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Homens normais, tudo de excepcional - Fonoteca Municipal de Lisboa

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Sexta-feira<br />

7 Maio 2010<br />

www.ipsilon.pt<br />

Josh e Ben Safdie Delorean Vashti Bunyan Ruy Duarte <strong>de</strong> Carvalho Stooges Monks<br />

<strong>Homens</strong> <strong>normais</strong>, <strong>tudo</strong> <strong>de</strong> <strong>excepcional</strong><br />

The National, “High Violet”<br />

ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 7337 DO PÚ BLICO CO, E NÃO PODE SER VEN<br />

DIDO SEPARADAME ADAME<br />

NTE


Flash<br />

Sumário<br />

The National 6<br />

Rapazes <strong>normais</strong>, com um<br />

novo disco todo especial<br />

Vashti Bunyan 12<br />

Amor, rejeição<br />

e um concerto no Lux<br />

The Stooges + The Monks 18<br />

O punk antes do punk, em<br />

duas reedições históricas<br />

Cornelius Car<strong>de</strong>w 20<br />

Um compositor tão<br />

paradoxal como o século<br />

XX, na Culturgest-Porto<br />

Josh e Ben Safdie 24<br />

Os vencedores do<br />

Indie<strong>Lisboa</strong> em discurso<br />

directo<br />

Ruy Duarte <strong>de</strong> Carvalho 28<br />

Meteu-se num carro<br />

e fez a volta à África do Sul<br />

FIMFA 32<br />

Um segredo bem<br />

guardado há <strong>de</strong>z anos<br />

Ficha Técnica<br />

Directora Bárbara Reis<br />

Editor Vasco Câmara,<br />

Inês Nadais (adjunta)<br />

Conselho editorial Isabel<br />

Coutinho, Óscar Faria, Cristina<br />

Fernan<strong>de</strong>s, Vítor Belanciano<br />

Design Mark Porter, Simon<br />

Esterson, Kuchar Swara<br />

Directora <strong>de</strong> arte Sónia Matos<br />

Designers Ana Carvalho,<br />

Carla Noronha, Mariana Soares<br />

Editor <strong>de</strong> fotografia<br />

Miguel Ma<strong>de</strong>ira<br />

E-mail: ipsilon@publico.pt<br />

Gabriel Abrantes<br />

sem tréguas em Paris<br />

Gabriel Abrantes (Chapel<br />

Hill, EUA, 1984) é daqueles<br />

artistas que não dá<br />

<strong>de</strong>scanso à obra. Troca-lhe<br />

as voltas (Arte? Cinema?),<br />

confun<strong>de</strong>-lhe os lugares<br />

(“Black box”? Gran<strong>de</strong> ecrã?<br />

Cubo branco?) e mostra-a,<br />

generosa e furiosamente,<br />

em Portugal (on<strong>de</strong> foi o<br />

<strong>de</strong>stinatário do Prémio EDP<br />

Novos Artistas em 2009) e<br />

no mundo. Dele vimos há<br />

dias, no Indie<strong>Lisboa</strong>, o filme<br />

“History of Mutual Respect”<br />

(o júri do festival <strong>de</strong>u-lhe o<br />

Prémio Media Recording<br />

para a melhor curtametragem<br />

portuguesa a<br />

concurso); nos próximos<br />

meses, vamos po<strong>de</strong>r visitar<br />

duas exposições, uma lá<br />

fora e outra cá <strong>de</strong>ntro.<br />

Entre 11 <strong>de</strong> Junho e 5 <strong>de</strong><br />

Setembro, na capital<br />

francesa, Abrantes integra<br />

“Dynasty”, que reúne<br />

trabalhos <strong>de</strong> 40 artistas no<br />

Palais <strong>de</strong> Tokyo e no Musée<br />

d’Art Mo<strong>de</strong>rne <strong>de</strong> la Ville <strong>de</strong><br />

Paris. O comissariado é <strong>de</strong><br />

Fabrice Hergott e Marc-<br />

Olivier Wahler, e a colectiva<br />

tem como objectivo revelar<br />

“a sensibilida<strong>de</strong> artística<br />

emergente em França”.<br />

Gabriel Abrantes, que<br />

es<strong>tudo</strong>u na École National<br />

<strong>de</strong>s Beaux-Arts <strong>de</strong> Paris<br />

entre 2005 e 2006,<br />

apresentará dois filmes corealizados<br />

com Benjamin<br />

Crotty: “Visionary Iraq”, no<br />

Palais <strong>de</strong> Tokyo (on<strong>de</strong> será o<br />

primeiro artista português a<br />

expor <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

transformação do edifício<br />

em centro <strong>de</strong> arte<br />

contemporânea), e uma<br />

obra inédita a ver no museu<br />

parisiense.<br />

Em Setembro, Gabriel<br />

Abrantes terá uma<br />

individual no Centro<br />

Cultural Vila Flor, em<br />

Guimarães: “Histories ies<br />

of Mutual Respect:<br />

Films by Gabriel<br />

Abrantes in<br />

Collaboration with<br />

Benjamin Crotty,<br />

Daniel Schmidt, Katie<br />

Widloski”. Em<br />

<strong>de</strong>staque, a produção<br />

fílmica e<br />

cinematográfica do<br />

artista/cineasta, das<br />

obras seminais, como as<br />

Spielberg vai adaptar “War Horse”,<br />

do escritor inglês Michael Morpurgo<br />

O artista português, Prémio EDP Novos Artistas em 2009, vai levar os seus trabalhos ao Palais<br />

<strong>de</strong> Tokyo e ao Musée d’Art Mo<strong>de</strong>rne <strong>de</strong> la Ville <strong>de</strong> Paris - a seguir, <strong>de</strong>sce à terra em Guimarães<br />

curtas-metragens “Olympia<br />

I” e “Olympia II” (2008),<br />

até às mais recentes,<br />

passando por “Too Many<br />

Daddies, Mommies and<br />

Babies”, o trabalho com<br />

que venceu o Prémio EDP.<br />

Ao todo, serão mostrados<br />

perto <strong>de</strong> <strong>de</strong>z filmes e<br />

ví<strong>de</strong>os, disponíveis em<br />

projecções e em monitores.<br />

Com a exposição, chegará<br />

um livro editado pelo<br />

próprio, com textos <strong>de</strong>,<br />

entre outros, Alexandre<br />

Melo e João Ribas, actual<br />

curador do MIT List Visual<br />

Arts Center, em Boston.<br />

Para explorar e revelar o<br />

processo <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong><br />

Gabriel Abrantes,<br />

<strong>de</strong>senvolvido em guiões,<br />

notas, colagens, <strong>de</strong>senhos e<br />

fotografias. José Marmeleira<br />

Steven Spielberg<br />

interessa-se pela I<br />

Guerra Mundial<br />

Steven Spielberg já é um veterano<br />

<strong>de</strong> filmes sobre a II Guerra Mundial<br />

(1939-1945). Com “O Resgate do<br />

Soldado Ryan” (1998), o cineasta<br />

trouxe <strong>de</strong> novo o conflito ao cinema<br />

e ganhou cinco Óscares; antes, com<br />

“A Lista <strong>de</strong> Schindler” (1993), tinha<br />

ganho sete. Entre outras obras<br />

sobre o tema, produziu ainda os<br />

filmes “As Ban<strong>de</strong>iras dos Nossos<br />

Pais” (2006) e “Cartas <strong>de</strong> Iwo Jima”<br />

(2006), ambos realizados por Clint<br />

Eastwood, e a série “Irmãos <strong>de</strong><br />

Armas” (2001), sobre um grupo <strong>de</strong><br />

soldados americanos que chega à<br />

Normandia no Dia D (1945). Muito<br />

recentemente, com a mesma<br />

equipa, voltou à II Guerra Mundial<br />

com “The Pacific” (2010), espécie<br />

<strong>de</strong> “Irmãos <strong>de</strong> Armas 2”, mas agora<br />

na frente do Pacífico.<br />

Entretanto, ficou a saber-se esta<br />

semana que Spielberg vai, pela<br />

primeira vez, abordar a I Guerra<br />

Mundial (1914-1918) em “War<br />

Horse”, adaptação do livro infantil<br />

com o mesmo nome do escritor<br />

inglês Michael Morpurgo. Publicado<br />

em 1982, o livro relata a amiza<strong>de</strong><br />

entre um rapaz inglês e um cavalo,<br />

que se separam quando <strong>de</strong>flagra a I<br />

Guerra Mundial e que voltam a<br />

cruzar-se no <strong>de</strong>curso do conflito.<br />

“War Horse” já foi adaptado para<br />

teatro e está em cena no National<br />

Theatre, em Londres. O filme da<br />

Dreamworks chegará aos cinemas<br />

dos EUA em Agosto <strong>de</strong> 2011, meses<br />

antes do aguardadíssimo “Tintin: o<br />

Segredo do Unicórnio”, também <strong>de</strong><br />

Spielberg.<br />

“Metrópolis” vai<br />

voltar, om mais 25<br />

minutos<br />

Realizado por Fritz Lang e estreado<br />

em Berlim em 1927, “Metrópolis” foi<br />

um dos filmes mais aclamados da<br />

história do cinema. Quase com duas<br />

horas e meia <strong>de</strong> duração, foi visto<br />

na sua totalida<strong>de</strong><br />

Algumas das imagens cortadas pela Paramount para “adaptar”<br />

o filme ao gosto médio americano foram recuperadas e vão ser<br />

incluídas numa nova versão, mais completa, do filme, a sair em DVD<br />

RUI GAUDÊNCIO<br />

ANNE-CHRISTINE POUJOULAT/ AFP<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 3


Flash<br />

Espaço<br />

Público<br />

Este espaço vai ser<br />

seu. Que filme, peça <strong>de</strong><br />

teatro, livro, exposição,<br />

disco, álbum, canção,<br />

concerto, DVD viu e<br />

gostou tanto que lhe<br />

apeteceu escrever<br />

sobre ele, concordando<br />

ou não concordando<br />

com o que escrevemos?<br />

Envie-nos uma nota até<br />

500 caracteres para<br />

ipsilon@publico.pt. E<br />

nós <strong>de</strong>pois publicamos.<br />

apenas por altura da estreia. As<br />

críticas e os lucros <strong>de</strong> bilheteira na<br />

Europa foram mornos e, por isso, a<br />

Paramount Pictures, o parceiro<br />

americano do estúdio alemão que<br />

produziu o filme, a UFA, retirou<br />

“Metrópolis” <strong>de</strong> circulação e fez<br />

alguns cortes drásticos na película,<br />

resultando em menos uma hora <strong>de</strong><br />

filme. Na altura, a Paramount<br />

justificou a <strong>de</strong>cisão dizendo que a<br />

montagem <strong>de</strong> Lang era complicada<br />

<strong>de</strong> mais para o público americano.<br />

A versão original não voltou a ser<br />

vista e pensou-se que tinha sido<br />

irreversivelmente <strong>de</strong>struída.<br />

Até 2008, altura em que a<br />

perseverança <strong>de</strong> Fernando Peña,<br />

arquivista <strong>de</strong> filmes argentino, foi<br />

recompensada. Há 20 anos que<br />

Peña ouvia falar na existência <strong>de</strong><br />

uma cópia do filme no Museo <strong>de</strong>l<br />

Cine <strong>de</strong> Buenos Aires, mas a<br />

burocracia impedia-o <strong>de</strong> chegar até<br />

ela. Há dois anos, conseguiu. E<br />

<strong>de</strong>scobriu mais 25 minutos <strong>de</strong> filme<br />

até aqui <strong>de</strong>sconhecidos.<br />

A versão completa da obra-prima<br />

<strong>de</strong> Fritz Lang foi exibida em<br />

Fevereiro no Festival <strong>de</strong> Cinema <strong>de</strong><br />

Berlim. Agora, o Film Forum, <strong>de</strong><br />

Nova Iorque, vai voltar a mostrar<br />

“The Complete Metropolis”, e a<br />

versão aumentada do filme vai<br />

mesmo ser editada em DVD, no<br />

final do ano, <strong>de</strong>pois da projecção<br />

em várias salas dos EUA.<br />

“Metrópolis” é o filme mudo mais<br />

icónico da sua época,<br />

principalmente pela ambição visual<br />

<strong>de</strong> Lang. Mas, até agora, não<br />

tínhamos a história completa.<br />

“Estes acrescentos são essenciais<br />

para a compreensão total da<br />

narrativa”, disse ao “New York<br />

Times” Noah Isenberg, professor <strong>de</strong><br />

cinema na The New School <strong>de</strong> Nova<br />

Iorque. As imagens são granuladas<br />

e, por isso, distinguem-se<br />

facilmente da versão restaurada em<br />

2001, na qual foram inseridas.<br />

Algumas são cenas mínimas, <strong>de</strong><br />

segundos, que ilustram as reacções<br />

das personagens e acentuam o seu<br />

estado <strong>de</strong> espírito. Mas também há<br />

planos <strong>de</strong> vários minutos que foram<br />

inteiramente cortados pela<br />

Paramount. Thin Man parece agora<br />

uma personagem muito mais<br />

sinistra, uma combinação <strong>de</strong> espião<br />

e <strong>de</strong>tective. E o seu assistente<br />

pessoal, que <strong>de</strong>saparece numa das<br />

cenas iniciais, <strong>de</strong>sempenha um<br />

papel muito maior.<br />

Ainda é o mesmo filme? Não<br />

totalmente. “Já não é um filme <strong>de</strong><br />

ficção científica. Agora é um filme<br />

que abrange muitos géneros, um<br />

épico sobre conflitos<br />

antiquíssimos”, argumenta Martin<br />

Koerber, arquivista e historiador<br />

alemão que supervisionou os<br />

restauros <strong>de</strong> 2001 e 2008.<br />

Os filmes mudos<br />

<strong>de</strong> Hitchcock<br />

vão ressuscitar<br />

Antes dos gran<strong>de</strong>s sucessos <strong>de</strong><br />

Hollywood, Alfred Hitchcock<br />

realizou uma série <strong>de</strong> filmes<br />

mudos, que já davam sinais do<br />

estilo, do trabalho <strong>de</strong> câmara e dos<br />

argumentos <strong>de</strong> suspense<br />

<strong>de</strong>senvolvidos pelo realizador nos<br />

trabalhos seguintes. Durante<br />

décadas, esses filmes estiveram<br />

esquecidos. Agora, o British Film<br />

Institute (BFI) vai restaurar nove<br />

<strong>de</strong>ssas obras e apresentá-las numa<br />

série <strong>de</strong> sessões públicas em 2012,<br />

como peça central <strong>de</strong> uma<br />

retrospectiva <strong>de</strong>dicada ao<br />

realizador. Embora o “The<br />

In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt” avance que as<br />

exibições farão parte das<br />

Olimpíadas Culturais, o programa<br />

artístico que <strong>de</strong>correrá em<br />

paralelo aos Jogos Olímpicos <strong>de</strong><br />

Londres, ainda não há<br />

confirmação.<br />

Alguns dos filmes<br />

serão projectados<br />

no BFI e outros<br />

serão musicados<br />

por músicos<br />

experimentais<br />

e farão parte<br />

do programa<br />

<strong>de</strong> diversos festivais <strong>de</strong> música. Da<br />

retrospectiva também fará parte<br />

uma exposição <strong>de</strong> objectos<br />

relacionados com os filmes e com<br />

as bandas sonoras do compositor<br />

Bernard Herrmann, que colaborou<br />

com Hitchcock em filmes como<br />

“Psycho”, “O Homem que Sabia<br />

Demasiado” ou “Vertigo - A Mulher<br />

que Viveu Duas Vezes”.<br />

“Queremos analisar a influência<br />

[<strong>de</strong> Hitchcock] no mundo actual”,<br />

justificou ao “In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt” Eddie<br />

Berg, director artístico do BFI. A<br />

O British Film Institute vai<br />

restaurar nove filmes a tempo<br />

dos Jogos Olímpicos <strong>de</strong> 2012<br />

directora do instituto, Amanda<br />

Neville, disse que a iniciativa irá<br />

“ressuscitar os filmes <strong>de</strong> Hitchcock<br />

que não estão na ponta da língua<br />

<strong>de</strong> toda a gente”. Alguns dos filmes<br />

precisam <strong>de</strong> restauro. “Três <strong>de</strong>les<br />

não po<strong>de</strong>rão ser projectados – a<br />

dimensão dos danos seria<br />

enorme”, acrescentou.<br />

Entre os filmes que serão<br />

restaurados e apresentados<br />

incluem-se “The Pleasure Gar<strong>de</strong>n”<br />

(1925), “The Lodger” (1926) e “The<br />

Farmer’s Wife” (1927).<br />

Todos aos <strong>de</strong>z anos<br />

da Tate Mo<strong>de</strong>rn<br />

O “frontman” dos Sonic Youth,<br />

Thurston Moore, e os<br />

portugueses Filipa Oliveira e<br />

Miguel Amado constam entre<br />

as <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> artistas,<br />

provenientes <strong>de</strong> todo o mundo<br />

(do Rio <strong>de</strong> Janeiro a Xangai),<br />

que foram convidados para<br />

fazer experiências na festa dos<br />

primeiros <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> vida da<br />

Tate Mo<strong>de</strong>rn. Des<strong>de</strong> que abriu<br />

portas, a 12 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 2000,,<br />

a galeria londrina <strong>de</strong>dicada à<br />

arte contemporânea recebeu<br />

45 milhões <strong>de</strong> visitantes,<br />

número com que se tornou o<br />

museu <strong>de</strong> arte contemporânea<br />

Mais <strong>de</strong> 45<br />

milhões <strong>de</strong><br />

visitantes<br />

já passaram<br />

pelo principal<br />

museu <strong>de</strong><br />

arte contemporânea<br />

do<br />

Reino Unido<br />

mais visitado do mundo. Só<br />

entre 2008 e 2009, a Tate<br />

Mo<strong>de</strong>rn contabilizou 4,65<br />

mihões <strong>de</strong> entradas (uma média<br />

<strong>de</strong> 13 mil por dia); no mesmo<br />

período, o Centro Pompidou, <strong>de</strong><br />

Paris, ficou-se por 3,53 milhões<br />

<strong>de</strong> visitantes e o MoMA, <strong>de</strong> Nova<br />

Iorque, pelos 2,8 milhões.<br />

O início das comemorações da<br />

primeira década da galeria está<br />

marcado para o próprio dia do<br />

aniversário, 12, com um <strong>de</strong>sfile<br />

<strong>de</strong> 300 crianças que,<br />

acompanhadas <strong>de</strong> uma<br />

banda, irão caminhar até ao<br />

edifício com um bolo <strong>de</strong><br />

Além <strong>de</strong> fazer<br />

experiências<br />

com a sua<br />

guitarra,<br />

Thurston<br />

Moore<br />

também vai<br />

ler poesia nos<br />

<strong>de</strong>z anos da<br />

Tate Mo<strong>de</strong>rn<br />

aniversário que será<br />

distribuído pelos visitantes.<br />

Mas o principal item dos<br />

festejos é mesmo o “No Soul<br />

For Sale – A Festival for<br />

In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nts”, que <strong>de</strong>corre<br />

<strong>de</strong> 14 a 16 <strong>de</strong>ste mês. É<br />

justamente no programa<br />

<strong>de</strong>ste festival que a dupla <strong>de</strong><br />

curadores Filipa Oliveira +<br />

Miguel Amado (que já tinha<br />

participado na primeira<br />

edição do No Soul For<br />

Sale em Junho do<br />

ano passado, em<br />

Nova Iorque,<br />

com o projecto<br />

“If you don’t<br />

know what the<br />

South is it’s<br />

simply<br />

because you<br />

are from<br />

the<br />

North”,<br />

incluindo<br />

trabalhos<br />

<strong>de</strong> Julieta<br />

Aranda,<br />

Lilibeth<br />

Cuenca<br />

Rasmussen,<br />

Carlos Motta<br />

e Miguel<br />

Palma) aparece<br />

ao lado <strong>de</strong><br />

artistas como<br />

Martin Creed, Prémio Turner<br />

em 2001. A programação do<br />

festival visa misturar diversos<br />

tipos <strong>de</strong> disciplinas, das artes<br />

plásticas à música, do cinema à<br />

poesia, e culminará na criação,<br />

sem entraves na liberda<strong>de</strong><br />

criativa, <strong>de</strong> uma al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> arte<br />

global. Thurston Moore, por<br />

exemplo, vai recitar poesia do<br />

seu “Ecstatic Peace Poetry<br />

Journal” e <strong>de</strong>dicar-se à<br />

exploração das artes visuais e<br />

da música experimental.<br />

Durante os três dias do festival,<br />

a Tate Mo<strong>de</strong>rn terá as portas<br />

abertas ao público e, nas duas<br />

primeiras noites, só fechará à<br />

meia-noite, aproveitando a<br />

boleia da iniciativa nacional<br />

“Museums at Night”.<br />

A pretexto dos <strong>de</strong>z anos, os<br />

visitantes são também<br />

convidados a publicar as suas<br />

memórias relacionadas com a<br />

galeria, e nomeadamente<br />

ví<strong>de</strong>os e fotos das suas<br />

experiências com as peças da<br />

Unilever Series (um programa<br />

<strong>de</strong> instalações que já levou<br />

diversos artistas a intervir no<br />

Hall das Turbinas da Tate<br />

Mo<strong>de</strong>rn, que na sua primeira<br />

encarnação foi uma central<br />

eléctrica), que serão<br />

posteriormente compilados<br />

num filme.<br />

4 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


AGENDA CULTURAL FNAC<br />

entrada livre<br />

entrada livre<br />

APRESENTAÇÃO AO VIVO LANÇAMENTO EXPOSIÇÃO<br />

LANÇAMENTO<br />

OBJECTIVOS DE DESENVOLVIMENTO<br />

DO MILÉNIO<br />

No Ano Europeu <strong>de</strong> Luta Contra a Pobreza e a Exclusão Social, a Fnac apresenta uma selecção das<br />

imagens premiadas no concurso <strong>de</strong> fotografia, organizado pelo Instituto Superior <strong>de</strong> Engenharia do Porto<br />

e pela Escola Superior <strong>de</strong> Música e Artes do Espectáculo.<br />

11.05. 18H00 FNAC STA. CATARINA<br />

AO VIVO<br />

ANA BEATRIZ MANZANILLA<br />

E PEDRO SAGLIMBENI MUÑOZ<br />

Duos para violino e viola <strong>de</strong> Villa-Lobos e Martinu<br />

Músicos venezuelanos resi<strong>de</strong>ntes em <strong>Lisboa</strong> que fazem parte da Orquestra Gulbenkian e da Orquestra<br />

Sinfónica Portuguesa.<br />

07.05. 22H00 FNAC CASCAISHOPPING 09.05. 17H00 FNAC CHIADO<br />

AO VIVO<br />

NU SOUL FAMILY<br />

Never Too Late To Dance<br />

Virgul (Da Weasel) e Dino (Expensive Soul) são a cara dos Nu Soul Family. A música <strong>de</strong> dança conhece<br />

uma versão eclética entre momentos pop, house e disco.<br />

08.05. 17H00 FNAC CASCAISHOPPING<br />

13.05. 22H00 FNAC MAR SHOPPING<br />

14.05. 22H00 FNAC NORTESHOPPING<br />

AO VIVO<br />

TIAGO BETTENCOURT<br />

Em Fuga<br />

Após o sucesso <strong>de</strong> O Jardim, com o single Canção Simples, Tiago Bettencourt volta à Fnac para uma<br />

actuação ao vivo do seu último disco, gravado entre o Canadá e <strong>Lisboa</strong>.<br />

14.05. 21H30 FNAC COLOMBO<br />

15.05. 22H00 FNAC NORTESHOPPING<br />

16.05. 17H30 FNAC CASCAISHOPPING<br />

EXPOSIÇÃO<br />

UMA FOTO DE CADA VEZ<br />

Fotografias <strong>de</strong> Gonçalo Cadilhe<br />

Gonçalo Cadilhe fotografa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que iniciou a sua carreira <strong>de</strong> viajante, há quase vinte anos, mas sempre<br />

canalizou a sua energia para a produção literária. No entanto, a pequena selecção <strong>de</strong> fotografias aqui<br />

reunida não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> piscar o olho à sua produção literária.<br />

18.04. - 12.05.2010 FNAC COLOMBO<br />

Consulte todos os eventos da Agenda,<br />

assim como outros conteúdos culturais Fnac em<br />

Apoio:<br />

15.05. 17H00 FNAC GAIASHOPPING<br />

21.05. 22H00 FNAC ALMADA<br />

22.05. 17H00 FNAC ALFRAGIDE<br />

21.05. 22H00 FNAC LEIRIASHOPPING<br />

22.05. 22H00 FNAC COIMBRA<br />

23.05. 17H00 FNAC ALMADA


O caso <strong>de</strong> amor com os National continua. Porque eles f<br />

personagens grandiosas <strong>de</strong> um épico. Ao quinto disco, “High<br />

como os U2 ou ser a melhor banda do mundo. Retrato do<br />

É segunda-feira, <strong>de</strong>z da manhã em<br />

Nova Iorque e há em Matt Berninger,<br />

o barítono que li<strong>de</strong>ra os National, algo<br />

diferente, pelo menos tendo em<br />

conta as conversas mantidas com ele<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que falámos pela primeira vez<br />

há cinco anos: as palavras não lhe<br />

saem entarameladas, não há oscilações<br />

entre monólogos sorumbáticos<br />

e explosões verborreicas inacabáveis,<br />

<strong>tudo</strong> no discurso parece pon<strong>de</strong>rado.<br />

Resumindo: está, surpreen<strong>de</strong>ntemente,<br />

sóbrio.<br />

“Eu não bebo assim tanto”, respon<strong>de</strong><br />

com um certo acossamento. Anos<br />

antes, este homem era o primeiro a<br />

brincar com a sua fama <strong>de</strong> bebedor<br />

compulsivo. Agora, casado e pai, perto<br />

<strong>de</strong> se tornar uma estrela a sério com<br />

“High Violet”, há nele certos cuidados:<br />

“Nunca começo a beber antes da noite<br />

e só bebo no palco, mas antes e <strong>de</strong>pois<br />

do concerto não bebo”, repete.<br />

Agora Matt Berninger é pai e não<br />

bebe. Isto é uma gran<strong>de</strong> diferença<br />

face ao que lhe conhecíamos: no Sudoeste,<br />

em 2007, não largou uma<br />

garrafa <strong>de</strong> Porto durante a conversa<br />

<strong>de</strong> uma hora que mantivemos antes<br />

do concerto. No ano seguinte, na Au-<br />

KEITH KLENOWSKI<br />

The National<br />

Champanhe nas


fazem <strong>de</strong> nós, gente angustiada com as suas banalida<strong>de</strong>s,<br />

Violet”, a banda <strong>de</strong> Matt Berninger tem <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir entre ser<br />

artista neste momento da sua vida. João Bonifácio<br />

la Magna, em <strong>Lisboa</strong>, nem chegou a<br />

haver a entrevista marcada, porque<br />

estava entretido a beber e a conversar<br />

com fãs e esqueceu-se da conversa<br />

combinada.<br />

Antes do turbilhão <strong>de</strong> digressões<br />

em que “Boxer” enfiou o grupo, Berninger<br />

era uma personagem menos<br />

reservada – com a mesma quantida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> angústia que hoje lhe notamos,<br />

mas um pouco menos <strong>de</strong> precaução<br />

na exposição. A pureza em diálogo<br />

nessa altura era tanta que no Sudoeste<br />

contou-nos o amor <strong>de</strong> Bryan Davenport<br />

por erva, revelou-nos que na<br />

banda ninguém tomava drogas duras.<br />

Depois acrescentou, quase com vergonha:<br />

“Não sei, se calhar <strong>de</strong>víamos<br />

tomar”.<br />

Bryan Davenport, já agora, é o baterista<br />

maravilha, <strong>de</strong>spenteado, barbudo<br />

e tremendamente bonito, irmão<br />

<strong>de</strong> Scott, o careca barbeado do<br />

baixo pulsante. O resto da banda é<br />

composto pelos gémeos Bryce e Aaron<br />

Dessner, os lí<strong>de</strong>res das guitarras<br />

da banda.<br />

“Mal acabam os concertos vou para<br />

o hotel <strong>de</strong>itar-me ou ler”, diz-nos<br />

Berninger. Um dos gémeos Dessner,<br />

antes do concerto da Aula Magna,<br />

contara-nos o mesmo, acrescentando<br />

um pormenor: Berninger ia logo para<br />

o hotel não por uma questão ética,<br />

mas sim “para telefonar à mulher,<br />

que quer saber on<strong>de</strong> ele anda”.<br />

A mulher <strong>de</strong> Matt Berninger (que,<br />

tal como os restantes membros da<br />

banda, vem <strong>de</strong> Cincinnati, Ohio, e é<br />

um produto da classe média local)<br />

Capa<br />

nossas sombras


tem as suas razões para querer<br />

manter o marido em ré<strong>de</strong>a curta: no<br />

Sudoeste Berninger dizia-nos, com<br />

mais um dos muitos cigarros que fuma<br />

quase a cair-lhe da mão: “Já viste<br />

a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mulheres bonitas<br />

que estão ali fora? Jesus, às vezes olho<br />

para estas mulheres e penso ‘Eu gostava<br />

<strong>de</strong> fazer amor com uma mulher<br />

assim’. Mas <strong>de</strong>pois penso na minha<br />

namorada [à data não estavam casados]<br />

e...”. E ficou a olhar para o chão<br />

com um ar tão comiserado consigo<br />

mesmo que parecia uma das personagens<br />

das suas canções.<br />

Uma boa parte do charme <strong>de</strong>ste<br />

quinteto <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>s bem<br />

marcadas resi<strong>de</strong> nesta simultânea<br />

consciência e fascínio com o pecado.<br />

Ninguém disse que era preciso pecar<br />

para haver culpa – e Berninger sabe<br />

bem que se po<strong>de</strong> sentir uma avassaladora<br />

culpa só por se pensar em<br />

pecar.<br />

“Quer dizer, isto não são problemas,<br />

não são verda<strong>de</strong>iros problemas,<br />

mas todas as canções dos National<br />

são sobre isso”, disse ele nessa noite,<br />

repetidas vezes.<br />

“Isso” é querer e não po<strong>de</strong>r, fazer<br />

e “saber que se está a fazer merda”:<br />

a comichão versus a razão, dicotomia<br />

usada nas canções dos últimos dois<br />

discos dos National, “Alligator”<br />

(2005) e “Boxer” (2007), até à exaustão,<br />

e que lhes valeu uma crescente<br />

legião <strong>de</strong> fãs, invariavelmente literatos<br />

e abusadores <strong>de</strong> medicamentos<br />

<strong>de</strong> prescrição: membros da geração<br />

recibo ver<strong>de</strong>, da geração a prazo, da<br />

geração sem poiso.<br />

KEITH KLENOWSKI<br />

A perfeição da imperfeição<br />

As angústias <strong>de</strong> Berninger são as dos<br />

fãs e os fãs envelhecem ao mesmo<br />

tempo que Berninger, como se houvesse<br />

entre eles um miraculoso<br />

“update” <strong>de</strong> angústia que os mantivesse<br />

em sintonia. Cada vez que um<br />

muda <strong>de</strong> angústia os outros também<br />

e assim continuam o seu caso <strong>de</strong><br />

amor.<br />

O que nos traz <strong>de</strong> volta à mudança<br />

no discurso <strong>de</strong> Berninger e às questões<br />

em jogo neste momento <strong>de</strong>cisivo na<br />

vida nos National em que eles lançam<br />

“High Violet”.<br />

A banda tem vindo a subir as vendas<br />

a cada disco, e “Boxer” atingiu os 350<br />

mil exemplares só nos EUA, o que nesta<br />

altura da indústria, para uma banda<br />

<strong>de</strong>sta dimensão, é extraordinário.<br />

De “High Violet” espera-se que expluda,<br />

embora, como Berninger nos<br />

disse esta semana, com eles “não há<br />

explosões, há um constante crescendo”.<br />

Mas não é só em termos <strong>de</strong> dimensão<br />

da banda que estão numa<br />

encruzilhada: eles têm <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir entre<br />

serem como os U2 ou serem a melhor<br />

banda do mundo.<br />

Tinham ainda mais um dilema pela<br />

frente: “Alligator” e “Boxer” não foram<br />

apenas discos perfeitos, foram os<br />

discos perfeitos na altura perfeita,<br />

com a evolução perfeita para uma geração<br />

reconhecida pela sua imperfeição.<br />

O que fazer a seguir?<br />

Foi com esses problemas que meio<br />

milhão da melhor gente que aí anda<br />

se relacionou: com o pateta alegre<br />

que cantava “I used to be carried in<br />

the arms of cheerlea<strong>de</strong>rs”, com o romântico<br />

<strong>de</strong>sesperado que gritava “I<br />

won’t fuck us over”, com o mentiroso<br />

confiante nas suas mentiras que<br />

dizia “We’ll stay insi<strong>de</strong> ‘till somebody<br />

finds us do whatever the tv tells us”.<br />

Meio milhão da melhor gente que<br />

tem estas frases tatuadas na re<strong>de</strong> neuronal,<br />

porque elas são simultaneamente<br />

grandiosas e íntimas – e é esse,<br />

tanto a nível lírico como a nível musical,<br />

o trunfo dos National: conseguirem<br />

que algo soe íntimo e tornar<br />

esse íntimo épico.<br />

Como é que eles – problemáticos<br />

profissionais – podiam resolver este<br />

problema sem enlouquecer?<br />

Resposta: não podiam e enlouqueceram.<br />

Como é que eles escolheram o caminho<br />

a seguir?<br />

Resposta: não escolheram, estava<br />

mesmo ali.<br />

O que é que eles fizeram?<br />

Juntaram o melhor dos dois mundos<br />

anteriores.<br />

Mais importante que <strong>tudo</strong>: “High<br />

Violet”, vai fazer <strong>de</strong>les a melhor banda<br />

do mundo?<br />

Na mente <strong>de</strong> Berninger<br />

Retrato do artista neste momento da<br />

sua vida: “Tenho uma filha <strong>de</strong> 16 meses<br />

e isso mudou-me bastante. Quando<br />

se tem filhos o mundo <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser<br />

sobre nós – bem, infelizmente continuo<br />

obsessivo comigo próprio. Começa-se<br />

a tentar perceber como melhorar<br />

o mundo só que isso traz ainda<br />

mais raiva porque não só não conseguimos<br />

resolver nada como ainda por<br />

cima não po<strong>de</strong>mos fugir da responsabilida<strong>de</strong>.<br />

Não po<strong>de</strong>mos mais querer<br />

que <strong>tudo</strong> se foda. Antes podíamos<br />

simplesmente ir para uma barraca<br />

longe <strong>de</strong> <strong>tudo</strong> e mandar <strong>tudo</strong> e todos<br />

– problemas, responsabilida<strong>de</strong>s, mulheres,<br />

dignida<strong>de</strong> – para o caralho.<br />

Agora tem <strong>de</strong> se querer saber, temos<br />

<strong>de</strong> nos importar. E para ser honesto,<br />

agora nós importamo-nos com muita<br />

coisa. Mas não é fácil”.<br />

Este é um tratado sobre a mente<br />

<strong>de</strong> Berninger. A oscilação entre o<br />

“eu” e o “nós” é representativa da<br />

confusão entre o caso particular e a<br />

generalização, confusão que o leva a<br />

tantos labirintos lógicos, mas, simultaneamente,<br />

dá às suas canções uma<br />

universalida<strong>de</strong> nada negligenciável<br />

(ele tem um talento imenso em transformar<br />

um problema seu numa canção<br />

em que todos se possam rever).<br />

A assumpção <strong>de</strong> um mar <strong>de</strong> diferença<br />

entre o que é certo, o que nos<br />

dizem que é certo, o que nós queremos<br />

fazer e o que nós achamos que<br />

<strong>de</strong>vemos fazer está representada<br />

naquele parágrafo – e é <strong>de</strong>stas múltiplas<br />

hipóteses que nascem as canções<br />

dos National, é esta complexida<strong>de</strong><br />

que atrai a multidão simultaneamente<br />

bibliófila e beberrona que<br />

os segue.<br />

(É curioso reparar como os fãs dos<br />

National são parecidos com os National:<br />

gente <strong>de</strong> classe média, média<br />

alta, angustiada com as suas banali-<br />

Matt<br />

Berninger<br />

entre os<br />

gémeos Bryce<br />

e Aaron<br />

Dessner,<br />

guitarristas;<br />

atrás, à<br />

direita, Bryan<br />

Davenport,<br />

baterista; à<br />

esquerda o<br />

irmão Scott, o<br />

baixo<br />

pulsante dos<br />

National<br />

“É daí que vem a tristeza e a raiva <strong>de</strong>stas canções – das m<br />

toda a gente: queremos ser mais românticos e agradar à nossa m<br />

medrosos. E é muito difícil ser <strong>tudo</strong> isso”<br />

8 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


da<strong>de</strong>s, fechada sobre a sua cabeça,<br />

gente tímida capaz <strong>de</strong> irrupções psicóticas<br />

ou <strong>de</strong> manifestações <strong>de</strong> exibicionismo<br />

ou <strong>de</strong>cadência a milhas<br />

do seu comportamento normal. Frígidos<br />

emocionais capazes <strong>de</strong> um<br />

gran<strong>de</strong> coração. Não há como não<br />

gostar <strong>de</strong>les – isto é, <strong>de</strong> todos nós)<br />

O parágrafo citado vinha a propósito<br />

<strong>de</strong> “Afraid of everyone”, uma das<br />

novas canções, particularmente emblemática<br />

da viragem temática que<br />

“High Violet” encerra. Berninger está<br />

convencido <strong>de</strong> que este disco é<br />

radicalmente diferente dos anteriores.<br />

Mas Berninger não toca um único<br />

instrumento.<br />

“Para mim, vistos agora, ‘Boxer’ e<br />

‘Alligator’ são mundos <strong>de</strong> fantasia e<br />

‘High Violet’ é um disco <strong>de</strong> alguém<br />

que se importa. É um disco em que se<br />

diz: ‘Afinal <strong>tudo</strong> importa’. Tudo importa,<br />

o que torna <strong>tudo</strong> mais assustador.<br />

Mas também mais recompensador”,<br />

diz, antes <strong>de</strong> lançar: “É um disco<br />

com o real lá <strong>de</strong>ntro”.<br />

Este é o facto fundamental: Berninger<br />

é pai e um solipsista – e um solipsista<br />

perante a paternida<strong>de</strong>, leva um<br />

nó, um “angustiante” nó no seu esquema<br />

<strong>de</strong> sobrevivência. Esse esquema<br />

<strong>de</strong> sobrevivência (fugir) <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong><br />

ser eficaz quando há um ser que não<br />

sai do mesmo lugar (a filha), pelo que<br />

a angústia retorna e tem <strong>de</strong> ser canalizada<br />

para fora <strong>de</strong> casa. De on<strong>de</strong>: “Eu<br />

tive <strong>de</strong> começar a olhar para o mundo<br />

outra vez”. De on<strong>de</strong>: os outros discos<br />

são <strong>de</strong> fantasia e este é sobre o real.<br />

Toda a mudança pessoal implica<br />

uma revisão do passado, mas aqui é<br />

notório que Berninger tenta ver a obra<br />

anterior com olhos mais positivos.<br />

Recordando “Alligator”: “Aquelas afirmações<br />

grandiloquentes como ‘I used<br />

to be carried in the arms of cheerlea<strong>de</strong>rs’,<br />

muito disso é fantasia ou ilusão<br />

– alguém que em <strong>de</strong>sespero se ima-<br />

mesmas coisas que obcecam<br />

mulher, queremos ser menos<br />

Comentário<br />

João<br />

Bonifácio<br />

E finalmente o rock<br />

é perigoso<br />

Eles não fazem as meninas tirar as cuecas e os meninos<br />

tomar drogas. Eles fazem as mulheres divorciar-se<br />

e os homens irem à farmácia buscar medicamentos.<br />

Os National são assunto <strong>de</strong> gente gran<strong>de</strong>. E isso sim,<br />

é perigoso.<br />

N<br />

ão é propriamente lisonjeiro para o rock’n’roll que a frase<br />

paradigmática que marca o início da sua história seja “A whop<br />

bop-a-lu a whop bam boo”. E não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser sintomático que<br />

quem melhor a proferiu, Little Richard, fosse um homossexual<br />

que aí fingia ser um galifão com uma mulher em cada esquina.<br />

Nessa maravilhosa canção traçou-se o caminho do rock’n’roll durante<br />

décadas: gente com esqueletos no armário transforma-se numa outra coisa<br />

que sempre <strong>de</strong>sejou ou sempre achou que <strong>de</strong>via ser, e o sexo era laudado<br />

como objectivo único da vida. A mitologia transformou o rock’n’roll na<br />

banda-sonora do sexo, usando para isso todos os truques possíveis – menos<br />

palavras bem medidas.<br />

Tivemos décadas disto e, acima <strong>de</strong> <strong>tudo</strong>, tivemos a mitificação “ad nauseum”<br />

disto, que atingiu o zénite quando alguém se lembrou <strong>de</strong> dizer que<br />

os Rolling Stones eram perigosos. Porquê? Porque faziam as meninas tirar as<br />

cuecas e punham os rapazes a tomar drogas. Destruíam os lares.<br />

Não se duvida, mas falta acrescentar um pormenor: um pouco <strong>de</strong> literatura<br />

diz-nos que as meninas sempre foram céleres a tirar as cuecas, mesmo que<br />

sempre tenham sido magistrais a escon<strong>de</strong>r essa sua excelsa qualida<strong>de</strong>. Em “O<br />

Cálice e a Espada”, Riane Eisler fala-nos mesmo <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s mais próximas<br />

<strong>de</strong> regimes matriarcais em que o amor era livre e poligâmico. E recordando<br />

a “Me<strong>de</strong>ia” será difícil sustentar que os lares só começaram a ser <strong>de</strong>struídos<br />

no dia em que as cachopas viram um sujeito <strong>de</strong> lábio <strong>de</strong> boi a berrar.<br />

Que não se diminua o valor do rock’n’roll, tanto musical como sociológico.<br />

Mas que não se lhe atribua qualquer perigo – a explosão do rock na década<br />

<strong>de</strong> 60 é simples consequência da moral sufocante<br />

dos anos 50 que por sua vez é consequência da<br />

Os Stones sempre<br />

foram brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong><br />

adolescentes. Os<br />

National são assunto<br />

<strong>de</strong> gente gran<strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> guerra. O rock estava no lugar certo no<br />

momento certo.<br />

A questão é que para não se ser alinhado é preciso<br />

ter-se consciência do que está em jogo e para<br />

se ser rebel<strong>de</strong> é preciso – ao contrário do título do<br />

filme <strong>de</strong> Nick Ray – alguma causa. E isto implica<br />

inteligência e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> usar as palavras.<br />

Com a <strong>de</strong>vida excepção do primeiro álbum dos<br />

Velvet Un<strong>de</strong>rground, isto só surgiu, no rock, no<br />

final da década <strong>de</strong> 70 com os Joy Division. Ian Curtis<br />

fez o favor <strong>de</strong> acabar <strong>de</strong>pressa com qualquer veleida<strong>de</strong> intelectual que o<br />

rock pu<strong>de</strong>sse ter e ainda assim dificilmente se po<strong>de</strong>rá sustentar que os Joy<br />

Division não fossem uma banda adolescente. Os seus seguidores, com o suposto<br />

poeta maldito Ian McCuloch à cabeça, i<strong>de</strong>m.<br />

Andámos muitos anos assim até que os Radiohead conseguiram um feito<br />

extraordinário: fazer com que <strong>tudo</strong> na sua música, do uso <strong>de</strong> ruídos passando<br />

pela forma como o seu vocalista usava a voz ou as suas estranhas imagens<br />

literárias, se tornasse um símbolo da <strong>de</strong>sagregação emocional que é marca<br />

do século XXI. Foi a primeira vez que o rock esteve próximo <strong>de</strong> ser adulto<br />

sem ser balofo (ao contrário, por exemplo, dos Pink Floyd).<br />

É por isso que dizemos sem o mínimo pudor que os National são verda<strong>de</strong>iramente<br />

a primeira banda <strong>de</strong> rock’n’roll perigosa que existiu ao cimo<br />

da Terra.<br />

Todos os discos dos National são uma variação “ad infinitum” sobre aquilo<br />

a que po<strong>de</strong>ríamos chamar “os indiferenciados”: gente que se <strong>de</strong>staca pela<br />

sua absoluta falta <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, gente que não hesita em hesitar, que caminha<br />

passo firme para o tropeção, gente <strong>de</strong>sconfortável com a sua temperatura,<br />

que não suporta o pouco peso que tem na vida dos outros.<br />

Mas ao contrário dos Stones, as meninas que ouvem pela primeira vez os<br />

National não vão a correr trocar fluidos ou experimentar os simpáticos efeitos<br />

do Rohypnol. A <strong>de</strong>scarga épica e emocional que os National produzem,<br />

associada à constante repetição <strong>de</strong> aforismos eficazes, levam a uma segunda<br />

atenção ao texto. E o texto, que à partida po<strong>de</strong> ser lido como simples confirmação<br />

<strong>de</strong> que a vida é por norma uma merda, revela-se <strong>de</strong> uma complexida<strong>de</strong><br />

rara, abraça o erro, a queda e o disparate, sem nunca os glorificar (e isto é<br />

extraordinário no rock), comove-se por quem tropeça, não sabe se há-<strong>de</strong> ser<br />

hedonista e quando o é arrepen<strong>de</strong>-se.<br />

Isto é: está i<strong>de</strong>ologicamente contra <strong>tudo</strong> o que os Stones representam. O<br />

discurso dos National é o da dúvida incessante, da culpa e do horror à culpa,<br />

do questionamento constante da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, do <strong>de</strong>sdobramento<br />

constante das encruzilhadas que se apresentam ao ser humano.<br />

Eles não fazem as meninas tirar as cuecas e os meninos tomar drogas. Eles<br />

fazem as mulheres divorciar-se e os homens irem à farmácia buscar medicamentos.<br />

Pela simples razão <strong>de</strong> nunca ninguém no rock ter pensado tanto e<br />

<strong>de</strong> forma tão apelativa com Matt Berninger.<br />

Os Stones sempre foram uma brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> adolescentes da mesma forma<br />

que tomar drogas sempre foi brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> adolescentes, mesmo quando<br />

praticada por adultos, se não for pensada, se apenas for hedonismo puro.<br />

Ao contrário, os National são assunto <strong>de</strong> gente gran<strong>de</strong>. É a diferença entre<br />

um tipo sentir-se um super-homem porque toma a droga X, ou aguentar as<br />

angústias e calar porque tem crianças para tratar. E isso sim, é perigoso, e<br />

agora sim, há perigo numa guitarra eléctrica.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 9


ABBEY DRUCKER<br />

gina melhor do que é, <strong>de</strong> forma<br />

mais ou menos patética. Mas isso também<br />

po<strong>de</strong> ser comovente. Se o nosso<br />

passado não é glorioso, qual o problema?<br />

Porque não havemos <strong>de</strong> inventar<br />

que fomos carregados em ombros por<br />

‘cheerlea<strong>de</strong>rs’?”<br />

Faz o mesmo exercício com “Boxer”:<br />

“‘Boxer’ não era sobre casais a<br />

esgadanharem-se. Era sobre as pessoas<br />

fecharem as portas, <strong>de</strong>sligarem-se<br />

do mundo exterior, procurarem uma<br />

zona <strong>de</strong> conforto. Era uma rejeição<br />

do mundo exterior, mas eles apreciavam<br />

a solidão. Eles não vão matar-se<br />

um ao outro, eles escolheram estar<br />

sozinhos”.<br />

“‘High Violet’ é o oposto. É a escolha<br />

da abertura ao mundo como fuga ao<br />

sufoco. É um disco que confronta o que<br />

há por aí. Li<strong>de</strong> com o que lidar – tomar<br />

<strong>de</strong>cisões como viver em Nova Iorque<br />

ou no campo ou como gerir o que os<br />

outros pensam <strong>de</strong> nós, ou a paranóia<br />

informativa –, é um disco sobre o impacto<br />

do exterior”. Só mais uma frase:<br />

“Este é um disco <strong>de</strong> alguém que esteve<br />

fechado sobre si mesmo e está <strong>de</strong> novo<br />

a tentar entrar no mundo – não porque<br />

queira, mas porque a isso foi obrigado<br />

– e a tentar resolver problemas. Obviamente,<br />

não é um caminho cheio <strong>de</strong><br />

felicida<strong>de</strong>”. Isto lembra-vos alguém?<br />

A chatice da classe média<br />

O método <strong>de</strong> trabalho dos National é<br />

simples: os gémeos Dessner mandam<br />

a Berninger malhas <strong>de</strong> guitarras por<br />

e-mail, e às que o barítono diz que sim<br />

toda a banda se junta para recriar o<br />

material. Como Berninger reescreve<br />

obsessivamente as letras as canções<br />

acabam por levar milhentas voltas.<br />

Os gémeos Bryce a Aaron Dessner<br />

são os mais musicais da banda, no<br />

sentido em que são os que têm mais<br />

preparação académica. Bryce es<strong>tudo</strong>u<br />

na Yale School of Music e, segundo o<br />

“New York Times”, Steve Reich – com<br />

quem já colaborou – é fã da banda.<br />

“O que trabalha mais é o Bryce. O<br />

Bryan é o mais emocional. Eu sou o<br />

mais chato”, dizia Berninger no Sudoeste.<br />

Para “High Violet” exce<strong>de</strong>ram-se<br />

na sua obsessão com fazerem algo novo.<br />

Berninger recusou uma vintena<br />

<strong>de</strong> esquissos <strong>de</strong> canções porque eram<br />

<strong>de</strong>dilhadas. Queria guitarras eléctricas<br />

e <strong>de</strong>u como <strong>de</strong>finição do som: “alcatrão<br />

quente”.<br />

“Tínhamos feito alguns dos melhores<br />

<strong>de</strong>dilhados que alguma vez ouvi”,<br />

disse Bryce. “E ele atirou-os todos para<br />

o lixo”. Todos não: um ou outro<br />

ouvem-se em fundo em duas ou três<br />

canções.<br />

Para algumas canções gravaram 80<br />

versões, para no fim acabarem por<br />

voltar ao som das <strong>de</strong>mos iniciais.<br />

“Acho que nos cansámos da perfeição<br />

sónica <strong>de</strong> ‘Boxer’. Estava <strong>tudo</strong><br />

<strong>de</strong>masiado perfeitinho. Queríamos<br />

um pouco mais da sujeira <strong>de</strong> ‘Alligator’”,<br />

explica-nos Berninger, sem reparar<br />

no paradoxo que é fazer 80 versões<br />

<strong>de</strong> uma canção porque não quer<br />

<strong>tudo</strong> perfeitinho.<br />

“Houve uma gran<strong>de</strong> procura da forma<br />

i<strong>de</strong>al das canções, mas no fim acabámos<br />

por voltar às <strong>de</strong>mos, por achar<br />

que a base das canções estavam lá”.<br />

Canções como “Terrible love” ou “Little<br />

faith” têm “gran<strong>de</strong>s partes que foram<br />

retiradas das <strong>de</strong>mos iniciais”,<br />

mesmo que <strong>de</strong>pois os arranjos <strong>de</strong> cordas<br />

ou os coros ou os metais tenham<br />

sido gravados em estúdio.<br />

Na realida<strong>de</strong>, reconhece Berninger,<br />

“a maior parte das canções são as mais<br />

complexas que alguma vez escrevemos,<br />

têm coros, metais, cordas, mas<br />

queríamos manter o som sujo que tínhamos<br />

feito no início”.<br />

Isto é um eufemismo para a carga<br />

<strong>de</strong> trabalhos que tiveram. No fim acabaram<br />

por aproveitar “uma bateria<br />

daqui, uma guitarra dali” para conseguirem<br />

o tal som que ele imaginava:<br />

“Uma combinação do sujo primordial<br />

com meticulosas e sofisticadas harmonias<br />

posteriores”.<br />

O que é importante notar aqui é a<br />

obsessiva ética <strong>de</strong> trabalho dos rapazes:<br />

levam o perfeccionismo ao limite.<br />

Como se não bastasse, funcionam em<br />

<strong>de</strong>mocracia – isto é, uma canção só<br />

vai para a frente se todos estiverem<br />

satisfeitos. O que por vezes leva a que<br />

todos tenham vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> se aniquilar<br />

mutuamente.<br />

“Fomos educados a fazer o que está<br />

certo”, diz Berninger. É filho <strong>de</strong> um<br />

advogado que, por alguma razão, cismou<br />

em viver nos piores bairros <strong>de</strong><br />

Cincinnati. E é esta a diferença entre<br />

Matt e os restantes: nenhum <strong>de</strong>les teve<br />

uma infância difícil, mas Matt viu<br />

o que outros não viram.<br />

Lê-se em todas as entrevistas e nota-se<br />

em conversa com eles: a cisão<br />

entre “ser normal” (ditame que qualquer<br />

filho <strong>de</strong> classe média conhece<br />

bem) e “fazer bem” (ditame que qualquer<br />

filho <strong>de</strong> classe média conhece<br />

bem) é neles levada ao expoente máximo.<br />

É essa ascensão <strong>de</strong> classe média<br />

que viu o lado sujo que os leva a querer<br />

manter as canções, por mais experimentais<br />

que sejam, sempre do<br />

lado mais directo possível.<br />

Por exemplo: quando os manos se<br />

põem com experiências artísticas e as<br />

enviam por e-mail para Berninger, ele<br />

manda-os passear. Ao “New York Ti-<br />

Uma parte do<br />

charme <strong>de</strong>ste<br />

quinteto <strong>de</strong><br />

classe média<br />

resi<strong>de</strong> no<br />

fascínio com o<br />

pecado<br />

mes” Aaron dizia que “para ele tem<br />

<strong>de</strong> ser sempre uma experiência emocional”.<br />

Berninger não quer cá experiências<br />

artísticas só porque sim. É<br />

como se se vigiasse constantemente.<br />

É o dado mais importante acerca <strong>de</strong>le:<br />

a hiper-activa auto-consciência <strong>de</strong> Berninger.<br />

Longo monólogo <strong>de</strong> um vocalista<br />

quando mencionamos “autoconsciência”:<br />

“A auto-consciência é uma gran<strong>de</strong><br />

parte das canções dos National. A ansieda<strong>de</strong><br />

existente em todas as situações<br />

vem da auto-consciência. De não se<br />

gostar <strong>de</strong> como se está nessas situações,<br />

<strong>de</strong> se <strong>de</strong>sejar ser melhor, mais<br />

simpático, mais bem falante, mais à<br />

vonta<strong>de</strong>. De não se saber como reagir<br />

– seja no trabalho ou na família. Essa<br />

auto-consciência da falha mói muito,<br />

está sempre presente. É acerca <strong>de</strong>, no<br />

fundo, não se ter muita auto-confiança.<br />

E é daí que vem a tristeza e a raiva que<br />

há nestas canções – das mesmas coisas<br />

que obcecam toda a gente: queremos<br />

ser mais românticos e agradar à nossa<br />

mulher, queremos ser mais simpáticos,<br />

queremos ser menos medrosos. E é<br />

muito difícil ser <strong>tudo</strong> isso. Por isso<br />

julgamo-nos constantemente. Tudo<br />

isto implica muito trabalho: não é fácil<br />

amarmos a nossa mulher, os nossos<br />

pais, os nossos filhos, os nossos amigos.<br />

Não é fácil sequer amarmo-nos. E<br />

isso acarreta ansieda<strong>de</strong>. Que, no fundo,<br />

po<strong>de</strong> ser muito positiva, porque<br />

funciona como um balanço dos prós<br />

e dos contras, como um alerta que nos<br />

impulsiona a fazer alguma coisa”.<br />

Este é o fio condutor dos discos dos<br />

National: a auto-consciência. Por mais<br />

aberto ao mundo que “High Violet”<br />

seja, é essa auto-consciência que traz<br />

grandiosida<strong>de</strong> à banda.<br />

Sim, em “High Violet” há mais mundo.<br />

Mesmo numa canção como “Sorrow”,<br />

“que é uma celebração da tristeza,<br />

que é sobre alguém que é triste<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre mas gosta da sua tristeza,<br />

que precisa <strong>de</strong>la”, há um distanciamento<br />

maior.<br />

Mesmo numa canção tremenda como<br />

“Afraid of everyone”, que é sobre<br />

o medo da paternida<strong>de</strong>, esse medo é<br />

escudado num olhar mais frio, “uma<br />

espécie <strong>de</strong> estado <strong>de</strong> coisas entre as<br />

pessoas <strong>normais</strong> na América: <strong>de</strong> um<br />

lado temos os liberais, do outro os<br />

conservadores e vivemos bombar<strong>de</strong>ados<br />

por esta dicotomia extremada,<br />

sem saber no que acreditar”.<br />

O medo da paternida<strong>de</strong>, revelado<br />

na frase “with my kid on my shoul<strong>de</strong>rs<br />

I’ll try not to hurt anybody I love”, é<br />

investido <strong>de</strong> uma outra gran<strong>de</strong>za: esta<br />

torna-se uma canção “sobre não<br />

magoar os outros estando disposto a<br />

<strong>tudo</strong> para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a família. Põe-se<br />

a criança aos ombros para a proteger<br />

e tenta-se não ferir os que estão ao<br />

lado. Quando se tem filhos as priorida<strong>de</strong>s<br />

mudam e há uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> guerra<br />

contra <strong>tudo</strong> o que possa ferir ou<br />

separar-nos das crianças, mas tem-se<br />

<strong>de</strong> evitar essa guerra”.<br />

Mas isto são os National e a seguir<br />

a essa frase vem ‘But I don’t have the<br />

drugs to sort this out’. O que significa<br />

isto? “É simples. É que não faço a mínima<br />

i<strong>de</strong>ia como resolver este dilema”.<br />

Qual dilema? “Tudo isto”.<br />

“Nós só estamos a <strong>de</strong>itar champanhe<br />

para <strong>de</strong>ntro das sombras”, diz<br />

Berninger. “Isso revigora-nos”.<br />

Depois o agente corta a chamada.<br />

Nós cá em baixo abrimos a boca e engolimos<br />

o champanhe.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> discos págs. 52 e segs.<br />

