Homens normais, tudo de excepcional - Fonoteca Municipal de Lisboa
Homens normais, tudo de excepcional - Fonoteca Municipal de Lisboa
Homens normais, tudo de excepcional - Fonoteca Municipal de Lisboa
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Sexta-feira<br />
7 Maio 2010<br />
www.ipsilon.pt<br />
Josh e Ben Safdie Delorean Vashti Bunyan Ruy Duarte <strong>de</strong> Carvalho Stooges Monks<br />
<strong>Homens</strong> <strong>normais</strong>, <strong>tudo</strong> <strong>de</strong> <strong>excepcional</strong><br />
The National, “High Violet”<br />
ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 7337 DO PÚ BLICO CO, E NÃO PODE SER VEN<br />
DIDO SEPARADAME ADAME<br />
NTE
Flash<br />
Sumário<br />
The National 6<br />
Rapazes <strong>normais</strong>, com um<br />
novo disco todo especial<br />
Vashti Bunyan 12<br />
Amor, rejeição<br />
e um concerto no Lux<br />
The Stooges + The Monks 18<br />
O punk antes do punk, em<br />
duas reedições históricas<br />
Cornelius Car<strong>de</strong>w 20<br />
Um compositor tão<br />
paradoxal como o século<br />
XX, na Culturgest-Porto<br />
Josh e Ben Safdie 24<br />
Os vencedores do<br />
Indie<strong>Lisboa</strong> em discurso<br />
directo<br />
Ruy Duarte <strong>de</strong> Carvalho 28<br />
Meteu-se num carro<br />
e fez a volta à África do Sul<br />
FIMFA 32<br />
Um segredo bem<br />
guardado há <strong>de</strong>z anos<br />
Ficha Técnica<br />
Directora Bárbara Reis<br />
Editor Vasco Câmara,<br />
Inês Nadais (adjunta)<br />
Conselho editorial Isabel<br />
Coutinho, Óscar Faria, Cristina<br />
Fernan<strong>de</strong>s, Vítor Belanciano<br />
Design Mark Porter, Simon<br />
Esterson, Kuchar Swara<br />
Directora <strong>de</strong> arte Sónia Matos<br />
Designers Ana Carvalho,<br />
Carla Noronha, Mariana Soares<br />
Editor <strong>de</strong> fotografia<br />
Miguel Ma<strong>de</strong>ira<br />
E-mail: ipsilon@publico.pt<br />
Gabriel Abrantes<br />
sem tréguas em Paris<br />
Gabriel Abrantes (Chapel<br />
Hill, EUA, 1984) é daqueles<br />
artistas que não dá<br />
<strong>de</strong>scanso à obra. Troca-lhe<br />
as voltas (Arte? Cinema?),<br />
confun<strong>de</strong>-lhe os lugares<br />
(“Black box”? Gran<strong>de</strong> ecrã?<br />
Cubo branco?) e mostra-a,<br />
generosa e furiosamente,<br />
em Portugal (on<strong>de</strong> foi o<br />
<strong>de</strong>stinatário do Prémio EDP<br />
Novos Artistas em 2009) e<br />
no mundo. Dele vimos há<br />
dias, no Indie<strong>Lisboa</strong>, o filme<br />
“History of Mutual Respect”<br />
(o júri do festival <strong>de</strong>u-lhe o<br />
Prémio Media Recording<br />
para a melhor curtametragem<br />
portuguesa a<br />
concurso); nos próximos<br />
meses, vamos po<strong>de</strong>r visitar<br />
duas exposições, uma lá<br />
fora e outra cá <strong>de</strong>ntro.<br />
Entre 11 <strong>de</strong> Junho e 5 <strong>de</strong><br />
Setembro, na capital<br />
francesa, Abrantes integra<br />
“Dynasty”, que reúne<br />
trabalhos <strong>de</strong> 40 artistas no<br />
Palais <strong>de</strong> Tokyo e no Musée<br />
d’Art Mo<strong>de</strong>rne <strong>de</strong> la Ville <strong>de</strong><br />
Paris. O comissariado é <strong>de</strong><br />
Fabrice Hergott e Marc-<br />
Olivier Wahler, e a colectiva<br />
tem como objectivo revelar<br />
“a sensibilida<strong>de</strong> artística<br />
emergente em França”.<br />
Gabriel Abrantes, que<br />
es<strong>tudo</strong>u na École National<br />
<strong>de</strong>s Beaux-Arts <strong>de</strong> Paris<br />
entre 2005 e 2006,<br />
apresentará dois filmes corealizados<br />
com Benjamin<br />
Crotty: “Visionary Iraq”, no<br />
Palais <strong>de</strong> Tokyo (on<strong>de</strong> será o<br />
primeiro artista português a<br />
expor <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />
transformação do edifício<br />
em centro <strong>de</strong> arte<br />
contemporânea), e uma<br />
obra inédita a ver no museu<br />
parisiense.<br />
Em Setembro, Gabriel<br />
Abrantes terá uma<br />
individual no Centro<br />
Cultural Vila Flor, em<br />
Guimarães: “Histories ies<br />
of Mutual Respect:<br />
Films by Gabriel<br />
Abrantes in<br />
Collaboration with<br />
Benjamin Crotty,<br />
Daniel Schmidt, Katie<br />
Widloski”. Em<br />
<strong>de</strong>staque, a produção<br />
fílmica e<br />
cinematográfica do<br />
artista/cineasta, das<br />
obras seminais, como as<br />
Spielberg vai adaptar “War Horse”,<br />
do escritor inglês Michael Morpurgo<br />
O artista português, Prémio EDP Novos Artistas em 2009, vai levar os seus trabalhos ao Palais<br />
<strong>de</strong> Tokyo e ao Musée d’Art Mo<strong>de</strong>rne <strong>de</strong> la Ville <strong>de</strong> Paris - a seguir, <strong>de</strong>sce à terra em Guimarães<br />
curtas-metragens “Olympia<br />
I” e “Olympia II” (2008),<br />
até às mais recentes,<br />
passando por “Too Many<br />
Daddies, Mommies and<br />
Babies”, o trabalho com<br />
que venceu o Prémio EDP.<br />
Ao todo, serão mostrados<br />
perto <strong>de</strong> <strong>de</strong>z filmes e<br />
ví<strong>de</strong>os, disponíveis em<br />
projecções e em monitores.<br />
Com a exposição, chegará<br />
um livro editado pelo<br />
próprio, com textos <strong>de</strong>,<br />
entre outros, Alexandre<br />
Melo e João Ribas, actual<br />
curador do MIT List Visual<br />
Arts Center, em Boston.<br />
Para explorar e revelar o<br />
processo <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong><br />
Gabriel Abrantes,<br />
<strong>de</strong>senvolvido em guiões,<br />
notas, colagens, <strong>de</strong>senhos e<br />
fotografias. José Marmeleira<br />
Steven Spielberg<br />
interessa-se pela I<br />
Guerra Mundial<br />
Steven Spielberg já é um veterano<br />
<strong>de</strong> filmes sobre a II Guerra Mundial<br />
(1939-1945). Com “O Resgate do<br />
Soldado Ryan” (1998), o cineasta<br />
trouxe <strong>de</strong> novo o conflito ao cinema<br />
e ganhou cinco Óscares; antes, com<br />
“A Lista <strong>de</strong> Schindler” (1993), tinha<br />
ganho sete. Entre outras obras<br />
sobre o tema, produziu ainda os<br />
filmes “As Ban<strong>de</strong>iras dos Nossos<br />
Pais” (2006) e “Cartas <strong>de</strong> Iwo Jima”<br />
(2006), ambos realizados por Clint<br />
Eastwood, e a série “Irmãos <strong>de</strong><br />
Armas” (2001), sobre um grupo <strong>de</strong><br />
soldados americanos que chega à<br />
Normandia no Dia D (1945). Muito<br />
recentemente, com a mesma<br />
equipa, voltou à II Guerra Mundial<br />
com “The Pacific” (2010), espécie<br />
<strong>de</strong> “Irmãos <strong>de</strong> Armas 2”, mas agora<br />
na frente do Pacífico.<br />
Entretanto, ficou a saber-se esta<br />
semana que Spielberg vai, pela<br />
primeira vez, abordar a I Guerra<br />
Mundial (1914-1918) em “War<br />
Horse”, adaptação do livro infantil<br />
com o mesmo nome do escritor<br />
inglês Michael Morpurgo. Publicado<br />
em 1982, o livro relata a amiza<strong>de</strong><br />
entre um rapaz inglês e um cavalo,<br />
que se separam quando <strong>de</strong>flagra a I<br />
Guerra Mundial e que voltam a<br />
cruzar-se no <strong>de</strong>curso do conflito.<br />
“War Horse” já foi adaptado para<br />
teatro e está em cena no National<br />
Theatre, em Londres. O filme da<br />
Dreamworks chegará aos cinemas<br />
dos EUA em Agosto <strong>de</strong> 2011, meses<br />
antes do aguardadíssimo “Tintin: o<br />
Segredo do Unicórnio”, também <strong>de</strong><br />
Spielberg.<br />
“Metrópolis” vai<br />
voltar, om mais 25<br />
minutos<br />
Realizado por Fritz Lang e estreado<br />
em Berlim em 1927, “Metrópolis” foi<br />
um dos filmes mais aclamados da<br />
história do cinema. Quase com duas<br />
horas e meia <strong>de</strong> duração, foi visto<br />
na sua totalida<strong>de</strong><br />
Algumas das imagens cortadas pela Paramount para “adaptar”<br />
o filme ao gosto médio americano foram recuperadas e vão ser<br />
incluídas numa nova versão, mais completa, do filme, a sair em DVD<br />
RUI GAUDÊNCIO<br />
ANNE-CHRISTINE POUJOULAT/ AFP<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 3
Flash<br />
Espaço<br />
Público<br />
Este espaço vai ser<br />
seu. Que filme, peça <strong>de</strong><br />
teatro, livro, exposição,<br />
disco, álbum, canção,<br />
concerto, DVD viu e<br />
gostou tanto que lhe<br />
apeteceu escrever<br />
sobre ele, concordando<br />
ou não concordando<br />
com o que escrevemos?<br />
Envie-nos uma nota até<br />
500 caracteres para<br />
ipsilon@publico.pt. E<br />
nós <strong>de</strong>pois publicamos.<br />
apenas por altura da estreia. As<br />
críticas e os lucros <strong>de</strong> bilheteira na<br />
Europa foram mornos e, por isso, a<br />
Paramount Pictures, o parceiro<br />
americano do estúdio alemão que<br />
produziu o filme, a UFA, retirou<br />
“Metrópolis” <strong>de</strong> circulação e fez<br />
alguns cortes drásticos na película,<br />
resultando em menos uma hora <strong>de</strong><br />
filme. Na altura, a Paramount<br />
justificou a <strong>de</strong>cisão dizendo que a<br />
montagem <strong>de</strong> Lang era complicada<br />
<strong>de</strong> mais para o público americano.<br />
A versão original não voltou a ser<br />
vista e pensou-se que tinha sido<br />
irreversivelmente <strong>de</strong>struída.<br />
Até 2008, altura em que a<br />
perseverança <strong>de</strong> Fernando Peña,<br />
arquivista <strong>de</strong> filmes argentino, foi<br />
recompensada. Há 20 anos que<br />
Peña ouvia falar na existência <strong>de</strong><br />
uma cópia do filme no Museo <strong>de</strong>l<br />
Cine <strong>de</strong> Buenos Aires, mas a<br />
burocracia impedia-o <strong>de</strong> chegar até<br />
ela. Há dois anos, conseguiu. E<br />
<strong>de</strong>scobriu mais 25 minutos <strong>de</strong> filme<br />
até aqui <strong>de</strong>sconhecidos.<br />
A versão completa da obra-prima<br />
<strong>de</strong> Fritz Lang foi exibida em<br />
Fevereiro no Festival <strong>de</strong> Cinema <strong>de</strong><br />
Berlim. Agora, o Film Forum, <strong>de</strong><br />
Nova Iorque, vai voltar a mostrar<br />
“The Complete Metropolis”, e a<br />
versão aumentada do filme vai<br />
mesmo ser editada em DVD, no<br />
final do ano, <strong>de</strong>pois da projecção<br />
em várias salas dos EUA.<br />
“Metrópolis” é o filme mudo mais<br />
icónico da sua época,<br />
principalmente pela ambição visual<br />
<strong>de</strong> Lang. Mas, até agora, não<br />
tínhamos a história completa.<br />
“Estes acrescentos são essenciais<br />
para a compreensão total da<br />
narrativa”, disse ao “New York<br />
Times” Noah Isenberg, professor <strong>de</strong><br />
cinema na The New School <strong>de</strong> Nova<br />
Iorque. As imagens são granuladas<br />
e, por isso, distinguem-se<br />
facilmente da versão restaurada em<br />
2001, na qual foram inseridas.<br />
Algumas são cenas mínimas, <strong>de</strong><br />
segundos, que ilustram as reacções<br />
das personagens e acentuam o seu<br />
estado <strong>de</strong> espírito. Mas também há<br />
planos <strong>de</strong> vários minutos que foram<br />
inteiramente cortados pela<br />
Paramount. Thin Man parece agora<br />
uma personagem muito mais<br />
sinistra, uma combinação <strong>de</strong> espião<br />
e <strong>de</strong>tective. E o seu assistente<br />
pessoal, que <strong>de</strong>saparece numa das<br />
cenas iniciais, <strong>de</strong>sempenha um<br />
papel muito maior.<br />
Ainda é o mesmo filme? Não<br />
totalmente. “Já não é um filme <strong>de</strong><br />
ficção científica. Agora é um filme<br />
que abrange muitos géneros, um<br />
épico sobre conflitos<br />
antiquíssimos”, argumenta Martin<br />
Koerber, arquivista e historiador<br />
alemão que supervisionou os<br />
restauros <strong>de</strong> 2001 e 2008.<br />
Os filmes mudos<br />
<strong>de</strong> Hitchcock<br />
vão ressuscitar<br />
Antes dos gran<strong>de</strong>s sucessos <strong>de</strong><br />
Hollywood, Alfred Hitchcock<br />
realizou uma série <strong>de</strong> filmes<br />
mudos, que já davam sinais do<br />
estilo, do trabalho <strong>de</strong> câmara e dos<br />
argumentos <strong>de</strong> suspense<br />
<strong>de</strong>senvolvidos pelo realizador nos<br />
trabalhos seguintes. Durante<br />
décadas, esses filmes estiveram<br />
esquecidos. Agora, o British Film<br />
Institute (BFI) vai restaurar nove<br />
<strong>de</strong>ssas obras e apresentá-las numa<br />
série <strong>de</strong> sessões públicas em 2012,<br />
como peça central <strong>de</strong> uma<br />
retrospectiva <strong>de</strong>dicada ao<br />
realizador. Embora o “The<br />
In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt” avance que as<br />
exibições farão parte das<br />
Olimpíadas Culturais, o programa<br />
artístico que <strong>de</strong>correrá em<br />
paralelo aos Jogos Olímpicos <strong>de</strong><br />
Londres, ainda não há<br />
confirmação.<br />
Alguns dos filmes<br />
serão projectados<br />
no BFI e outros<br />
serão musicados<br />
por músicos<br />
experimentais<br />
e farão parte<br />
do programa<br />
<strong>de</strong> diversos festivais <strong>de</strong> música. Da<br />
retrospectiva também fará parte<br />
uma exposição <strong>de</strong> objectos<br />
relacionados com os filmes e com<br />
as bandas sonoras do compositor<br />
Bernard Herrmann, que colaborou<br />
com Hitchcock em filmes como<br />
“Psycho”, “O Homem que Sabia<br />
Demasiado” ou “Vertigo - A Mulher<br />
que Viveu Duas Vezes”.<br />
“Queremos analisar a influência<br />
[<strong>de</strong> Hitchcock] no mundo actual”,<br />
justificou ao “In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt” Eddie<br />
Berg, director artístico do BFI. A<br />
O British Film Institute vai<br />
restaurar nove filmes a tempo<br />
dos Jogos Olímpicos <strong>de</strong> 2012<br />
directora do instituto, Amanda<br />
Neville, disse que a iniciativa irá<br />
“ressuscitar os filmes <strong>de</strong> Hitchcock<br />
que não estão na ponta da língua<br />
<strong>de</strong> toda a gente”. Alguns dos filmes<br />
precisam <strong>de</strong> restauro. “Três <strong>de</strong>les<br />
não po<strong>de</strong>rão ser projectados – a<br />
dimensão dos danos seria<br />
enorme”, acrescentou.<br />
Entre os filmes que serão<br />
restaurados e apresentados<br />
incluem-se “The Pleasure Gar<strong>de</strong>n”<br />
(1925), “The Lodger” (1926) e “The<br />
Farmer’s Wife” (1927).<br />
Todos aos <strong>de</strong>z anos<br />
da Tate Mo<strong>de</strong>rn<br />
O “frontman” dos Sonic Youth,<br />
Thurston Moore, e os<br />
portugueses Filipa Oliveira e<br />
Miguel Amado constam entre<br />
as <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> artistas,<br />
provenientes <strong>de</strong> todo o mundo<br />
(do Rio <strong>de</strong> Janeiro a Xangai),<br />
que foram convidados para<br />
fazer experiências na festa dos<br />
primeiros <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> vida da<br />
Tate Mo<strong>de</strong>rn. Des<strong>de</strong> que abriu<br />
portas, a 12 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 2000,,<br />
a galeria londrina <strong>de</strong>dicada à<br />
arte contemporânea recebeu<br />
45 milhões <strong>de</strong> visitantes,<br />
número com que se tornou o<br />
museu <strong>de</strong> arte contemporânea<br />
Mais <strong>de</strong> 45<br />
milhões <strong>de</strong><br />
visitantes<br />
já passaram<br />
pelo principal<br />
museu <strong>de</strong><br />
arte contemporânea<br />
do<br />
Reino Unido<br />
mais visitado do mundo. Só<br />
entre 2008 e 2009, a Tate<br />
Mo<strong>de</strong>rn contabilizou 4,65<br />
mihões <strong>de</strong> entradas (uma média<br />
<strong>de</strong> 13 mil por dia); no mesmo<br />
período, o Centro Pompidou, <strong>de</strong><br />
Paris, ficou-se por 3,53 milhões<br />
<strong>de</strong> visitantes e o MoMA, <strong>de</strong> Nova<br />
Iorque, pelos 2,8 milhões.<br />
O início das comemorações da<br />
primeira década da galeria está<br />
marcado para o próprio dia do<br />
aniversário, 12, com um <strong>de</strong>sfile<br />
<strong>de</strong> 300 crianças que,<br />
acompanhadas <strong>de</strong> uma<br />
banda, irão caminhar até ao<br />
edifício com um bolo <strong>de</strong><br />
Além <strong>de</strong> fazer<br />
experiências<br />
com a sua<br />
guitarra,<br />
Thurston<br />
Moore<br />
também vai<br />
ler poesia nos<br />
<strong>de</strong>z anos da<br />
Tate Mo<strong>de</strong>rn<br />
aniversário que será<br />
distribuído pelos visitantes.<br />
Mas o principal item dos<br />
festejos é mesmo o “No Soul<br />
For Sale – A Festival for<br />
In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nts”, que <strong>de</strong>corre<br />
<strong>de</strong> 14 a 16 <strong>de</strong>ste mês. É<br />
justamente no programa<br />
<strong>de</strong>ste festival que a dupla <strong>de</strong><br />
curadores Filipa Oliveira +<br />
Miguel Amado (que já tinha<br />
participado na primeira<br />
edição do No Soul For<br />
Sale em Junho do<br />
ano passado, em<br />
Nova Iorque,<br />
com o projecto<br />
“If you don’t<br />
know what the<br />
South is it’s<br />
simply<br />
because you<br />
are from<br />
the<br />
North”,<br />
incluindo<br />
trabalhos<br />
<strong>de</strong> Julieta<br />
Aranda,<br />
Lilibeth<br />
Cuenca<br />
Rasmussen,<br />
Carlos Motta<br />
e Miguel<br />
Palma) aparece<br />
ao lado <strong>de</strong><br />
artistas como<br />
Martin Creed, Prémio Turner<br />
em 2001. A programação do<br />
festival visa misturar diversos<br />
tipos <strong>de</strong> disciplinas, das artes<br />
plásticas à música, do cinema à<br />
poesia, e culminará na criação,<br />
sem entraves na liberda<strong>de</strong><br />
criativa, <strong>de</strong> uma al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> arte<br />
global. Thurston Moore, por<br />
exemplo, vai recitar poesia do<br />
seu “Ecstatic Peace Poetry<br />
Journal” e <strong>de</strong>dicar-se à<br />
exploração das artes visuais e<br />
da música experimental.<br />
Durante os três dias do festival,<br />
a Tate Mo<strong>de</strong>rn terá as portas<br />
abertas ao público e, nas duas<br />
primeiras noites, só fechará à<br />
meia-noite, aproveitando a<br />
boleia da iniciativa nacional<br />
“Museums at Night”.<br />
A pretexto dos <strong>de</strong>z anos, os<br />
visitantes são também<br />
convidados a publicar as suas<br />
memórias relacionadas com a<br />
galeria, e nomeadamente<br />
ví<strong>de</strong>os e fotos das suas<br />
experiências com as peças da<br />
Unilever Series (um programa<br />
<strong>de</strong> instalações que já levou<br />
diversos artistas a intervir no<br />
Hall das Turbinas da Tate<br />
Mo<strong>de</strong>rn, que na sua primeira<br />
encarnação foi uma central<br />
eléctrica), que serão<br />
posteriormente compilados<br />
num filme.<br />
4 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
AGENDA CULTURAL FNAC<br />
entrada livre<br />
entrada livre<br />
APRESENTAÇÃO AO VIVO LANÇAMENTO EXPOSIÇÃO<br />
LANÇAMENTO<br />
OBJECTIVOS DE DESENVOLVIMENTO<br />
DO MILÉNIO<br />
No Ano Europeu <strong>de</strong> Luta Contra a Pobreza e a Exclusão Social, a Fnac apresenta uma selecção das<br />
imagens premiadas no concurso <strong>de</strong> fotografia, organizado pelo Instituto Superior <strong>de</strong> Engenharia do Porto<br />
e pela Escola Superior <strong>de</strong> Música e Artes do Espectáculo.<br />
11.05. 18H00 FNAC STA. CATARINA<br />
AO VIVO<br />
ANA BEATRIZ MANZANILLA<br />
E PEDRO SAGLIMBENI MUÑOZ<br />
Duos para violino e viola <strong>de</strong> Villa-Lobos e Martinu<br />
Músicos venezuelanos resi<strong>de</strong>ntes em <strong>Lisboa</strong> que fazem parte da Orquestra Gulbenkian e da Orquestra<br />
Sinfónica Portuguesa.<br />
07.05. 22H00 FNAC CASCAISHOPPING 09.05. 17H00 FNAC CHIADO<br />
AO VIVO<br />
NU SOUL FAMILY<br />
Never Too Late To Dance<br />
Virgul (Da Weasel) e Dino (Expensive Soul) são a cara dos Nu Soul Family. A música <strong>de</strong> dança conhece<br />
uma versão eclética entre momentos pop, house e disco.<br />
08.05. 17H00 FNAC CASCAISHOPPING<br />
13.05. 22H00 FNAC MAR SHOPPING<br />
14.05. 22H00 FNAC NORTESHOPPING<br />
AO VIVO<br />
TIAGO BETTENCOURT<br />
Em Fuga<br />
Após o sucesso <strong>de</strong> O Jardim, com o single Canção Simples, Tiago Bettencourt volta à Fnac para uma<br />
actuação ao vivo do seu último disco, gravado entre o Canadá e <strong>Lisboa</strong>.<br />
14.05. 21H30 FNAC COLOMBO<br />
15.05. 22H00 FNAC NORTESHOPPING<br />
16.05. 17H30 FNAC CASCAISHOPPING<br />
EXPOSIÇÃO<br />
UMA FOTO DE CADA VEZ<br />
Fotografias <strong>de</strong> Gonçalo Cadilhe<br />
Gonçalo Cadilhe fotografa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que iniciou a sua carreira <strong>de</strong> viajante, há quase vinte anos, mas sempre<br />
canalizou a sua energia para a produção literária. No entanto, a pequena selecção <strong>de</strong> fotografias aqui<br />
reunida não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> piscar o olho à sua produção literária.<br />
18.04. - 12.05.2010 FNAC COLOMBO<br />
Consulte todos os eventos da Agenda,<br />
assim como outros conteúdos culturais Fnac em<br />
Apoio:<br />
15.05. 17H00 FNAC GAIASHOPPING<br />
21.05. 22H00 FNAC ALMADA<br />
22.05. 17H00 FNAC ALFRAGIDE<br />
21.05. 22H00 FNAC LEIRIASHOPPING<br />
22.05. 22H00 FNAC COIMBRA<br />
23.05. 17H00 FNAC ALMADA
O caso <strong>de</strong> amor com os National continua. Porque eles f<br />
personagens grandiosas <strong>de</strong> um épico. Ao quinto disco, “High<br />
como os U2 ou ser a melhor banda do mundo. Retrato do<br />
É segunda-feira, <strong>de</strong>z da manhã em<br />
Nova Iorque e há em Matt Berninger,<br />
o barítono que li<strong>de</strong>ra os National, algo<br />
diferente, pelo menos tendo em<br />
conta as conversas mantidas com ele<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que falámos pela primeira vez<br />
há cinco anos: as palavras não lhe<br />
saem entarameladas, não há oscilações<br />
entre monólogos sorumbáticos<br />
e explosões verborreicas inacabáveis,<br />
<strong>tudo</strong> no discurso parece pon<strong>de</strong>rado.<br />
Resumindo: está, surpreen<strong>de</strong>ntemente,<br />
sóbrio.<br />
“Eu não bebo assim tanto”, respon<strong>de</strong><br />
com um certo acossamento. Anos<br />
antes, este homem era o primeiro a<br />
brincar com a sua fama <strong>de</strong> bebedor<br />
compulsivo. Agora, casado e pai, perto<br />
<strong>de</strong> se tornar uma estrela a sério com<br />
“High Violet”, há nele certos cuidados:<br />
“Nunca começo a beber antes da noite<br />
e só bebo no palco, mas antes e <strong>de</strong>pois<br />
do concerto não bebo”, repete.<br />
Agora Matt Berninger é pai e não<br />
bebe. Isto é uma gran<strong>de</strong> diferença<br />
face ao que lhe conhecíamos: no Sudoeste,<br />
em 2007, não largou uma<br />
garrafa <strong>de</strong> Porto durante a conversa<br />
<strong>de</strong> uma hora que mantivemos antes<br />
do concerto. No ano seguinte, na Au-<br />
KEITH KLENOWSKI<br />
The National<br />
Champanhe nas
fazem <strong>de</strong> nós, gente angustiada com as suas banalida<strong>de</strong>s,<br />
Violet”, a banda <strong>de</strong> Matt Berninger tem <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir entre ser<br />
artista neste momento da sua vida. João Bonifácio<br />
la Magna, em <strong>Lisboa</strong>, nem chegou a<br />
haver a entrevista marcada, porque<br />
estava entretido a beber e a conversar<br />
com fãs e esqueceu-se da conversa<br />
combinada.<br />
Antes do turbilhão <strong>de</strong> digressões<br />
em que “Boxer” enfiou o grupo, Berninger<br />
era uma personagem menos<br />
reservada – com a mesma quantida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> angústia que hoje lhe notamos,<br />
mas um pouco menos <strong>de</strong> precaução<br />
na exposição. A pureza em diálogo<br />
nessa altura era tanta que no Sudoeste<br />
contou-nos o amor <strong>de</strong> Bryan Davenport<br />
por erva, revelou-nos que na<br />
banda ninguém tomava drogas duras.<br />
Depois acrescentou, quase com vergonha:<br />
“Não sei, se calhar <strong>de</strong>víamos<br />
tomar”.<br />
Bryan Davenport, já agora, é o baterista<br />
maravilha, <strong>de</strong>spenteado, barbudo<br />
e tremendamente bonito, irmão<br />
<strong>de</strong> Scott, o careca barbeado do<br />
baixo pulsante. O resto da banda é<br />
composto pelos gémeos Bryce e Aaron<br />
Dessner, os lí<strong>de</strong>res das guitarras<br />
da banda.<br />
“Mal acabam os concertos vou para<br />
o hotel <strong>de</strong>itar-me ou ler”, diz-nos<br />
Berninger. Um dos gémeos Dessner,<br />
antes do concerto da Aula Magna,<br />
contara-nos o mesmo, acrescentando<br />
