. Na ver<strong>da</strong>de, a reforma<br />

agrária era concebi<strong>da</strong> apenas com o objetivo de aliviar tensões sociais. Mas era esta,<br />

exatamente, a “reforma agrária” conti<strong>da</strong>, fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> e defendi<strong>da</strong> no âmbito do<br />

Estatuto <strong>da</strong> Terra. E neste sentido específico foi, efetivamente implementa<strong>da</strong>. Ou seja,<br />

ficou evidenciado, contrariamente ao que geralmente é colocado, que o Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra em nenhum momento, em sua versão leva<strong>da</strong> à ratificação pelo Congresso<br />

Nacional, contemplou uma efetiva reforma agrária democrática e distributivista.<br />

É, enfim, neste contexto que, efetivamente, a proposta de “reforma agrária”,<br />

colonização e desenvolvimento rural, conti<strong>da</strong> no Estatuto <strong>da</strong> Terra foi efetiva e<br />

amplamente implementa<strong>da</strong> pelos Governos Militares. A crítica - de que os Militares não<br />

280


executaram o Projeto de Reforma contido no Estatuto <strong>da</strong> Terra, conforme aqui<br />

amplamente discutido e documentado, carece de fun<strong>da</strong>mento empírico e concreto.<br />

A conclusão desta pesquisa, neste caso específico, permite afirmar que o Projeto<br />

de Desenvolvimento Rural e de Política Fundiária contido e detalhado no Estatuto <strong>da</strong><br />

Terra, na Mensagem 33 e em todos os documentos específicos do Governo para este<br />

mister foram efetivamente executados na forma e conforme os métodos propostos e<br />

sobretudo os objetivos políticos e econômicos claramente propostos.<br />

Neste contexto, a “reforma agrária” sempre foi concedi<strong>da</strong> como destina<strong>da</strong> a<br />

resolver problemas de tensões sociais em áreas de conflitos potenciais e em nenhum<br />

momento era pensa<strong>da</strong> e menos ain<strong>da</strong> concebi<strong>da</strong>, como ficou amplamente esclarecidos e<br />

demonstrado, como alternativa para possibilitar o amplo e democrático acesso à terra,<br />

sobretudo, se este acesso é pensado em termos de pequenos produtores e proprie<strong>da</strong>des.<br />

Este problema está analisado e discutido nos capítulos 4 e 5 deste estudo.<br />

A crítica passível de ser feita ao Regime Militar, neste contexto, refere-se<br />

exatamente, ao fato de que o seu projeto fundiário, coerente com o seu “Modelo de<br />

Desenvolvimento Econômico” era de cunho concetracionista; que se fundou na<br />

consagração, sob novas formas, dos antigos processos de alienação e apropriação<br />

privilegia<strong>da</strong>s; que persistiu o caráter juridicamente questionável, que continuou inerente<br />

aos diferentes processos de legitimação <strong>da</strong>s posses, atingindo, inclusive as ações de<br />

alienação, licitação e ven<strong>da</strong> de terras por parte dos órgãos fundiários e pelas autori<strong>da</strong>des<br />

do Estado. Porém não se pode, fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>mente, criticar os Governos Militares de<br />

terem apresentado uma proposta ou projeto no Estatuto <strong>da</strong> Terra e implementado outro.<br />

Esta argumentação, como ficou evidenciado neste estudo, carece de fun<strong>da</strong>mentação<br />

empírica. Ela é facilmente contesta<strong>da</strong> pelas simples análise <strong>da</strong> Mensagem 33.<br />

Estes fatos estão amplamente comprovados, em especial na parte final do<br />

capítulo 4, onde foram analisa<strong>da</strong>s as formas de alienação ou titulação de terras públicas<br />

postas em prática pelos Órgãos Fundiários do Governo, em especial, pelo INCRA.<br />

Para finalizar estas conclusões vale a pena fazer referência a estes<br />

procedimentos que, na ver<strong>da</strong>de, se configuraram em ver<strong>da</strong>deiros monumentos à<br />

grilagem especializa<strong>da</strong> e de afronta ao ordenamento jurídico brasileiro.<br />