10 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon<br />

“Nós só estamos a <strong>de</strong>itar champanhe<br />

para <strong>de</strong>ntro das sombras. Isso revigora-nos”


80.ª Edição da Feira do Livro <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong><br />

29 <strong>de</strong> Abril a 16 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 2010<br />

Parque Eduardo VII<br />

Livros, Cultura e Animação<br />

direcção artística Cesário Costa<br />

METROPOLITANA<br />

T E M P O R A D A 2 0 0 9 | 2 0 1 0<br />

07 <strong>de</strong> Maio |Sex<br />

Tânia Ganho<br />

Título editado:<br />

A Luci<strong>de</strong>z do Amor<br />

Luís<br />

Bigotte Chorão<br />

Título editado:<br />

A Crise da República e a Ditadura Militar<br />

08 <strong>de</strong> Maio |Sáb<br />

Paul Hoffman<br />

Título editado:<br />

O Braço Esquerdo <strong>de</strong> Deus<br />

Ricardo<br />

M. Salmón<br />

Títulos editados:<br />

A Ofensa, Derrocada<br />

Sofia Marrecas<br />

Ferreira<br />

Título editado:<br />

O Sangue da Terra<br />

João<br />

Pedro Marques<br />

Título editado:<br />

Os Dias da Febre<br />

J. Pedro<br />

Baltasar<br />

Título editado:<br />

Jaguar<br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

Lourenço<br />

P. Coutinho<br />

Título editado:<br />

Cinco <strong>de</strong> Outubro<br />

Leonor Mexia<br />

Título editado:<br />

A caixa da avó Maria<br />

Vítor<br />

Burity da Silva<br />

Títulos editados:<br />

Rua dos Anjos, Este Lago não Existe<br />

José António<br />

Gomes e António<br />

Mo<strong>de</strong>sto<br />

Título editado:<br />

Poesia <strong>de</strong> Fernando Pessoa para Todos<br />

Maria C. Vicente<br />

Título editado:<br />

Bichos faz-<strong>de</strong>-conta<br />

M. João Lopo<br />

<strong>de</strong> Carvalho<br />

Títulos editados:<br />

Animais à Solta, Um menino diferente<br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

hora do conto<br />

às 16:00<br />

atelier/ workshop<br />

Ana Biscaia<br />

<strong>de</strong> ilustração<br />

às 17:30<br />

Título editado:<br />

Poesia <strong>de</strong> Luís <strong>de</strong> Camões para Todos<br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

hora do conto<br />

às 17:00<br />

atelier/ workshop<br />

Ana Fernan<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> ilustração<br />

às 18:00<br />

Título editado:<br />

O Príncipe no Reino dos Lagartos<br />

FRANZ SCHUBERT<br />

SINFONIA N.º 8, A GRANDE<br />

Xavier Phillips violoncelo<br />

Mark Stringer direcção musical<br />

Orquestra Metropolitana <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong><br />

obras <strong>de</strong><br />

Ludwig van Beethoven | Dmitri Chostakovich | Franz Schubert<br />

Domingo, 9 <strong>de</strong> Maio, 17h00<br />

Centro Cultural <strong>de</strong> Belém | Gran<strong>de</strong> Auditório<br />

09 <strong>de</strong> Maio |Dom<br />

Paul Hoffman<br />

Título editado:<br />

O Braço Esquerdo <strong>de</strong> Deus<br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

J. Pedro<br />

Baltasar<br />

Título editado:<br />

Jaguar<br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

Ricardo<br />

M. Salmón<br />

Títulos editados:<br />

A Ofensa, Derrocada<br />

Nuno Silveira<br />

Ramos e Pedro<br />

Silveira Ramos<br />

Título editado:<br />

Tartan - As Velas da Liberda<strong>de</strong><br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

Teresa<br />

Champalimaud<br />

e Maria Almada<br />

Título editado:<br />

Castelos <strong>de</strong> Algodão Doce<br />

Sofia Marrecas<br />

Ferreira<br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

Título editado:<br />

O Sangue da Terra<br />

Tânia Ganho<br />

sessão<br />

<strong>de</strong> autógrafos<br />

das 15:00 às 17:00<br />

Título editado:<br />

A Luci<strong>de</strong>z do Amor<br />

Oo


Vashti Bunyan está receosa. Não pelos<br />

concertos que se avizinham e que a<br />

trarão ao Lux, em <strong>Lisboa</strong>, no próximo<br />

dia 13 <strong>de</strong> Maio, quinta-feira. Disso falaremos<br />

<strong>de</strong>pois. Do seu percurso errante,<br />

da preciosida<strong>de</strong> da sua música,<br />

que viveu primeiro entre sombras e<br />

timi<strong>de</strong>z, <strong>de</strong>scobriu <strong>de</strong>pois uma luminosa<br />

intimida<strong>de</strong>, e se silenciou 35<br />

anos (sim, 35) antes <strong>de</strong> se fazer ouvir<br />

novamente, quando Devendra Banhart,<br />

Joanna Newsom ou os Espers<br />

lhe disseram que sim, a sua música<br />

era especial.<br />

Pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r o telefonema<br />

do Ípsilon na sua casa em Edimburgo,<br />

falou-nos da viagem que faria<br />

no dia seguinte até Estocolmo. Acabada<br />

<strong>de</strong> chegar <strong>de</strong> Los Angeles, on<strong>de</strong><br />

um vulcão islandês (esse, pois claro)<br />

a manteve retida durante duas semanas,<br />

prepara-se para viajar novamente<br />

e teme que o Eyjafjallajökull lhe<br />

atrapalhe a vida uma segunda vez.<br />

Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser curioso este receio<br />

<strong>de</strong> Vashti Bunyan. Há 40 anos tentou<br />

uma carreira na pop e, <strong>de</strong>siludida<br />

com o fracasso, <strong>de</strong>ixou <strong>tudo</strong> para trás.<br />

Tudo: partiu <strong>de</strong> Londres com o namorado<br />

em direcção a uma comuna<br />

na Escócia fundada por Donovan. Não<br />

viajou <strong>de</strong> comboio, autocarro ou<br />

avião, nada disso: cavalo e carroça.<br />

Assim, teve tempo para compor e gravar<br />

um álbum <strong>de</strong> doces “lullabies”,<br />

ignorado então, reconhecido agora<br />

como um clássico; teve tanto tempo<br />

que, quando chegou à comuna, Donovan<br />

já não estava lá. Ei-la então<br />

agora, quatro décadas <strong>de</strong>pois, preocupada<br />

com vulcões e aviões, mas a<br />

rir quando lhe sugerimos que, caso<br />

as cinzas vulcânicas atrapalhem, sempre<br />

po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>scobrir um meio <strong>de</strong><br />

transporte alternativo: “Mas o cavalo<br />

é tão lento, é certo que não chegaria<br />

a tempo a <strong>Lisboa</strong>”.<br />

Em <strong>Lisboa</strong>, Vashti Bunyan tocará<br />

principalmente canções <strong>de</strong> “Lookaftering”,<br />

o álbum que editou em 2005,<br />

o tal que pôs fim ao um silêncio <strong>de</strong> 35<br />

anos. De uma <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za comovente,<br />

cantado numa voz que se ergue da<br />

aparente fragilida<strong>de</strong>, “Lookaftering”<br />

é, com as suas guitarras acústicas <strong>de</strong>dilhadas,<br />

os seus pianos ondulantes,<br />

as flautas, oboés e orquestrações, um<br />

olhar terno sobre o que ficou para<br />

trás. Sem angústia, finalmente.<br />

Amor e rejeição<br />

Para esta londrina nascida em 1945,<br />

<strong>tudo</strong> começou em Nova Iorque com<br />

a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> um músico e <strong>de</strong> um<br />

disco, “Freewheelin’”, <strong>de</strong> Bob Dylan.<br />

O início da década <strong>de</strong> 60 e Vashti expulsa<br />

<strong>de</strong> uma escola <strong>de</strong> arte, em<br />

Oxford, por se “concentrar <strong>de</strong>masiado<br />

numa expressão artística diferente”<br />

– estudava pintura mas <strong>de</strong>dicava<br />

mais tempo a compor canções. A chegada<br />

a Nova Iorque e Bob Dylan: “Toda<br />

aquela i<strong>de</strong>ia do músico nómada,<br />

quase um saltimbanco, atraía-me muito.<br />

Isso, juntamente com as letras, foi<br />

uma educação extraordinária. Abriu<br />

todo um mundo”. Foi ao ouvi-lo que<br />

<strong>de</strong>cidiu insistir, <strong>de</strong>terminada, numa<br />

carreira musical.<br />

Acontece que Vashti Bunyan, que<br />

olha para os anos 60 e para as transformações<br />

que neles ocorreram como<br />

um “levantamento muito pequeno”<br />

– “não éramos tantos quanto isso a<br />

fugir à normalida<strong>de</strong>” -, “mas muito<br />

eficiente, muito excitante”, não sabia<br />

como se enquadrar neles. “Nunca fiz<br />

parte <strong>de</strong> qualquer cena. Era muito<br />

solitária e nunca me alinhei a ninguém.<br />

Usava jeans e camisolas <strong>de</strong> homem<br />

e recusava que me mo<strong>de</strong>lassem<br />

enquanto cara bonita. Além disso,<br />

pensava que ninguém queria fazer o<br />

que eu queria e, portanto, não achava<br />

que fossem possíveis gran<strong>de</strong>s progressos”.<br />

Mesmo aqueles que compreendiam<br />

a sua música pareciam inacessíveis.<br />

Vashti conheceu Nick Drake e<br />

Joe Boyd, produtor do seu primeiro<br />

álbum, “Just Another Diamond Day”<br />

(1970), composto durante a viagem<br />

até à Escócia, queria que gravassem<br />

juntos. Impossível: “Das poucas vezes<br />

que estive com ele, não trocámos uma<br />

palavra. Virava-se <strong>de</strong> costas, <strong>de</strong> olhos<br />

na parece. Era um génio e uma alma<br />

perdida, era muito infeliz. Ele tão tímido<br />

e eu tão tímida... Nunca nos<br />

conhecemos verda<strong>de</strong>iramente”.<br />

Vendo imagens das suas raras aparições<br />

televisivas em meados da década<br />

<strong>de</strong> 60, percebemos <strong>tudo</strong>. “Some<br />

things just stick in your mind”, a canção<br />

<strong>de</strong> Jagger e Richards que Andrew<br />

Loog Oldham lhe ofereceu, e ela a<br />

cantá-la nas suas calças brancas e camisa<br />

preta, a <strong>de</strong>sviar os olhos da câmara.<br />

Aquele, repare-se, era o auge<br />

da sua carreira – “estava muito <strong>de</strong>terminada<br />

a ser uma cantora pop e a<br />

levar as minhas canções às tabelas <strong>de</strong><br />

“Voltei à música<br />

on<strong>de</strong> a tinha <strong>de</strong>ixado,<br />

como se o resto da<br />

minha vida tivesse<br />

continuado numa<br />

dimensão diferente.<br />

Deixei a música com<br />

25 anos e é aí que<br />

ainda estou. Talvez<br />

chegue ao ponto<br />

em que serei eu<br />

aos 30”<br />

Música<br />

35 ANOS<br />

Entre o primeiro e o<br />

segundo álbum, Vashti<br />

Bunyan fechou-se num<br />

longo silêncio,<br />

quebrado em 2005<br />

O próximo<br />

álbum <strong>de</strong><br />

Vashti<br />

Bunyan, diz<br />

ela, será<br />

certamente o<br />

último, mas a<br />

história <strong>de</strong>la é<br />

uma história<br />

<strong>de</strong> recomeços:<br />

quem sabe...<br />

A longa viagem <strong>de</strong> Vas<br />

Vashti Bunyan <strong>de</strong>sistiu duas vezes. Quando quis ser cantora e percebeu que n<br />

e quando pôs o sonho bucólico que era a sua vida num álbum ignorado. Três décadas <strong>de</strong>pois, f<br />

12 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


vendas”. Mas as suas canções eram Vêmo-la na capa <strong>de</strong> “Just Another<br />

<strong>de</strong> um intimismo <strong>de</strong>sarmante, marcado<br />

por frio invernoso e por imagens avental e a saia negra, ela em frente<br />

Diamond Day”: o lenço na cabeça, o<br />

<strong>de</strong> solidão. Não podia resultar. Depois à portada <strong>de</strong> uma casa com telhado<br />

<strong>de</strong> dois singles sem sucesso, <strong>de</strong>sistiu <strong>de</strong> colmo, e à esquerda <strong>de</strong> um grupo<br />

pela primeira vez.<br />

<strong>de</strong> animais campestres. Gravado num<br />

“Cresci no meio <strong>de</strong> Londres e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> intervalo da viagem com músicos dos<br />

a infância que sonhava com a paisagem,<br />

com o campo”, conta. Quando String Band, com orquestrações a car-<br />

Fairport Convention e da Incredible<br />

a carreira pop falhou, foi procurar go <strong>de</strong> Robert Kirby, soa a <strong>de</strong>slumbrante<br />

sonho bucólico, uma o<strong>de</strong> à inocên-<br />

esse sonho. Ela, o namorado e o cão<br />

<strong>de</strong> ambos, a cavalo até à Escócia. “Éramos<br />

muito românticos. Como não ver<strong>de</strong> prado e azul lago. Para Vashti,<br />

cia <strong>de</strong> dias que correm lentos entre<br />

tínhamos dinheiro para gasolina, porém, nada daquilo era sonho. “[Na<br />

achámos que precisávamos apenas viagem] passei <strong>de</strong> uma infância muito<br />

<strong>de</strong> um cavalo. Afinal, os cavalos só protegida à vida a sério, o que foi um<br />

precisam <strong>de</strong> erva. Éramos inocentes choque. Mas aprendi como viver sem<br />

a esse ponto... e estúpidos [risos]. Mas electricida<strong>de</strong>, sem dinheiro, sem <strong>tudo</strong><br />

foi uma gran<strong>de</strong> estupi<strong>de</strong>z que se aquilo que tomamos por garantido.<br />

transformou em gran<strong>de</strong> sabedoria.” Aprendi que po<strong>de</strong>mos sentir-nos re-<br />

shti Bunyan<br />

alizados quando as nossas preocupações<br />

são encontrar água, o próximo<br />

prado para o cavalo ou lenha para o<br />

fogo. Tive um filho e estava a viver na<br />

natureza. Os sonhos que estavam nas<br />

canções <strong>de</strong> ‘Diamond Day’ eram a realida<strong>de</strong>.”<br />

A viagem, diz, curou-a da “gran<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>pressão” com que tinha abandonado<br />

Londres. O álbum não só não resultou<br />

exactamente como pretendia,<br />

como foi responsável por nova <strong>de</strong>sistência.<br />

Desta vez total. Foi um rotundo<br />

fracasso comercial recebido pela<br />

crítica com escárnio e classificado<br />

como ingénuo e infantil. Vashti baixou<br />

os braços. “Em vez <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar que<br />

aquilo me <strong>de</strong>stroçasse, <strong>de</strong>cidi simplesmente<br />

que não servia para a música,<br />

que era óbvio que não era boa o<br />

suficiente. Mesmo que isso fosse uma<br />

terrível rejeição da minha vida e dos<br />

meus sonhos.”<br />

Continuou a viajar com o namorado<br />

pela Escócia e pela Irlanda, criou<br />

uma família. Ao longo <strong>de</strong>sses 30 anos,<br />

pegou na guitarra uma única vez, para<br />

ensinar o filho a tocá-la.<br />

A re<strong>de</strong>scoberta<br />

Um dia, por curiosida<strong>de</strong>, teclou o seu<br />

nome num motor <strong>de</strong> pesquisa da Internet<br />

e <strong>de</strong>parou-se com o seu passado,<br />

re<strong>de</strong>scoberto. “Just Another Diamond<br />

Day” fascinava uma nova geração<br />

<strong>de</strong> melómanos e um <strong>de</strong>les,<br />

Devendra Banhart, chegou mesmo a<br />

escrever-lhe, <strong>de</strong>clarando toda a sua<br />

admiração. Vashti Bunyan reeditou o<br />

álbum, pegou novamente na guitarra,<br />

cantou. “Era algo que tinha enterrado<br />

tão fundo que perceber que ainda estava<br />

ali foi maravilhoso”. Mais, foi<br />

como se todo o tempo em que negara<br />

a música não tivesse existido. “Voltei<br />

à música on<strong>de</strong> a tinha <strong>de</strong>ixado, como<br />

se o resto da minha vida tivesse continuado<br />

numa dimensão diferente.<br />

Deixei a música com 25 anos e é aí que<br />

ainda estou. Talvez chegue ao ponto<br />

em que serei eu aos 30.”<br />

Des<strong>de</strong> que quebrou o seu voto <strong>de</strong><br />

silêncio, muito aconteceu. Gravou<br />

com os Piano Magic ou com os Animal<br />

Collective Editou um novo álbum,<br />

“Lookaftering”, que consi<strong>de</strong>ra<br />

o fechar do ciclo iniciado em “Just<br />

Another Diamond Day” e que lhe permitiu<br />

começar a pôr em disco “todas<br />

as orquestras” que tem na cabeça –<br />

musicais do início do século XX, Noel<br />

Coward, hinos religiosos e canções<br />

<strong>de</strong> Natal. Em <strong>Lisboa</strong>, será acompanhada<br />

pelo guitarrista Gareth Dixon<br />

e pela multi-instrumentista Jo Mango.<br />

O futuro? Olha para ele sem pressas.<br />

Porque esperou 35 anos até gravar<br />

novamente. Porque ainda não<br />

superou o <strong>de</strong>sgosto da morte, a 3 <strong>de</strong><br />

Outubro <strong>de</strong> 2009, <strong>de</strong> Robert Kirby,<br />

com quem começara a trabalhar em<br />

novas formas <strong>de</strong> “tirar a orquestra da<br />

cabeça”. E porque quer sentir “que<br />

todas as peças se encaixam”, quer ter<br />

a certeza <strong>de</strong> que se orgulhará da música<br />

que gravar.<br />

Será, provavelmente, o último álbum<br />

que gravará. Mas nada <strong>de</strong> angústias.<br />

Haverá sempre tempo para um<br />

regresso <strong>de</strong> Vashti Bunyan.<br />

Ver agenda <strong>de</strong> concertos na pág. 50 e<br />

segs.<br />

e não se enquadrava na pop dos anos 60,<br />

, faz uma aparição no Lux, a 13 <strong>de</strong> Maio. Mário Lopes<br />

SÃO<br />

LUIZ<br />

ABR/MAI ~1O<br />

29 ABR A 15 MAI<br />

QUARTA A SÁBADO ÀS 21H00<br />

DOMINGO ÀS 17H30<br />

SALA PRINCIPAL<br />

M/18<br />

Texto<br />

MARK RAVENHILL<br />

Tradução<br />

ANA BIGOTTE VIEIRA<br />

Direcção Artística e Encenação<br />

GONÇALO AMORIM<br />

A<strong>de</strong>reços e Figurinos<br />

ANA LIMPINHO<br />

MARIA JOÃO CASTELO<br />

SÃO<br />

LUIZ<br />

MAI/JUN ~1O<br />

Sonoplastia<br />

SÉRGIO MILHANO<br />

Desenho <strong>de</strong> Luz<br />

JOSÉ MANUEL RODRIGUES<br />

Espaço Cénico<br />

RITA ABREU<br />

Direcção <strong>de</strong> Produção<br />

PAULA FERNANDES<br />

(Primeiros Sintomas)<br />

SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />

RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA<br />

GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT / T: 213 257 640<br />

Interpretação<br />

CARLA MACIEL<br />

CARLOTO COTTA<br />

PEDRO CARMO<br />

PEDRO GIL<br />

ROMEU COSTA<br />

A reposição do espectáculo<br />

é uma co-produção SLTM<br />

/ Primeiros Sintomas<br />

Shopping & Fucking<br />

Prémio da Crítica<br />

2007 da Associação<br />

Portuguesa <strong>de</strong><br />

Críticos <strong>de</strong> Teatro<br />

WWW.TEATROSAOLUIZ.PT<br />

BILHETEIRA DAS 13H ÀS 20H<br />

T: 213 257 650; BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />

BILHETES À VENDA NA TICKETLINE E NOS LOCAIS HABITUAIS<br />

De 21 <strong>de</strong> Maio a 9 <strong>de</strong> Junho, o alkantara festival, na sua 3ª edição,<br />

acolhe cerca <strong>de</strong> 30 performances <strong>de</strong> dança, <strong>de</strong> teatro e <strong>de</strong> <strong>tudo</strong> o que<br />

se encontra entre eles, <strong>de</strong> artistas oriundos <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 20 países.<br />

Mais uma vez, o São Luiz é o principal co-produtor.<br />

Alemanha / Egipto<br />

21 E 22 MAI<br />

RADIO<br />

MUEZZIN<br />

STEFAN KAEGI<br />

(RIMINI PROTOKOLL)<br />

SEXTA E SÁBADO ÀS 21H00<br />

SALA PRINCIPAL M/12<br />

O Ministério dos Assuntos<br />

Religiosos egípcio quer introduzir<br />

um sistema <strong>de</strong> rádio fechado que<br />

transmitirá a voz <strong>de</strong> um único<br />

muezim ao vivo e em simultâneo<br />

para todas as mesquitas <strong>de</strong> Estado.<br />

Cairão no silêncio milhares<br />

<strong>de</strong> muezins?<br />

Brasil<br />

28 E 29 MAI<br />

H3<br />

BRUNO BELTRÃO<br />

/ GRUPO DE RUA<br />

DE NITERÓI<br />

SEXTA E SÁBADO ÀS 21H00<br />

SALA PRINCIPAL M/6<br />

Beltrão continua a <strong>de</strong>senvolver o seu<br />

próprio vocabulário, no <strong>de</strong>safio entre<br />

a coreografia contemporânea e as<br />

várias formas <strong>de</strong> street dance.<br />

EUA<br />

4 A 6 JUN<br />

BARE SOUNDZ<br />

SAVION GLOVER<br />

SEXTA E SÁBADO ÀS 21H00<br />

DOMINGO ÀS 17H00<br />

SALA PRINCIPAL M/6<br />

O bailarino <strong>de</strong> sapateado que<br />

emprestou os seus pés a Mumble,<br />

o pinguim <strong>de</strong> Happy Feet,<br />

é hoje visto como um dos gran<strong>de</strong>s<br />

revolucionários <strong>de</strong>ste género.<br />

Portugal<br />

24, 25 E 31 MAI<br />

1, 7, 8 E 9 JUN<br />

AMIGOS<br />

COLORIDOS<br />

UM PROJECTO<br />

ALKANTARA<br />

FESTIVAL E PRADO<br />

ÀS 23H00<br />

JARDIM DE INVERNO M/12<br />

Ren<strong>de</strong>z-vous amorosos para<br />

os artistas e blind dates para o<br />

público. Um espaço/tempo para<br />

encontros (im)possíveis, intensos<br />

e apaixonados. Serão todos<br />

encontros irrepetíveis.<br />

© carla rosa baptista<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 13


Música<br />

O Verão azul<br />

dos Delorean<br />

Depois <strong>de</strong> El Guincho, há outro projecto espanhol que vale a pena conhecer: os Delorean,<br />

praticantes <strong>de</strong> pop electrónica eufórica, acabam <strong>de</strong> lançar o álbum “Subiza”. Vítor Belanciano<br />

Os melómanos mais atentos <strong>de</strong>ram<br />

por eles no ano passado, através do<br />

EP “Ayrton Senna”, um curto conjunto<br />

<strong>de</strong> canções assentes numa pop eufórica<br />

<strong>de</strong> vozes juvenis e dinâmicas<br />

electrónicas. Muitos <strong>de</strong>vem ter pensado<br />

que se tratava da estreia dos espanhóis<br />

Delorean, mas não é bem<br />

assim. O grupo começou há <strong>de</strong>z anos,<br />

em Zarautz, uma pequena localida<strong>de</strong><br />

perto <strong>de</strong> San Sebastián.<br />

Nessa altura praticavam uma sonorida<strong>de</strong><br />

muito diferente, esclarece o<br />

vocalista e baixista Ekhi Lopetegi. “No<br />

País Basco existia uma cena ‘hardcore’<br />

muito dinâmica, e durante alguns<br />

anos fomos influenciados por ela. Mas<br />

a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada altura começámos<br />

a sentir vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> encetar<br />

uma mudança e foi isso que acabou<br />

por acontecer.” Durante esses primeiros<br />

tempos, lançaram três álbuns. O<br />

EP do ano passado significou uma<br />

gran<strong>de</strong> viragem e o álbum “Subiza”,<br />

agora mesmo lançado, apenas veio<br />

reafirmá-la.<br />

No espaço <strong>de</strong> um ano muita coisa<br />

se alterou. O grupo tornou-se conhecido<br />

um pouco por todo o lado e o<br />

seu som transformou-se por completo,<br />

sendo agora muito mais dançável,<br />

capaz <strong>de</strong> agradar a quem gosta da pop<br />

caleidoscópica <strong>de</strong> grupos como Cut<br />

Copy ou das electrónicas <strong>de</strong> dança<br />

conotadas com editoras como a Kompakt<br />

ou a Bor<strong>de</strong>r Community. “Gostamos<br />

<strong>de</strong> muitos géneros, <strong>de</strong> house a<br />

dubstep, <strong>de</strong> rock a pop, <strong>de</strong> Prefab<br />

Sprout aos Cocteau Twins e a nossa<br />

música reflecte-o”, diz Ekhi.<br />

Hoje é uma pop dançante, quase<br />

sempre à beira da exaltação, aquela<br />

que praticam. Uma transformação<br />

que é capaz <strong>de</strong> estar relacionada com<br />

uma mudança <strong>de</strong> residência. Des<strong>de</strong><br />

há dois anos, os quatro membros do<br />

grupo vivem em Barcelona. “Há oito<br />

anos queria estudar em Barcelona,<br />

começar vida aqui. Tal como San Sebastián,<br />

on<strong>de</strong> cresci, é uma cida<strong>de</strong><br />

com mar por perto e isso é muito<br />

bom.”<br />

Ekhi ri-se quando lhe recordamos<br />

que sempre que a imprensa americana<br />

fala <strong>de</strong>les são imediatamente conotados<br />

com a capital da Catalunha.<br />

Como se a costela lúdica da sua música<br />

pu<strong>de</strong>sse ser explicada, em exclusivo,<br />

pela geografia. “Quando os americanos<br />

pensam em Espanha, imaginam<br />

logo sol e mar. Com Portugal,<br />

<strong>de</strong>ve ser o mesmo. San Sebastián é<br />

até muito chuvosa. Barcelona é muito<br />

soalheira, mas essa é apenas meia<br />

verda<strong>de</strong>. Não vale a pena chatearmonos<br />

com esses estereótipos. Cada pa-<br />

Naturais <strong>de</strong> Zarautz,<br />

uma pequena cida<strong>de</strong> costeira<br />

ao lado <strong>de</strong> San Sebastián,<br />

os Delorean mudaram-se há<br />

dois anos para Barcelona<br />

14 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


ís tem o seu imaginário, coisas que o<br />

simbolizam e que toda a gente i<strong>de</strong>ntifica.<br />

Quando consi<strong>de</strong>ro a música que<br />

sai da Suécia, romântica e melodramática,<br />

penso logo ‘Oh! Eles não têm<br />

sol, só po<strong>de</strong>m fazer música melancólica!’<br />

Enfim, é apenas a minha i<strong>de</strong>ia<br />

da Suécia. Po<strong>de</strong> ter um fundo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>,<br />

mas também <strong>de</strong> imaginação.”<br />

Manhattan primeiro, a Espanha<br />

<strong>de</strong>pois<br />

Há dois anos, graças à aclamação internacional<br />

do álbum “Alegranza”, do<br />

projecto El Guincho, a Espanha que<br />

consome pop e rock anglo-saxónico,<br />

flamenco ou a música ligeira das discotecas<br />

<strong>de</strong> pior fama, o chamado<br />

bakalou, começou a olhar para a sua<br />

NACHOALEGRE<br />

pop mais alternativa. A música <strong>de</strong> El<br />

Guincho é feita <strong>de</strong> cânticos dançantes,<br />

combinação <strong>de</strong> microrganismos<br />

resgatados à pop africana, a ladainhas<br />

tribalistas, ao calipso das Antilhas, ao<br />

dub jamaicano, ao tropicalismo brasileiro<br />

ou ao rock lúdico dos anos 60,<br />

numa toada que resulta hipnótica e<br />

<strong>de</strong>lirante.<br />

A Espanha não lhe prestava muita<br />

atenção, mas quando os mais influentes<br />

jornais americanos (do “Washington<br />

Post” ao “New York Times”) e sítios<br />

da Internet (Pitchfork) começaram<br />

a fazer peças sobre El Guincho,<br />

acordou. Com os Delorean aconteceu<br />

exactamente o mesmo. O “El País” <strong>de</strong><br />

16 <strong>de</strong> Abril escrevia sobre eles, a propósito<br />

<strong>de</strong> uma digressão recente pelos<br />

Estados Unidos, e titulava ironicamente<br />

o artigo com a frase “Primeiro<br />

conquistaremos Manhattan... e <strong>de</strong>pois<br />

a Espanha?”<br />

Para os espanhóis que, tal como<br />

Portugal, nunca tiveram gran<strong>de</strong> tradição<br />

<strong>de</strong> exportar cultura pop, o feito<br />

ainda está a ser digerido. “Sim, claro,<br />

que o interesse internacional é bom<br />

para o nosso reconhecimento em Espanha”,<br />

afirma Ekhi, sugerindo que<br />

a visibilida<strong>de</strong> nos EUA e na Europa se<br />

<strong>de</strong>ve a uma sonorida<strong>de</strong> diferente,<br />

“que não cabe na prateleira do indierock,<br />

mas também não é completamente<br />

estranha”, ao factor Internet<br />

e a uma série <strong>de</strong> remisturas (The xx,<br />

Franz Ferdinand, Cold Cave, Mystery<br />

Jets) que lhes permitiram apurar os<br />

dotes <strong>de</strong> produção, e expô-los a públicos<br />

que nunca <strong>de</strong>les tinham ouvido<br />

falar.<br />

Existe também um contexto internacional<br />

que ajuda a explicar a aceitação<br />

do grupo neste momento. Como<br />

escrevíamos no ano passado (em<br />

“Brisa <strong>de</strong> Verão”, 14 <strong>de</strong> Outubro), não<br />

se po<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> um movimento à escala<br />

global, nem sequer <strong>de</strong> um som<br />

agregado, mas há sensibilida<strong>de</strong>s comuns<br />

em grupos oriundos dos EUA<br />

(Dum Dum Girls, The Drums, Best<br />

Coast, Pearl Harbour ou Washed Out)<br />

ou da Suécia (Studio, JJ, Air France,<br />

The Though Alliance) que permitem<br />

falar da difusão <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> estar,<br />

entre o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> evasão e a utopia<br />

<strong>de</strong> um Verão intemporal.<br />

Aliás os títulos do álbum, “Subiza”,<br />

e <strong>de</strong> algumas canções (“Endless sunset”<br />

ou “Warmer places”), evocam<br />

um Verão que já lá vai. “O disco foi<br />

gravado no Verão, na povoação <strong>de</strong><br />

Subiza, na região <strong>de</strong> Navarra, e remete<br />

para esse período em que, entre o<br />

trabalho, nadávamos e fazíamos refeições<br />

em família”, recorda Ekhi<br />

Em Barcelona, não estão sós. Há<br />

uma série <strong>de</strong> outros nomes ( John Talabot,<br />

Si<strong>de</strong>chains, Requesters ou Extraperlo)<br />

com quem mantêm afinida<strong>de</strong>s<br />

criativas, algumas nascidas no<br />

clube Desparrame, on<strong>de</strong> nos últimos<br />

Os Delorean<br />

partilham com<br />

grupos oriundos<br />

dos EUA ou da Suécia<br />

uma sensilida<strong>de</strong><br />

e uma forma <strong>de</strong> estar,<br />

entre o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

evasão e a utopia <strong>de</strong><br />

um Verão intemporal<br />

tempos têm aprofundado os dotes<br />

como DJs, embora continuem a tocar<br />

num formato clássico <strong>de</strong> banda, com<br />

guitarra, teclas, baixo e bateria. “O<br />

som das canções ao vivo é muito similar<br />

aos discos, é imediatamente<br />

reconhecível, embora seja mais intenso”,<br />

nota Ekhi, reconhecendo que não<br />

está posta <strong>de</strong> parte a hipótese <strong>de</strong> se<br />

apresentarem noutros formatos.<br />

O que os Delorean <strong>de</strong>sconhecem,<br />

e os espanhóis em geral, é o que se<br />

passa em Portugal em termos <strong>de</strong> música.<br />

E o mesmo se po<strong>de</strong> dizer no sentido<br />

contrário. “Conheço os Buraka<br />

Som Sistema [foram 1º lugar do top<br />

<strong>de</strong> singles espanhol há meses], mas<br />

pouco mais”, admite Ekhi. “É muito<br />

estranho. Gosto imenso <strong>de</strong> Portugal,<br />

já estive aí por diversas vezes e não<br />

consigo explicar porque vivemos tão<br />

separados. É embaraçoso estarmos<br />

tão próximos e conhecermos tão pouco<br />

dos nossos países. Ainda por cima<br />

a língua não é assim tão diferente. E<br />

mesmo que fosse, a música é uma linguagem<br />

internacional.”<br />

A dos Delorean está aí. Uma pop<br />

ultra sintética que parece querer fixar<br />

instantâneos perfeitos da vida para<br />

os <strong>de</strong>volver em êxtase. Diz Ekhi: “O<br />

que gosto mais <strong>de</strong> fazer? Ler e estudar<br />

[está a doutorar-se em filosofia], mas<br />

não existe nada como a música. Faznos<br />

levitar.”<br />

Ver crítica <strong>de</strong> discos na pág. 52 e segs.<br />

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Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 15


ALEXANDRE NOBRE<br />

ções com o seu singular tratamento<br />

<strong>de</strong> “Povo que lavas no rio”, <strong>de</strong> Amália<br />

Rodrigues. “Embora não seja o único,<br />

A Naifa tem sido o projecto mais consistente,<br />

importante e revolucionário<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ste género”, sublinha.<br />

Para o radialista Henrique Amaro,<br />

as iniciativas revolucionárias e pioneiras<br />

d’A Naifa começam na própria<br />

estrutura: “Nunca, nem em Portugal,<br />

nem no resto do mundo, se tinha tocado<br />

fado com bateria”. “A própria<br />

banda teve <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r com ela própria<br />

como conjugar o timbre e as regras<br />

da guitarra portuguesa com uma<br />

secção rítmica rock e uma lírica muito<br />

própria”.<br />

Música<br />

“Voltem, por favor! Isto aqui ficou um<br />

ambiente subterrâneo <strong>de</strong>pois do vosso<br />

pequeno milagre: o pessoal passa<br />

os dias à espera do carteiro”. A mensagem,<br />

<strong>de</strong>ixada por um dos seguidores<br />

d’A Naifa no blogue do projecto,<br />

podia dar um livro. E <strong>de</strong>u: “Esta <strong>de</strong>pressão<br />

que me anima”, edição <strong>de</strong><br />

autor limitada a 500 exemplares, lançada<br />

no final do mês passado, documenta<br />

a primeira fase <strong>de</strong> um projecto<br />

que começou em 2004 e que, no ano<br />

passado, fez luto pela morte <strong>de</strong> um<br />

dos fundadores, João Aguar<strong>de</strong>la, vítima<br />

<strong>de</strong> cancro do estômago.<br />

“O João Aguar<strong>de</strong>la fez parte da última<br />

geração que, nos anos 80 e 90,<br />

apostou nas raízes portuguesas para<br />

as transformar em música com uma<br />

componente popular e rural muito<br />

forte”, recorda Miranda, vocalista dos<br />

O’queStrada. Em “3 minutos antes <strong>de</strong><br />

a maré encher”, documentário <strong>de</strong><br />

2006 que enriquece o DVD incluído<br />

no livro, Aguar<strong>de</strong>la admite fazer parte<br />

da última geração que viveu com<br />

uma música portuguesa ainda activa<br />

e presente no quotidiano nacional.<br />

Des<strong>de</strong> então, os portugueses voltaram<br />

a cantarolar música popular na<br />

lín-gua materna por via <strong>de</strong> projectos<br />

bem-sucedidos como os Deolinda ou<br />

os próprios O’queStrada. Ao olhar<br />

para trás, Miranda recorda que, no<br />

princípio do novo século, “havia um<br />

vazio <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> bandas”, e consi<strong>de</strong>ra<br />

que A Naifa “teve um papel muito<br />

importante no relançamento da<br />

poesia portuguesa em músicas <strong>de</strong><br />

abordagem pop”.<br />

“Ao conferir arranjos mais mo<strong>de</strong>rnos<br />

e originais, <strong>de</strong>ntro do fado, A Naifa<br />

veio abrir caminhos <strong>de</strong>ntro da música<br />

popular”, aponta Tó Trips, guitarrista<br />

dos Dead Combo. Juntamente<br />

como os O’queStrada e os Gaiteiros <strong>de</strong><br />

<strong>Lisboa</strong>, actuou em Novembro na “justa<br />

homenagem a Aguar<strong>de</strong>la”, noite<br />

que tem sido apontada como o momento<br />

em que A Naifa encontrou forças<br />

para continuar a rasgar.<br />

“Mais do que pesado, o ambiente<br />

era emotivo, e notei neles uma vonta<strong>de</strong><br />

incrível <strong>de</strong> continuar o projecto,<br />

o que me <strong>de</strong>ixou muito feliz”, lembra<br />

o jornalista António Pires, confesso<br />

A Naifa faz parte <strong>de</strong><br />

“uma linhagem muito<br />

nobre da música<br />

popular portuguesa<br />

que começou uma<br />

adaptação da<br />

electrónica ao fado.<br />

Tem sido<br />

[um] projecto<br />

revolucionário”<br />

António Pires<br />

admirador da banda. A Naifa, diz, faz<br />

parte <strong>de</strong> “uma linhagem muito nobre,<br />

rara e bastante original da música popular<br />

portuguesa que, nos anos 80,<br />

começou uma adaptação da electrónica<br />

ao fado”, continuando a fazer o<br />

caminho iniciado por António Varia-<br />

E agora, A Naifa?<br />

Depois do livro e da homenagem, A<br />

Naifa continua, agora sem Aguar<strong>de</strong>la.<br />

“Convém não esquecer que foram o<br />

João e o Luís [Varatojo] que tornaram<br />

este projecto uma realida<strong>de</strong>. É uma<br />

i<strong>de</strong>ia repartida que ficará sempre a<br />

per<strong>de</strong>r sem a capacida<strong>de</strong> criativa do<br />

João. Não po<strong>de</strong>mos ir por aquele cliché<br />

<strong>de</strong> não haver insubstituíveis”,<br />

nota Henrique Amaro.<br />

Na nova formação que chega à estrada<br />

hoje, com um concerto no Barreiro,<br />

o baixo passa a ser assumido<br />

por Sandra Baptista que, além <strong>de</strong> ter<br />

realizado o documentário e alguns<br />

vi<strong>de</strong>oclips sobre a banda, foi companheira<br />

<strong>de</strong> Aguar<strong>de</strong>la. “Acho que todas<br />

as coisas são o que são e po<strong>de</strong>m renovar-se.<br />

A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> está lá e ninguém<br />

melhor do que a Sandra po<strong>de</strong> relançar<br />

musical e espiritualmente A Naifa”,<br />

atenta Miranda.<br />

“Estou cheio <strong>de</strong> expectativas quanto<br />

a este novo alinhamento da banda.<br />

A nova secção rítmica po<strong>de</strong> trazer-nos<br />

muitas surpresas”, diz António Pires,<br />

que, tal como a vocalista dos<br />

O’queStrada, viu Baptista assumir o<br />

baixo no concerto <strong>de</strong> homenagem.<br />

Mas o entusiasmo <strong>de</strong>ve-se sobre<strong>tudo</strong><br />

à outra substituição, a <strong>de</strong> Paulo Martins<br />

por Samuel Palitos (ex-Sitiados e<br />

Censurados) no papel <strong>de</strong> baterista:<br />

“O Samuel colaborou várias vezes<br />

com eles e chegou a actuar numa festa<br />

do Avante [em 2008] a abarrotar.<br />

Sem querer tirar valor ao Paulo, que<br />

também é um óptimo baterista, o Samuel<br />

tem uma energia e uma atitu<strong>de</strong><br />

muito próprias que po<strong>de</strong>m levar a<br />

banda para outros caminhos”.<br />

A nova digressão d’A Naifa passa, à<br />

excepção do último concerto, marcado<br />

para o Castelo <strong>de</strong> São Jorge, em <strong>Lisboa</strong>,<br />

apenas por auditórios, o que não surpreen<strong>de</strong><br />

Pires: “É um projecto que<br />

resulta melhor em salas <strong>de</strong> teatro do<br />

que em festivais”. A viagem pelos mais<br />

diversos pontos do país começa logo,<br />

no Auditório <strong>Municipal</strong> Augusto Cabrita,<br />

e tem paragens previstas em cida<strong>de</strong>s<br />

como Cartaxo, Faro, Portalegre,<br />

Aveiro, Horta, Coimbra, Guimarães e<br />

Caldas da Rainha. Depois <strong>de</strong> um ano<br />

<strong>de</strong> luto, A Naifa foi ao amolador e promete<br />

voltar a cortar tradicionalismos<br />

musicais cristalizados no tempo.<br />

Ver agenda <strong>de</strong> concertos págs. 50 e segs.<br />

Esta Naifa<br />

que nos anima<br />

Um ano <strong>de</strong>pois do <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> João Aguar<strong>de</strong>la, A Naifa volta a <strong>de</strong>sferir novos golpes.<br />

Com um livro, “Esta <strong>de</strong>pressão que me anima”, viagem documental (e sentimental) aos<br />

primeiros anos da carreira, e uma digressão. O primeiro concerto é hoje. Luís Carlos Soares<br />

A digressão<br />

d’A Naifa<br />

começa hoje<br />

no Barreiro e<br />

termina em<br />

<strong>Lisboa</strong>, no<br />

Castelo <strong>de</strong> São<br />

Jorge<br />

16 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


A CINEMATECA PORTUGUESA APRESENTA<br />

em colaboração com o<br />

GABINETE EM PORTUGAL DO PARLAMENTO EUROPEU<br />

PRÉMIOS DO CINEMA EUROPEU - LUX<br />

Criado pelo Parlamento Europeu em 2007, por ocasião das comemorações dos<br />

50 anos do Tratado <strong>de</strong> Roma, o Prémio Lux tem na escolha do seu nome uma<br />

referência em latim à palavra “luz” e, simultaneamente, aos irmãos Lumière.<br />

A sua instituição representa assim uma homenagem do Parlamento Europeu<br />

ao cinema, procurando distinguir a produção cinematográfi ca europeia e a sua<br />

diversida<strong>de</strong> linguística, com o objectivo <strong>de</strong> promover o cinema na Europa e apoiar<br />

a difusão da produção cinematográfi ca europeia.<br />

10 Maio às 19:00 | Sala Dr. Félix Ribeiro<br />

BELLE TOUJOURS<br />

<strong>de</strong> Manoel <strong>de</strong> Oliveira<br />

Portugal/França, 2006<br />

70 min / legendado em português<br />

12 Maio às 19:00 | Sala Dr. Félix Ribeiro<br />

AUF DER ANDEREN SEITE<br />

Do Outro Lado<br />

<strong>de</strong> Fatih Akin<br />

Alemanha, Turquia, 2007<br />

122 min / legendado em português<br />

12 Maio às 22:00 | Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

WELCOME<br />

Welcome – Bem Vindo<br />

<strong>de</strong> Philippe Lioret<br />

França, 2009<br />

110 min / legendado em português<br />

14 Maio às 21:30 | Sala Dr. Félix Ribeiro<br />

LE SILENCE DE LORNA<br />

O Silêncio <strong>de</strong> Lorna<br />

<strong>de</strong> Luc e Jean-Pierre Dar<strong>de</strong>nne<br />

Bélgica, 2008<br />

105 min / legendado em português<br />

AUF DER ANDEREN SEITE <strong>de</strong> Fatih Akin, Alemanha, Turquia, 2007<br />

Rua Barata Salgueiro, 39 em <strong>Lisboa</strong><br />

www.cinemateca.pt


Música<br />

Quatro americanos em Londres, seres<br />

estranhos. As botas <strong>de</strong> salto alto e as<br />

roupas brilhantes, a exuberância muito<br />

estilizada, as boas maneiras dos<br />

artistas e uma androginia cuidadosamente<br />

encenada. Quatro americanos<br />

em Londres, ignorados no seu próprio<br />

país, sozinhos em estúdio. Sem<br />

produtor, sem <strong>de</strong>alers, fotógrafos ou<br />

managers, a recriar um submundo<br />

muito particular. Iggy And The Stooges,<br />

ano 1973, o <strong>de</strong> “Raw Power”. Álbum<br />

mítico da história do rock’n’roll,<br />

consi<strong>de</strong>rado o rastilho para a explosão<br />

cultural do punk, três anos <strong>de</strong>pois,<br />

foi agora reeditado em tratamento<br />

“<strong>de</strong>luxe”.<br />

Cinco americanos na Alemanha.<br />

Ex-soldados que, terminado o serviço<br />

militar, escolheram não voltar. “Po<strong>de</strong>m<br />

fazer bom dinheiro a tocar por<br />

aqui”. Quatro músicos que percorrem<br />

a Alemanha a tocar Chuck Berry antes<br />

<strong>de</strong> se transformarem numa outra coisa.<br />

Alienígenas, completamente alienígenas.<br />

Capas negras, atadas em nó<br />

branco sobre o peito, camisas igualmente<br />

negras, cabeça revelando a<br />

tonsura que, se dúvidas houvesse,<br />

provava o seguinte: isto era muito sério,<br />

isto não eram cinco estrangeiros<br />

a quererem <strong>de</strong>stacar-se com um truque<br />

<strong>de</strong> imagem. “Isto” eram os Monks,<br />

ano 1965, o do seu único álbum. “Vocês<br />

são o som do futuro”, disseramlhes<br />

dois alemães que os compreen<strong>de</strong>ram.<br />

O mundo <strong>de</strong>morou a fazê-lo.<br />

“Black Monk Time”, reeditado há alguns<br />

meses, é um dos discos mais<br />

singulares da história da música popular<br />

urbana – algo que o mundo só<br />

perceberia <strong>de</strong>vidamente quando,<br />

mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong>pois, explodiu o<br />

punk.<br />

Nos Monks e nos Stooges, a préhistória<br />

<strong>de</strong> uma história. A do punk<br />

como afronta estética e violento abanão<br />

nos valores do politicamente correcto,<br />

como manifestação <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong><br />

individual, visceral e auto<strong>de</strong>strutiva.<br />

Não é preciso avançar até 1976<br />

para sentir o pulsar <strong>de</strong>ssa vertigem.<br />

Ele está ali, nos Monks, provocadores<br />

que não <strong>de</strong>ixaram nada ao acaso –<br />

eram músicos e artistas dadaístas,<br />

pensamento e acção. Ele está nos<br />

Stooges <strong>de</strong> Iggy Pop – que eram uma<br />

pulsão física incontrolável, corpo e<br />

impulso.<br />

O som do futuro<br />

Não se chamavam ainda Monks. Os 5<br />

Torquays pareciam simplesmente<br />

uma banda beat inspirada pela British<br />

Invasion, mas havia algo que os distinguia.<br />

Nisso repararam Walter Niemann<br />

e Karl Remy, o primeiro estudante<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sign, o segundo <strong>de</strong> arte.<br />

Nos Monks e nos<br />

Stooges, a pré-história<br />

<strong>de</strong> uma história.<br />

A do punk como<br />

violento abanão<br />

nos valores do<br />

politicamente<br />

correcto e<br />

manifestação<br />

<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, visceral<br />

e auto<strong>de</strong>strutiva.<br />

Não é preciso avançar<br />

até 1976 para sentir o<br />

pulsar <strong>de</strong>sta vertigem<br />

Ouviram como aqueles ex-soldados<br />

americanos corroíam as canções com<br />

camadas <strong>de</strong> feedback, como o público<br />

interrompia a dança e os donos<br />

dos clubes exasperavam, culpando o<br />

equipamento, enquanto a banda<br />

apreciava o cenário. No final <strong>de</strong> um<br />

concerto, Walter e Karl falaram com<br />

eles. “Vocês são o som do futuro”.<br />

Eis então os 5 Torquays a transformar-se,<br />

naquele hoje <strong>de</strong> 1965, no dia<br />

<strong>de</strong> amanhã. Walter e Karl assumiram<br />

o lugar <strong>de</strong> managers e ajudaram a dar<br />

corpo às transformações que a música<br />

sofria (soubesse disto e o recentemente<br />

falecido Malcolm McLaren<br />

teria estado em Hamburgo em 1965,<br />

tirando notas). Nasciam os Monks.<br />

Os cinco membros da banda cortaram<br />

o cabelo <strong>de</strong> acordo com o nome<br />

e passaram a vestir-se como tal, 24<br />

horas sobre 24. Faziam-se acompanhar<br />

a maior parte do tempo por um<br />

fotógrafo, Charles Wilt (curiosamente,<br />

seria mais tar<strong>de</strong> fotógrafo oficial<br />

d a Presidência Reagan), que tinha<br />

como missão retratar todos os passos<br />

do quotidiano da banda. Actuavam<br />

todos os dias (seis horas nos dias <strong>de</strong><br />

semana, oito aos fins-<strong>de</strong>-semana) e<br />

viviam em quartos ou caves dos prédios<br />

dos clubes que os contratavam.<br />

Deixaram <strong>de</strong> existir Gary Burger, Larry<br />

Clark, Dave Day, Roger Johnston e<br />

Eddie Shaw. Existiam apenas os<br />

Monks, os anti-Beatles: a banda para<br />

o futuro que não seria bonito.<br />

A música acompanhou a mudança.<br />

“Livrámo-nos da melodia. Tudo era<br />

orientado para o ritmo. Bam, bam,<br />

bam. Concentrámo-nos no ‘over-beat’”,<br />

contou Eddie Shaw, baixista <strong>de</strong><br />

“fuzz” diabólico. Dave Day, guitarrista,<br />

trocou a guitarra por um banjo<br />

electrificado. Roger Johnston, ao perceber<br />

que os címbalos da bateria não<br />

estavam afinados com o feedback,<br />

dispensou-os – o som tornou-se seco,<br />

marcial. E Gary Burger, o vocalista,<br />

encarnou o traje que usava <strong>de</strong> forma<br />

perversa. Vejamos.<br />

“Éramos <strong>de</strong>masiado estranhos e<br />

indiscretos para que as pessoas se<br />

metessem connosco [na rua]”, recordou<br />

Eddie Shaw há alguns anos. “Os<br />

estranhos olhavam-nos com perplexida<strong>de</strong><br />

porque as nossas acções não<br />

reflectiam o traje. Era andrógino <strong>de</strong><br />

uma forma bizarra e quase artificial”.<br />

Gary Burger, que dava voz à congregação,<br />

tornou-se vocalista estri<strong>de</strong>nte,<br />

à beira <strong>de</strong> <strong>de</strong>mência, e as letras transformaram<br />

canções como “Monk time”<br />

(“Why do you kill all those kids<br />

in Vietnam?”), “Shut up” ou “Complication”<br />

em campo <strong>de</strong> batalha.<br />

Na reedição <strong>de</strong> “Black Monk Time”,<br />

Jochen Irmler, dos alemães Faust, pioneiros<br />

da música industrial, do noise,<br />

do rock como performance <strong>de</strong> vanguarda,<br />

resume <strong>tudo</strong> <strong>de</strong>sta forma:<br />

“Isto era dizer NÃO, uma nova liberda<strong>de</strong>,<br />

um NÃO positivo. Musicalmente<br />

era como um novo início.”<br />

Alienígenas em Inglaterra<br />

Oito anos <strong>de</strong>pois, em 1973, Iggy Pop<br />

aterrava em Londres com o seu novo<br />

parceiro musical, o guitarrista James<br />

Williamson. Resgatado por David Bowie,<br />

preparava-se para dar início a<br />

uma carreira a solo. Depois da edição<br />

do histórico segundo álbum, “Funhouse”,<br />

em 1970, os Stooges, afogados<br />

em dívidas e heroína, sem instrumentos<br />

(vendidos) ou inspiração (<strong>de</strong>masiado<br />

pedrados), colapsaram. Iggy,<br />

salvo por um fã inglês a caminho do<br />

estrelato, estava pronto para recomeçar.<br />

Longe <strong>de</strong> casa, da pequena e boémia<br />

cida<strong>de</strong> estudantil <strong>de</strong> Ann Arbor,<br />

às portas <strong>de</strong> Detroit, tinha uma vaga<br />

i<strong>de</strong>ia do que faria: ainda nos EUA,<br />

Williamson mostrara-lhe o riff <strong>de</strong> uma<br />

nova canção, negra e insinuante, qual<br />

dança sexual e ameaçadora. Era o<br />

embrião <strong>de</strong> “Penetration”, uma das<br />

canções chave <strong>de</strong> “Raw Power”, o álbum<br />

que, à chegada a Londres, Iggy<br />

não sabia ainda que iria gravar.<br />

Se os Monks eram seres alienígenas<br />

Regresso<br />

Iggy Pop, um<br />

“espinho<br />

encravado na<br />

or<strong>de</strong>m<br />

estabelecida”<br />

ao futuro do punk<br />

Quatro americanos em Londres, estranhos num mundo que lhes era estranho, a fazerem a<br />