um pormenor: Berninger ia logo para<br />
o hotel não por uma questão ética,<br />
mas sim “para telefonar à mulher,<br />
que quer saber on<strong>de</strong> ele anda”.<br />
A mulher <strong>de</strong> Matt Berninger (que,<br />
tal como os restantes membros da<br />
banda, vem <strong>de</strong> Cincinnati, Ohio, e é<br />
um produto da classe média local)<br />
Capa<br />
nossas sombras
tem as suas razões para querer<br />
manter o marido em ré<strong>de</strong>a curta: no<br />
Sudoeste Berninger dizia-nos, com<br />
mais um dos muitos cigarros que fuma<br />
quase a cair-lhe da mão: “Já viste<br />
a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mulheres bonitas<br />
que estão ali fora? Jesus, às vezes olho<br />
para estas mulheres e penso ‘Eu gostava<br />
<strong>de</strong> fazer amor com uma mulher<br />
assim’. Mas <strong>de</strong>pois penso na minha<br />
namorada [à data não estavam casados]<br />
e...”. E ficou a olhar para o chão<br />
com um ar tão comiserado consigo<br />
mesmo que parecia uma das personagens<br />
das suas canções.<br />
Uma boa parte do charme <strong>de</strong>ste<br />
quinteto <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>s bem<br />
marcadas resi<strong>de</strong> nesta simultânea<br />
consciência e fascínio com o pecado.<br />
Ninguém disse que era preciso pecar<br />
para haver culpa – e Berninger sabe<br />
bem que se po<strong>de</strong> sentir uma avassaladora<br />
culpa só por se pensar em<br />
pecar.<br />
“Quer dizer, isto não são problemas,<br />
não são verda<strong>de</strong>iros problemas,<br />
mas todas as canções dos National<br />
são sobre isso”, disse ele nessa noite,<br />
repetidas vezes.<br />
“Isso” é querer e não po<strong>de</strong>r, fazer<br />
e “saber que se está a fazer merda”:<br />
a comichão versus a razão, dicotomia<br />
usada nas canções dos últimos dois<br />
discos dos National, “Alligator”<br />
(2005) e “Boxer” (2007), até à exaustão,<br />
e que lhes valeu uma crescente<br />
legião <strong>de</strong> fãs, invariavelmente literatos<br />
e abusadores <strong>de</strong> medicamentos<br />
<strong>de</strong> prescrição: membros da geração<br />
recibo ver<strong>de</strong>, da geração a prazo, da<br />
geração sem poiso.<br />
KEITH KLENOWSKI<br />
A perfeição da imperfeição<br />
As angústias <strong>de</strong> Berninger são as dos<br />
fãs e os fãs envelhecem ao mesmo<br />
tempo que Berninger, como se houvesse<br />
entre eles um miraculoso<br />
“update” <strong>de</strong> angústia que os mantivesse<br />
em sintonia. Cada vez que um<br />
muda <strong>de</strong> angústia os outros também<br />
e assim continuam o seu caso <strong>de</strong><br />
amor.<br />
O que nos traz <strong>de</strong> volta à mudança<br />
no discurso <strong>de</strong> Berninger e às questões<br />
em jogo neste momento <strong>de</strong>cisivo na<br />
vida nos National em que eles lançam<br />
“High Violet”.<br />
A banda tem vindo a subir as vendas<br />
a cada disco, e “Boxer” atingiu os 350<br />
mil exemplares só nos EUA, o que nesta<br />
altura da indústria, para uma banda<br />
<strong>de</strong>sta dimensão, é extraordinário.<br />
De “High Violet” espera-se que expluda,<br />
embora, como Berninger nos<br />
disse esta semana, com eles “não há<br />
explosões, há um constante crescendo”.<br />
Mas não é só em termos <strong>de</strong> dimensão<br />
da banda que estão numa<br />
encruzilhada: eles têm <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir entre<br />
serem como os U2 ou serem a melhor<br />
banda do mundo.<br />
Tinham ainda mais um dilema pela<br />
frente: “Alligator” e “Boxer” não foram<br />
apenas discos perfeitos, foram os<br />
discos perfeitos na altura perfeita,<br />
com a evolução perfeita para uma geração<br />
reconhecida pela sua imperfeição.<br />
O que fazer a seguir?<br />
Foi com esses problemas que meio<br />
milhão da melhor gente que aí anda<br />
se relacionou: com o pateta alegre<br />
que cantava “I used to be carried in<br />
the arms of cheerlea<strong>de</strong>rs”, com o romântico<br />
<strong>de</strong>sesperado que gritava “I<br />
won’t fuck us over”, com o mentiroso<br />
confiante nas suas mentiras que<br />
dizia “We’ll stay insi<strong>de</strong> ‘till somebody<br />
finds us do whatever the tv tells us”.<br />
Meio milhão da melhor gente que<br />
tem estas frases tatuadas na re<strong>de</strong> neuronal,<br />
porque elas são simultaneamente<br />
grandiosas e íntimas – e é esse,<br />
tanto a nível lírico como a nível musical,<br />
o trunfo dos National: conseguirem<br />
que algo soe íntimo e tornar<br />
esse íntimo épico.<br />
Como é que eles – problemáticos<br />
profissionais – podiam resolver este<br />
problema sem enlouquecer?<br />
Resposta: não podiam e enlouqueceram.<br />
Como é que eles escolheram o caminho<br />
a seguir?<br />
Resposta: não escolheram, estava<br />
mesmo ali.<br />
O que é que eles fizeram?<br />
Juntaram o melhor dos dois mundos<br />
anteriores.<br />
Mais importante que <strong>tudo</strong>: “High<br />
Violet”, vai fazer <strong>de</strong>les a melhor banda<br />
do mundo?<br />
Na mente <strong>de</strong> Berninger<br />
Retrato do artista neste momento da<br />
sua vida: “Tenho uma filha <strong>de</strong> 16 meses<br />
e isso mudou-me bastante. Quando<br />
se tem filhos o mundo <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser<br />
sobre nós – bem, infelizmente continuo<br />
obsessivo comigo próprio. Começa-se<br />
a tentar perceber como melhorar<br />
o mundo só que isso traz ainda<br />
mais raiva porque não só não conseguimos<br />
resolver nada como ainda por<br />
cima não po<strong>de</strong>mos fugir da responsabilida<strong>de</strong>.<br />
Não po<strong>de</strong>mos mais querer<br />
que <strong>tudo</strong> se foda. Antes podíamos<br />
simplesmente ir para uma barraca<br />
longe <strong>de</strong> <strong>tudo</strong> e mandar <strong>tudo</strong> e todos<br />
– problemas, responsabilida<strong>de</strong>s, mulheres,<br />
dignida<strong>de</strong> – para o caralho.<br />
Agora tem <strong>de</strong> se querer saber, temos<br />
<strong>de</strong> nos importar. E para ser honesto,<br />
agora nós importamo-nos com muita<br />
coisa. Mas não é fácil”.<br />
Este é um tratado sobre a mente<br />
<strong>de</strong> Berninger. A oscilação entre o<br />
“eu” e o “nós” é representativa da<br />
confusão entre o caso particular e a<br />
generalização, confusão que o leva a<br />
tantos labirintos lógicos, mas, simultaneamente,<br />
dá às suas canções uma<br />
universalida<strong>de</strong> nada negligenciável<br />
(ele tem um talento imenso em transformar<br />
um problema seu numa canção<br />
em que todos se possam rever).<br />
A assumpção <strong>de</strong> um mar <strong>de</strong> diferença<br />
entre o que é certo, o que nos<br />
dizem que é certo, o que nós queremos<br />
fazer e o que nós achamos que<br />
<strong>de</strong>vemos fazer está representada<br />
naquele parágrafo – e é <strong>de</strong>stas múltiplas<br />
hipóteses que nascem as canções<br />
dos National, é esta complexida<strong>de</strong><br />
que atrai a multidão simultaneamente<br />
bibliófila e beberrona que<br />
os segue.<br />
(É curioso reparar como os fãs dos<br />
National são parecidos com os National:<br />
gente <strong>de</strong> classe média, média<br />
alta, angustiada com as suas banali-<br />
Matt<br />
Berninger<br />
entre os<br />
gémeos Bryce<br />
e Aaron<br />
Dessner,<br />
guitarristas;<br />
atrás, à<br />
direita, Bryan<br />
Davenport,<br />
baterista; à<br />
esquerda o<br />
irmão Scott, o<br />
baixo<br />
pulsante dos<br />
National<br />
“É daí que vem a tristeza e a raiva <strong>de</strong>stas canções – das m<br />
toda a gente: queremos ser mais românticos e agradar à nossa m<br />
medrosos. E é muito difícil ser <strong>tudo</strong> isso”<br />
8 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
da<strong>de</strong>s, fechada sobre a sua cabeça,<br />
gente tímida capaz <strong>de</strong> irrupções psicóticas<br />
ou <strong>de</strong> manifestações <strong>de</strong> exibicionismo<br />
ou <strong>de</strong>cadência a milhas<br />
do seu comportamento normal. Frígidos<br />
emocionais capazes <strong>de</strong> um<br />
gran<strong>de</strong> coração. Não há como não<br />
gostar <strong>de</strong>les – isto é, <strong>de</strong> todos nós)<br />
O parágrafo citado vinha a propósito<br />
<strong>de</strong> “Afraid of everyone”, uma das<br />
novas canções, particularmente emblemática<br />
da viragem temática que<br />
“High Violet” encerra. Berninger está<br />
convencido <strong>de</strong> que este disco é<br />
radicalmente diferente dos anteriores.<br />
Mas Berninger não toca um único<br />
instrumento.<br />
“Para mim, vistos agora, ‘Boxer’ e<br />
‘Alligator’ são mundos <strong>de</strong> fantasia e<br />
‘High Violet’ é um disco <strong>de</strong> alguém<br />
que se importa. É um disco em que se<br />
diz: ‘Afinal <strong>tudo</strong> importa’. Tudo importa,<br />
o que torna <strong>tudo</strong> mais assustador.<br />
Mas também mais recompensador”,<br />
diz, antes <strong>de</strong> lançar: “É um disco<br />
com o real lá <strong>de</strong>ntro”.<br />
Este é o facto fundamental: Berninger<br />
é pai e um solipsista – e um solipsista<br />
perante a paternida<strong>de</strong>, leva um<br />
nó, um “angustiante” nó no seu esquema<br />
<strong>de</strong> sobrevivência. Esse esquema<br />
<strong>de</strong> sobrevivência (fugir) <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong><br />
ser eficaz quando há um ser que não<br />
sai do mesmo lugar (a filha), pelo que<br />
a angústia retorna e tem <strong>de</strong> ser canalizada<br />
para fora <strong>de</strong> casa. De on<strong>de</strong>: “Eu<br />
tive <strong>de</strong> começar a olhar para o mundo<br />
outra vez”. De on<strong>de</strong>: os outros discos<br />
são <strong>de</strong> fantasia e este é sobre o real.<br />
Toda a mudança pessoal implica<br />
uma revisão do passado, mas aqui é<br />
notório que Berninger tenta ver a obra<br />
anterior com olhos mais positivos.<br />
Recordando “Alligator”: “Aquelas afirmações<br />
grandiloquentes como ‘I used<br />
to be carried in the arms of cheerlea<strong>de</strong>rs’,<br />
muito disso é fantasia ou ilusão<br />
– alguém que em <strong>de</strong>sespero se ima-<br />
mesmas coisas que obcecam<br />
mulher, queremos ser menos<br />
Comentário<br />
João<br />
Bonifácio<br />
E finalmente o rock<br />
é perigoso<br />
Eles não fazem as meninas tirar as cuecas e os meninos<br />
tomar drogas. Eles fazem as mulheres divorciar-se<br />
e os homens irem à farmácia buscar medicamentos.<br />
Os National são assunto <strong>de</strong> gente gran<strong>de</strong>. E isso sim,<br />
é perigoso.<br />
N<br />
ão é propriamente lisonjeiro para o rock’n’roll que a frase<br />
paradigmática que marca o início da sua história seja “A whop<br />
bop-a-lu a whop bam boo”. E não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser sintomático que<br />
quem melhor a proferiu, Little Richard, fosse um homossexual<br />
que aí fingia ser um galifão com uma mulher em cada esquina.<br />
Nessa maravilhosa canção traçou-se o caminho do rock’n’roll durante<br />
décadas: gente com esqueletos no armário transforma-se numa outra coisa<br />
que sempre <strong>de</strong>sejou ou sempre achou que <strong>de</strong>via ser, e o sexo era laudado<br />
como objectivo único da vida. A mitologia transformou o rock’n’roll na<br />
banda-sonora do sexo, usando para isso todos os truques possíveis – menos<br />
palavras bem medidas.<br />
Tivemos décadas disto e, acima <strong>de</strong> <strong>tudo</strong>, tivemos a mitificação “ad nauseum”<br />
disto, que atingiu o zénite quando alguém se lembrou <strong>de</strong> dizer que<br />
os Rolling Stones eram perigosos. Porquê? Porque faziam as meninas tirar as<br />
cuecas e punham os rapazes a tomar drogas. Destruíam os lares.<br />
Não se duvida, mas falta acrescentar um pormenor: um pouco <strong>de</strong> literatura<br />
diz-nos que as meninas sempre foram céleres a tirar as cuecas, mesmo que<br />
sempre tenham sido magistrais a escon<strong>de</strong>r essa sua excelsa qualida<strong>de</strong>. Em “O<br />
Cálice e a Espada”, Riane Eisler fala-nos mesmo <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s mais próximas<br />
<strong>de</strong> regimes matriarcais em que o amor era livre e poligâmico. E recordando<br />
a “Me<strong>de</strong>ia” será difícil sustentar que os lares só começaram a ser <strong>de</strong>struídos<br />
no dia em que as cachopas viram um sujeito <strong>de</strong> lábio <strong>de</strong> boi a berrar.<br />
Que não se diminua o valor do rock’n’roll, tanto musical como sociológico.<br />
Mas que não se lhe atribua qualquer perigo – a explosão do rock na década<br />
<strong>de</strong> 60 é simples consequência da moral sufocante<br />
dos anos 50 que por sua vez é consequência da<br />
Os Stones sempre<br />
foram brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong><br />
adolescentes. Os<br />
National são assunto<br />
<strong>de</strong> gente gran<strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> guerra. O rock estava no lugar certo no<br />
momento certo.<br />
A questão é que para não se ser alinhado é preciso<br />
ter-se consciência do que está em jogo e para<br />
se ser rebel<strong>de</strong> é preciso – ao contrário do título do<br />
filme <strong>de</strong> Nick Ray – alguma causa. E isto implica<br />
inteligência e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> usar as palavras.<br />
Com a <strong>de</strong>vida excepção do primeiro álbum dos<br />
Velvet Un<strong>de</strong>rground, isto só surgiu, no rock, no<br />
final da década <strong>de</strong> 70 com os Joy Division. Ian Curtis<br />
fez o favor <strong>de</strong> acabar <strong>de</strong>pressa com qualquer veleida<strong>de</strong> intelectual que o<br />
rock pu<strong>de</strong>sse ter e ainda assim dificilmente se po<strong>de</strong>rá sustentar que os Joy<br />
Division não fossem uma banda adolescente. Os seus seguidores, com o suposto<br />
poeta maldito Ian McCuloch à cabeça, i<strong>de</strong>m.<br />
Andámos muitos anos assim até que os Radiohead conseguiram um feito<br />
extraordinário: fazer com que <strong>tudo</strong> na sua música, do uso <strong>de</strong> ruídos passando<br />
pela forma como o seu vocalista usava a voz ou as suas estranhas imagens<br />
literárias, se tornasse um símbolo da <strong>de</strong>sagregação emocional que é marca<br />
do século XXI. Foi a primeira vez que o rock esteve próximo <strong>de</strong> ser adulto<br />
sem ser balofo (ao contrário, por exemplo, dos Pink Floyd).<br />
É por isso que dizemos sem o mínimo pudor que os National são verda<strong>de</strong>iramente<br />
a primeira banda <strong>de</strong> rock’n’roll perigosa que existiu ao cimo<br />
da Terra.<br />
Todos os discos dos National são uma variação “ad infinitum” sobre aquilo<br />
a que po<strong>de</strong>ríamos chamar “os indiferenciados”: gente que se <strong>de</strong>staca pela<br />
sua absoluta falta <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, gente que não hesita em hesitar, que caminha<br />
passo firme para o tropeção, gente <strong>de</strong>sconfortável com a sua temperatura,<br />
que não suporta o pouco peso que tem na vida dos outros.<br />
Mas ao contrário dos Stones, as meninas que ouvem pela primeira vez os<br />
National não vão a correr trocar fluidos ou experimentar os simpáticos efeitos<br />
do Rohypnol. A <strong>de</strong>scarga épica e emocional que os National produzem,<br />
associada à constante repetição <strong>de</strong> aforismos eficazes, levam a uma segunda<br />
atenção ao texto. E o texto, que à partida po<strong>de</strong> ser lido como simples confirmação<br />
<strong>de</strong> que a vida é por norma uma merda, revela-se <strong>de</strong> uma complexida<strong>de</strong><br />
rara, abraça o erro, a queda e o disparate, sem nunca os glorificar (e isto é<br />
extraordinário no rock), comove-se por quem tropeça, não sabe se há-<strong>de</strong> ser<br />
hedonista e quando o é arrepen<strong>de</strong>-se.<br />
Isto é: está i<strong>de</strong>ologicamente contra <strong>tudo</strong> o que os Stones representam. O<br />
discurso dos National é o da dúvida incessante, da culpa e do horror à culpa,<br />
do questionamento constante da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, do <strong>de</strong>sdobramento<br />
constante das encruzilhadas que se apresentam ao ser humano.<br />
Eles não fazem as meninas tirar as cuecas e os meninos tomar drogas. Eles<br />
fazem as mulheres divorciar-se e os homens irem à farmácia buscar medicamentos.<br />
Pela simples razão <strong>de</strong> nunca ninguém no rock ter pensado tanto e<br />
<strong>de</strong> forma tão apelativa com Matt Berninger.<br />
Os Stones sempre foram uma brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> adolescentes da mesma forma<br />
que tomar drogas sempre foi brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> adolescentes, mesmo quando<br />
praticada por adultos, se não for pensada, se apenas for hedonismo puro.<br />
Ao contrário, os National são assunto <strong>de</strong> gente gran<strong>de</strong>. É a diferença entre<br />
um tipo sentir-se um super-homem porque toma a droga X, ou aguentar as<br />
angústias e calar porque tem crianças para tratar. E isso sim, é perigoso, e<br />
agora sim, há perigo numa guitarra eléctrica.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 9
ABBEY DRUCKER<br />
gina melhor do que é, <strong>de</strong> forma<br />
mais ou menos patética. Mas isso também<br />
po<strong>de</strong> ser comovente. Se o nosso<br />
passado não é glorioso, qual o problema?<br />
Porque não havemos <strong>de</strong> inventar<br />
que fomos carregados em ombros por<br />
‘cheerlea<strong>de</strong>rs’?”<br />
Faz o mesmo exercício com “Boxer”:<br />
“‘Boxer’ não era sobre casais a<br />
esgadanharem-se. Era sobre as pessoas<br />
fecharem as portas, <strong>de</strong>sligarem-se<br />
do mundo exterior, procurarem uma<br />
zona <strong>de</strong> conforto. Era uma rejeição<br />
do mundo exterior, mas eles apreciavam<br />
a solidão. Eles não vão matar-se<br />
um ao outro, eles escolheram estar<br />
sozinhos”.<br />
“‘High Violet’ é o oposto. É a escolha<br />
da abertura ao mundo como fuga ao<br />
sufoco. É um disco que confronta o que<br />
há por aí. Li<strong>de</strong> com o que lidar – tomar<br />
<strong>de</strong>cisões como viver em Nova Iorque<br />
ou no campo ou como gerir o que os<br />
outros pensam <strong>de</strong> nós, ou a paranóia<br />
informativa –, é um disco sobre o impacto<br />
do exterior”. Só mais uma frase:<br />
“Este é um disco <strong>de</strong> alguém que esteve<br />
fechado sobre si mesmo e está <strong>de</strong> novo<br />
a tentar entrar no mundo – não porque<br />
queira, mas porque a isso foi obrigado<br />
– e a tentar resolver problemas. Obviamente,<br />
não é um caminho cheio <strong>de</strong><br />
felicida<strong>de</strong>”. Isto lembra-vos alguém?<br />
A chatice da classe média<br />
O método <strong>de</strong> trabalho dos National é<br />
simples: os gémeos Dessner mandam<br />
a Berninger malhas <strong>de</strong> guitarras por<br />
e-mail, e às que o barítono diz que sim<br />
toda a banda se junta para recriar o<br />
material. Como Berninger reescreve<br />
obsessivamente as letras as canções<br />
acabam por levar milhentas voltas.<br />
Os gémeos Bryce a Aaron Dessner<br />
são os mais musicais da banda, no<br />
sentido em que são os que têm mais<br />
preparação académica. Bryce es<strong>tudo</strong>u<br />
na Yale School of Music e, segundo o<br />
“New York Times”, Steve Reich – com<br />
quem já colaborou – é fã da banda.<br />
“O que trabalha mais é o Bryce. O<br />
Bryan é o mais emocional. Eu sou o<br />
mais chato”, dizia Berninger no Sudoeste.<br />
Para “High Violet” exce<strong>de</strong>ram-se<br />
na sua obsessão com fazerem algo novo.<br />
Berninger recusou uma vintena<br />
<strong>de</strong> esquissos <strong>de</strong> canções porque eram<br />
<strong>de</strong>dilhadas. Queria guitarras eléctricas<br />
e <strong>de</strong>u como <strong>de</strong>finição do som: “alcatrão<br />
quente”.<br />
“Tínhamos feito alguns dos melhores<br />
<strong>de</strong>dilhados que alguma vez ouvi”,<br />
disse Bryce. “E ele atirou-os todos para<br />
o lixo”. Todos não: um ou outro<br />
ouvem-se em fundo em duas ou três<br />
canções.<br />
Para algumas canções gravaram 80<br />
versões, para no fim acabarem por<br />
voltar ao som das <strong>de</strong>mos iniciais.<br />
“Acho que nos cansámos da perfeição<br />
sónica <strong>de</strong> ‘Boxer’. Estava <strong>tudo</strong><br />
<strong>de</strong>masiado perfeitinho. Queríamos<br />
um pouco mais da sujeira <strong>de</strong> ‘Alligator’”,<br />
explica-nos Berninger, sem reparar<br />
no paradoxo que é fazer 80 versões<br />
<strong>de</strong> uma canção porque não quer<br />
<strong>tudo</strong> perfeitinho.<br />
“Houve uma gran<strong>de</strong> procura da forma<br />
i<strong>de</strong>al das canções, mas no fim acabámos<br />
por voltar às <strong>de</strong>mos, por achar<br />
que a base das canções estavam lá”.<br />
Canções como “Terrible love” ou “Little<br />
faith” têm “gran<strong>de</strong>s partes que foram<br />
retiradas das <strong>de</strong>mos iniciais”,<br />
mesmo que <strong>de</strong>pois os arranjos <strong>de</strong> cordas<br />
ou os coros ou os metais tenham<br />
sido gravados em estúdio.<br />
Na realida<strong>de</strong>, reconhece Berninger,<br />
“a maior parte das canções são as mais<br />
complexas que alguma vez escrevemos,<br />
têm coros, metais, cordas, mas<br />
queríamos manter o som sujo que tínhamos<br />
feito no início”.<br />
Isto é um eufemismo para a carga<br />
<strong>de</strong> trabalhos que tiveram. No fim acabaram<br />
por aproveitar “uma bateria<br />
daqui, uma guitarra dali” para conseguirem<br />
o tal som que ele imaginava:<br />
“Uma combinação do sujo primordial<br />
com meticulosas e sofisticadas harmonias<br />
posteriores”.<br />
O que é importante notar aqui é a<br />
obsessiva ética <strong>de</strong> trabalho dos rapazes:<br />
levam o perfeccionismo ao limite.<br />
Como se não bastasse, funcionam em<br />
<strong>de</strong>mocracia – isto é, uma canção só<br />
vai para a frente se todos estiverem<br />
satisfeitos. O que por vezes leva a que<br />
todos tenham vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> se aniquilar<br />
mutuamente.<br />
“Fomos educados a fazer o que está<br />
certo”, diz Berninger. É filho <strong>de</strong> um<br />
advogado que, por alguma razão, cismou<br />
em viver nos piores bairros <strong>de</strong><br />
Cincinnati. E é esta a diferença entre<br />
Matt e os restantes: nenhum <strong>de</strong>les teve<br />
uma infância difícil, mas Matt viu<br />
o que outros não viram.<br />
Lê-se em todas as entrevistas e nota-se<br />
em conversa com eles: a cisão<br />
entre “ser normal” (ditame que qualquer<br />
filho <strong>de</strong> classe média conhece<br />
bem) e “fazer bem” (ditame que qualquer<br />
filho <strong>de</strong> classe média conhece<br />
bem) é neles levada ao expoente máximo.<br />
É essa ascensão <strong>de</strong> classe média<br />
que viu o lado sujo que os leva a querer<br />
manter as canções, por mais experimentais<br />
que sejam, sempre do<br />
lado mais directo possível.<br />
Por exemplo: quando os manos se<br />
põem com experiências artísticas e as<br />
enviam por e-mail para Berninger, ele<br />
manda-os passear. Ao “New York Ti-<br />
Uma parte do<br />
charme <strong>de</strong>ste<br />
quinteto <strong>de</strong><br />
classe média<br />
resi<strong>de</strong> no<br />
fascínio com o<br />
pecado<br />
mes” Aaron dizia que “para ele tem<br />
<strong>de</strong> ser sempre uma experiência emocional”.<br />
Berninger não quer cá experiências<br />
artísticas só porque sim. É<br />
como se se vigiasse constantemente.<br />
É o dado mais importante acerca <strong>de</strong>le:<br />
a hiper-activa auto-consciência <strong>de</strong> Berninger.<br />
Longo monólogo <strong>de</strong> um vocalista<br />
quando mencionamos “autoconsciência”:<br />
“A auto-consciência é uma gran<strong>de</strong><br />
parte das canções dos National. A ansieda<strong>de</strong><br />
existente em todas as situações<br />
vem da auto-consciência. De não se<br />
gostar <strong>de</strong> como se está nessas situações,<br />
<strong>de</strong> se <strong>de</strong>sejar ser melhor, mais<br />
simpático, mais bem falante, mais à<br />
vonta<strong>de</strong>. De não se saber como reagir<br />
– seja no trabalho ou na família. Essa<br />