A Legitimação de Posses (de pequenas posses, bem entendido) sempre<br />

assegura<strong>da</strong> desde o longínquo instituto de sesmarias e amplamente consagrado na Lei<br />

601 de 1850 é reduzido a na<strong>da</strong>, ou quase na<strong>da</strong>, com a instituição <strong>da</strong>s normas e<br />

regulamentos que se seguiram à promulgação <strong>da</strong> Lei 4.504 de novembro de 1964, em<br />

especial, após a instituição do INCRA. Com estes instrumentos, foram estabeleci<strong>da</strong>s as<br />

regras fun<strong>da</strong>mentais que iriam possibilitar um amplo e sistemático processo (ilegítimo,<br />

mas aparentemente “legal”) de expulsão dos pequenos posseiros e índios <strong>da</strong>s terras onde<br />

viviam e trabalhavam.<br />

Por outro lado, para assegurar o domínio dos grandes posseiros e sobretudo dos<br />

novos especuladores e grileiros especializados foi edificado um ver<strong>da</strong>deiro monumento<br />

à concessão de privilégios e a entrega, a “preço vil”, <strong>da</strong>s terras brasileiras,<br />

281


especialmente nas regiões que começavam a valorizar-se em face <strong>da</strong>s iniciativas do<br />

Governo, especialmente, no âmbito do Programa de Integração Nacional.<br />

Tratava-se de muito mais do que um simples processo de concessão, ain<strong>da</strong> que<br />

privilegia<strong>da</strong>, de terras. Apenas este fato não explicaria as amplas “aquisições de terras<br />

devolutas”, por exemplo, na distante Amazônia. O fato mais relevante e que necessita<br />

ser devi<strong>da</strong>mente levado em consideração, neste contexto, é que, junto com as terras (e a<br />

promessa de explorá-las e de contribuir para o desenvolvimento, integração e,<br />

sobretudo, a segurança nacional, que era “comprovados” pela simples apresentação de<br />

um “Projeto Agropecuário ou Florestal”) vinham os subsídios, os créditos à juros<br />

negativos e prazos de carência generosos, além <strong>da</strong> ausência completa de fiscalização<br />

quanto a aplicação dos recursos ou <strong>da</strong> implementação dos “Projetos”. Ou seja, a terra<br />

era, antes de tudo, um meio para o acesso fácil aos cofres públicos, ao enriquecimento<br />

fácil (e ilícito), etc. Além de permitir, no caso <strong>da</strong>s pessoas físicas mas, sobretudo<br />

jurídicas, amplas deduções no Imposto de Ren<strong>da</strong> pela via <strong>da</strong> famosa “Cédula G”, o que<br />

se constituía, efetivamente, em um recurso adicional para aumentar as “ren<strong>da</strong>s” <strong>da</strong>s<br />

pessoas físicas ou os “lucros” <strong>da</strong>s empresas ou pessoas jurídicas, que representavam<br />

reduções, muitas vezes relevantes, nos preços ou custos de produção, viabilizado pela<br />

sonegação de impostos e tributos devidos ao Estado.<br />

Em suma, a terra não era, apenas, uma simples reserva de valor. Era muito mais<br />

do que isto: pela via dos subsídios e dos créditos incentivados, ela permitia o acesso<br />

imediato a vultosos financiamentos que permitiram a transformação <strong>da</strong>s antigas<br />

oligarquias latifundiárias em ver<strong>da</strong>deiras oligarquias agro-financeiras, ou, na pior <strong>da</strong><br />

hipótese, viabilizava, na conjuntura <strong>da</strong> Ditadura Militar, a associação entre aquelas e os<br />

novos “industriais” e grupos econômicos, nacionais e estrangeiros, que afluíam ao<br />

Brasil no período. Apenas este fato ou “esta hipótese” pode explicar como, apesar dos<br />

vultosos recursos e do imenso volume dos projetos incentivados e aprovados pela<br />

SU<strong>DA</strong>M e pela SUDENE, e financiados pelos bancos estatais, a agropecuária na<br />