única coisa que sabiam: The Stooges e “Raw Power”, 1973. Cinco americanos na Alemanha,<br />

capas negras e cabeça revelando uma tonsura: The Monks e “Black Monk Time”, 1965. Agora<br />

que estão reeditados, voltemos ao punk, quando ainda não tinha nome. Mário Lopes<br />

18 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


passeando pela Alemanha com as suas<br />

capas e as suas tonsuras, Iggy Pop<br />

não o seria menos. Basta ver as fotos<br />

da altura: ele em parque londrino no<br />

seu blusão <strong>de</strong> cabedal com leopardo<br />

estampado, <strong>de</strong> tronco nu e calças justíssimas<br />

<strong>de</strong> cor berrante.<br />

Na América, os Stooges, confrontantes<br />

e excessivos, alimentavam-se<br />

do ódio e do terror que causavam.<br />

Como <strong>de</strong>screveu o crítico Lester Bangs,<br />

pareciam “ter construído uma<br />

carreira ao não ultrapassar os seus<br />

traumas <strong>de</strong> adolescência”. “São fascinantes<br />

e autênticos, a apoteose <strong>de</strong><br />

todos os pesa<strong>de</strong>los dos pais”.<br />

Saídos da Detroit <strong>de</strong> MC5 ou Mitch<br />

Ry<strong>de</strong>r, não pertenciam realmente a<br />

nenhuma cena. Aguentavam sós as<br />

garrafas atiradas pelo público, o ar<br />

enojado dos que viam Iggy mutilar-se<br />

em palco e saltar sobre a audiência<br />

<strong>de</strong> tronco nu e ensanguentado (ou<br />

coberto <strong>de</strong> manteiga <strong>de</strong> amendoim).<br />

Em Londres, eram respeitados, mas<br />

o fascínio que suscitavam nascia, precisamente,<br />

da sua absoluta singularida<strong>de</strong>.<br />

Por isso Iggy e James Williamson<br />

não conseguiram encontrar uma<br />

secção rítmica que os acompanhasse,<br />

não encontraram quem pu<strong>de</strong>sse entrar<br />

realmente no gangue – “estes gajos<br />

usam roupas estranhas”, recorda<br />

o guitarrista no DVD que acompanha<br />

a reedição <strong>de</strong> “Raw Power”.<br />

Num ápice, a estreia a solo <strong>de</strong> Iggy<br />

Pop transforma-se num novo álbum<br />

dos Stooges. Os irmãos Ron (guitarrista)<br />

e Scott Asheton (baterista) são<br />

convidados a juntar-se-lhe em Londres<br />

e todas as peças se conjugam.<br />

Vivia-se a euforia do glam-rock,<br />

com Marc Bolan, David Bowie ou Mott<br />

The Hoople, mas Iggy Pop, olhando<br />

além da maquilhagem e da roupa exuberante,<br />

ouvia Chuck Berry e Little<br />

Richard. Como recordou recentemente<br />

à “Clash Magazine”: “Pegámos em<br />

Chuck Berry e Little Richard e filtrámo-los<br />

através daquilo que somos”.<br />

O segredo, como se perceberá, está<br />

naquele “aquilo que somos”: o Iggy<br />

que lia o “Times” sob o sol inglês,<br />

imaginando como ser “um espinho<br />

encravado na or<strong>de</strong>m estabelecida”,<br />

e o grupo que o acompanhava, “sistematicamente<br />

preguiçoso, pouco<br />

comunicativo, irrealista, <strong>de</strong>sagradável<br />

– para toda a gente – e absolutamente<br />

intransigente”.<br />

No estúdio em que ninguém entrava,<br />

os Stooges gravaram um dos álbuns<br />

mais virulentos, selvagens e<br />

provocadores que a história da música<br />

popular conheceu: “gimme danger,<br />

little stranger, so I can feel your<br />

disease”.<br />

Não há fim para esta história<br />

Na Alemanha, os Monks estavam em<br />

casa. Os estudantes <strong>de</strong> arte adoravamnos,<br />

os habitués dos clubes das zonas<br />

boémias i<strong>de</strong>m. Eram, dizem, os preferidos<br />

das prostitutas dos “Red Light<br />

District” <strong>de</strong> Hamburgo e da lendária<br />

Oma, velhota que, anos antes, introduzira<br />

os Beatles às maravilhas do<br />

“speed”. Tudo isto, porém, era pouco.<br />

Cruzaram-se com Jimi Hendrix,<br />

os Kinks ou os Troggs, mas “Black<br />

Monk Time” teve edição vedada nos<br />

EUA e em Inglaterra.<br />

Demasiado estranhos e ambiciosos<br />

para o seu tempo, implodiriam pouco<br />

<strong>de</strong>pois. Nas vésperas <strong>de</strong> uma digressão<br />

pelo Vietname – ouvi-los cantar<br />

“My brother died in Vietnam” em Saigão<br />

seria a subversão suprema -, Gary<br />

Burger recebeu um postal <strong>de</strong> Larry<br />

Clark. Voltara aos EUA e <strong>de</strong>spedia-se<br />

dos Monks. O fim <strong>de</strong> uma história<br />

que, na verda<strong>de</strong>, não acabou: Mark<br />

E. Smith viria a <strong>de</strong>stacá-los como uma<br />

das suas maiores influências, Colin<br />

Greenwood exulta, “It’s always Monk<br />

time!” e os Black Lips dizem que o seu<br />

mundo mudou <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> os ouvirem.<br />

Quanto aos Stooges, <strong>tudo</strong> acabou<br />

como tinha começado. Praticamente<br />

ninguém comprou “Raw Power”. A<br />

agência <strong>de</strong> David Bowie abandonouos,<br />

a banda regressou à América e,<br />

ali, enquanto se sucediam os concertos,<br />

a espiral <strong>de</strong> excessos rapidamente<br />

se tornou incontrolável. A 9 <strong>de</strong><br />

Fevereiro <strong>de</strong> 1974, a história da banda<br />

acabava on<strong>de</strong> começara. O último<br />

concerto teve lugar no Michigan Theater,<br />

em Detroit.<br />

Dois anos <strong>de</strong>pois, o punk tomava<br />

conta <strong>de</strong> Inglaterra e alastrava mundo<br />

fora. The Clash, The Damned, Sex<br />

Pistols. Todos eles <strong>de</strong>stacaram um<br />

album específico como influência<br />

fundamental. Esse mesmo: “Raw Power”.<br />

Ver críticas <strong>de</strong> discos na pág. 52 e segs.<br />

Os Monks<br />

foram gran<strong>de</strong>s<br />

na Alemanha,<br />

e <strong>de</strong>pois nada:<br />

acabaram nas<br />

vésperas <strong>de</strong><br />

uma<br />

digressão ao<br />

Vietname que<br />

seria a<br />

suprema<br />

subversão<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 19


Depois <strong>de</strong> ter abraçado a vanguarda, Cornelius Car<strong>de</strong>w revoltou-se contra o elitismo e virou à esquerda, m<br />

primeiros anos continuou a inspirar artistas <strong>de</strong> todos os quadrantes, <strong>de</strong> Brian Eno a Christian Wolff. Uma e<br />

Car<strong>de</strong>w e a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escrita”, reconstitui uma aventura que foi musical, mas também p<br />

Cornelius Car<strong>de</strong>w, o para<br />

Cornelius Car<strong>de</strong>w (1936-1981) é uma<br />

das personalida<strong>de</strong>s mais paradoxais<br />

da música do século XX, e o seu percurso<br />

criativo inevitavelmente suscita<br />

reações contraditórias. Ao renegar a<br />

vanguarda dos anos 60, da qual tinha<br />

sido um dos membros, em favor <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ais políticos comunistas e <strong>de</strong> um<br />

estilo “populista” para as massas, passou<br />

a ser olhado <strong>de</strong> soslaio. Mas o experimentalismo<br />

radical que praticou<br />

nos anos anteriores, a relação com as<br />

artes gráficas e com outras formas <strong>de</strong><br />

expressão, bem como o questionamento<br />

do próprio acto <strong>de</strong> fazer música<br />

e da formação musical convencional,<br />

levaram a que se tornasse um figura<br />

reverenciada por outros sectores<br />

da criação artística.<br />

É sintomático que a herança <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>w<br />

seja hoje sobre<strong>tudo</strong> reclamada<br />

por compositores como Gavin Bryars,<br />

Brian Eno, Michael Nyman, Fre<strong>de</strong>ric<br />

Rzewski ou Christian Wolff, que se<br />

posicionam numa região <strong>de</strong> fronteira<br />

em relação ao núcleo duro da música<br />

erudita. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do que<br />

foi feito <strong>de</strong>le, é um percurso que merece<br />

reflexão - e a exposição “Cornelius<br />

Car<strong>de</strong>w e a liberda<strong>de</strong> da escuta”<br />

que a Culturgest-Porto inaugura amanhã,<br />

acompanhada por um programa<br />

<strong>de</strong> concertos, performances e conversas<br />

com curadoria <strong>de</strong> Dean Inkster,<br />

Jean-Jacques Palix, Lore Gablier e Pierre<br />

Bal-Blanc, é uma excelente oportunida<strong>de</strong><br />

para o fazer.<br />

A formação inicial <strong>de</strong> Cornelius<br />

Car<strong>de</strong>w foi bastante convencional e<br />

típica <strong>de</strong> um músico britânico: recebeu<br />

treino musical no Coro da Catedral<br />

<strong>de</strong> Canterbury (1943-50) e prosseguiu<br />

<strong>de</strong>pois os es<strong>tudo</strong>s na Royal<br />

Aca<strong>de</strong>my of Music (1953-57). Uma bolsa<br />

permitiu-lhe transferir-se entretanto<br />

para Colónia a fim <strong>de</strong> explorar<br />

o universo da música electrónica,<br />

tornando-se assistente <strong>de</strong> Stockhausen<br />

entre 1958 e 1960. Quando regressou<br />

a Londres, em 1961, fez um curso<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sign gráfico e em 1967 tornou-se<br />

professor <strong>de</strong> composição da Royal<br />

Aca<strong>de</strong>my of Music.<br />

Enquanto trabalhou com Stockhausen,<br />

Car<strong>de</strong>w tomou contacto com John<br />

Cage e ficou fascinado pelas suas<br />

experiências no campo da música aleatória.<br />

Era reconhecido como uma das<br />

figuras <strong>de</strong> vanguarda na cena musical<br />

inglesa, mas pouco a pouco começou<br />

a <strong>de</strong>sconfiar do “elitismo” da música<br />

contemporânea e a questionar a valida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> uma educação musical formal:<br />

Car<strong>de</strong>w achava que as respostas<br />

mais criativas vinham <strong>de</strong> intérpretes<br />

<strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> concepções musicais<br />

prévias.<br />

Começou então a conceber partituras<br />

usando notação gráfica, como suce<strong>de</strong><br />

nas 193 páginas <strong>de</strong> “Treatise”<br />

(1967), que po<strong>de</strong>m ser vistas também<br />

como uma obra visual abstracta. A<br />

interpretação musical era mais problemática,<br />

uma vez que não se indicava<br />

a ninguém o que tinha <strong>de</strong> tocar.<br />

“Cada pessoa terá <strong>de</strong> encontrar o caminho<br />

por si própria, lendo a partitura”,<br />

escreveu o compositor.<br />

Outras obras, como “The Tiger’s<br />

Mind” (1967), usam instruções verbais<br />

ou combinações <strong>de</strong>stas duas técnicas<br />

Música<br />

A Scratch<br />

Orchestra<br />

<strong>de</strong> Cornelius<br />

Car<strong>de</strong>w<br />

incluía<br />

músicos e<br />

não-músicos:<br />

algumas das<br />

suas peças<br />

eram<br />

verda<strong>de</strong>iramente<br />

conceptuais,<br />

no sentido<br />

em que não<br />

podiam<br />

ser executadas<br />

com notação musical muito<br />

simples, como suce<strong>de</strong> em<br />

“The Great Learning”, composição<br />

escrita entre 1968 e<br />

1971 a partir das sete passagens<br />

iniciais do “Ta Hio”, o<br />

primeiro dos quatro livros<br />

que formam o conjunto clássico<br />

<strong>de</strong> pensamentos morais<br />

atribuídos a Confúcio (ver<br />

caixa). A diversida<strong>de</strong> das técnicas<br />

utilizadas nesta obra<br />

resume praticamente todas<br />

as tentativas <strong>de</strong> rejuvenescer<br />

a prática musical após o <strong>de</strong>clínio<br />

do serialismo enquanto<br />

forma musical predominante,<br />

no período subsequente ao<br />

pós-guerra.<br />

Da liberda<strong>de</strong> à ditadura<br />

A reflexão política <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>w<br />

sobre o estatuto da produção<br />

e da recepção musicais levaram-no<br />

a instigar uma das mais<br />

importantes tentativas <strong>de</strong> reivindicação<br />

<strong>de</strong>mocrática da cultura<br />

<strong>de</strong> vanguarda através da<br />

criação da Scratch Orchestra.<br />

Nascido a partir das aulas que o<br />

compositor leccionava, em 1968,<br />

no Morley College (um colégio<br />

<strong>de</strong> educação para adultos no Sul<br />

<strong>de</strong> Londres), este colectivo questionava<br />

as limitações sociais da<br />

Car<strong>de</strong>w trabalhou<br />

com Stockhausen<br />

e ficou fascinado<br />

pelas experiências<br />

<strong>de</strong> Cage, mas pouco<br />

a pouco começou<br />

a <strong>de</strong>sconfiar<br />

do “elitismo”<br />

da música<br />

contemporânea:<br />

quanto menos<br />

formação musical<br />

prévia melhor<br />

KEITH ROWE<br />

A conversão <strong>de</strong> Cornelius<br />

Car<strong>de</strong>w (<strong>de</strong> pé) ao maoísmo<br />

e aos princípios da Revolução<br />

Cultural levou-o a rejeitar<br />

o idioma mais complexo<br />

e avançado das suas<br />

obras anteriores<br />

20 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


, mas o radicalismo experimental dos<br />

a exposição na Culturgest-Porto, “Cornelius<br />

política. Cristina Fernan<strong>de</strong>s<br />

adoxal<br />

arte e da música como domínios <strong>de</strong><br />

conhecimento e experiência especializados,<br />

combinando músicos e nãomúsicos.<br />

“Estas pessoas po<strong>de</strong>m ser<br />

artistas visuais, po<strong>de</strong>m ser pessoas<br />

interessadas em teatro, po<strong>de</strong>m ser<br />

empregados <strong>de</strong> escritório perfeitamente<br />

<strong>normais</strong>, ou estudantes, ou o<br />

que quer que seja. Não têm necessariamente<br />

formação para tocar um<br />

instrumento. Alguns <strong>de</strong>les entregavam-se<br />

a activida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> diversos tipos,<br />

não produzindo necessariamente<br />

som”, explicou mais tar<strong>de</strong> Car<strong>de</strong>w<br />

numa entrevista à BBC. Algumas das<br />

activida<strong>de</strong>s da orquestra “incluíam<br />

tocar instrumentos convencionais,<br />

como saxofones, ou flautas ou o que<br />

quer que fosse”. Outras “envolviam<br />

simplesmente fazer movimentos com<br />

a mão ou arranjar um lenço, activida<strong>de</strong>s<br />

que não produziam necessariamente<br />

som”, acrescentou o compositor<br />

na mesma ocasião.<br />

O repertório da Scractch Orchestra<br />

incluía vários tipos <strong>de</strong> peças, “rituais<br />

<strong>de</strong> improvisação”, novas composições<br />

dos membros da orquestra ou paráfrases<br />

basedas em “clássicos populares”.<br />

Em 1972, Car<strong>de</strong>w publicou uma<br />

antologia <strong>de</strong> peças dos 15 membros<br />

da orquestra. Muito poucas empregavam<br />

notação musical <strong>de</strong>finida no sentido<br />

convencional, sendo na sua maioria<br />

<strong>de</strong>senhos ou instruções verbais. O<br />

livro culmina com a famosa lista das<br />

“1001 activida<strong>de</strong>s dos membros da<br />

Scratch Orchestra”, muitas <strong>de</strong>las apenas<br />

conceptuais, no sentido em que<br />

po<strong>de</strong>m ser imaginadas mas não concretizadas<br />

literalmente.<br />

O trabalho <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>w com a Scratch<br />

Orchestra acabaria por ter um forte<br />

impacto nas suas perspectivas musicais<br />

e políticas. Foi mais ou menos<br />

nessa época que se converteu num<br />

comunista militante e rejeitou <strong>de</strong>finitivamente<br />

o idioma musical mais complexo<br />

e avançado das suas obras anteriores.<br />

Na perspectiva da Revolução<br />

Cultural chinesa <strong>de</strong> Mao Tsé-Tung, via<br />

essas técnicas como “<strong>de</strong>svios burgueses”<br />

e consi<strong>de</strong>rava-as inapropriadas<br />

para “as lutas vitais das classes oprimidas”,<br />

conforme escreveu no Prefácio<br />

do seu “Álbum para Piano” (1973).<br />

Voltou-se então para um estilo simplista<br />

baseado na tonalida<strong>de</strong> tradicional,<br />

escrevendo canções <strong>de</strong> intervenção<br />

para as massas e peças <strong>de</strong> concerto<br />

baseadas em melodias populares<br />

com fortes conotações políticas. Em<br />

1974, publicou “Stockhausen serve o<br />

imperialismo”, on<strong>de</strong> faz sarcásticas<br />

críticas à vanguarda e à cultura musical<br />

dominante: “Actualmente um concerto<br />

<strong>de</strong> Cage po<strong>de</strong> ser um evento<br />

social (...). O vazio <strong>de</strong> Cage não contradiz<br />

a audiência burguesa que está<br />

confiante na sua habilida<strong>de</strong> para cultivar<br />

o gosto por virtualmente nada”,<br />

escreveu. Mas algumas das suas últimas<br />

obras têm uma escrita bastantes<br />

virtuosística e requerem intérpretes<br />

hábeis, como por exemplo “Boolavogue”,<br />

uma composição para dois pianos<br />

que ficou inacabada quando o<br />

compositor faleceu, em 1981.<br />

A recuperação do legado <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>w,<br />

e a reflexão sobre a dimensão<br />

política do seu percurso, tiveram<br />

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PETER BRÖTZMANN saxofone, clarinete<br />

JOHANNES BAUER trombone<br />

JEB BISHOP trombone<br />

MATS GUSTAFSSON saxofones<br />

PER-ÂKE HOLMLANDER tuba<br />

KENT KESSLER contrabaixo<br />

FRED LONBERG-HOLM violoncelo<br />

JOE MCPHEE trompete<br />

PAAL NILSSEN-LOVE bateria<br />

KEN VANDERMARK saxofone, clarinete<br />

MICHAEL ZERANG bateria<br />

Dentre os ensembles criados pelo músico<br />

alemão Peter Brötzmann, Chicago Tentet é<br />

o mais reconhecido. Formado em 1997, reúne<br />

improvisadores <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relevo na cena<br />

<strong>de</strong> Chicago com alguns dos seus congéneres<br />

europeus e tem tocado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então em<br />

digressão pelos EUA e Europa. A contribuição<br />

dos seus membros já não passa pelas<br />

composições originais, dado que nos últimos<br />

cinco anos o grupo passou a privilegiar a<br />

improvisação total. A musicalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada<br />

elemento é explorada ao limite e <strong>de</strong> forma<br />

completamente espontânea.<br />

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Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 21


Escola<strong>de</strong>Mulheres<br />

oficina<strong>de</strong>teatro<br />

um novo impulso a partir <strong>de</strong> 2006,<br />

ano do 70º aniversário do seu nascimento.<br />

As interpretações da sua obra<br />

tornaram-se mais regulares e foi publicada<br />

nesse ano uma antologia dos<br />

seus escritos, “Cornelius Car<strong>de</strong>w<br />

(1936-1981): A Rea<strong>de</strong>r”, seguida em<br />

2008 pela publicação <strong>de</strong> uma extensa<br />

biografia, “Cornelius Car<strong>de</strong>w (1936-<br />

1981): A Life Unfinished”, escrita pelo<br />

pianista (e ex-membro da Scratch Orchestra)<br />

John Tilbury, que também<br />

estará presente no ciclo que se realiza<br />

no Porto.<br />

Figura controversa, Car<strong>de</strong>w continua<br />

a colocar <strong>de</strong>safios aos músicos e<br />

não músicos e a fazer-nos reflectir. A<br />

“liberda<strong>de</strong> da escuta” não po<strong>de</strong> ser<br />

uma nova ditadura.<br />

Ver agenda <strong>de</strong> exposições na pág. 39 e<br />

segs.<br />

No seu mais<br />

célebre<br />

ensaio,<br />

“Stockhausen<br />

serve o<br />

imperialismo”<br />

(1974),<br />

Car<strong>de</strong>w<br />

contestou a<br />

transformação<br />

da<br />

música <strong>de</strong><br />

vanguarda<br />

num acontecimento<br />

social<br />

para servir<br />

audiências<br />

burguesas<br />

“If the root be in confusion, nothing will<br />

be well governed. The solid cannot be<br />

swept away as trivial, nor can trash be<br />

established as solid. It just doesn’t happen.<br />

Take not cliff for morass and treacherous<br />

bramble.”<br />

(“Se a raiz vive na confusão, nada será<br />

bem governado. O sólido não po<strong>de</strong><br />

ser varrido enquanto trivial, nem o<br />

lixo ser consi<strong>de</strong>rado como sólido. Isso<br />

simplesmente não acontece. Não subas<br />

à falésia pelo caminho do pântano e dos<br />

traiçoeiros arbustos espinhosos.”)<br />

Parágrafo sete <strong>de</strong> “The Great Learning”,<br />

<strong>de</strong> Confúcio e discípulos, séculos V-II a.C.<br />

Traduzido por Ezra Pound em<br />

1928, “The Great Learning”, texto<br />

escrito por Confúcio e pelos seus<br />

discípulos entre os séculos V e<br />

II a.C., é também o título <strong>de</strong> um<br />

dos mais significativos trabalhos<br />

experimentais <strong>de</strong> Cornelius<br />

Car<strong>de</strong>w, tendo sido composto<br />

numa época <strong>de</strong> revoluções, entre<br />

1968 e 1971. O “Parágrafo 7”, para<br />

um número in<strong>de</strong>terminado <strong>de</strong><br />

vozes amadoras, será interpretado<br />

amanhã, a partir das 16h30, na<br />

Culturgest-Porto, na abertura da<br />

exposição itinerante <strong>de</strong>dicada<br />

ao compositor inglês, “Cornelius<br />

Car<strong>de</strong>w e a liberda<strong>de</strong> da escuta”,<br />

cujos comissários dirigirão o coro.<br />

Como se lê nas notas incluídas no<br />

programa da “performance”, as<br />

instruções verbais que constituem<br />

a partitura “não exigem<br />

experiência musical prévia e são<br />

acessíveis a qualquer grupo <strong>de</strong><br />

pessoas que queira interpretá-las.”<br />

A revolução musical <strong>de</strong><br />

Cornelius Car<strong>de</strong>w encontra um<br />

paralelo naquela que Joseph<br />

Beuys tentou realizar no contexto<br />

das artes plásticas. Para o<br />

compositor britânico, qualquer<br />

pessoa podia interpretar algumas<br />

das suas partituras, enquanto o<br />

mote do artista alemão era “cada<br />

homem, um artista” – em pano<br />

<strong>de</strong> fundo po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>tectar-se as<br />

influências quer <strong>de</strong> John Cage,<br />

quer do movimento Fluxus.<br />

Ambos tiveram igualmente uma<br />

consi<strong>de</strong>rável activida<strong>de</strong> política,<br />

procurando assim prolongar as<br />

suas activida<strong>de</strong>s num campo<br />

social mais alargado. Car<strong>de</strong>w,<br />

para além <strong>de</strong> ter ministrado a<br />

ca<strong>de</strong>ira “Songs for Our Society”,<br />

no Goldsmiths, em Londres, foi<br />

um dos fundadores do Partido<br />

Comunista Revolucionário da<br />

Grã-Bretanha, <strong>de</strong> tendência<br />

marxista-leninista; e Beuys, na V<br />

Documenta <strong>de</strong> Kassel, em 1972,<br />

apresentou o “gabinete para a<br />

O gran<strong>de</strong> ensinamento<br />

A exposição proposta<br />

pela Culturgest<br />

po<strong>de</strong> ser mais um<br />

momento do <strong>de</strong>bate<br />

acerca das relações,<br />

nem sempre claras,<br />

entre a arte e a<br />

política<br />

<strong>de</strong>mocracia directa” – mais tar<strong>de</strong><br />

veio a estar na origem do partido<br />

alemão Os Ver<strong>de</strong>s.<br />

A China, e nomeadamente o<br />

arco que vai <strong>de</strong> Confúcio a Mao,<br />

foi o horizonte para o qual Car<strong>de</strong>w<br />

olhou com mais insistência na<br />

fase política da sua activida<strong>de</strong><br />

enquanto compositor. Segundo<br />

Brian Dennis, a partir do segundo<br />

dos sete parágrafos <strong>de</strong> “The<br />

Great Learning”, <strong>de</strong>tecta-se o<br />

envolvimento e a influência da<br />

Scratch Orchestra, nomeadamente<br />

nas “implicações sociais” da obra,<br />

sobre<strong>tudo</strong> ao mudar-se a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />

“cada um reagir à sua maneira”,<br />

formulada por Cage, pelo<br />

princípio <strong>de</strong> “cada um apren<strong>de</strong>r<br />

à sua maneira” – o “trabalho é<br />

educativo no sentido mais amplo”,<br />

nota ainda o ensaísta, num<br />

texto publicado em 1971, em que<br />

assinala o número <strong>de</strong> páginas da<br />

composição, 23, o azul da capa<br />

e a excelente reprodução da<br />

caligrafia do artista, isto <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> afirmar a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />

“comentário po<strong>de</strong>r prestar a<br />

<strong>de</strong>vida justiça a um trabalho on<strong>de</strong><br />

o envolvimento pessoal ‘está<br />

escrito na partitura’.” Leiam-se<br />

novamente as notas do programa<br />

do espectáculo: “O ‘Parágrafo 7’<br />

é, em termos composicionais,<br />

o ponto culminante da obra <strong>de</strong><br />

Car<strong>de</strong>w no que diz respeito à<br />

criação <strong>de</strong> uma composição que<br />

subverte o virtuosismo técnico e a<br />

concomitante divisão hierárquica<br />

entre intérprete e ouvinte que<br />

tradicionalmente regula a música<br />

enquanto forma cultural.”<br />

Música para as massas<br />

O interesse <strong>de</strong> Ezra Pound por<br />

Confúcio nasceu em Inglaterra,<br />

na Stone Cottage <strong>de</strong> William<br />

Butler Yeats, casa partilhada pelos<br />

poetas nos invernos <strong>de</strong> 1913 a 1916.<br />

Nesse período, ambos estudaram<br />

intensamente o japonês,<br />

nomeadamente o teatro Noh, que<br />

forneceu a Yeats o mo<strong>de</strong>lo para a<br />

sua peça “At the Hawk’s Well”, cujo<br />

primeiro esboço foi ditado a Pound<br />

em Janeiro <strong>de</strong> 1916 – o interesse<br />

pelo Oriente tinha sido potenciado<br />

pelo facto <strong>de</strong> a viúva <strong>de</strong> Ernest<br />

Fenollosa ter enviado a Pound<br />

os poemas traduzidos pelo seu<br />

marido, sendo que estes viriam a<br />

ser não só a base do <strong>de</strong>nominado<br />

método “i<strong>de</strong>ogrâmico”, mas<br />

também a origem <strong>de</strong> “Cathay”,<br />

livro publicado em 1915.<br />

Mais tar<strong>de</strong>, em 1927, quando<br />

trabalhava nas traduções <strong>de</strong><br />

Cavalcanti, o autor dos “Cantos”,<br />

recebeu da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Seattle, nos Estados Unidos, um<br />

convite para escrever um texto<br />

autobiográfico, que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

recusado, permitiu ao escritor<br />

contrapor uma sua versão <strong>de</strong><br />

“Tao Hio”, “The Great Learning”<br />

– na realida<strong>de</strong> uma tradução <strong>de</strong><br />

“Ta-siue” (“La Gran<strong>de</strong> Étu<strong>de</strong>”),<br />

realizada, no século XIX, pelo<br />

sinólogo francês Jean-Pierre-<br />

Guillaume Pauthier; Pound<br />

ainda chegou a trabalhar uma<br />

introdução ao texto em que<br />

“atacava os valores oci<strong>de</strong>ntais e o<br />

peso da burocracia.”<br />

A tradução usada por Car<strong>de</strong>w<br />

em “The Great Learning” é a<br />

<strong>de</strong> Pound; con<strong>tudo</strong>, nos anos<br />

1970, o seu período maoísta, o<br />

compositor realizou uma revisão<br />

do texto <strong>de</strong> forma a sintonizá-lo<br />

com o pensamento do “Gran<strong>de</strong><br />

Timoneiro”, tendo-se justificado<br />

com as palavras <strong>de</strong> Mao Tsé-<br />

Tung para explicar as alterações<br />

produzidas: “As obras <strong>de</strong> arte que<br />

não servem as lutas das gran<strong>de</strong>s<br />

massas po<strong>de</strong>m ser transformadas<br />

em obras <strong>de</strong> arte que o<br />

fazem.” Mais tar<strong>de</strong>, no célebre<br />

ensaio “Stockhausen serve o<br />

imperialismo” (1974), o compositor<br />

inglês colocou em questão quer a<br />

sua obra, quer a sua tentativa <strong>de</strong> a<br />

mudar <strong>de</strong> acordo com princípios<br />

políticos, criticando ainda as<br />

ressonâncias fascistas que o<br />

pensamento <strong>de</strong> Confúcio adquire<br />

na obra <strong>de</strong> Pound.<br />

A exposição proposta pela<br />

Culturgest po<strong>de</strong> ser mais um<br />

momento do <strong>de</strong>bate acerca das<br />

relações, nem sempre claras,<br />

entre a arte e a política. A<br />

mostra, sobre<strong>tudo</strong> documental,<br />

funciona como um dispositivo<br />

para receber o programa <strong>de</strong><br />

concertos, conferências, ensaios<br />

e performances. Ela é sobre<strong>tudo</strong><br />

um lugar <strong>de</strong> aprendizagem, on<strong>de</strong><br />

se po<strong>de</strong> encontrar a partitura<br />

do “Treatise” (1963-1967) – um<br />

trabalho influenciado por<br />

Wittgenstein –, fotografias,<br />

cartazes, filmes e documentários,<br />

que traduzem não só o percurso<br />

individual <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>w, mas<br />

também o dos grupos com os<br />

quais colaborou, como a Scratch<br />

Orchestra e os AMM. Haverá ainda<br />

muita música para ouvir, tanto no<br />

átrio do edifício como em diversos<br />

pontos <strong>de</strong> escuta. E é aqui que<br />

faz sentido evocar as palavras <strong>de</strong><br />

Robert Wyatt, escritas em 1991:<br />

“Se a palavra ‘romântico” <strong>de</strong>ve<br />

ser salva dos sentimentalistas<br />

caprichosos, é para que a<br />

possamos aplicar correctamente<br />

a Cornelius Car<strong>de</strong>w: uma fonte<br />

<strong>de</strong> música corajosa, <strong>de</strong> cortar a<br />

respiração.” Óscar Faria<br />

22 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


MIGUEL MANSO<br />

A culpa é do pai. A culpa é <strong>de</strong> “Kramer<br />

contra Kramer”.<br />

Sobre o primeiro, servirá para explicar<br />

o facto <strong>de</strong> os cinéfilos Josh e<br />

Benny Safdie serem cine-filhos - entre<br />

a cinefilia e a biografia, isso fica(-lhes)<br />

bem.<br />

O segundo, um filme <strong>de</strong> 1979 <strong>de</strong><br />

Robert Benton, não é um título óbvio<br />

para se atirar num festival <strong>de</strong> cinema<br />

“in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte” – porque tem estrelas,<br />

Dustin Hoffman e Meryl Streep, e<br />

porque tem fama <strong>de</strong> puxar pelos lenços<br />

dos espectadores (já agora: é tão<br />

magnificamente enxuto que as arestas<br />

magoam). Mas nisto do que é “indie”<br />

ou não, os irmãos Josh, 26 anos, e<br />

Benny, 24, não são politicamente correctos<br />

nem obe<strong>de</strong>cem ao cliché – lá<br />

chegaremos e à agenda que essa palavra,<br />

“indie”, comporta. Fiquemonos,<br />

para já, com o pai Safdie, com<br />

Dustin Hoffman e Meryl Streep, e com<br />

a forma como o cinema nasceu para<br />

Josh e Benny, os cineastas que aqui<br />

apresentamos. O seu filme, “Go Get<br />

Some Rosemary”, história <strong>de</strong> Lenny,<br />

um pai divorciado que recria o mundo<br />

para os seus filhos e não os poupa<br />

à sua <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, venceu o Indie<strong>Lisboa</strong>.<br />

Josh: O nosso pai iniciou-nos ao cinema.<br />

Ele fazia sempre <strong>de</strong> Dustin Hoffman<br />

o seu duplo nos filmes. Mostrou-nos<br />

“Kramer contra Kramer” quando tínhamos<br />

seis anos, e disse-nos: “este sou eu,<br />

o miúdo são vocês e a mãe <strong>de</strong>le é a vossa<br />

mãe”.<br />

(Parêntesis: o pai Safdie, na altura em<br />

que mostrou aos filhos a batalha judicial<br />

<strong>de</strong> Dustin Hoffman contra Meryl<br />

Streep pela custódia da criança, já se<br />

tinha separado da mãe Safdie)<br />

Josh: É uma forma louca <strong>de</strong> apresentar<br />

o cinema a miúdos. Está-se a dizer que<br />

o cinema é um utensílio importante: um<br />

espelho da vida. Que não é apenas entretenimento.<br />

E ele continuou por essa<br />

via, comprando uma câmara, e filmando-nos<br />

constantemente. Já nos passou<br />

300 horas <strong>de</strong> gravações... Há quatro<br />

anos começou a dar-nos as primeiras<br />

“Po<strong>de</strong>mos filmar num<br />

sítio, <strong>de</strong>pois no outro,<br />

mesmo que não haja<br />

ligação entre os dois.<br />

Mas ao fazermos a<br />

ligação, estamos a dar<br />

uma versão da nossa<br />

Nova Iorque, que não<br />

sei se ainda é real ou<br />

se foi real: numa<br />

esquina estamos nos<br />

anos 70, ao darmos<br />

a volta estamos nos<br />

anos 40...”<br />

Benny Safdie<br />

cassetes. É <strong>de</strong> loucos. Por exemplo, imagens<br />

<strong>de</strong> mim no dia dos meus anos a<br />

agarrar uma chávena e um “zoom” do<br />

meu pai sobre mim. O que é tão importante<br />

assim que levou o meu pai a filmar-me?<br />

Foi o início <strong>de</strong>ssa coisa do cinema<br />

como reflexão. Estamos-lhe imensamente<br />

gratos. A personagem <strong>de</strong> Lenny<br />

[o pai <strong>de</strong> “Go Get Some Rosemary”] está<br />

também, <strong>de</strong> alguma maneira, a dar cinema<br />

aos filhos. Uma espécie <strong>de</strong> “cinema”<br />

espontâneo, ao vivo: vemos a realida<strong>de</strong><br />

à medida que ela se <strong>de</strong>senrola. É<br />

<strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> cinema que gostamos. O<br />

estilo <strong>de</strong> vida que Lenny cria para os<br />

filhos é cinema para nós: o sentido <strong>de</strong><br />

anarquia que lhes permite pensar “fora<br />

da caixa”, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que <strong>tudo</strong> po<strong>de</strong><br />

acontecer a qualquer momento. Caramba,<br />

é por isso que nós hoje filmamos!<br />

Caramba, é por isso que “Go Get Some<br />

Rosemary” é assim!<br />

É Lenny, o pai, um projeccionista<br />

Um pai recria<br />

o mundo aos<br />

seus filhos:<br />

“Go get Some<br />

Rosemary”,<br />

o lírico e<br />

anárquico<br />

filme que<br />

venceu o<br />

Indie<strong>Lisboa</strong><br />

Cinema<br />

MIGUEL MANSO<br />

Josh e Benny,<br />

performers<br />

natos,<br />

transforman<br />

qualquer<br />

espaço num<br />

cenário <strong>de</strong><br />

pantomima<br />

Safdie<br />

O pai mostrou-lhes “Kramer contra Kramer” quando tinham seis anos e foi toda uma educação<br />

e que em Julho chegará às salas, é ao mesmo tempo a cinefilia e a biografia <strong>de</strong>les, os irmãos<br />

J<br />

24 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


MIGUEL MANSO<br />

(interpretado por um amigo dos Safdie,<br />

o também realizador Ronald<br />

Bronstein), um corredor <strong>de</strong> fundo das<br />

suas fantasias – é uma daquelas personagens<br />

cuja vertigem, para ser partilhável,<br />

exige muito do fôlego do espectador.<br />

É, também, uma energia que não<br />

se extingue, antes pelo contrário, o<br />

que se po<strong>de</strong> tornar angustiante para<br />

quem está sentado na sala: Josh e<br />

Benny nunca <strong>de</strong>ixam que as cenas,<br />

ou o lirismo, se instalem numa zona<br />

<strong>de</strong> conforto. Cortam sempre antes <strong>de</strong><br />

<strong>tudo</strong> se fixar, o que abastece o espectador<br />

com uma reserva <strong>de</strong> excitação<br />

que ele não sabe on<strong>de</strong> gastar - sensação<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconforto, é verda<strong>de</strong>, que<br />

vai ser apaziguada, que vai ter consolo,<br />

como uma epifania final: sentimos,<br />

por isso temos a certeza, que “Go Get<br />

Some Rosemary” é um gran<strong>de</strong> filme.<br />

E ainda, o que não é menos <strong>de</strong>slumbrante:<br />

a forma como nos aparece<br />

Nova Iorque, cida<strong>de</strong> tão filmada que<br />

aqui, ou nas curtas dos dois realizadores<br />

(http://www.redbucketfilms.<br />

com/), parece nunca ter sido antes<br />

vista: algures entre a memória <strong>de</strong> um<br />

passado – como uma lembrança? – e<br />

a efervescência <strong>de</strong> um presente. Em<br />

que época se passa “Go Get Some Rosemary”,<br />

Josh e Benny: hoje ou num<br />

filme, dos anos 70, <strong>de</strong> John Cassavetes?<br />

Josh: Passa-se agora, hoje. Mas com as<br />

nossas memórias. Isso tem a ver com o<br />

facto <strong>de</strong> termos crescido em Nova Iorque,<br />

se calhar tem a ver com uma memória<br />

cinéfila ou até com um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

nos agarrarmos ao que resta <strong>de</strong> Nova<br />

Iorque. Nos anos 90 as autorida<strong>de</strong>s tentaram<br />

diluir a personalida<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong>.<br />

Temos, então, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> nos agarrarmos<br />

ao que ficou. O nosso pai mudou-se<br />

para Manhattan, <strong>de</strong>cidiu casar com a<br />

nossa mãe, divorciaram-se logo a seguir<br />

– era uma relação terrivel –, começou a<br />

namorar com uma mulher xunga <strong>de</strong><br />

Queens, que não podia ser mais Nova<br />

Iorque. Era uma pessoa horrível mas<br />

não podia ser mais Nova Iorque, como<br />

se vivesse num filme dos anos 70. A nossa<br />

infância existe nessa Nova Iorque. É<br />

isso o que conhecemos.<br />

Benny: A personagem do filme não tem<br />

um tempo <strong>de</strong>le próprio, não tem presente,<br />

não tem passado. Com muitos<br />

dos nossos filmes, somos atraídos por<br />

lugares intemporais <strong>de</strong> Nova Iorque. Se<br />

gostamos <strong>de</strong> um edifício ou <strong>de</strong> um lugar,<br />

vamos para lá filmar e isso está sempre<br />

ligado a algo que queremos recordar<br />

<strong>de</strong>sse lugar. Ou seja: não estávamos a<br />

querer fazer um filme <strong>de</strong> época, mas é<br />

possível que tenhamos criado algo <strong>de</strong><br />

intemporal.<br />

Josh: O que falta a muitos filmes que se<br />

passam em Nova Iorque hoje é a espontaneida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> acontecer algo <strong>de</strong> imprevisível<br />

numa esquina. Como uma cida<strong>de</strong><br />

quarteirão a quarteirão. O nosso<br />

cinema existe quarteirão a quarteirão,<br />

literalmente. Numa esquina filmacom<br />

Safdie<br />

sentimental. “Go Get Some Rosemary”, o filme com que no sábado ganharam o Indie<strong>Lisboa</strong><br />

Josh e Benny Safdie. Numa Nova Iorque como nunca a tínhamos visto. Vasco Câmara<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 25


Frey e Sage<br />

foram<br />

“<strong>de</strong>scobertos”<br />

na rua; só<br />

mais tar<strong>de</strong> os<br />

realizadores<br />

<strong>de</strong>scobriram<br />

que eram<br />

filhos <strong>de</strong> Lee<br />

Ranaldo<br />

(Sonic Youth)<br />

mos um coisa, na esquina seguinte<br />

outra diferente. E geograficamente não<br />

nos importamos: por exemplo, numa<br />

cena po<strong>de</strong>mos estar na esquina da<br />

Third Street e a cena seguinte po<strong>de</strong> ter<br />

lugar no Harlem.<br />

Benny: E ao fazermos a ligação, estamos<br />

a dar uma versão da nossa Nova<br />

Iorque, que não sei se ainda é real ou se<br />

alguma vez foi real: numa esquina estamos<br />

nos anos 70, ao darmos a volta<br />

estamos nos anos 40...<br />

Josh: E quanto à excitação da personagem,<br />

para nós esse lado maníaco é uma<br />

forma <strong>de</strong> ela evitar a <strong>de</strong>pressão. Quando<br />

se pára para pensar na vida, isso<br />

po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>primente. Se estivermos<br />

sempre em movimento, não <strong>de</strong>ixaremos<br />

que isso aconteça. Do ponto <strong>de</strong> vista<br />

cinematográfico, é claro que Cassavetes<br />

é o padrinho do cinema indie americano.<br />

“Uma Mulher sob Influência” [Cassavetes,<br />

1974] acrescentou algo às nossas<br />

vidas. Mas há outras enormes influências:<br />

Jean Vigo, por exemplo. Não<br />

tanto as personagens, mas o mundo em<br />

que elas vivem. É isso que domina os<br />

filmes, que controla os filmes, não há<br />

tempo para reflexão. Como se o filme<br />

tivesse vida própria, energia própria.<br />

Ha muitos realizadores que são melhores<br />

do que os seus próprios filmes, que<br />

ditam o estilo dos seus filmes. Isso,<br />

quanto a nós, mata os filmes.<br />

A referência a Vigo, ao Vigo <strong>de</strong> “Zero<br />

em Comportamento”, por exemplo,<br />

à energia anárquica, a algo <strong>de</strong> incontrolável<br />

que inva<strong>de</strong> o filme, faz sentido<br />

quando se vê “Go get Some Rosemary”.<br />

Neste filme, o mundo a que chamamos<br />

“adulto” está “off limits”. Há<br />

aquele momento, por exemplo, em<br />

que um insecto gigante se materializa,<br />

como numa ficção científica paranóica<br />

dos anos 50 (já em “The Pleasure<br />

of Being Robbed”, filme só <strong>de</strong> Benny<br />

Safdie, a personagem enfrentava quase<br />

amorosamente um gran<strong>de</strong> urso<br />

branco), e contra isso não po<strong>de</strong>mos<br />

nada. De não servem os nossos “filtros”.<br />

O filme existe como quer (alguém<br />

já classificou esse um momento<br />

“cronenberguiano” num pedaço <strong>de</strong><br />

“Os realizadores<br />

têm <strong>de</strong> actuar para<br />

os seus actores. Por<br />

isso é que gostamos <strong>de</strong><br />

não-actores: obrigamnos<br />

a ser performers,<br />

a estimular as<br />

pessoas <strong>de</strong> forma<br />

performativa. Dirigir<br />

é um performance”<br />

Josh Safdie<br />

Cassavetes, mas quem “está vivo!” não<br />

é o insecto, é o filme).<br />

A propósito <strong>de</strong> energia, se pararmos<br />

um bocado para olhar para Josh<br />

e Benny, dá para nos perguntarmos<br />

quais as consequências da exposição<br />

a uma câmara <strong>de</strong> filmar ou <strong>de</strong> fotografar:<br />

são “performers” natos, transformam<br />

qualquer espaço num cenário<br />

<strong>de</strong> pantomima. Benny é um caso<br />

mais agudo – não é por acaso que, nas<br />

curtas dos irmãos, é ele o actor, <strong>de</strong>finindo<br />

uma presença algures entre o<br />

“stand-up comedian” e o burlesco do<br />

mudo.<br />

Josh: Benny é um performer. Eu posso<br />

interpretar variações <strong>de</strong> mim; Benny<br />

po<strong>de</strong> transformar-se em personagens.<br />

Des<strong>de</strong> miúdos que ele é o performer e<br />

eu o espectador da performance <strong>de</strong>le<br />

E Josh conta que quando embarcavam<br />

no avião para <strong>Lisboa</strong>, Benny subiu as<br />

escadas e acenou ao povo exactamente<br />

como um presi<strong>de</strong>nte; está em http://www.youtube.com/<br />

watch?v=gwoBXqMl0Yc<br />

Josh: Neste filme não podíamos ser o<br />

pai, não podíamos ser os dois filhos [que<br />

foram <strong>de</strong>scobertos na rua; Josh achou<br />

o miúdo Frey igualzinho ao irmão<br />

Benny quando este tinha oito anos, e<br />

comoveu-se; chegaram aos pais das<br />

crianças, e então <strong>de</strong>scobriam que Sage<br />

e Frey tinham o apelido Ranaldo, são<br />

filhos <strong>de</strong> Lee Ranaldo dos Sonic Youth].<br />

Mas gosto da i<strong>de</strong>ia dos realizadores como<br />

‘performers’. Têm <strong>de</strong> actuar para os<br />

seus actores. Por isso é que gostamos <strong>de</strong><br />

não-actores: obrigam-nos a ser performers,<br />

a estimular as pessoas <strong>de</strong> forma<br />

Estão tão<br />

ligados que<br />

ou se juntam<br />

para corealizarem<br />

ou se afastam<br />

para nenhum<br />

<strong>de</strong>les tocar<br />

no projecto<br />

do outro<br />

MIGUEL MANSO<br />

performativa. Dirigir é um performance.<br />

Como co-realizadores, são inseparáveis.<br />

Partilham as responsabilida<strong>de</strong>s,<br />

meta<strong>de</strong>/meta<strong>de</strong>. Discutem mais na<br />

escrita, que não é só apenas, dizem,<br />

o argumento <strong>de</strong> uma história, é também<br />

o “script” da direcção <strong>de</strong>les. Os<br />

ensaios com os actores e a improvisação<br />

são forma <strong>de</strong> continuar o argumento<br />

(“<strong>de</strong> outra forma não po<strong>de</strong>mos<br />

ditar a forma como a pessoa fala”).<br />

Estão tão ligados que ou se juntam<br />

para co-realizarem (trabalham neste<br />

momento num argumento sobre a<br />

indústria <strong>de</strong> diamantes em Nova Iorque,<br />

“Uncut Gems”) ou se afastam<br />

para nenhum <strong>de</strong>les tocar no projecto<br />

do outro, que é sempre a tendência<br />

que têm. Integram um colectivo <strong>de</strong><br />

cinco amigos, a Bucket Films, que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong><br />

os projectos a filmar pela sua<br />

“urgência”. Explicam: todo o dinheiro<br />

recebido com “projectos comerciais<br />

serve apenas para pagar a renda<br />

do estúdio e equipamento”; os projectos<br />

pessoais são, assim, investimentos<br />

dos próprios, os outros membros<br />

do colectivo ajudam, não há<br />

questões monetárias na base das <strong>de</strong>cisões<br />

do grupo. A propósito: o que é<br />

ser “indie”, hoje?<br />

Benny: É uma palavra pesada. Po<strong>de</strong>mos<br />

fazer um filme indie por 100 milhões<br />

<strong>de</strong> dólares. Po<strong>de</strong>mos dizer que<br />

“Avatar” é um filme in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, porque<br />

James Cameron passou-se dos carretos.<br />

Ou seja, esteve <strong>de</strong>z anos para<br />

fazer este filme, e segundo ele é exactamente<br />

aquilo que ele queria fazer – e<br />

daí talvez não, porque muitas pessoas<br />

meteram ali a mão. Mas é isso que ele<br />

quer que as pessoas pensem: que é um<br />

autor. Ora, há imensos filmes que têm<br />

a pose do filme in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte mas estão<br />

apenas a aplicar as regras <strong>de</strong> um filme<br />

<strong>de</strong> Hollyood ou da televisão.<br />

Josh: Especialmente na América: “oh,<br />

custou apenas 15 mil dólares, <strong>de</strong>ve ser<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”. Mas muitas vezes é uma<br />

versão barata <strong>de</strong> Hollywood. O cinema<br />

pessoal, para mim, é que é o in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte.<br />

“Duplo Amor”, <strong>de</strong> James Gray,<br />

tem estrelas <strong>de</strong> Hollywood, Gwyneth<br />

Paltrow e Joaquin Phoenix, mas é mais<br />

indie do que as porcarias que vejo em<br />

festivais <strong>de</strong> cinema em que os realizadores<br />

dizem “fiz este filme por apenas...”.<br />

In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte significa in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />

dos mo<strong>de</strong>los....<br />

Benny: O cinema indie americano não<br />

é um barco comum para todas as pessoas.<br />

Só sentimos que estamos no mesmo<br />

barco <strong>de</strong> alguém quando respeitamos<br />

o seu trabalho.<br />

Vamos ouvir falar <strong>de</strong> Josh e Benny Safdie,<br />

seguramente. Aqui mesmo, nestas<br />

páginas, quando “Go Get Some<br />

Rosemary”, provavelmente com o<br />

novo título, “Daddy Longlegs”, se estrear<br />

comercialmente, dia 15 <strong>de</strong> Julho<br />

(Midas...)<br />

26 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


JORGE SALGUEIRO<br />

4ª a sáb às 20h30<br />

dom às 16h30 | M/6<br />

© CLEMENTINA CABRAL<br />

A FÁBRICA<br />

baseado em O Segredo do Céu <strong>de</strong> PÄR LAGERKVIST<br />

encenação Miguel Fonseca co-produção TEATRO AGITA<br />

sala estúdio | 4ª a sáb 21h45 | dom 17h30 | M/12<br />

HAVIA UM MENINO QUE ERA PESSOA<br />

Poemas para a Infância <strong>de</strong> FERNANDO PESSOA<br />

encenação Lucinda Loureiro | com José Figueiredo Martins<br />

sáb e dom 15h para toda a família | M/6<br />

para escolas durante a semana | sob marcação<br />

Gil Scott-Heron<br />

Mind da Gap<br />

Prins Thomas Tó Trips Evols<br />

15<br />

André Cepeda Álvaro Costa Pfadfin<strong>de</strong>rei<br />

MAIO<br />

SÁBADO 23:00<br />

TODOS OS ESPAÇOS | 18 €<br />

OUTROS ESPAÇOS (EXCEPTO GIL SCOTT-HERON) | 7,5 €<br />

ENTRADA LIMITADA À LOTAÇÃO DE CADA ESPAÇO<br />

PATROCÍNIO<br />

MECENAS CASA DA MÚSICA<br />

APOIO INSTITUCIONAL<br />

MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICA<br />

SEJA UM DOS PRIMEIROS A APRESENTAR HOJE ESTE JORNAL NA CASA DA MÚSICA E GANHE UM CONVITE DUPLO<br />

PARA O CLUBBING (EXCEPTO GIL SCOTT-HERON). OFERTA LIMITADA AOS PRIMEIROS 10 LEITORES.