auto-consciência da falha mói muito,<br />
está sempre presente. É acerca <strong>de</strong>, no<br />
fundo, não se ter muita auto-confiança.<br />
E é daí que vem a tristeza e a raiva que<br />
há nestas canções – das mesmas coisas<br />
que obcecam toda a gente: queremos<br />
ser mais românticos e agradar à nossa<br />
mulher, queremos ser mais simpáticos,<br />
queremos ser menos medrosos. E é<br />
muito difícil ser <strong>tudo</strong> isso. Por isso<br />
julgamo-nos constantemente. Tudo<br />
isto implica muito trabalho: não é fácil<br />
amarmos a nossa mulher, os nossos<br />
pais, os nossos filhos, os nossos amigos.<br />
Não é fácil sequer amarmo-nos. E<br />
isso acarreta ansieda<strong>de</strong>. Que, no fundo,<br />
po<strong>de</strong> ser muito positiva, porque<br />
funciona como um balanço dos prós<br />
e dos contras, como um alerta que nos<br />
impulsiona a fazer alguma coisa”.<br />
Este é o fio condutor dos discos dos<br />
National: a auto-consciência. Por mais<br />
aberto ao mundo que “High Violet”<br />
seja, é essa auto-consciência que traz<br />
grandiosida<strong>de</strong> à banda.<br />
Sim, em “High Violet” há mais mundo.<br />
Mesmo numa canção como “Sorrow”,<br />
“que é uma celebração da tristeza,<br />
que é sobre alguém que é triste<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre mas gosta da sua tristeza,<br />
que precisa <strong>de</strong>la”, há um distanciamento<br />
maior.<br />
Mesmo numa canção tremenda como<br />
“Afraid of everyone”, que é sobre<br />
o medo da paternida<strong>de</strong>, esse medo é<br />
escudado num olhar mais frio, “uma<br />
espécie <strong>de</strong> estado <strong>de</strong> coisas entre as<br />
pessoas <strong>normais</strong> na América: <strong>de</strong> um<br />
lado temos os liberais, do outro os<br />
conservadores e vivemos bombar<strong>de</strong>ados<br />
por esta dicotomia extremada,<br />
sem saber no que acreditar”.<br />
O medo da paternida<strong>de</strong>, revelado<br />
na frase “with my kid on my shoul<strong>de</strong>rs<br />
I’ll try not to hurt anybody I love”, é<br />
investido <strong>de</strong> uma outra gran<strong>de</strong>za: esta<br />
torna-se uma canção “sobre não<br />
magoar os outros estando disposto a<br />
<strong>tudo</strong> para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a família. Põe-se<br />
a criança aos ombros para a proteger<br />
e tenta-se não ferir os que estão ao<br />
lado. Quando se tem filhos as priorida<strong>de</strong>s<br />
mudam e há uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> guerra<br />
contra <strong>tudo</strong> o que possa ferir ou<br />
separar-nos das crianças, mas tem-se<br />
<strong>de</strong> evitar essa guerra”.<br />
Mas isto são os National e a seguir<br />
a essa frase vem ‘But I don’t have the<br />
drugs to sort this out’. O que significa<br />
isto? “É simples. É que não faço a mínima<br />
i<strong>de</strong>ia como resolver este dilema”.<br />
Qual dilema? “Tudo isto”.<br />
“Nós só estamos a <strong>de</strong>itar champanhe<br />
para <strong>de</strong>ntro das sombras”, diz<br />
Berninger. “Isso revigora-nos”.<br />
Depois o agente corta a chamada.<br />
Nós cá em baixo abrimos a boca e engolimos<br />
o champanhe.<br />
Ver crítica <strong>de</strong> discos págs. 52 e segs.<br />
10 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon<br />
“Nós só estamos a <strong>de</strong>itar champanhe<br />
para <strong>de</strong>ntro das sombras. Isso revigora-nos”
80.ª Edição da Feira do Livro <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong><br />
29 <strong>de</strong> Abril a 16 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 2010<br />
Parque Eduardo VII<br />
Livros, Cultura e Animação<br />
direcção artística Cesário Costa<br />
METROPOLITANA<br />
T E M P O R A D A 2 0 0 9 | 2 0 1 0<br />
07 <strong>de</strong> Maio |Sex<br />
Tânia Ganho<br />
Título editado:<br />
A Luci<strong>de</strong>z do Amor<br />
Luís<br />
Bigotte Chorão<br />
Título editado:<br />
A Crise da República e a Ditadura Militar<br />
08 <strong>de</strong> Maio |Sáb<br />
Paul Hoffman<br />
Título editado:<br />
O Braço Esquerdo <strong>de</strong> Deus<br />
Ricardo<br />
M. Salmón<br />
Títulos editados:<br />
A Ofensa, Derrocada<br />
Sofia Marrecas<br />
Ferreira<br />
Título editado:<br />
O Sangue da Terra<br />
João<br />
Pedro Marques<br />
Título editado:<br />
Os Dias da Febre<br />
J. Pedro<br />
Baltasar<br />
Título editado:<br />
Jaguar<br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
Lourenço<br />
P. Coutinho<br />
Título editado:<br />
Cinco <strong>de</strong> Outubro<br />
Leonor Mexia<br />
Título editado:<br />
A caixa da avó Maria<br />
Vítor<br />
Burity da Silva<br />
Títulos editados:<br />
Rua dos Anjos, Este Lago não Existe<br />
José António<br />
Gomes e António<br />
Mo<strong>de</strong>sto<br />
Título editado:<br />
Poesia <strong>de</strong> Fernando Pessoa para Todos<br />
Maria C. Vicente<br />
Título editado:<br />
Bichos faz-<strong>de</strong>-conta<br />
M. João Lopo<br />
<strong>de</strong> Carvalho<br />
Títulos editados:<br />
Animais à Solta, Um menino diferente<br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
hora do conto<br />
às 16:00<br />
atelier/ workshop<br />
Ana Biscaia<br />
<strong>de</strong> ilustração<br />
às 17:30<br />
Título editado:<br />
Poesia <strong>de</strong> Luís <strong>de</strong> Camões para Todos<br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
hora do conto<br />
às 17:00<br />
atelier/ workshop<br />
Ana Fernan<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> ilustração<br />
às 18:00<br />
Título editado:<br />
O Príncipe no Reino dos Lagartos<br />
FRANZ SCHUBERT<br />
SINFONIA N.º 8, A GRANDE<br />
Xavier Phillips violoncelo<br />
Mark Stringer direcção musical<br />
Orquestra Metropolitana <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong><br />
obras <strong>de</strong><br />
Ludwig van Beethoven | Dmitri Chostakovich | Franz Schubert<br />
Domingo, 9 <strong>de</strong> Maio, 17h00<br />
Centro Cultural <strong>de</strong> Belém | Gran<strong>de</strong> Auditório<br />
09 <strong>de</strong> Maio |Dom<br />
Paul Hoffman<br />
Título editado:<br />
O Braço Esquerdo <strong>de</strong> Deus<br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
J. Pedro<br />
Baltasar<br />
Título editado:<br />
Jaguar<br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
Ricardo<br />
M. Salmón<br />
Títulos editados:<br />
A Ofensa, Derrocada<br />
Nuno Silveira<br />
Ramos e Pedro<br />
Silveira Ramos<br />
Título editado:<br />
Tartan - As Velas da Liberda<strong>de</strong><br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
Teresa<br />
Champalimaud<br />
e Maria Almada<br />
Título editado:<br />
Castelos <strong>de</strong> Algodão Doce<br />
Sofia Marrecas<br />
Ferreira<br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
Título editado:<br />
O Sangue da Terra<br />
Tânia Ganho<br />
sessão<br />
<strong>de</strong> autógrafos<br />
das 15:00 às 17:00<br />
Título editado:<br />
A Luci<strong>de</strong>z do Amor<br />
Oo
Vashti Bunyan está receosa. Não pelos<br />
concertos que se avizinham e que a<br />
trarão ao Lux, em <strong>Lisboa</strong>, no próximo<br />
dia 13 <strong>de</strong> Maio, quinta-feira. Disso falaremos<br />
<strong>de</strong>pois. Do seu percurso errante,<br />
da preciosida<strong>de</strong> da sua música,<br />
que viveu primeiro entre sombras e<br />
timi<strong>de</strong>z, <strong>de</strong>scobriu <strong>de</strong>pois uma luminosa<br />
intimida<strong>de</strong>, e se silenciou 35<br />
anos (sim, 35) antes <strong>de</strong> se fazer ouvir<br />
novamente, quando Devendra Banhart,<br />
Joanna Newsom ou os Espers<br />
lhe disseram que sim, a sua música<br />
era especial.<br />
Pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r o telefonema<br />
do Ípsilon na sua casa em Edimburgo,<br />
falou-nos da viagem que faria<br />
no dia seguinte até Estocolmo. Acabada<br />
<strong>de</strong> chegar <strong>de</strong> Los Angeles, on<strong>de</strong><br />
um vulcão islandês (esse, pois claro)<br />
a manteve retida durante duas semanas,<br />
prepara-se para viajar novamente<br />
e teme que o Eyjafjallajökull lhe<br />
atrapalhe a vida uma segunda vez.<br />
Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser curioso este receio<br />
<strong>de</strong> Vashti Bunyan. Há 40 anos tentou<br />
uma carreira na pop e, <strong>de</strong>siludida<br />
com o fracasso, <strong>de</strong>ixou <strong>tudo</strong> para trás.<br />
Tudo: partiu <strong>de</strong> Londres com o namorado<br />
em direcção a uma comuna<br />
na Escócia fundada por Donovan. Não<br />
viajou <strong>de</strong> comboio, autocarro ou<br />
avião, nada disso: cavalo e carroça.<br />
Assim, teve tempo para compor e gravar<br />
um álbum <strong>de</strong> doces “lullabies”,<br />
ignorado então, reconhecido agora<br />
como um clássico; teve tanto tempo<br />
que, quando chegou à comuna, Donovan<br />
já não estava lá. Ei-la então<br />
agora, quatro décadas <strong>de</strong>pois, preocupada<br />
com vulcões e aviões, mas a<br />
rir quando lhe sugerimos que, caso<br />
as cinzas vulcânicas atrapalhem, sempre<br />
po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>scobrir um meio <strong>de</strong><br />
transporte alternativo: “Mas o cavalo<br />
é tão lento, é certo que não chegaria<br />
a tempo a <strong>Lisboa</strong>”.<br />
Em <strong>Lisboa</strong>, Vashti Bunyan tocará<br />
principalmente canções <strong>de</strong> “Lookaftering”,<br />
o álbum que editou em 2005,<br />
o tal que pôs fim ao um silêncio <strong>de</strong> 35<br />
anos. De uma <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za comovente,<br />
cantado numa voz que se ergue da<br />
aparente fragilida<strong>de</strong>, “Lookaftering”<br />
é, com as suas guitarras acústicas <strong>de</strong>dilhadas,<br />
os seus pianos ondulantes,<br />
as flautas, oboés e orquestrações, um<br />
olhar terno sobre o que ficou para<br />
trás. Sem angústia, finalmente.<br />
Amor e rejeição<br />
Para esta londrina nascida em 1945,<br />
<strong>tudo</strong> começou em Nova Iorque com<br />
a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> um músico e <strong>de</strong> um<br />
disco, “Freewheelin’”, <strong>de</strong> Bob Dylan.<br />
O início da década <strong>de</strong> 60 e Vashti expulsa<br />
<strong>de</strong> uma escola <strong>de</strong> arte, em<br />
Oxford, por se “concentrar <strong>de</strong>masiado<br />
numa expressão artística diferente”<br />
– estudava pintura mas <strong>de</strong>dicava<br />
mais tempo a compor canções. A chegada<br />
a Nova Iorque e Bob Dylan: “Toda<br />
aquela i<strong>de</strong>ia do músico nómada,<br />
quase um saltimbanco, atraía-me muito.<br />
Isso, juntamente com as letras, foi<br />
uma educação extraordinária. Abriu<br />
todo um mundo”. Foi ao ouvi-lo que<br />
<strong>de</strong>cidiu insistir, <strong>de</strong>terminada, numa<br />
carreira musical.<br />
Acontece que Vashti Bunyan, que<br />
olha para os anos 60 e para as transformações<br />
que neles ocorreram como<br />
um “levantamento muito pequeno”<br />
– “não éramos tantos quanto isso a<br />
fugir à normalida<strong>de</strong>” -, “mas muito<br />
eficiente, muito excitante”, não sabia<br />
como se enquadrar neles. “Nunca fiz<br />
parte <strong>de</strong> qualquer cena. Era muito<br />
solitária e nunca me alinhei a ninguém.<br />
Usava jeans e camisolas <strong>de</strong> homem<br />
e recusava que me mo<strong>de</strong>lassem<br />
enquanto cara bonita. Além disso,<br />
pensava que ninguém queria fazer o<br />
que eu queria e, portanto, não achava<br />
que fossem possíveis gran<strong>de</strong>s progressos”.<br />
Mesmo aqueles que compreendiam<br />
a sua música pareciam inacessíveis.<br />
Vashti conheceu Nick Drake e<br />
Joe Boyd, produtor do seu primeiro<br />
álbum, “Just Another Diamond Day”<br />
(1970), composto durante a viagem<br />
até à Escócia, queria que gravassem<br />
juntos. Impossível: “Das poucas vezes<br />
que estive com ele, não trocámos uma<br />
palavra. Virava-se <strong>de</strong> costas, <strong>de</strong> olhos<br />
na parece. Era um génio e uma alma<br />
perdida, era muito infeliz. Ele tão tímido<br />
e eu tão tímida... Nunca nos<br />
conhecemos verda<strong>de</strong>iramente”.<br />
Vendo imagens das suas raras aparições<br />
televisivas em meados da década<br />
<strong>de</strong> 60, percebemos <strong>tudo</strong>. “Some<br />
things just stick in your mind”, a canção<br />
<strong>de</strong> Jagger e Richards que Andrew<br />
Loog Oldham lhe ofereceu, e ela a<br />
cantá-la nas suas calças brancas e camisa<br />
preta, a <strong>de</strong>sviar os olhos da câmara.<br />
Aquele, repare-se, era o auge<br />
da sua carreira – “estava muito <strong>de</strong>terminada<br />
a ser uma cantora pop e a<br />
levar as minhas canções às tabelas <strong>de</strong><br />
“Voltei à música<br />
on<strong>de</strong> a tinha <strong>de</strong>ixado,<br />
como se o resto da<br />
minha vida tivesse<br />
continuado numa<br />
dimensão diferente.<br />
Deixei a música com<br />
25 anos e é aí que<br />
ainda estou. Talvez<br />
chegue ao ponto<br />
em que serei eu<br />
aos 30”<br />
Música<br />
35 ANOS<br />
Entre o primeiro e o<br />
segundo álbum, Vashti<br />
Bunyan fechou-se num<br />
longo silêncio,<br />
quebrado em 2005<br />
O próximo<br />
álbum <strong>de</strong><br />
Vashti<br />
Bunyan, diz<br />
ela, será<br />
certamente o<br />
último, mas a<br />
história <strong>de</strong>la é<br />
uma história<br />
<strong>de</strong> recomeços:<br />
quem sabe...<br />
A longa viagem <strong>de</strong> Vas<br />
Vashti Bunyan <strong>de</strong>sistiu duas vezes. Quando quis ser cantora e percebeu que n<br />
e quando pôs o sonho bucólico que era a sua vida num álbum ignorado. Três décadas <strong>de</strong>pois, f<br />
12 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
vendas”. Mas as suas canções eram Vêmo-la na capa <strong>de</strong> “Just Another<br />
<strong>de</strong> um intimismo <strong>de</strong>sarmante, marcado<br />
por frio invernoso e por imagens avental e a saia negra, ela em frente<br />
Diamond Day”: o lenço na cabeça, o<br />
<strong>de</strong> solidão. Não podia resultar. Depois à portada <strong>de</strong> uma casa com telhado<br />
<strong>de</strong> dois singles sem sucesso, <strong>de</strong>sistiu <strong>de</strong> colmo, e à esquerda <strong>de</strong> um grupo<br />
pela primeira vez.<br />
<strong>de</strong> animais campestres. Gravado num<br />
“Cresci no meio <strong>de</strong> Londres e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> intervalo da viagem com músicos dos<br />
a infância que sonhava com a paisagem,<br />
com o campo”, conta. Quando String Band, com orquestrações a car-<br />
Fairport Convention e da Incredible<br />
a carreira pop falhou, foi procurar go <strong>de</strong> Robert Kirby, soa a <strong>de</strong>slumbrante<br />
sonho bucólico, uma o<strong>de</strong> à inocên-<br />
esse sonho. Ela, o namorado e o cão<br />
<strong>de</strong> ambos, a cavalo até à Escócia. “Éramos<br />
muito românticos. Como não ver<strong>de</strong> prado e azul lago. Para Vashti,<br />
cia <strong>de</strong> dias que correm lentos entre<br />
tínhamos dinheiro para gasolina, porém, nada daquilo era sonho. “[Na<br />
achámos que precisávamos apenas viagem] passei <strong>de</strong> uma infância muito<br />
<strong>de</strong> um cavalo. Afinal, os cavalos só protegida à vida a sério, o que foi um<br />
precisam <strong>de</strong> erva. Éramos inocentes choque. Mas aprendi como viver sem<br />
a esse ponto... e estúpidos [risos]. Mas electricida<strong>de</strong>, sem dinheiro, sem <strong>tudo</strong><br />
foi uma gran<strong>de</strong> estupi<strong>de</strong>z que se aquilo que tomamos por garantido.<br />
transformou em gran<strong>de</strong> sabedoria.” Aprendi que po<strong>de</strong>mos sentir-nos re-<br />
shti Bunyan<br />
alizados quando as nossas preocupações<br />
são encontrar água, o próximo<br />
prado para o cavalo ou lenha para o<br />
fogo. Tive um filho e estava a viver na<br />
natureza. Os sonhos que estavam nas<br />
canções <strong>de</strong> ‘Diamond Day’ eram a realida<strong>de</strong>.”<br />
A viagem, diz, curou-a da “gran<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>pressão” com que tinha abandonado<br />
Londres. O álbum não só não resultou<br />
exactamente como pretendia,<br />
como foi responsável por nova <strong>de</strong>sistência.<br />
Desta vez total. Foi um rotundo<br />
fracasso comercial recebido pela<br />
crítica com escárnio e classificado<br />
como ingénuo e infantil. Vashti baixou<br />
os braços. “Em vez <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar que<br />
aquilo me <strong>de</strong>stroçasse, <strong>de</strong>cidi simplesmente<br />
que não servia para a música,<br />
que era óbvio que não era boa o<br />
suficiente. Mesmo que isso fosse uma<br />
terrível rejeição da minha vida e dos<br />
meus sonhos.”<br />
Continuou a viajar com o namorado<br />
pela Escócia e pela Irlanda, criou<br />
uma família. Ao longo <strong>de</strong>sses 30 anos,<br />
pegou na guitarra uma única vez, para<br />
ensinar o filho a tocá-la.<br />
A re<strong>de</strong>scoberta<br />
Um dia, por curiosida<strong>de</strong>, teclou o seu<br />
nome num motor <strong>de</strong> pesquisa da Internet<br />
e <strong>de</strong>parou-se com o seu passado,<br />
re<strong>de</strong>scoberto. “Just Another Diamond<br />
Day” fascinava uma nova geração<br />
<strong>de</strong> melómanos e um <strong>de</strong>les,<br />
Devendra Banhart, chegou mesmo a<br />
escrever-lhe, <strong>de</strong>clarando toda a sua<br />
admiração. Vashti Bunyan reeditou o<br />
álbum, pegou novamente na guitarra,<br />
cantou. “Era algo que tinha enterrado<br />
tão fundo que perceber que ainda estava<br />
ali foi maravilhoso”. Mais, foi<br />
como se todo o tempo em que negara<br />
a música não tivesse existido. “Voltei<br />
à música on<strong>de</strong> a tinha <strong>de</strong>ixado, como<br />
se o resto da minha vida tivesse continuado<br />
numa dimensão diferente.<br />
Deixei a música com 25 anos e é aí que<br />
ainda estou. Talvez chegue ao ponto<br />
em que serei eu aos 30.”<br />
Des<strong>de</strong> que quebrou o seu voto <strong>de</strong><br />
silêncio, muito aconteceu. Gravou<br />
com os Piano Magic ou com os Animal<br />
Collective Editou um novo álbum,<br />
“Lookaftering”, que consi<strong>de</strong>ra<br />
o fechar do ciclo iniciado em “Just<br />
Another Diamond Day” e que lhe permitiu<br />
começar a pôr em disco “todas<br />
as orquestras” que tem na cabeça –<br />
musicais do início do século XX, Noel<br />
Coward, hinos religiosos e canções<br />
<strong>de</strong> Natal. Em <strong>Lisboa</strong>, será acompanhada<br />
pelo guitarrista Gareth Dixon<br />
e pela multi-instrumentista Jo Mango.<br />
O futuro? Olha para ele sem pressas.<br />
Porque esperou 35 anos até gravar<br />
novamente. Porque ainda não<br />
superou o <strong>de</strong>sgosto da morte, a 3 <strong>de</strong><br />
Outubro <strong>de</strong> 2009, <strong>de</strong> Robert Kirby,<br />
com quem começara a trabalhar em<br />
novas formas <strong>de</strong> “tirar a orquestra da<br />
cabeça”. E porque quer sentir “que<br />
todas as peças se encaixam”, quer ter<br />
a certeza <strong>de</strong> que se orgulhará da música<br />
que gravar.<br />
Será, provavelmente, o último álbum<br />
que gravará. Mas nada <strong>de</strong> angústias.<br />
Haverá sempre tempo para um<br />
regresso <strong>de</strong> Vashti Bunyan.<br />
Ver agenda <strong>de</strong> concertos na pág. 50 e<br />
segs.<br />
e não se enquadrava na pop dos anos 60,<br />
, faz uma aparição no Lux, a 13 <strong>de</strong> Maio. Mário Lopes<br />
SÃO<br />
LUIZ<br />
ABR/MAI ~1O<br />
29 ABR A 15 MAI<br />
QUARTA A SÁBADO ÀS 21H00<br />
DOMINGO ÀS 17H30<br />
SALA PRINCIPAL<br />
M/18<br />
Texto<br />
MARK RAVENHILL<br />
Tradução<br />
ANA BIGOTTE VIEIRA<br />
Direcção Artística e Encenação<br />
GONÇALO AMORIM<br />
A<strong>de</strong>reços e Figurinos<br />
ANA LIMPINHO<br />
MARIA JOÃO CASTELO<br />
SÃO<br />
LUIZ<br />
MAI/JUN ~1O<br />
Sonoplastia<br />
SÉRGIO MILHANO<br />
Desenho <strong>de</strong> Luz<br />
JOSÉ MANUEL RODRIGUES<br />
Espaço Cénico<br />
RITA ABREU<br />
Direcção <strong>de</strong> Produção<br />
PAULA FERNANDES<br />
(Primeiros Sintomas)<br />
SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />
RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA<br />
GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT / T: 213 257 640<br />
Interpretação<br />
CARLA MACIEL<br />
CARLOTO COTTA<br />
PEDRO CARMO<br />
PEDRO GIL<br />
ROMEU COSTA<br />
A reposição do espectáculo<br />
é uma co-produção SLTM<br />
/ Primeiros Sintomas<br />
Shopping & Fucking<br />
Prémio da Crítica<br />
2007 da Associação<br />
Portuguesa <strong>de</strong><br />
Críticos <strong>de</strong> Teatro<br />
WWW.TEATROSAOLUIZ.PT<br />
BILHETEIRA DAS 13H ÀS 20H<br />
T: 213 257 650; BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />
BILHETES À VENDA NA TICKETLINE E NOS LOCAIS HABITUAIS<br />
De 21 <strong>de</strong> Maio a 9 <strong>de</strong> Junho, o alkantara festival, na sua 3ª edição,<br />
acolhe cerca <strong>de</strong> 30 performances <strong>de</strong> dança, <strong>de</strong> teatro e <strong>de</strong> <strong>tudo</strong> o que<br />
se encontra entre eles, <strong>de</strong> artistas oriundos <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 20 países.<br />
Mais uma vez, o São Luiz é o principal co-produtor.<br />
Alemanha / Egipto<br />
21 E 22 MAI<br />
RADIO<br />
MUEZZIN<br />
STEFAN KAEGI<br />
(RIMINI PROTOKOLL)<br />
SEXTA E SÁBADO ÀS 21H00<br />
SALA PRINCIPAL M/12<br />
O Ministério dos Assuntos<br />
Religiosos egípcio quer introduzir<br />
um sistema <strong>de</strong> rádio fechado que<br />
transmitirá a voz <strong>de</strong> um único<br />
muezim ao vivo e em simultâneo<br />
para todas as mesquitas <strong>de</strong> Estado.<br />
Cairão no silêncio milhares<br />
<strong>de</strong> muezins?<br />
Brasil<br />
28 E 29 MAI<br />
H3<br />
BRUNO BELTRÃO<br />
/ GRUPO DE RUA<br />
DE NITERÓI<br />
SEXTA E SÁBADO ÀS 21H00<br />
SALA PRINCIPAL M/6<br />
Beltrão continua a <strong>de</strong>senvolver o seu<br />
próprio vocabulário, no <strong>de</strong>safio entre<br />
a coreografia contemporânea e as<br />
várias formas <strong>de</strong> street dance.<br />
EUA<br />
4 A 6 JUN<br />
BARE SOUNDZ<br />
SAVION GLOVER<br />
SEXTA E SÁBADO ÀS 21H00<br />
DOMINGO ÀS 17H00<br />
SALA PRINCIPAL M/6<br />
O bailarino <strong>de</strong> sapateado que<br />
emprestou os seus pés a Mumble,<br />
o pinguim <strong>de</strong> Happy Feet,<br />
é hoje visto como um dos gran<strong>de</strong>s<br />
revolucionários <strong>de</strong>ste género.<br />
Portugal<br />
24, 25 E 31 MAI<br />
1, 7, 8 E 9 JUN<br />
AMIGOS<br />
COLORIDOS<br />
UM PROJECTO<br />
ALKANTARA<br />
FESTIVAL E PRADO<br />
ÀS 23H00<br />
JARDIM DE INVERNO M/12<br />
Ren<strong>de</strong>z-vous amorosos para<br />
os artistas e blind dates para o<br />
público. Um espaço/tempo para<br />
encontros (im)possíveis, intensos<br />
e apaixonados. Serão todos<br />
encontros irrepetíveis.<br />
© carla rosa baptista<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 13
Música<br />
O Verão azul<br />
dos Delorean<br />
Depois <strong>de</strong> El Guincho, há outro projecto espanhol que vale a pena conhecer: os Delorean,<br />
praticantes <strong>de</strong> pop electrónica eufórica, acabam <strong>de</strong> lançar o álbum “Subiza”. Vítor Belanciano<br />
Os melómanos mais atentos <strong>de</strong>ram<br />
por eles no ano passado, através do<br />
EP “Ayrton Senna”, um curto conjunto<br />
<strong>de</strong> canções assentes numa pop eufórica<br />
<strong>de</strong> vozes juvenis e dinâmicas<br />
electrónicas. Muitos <strong>de</strong>vem ter pensado<br />
que se tratava da estreia dos espanhóis<br />
Delorean, mas não é bem<br />
assim. O grupo começou há <strong>de</strong>z anos,<br />
em Zarautz, uma pequena localida<strong>de</strong><br />
perto <strong>de</strong> San Sebastián.<br />
Nessa altura praticavam uma sonorida<strong>de</strong><br />
muito diferente, esclarece o<br />
vocalista e baixista Ekhi Lopetegi. “No<br />
País Basco existia uma cena ‘hardcore’<br />
muito dinâmica, e durante alguns<br />
anos fomos influenciados por ela. Mas<br />
a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada altura começámos<br />
a sentir vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> encetar<br />
uma mudança e foi isso que acabou<br />
por acontecer.” Durante esses primeiros<br />
tempos, lançaram três álbuns. O<br />