Amazônia e no Nordeste (excluindo talvez o PROALCOOL, que, ain<strong>da</strong> assim, se<br />

configurou em outra conjuntura, cuja análise fugiria ao âmbito deste estudo) continuou<br />

no mesmo patamar de baixa produtivi<strong>da</strong>de e utilização de terras historicamente<br />

conhecidos.<br />

É neste contexto que são instituí<strong>da</strong>s as distintas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de alienação,<br />

titulação ou de reconhecimento de domínio sobre terras públicas de todo e qualquer tipo<br />

de pleiteante, e a regularização de qualquer tipo de títulos e documentos de “posse” ou<br />

“proprie<strong>da</strong>de”, inclusive aqueles que estão gravados de “vícios insanáveis”, isto é,<br />

absolutamente ilegais, falsos.<br />

Excetuando-se a “alienação com dispensa de licitação” que apesar de não se<br />

destinar, efetivamente, a facilitar o acesso à terra aos pequenos posseiros e proprietários,<br />

aproxima-se <strong>da</strong> norma consagra<strong>da</strong> pela Lei 601/1850, de assegurar a proprie<strong>da</strong>de aos<br />

detentores de posses mansas e pacíficas; as demais mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de alienação<br />

legitimação, titulação ou concessão de terras públicas, postas em prática neste período,<br />

282


são, efetivamente, a evidência mais contundente <strong>da</strong> ilegali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> inconstitucionali<strong>da</strong>de<br />

e <strong>da</strong> consagração <strong>da</strong> grilagem especializa<strong>da</strong>, como ficou documentado no capítulo 4 e<br />

cujos resultados, nocivos ao patrimônio público e à população brasileira, que foi<br />

excluí<strong>da</strong> amplamente do acesso a este patrimônio, foram amplamente evidenciados<br />

pelas estatísticas apresenta<strong>da</strong>s.<br />

Para não estender, desnecessariamente, esta conclusão, posto que os <strong>da</strong>dos já<br />

foram suficientemente estu<strong>da</strong>dos, basta relembrar o caso <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> Concessão com<br />

Dispensa de Licitação. Esta mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de alienação de terras públicas é um<br />

ver<strong>da</strong>deiro monumento à grilagem especializa<strong>da</strong>, a ilegali<strong>da</strong>de e à fraude. Ocupa-se<br />

efetivamente de legitimar títulos ilegítimos “em áreas de até 600 vezes o módulo de<br />

exploração indefini<strong>da</strong>” - noutras palavras, latifúndios e, mais que isto, oculta-se a<br />

referência aos “3.000 hectares” que é o limite constitucional para alienação de terras<br />

públicas sem a exigência de aprovação do Congresso Nacional; o que autoriza supor a<br />

possibili<strong>da</strong>de de exceder a este limite legal.<br />

O fato mais relevante desta mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de titulação é que ela se destina<br />

“(a) pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, detentoras de áreas<br />

transcritas no registro imobiliário, com vícios insanáveis, cuja cadeia<br />

dominial tenha sido inicia<strong>da</strong> em 28 DE JUNHO DE 1966 541 .”<br />

Como foi comentado no capítulo 4, apenas faltou nesta norma do INCRA a<br />

referência ao nome ou nomes <strong>da</strong>s “pessoas físicas ou jurídicas de direito privado” às<br />

quais se destinava este indiscutível e ilegítimo privilégio.<br />

A análise <strong>da</strong>s informações conti<strong>da</strong>s na figura 5, abaixo, que associa os<br />

resultados <strong>da</strong> implementação do “Projeto de Desenvolvimento Rural” como se referia a<br />

Mensagem 33, em termos <strong>da</strong>s áreas novas, isto é <strong>da</strong> legitimação de posses sobre terras<br />

devolutas, confrontando-a com as variações <strong>da</strong> área utiliza<strong>da</strong> e <strong>da</strong>s populações rurais e<br />

urbanas, no período, não deixa nenhuma margem à dúvi<strong>da</strong>s acerca do caráter de<br />

privilégio e excludência envolvido no Modelo Econômico e na Política de Terras e<br />

Agrícola posta em prática entre 1964 e 1984.<br />

541 RIBEIRO, op. cit., p. 16. Grifos nossos.<br />

283


%<br />

170<br />

150<br />

130<br />

110<br />

90<br />

70<br />

50<br />

30<br />

10<br />

-10<br />

-30<br />

Figura 5 - Variação <strong>da</strong> Área Nova Total e Área Utiliza<strong>da</strong>; População Rural e<br />