Ninguém, à excepção do Ruy Duarte<br />

<strong>de</strong> Carvalho, sabia gran<strong>de</strong> coisa sobre<br />

a África do Sul para além das suas tensões<br />

recentes. É ele que vai à frente<br />

nesta viagem <strong>de</strong> 13 dias e seis mil quilómetros,<br />

portanto, e logo a seguir os<br />

seus jovens amigos: o Luhuna, que ia<br />

recolhendo numa câmara materiais<br />

<strong>de</strong> observação directa; Miguel Carmo,<br />

certeiro nas impressões e navegações<br />

espaciais; e as Martas - a Mestre que<br />

ia avivando a conversa, e a outra Marta,<br />

esta que vos escreve, gerindo a<br />

logística <strong>de</strong> uma viagem redonda, <strong>de</strong><br />

Joanesburgo a Joanesburgo, do interior<br />

à costa pela outra costa, <strong>de</strong>ixando<br />

<strong>de</strong> fora a província do Cabo Oriental,<br />

berço <strong>de</strong> lutadores anti-apartheid,<br />

ainda assim presente nas histórias <strong>de</strong><br />

bordo.<br />

Des<strong>de</strong> cedo até ao fim da tar<strong>de</strong>:<br />

mãos rotativas ao volante, pneus a<br />

rasgar as boas estradas sul-africanas,<br />

olhos maravilhados e exaustos <strong>de</strong> reter<br />

as paisagens – a cada solidão um<br />

monte ou <strong>de</strong>serto preferido - e <strong>de</strong>ntro<br />

do carro uma voz que se ouve mais<br />

do que as outras.<br />

Antes da África do Sul, tinha havido<br />

um cozido à portuguesa na Baixa <strong>de</strong><br />

Maputo, em Setembro. Decorria, no<br />

Dockanema, “E agora... vamos fazer<br />

mais como?”, ciclo <strong>de</strong>dicado ao escritor<br />

e cineasta angolano Ruy Duarte<br />

<strong>de</strong> Carvalho, que acumula admiradores<br />

no mundo lusófono, e a viagem,<br />

patrocinada pelo Instituto Camões,<br />

começava a ganhar forma. Uma viagem<br />

espraiando-se por mudanças <strong>de</strong><br />

relevo, animais, campos <strong>de</strong> pastagem,<br />

cores e brilhos que vão ocorrendo na<br />

paisagem: a sua adaptação morfológica<br />

ao clima e a metafísica que nos<br />

faz empatizar com ela. Uma viagem<br />

atenta à história das várias expansões<br />

e colonizações do país. Que fosse a<br />

origem, com base nos materiais recolhidos<br />

e nas conversas<br />

semeadas, do livro “As<br />

Paisagens Efémeras,<br />

Atas <strong>de</strong> Santa Helena”,<br />

<strong>de</strong> Ruy Duarte <strong>de</strong> Carvalho,<br />

e também <strong>de</strong> um possível filme.<br />

Ou não estivesse a viagem sempre<br />

inscrita em <strong>tudo</strong> o que faz.<br />

Mas há outras ambições nesta viagem:<br />

problematizar o processo <strong>de</strong><br />

oci<strong>de</strong>ntalização do mundo e os seus<br />

efeitos, focalizados no espaço atlântico.<br />

Que relações existiram entre europeus<br />

e populações locais? Que fenómenos<br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>aram? Isto <strong>tudo</strong><br />

pelo gosto <strong>de</strong> entrelaçar tempos. De<br />

ver naquilo que é já passado, vestígio<br />

só, matéria <strong>de</strong> conjectura histórica.<br />

De encontrar os traços do antece<strong>de</strong>nte<br />

na imagem presente e nas projecções<br />

do futuro.<br />

Então lá estamos nós <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um<br />

carro dias a fio. E acabamos por<br />

apren<strong>de</strong>r qualquer coisa da complexida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ste país africano que está<br />

nas bocas do mundo por causa do futebol<br />

e da persistente violência. Conclusão:<br />

a África do Sul é um país bizarro.<br />

O Ruy está contente e só se cala esporadicamente<br />

para fixar um pormenor<br />

da paisagem e <strong>de</strong>pois dizer coisas<br />

como “na vida ou se escreve ou se<br />

vive”, citando Piran<strong>de</strong>llo, ele que faz<br />

tão bem as duas coisas. Traz leituras<br />

e consi<strong>de</strong>rações, enche o espaço <strong>de</strong><br />

referências e pensamento, <strong>de</strong> paisagens<br />

efémeras e propícias, <strong>de</strong> figuras<br />

da História. Conta episódios da vida<br />

e anedotas também. Fala no feminino<br />

quando conversa com as raparigas.<br />

“É uma narrativa sólida e quente que<br />

transforma a paisagem da África do<br />

Sul em nostalgia”, há-<strong>de</strong> escrever<br />

um <strong>de</strong> nós.<br />

Angola, aon<strong>de</strong> regressa<br />

sempre apesar <strong>de</strong> agora viver<br />

em Swakopmund, na<br />

Namíbia, é tema recorrente<br />

e que nos<br />

liga naquela<br />

cum-<br />

“Que viagens<br />

po<strong>de</strong>rão dizer-se<br />

‘réussies’<br />

[conseguidas]?<br />

Aquelas em que <strong>tudo</strong><br />

‘corre bem’, ou<br />

as outras, recheadas<br />

<strong>de</strong> imprevisto<br />

e <strong>de</strong> aventura?”<br />

Ruy Duarte<br />

<strong>de</strong> Carvalho<br />

Da África do Sul à cont<br />

O escritor e cineasta angolano Ruy Duarte <strong>de</strong> Carvalho<br />

vai à frente nesta viagem redonda, <strong>de</strong> Joanesburgo<br />

a Joanesburgo, da qual há <strong>de</strong> sair um livro, e<br />

possivelmente também um filme. A África do Sul em 13<br />

dias e seis mil quilómetros, com cinco pessoas <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong> um carro, e o passado pré e pós-colonial a infiltrar-se<br />

no presente, como um palimpsesto. Marta Lança<br />

28 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


Reportagem<br />

plicida<strong>de</strong> dos territórios do coração.<br />

A comer uma pizza na barragem Gariepdan,<br />

abro o seu último livro, “A<br />

Terceira Meta<strong>de</strong>”, e tropeço nisto:<br />

“enrolados para quem não pára – porque<br />

não po<strong>de</strong>, não quer ou não sabe,<br />

tal como nós estamos todos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há<br />

muito ao corrente – são os caminhos<br />

das voltas que a vida dá, como são os<br />

que no sono levam sempre aos mesmos<br />

sonhos recorrentes.”<br />

Brancos contra brancos,<br />

e contra negros<br />

Pernoitamos em Vinburg. Uma cida<strong>de</strong>zinha<br />

<strong>de</strong> atmosfera “Twin Peaks”<br />

no interior do Free State on<strong>de</strong> os bóeres,<br />

brancos camponeses normalmente<br />

enormes, vivem e são senhores. O<br />

bóer é uma produção da África Austral,<br />

havemos <strong>de</strong> saber no curso da<br />

viagem. Na “guesthouse”, um bancário<br />

bêbado pergunta-nos, meio em<br />

inglês, meio em afrikaans, crioulização<br />

da sua língua materna holan<strong>de</strong>sa,<br />

se estamos a falar russo. Ao pequenoalmoço,<br />

a serviçal roliça diz que vai<br />

casar em Março e está muito feliz. “A<br />

minha mãe diz: ‘Vai sempre atrás do<br />

Mãos rotativas ao volante,<br />

pneus a rasgar as boas estradas<br />

sul-africanas, olhos<br />

maravilhados e exaustos: é fácil<br />

viajar pela África do Sul,<br />

contornada a insegurança das<br />

gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s<br />

teu marido’”. E ela foi, e agora serve<br />

salsichas com ovos e carne agridoce<br />

a endinheirados rurais.<br />

A casa é um mausoléu das guerras<br />

anglo-bóeres, mas gloriosa para os<br />

bóeres foi só a primeira, porque a <strong>de</strong><br />

1903 levou à anexação das suas repúblicas<br />

do Transvaal e do Free State <strong>de</strong><br />

Orange à colónia britânica do Cabo,<br />

ao que parece com a ajuda das armas<br />

europeias da revolução industrial. Os<br />

bóeres não gostavam da autocracia<br />

britânica, que <strong>de</strong>generava as tradições<br />

holan<strong>de</strong>sas e não os protegia dos ataques<br />

dos Xhosa. Já tinham fundado a<br />

república <strong>de</strong> Natália <strong>de</strong>pois da batalha<br />

<strong>de</strong> Blood River (da qual vimos a pintura),<br />

em 1838, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>rrotaram Dingane,<br />

um dos chefes zulu, Haveriam<br />

<strong>de</strong> perdê-la para os ingleses, com as<br />

suas plantações <strong>de</strong> cana-<strong>de</strong>-açúcar.<br />

O que interessa é que já havia uma<br />

socieda<strong>de</strong> colonial, e o país estava<br />

ocupado por brancos. Os bóeres <strong>de</strong>claram<br />

a República da África do Sul,<br />

com Pretória como capital, em 1854.<br />

Em 1910, as províncias fundavam a<br />

União Sul-Africana, que duraria até<br />

ao fim do apartheid, em 1994.<br />

Ouvimos ainda a história <strong>de</strong> Shaka<br />

Zulu. Diz-se que era gay. Antes <strong>de</strong> ser<br />

assassinado, em 1928, com muita estratégia<br />

militar e dureza combativa,<br />

fez da etnia zulu um império que ensombrou<br />

os <strong>de</strong>sígnios coloniais britânicos.<br />

A expansão do estado zulu e o<br />

<strong>de</strong>sarranjo social provocado pelo tráfico<br />

<strong>de</strong> escravos a partir do sul <strong>de</strong> Moçambique,<br />

além <strong>de</strong> secas e fomes entre<br />

o fim do século XVIII e o princípio<br />

do século XIX, estão na origem <strong>de</strong><br />

Uma paragem a meio do<br />

caminho e outra a caminho do<br />

fim, em Springbock, região <strong>de</strong><br />

flores e prados: cheira a esteva,<br />

e o amarelo-torrado cobre a<br />

pedra<br />

movimentações massivas <strong>de</strong> populações<br />

que convulsionaram a África<br />

Austral.<br />

A maior quezília entre britânicos e<br />

holan<strong>de</strong>ses tinha a ver com as minas<br />

<strong>de</strong> diamantes encontradas naquele<br />

território. Na pequena localida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Kimberley, visitamos o turístico Big<br />

Hole, uma rocha diamantífera cavada<br />

para extrair o famoso kimberlito, composto<br />

por minerais <strong>de</strong> alta pressão<br />

formados a 300 quilómetros <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>.<br />

Ali se fez uma espécie <strong>de</strong><br />

reprodução da vida mineira com barzinhos<br />

e lojas. Explicações sobre diamantes,<br />

ali <strong>de</strong>scobertos em 1867 em<br />

brinca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> crianças. O homem<br />

por trás da mina é Cecil John Rho<strong>de</strong>s,<br />

co-fundador da po<strong>de</strong>rosa companhia<br />

De Beers. Abandonou a fazenda <strong>de</strong><br />

algodão em 1871 para gerir as minas<br />

<strong>de</strong> Kimberley, e chegou a membro do<br />

Parlamento, com políticas que serviram<br />

tanto o Império britânico como<br />

os interesses dos mineiros.<br />

De expansões e opressões<br />

A história da África do Sul é uma história<br />

<strong>de</strong> disputas e <strong>de</strong> ocupações,<br />

sangue e mais sangue, <strong>tudo</strong> isto não<br />

há muito tempo atrás. “Demorou<br />

tracosta, com Ruy Duarte <strong>de</strong> Carvalho<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 29


muito até chegar aqui, a este último<br />

canto do continente, e mesmo da<br />

terra toda, a que se foram alargando<br />

várias correntes migratórias, gente a<br />

vir <strong>de</strong> fora para ocupar e controlar<br />

esses territórios segundo os seus interesses,<br />

quer dizer os recursos que<br />

aqui lhes cativavam, e perturbar assim,<br />

ou a submeter ou a dizimar os<br />

que já cá se encontravam.” Vem em<br />

“A Terceira Meta<strong>de</strong>”, mas podia ser<br />

o Ruy a falar connosco porque ele<br />

escreve como fala e fala como escreve,<br />

com reticências e assertivida<strong>de</strong>,<br />

sem isto ser contraditório.<br />

Com uma costa imensa, a África do<br />

Sul é apetitosa para a expansão oci<strong>de</strong>ntal<br />

mas a sua ocupação é tardia:<br />

<strong>de</strong>serto, falta <strong>de</strong> condições para o comércio<br />

e práticas esclavagistas. “Quando<br />

foi finalmente objecto <strong>de</strong>ssa vaga<br />

oci<strong>de</strong>ntalizante, ofereceu o espectáculo<br />

<strong>de</strong> um vasto território <strong>de</strong> fronteira<br />

a ser em simultâneo acometido<br />

pela expansão dos brancos e pela dos<br />

bantos”, que não gostam <strong>de</strong> ser lembrados<br />

que também foram invasores.<br />

Os bantos <strong>de</strong>sceram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a África<br />

Oriental, iniciando a sua interminável<br />

expansão, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada pela explosão<br />

<strong>de</strong>mográfica que a banana, trazida<br />

pelos malaios que colonizaram Madagáscar,<br />

provocou. Ironias e conjurações<br />

da história. Ocupações contemporâneas<br />

que remetem para os problemas<br />

actuais: a terra é <strong>de</strong> todos,<br />

cada um foi chegando com os seus<br />

motivos e agora todos têm <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r<br />

a conviver, às vezes numa paz podre,<br />

às vezes numa guerra infinita.<br />

As várias populações <strong>de</strong>ntro do<br />

país não prosperam todas ao mesmo<br />

tempo e isto provoca muitas<br />

No carro<br />

enumeram-se tantas<br />

etnias e ramificações<br />

- sangue no sangue<br />

no sangue - que<br />

já vamos todos<br />

baralhados. Apesar<br />

<strong>de</strong> a África do Sul<br />

ser esse<br />

“melting-pot”<br />

<strong>de</strong> “raças” muito<br />

marcadas, está<br />

em curso<br />

a produção <strong>de</strong> um<br />

mestiço universal<br />

Nas paisagens áridas do Karoo<br />

profundo, os pensamentos<br />

aquecem: os oci<strong>de</strong>ntais, que<br />

começaram a estabelecer-se<br />

na província do Cabo cerca <strong>de</strong><br />

1652, <strong>de</strong>moraram 150 anos<br />

a aventurar-se nesta<br />

região dominada por<br />

enormes famílias<br />

<strong>de</strong> zebras e <strong>de</strong> antílopes<br />

A caminho da província do<br />

Cabo da Boa Esperança, <strong>de</strong>pois<br />

do <strong>de</strong>serto, directos ao extremo<br />

mais Sul <strong>de</strong> África: vir do<br />

interior para a costa é <strong>de</strong>saguar<br />

<strong>de</strong>pendências e explorações. Ruy explica<br />

nas notas <strong>de</strong> viagem: “Uns grupos,<br />

e certos indivíduos <strong>de</strong>ntro da<br />

cada grupo, mesmo se só à escala da<br />

família, começam a prosperar primeiro,<br />

muito antes dos outros e sempre<br />

e ainda senão à custa <strong>de</strong> outros, a nível<br />

da dinâmica interna e da relação<br />

externa.... e os outros, para virem a<br />

prosperar também, há <strong>de</strong> ser <strong>de</strong> uma<br />

maneira ou <strong>de</strong> outra só a reboque<br />

<strong>de</strong>sses, ainda e sempre.... e tem uns<br />

que parece surpreen<strong>de</strong>rem-se, e se<br />

insurgem e <strong>de</strong>nunciam... mas então<br />

não é isso que é próprio do sistema<br />

que todos afinal aceitam e em que se<br />

integram e é nele que se exprimem a<br />

partir do lugar que ocupam na luta<br />

tentando ganhar pontos, conquistas,<br />

<strong>de</strong>ntro do sistema?”<br />

No carro enumeram-se tantas etnias<br />

e ramificações dos povos – sangue<br />

no sangue no sangue - que já vamos<br />

todos baralhados. Os hotentotes,<br />

que são vermelhos e tinham avós pastores<br />

- com a instalação dos holan<strong>de</strong>ses<br />

na baía da montanha que <strong>de</strong>u<br />

origem à Cida<strong>de</strong> do Cabo, para servir<br />

<strong>de</strong> apoio às rotas comerciais da Índia,<br />

tiveram <strong>de</strong> mudar <strong>de</strong> vida. Os<br />

San, bosquímanos, franzinos, então<br />

caçadores e recolectores, que não<br />

gostaram nada da instalação dos<br />

bóers: ao trazerem o gado, acabaram-lhes<br />

com a caça.<br />

Apesar <strong>de</strong> a África do Sul ser esse<br />

“melting-pot” <strong>de</strong> “raças” muito<br />

fenotipicamente marcadas, on<strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>mos resgatar os vestígios da<br />

ocupação humana <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>s recuadas,<br />

está em curso a produção<br />

<strong>de</strong> um mestiço universal, genética<br />

e culturalmente. “O pleno mestiço<br />

do <strong>de</strong>vir universal, afeiçoado pelo<br />

mo<strong>de</strong>lo branco expandido e imposto<br />

à escala do mundo”. O que sobreviver<br />

a isto será apenas folclore, porque a<br />

diferença irá ser extinta, digerida e<br />

consumida. Nisso há “<strong>de</strong>sagrado,<br />

agravo, pela diferença que vai ser, já<br />

está a ser cultivada e que, além <strong>de</strong><br />

cristalizada, ou por isso mesmo, é<br />

kitsch. Não é?!”<br />

Mais um cigarro e a viagem prossegue.<br />

Num hotel para<br />

“backpackers”, filmamos a<br />

conversa-base do movimento<br />

neo-animista que Ruy Duarte<br />

<strong>de</strong> Carvalho quer criar.<br />

Ao jantar, um velho dança como<br />

uma borboleta em frente ao<br />

trio <strong>de</strong> mulatos que toca jazz.<br />

O Cabo continua uma cida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> gente bizarra<br />

O Sul do Sul<br />

Depois das paisagens áridas do Karoo<br />

profundo, on<strong>de</strong> os pensamentos<br />

aquecem, aproxima-se o mar. Vir do<br />

interior para a costa é <strong>de</strong>saguar. Port<br />

Elizabeth tem baleias e golfinhos ao<br />

largo e zonas <strong>de</strong> comércio com ar <strong>de</strong><br />

Disneylândia. Segue-se um gran<strong>de</strong><br />

troço <strong>de</strong> costa com vegetação mediterrânica<br />

até se entrar na província<br />

do Cabo da Boa Esperança. Directos<br />

ao extremo mais a Sul <strong>de</strong> África, on<strong>de</strong><br />

se misturam os oceanos Índico e<br />

Atlântico. Perguntamos “where is<br />

Cabo das Agulhas?”, mas ninguém<br />

enten<strong>de</strong>, até que percebem que queremos<br />

dizer Agalhas, o lugar on<strong>de</strong> as<br />

bússolas se <strong>de</strong>snorteavam. A anglicização<br />

dda língua faz parte do que nos<br />

traz aqui.<br />

Terra <strong>de</strong> revelações, <strong>de</strong> pedir <strong>de</strong>sejos<br />

e afogar mágoas, “uma visão extrema<br />

e abismal <strong>de</strong> inapreensíveis<br />

oceanos”, é o que o poeta Ruy escreve<br />

no mesmo livro.<br />

No dia seguinte a um jantar num<br />

restaurante <strong>de</strong> portugueses fugidos<br />

das ex-colónias, continuamos cami-<br />

O Cabo das Agulhas é “uma<br />

visão extrema e abismal<br />

<strong>de</strong> inapreensíveis oceanos”,<br />

zona <strong>de</strong> confluência do<br />

Atlântico e do Índico.<br />

Perguntamos “where is Cabo<br />

das Agulhas?”, mas ninguém<br />

enten<strong>de</strong>. A anglicização<br />

da língua faz parte do que<br />

nos traz aqui<br />

nho. A Cida<strong>de</strong> do Cabo surge emoldurada<br />

pela Montanha com nome <strong>de</strong><br />

Mesa e pela outra, da Cabeça <strong>de</strong> Leão.<br />

Num hotel para “backpackers” da<br />

Long Street, uma longa conversa fica<br />

filmada como base do movimento<br />

neo-animista que o Ruy quer criar<br />

com a nossa ajuda. Para isso temos<br />

matéria <strong>de</strong> reflexão e acção. Eis algumas<br />

pistas: o Império contém a sua<br />

própria crítica. É preciso criar ilhas<br />

<strong>de</strong> resistência, e outros paradigmas<br />

que <strong>de</strong>nunciem, critiquem e ofereçam<br />

alternativas ao paradigma humanista<br />

e ao progresso. É preciso dar voz a<br />

narrativas silenciadas ou ignoradas<br />

por outras dominantes. Temos <strong>de</strong> procurar<br />

teses, elites, utopias, literatura<br />

e imagens para dizer várias vezes a<br />

mesma coisa até esta se tornar simples.<br />

Tudo se joga na diferença entre<br />

a economia do equilíbrio e a economia<br />

do crescimento, que é obrigada a crescer<br />

sempre, porque se não cresce colapsa,<br />

como está a acontecer agora.<br />

Comemos carne <strong>de</strong> caça e no bar<br />

um velho faz-nos hesitar: terá saído<br />

da guerra anglo-bóer ou do “Senhor<br />

30 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


do Anéis”? É um elfo com enormes<br />

cabelos e barbas brancas num corpo<br />

pequeno e magro, e dança como uma<br />

borboleta em frente ao trio <strong>de</strong> mulatos<br />

que toca jazz. O Cabo continua<br />

uma cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> boa música e gente<br />

bizarra.<br />

A alma da viagem<br />

Subimos a costa com um cheirinho<br />

do Kalahari, o <strong>de</strong>serto que liga a África<br />

do Sul à Namíbia. Perto da costa,<br />

os vales imensos <strong>de</strong> castanho e ver<strong>de</strong>,<br />

enormes fendas na profusão da natureza,<br />

e a sua violência própria. Ruy<br />

i<strong>de</strong>ntifica phynbos, a vegetação característica<br />

<strong>de</strong>ste lado atlântico (comum<br />

à Patagónia e ao Lago Vitória).<br />

Springbok é zona <strong>de</strong> flores, mas<br />

falhámos por pouco o florir primaveril<br />

dos prados, e por isso o amarelotorrado<br />

cobre a pedra. Cheira a esteva.<br />

Ficamos num albergue perto das<br />

montanhas. É proprieda<strong>de</strong> do pai <strong>de</strong><br />

uma velhota <strong>de</strong> olhos azul-british que<br />

nos recebe com o cabelo apanhado<br />

a <strong>de</strong>scobrir as rugas, numa casa com<br />

um caniche e muitos retratos. Luhuna<br />

e Miguel sobem o monte para filmar<br />

mais um pôr-do-sol. Já são várias<br />

as cassetes com pôres-do-sol. Mas<br />

nunca se filme o sol <strong>de</strong> frente que a<br />

câmara po<strong>de</strong> estoirar, tal como os<br />

olhos po<strong>de</strong>m cegar. O Ruy fica no lugar<br />

do braai (grelhador) a fumar cigarros<br />

com o seu ar vigilante <strong>de</strong> lobo<br />

do mar. Eu leio o “Disgrace”, do Coetzee,<br />

no cimo <strong>de</strong> uma rocha. O jardineiro<br />

diz-me para ter cuidado com<br />

as cobras, que esta é a hora <strong>de</strong> dormirem.<br />

Um bater <strong>de</strong> asas, um réptil<br />

que passa, uma brisa.<br />

Ruy fala da sabedoria das ida<strong>de</strong>s.<br />

“Que viagens po<strong>de</strong>rão dizer-se ‘réussies’<br />

[conseguidas]? Aquelas em que<br />

<strong>tudo</strong> ‘corre bem’, ou as outras, recheadas<br />

<strong>de</strong> imprevisto e <strong>de</strong> aventura?”<br />

Marta Mestre evoca a interiorida<strong>de</strong><br />

da viagem, o “sairmos <strong>de</strong> nós mesmos”:<br />

“Em viagem <strong>de</strong>scentras-te com<br />

mais intensida<strong>de</strong>, tornando <strong>tudo</strong> matéria<br />

que relacionamos com a nossa<br />

experiência e preconceito.” Pergunto-lhe<br />

o que ficou da viagem à África<br />

do Sul. Pela acumulação <strong>de</strong> “veld”,<br />

nome que se dá aos gran<strong>de</strong>s espaços<br />

rurais, escreve ela: “Tratei <strong>de</strong> fazer o<br />

que tinha <strong>de</strong> fazer: dar lugar em tempo<br />

real ao tique crónico <strong>de</strong> dar sentido<br />

e continuar a garantir a vida suportável”.<br />

Ou, como escreve o Ruy,<br />

a permanente incomodida<strong>de</strong> física<br />

da alma. Foi muito tempo à conversa<br />

com o mais-velho.<br />

Já são várias as cassetes com o<br />

pôr-do-sol, mas nunca se filma<br />

o sol (sobre<strong>tudo</strong> o sol sul-africano)<br />

<strong>de</strong> frente, que a câmara<br />

po<strong>de</strong> estoirar<br />

A viagem no mapa,<br />

o país no chão<br />

Uma última noite nas margens do rio<br />

Orange, em Upington (nome do primeiro-ministro<br />

da então colónia inglesa<br />

do Cabo), mais uma das muitas<br />

cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> abastecimento agrícola<br />

que parecem a mais profunda América<br />

que eu nunca visitei.<br />

Regressamos na imensa estrada até<br />

Joanesburgo, passando pelos 40 quilómetros<br />

do Soweto. A extracção do<br />

ouro para os bolsos do Estado e das<br />

empresas continua imparável. Subscrevemos<br />

a facilida<strong>de</strong> com que se faz<br />

turismo na África do Sul: estradas,<br />

serviços, comida, paz e tranquilida<strong>de</strong>,<br />

guardada a insegurança para as gran<strong>de</strong>s<br />

cida<strong>de</strong>s. O coração acumula simpatias<br />

e nenhum percalço, o bolso não<br />

sai muito <strong>de</strong>sforrado.<br />

“We can´t wait, let’s go 2010!” gritam<br />

eufóricos os cartazes, com o cuidado<br />

<strong>de</strong> colocar caras negras, brancas<br />

e coloridas no país multiracial, a<br />

anunciar o Mundial. Esperança <strong>de</strong><br />

que muita coisa mu<strong>de</strong>. Não fosse a<br />

cartografia tão <strong>de</strong>marcada das “townships”,<br />

on<strong>de</strong> subsiste um forte<br />

apartheid <strong>de</strong> negros pobres, com focos<br />

<strong>de</strong> indignação para receio dos<br />

ricos - e isto num país on<strong>de</strong> são assassinadas<br />

50 pessoas por dia, com o<br />

presi<strong>de</strong>nte Zuma a or<strong>de</strong>nar à polícia:<br />

“atirar para matar” -, e o país <strong>de</strong> primeiro<br />

mundo estaria preparado para<br />

receber os turistas e as selecções.<br />

Acabou a viagem e o escritor parece<br />

<strong>de</strong>primido, não sai do quarto zulu.<br />

Cada caranguejo irá para o seu buraco<br />

no dia seguinte: Maputo, Namíbia,<br />

Portugal e Brasil. Um jovem zimbabweano<br />

recolhe as beatas dos cigarros<br />

que fumamos juntos entre risos.<br />

Numa viagem <strong>de</strong>stas acabamos por<br />

ser todos indispensáveis, e isso resume<br />

bem uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> harmonia, efémera,<br />

como <strong>tudo</strong> o que é interessante<br />

neste mundo. Como as paisagens.<br />

No jardim leio Coetzee. Conta precisamente<br />

como as pessoas da África<br />

tribal emigraram para as cida<strong>de</strong>s em<br />

busca <strong>de</strong> trabalho, estabelecendo-se<br />

num meio urbano novo e assombroso,<br />

que ele consi<strong>de</strong>ra uma dádiva europeia<br />

a África. Diz que o mundo no<br />

qual nascemos é o nosso mundo, <strong>tudo</strong><br />

o que há agora é, para esta geração,<br />

inquestionável. Conhecer a história<br />

<strong>de</strong> um lugar em profundida<strong>de</strong>,<br />

para ver o seu passado em palimpsesto<br />

por baixo do presente, é importante.<br />

“Mas a história só tem vida se<br />

lhe <strong>de</strong>rem um poiso na nossa consciência.”<br />

Esta viagem foi esse lugar.<br />

Alberto Carneiro | Rui Chafes<br />

Curadoria: Sara Antónia Matos<br />

Exposição: 10 <strong>de</strong> Março até 21 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 2010<br />

Horário: <strong>de</strong> quarta-feira a sábado, das 15h às 20h<br />

Por ocasião da exposição será publicado um catálogo, co-edição fcc / assírio & alvim<br />

Ciclo <strong>de</strong> conversas:<br />

Paulo Pires do Vale – dia 10 <strong>de</strong> Abril (sábado) às 17h00<br />

Bernardo Pinto <strong>de</strong> Almeida – dia 17 <strong>de</strong> Abril (sábado) às 17h00<br />

João Miguel Fernan<strong>de</strong>s Jorge – dia 15 <strong>de</strong> Maio (sábado) às 17h00<br />

fundação carmona e costa<br />

Edifício Soeiro Pereira Gomes (antigo Edifício da Bolsa Nova <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>)<br />

Rua Soeiro Pereira Gomes, Lte 1- 6.ºD, 1600-196 <strong>Lisboa</strong><br />

(Bairro do Rego / Bairro Santos)<br />

Tel. 217 803 003 / 4<br />

www.fundacaocarmonaecosta.pt<br />

Metro: Sete Rios / Praça <strong>de</strong> Espanha / Cida<strong>de</strong> Universitária<br />

Autocarro: 31<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 31


Dez anos <strong>de</strong> um festival não se contam<br />

pelos <strong>de</strong>dos. Uma a uma, cada edição<br />

do Festival Internacional <strong>de</strong> Marionetas<br />

e Formas Animadas (Fimfa) quis<br />

trazer a <strong>Lisboa</strong>, e muitas vezes indo<br />

até outras cida<strong>de</strong>s, o que <strong>de</strong> melhor<br />

se ia fazendo pelo mundo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse<br />

vasto conceito que é marioneta.<br />

Este ano, e mais uma vez, o Fimfa,<br />

assinado por Rute Ribeiro e Luís Vieira,<br />

marionetistas e directores artísticos<br />

quer do Fimfa, quer da companhia<br />

Tarumba (este ano a fazer 17 <strong>de</strong><br />

percurso), faz das dificulda<strong>de</strong>s uma<br />

força e, em ano redondo, apresenta<br />

uma programação invejável que não<br />

está interessada em discutir o que é<br />

e não é marioneta. Afinal são “seiscentos<br />

anos <strong>de</strong> diferença entre espectáculos<br />

e cada um escolhe o que quer<br />

ver”, dizem-nos.<br />

Há-as <strong>de</strong> todas as formas e feitios:<br />

<strong>de</strong> sombra, papel, <strong>de</strong> luva, por fios,<br />

na rua, em caixas <strong>de</strong> fósforo ou gran<strong>de</strong>s<br />

máquinas, adaptando textos clássicos,<br />

inventando ficções a partir <strong>de</strong><br />

biografias, ou o seu contrário, contando<br />

a história do mundo em bonecos<br />

feitos <strong>de</strong> barro ou com gambas,<br />

passando o espelho, inventando circos<br />

que não passam <strong>de</strong> caves, usando<br />

o ví<strong>de</strong>o e a música não como auxílios<br />

mas como verda<strong>de</strong>iros motores dramatúrgicos...<br />

e sexo, muito sexo que<br />

as marionetas são iguais a nós.<br />

Dez anos <strong>de</strong>pois, e mesmo se a i<strong>de</strong>ia<br />

inicial <strong>de</strong> contribuírem para uma evolução<br />

da técnica e da estética da criação<br />

nacional não produziu resultados<br />

esperados – “vivemos cada edição<br />

abaixo da nossa ambição” –, nem as<br />

programações dos espaços <strong>de</strong>spertaram<br />

para a apresentação regular <strong>de</strong><br />

espectáculos on<strong>de</strong> a marioneta esteja<br />

presente – “mas têm connosco uma<br />

relação <strong>de</strong> confiança e cumplicida<strong>de</strong>,<br />

sem que sejamos obrigados a ce<strong>de</strong>r<br />

no plano estético ou estratégico” –, o<br />

festival faz o papel <strong>de</strong> momento único<br />

no calendário teatral, “<strong>de</strong> espaço<br />

mental na cida<strong>de</strong> para a marioneta”,<br />

como nos diz Luís Vieira.<br />

“Hoje vou lá fora ver espectáculos<br />

sobre os quais tenho que dizer que,<br />

em <strong>Lisboa</strong>, seriam uma catástrofe. A<br />

recepção do público mudou muito”.<br />

Isso <strong>de</strong>ve-se, em particular, a um regime<br />

<strong>de</strong> não cedência no entendimento<br />

generalizado e superficial do que<br />

é uma marioneta. “Atrás <strong>de</strong> uma marioneta<br />

está sempre um marionetista.<br />

É um teatro <strong>de</strong> duplo para o qual não<br />

faz sentido uma discussão sobre se é<br />

com fios ou sem fios, com papel, <strong>de</strong><br />

luva...”, dizem.<br />

O Fimfa tornou-se um dos poucos<br />

casos, em Portugal, que dialoga <strong>de</strong><br />

igual para igual com as outras companhias<br />

e festivais <strong>de</strong> teatro dito, agora<br />

sim, convencional. No universo da marioneta<br />

contam-se pelos <strong>de</strong>dos, isso<br />

sim <strong>de</strong> uma mão, os exemplos <strong>de</strong> quem<br />

o consegue fazer: Teatro <strong>de</strong> Marionetas<br />

do Porto (que apresenta o aliciano<br />

“Won<strong>de</strong>rland”, Teatro Maria Matos, 11<br />

e 12), Teatro do Ferro, Festival Internacional<br />

<strong>de</strong> Marionetas do Porto, Bienal<br />

<strong>de</strong> Marionetas <strong>de</strong> Évora e o Fimfa. O<br />

resto é, <strong>de</strong> facto, paisagem.<br />

A maturida<strong>de</strong> da programação, a<br />

coerência do percurso e a exigência<br />

falam por si. Quando os apoios tardam<br />

(são 150 mil euros por ano <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>spesas que ultrapassam em mais<br />

do dobro o que recebem da Direcção<br />

Geral das Artes para a programação<br />

do festival e a produção regular da<br />

companhia), quando a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

fazer fica refém das condições reais<br />

ou quando as invejas falam mais alto,<br />

é à cumplicida<strong>de</strong> que encontram nos<br />

diferentes espaços <strong>de</strong> apresentação<br />

em <strong>Lisboa</strong> (este ano: Maria Matos,<br />

Museu da Marioneta, CCB, Museu do<br />

Oriente, Largo do Chiado, São Jorge,<br />

Teatro D. Maria II e uma extensão no<br />

Teatro <strong>Municipal</strong> da Guarda), ao interesse<br />

dos voluntários em colaborar,<br />

ao público que logo em Janeiro lhes<br />

começa a perguntar pela programação<br />

e aos artistas que aceitam vir a<br />

<strong>Lisboa</strong> por reconhecerem a liberda<strong>de</strong><br />

criativa e programática da programação<br />

que vão buscar argumentos para<br />

prosseguir.<br />

Monstros sagrados<br />

Esta dupla dinâmica, <strong>de</strong> um discurso<br />

entusiasmante que alerta os sentidos<br />

para um entendimento da marioneta<br />

para lá do enclausuramento estilístico,<br />

quis, este ano, por ser redondo o<br />

número mas não só, homenagear<br />

“monstros sagrados” do universo da<br />

marioneta, fazendo prova <strong>de</strong> que há<br />

mais para alem do fugaz entretenimento.<br />

A <strong>Lisboa</strong> vão chegar nomes<br />

fundamentais da história do teatro<br />

contemporâneo, como Toni Rumbau,<br />

que veio ao festival em 2007, e que<br />

em 1974 foi ter aos Açores, vindo <strong>de</strong><br />

Espanha e apaixonado por uma portuguesa,<br />

empoleirado num jipe militar,<br />

para mostrar ao povo como as<br />

marionetas podiam participar das<br />

campanhas <strong>de</strong> alfabetização e, por<br />

isso mesmo, se tornou marionetista.<br />

“A Manos Llenas” (Museu da Marioneta,<br />

10 e 11) junta o que é classificado<br />

como marioneta <strong>de</strong> luva popular com<br />

uma manipulação visual <strong>de</strong> sombras,<br />

mãos e objectos, e on<strong>de</strong> a música tem<br />

papel fundamental numa história <strong>de</strong><br />

personagens clássicas <strong>de</strong> espectáculos<br />

populares.<br />

Como este, também Roman Paska<br />

(“Schoolboy Play”, Teatro Nacional,<br />

28 e 29), nome absoluto do perfeccionismo<br />

e da minúcia, norte-americano<br />

<strong>de</strong> nascença e antigo director da referência<br />

mundial que é o festival <strong>de</strong><br />

Teatro<br />

Toni Rumbau<br />

“A Manos Llenas”<br />

(Museu da Marioneta,<br />

10 e 11) junta<br />

o que é classificado<br />

como marioneta<br />

<strong>de</strong> luva popular<br />

com uma manipulação<br />

visual<br />

<strong>de</strong> sombras, mãos<br />

e objectos<br />

“São seiscentos anos<br />

<strong>de</strong> diferença entre<br />

espectáculos e cada um<br />

escolhe o que quer ver”<br />

Rute Ribeiro e Luís<br />

Vieira, marionetistas<br />

e directores artísticos<br />

do Fimfa<br />

Charleville-Mézières, em França, faz<br />

<strong>de</strong> um encontro entre Hitler e Wittgenstein<br />

uma parábola sobre as dores<br />

<strong>de</strong> crescimento. É uma das gran<strong>de</strong>s<br />

peças <strong>de</strong>sta edição pela capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> trabalhar a manipulação das marionetas<br />

e, sobre<strong>tudo</strong>, em fazer interligar<br />

diferentes modos <strong>de</strong> narrativa<br />

visual, cénica e dramatúrgica, em <strong>tudo</strong><br />

semelhante ao aparato técnico e<br />

imagético do colectivo holandês Hotel<br />

Mo<strong>de</strong>rn, <strong>de</strong> regresso <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> “The<br />

Um fio, outro fio e d<br />

32 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon<br />

Começou ontem e <strong>de</strong>corre até 30 <strong>de</strong> Maio um dos mais belos segredos do país: o Festival<br />

Traz a <strong>Lisboa</strong> o melhor do que se anda a fazer em nome <strong>de</strong> uma marioneta cada vez


Great War” (2007) e “Kamp” (2008),<br />

com “The Shrimp Tales” (Maria Matos,<br />

14 e 15), que analisa o estado do<br />

mundo, e o caminho até a este estado<br />

<strong>de</strong> coisas, usando como mo<strong>de</strong>los para<br />

compreen<strong>de</strong>r o humano 300 gambas<br />

embalsamadas.<br />

Esta noção <strong>de</strong> que o espectáculo <strong>de</strong><br />

marionetas é mais amplo do que aquilo<br />

que dá a ver, e sobre<strong>tudo</strong> dando a<br />

ver um mundo tão ou mais igual ao<br />

que é apresentado no “outro” teatro,<br />

JORGE RAEDÓ<br />

está também presente no seminal trabalho<br />

da companhia checa Alfa Theatre<br />

que com “Os Três Mosqueteiros”<br />

(Museu da Marioneta, 13 a 15), para<br />

alem da óbvia inspiração na obra <strong>de</strong><br />

Dumas, junta o burlesco do filme mudo<br />

<strong>de</strong> Max Lin<strong>de</strong>r, “L’Étroit Mousquetaire”,<br />

para <strong>de</strong>smontar a ilusão promovida<br />

pela manipulação <strong>de</strong> marionetas<br />

<strong>de</strong> luva. E, claro, porque entre<br />

o teatro e o mundo não há nada a separar,<br />

as marionetas são, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre,<br />

perfeitos veículos para narrativas<br />

parateatrais. É isso que fazem os Bonecos<br />

<strong>de</strong> Santo Aleixo (“Auto da Criação<br />

do Mundo”, 8 e 9, Museu da Marioneta)<br />

ex-líbris nacional e presença<br />

obrigatória nesta edição “porque tinha<br />

que ser”, dizem-nos sem ironia,<br />

e a companhia do Japão Awa Deco<br />

Hakomawahi Wo Fukkatsuru Kai que,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> correr risco <strong>de</strong> ver <strong>de</strong>saparecer<br />

a tradição, mostra a peça “Hakomawashi”<br />

(Museu do Oriente, 13 a 15)<br />

que recupera esse gesto ritualista <strong>de</strong><br />

partilha <strong>de</strong> boas novas e protecção<br />

contra as maleitas, antigamente praticado<br />

por indivíduos chamados <strong>de</strong><br />

burakumini, pertencentes às minorias<br />

étnicas que, curiosamente, formavam<br />

parte das companhias <strong>de</strong> on<strong>de</strong> saíam<br />

os gran<strong>de</strong>s actores do teatro Nô.<br />

Entre outros, estes são casos <strong>de</strong> peças<br />

que dão conta do leque amplo que<br />

tem caracterizado o Fimfa. “Há uma<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> mostrar o que <strong>de</strong> melhor<br />

se faz”, confessam os organizadores.<br />

“Nem sempre po<strong>de</strong>mos trazer <strong>tudo</strong><br />

o que queremos. Esforçamo-nos por<br />

programar com a maior antecedência<br />

possível mas há peças que não conseguimos<br />

trazer, seja porque saíram<br />

do reportório da companhia, porque<br />

as pessoas morreram ou porque são<br />

caras”. Mas casos há em que a vonta<strong>de</strong><br />

não supera a economia real.<br />

Em ano <strong>de</strong> celebração o Fimfa ficará<br />

marcado pelo confronto entre o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento da estética teatral<br />

por via das marionetas e as condições<br />

<strong>de</strong> produção <strong>de</strong>sse mesmo <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

O Theater Taptoe, companhia<br />

belga que veio em 2001, termina<br />

a sua carreira <strong>de</strong> 42 anos nos dias 27,<br />

28 e 29 <strong>de</strong> Maio no Teatro Nacional,<br />

apresentando “Geneviève... si chaste,<br />

si pure”, portentosa e imaginativa<br />

construção em papel que revela, num<br />

jogo meta-teatral, a <strong>de</strong>cadência <strong>de</strong><br />

uma organização feudal.<br />

O fim <strong>de</strong>sta companhia, dirigida<br />

por um dos mais reputados marionetistas<br />

no mundo, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> emocionar<br />

duplamente os directores do<br />

Fimfa: por revelar a precarieda<strong>de</strong><br />

com que se trabalha, mesmo num<br />

país como a Bélgica, berço da contemporaneida<strong>de</strong><br />

e, num plano mais<br />

pessoal, por escolherem <strong>Lisboa</strong> para<br />

o fazer.<br />

Esta relação <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> está<br />

na base orgânica do Fimfa e enche <strong>de</strong><br />

orgulho Rute Ribeiro e Luís Vieira. A<br />

poucos dias do início do festival, e<br />

quando anunciam estar já a preparar<br />

a próxima edição, “mas sem po<strong>de</strong>r<br />

assumir muitos compromissos” por<br />

razões <strong>de</strong> calendário <strong>de</strong> abertura <strong>de</strong><br />

novos programas <strong>de</strong> apoio, não querem<br />

colocar-se em bicos <strong>de</strong> pés e festejar<br />

os <strong>de</strong>z anos como se fossem algo<br />

<strong>de</strong> extraordinário. São-no. Mas <strong>de</strong>z<br />

anos <strong>de</strong>pois, quando lhes perguntamos<br />

se se lembram porque quiseram<br />

fazer um festival, dizem-nos: “era coisa<br />

mais evi<strong>de</strong>nte”. A evidência acampa,<br />

uma vez mais, em <strong>Lisboa</strong> por um<br />

mês.<br />

NICK MANGAFAS<br />

PAULINE KALKER<br />

Hotel<br />

Mo<strong>de</strong>rn<br />

“The Shrimp<br />

Tales” (Maria<br />

Matos, 14 e 15),<br />

analisa o estado<br />

do mundo<br />

usando como<br />

mo<strong>de</strong>los para<br />

compreen<strong>de</strong>r<br />

o humano<br />

300 gambas<br />

embalsamadas<br />

HAKO<br />

Roman<br />

Paska<br />

Em “Schoolboy<br />

Play” (Teatro<br />

Nacional, 28<br />

e 29) faz <strong>de</strong><br />

um encontro<br />

entre Hitler<br />

e Wittgenstein<br />

uma parábola<br />

sobre as dores<br />

<strong>de</strong> crescimento<br />

<strong>de</strong> athol fugard<br />

l<br />

Awa Deco<br />

Hakomawahi<br />

Wo<br />

Fukkatsuru<br />

Kai<br />

“Hakomawashi”<br />

(Museu do<br />

Oriente, 13 a 15) ,<br />

a recuperação<br />

<strong>de</strong> gestos<br />

ritualistas<br />

e <strong>de</strong> tradições<br />

à beira do fim<br />

<strong>tudo</strong><br />

<strong>de</strong>pois...<br />

Internacional <strong>de</strong> Marionetas e Formas Animadas.<br />

menos presa por fios. Tiago Bartolomeu Costa<br />

De 6 <strong>de</strong> Maio a 6 <strong>de</strong> Junho<br />

Tradução: Jaime Salazar Sampaio; Encenação: Beatriz Batarda; Cenário e figurinos:<br />

Cristina Reis; Desenho <strong>de</strong> luz: José Nuno Lima; Sonoplastia: Sérgio Milhano.<br />

Interpretação: Catarina Lacerda e Dinarte Branco.<br />

Co-produção<br />

De 3ª a Sábado às 21.00h. Domingo às 16.00h TEATRO DO BAIRRO ALTO<br />

R.Tenente Raul Cascais, 1A. 1250 <strong>Lisboa</strong> Telef: 213961515 / Fax 213954508<br />

e-mail: info@teatro-cornucopia.pt<br />

Estrutura financiada pelo<br />

Apoios<br />

http://www.teatro-cornucopia.pt<br />

2010<br />

M/12<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 33


Para “o mundo secreto das feridas”<br />

sobre o qual Athol Fugard gosta <strong>de</strong><br />

trabalhar, Ester e Johnnie são seres<br />

perfeitos. Os dois irmãos são as únicas<br />

personagens na peça “Olá e A<strong>de</strong>usinho”<br />

que o sul-africano escreveu,<br />

encenou e representou (enquanto<br />

Johnnie) nos anos 1960. Dois seres<br />

sozinhos, que <strong>de</strong>sembrulham a podridão<br />

das suas vidas, aos poucos, no<br />

palco. Não são fantasmas, mas neles<br />

a vida quase <strong>de</strong>saparece <strong>de</strong> tão corroída<br />

por recordações que são só erros<br />

e feridas.<br />

Beatriz Batarda <strong>de</strong>ixou-se tentar<br />

por essa forma <strong>de</strong> Fugard tratar as<br />

feridas familiares e convidou Catarina<br />

Lacerda (Ester) e Dinarte Branco ( Johnnie)<br />

para o seu primeiro trabalho<br />

como encenadora (Teatro da Cornucópia,<br />

em <strong>Lisboa</strong>, até 6 <strong>de</strong> Junho, <strong>de</strong>pois<br />

da estreia em Março no Cartaxo<br />

e <strong>de</strong> uma digressão pelo país que continuará<br />

em Julho em Beja e Faro).<br />

“Interessam-me estes temas da família,<br />

da infantilização dos adultos<br />

quando confrontados com feridas<br />

antigas e <strong>de</strong> como per<strong>de</strong>mos o nosso<br />

chão <strong>de</strong> adultos quando estamos <strong>de</strong>ntro<br />

do seio familiar”, expõe Batarda,<br />

que diz ter construído o espectáculo<br />

“com uma visão próxima da representação”.<br />

“A encenação foi muito<br />

marcada pelas minhas preocupações<br />

enquanto actriz.”<br />

Ester é abrupta na sua forma <strong>de</strong><br />

chegar e <strong>de</strong> ser. E ainda mais abrupta<br />

quando tem à frente o irmão num estado<br />

<strong>de</strong> confusão que, por momentos,<br />

se confun<strong>de</strong> com submissão. A força<br />

está nela, que o confronta com a verda<strong>de</strong><br />

e o contagia com o ódio que<br />

sempre sentiu e só isso o faz reagir.<br />

Ele <strong>de</strong>ambula, perdido na ausência<br />

do pai, na in<strong>de</strong>finição do seu ser, misturando<br />

a sua inércia com uma sempre<br />

presente vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus.<br />

Ester, “pessoa seca e irónica”, <strong>de</strong>senvolveu<br />

pelo sofrimento formas <strong>de</strong><br />

se relacionar com o outro “sem se<br />

<strong>de</strong>ixar tocar”, <strong>de</strong>screve a actriz Catarina<br />

Lacerda. “No processo <strong>de</strong> criação,<br />

falámos muito da máscara, dos<br />

mecanismos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa” que ela cria<br />

na sua procura “<strong>de</strong> uma recordação,<br />

<strong>de</strong> algo que a faça olhar para o passado<br />

e ver uma motivação para seguir<br />

em frente”, continua a actriz. Nesta<br />

“viagem turbulenta”, a mais velha dos<br />

dois irmãos transforma-se aos olhos<br />

do público e <strong>de</strong>la própria. Quando<br />

volta a casa, à procura do dinheiro <strong>de</strong><br />

uma herança e <strong>de</strong>ssa recordação,<br />

muitos anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter partido,<br />

encontra o irmão, Johnnie, “à beira<br />

da loucura e do suicídio”, explica, por<br />

sua vez, o actor Dinarte Branco.<br />

O choque <strong>de</strong> Johnnie é brutal no<br />

seu confronto com sonhos nunca concretizados<br />

e com a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

fazer algo por si próprio <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

toda a vida a cuidar <strong>de</strong> um pai <strong>de</strong>ficiente.<br />

É a irmã que diz a Johnnie<br />

quem ele é, que o obriga a encarar<br />

que Deus não existe. E que não existindo<br />

Deus, não há pretexto, nem<br />

<strong>de</strong>sculpa, nem perdão.<br />

Os dois actores, como as suas personagens<br />

“em estado <strong>de</strong> vítimas”,<br />

carregam uma fatalida<strong>de</strong> e um passado<br />

que os asfixia e, que a Johnnie,<br />

paralisa.<br />

No <strong>de</strong>sembrulhar <strong>de</strong> caixas e caixotes,<br />

no <strong>de</strong>sfiar <strong>de</strong> recordações,<br />

vislumbra-se uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

vida. Nas palavras do irmão, há ironia<br />

que provoca o riso, mas não sem dor,<br />

e uma leveza momentânea, mas afinal<br />

falsa. “É um riso, mas é um riso<br />

nervoso, por causa da tensão”, diz<br />

Batarda. “E isso é muito interessante<br />

no texto.”<br />

A escolha da encenadora e dos actores<br />

foi “não lhes dar perdão, não<br />

acreditar que há re<strong>de</strong>nção”, explica<br />

Batarda. “Há um renascer mas um<br />

renascer igualmente podre.” Uma<br />

esperança quando a luz aponta para<br />

uma porta e nos mostra que o beco<br />

afinal tem saída? “Uma esperança <strong>de</strong><br />

sobrevivência mas não <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>.<br />

Nem <strong>de</strong> perdão.” Nesta encenação,<br />

“há menos pensamentos poéticos<br />

sobre a vida”. “Não interessam nada.<br />

É teatro e é catarse, e a catarse também<br />

se manifesta <strong>de</strong> forma poética”,<br />

diz a encenadora.<br />

Retrato psicólogo e social<br />

Encorajada a experimentar a encenação<br />

por Luís Miguel Cintra e Carlos<br />

Aladro que a encenou em “De Homem<br />

para Homem”, em 2008, Batarda<br />

foi à prateleira on<strong>de</strong> guarda os<br />

“Interessam-me<br />

os temas da família,<br />

da infantilização<br />

dos adultos quando<br />

confrontados com<br />

feridas antigas<br />

e <strong>de</strong> como per<strong>de</strong>mos<br />

o nosso chão<br />

<strong>de</strong> adultos <strong>de</strong>ntro<br />

do seio familiar”<br />

Beatriz Batarda<br />

textos que gostaria <strong>de</strong> trabalhar. Desta<br />

vez não como actriz, mas como<br />

encenadora. E escolheu Fugard por<br />

ser um autor <strong>de</strong> temas que lhe interessam<br />

“como a injustiça, a segregação,<br />

a exclusão, sempre escritos <strong>de</strong><br />

maneira muito humana”. Nota: “Fugard,<br />

para além <strong>de</strong> dramaturgo, é<br />

encenador e actor, e isso reflecte-se<br />

na maneira como escreve. As personagens<br />

são construídas <strong>de</strong> forma concreta<br />

do ponto <strong>de</strong> vista psicológico e<br />

comportamental. Mas a peça fala-nos<br />

<strong>de</strong> mais coisas do que <strong>de</strong> psicologia<br />

humana.”<br />

No caso <strong>de</strong> Ester e Johnnie, a mãe<br />

é <strong>de</strong> origem inglesa e o pai afrikaner.<br />

No caso <strong>de</strong> Athol Fugard, nascido e<br />

criado, como eles, em condições humil<strong>de</strong>s,<br />

em Port Elizabeth na África<br />

do Sul, o pai é <strong>de</strong> origem inglesa e <strong>de</strong><br />

mãe afrikaner. “O Fugard é os dois,<br />

Ester e Johnnie, é aquela divisão.” O<br />

texto “é muitíssimo pessoal, adaptado<br />

e invertido, mas muito pessoal”,<br />

continua Batarda.<br />

O texto retrata o empobrecimento<br />

dos afrikaners, que imigraram no século<br />

XVII com a crença enraizada <strong>de</strong><br />

que eram o povo eleito numa Terra<br />

Prometida, mas que dois séculos <strong>de</strong>pois<br />

se confrontam com a chegada e<br />

o domínio económico dos ingleses,<br />

simbolizado pela expansão dos caminhos-<strong>de</strong>-ferro,<br />

on<strong>de</strong> trabalhou o pai<br />

<strong>de</strong> Ester e Johnnie e on<strong>de</strong> sonhou trabalhar<br />