EP do ano passado significou uma<br />
gran<strong>de</strong> viragem e o álbum “Subiza”,<br />
agora mesmo lançado, apenas veio<br />
reafirmá-la.<br />
No espaço <strong>de</strong> um ano muita coisa<br />
se alterou. O grupo tornou-se conhecido<br />
um pouco por todo o lado e o<br />
seu som transformou-se por completo,<br />
sendo agora muito mais dançável,<br />
capaz <strong>de</strong> agradar a quem gosta da pop<br />
caleidoscópica <strong>de</strong> grupos como Cut<br />
Copy ou das electrónicas <strong>de</strong> dança<br />
conotadas com editoras como a Kompakt<br />
ou a Bor<strong>de</strong>r Community. “Gostamos<br />
<strong>de</strong> muitos géneros, <strong>de</strong> house a<br />
dubstep, <strong>de</strong> rock a pop, <strong>de</strong> Prefab<br />
Sprout aos Cocteau Twins e a nossa<br />
música reflecte-o”, diz Ekhi.<br />
Hoje é uma pop dançante, quase<br />
sempre à beira da exaltação, aquela<br />
que praticam. Uma transformação<br />
que é capaz <strong>de</strong> estar relacionada com<br />
uma mudança <strong>de</strong> residência. Des<strong>de</strong><br />
há dois anos, os quatro membros do<br />
grupo vivem em Barcelona. “Há oito<br />
anos queria estudar em Barcelona,<br />
começar vida aqui. Tal como San Sebastián,<br />
on<strong>de</strong> cresci, é uma cida<strong>de</strong><br />
com mar por perto e isso é muito<br />
bom.”<br />
Ekhi ri-se quando lhe recordamos<br />
que sempre que a imprensa americana<br />
fala <strong>de</strong>les são imediatamente conotados<br />
com a capital da Catalunha.<br />
Como se a costela lúdica da sua música<br />
pu<strong>de</strong>sse ser explicada, em exclusivo,<br />
pela geografia. “Quando os americanos<br />
pensam em Espanha, imaginam<br />
logo sol e mar. Com Portugal,<br />
<strong>de</strong>ve ser o mesmo. San Sebastián é<br />
até muito chuvosa. Barcelona é muito<br />
soalheira, mas essa é apenas meia<br />
verda<strong>de</strong>. Não vale a pena chatearmonos<br />
com esses estereótipos. Cada pa-<br />
Naturais <strong>de</strong> Zarautz,<br />
uma pequena cida<strong>de</strong> costeira<br />
ao lado <strong>de</strong> San Sebastián,<br />
os Delorean mudaram-se há<br />
dois anos para Barcelona<br />
14 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
ís tem o seu imaginário, coisas que o<br />
simbolizam e que toda a gente i<strong>de</strong>ntifica.<br />
Quando consi<strong>de</strong>ro a música que<br />
sai da Suécia, romântica e melodramática,<br />
penso logo ‘Oh! Eles não têm<br />
sol, só po<strong>de</strong>m fazer música melancólica!’<br />
Enfim, é apenas a minha i<strong>de</strong>ia<br />
da Suécia. Po<strong>de</strong> ter um fundo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>,<br />
mas também <strong>de</strong> imaginação.”<br />
Manhattan primeiro, a Espanha<br />
<strong>de</strong>pois<br />
Há dois anos, graças à aclamação internacional<br />
do álbum “Alegranza”, do<br />
projecto El Guincho, a Espanha que<br />
consome pop e rock anglo-saxónico,<br />
flamenco ou a música ligeira das discotecas<br />
<strong>de</strong> pior fama, o chamado<br />
bakalou, começou a olhar para a sua<br />
NACHOALEGRE<br />
pop mais alternativa. A música <strong>de</strong> El<br />
Guincho é feita <strong>de</strong> cânticos dançantes,<br />
combinação <strong>de</strong> microrganismos<br />
resgatados à pop africana, a ladainhas<br />
tribalistas, ao calipso das Antilhas, ao<br />
dub jamaicano, ao tropicalismo brasileiro<br />
ou ao rock lúdico dos anos 60,<br />
numa toada que resulta hipnótica e<br />
<strong>de</strong>lirante.<br />
A Espanha não lhe prestava muita<br />
atenção, mas quando os mais influentes<br />
jornais americanos (do “Washington<br />
Post” ao “New York Times”) e sítios<br />
da Internet (Pitchfork) começaram<br />
a fazer peças sobre El Guincho,<br />
acordou. Com os Delorean aconteceu<br />
exactamente o mesmo. O “El País” <strong>de</strong><br />
16 <strong>de</strong> Abril escrevia sobre eles, a propósito<br />
<strong>de</strong> uma digressão recente pelos<br />
Estados Unidos, e titulava ironicamente<br />
o artigo com a frase “Primeiro<br />
conquistaremos Manhattan... e <strong>de</strong>pois<br />
a Espanha?”<br />
Para os espanhóis que, tal como<br />
Portugal, nunca tiveram gran<strong>de</strong> tradição<br />
<strong>de</strong> exportar cultura pop, o feito<br />
ainda está a ser digerido. “Sim, claro,<br />
que o interesse internacional é bom<br />
para o nosso reconhecimento em Espanha”,<br />
afirma Ekhi, sugerindo que<br />
a visibilida<strong>de</strong> nos EUA e na Europa se<br />
<strong>de</strong>ve a uma sonorida<strong>de</strong> diferente,<br />
“que não cabe na prateleira do indierock,<br />
mas também não é completamente<br />
estranha”, ao factor Internet<br />
e a uma série <strong>de</strong> remisturas (The xx,<br />
Franz Ferdinand, Cold Cave, Mystery<br />
Jets) que lhes permitiram apurar os<br />
dotes <strong>de</strong> produção, e expô-los a públicos<br />
que nunca <strong>de</strong>les tinham ouvido<br />
falar.<br />
Existe também um contexto internacional<br />
que ajuda a explicar a aceitação<br />
do grupo neste momento. Como<br />
escrevíamos no ano passado (em<br />
“Brisa <strong>de</strong> Verão”, 14 <strong>de</strong> Outubro), não<br />
se po<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> um movimento à escala<br />
global, nem sequer <strong>de</strong> um som<br />
agregado, mas há sensibilida<strong>de</strong>s comuns<br />
em grupos oriundos dos EUA<br />
(Dum Dum Girls, The Drums, Best<br />
Coast, Pearl Harbour ou Washed Out)<br />
ou da Suécia (Studio, JJ, Air France,<br />
The Though Alliance) que permitem<br />
falar da difusão <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> estar,<br />
entre o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> evasão e a utopia<br />
<strong>de</strong> um Verão intemporal.<br />
Aliás os títulos do álbum, “Subiza”,<br />
e <strong>de</strong> algumas canções (“Endless sunset”<br />
ou “Warmer places”), evocam<br />
um Verão que já lá vai. “O disco foi<br />
gravado no Verão, na povoação <strong>de</strong><br />
Subiza, na região <strong>de</strong> Navarra, e remete<br />
para esse período em que, entre o<br />
trabalho, nadávamos e fazíamos refeições<br />
em família”, recorda Ekhi<br />
Em Barcelona, não estão sós. Há<br />
uma série <strong>de</strong> outros nomes ( John Talabot,<br />
Si<strong>de</strong>chains, Requesters ou Extraperlo)<br />
com quem mantêm afinida<strong>de</strong>s<br />
criativas, algumas nascidas no<br />
clube Desparrame, on<strong>de</strong> nos últimos<br />
Os Delorean<br />
partilham com<br />
grupos oriundos<br />
dos EUA ou da Suécia<br />
uma sensilida<strong>de</strong><br />
e uma forma <strong>de</strong> estar,<br />
entre o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />
evasão e a utopia <strong>de</strong><br />
um Verão intemporal<br />
tempos têm aprofundado os dotes<br />
como DJs, embora continuem a tocar<br />
num formato clássico <strong>de</strong> banda, com<br />
guitarra, teclas, baixo e bateria. “O<br />
som das canções ao vivo é muito similar<br />
aos discos, é imediatamente<br />
reconhecível, embora seja mais intenso”,<br />
nota Ekhi, reconhecendo que não<br />
está posta <strong>de</strong> parte a hipótese <strong>de</strong> se<br />
apresentarem noutros formatos.<br />
O que os Delorean <strong>de</strong>sconhecem,<br />
e os espanhóis em geral, é o que se<br />
passa em Portugal em termos <strong>de</strong> música.<br />
E o mesmo se po<strong>de</strong> dizer no sentido<br />
contrário. “Conheço os Buraka<br />
Som Sistema [foram 1º lugar do top<br />
<strong>de</strong> singles espanhol há meses], mas<br />
pouco mais”, admite Ekhi. “É muito<br />
estranho. Gosto imenso <strong>de</strong> Portugal,<br />
já estive aí por diversas vezes e não<br />
consigo explicar porque vivemos tão<br />
separados. É embaraçoso estarmos<br />
tão próximos e conhecermos tão pouco<br />
dos nossos países. Ainda por cima<br />
a língua não é assim tão diferente. E<br />
mesmo que fosse, a música é uma linguagem<br />
internacional.”<br />
A dos Delorean está aí. Uma pop<br />
ultra sintética que parece querer fixar<br />
instantâneos perfeitos da vida para<br />
os <strong>de</strong>volver em êxtase. Diz Ekhi: “O<br />
que gosto mais <strong>de</strong> fazer? Ler e estudar<br />
[está a doutorar-se em filosofia], mas<br />
não existe nada como a música. Faznos<br />
levitar.”<br />
Ver crítica <strong>de</strong> discos na pág. 52 e segs.<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 15
ALEXANDRE NOBRE<br />
ções com o seu singular tratamento<br />
<strong>de</strong> “Povo que lavas no rio”, <strong>de</strong> Amália<br />
Rodrigues. “Embora não seja o único,<br />
A Naifa tem sido o projecto mais consistente,<br />
importante e revolucionário<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ste género”, sublinha.<br />
Para o radialista Henrique Amaro,<br />
as iniciativas revolucionárias e pioneiras<br />
d’A Naifa começam na própria<br />
estrutura: “Nunca, nem em Portugal,<br />
nem no resto do mundo, se tinha tocado<br />
fado com bateria”. “A própria<br />
banda teve <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r com ela própria<br />
como conjugar o timbre e as regras<br />
da guitarra portuguesa com uma<br />
secção rítmica rock e uma lírica muito<br />
própria”.<br />
Música<br />
“Voltem, por favor! Isto aqui ficou um<br />
ambiente subterrâneo <strong>de</strong>pois do vosso<br />
pequeno milagre: o pessoal passa<br />
os dias à espera do carteiro”. A mensagem,<br />
<strong>de</strong>ixada por um dos seguidores<br />
d’A Naifa no blogue do projecto,<br />
podia dar um livro. E <strong>de</strong>u: “Esta <strong>de</strong>pressão<br />
que me anima”, edição <strong>de</strong><br />
autor limitada a 500 exemplares, lançada<br />
no final do mês passado, documenta<br />
a primeira fase <strong>de</strong> um projecto<br />
que começou em 2004 e que, no ano<br />
passado, fez luto pela morte <strong>de</strong> um<br />
dos fundadores, João Aguar<strong>de</strong>la, vítima<br />
<strong>de</strong> cancro do estômago.<br />
“O João Aguar<strong>de</strong>la fez parte da última<br />
geração que, nos anos 80 e 90,<br />
apostou nas raízes portuguesas para<br />
as transformar em música com uma<br />
componente popular e rural muito<br />
forte”, recorda Miranda, vocalista dos<br />
O’queStrada. Em “3 minutos antes <strong>de</strong><br />
a maré encher”, documentário <strong>de</strong><br />
2006 que enriquece o DVD incluído<br />
no livro, Aguar<strong>de</strong>la admite fazer parte<br />
da última geração que viveu com<br />
uma música portuguesa ainda activa<br />
e presente no quotidiano nacional.<br />
Des<strong>de</strong> então, os portugueses voltaram<br />
a cantarolar música popular na<br />
lín-gua materna por via <strong>de</strong> projectos<br />
bem-sucedidos como os Deolinda ou<br />
os próprios O’queStrada. Ao olhar<br />
para trás, Miranda recorda que, no<br />
princípio do novo século, “havia um<br />
vazio <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> bandas”, e consi<strong>de</strong>ra<br />
que A Naifa “teve um papel muito<br />
importante no relançamento da<br />
poesia portuguesa em músicas <strong>de</strong><br />
abordagem pop”.<br />
“Ao conferir arranjos mais mo<strong>de</strong>rnos<br />
e originais, <strong>de</strong>ntro do fado, A Naifa<br />
veio abrir caminhos <strong>de</strong>ntro da música<br />
popular”, aponta Tó Trips, guitarrista<br />
dos Dead Combo. Juntamente<br />
como os O’queStrada e os Gaiteiros <strong>de</strong><br />
<strong>Lisboa</strong>, actuou em Novembro na “justa<br />
homenagem a Aguar<strong>de</strong>la”, noite<br />
que tem sido apontada como o momento<br />
em que A Naifa encontrou forças<br />
para continuar a rasgar.<br />
“Mais do que pesado, o ambiente<br />
era emotivo, e notei neles uma vonta<strong>de</strong><br />
incrível <strong>de</strong> continuar o projecto,<br />
o que me <strong>de</strong>ixou muito feliz”, lembra<br />
o jornalista António Pires, confesso<br />
A Naifa faz parte <strong>de</strong><br />
“uma linhagem muito<br />
nobre da música<br />
popular portuguesa<br />
que começou uma<br />
adaptação da<br />
electrónica ao fado.<br />
Tem sido<br />
[um] projecto<br />
revolucionário”<br />
António Pires<br />
admirador da banda. A Naifa, diz, faz<br />
parte <strong>de</strong> “uma linhagem muito nobre,<br />
rara e bastante original da música popular<br />
portuguesa que, nos anos 80,<br />
começou uma adaptação da electrónica<br />
ao fado”, continuando a fazer o<br />
caminho iniciado por António Varia-<br />
E agora, A Naifa?<br />
Depois do livro e da homenagem, A<br />
Naifa continua, agora sem Aguar<strong>de</strong>la.<br />
“Convém não esquecer que foram o<br />
João e o Luís [Varatojo] que tornaram<br />
este projecto uma realida<strong>de</strong>. É uma<br />
i<strong>de</strong>ia repartida que ficará sempre a<br />
per<strong>de</strong>r sem a capacida<strong>de</strong> criativa do<br />
João. Não po<strong>de</strong>mos ir por aquele cliché<br />
<strong>de</strong> não haver insubstituíveis”,<br />
nota Henrique Amaro.<br />
Na nova formação que chega à estrada<br />
hoje, com um concerto no Barreiro,<br />
o baixo passa a ser assumido<br />
por Sandra Baptista que, além <strong>de</strong> ter<br />
realizado o documentário e alguns<br />
vi<strong>de</strong>oclips sobre a banda, foi companheira<br />
<strong>de</strong> Aguar<strong>de</strong>la. “Acho que todas<br />
as coisas são o que são e po<strong>de</strong>m renovar-se.<br />
A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> está lá e ninguém<br />
melhor do que a Sandra po<strong>de</strong> relançar<br />
musical e espiritualmente A Naifa”,<br />
atenta Miranda.<br />
“Estou cheio <strong>de</strong> expectativas quanto<br />
a este novo alinhamento da banda.<br />
A nova secção rítmica po<strong>de</strong> trazer-nos<br />
muitas surpresas”, diz António Pires,<br />
que, tal como a vocalista dos<br />
O’queStrada, viu Baptista assumir o<br />
baixo no concerto <strong>de</strong> homenagem.<br />
Mas o entusiasmo <strong>de</strong>ve-se sobre<strong>tudo</strong><br />
à outra substituição, a <strong>de</strong> Paulo Martins<br />
por Samuel Palitos (ex-Sitiados e<br />
Censurados) no papel <strong>de</strong> baterista:<br />
“O Samuel colaborou várias vezes<br />
com eles e chegou a actuar numa festa<br />
do Avante [em 2008] a abarrotar.<br />
Sem querer tirar valor ao Paulo, que<br />
também é um óptimo baterista, o Samuel<br />
tem uma energia e uma atitu<strong>de</strong><br />
muito próprias que po<strong>de</strong>m levar a<br />
banda para outros caminhos”.<br />
A nova digressão d’A Naifa passa, à<br />
excepção do último concerto, marcado<br />
para o Castelo <strong>de</strong> São Jorge, em <strong>Lisboa</strong>,<br />
apenas por auditórios, o que não surpreen<strong>de</strong><br />
Pires: “É um projecto que<br />
resulta melhor em salas <strong>de</strong> teatro do<br />
que em festivais”. A viagem pelos mais<br />
diversos pontos do país começa logo,<br />
no Auditório <strong>Municipal</strong> Augusto Cabrita,<br />
e tem paragens previstas em cida<strong>de</strong>s<br />
como Cartaxo, Faro, Portalegre,<br />
Aveiro, Horta, Coimbra, Guimarães e<br />
Caldas da Rainha. Depois <strong>de</strong> um ano<br />
<strong>de</strong> luto, A Naifa foi ao amolador e promete<br />
voltar a cortar tradicionalismos<br />
musicais cristalizados no tempo.<br />
Ver agenda <strong>de</strong> concertos págs. 50 e segs.<br />
Esta Naifa<br />
que nos anima<br />
Um ano <strong>de</strong>pois do <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> João Aguar<strong>de</strong>la, A Naifa volta a <strong>de</strong>sferir novos golpes.<br />
Com um livro, “Esta <strong>de</strong>pressão que me anima”, viagem documental (e sentimental) aos<br />
primeiros anos da carreira, e uma digressão. O primeiro concerto é hoje. Luís Carlos Soares<br />
A digressão<br />
d’A Naifa<br />
começa hoje<br />
no Barreiro e<br />
termina em<br />
<strong>Lisboa</strong>, no<br />
Castelo <strong>de</strong> São<br />
Jorge<br />
16 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
A CINEMATECA PORTUGUESA APRESENTA<br />
em colaboração com o<br />
GABINETE EM PORTUGAL DO PARLAMENTO EUROPEU<br />
PRÉMIOS DO CINEMA EUROPEU - LUX<br />
Criado pelo Parlamento Europeu em 2007, por ocasião das comemorações dos<br />
50 anos do Tratado <strong>de</strong> Roma, o Prémio Lux tem na escolha do seu nome uma<br />
referência em latim à palavra “luz” e, simultaneamente, aos irmãos Lumière.<br />
A sua instituição representa assim uma homenagem do Parlamento Europeu<br />
ao cinema, procurando distinguir a produção cinematográfi ca europeia e a sua<br />
diversida<strong>de</strong> linguística, com o objectivo <strong>de</strong> promover o cinema na Europa e apoiar<br />
a difusão da produção cinematográfi ca europeia.<br />
10 Maio às 19:00 | Sala Dr. Félix Ribeiro<br />
BELLE TOUJOURS<br />
<strong>de</strong> Manoel <strong>de</strong> Oliveira<br />
Portugal/França, 2006<br />
70 min / legendado em português<br />
12 Maio às 19:00 | Sala Dr. Félix Ribeiro<br />
AUF DER ANDEREN SEITE<br />
Do Outro Lado<br />
<strong>de</strong> Fatih Akin<br />
Alemanha, Turquia, 2007<br />
122 min / legendado em português<br />
12 Maio às 22:00 | Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
WELCOME<br />
Welcome – Bem Vindo<br />
<strong>de</strong> Philippe Lioret<br />
França, 2009<br />
110 min / legendado em português<br />
14 Maio às 21:30 | Sala Dr. Félix Ribeiro<br />
LE SILENCE DE LORNA<br />
O Silêncio <strong>de</strong> Lorna<br />
<strong>de</strong> Luc e Jean-Pierre Dar<strong>de</strong>nne<br />
Bélgica, 2008<br />
105 min / legendado em português<br />
AUF DER ANDEREN SEITE <strong>de</strong> Fatih Akin, Alemanha, Turquia, 2007<br />
Rua Barata Salgueiro, 39 em <strong>Lisboa</strong><br />
www.cinemateca.pt
Música<br />
Quatro americanos em Londres, seres<br />
estranhos. As botas <strong>de</strong> salto alto e as<br />
roupas brilhantes, a exuberância muito<br />
estilizada, as boas maneiras dos<br />
artistas e uma androginia cuidadosamente<br />
encenada. Quatro americanos<br />
em Londres, ignorados no seu próprio<br />
país, sozinhos em estúdio. Sem<br />
produtor, sem <strong>de</strong>alers, fotógrafos ou<br />
managers, a recriar um submundo<br />
muito particular. Iggy And The Stooges,<br />
ano 1973, o <strong>de</strong> “Raw Power”. Álbum<br />
mítico da história do rock’n’roll,<br />
consi<strong>de</strong>rado o rastilho para a explosão<br />
cultural do punk, três anos <strong>de</strong>pois,<br />
foi agora reeditado em tratamento<br />
“<strong>de</strong>luxe”.<br />
Cinco americanos na Alemanha.<br />
Ex-soldados que, terminado o serviço<br />
militar, escolheram não voltar. “Po<strong>de</strong>m<br />
fazer bom dinheiro a tocar por<br />
aqui”. Quatro músicos que percorrem<br />
a Alemanha a tocar Chuck Berry antes<br />
<strong>de</strong> se transformarem numa outra coisa.<br />
Alienígenas, completamente alienígenas.<br />
Capas negras, atadas em nó<br />
branco sobre o peito, camisas igualmente<br />
negras, cabeça revelando a<br />
tonsura que, se dúvidas houvesse,<br />
provava o seguinte: isto era muito sério,<br />
isto não eram cinco estrangeiros<br />
a quererem <strong>de</strong>stacar-se com um truque<br />
<strong>de</strong> imagem. “Isto” eram os Monks,<br />
ano 1965, o do seu único álbum. “Vocês<br />
são o som do futuro”, disseramlhes<br />
dois alemães que os compreen<strong>de</strong>ram.<br />
O mundo <strong>de</strong>morou a fazê-lo.<br />
“Black Monk Time”, reeditado há alguns<br />
meses, é um dos discos mais<br />
singulares da história da música popular<br />
urbana – algo que o mundo só<br />
perceberia <strong>de</strong>vidamente quando,<br />
mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong>pois, explodiu o<br />
punk.<br />
Nos Monks e nos Stooges, a préhistória<br />
<strong>de</strong> uma história. A do punk<br />
como afronta estética e violento abanão<br />
nos valores do politicamente correcto,<br />
como manifestação <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong><br />
individual, visceral e auto<strong>de</strong>strutiva.<br />
Não é preciso avançar até 1976<br />
para sentir o pulsar <strong>de</strong>ssa vertigem.<br />
Ele está ali, nos Monks, provocadores<br />
que não <strong>de</strong>ixaram nada ao acaso –<br />
eram músicos e artistas dadaístas,<br />
pensamento e acção. Ele está nos<br />
Stooges <strong>de</strong> Iggy Pop – que eram uma<br />
pulsão física incontrolável, corpo e<br />
impulso.<br />
O som do futuro<br />
Não se chamavam ainda Monks. Os 5<br />
Torquays pareciam simplesmente<br />
uma banda beat inspirada pela British<br />
Invasion, mas havia algo que os distinguia.<br />
Nisso repararam Walter Niemann<br />
e Karl Remy, o primeiro estudante<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sign, o segundo <strong>de</strong> arte.<br />
Nos Monks e nos<br />
Stooges, a pré-história<br />
<strong>de</strong> uma história.<br />
A do punk como<br />
violento abanão<br />
nos valores do<br />
politicamente<br />
correcto e<br />
manifestação<br />
<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, visceral<br />
e auto<strong>de</strong>strutiva.<br />
Não é preciso avançar<br />
até 1976 para sentir o<br />
pulsar <strong>de</strong>sta vertigem<br />
Ouviram como aqueles ex-soldados<br />
americanos corroíam as canções com<br />
camadas <strong>de</strong> feedback, como o público<br />
interrompia a dança e os donos<br />
dos clubes exasperavam, culpando o<br />
equipamento, enquanto a banda<br />
apreciava o cenário. No final <strong>de</strong> um<br />
concerto, Walter e Karl falaram com<br />
eles. “Vocês são o som do futuro”.<br />
Eis então os 5 Torquays a transformar-se,<br />
naquele hoje <strong>de</strong> 1965, no dia<br />
<strong>de</strong> amanhã. Walter e Karl assumiram<br />
o lugar <strong>de</strong> managers e ajudaram a dar<br />
corpo às transformações que a música<br />
sofria (soubesse disto e o recentemente<br />
falecido Malcolm McLaren<br />
teria estado em Hamburgo em 1965,<br />
tirando notas). Nasciam os Monks.<br />
Os cinco membros da banda cortaram<br />
o cabelo <strong>de</strong> acordo com o nome<br />
e passaram a vestir-se como tal, 24<br />
horas sobre 24. Faziam-se acompanhar<br />
a maior parte do tempo por um<br />
fotógrafo, Charles Wilt (curiosamente,<br />
seria mais tar<strong>de</strong> fotógrafo oficial<br />
d a Presidência Reagan), que tinha<br />
como missão retratar todos os passos<br />
do quotidiano da banda. Actuavam<br />
todos os dias (seis horas nos dias <strong>de</strong><br />
semana, oito aos fins-<strong>de</strong>-semana) e<br />
viviam em quartos ou caves dos prédios<br />
dos clubes que os contratavam.<br />
Deixaram <strong>de</strong> existir Gary Burger, Larry<br />
Clark, Dave Day, Roger Johnston e<br />
Eddie Shaw. Existiam apenas os<br />
Monks, os anti-Beatles: a banda para<br />
o futuro que não seria bonito.<br />
A música acompanhou a mudança.<br />
“Livrámo-nos da melodia. Tudo era<br />
orientado para o ritmo. Bam, bam,<br />
bam. Concentrámo-nos no ‘over-beat’”,<br />
contou Eddie Shaw, baixista <strong>de</strong><br />
“fuzz” diabólico. Dave Day, guitarrista,<br />
trocou a guitarra por um banjo<br />
electrificado. Roger Johnston, ao perceber<br />
que os címbalos da bateria não<br />
estavam afinados com o feedback,<br />
dispensou-os – o som tornou-se seco,<br />
marcial. E Gary Burger, o vocalista,<br />
encarnou o traje que usava <strong>de</strong> forma<br />
perversa. Vejamos.<br />
“Éramos <strong>de</strong>masiado estranhos e<br />
indiscretos para que as pessoas se<br />
metessem connosco [na rua]”, recordou<br />
Eddie Shaw há alguns anos. “Os<br />
estranhos olhavam-nos com perplexida<strong>de</strong><br />
porque as nossas acções não<br />
reflectiam o traje. Era andrógino <strong>de</strong><br />
uma forma bizarra e quase artificial”.<br />
Gary Burger, que dava voz à congregação,<br />
tornou-se vocalista estri<strong>de</strong>nte,<br />
à beira <strong>de</strong> <strong>de</strong>mência, e as letras transformaram<br />
canções como “Monk time”<br />
(“Why do you kill all those kids<br />
in Vietnam?”), “Shut up” ou “Complication”<br />
em campo <strong>de</strong> batalha.<br />
Na reedição <strong>de</strong> “Black Monk Time”,<br />
Jochen Irmler, dos alemães Faust, pioneiros<br />
da música industrial, do noise,<br />
do rock como performance <strong>de</strong> vanguarda,<br />
resume <strong>tudo</strong> <strong>de</strong>sta forma:<br />
“Isto era dizer NÃO, uma nova liberda<strong>de</strong>,<br />
um NÃO positivo. Musicalmente<br />