Urbana: Brasil 1960-1980<br />

(PERCENTUAIS)<br />

46<br />

2,4<br />

Área total Área Utiliza<strong>da</strong> População Rural População Urbana<br />

Fonte: Dados <strong>da</strong> Pesquisa.<br />

Enquanto a área nova apropria<strong>da</strong> priva<strong>da</strong>mente no período chegou a 46%, a<br />

utilização agrícola, pecuária e florestal, para o conjunto <strong>da</strong>s terras brasileiras, entre 1960<br />

e 1980, cresceu apenas 2,4%, o que é, em si mesmo um <strong>da</strong>do eloqüente a denunciar que<br />

a alienação de terras pelo Estado, e, junto com estas, que todo o imenso volume de<br />

subsídios e outros recursos postos à disposição desse processo, apesar de terem sido<br />

realizados sob o pretexto de promover o desenvolvimento agrário, na ver<strong>da</strong>de não<br />

conseguiram lograr este objetivo. Ou seja, certamente forma em sua maior parte<br />

destinados, como as terras, para outras finali<strong>da</strong>des.<br />

Os efeitos disto ficam claros, por um <strong>da</strong>do, na redução <strong>da</strong> população rural, que<br />

embora aparentemente pequena, de 0,5% seria contraditória com o volume <strong>da</strong>s terras<br />

apropria<strong>da</strong>s. Este <strong>da</strong>do, associado ao pequeno incremento <strong>da</strong> área utiliza<strong>da</strong> indica,<br />

seguramente, o caráter parasitário e especulativo <strong>da</strong> Política Fundiária posta em prática<br />

no período. A outra face deste problema, que foi analisado objetivamente no capítulo 5,<br />

é visualiza<strong>da</strong> na Figura 5 acima, na coluna referente ao incremento <strong>da</strong> população<br />

urbana, <strong>da</strong> ordem 157%, ou seja, um número que apenas pode ser explicado pela imensa<br />

distorção conti<strong>da</strong>, no Modelo, mas, sobretudo, pela excludência e expulsão <strong>da</strong> terra, sem<br />

nenhum precedente na história agrária brasileira, de que foi vítima a população<br />

trabalhadora rural, neste período dos Governos Militares.<br />

É neste sentido que, aprofundou-se, especialmente no capítulo 4 e 5 as hipóteses<br />

fun<strong>da</strong>mentais defendi<strong>da</strong>s neste trabalho. O estudo objetivo dos “instrumentos de ação<br />

fundiária” e <strong>da</strong>s formas de alienação de terras públicas, implementados pelos Governos<br />

Militares, não deixam dúvi<strong>da</strong>s de que o processo de apropriação e legitimação<br />

privilegia<strong>da</strong>s, que vinha, desde longa <strong>da</strong>ta, estruturando-se na história agrária do Brasil,<br />

assumiu a sua forma mais acaba<strong>da</strong> de grilagem especializa<strong>da</strong>, neste período. Este<br />

conceito, como foi registrado, é criado e desenvolvido neste trabalho, para definir os<br />

atos de apropriação ilegítima de terras devolutas, ou que são objeto de exploração por<br />

-0,5<br />

157<br />

284


posses legítimas, por pequenos produtores rurais - mas também de terras reserva<strong>da</strong>s -<br />

geralmente fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s na exploração de artifícios legais e jurídicos, quando não, na<br />

simples falsificação de documentos, com o objetivo de “criar a aparência de legali<strong>da</strong>de”<br />

<strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de.<br />

Este processo fica igualmente qualificado e caracterizado quando autori<strong>da</strong>des<br />

fundiárias, com base em meros atos administrativos e geralmente contrariando as<br />

exigências <strong>da</strong> legislação em vigor, promovem alienações de terras em licitações,<br />

públicas ou não; ou, mais grave que isto, quando instituem “formas de titulação”<br />

visivelmente volta<strong>da</strong>s para o privilegiamento de determina<strong>da</strong>s situações ou cama<strong>da</strong>s<br />

sociais, como ficou amplamente evidenciado e comprovado documentalmente nos<br />

capítulos 4 e 5 deste trabalho. Neste caso, caracterizam atos de improbi<strong>da</strong>de<br />

administrativa e, em determina<strong>da</strong>s situações, de “crime de colarinho branco” ou simples<br />

corrupção. De qualquer maneira tratam-se de atos de titulação ou legitimação<br />

privilegia<strong>da</strong>s e juridicamente questionável.<br />

Isso significa afirmar que estes processos, que vêm persistindo na luta pela terra<br />

desde os tempos do instituto de sesmarias, teve plena continui<strong>da</strong>de, sob novas formas,<br />

no período do regime militar. Esta é a conclusão geral deste estudo e que procura fechar<br />

com o conjunto <strong>da</strong> análise comparativa do processo de privatização de terras no Brasil.<br />

Por estas razões, pode-se com certa tranqüili<strong>da</strong>de afirmar, que a maior parte <strong>da</strong>s<br />

terras que atualmente se encontram em domínio particular continuam ilegítimas.<br />

Portanto, que permanecem públicas. Até prova em contrário.<br />

Esta é a contribuição que se espera oferecer com este estudo.<br />

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Fronteira, altera o Decreto-lei n. 1.135, de 3 de dezembro de 1970, e dá outras<br />

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Decreto-lei n. 1.414, de 18 de agosto de 1975, e dá outras providências.(Ratificação de<br />

títulos expedidos pelos Estados na Faixa de Fronteira e doação de áreas a Municípios).<br />

Brasília: 1981.<br />

BRASIL. Congresso Nacional. Lei n. 6.969, de 10 de dezembro de 1981. Dispõe sobre a<br />

aquisição, por usucapião especial, de imóveis rurais, altera a re<strong>da</strong>ção do 2 o do art. 589<br />

do Código Civil, e dá outras providências. Brasília: 1981.<br />

BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Decreto n. 2.543-A, de 5 de janeiro de 1912. Estabelece<br />

medi<strong>da</strong>s destina<strong>da</strong>s a facilitar e desenvolver a cultura <strong>da</strong> seringueira, do caucho, <strong>da</strong><br />

maniçoba e <strong>da</strong> mangabeira e a colheita e beneficiamento <strong>da</strong> borracha extraí<strong>da</strong> dessas<br />

árvores e autoriza o Poder Executivo não só a abrir os créditos precisos à execução de tais<br />

medi<strong>da</strong>s, mas ain<strong>da</strong> a fazer as operações de crédito que para isso forem necessárias. Rio<br />

de Janeiro: 1912.<br />

BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Decreto n. 10.105, de 5 de março de 1913. Aprova o novo<br />

regulamento de terras devolutas <strong>da</strong> União. Rio de Janeiro: 1913.<br />

BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Decreto n. 10.320, de 7 de julho de 1913. Modifica os<br />

artigos 1 o e 3 o do Regulamento aprovado pelo Decreto n. 10.105, de 5 de março de 1913.<br />

(Terras devolutas <strong>da</strong> União). Rio de Janeiro: 1913.<br />

286


BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Decreto n. 11.485, de 10 de fevereiro de 1915. Suspende<br />

o regulamento de terras devolutas <strong>da</strong> União, a que se referem os Decretos ns. 10.105, de 5<br />

de março de 1913, e 10.320, de 7 de julho de 1913. Rio de Janeiro: 1915.<br />

BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Decreto n. 3.365, de 21 de junho de 1941. Dispõe sobre a<br />

desapropriação por utili<strong>da</strong>de pública. Rio de Janeiro: 1941.<br />

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Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: 1942.<br />

BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Decreto n. 9.760, de 5 de setembro de 1946. Dispõe<br />

sobre os bens imóveis <strong>da</strong> União, e dá outras providências. Rio de Janeiro: 1946.<br />

BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Decreto n. 68.524, de 16 de abril de 1971. Dispõe sobre<br />

a participação <strong>da</strong> iniciativa priva<strong>da</strong> na implantação de projetos de colonização nas zonas<br />

prioritárias para a reforma Agrária, nas áreas do Programa de Integração Nacional e nas<br />

terras devolutas <strong>da</strong> União na Amazônia Legal. Brasília: 1971.<br />

BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Decreto n. 70.677, de 6 de junho de 1972. Dispõe sobre a<br />

execução do Decreto-lei n. 1.179, de 6 de julho de 1971, que institui o PROTERRA<br />

(PROTERRA/FUNTERRA). Brasília: 1972.<br />

BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Decreto n. 71.615, de 22 de dezembro de 1972.<br />

Regulamenta o Decreto-lei n. 1.164 de 1 o de abril de 1971. Brasília: 1972.<br />

BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Decreto n. 80.511, de 7 de outubro de 1977. Autoriza a<br />

doação de porções de terras devolutas a Municípios incluídos na Região <strong>da</strong> Amazônia<br />

Legal, para fins que especifica, e dá outras providências. Brasília: 1977.<br />

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indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacionais terras devolutas situa<strong>da</strong>s na<br />

faixa de cem quilômetros de largura em ca<strong>da</strong> lado do eixo <strong>da</strong>s rodovias na Amazônia Legal,<br />

e dá outras providências. Brasília: 1971.<br />

BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Decreto-lei n. 1.179, de 6 de julho de 1971. Institui o<br />

Programa de Redistribuição de Terras e Estímulos à Agroindústria do Norte e do Nordeste -<br />

PROTERRA, altera a legislação do imposto de ren<strong>da</strong> relativa a incentivos fiscais, e dá<br />

outras providências. Brasília: 1971.<br />

BRASIL. Presidência <strong>da</strong> República. Decreto-lei n. 71.615, de 22 de dezembro de 1972.<br />

Regulamenta o Decreto-lei n. 1.164, de 1 o de abril de 1971, alterado pelo Decreto-lei n.<br />

1.243, de 30 de outubro de 1972, e fixa as normas para a implantação de projetos de<br />

colonização, concessão de terras e estabelecimento ou exploração de indústrias de<br />

interesse <strong>da</strong> segurança nacional, nas terras devolutas localiza<strong>da</strong>s ao longo de rodovias, na<br />

Amazônia Legal. Brasília: 1972.<br />

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Deu nova re<strong>da</strong>ção à Constituição <strong>da</strong> República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro de<br />

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287


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Figura 1 - Apropriação de áreas novas: Distribuição interregional, em percentagem.<br />

Brasil, 1960-1980<br />

Norte<br />

15,7%<br />

Centro-Oeste<br />

46,5%<br />

Nordeste<br />

22,1%<br />

Sul<br />

7,8%<br />

Sudeste<br />

7,9%<br />

Fonte: Dados <strong>da</strong> Pesquisa<br />

Figura 2 - Apropriação de áreas novas por estratos, em percentuais. Brasil, 1960-<br />

1980<br />

0 - 10<br />

2,6% 10 - 100<br />

14,7%<br />

1000 mais<br />

47,2%<br />

100 - 1000<br />

35,5%<br />

Fonte: Dados <strong>da</strong> Pesquisa<br />

294


295


Figura 3 - Área utiliza<strong>da</strong> por tipo de exploração, em percentagem. Brasil, 1960-1980<br />

60,0<br />

52,4<br />

47,8<br />

50,0<br />

46,8<br />

40,0<br />

1960<br />

%<br />

30,0<br />

24,1 19,7 24,2<br />

1970<br />

1980<br />

20,0<br />

12,0 11,5 13,4<br />

10,0<br />

0,0<br />

Lavoura Pastagem Matas<br />

296


Figura 4 - Variação <strong>da</strong> área utiliza<strong>da</strong>, em percentagem. Brasil e Regiões, 1960/80<br />

100<br />

90<br />

83,0<br />

83,6 85,4 84,3 81,8 86,0<br />

77,0<br />

87,5<br />

89,1 90,3<br />

86,0<br />

85,6<br />

88,3 89,2 87,5<br />

87,4<br />

80<br />

72,7<br />

73,7<br />

70<br />

%<br />

60<br />

50<br />

40<br />

1960<br />

1970<br />

1980<br />

30<br />

20<br />

10<br />

0<br />

Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste<br />

297

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