Johnnie.<br />

Fugard trata nesta peça esse cruzamento<br />

que cria “conflitos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>s”. Além da tensão psicológica<br />

e do retrato social, a peça<br />

contém “uma forte componente <strong>de</strong><br />

pensamento filosófico e teológico”,<br />

com o questionamento da existência<br />

<strong>de</strong> Deus. “Não há povo eleito coisa<br />

nenhuma”, conclui a encenadora.<br />

“Os afrikaners estão numa situação<br />

<strong>de</strong> beco sem saída e <strong>de</strong> crise com a<br />

sua fé. Portanto, povo eleito, olá e<br />

a<strong>de</strong>usinho.”<br />

Teatro<br />

Beatriz Batarda<br />

no mundo secreto<br />

<strong>de</strong> Athol Fugard<br />

NUNO FERREIRA SANTOS<br />

MIGUEL MADEIRA<br />

Encorajada a experimentar<br />

a encenação por Luís Miguel<br />

Cintra e Carlos Aladro, Batarda<br />

foi à prateleira on<strong>de</strong> guarda<br />

os textos que gostaria<br />

<strong>de</strong> trabalhar<br />

Passa <strong>de</strong> actriz a encenadora com uma peça do sul-africano Athol Fugard. “Olá<br />

e A<strong>de</strong>usinho” fala <strong>de</strong> temas que lhe interessam – i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, a existência ou não<br />

<strong>de</strong> Deus, a diferença entre culpa e responsabilida<strong>de</strong>. Ana Dias Cor<strong>de</strong>iro


Rubem Fonseca<br />

como nunca o vimos<br />

Dois grupos portugueses, a Escola da Noite e a Companhia <strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Braga, juntaramse<br />

para montar mais <strong>de</strong> 20 contos do escritor brasileiro. “1.José 2.Rubem 3.Fonseca” chega<br />

amanhã, com toda a sua violência, ao Theatro Circo, em Braga. Maria João Lopes<br />

Teatro<br />

AUGUSTO BAPTISTA<br />

Foi em 1996, quando estava em viagem<br />

pelo Brasil, que uma amiga lhe<br />

pôs nas mãos “Feliz Ano Novo”, <strong>de</strong><br />

Rubem Fonseca. O encenador António<br />

Augusto Barros recorda esse seu<br />

primeiro contacto com a obra do escritor<br />

brasileiro: “Foi um livro provi<strong>de</strong>ncial<br />

para mim”, diz. Não <strong>de</strong>scansou<br />

enquanto não leu <strong>tudo</strong>. E enquanto<br />

não levou aquelas palavras para<br />

cima do palco.<br />

Está a acontecer agora: pela primeira<br />

vez em Portugal, a obra do escritor<br />

brasileiro que venceu o Prémio Camões<br />

em 2003, foi transposta para<br />

teatro. A Escola da Noite e a Companhia<br />

<strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Braga juntaram-se<br />

e criaram, a partir <strong>de</strong> contos do autor,<br />

a trilogia “1.José 2.Rubem 3.Fonseca”:<br />

um conjunto <strong>de</strong> três espectáculos sobre<br />

os temas da violência, da sexualida<strong>de</strong><br />

e da solidão. Sempre na cida<strong>de</strong>.<br />

Depois da estreia em Coimbra, no Teatro<br />

da Cerca <strong>de</strong> São Bernardo, a trilogia<br />

segue para o Theatro Circo, em<br />

Braga, já a partir <strong>de</strong> amanhã. Em Junho,<br />

Rubem Fonseca volta a Coimbra:<br />

“José” po<strong>de</strong> voltar a ser visto a 4 e 5;<br />

“Rubem” a 8 e 9, e “Fonseca” a 11 e 12.<br />

Com Rubem Fonseca, frisa António<br />

Augusto Barros, há um “corte” com<br />

o ruralismo na literatura brasileira.<br />

Nascem as cida<strong>de</strong>s e os confrontos,<br />

com sangue, morte, cruelda<strong>de</strong>. Ninguém<br />

é poupado. Diz-se <strong>tudo</strong> com<br />

todas as letras, mostra-se a realida<strong>de</strong><br />

com todas as suas agruras. Mas há<br />

comédia também, apesar da tragédia.<br />

As duas fun<strong>de</strong>m-se num humor negro<br />

que faz o público rir, mesmo quando<br />

há cabeças cortadas.<br />

Todos estes temas interessaram à<br />

Escola da Noite, <strong>de</strong> Coimbra, e à Companhia<br />

<strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Braga, que voltaram<br />

a juntar-se – <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> “Sabina<br />

Freire”, em 2009 – para se <strong>de</strong>bruçarem<br />

sobre a obra do contista, romancista<br />

e ensaísta, sta, vencedor também do<br />

Prémio Juan Rulfo. Quanto tempo levaram<br />

a <strong>de</strong>scobrir a obra, a seleccionar<br />

os contos, a estudá-los, a pô-los<br />

em palco? António Augusto Barros<br />

até se ri. Uma<br />

odisseia. A<br />

i<strong>de</strong>ia inicial ial<br />

até era fazer<br />

um só e s -<br />

pectáculo, mas o rial era <strong>de</strong> tal forma<br />

mate-<br />

rico que acabaram<br />

por querer fazer três.<br />

Po<strong>de</strong>m ser vistos damente, e, mas há diálogos<br />

entre os três módulos que<br />

separa-<br />

apenas fazem sentido para<br />

quem vir a trilogia ta, admite o encenador.<br />

comple-<br />

Com Rubem Fonseca<br />

emergem as cida<strong>de</strong>s<br />

e os confrontos<br />

com sangue, morte,<br />

cruelda<strong>de</strong>. Ninguém<br />

é poupado.<br />

Diz-se <strong>tudo</strong> com todas<br />

as letras<br />

As personagens <strong>de</strong> Rubem<br />

Fonseca suce<strong>de</strong>m-se<br />

vertiginosamente nesta trilogia<br />

Apesar da aventura que foi pegar<br />

nestes contos, a encenação acabou<br />

por ser uma tarefa facilitada pelo<br />

“elenco muito variado” (em que se<br />

cruzam os actores das duas companhias)<br />

e pela “força dos textos”. to A<br />

escrita “veloz” <strong>de</strong> Rubem Fonse-<br />

ca, com “uma gran<strong>de</strong> intensida-<br />

<strong>de</strong> dramática”, revela uma<br />

“pro-<br />

ximida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> ao teatro”.<br />

Ao ritmo próprio das<br />

cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>s gran<strong>de</strong>s,<br />

os contos<br />

suce-<br />

<strong>de</strong>m-se<br />

em pal-<br />

co e enchem-no <strong>de</strong> tal for-<br />

ma, através das narrativas<br />

e do corpo das persona-<br />

gens, que o encenador<br />

acabou por optar por um<br />

cenário simples. “A ceno-<br />

grafia é essencialista<br />

e lim-<br />

pa, a i<strong>de</strong>ia era que jogasse ao<br />

contrário. A primeira tenta-<br />

ção era fazer um espaço urbano, mas<br />

assim salta mais a palavra e o jogo dos<br />

actores”, explica. Em palco, por vezes<br />

há biombos, mas o elemento fundamental<br />

é apenas um “estrado”. É<br />

nele que <strong>tudo</strong> se passa: é quarto, consultório<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntista, escritório, cama…<br />

Conhecer mais<br />

Vistos os três espectáculos – cerca <strong>de</strong><br />

sete horas ao todo –, António Augusto<br />

Barros acredita que o espectador fica<br />

com “uma paleta da obra” <strong>de</strong> Rubem<br />

Fonseca. Mas sobre<strong>tudo</strong> com vonta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> conhecer mais: “Acho que é preciso<br />

ser muito insensível para não querer<br />

conhecer mais”, diz. De resto, é<br />

uma pena que o escritor seja tão pouco<br />

conhecido em Portugal: “Falta intercâmbio<br />

entre real entre as duas<br />

culturas [a portuguesa e a brasileira]”,<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, notando que, em todos os<br />

espectáculos, se manteve a maioria<br />

das expressões brasileiras.<br />

Os temas que marcam o universo<br />

<strong>de</strong> Rubem Fonseca – o dia-a-dia das<br />

gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, a violência física e<br />

psicológica, o sexo, a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

comunicação entre as pessoas, a morte,<br />

a indiferença, o crime, a riqueza,<br />

o trabalho, a pobreza – cruzam-se nos<br />

três espectáculos, ainda que seja possível<br />

ver em “José” a violência como<br />

fio condutor, em “Rubem” a sexualida<strong>de</strong>,<br />

e em “Fonseca” a solidão.<br />

Em “José”, por exemplo, há sangue<br />

e morte em vários contos. E, mesmo<br />

naqueles em que a violência não se<br />

manifesta <strong>de</strong> forma explícita, como<br />

“Agora você” (ou “José e seus irmãos”),<br />

ela está lá. É o caso <strong>de</strong> “Hil<strong>de</strong>te”<br />

que, para António Augusto Barros,<br />

é “um dos contos mais violentos”.<br />

Mesmo sem tiros e facas, fala sobre<br />

uma outra violência, cada vez mais<br />

visível nas socieda<strong>de</strong>s contemporâneas<br />

e mediatizadas: a violência <strong>de</strong><br />

fabricar e <strong>de</strong> expor, através <strong>de</strong> manobras<br />

<strong>de</strong> marketing, a vida das pessoas.<br />

Há ainda “Raimundinha”, que não<br />

sabe reconhecer os inimigos que se<br />

aproveitam da sua ingenuida<strong>de</strong>. E um<br />

homem, em “A Escolha”, que se divi<strong>de</strong><br />

entre uma ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> rodas e uma<br />

<strong>de</strong>ntadura. É um dos <strong>de</strong>s<strong>de</strong>ntados do<br />

universo <strong>de</strong> Rubem Fonseca. Os pobres<br />

não têm dinheiro para arranjar<br />

os <strong>de</strong>ntes.<br />

Mas uma das personagens mais<br />

marcantes <strong>de</strong> “José” é o Cobrador (do<br />

conto homónimo), um homem que<br />

cobra dívidas à socieda<strong>de</strong>, sobre<strong>tudo</strong><br />

aos que pertencem às classes mais<br />

abastadas. Devem-lhe a dignida<strong>de</strong>,<br />

argumenta: “Tão me <strong>de</strong>vendo colégio,<br />

namorada, aparelho <strong>de</strong> som, respeito,<br />

sanduíche <strong>de</strong> morta<strong>de</strong>la no botequim<br />

da rua Vieira Fazenda, gelado, bola<br />

<strong>de</strong> futebol”, diz. Com o Cobrador, sim,<br />

há morte e sangue em palco. Como<br />

na vida.<br />

Ver agenda <strong>de</strong> espectáculos pág. 38<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 35


Dança<br />

Ela anda há mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos a <strong>de</strong>ixarse<br />

ir aon<strong>de</strong> a levam os ví<strong>de</strong>os <strong>de</strong> Daniel<br />

Blaufuks – e os ví<strong>de</strong>os <strong>de</strong> Daniel<br />

Blaufuks levaram-na a sair (“Vooum”,<br />

<strong>de</strong> 1999) e a entrar (“No Fly Zone”, <strong>de</strong><br />

2000), a sair e a entrar constantemente,<br />

como se não houvesse vida on<strong>de</strong><br />

não há viagem (muito <strong>de</strong>pois disso,<br />

em 2007, o Teatro Nacional S. João<br />

voltou a olhar para essas peças, juntou-as<br />

num ciclo e chamou-lhes “movimentantes”:<br />

parecia óbvio). Agora<br />

há vida outra vez, em “a praça”, a nova<br />

criação <strong>de</strong> Né Barros que tem hoje<br />

estreia na Culturgest, em <strong>Lisboa</strong>: vida<br />

em todos os centímetros da Djemaa<br />

El-Fnaa, a praça <strong>de</strong> carne e osso que<br />

Daniel Blaufuks filmou numa cida<strong>de</strong><br />

mais velha do que o mundo, Marraquexe,<br />

e vida em todos os centímetros<br />

da praça virtual que a coreógrafa<br />

constrói em palco, organizando, <strong>de</strong>sorganizando<br />

e reorganizando os corpos<br />

dos quatro bailarinos (Ángel Montero<br />

Vázquez, Joana Castro, Katja Juliana<br />

Geiger e Pedro Rosa), enquanto<br />

a banda sonora criada <strong>de</strong> raiz por Alexandre<br />

Soares e Jorge Queijo fala pelo<br />

menos tantas línguas quantas as<br />

que ouviríamos se andássemos por<br />

aí, sem parar, e o mundo inteiro fosse<br />

o sítio a que chamamos casa.<br />

Casa é isso, diz Né Barros: andar<br />

por aí. “‘a praça’ vem na sequência<br />

“Estar no meio<br />

<strong>de</strong> uma praça faz-nos<br />

ser qualquer coisa.<br />

É o tipo <strong>de</strong> sítio<br />

que está sempre<br />

preparado para<br />

que algo aconteça”<br />

Né Barros<br />

dos outros trabalhos que eu fiz com<br />

o Daniel Blaufuks, muito centrados<br />

na i<strong>de</strong>ia da viagem, da paisagem, do<br />

humano enquanto paisagem, do nomadismo<br />

vivido quase como condição<br />

e motor existencial”, explica. Tal<br />

como os movimentantes que habitavam<br />

as suas criações anteriores, e que<br />

agora regressam, a praça on<strong>de</strong> <strong>tudo</strong><br />

isto se passa é um lugar ambulante:<br />

“[Atravessar uma praça] não é como<br />

atravessar uma rua (...). Quando estamos<br />

na praça <strong>de</strong>ambulamos. Derivamos<br />

(...). Representamos também”,<br />

escreveu a coreógrafa no programa<br />

que acompanha a peça. Viu vários<br />

ví<strong>de</strong>os <strong>de</strong> Daniel Blaufuks antes <strong>de</strong><br />

fazer “pause” a estes, e <strong>de</strong> querer ficar<br />

por ali, na Djemaa El-Fna, a praça<br />

das praças, entre marroquinas às<br />

compras, turistas <strong>de</strong> máquina fotográfica,<br />

cegos vindos dos relatos <strong>de</strong><br />

Elias Canetti, contadores <strong>de</strong> histórias,<br />

encantadores <strong>de</strong> serpentes, cozinheiros<br />

<strong>de</strong> branco, miúdos da escola, no<br />

ponto exacto on<strong>de</strong> o Oci<strong>de</strong>nte se passa<br />

para o lado <strong>de</strong> lá, explica ao Ípsilon:<br />

“É uma praça muito particular,<br />

porque tem uma diversida<strong>de</strong> cultural<br />

extremamente evi<strong>de</strong>nte. Há marcas<br />

muito evi<strong>de</strong>ntes das diferenças culturais<br />

nestas imagens. Havia outras<br />

hipóteses, outras imagens que o Daniel<br />

tinha feito na Índia, ou em Nova<br />

Iorque, mas todas essas outras viagens,<br />

acabam por estar ali”.<br />

A praça é a própria viagem.<br />

Barulhos <strong>de</strong> fundo<br />

Também houve outra coisa que se<br />

tornou evi<strong>de</strong>nte à medida que a praça<br />

ganhou vida, nos ensaios: a praça,<br />

enquanto lugar <strong>de</strong> representação social,<br />

é uma metáfora do palco (ou então<br />

é o palco que é uma metáfora da<br />

praça, <strong>de</strong> qualquer praça). “Estar no<br />

meio <strong>de</strong> uma praça faz-nos ser qualquer<br />

coisa. É o tipo <strong>de</strong> sítio que está<br />

sempre preparado para que algo<br />

aconteça. Exactamente como um palco.<br />

O [filósofo francês] Michel Serres<br />

fala disso, da praça como um corpo<br />

nu, à espera <strong>de</strong> ser construído”, sublinha<br />

Né Barros.<br />

Depois <strong>de</strong> ter visto as imagens da<br />

praça, repetidamente, trabalhou sozinha<br />

em cima <strong>de</strong>las. Mais do que um<br />

cenário, o ví<strong>de</strong>o <strong>de</strong> Daniel Blaufuks<br />

é <strong>de</strong> certa forma o coração do espectáculo:<br />

“O ví<strong>de</strong>o interessou-me por<br />

esse lado mais abstracto da praça como<br />

sítio on<strong>de</strong> <strong>tudo</strong> está em potência,<br />

mas também pelo concreto do que<br />

lá se passa – aquela passagem incessante,<br />

aquela frequência, aquela afluência<br />

sem objectivo”. Há elementos<br />

disso no espectáculo – Né Barros andou<br />

sozinha pelas ruas do Porto, a<br />

fotografar bandos <strong>de</strong> pássaros, porque<br />

eles são como a multidão da Djemaa<br />

El-Fnaa: às vezes parecem coreografados<br />

– e cenas que funcionam<br />

quase como uma extensão ou um<br />

contraponto das narrativas sugeridas<br />

pelo ví<strong>de</strong>o, ainda que “a praça” não<br />

pretenda ser um duplo da Djemaa<br />

El-Fna.<br />

Po<strong>de</strong>mos imaginar “mil histórias”<br />

para toda aquela gente, e ela imaginou<br />

algumas: a história da banda <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte,<br />

por exemplo, que criou para<br />

que o grupo <strong>de</strong> turistas amontoado<br />

<strong>de</strong>ntro do ví<strong>de</strong>o tivesse um espelho<br />

ao qual se pu<strong>de</strong>sse olhar. Po<strong>de</strong>mos<br />

imaginar “mil histórias”, dizíamos,<br />

mas não po<strong>de</strong>mos fixar-nos em nenhuma.<br />

“a praça” está viva, e vai em<br />

todas as direcções ao mesmo tempo.<br />

Tudo o que vemos são barulhos <strong>de</strong><br />

fundo: pessoas <strong>de</strong> passagem, conversas<br />

apanhadas a meio, noutras línguas,<br />

mundos paralelos. “As personagens<br />

falam, mas não dizem nada.<br />

São só vozes. Um dos livros <strong>de</strong> que<br />

chegámos a falar foi ‘As Vozes <strong>de</strong> Marraquexe’,<br />

do Elias Canetti”, nota Né<br />

Barros.<br />

Há uma parte nesse livro, mesmo<br />

antes <strong>de</strong> acabar, em que Canetti conta<br />

como “ao anoitecer” se punha a<br />

caminho da Djemaa El-Fna à procura<br />

<strong>de</strong> “uma pequena trouxa castanha”<br />

que emitia “um ‘a-a-a-a-a-a-a’ profundo,<br />

contínuo”, perceptível “entre as<br />

mil vozes e gritos da praça”: “Nunca<br />

a via apanhar as moedas que lhe atiravam.<br />

Poucas, porque nunca lá estavam<br />

mais <strong>de</strong> duas ou três. Talvez<br />

não tivesse braços para apanhar as<br />

moedas. Talvez não tivesse língua para<br />

dizer todos os sons <strong>de</strong> ‘Alá’, reduzindo<br />

o nome <strong>de</strong> Deus a ‘a-a-a-a-a-a-a’!<br />

Mas vivia, e com total entrega e perseverança<br />

dizia o único som que podia<br />

dizer, e dizia-o durante horas e<br />

horas, até se tornar o único <strong>de</strong> todo<br />

aquele imenso lugar, o som que, afinal,<br />

sobrevivia a todos os outros”.<br />

A-a-a-a-a-a-a. Se escutarmos com<br />

atenção, também o ouvimos aqui.<br />

Po<strong>de</strong>mos<br />

imaginar mil<br />

histórias para<br />

toda a gente<br />

que se cruza<br />

na Djemaa El-<br />

Fna, mas não<br />

po<strong>de</strong>mos<br />

fixar-nos em<br />

nenhuma: são<br />

barulhos <strong>de</strong><br />

fundo,<br />

conversas<br />

apanhadas a<br />

meio<br />

Ver agenda <strong>de</strong> espectáculos pág. 38.<br />

A praça<br />

está viva<br />

Né Barros <strong>de</strong>ixou-se ir até Marraquexe nos ví<strong>de</strong>os <strong>de</strong> Daniel Blaufuks e fez “pause” à Djemaa<br />

El-Fna, a praça das praças. É o tipo <strong>de</strong> sítio on<strong>de</strong> <strong>tudo</strong> po<strong>de</strong> acontecer - exactamente como<br />

esta peça, com estreia hoje em <strong>Lisboa</strong>, na Culturgest. Inês Nadais<br />

36 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


The<br />

Divine<br />

Comedy<br />

Ninguém faz Neil<br />

Hannon melhor<br />

que Neil Hannon.<br />

Eis “Bang Goes<br />

The Knighthood”<br />

Pág. 52<br />

The National O<br />

problema é quando “High Violet”<br />

acaba: volta-se à vida. Pág. 52<br />

Mathias Énard<br />

Escreveu “Zona”, uma epopeia<br />

contemporânea. Cabe <strong>tudo</strong><br />

numa viagem nocturna <strong>de</strong><br />

comboio. Pág. 46<br />

“Líbano” Um “tour <strong>de</strong><br />

force”, a guerra na primeira pessoa.<br />

Pág. 42<br />

13ª edição<br />

Termina em 15 <strong>de</strong> Maio o prazo para a recepção das obras <strong>de</strong>stinadas à 13ª edição<br />

do Prémio Literário Fernando Namora. A este prémio no valor <strong>de</strong> 25 mil euros,<br />

po<strong>de</strong>m concorrer autores portugueses, individualmente, através das editoras<br />

ou <strong>de</strong> outras entida<strong>de</strong>s.<br />

Mais informações www.casino-estoril.pt<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 37


Teatro/Dança<br />

Antes-<br />

treia<br />

Nós somos<br />

o rei<br />

Um clássico do absurdo<br />

na Comuna, “O Rei Está a<br />

Morrer, <strong>de</strong> Ionesco, sobre<br />

a maior certeza da vida: a<br />

morte. Clara Campanilho<br />

Barradas<br />

O Rei Está a Morrer<br />

De Eugène Ionesco. Encenação:<br />

João Mota. Com Carlos Paulo, Ana<br />

Lúcia Palminha, Tânia Alves, Rui<br />

Neto, Alexandre Lopes, Mia Farr.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro da Comuna. Pç. Espanha. Até 27/06.<br />

4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h. Tel.: 217221770. 5€.<br />

O título já dá uma i<strong>de</strong>ia. Mas, nos<br />

primeiros momentos da peça, a<br />

dúvida, se a houver, logo se dissipa.<br />

Somos informados – e o próprio<br />

também – <strong>de</strong> que, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> hora e<br />

meia, Bérenger, o rei, estará morto.<br />

É o absurdo <strong>de</strong> um mestre do<br />

Teatro do Absurdo, em cena na<br />

Comuna – Teatro <strong>de</strong> Pesquisa, até 27<br />

<strong>de</strong> Junho. O essencial <strong>de</strong> “O Rei está<br />

a morrer”, do romeno Eugène<br />

Ionesco (1909-1994), é “a angústia da<br />

morte, o pavor da morte”, resume<br />

João Mota, o encenador.<br />

O Rei Bérenger – ditador,<br />

autoritário, arrogante – chefia um<br />

reino <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte. A sua hora<br />

aproxima-se. A primeira rainha,<br />

Margarida, confronta-o com a sua<br />

inevitável morte, que ele não quer<br />

aceitar. A segunda rainha, Maria,<br />

também não aceita. O médico<br />

garante que já nada há a fazer. É<br />

inevitável, o rei vai mesmo morrer.<br />

Ele é ditador, mas “a gran<strong>de</strong><br />

ditadora é a morte”.<br />

Para João Mota, este rei<br />

representa todos nós. “Há um lado<br />

na peça <strong>de</strong> que eu gosto muito: cada<br />

um <strong>de</strong> nós é rei do seu reino. E<br />

quando morremos, o mundo acaba.<br />

E nós esquecemos isso durante a<br />

vida. Fala-se pouco sobre a morte”.<br />

É “difícil passar para o outro lado”,<br />

A estreia oficial é no dia<br />

21, em <strong>Lisboa</strong>, no Centro<br />

Cultural <strong>de</strong> Belém, mas até<br />

lá os Artistas Unidos vão<br />

andar a apresentar o seu<br />

novo espectáculo, dupla<br />

investida em<br />

Harold Pinter,<br />

um pouco<br />

por todo o<br />

país. Depois<br />

<strong>de</strong> uma<br />

primeira<br />

Depois do absurdo <strong>de</strong> Beckett, o absurdo<br />

<strong>de</strong> Ionesco na temporada da Comuna<br />

apresentação ontem,<br />

“Comemoração” e “A<br />

Nova Or<strong>de</strong>m Mundial”<br />

regressam hoje, às<br />

21h45, ao palco do Teatro<br />

Aveirense, <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

seguem para o Teatro<br />

<strong>Municipal</strong> da Guarda<br />

(quinta-feira, dia 13, às<br />

21h30) e para o Teatro<br />

da Terra, em Ponte <strong>de</strong><br />

Sôr (sexta-feira, dia 14, e<br />

sábado, dia 15, às 21h30).<br />

“Comemoração” é a última<br />

por isso, temos <strong>de</strong> saber encarar o<br />

facto <strong>de</strong> que vamos morrer: “O Rei<br />

diz uma frase que eu acho genial:<br />

‘Porque é que eu nasci, se foi para<br />

morrer? Malditos pais.’ É uma frase<br />

horrível”, e portanto “é bom saber<br />

viver com alegria, com energia, para<br />

po<strong>de</strong>r passar a ponte”, diz o<br />

encenador.<br />

O próprio Ionesco tinha pavor da<br />

morte. “Todos nós temos, em parte.<br />

Mas nunca pensamos nela. Por isso é<br />

que vivemos erradamente. Se<br />

convivêssemos melhor com a morte,<br />

éramos todos muito mais felizes”.<br />

As duas rainhas são dois lados da<br />

mesma moeda. O rei Bérenger “é<br />

bígamo. Tem duas mulheres: a<br />

morte e a vida”.<br />

É a primeira vez que João Mota se<br />

aventura pelos textos <strong>de</strong> Ionesco.<br />

“Este ano, abrimos com Samuel<br />

Beckett, numa encenação do Álvaro<br />

Correia [“A Felicida<strong>de</strong>, Amanhã...”].<br />

Ora, se fizemos um mestre do<br />

absurdo, Beckett, tínhamos <strong>de</strong> fazer<br />

também o outro, o Ionesco”. Beckett<br />

e Ionesco (“eu gosto muito dos dois”,<br />

diz Mota) “têm sempre um lado<br />

cómico, eles são todo o absurdo.<br />

Quase que po<strong>de</strong>mos dizer que [esta<br />

peça] é uma comédia. Trágica, mas é<br />

uma comédia”, diz Mota.<br />

A encenação – ao contrário das<br />

indicações típicas na dramaturgia <strong>de</strong><br />

Ionesco – é <strong>de</strong>spida, leve. “Foi para<br />

que cada espectador se sinta com<br />

aquele problema. Para pensar como<br />

é que a gente acorda amanhã,<br />

porque é que a gente vive”, justifica<br />

o encenador. “Valoriza o texto e o<br />

que está por trás <strong>de</strong>le. Penso que se<br />

o Ionesco visse este espectáculo,<br />

gostava!”.<br />

As pessoas não se levantam, no<br />

final da peça. “Ficam paradas, até<br />

falam baixinho. É preciso dizer:<br />

‘pronto, acabou’. Gosto do silêncio<br />

que fica, é sinal <strong>de</strong> que a pessoa<br />

interiorizou coisas que eu penso que<br />

são muito importantes”, conta João<br />

Mota.<br />

“O Rei Está a Morrer” é “uma peça<br />

que dá para pensar muito”. Como<br />

Bérenger, “todos nós somos<br />

bígamos”.<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

Agenda<br />

peça que o dramaturgo<br />

britânico, Nobel da<br />

Literatura em 2005,<br />

escreveu - uma guerra <strong>de</strong><br />

palavras que anuncia o<br />

capitalismo maiz feroz,<br />

possivelmente a “Nova<br />

Or<strong>de</strong>m Mundial” que dá<br />

título à peça curta com<br />

que os Artistas Unidos<br />

encerram esta nova visita<br />

a Harold Pinter.<br />

Teatro<br />

Estreiam<br />

Keskusteluja<br />

De e com Ville Walo, Kalle<br />

Hakkarainen.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> Maria Matos. Av. Frei<br />

Miguel Contreiras, 52. De 07/05 a 08/05. 6ª e Sáb.<br />

às 21h30. Tel.: 218438801. 5€ a 12€.<br />

FIMFA LX10 - Festival Internacional<br />

<strong>de</strong> Marionetas e Formas Animadas.<br />

Ver texto na pág. 32 e segs.<br />

Continuam<br />

Olá e A<strong>de</strong>usinho<br />

De Athol Fugard. Encenação <strong>de</strong><br />

Beatriz Batarda. Com Catarina<br />

Lacerda e Dinarte Branco.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro do Bairro Alto. R. Tenente Raul<br />

Cascais, 1 A. Até 06/05. 3ª a Sáb. às 21h. Dom. às<br />

16h. Tel.: 213961515. 7,5€ a 15€.<br />

Ver texto na pág. 34.<br />

José. Rubem. Fonseca.<br />

A partir <strong>de</strong> Rubem Fonseca. Pela<br />

CTB - Companhia <strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Braga<br />

e Escola da Noite. Encenação <strong>de</strong><br />

António Augusto Barros. Com<br />

António Jorge, Carlos Feio, Igor<br />

Lebreaud, Rogério Boane, Solange<br />

Sá, entre outros.<br />

Braga. Theatro Circo - Pequeno Auditório. Av. da<br />

Liberda<strong>de</strong>, 697. De 8/05 a 22/05. 3ª a Dom. às<br />

21h30. Tel.: 253203800. 5€ a 10€.<br />

Ver texto na pág. 35.<br />

Salto.Lamento<br />

<strong>Lisboa</strong>. Museu da Marioneta. R. da Esperança, 146<br />

- Convento das Bernardas. Até 07/05. 5ª e 6ª às<br />

21h30. Tel.: 213942810.<br />

FIMFA Lx10 - Festival Internacional<br />

<strong>de</strong> Marionetas e Formas Animadas.<br />

Ver texto na pág. 32 e segs.<br />

Paisagens em Trânsito<br />

De e com Patrick Murys.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Museu da Marioneta. R. da Esperança, 146<br />

- Convento das Bernardas. Dia 12/05. 4ª às 21h30.<br />

Tel.: 213942810.<br />

FIMFA LX10 - Festival Internacional<br />

<strong>de</strong> Marionetas e Formas Animadas.<br />

Won<strong>de</strong>rland<br />

A partir <strong>de</strong> Lewis Carroll. Pelo Teatro<br />

<strong>de</strong> Marionetas do Porto. Encenação<br />

<strong>de</strong> João Paulo Seara Cardoso. Com<br />

Edgard Fernan<strong>de</strong>s, Sara Henriques,<br />

Sérgio Rolo, Shirley Resen<strong>de</strong>.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> Maria Matos. Av. Frei<br />

Miguel Contreiras, 52. De 11/05 a 12/05. 3ª e 4ª às<br />

21h30. Tel.: 218438801. 5€ a 12€.<br />

FIMFA LX10 - Festival Internacional<br />

<strong>de</strong> Marionetas e Formas Animadas.<br />

Agora a Sério<br />

De Tom Stoppard. Encenação: Pedro<br />

Mexia. Com Ana Brandão, João Reis,<br />

São José Correia, entre outros.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro Aberto - Sala Azul. Pç. Espanha. Até<br />

31/12. 4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h. Tel.:<br />

213880089. 7,5€ a 15€.<br />

Troilo & Créssida<br />

De Shakespeare. Pela Companhia <strong>de</strong><br />

Teatro <strong>de</strong> Almada, ACTA,<br />

Companhia <strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Braga.<br />

Encenação <strong>de</strong> Joaquim Benite. Com<br />

André Silva, Luís Vicente, Mário<br />

Spencer, entre outros.<br />

Almada. Teatro <strong>Municipal</strong>. Av. Professor Egas<br />

Moniz. Até 16/05. 4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h.<br />

Tel.: 212739360. 6€ a 13€.<br />

Jardim Suspenso<br />

De Abel Neves. Encenação: Alfredo<br />

Brissos. Com Carla Chambel, Simone<br />

<strong>de</strong> Oliveira, entre outros.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro Nacional D. Maria II - Sala-Estúdio.<br />

Pç. D. Pedro IV. Até 30/05. 4ª, 5ª, 6ª e Sáb. às<br />

21h45. Dom. às 16h15. Tel.: 213250835. 12€.<br />

Fo<strong>de</strong>r e Ir às Compras<br />

De Mark Ravenhill. Encenação <strong>de</strong><br />

Gonçalo Amorim. Com Pedro<br />

Carmo, Carla Maciel, Carloto Cotta,<br />

Pedro Gil, Romeu Costa.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> S. Luiz. R. Antº Maria<br />

Cardoso, 38-58. Até 09/05. 4ª a Sáb. às 21h. Dom.<br />

às 17h30. Tel.: 213257650. 15€.<br />

A Rainha da Beleza <strong>de</strong> Leenane<br />

De Martin McDonagh. Pelo Teatro<br />

Meridional. Encenação <strong>de</strong> Nuria<br />

Mencía. Com Almeno Gonçalves,<br />

Elisa <strong>Lisboa</strong>, José Mata, Natália Luíza.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro Meridional. R. do Açucar, 64 - Poço<br />

do Bispo. Até 30/05. 4ª a Sáb. às 21h45. Dom. às<br />

17h. Tel.: 218689245.<br />

Miserere<br />

A partir <strong>de</strong> Gil Vicente. Pelo Teatro da<br />

Cornucópia. Encenação <strong>de</strong> Luis<br />

Miguel Cintra. Com João Grosso, José<br />

Airosa, Luis Miguel Cintra, Rita<br />

Blanco, entre outros.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro Nacional D. Maria II - Sala Garrett.<br />

Pç. D. Pedro IV. Até 23/05. 4ª, 5ª, 6ª e Sáb. às<br />

21h30. Dom. às 16h. Tel.: 213250835.<br />

Relativamente<br />

De Alan Ayckbourn. Encenação <strong>de</strong><br />

João Lagarto. Com António Pedro<br />

Cer<strong>de</strong>ira, Isabel Montellano, João<br />

Lagarto, Patrícia Tavares.<br />

Caldas da Rainha. Centro Cultural e Congressos. R.<br />

Doutor Leonel Sotto Mayor. De 07/05 a 08/05. 6ª e<br />

Sáb. às 21h30. Tel.: 262889650. 12,5€.<br />

O Vampiro <strong>de</strong> Belgrado<br />

De Gonçalo M. Tavares. Pelo Teatro<br />

Bruto. Encenação <strong>de</strong> Miguel Cabral.<br />

Com Isabel Nunes, Pedro Mendonça.<br />

Porto. Fundação Escultor José Rodrigues. R. da<br />

Fábrica Social. Até 22/05. 5ª a Sáb. às 22h. Tel.:<br />

220109020. 5€ a 7€.<br />

Dança<br />

Estreiam<br />

“Relativamente”<br />

chega às Caldas<br />

da Rainha na<br />

encenação <strong>de</strong><br />

João Lagarto<br />

A Praça<br />

De Né Barros. Com Ángel Montero<br />

Vázquez, Joana Castro, Katja Juliana<br />

Geiger, Pedro Rosa. Alexandre<br />

Soares, Jorge Queijo.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Culturgest. R. Arco do Cego - Edifício da<br />

CGD. De 07/05 a 08/05. 6ª e Sáb. às 21h30. Tel.:<br />

217905155. 5€ a 18€.<br />

Ver texto na pág. 36.<br />

Local Geographic<br />

De Rui Horta.<br />

<strong>Lisboa</strong>. CCB - Sala <strong>de</strong> Ensaio. Praça do Império. De<br />

11/05 a 16/05. 3ª a 6ª às 21h (excepto à 5ª). Sáb. e<br />

Dom. às 19h. Tel.: 213612400. 12€.<br />

Béjart Ballet Lausanne<br />

<strong>Lisboa</strong>. Coliseu dos Recreios. R. Portas St. Antão,<br />

96. De 13/05 a 16/05. 5ª e 6ª às 21h30. Sáb. às 16h30<br />

e 21h30. Dom. às 16h. Tel.: 213240580. 25€ a 47€.<br />

“Local Geographic”, <strong>de</strong> Rui Horta<br />

38 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


Exposições<br />

Os prodígios<br />

do Uno<br />

Uma exposição alquímica<br />

<strong>de</strong> Raquel Feliciano.<br />

Óscar Faria<br />

Matéria Prima<br />

De Raquel Feliciano.<br />

Porto. Tabacaria. Rua Pinto Bessa, 170, r/c<br />

traseiras, 122 armazém 4/5. Tel.: 220938372. Até<br />

22/05. 3ª a Sáb. das 14h às 20h.<br />

Fotografia. Escultura.<br />

ADRIANO MIRANDA<br />

mmmmn<br />

Design<br />

português<br />

No antigo Egipto, um dos elementos<br />

constituintes do humano era o “ba”,<br />

que po<strong>de</strong> ser traduzido pela palavra<br />

“alma” – ao corpo, no momento da<br />

sua mo<strong>de</strong>lação pelo <strong>de</strong>us khnum na<br />

sua roda <strong>de</strong> oleiro, unia-se uma<br />

outra substância, o “ka”, uma<br />

<strong>de</strong>signação para a energia vital <strong>de</strong><br />

um ser. Depois da morte, o “ka”,<br />

representado por uns braços<br />

erguidos na direcção do céu, e o<br />

“ba”, figurado por um falcão com<br />

cabeça humana, unem-se no “akh”,<br />

uma força luminosa. A crença na<br />

vida além da morte era<br />

acompanhada pela <strong>de</strong>posição <strong>de</strong><br />

estatuetas junto da múmia: estas<br />

<strong>de</strong>viam ser alimentadas pelos vivos<br />

através <strong>de</strong> oferendas. E, enquanto o<br />

“ka” habitava o <strong>de</strong>funto, o “ba”<br />

abandonava o corpo no momento da<br />

sua extinção, tendo então a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> revisitar os lugares<br />

conhecidos pelo morto ou <strong>de</strong> viajar<br />

até às estrelas; con<strong>tudo</strong>, à noite, o<br />

“ba” entregava ao “ka” a energia<br />

acumulada nas dádivas entregues<br />

nesse dia pelos vivos.<br />

Em “Matéria Prima”, Raquel<br />

Feliciano (Caldas da Rainha, 1983)<br />

Depois <strong>de</strong> países como<br />

a Finlândia, o Brasil<br />

e o Japão, Portugal é<br />

finalmente o país-tema<br />

do Destination: Design<br />

Series, um projecto<br />

do MoMA (Museum<br />

of Mo<strong>de</strong>rn Art) que<br />

tem vindo a fazer<br />

uma cartografia das<br />

tendências actuais do<br />

revela um trabalho intitulado<br />

precisamente “ba”, uma fotografia<br />

em que se observa uma “alma”<br />

<strong>de</strong>sfocada – a imagem foi captada na<br />

secção <strong>de</strong> antiguida<strong>de</strong>s egípcias <strong>de</strong><br />

um museu. A evocação dos<br />

elementos primordiais é uma<br />

constante da exposição: há uma<br />

espécie <strong>de</strong> alquimia que atravessa os<br />

trabalhos apresentados; a<br />

transmutação operada durante o<br />

processo fotográfico po<strong>de</strong> ser<br />

mesmo lida como uma metáfora<br />

para essa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontrar a<br />

pedra filosofal. As imagens visíveis<br />

na Tabacaria – um dos novos<br />

espaços situados nas imediações da<br />

Estação <strong>de</strong> Campanhã, no Porto –<br />

são todas provas <strong>de</strong> brometo <strong>de</strong><br />

prata em papel baritado, uma<br />

escolha que acentua essa<br />

proximida<strong>de</strong> a uma essência para<br />

além do real.<br />

A exposição organiza-se<br />

sobre<strong>tudo</strong> através <strong>de</strong> fotografias que<br />

nos indicam essa proximida<strong>de</strong> à<br />

natureza. A primeira imagem<br />

intitula-se “chama” e o díptico que<br />

se lhe segue “a guia” – na verda<strong>de</strong>,<br />

estes instantâneos mostram uma<br />

águia nos seus movimentos<br />

ascen<strong>de</strong>nte e <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte,<br />

compondo-se assim uma trajectória<br />

virtual; um eco <strong>de</strong>ste voo po<strong>de</strong> ser<br />

lido em dois outros trabalhos,<br />

“<strong>de</strong>scida (nascente)” e “subida<br />

(recomeço)”, que traduzem<br />

igualmente uma reflexão acerca da<br />

paisagem. A água, a terra, o fogo e o<br />

ar atravessam estas obras,<br />

recordando uma síntese realizada<br />

por Empédocles <strong>de</strong> Agrigento: para<br />

este filósofo pré-socrático, o nascer e<br />

o morrer não existiam, porque eram<br />

apenas instantes <strong>de</strong> junção ou<br />

separação das quatro substâncias<br />

que estão na origem <strong>de</strong> todas as<br />

outras.<br />

Um objecto, uma caixa em<br />

As imagens <strong>de</strong> “Matéria Prima”, provas <strong>de</strong> brometo <strong>de</strong> prata em papel baritado,<br />

acentuam a proximida<strong>de</strong> a uma essência para além do real<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

<strong>de</strong>sign em vários países<br />

do mundo. A partir <strong>de</strong> dia<br />

13, e até ao final <strong>de</strong> Junho,<br />

estarão à venda na loja do<br />

MoMA, em Nova Iorque,<br />

diversos produtos <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>signers portugueses<br />

- incluindo estes<br />

“Montaditos” <strong>de</strong> António<br />

Azevedo, entre outros<br />

objectos que revisitam<br />

ma<strong>de</strong>ira com imagens <strong>de</strong> diversas<br />

proveniências – “O Nascimento <strong>de</strong><br />

Vénus”, <strong>de</strong> Sandro Botticelli, uma<br />

estátua renascentista <strong>de</strong> um<br />

Mercúrio alado da autoria <strong>de</strong><br />

Giambologna, uma fotografia da lua,<br />

um fragmento <strong>de</strong> uma gravura <strong>de</strong><br />

um sol, um escultura do <strong>de</strong>us Ares,<br />

etc. –, dá outras pistas relativamente<br />

à dimensão alquímica da mostra.<br />

Para além <strong>de</strong> o trabalho ser<br />

elaborado a partir construção<br />

geométrica do rectângulo <strong>de</strong> ouro,<br />

nele dá-se corpo à máxima “ce qui<br />

est en haut est comme ce qui est en<br />

bas.” A frase faz parte da “Tábua <strong>de</strong><br />

Esmeralda” (“Tabula Smaragdina”),<br />

atribuída a Hermes Trismegisto, cuja<br />

representação mística era associada<br />

a um faraó lendário – a actual<br />

datação do texto é situada entre os<br />

séculos VI e VIII d.C., sendo o “três<br />

vezes altíssimo” uma combinação<br />

helenística dos <strong>de</strong>uses Hermes<br />

(Grécia) e Thot (Egipto).<br />

“Na verda<strong>de</strong>, na verda<strong>de</strong>, sem<br />

dúvidas e incertezas:/ o que está em<br />

baixo assemelha-se ao que está em<br />

cima, e o que está em cima ao que<br />

está em baixo, para realizar os<br />

prodígios do Uno./ E como todas as<br />

coisas emanam do Uno, da<br />

meditação do Uno, assim também<br />

todas as coisas nasceram <strong>de</strong>sse Uno<br />

por adaptação. / O Sol é o pai, a Lua<br />

a mãe; o Vento transportou-o no seu<br />

ventre e a Terra é a sua ama”, lê-se<br />

na “Tábua <strong>de</strong> Esmeralda.” A<br />

exposição, com uma montagem<br />

rigorosa, espelha esta unida<strong>de</strong>. Dois<br />

exemplos: “seca/ húmida” – areia e<br />

água, em permanentes trocas,<br />

<strong>de</strong>finem a imagem <strong>de</strong> um mundo<br />

gerado pela “força <strong>de</strong> todas as<br />

forças” – e “rotação da terra”, uma<br />

escultura apresentada recentemente<br />

no Museu Geológico, em <strong>Lisboa</strong>, que<br />

põe <strong>tudo</strong> a funcionar à sua volta. É o<br />

motor da mostra.<br />

as artes e os ofícios <strong>de</strong><br />

gerações passadas,<br />

como acessórios <strong>de</strong><br />

moda em cortiça e jóias<br />

contemporâneas <strong>de</strong><br />

filigrana. Em Portugal,<br />

será a Loja <strong>de</strong> Serralves,<br />

parceira da MoMA Design<br />

Store neste projecto, a<br />

comercializar a colecção.<br />

O paraíso<br />

à mão <strong>de</strong><br />

semear<br />

Escultura e <strong>de</strong>senho <strong>de</strong><br />

Gabriela Albergaria no<br />

Pavilhão Branco.<br />

Luísa Soares <strong>de</strong> Oliveira<br />

Térmico<br />

De Gabriela Albergaria.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Museu da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>. Campo Gran<strong>de</strong>,<br />

245. Tel.: 217513200. Até 13/06. 3ª a Dom. das 10h às<br />

18h.<br />

Desenho, Escultura.<br />

mmmmn<br />

O Pavilhão Branco, estrutura<br />

mo<strong>de</strong>rna inserida nos jardins<br />

barrocos e românticos do conjunto<br />

do Museu da Cida<strong>de</strong>, é <strong>de</strong>certo um<br />

dos lugares i<strong>de</strong>ais para uma artista<br />

como Gabriela Albergaria realizar<br />

uma exposição. A escultora, que<br />

tem dividido a sua activida<strong>de</strong> entre<br />

<strong>Lisboa</strong> e Berlim, elege como tema<br />

da sua obra a reflexão sobre o<br />

jardim: simultaneamente<br />

microcosmo (porque concentra<br />

<strong>de</strong>ntro dos seus limites um número<br />

vasto <strong>de</strong> espécies), museu (porque<br />

as cataloga, classifica e expõe), e<br />

espelho, já que em teoria se propõe<br />

revelar a essência <strong>de</strong> um eu<br />

supostamente afastado da sua<br />

verda<strong>de</strong>ira natureza pelas<br />

vicissitu<strong>de</strong>s da vida<br />

contemporânea. Longe da paisagem<br />

romântica, que é sempre<br />

consi<strong>de</strong>rada como a representação<br />

da natureza indomável, o jardim<br />

concretiza o espaço da natureza à<br />

escala do humano. Mesmo quando,<br />

nos tempos medievais, ele<br />

pretendia traduzir uma<br />

representação possível do paraíso<br />

celeste.<br />

Daqui <strong>de</strong>corre que a concepção<br />

do jardim, como os diversos<br />

significados que lhe atribuímos, é<br />

i<strong>de</strong>ológica e estritamente<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> dado contexto<br />

histórico, económico ou social.<br />

Gabriela Albergaria sabe-o. E nesta<br />

exposição, como noutras que já<br />

realizou, estabelece pontes visuais<br />

entre a natureza e a cultura, entre o<br />

espaço exterior, domado e<br />

civilizado pelo homem, e a força da<br />

natureza que irrompe nas peças<br />

expostas.<br />

No rés-do-chão estão duas<br />

esculturas <strong>de</strong> realização muito<br />

recente. A primeira é uma árvore<br />

trazida para uma das salas,<br />

ocupando invasoramente quase<br />

todo o espaço disponível. O caule,<br />

no lugar do corte, ostenta uma<br />

ponta <strong>de</strong> metal que justifica o nome:<br />

“Árvore com parafuso”. A peça<br />

invoca a impossível hipótese do<br />

retorno à terra, a mesma que se<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 39


Exposições<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

“Nenhum Lugar”,<br />

<strong>de</strong> André Príncipe,<br />

na Galeria Arthobler, Porto<br />

Ana Hatherly<br />

encontra-se com Manuel<br />

Poppe na Arte Contempo<br />

Steffan Brüggemann<br />

na Kunsthalle Lissabon<br />

amontoa, por camadas, na<br />

segunda escultura, “couche sour<strong>de</strong>”:<br />

um corte <strong>de</strong> terra <strong>de</strong> estufa<br />

interrompido por camadas <strong>de</strong><br />

plantas que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a inauguração da<br />

exposição, germinam teimosamente.<br />

Esta peça, que convoca o objecto<br />

minimalista pela ru<strong>de</strong>za do material,<br />

as dimensões importantes e o modo<br />

como interfere eficazmente no<br />

espaço, é aquela que mais<br />

surpreen<strong>de</strong> em toda a exposição e<br />

melhor interpela o pensamento do<br />

visitante.<br />

No piso superior situam-se<br />

<strong>de</strong>senhos mais antigos. O <strong>de</strong>senho<br />

<strong>de</strong> Gabriela Albergaria apropria-se<br />

sempre do traço clássico, mas<br />

insere-o numa exploração da folha<br />

<strong>de</strong> papel que se confun<strong>de</strong> com a<br />

ocupção do espaço que as suas<br />

esculturas realizam. Num <strong>de</strong>stes<br />

<strong>de</strong>senhos, intitulado “Un jardin à<br />

ma façon”, os signos que figuram<br />

rochas, folhas, árvores e arbustos<br />

<strong>de</strong>cantam-se progressivamente<br />

para se transformarem numa<br />

quadrícula evocadora <strong>de</strong> um<br />

revestimento arquitectónico, que<br />

Gabriela Albergaria<br />

elegeu como tema da sua obra<br />

a reflexão sobre o jardim<br />

termina, <strong>de</strong>certo não por acaso,<br />

numa das janelas <strong>de</strong> tijolo <strong>de</strong> vidro<br />

do edifício. Este, que funciona<br />

como uma estufa, permite a<br />

migração do olhar entre o interior<br />

e o exterior, entre a natureza<br />

domesticada para gozo <strong>de</strong> uns e a<br />

arte que reflecte sobre esse<br />

processo para estímulo <strong>de</strong> outros.<br />

Assim, os jardins <strong>de</strong> Gabriela<br />

Albergaria são sempre produto <strong>de</strong><br />

contaminações entre a natureza e o<br />

espaço da arte. Contaminações essas<br />

que sempre existiram, mas que<br />

também quase sempre estiveram<br />

ocultas <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> um discurso<br />

histórico que as justificava e<br />

ocultava: o jardim, esse lugar <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>leite e encontro com a verda<strong>de</strong>ira<br />

essência do homem <strong>de</strong> que<br />

falávamos no início, foi sempre a<br />

tradução <strong>de</strong> uma apropriação que<br />

confortava e tranquilizava. Ele não é<br />

o lugar do selvagem, do<br />

<strong>de</strong>sconhecido, do Outro que nos<br />

po<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir; ou, visto <strong>de</strong> modo<br />

diverso, não é a rua urbana on<strong>de</strong> se<br />

manifesta a mudança política e<br />

social. Oásis e paraíso: na sua<br />

diversida<strong>de</strong> e mesmo na aclimatação<br />

<strong>de</strong> espécies exóticas, este é o local<br />

on<strong>de</strong> se encontram refúgio e<br />

tranquilida<strong>de</strong>. Tudo o que a arte já<br />

<strong>de</strong>u, e hoje não po<strong>de</strong> <strong>de</strong> maneira<br />

nenhuma dar. Gabriela Albergaria<br />

merecia ser melhor conhecida em<br />

Portugal.<br />

Agenda<br />

Inauguram<br />

Cornelius Car<strong>de</strong>w e a Liberda<strong>de</strong><br />

da Escuta<br />

De Hanne Boenisch, Luke Fowler,<br />

Nicolas Tilly, Lore Gablier.<br />

Porto. Culturgest. Avenida dos Aliados, 104 -<br />

Edifício da CGD. Tel.: 222098116. De 08/05 a 26/06.<br />

2ª a 6ª e Sáb. das 10h às 18h. Inaugura 8/5 às 16h.<br />

Ví<strong>de</strong>o, Fotografia, Outros.<br />

Ver texto na pág. 20 e segs.<br />

Correspondência #2<br />

De Ana Hatherly, António Poppe.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Arte Contempo. Rua dos Navegantes, 46A.<br />

Tel.: 213958006. Até 12/06. 5ª a Sáb. das 14h30 às<br />

19h30. Inaugura 7/5 às 19h.<br />

Desenho, Outros.<br />

Memória é uma Ilha <strong>de</strong> Edição<br />

De Sérgio Fernan<strong>de</strong>s.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Galeria Arte Periférica. Praça do Império -<br />

Centro Cultural <strong>de</strong> Belém, Loja 3. Tel.: 213617100.<br />

Até 03/06. 2ª a 6ª, Sáb. e Dom. das 10h às 20h.<br />

Inaugura 8/5 às 15h30.<br />

Pintura.<br />

Espelho (Meu)<br />

De Catarina Saraiva.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Módulo - Centro Difusor <strong>de</strong> Arte. Calçada<br />

dos Mestres, 34A/B. Tel.: 213885570. Até 05/06. 3ª a<br />

6ª e Sáb. das 15h às 20h. Inaugura 8/5 às 18h.<br />

Instalação, Outros.<br />

Dentro Do Labirinto - Pierre<br />

Coulibeuf<br />

De Pierre Coulibeuf.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Museu Colecção Berardo. Praça do Império.<br />

Tel.: 213612878. Até 21/06. Sáb. das 10h às 22h. 2ª a<br />

6ª, Dom. e Feriados das 10h às 19h.<br />

Instalação, Outros. Inaugura 10/5 às<br />

19h30.<br />

Continuam<br />

41º 52’ 59’’ Latitu<strong>de</strong> N / 8º 51’ 12’’<br />

Longitu<strong>de</strong> O<br />

De Jorge Barbi.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Centro <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna - José <strong>de</strong> Azeredo<br />

Perdigão. Rua Dr. Nicolau Bettencourt. Tel.:<br />

217823474 . De 06/05 a 11/07. 3ª a Dom. das 10h às<br />

18h.<br />

Fotografia, Outros.<br />

A Matéria Negra da Luz dos<br />

Media<br />

De Dara Birnbaum.<br />

Porto. Museu <strong>de</strong> Serralves. Rua Dom João <strong>de</strong> Castro,<br />

210. Tel.: 226156500. Até 04/07. 3ª a 6ª das 10h às<br />

17h. Sáb., Dom. e Feriados das 10h às 20h.<br />

Ví<strong>de</strong>o, Outros.<br />

O Dia Pela Noite<br />

De Gabriel Abrantes, Vasco Araújo,<br />

Pedro Barateiro, João Pedro Vale,<br />

entre outros.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Lux Frágil. Av. Infante D. Henrique,<br />

Armazém A. Tel.: 218820890. Até 26/02. 5ª a Sáb.<br />

das 23h às 06h.<br />

Instalação, Outros.<br />

This Is My Condition<br />

De Ryan McGinley, Ryan McNamara,<br />

Ryan Trecartin, Slater Bradley, Jack<br />

Pierson.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Galeria Filomena Soares. Rua da<br />