era como um novo início.”<br />
Alienígenas em Inglaterra<br />
Oito anos <strong>de</strong>pois, em 1973, Iggy Pop<br />
aterrava em Londres com o seu novo<br />
parceiro musical, o guitarrista James<br />
Williamson. Resgatado por David Bowie,<br />
preparava-se para dar início a<br />
uma carreira a solo. Depois da edição<br />
do histórico segundo álbum, “Funhouse”,<br />
em 1970, os Stooges, afogados<br />
em dívidas e heroína, sem instrumentos<br />
(vendidos) ou inspiração (<strong>de</strong>masiado<br />
pedrados), colapsaram. Iggy,<br />
salvo por um fã inglês a caminho do<br />
estrelato, estava pronto para recomeçar.<br />
Longe <strong>de</strong> casa, da pequena e boémia<br />
cida<strong>de</strong> estudantil <strong>de</strong> Ann Arbor,<br />
às portas <strong>de</strong> Detroit, tinha uma vaga<br />
i<strong>de</strong>ia do que faria: ainda nos EUA,<br />
Williamson mostrara-lhe o riff <strong>de</strong> uma<br />
nova canção, negra e insinuante, qual<br />
dança sexual e ameaçadora. Era o<br />
embrião <strong>de</strong> “Penetration”, uma das<br />
canções chave <strong>de</strong> “Raw Power”, o álbum<br />
que, à chegada a Londres, Iggy<br />
não sabia ainda que iria gravar.<br />
Se os Monks eram seres alienígenas<br />
Regresso<br />
Iggy Pop, um<br />
“espinho<br />
encravado na<br />
or<strong>de</strong>m<br />
estabelecida”<br />
ao futuro do punk<br />
Quatro americanos em Londres, estranhos num mundo que lhes era estranho, a fazerem a<br />
única coisa que sabiam: The Stooges e “Raw Power”, 1973. Cinco americanos na Alemanha,<br />
capas negras e cabeça revelando uma tonsura: The Monks e “Black Monk Time”, 1965. Agora<br />
que estão reeditados, voltemos ao punk, quando ainda não tinha nome. Mário Lopes<br />
18 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
passeando pela Alemanha com as suas<br />
capas e as suas tonsuras, Iggy Pop<br />
não o seria menos. Basta ver as fotos<br />
da altura: ele em parque londrino no<br />
seu blusão <strong>de</strong> cabedal com leopardo<br />
estampado, <strong>de</strong> tronco nu e calças justíssimas<br />
<strong>de</strong> cor berrante.<br />
Na América, os Stooges, confrontantes<br />
e excessivos, alimentavam-se<br />
do ódio e do terror que causavam.<br />
Como <strong>de</strong>screveu o crítico Lester Bangs,<br />
pareciam “ter construído uma<br />
carreira ao não ultrapassar os seus<br />
traumas <strong>de</strong> adolescência”. “São fascinantes<br />
e autênticos, a apoteose <strong>de</strong><br />
todos os pesa<strong>de</strong>los dos pais”.<br />
Saídos da Detroit <strong>de</strong> MC5 ou Mitch<br />
Ry<strong>de</strong>r, não pertenciam realmente a<br />
nenhuma cena. Aguentavam sós as<br />
garrafas atiradas pelo público, o ar<br />
enojado dos que viam Iggy mutilar-se<br />
em palco e saltar sobre a audiência<br />
<strong>de</strong> tronco nu e ensanguentado (ou<br />
coberto <strong>de</strong> manteiga <strong>de</strong> amendoim).<br />
Em Londres, eram respeitados, mas<br />
o fascínio que suscitavam nascia, precisamente,<br />
da sua absoluta singularida<strong>de</strong>.<br />
Por isso Iggy e James Williamson<br />
não conseguiram encontrar uma<br />
secção rítmica que os acompanhasse,<br />
não encontraram quem pu<strong>de</strong>sse entrar<br />
realmente no gangue – “estes gajos<br />
usam roupas estranhas”, recorda<br />
o guitarrista no DVD que acompanha<br />
a reedição <strong>de</strong> “Raw Power”.<br />
Num ápice, a estreia a solo <strong>de</strong> Iggy<br />
Pop transforma-se num novo álbum<br />
dos Stooges. Os irmãos Ron (guitarrista)<br />
e Scott Asheton (baterista) são<br />
convidados a juntar-se-lhe em Londres<br />
e todas as peças se conjugam.<br />
Vivia-se a euforia do glam-rock,<br />
com Marc Bolan, David Bowie ou Mott<br />
The Hoople, mas Iggy Pop, olhando<br />
além da maquilhagem e da roupa exuberante,<br />
ouvia Chuck Berry e Little<br />
Richard. Como recordou recentemente<br />
à “Clash Magazine”: “Pegámos em<br />
Chuck Berry e Little Richard e filtrámo-los<br />
através daquilo que somos”.<br />
O segredo, como se perceberá, está<br />
naquele “aquilo que somos”: o Iggy<br />
que lia o “Times” sob o sol inglês,<br />
imaginando como ser “um espinho<br />
encravado na or<strong>de</strong>m estabelecida”,<br />
e o grupo que o acompanhava, “sistematicamente<br />
preguiçoso, pouco<br />
comunicativo, irrealista, <strong>de</strong>sagradável<br />
– para toda a gente – e absolutamente<br />
intransigente”.<br />
No estúdio em que ninguém entrava,<br />
os Stooges gravaram um dos álbuns<br />
mais virulentos, selvagens e<br />
provocadores que a história da música<br />
popular conheceu: “gimme danger,<br />
little stranger, so I can feel your<br />
disease”.<br />
Não há fim para esta história<br />
Na Alemanha, os Monks estavam em<br />
casa. Os estudantes <strong>de</strong> arte adoravamnos,<br />
os habitués dos clubes das zonas<br />
boémias i<strong>de</strong>m. Eram, dizem, os preferidos<br />
das prostitutas dos “Red Light<br />
District” <strong>de</strong> Hamburgo e da lendária<br />
Oma, velhota que, anos antes, introduzira<br />
os Beatles às maravilhas do<br />
“speed”. Tudo isto, porém, era pouco.<br />
Cruzaram-se com Jimi Hendrix,<br />
os Kinks ou os Troggs, mas “Black<br />
Monk Time” teve edição vedada nos<br />
EUA e em Inglaterra.<br />
Demasiado estranhos e ambiciosos<br />
para o seu tempo, implodiriam pouco<br />
<strong>de</strong>pois. Nas vésperas <strong>de</strong> uma digressão<br />
pelo Vietname – ouvi-los cantar<br />
“My brother died in Vietnam” em Saigão<br />
seria a subversão suprema -, Gary<br />
Burger recebeu um postal <strong>de</strong> Larry<br />
Clark. Voltara aos EUA e <strong>de</strong>spedia-se<br />
dos Monks. O fim <strong>de</strong> uma história<br />
que, na verda<strong>de</strong>, não acabou: Mark<br />
E. Smith viria a <strong>de</strong>stacá-los como uma<br />
das suas maiores influências, Colin<br />
Greenwood exulta, “It’s always Monk<br />
time!” e os Black Lips dizem que o seu<br />
mundo mudou <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> os ouvirem.<br />
Quanto aos Stooges, <strong>tudo</strong> acabou<br />
como tinha começado. Praticamente<br />
ninguém comprou “Raw Power”. A<br />
agência <strong>de</strong> David Bowie abandonouos,<br />
a banda regressou à América e,<br />
ali, enquanto se sucediam os concertos,<br />
a espiral <strong>de</strong> excessos rapidamente<br />
se tornou incontrolável. A 9 <strong>de</strong><br />
Fevereiro <strong>de</strong> 1974, a história da banda<br />
acabava on<strong>de</strong> começara. O último<br />
concerto teve lugar no Michigan Theater,<br />
em Detroit.<br />
Dois anos <strong>de</strong>pois, o punk tomava<br />
conta <strong>de</strong> Inglaterra e alastrava mundo<br />
fora. The Clash, The Damned, Sex<br />
Pistols. Todos eles <strong>de</strong>stacaram um<br />
album específico como influência<br />
fundamental. Esse mesmo: “Raw Power”.<br />
Ver críticas <strong>de</strong> discos na pág. 52 e segs.<br />
Os Monks<br />
foram gran<strong>de</strong>s<br />
na Alemanha,<br />
e <strong>de</strong>pois nada:<br />
acabaram nas<br />
vésperas <strong>de</strong><br />
uma<br />
digressão ao<br />
Vietname que<br />
seria a<br />
suprema<br />
subversão<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 19
Depois <strong>de</strong> ter abraçado a vanguarda, Cornelius Car<strong>de</strong>w revoltou-se contra o elitismo e virou à esquerda, m<br />
primeiros anos continuou a inspirar artistas <strong>de</strong> todos os quadrantes, <strong>de</strong> Brian Eno a Christian Wolff. Uma e<br />
Car<strong>de</strong>w e a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escrita”, reconstitui uma aventura que foi musical, mas também p<br />
Cornelius Car<strong>de</strong>w, o para<br />
Cornelius Car<strong>de</strong>w (1936-1981) é uma<br />
das personalida<strong>de</strong>s mais paradoxais<br />
da música do século XX, e o seu percurso<br />
criativo inevitavelmente suscita<br />
reações contraditórias. Ao renegar a<br />
vanguarda dos anos 60, da qual tinha<br />
sido um dos membros, em favor <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ais políticos comunistas e <strong>de</strong> um<br />
estilo “populista” para as massas, passou<br />
a ser olhado <strong>de</strong> soslaio. Mas o experimentalismo<br />
radical que praticou<br />
nos anos anteriores, a relação com as<br />
artes gráficas e com outras formas <strong>de</strong><br />
expressão, bem como o questionamento<br />
do próprio acto <strong>de</strong> fazer música<br />
e da formação musical convencional,<br />
levaram a que se tornasse um figura<br />
reverenciada por outros sectores<br />
da criação artística.<br />
É sintomático que a herança <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>w<br />
seja hoje sobre<strong>tudo</strong> reclamada<br />
por compositores como Gavin Bryars,<br />
Brian Eno, Michael Nyman, Fre<strong>de</strong>ric<br />
Rzewski ou Christian Wolff, que se<br />
posicionam numa região <strong>de</strong> fronteira<br />
em relação ao núcleo duro da música<br />
erudita. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do que<br />
foi feito <strong>de</strong>le, é um percurso que merece<br />
reflexão - e a exposição “Cornelius<br />
Car<strong>de</strong>w e a liberda<strong>de</strong> da escuta”<br />
que a Culturgest-Porto inaugura amanhã,<br />
acompanhada por um programa<br />
<strong>de</strong> concertos, performances e conversas<br />
com curadoria <strong>de</strong> Dean Inkster,<br />
Jean-Jacques Palix, Lore Gablier e Pierre<br />
Bal-Blanc, é uma excelente oportunida<strong>de</strong><br />
para o fazer.<br />
A formação inicial <strong>de</strong> Cornelius<br />
Car<strong>de</strong>w foi bastante convencional e<br />
típica <strong>de</strong> um músico britânico: recebeu<br />
treino musical no Coro da Catedral<br />
<strong>de</strong> Canterbury (1943-50) e prosseguiu<br />
<strong>de</strong>pois os es<strong>tudo</strong>s na Royal<br />
Aca<strong>de</strong>my of Music (1953-57). Uma bolsa<br />
permitiu-lhe transferir-se entretanto<br />
para Colónia a fim <strong>de</strong> explorar<br />
o universo da música electrónica,<br />
tornando-se assistente <strong>de</strong> Stockhausen<br />
entre 1958 e 1960. Quando regressou<br />
a Londres, em 1961, fez um curso<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sign gráfico e em 1967 tornou-se<br />
professor <strong>de</strong> composição da Royal<br />
Aca<strong>de</strong>my of Music.<br />
Enquanto trabalhou com Stockhausen,<br />
Car<strong>de</strong>w tomou contacto com John<br />
Cage e ficou fascinado pelas suas<br />
experiências no campo da música aleatória.<br />
Era reconhecido como uma das<br />
figuras <strong>de</strong> vanguarda na cena musical<br />
inglesa, mas pouco a pouco começou<br />
a <strong>de</strong>sconfiar do “elitismo” da música<br />
contemporânea e a questionar a valida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> uma educação musical formal:<br />
Car<strong>de</strong>w achava que as respostas<br />
mais criativas vinham <strong>de</strong> intérpretes<br />
<strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> concepções musicais<br />
prévias.<br />
Começou então a conceber partituras<br />
usando notação gráfica, como suce<strong>de</strong><br />
nas 193 páginas <strong>de</strong> “Treatise”<br />
(1967), que po<strong>de</strong>m ser vistas também<br />
como uma obra visual abstracta. A<br />
interpretação musical era mais problemática,<br />
uma vez que não se indicava<br />
a ninguém o que tinha <strong>de</strong> tocar.<br />
“Cada pessoa terá <strong>de</strong> encontrar o caminho<br />
por si própria, lendo a partitura”,<br />
escreveu o compositor.<br />
Outras obras, como “The Tiger’s<br />
Mind” (1967), usam instruções verbais<br />
ou combinações <strong>de</strong>stas duas técnicas<br />
Música<br />
A Scratch<br />
Orchestra<br />
<strong>de</strong> Cornelius<br />
Car<strong>de</strong>w<br />
incluía<br />
músicos e<br />
não-músicos:<br />
algumas das<br />
suas peças<br />
eram<br />
verda<strong>de</strong>iramente<br />
conceptuais,<br />
no sentido<br />
em que não<br />
podiam<br />
ser executadas<br />
com notação musical muito<br />
simples, como suce<strong>de</strong> em<br />
“The Great Learning”, composição<br />
escrita entre 1968 e<br />
1971 a partir das sete passagens<br />
iniciais do “Ta Hio”, o<br />
primeiro dos quatro livros<br />
que formam o conjunto clássico<br />
<strong>de</strong> pensamentos morais<br />
atribuídos a Confúcio (ver<br />
caixa). A diversida<strong>de</strong> das técnicas<br />
utilizadas nesta obra<br />
resume praticamente todas<br />
as tentativas <strong>de</strong> rejuvenescer<br />
a prática musical após o <strong>de</strong>clínio<br />
do serialismo enquanto<br />
forma musical predominante,<br />
no período subsequente ao<br />
pós-guerra.<br />
Da liberda<strong>de</strong> à ditadura<br />
A reflexão política <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>w<br />
sobre o estatuto da produção<br />
e da recepção musicais levaram-no<br />
a instigar uma das mais<br />
importantes tentativas <strong>de</strong> reivindicação<br />
<strong>de</strong>mocrática da cultura<br />
<strong>de</strong> vanguarda através da<br />
criação da Scratch Orchestra.<br />
Nascido a partir das aulas que o<br />
compositor leccionava, em 1968,<br />
no Morley College (um colégio<br />
<strong>de</strong> educação para adultos no Sul<br />
<strong>de</strong> Londres), este colectivo questionava<br />
as limitações sociais da<br />
Car<strong>de</strong>w trabalhou<br />
com Stockhausen<br />
e ficou fascinado<br />
pelas experiências<br />
<strong>de</strong> Cage, mas pouco<br />
a pouco começou<br />
a <strong>de</strong>sconfiar<br />
do “elitismo”<br />
da música<br />
contemporânea:<br />
quanto menos<br />
formação musical<br />
prévia melhor<br />
KEITH ROWE<br />
A conversão <strong>de</strong> Cornelius<br />
Car<strong>de</strong>w (<strong>de</strong> pé) ao maoísmo<br />
e aos princípios da Revolução<br />
Cultural levou-o a rejeitar<br />
o idioma mais complexo<br />
e avançado das suas<br />
obras anteriores<br />
20 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
, mas o radicalismo experimental dos<br />
a exposição na Culturgest-Porto, “Cornelius<br />
política. Cristina Fernan<strong>de</strong>s<br />
adoxal<br />
arte e da música como domínios <strong>de</strong><br />
conhecimento e experiência especializados,<br />
combinando músicos e nãomúsicos.<br />
“Estas pessoas po<strong>de</strong>m ser<br />
artistas visuais, po<strong>de</strong>m ser pessoas<br />
interessadas em teatro, po<strong>de</strong>m ser<br />
empregados <strong>de</strong> escritório perfeitamente<br />
<strong>normais</strong>, ou estudantes, ou o<br />
que quer que seja. Não têm necessariamente<br />
formação para tocar um<br />
instrumento. Alguns <strong>de</strong>les entregavam-se<br />
a activida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> diversos tipos,<br />
não produzindo necessariamente<br />
som”, explicou mais tar<strong>de</strong> Car<strong>de</strong>w<br />
numa entrevista à BBC. Algumas das<br />
activida<strong>de</strong>s da orquestra “incluíam<br />
tocar instrumentos convencionais,<br />
como saxofones, ou flautas ou o que<br />
quer que fosse”. Outras “envolviam<br />
simplesmente fazer movimentos com<br />
a mão ou arranjar um lenço, activida<strong>de</strong>s<br />
que não produziam necessariamente<br />
som”, acrescentou o compositor<br />
na mesma ocasião.<br />
O repertório da Scractch Orchestra<br />
incluía vários tipos <strong>de</strong> peças, “rituais<br />
<strong>de</strong> improvisação”, novas composições<br />
dos membros da orquestra ou paráfrases<br />
basedas em “clássicos populares”.<br />
Em 1972, Car<strong>de</strong>w publicou uma<br />
antologia <strong>de</strong> peças dos 15 membros<br />
da orquestra. Muito poucas empregavam<br />
notação musical <strong>de</strong>finida no sentido<br />
convencional, sendo na sua maioria<br />
<strong>de</strong>senhos ou instruções verbais. O<br />
livro culmina com a famosa lista das<br />
“1001 activida<strong>de</strong>s dos membros da<br />
Scratch Orchestra”, muitas <strong>de</strong>las apenas<br />
conceptuais, no sentido em que<br />
po<strong>de</strong>m ser imaginadas mas não concretizadas<br />
literalmente.<br />
O trabalho <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>w com a Scratch<br />
Orchestra acabaria por ter um forte<br />
impacto nas suas perspectivas musicais<br />
e políticas. Foi mais ou menos<br />
nessa época que se converteu num<br />
comunista militante e rejeitou <strong>de</strong>finitivamente<br />
o idioma musical mais complexo<br />
e avançado das suas obras anteriores.<br />
Na perspectiva da Revolução<br />
Cultural chinesa <strong>de</strong> Mao Tsé-Tung, via<br />
essas técnicas como “<strong>de</strong>svios burgueses”<br />
e consi<strong>de</strong>rava-as inapropriadas<br />
para “as lutas vitais das classes oprimidas”,<br />
conforme escreveu no Prefácio<br />
do seu “Álbum para Piano” (1973).<br />
Voltou-se então para um estilo simplista<br />
baseado na tonalida<strong>de</strong> tradicional,<br />
escrevendo canções <strong>de</strong> intervenção<br />
para as massas e peças <strong>de</strong> concerto<br />
baseadas em melodias populares<br />
com fortes conotações políticas. Em<br />
1974, publicou “Stockhausen serve o<br />
imperialismo”, on<strong>de</strong> faz sarcásticas<br />
críticas à vanguarda e à cultura musical<br />
dominante: “Actualmente um concerto<br />
<strong>de</strong> Cage po<strong>de</strong> ser um evento<br />
social (...). O vazio <strong>de</strong> Cage não contradiz<br />
a audiência burguesa que está<br />
confiante na sua habilida<strong>de</strong> para cultivar<br />
o gosto por virtualmente nada”,<br />
escreveu. Mas algumas das suas últimas<br />
obras têm uma escrita bastantes<br />
virtuosística e requerem intérpretes<br />
hábeis, como por exemplo “Boolavogue”,<br />
uma composição para dois pianos<br />
que ficou inacabada quando o<br />
compositor faleceu, em 1981.<br />
A recuperação do legado <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>w,<br />
e a reflexão sobre a dimensão<br />
política do seu percurso, tiveram<br />
MECENAS CICLO JAZZ<br />
QUI 20 MAI<br />
22:00 SALA SUGGIA | € 15<br />
MECENAS CASA DA MÚSICA<br />
PETER BRÖTZMANN saxofone, clarinete<br />
JOHANNES BAUER trombone<br />
JEB BISHOP trombone<br />
MATS GUSTAFSSON saxofones<br />
PER-ÂKE HOLMLANDER tuba<br />
KENT KESSLER contrabaixo<br />
FRED LONBERG-HOLM violoncelo<br />
JOE MCPHEE trompete<br />
PAAL NILSSEN-LOVE bateria<br />
KEN VANDERMARK saxofone, clarinete<br />
MICHAEL ZERANG bateria<br />
Dentre os ensembles criados pelo músico<br />
alemão Peter Brötzmann, Chicago Tentet é<br />
o mais reconhecido. Formado em 1997, reúne<br />
improvisadores <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relevo na cena<br />
<strong>de</strong> Chicago com alguns dos seus congéneres<br />
europeus e tem tocado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então em<br />
digressão pelos EUA e Europa. A contribuição<br />
dos seus membros já não passa pelas<br />
composições originais, dado que nos últimos<br />
cinco anos o grupo passou a privilegiar a<br />
improvisação total. A musicalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada<br />
elemento é explorada ao limite e <strong>de</strong> forma<br />
completamente espontânea.<br />
JANTAR + CONCERTO € 30<br />
APOIO INSTITUCIONAL<br />
MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICA<br />
SEJA UM DOS PRIMEIROS A APRESENTAR HOJE ESTE JORNAL COMPLETO NA CASA DA MÚSICA E GANHE UM CONVITE<br />
DUPLO PARA ESTE CONCERTO. OFERTA LIMITADA AOS PRIMEIROS 10 LEITORES.<br />
www.casadamusica.com | www.casadamusica.tv | T 220 120 220<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 21
Escola<strong>de</strong>Mulheres<br />
oficina<strong>de</strong>teatro<br />
um novo impulso a partir <strong>de</strong> 2006,<br />
ano do 70º aniversário do seu nascimento.<br />
As interpretações da sua obra<br />
tornaram-se mais regulares e foi publicada<br />
nesse ano uma antologia dos<br />
seus escritos, “Cornelius Car<strong>de</strong>w<br />
(1936-1981): A Rea<strong>de</strong>r”, seguida em<br />
2008 pela publicação <strong>de</strong> uma extensa<br />
biografia, “Cornelius Car<strong>de</strong>w (1936-<br />
1981): A Life Unfinished”, escrita pelo<br />
pianista (e ex-membro da Scratch Orchestra)<br />
John Tilbury, que também<br />
estará presente no ciclo que se realiza<br />
no Porto.<br />
Figura controversa, Car<strong>de</strong>w continua<br />
a colocar <strong>de</strong>safios aos músicos e<br />
não músicos e a fazer-nos reflectir. A<br />
“liberda<strong>de</strong> da escuta” não po<strong>de</strong> ser<br />
uma nova ditadura.<br />
Ver agenda <strong>de</strong> exposições na pág. 39 e<br />
segs.<br />
No seu mais<br />
célebre<br />
ensaio,<br />
“Stockhausen<br />
serve o<br />
imperialismo”<br />
(1974),<br />
Car<strong>de</strong>w<br />
contestou a<br />
transformação<br />
da<br />
música <strong>de</strong><br />
vanguarda<br />
num acontecimento<br />
social<br />
para servir<br />
audiências<br />
burguesas<br />
“If the root be in confusion, nothing will<br />
be well governed. The solid cannot be<br />
swept away as trivial, nor can trash be<br />
established as solid. It just doesn’t happen.<br />
Take not cliff for morass and treacherous<br />
bramble.”<br />
(“Se a raiz vive na confusão, nada será<br />
bem governado. O sólido não po<strong>de</strong><br />
ser varrido enquanto trivial, nem o<br />
lixo ser consi<strong>de</strong>rado como sólido. Isso<br />
simplesmente não acontece. Não subas<br />
à falésia pelo caminho do pântano e dos<br />
traiçoeiros arbustos espinhosos.”)<br />
Parágrafo sete <strong>de</strong> “The Great Learning”,<br />
<strong>de</strong> Confúcio e discípulos, séculos V-II a.C.<br />
Traduzido por Ezra Pound em<br />
1928, “The Great Learning”, texto<br />
escrito por Confúcio e pelos seus<br />
discípulos entre os séculos V e<br />
II a.C., é também o título <strong>de</strong> um<br />
dos mais significativos trabalhos<br />
experimentais <strong>de</strong> Cornelius<br />
Car<strong>de</strong>w, tendo sido composto<br />
numa época <strong>de</strong> revoluções, entre<br />
1968 e 1971. O “Parágrafo 7”, para<br />
um número in<strong>de</strong>terminado <strong>de</strong><br />
vozes amadoras, será interpretado<br />
amanhã, a partir das 16h30, na<br />
Culturgest-Porto, na abertura da<br />
exposição itinerante <strong>de</strong>dicada<br />
ao compositor inglês, “Cornelius<br />
Car<strong>de</strong>w e a liberda<strong>de</strong> da escuta”,<br />
cujos comissários dirigirão o coro.<br />
Como se lê nas notas incluídas no<br />
programa da “performance”, as<br />
instruções verbais que constituem<br />
a partitura “não exigem<br />
experiência musical prévia e são<br />
acessíveis a qualquer grupo <strong>de</strong><br />
pessoas que queira interpretá-las.”<br />
A revolução musical <strong>de</strong><br />
Cornelius Car<strong>de</strong>w encontra um<br />
paralelo naquela que Joseph<br />
Beuys tentou realizar no contexto<br />
das artes plásticas. Para o<br />
compositor britânico, qualquer<br />
pessoa podia interpretar algumas<br />
das suas partituras, enquanto o<br />
mote do artista alemão era “cada<br />
homem, um artista” – em pano<br />
<strong>de</strong> fundo po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>tectar-se as<br />
influências quer <strong>de</strong> John Cage,<br />
quer do movimento Fluxus.<br />
Ambos tiveram igualmente uma<br />
consi<strong>de</strong>rável activida<strong>de</strong> política,<br />
procurando assim prolongar as<br />
suas activida<strong>de</strong>s num campo<br />
social mais alargado. Car<strong>de</strong>w,<br />
para além <strong>de</strong> ter ministrado a<br />
ca<strong>de</strong>ira “Songs for Our Society”,<br />
no Goldsmiths, em Londres, foi<br />
um dos fundadores do Partido<br />
Comunista Revolucionário da<br />
Grã-Bretanha, <strong>de</strong> tendência<br />
marxista-leninista; e Beuys, na V<br />
Documenta <strong>de</strong> Kassel, em 1972,<br />
apresentou o “gabinete para a<br />
O gran<strong>de</strong> ensinamento<br />
A exposição proposta<br />
pela Culturgest<br />
po<strong>de</strong> ser mais um<br />
momento do <strong>de</strong>bate<br />
acerca das relações,<br />
nem sempre claras,<br />
entre a arte e a<br />
política<br />
<strong>de</strong>mocracia directa” – mais tar<strong>de</strong><br />
veio a estar na origem do partido<br />
alemão Os Ver<strong>de</strong>s.<br />
A China, e nomeadamente o<br />
arco que vai <strong>de</strong> Confúcio a Mao,<br />