Manutenção, 80. Tel.: 218624122. Até 11/09. 3ª a<br />

Sáb. das 10h às 20h.<br />

Pintura, Ví<strong>de</strong>o, Instalação,<br />

Fotografia, Escultura, Outros.<br />

Show Titles<br />

De Stefan Brüggemann.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Kunsthalle Lissabon. R. Rosa Araújo, 7-9.<br />

Tel.: 918156919. Até 06/06. 5ª, 6ª e Sáb. das 15h às<br />

19h.<br />

Instalação.<br />

Lour<strong>de</strong>s Castro e Manuel<br />

Zimbro: A Luz da Sombra<br />

Porto. Museu <strong>de</strong> Serralves. Rua Dom João <strong>de</strong> Castro,<br />

210. Tel.: 226156500. Até 13/06. 3ª a 6ª das 10h às<br />

17h. Sáb., Dom. e Feriados das 10h às 22h.<br />

Escultura, Outros.<br />

Sem Re<strong>de</strong><br />

De Joana Vasconcelos.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Museu Colecção Berardo. Praça do Império.<br />

Tel.: 213612878. Até 18/05. Sáb. das 10h às 22h. 2ª a<br />

6ª, Dom. e Feriados das 10h às 19h.<br />

Instalação, Outros.<br />

Sub Rosa<br />

De Nuno Ramalho.<br />

Porto. Espaço Fundação. R. do Bonjardim, 951.<br />

Tel.: 919059992. De 30/04 a 29/05. Sáb. das 16h às<br />

20h.<br />

Desenho.<br />

Recanto do Oceano<br />

De Luís Viegas Belchior, Colecção<br />

Alcídia.<br />

Porto. Centro Português <strong>de</strong> Fotografia. Campo<br />

Mártires da Pátria. Tel.: 222076310. De 02/05 a<br />

22/05. 2ª a 6ª das 10h às 18h. Sáb., Dom. e Feriados<br />

das 10h às 19h.<br />

Fotografia.<br />

Sussuro<br />

De Henrique Silva.<br />

Porto. Centro Português <strong>de</strong> Fotografia. Campo<br />

Mártires da Pátria. Tel.: 222076310. De 02/05 a<br />

25/07. 2ª a 6ª das 10h às 18h. Sáb., Dom. e Feriados<br />

das 10h às 19h.<br />

Fotografia.<br />

Mystic Diver<br />

De Catarina Dias.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Museu da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> - Pavilhão Preto.<br />

Campo Gran<strong>de</strong>, 245. Tel.: 217513200. Até 13/06. 3ª a<br />

Dom. das 10h às 18h.<br />

Desenho, Performance, Objectos,<br />

Outros.<br />

O Ofício <strong>de</strong> Viver<br />

De Daniel Blaufuks.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Carlos Carvalho - Arte Contemporânea.<br />

Rua Joly Braga Santos, Lote F - r/c. Tel.: 217261831.<br />

Até 15/05. 2ª a 6ª das 10h30 às 19h30. Sáb. das 12h<br />

às 19h30.<br />

Fotografia, Ví<strong>de</strong>o.<br />

Viagem Ao Meio<br />

De Alexandre Estrela.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Galeria Zé dos Bois. Rua da Barroca, 59 -<br />

Bairro Alto. Tel.: 213430205. Até 29/05. 4ª a Sáb.<br />

das 15h às 23h.<br />

Vi<strong>de</strong>o, Outros.<br />

Em Nenhum Lugar<br />

De André Silva.<br />

Porto. Galeria Arthobler. R. Miguel Bombarda, 624.<br />

Tel.: 226084448. De 17/04 a 17/05. 3ª a Sáb. das 15h<br />

às 19h30.<br />

Pintura, Desenho, Instalação,<br />

Escultura.<br />

The Absent Space<br />

De José María Yturral<strong>de</strong>.<br />

Braga. Galeria Mário Sequeira - Parada <strong>de</strong> Tibães.<br />

Quinta da Igreja (Parada <strong>de</strong> Tibães). Tel.:<br />

253602550. Até 29/05. 2ª a 6ª das 13h às 19h. Sáb.<br />

das 15h às 19h.<br />

Pintura.<br />

Soft Theraphy<br />

De Santiago Villanueva.<br />

Braga. Galeria Mário Sequeira - Parada <strong>de</strong> Tibães.<br />

Quinta da Igreja (Parada <strong>de</strong> Tibães). Tel.:<br />

253602550. Até 29/05. 2ª a 6ª das 13h às 19h. Sáb.<br />

das 15h às 19h.<br />

Escultura, Outros.<br />

40 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


Cinema<br />

série ípsilon II<br />

Sexta-feira,<br />

dia 14 <strong>de</strong> Maio,<br />

o DVD “A Estação”,<br />

<strong>de</strong> Thomas McCarthy<br />

Todas as sextas,<br />

por €1,95.<br />

20<br />

anos<br />

Merecidíssimo Leão <strong>de</strong> Ouro em Veneza 2009, é uma experiência cinemática <strong>de</strong> cortar o fôlego<br />

Estreiam<br />

Sentir<br />

a guerra<br />

Um extraordinário “tour<strong>de</strong>-force”<br />

que, mais do<br />

que mostrar a guerra, faznos<br />

sentir a guerra. Jorge<br />

Mourinha<br />

Líbano<br />

Lebanon<br />

De Samuel Maoz,<br />

com Yoav Donat, Itay Tiran, Oshri<br />

Cohen. M/16<br />

MMMMn<br />

<strong>Lisboa</strong>: CinemaCity Campo Pequeno Praça <strong>de</strong><br />

Touros: Sala 7: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª 14h05, 16h20,<br />

19h15, 21h45, 00h15 Sábado Domingo 12h, 14h05,<br />

16h20, 18h30, 21h45, 00h15; CinemaCity Classic<br />

Alvala<strong>de</strong>: Sala 3: 5ª 2ª 3ª 4ª 13h50, 15h45, 17h40,<br />

19h35, 21h30 6ª 13h50, 15h45, 17h40, 19h35, 21h30,<br />

00h10 Sábado 11h50, 13h50, 15h45, 17h40, 19h35,<br />

21h30, 00h10 Domingo 11h50, 13h50, 15h45, 17h40,<br />

19h35, 21h30; Me<strong>de</strong>ia Monumental: Sala 4 - Cine<br />

Teatro: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h, 16h,<br />

18h, 20h, 22h, 00h30; UCI Cinemas - El Corte<br />

Inglés: Sala 5: 5ª 6ª Sábado 2ª 3ª 4ª 14h, 16h30,<br />

19h, 21h35, 00h20 Domingo 11h30, 14h, 16h30, 19h,<br />

21h35, 00h20; ZON Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h, 16h40, 19h, 22h,<br />

00h15;<br />

Porto: Arrábida 20: Sala 14: 5ª 6ª Sábado<br />

Domingo 2ª 14h30, 16h55, 19h25, 21h50, 00h15 3ª<br />

4ª 16h55, 19h25, 21h50, 00h15;<br />

Vamos, por um momento, esquecer<br />

que “Líbano” se passa <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um<br />

tanque israelita durante a primeira<br />

invasão do Líbano em Junho <strong>de</strong> 1982.<br />

É difícil, sabemos, até porque<br />

Samuel Maoz nunca escamoteou que<br />

o filme se inspira nas suas<br />

experiências como artilheiro num<br />

tanque <strong>de</strong> guerra, e porque sempre<br />

que as palavras “Médio Oriente”<br />

vêm ao <strong>de</strong> cima há uma imagem que<br />

se instala para nunca mais sair.<br />

Mas a verda<strong>de</strong> é que o filme <strong>de</strong><br />

Maoz não é tanto sobre o Líbano (ou<br />

sobre o estado constantemente “em<br />

guerra” <strong>de</strong> Israel) como é sobre a<br />

guerra, “tout court”, e sobre o modo<br />

como o homem a vive (ou apren<strong>de</strong> a<br />

vivê-la). Para isso, o cineasta arrisca<br />

um “tour <strong>de</strong> force” na corda bamba,<br />

tanto mais arriscado quanto estamos<br />

a falar <strong>de</strong> um primeiro filme: fazer o<br />

espectador sentir a guerra na<br />

primeira pessoa, restringi-lo ao<br />

espaço confinado <strong>de</strong> um tanque,<br />

fechá-lo durante hora e meia com os<br />

quatro homens da tripulação e com<br />

o modo como cada um <strong>de</strong>les<br />

enfrenta a sua primeira experiência<br />

<strong>de</strong> combate e <strong>de</strong>scobre algo sobre si<br />

próprio no processo.<br />

E ganha a aposta em toda a linha.<br />

Muito se tem falado sobre o<br />

“voyeurismo” ou o “mau gosto” <strong>de</strong><br />

algumas cenas vistas através do<br />

“periscópio” do tanque, mais<br />

violentas ou <strong>de</strong>sconfortáveis, com a<br />

mira telescópica a <strong>de</strong>ixar no campo<br />

tanto quanto fica <strong>de</strong> fora. Mas o que<br />

Maoz está a fazer é apenas reduzir a<br />

experiência da guerra, mesmo que<br />

mediada por um dispositivo tão<br />

cinemático como este (o periscópio<br />

é, literalmente, a lente da câmara, o<br />

olho que vê sem conseguir parar <strong>de</strong><br />

ver), à sua essência urgente, à<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir agora, já,<br />

imediatamente, sucumbindo ou<br />

resistindo ao instinto primal <strong>de</strong><br />

sobrevivência, tornando tangível o<br />

conflito entre a moral e o instinto.<br />

Como quem diz: é <strong>de</strong>masiado fácil<br />

olhar para as coisas <strong>de</strong> fora,<br />

portanto venham vê-las <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro.<br />

Fechados num esquife <strong>de</strong> metal<br />

on<strong>de</strong> só se mata ou se morre. Sem<br />

heroísmos hollywoodianos nem<br />

finais felizes <strong>de</strong> filme <strong>de</strong> guerra,<br />

“Líbano” dá corpo aos suores frios,<br />

ao cheiro a pólvora e metal e sangue<br />

<strong>de</strong> um modo que raros filmes<br />

conseguiram fazer.<br />

Merecidíssimo Leão <strong>de</strong> Ouro em<br />

Veneza 2009, é uma experiência<br />

cinemática <strong>de</strong> cortar o fôlego que<br />

po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ser lida como<br />

complemento ao excelente e<br />

Oscarizado “Estado <strong>de</strong> Guerra”<br />

(2008) <strong>de</strong> Kathryn Bigelow. E bem<br />

merecia um programa duplo com a<br />

“Valsa com Bashir” <strong>de</strong> Ari Folman<br />

(2008) ou com o (inédito por cá)<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

“Z32” <strong>de</strong> Avi Mograbi (2008), para<br />

perceber como o cinema israelita já<br />

é capaz <strong>de</strong> olhar para os seus<br />

conflitos <strong>de</strong> modos muito diferentes<br />

e igualmente estimulantes.<br />

Tanto<br />

sentimento!<br />

Será que Andrew e Ben vão<br />

mesmo filmar-se num porno<br />

gay? Isso, em “Humpday”,<br />

é como o “McGuffin” <strong>de</strong><br />

Hitchcock: está ali para<br />

distrair. Vasco Câmara<br />

Humpday - Deu para o torto<br />

Humpday<br />

De Lynn Shelton,<br />

com Mark Duplass, Joshua Leonard,<br />

Alycia Delmore. M/16<br />

MMMnn<br />

<strong>Lisboa</strong>: Castello Lopes - Londres: Sala 1: 5ª<br />

Domingo 2ª 3ª 4ª 14h, 16h30, 19h, 21h30 6ª<br />

Sábado 14h, 16h30, 19h, 21h30, 24h; Me<strong>de</strong>ia<br />

Monumental: Sala 2: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />

3ª 4ª 13h30, 15h30, 17h30, 19h30, 21h30, 24h; UCI<br />

Cinemas - El Corte Inglés: Sala 2: 5ª 6ª Sábado 2ª<br />

3ª 4ª 14h15, 16h40, 19h05, 21h45, 00h20 Domingo<br />

11h30, 14h15, 16h40, 19h05, 21h45, 00h20;<br />

Porto: Arrábida 20: Sala 11: 5ª 6ª Sábado<br />

Domingo 2ª 14h15, 16h45, 19h05, 21h30, 00h10 3ª<br />

4ª 16h45, 19h05, 21h30, 00h10;<br />

Se alguém, por facilida<strong>de</strong>, resumir<br />

“Humpday” a “uma história <strong>de</strong> dois<br />

amigos heterossexuais que resolvem<br />

participar num filme porno gay”, o<br />

filme que se “vê” (com a ajuda da<br />

tradução portuguesa: “Deu para o<br />

torto”) será algo próximo da<br />

comédia que lança personagens aos<br />

leões para gáudio do espectador nas<br />

bancadas. Mas “Humpday” não é<br />

isso, sendo que é a história <strong>de</strong> dois<br />

heterossexuais, Ben (Mark Duplass)<br />

e Andrew ( Joshua Leonard), que<br />

resolvem participar num filme<br />

porno gay.<br />

Não se viam há muito e<br />

(tipicamente) não podiam ser mais<br />

diferentes: Ben está casado,<br />

assentou, Andrew vai enviando, <strong>de</strong><br />

tempos a tempos, postais do seu<br />

périplo. Um dia Andrew entra na<br />

conjugalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ben; regressa a<br />

Ben. Tanto sentimento!<br />

Na comunida<strong>de</strong> liberal e colorida<br />

on<strong>de</strong> vive Ben, organiza-se um<br />

festival <strong>de</strong> filme pornográfico. E é<br />

assim que estes trintões liberais<br />

querem contribuir com a sua<br />

criativida<strong>de</strong>. Sai <strong>de</strong> Ben e Andrew o<br />

<strong>de</strong>safio: em nome da arte, filmaremse<br />

num porno gay.<br />

Por esta altura no filme já se<br />

percebeu que “Humpday” não é a<br />

comédia javarda do costume. É<br />

<strong>de</strong>masiado tagarela. Há nestas<br />

personagens um voluntarismo que<br />

as torna mais próximas dos<br />

estrategas (con<strong>de</strong>nados ao falhanço,<br />

hélas...) que são os homens e<br />

mulheres dos filmes <strong>de</strong> Rohmer. As<br />

personagens <strong>de</strong> “Humpday” são<br />

menos teimosas, é verda<strong>de</strong>. São<br />

mais doces na forma como se<br />

interrogam, como se <strong>de</strong>ixam sabotar<br />

pelas suas certezas. Ou como se<br />

aventuram por lugares para on<strong>de</strong><br />

não estão preparadas para ir – não,<br />

não são figuras olímpicas capazes <strong>de</strong><br />

ultrapassar limites...<br />

Mas tanto sentimento! Não<br />

abunda no cinema americano actual<br />

esta abundância – pelo menos <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o cinema <strong>de</strong> John Cassavetes, em<br />

que as personagens eram,<br />

literalmente, <strong>de</strong>rrubadas pelo que<br />

sentiam. O que titila em “Humpday”<br />

é a utopia <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> fusão<br />

– sentimental. E um olhar tão<br />

melancólico sobre uma geração e as<br />

suas impossibilida<strong>de</strong>s...Sendo<br />

verda<strong>de</strong> que não há aqui nenhum<br />

Cassavetes ou Rohmer atrás da<br />

câmara e que o filme não está<br />

É verda<strong>de</strong> que até ao fim o espectador se pergunta: Andrew<br />

e Ben vão mesmo fazê-lo num quarto <strong>de</strong> hotel? Mas isso, em<br />

“Humpday”, é como o “McGuffin” <strong>de</strong> Hitchcock...


Reencontro<br />

Passaram<br />

21 anos<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />

Antonio<br />

Ban<strong>de</strong>ras<br />

participou<br />

num filme<br />

<strong>de</strong> Pedro<br />

Almodóvar. Os dois vão<br />

voltar a trabalhar juntos<br />

em “La Piel que Habito”.<br />

O filme, que começa a ser<br />

rodado este Verão em<br />

Espanha, baseia-se no<br />

livro <strong>de</strong> Thierry Jonquet<br />

“Tarantula”. Almodóvar<br />

disse ao “El País” que o<br />

filme “será <strong>de</strong> terror, mas<br />

sem gritos ou sustos. É<br />

difícil <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir e embora<br />

se aproxime do género<br />

– algo que me interessa<br />

porque nunca fiz –, não<br />

vou respeitar nenhuma<br />

das regras. É o filme mais<br />

duro que já escrevi e a<br />

personagem <strong>de</strong> Ban<strong>de</strong>ras<br />

é brutal. Um homem<br />

que encarna o abuso do<br />

po<strong>de</strong>r mais absoluto, sem<br />

nenhum escrúpulo”.<br />

propriamente virado para a<br />

transgressão (ou não é capaz <strong>de</strong>la),<br />

Lynn Shelton está, como cineasta<br />

(também é uma das actrizes,<br />

interpreta Monica), totalmente<br />

metida com as personagens. Esta<br />

serena promiscuida<strong>de</strong> parece ser a<br />

natureza da coisa. Ppromiscuida<strong>de</strong> é<br />

também um dos dados <strong>de</strong>ste novo<br />

naturalismo do “indie” americano a<br />

que chamam “mumblecore”<br />

(algumas indicações: poucos meios,<br />

diálogos atrás <strong>de</strong> diálogos, exposição<br />

dos sentimentos, improvisação,<br />

actores que também são<br />

realizadores envolvidos nos filmes<br />

dos amigos e envolvendo-se com os<br />

amigos...)<br />

É verda<strong>de</strong> que até ao fim o<br />

espectador se pergunta: será que<br />

Andrew e Ben vão mesmo fazê-lo<br />

num quarto <strong>de</strong> hotel? Isso, em<br />

“Humpday”, é como o “McGuffin”<br />

<strong>de</strong> Hitchcock: está ali só para<br />

distrair.<br />

Sem <strong>de</strong>sejo<br />

Como Desenhar um Círculo<br />

Perfeito<br />

How to Draw a Perfect Circle<br />

De Marco Martins,<br />

com Rafael Morais, Joana <strong>de</strong> Verona,<br />

Daniel Duval, Beatriz Batarda. M/16<br />

MMnnn<br />

<strong>Lisboa</strong>: Me<strong>de</strong>ia Saldanha Resi<strong>de</strong>nce: Sala 7: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h20, 16h50, 19h20,<br />

21h50, 00h20; ZON Lusomundo Alvaláxia: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h, 16h15, 18h35, 22h,<br />

00h15; ZON Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado<br />

Domingo 2ª 3ª 4ª 12h50, 15h10, 17h50, 21h,<br />

23h20; ZON Lusomundo Almada Fórum: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 15h50, 18h15,<br />

21h, 23h50;<br />

Porto: Me<strong>de</strong>ia Cida<strong>de</strong> do Porto: Sala 2: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h20, 16h50, 19h20,<br />

21h50; ZON Lusomundo Dolce Vita Porto: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h05, 15h40, 18h20,<br />

21h10, 23h50;<br />

“Como Desenhar um Círculo<br />

Perfeito” dá sequência a “Alice”, o<br />

filme com que Marco Martins se<br />

estreou na longa-metragem. Dá<br />

sequência, e não apenas numérica:<br />

reconhecem-se alguns<br />

apontamentos estilísticos e/ou<br />

“atmosféricos” que parecem criar<br />

uma continuida<strong>de</strong> com “Alice”. Por<br />

exemplo, o <strong>de</strong>senho da cida<strong>de</strong> feito<br />

<strong>de</strong> pura meteorologia invernal –<br />

húmida, escura, cinzenta – e o modo<br />

como os interiores (<strong>de</strong> que se diria<br />

serem mais predominantes aqui do<br />

que em “Alice”), preservando essas<br />

características, não estabelecem<br />

uma fronteira clara com os<br />

exteriores, como se fossem eles<br />

próprios dominados pela invernia<br />

citadina. Evi<strong>de</strong>ntemente, entre o<br />

clima e a <strong>de</strong>finição psicológica das<br />

personagens as coincidências são<br />

<strong>tudo</strong> menos casuais, como se<br />

também para a dramaturgia as<br />

questões a resolver fossem, digamos,<br />

“nórdicas”.<br />

Nesta disposição para a bruma há<br />

alguma singularida<strong>de</strong> em “Como<br />

“Como Desenhar...”<br />

revela incapacida<strong>de</strong><br />

para encontrar<br />

a intensida<strong>de</strong> à altura<br />

da profundida<strong>de</strong><br />

psicológica<br />

que quer exprimir<br />

Desenhar um Círculo Perfeito”, a<br />

mesma que havia em “Alice”. Mas<br />

“Alice” tinha, porventura, uma<br />

narrativa mais coesa, ou pelo menos<br />

um centro narrativo mais forte.<br />

“Como Desenhar…” tem uma<br />

estrutura mais vaga, ainda que<br />

plenamente <strong>de</strong>terminada – pois se o<br />

filme mostra, <strong>de</strong> facto, “como<br />

<strong>de</strong>senhar um círculo perfeito”, a<br />

perfeição circular é a figura que mais<br />

se ajusta à evolução e ao <strong>de</strong>senlace<br />

do principal eixo da narrativa (a<br />

história dos dois irmãos). Narrativa<br />

<strong>de</strong> passagem (à ida<strong>de</strong> adulta) e <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scoberta, “Como Desenhar…”<br />

joga-se sobre<strong>tudo</strong> na cabeça das<br />

personagens, em particular na do<br />

adolescente protagonista e na<br />

relação com os outros –<br />

especialmente a irmã e o pai (que,<br />

interpretado pelo granítico Daniel<br />

Duval, actor <strong>de</strong> Garrel e <strong>de</strong> Haneke,<br />

é a presença mais forte do filme). É<br />

aí que “Como Desenhar” revela<br />

alguma incapacida<strong>de</strong> para, além <strong>de</strong><br />

uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> atmosfera, encontrar a<br />

intensida<strong>de</strong> – a intensida<strong>de</strong><br />

narrativa, mas também a<br />

intensida<strong>de</strong> visual: as imagens, os<br />

planos – que esteja à altura da<br />

profundida<strong>de</strong> psicológica que<br />

parece querer exprimir.<br />

Fica-se com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um filme<br />

controlado, até <strong>de</strong>masiado<br />

controlado, que espera até ao fim<br />

por um momento libertador, por um<br />

gesto que o rasgue, que vire do<br />

avesso o seu torpor <strong>de</strong>scritivo, que<br />

faça aparecer um <strong>de</strong>sejo – não “o<br />

<strong>de</strong>sejo”, nem um <strong>de</strong>sejo qualquer,<br />

mas o <strong>de</strong>sejo do próprio filme.<br />

O fado é que instrói?<br />

A Religiosa Portuguesa<br />

De Eugène Green,<br />

com Leonor Baldaque, Francisco<br />

Mozos, Diogo Dória. M/12<br />

A<br />

<strong>Lisboa</strong>: Me<strong>de</strong>ia King: Sala 2: 5ª Domingo 3ª 4ª<br />

13h30, 15h30, 17h40, 19h45, 21h45 6ª Sábado 2ª<br />

13h30, 15h30, 17h40, 19h45, 21h45, 00h15; UCI<br />

Cinemas - El Corte Inglés: Sala 11: 5ª 6ª Sábado 2ª<br />

3ª 4ª 14h, 16h35, 19h10, 21h45, 00h20 Domingo<br />

11h30, 14h, 16h35, 19h10, 21h45, 00h20; ZON<br />

Lusomundo Alvaláxia: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />

3ª 4ª 14h, 17h, 21h35, 00h25;<br />

Porto: Arrábida 20: Sala 5: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />

2ª 13h45, 16h25, 19h10, 21h55, 00h35 3ª 4ª 16h25,<br />

19h10, 21h55, 00h35;<br />

Muita curiosida<strong>de</strong> girava à volta da<br />

estreia <strong>de</strong> “A Religiosa Portuguesa”<br />

<strong>de</strong> Eugène Green, talvez <strong>de</strong>vido à<br />

atávica mania lusitana <strong>de</strong> que os<br />

nossos mitos e paisagens interiores<br />

ganham novas e mais ricas<br />

dimensões quando percepcionadas<br />

<strong>de</strong> fora. Foi assim com “A Cida<strong>de</strong><br />

Branca” <strong>de</strong> Alain Tanner, com<br />

“Lisbon Story” <strong>de</strong> Wim Wen<strong>de</strong>rs,<br />

com os romances <strong>de</strong> António<br />

Tabucchi (e respectivas adaptações<br />

cinematográficas), para nomear<br />

apenas uns poucos exemplos. Ora,<br />

<strong>de</strong>sta vez a almejada montanha<br />

pariu um minúsculo rato: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as<br />

primeiras imagens nos apercebemos<br />

que estamos confrontados com uma<br />

sequência <strong>de</strong>scontrolada <strong>de</strong> bilhetespostais<br />

ilustrados <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>, sem<br />

tom nem som, presos a um fascínio<br />

aleatório da imagem, mas esvaziados<br />

<strong>de</strong> formas, jogados como<br />

estereótipos para cima da tela.<br />

A estratégia <strong>de</strong> um cinema autoreflexivo,<br />

embora pareça<br />

acrescentar mais-valias, possui<br />

riscos graves, capazes <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar um perverso<br />

mecanismo <strong>de</strong> distanciamento<br />

<strong>de</strong>strutivo: a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> transpor a<br />

história da suposta freira <strong>de</strong> Beja,<br />

Sóror Mariana Alcoforado,<br />

ficcionada por um exotismo francês<br />

do século XVII, para um processo <strong>de</strong><br />

filmagens na <strong>Lisboa</strong> mo<strong>de</strong>rna, com<br />

actores que macaqueiam os estados<br />

<strong>de</strong> alma (e os seus próprios<br />

problemas metafísicos e outros <strong>de</strong><br />

Uma caricatura?<br />

Cinemateca Portuguesa R. Barata Salgueiro, 39 <strong>Lisboa</strong>. Tel. 213596200<br />

Sexta, 07<br />

Desapareceu Um dos Nossos<br />

Aviões<br />

One of Our Aircraft Is Missing<br />

De Michael Powell, Emeric<br />

Pressburger. Com Godfrey Tearle,<br />

Eric Portman, Hugh Williams. 106<br />

min. M12.<br />

15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

To Sir, with Love II<br />

De Peter Bogdanovich. Com Sidney<br />

Poitier, Christian Payton, Dana<br />

Eskelson. 92 min.<br />

19h - Sala Félix Ribeiro<br />

Somewhere in Between +<br />

Magnetic Cinema<br />

De Pierre Coulibeuf. 70 min.<br />

19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Ninguém Sabe<br />

Dare mo Shiranai<br />

Nobody Knows<br />

De Hirokazu Koreeda. Com Yûya<br />

Yagira, Ayu Kitaura, Hiei Kimura. 141<br />

min. M12.<br />

21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

Correspondances + Les Signes +<br />

Le Nom Du Feu<br />

De Eugène Green. Com François<br />

Rivière, Delphine Hecquet, Christelle<br />

Prot.<br />

22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Sábado, 08<br />

O Falsário<br />

The Impostor<br />

De Julien Duvivier. Com Jean Gabin,<br />

Richard Whorf, Ellen Drew. 92 min.<br />

15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

A Loira Explosiva<br />

Will Sucess Spoil Rock Hunter?<br />

De Frank Tashlin. Com Jayne<br />

Mansfield, Betsy Drake, Tony<br />

Randall. 95 min. M12.<br />

19h - Sala Félix Ribeiro<br />

Crise<br />

Kris<br />

De Ingmar Bergman. Com Dagny<br />

Lind, Stig Olin, Allan Bohlin,<br />

Marianne Lofgren. 88 min. M16.<br />

19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Teorema + O Noivo, a Actriz e o<br />

Proxeneta<br />

De Pier Paolo Pasolini. Com Massimo<br />

Girotti, Silvana Mangano, Terence<br />

Stamp. 95 min. M16.<br />

21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

O Monte dos Vendavais<br />

Abismos <strong>de</strong> Pasión<br />

De Luis Buñuel. Com Irasema Dilián,<br />

Jorge Mistral, Lilia Prado. 90 min.<br />

22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Segunda, 10<br />

O Vale era Ver<strong>de</strong> e<br />

How Green Was My Valley<br />

De John Ford. Com Anna<br />

Lee, Maureen O Hara,<br />

Walter Pidgeon.<br />

118 min. M12.<br />

15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

Belle Toujours<br />

De Manoel <strong>de</strong> Oliveira.<br />

Com Michel Piccoli,<br />

Bulle Ogier, Ricardo Trepa. 68 min.<br />

M12.<br />

19h - Sala Félix Ribeiro<br />

Os Treze<br />

Trinadtsat<br />

De Mikhail Romm. 90 min.<br />

19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Quando Passam as Cegonhas<br />

Letjat Zhuravli<br />

De Mikhail Kalatozov. Com Aleksei<br />

Batalov, Tatyana Samojlova, Vasili<br />

Merkuryev. 97 min.<br />

21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

No Quarto da Vanda<br />

De Pedro Costa. Com Lena Duarte,<br />

Vanda Duarte, Zita Duarte . 179 min.<br />

M16.<br />

22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Quarta, 12<br />

O Extravagante Sr. Ruggles<br />

Ruggles of Red Gap<br />

De Leo McCarey. Com Charles<br />

Laughton, Charles Ruggles, Mary<br />

Boland. 91 min. M12.<br />

15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

Do Outro Lado<br />

Auf <strong>de</strong>r An<strong>de</strong>ren Seite<br />

De Fatih Akin. Com Baki Davrak,<br />

Tuncel Kurtiz, Nurgül Yesilçay. 122<br />

min. M12.<br />

19h – Sala Félix Ribeiro<br />

A Barreira Invisível<br />

The Thin Red Line<br />

De Terrence Malick. Com George<br />

Clooney, Nick Nolte, Sean Penn. 170<br />

min. M16.<br />

21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

Welcome<br />

De Philippe<br />

Lioret. Com<br />

Vincent<br />

Lindon, Firat<br />

Ayverdi,<br />

Audrey Dana.<br />

110 min. M12.<br />

22h - Sala Luís <strong>de</strong><br />

Pina<br />

“Belle Toujours”<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 43


Cinema<br />

As estrelas do público<br />

Jorge<br />

Mourinha<br />

Luís M.<br />

Oliveira<br />

Mário<br />

J. Torres<br />

Vasco<br />

Câmara<br />

Aquário mmmmn nnnnn nnnnn mmnnn<br />

Como <strong>de</strong>senhar um círculo perfeito mnnnn mmnnn nnnnn mnnnn<br />

Ervas Daninhas nnnnn mmmnn mmmmm mmmmn<br />

Eu Amo-te Philip Morris mmnnn nnnnn mmnnn mmnnn<br />

Fantasia Lusitana mmmnn mmmnn mmmmn mmmnn<br />

Greenberg mmmmn mmmnn nnnnn nnnnn<br />

Humpday mmmnn nnnnn nnnnn mmmnn<br />

Líbano mmmmn nnnnn nnnnn mmmmn<br />

9 mmmnn nnnnn nnnnn nnnnn<br />

A Religiosa Portuguesa A nnnnn A mnnnn<br />

relevância contemporânea) das<br />

personagens, revela-se <strong>de</strong> uma<br />

inutilida<strong>de</strong> confrangedora e encaixa<br />

num patético sonambulismo que<br />

pouco acrescenta seja ao que for.<br />

Uma actriz luso-francesa, como<br />

convém (Mónica Baldaque, em<br />

registo <strong>de</strong> zombie, como se quisesse<br />

citar Oliveira e o mundo oliveiriano<br />

se reduzisse àquele olhar oco para a<br />

câmara), chega à Albergaria da<br />

Senhora do Monte, visivelmente<br />

escolhida para iniciar um catálogo<br />

<strong>de</strong> miradouros sobre a cida<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>bita sem convicção nem tom, <strong>de</strong><br />

olhos esbugalhados, os mais<br />

inacreditáveis diálogos <strong>de</strong> que nos<br />

recordamos e prepara-se para rodar,<br />

sob a batuta <strong>de</strong> um realizador<br />

internacional (Eugène Green, ele<br />

próprio), uma versão congelada dos<br />

amores <strong>de</strong>scabelados da religiosa do<br />

título.<br />

Por aqui, não viria gran<strong>de</strong> mal ao<br />

mundo das letras, nem pelo facto <strong>de</strong><br />

<strong>Lisboa</strong> não funcionar como o lugar<br />

histórico i<strong>de</strong>al, nem pelo travesti<br />

<strong>de</strong>scontextualizado <strong>de</strong> um barroco<br />

<strong>de</strong> pacotilha, uma vez que o texto<br />

original se reveste <strong>de</strong> características<br />

obviamente mistificadoras. O caldo<br />

começa a entornar-se quando as<br />

i<strong>de</strong>ias feitas <strong>de</strong> uma <strong>Lisboa</strong> turística,<br />

composta <strong>de</strong> luzinhas tremeluzentes<br />

e da acumulação <strong>de</strong> monumentos a<br />

granel (das ruínas do convento do<br />

Carmo à Torre <strong>de</strong> Belém, da Alfama<br />

das escadinhas <strong>de</strong> Santo Estêvão à<br />

ermida da Senhora do Monte)<br />

<strong>de</strong>scamba para a fancaria <strong>de</strong> um<br />

imaginário possidónio <strong>de</strong> guia para<br />

<strong>de</strong>slumbrado visitante francês (ou<br />

<strong>de</strong> qualquer outra origem, tanto faz),<br />

<strong>de</strong>ambulando sem Norte (nem Sul)<br />

por painéis <strong>de</strong> azulejos (por acaso<br />

quase todos do século XVIII), que<br />

servem <strong>de</strong> fundo a telediscos <strong>de</strong><br />

Fados – o fado podia lá faltar nesta<br />

concepção <strong>de</strong> um Portugal folclórico<br />

– cantados por Camané e Aldina<br />

Duarte, o melhor do filme, embora<br />

com função <strong>de</strong>corativa.<br />

Não contente com tal disparate<br />

acumulativo, “A Religiosa<br />

Portuguesa” não resiste a inscrever<br />

na ficção <strong>de</strong>ntro da ficção (<strong>de</strong>ntro da<br />

ficção) um Duque (ou é Con<strong>de</strong>?) <strong>de</strong><br />

Viseu, suicidário, entregue a Diogo<br />

Dória (irónico ou a levar-se a sério?)<br />

que se diz originário <strong>de</strong> um romance<br />

russo (dá para acreditar?), pretexto<br />

para invocar os fantasmas do 25 <strong>de</strong><br />

Abril (claro que o 25 <strong>de</strong> Abril não<br />

podia faltar), <strong>de</strong> olho em alvo e<br />

habitando um palácio, também ele<br />

fantasmático à luz <strong>de</strong> velas. Mas, se<br />

julgam que os amorosos romances<br />

reflectores da actriz-freira se ficam<br />

por aqui, <strong>de</strong>senganem-se, pois o<br />

melhor está para vir: envolve-se,<br />

como também é <strong>de</strong> cartilha, com o<br />

actor francês com quem contracena,<br />

feliz no casamento mas a precisar <strong>de</strong><br />

estímulos sexuais, e <strong>de</strong>scobre numa<br />

discoteca um jovem <strong>de</strong> impecável<br />

cachecol branco que toma pela<br />

reencarnação <strong>de</strong> D. Sebastião (claro<br />

que faltava o D. Sebastião!),<br />

“tornado heterossexual” por séculos<br />

<strong>de</strong> espera (não estamos a inventar,<br />

faz parte integrante dos mimosos<br />

diálogos), voltando a encontrá-lo por<br />

acaso em Alfama, quando faz as<br />

“démarches” para adoptar o<br />

rapazinho órfão que encontrara<br />

num dos primeiros planos do filme.<br />

Este episódio proletário serve ainda<br />

para expor uma das maiores actrizes<br />

do cinema português, Beatriz<br />

Batarda, brilhante como sempre,<br />

numa rábula inconsequente, e para<br />

mostrar os azulejos da interior da<br />

casa, caricatura (haverá alguma<br />

coisa no filme que não funcione em<br />

registo <strong>de</strong> caricatura?) dos azulejos<br />

barrocos das capelas e das<br />

sequências fadistas, numa das quais<br />

<strong>de</strong>sfila a equipa <strong>de</strong> produção, como<br />

convém à auto-reflexivida<strong>de</strong><br />

dominante.<br />

Mas não é <strong>tudo</strong>: no interior da<br />

capela, passa as noites uma<br />

misteriosa freira (pobre Ana<br />

Moreira, outra das remissões para o<br />

cinema português que se preten<strong>de</strong><br />

“homenagear”?), uma espécie <strong>de</strong><br />

duplo da protagonista, com a qual<br />

ela troca mais alguns dos<br />

imperdíveis diálogos <strong>de</strong> recorte<br />

metafísico, não escapando nem<br />

sequer referências aos êxtases<br />

místicos <strong>de</strong> Santa Teresa <strong>de</strong> Ávila e<br />

às várias componentes do amor.<br />

Para o final, fica o mais<br />

inacreditável dos planos do filme,<br />

aquele em que ondulam ao vento as<br />

ban<strong>de</strong>iras do Benfica e do Sporting<br />

(propositadamente encenadas ou<br />

simplesmente revelando o “bom<br />

gosto” da câmara inclusiva?) e não<br />

resistimos a lembrar a frase feita,<br />

apropriada a um filme todo feito <strong>de</strong><br />

clichés: “O vinho é que induca, o<br />

fado é que instrói e quem não é do<br />

Benfica (ou do Sporting, para o caso)<br />

não é bom chefe <strong>de</strong> família”.<br />

E fica-nos a dúvida ingente: tratase<br />

<strong>de</strong> uma comédia voluntária, um<br />

irrisório, “chunga”, quase<br />

insultuoso, olhar sobre a<br />

portugalida<strong>de</strong>, ou comédia<br />

involuntária, a força <strong>de</strong> tanto se<br />

querer homenagear o cinema<br />

português? O tom sério,<br />

contemplativo e laudatório leva-nos<br />

a inclinarmo-nos para a segunda,<br />

mas lá ficam dúvidas, lá isso<br />

ficam. Mário Jorge Torres<br />

9<br />

De Shane Acker,<br />

com Christopher Plummer, Martin<br />

Landau, John C. Reilly, Elijah Wood.<br />

MMMnn<br />

<strong>Lisboa</strong>: UCI Cinemas - El Corte Inglés: Sala 10: 5ª 6ª<br />

Sábado 2ª 3ª 4ª 14h15, 16h20, 18h15, 20h10, 22h,<br />

23h50 Domingo 11h30, 14h15, 16h20, 18h15, 20h10,<br />

22h, 23h50; ZON Lusomundo Alvaláxia: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h40, 15h40, 17h40,<br />

19h40, 21h45, 23h50; ZON Lusomundo Amoreiras:<br />

5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h15, 15h20,<br />

17h30, 19h40, 21h50, 23h50; ZON Lusomundo<br />

CascaiShopping: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª<br />

13h30, 16h10, 18h50, 21h40, 23h50; ZON<br />

Lusomundo Colombo: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />

3ª 4ª 12h55, 15h15, 17h20, 19h30, 21h40,<br />

23h50; ZON Lusomundo Dolce Vita Miraflores: 5ª<br />

Domingo 2ª 3ª 4ª 15h30, 17h30, 19h30, 21h30 6ª<br />

Sábado 15h30, 17h30, 19h30, 21h30, 23h30; ZON<br />

Lusomundo Odivelas Parque: 5ª 2ª 3ª 4ª 15h40,<br />

18h20, 21h40 6ª 15h40, 18h20, 21h40, 24h Sábado<br />

13h10, 15h40, 18h20, 21h40, 24h Domingo 13h10,<br />

15h40, 18h20, 21h40; ZON Lusomundo Oeiras<br />

Parque: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h05,<br />

15h10, 17h20, 19h30, 21h40, 00h05; ZON<br />

Lusomundo Vasco da Gama: 5ª 6ª Sábado<br />

Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 15h25, 17h30, 19h30, 21h40,<br />

23h45; ZON Lusomundo Almada Fórum: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h10, 15h25, 18h, 21h,<br />

23h30;<br />

Porto: Arrábida 20: Sala 4: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />

2ª 14h05, 16h05, 18h10, 20h10, 22h15, 00h25 3ª 4ª<br />

16h05, 18h10, 20h10, 22h15, 00h25; ZON<br />

Lusomundo GaiaShopping: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª 13h,<br />

15h, 17h, 19h, 21h20, 24h Sábado Domingo 10h55,<br />

13h, 15h, 17h, 19h, 21h20, 24h; ZON Lusomundo<br />

Marshopping: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª<br />

13h40, 16h10, 19h, 21h50, 00h40; ZON Lusomundo<br />

NorteShopping: 5ª 6ª Sábado 2ª 3ª 4ª 13h, 15h10,<br />

17h15, 19h30, 21h40, 23h50 Domingo 10h40, 13h,<br />

15h10, 17h15, 19h30, 21h40, 23h50; ZON Lusomundo<br />

Parque Nascente: 5ª 6ª Sábado 2ª 3ª 4ª 13h, 15h,<br />

17h10, 19h30, 21h40, 23h50 Domingo 11h, 13h, 15h,<br />

17h10, 19h30, 21h40, 23h50; ZON Lusomundo<br />

Fórum Aveiro: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 13h50, 16h20,<br />

18h45, 21h10 6ª Sábado 13h50, 16h20, 18h45, 21h10,<br />

23h50;<br />

O nome do produtor <strong>de</strong> “9” não<br />

engana quanto ao facto <strong>de</strong> este não<br />

ser um filme <strong>de</strong> animação para<br />

miúdos – Tim Burton, nem mais nem<br />

menos, que se associou ao<br />

realizador azeri Timur<br />

Bekmambetov (“Guardiões da<br />

Noite” e “Procurado”) para<br />

apadrinhar a primeira longa do<br />

animador americano Shane Acker,<br />

“versão longa” <strong>de</strong> uma curta <strong>de</strong><br />

2005 nomeada para um Óscar. Mas<br />

não se espere <strong>de</strong> “9” um<br />

“pastiche”/“ersatz” <strong>de</strong> Burton –<br />

apesar da presença <strong>de</strong><br />

colaboradores habituais do autor <strong>de</strong><br />

“Eduardo Mãos-<strong>de</strong>-Tesoura” (Pamela<br />

Pettler, argumentista <strong>de</strong> “A Noiva<br />

Cadáver”, ou o compositor Danny<br />

Elfman), o filme <strong>de</strong> Acker é um<br />

objecto autónomo, um equivalente<br />

animado das distopias tecnológicas<br />

das séries “Matrix” ou<br />

“Exterminador Implacável”<br />

transposto para um ambiente retrofuturista<br />

“steampunk”. Um boneco<br />

<strong>de</strong> trapos vem a si numa cida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>struída on<strong>de</strong> nada se mexe, a não<br />

ser outros como ele e uma<br />

misteriosa “besta” mecânica, únicos<br />

sobreviventes <strong>de</strong> uma guerra sem<br />

quartel entre a extinta raça humana<br />

e um cérebro electrónico que,<br />

inadvertidamente, acaba <strong>de</strong> ser<br />

reacordado. Não convém <strong>de</strong>ixaremse<br />

enganar pelo aspecto “fofinho”<br />

dos bonecos <strong>de</strong> trapos, nove ao<br />

todo, cada um <strong>de</strong>les reproduzindo<br />

uma faceta emocional do seu<br />

criador, com as vozes entregues a<br />

Elijah Wood, Jennifer Connelly,<br />

Christopher Plummer, John C. Reilly<br />

ou Martin Landau. A intensida<strong>de</strong> da<br />

acção coloca “9” muito mais do lado<br />

da ficção científica ou do fantástico<br />

adultos, lança o filme para uma<br />

bizarra “terra <strong>de</strong> ninguém”<br />

<strong>de</strong>masiado madura para os miúdos e<br />

insuficientemente sólida para os<br />

graúdos. Mas isso não po<strong>de</strong> servir <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sculpa para menorizar a pequena<br />

surpresa que este filme constitui,<br />

pela invenção visual <strong>de</strong> que faz<br />

prova, pela a<strong>de</strong>quação entre estilo,<br />

concepção e história, pela ousadia<br />

<strong>de</strong> propor um objecto<br />

<strong>de</strong>liberadamente fora das fronteiras<br />

tradicionais do que <strong>de</strong>ve ser uma<br />

animação. J.M.<br />

44 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

Projecto<br />

Um<br />

contracto to<br />

entre a<br />

Universal<br />

e a Hasbro,<br />

empresa<br />

produtora ra<br />

<strong>de</strong> jogos <strong>de</strong> tabuleiro,<br />

vai permitir que seis<br />

realizadores <strong>de</strong>senvolvam<br />

projectos<br />

cinematográficos<br />

baseados em jogos <strong>de</strong><br />

socieda<strong>de</strong>. Já foram<br />

divulgados os nomes<br />

dos cineastas e os jogos:<br />

Ridley Scott (Monopólio),<br />

Gore Verbinski (Cluedo),<br />

Peter Berg (Touché),<br />

Kevin Lima (Candy Land)<br />

e Michael Bay (Ouija).<br />

Ainda não é conhecida<br />

a data <strong>de</strong> lançamento <strong>de</strong><br />

nenhum dos filmes.<br />

“Greenberg”: uma carta <strong>de</strong> amor a Los Angeles<br />

Continuam<br />

Greenberg<br />

De Noah Baumbach,<br />

com Ben Stiller, Greta Gerwig, Jennifer<br />

Jason Leigh. M/12<br />

MMMMn<br />

<strong>Lisboa</strong>: Castello Lopes - Londres: Sala 2: 5ª<br />

Domingo 2ª 3ª 4ª 14h15, 16h45, 19h15, 21h45 6ª<br />

Sábado 14h15, 16h45, 19h15, 21h45, 00h15; UCI<br />

Cinemas - El Corte Inglés: Sala 14: 5ª 6ª Sábado 2ª<br />

3ª 4ª 14h15, 16h40, 19h05, 21h35, 24h Domingo<br />

11h30, 14h15, 16h40, 19h05, 21h35, 24h; ZON<br />

Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />

3ª 4ª 13h40, 16h20, 18h40, 21h40, 24h; ZON<br />

Lusomundo CascaiShopping: 5ª 6ª Sábado<br />

Domingo 2ª 3ª 4ª 13h15, 15h50, 18h40, 21h05,<br />

23h40; ZON Lusomundo Colombo: 5ª 6ª Sábado<br />

Domingo 2ª 3ª 12h45, 15h25, 18h15, 21h35, 00h10<br />

4ª 12h45, 15h25, 18h15, 00h10; ZON Lusomundo<br />

Almada Fórum: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª<br />

12h55, 15h25, 18h, 21h05, 23h40;<br />

Porto: Arrábida 20: Sala 2: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />

2ª 14h10, 16h45, 19h15, 21h50, 00h30 3ª 4ª 16h45,<br />

19h15, 21h50, 00h30; ZON Lusomundo<br />

NorteShopping: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª<br />

12h30, 17h50, 21h20;<br />

Um neurótico quarentão que nunca<br />

fez a transição para o mundo adulto<br />

aterra em Los Angeles para passar<br />

algumas semanas em casa do irmão<br />

e embarca num romance<br />

<strong>de</strong>sastrado com a governanta –<br />

posto <strong>de</strong>sta maneira, “Greenberg” é<br />

uma comédia romântica, só que<br />

não é bem comédia e é ainda menos<br />

romântica. O neurótico é Ben Stiller<br />

forçando a sua imagem pública ao<br />

limite, personagem quezilenta,<br />

narcisista e misantropa, a<br />

governanta, gémeo inseguro e sem<br />

rumo <strong>de</strong> Stiller, é a encantadora<br />

Greta Gerwig, revelação <strong>de</strong>ste filme<br />

inteligente e <strong>de</strong>sconfortável sobre<br />

gente à procura <strong>de</strong> si própria sem o<br />

saber. Mistura da flânerie curiosa <strong>de</strong><br />

Eric Rohmer, dos novos hipernaturalistas<br />

do movimento<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte “mumblecore” e do<br />

cinema americano da década <strong>de</strong><br />

1970, “Greenberg” é também<br />

uma enorme carta <strong>de</strong> amor a Los<br />

Angeles e um dos melhores<br />

filmes americanos dos últimos<br />

anos. J.M.<br />

Fantasia Lusitana<br />

De João Canijo . M/12<br />

MMMMn<br />

<strong>Lisboa</strong>: CinemaCity Campo Pequeno Praça <strong>de</strong><br />

Touros: Sala 6: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª 14h, 16h15, 17h50,<br />

19h10, 21h40, 23h, 00h25 Sábado Domingo 16h15,<br />

17h50, 19h10, 21h40, 23h, 00h25;<br />

Porto: Nun`Álvares: Sala 1: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />

2ª 3ª 4ª 19h;<br />

Cineclubes para mais informações consultar www.fpcc.pt<br />

Cine-Teatro S. Pedro<br />

Largo S. Pedro- Abrantes<br />

Ágora<br />

De Alejandro Amenabar, 2009, M/12<br />

12/5, 21.30h<br />

Cinema Teixeira <strong>de</strong><br />

Pascoaes<br />

Centro Comercial Santa Luzia - Amarante<br />

Indie <strong>Lisboa</strong> – Filmes Premiados<br />

7/5, 21.30h<br />

My Childhood + My Ain’ Folk<br />

De Bill Douglas, 1972 e 1973 8/5, 21.30h<br />

Auditório Soror<br />

Mariana<br />

Rua Diogo Cão, 8 – Évora<br />

Ruínas + Canções <strong>de</strong><br />

Amor e Saú<strong>de</strong><br />

De Manuel Mozos, 2009<br />

+ João Nicolau, 2009 12/5,<br />

21h30<br />

Auditório do<br />

IPJ (Faro)<br />

“Um Homem Singular “<br />

Rua da PSP - Faro<br />

Um dia <strong>de</strong> cada vez<br />

De Mike Leigh, 2008, M/12 10/5, 21.30h<br />

Casa das Artes <strong>de</strong> Vila<br />

Nova <strong>de</strong> Famalicão<br />

Parque <strong>de</strong> Sinçães – Famalicão<br />

Estrela Cintilante<br />

De Jane Campion, 2009, M/12 13/5,<br />

21.30h - Pequeno Auditório<br />

Centro Cultural Vila<br />

Flor<br />

Av. D. Afonso Henriques, 701 - Guimarães<br />

Um Homem Singular<br />

De Tom Ford, 2009, M/16 9/5, 21.45h -<br />

Pequeno Auditório<br />

Cinemas Ria Shoping<br />

Estrada Nacional 125, 100 - Olhão<br />

Consultórios <strong>de</strong> Deus<br />

De Claire Simon, 2008, M/16 11/5, 21.30h<br />

Cine-Teatro António<br />

Pinheiro<br />

R. Guilherme Gomes Fernan<strong>de</strong>s, 5 - Tavira<br />

Precious<br />

De Lee Daniels, 2009, M/16 9/5, 21.30h<br />

Quatro Noites Com Anna<br />

De Jerzy Skolimovski, 2008, M/16<br />

13/5, 21.30h<br />

Cinema Ver<strong>de</strong> Viana<br />

Praça 1º <strong>de</strong> Maio, Centro Comercial - Viana do<br />

Castelo<br />

X Encontros <strong>de</strong> Viana<br />

Até 9 <strong>de</strong> Maio<br />

Consultar www.ao-norte.com<br />

2010_x_encontros.htm<br />

Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong><br />

Vila do Con<strong>de</strong><br />

Av. João Canavarro - Vila do Con<strong>de</strong><br />

Deixa Chover<br />

De Agnès Jaoui, 2008, M/12<br />

9/5, 16.00h e 21.00h<br />

Auditório do IPJ<br />

(Viseu)<br />

R. Dr. Aresti<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa Men<strong>de</strong>s, 33 - Viseu<br />

Um homem singular<br />

De Tom Ford, 2009, M/16 11/5, 21.45h<br />

“9”: não convém <strong>de</strong>ixarem-se<br />

enganar pelo aspecto “fofinho”<br />

dos bonecos <strong>de</strong> trapos<br />

Um filme todo feito <strong>de</strong> colagens <strong>de</strong><br />

colagens <strong>de</strong> documentários do<br />

Estado Novo, embora com a<br />

inteligente intromissão <strong>de</strong> uma<br />

textualida<strong>de</strong> exterior, que os<br />

recontextualiza <strong>de</strong> modo<br />

contemporâneo, po<strong>de</strong>rá possuir<br />

limites evi<strong>de</strong>ntes, mas o resultado é<br />

estimulante, porque Canijo enten<strong>de</strong><br />

os materiais com que trabalha e se<br />

apercebe da sua <strong>de</strong>sgarrada<br />

eloquência. Por isso, “Fantasia<br />

Lusitana” ultrapassa a soma das suas<br />

partes constituintes e traça um dos<br />

olhares mais negros sobre o<br />

“fascismo português” e, sem sombra<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>magogia, mostra como os anos<br />

40, neste “jardim à beira mar<br />

plantado”, po<strong>de</strong>m funcionar<br />

enquanto chave para enten<strong>de</strong>r a<br />

nossa presente “apagada e vil<br />

tristeza”. M.J.T.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 45


Livros<br />

Quando “Zona” foi publicado em França houve<br />

quem dissesse que há muto não se via nas letras<br />

francesas um projecto tão <strong>de</strong>smesurado e audaz<br />

Ficção<br />

Viagem ao<br />

fim da noite<br />

Inventivo e ambicioso,<br />

Mathias Énard compôs uma<br />

epopeia contemporânea por<br />

on<strong>de</strong> passa a violência da<br />

história do século XX. José<br />

Riço Direitinho<br />

Zona<br />

Mathias Énard<br />

(traduzido por Pedro Tamen)<br />

Dom Quixote<br />

MMMMM<br />

Há dois anos a “rentrée” literária<br />

francesa foi surpreendida por um<br />

livro ambicioso, “Zona”; houve<br />

quem dissesse que<br />

não se via nas letras<br />

francesas um<br />

projecto tão<br />

<strong>de</strong>smesurado e<br />

audaz <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

publicação do<br />

alucinado romance<br />

<strong>de</strong> Olivier Rolin “A<br />

Invenção do Mundo” (ASA, 1997). O<br />

autor, Mathias Énard (n. 1972), não<br />

era um estreante: “La Perfection du<br />

Tir”, a história <strong>de</strong> um “sniper” na<br />

guerra do Líbano, tinha já chamado<br />

a atenção dos leitores e dos críticos<br />

havia cinco anos.<br />

“Zona” é uma récita em jeito <strong>de</strong><br />

confissão, uma epopeia<br />

contemporânea que, entre outras<br />

coisas, narra a história bélica da<br />

Europa e do Médio-Oriente durante<br />

o último século, mas sem nunca<br />

per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista os <strong>de</strong>uses antigos e<br />

os heróis míticos da “Íliada”, a<br />

viagem <strong>de</strong> Ulisses, a cólera <strong>de</strong><br />

Aquiles e a guerra <strong>de</strong> Tróia, como<br />

que a querer justificar o verso <strong>de</strong><br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