foi o horizonte para o qual Car<strong>de</strong>w<br />
olhou com mais insistência na<br />
fase política da sua activida<strong>de</strong><br />
enquanto compositor. Segundo<br />
Brian Dennis, a partir do segundo<br />
dos sete parágrafos <strong>de</strong> “The<br />
Great Learning”, <strong>de</strong>tecta-se o<br />
envolvimento e a influência da<br />
Scratch Orchestra, nomeadamente<br />
nas “implicações sociais” da obra,<br />
sobre<strong>tudo</strong> ao mudar-se a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
“cada um reagir à sua maneira”,<br />
formulada por Cage, pelo<br />
princípio <strong>de</strong> “cada um apren<strong>de</strong>r<br />
à sua maneira” – o “trabalho é<br />
educativo no sentido mais amplo”,<br />
nota ainda o ensaísta, num<br />
texto publicado em 1971, em que<br />
assinala o número <strong>de</strong> páginas da<br />
composição, 23, o azul da capa<br />
e a excelente reprodução da<br />
caligrafia do artista, isto <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> afirmar a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />
“comentário po<strong>de</strong>r prestar a<br />
<strong>de</strong>vida justiça a um trabalho on<strong>de</strong><br />
o envolvimento pessoal ‘está<br />
escrito na partitura’.” Leiam-se<br />
novamente as notas do programa<br />
do espectáculo: “O ‘Parágrafo 7’<br />
é, em termos composicionais,<br />
o ponto culminante da obra <strong>de</strong><br />
Car<strong>de</strong>w no que diz respeito à<br />
criação <strong>de</strong> uma composição que<br />
subverte o virtuosismo técnico e a<br />
concomitante divisão hierárquica<br />
entre intérprete e ouvinte que<br />
tradicionalmente regula a música<br />
enquanto forma cultural.”<br />
Música para as massas<br />
O interesse <strong>de</strong> Ezra Pound por<br />
Confúcio nasceu em Inglaterra,<br />
na Stone Cottage <strong>de</strong> William<br />
Butler Yeats, casa partilhada pelos<br />
poetas nos invernos <strong>de</strong> 1913 a 1916.<br />
Nesse período, ambos estudaram<br />
intensamente o japonês,<br />
nomeadamente o teatro Noh, que<br />
forneceu a Yeats o mo<strong>de</strong>lo para a<br />
sua peça “At the Hawk’s Well”, cujo<br />
primeiro esboço foi ditado a Pound<br />
em Janeiro <strong>de</strong> 1916 – o interesse<br />
pelo Oriente tinha sido potenciado<br />
pelo facto <strong>de</strong> a viúva <strong>de</strong> Ernest<br />
Fenollosa ter enviado a Pound<br />
os poemas traduzidos pelo seu<br />
marido, sendo que estes viriam a<br />
ser não só a base do <strong>de</strong>nominado<br />
método “i<strong>de</strong>ogrâmico”, mas<br />
também a origem <strong>de</strong> “Cathay”,<br />
livro publicado em 1915.<br />
Mais tar<strong>de</strong>, em 1927, quando<br />
trabalhava nas traduções <strong>de</strong><br />
Cavalcanti, o autor dos “Cantos”,<br />
recebeu da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Seattle, nos Estados Unidos, um<br />
convite para escrever um texto<br />
autobiográfico, que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
recusado, permitiu ao escritor<br />
contrapor uma sua versão <strong>de</strong><br />
“Tao Hio”, “The Great Learning”<br />
– na realida<strong>de</strong> uma tradução <strong>de</strong><br />
“Ta-siue” (“La Gran<strong>de</strong> Étu<strong>de</strong>”),<br />
realizada, no século XIX, pelo<br />
sinólogo francês Jean-Pierre-<br />
Guillaume Pauthier; Pound<br />
ainda chegou a trabalhar uma<br />
introdução ao texto em que<br />
“atacava os valores oci<strong>de</strong>ntais e o<br />
peso da burocracia.”<br />
A tradução usada por Car<strong>de</strong>w<br />
em “The Great Learning” é a<br />
<strong>de</strong> Pound; con<strong>tudo</strong>, nos anos<br />
1970, o seu período maoísta, o<br />
compositor realizou uma revisão<br />
do texto <strong>de</strong> forma a sintonizá-lo<br />
com o pensamento do “Gran<strong>de</strong><br />
Timoneiro”, tendo-se justificado<br />
com as palavras <strong>de</strong> Mao Tsé-<br />
Tung para explicar as alterações<br />
produzidas: “As obras <strong>de</strong> arte que<br />
não servem as lutas das gran<strong>de</strong>s<br />
massas po<strong>de</strong>m ser transformadas<br />
em obras <strong>de</strong> arte que o<br />
fazem.” Mais tar<strong>de</strong>, no célebre<br />
ensaio “Stockhausen serve o<br />
imperialismo” (1974), o compositor<br />
inglês colocou em questão quer a<br />
sua obra, quer a sua tentativa <strong>de</strong> a<br />
mudar <strong>de</strong> acordo com princípios<br />
políticos, criticando ainda as<br />
ressonâncias fascistas que o<br />
pensamento <strong>de</strong> Confúcio adquire<br />
na obra <strong>de</strong> Pound.<br />
A exposição proposta pela<br />
Culturgest po<strong>de</strong> ser mais um<br />
momento do <strong>de</strong>bate acerca das<br />
relações, nem sempre claras,<br />
entre a arte e a política. A<br />
mostra, sobre<strong>tudo</strong> documental,<br />
funciona como um dispositivo<br />
para receber o programa <strong>de</strong><br />
concertos, conferências, ensaios<br />
e performances. Ela é sobre<strong>tudo</strong><br />
um lugar <strong>de</strong> aprendizagem, on<strong>de</strong><br />
se po<strong>de</strong> encontrar a partitura<br />
do “Treatise” (1963-1967) – um<br />
trabalho influenciado por<br />
Wittgenstein –, fotografias,<br />
cartazes, filmes e documentários,<br />
que traduzem não só o percurso<br />
individual <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>w, mas<br />
também o dos grupos com os<br />
quais colaborou, como a Scratch<br />
Orchestra e os AMM. Haverá ainda<br />
muita música para ouvir, tanto no<br />
átrio do edifício como em diversos<br />
pontos <strong>de</strong> escuta. E é aqui que<br />
faz sentido evocar as palavras <strong>de</strong><br />
Robert Wyatt, escritas em 1991:<br />
“Se a palavra ‘romântico” <strong>de</strong>ve<br />
ser salva dos sentimentalistas<br />
caprichosos, é para que a<br />
possamos aplicar correctamente<br />
a Cornelius Car<strong>de</strong>w: uma fonte<br />
<strong>de</strong> música corajosa, <strong>de</strong> cortar a<br />
respiração.” Óscar Faria<br />
22 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
MIGUEL MANSO<br />
A culpa é do pai. A culpa é <strong>de</strong> “Kramer<br />
contra Kramer”.<br />
Sobre o primeiro, servirá para explicar<br />
o facto <strong>de</strong> os cinéfilos Josh e<br />
Benny Safdie serem cine-filhos - entre<br />
a cinefilia e a biografia, isso fica(-lhes)<br />
bem.<br />
O segundo, um filme <strong>de</strong> 1979 <strong>de</strong><br />
Robert Benton, não é um título óbvio<br />
para se atirar num festival <strong>de</strong> cinema<br />
“in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte” – porque tem estrelas,<br />
Dustin Hoffman e Meryl Streep, e<br />
porque tem fama <strong>de</strong> puxar pelos lenços<br />
dos espectadores (já agora: é tão<br />
magnificamente enxuto que as arestas<br />
magoam). Mas nisto do que é “indie”<br />
ou não, os irmãos Josh, 26 anos, e<br />
Benny, 24, não são politicamente correctos<br />
nem obe<strong>de</strong>cem ao cliché – lá<br />
chegaremos e à agenda que essa palavra,<br />
“indie”, comporta. Fiquemonos,<br />
para já, com o pai Safdie, com<br />
Dustin Hoffman e Meryl Streep, e com<br />
a forma como o cinema nasceu para<br />
Josh e Benny, os cineastas que aqui<br />
apresentamos. O seu filme, “Go Get<br />
Some Rosemary”, história <strong>de</strong> Lenny,<br />
um pai divorciado que recria o mundo<br />
para os seus filhos e não os poupa<br />
à sua <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, venceu o Indie<strong>Lisboa</strong>.<br />
Josh: O nosso pai iniciou-nos ao cinema.<br />
Ele fazia sempre <strong>de</strong> Dustin Hoffman<br />
o seu duplo nos filmes. Mostrou-nos<br />
“Kramer contra Kramer” quando tínhamos<br />
seis anos, e disse-nos: “este sou eu,<br />
o miúdo são vocês e a mãe <strong>de</strong>le é a vossa<br />
mãe”.<br />
(Parêntesis: o pai Safdie, na altura em<br />
que mostrou aos filhos a batalha judicial<br />
<strong>de</strong> Dustin Hoffman contra Meryl<br />
Streep pela custódia da criança, já se<br />
tinha separado da mãe Safdie)<br />
Josh: É uma forma louca <strong>de</strong> apresentar<br />
o cinema a miúdos. Está-se a dizer que<br />
o cinema é um utensílio importante: um<br />
espelho da vida. Que não é apenas entretenimento.<br />
E ele continuou por essa<br />
via, comprando uma câmara, e filmando-nos<br />
constantemente. Já nos passou<br />
300 horas <strong>de</strong> gravações... Há quatro<br />
anos começou a dar-nos as primeiras<br />
“Po<strong>de</strong>mos filmar num<br />
sítio, <strong>de</strong>pois no outro,<br />
mesmo que não haja<br />
ligação entre os dois.<br />
Mas ao fazermos a<br />
ligação, estamos a dar<br />
uma versão da nossa<br />
Nova Iorque, que não<br />
sei se ainda é real ou<br />
se foi real: numa<br />
esquina estamos nos<br />
anos 70, ao darmos<br />
a volta estamos nos<br />
anos 40...”<br />
Benny Safdie<br />
cassetes. É <strong>de</strong> loucos. Por exemplo, imagens<br />
<strong>de</strong> mim no dia dos meus anos a<br />
agarrar uma chávena e um “zoom” do<br />
meu pai sobre mim. O que é tão importante<br />
assim que levou o meu pai a filmar-me?<br />
Foi o início <strong>de</strong>ssa coisa do cinema<br />
como reflexão. Estamos-lhe imensamente<br />
gratos. A personagem <strong>de</strong> Lenny<br />
[o pai <strong>de</strong> “Go Get Some Rosemary”] está<br />
também, <strong>de</strong> alguma maneira, a dar cinema<br />
aos filhos. Uma espécie <strong>de</strong> “cinema”<br />
espontâneo, ao vivo: vemos a realida<strong>de</strong><br />
à medida que ela se <strong>de</strong>senrola. É<br />
<strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> cinema que gostamos. O<br />
estilo <strong>de</strong> vida que Lenny cria para os<br />
filhos é cinema para nós: o sentido <strong>de</strong><br />
anarquia que lhes permite pensar “fora<br />
da caixa”, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que <strong>tudo</strong> po<strong>de</strong><br />
acontecer a qualquer momento. Caramba,<br />
é por isso que nós hoje filmamos!<br />
Caramba, é por isso que “Go Get Some<br />
Rosemary” é assim!<br />
É Lenny, o pai, um projeccionista<br />
Um pai recria<br />
o mundo aos<br />
seus filhos:<br />
“Go get Some<br />
Rosemary”,<br />
o lírico e<br />
anárquico<br />
filme que<br />
venceu o<br />
Indie<strong>Lisboa</strong><br />
Cinema<br />
MIGUEL MANSO<br />
Josh e Benny,<br />
performers<br />
natos,<br />
transforman<br />
qualquer<br />
espaço num<br />
cenário <strong>de</strong><br />
pantomima<br />
Safdie<br />
O pai mostrou-lhes “Kramer contra Kramer” quando tinham seis anos e foi toda uma educação<br />
e que em Julho chegará às salas, é ao mesmo tempo a cinefilia e a biografia <strong>de</strong>les, os irmãos<br />
J<br />
24 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
MIGUEL MANSO<br />
(interpretado por um amigo dos Safdie,<br />
o também realizador Ronald<br />
Bronstein), um corredor <strong>de</strong> fundo das<br />
suas fantasias – é uma daquelas personagens<br />
cuja vertigem, para ser partilhável,<br />
exige muito do fôlego do espectador.<br />
É, também, uma energia que não<br />
se extingue, antes pelo contrário, o<br />
que se po<strong>de</strong> tornar angustiante para<br />
quem está sentado na sala: Josh e<br />
Benny nunca <strong>de</strong>ixam que as cenas,<br />
ou o lirismo, se instalem numa zona<br />
<strong>de</strong> conforto. Cortam sempre antes <strong>de</strong><br />
<strong>tudo</strong> se fixar, o que abastece o espectador<br />
com uma reserva <strong>de</strong> excitação<br />
que ele não sabe on<strong>de</strong> gastar - sensação<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconforto, é verda<strong>de</strong>, que<br />
vai ser apaziguada, que vai ter consolo,<br />
como uma epifania final: sentimos,<br />
por isso temos a certeza, que “Go Get<br />
Some Rosemary” é um gran<strong>de</strong> filme.<br />
E ainda, o que não é menos <strong>de</strong>slumbrante:<br />
a forma como nos aparece<br />
Nova Iorque, cida<strong>de</strong> tão filmada que<br />
aqui, ou nas curtas dos dois realizadores<br />
(http://www.redbucketfilms.<br />
com/), parece nunca ter sido antes<br />
vista: algures entre a memória <strong>de</strong> um<br />
passado – como uma lembrança? – e<br />
a efervescência <strong>de</strong> um presente. Em<br />
que época se passa “Go Get Some Rosemary”,<br />
Josh e Benny: hoje ou num<br />
filme, dos anos 70, <strong>de</strong> John Cassavetes?<br />
Josh: Passa-se agora, hoje. Mas com as<br />
nossas memórias. Isso tem a ver com o<br />
facto <strong>de</strong> termos crescido em Nova Iorque,<br />
se calhar tem a ver com uma memória<br />
cinéfila ou até com um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />
nos agarrarmos ao que resta <strong>de</strong> Nova<br />
Iorque. Nos anos 90 as autorida<strong>de</strong>s tentaram<br />
diluir a personalida<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong>.<br />
Temos, então, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> nos agarrarmos<br />
ao que ficou. O nosso pai mudou-se<br />
para Manhattan, <strong>de</strong>cidiu casar com a<br />
nossa mãe, divorciaram-se logo a seguir<br />
– era uma relação terrivel –, começou a<br />
namorar com uma mulher xunga <strong>de</strong><br />
Queens, que não podia ser mais Nova<br />
Iorque. Era uma pessoa horrível mas<br />
não podia ser mais Nova Iorque, como<br />
se vivesse num filme dos anos 70. A nossa<br />
infância existe nessa Nova Iorque. É<br />
isso o que conhecemos.<br />
Benny: A personagem do filme não tem<br />
um tempo <strong>de</strong>le próprio, não tem presente,<br />
não tem passado. Com muitos<br />
dos nossos filmes, somos atraídos por<br />
lugares intemporais <strong>de</strong> Nova Iorque. Se<br />
gostamos <strong>de</strong> um edifício ou <strong>de</strong> um lugar,<br />
vamos para lá filmar e isso está sempre<br />
ligado a algo que queremos recordar<br />
<strong>de</strong>sse lugar. Ou seja: não estávamos a<br />
querer fazer um filme <strong>de</strong> época, mas é<br />
possível que tenhamos criado algo <strong>de</strong><br />
intemporal.<br />
Josh: O que falta a muitos filmes que se<br />
passam em Nova Iorque hoje é a espontaneida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> acontecer algo <strong>de</strong> imprevisível<br />
numa esquina. Como uma cida<strong>de</strong><br />
quarteirão a quarteirão. O nosso<br />
cinema existe quarteirão a quarteirão,<br />
literalmente. Numa esquina filmacom<br />
Safdie<br />
sentimental. “Go Get Some Rosemary”, o filme com que no sábado ganharam o Indie<strong>Lisboa</strong><br />
Josh e Benny Safdie. Numa Nova Iorque como nunca a tínhamos visto. Vasco Câmara<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 25
Frey e Sage<br />
foram<br />
“<strong>de</strong>scobertos”<br />
na rua; só<br />
mais tar<strong>de</strong> os<br />
realizadores<br />
<strong>de</strong>scobriram<br />
que eram<br />
filhos <strong>de</strong> Lee<br />
Ranaldo<br />
(Sonic Youth)<br />
mos um coisa, na esquina seguinte<br />
outra diferente. E geograficamente não<br />
nos importamos: por exemplo, numa<br />
cena po<strong>de</strong>mos estar na esquina da<br />
Third Street e a cena seguinte po<strong>de</strong> ter<br />
lugar no Harlem.<br />
Benny: E ao fazermos a ligação, estamos<br />
a dar uma versão da nossa Nova<br />
Iorque, que não sei se ainda é real ou se<br />
alguma vez foi real: numa esquina estamos<br />
nos anos 70, ao darmos a volta<br />
estamos nos anos 40...<br />
Josh: E quanto à excitação da personagem,<br />
para nós esse lado maníaco é uma<br />
forma <strong>de</strong> ela evitar a <strong>de</strong>pressão. Quando<br />
se pára para pensar na vida, isso<br />
po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>primente. Se estivermos<br />
sempre em movimento, não <strong>de</strong>ixaremos<br />
que isso aconteça. Do ponto <strong>de</strong> vista<br />
cinematográfico, é claro que Cassavetes<br />
é o padrinho do cinema indie americano.<br />
“Uma Mulher sob Influência” [Cassavetes,<br />
1974] acrescentou algo às nossas<br />
vidas. Mas há outras enormes influências:<br />
Jean Vigo, por exemplo. Não<br />
tanto as personagens, mas o mundo em<br />
que elas vivem. É isso que domina os<br />
filmes, que controla os filmes, não há<br />
tempo para reflexão. Como se o filme<br />
tivesse vida própria, energia própria.<br />
Ha muitos realizadores que são melhores<br />
do que os seus próprios filmes, que<br />
ditam o estilo dos seus filmes. Isso,<br />
quanto a nós, mata os filmes.<br />
A referência a Vigo, ao Vigo <strong>de</strong> “Zero<br />
em Comportamento”, por exemplo,<br />
à energia anárquica, a algo <strong>de</strong> incontrolável<br />
que inva<strong>de</strong> o filme, faz sentido<br />
quando se vê “Go get Some Rosemary”.<br />
Neste filme, o mundo a que chamamos<br />
“adulto” está “off limits”. Há<br />
aquele momento, por exemplo, em<br />
que um insecto gigante se materializa,<br />
como numa ficção científica paranóica<br />
dos anos 50 (já em “The Pleasure<br />
of Being Robbed”, filme só <strong>de</strong> Benny<br />
Safdie, a personagem enfrentava quase<br />
amorosamente um gran<strong>de</strong> urso<br />
branco), e contra isso não po<strong>de</strong>mos<br />
nada. De não servem os nossos “filtros”.<br />
O filme existe como quer (alguém<br />
já classificou esse um momento<br />
“cronenberguiano” num pedaço <strong>de</strong><br />
“Os realizadores<br />
têm <strong>de</strong> actuar para<br />
os seus actores. Por<br />
isso é que gostamos <strong>de</strong><br />
não-actores: obrigamnos<br />
a ser performers,<br />
a estimular as<br />
pessoas <strong>de</strong> forma<br />
performativa. Dirigir<br />
é um performance”<br />
Josh Safdie<br />
Cassavetes, mas quem “está vivo!” não<br />
é o insecto, é o filme).<br />
A propósito <strong>de</strong> energia, se pararmos<br />
um bocado para olhar para Josh<br />
e Benny, dá para nos perguntarmos<br />
quais as consequências da exposição<br />
a uma câmara <strong>de</strong> filmar ou <strong>de</strong> fotografar:<br />
são “performers” natos, transformam<br />
qualquer espaço num cenário<br />
<strong>de</strong> pantomima. Benny é um caso<br />
mais agudo – não é por acaso que, nas<br />
curtas dos irmãos, é ele o actor, <strong>de</strong>finindo<br />
uma presença algures entre o<br />
“stand-up comedian” e o burlesco do<br />
mudo.<br />
Josh: Benny é um performer. Eu posso<br />
interpretar variações <strong>de</strong> mim; Benny<br />
po<strong>de</strong> transformar-se em personagens.<br />
Des<strong>de</strong> miúdos que ele é o performer e<br />
eu o espectador da performance <strong>de</strong>le<br />
E Josh conta que quando embarcavam<br />
no avião para <strong>Lisboa</strong>, Benny subiu as<br />
escadas e acenou ao povo exactamente<br />
como um presi<strong>de</strong>nte; está em http://www.youtube.com/<br />
watch?v=gwoBXqMl0Yc<br />
Josh: Neste filme não podíamos ser o<br />
pai, não podíamos ser os dois filhos [que<br />
foram <strong>de</strong>scobertos na rua; Josh achou<br />
o miúdo Frey igualzinho ao irmão<br />
Benny quando este tinha oito anos, e<br />
comoveu-se; chegaram aos pais das<br />
crianças, e então <strong>de</strong>scobriam que Sage<br />
e Frey tinham o apelido Ranaldo, são<br />
filhos <strong>de</strong> Lee Ranaldo dos Sonic Youth].<br />
Mas gosto da i<strong>de</strong>ia dos realizadores como<br />
‘performers’. Têm <strong>de</strong> actuar para os<br />
seus actores. Por isso é que gostamos <strong>de</strong><br />
não-actores: obrigam-nos a ser performers,<br />
a estimular as pessoas <strong>de</strong> forma<br />
Estão tão<br />
ligados que<br />
ou se juntam<br />
para corealizarem<br />
ou se afastam<br />
para nenhum<br />
<strong>de</strong>les tocar<br />
no projecto<br />
do outro<br />
MIGUEL MANSO<br />
performativa. Dirigir é um performance.<br />
Como co-realizadores, são inseparáveis.<br />
Partilham as responsabilida<strong>de</strong>s,<br />
meta<strong>de</strong>/meta<strong>de</strong>. Discutem mais na<br />
escrita, que não é só apenas, dizem,<br />
o argumento <strong>de</strong> uma história, é também<br />
o “script” da direcção <strong>de</strong>les. Os<br />
ensaios com os actores e a improvisação<br />
são forma <strong>de</strong> continuar o argumento<br />
(“<strong>de</strong> outra forma não po<strong>de</strong>mos<br />
ditar a forma como a pessoa fala”).<br />
Estão tão ligados que ou se juntam<br />
para co-realizarem (trabalham neste<br />
momento num argumento sobre a<br />
indústria <strong>de</strong> diamantes em Nova Iorque,<br />
“Uncut Gems”) ou se afastam<br />
para nenhum <strong>de</strong>les tocar no projecto<br />
do outro, que é sempre a tendência<br />
que têm. Integram um colectivo <strong>de</strong><br />
cinco amigos, a Bucket Films, que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong><br />
os projectos a filmar pela sua<br />
“urgência”. Explicam: todo o dinheiro<br />
recebido com “projectos comerciais<br />
serve apenas para pagar a renda<br />
do estúdio e equipamento”; os projectos<br />
pessoais são, assim, investimentos<br />
dos próprios, os outros membros<br />
do colectivo ajudam, não há<br />
questões monetárias na base das <strong>de</strong>cisões<br />
do grupo. A propósito: o que é<br />
ser “indie”, hoje?<br />
Benny: É uma palavra pesada. Po<strong>de</strong>mos<br />
fazer um filme indie por 100 milhões<br />
<strong>de</strong> dólares. Po<strong>de</strong>mos dizer que<br />
“Avatar” é um filme in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, porque<br />
James Cameron passou-se dos carretos.<br />
Ou seja, esteve <strong>de</strong>z anos para<br />
fazer este filme, e segundo ele é exactamente<br />
aquilo que ele queria fazer – e<br />
daí talvez não, porque muitas pessoas<br />
meteram ali a mão. Mas é isso que ele<br />
quer que as pessoas pensem: que é um<br />
autor. Ora, há imensos filmes que têm<br />
a pose do filme in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte mas estão<br />
apenas a aplicar as regras <strong>de</strong> um filme<br />
<strong>de</strong> Hollyood ou da televisão.<br />
Josh: Especialmente na América: “oh,<br />
custou apenas 15 mil dólares, <strong>de</strong>ve ser<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”. Mas muitas vezes é uma<br />
versão barata <strong>de</strong> Hollywood. O cinema<br />
pessoal, para mim, é que é o in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte.<br />
“Duplo Amor”, <strong>de</strong> James Gray,<br />
tem estrelas <strong>de</strong> Hollywood, Gwyneth<br />
Paltrow e Joaquin Phoenix, mas é mais<br />
indie do que as porcarias que vejo em<br />
festivais <strong>de</strong> cinema em que os realizadores<br />
dizem “fiz este filme por apenas...”.<br />
In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte significa in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
dos mo<strong>de</strong>los....<br />
Benny: O cinema indie americano não<br />
é um barco comum para todas as pessoas.<br />
Só sentimos que estamos no mesmo<br />
barco <strong>de</strong> alguém quando respeitamos<br />
o seu trabalho.<br />
Vamos ouvir falar <strong>de</strong> Josh e Benny Safdie,<br />
seguramente. Aqui mesmo, nestas<br />
páginas, quando “Go Get Some<br />
Rosemary”, provavelmente com o<br />
novo título, “Daddy Longlegs”, se estrear<br />
comercialmente, dia 15 <strong>de</strong> Julho<br />
(Midas...)<br />
26 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
JORGE SALGUEIRO<br />
4ª a sáb às 20h30<br />
dom às 16h30 | M/6<br />
© CLEMENTINA CABRAL<br />
A FÁBRICA<br />
baseado em O Segredo do Céu <strong>de</strong> PÄR LAGERKVIST<br />
encenação Miguel Fonseca co-produção TEATRO AGITA<br />
sala estúdio | 4ª a sáb 21h45 | dom 17h30 | M/12<br />
HAVIA UM MENINO QUE ERA PESSOA<br />
Poemas para a Infância <strong>de</strong> FERNANDO PESSOA<br />
encenação Lucinda Loureiro | com José Figueiredo Martins<br />
sáb e dom 15h para toda a família | M/6<br />
para escolas durante a semana | sob marcação<br />
Gil Scott-Heron<br />
Mind da Gap<br />
Prins Thomas Tó Trips Evols<br />
15<br />
André Cepeda Álvaro Costa Pfadfin<strong>de</strong>rei<br />
MAIO<br />
SÁBADO 23:00<br />
TODOS OS ESPAÇOS | 18 €<br />
OUTROS ESPAÇOS (EXCEPTO GIL SCOTT-HERON) | 7,5 €<br />
ENTRADA LIMITADA À LOTAÇÃO DE CADA ESPAÇO<br />
PATROCÍNIO<br />
MECENAS CASA DA MÚSICA<br />
APOIO INSTITUCIONAL<br />
MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICA<br />
SEJA UM DOS PRIMEIROS A APRESENTAR HOJE ESTE JORNAL NA CASA DA MÚSICA E GANHE UM CONVITE DUPLO<br />
PARA O CLUBBING (EXCEPTO GIL SCOTT-HERON). OFERTA LIMITADA AOS PRIMEIROS 10 LEITORES.