Apollinaire no poema homónimo: “À<br />

la fin tu es las <strong>de</strong> ce mon<strong>de</strong> ancien”.<br />

O romance é uma espécie <strong>de</strong> fresco<br />

que se vai completando, <strong>de</strong><br />

palimpsesto erudito composto por<br />

24 partes (mais uma vez, à<br />

semelhança dos 24 Cantos da<br />

“Ilíada”) on<strong>de</strong> se juntam <strong>de</strong> maneira<br />

inventiva a história antiga e a<br />

contemporânea, a literatura, a<br />

geografia, a ciência das armas e a<br />

arte da guerra, e ainda reflexões<br />

sobre o amor e as contradições da<br />

natureza humana, <strong>tudo</strong> isto numa<br />

única frase <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 400 páginas<br />

– interrompida poucas vezes para<br />

nela se intrometer uma história<br />

pungente <strong>de</strong> dois amantes libaneses<br />

– e em que a pontuação (vírgulas)<br />

apenas serve para marcar o ritmo,<br />

que vai sofrendo alterações.<br />

Toda a narração é feita durante a<br />

viagem <strong>de</strong> um comboio nocturno<br />

que atravessa parte <strong>de</strong> Itália, entre<br />

Milão e Roma. O viajante, a caminho<br />

do “fim do mundo” como um Ulisses<br />

mo<strong>de</strong>rno a caminho da re<strong>de</strong>nção, é<br />

um agente dos serviços secretos,<br />

“homem da sombra”, na sua última<br />

missão: entregar em Roma, a um<br />

representante papal, uma maleta<br />

(qual caixa <strong>de</strong> Pandora!) com as<br />

informações coligidas durante os<br />

últimos anos sobre terroristas;<br />

receber uma importante maquia <strong>de</strong><br />

dinheiro, e “<strong>de</strong>saparecer mais ou<br />

menos <strong>de</strong>finitivamente”. Francis<br />

Servain Mirkovi, o narradorconfessor<br />

que viaja sob o falso nome<br />

Yvan Deroy, é um franco-croata com<br />

um passado <strong>de</strong> militante na extremadireita,<br />

antes <strong>de</strong> fazer “todas as<br />

preparações militares possíveis” e<br />

<strong>de</strong> combater em sucessivas guerras<br />

na ex-Jugoslávia, “pela Croácia livre<br />

e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, e <strong>de</strong>pois pela<br />

Herzegovina livre e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e<br />

finalmente pela Bósnia croata livre e<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”. Depois torna-se<br />

agente secreto a trabalhar na “Zona”<br />

(o Médio-Oriente, da Argélia ao<br />

Egipto, passando pelo Líbano, Síria e<br />

Israel). Nos intervalos das missões,<br />

dá largas à sua imo<strong>de</strong>rada paixão<br />

pelo álcool sempre pontuada por<br />

sucessivas histórias com mulheres. É<br />

em Alexandria, “um belo sítio para<br />

esperar pelo fim do mundo<br />

comendo peixe frito sob um gran<strong>de</strong><br />

Sol <strong>de</strong> Inverno aninhado no céu<br />

limpo pelo vento”, que se encontra<br />

com Marianne, a primeira das três<br />

mulheres que surgem <strong>de</strong> maneira<br />

recorrente nas suas memórias. E<br />

também a encontra em Veneza,<br />

on<strong>de</strong> num bar conhece um<br />

misterioso sírio que “era muito<br />

religioso, rezava, jejuava e nunca<br />

bebia do álcool que servia aos<br />

clientes, o seu fraco eram as<br />

raparigas, sobre<strong>tudo</strong> as putas, coisa<br />

que ele justificava dizendo que o<br />

Profeta tivera cem mulheres”.<br />

Énard vai-se servindo da violência<br />

da história do século XX (da<br />

Primeira Guerra Mundial, à Guerra<br />

Civil <strong>de</strong> Espanha, aos campos <strong>de</strong><br />

concentração nazis, à guerra do<br />

Líbano, e mais recentemente às<br />

guerras nos Balcãs) para fazer uma<br />

erudita reflexão literária (on<strong>de</strong> não<br />

faltam as vozes mo<strong>de</strong>rnas <strong>de</strong> Ezra<br />

Pound, Céline, Conrad, Genet ou W.<br />

G. Sebald, entre outras) sobre a<br />

complexida<strong>de</strong> das contradições da<br />

natureza humana e da<br />

“aleatorieda<strong>de</strong>” da História, que é<br />

sempre escrita pelos vencedores.<br />

Neste sentido, o narrador, que<br />

também terá a sua conta <strong>de</strong> “crimes<br />

contra a Humanida<strong>de</strong>”, não po<strong>de</strong>ria<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ir a Haia, num dos seus<br />

intervalos entre missões (<strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

um <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro copo bebido num bar<br />

a olhar o pôr-do-sol em Jerusalém),<br />

assistir incógnito ao julgamento <strong>de</strong><br />

um general bósnio no Tribunal Penal<br />

Internacional, on<strong>de</strong> os juízes<br />

procuram averiguar, à luz do Direito<br />

Internacional, “em que momento<br />

uma bala na cabeça era legítima e<br />

em que momento constituía uma<br />

grave infracção ao direito e aos<br />

costumes da guerra”.<br />

De facto, “<strong>tudo</strong> é mais difícil<br />

46 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


Edição<br />

O novo<br />

livro do jornalista e<br />

historiador José<br />

Milhazes, “Samora<br />

Machel – Atentado ou<br />

Aci<strong>de</strong>nte?”, cruza três<br />

fontes soviéticas e<br />

conclui que o avião on<strong>de</strong><br />

seguia o Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

Moçambique em 19 <strong>de</strong><br />

Outubro <strong>de</strong> 1986 caiu<br />

por <strong>de</strong>sleixo da tripulação<br />

e não por ser alvo <strong>de</strong><br />

atentado. A partir <strong>de</strong> hoje<br />

nas livrarias.<br />

quando se é homem feito” (frase<br />

recorrente no romance), mas a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção nunca<br />

nos abandona, ao contrário dos<br />

<strong>de</strong>uses, nem que seja num comboio<br />

para o fim do mundo. Numa viagem<br />

ao fim da noite.<br />

Vidas sem<br />

futuro<br />

No ano em que se<br />

completam 60 anos da<br />

publicação original, nova<br />

tradução <strong>de</strong> uma das obras<br />

mais importantes do século<br />

XX. Eduardo Pitta<br />

O Coração é um Caçador Solitário<br />

Carson McCullers<br />

(Trad. Marta Mendonça)<br />

Presença<br />

MMMMM<br />

Se tivermos <strong>de</strong> citar<br />

ícones da literatura,<br />

a escritora<br />

americana Carson<br />

McCullers (1917-<br />

1967) tem lugar<br />

cativo na primeira<br />

meia dúzia. O livro<br />

<strong>de</strong> estreia, “O<br />

Coração é um Caçador Solitário”,<br />

publicado em 1940, não foi um fogo<br />

fátuo. Obras posteriores, como<br />

“Reflections in a Gol<strong>de</strong>n Eye”,<br />

romance <strong>de</strong> 1941, ou os contos<br />

reunidos em “The Ballad of the Sad<br />

Café” (1951), para só citar algumas<br />

das que o cinema popularizou,<br />

confirmaram o fôlego <strong>de</strong>sta mulher<br />

que fala <strong>de</strong> <strong>de</strong>solação e esperança<br />

sem beliscar a tessitura da voz.<br />

Em Portugal, “The Heart is a<br />

Lonely Hunter” foi traduzido em<br />

1958, nada menos que por José<br />

Rodrigues Miguéis, com o título<br />

“Coração Solitário Caçador”. Agora,<br />

Marta Mendonça fez nova tradução,<br />

alinhando o título português com o<br />

das edições brasileiras. No ano em<br />

que se completam 60 anos da<br />

publicação original, é importante<br />

que esta reedição tenha sido feita.<br />

Tudo se passa numa cida<strong>de</strong>zinha<br />

da Geórgia, durante a Gran<strong>de</strong><br />

Depressão (a recessão económica<br />

dos anos 1930). A história é contada<br />

a partir do ponto <strong>de</strong> vista das<br />

diferentes personagens: John Singer,<br />

ju<strong>de</strong>u surdo-mudo, confi<strong>de</strong>nte dos<br />

outros todos; Mick Kelly, adolescente<br />

<strong>de</strong> 14 anos que gosta <strong>de</strong> Beethoven;<br />

Jake Blount, agitador “marxista” em<br />

permanente estado <strong>de</strong> embriaguês;<br />

Biff Brannon, dono do New York<br />

Café; Benedict Copeland, médico<br />

negro em luta com a injustiça e as<br />

humilhações do racismo (ao<br />

contrário dos quatro filhos). Não foi<br />

por acaso que a autora centrou o<br />

“plot” na Geórgia, o Estado que a viu<br />

nascer. Na cultura americana, o Sul<br />

foi sempre o território<br />

idiossincrático por excelência.<br />

Lendo Eudora Welty, Truman<br />

Capote, Flannery O’Connor e outros,<br />

percebemos porquê. McCullers tem<br />

a seu favor uma inesperada<br />

humanida<strong>de</strong> que dispensa o<br />

naturalismo clássico <strong>de</strong> Welty, a bílis<br />

<strong>de</strong> Capote e o catolicismo<br />

apocalíptico <strong>de</strong> O’Connor. Aqui, o<br />

“gótico sulista” sublinha a<br />

inescapável e geral<br />

incomunicabilida<strong>de</strong>.<br />

Assim que foi publicado, “O<br />

Coração é um Caçador Solitário” foi<br />

rotulado <strong>de</strong> “anti-fascista”.<br />

McCullers, então com 23 anos, vivia<br />

já em Nova Iorque, on<strong>de</strong> frequentava<br />

com dificulda<strong>de</strong> a Julliard School of<br />

Music e um curso <strong>de</strong> escrita criativa<br />

em Columbia. A rapariga frágil cuja<br />

débil saú<strong>de</strong> impedira <strong>de</strong> prosseguir<br />

es<strong>tudo</strong>s, estava prestes a divorciar-se<br />

<strong>de</strong> Reeves McCullers quando<br />

surpreen<strong>de</strong>u toda a gente com esse<br />

violento libelo (escrito antes dos vinte<br />

anos) contra o modo <strong>de</strong> vida sulista.<br />

Na realida<strong>de</strong>, é mais uma polifonia a<br />

cinco vozes que um libelo. Num<br />

ápice, a autora tornou-se famosa. E<br />

<strong>de</strong>pressa engrossou o número <strong>de</strong><br />

membros da comuna <strong>de</strong> Brooklyn<br />

Heights que abrigava Erika Mann,<br />

com quem teve uma relação<br />

amorosa, W. H. Au<strong>de</strong>n, Benjamin<br />

Britten, Peter Pears, Gipsy Rose Lee,<br />

Jane e Paul Bowles.<br />

Relato do quotidiano dos<br />

<strong>de</strong>sapossados do Dustbowl,<br />

McCullers ilumina com pudor e<br />

sensibilida<strong>de</strong> essas vidas sem futuro.<br />

A ligação <strong>de</strong> natureza homossexual<br />

entre Singer e o grego Antonapoulos<br />

é <strong>de</strong>scrita com subtileza. No dia em<br />

que Antonapoulos vai para o<br />

hospício, por <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> um primo<br />

que não queria “problemas”, a vida<br />

<strong>de</strong> Singer muda. A cena em que os<br />

dois (ambos mudos) por fim se<br />

reencontram, é <strong>de</strong> antologia:<br />

“Antonapoulos! Assim que entraram<br />

na enfermaria, Singer avistou logo o<br />

amigo. [...] Vestia um roupão<br />

vermelho e um pijama <strong>de</strong> seda<br />

ver<strong>de</strong>. [...] A exuberância da<br />

indumentária <strong>de</strong> Antonapoulos<br />

<strong>de</strong>ixou-o perplexo. Enviara-lhe<br />

aquelas peças <strong>de</strong> roupa em ocasiões<br />

separadas, sem a intenção <strong>de</strong> que<br />

fossem usadas em simultâneo. [...]<br />

Singer ergueu timidamente as mãos<br />

e começou a falar. Os seus <strong>de</strong>dos<br />

fortes e experientes <strong>de</strong>ram forma às<br />

palavras com uma precisão <strong>de</strong>licada.<br />

[...] Os seus gestos eram cada vez<br />

mais rápidos. Antonapoulos acenava<br />

com a cabeça, <strong>de</strong>vagar.<br />

Entusiasmado, Singer aproximou-se<br />

mais, respirou fundo e os seus olhos<br />

estavam cheios <strong>de</strong> lágrimas.”<br />

O dinheiro (melhor dito: a falta<br />

<strong>de</strong>le) é o móbil da intriga. Os<br />

protagonistas têm duas coisas: fome<br />

e dívidas. À doença reservam<br />

parcimónia: “o médico extraiu-lhe<br />

um tumor do tamanho <strong>de</strong> um<br />

Carson McCullers: uma <strong>de</strong>senraizada na sua própria terra<br />

recém-nascido.” O horizonte é <strong>de</strong><br />

chumbo. McCullers dá vida a<br />

personagens que po<strong>de</strong>m parecer<br />

excessivas no traço grosso do<br />

retrato, como suce<strong>de</strong> com Portia, a<br />

filha do médico: “Eu cá não sou<br />

mulher <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s alaridos. Faço<br />

parte da Igreja Presbiteriana e nós<br />

não costumamos atirar-nos pró chão<br />

[...] nem chafurdamos todos juntos.”<br />

O <strong>de</strong>samparo comum mantém as<br />

suas vidas em equilíbrio.<br />

É difícil esquecer a mulher que<br />

está por trás <strong>de</strong>ste livro. Carson<br />

McCullers foi uma <strong>de</strong>senraizada na<br />

sua própria terra, a doença minou-a<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo (morreu hemiplégica),<br />

viveu <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do álcool, tentou<br />

o suicídio, casou duas vezes com o<br />

mesmo homem (Reeves era<br />

bissexual; em 1953, suicidou-se em<br />

Paris, on<strong>de</strong> o casal vivia) e manteve<br />

várias ligações lésbicas. Deixou uma<br />

obra impressiva, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>staca “O<br />

Coração é um Caçador Solitário”.<br />

Não por acaso, nos últimos 60 anos,<br />

todas as listas incluem o livro entre<br />

as obras mais importantes<br />

do século XX.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 47


Livros<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

Isabel<br />

Coutinho<br />

Ciberescritas<br />

Nunca mais me esqueci. Foi há anos num<br />

colóquio em sobre Machado <strong>de</strong> Assis, em<br />

<strong>Lisboa</strong>, que o professor <strong>de</strong> Literatura<br />

Brasileira na Universida<strong>de</strong> Nova <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>,<br />

Abel Barros Baptista, disse que “Memórias<br />

Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas” era “uma obra extravagante em<br />

qualquer parte do mundo”. Sabe-se que Machado <strong>de</strong> Assis<br />

(1839-1908) frequentou o Real Gabinete Português <strong>de</strong><br />

Leitura, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, que servia também <strong>de</strong> <strong>de</strong>pósito<br />

legal, todos os autores portugueses estavam ali<br />

disponíveis. Aos 13 e 14 anos já por lá andava e leu aqueles<br />

que para o professor e filólogo brasileiro Evanildo<br />

Bechara, são “incontestavelmente os gran<strong>de</strong>s mestres da<br />

ilustração da língua”. Na impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> irmos<br />

também passar os nossos dias no Real Gabinete Português<br />

<strong>de</strong> Leitura po<strong>de</strong>mos navegar na Internet e encontrar as<br />

obras <strong>de</strong>ste filho <strong>de</strong> um escravo mulato (pintor <strong>de</strong> tectos<br />

<strong>de</strong> casas e igrejas) e <strong>de</strong> uma portuguesa açoriana que<br />

passou a infância no “morro” do Livramento, no Rio do<br />

Janeiro, mas frequentava o mundo dos ricos na “chacra”<br />

do Livramento, a casa <strong>de</strong> Dona Maria José <strong>de</strong> Mendonça<br />

Barroso, sua madrinha. Fez carreira como funcionário<br />

público no Ministério da Agricultura e só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter<br />

casado, em 1869, com Carolina, uma portuguesa, culta,<br />

mais velha do que ele, é que começou a produzir as obras<br />

que lhe trouxeram a posterida<strong>de</strong>.<br />

É um divertimento ler a obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis em<br />

hipertexto no “site” lançado pela Fundação Casa <strong>de</strong> Rui<br />

Barbosa. Ainda não está disponível o famoso “Memórias<br />

Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas” mas já estão acessíveis os seus<br />

primeiros romances “Ressurreição”, “A mão e a luva”,<br />

“Helena” e “Iaiá Garcia”. De que se trata? Estamos a ler<br />

o romance e vamos clicando nas palavras sublinhadas.<br />

São “links” para explicações mais aprofundadas do que<br />

ali se passa. Para enten<strong>de</strong>rmos <strong>tudo</strong>. Na introdução, a<br />

investigadora Marta <strong>de</strong> Senna explica: “Nesta edição,<br />

preparada com o cuidado<br />

É um divertimento ler<br />

a obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong><br />

Assis em hipertexto<br />

Machado <strong>de</strong><br />

Assis em linha<br />

http:<br />

/www.machado<strong>de</strong>assis.net/<br />

Obra completa<br />

em PDF<br />

http:<br />

/machado.mec.<br />

gov.br<br />

Para que não restem<br />

dúvidas<br />

necessário para torná-la<br />

fi<strong>de</strong>digna, o leitor po<strong>de</strong>rá não<br />

apenas <strong>de</strong>sfrutar o romance<br />

em si, mas também achar,<br />

nas notas em forma <strong>de</strong> ‘links’,<br />

explicações sobre todas as<br />

citações e alusões do texto:<br />

tanto as <strong>de</strong> natureza simbólica (autores, obras <strong>de</strong> arte,<br />

personagens, fatos históricos referidos por Machado <strong>de</strong><br />

Assis), como as menções a lugares e instituições nãoficcionais<br />

(bairros e ruas da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

lojas, teatros, cafés que as personagens machadianas<br />

frequentam).”<br />

Também no “site” Machado <strong>de</strong> Assis.net, lançado<br />

pela Fundação Casa <strong>de</strong> Rui Barbosa, está disponível o<br />

número 4 da revista electrónica <strong>de</strong> es<strong>tudo</strong>s machadianos,<br />

“Machado <strong>de</strong> Assis em linha”. A revista é semestral e<br />

esta edição tem um ensaio da tradição crítica escrito por<br />

Lucia Miguel Pereira, pioneira dos es<strong>tudo</strong>s sobre o autor<br />

no Brasil e um artigo inédito do académico Alfredo Bosi.<br />

Para quem ainda não sabe: no Portal Domínio Público - a<br />

biblioteca digital do Ministério da Educação brasileiro,<br />

estão disponíveis em PDF, para serem <strong>de</strong>scarregados<br />

para o computador ou leitores <strong>de</strong> e-books, as obras<br />

machadianas : “Ressurreição” (1872), “A Mão e a Luva”<br />

(1874), “Helena” (1876), “Iaiá Garcia” (1878), “Memórias<br />

Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas (1881), “Casa Velha” (1885),<br />

“Quincas Borba” (1891), “Dom Casmurro” (1899), “Esaú e<br />

Jacó” (1904) e “Memorial <strong>de</strong> Aires” (1908). Gratuitamente.<br />

isabel.coutinho@publico.pt<br />

(Ciberescritas é um blogue<br />

http://blogs.publico.pt/ciberescritas)<br />

Poesia<br />

Se vier<br />

socorro<br />

A melhor estreia <strong>de</strong> uma<br />

poeta portuguesa nas<br />

últimas décadas. Pedro<br />

Mexia<br />

Mulher ao Mar<br />

Margarida Vale <strong>de</strong> Gato<br />

Mariposa Azual<br />

MMMMM<br />

Margarida Vale <strong>de</strong><br />

Gato (n. 1973) é<br />

uma das nossas<br />

melhores<br />

tradutoras, como<br />

se comprova<br />

lendo as suas<br />

versões <strong>de</strong> Lewis<br />

Carroll, Christina<br />

Rossetti, Wil<strong>de</strong>, Yeats, Melville,<br />

James, Char, Michaux, Sarraute,<br />

Dickens ou Poe. Há muito que<br />

também publica poemas em<br />

revistas, mas só agora editou a<br />

primeira colectânea. A espera valeu<br />

a pena, pois<br />

“Mulher ao<br />

Mar” é<br />

PAULA MESQUITA<br />

Margarida Vale <strong>de</strong> Gato escreve uma poesia<br />

relacional, em constante diálogo com pessoas<br />

que passaram, que são passado, que não estão<br />

ultrapassadas, em geral homens que <strong>de</strong>ixaram<br />

um agudo sentimento <strong>de</strong> orfanda<strong>de</strong> ou <strong>de</strong>cepção.<br />

Na Aca<strong>de</strong>mia<br />

Brasileira <strong>de</strong><br />

Letras<br />

http:<br />

/www.machado<strong>de</strong>assis.org.br/<br />

possivelmente a melhor estreia <strong>de</strong><br />

uma poeta portuguesa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> “Um<br />

Jogo Bastante Perigoso” (Adília<br />

Lopes, 1985).<br />

A escritora assume a “condição<br />

feminina” em praticamente todos os<br />

poemas. Especialmente a condição<br />

feminina portuguesa. Os textos têm<br />

ecos da “Menina e Moça”, donzelas<br />

prendadas do Estado Novo, raparigas<br />

que ficavam em casa enquanto os<br />

homens tratavam da política, esposas<br />

<strong>de</strong>dicadas, irmãs pacientes, freiras<br />

sofridas, legiões compulsoriamente<br />

dóceis, pacientes, esperando,<br />

costurando, virgens e putas,<br />

<strong>de</strong>gredadas filhas <strong>de</strong> Eva.<br />

Em vez <strong>de</strong> “homem ao mar” gritase<br />

“mulher ao mar” nestes poemas,<br />

e não é a mesma coisa. Eis o poema<br />

que dá título ao livro: “MAYDAY<br />

lanço, porque a guerra dura / e está<br />

vazio o vaso em que parti / e ce<strong>de</strong><br />

ao fundo on<strong>de</strong> a vaga fura, / suga a<br />

fissura, uma falta – não / um tarro<br />

<strong>de</strong> cortiça que vogasse; / especifico:<br />

é terracota e fractura, / e eu sou<br />

esparsa, e a liqui<strong>de</strong>z maciça. /<br />

Tar<strong>de</strong>, sei, será, se vier socorro: / se<br />

transluz pouco ao escuro este sinal,<br />

/ e a água não prevê qualquer<br />

escritura / se jazo aqui: rasura<br />

apenas, branda / a costura, fará a<br />

onda em ponto / lento um manto<br />

sobre o afogamento”<br />

(pág. 8). A<br />

mulher <strong>de</strong>stes poemas, que é<br />

arquétipo mas também sujeito<br />

concreto e vivido, herda toda uma<br />

carga cultural, e procura uma<br />

linguagem em que encontre a sua<br />

autonomia. O “eu” <strong>de</strong>stes poemas é<br />

rigoroso e esquivo, sexual e cultista,<br />

vulnerável e orgulhoso. Nos últimos<br />

anos, nenhum livro <strong>de</strong> poemas<br />

autobiográficos evitou com tal<br />

mestria as armadilhas da primeira<br />

pessoa, do cabotinismo ao<br />

prosaísmo, da trivialida<strong>de</strong> ao<br />

<strong>de</strong>rrame sentimental.<br />

A mulher que cai ao mar, ou se<br />

lançou, ou a ele regressou, fazendo<br />

o caminho inverso <strong>de</strong> Vénus,<br />

quem é? É uma mulher<br />

<strong>de</strong>terminada pelos seus<br />

<strong>de</strong>sejos, pela<br />

maternida<strong>de</strong>, pela<br />

experiência <strong>de</strong> uma<br />

domesticida<strong>de</strong><br />

agreste ou azeda,<br />

muitas vezes<br />

sarcástica:<br />

“Costumes que<br />

frequentamos: / o<br />

arame da loiça, os<br />

panos dos pratos,<br />

os ganchos e as<br />

linhas / do<br />

estendal, a vinha<strong>de</strong>-alhoso<br />

alguidar,<br />

guardamos os<br />

o fogão, /<br />

restos, torcemos /<br />

os trapos, os<br />

nossos recados, os<br />

nossos sacos, / os<br />

nossos ovos” (pág.<br />

45). O livro é ao<br />

mesmo tempo<br />

afirmação e luto, gémeos<br />

incindíveis.<br />

Alheia a todo o solipsismo,<br />

Margarida Vale <strong>de</strong> Gato escreve uma<br />

poesia relacional, em constante<br />

diálogo com pessoas que passaram,<br />

que são passado, que não estão<br />

ultrapassadas, em geral homens que<br />

<strong>de</strong>ixaram um agudo sentimento <strong>de</strong><br />

orfanda<strong>de</strong> ou <strong>de</strong>cepção. A amargura<br />

cultíssima e vagamente niilista<br />

nunca impe<strong>de</strong> momentos a que<br />

po<strong>de</strong>mos chamar “românticos”, <strong>de</strong><br />

entrega confiada e apaixonada. É o<br />

caso um notável poema chamado<br />

“Intercida<strong>de</strong>s”, no qual a tristeza do<br />

mundo e a inquietação individual é<br />

atravessada pelo comboio que<br />

engole eucaliptos na paisagem<br />

portuguesa. Mas há também uma<br />

constante queda no “bathos”<br />

quotidiano, feito <strong>de</strong> segundas<br />

escolhas e <strong>de</strong> quedas conscientes e<br />

sem culpabilida<strong>de</strong>: “Foi como amor<br />

aquilo que fizemos / ou acto tácito?<br />

– os dois carentes / e sem manhã<br />

sujeitos ao presente; / foi logro<br />

aceite quando nos fo<strong>de</strong>mos // Foi<br />

circo ou cerco, gesto ou estilo / o<br />

acto <strong>de</strong> abraçarmos? foi candura / o<br />

termos juntos sexo com ternura /<br />

num clima <strong>de</strong> aparato e <strong>de</strong> sigilo. //<br />

Se virmos bem ninguém foi iludido /<br />

<strong>de</strong> que era a coisa em si – só o<br />

placebo / com algum excesso que<br />

acelera a libido. // E eu, palavrosa,<br />

injusta <strong>de</strong>sconcebo / o zelo <strong>de</strong> que<br />

nada fosse dito / e quanto quis tocar<br />

em estado líquido” (pág. 23).<br />

A sensação <strong>de</strong> catástrofe é<br />

omnipresente neste conjunto, e tem<br />

tradução numa espessura verbal<br />

quase visceral ou quase maneirista<br />

(mas apenas quase).O discurso é por<br />

isso <strong>de</strong>nso, propenso à surpresa<br />

sintáctica ou vocabular, às vezes<br />

enigmático. Os textos, no entanto,<br />

nunca são herméticos ou<br />

<strong>de</strong>sajeitadamente subjectivos, e isso<br />

<strong>de</strong>ve-se ao domínio da linguagem e da<br />

tradição cultural. Estes poemas são<br />

<strong>tudo</strong> menos precipitados ou frouxos,<br />

e talvez a estreia tardia tenha<br />

contribuído para a notória <strong>de</strong>puração,<br />

incomum em primeiras obras. Esse<br />

investimento na palavra amadurecida<br />

é acompanhado por uma espécie <strong>de</strong><br />

sumário civilizacional, que evoca<br />

como aliadas artistas que<br />

interrogaram a sua condição através<br />

da criação. E reparem que nenhuma<br />

<strong>de</strong>las é puro espírito, todas viveram<br />

carnalmente, na solidão, na cama, na<br />

maternida<strong>de</strong>, na doença. O martírio<br />

<strong>de</strong>ssas mulheres é resumido em<br />

versos percutidos, zangados: “Se há<br />

uma falha um abalo / Dickinson Plath<br />

Woolf Kahlo / on<strong>de</strong> foram estavam<br />

loucas / queriam coisas eram ocas /<br />

queriam chique eram pedras /<br />

queriam arte eram merdas / tentando<br />

o voo eram estacas / punho em riste<br />

eram farpas / fornos hortos seu<br />

<strong>de</strong>lírio / nunca foi santo martírio”<br />

(pág. 50). É a partir <strong>de</strong>ssas histórias,<br />

contra essas histórias, que esta<br />

mulher se lança ao mar, e assim se<br />

salva.<br />

48 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


Edição<br />

“Os Íntimos”, novo<br />

romance <strong>de</strong> Inês<br />

Pedrosa, será<br />

apresentado<br />

no dia 10,<br />

segunda-<br />

feira,<br />

18h30, no restaurante<br />

do piso 7 do El Corte<br />

Inglês, em <strong>Lisboa</strong><br />

(Av. António Augusto<br />

<strong>de</strong> Aguiar, 31).<br />

Participação especial<br />

dos Jograis- U...Tópico.<br />

Biografia<br />

Horror<br />

ao po<strong>de</strong>r<br />

A vida <strong>de</strong> Eric Blair e a obra<br />

do seu pseudónimo George<br />

Orwell, cuja grandiosida<strong>de</strong><br />

se <strong>de</strong>via mais à imaginação<br />

do que às teias i<strong>de</strong>ológicas<br />

em que se enredou. Rui<br />

Catalão<br />

George Orwell –<br />

Uma biografia<br />

política<br />

John Newsinger<br />

(Trad. Fernando<br />

Gonçalves)<br />

MMMMM<br />

Livros & Cigarros<br />

George Orwell<br />

(trad. Paulo Faria)<br />

Antígona<br />

MMMMM<br />

M M<br />

John Newsinger inicia o primeiro<br />

capítulo <strong>de</strong>sta biografia política,<br />

originalmente publicada em 1999,<br />

com uma frase que se revelará<br />

edipiana: “Eric Blair foi um filho do<br />

Império”. A vida <strong>de</strong> Eric Blair (1903-<br />

1950) e a obra do seu pseudónimo<br />

George Orwell foram uma<br />

caminhada até à extinção das<br />

colónias britânicas em que nasceu e<br />

cresceu. Quanto às suas restantes<br />

lutas e opções políticas, per<strong>de</strong>u ou<br />

enganou-se em todas. Só nos últimos<br />

anos o activista político se ren<strong>de</strong>u ao<br />

escritor, cuja grandiosida<strong>de</strong> se <strong>de</strong>via<br />

mais à imaginação do que às teias<br />

i<strong>de</strong>ológicas em que se enredou.<br />

O seu anti-imperialismo teve<br />

origem na Birmânia, on<strong>de</strong> nasceu e<br />

foi polícia (experiência que <strong>de</strong>u<br />

origem a “Os Dias da Birmânia” e a<br />

um dos seus mais belos ensaios,<br />

“Shooting an elephant”). É já na<br />

Europa que <strong>de</strong>senvolve uma versão<br />

politizada e comprometida daquilo a<br />

que hoje se chama “jornalismo<br />

literário”, com Orwell a preferir o<br />

papel <strong>de</strong> agente infiltrado ao <strong>de</strong><br />

repórter:<br />

“A i<strong>de</strong>ia era escrever a partir <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ntro, acerca do modo como vivem<br />

os pobres, mas tendo por alvo o<br />

público da classe média. Como seria<br />

<strong>de</strong> esperar, este projecto não estava<br />

isento <strong>de</strong> problemas; as suas<br />

incursões não passavam disso<br />

mesmo, raids temporários entre os<br />

sem-abrigo, efectuados por<br />

alguém tão distante nas suas<br />

origens e educação que mais<br />

parecia <strong>de</strong> outro mundo. Este<br />

exercício continha,<br />

inevitavelmente, uma dimensão<br />

colonial: Orwell andava a explorar<br />

o lado negro da Inglaterra (e <strong>de</strong><br />

Paris), regressando <strong>de</strong>pois à<br />

civilização com histórias exóticas<br />

para contar”.<br />

Esta técnica <strong>de</strong> recolher material a<br />

partir do interior da realida<strong>de</strong><br />

abordada foi utilizada em “Na<br />

penúria em Paris e em Londres”<br />

(sobre mendigos e <strong>de</strong>sempregados),<br />

“O caminho para Wigan Pier” (sobre<br />

os mineiros no norte <strong>de</strong> Inglaterra),<br />

“Homenagem à Catalunha” (tema a<br />

que haveria <strong>de</strong> voltar no ensaio<br />

“Recordando a guerra civil<br />

espanhola”). Acumula-se nele<br />

o anti-<br />

imperialista, o socialista, o socialista-<br />

revolucionário, anti-estalinista:<br />

“Tudo o que escrevi <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

1936<br />

foi escrito, directa ou<br />

indirectamente, contra<br />

o totalitarismo e a<br />

favor do<br />

socialismo<br />

<strong>de</strong>mocrá-<br />

tico”.<br />

Para Orwell não existia literatura <strong>de</strong>sligada da política<br />

Com o surgimento da Segunda<br />

Guerra Mundial, vê a oportunida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> operar-se na Inglaterra a<br />

revolução socialista, mas aquele que<br />

sonhava em “construir um socialista<br />

sobre o esqueleto <strong>de</strong> um patriota<br />

empe<strong>de</strong>rnido”, <strong>de</strong>senterra o<br />

patriota em si e abdica da revolução,<br />

que troca por um “trotskismo<br />

literário”.<br />

“Como explicou Orwell o fracasso<br />

dos seus anseios revolucionários?”,<br />

pergunta Newsinger. Na “carta <strong>de</strong><br />

Londres” que assina para a revista<br />

norte-americana “Partisan Review”,<br />

“faz um notável pedido <strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpas<br />

pelas suas ‘muitas previsões erradas’<br />

(...) a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a guerra e a<br />

revolução era inseparáveis revelarase<br />

‘um erro tremendo’”.<br />

Com a febre revolucionária a<br />

baixar, um analista mais pon<strong>de</strong>rado<br />

sobreveio. “À medida que as<br />

esperanças <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrube<br />

revolucionário do capitalismo se<br />

<strong>de</strong>svaneciam”, escreve Newsinger,<br />

“assim Orwell se afastava da<br />

i<strong>de</strong>ologia revolucionária”, sem<br />

abandonar a sua “hostilida<strong>de</strong> para<br />

com o comunismo soviético, uma<br />

brutal tirania mascarada <strong>de</strong><br />

socialismo”.<br />

“A quinta dos animais” era uma<br />

sátira à revolução soviética “com um<br />

sentido mais amplo”. Qualquer<br />

“revolução conspiratória violenta<br />

conduzida por gente<br />

inconscientemente faminta <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r” teria como resultado “a mera<br />

troca <strong>de</strong> amos”; com “Mil<br />

novecentos e oitenta e quatro”<br />

Orwell “conseguiu fixar, com<br />

enorme êxito, a sua particular e<br />

sinistra visão <strong>de</strong> um regime<br />

totalitário no imaginário popular”.<br />

Mas “para gran<strong>de</strong> surpresa <strong>de</strong>le, a<br />

obra foi largamente apreciada<br />

enquanto ataque ao socialismo em si<br />

mesmo”. Orwell vê-se na obrigação<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o livro contra os seus...<br />

<strong>de</strong>fensores <strong>de</strong> direita! Tal como as<br />

crianças que, na fase edipiana, não<br />

dominam o pai e entram na fase <strong>de</strong><br />

latência, seria Orwell “um<br />

conservador latente”?<br />

Newsinger, historiador socialista,<br />

preten<strong>de</strong> encaminhar o seu leitor<br />

para outra questão. A recusa da<br />

esquerda em reconhecer o que se<br />

passava na Rússia estalinista<br />

permitiu o uso <strong>de</strong> “Mil novecentos e<br />

oitenta e quatro” contra a própria<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> socialismo. O estalinismo<br />

“levou os melhores e mais corajosos<br />

intelectuais, activistas e militantes<br />

socialistas a fazerem a apologia <strong>de</strong><br />

uma ditadura criminosa, talhando a<br />

respectiva activida<strong>de</strong> política à<br />

medida dos interesses da política<br />

externa e das ambições imperiais<br />

<strong>de</strong>ssa ditadura, e fazendo da<br />

<strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong> política um modo <strong>de</strong><br />

vida para os que mantiveram o<br />

mesmo rumo. Os danos que esta<br />

atitu<strong>de</strong> infligiu à causa socialista são<br />

incalculáveis.”<br />

O seu maior erro foi não ter dado<br />

maior ênfase ao imaginário do<br />

po<strong>de</strong>r, por oposição à análise<br />

política. Mas, para Orwell, não<br />

existia literatura <strong>de</strong>sligada da<br />

política: “A literatura é um esforço<br />

para influenciar o ponto <strong>de</strong> vista dos<br />

nossos contemporâneos, registando<br />

as nossa experiências”, escreveu em<br />

“A prevenção da literatura”<br />

(publicado em 1946 e incluído na<br />

colectânea <strong>de</strong> ensaios “Livros &<br />

Cigarros”, igualmente publicado<br />

pela Antígona), on<strong>de</strong> também<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a “imaginação, à<br />

semelhança <strong>de</strong> certos animais<br />

selvagens, não vinga em cativeiro”.<br />

Dos sete textos incluídos na<br />

colectânea, cinco foram escritos<br />

<strong>de</strong>pois da Segunda Guerra Mundial e<br />

o único que foi escrito durante alu<strong>de</strong><br />

a memórias anteriores à Primeira<br />

Gran<strong>de</strong> Guerra! “Tenho <strong>de</strong><br />

reconhecer que não houve nada no<br />

<strong>de</strong>curso da guerra que me tenha<br />

emocionado tanto como a perda do<br />

Titanic (…) o que mais me<br />

impressionou foi o facto <strong>de</strong>, no<br />

<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro momento, o Titanic se ter<br />

elevado subitamente na vertical (…)<br />

as pessoas agarradas à popa foram<br />

erguidas no ar (…) Isto causava-me<br />

na barriga uma impressão <strong>de</strong><br />

afundamento que ainda hoje consigo<br />

sentir, ou quase. Nada do sucedido<br />

na guerra alguma vez me causou a<br />

mesma sensação.”<br />

Orwell é um escritor<br />

espantosamente vívido em imagens<br />

subjectivas. Uma simples palavra<br />

(margarina) basta para dar i<strong>de</strong>ia do<br />

“horrível egoísmo das crianças”,<br />

indiferentes à guerra, mas não ao<br />

estômago. Em “Assim morrem os<br />

pobres”, memória <strong>de</strong> uma estadia<br />

num hospital em Paris, um pai,<br />

internado, e uma filha, <strong>de</strong> visita,<br />

reencontram-se para o aguardado<br />

gesto da “rapariga a ajoelhar junto<br />

da cama” e “a mão do velho<br />

pousando-lhe na cabeça”. “Em vez<br />

disso, porém, ele limitou-se a<br />

esten<strong>de</strong>r-lhe o urinol, que ela lhe<br />

tomou prontamente das mãos e<br />

esvaziou para <strong>de</strong>ntro do<br />

receptáculo.”<br />

O seu olhar mordaz sobre as<br />

riquezas da pobreza mantém intacta<br />

a vivacida<strong>de</strong> expedita da juventu<strong>de</strong> e<br />

atinge o limite da sua maestria em<br />

“Ah, ledos, ledos dias”, sobre os<br />

anos <strong>de</strong> internato em Cyprian’. Nele<br />

se revela como se molda um ser às<br />

necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um império, e<br />

como, criando um eu alternativo,<br />

germina uma semente <strong>de</strong> rebelião:<br />

“uma criança aceita os códigos <strong>de</strong><br />

conduta que lhe apresentam,<br />

mesmo quando os viola. Des<strong>de</strong> os<br />

oito anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, ou antes até, a<br />

consciência do pecado nunca me<br />

abandonou por completo. Se<br />

procurava parecer insensível e<br />

<strong>de</strong>safiador, tratava-se apenas <strong>de</strong> uma<br />

fina película a cobrir uma amálgama<br />

<strong>de</strong> vergonha e <strong>de</strong>sânimo. Ao longo<br />

<strong>de</strong> toda a minha meninice, habituoume<br />

a profunda convicção <strong>de</strong> que não<br />

prestava, <strong>de</strong> que estava a<br />

<strong>de</strong>sperdiçar o meu tempo, a<br />

esbanjar os meus dotes, a dar<br />

mostras <strong>de</strong> uma monstruosa<br />

loucura, malda<strong>de</strong> e ingratidão – e<br />

não havia forma <strong>de</strong> escapar a isto,<br />

parecia-me, porque vivia ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong><br />

leis que eram absolutas, como a lei<br />

da gravida<strong>de</strong>, mas a que não me era<br />

possível obe<strong>de</strong>cer.”<br />

Fernando Gonçalves traduziu<br />

Newsinger; Paulo Faria traduziu<br />

Orwell. Trabalho impecável <strong>de</strong><br />

ambos, tal como a parte gráfica.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 49


Concertos<br />

Cesária Évora vai ter Bonga<br />

com ela no Coliseu dos Recreios<br />

DANIEL ROCHA<br />

Parece que foi ontem. Um<br />

hiperactivo rapaz escanzelado, com<br />

cabelo aos caracóis, entrava-nos<br />

pelos ouvidos a gritar, em falsete,<br />

que podia ser <strong>de</strong> várias cores. “Grace<br />

Kelly”, o tema que apresentou ao<br />

mundo o anglo-libanês Mika, conta<br />

quão difícil foi ser aceite pelas<br />

editoras discográficas que, ávidas <strong>de</strong><br />

encontrar figuras icónicas como a<br />

<strong>de</strong>saparecida actriz norte-<br />

Minidigressão<br />

Pop<br />

Encontro<br />

<strong>de</strong> gigantes<br />

Cesária Évora encontra<br />

Bonga no Coliseu dos<br />

Recreios. Mário Lopes<br />

Cesária Évora + Bonga<br />

<strong>Lisboa</strong>. Coliseu dos Recreios. R. Portas St. Antão, 96.<br />

Amanhã, às 21h30. Tel.: 213240580. 15€ a 50€.<br />

Será noite <strong>de</strong> gala. E seria noite <strong>de</strong><br />

gala se tivéssemos apenas Cesária<br />

Évora a apresentar o seu último<br />

álbum, “Nha Sentimento”, que ela<br />

pensou primeiro como colecção <strong>de</strong><br />

mornas mas acabou com<br />

alinhamento com doses generosas<br />

<strong>de</strong> cola<strong>de</strong>ras, para dar um pouco <strong>de</strong><br />

movimento à anca (a nossa).<br />

Acontece que não temos apenas<br />

Cesária Évora. Afinal, o espectáculo<br />

<strong>de</strong> amanhã no Coliseu dos Recreios<br />

tem por título “Encontro das Vozes”.<br />

Noite <strong>de</strong> gala, repetimos pela última<br />

vez. Cesária Évora, nome maior da<br />

música cabo-verdiana, encontra<br />

Bonga, representante inigualável da<br />

música angolana. Dia gran<strong>de</strong> para a<br />

música lusófona.<br />

Puxando do cliché, po<strong>de</strong>mos<br />

apontar que Bonga cantou “Soda<strong>de</strong>”<br />

primeiro, no impressionante<br />

“Angola 74”, álbum que<br />

com o seu<br />

antecessor, “Angola 72”,<br />

transformou a música do seu país<br />

em ecos do passado apontando um<br />

novo futuro – em som e palavra.<br />

Cesária Évora celebrizou-a <strong>de</strong>pois,<br />

quando <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser “apenas”<br />

a gran<strong>de</strong> voz <strong>de</strong> Cabo Ver<strong>de</strong><br />

para se transformar numa<br />

das cantoras mais<br />

respeitadas e celebradas da<br />

Agenda<br />

Sexta 7<br />

David Viner é inglês<br />

mas fala blues e<br />

folk, <strong>de</strong>vidamente<br />

adaptados da terra<br />

mãe, os Estados<br />

Unidos. Parceiro<br />

musical <strong>de</strong> Soledad<br />

Brothers ou<br />

Von Bondies,<br />

companheiro <strong>de</strong><br />

digressão dos<br />

White Stripes<br />

A Naifa<br />

Barreiro. Auditório <strong>Municipal</strong> Augusto<br />

Cabrita. Estrada Fuzileiros Navais, às<br />

21h30. Tel.: 212147400. 10€.<br />

Ver texto na pág. 16.<br />

Rufus Wainwright<br />

<strong>Lisboa</strong>. Aula Magna. Alam.<br />

Universida<strong>de</strong>, às 21h. Tel.:<br />

217967624. 32,5€ a 45€.<br />

Gotan Project<br />

<strong>Lisboa</strong>. Coliseu dos Recreios.<br />

R. Portas St. Antão, 96, às 22h.<br />

Tel.: 213240580. 27,5€ a 30€.<br />

B Fachada<br />

Portalegre. Centro <strong>de</strong> Artes do<br />

Espectáculo - Café-Concerto.<br />

Praça da Republica, 39, às<br />

23h. Tel.:<br />

245307498. 3€.<br />

João Coração<br />

Faro. Teatro Lethes. R.<br />

Portugal, 58, às 21h30.<br />

Tel.: 289820300. 7€.<br />

Norberto Lobo<br />

Guarda. Teatro<br />

chamada “world music”.<br />

Recorrendo à objectivida<strong>de</strong>:<br />

antecipa-se noite <strong>de</strong> mornas e<br />

cola<strong>de</strong>ras, <strong>de</strong> sembas <strong>de</strong> bom<br />

balanço e <strong>de</strong> dikanza (que não é reco<br />

reco) a marcar o ritmo da dança.<br />

Noite grandiosa, para resumir <strong>tudo</strong><br />

muito resumido.<br />

Viagem<br />

telúrica<br />

Os britânicos The Unthanks<br />

levam Braga, Espinho e<br />

Sintra a Northumberland.<br />

Luís Carlos Soares<br />

The Unthanks<br />

Braga. Theatro Circo - SalaPrincipal. Av. Liberda<strong>de</strong>,<br />

697. Amanhã, às 23h59. Tel.: 253203800. 8€.<br />

MUSA - Ciclo no Feminino.<br />

Espinho. Auditório <strong>de</strong> Espinho. Rua 34, 884. Dom.,<br />

9, às 21h30. Tel.: 227340469. 15€.<br />

Sintra. Centro Cultural Olga Cadaval - Auditório<br />

Jorge Sampaio. Pç. Dr. Francisco Sá Carneiro. 2ª,<br />

10, às 21h30. Tel.: 219107110. 20€ a 25€.<br />

Há dois meses, celebrámos o<br />

terceiro disco dos Galandum<br />

Galundaina. Vem isto a propósito<br />

porque, tal como os miran<strong>de</strong>ses, os<br />

Unthanks são um colectivo que vive<br />

na raia nor<strong>de</strong>stina do país –<br />

Inglaterra, neste caso - e têm na<br />

etnografia da região pão para a boca<br />

das letras das suas canções telúricas.<br />

Novamente em paralelo aos<br />

Galundaina, este quinteto britânico<br />

tem andado a apresentar o terceiro<br />

disco – a apresentação ao nosso país<br />

passará, nos próximos três dias, por<br />

Braga, Espinho e Sintra.<br />

“Here’s The Ten<strong>de</strong>r Coming” é o<br />

sucessor <strong>de</strong> “The Bairns” (2007),<br />

disco que foi nomeado para melhor<br />

álbum folk nos Mercury Music Prize<br />

<strong>Municipal</strong> da Guarda - Pequeno Auditório. Rua<br />

Batalha Reis, 12, às 21h30. Tel.: 271205241. 5€.<br />

Pedro Jóia e Ricardo Ribeiro<br />

<strong>Lisboa</strong>. Onda Jazz. Arco <strong>de</strong> Jesus, 7 - ao Campo das<br />

Cebolas, às 22h30. Tel.: 919184867. 15€.<br />

Rodrigo Leão & Cinema Ensemble<br />

Alcanena. Cine-Teatro São Pedro. Avenida 25 <strong>de</strong><br />

Abril, às 22h. Tel.: 249889115. 12€.<br />

Katia Guerreiro<br />

Barcelos. Auditório São Bento Menni. Av. Paulo<br />

Felisberto, às 22h. Tel.: 253808210. 10€.<br />

Subscuta.<br />

Deolinda<br />

Ílhavo. Centro Cultural <strong>de</strong> Ílhavo - Auditório.<br />

Avenida 25 <strong>de</strong> Abril, às 22h. Tel.: 234397260.<br />

15€.<br />

Sofia Ribeiro<br />

Espinho. Auditório <strong>de</strong> Espinho. Rua 34,<br />

884, às 21h30. Tel.: 227340469. 7€.<br />

Sábado 8<br />

em 2007, Viner,<br />

impecável classicista,<br />

contador <strong>de</strong> histórias<br />

irrepreensível, estará<br />

em Portugal em<br />

Maio para um minidigressão:<br />

dia 20 no<br />

Teatro <strong>de</strong> Vila Real,<br />

dia 21 no Salão Brazil<br />

(Coimbra), e dia 22 no<br />

Cine-Teatro Rio Maior.<br />

A Naifa<br />

Cartaxo. Centro Cultural do Cartaxo. Rua 5<br />

<strong>de</strong> Outubro, às 21h30. Tel.: 243701600. 8€.<br />

Ver texto na pág. 16.<br />

As irmãs Unthank trazem as canções<br />

da terra do seu terceiro álbum<br />

e entrou na lista <strong>de</strong> melhores discos<br />

da década da “Uncut”. Perante os<br />

elogios, os britânicos não criaram<br />

uma fórmula. Aliás, por via da<br />

aproximação <strong>de</strong> Becky Unthank aos<br />

microfones domados pela irmã mais<br />

velha, Rachel, o nome Rachel<br />

Unthank And The Winterset <strong>de</strong>u<br />

lugar a The Unthanks.<br />

Num disco com um quinteto a<br />

vaguear entre instrumentos tão<br />

distintos como o piano, o violino, o<br />

ukelele, o acor<strong>de</strong>ão, a marimba, a<br />

auto-harpa e até gongos chineses,<br />

“Here’s The Ten<strong>de</strong>r Coming”<br />

incorpora, pela primeira vez, o<br />

baixo e a bateria nos arranjos<br />

cuidados e <strong>de</strong>licados da banda. Tudo<br />

a postos para a viagem, portanto:<br />

vamos com as irmãs Unthank até às<br />

paisagens do condado <strong>de</strong><br />

Northumberland.<br />

Mika (menos)<br />

efusivo<br />

Mika<br />

<strong>Lisboa</strong>. Praça <strong>de</strong> Touros do Campo Pequeno. Campo<br />

Pequeno. 3ª, 11, às 22h. Tel.: 217820575. 30€ a 35€.<br />

Gotan Project<br />

Porto. Coliseu do Porto. R. Passos Manuel, 137, às<br />

22h. Tel.: 223394947. 27,5€ a 32,5€.<br />

Cansei <strong>de</strong> Ser Sexy + José Cid + Os<br />

<strong>Homens</strong> da Luta + The Doups<br />

<strong>Lisboa</strong>. Estádio do Restelo. Av. do Restelo, às 19h. Tel.:<br />

213032653. 10€ a 12€.<br />

XXVI Semana Académica <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>.<br />

Coro Gulbenkian<br />

Direcção Musical <strong>de</strong> Jorge Matta.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Igreja <strong>de</strong> São Roque. Lg. Trinda<strong>de</strong> Coelho, às<br />

21h. Tel.: 213235383. 15€.<br />

Ciclo <strong>de</strong> Música Antiga.<br />

Orquestra Nacional do Porto<br />

Direcção Musical <strong>de</strong> Martin André.<br />

Com Piia Komsi (soprano).<br />

Porto. Casa da Música - Sala<br />

Suggia. Pç. Mouzinho <strong>de</strong><br />

Albuquerque, às 18h. Tel.:<br />

220120220. 16€.<br />

Obras <strong>de</strong><br />

Sibelius,<br />

Tinoco,<br />

Saariaho ariaho e<br />

Braga Santos.<br />

Jon Rose em Serralves<br />

americana, pretendiam moldar o<br />

seu trabalho. Após ter conseguido<br />

ven<strong>de</strong>r o seu peixe a uma editora<br />

multinacional, o ritmo efusivo do<br />

álbum <strong>de</strong> estreia, “Life In Cartoon<br />

Motion” (2006), espalhou as<br />

canções <strong>de</strong> Mika por todo o lado, e o<br />

hino “feelgood” “Relax take it easy”<br />

tornou-se um dos temas mais<br />

samplados <strong>de</strong> 2007, presença<br />

assídua nas “playlists” <strong>de</strong> DJ um<br />

pouco por todo o mundo.<br />

Após o impacto da estreia, o<br />

segundo álbum, “The Boy Who<br />

Knew Too Much”, lançado no ano<br />

passado, mostrava um Mika<br />

menos efusivo, ainda<br />

que não <strong>de</strong>scartasse<br />

totalmente a<br />

jovialida<strong>de</strong> do<br />

antecessor. Na era<br />

dos singles, “We are<br />

gol<strong>de</strong>n” é o tema<br />

mais festejado do<br />

disco a apresentar<br />

neste concerto - o<br />

segundo em<br />

Portugal -, que<br />

substitui uma data<br />

cancelada por<br />

causa da nuvem<br />

vulcânica<br />

proce<strong>de</strong>nte da<br />

Islândia. L.C.S.<br />

As cinzas do vulcão<br />

islandês adiaram o concerto:<br />

Mika tarda mas não falha<br />

Deolinda<br />

Guimarães. Centro Cultural Vila Flor - Gran<strong>de</strong><br />

Auditório. Avenida D. Afonso Henriques, 701, às<br />

22h. Tel.: 253424700. 15€.<br />

Domingo 9<br />

Orquestra Barroca Casa da<br />

Música<br />

Direcção Musical <strong>de</strong> Laurence<br />

Cummings.<br />

Porto. Casa da Música - Sala Suggia. Pç. Mouzinho<br />

<strong>de</strong> Albuquerque, às 18h. Tel.: 220120220. 11€.<br />

Áustria 2010. Serenatas Nocturnas:<br />

obras <strong>de</strong> Schmelzer, Biber, Muffat,<br />

Mozart e Bach.<br />

Segunda 10<br />

Patrícia Vasconcelos<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> S. Luiz<br />

- Jardim <strong>de</strong> Inverno. R. Antº Maria Cardoso<br />

38-58, às 19h. Tel.: 213257650. 10€.<br />

Gotan Project<br />

nos Coliseus<br />

Martin André<br />

dirige a ONP<br />

NELSON GARRIDO/ PÚBLICO<br />

50 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

Donny McCaslin abre o Ciclo<br />

Internacional <strong>de</strong> Jazz <strong>de</strong> Oeiras<br />

Emanuel Ax a solo<br />

e com a Orquestra Gulbenkian,<br />

a partir <strong>de</strong> terça-feira<br />

Xavier Phillips vai<br />

ao Centro Cultural <strong>de</strong> Belém<br />

Clássica<br />

Um pianista<br />

multifacetado<br />

Emanuel Ax traz à<br />

Gulbenkian um aliciante<br />

programa <strong>de</strong>dicado às<br />

Sonatas <strong>de</strong> Beethoven<br />

e Schubert.<br />

Cristina Fernan<strong>de</strong>s<br />

Emanuel Ax<br />

<strong>Lisboa</strong>. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian<br />

- Gran<strong>de</strong> Auditório. Avenida <strong>de</strong> Berna, 45A. 3ª, 11,<br />

às 19h. Tel.: 217823700. 15€ a 30€.<br />

Ciclo <strong>de</strong> Piano.<br />

Obras <strong>de</strong> Beethoven e Schubert.<br />

Emanuel Ax e Orquestra<br />

Gulbenkian<br />

Direcção Musical <strong>de</strong> Bernhard Klee.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian<br />

- Gran<strong>de</strong> Auditório. Avenida <strong>de</strong> Berna, 45A. 5ª, 13,<br />

às 21h. Tel.: 217823700. 10€ a 20€.<br />

Obras <strong>de</strong> Beethoven,<br />

Webern e Haydn.<br />

Para a sua actuação no Ciclo<br />

<strong>de</strong> Piano da Fundação<br />

Gulbenkian no próximo dia 11,<br />

Emanuel Ax escolheu um<br />

aliciante programa centrado<br />

nas Sonatas <strong>de</strong> Beethoven e<br />

Schubert, ilustrativo <strong>de</strong><br />

diferentes períodos criativos<br />

<strong>de</strong>stes compositores. De<br />

Beethoven interpreta as Sonatas<br />

op. 2, nº3, e op.81a (“Les<br />

Adieux”), e <strong>de</strong> Schubert as Sonatas<br />

op. 42 e op. 120. O pianista polaco<br />

apresenta também nos dias 13 e 14,<br />

com a Orquestra Gulbenkian, o<br />

Concerto para Piano nº5<br />

(“Imperador”), <strong>de</strong> Beethoven, e na<br />

semana seguinte estará na Casa da<br />

Música, no Porto, para mais um<br />

recital a solo.<br />

Admirado pelo seu lirismo poético<br />

e pela sua técnica brilhante,<br />

Emanuel Ax é <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> um<br />

repertório amplo, que se esten<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Bach a figuras tão diversificadas da<br />

música do século XX como Michael<br />

Tippett, Hans Werner Henze, Paul<br />

Hin<strong>de</strong>mith ou Astor Piazolla,<br />

passando pelas gran<strong>de</strong>s páginas do<br />

classicismo e do romantismo.<br />

Nascido em 1949, em Lvov (Polónia),<br />

começou a estudar piano aos seis<br />

anos em Varsóvia. A sua família<br />

mudou-se em 1961 para a América<br />

do Norte, permitindo-lhe continuar<br />

a sua formação na prestigiada<br />

Juilliard School <strong>de</strong> Nova Iorque.<br />

Estreou-se em 1969, mas foi apenas a<br />

partir <strong>de</strong> 1974 — ano em que foi o<br />

vencedor da primeira edição do<br />

Concurso Internacional <strong>de</strong> Piano<br />

Arthur Rubinstein, em Telavive —<br />

que Ax começou a sua carreira<br />

internacional. Artista exclusivo da<br />

editora Sony <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1987, Emmanuel<br />

Ax possui uma vast discografia que<br />

inclui, por exemplo, os concertos <strong>de</strong><br />

Liszt, Schönberg e Brahms, tangos<br />

<strong>de</strong> Astor Piazzolla, sonatas para<br />

piano <strong>de</strong> Haydn (distinguidas com<br />

um Grammy), o Concerto para Piano<br />

“Century Rolls”, <strong>de</strong> John Adams, ou<br />

“Red Silk Dance” <strong>de</strong> Bright Sheng.<br />

Apresentou-se também numerosas<br />

vezes em quarteto com o falecido<br />

Isaac Stern, Jaime Laredo e Yo-Yo Ma<br />

— uma frutuosa colaboração da qual<br />

resultaram também várias discos na<br />

Sony, com obras <strong>de</strong> Brahms, Fauré,<br />

Beethoven, Schumann e Mozart.<br />

O violoncelo em<br />

ascensão <strong>de</strong> Xavier<br />

Phillips<br />

Orquestra Metropolitana<br />

<strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong><br />

Direcção Musical <strong>de</strong> Mark Stringer.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Centro Cultural <strong>de</strong> Belém - Gran<strong>de</strong><br />

Auditório. Praça do Império. Dom., 9, às 17h.<br />

Tel.: 213612400. 5€ a 15€.<br />

Obras <strong>de</strong> Beethoven,<br />

Schostakovich e Schubert.<br />

Antigo aluno <strong>de</strong> Paul Tortelier e <strong>de</strong><br />

Mstislav Rostropovitch, dois gigantes<br />

do violoncelo do século XX, o jovem<br />

instrumentista francês Xavier<br />

Phillips (n. 1971) tem <strong>de</strong>senvolvido<br />

nos últimos uma bem sucedida<br />

carreira internacional, que inclui<br />

vários prêmios da crítica<br />

discográfica. Em paralelo com<br />

recitais a solo, tem tocado com<br />

orquestras europeias e americanas<br />

como a Orquestra <strong>de</strong> Paris, a<br />

Orquestra Nacional <strong>de</strong> França, a<br />

Filarmónica <strong>de</strong> Nova Iorque e as<br />

Sinfónicas <strong>de</strong> Berlim, Chicago,<br />

Houston, Seattle e Bamberg, entre<br />

outras. A sua gravação <strong>de</strong>dicada à<br />

música <strong>de</strong> câmara <strong>de</strong> Alberic<br />

Magnard foi distinguida com o<br />

“Grand Prix du Disque” e o seu disco<br />

com o pianista turco Hüseyin<br />

Sermet, <strong>de</strong>dicado às Sonatas <strong>de</strong><br />

Schnittke, Chostakovitch e<br />

Prokofiev, recebeu um “Choc” na<br />

revista “Le Mon<strong>de</strong> <strong>de</strong> la Musique”.<br />

Registou ainda com sucesso o<br />

Concerto para Violoncelo, <strong>de</strong> Lalo, e<br />

um CD <strong>de</strong>dicado a Kodaly com Jean-<br />

Marc Phillips-Varjabédian.<br />

No próximo domingo, Xavier<br />

Phillips apresenta-se no Centro<br />

Cultural <strong>de</strong> Belém com a Orquestra<br />

Metropolitana <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> na<br />

interpretação do Concerto para<br />

Violoncelo nº1, op. 107, <strong>de</strong><br />

Chostakovich. O programa, dirigido<br />

pelo maestro Mark Stringer, inclui<br />

ainda a Abertura “Rei Estevão”, op.<br />

117, <strong>de</strong> Beethoven, e a Sinfonia nº 8,<br />

em Dó Maior, D. 944, “A Gran<strong>de</strong>”, <strong>de</strong><br />

Schubert. Esta última obra, a mais<br />

extraordinária partitura orquestral<br />

do compositor austríaco, é também<br />

conhecida por alguns melómanos e<br />

citada em obras <strong>de</strong> referência como<br />

a Nona Sinfonia <strong>de</strong> Schubert,<br />

<strong>de</strong>vendo-se essa divergência a<br />

diferentes critérios <strong>de</strong> catalogação<br />

usados ao longo do tempo. C.F.<br />

Jazz<br />

Donny<br />

McCaslin<br />

e outras<br />

surpresas<br />

Quatro diferentes visões do<br />

jazz actual na edição 2010<br />

do Ciclo Internacional <strong>de</strong><br />

Jazz <strong>de</strong> Oeiras.<br />

Rodrigo Amado<br />

Som da Surpresa 2010<br />

Com Donny McCaslin Trio (hoje),<br />

Don Byron Ivey Divey Trio<br />

(amanhã), Edward Simon Trio (dia<br />

21) e Jamie Baum Septet (dia 22).<br />

Oeiras. Auditório <strong>Municipal</strong> Eunice Muñoz. Rua<br />

Mestre <strong>de</strong> Aviz. Hoje e amanhã, às 22h. Tel.:<br />

214408411. 7,5€.<br />

Começa hoje a edição 2010 do Som<br />

da Surpresa, Ciclo Internacional <strong>de</strong><br />

Jazz <strong>de</strong> Oeiras, com as honras <strong>de</strong><br />

abertura a caberem ao trio <strong>de</strong> Donny<br />

McCaslin, um saxofonista que tem<br />

construido uma percurso brilhante e<br />

que se tornou um dos solistas mais<br />

requisitados da actualida<strong>de</strong>.<br />

Colaborações com a Big Band <strong>de</strong><br />

Maria Schnei<strong>de</strong>r ou o quinteto <strong>de</strong><br />

Dave Douglas, entre muitos outros,<br />

transformaram um relativo<br />

aca<strong>de</strong>mismo <strong>de</strong> início <strong>de</strong> carreira<br />

numa po<strong>de</strong>rosa versatilida<strong>de</strong><br />

musical. Com ele, estarão em palco<br />

Scott Colley (contrabaixo) e Antonio<br />

Sanchez (bateria).<br />

Amanhã, sábado, é a vez do trio<br />

Ivey Divey, do clarinetista e (agora)<br />

saxofonista Don Byron, um dos<br />

notáveis sobreviventes da geração<br />

Knitting Factory. Consi<strong>de</strong>rado um<br />

dos gran<strong>de</strong>s mestres do clarinete<br />

jazz, Byron combina elementos tão<br />

diversos como o klezmer, o funk, o<br />

hip-hop ou o blues, para <strong>de</strong>stilar um<br />

estilo profundamente pessoal que,<br />

aqui, presta homenagem a Lester<br />

Young. De <strong>de</strong>stacar ainda a presença<br />

<strong>de</strong> Uri Caine, no piano.<br />

No fim-<strong>de</strong>-semana seguinte, é a vez<br />

<strong>de</strong> subir ao palco o trio <strong>de</strong> Edward<br />

Simon, pianista <strong>de</strong> origem<br />

venezuelana que tem vindo a<br />

conquistar uma crescente, e<br />

merecida, notorieda<strong>de</strong>. Integrando<br />

actualmente os SF Jazz Collective,<br />

Simon brilha particularmente num<br />

contexto <strong>de</strong> trio, formação que<br />

permite observar <strong>de</strong> perto todas as<br />

subtilezas do seu estilo. Para<br />

terminar, apresenta-se o septeto da<br />

flautista e compositora Jamie Baum,<br />

música norte-americana que esteve já<br />

por diversas vezes no nosso país com<br />

o seu jazz <strong>de</strong> câmara, sofisticado e<br />

pleno <strong>de</strong> swing.<br />

Terça 11<br />

PerKool Quartet<br />

Porto. Casa da Música - Sala 2. Pç. Mouzinho <strong>de</strong><br />

Albuquerque, às 19h30. Tel.: 220120220. 7,5€.<br />

Obras <strong>de</strong> Mário Laginha, Fusté-<br />

Lambezat, Carlos Azevedo.<br />

Patrícia Vasconcelos<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> S. Luiz - Jardim <strong>de</strong><br />

Inverno. R. Antº Maria Cardoso, 38-58, às 19h. Tel.:<br />

213257650. 10€.<br />

Quarta 12<br />

Biel Ballester Trio<br />

Matosinhos. Cine-Teatro Constantino Nery. Avenida<br />

Serpa Pinto, às 21h30. Tel.: 229392320. Entrada<br />

gratuita.<br />

Matosinhos em Jazz 2010 - Festival<br />

Internacional <strong>de</strong> Jazz <strong>de</strong> Matosinhos.<br />

Sofia Ribeiro<br />

Caldas da Rainha. Centro<br />

Cultural e Congressos - Gran<strong>de</strong><br />

Auditório. Rua Doutor Leonel<br />

Sotto Mayor, às 21h30. Tel.:<br />

262889650. 5€ a 10€.<br />

Ricardo Ribeiro O<br />

junta-se a Pedro Jóia O<br />

RUI GAUDÊNCIO<br />

Quinta 13<br />

Vashti Bunyan + B Fachada<br />

<strong>Lisboa</strong>. Lux Frágil. Av. Infante D. Henrique, Armazém<br />

A, às 22h. Tel.: 218820890. 12 €.<br />

Ver texto na pág. 12.<br />

A Naifa<br />

Faro. Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> Faro. Horta das Figuras<br />

- EN125, às 21h30. Tel.: 289888100. 12€.<br />

Ver texto na pág. 16.<br />

Jon Rose<br />

Porto. Auditório <strong>de</strong> Serralves. Rua Dom João o <strong>de</strong><br />

Castro, 210, às 22h. Tel.: 226156500. 3,75€ a 7,5€.<br />

Ciclo Documente-se! 2010. “Violino<br />

Escravo - a true story of a slave<br />

violinist”.<br />

Orquestra <strong>de</strong> Jazz <strong>de</strong> Matosinhos<br />

Direcção Musical <strong>de</strong> Carlos Azevedo,<br />

Cansei <strong>de</strong> Ser Sexy em <strong>Lisboa</strong><br />

Pedro Gue<strong>de</strong>s.<br />

Leça da Palmeira. Exponor, às 21h30. Tel.:<br />

229981300. 10€.<br />

Matosinhos em Jazz 2010 - Festival<br />

Internacional <strong>de</strong> Jazz <strong>de</strong> Matosinhos.<br />

A Silent Film<br />

<strong>Lisboa</strong>. Aula Magna. Alam. Universida<strong>de</strong>, às 21h30.<br />

Tel.: 217967624. 19€ a 24€.<br />

Sofia Ribeiro Quarteto<br />

<strong>Lisboa</strong>. Onda Jazz. Arco <strong>de</strong> Jesus, 7 - ao Campo das<br />

Cebolas, às 22h30. Tel.: 919184867. 7€.<br />

Deolinda<br />

em digressão<br />

nacional<br />

RITA CARMO<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 51


Discos<br />

Pop<br />

Está <strong>tudo</strong><br />

bem, foi <strong>tudo</strong><br />

perdoado<br />

Os National resistem à<br />

tentação <strong>de</strong> se tornarem<br />

os U2 e em vez disso<br />

resolveram mostrar que<br />

são os únicos homens<br />

crescidos a fazer música.<br />

Impressionante. João<br />

Bonifácio<br />

The National<br />

High Violet<br />

4Ad; distri. Popstock<br />

mmmmm<br />

Até certo ponto<br />

sabemos como<br />

funcionam as<br />

canções dos<br />

National: Matt<br />

Berninger, o<br />

vocalista, primeiro sussurra <strong>de</strong>pois<br />

berra quase-aforismos<br />

grandiloquentes, em que o universo<br />

do americano médio é transformado<br />

em épico semi-patético. Ao redor da<br />

voz <strong>de</strong> barítono há uma segunda<br />

melodia dividida entre as duas<br />

guitarras; quando uma linha <strong>de</strong><br />

guitarra se repete, a linha <strong>de</strong> baixo<br />

altera-se; quando o ritmo se repete,<br />

as frases das guitarras fogem do seu<br />

lugar; e em fundo, a percussão, mais<br />

que marcar o tempo, amplia a<br />

“emoção”<br />

que a voz<br />

procura.<br />

Como com todos os discos dos National, entra-se nisto com um encolher <strong>de</strong> ombros<br />

e acaba-se, um mês <strong>de</strong> escutas <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong> braços levantados para os céus<br />

Sequela<br />

No entanto, a fórmula resulta em<br />

objectos radicalmente diferentes. Em<br />

“Alligator” (2005) tínhamos o fim da<br />

juventu<strong>de</strong> retratada em indie-rock<br />

explosivo e ébrio, enquanto em<br />

“Boxer” (2010) tínhamos a entrada<br />

na ida<strong>de</strong> adulta em registo <strong>de</strong><br />

câmara. Agora temos o “lá fora”, o<br />

mundo, e, musicalmente, um<br />

cruzamento exponenciado dos<br />

universos dos dois discos<br />

prece<strong>de</strong>ntes: voltam as guitarras e os<br />

ritmos mais acelerados, mas os<br />

arranjos são ainda mais<br />

proeminentes – coros, metais,<br />

cordas, há <strong>de</strong> <strong>tudo</strong> e por todo o lado.<br />

É admirável como esse improvável<br />

ponto <strong>de</strong> encontro entre “Alligator” e<br />

“Boxer” é encontrado em canções<br />

lindíssimas como “Bloodbuzz Ohio”<br />

(guitarras à frente e metais por cima,<br />

a agigantá-la), a magnífica “Terrible<br />

love” (toalhas <strong>de</strong> guitarras que<br />

terminam num crescendo e o baixo<br />

marcado no piano), “Van<strong>de</strong>rlyle<br />

crybaby geeks” (piano lento, arrepio<br />

<strong>de</strong> cordas, coros, um hossana para a<br />

classe média como Nick Cave nunca<br />

foi capaz <strong>de</strong> escrever), a<br />

extraordinária “Afraid of everyone”<br />

(um comovente ensaio sobre o medo<br />

da paternida<strong>de</strong>) ou “Anyone’s ghost”,<br />

noir <strong>de</strong> guitarras para almas <strong>de</strong><br />

predação nocturna .<br />

Mas, nesta última, atentem nos<br />

coros em fundo, no cuidado posto<br />

nos sombreados <strong>de</strong> oboés e, na<br />

ponte, no pontilhismo dos<br />

violoncelos. E em “Afraid of<br />

everyone” notem o truque da<br />

segunda frase melódica começar a<br />

ser feita pela guitarra para ser<br />

completada por um oboé, antes da<br />

entrada dos metais à medida que a<br />

intensida<strong>de</strong> aumenta. Notem o<br />

trabalho <strong>de</strong> harmonia dos coros.<br />

São nano-<strong>de</strong>talhes que só à<br />

enésima<br />

audição se<br />

revelam<br />

em toda<br />

Um dos álbuns<br />

históricos do hip-hop<br />

vai ter um segundo<br />

capitulo. GZA está a<br />

trabalhar em “Liquid<br />

Swords II”, sequela<br />

do disco, <strong>de</strong> 1995,<br />

a sua grandiosida<strong>de</strong> e que servem<br />

não apenas para embelezar mas sim<br />

causar – por régua e esquadro –<br />

emoção, e através <strong>de</strong>sta pôr as gentes<br />

a olhar para as suas vidinhas e, por<br />

mais que isso aí ao espelho moa e<br />

doa, fazê-las encontrar algum<br />

conforto na sua sarjeta privada.<br />

Como com todos os discos dos<br />

National, entra-se nisto com um<br />

encolher <strong>de</strong> ombros e acaba-se, um<br />

mês <strong>de</strong> escutas <strong>de</strong>pois, com um vago<br />

sentimento adolescente, <strong>de</strong> braços<br />

levantados para os céus como se isto<br />

fosse a última alegria antes <strong>de</strong><br />

voltarmos para o cárcere da gordura<br />

no fogão, felizes por existirmos na<br />

mesma época que estes tipos, por<br />

po<strong>de</strong>rmos admirar isto antes <strong>de</strong> o<br />

cuidado com a carreira, com a<br />

meticulosa falsa poli<strong>de</strong>z dos sorrisos<br />

diários, nos levarem <strong>de</strong> vez o pouco<br />

<strong>de</strong> humanida<strong>de</strong> e dignida<strong>de</strong> que nos<br />

resta. E não há mais ninguém neste<br />

mundo cheio <strong>de</strong> vencedores, <strong>de</strong><br />

gente bonita e séria, que nos faça<br />

lembrar o lixo todo que fizemos – e o<br />

faça com um abraço.<br />

Como canta Berninger a fechar o<br />

disco: “Man, it’s all been fogiven”.<br />

Está <strong>tudo</strong> bem, gente boa. Não se<br />

esqueçam é que <strong>de</strong>pois acaba o disco<br />

e volta-se à vida.<br />

Mudar para<br />

quê?<br />

Décimo Divine Comedy traz<br />

Neil Hannon <strong>de</strong> volta ao seu<br />

melhor. Luís Maio<br />

The Divine Comedy<br />

Bang Goes The Knighthood<br />

Divine Comedy Records E<strong>de</strong>l<br />

mmmmn<br />

Neil Hannon na<br />

banheira vestido só<br />

com um laço, um<br />

chapéu <strong>de</strong> coco e<br />

um cachimbo, a<br />

dar banho ao cão,<br />

acompanhado por uma garrafa <strong>de</strong><br />

champanhe e no canto inferior<br />

direito, quase a sair da fotografia, o<br />

inevitável pato <strong>de</strong> borracha. A capa é<br />

o perfeito epítome visual do que tem<br />

sido a carreira <strong>de</strong> Hannon/Divine<br />

Comedy, revista e actualizada em<br />

gran<strong>de</strong> estilo neste seu décimo<br />

álbum <strong>de</strong> estúdio.<br />

Antes houve discos conceptuais e<br />

introspectivos, inflexões eléctricas e<br />

electrónicas, álbuns <strong>de</strong> versões e<br />

canções para outras vozes. Hannon<br />

nunca <strong>de</strong>ixou, porém, <strong>de</strong> fazer o que<br />

sempre fez melhor: canções<br />

narrativas, retratos irónicos mas<br />

generosos da socieda<strong>de</strong> britânica,<br />

em formato pop e arranjos<br />

sinfónicos, na linha <strong>de</strong> Jacques Brel e<br />

Scott Walker. Agora, em “Bang Goes<br />

The Knighthood”, as experiências<br />

dos Wu-Tang Clan.<br />

Apesar <strong>de</strong> se tratar <strong>de</strong><br />

um projecto a solo, o<br />

disco contará com a<br />

produção <strong>de</strong> RZA, outro<br />

dos elementos do grupo<br />

nova-iorquino.<br />

The Divine Comedy: um<br />

triunfo no capítulo das<br />

sinfonias pop que comentam<br />

a vida <strong>de</strong> todos os dias<br />

passam para segundo plano, para<br />

dar lugar a uma nova celebração do<br />

que é vocação e o verda<strong>de</strong>iro talento<br />

<strong>de</strong> Hannon. Não será a sua obraprima,<br />

não porque seja inferior,<br />

simplesmente porque antes houve<br />

“Promena<strong>de</strong>”, “Casanova” ou “Fin<br />

<strong>de</strong> Siècle”.<br />

Todas as canções oferecem<br />

melodias trauteáveis e arranjos<br />

sofisticados, não há em 12 títulos um<br />

só que seja <strong>de</strong>scartável. Desta feita,<br />

no entanto, as canções que primam<br />

pelo humor são as que mais se<br />

<strong>de</strong>stacam. “At the indie disco”, o<br />

primeiro single, invoca os posters <strong>de</strong><br />

Morrissey com ramos <strong>de</strong> flores ou os<br />

ritmos <strong>de</strong> “Blue Monday” dos New<br />

Or<strong>de</strong>r para pintar a cena rock<br />

alternativa, num misto <strong>de</strong>licioso <strong>de</strong><br />

ironia e <strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong>. Tanto ou<br />

mais vai dar que falar “The complete<br />

banker”, <strong>de</strong>lirante sátira ao mundo<br />

da alta finança, escrita do ponto <strong>de</strong><br />

vista dos banqueiros viciados em<br />

especulação, responsáveis pela<br />

actual crise mundial. Corre o risco<br />

<strong>de</strong> ser banida em Wall Street a não<br />

ser que os corretores da bolsa<br />

ganhem um insuspeito sentido <strong>de</strong><br />

humor (ou <strong>de</strong> arrependimento).<br />

Há, <strong>de</strong>pois, canções sobre gente<br />

que aposta o que tem e não tem no<br />

jogo (“Bang goes the knighthood”),<br />

sobre raparigas que ganham a vida<br />

como amantes <strong>de</strong> hora <strong>de</strong> almoço<br />

(“Neapolitan girl”). Mas a piada<br />

musical mais excêntrica acaba por<br />

ser a mais inócua: chama-se “Can<br />

you stand upon one leg” e prova que<br />

Hannon consegue estar a cantar a<br />

mesma nota <strong>de</strong> um único sopro,<br />

durante meio minuto. Pelo meio há<br />

um par <strong>de</strong> celebrações do romance e<br />

do easy listening (“Island life”,<br />

“Have you ever been in love”), outro<br />

par <strong>de</strong> épicos sinfónico-humanistas<br />

(“Down in the street below” e<br />

“When a man cries”), que também<br />

recriam território familiar aos fãs <strong>de</strong><br />

Divine Comedy. É claro que não há<br />

novida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> maior em lado<br />

52 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

Nice Nice: respeito, senhoras<br />

e senhores, muito respeito<br />

nenhum, que <strong>tudo</strong> não passa <strong>de</strong> uma<br />

revisão actualizada da matéria dada<br />

ao longo <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> álbuns.<br />

Não é menos certo que são um<br />

triunfo no capítulo das sinfonias pop<br />

que comentam a vida <strong>de</strong> todos os<br />

dias. Ou que ninguém faz Neil<br />

Hannon melhor que Neil Hannon.<br />

Caos perfeito<br />

Iggy And The Stooges<br />

Raw Power<br />

Columbia/Legacy; distri. Sony Music<br />

mmmmm<br />

Se um álbum<br />

começa com estes<br />

versos, “I’m a street<br />

walking cheetah<br />

with a heart full of<br />

napalm / I’m a<br />

runaway son of the nuclear a-bomb /<br />

I am a world’s forgotten boy / The<br />

one who searches and <strong>de</strong>stroys”,<br />

exige-se que a música o traduza<br />

<strong>de</strong>vidamente. Po<strong>de</strong> parecer<br />

estranho, no ano da Graça <strong>de</strong> 2010,<br />

37 passados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a edição <strong>de</strong> “Raw<br />

Power”, escrever a frase anterior.<br />

Afinal, crescemos com “Raw Power”<br />

e têmo-lo por garantido. Sabemos<br />

que aquela letra não existe sem a<br />

música visceral que a acompanha,<br />

qual granada atirada ao coração do<br />

rock’n’roll para o regenerar<br />

<strong>de</strong>finitivamente.<br />

No entanto, ouvindo novamente<br />

“Raw Power” nesta reedição que ao<br />

álbum original acrescenta um<br />

concerto em Atlanta, registado em<br />

1973 (existe também uma versão<br />

<strong>de</strong>luxe, em edição limitada, que<br />

inclui ainda um CD <strong>de</strong> outtakes e<br />

rarida<strong>de</strong>s e um “making of” em<br />

DVD), percebe-se como o terceiro<br />

álbum dos Stooges só existe<br />

enquanto corpo e verbo,<br />

inseparáveis. Porque a raiva e a<br />

vertigem auto<strong>de</strong>strutiva <strong>de</strong> Iggy Pop<br />

“Raw Power” é um disco <strong>de</strong><br />

sexo e violência, é um disco<br />

violentamente sexy e inspirador<br />

encontra tradução perfeita nos<br />

Stooges, máquina rock’n’roll em que<br />

a <strong>de</strong>crepitu<strong>de</strong> é manifesto urgente e<br />

a ilusão do <strong>de</strong>scontrolo o auge da<br />

sofisticação – algo acentuado pela<br />

mistura escolhida, a original <strong>de</strong><br />

David Bowie. Não é por acaso que,<br />

no concerto, ouvimos uma miúda<br />

lamentar-se (“I don’t think he likes<br />

us”) quando terminam os oito<br />

minutos <strong>de</strong> “Head on”, um violento<br />

triturar <strong>de</strong> Jagger e Morrison, dos<br />

The Who e do “Hey Joe” – é a mesma<br />

voz que, <strong>de</strong>pois, há-<strong>de</strong> berrar uma e<br />

outra vez “Iggy, I want your body!”<br />

enquanto Iggy vocifera “it’s time to<br />

search and <strong>de</strong>stroy cause all this<br />

gotta go”, enquanto Iggy pergunta<br />

“Can anybody hear me?” para se<br />

irritar logo a seguir: “I didn’t mean<br />

with your ears! Oh, you ignorant<br />

mother…”<br />

“Raw Power” é um disco <strong>de</strong> sexo e<br />

violência, é um disco violentamente<br />

sexy e inspirador. E é um álbum<br />

impossível <strong>de</strong> reproduzir porque,<br />

apesar <strong>de</strong> se pressupor alguém do<br />

outro lado a reagir a toda a fúria e<br />

<strong>de</strong>sconforto, <strong>tudo</strong> nele nasce <strong>de</strong> uma<br />

quase assustadora intimida<strong>de</strong>. É a<br />

música que emanou daqueles quatro<br />

músicos (Iggy Pop, James<br />

Williamson, Ron e Scott Asheton),<br />

naquele momento específico.<br />

Sozinhos perante o mundo,<br />

escolheram atirar-se à jugular do<br />

conforto a serem engolidos por ele.<br />

O paraíso não existe e só o perigo e o<br />

excesso, só a <strong>de</strong>struição po<strong>de</strong>m<br />

regenerar-nos.<br />

“Penetration” e “Raw power”:<br />

“Gimme danger, little stranger”.<br />

Nunca o caos foi tão perfeito. Mário<br />

Lopes<br />

Somos todos Monks!<br />

The Monks<br />

Black Monk Time<br />

Light In The Attic; distri. Flur<br />

mmmmm<br />

Nada aqui é<br />

inocente. Não o é a<br />

produção, que<br />

procurou a forma<br />

exacta <strong>de</strong> transpôr<br />

para disco uma<br />

i<strong>de</strong>ia sónica, pensada como<br />

verda<strong>de</strong>iro ataque aos sentidos. Não<br />

o é o banjo em que Dave Day<br />

colocou cordas <strong>de</strong> guitarra eléctrica,<br />

resultando num “clang clang”<br />

mecânico que transforma um<br />

instrumento tradicional em<br />

matraquear <strong>de</strong> música industrial.<br />

Não o é a guitarra eléctrica <strong>de</strong> Gary<br />

Burger, que potencia o tom<br />

paranóico da sua voz, que é toda ela<br />

ritmo e dissonância <strong>de</strong> feedbacks<br />

infernais. Não o é o órgão <strong>de</strong> Larry<br />

Clark, que não ilumina nem pontua,<br />

que atravessa as canções em<br />

“flashadas” que cegam,<br />

incan<strong>de</strong>scentes. E não o é a secção<br />

rítmica <strong>de</strong> Roger Johnston, baterista<br />

The Monks: o ponto on<strong>de</strong> todo um futuro <strong>de</strong> marginalida<strong>de</strong>,<br />

confronto, acção e invenção bebeu algo<br />

<strong>de</strong> precisão tensa, marcial (<strong>tudo</strong><br />

timbalões e tarola, nada <strong>de</strong> pratos),<br />

e Eddie Shaw, o baixista do “fuzz”<br />

en<strong>de</strong>moninhado. Não, nada em<br />

“Black Monk Time” é inocente.<br />

Justíssima premonição a daqueles<br />

que, em 1966, disseram a cinco exsoldados<br />

americanos a viver na<br />

Alemanha que a sua banda era o<br />

som do futuro. “Black Monk Time”,<br />

único e inesgotável, continua a sê-lo<br />

em 2010. Não acreditem quando um<br />

arauto new-age ou um rapaz cheio<br />

<strong>de</strong> boas intenções com guitarra<br />

acústica a tiracolo vos cantar ao<br />

ouvido que o yoga conduz à salvação<br />

e que um pôr-do-sol na Arrábida<br />

po<strong>de</strong> conduzir uma vida <strong>de</strong><br />

beatitu<strong>de</strong>. Conce<strong>de</strong>mos com<br />

mo<strong>de</strong>rada relutância que até po<strong>de</strong><br />

suce<strong>de</strong>r assim - nos intervalos.<br />

Quanto ao resto, quanto à vida ela<br />

mesma, ouçam-se os Monks.<br />

Não, não está <strong>tudo</strong> bem: “Alright,<br />

my name’s Gary. Let’s go, it’s beat<br />

time, it’s hop time, it’s monk time!<br />

You know we don’t like the army.<br />

What army? Who cares what army?”<br />

Não, não está <strong>tudo</strong> bem: “Stop it<br />

stop it, I don’t like it… stop it! It’s too<br />

loud for my ears.” No início era isto,<br />

“Monk time”: garage para <strong>de</strong>struir<br />

salões nobres e danças hedonistas<br />

sem sentido. Depois, a canção <strong>de</strong><br />

ódio para acabar com as canções <strong>de</strong><br />

amor, paranóia violenta que inventa<br />

os Stooges sem os Stooges o<br />

saberem: “I hate you with a passion<br />

baby, yeah I do! (But call me!)”; e<br />

<strong>de</strong>pois a paranóia que é já neurose<br />

quando chegamos a “Complication”<br />

e a natureza humana se revela em<br />

todo o seu tenebroso esplendor:<br />

“People cry / Complication! / People<br />

die for you. / People kill /<br />

Complication! / People will for you. /<br />

People run / Complication / Ain’t it<br />

fun for you?”<br />

Verda<strong>de</strong>iramente impressionante<br />

o alcance <strong>de</strong> “Black Monk Time”,<br />

incrível <strong>tudo</strong> aquilo que contém <strong>de</strong><br />

invenção, <strong>de</strong> prenúncio <strong>de</strong> futuro. A<br />

sôfrega inocência dos Beatles<br />

tornada intervenção dadaísta em<br />

“We do wie du”, a gravilha sónica<br />

dos Velvet <strong>de</strong> “White light, white<br />

heat” antecipada na guitarra <strong>de</strong><br />

“Higgle-dy – piggle-dy” (“way down<br />

to heaven, Yeah!”). O pôr em cena<br />

do pós-punk no tom repetitivo,<br />

insistente, <strong>de</strong> “Blast Off!” e o<br />

nonsense da <strong>de</strong>smontagem pop <strong>de</strong><br />

“Cuckoo”, que po<strong>de</strong>mos jurar que<br />

David Byrne terá ouvido antes <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>cidir tornar-se vocalista <strong>de</strong> uma<br />

banda chamada Talking Heads.<br />

Os Monks <strong>de</strong> “Black Monk Time”<br />

são supostamente heróis do “garage<br />

rock” <strong>de</strong> 1960 que reedições como<br />

esta (que ao álbum original<br />

acrescentam um par <strong>de</strong> singles<br />

posteriores ou uma canção ao vivo)<br />

transformaram em culto bem<br />

alimentado ao longo dos anos. Grave<br />

erro. São o elo perdido da história<br />

do rock’n’roll, o ponto on<strong>de</strong> todo<br />

um futuro <strong>de</strong> marginalida<strong>de</strong>,<br />

confronto, acção e invenção bebeu<br />

algo.<br />

Escapar-lhes não é uma<br />

possibilida<strong>de</strong>: “You’re a monk, I’m a<br />

monk, we’re all monks!”. Estamos<br />

todos comprometidos. M.L.<br />

WWW.TEATROSAOLUIZ.PT<br />

APOIOS<br />

SÃO<br />

LUIZ<br />

MAI~1O<br />

SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />

RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA<br />

GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT / T: 213 257 640<br />

Maravilhosa<br />

alucinação<br />

Nice Nice<br />

Extra Wow<br />

Warp; distri. Symbiose<br />

mmmmn<br />

O apreço, ou<br />

melhor, a obsessão<br />

que Jason Buehler e<br />

Mark Shirazi têm<br />

pela repetição está<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo inscrita<br />

no nome da banda. Nice? Nice! O<br />

apreço, corrijamos, a obsessão<br />

1O E 11 MAI<br />

PATRÍCIA<br />

VASCONCELOS<br />

LET’S DO IT,<br />

LET’S FALL<br />

IN LOVE<br />

SEGUNDA E TERÇA ÀS 19H30<br />

JARDIM DE INVERNO M/3<br />

CONVIDADOS<br />

BENVINDO FONSECA<br />

CAMANÉ<br />

LÚCIA MONIZ<br />

BILHETEIRA DAS 13H ÀS 20H<br />

T: 213 257 650; BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />

BILHETES À VENDA NA TICKETLINE E NOS LOCAIS HABITUAIS<br />

© Carlos Ramos<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 53


Discos<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

que têm pelo po<strong>de</strong>r do som, som<br />

simplesmente, <strong>de</strong>scarregado em<br />

doses cavalares sobre os nossos<br />

ouvidos, está por sua vez inscrito no<br />

nome do álbum. Um tipo chega<br />

muito <strong>de</strong>scontraído a casa, olha para<br />

a simplicida<strong>de</strong> da capa que vêm<br />

acima e, inadvertidamente, sem<br />

qualquer protecção, põe a rodar a<br />

peça. Cinquenta e tal minutos<br />

<strong>de</strong>pois o diagnóstico, sem hipótese<br />

<strong>de</strong> erro, é precisamente aquele:<br />

“Wow! Extra Wow!”<br />

A <strong>de</strong>scrição do novo álbum da<br />

banda <strong>de</strong> Portland, formada por um<br />

baterista e um guitarrista e,<br />

principalmente, pela imaginação<br />

transbordante que os leva a<br />

sobrepor camadas e camadas <strong>de</strong><br />

instrumentos, <strong>de</strong> ruídos, <strong>de</strong> fitas<br />

manipuladas, nunca fará justiça ao<br />

que aqui se ouve. Falar-se-á <strong>de</strong><br />

violenta trip shoegaze, daquela que<br />

liquefaz o cérebro até que nada reste<br />

senão o zumbido <strong>de</strong> um mantra<br />

eléctrico, <strong>de</strong> doses elevadas <strong>de</strong><br />

motorika e kozmische tal como<br />

explicado por Neu! e Harmonia,<br />

falar-se-á do rock que é já outra coisa<br />

dos Battles, da África vista por olhos<br />

oci<strong>de</strong>ntais que se vai <strong>de</strong>senhando<br />

em lofts <strong>de</strong> Brooklin, do<br />

psica<strong>de</strong>lismo da década <strong>de</strong> 1970,<br />

esse <strong>de</strong> rigorosíssima dieta <strong>de</strong><br />

cogumelos seleccionados, ou das<br />

maquinações electrónicas que o<br />

magnífico Dan Deacon vem<br />

orquestrando lá para os lados <strong>de</strong><br />

Baltimore. Po<strong>de</strong>remos falar <strong>de</strong> <strong>tudo</strong><br />

isto, citar <strong>tudo</strong> isto, mas <strong>de</strong>pois<br />

chegamos a “Extra Wow” e tal<br />

revela-se <strong>de</strong>veras insuficiente.<br />

Montado como um contínuo<br />

musical, praticamente sem pausas,<br />

“Extra Wow” é um OVNI que tinha<br />

<strong>tudo</strong> para correr mal – com esta<br />

salgalhada <strong>de</strong> referências, o mais<br />

provável seria transformar-se num<br />

“District 9” on<strong>de</strong> sobreviveriam,<br />

perante a fraca tolerância da<br />

população, juntamente com toda a<br />

vasta lista <strong>de</strong> armados ao pingarelho<br />

que tentam mostrar-se mais espertos<br />

do que são realmente. Mas, “arrojo!,<br />

audácia!, emoção!”, nada corre mal<br />

em “Extra Wow”, um verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>iro<br />

tratado em alucinações pop, sem<br />

fronteiras <strong>de</strong>finidas e sem outro<br />

propósito que não sugar o ouvinte<br />

para o coração <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>liciosa e<br />

inebriante “freakalhada”.<br />

Quando, <strong>de</strong>pois das percussões<br />

em loop e das guitarras<br />

cósmicas, <strong>de</strong>pois dos teclados<br />

planando o espaço e <strong>de</strong> todos<br />

aqueles sons que nos assaltam <strong>de</strong><br />

proveniência in<strong>de</strong>finida,<br />

percebemos que isto é o trabalho<br />

<strong>de</strong> dois tipos que actuam como<br />

meticulosos cientistas sónicos<br />

procurando infatigavelmente e o<br />

Santo Graal do psica<strong>de</strong>lismo – algo<br />

que provoque a mesma sensação <strong>de</strong><br />

maravilhamento e euforia <strong>de</strong><br />

“Tomorrow never knows” -, os Nice<br />

Nice ganham uma outra dimensão.<br />

Respeito, senhoras e senhores, es,<br />

muito respeito. M.L.<br />

Delorean: talvez seja tempo <strong>de</strong> reavaliar a forma como olhamos<br />

a pop vinda <strong>de</strong> Espanha<br />

Delorean<br />

Subiza<br />

Mushroom, distri. PopStock<br />

mmmmn<br />

O ano passado,<br />

<strong>de</strong>screvíamos<br />

nestas páginas a<br />

música dos<br />

espanhóis Delorean<br />

como sendo pop<br />

dançante à beira da euforia. O<br />

álbum “Subiza” confirma-o. É uma<br />

obra <strong>de</strong> canções solarengas,<br />

<strong>de</strong>scomprometidas e simples,<br />

assentes em dinâmicas rítmicas<br />

electrónicas, gran<strong>de</strong> acessibilida<strong>de</strong><br />

melódica, vozes entusiásticas e<br />

estruturas ensaiadas em tantas<br />

outras canções pop. À superfície<br />

encontramos um misto <strong>de</strong> exaltação<br />

à Animal Collective, <strong>de</strong> jovialida<strong>de</strong> à<br />

Cut Copy e <strong>de</strong> electrónica<br />

minimalista em crescendo como a<br />

<strong>de</strong>senvolvida por DJs e produtores<br />

como James Hol<strong>de</strong>n. Há uma junção<br />

<strong>de</strong> afectivida<strong>de</strong> pop, rasgos diluídos<br />

<strong>de</strong> rock e um rol infinito <strong>de</strong> camadas<br />

electrónicas, que nos levam a<br />

pensar em discos <strong>de</strong> outros tempos<br />

– <strong>de</strong> “Screama<strong>de</strong>lica” dos Primal<br />

Scream aos New Or<strong>de</strong>r da primeira<br />

meta<strong>de</strong> dos anos<br />

80 – feitos por grupos oriundos do<br />

rock que, <strong>de</strong> repente, se<br />

entusiasmaram com as<br />

proprieda<strong>de</strong>s hipnóticas da música<br />

<strong>de</strong> dança. Depois da magia tropical<br />

<strong>de</strong> El Guincho, eis os Delorean.<br />

Talvez seja tempo <strong>de</strong> reavaliar a<br />

forma como olhamos a pop vinda <strong>de</strong><br />

Espanha. Vítor Belanciano<br />

Sharon Jones & The Dap-Kings<br />

I Learned The Hard Way<br />

Daptone. Distri. Massala<br />

mmmnn<br />

Sharon Jones & The Dap-Kings: o artigo genuíno<br />

“Eu aprendi da<br />

maneira dura” é o<br />

nome do álbum e a<br />

perfeita epígrafe<br />

para o que tem sido<br />

a carreira <strong>de</strong> mais<br />

baixos que altos <strong>de</strong> Sharon Jones.<br />

Nascida na Geórgia, em 1956,<br />

começou por fazer coros para<br />

artistas funk e disco sound, na Nova<br />

Iorque <strong>de</strong> meados dos anos 70. Mas<br />

ninguém a quis assinar em nome<br />

próprio – era <strong>de</strong>masiado velha (ou<br />

seja, mais <strong>de</strong> 20 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>),<br />

<strong>de</strong>masiado gorda, <strong>de</strong>masiado negra,<br />

ou <strong>de</strong>masiado feia - ou pelo menos<br />

foi as <strong>de</strong>sculpas que foi ouvindo.<br />

Decidiu então experimentar<br />

profissões mais<br />

54 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon


Meshell N<strong>de</strong>geocello: a cada audição, uma nova <strong>de</strong>scoberta<br />

musculares, passando a ganhar a<br />

vida como segurança em carros<br />

forte e carcereira em prisões novaiorquinas.<br />

A sua sorte começou a<br />

mudar no dia em que o marido<br />

entrou para a editora “familiar”<br />

Daptone e ela se associou à banda <strong>de</strong><br />

virtuosos soul Dap-Kings (2001).<br />

Quando, em meados da década<br />

passada, explodiu a moda das novas<br />

cantoras soul, incluindo Amy<br />

Winehouse e Duffy, as atenções<br />

finalmente convergiram sobre<br />

Sharon, celebrada como uma figura<br />

tutelar <strong>de</strong>las todas. Ela tem, no<br />

entanto, pouco ou nada a ver com<br />

essa vaga <strong>de</strong> artifício pop, diferença<br />

que justamente se comprova neste<br />

seu quarto álbum com os Dap-Kings.<br />

Voz calejada e rugosa, mas nem por<br />

menos acetinada, canta os pequenos<br />

dramas do quotidiano como<br />

tragédias bíblicas, acompanhada por<br />

majestosos arranjos <strong>de</strong> sopros e <strong>de</strong><br />

cordas. Não se vislumbra qualquer<br />

pretensão <strong>de</strong> ser original, ou<br />

minimamente actual. Sharon é o<br />

artigo genuíno, a verda<strong>de</strong>ira diva<br />

soul “velha escola” em todo o seu<br />

esplendor revivalista. A sua<br />

prestação no Meco (18 <strong>de</strong> Julho)<br />

anuncia-se, aliás, como um dos<br />

momentos mais altos do próximo<br />

Super Bock Super Rock. L.M.<br />

Meshell N<strong>de</strong>geocello<br />

Devil’s Halo<br />

Mercer Street, distri. PopStock<br />

mmmnn<br />

Intrigante, como<br />

sempre, Meshell.<br />

Nunca se sabe o que<br />

esperar <strong>de</strong>la a cada<br />

álbum. E já lá vão<br />

nove, ao longo <strong>de</strong><br />

uma carreira com quase vinte anos.<br />

“Devil’s Halo” é mais uma <strong>de</strong>ssas<br />

obras on<strong>de</strong> para além dos géneros –<br />

soul, rock, jazz, funk – expõe sempre<br />

intensida<strong>de</strong> e letras que<br />

complexificam temas <strong>de</strong> sexo,<br />

género, amor, política. Muitas vezes<br />

conotada com o centro do mercado,<br />

por ter sido uma das pioneiras do<br />

mo<strong>de</strong>rno R&B e por ter feito parte<br />

das apostas <strong>de</strong> Madonna na editora<br />

Maverick, a americana é alguém<br />

difícil <strong>de</strong> situar, mais aventureira e<br />

livre do que algumas das figuras<br />

conotadas com linguagens<br />

alternativas. Talvez o nova-iorquino<br />

Carl Hancock Rux seja alguém que<br />

se aproxime <strong>de</strong>la, na forma orgânica<br />

como se relaciona com a música.<br />

Mas mesmo assim nos últimos<br />

álbuns tem ido por outros<br />

territórios, nunca escolhendo<br />

trajectórias fáceis. Seria uma pena se<br />

o novo álbum – agora editado na<br />

Europa, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o ter sido em<br />

Dezembro, nos EUA – passasse<br />

<strong>de</strong>spercebido. Na maior parte das<br />

canções há uma voz profunda, um<br />

som encorpado, que começa por<br />

norma <strong>de</strong> forma subtil, segregando<br />

intimida<strong>de</strong>s, para ser <strong>de</strong>sconstruído<br />

com virulência. É uma obra diversa,<br />

que se <strong>de</strong>senvolve entre a<br />

envolvência jazzistica <strong>de</strong> “Tie one<br />

on” e o rock <strong>de</strong> “Brigh shiny<br />

morning”, <strong>de</strong>ixando entrever a cada<br />

audição uma nova <strong>de</strong>scoberta. V.B.<br />

Clássica<br />

Trio ao rubro<br />

Lang Lang estreia-se na<br />

gravação <strong>de</strong> música <strong>de</strong><br />

câmara ao lado <strong>de</strong> dois<br />

gigantes. Rui Pereira<br />

Tchaikovsky e Rachmaninov<br />

Trios com piano<br />

Lang Lang, Vadim Repin e Mischa<br />

Maisky<br />

DG 4778099<br />

mmmnn<br />

Dizer-se que em<br />

música <strong>de</strong> câmara<br />

os músicos <strong>de</strong>vem<br />

ter a capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> se contagiarem<br />

uns aos outros é,<br />

geralmente, um elogio. No entanto,<br />

quando o foco <strong>de</strong> contágio dá pelo<br />

nome <strong>de</strong> Mischa Maisky, <strong>de</strong>vemos<br />

ter reservas e prescrever uma<br />

quarentena artística ou, então, uma<br />

vacina contra o “ímpeto à flor da<br />

pele”.<br />

O cenário é o seguinte: três<br />

gran<strong>de</strong>s solistas, Lang Lang, Repin e<br />

Maisky, juntos para gravarem<br />

repertório russo. Ao que parece, foi<br />

Lang Lang quem escolheu o<br />

repertório e os músicos. Começaram<br />

a gravação com o Trio elegíaco <strong>de</strong><br />

Rachmaninov, um compositor<br />

maravilhoso mas cuja música já tem,<br />

por si só, um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />

clímaxes. Mischa Maisky é um<br />

músico ímpar e com imensas<br />

Lang Lang<br />

qualida<strong>de</strong>s mas, <strong>de</strong>sculpem-me a<br />

comparação, parece um daqueles<br />

condutores que se põe a acelerar<br />

antes do semáforo passar a ver<strong>de</strong>. A<br />

sua forma <strong>de</strong> tocar é arrebatadora,<br />

disso não restam dúvidas, e até po<strong>de</strong><br />

haver quem fique rendido ao seu<br />

encanto, ou paixão, mas uma outra<br />

forma mais contida <strong>de</strong> passar esse<br />

ímpeto favorece, na maior parte dos<br />

casos, a chamada expressão <strong>de</strong><br />

emoções na música e não se torna<br />

tão cansativa. A música <strong>de</strong><br />

Tchaikovsky, o Trio à memória <strong>de</strong><br />

um gran<strong>de</strong> artista, também tem esse<br />

arrebatamento que os músicos<br />

russos tão bem expressam e, justiça<br />

seja feita, resiste melhor à<br />

interpretação ao rubro <strong>de</strong>ste trio.<br />

O veredicto é o seguinte: um trio<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s solistas ao rubro; quem<br />

gostar <strong>de</strong> arrebatamento total, da<br />

primeira à última nota, <strong>de</strong>ve ir a<br />

correr comprar o disco; quem não<br />

for sensível a esse tipo <strong>de</strong><br />

interpretação e procurar uma<br />

expressão <strong>de</strong> emoções mais contida<br />

<strong>de</strong>ve esquecer que o disco existe.<br />

Jazz<br />

Miguel Amado com<br />

“groove”<br />

Miguel Amado<br />

This is Home<br />

Toneofapitch, distri. Dargil<br />

mmmnn<br />

Além <strong>de</strong> virtuoso<br />

executante no baixo<br />

eléctrico, Miguel<br />

Amado é um<br />

músico<br />

extremamente<br />

versátil, atributos que lhe têm valido<br />

participação regular em projectos<br />

tão distintos quanto o Lisbon<br />

Un<strong>de</strong>rground Music Ensemble<br />

(LUME), o trio/quarteto do<br />

guitarrista Pedro Madaleno, o grupo<br />

sPILL, o quinteto <strong>de</strong> Rodrigo<br />

Gonçalves ou o Septeto do Hot<br />

Clube. Para tocar na maior parte das<br />

faixas <strong>de</strong>ste segundo álbum em seu<br />

nome, Amado reuniu o trompetista<br />

João Moreira, o guitarrista André<br />

Fernan<strong>de</strong>s, o pianista/teclista Ruben<br />

Alves e o baterista Vicky, contando<br />

ainda com a participação especial do<br />

baixista Yuri Daniel e do baterista<br />

Alexandre Frazão numa faixa, do<br />

baterista Bruno Pedroso em duas<br />

faixas e do percussionista João<br />

Ferreira noutras quatro.<br />

Tudo começa bem com “Yellow<br />

box”, tema com um balanço<br />

irresistível e com belíssimas<br />

improvisações por João Moreira e<br />

pelo próprio Miguel Amado. O<br />

melhor do álbum é ouvido ainda em<br />

“The one you know”, “Fatherhood”<br />

(tema que apresenta Amado no<br />

contrabaixo, em<br />

trio com<br />

Pedroso e<br />

Fernan<strong>de</strong>s, n<strong>de</strong>s,<br />

e que soa<br />

como uma<br />

composição osição<br />

do<br />

guitarrista) rista)<br />

e “Five<br />

steps”,<br />

on<strong>de</strong><br />

mais<br />

uma vez<br />

se<br />

<strong>de</strong>staca<br />

João<br />

Moreira ra e<br />

o seu<br />

minucioso ioso<br />

controlo olo dos<br />

pedais <strong>de</strong> efeitos. Outras faixas,<br />

como a mais africana “Mojo dance”<br />

ou o explícito “Rock attempt”,<br />

ambas valorizadas pela prestação <strong>de</strong><br />

André Fernan<strong>de</strong>s, contribuem <strong>de</strong><br />

forma mais mo<strong>de</strong>sta para o sucesso<br />

do disco, sendo bem menos<br />

interessante o que se passa na faixatítulo<br />

e na escusada <strong>de</strong>monstração<br />

<strong>de</strong> virtuosismo <strong>de</strong> Amado e dos<br />

convidados Yuri Daniel e Alexandre<br />

Frazão numa versão <strong>de</strong> “Solar” (<strong>de</strong><br />

Miles Davis, o único não original do<br />

álbum). Absolutamente dispensável<br />

é a faixa <strong>de</strong> encerramento do álbum,<br />

na qual, com gosto bastante<br />

questionável, Amado e Ruben Alves<br />

<strong>de</strong>sfilam os seus instrumentos ao<br />

ritmo <strong>de</strong> quem vai apagar fogo.<br />

“This is Home” po<strong>de</strong>rá não<br />

garantir o interesse da ala mais<br />

purista <strong>de</strong> amantes do jazz, mas não<br />

<strong>de</strong>ixa por isso <strong>de</strong> estar recheado <strong>de</strong><br />

situações capazes <strong>de</strong> seduzir<br />

ouvidos mais sequiosos do<br />

tipo <strong>de</strong> “groove” raramente<br />

presente no tal jazz dito<br />

mais puro. Paulo<br />

Barbosa<br />

Miguel Amado: po<strong>de</strong> não<br />

interessar aos puristas,<br />

mas seduzirá os sequiosos<br />

<strong>de</strong> “groove”<br />

Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 55

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