Ninguém, à excepção do Ruy Duarte<br />
<strong>de</strong> Carvalho, sabia gran<strong>de</strong> coisa sobre<br />
a África do Sul para além das suas tensões<br />
recentes. É ele que vai à frente<br />
nesta viagem <strong>de</strong> 13 dias e seis mil quilómetros,<br />
portanto, e logo a seguir os<br />
seus jovens amigos: o Luhuna, que ia<br />
recolhendo numa câmara materiais<br />
<strong>de</strong> observação directa; Miguel Carmo,<br />
certeiro nas impressões e navegações<br />
espaciais; e as Martas - a Mestre que<br />
ia avivando a conversa, e a outra Marta,<br />
esta que vos escreve, gerindo a<br />
logística <strong>de</strong> uma viagem redonda, <strong>de</strong><br />
Joanesburgo a Joanesburgo, do interior<br />
à costa pela outra costa, <strong>de</strong>ixando<br />
<strong>de</strong> fora a província do Cabo Oriental,<br />
berço <strong>de</strong> lutadores anti-apartheid,<br />
ainda assim presente nas histórias <strong>de</strong><br />
bordo.<br />
Des<strong>de</strong> cedo até ao fim da tar<strong>de</strong>:<br />
mãos rotativas ao volante, pneus a<br />
rasgar as boas estradas sul-africanas,<br />
olhos maravilhados e exaustos <strong>de</strong> reter<br />
as paisagens – a cada solidão um<br />
monte ou <strong>de</strong>serto preferido - e <strong>de</strong>ntro<br />
do carro uma voz que se ouve mais<br />
do que as outras.<br />
Antes da África do Sul, tinha havido<br />
um cozido à portuguesa na Baixa <strong>de</strong><br />
Maputo, em Setembro. Decorria, no<br />
Dockanema, “E agora... vamos fazer<br />
mais como?”, ciclo <strong>de</strong>dicado ao escritor<br />
e cineasta angolano Ruy Duarte<br />
<strong>de</strong> Carvalho, que acumula admiradores<br />
no mundo lusófono, e a viagem,<br />
patrocinada pelo Instituto Camões,<br />
começava a ganhar forma. Uma viagem<br />
espraiando-se por mudanças <strong>de</strong><br />
relevo, animais, campos <strong>de</strong> pastagem,<br />
cores e brilhos que vão ocorrendo na<br />
paisagem: a sua adaptação morfológica<br />
ao clima e a metafísica que nos<br />
faz empatizar com ela. Uma viagem<br />
atenta à história das várias expansões<br />
e colonizações do país. Que fosse a<br />
origem, com base nos materiais recolhidos<br />
e nas conversas<br />
semeadas, do livro “As<br />
Paisagens Efémeras,<br />
Atas <strong>de</strong> Santa Helena”,<br />
<strong>de</strong> Ruy Duarte <strong>de</strong> Carvalho,<br />
e também <strong>de</strong> um possível filme.<br />
Ou não estivesse a viagem sempre<br />
inscrita em <strong>tudo</strong> o que faz.<br />
Mas há outras ambições nesta viagem:<br />
problematizar o processo <strong>de</strong><br />
oci<strong>de</strong>ntalização do mundo e os seus<br />
efeitos, focalizados no espaço atlântico.<br />
Que relações existiram entre europeus<br />
e populações locais? Que fenómenos<br />
<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>aram? Isto <strong>tudo</strong><br />
pelo gosto <strong>de</strong> entrelaçar tempos. De<br />
ver naquilo que é já passado, vestígio<br />
só, matéria <strong>de</strong> conjectura histórica.<br />
De encontrar os traços do antece<strong>de</strong>nte<br />
na imagem presente e nas projecções<br />
do futuro.<br />
Então lá estamos nós <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um<br />
carro dias a fio. E acabamos por<br />
apren<strong>de</strong>r qualquer coisa da complexida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ste país africano que está<br />
nas bocas do mundo por causa do futebol<br />
e da persistente violência. Conclusão:<br />
a África do Sul é um país bizarro.<br />
O Ruy está contente e só se cala esporadicamente<br />
para fixar um pormenor<br />
da paisagem e <strong>de</strong>pois dizer coisas<br />
como “na vida ou se escreve ou se<br />
vive”, citando Piran<strong>de</strong>llo, ele que faz<br />
tão bem as duas coisas. Traz leituras<br />
e consi<strong>de</strong>rações, enche o espaço <strong>de</strong><br />
referências e pensamento, <strong>de</strong> paisagens<br />
efémeras e propícias, <strong>de</strong> figuras<br />
da História. Conta episódios da vida<br />
e anedotas também. Fala no feminino<br />
quando conversa com as raparigas.<br />
“É uma narrativa sólida e quente que<br />
transforma a paisagem da África do<br />
Sul em nostalgia”, há-<strong>de</strong> escrever<br />
um <strong>de</strong> nós.<br />
Angola, aon<strong>de</strong> regressa<br />
sempre apesar <strong>de</strong> agora viver<br />
em Swakopmund, na<br />
Namíbia, é tema recorrente<br />
e que nos<br />
liga naquela<br />
cum-<br />
“Que viagens<br />
po<strong>de</strong>rão dizer-se<br />
‘réussies’<br />
[conseguidas]?<br />
Aquelas em que <strong>tudo</strong><br />
‘corre bem’, ou<br />
as outras, recheadas<br />
<strong>de</strong> imprevisto<br />
e <strong>de</strong> aventura?”<br />
Ruy Duarte<br />
<strong>de</strong> Carvalho<br />
Da África do Sul à cont<br />
O escritor e cineasta angolano Ruy Duarte <strong>de</strong> Carvalho<br />
vai à frente nesta viagem redonda, <strong>de</strong> Joanesburgo<br />
a Joanesburgo, da qual há <strong>de</strong> sair um livro, e<br />
possivelmente também um filme. A África do Sul em 13<br />
dias e seis mil quilómetros, com cinco pessoas <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong> um carro, e o passado pré e pós-colonial a infiltrar-se<br />
no presente, como um palimpsesto. Marta Lança<br />
28 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
Reportagem<br />
plicida<strong>de</strong> dos territórios do coração.<br />
A comer uma pizza na barragem Gariepdan,<br />
abro o seu último livro, “A<br />
Terceira Meta<strong>de</strong>”, e tropeço nisto:<br />
“enrolados para quem não pára – porque<br />
não po<strong>de</strong>, não quer ou não sabe,<br />
tal como nós estamos todos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há<br />
muito ao corrente – são os caminhos<br />
das voltas que a vida dá, como são os<br />
que no sono levam sempre aos mesmos<br />
sonhos recorrentes.”<br />
Brancos contra brancos,<br />
e contra negros<br />
Pernoitamos em Vinburg. Uma cida<strong>de</strong>zinha<br />
<strong>de</strong> atmosfera “Twin Peaks”<br />
no interior do Free State on<strong>de</strong> os bóeres,<br />
brancos camponeses normalmente<br />
enormes, vivem e são senhores. O<br />
bóer é uma produção da África Austral,<br />
havemos <strong>de</strong> saber no curso da<br />
viagem. Na “guesthouse”, um bancário<br />
bêbado pergunta-nos, meio em<br />
inglês, meio em afrikaans, crioulização<br />
da sua língua materna holan<strong>de</strong>sa,<br />
se estamos a falar russo. Ao pequenoalmoço,<br />
a serviçal roliça diz que vai<br />
casar em Março e está muito feliz. “A<br />
minha mãe diz: ‘Vai sempre atrás do<br />
Mãos rotativas ao volante,<br />
pneus a rasgar as boas estradas<br />
sul-africanas, olhos<br />
maravilhados e exaustos: é fácil<br />
viajar pela África do Sul,<br />
contornada a insegurança das<br />
gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s<br />
teu marido’”. E ela foi, e agora serve<br />
salsichas com ovos e carne agridoce<br />
a endinheirados rurais.<br />
A casa é um mausoléu das guerras<br />
anglo-bóeres, mas gloriosa para os<br />
bóeres foi só a primeira, porque a <strong>de</strong><br />
1903 levou à anexação das suas repúblicas<br />
do Transvaal e do Free State <strong>de</strong><br />
Orange à colónia britânica do Cabo,<br />
ao que parece com a ajuda das armas<br />
europeias da revolução industrial. Os<br />
bóeres não gostavam da autocracia<br />
britânica, que <strong>de</strong>generava as tradições<br />
holan<strong>de</strong>sas e não os protegia dos ataques<br />
dos Xhosa. Já tinham fundado a<br />
república <strong>de</strong> Natália <strong>de</strong>pois da batalha<br />
<strong>de</strong> Blood River (da qual vimos a pintura),<br />
em 1838, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>rrotaram Dingane,<br />
um dos chefes zulu, Haveriam<br />
<strong>de</strong> perdê-la para os ingleses, com as<br />
suas plantações <strong>de</strong> cana-<strong>de</strong>-açúcar.<br />
O que interessa é que já havia uma<br />
socieda<strong>de</strong> colonial, e o país estava<br />
ocupado por brancos. Os bóeres <strong>de</strong>claram<br />
a República da África do Sul,<br />
com Pretória como capital, em 1854.<br />
Em 1910, as províncias fundavam a<br />
União Sul-Africana, que duraria até<br />
ao fim do apartheid, em 1994.<br />
Ouvimos ainda a história <strong>de</strong> Shaka<br />
Zulu. Diz-se que era gay. Antes <strong>de</strong> ser<br />
assassinado, em 1928, com muita estratégia<br />
militar e dureza combativa,<br />
fez da etnia zulu um império que ensombrou<br />
os <strong>de</strong>sígnios coloniais britânicos.<br />
A expansão do estado zulu e o<br />
<strong>de</strong>sarranjo social provocado pelo tráfico<br />
<strong>de</strong> escravos a partir do sul <strong>de</strong> Moçambique,<br />
além <strong>de</strong> secas e fomes entre<br />
o fim do século XVIII e o princípio<br />
do século XIX, estão na origem <strong>de</strong><br />
Uma paragem a meio do<br />
caminho e outra a caminho do<br />
fim, em Springbock, região <strong>de</strong><br />
flores e prados: cheira a esteva,<br />
e o amarelo-torrado cobre a<br />
pedra<br />
movimentações massivas <strong>de</strong> populações<br />
que convulsionaram a África<br />
Austral.<br />
A maior quezília entre britânicos e<br />
holan<strong>de</strong>ses tinha a ver com as minas<br />
<strong>de</strong> diamantes encontradas naquele<br />
território. Na pequena localida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Kimberley, visitamos o turístico Big<br />
Hole, uma rocha diamantífera cavada<br />
para extrair o famoso kimberlito, composto<br />
por minerais <strong>de</strong> alta pressão<br />
formados a 300 quilómetros <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>.<br />
Ali se fez uma espécie <strong>de</strong><br />
reprodução da vida mineira com barzinhos<br />
e lojas. Explicações sobre diamantes,<br />
ali <strong>de</strong>scobertos em 1867 em<br />
brinca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> crianças. O homem<br />
por trás da mina é Cecil John Rho<strong>de</strong>s,<br />
co-fundador da po<strong>de</strong>rosa companhia<br />
De Beers. Abandonou a fazenda <strong>de</strong><br />
algodão em 1871 para gerir as minas<br />
<strong>de</strong> Kimberley, e chegou a membro do<br />
Parlamento, com políticas que serviram<br />
tanto o Império britânico como<br />
os interesses dos mineiros.<br />
De expansões e opressões<br />
A história da África do Sul é uma história<br />
<strong>de</strong> disputas e <strong>de</strong> ocupações,<br />
sangue e mais sangue, <strong>tudo</strong> isto não<br />
há muito tempo atrás. “Demorou<br />
tracosta, com Ruy Duarte <strong>de</strong> Carvalho<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 29
muito até chegar aqui, a este último<br />
canto do continente, e mesmo da<br />
terra toda, a que se foram alargando<br />
várias correntes migratórias, gente a<br />
vir <strong>de</strong> fora para ocupar e controlar<br />
esses territórios segundo os seus interesses,<br />
quer dizer os recursos que<br />
aqui lhes cativavam, e perturbar assim,<br />
ou a submeter ou a dizimar os<br />
que já cá se encontravam.” Vem em<br />
“A Terceira Meta<strong>de</strong>”, mas podia ser<br />
o Ruy a falar connosco porque ele<br />
escreve como fala e fala como escreve,<br />
com reticências e assertivida<strong>de</strong>,<br />
sem isto ser contraditório.<br />
Com uma costa imensa, a África do<br />
Sul é apetitosa para a expansão oci<strong>de</strong>ntal<br />
mas a sua ocupação é tardia:<br />
<strong>de</strong>serto, falta <strong>de</strong> condições para o comércio<br />
e práticas esclavagistas. “Quando<br />
foi finalmente objecto <strong>de</strong>ssa vaga<br />
oci<strong>de</strong>ntalizante, ofereceu o espectáculo<br />
<strong>de</strong> um vasto território <strong>de</strong> fronteira<br />
a ser em simultâneo acometido<br />
pela expansão dos brancos e pela dos<br />
bantos”, que não gostam <strong>de</strong> ser lembrados<br />
que também foram invasores.<br />
Os bantos <strong>de</strong>sceram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a África<br />
Oriental, iniciando a sua interminável<br />
expansão, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada pela explosão<br />
<strong>de</strong>mográfica que a banana, trazida<br />
pelos malaios que colonizaram Madagáscar,<br />
provocou. Ironias e conjurações<br />
da história. Ocupações contemporâneas<br />
que remetem para os problemas<br />
actuais: a terra é <strong>de</strong> todos,<br />
cada um foi chegando com os seus<br />
motivos e agora todos têm <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r<br />
a conviver, às vezes numa paz podre,<br />
às vezes numa guerra infinita.<br />
As várias populações <strong>de</strong>ntro do<br />
país não prosperam todas ao mesmo<br />
tempo e isto provoca muitas<br />
No carro<br />
enumeram-se tantas<br />
etnias e ramificações<br />
- sangue no sangue<br />
no sangue - que<br />
já vamos todos<br />
baralhados. Apesar<br />
<strong>de</strong> a África do Sul<br />
ser esse<br />
“melting-pot”<br />
<strong>de</strong> “raças” muito<br />
marcadas, está<br />
em curso<br />
a produção <strong>de</strong> um<br />
mestiço universal<br />
Nas paisagens áridas do Karoo<br />
profundo, os pensamentos<br />
aquecem: os oci<strong>de</strong>ntais, que<br />
começaram a estabelecer-se<br />
na província do Cabo cerca <strong>de</strong><br />
1652, <strong>de</strong>moraram 150 anos<br />
a aventurar-se nesta<br />
região dominada por<br />
enormes famílias<br />
<strong>de</strong> zebras e <strong>de</strong> antílopes<br />
A caminho da província do<br />
Cabo da Boa Esperança, <strong>de</strong>pois<br />
do <strong>de</strong>serto, directos ao extremo<br />
mais Sul <strong>de</strong> África: vir do<br />
interior para a costa é <strong>de</strong>saguar<br />
<strong>de</strong>pendências e explorações. Ruy explica<br />
nas notas <strong>de</strong> viagem: “Uns grupos,<br />
e certos indivíduos <strong>de</strong>ntro da<br />
cada grupo, mesmo se só à escala da<br />
família, começam a prosperar primeiro,<br />
muito antes dos outros e sempre<br />
e ainda senão à custa <strong>de</strong> outros, a nível<br />
da dinâmica interna e da relação<br />
externa.... e os outros, para virem a<br />
prosperar também, há <strong>de</strong> ser <strong>de</strong> uma<br />
maneira ou <strong>de</strong> outra só a reboque<br />
<strong>de</strong>sses, ainda e sempre.... e tem uns<br />
que parece surpreen<strong>de</strong>rem-se, e se<br />
insurgem e <strong>de</strong>nunciam... mas então<br />
não é isso que é próprio do sistema<br />
que todos afinal aceitam e em que se<br />
integram e é nele que se exprimem a<br />
partir do lugar que ocupam na luta<br />
tentando ganhar pontos, conquistas,<br />
<strong>de</strong>ntro do sistema?”<br />
No carro enumeram-se tantas etnias<br />
e ramificações dos povos – sangue<br />
no sangue no sangue - que já vamos<br />
todos baralhados. Os hotentotes,<br />
que são vermelhos e tinham avós pastores<br />
- com a instalação dos holan<strong>de</strong>ses<br />
na baía da montanha que <strong>de</strong>u<br />
origem à Cida<strong>de</strong> do Cabo, para servir<br />
<strong>de</strong> apoio às rotas comerciais da Índia,<br />
tiveram <strong>de</strong> mudar <strong>de</strong> vida. Os<br />
San, bosquímanos, franzinos, então<br />
caçadores e recolectores, que não<br />
gostaram nada da instalação dos<br />
bóers: ao trazerem o gado, acabaram-lhes<br />
com a caça.<br />
Apesar <strong>de</strong> a África do Sul ser esse<br />
“melting-pot” <strong>de</strong> “raças” muito<br />
fenotipicamente marcadas, on<strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>mos resgatar os vestígios da<br />
ocupação humana <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>s recuadas,<br />
está em curso a produção<br />
<strong>de</strong> um mestiço universal, genética<br />
e culturalmente. “O pleno mestiço<br />
do <strong>de</strong>vir universal, afeiçoado pelo<br />
mo<strong>de</strong>lo branco expandido e imposto<br />
à escala do mundo”. O que sobreviver<br />
a isto será apenas folclore, porque a<br />
diferença irá ser extinta, digerida e<br />
consumida. Nisso há “<strong>de</strong>sagrado,<br />
agravo, pela diferença que vai ser, já<br />
está a ser cultivada e que, além <strong>de</strong><br />
cristalizada, ou por isso mesmo, é<br />
kitsch. Não é?!”<br />
Mais um cigarro e a viagem prossegue.<br />
Num hotel para<br />
“backpackers”, filmamos a<br />
conversa-base do movimento<br />
neo-animista que Ruy Duarte<br />
<strong>de</strong> Carvalho quer criar.<br />
Ao jantar, um velho dança como<br />
uma borboleta em frente ao<br />
trio <strong>de</strong> mulatos que toca jazz.<br />
O Cabo continua uma cida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> gente bizarra<br />
O Sul do Sul<br />
Depois das paisagens áridas do Karoo<br />
profundo, on<strong>de</strong> os pensamentos<br />
aquecem, aproxima-se o mar. Vir do<br />
interior para a costa é <strong>de</strong>saguar. Port<br />
Elizabeth tem baleias e golfinhos ao<br />
largo e zonas <strong>de</strong> comércio com ar <strong>de</strong><br />
Disneylândia. Segue-se um gran<strong>de</strong><br />
troço <strong>de</strong> costa com vegetação mediterrânica<br />
até se entrar na província<br />
do Cabo da Boa Esperança. Directos<br />
ao extremo mais a Sul <strong>de</strong> África, on<strong>de</strong><br />
se misturam os oceanos Índico e<br />
Atlântico. Perguntamos “where is<br />
Cabo das Agulhas?”, mas ninguém<br />
enten<strong>de</strong>, até que percebem que queremos<br />
dizer Agalhas, o lugar on<strong>de</strong> as<br />
bússolas se <strong>de</strong>snorteavam. A anglicização<br />
dda língua faz parte do que nos<br />
traz aqui.<br />
Terra <strong>de</strong> revelações, <strong>de</strong> pedir <strong>de</strong>sejos<br />
e afogar mágoas, “uma visão extrema<br />
e abismal <strong>de</strong> inapreensíveis<br />
oceanos”, é o que o poeta Ruy escreve<br />
no mesmo livro.<br />
No dia seguinte a um jantar num<br />
restaurante <strong>de</strong> portugueses fugidos<br />
das ex-colónias, continuamos cami-<br />
O Cabo das Agulhas é “uma<br />
visão extrema e abismal<br />
<strong>de</strong> inapreensíveis oceanos”,<br />
zona <strong>de</strong> confluência do<br />
Atlântico e do Índico.<br />
Perguntamos “where is Cabo<br />
das Agulhas?”, mas ninguém<br />
enten<strong>de</strong>. A anglicização<br />
da língua faz parte do que<br />
nos traz aqui<br />
nho. A Cida<strong>de</strong> do Cabo surge emoldurada<br />
pela Montanha com nome <strong>de</strong><br />
Mesa e pela outra, da Cabeça <strong>de</strong> Leão.<br />
Num hotel para “backpackers” da<br />
Long Street, uma longa conversa fica<br />
filmada como base do movimento<br />
neo-animista que o Ruy quer criar<br />
com a nossa ajuda. Para isso temos<br />
matéria <strong>de</strong> reflexão e acção. Eis algumas<br />
pistas: o Império contém a sua<br />
própria crítica. É preciso criar ilhas<br />
<strong>de</strong> resistência, e outros paradigmas<br />
que <strong>de</strong>nunciem, critiquem e ofereçam<br />
alternativas ao paradigma humanista<br />
e ao progresso. É preciso dar voz a<br />
narrativas silenciadas ou ignoradas<br />
por outras dominantes. Temos <strong>de</strong> procurar<br />
teses, elites, utopias, literatura<br />
e imagens para dizer várias vezes a<br />
mesma coisa até esta se tornar simples.<br />
Tudo se joga na diferença entre<br />
a economia do equilíbrio e a economia<br />
do crescimento, que é obrigada a crescer<br />
sempre, porque se não cresce colapsa,<br />
como está a acontecer agora.<br />
Comemos carne <strong>de</strong> caça e no bar<br />
um velho faz-nos hesitar: terá saído<br />
da guerra anglo-bóer ou do “Senhor<br />
30 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
do Anéis”? É um elfo com enormes<br />
cabelos e barbas brancas num corpo<br />
pequeno e magro, e dança como uma<br />
borboleta em frente ao trio <strong>de</strong> mulatos<br />
que toca jazz. O Cabo continua<br />
uma cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> boa música e gente<br />
bizarra.<br />
A alma da viagem<br />
Subimos a costa com um cheirinho<br />
do Kalahari, o <strong>de</strong>serto que liga a África<br />
do Sul à Namíbia. Perto da costa,<br />
os vales imensos <strong>de</strong> castanho e ver<strong>de</strong>,<br />
enormes fendas na profusão da natureza,<br />
e a sua violência própria. Ruy<br />
i<strong>de</strong>ntifica phynbos, a vegetação característica<br />
<strong>de</strong>ste lado atlântico (comum<br />
à Patagónia e ao Lago Vitória).<br />
Springbok é zona <strong>de</strong> flores, mas<br />
falhámos por pouco o florir primaveril<br />
dos prados, e por isso o amarelotorrado<br />
cobre a pedra. Cheira a esteva.<br />
Ficamos num albergue perto das<br />
montanhas. É proprieda<strong>de</strong> do pai <strong>de</strong><br />
uma velhota <strong>de</strong> olhos azul-british que<br />
nos recebe com o cabelo apanhado<br />
a <strong>de</strong>scobrir as rugas, numa casa com<br />
um caniche e muitos retratos. Luhuna<br />
e Miguel sobem o monte para filmar<br />
mais um pôr-do-sol. Já são várias<br />
as cassetes com pôres-do-sol. Mas<br />
nunca se filme o sol <strong>de</strong> frente que a<br />
câmara po<strong>de</strong> estoirar, tal como os<br />
olhos po<strong>de</strong>m cegar. O Ruy fica no lugar<br />
do braai (grelhador) a fumar cigarros<br />
com o seu ar vigilante <strong>de</strong> lobo<br />
do mar. Eu leio o “Disgrace”, do Coetzee,<br />
no cimo <strong>de</strong> uma rocha. O jardineiro<br />
diz-me para ter cuidado com<br />
as cobras, que esta é a hora <strong>de</strong> dormirem.<br />
Um bater <strong>de</strong> asas, um réptil<br />
que passa, uma brisa.<br />
Ruy fala da sabedoria das ida<strong>de</strong>s.<br />
“Que viagens po<strong>de</strong>rão dizer-se ‘réussies’<br />
[conseguidas]? Aquelas em que<br />
<strong>tudo</strong> ‘corre bem’, ou as outras, recheadas<br />
<strong>de</strong> imprevisto e <strong>de</strong> aventura?”<br />
Marta Mestre evoca a interiorida<strong>de</strong><br />
da viagem, o “sairmos <strong>de</strong> nós mesmos”:<br />
“Em viagem <strong>de</strong>scentras-te com<br />
mais intensida<strong>de</strong>, tornando <strong>tudo</strong> matéria<br />
que relacionamos com a nossa<br />
experiência e preconceito.” Pergunto-lhe<br />
o que ficou da viagem à África<br />
do Sul. Pela acumulação <strong>de</strong> “veld”,<br />
nome que se dá aos gran<strong>de</strong>s espaços<br />
rurais, escreve ela: “Tratei <strong>de</strong> fazer o<br />
que tinha <strong>de</strong> fazer: dar lugar em tempo<br />
real ao tique crónico <strong>de</strong> dar sentido<br />
e continuar a garantir a vida suportável”.<br />
Ou, como escreve o Ruy,<br />
a permanente incomodida<strong>de</strong> física<br />
da alma. Foi muito tempo à conversa<br />
com o mais-velho.<br />
Já são várias as cassetes com o<br />
pôr-do-sol, mas nunca se filma<br />
o sol (sobre<strong>tudo</strong> o sol sul-africano)<br />
<strong>de</strong> frente, que a câmara<br />
po<strong>de</strong> estoirar<br />
A viagem no mapa,<br />
o país no chão<br />
Uma última noite nas margens do rio<br />
Orange, em Upington (nome do primeiro-ministro<br />
da então colónia inglesa<br />
do Cabo), mais uma das muitas<br />
cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> abastecimento agrícola<br />
que parecem a mais profunda América<br />
que eu nunca visitei.<br />
Regressamos na imensa estrada até<br />
Joanesburgo, passando pelos 40 quilómetros<br />
do Soweto. A extracção do<br />
ouro para os bolsos do Estado e das<br />
empresas continua imparável. Subscrevemos<br />
a facilida<strong>de</strong> com que se faz<br />
turismo na África do Sul: estradas,<br />
serviços, comida, paz e tranquilida<strong>de</strong>,<br />
guardada a insegurança para as gran<strong>de</strong>s<br />
cida<strong>de</strong>s. O coração acumula simpatias<br />
e nenhum percalço, o bolso não<br />
sai muito <strong>de</strong>sforrado.<br />
“We can´t wait, let’s go 2010!” gritam<br />
eufóricos os cartazes, com o cuidado<br />
<strong>de</strong> colocar caras negras, brancas<br />
e coloridas no país multiracial, a<br />
anunciar o Mundial. Esperança <strong>de</strong><br />
que muita coisa mu<strong>de</strong>. Não fosse a<br />
cartografia tão <strong>de</strong>marcada das “townships”,<br />
on<strong>de</strong> subsiste um forte<br />
apartheid <strong>de</strong> negros pobres, com focos<br />
<strong>de</strong> indignação para receio dos<br />
ricos - e isto num país on<strong>de</strong> são assassinadas<br />
50 pessoas por dia, com o<br />
presi<strong>de</strong>nte Zuma a or<strong>de</strong>nar à polícia:<br />
“atirar para matar” -, e o país <strong>de</strong> primeiro<br />
mundo estaria preparado para<br />
receber os turistas e as selecções.<br />
Acabou a viagem e o escritor parece<br />
<strong>de</strong>primido, não sai do quarto zulu.<br />
Cada caranguejo irá para o seu buraco<br />
no dia seguinte: Maputo, Namíbia,<br />
Portugal e Brasil. Um jovem zimbabweano<br />
recolhe as beatas dos cigarros<br />
que fumamos juntos entre risos.<br />
Numa viagem <strong>de</strong>stas acabamos por<br />
ser todos indispensáveis, e isso resume<br />
bem uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> harmonia, efémera,<br />
como <strong>tudo</strong> o que é interessante<br />
neste mundo. Como as paisagens.<br />
No jardim leio Coetzee. Conta precisamente<br />
como as pessoas da África<br />
tribal emigraram para as cida<strong>de</strong>s em<br />
busca <strong>de</strong> trabalho, estabelecendo-se<br />
num meio urbano novo e assombroso,<br />
que ele consi<strong>de</strong>ra uma dádiva europeia<br />
a África. Diz que o mundo no<br />
qual nascemos é o nosso mundo, <strong>tudo</strong><br />
o que há agora é, para esta geração,<br />
inquestionável. Conhecer a história<br />
<strong>de</strong> um lugar em profundida<strong>de</strong>,<br />
para ver o seu passado em palimpsesto<br />
por baixo do presente, é importante.<br />
“Mas a história só tem vida se<br />
lhe <strong>de</strong>rem um poiso na nossa consciência.”<br />
Esta viagem foi esse lugar.<br />
Alberto Carneiro | Rui Chafes<br />
Curadoria: Sara Antónia Matos<br />
Exposição: 10 <strong>de</strong> Março até 21 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 2010<br />
Horário: <strong>de</strong> quarta-feira a sábado, das 15h às 20h<br />
Por ocasião da exposição será publicado um catálogo, co-edição fcc / assírio & alvim<br />
Ciclo <strong>de</strong> conversas:<br />
Paulo Pires do Vale – dia 10 <strong>de</strong> Abril (sábado) às 17h00<br />
Bernardo Pinto <strong>de</strong> Almeida – dia 17 <strong>de</strong> Abril (sábado) às 17h00<br />
João Miguel Fernan<strong>de</strong>s Jorge – dia 15 <strong>de</strong> Maio (sábado) às 17h00<br />
fundação carmona e costa<br />
Edifício Soeiro Pereira Gomes (antigo Edifício da Bolsa Nova <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>)<br />
Rua Soeiro Pereira Gomes, Lte 1- 6.ºD, 1600-196 <strong>Lisboa</strong><br />
(Bairro do Rego / Bairro Santos)<br />
Tel. 217 803 003 / 4<br />
www.fundacaocarmonaecosta.pt<br />
Metro: Sete Rios / Praça <strong>de</strong> Espanha / Cida<strong>de</strong> Universitária<br />
Autocarro: 31<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 31
Dez anos <strong>de</strong> um festival não se contam<br />
pelos <strong>de</strong>dos. Uma a uma, cada edição<br />
do Festival Internacional <strong>de</strong> Marionetas<br />
e Formas Animadas (Fimfa) quis<br />
trazer a <strong>Lisboa</strong>, e muitas vezes indo<br />
até outras cida<strong>de</strong>s, o que <strong>de</strong> melhor<br />
se ia fazendo pelo mundo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse<br />
vasto conceito que é marioneta.<br />
Este ano, e mais uma vez, o Fimfa,<br />
assinado por Rute Ribeiro e Luís Vieira,<br />
marionetistas e directores artísticos<br />
quer do Fimfa, quer da companhia<br />
Tarumba (este ano a fazer 17 <strong>de</strong><br />
percurso), faz das dificulda<strong>de</strong>s uma<br />
força e, em ano redondo, apresenta<br />
uma programação invejável que não<br />
está interessada em discutir o que é<br />
e não é marioneta. Afinal são “seiscentos<br />
anos <strong>de</strong> diferença entre espectáculos<br />
e cada um escolhe o que quer<br />
ver”, dizem-nos.<br />
Há-as <strong>de</strong> todas as formas e feitios:<br />
<strong>de</strong> sombra, papel, <strong>de</strong> luva, por fios,<br />
na rua, em caixas <strong>de</strong> fósforo ou gran<strong>de</strong>s<br />
máquinas, adaptando textos clássicos,<br />
inventando ficções a partir <strong>de</strong><br />
biografias, ou o seu contrário, contando<br />
a história do mundo em bonecos<br />
feitos <strong>de</strong> barro ou com gambas,<br />
passando o espelho, inventando circos<br />
que não passam <strong>de</strong> caves, usando<br />
o ví<strong>de</strong>o e a música não como auxílios<br />
mas como verda<strong>de</strong>iros motores dramatúrgicos...<br />
e sexo, muito sexo que<br />
as marionetas são iguais a nós.<br />
Dez anos <strong>de</strong>pois, e mesmo se a i<strong>de</strong>ia<br />
inicial <strong>de</strong> contribuírem para uma evolução<br />
da técnica e da estética da criação<br />
nacional não produziu resultados<br />
esperados – “vivemos cada edição<br />
abaixo da nossa ambição” –, nem as<br />
programações dos espaços <strong>de</strong>spertaram<br />
para a apresentação regular <strong>de</strong><br />
espectáculos on<strong>de</strong> a marioneta esteja<br />
presente – “mas têm connosco uma<br />
relação <strong>de</strong> confiança e cumplicida<strong>de</strong>,<br />
sem que sejamos obrigados a ce<strong>de</strong>r<br />
no plano estético ou estratégico” –, o<br />
festival faz o papel <strong>de</strong> momento único<br />
no calendário teatral, “<strong>de</strong> espaço<br />
mental na cida<strong>de</strong> para a marioneta”,<br />
como nos diz Luís Vieira.<br />
“Hoje vou lá fora ver espectáculos<br />
sobre os quais tenho que dizer que,<br />
em <strong>Lisboa</strong>, seriam uma catástrofe. A<br />
recepção do público mudou muito”.<br />
Isso <strong>de</strong>ve-se, em particular, a um regime<br />
<strong>de</strong> não cedência no entendimento<br />
generalizado e superficial do que<br />
é uma marioneta. “Atrás <strong>de</strong> uma marioneta<br />
está sempre um marionetista.<br />
É um teatro <strong>de</strong> duplo para o qual não<br />
faz sentido uma discussão sobre se é<br />
com fios ou sem fios, com papel, <strong>de</strong><br />
luva...”, dizem.<br />
O Fimfa tornou-se um dos poucos<br />
casos, em Portugal, que dialoga <strong>de</strong><br />
igual para igual com as outras companhias<br />
e festivais <strong>de</strong> teatro dito, agora<br />
sim, convencional. No universo da marioneta<br />
contam-se pelos <strong>de</strong>dos, isso<br />
sim <strong>de</strong> uma mão, os exemplos <strong>de</strong> quem<br />
o consegue fazer: Teatro <strong>de</strong> Marionetas<br />
do Porto (que apresenta o aliciano<br />
“Won<strong>de</strong>rland”, Teatro Maria Matos, 11<br />
e 12), Teatro do Ferro, Festival Internacional<br />
<strong>de</strong> Marionetas do Porto, Bienal<br />
<strong>de</strong> Marionetas <strong>de</strong> Évora e o Fimfa. O<br />
resto é, <strong>de</strong> facto, paisagem.<br />
A maturida<strong>de</strong> da programação, a<br />
coerência do percurso e a exigência<br />
falam por si. Quando os apoios tardam<br />
(são 150 mil euros por ano <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>spesas que ultrapassam em mais<br />
do dobro o que recebem da Direcção<br />
Geral das Artes para a programação<br />
do festival e a produção regular da<br />
companhia), quando a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
fazer fica refém das condições reais<br />
ou quando as invejas falam mais alto,<br />
é à cumplicida<strong>de</strong> que encontram nos<br />
diferentes espaços <strong>de</strong> apresentação<br />
em <strong>Lisboa</strong> (este ano: Maria Matos,<br />
Museu da Marioneta, CCB, Museu do<br />
Oriente, Largo do Chiado, São Jorge,<br />
Teatro D. Maria II e uma extensão no<br />
Teatro <strong>Municipal</strong> da Guarda), ao interesse<br />
dos voluntários em colaborar,<br />
ao público que logo em Janeiro lhes<br />
começa a perguntar pela programação<br />
e aos artistas que aceitam vir a<br />
<strong>Lisboa</strong> por reconhecerem a liberda<strong>de</strong><br />
criativa e programática da programação<br />
que vão buscar argumentos para<br />
prosseguir.<br />
Monstros sagrados<br />
Esta dupla dinâmica, <strong>de</strong> um discurso<br />
entusiasmante que alerta os sentidos<br />
para um entendimento da marioneta<br />
para lá do enclausuramento estilístico,<br />
quis, este ano, por ser redondo o<br />
número mas não só, homenagear<br />
“monstros sagrados” do universo da<br />
marioneta, fazendo prova <strong>de</strong> que há<br />
mais para alem do fugaz entretenimento.<br />
A <strong>Lisboa</strong> vão chegar nomes<br />
fundamentais da história do teatro<br />
contemporâneo, como Toni Rumbau,<br />
que veio ao festival em 2007, e que<br />
em 1974 foi ter aos Açores, vindo <strong>de</strong><br />
Espanha e apaixonado por uma portuguesa,<br />
empoleirado num jipe militar,<br />
para mostrar ao povo como as<br />
marionetas podiam participar das<br />
campanhas <strong>de</strong> alfabetização e, por<br />
isso mesmo, se tornou marionetista.<br />
“A Manos Llenas” (Museu da Marioneta,<br />
10 e 11) junta o que é classificado<br />
como marioneta <strong>de</strong> luva popular com<br />
uma manipulação visual <strong>de</strong> sombras,<br />
mãos e objectos, e on<strong>de</strong> a música tem<br />
papel fundamental numa história <strong>de</strong><br />
personagens clássicas <strong>de</strong> espectáculos<br />
populares.<br />
Como este, também Roman Paska<br />
(“Schoolboy Play”, Teatro Nacional,<br />
28 e 29), nome absoluto do perfeccionismo<br />
e da minúcia, norte-americano<br />
<strong>de</strong> nascença e antigo director da referência<br />
mundial que é o festival <strong>de</strong><br />
Teatro<br />
Toni Rumbau<br />
“A Manos Llenas”<br />
(Museu da Marioneta,<br />
10 e 11) junta<br />
o que é classificado<br />
como marioneta<br />
<strong>de</strong> luva popular<br />
com uma manipulação<br />
visual<br />
<strong>de</strong> sombras, mãos<br />
e objectos<br />
“São seiscentos anos<br />
<strong>de</strong> diferença entre<br />
espectáculos e cada um<br />
escolhe o que quer ver”<br />
Rute Ribeiro e Luís<br />
Vieira, marionetistas<br />
e directores artísticos<br />
do Fimfa<br />
Charleville-Mézières, em França, faz<br />
<strong>de</strong> um encontro entre Hitler e Wittgenstein<br />
uma parábola sobre as dores<br />
<strong>de</strong> crescimento. É uma das gran<strong>de</strong>s<br />
peças <strong>de</strong>sta edição pela capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> trabalhar a manipulação das marionetas<br />
e, sobre<strong>tudo</strong>, em fazer interligar<br />
diferentes modos <strong>de</strong> narrativa<br />
visual, cénica e dramatúrgica, em <strong>tudo</strong><br />
semelhante ao aparato técnico e<br />
imagético do colectivo holandês Hotel<br />
Mo<strong>de</strong>rn, <strong>de</strong> regresso <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> “The<br />
Um fio, outro fio e d<br />
32 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon<br />
Começou ontem e <strong>de</strong>corre até 30 <strong>de</strong> Maio um dos mais belos segredos do país: o Festival<br />
Traz a <strong>Lisboa</strong> o melhor do que se anda a fazer em nome <strong>de</strong> uma marioneta cada vez
Great War” (2007) e “Kamp” (2008),<br />
com “The Shrimp Tales” (Maria Matos,<br />
14 e 15), que analisa o estado do<br />
mundo, e o caminho até a este estado<br />
<strong>de</strong> coisas, usando como mo<strong>de</strong>los para<br />
compreen<strong>de</strong>r o humano 300 gambas<br />
embalsamadas.<br />
Esta noção <strong>de</strong> que o espectáculo <strong>de</strong><br />
marionetas é mais amplo do que aquilo<br />
que dá a ver, e sobre<strong>tudo</strong> dando a<br />
ver um mundo tão ou mais igual ao<br />
que é apresentado no “outro” teatro,<br />
JORGE RAEDÓ<br />
está também presente no seminal trabalho<br />
da companhia checa Alfa Theatre<br />
que com “Os Três Mosqueteiros”<br />
(Museu da Marioneta, 13 a 15), para<br />
alem da óbvia inspiração na obra <strong>de</strong><br />
Dumas, junta o burlesco do filme mudo<br />
<strong>de</strong> Max Lin<strong>de</strong>r, “L’Étroit Mousquetaire”,<br />
para <strong>de</strong>smontar a ilusão promovida<br />
pela manipulação <strong>de</strong> marionetas<br />
<strong>de</strong> luva. E, claro, porque entre<br />
o teatro e o mundo não há nada a separar,<br />
as marionetas são, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre,<br />
perfeitos veículos para narrativas<br />
parateatrais. É isso que fazem os Bonecos<br />
<strong>de</strong> Santo Aleixo (“Auto da Criação<br />
do Mundo”, 8 e 9, Museu da Marioneta)<br />
ex-líbris nacional e presença<br />
obrigatória nesta edição “porque tinha<br />
que ser”, dizem-nos sem ironia,<br />
e a companhia do Japão Awa Deco<br />
Hakomawahi Wo Fukkatsuru Kai que,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> correr risco <strong>de</strong> ver <strong>de</strong>saparecer<br />
a tradição, mostra a peça “Hakomawashi”<br />
(Museu do Oriente, 13 a 15)<br />
que recupera esse gesto ritualista <strong>de</strong><br />
partilha <strong>de</strong> boas novas e protecção<br />
contra as maleitas, antigamente praticado<br />
por indivíduos chamados <strong>de</strong><br />
burakumini, pertencentes às minorias<br />
étnicas que, curiosamente, formavam<br />
parte das companhias <strong>de</strong> on<strong>de</strong> saíam<br />
os gran<strong>de</strong>s actores do teatro Nô.<br />
Entre outros, estes são casos <strong>de</strong> peças<br />
que dão conta do leque amplo que<br />
tem caracterizado o Fimfa. “Há uma<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> mostrar o que <strong>de</strong> melhor<br />
se faz”, confessam os organizadores.<br />
“Nem sempre po<strong>de</strong>mos trazer <strong>tudo</strong><br />
o que queremos. Esforçamo-nos por<br />
programar com a maior antecedência<br />
possível mas há peças que não conseguimos<br />
trazer, seja porque saíram<br />
do reportório da companhia, porque<br />
as pessoas morreram ou porque são<br />
caras”. Mas casos há em que a vonta<strong>de</strong><br />
não supera a economia real.<br />
Em ano <strong>de</strong> celebração o Fimfa ficará<br />
marcado pelo confronto entre o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento da estética teatral<br />
por via das marionetas e as condições<br />
<strong>de</strong> produção <strong>de</strong>sse mesmo <strong>de</strong>senvolvimento.<br />
O Theater Taptoe, companhia<br />
belga que veio em 2001, termina<br />
a sua carreira <strong>de</strong> 42 anos nos dias 27,<br />
28 e 29 <strong>de</strong> Maio no Teatro Nacional,<br />
apresentando “Geneviève... si chaste,<br />
si pure”, portentosa e imaginativa<br />
construção em papel que revela, num<br />
jogo meta-teatral, a <strong>de</strong>cadência <strong>de</strong><br />
uma organização feudal.<br />
O fim <strong>de</strong>sta companhia, dirigida<br />
por um dos mais reputados marionetistas<br />
no mundo, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> emocionar<br />
duplamente os directores do<br />
Fimfa: por revelar a precarieda<strong>de</strong><br />
com que se trabalha, mesmo num<br />
país como a Bélgica, berço da contemporaneida<strong>de</strong><br />
e, num plano mais<br />
pessoal, por escolherem <strong>Lisboa</strong> para<br />
o fazer.<br />
Esta relação <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> está<br />
na base orgânica do Fimfa e enche <strong>de</strong><br />
orgulho Rute Ribeiro e Luís Vieira. A<br />
poucos dias do início do festival, e<br />
quando anunciam estar já a preparar<br />
a próxima edição, “mas sem po<strong>de</strong>r<br />
assumir muitos compromissos” por<br />
razões <strong>de</strong> calendário <strong>de</strong> abertura <strong>de</strong><br />
novos programas <strong>de</strong> apoio, não querem<br />
colocar-se em bicos <strong>de</strong> pés e festejar<br />
os <strong>de</strong>z anos como se fossem algo<br />
<strong>de</strong> extraordinário. São-no. Mas <strong>de</strong>z<br />
anos <strong>de</strong>pois, quando lhes perguntamos<br />
se se lembram porque quiseram<br />
fazer um festival, dizem-nos: “era coisa<br />
mais evi<strong>de</strong>nte”. A evidência acampa,<br />
uma vez mais, em <strong>Lisboa</strong> por um<br />
mês.<br />
NICK MANGAFAS<br />
PAULINE KALKER<br />
Hotel<br />
Mo<strong>de</strong>rn<br />
“The Shrimp<br />
Tales” (Maria<br />
Matos, 14 e 15),<br />
analisa o estado<br />
do mundo<br />
usando como<br />
mo<strong>de</strong>los para<br />
compreen<strong>de</strong>r<br />
o humano<br />
300 gambas<br />
embalsamadas<br />
HAKO<br />
Roman<br />
Paska<br />
Em “Schoolboy<br />
Play” (Teatro<br />
Nacional, 28<br />
e 29) faz <strong>de</strong><br />
um encontro<br />
entre Hitler<br />
e Wittgenstein<br />
uma parábola<br />
sobre as dores<br />
<strong>de</strong> crescimento<br />
<strong>de</strong> athol fugard<br />
l<br />
Awa Deco<br />
Hakomawahi<br />
Wo<br />
Fukkatsuru<br />
Kai<br />
“Hakomawashi”<br />
(Museu do<br />
Oriente, 13 a 15) ,<br />
a recuperação<br />
<strong>de</strong> gestos<br />
ritualistas<br />
e <strong>de</strong> tradições<br />
à beira do fim<br />
<strong>tudo</strong><br />
<strong>de</strong>pois...<br />
Internacional <strong>de</strong> Marionetas e Formas Animadas.<br />
menos presa por fios. Tiago Bartolomeu Costa<br />
De 6 <strong>de</strong> Maio a 6 <strong>de</strong> Junho<br />
Tradução: Jaime Salazar Sampaio; Encenação: Beatriz Batarda; Cenário e figurinos:<br />
Cristina Reis; Desenho <strong>de</strong> luz: José Nuno Lima; Sonoplastia: Sérgio Milhano.<br />
Interpretação: Catarina Lacerda e Dinarte Branco.<br />
Co-produção<br />
De 3ª a Sábado às 21.00h. Domingo às 16.00h TEATRO DO BAIRRO ALTO<br />
R.Tenente Raul Cascais, 1A. 1250 <strong>Lisboa</strong> Telef: 213961515 / Fax 213954508<br />
e-mail: info@teatro-cornucopia.pt<br />
Estrutura financiada pelo<br />
Apoios<br />
http://www.teatro-cornucopia.pt<br />
2010<br />
M/12<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 33
Para “o mundo secreto das feridas”<br />
sobre o qual Athol Fugard gosta <strong>de</strong><br />
trabalhar, Ester e Johnnie são seres<br />
perfeitos. Os dois irmãos são as únicas<br />
personagens na peça “Olá e A<strong>de</strong>usinho”<br />
que o sul-africano escreveu,<br />
encenou e representou (enquanto<br />
Johnnie) nos anos 1960. Dois seres<br />
sozinhos, que <strong>de</strong>sembrulham a podridão<br />
das suas vidas, aos poucos, no<br />
palco. Não são fantasmas, mas neles<br />
a vida quase <strong>de</strong>saparece <strong>de</strong> tão corroída<br />
por recordações que são só erros<br />
e feridas.<br />
Beatriz Batarda <strong>de</strong>ixou-se tentar<br />
por essa forma <strong>de</strong> Fugard tratar as<br />
feridas familiares e convidou Catarina<br />
Lacerda (Ester) e Dinarte Branco ( Johnnie)<br />
para o seu primeiro trabalho<br />
como encenadora (Teatro da Cornucópia,<br />
em <strong>Lisboa</strong>, até 6 <strong>de</strong> Junho, <strong>de</strong>pois<br />
da estreia em Março no Cartaxo<br />
e <strong>de</strong> uma digressão pelo país que continuará<br />
em Julho em Beja e Faro).<br />
“Interessam-me estes temas da família,<br />
da infantilização dos adultos<br />
quando confrontados com feridas<br />
antigas e <strong>de</strong> como per<strong>de</strong>mos o nosso<br />
chão <strong>de</strong> adultos quando estamos <strong>de</strong>ntro<br />
do seio familiar”, expõe Batarda,<br />
que diz ter construído o espectáculo<br />
“com uma visão próxima da representação”.<br />
“A encenação foi muito<br />
marcada pelas minhas preocupações<br />
enquanto actriz.”<br />
Ester é abrupta na sua forma <strong>de</strong><br />
chegar e <strong>de</strong> ser. E ainda mais abrupta<br />
quando tem à frente o irmão num estado<br />
<strong>de</strong> confusão que, por momentos,<br />
se confun<strong>de</strong> com submissão. A força<br />
está nela, que o confronta com a verda<strong>de</strong><br />
e o contagia com o ódio que<br />
sempre sentiu e só isso o faz reagir.<br />
Ele <strong>de</strong>ambula, perdido na ausência<br />
do pai, na in<strong>de</strong>finição do seu ser, misturando<br />
a sua inércia com uma sempre<br />
presente vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus.<br />
Ester, “pessoa seca e irónica”, <strong>de</strong>senvolveu<br />
pelo sofrimento formas <strong>de</strong><br />
se relacionar com o outro “sem se<br />
<strong>de</strong>ixar tocar”, <strong>de</strong>screve a actriz Catarina<br />
Lacerda. “No processo <strong>de</strong> criação,<br />
falámos muito da máscara, dos<br />
mecanismos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa” que ela cria<br />
na sua procura “<strong>de</strong> uma recordação,<br />
<strong>de</strong> algo que a faça olhar para o passado<br />
e ver uma motivação para seguir<br />
em frente”, continua a actriz. Nesta<br />
“viagem turbulenta”, a mais velha dos<br />
dois irmãos transforma-se aos olhos<br />
do público e <strong>de</strong>la própria. Quando<br />
volta a casa, à procura do dinheiro <strong>de</strong><br />
uma herança e <strong>de</strong>ssa recordação,<br />
muitos anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter partido,<br />
encontra o irmão, Johnnie, “à beira<br />
da loucura e do suicídio”, explica, por<br />
sua vez, o actor Dinarte Branco.<br />
O choque <strong>de</strong> Johnnie é brutal no<br />
seu confronto com sonhos nunca concretizados<br />
e com a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
fazer algo por si próprio <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
toda a vida a cuidar <strong>de</strong> um pai <strong>de</strong>ficiente.<br />
É a irmã que diz a Johnnie<br />
quem ele é, que o obriga a encarar<br />
que Deus não existe. E que não existindo<br />
Deus, não há pretexto, nem<br />
<strong>de</strong>sculpa, nem perdão.<br />
Os dois actores, como as suas personagens<br />
“em estado <strong>de</strong> vítimas”,<br />
carregam uma fatalida<strong>de</strong> e um passado<br />
que os asfixia e, que a Johnnie,<br />
paralisa.<br />
No <strong>de</strong>sembrulhar <strong>de</strong> caixas e caixotes,<br />
no <strong>de</strong>sfiar <strong>de</strong> recordações,<br />
vislumbra-se uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
vida. Nas palavras do irmão, há ironia<br />
que provoca o riso, mas não sem dor,<br />
e uma leveza momentânea, mas afinal<br />
falsa. “É um riso, mas é um riso<br />
nervoso, por causa da tensão”, diz<br />
Batarda. “E isso é muito interessante<br />
no texto.”<br />
A escolha da encenadora e dos actores<br />
foi “não lhes dar perdão, não<br />
acreditar que há re<strong>de</strong>nção”, explica<br />
Batarda. “Há um renascer mas um<br />
renascer igualmente podre.” Uma<br />
esperança quando a luz aponta para<br />
uma porta e nos mostra que o beco<br />
afinal tem saída? “Uma esperança <strong>de</strong><br />
sobrevivência mas não <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>.<br />
Nem <strong>de</strong> perdão.” Nesta encenação,<br />
“há menos pensamentos poéticos<br />
sobre a vida”. “Não interessam nada.<br />
É teatro e é catarse, e a catarse também<br />
se manifesta <strong>de</strong> forma poética”,<br />
diz a encenadora.<br />
Retrato psicólogo e social<br />
Encorajada a experimentar a encenação<br />
por Luís Miguel Cintra e Carlos<br />
Aladro que a encenou em “De Homem<br />
para Homem”, em 2008, Batarda<br />
foi à prateleira on<strong>de</strong> guarda os<br />
“Interessam-me<br />
os temas da família,<br />
da infantilização<br />
dos adultos quando<br />
confrontados com<br />
feridas antigas<br />
e <strong>de</strong> como per<strong>de</strong>mos<br />
o nosso chão<br />
<strong>de</strong> adultos <strong>de</strong>ntro<br />
do seio familiar”<br />
Beatriz Batarda<br />
textos que gostaria <strong>de</strong> trabalhar. Desta<br />
vez não como actriz, mas como<br />
encenadora. E escolheu Fugard por<br />
ser um autor <strong>de</strong> temas que lhe interessam<br />
“como a injustiça, a segregação,<br />
a exclusão, sempre escritos <strong>de</strong><br />
maneira muito humana”. Nota: “Fugard,<br />
para além <strong>de</strong> dramaturgo, é<br />
encenador e actor, e isso reflecte-se<br />
na maneira como escreve. As personagens<br />
são construídas <strong>de</strong> forma concreta<br />
do ponto <strong>de</strong> vista psicológico e<br />
comportamental. Mas a peça fala-nos<br />
<strong>de</strong> mais coisas do que <strong>de</strong> psicologia<br />
humana.”<br />
No caso <strong>de</strong> Ester e Johnnie, a mãe<br />
é <strong>de</strong> origem inglesa e o pai afrikaner.<br />
No caso <strong>de</strong> Athol Fugard, nascido e<br />
criado, como eles, em condições humil<strong>de</strong>s,<br />
em Port Elizabeth na África<br />
do Sul, o pai é <strong>de</strong> origem inglesa e <strong>de</strong><br />
mãe afrikaner. “O Fugard é os dois,<br />
Ester e Johnnie, é aquela divisão.” O<br />
texto “é muitíssimo pessoal, adaptado<br />
e invertido, mas muito pessoal”,<br />
continua Batarda.<br />
O texto retrata o empobrecimento<br />
dos afrikaners, que imigraram no século<br />
XVII com a crença enraizada <strong>de</strong><br />
que eram o povo eleito numa Terra<br />
Prometida, mas que dois séculos <strong>de</strong>pois<br />
se confrontam com a chegada e<br />
o domínio económico dos ingleses,<br />
simbolizado pela expansão dos caminhos-<strong>de</strong>-ferro,<br />
on<strong>de</strong> trabalhou o pai<br />
<strong>de</strong> Ester e Johnnie e on<strong>de</strong> sonhou trabalhar<br />
Johnnie.<br />
Fugard trata nesta peça esse cruzamento<br />
que cria “conflitos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong>s”. Além da tensão psicológica<br />
e do retrato social, a peça<br />
contém “uma forte componente <strong>de</strong><br />
pensamento filosófico e teológico”,<br />
com o questionamento da existência<br />
<strong>de</strong> Deus. “Não há povo eleito coisa<br />
nenhuma”, conclui a encenadora.<br />
“Os afrikaners estão numa situação<br />
<strong>de</strong> beco sem saída e <strong>de</strong> crise com a<br />
sua fé. Portanto, povo eleito, olá e<br />
a<strong>de</strong>usinho.”<br />
Teatro<br />
Beatriz Batarda<br />
no mundo secreto<br />
<strong>de</strong> Athol Fugard<br />
NUNO FERREIRA SANTOS<br />
MIGUEL MADEIRA<br />
Encorajada a experimentar<br />
a encenação por Luís Miguel<br />
Cintra e Carlos Aladro, Batarda<br />
foi à prateleira on<strong>de</strong> guarda<br />
os textos que gostaria<br />
<strong>de</strong> trabalhar<br />
Passa <strong>de</strong> actriz a encenadora com uma peça do sul-africano Athol Fugard. “Olá<br />
e A<strong>de</strong>usinho” fala <strong>de</strong> temas que lhe interessam – i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, a existência ou não<br />
<strong>de</strong> Deus, a diferença entre culpa e responsabilida<strong>de</strong>. Ana Dias Cor<strong>de</strong>iro
Rubem Fonseca<br />
como nunca o vimos<br />
Dois grupos portugueses, a Escola da Noite e a Companhia <strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Braga, juntaramse<br />
para montar mais <strong>de</strong> 20 contos do escritor brasileiro. “1.José 2.Rubem 3.Fonseca” chega<br />
amanhã, com toda a sua violência, ao Theatro Circo, em Braga. Maria João Lopes<br />
Teatro<br />
AUGUSTO BAPTISTA<br />
Foi em 1996, quando estava em viagem<br />
pelo Brasil, que uma amiga lhe<br />
pôs nas mãos “Feliz Ano Novo”, <strong>de</strong><br />
Rubem Fonseca. O encenador António<br />
Augusto Barros recorda esse seu<br />
primeiro contacto com a obra do escritor<br />
brasileiro: “Foi um livro provi<strong>de</strong>ncial<br />
para mim”, diz. Não <strong>de</strong>scansou<br />
enquanto não leu <strong>tudo</strong>. E enquanto<br />
não levou aquelas palavras para<br />
cima do palco.<br />
Está a acontecer agora: pela primeira<br />
vez em Portugal, a obra do escritor<br />
brasileiro que venceu o Prémio Camões<br />
em 2003, foi transposta para<br />
teatro. A Escola da Noite e a Companhia<br />
<strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Braga juntaram-se<br />
e criaram, a partir <strong>de</strong> contos do autor,<br />
a trilogia “1.José 2.Rubem 3.Fonseca”:<br />
um conjunto <strong>de</strong> três espectáculos sobre<br />
os temas da violência, da sexualida<strong>de</strong><br />
e da solidão. Sempre na cida<strong>de</strong>.<br />
Depois da estreia em Coimbra, no Teatro<br />
da Cerca <strong>de</strong> São Bernardo, a trilogia<br />
segue para o Theatro Circo, em<br />
Braga, já a partir <strong>de</strong> amanhã. Em Junho,<br />
Rubem Fonseca volta a Coimbra:<br />
“José” po<strong>de</strong> voltar a ser visto a 4 e 5;<br />
“Rubem” a 8 e 9, e “Fonseca” a 11 e 12.<br />
Com Rubem Fonseca, frisa António<br />
Augusto Barros, há um “corte” com<br />
o ruralismo na literatura brasileira.<br />
Nascem as cida<strong>de</strong>s e os confrontos,<br />
com sangue, morte, cruelda<strong>de</strong>. Ninguém<br />
é poupado. Diz-se <strong>tudo</strong> com<br />
todas as letras, mostra-se a realida<strong>de</strong><br />
com todas as suas agruras. Mas há<br />
comédia também, apesar da tragédia.<br />
As duas fun<strong>de</strong>m-se num humor negro<br />
que faz o público rir, mesmo quando<br />
há cabeças cortadas.<br />
Todos estes temas interessaram à<br />
Escola da Noite, <strong>de</strong> Coimbra, e à Companhia<br />
<strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Braga, que voltaram<br />
a juntar-se – <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> “Sabina<br />
Freire”, em 2009 – para se <strong>de</strong>bruçarem<br />
sobre a obra do contista, romancista<br />
e ensaísta, sta, vencedor também do<br />
Prémio Juan Rulfo. Quanto tempo levaram<br />
a <strong>de</strong>scobrir a obra, a seleccionar<br />
os contos, a estudá-los, a pô-los<br />
em palco? António Augusto Barros<br />
até se ri. Uma<br />
odisseia. A<br />
i<strong>de</strong>ia inicial ial<br />
até era fazer<br />
um só e s -<br />
pectáculo, mas o rial era <strong>de</strong> tal forma<br />
mate-<br />
rico que acabaram<br />
por querer fazer três.<br />
Po<strong>de</strong>m ser vistos damente, e, mas há diálogos<br />
entre os três módulos que<br />
separa-<br />
apenas fazem sentido para<br />
quem vir a trilogia ta, admite o encenador.<br />
comple-<br />
Com Rubem Fonseca<br />
emergem as cida<strong>de</strong>s<br />
e os confrontos<br />
com sangue, morte,<br />
cruelda<strong>de</strong>. Ninguém<br />
é poupado.<br />
Diz-se <strong>tudo</strong> com todas<br />
as letras<br />
As personagens <strong>de</strong> Rubem<br />
Fonseca suce<strong>de</strong>m-se<br />
vertiginosamente nesta trilogia<br />
Apesar da aventura que foi pegar<br />
nestes contos, a encenação acabou<br />
por ser uma tarefa facilitada pelo<br />
“elenco muito variado” (em que se<br />
cruzam os actores das duas companhias)<br />
e pela “força dos textos”. to A<br />
escrita “veloz” <strong>de</strong> Rubem Fonse-<br />
ca, com “uma gran<strong>de</strong> intensida-<br />
<strong>de</strong> dramática”, revela uma<br />
“pro-<br />
ximida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> ao teatro”.<br />
Ao ritmo próprio das<br />
cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>s gran<strong>de</strong>s,<br />
os contos<br />
suce-<br />
<strong>de</strong>m-se<br />
em pal-<br />
co e enchem-no <strong>de</strong> tal for-<br />
ma, através das narrativas<br />
e do corpo das persona-<br />
gens, que o encenador<br />
acabou por optar por um<br />
cenário simples. “A ceno-<br />
grafia é essencialista<br />
e lim-<br />
pa, a i<strong>de</strong>ia era que jogasse ao<br />
contrário. A primeira tenta-<br />
ção era fazer um espaço urbano, mas<br />
assim salta mais a palavra e o jogo dos<br />
actores”, explica. Em palco, por vezes<br />
há biombos, mas o elemento fundamental<br />
é apenas um “estrado”. É<br />
nele que <strong>tudo</strong> se passa: é quarto, consultório<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntista, escritório, cama…<br />
Conhecer mais<br />
Vistos os três espectáculos – cerca <strong>de</strong><br />
sete horas ao todo –, António Augusto<br />
Barros acredita que o espectador fica<br />
com “uma paleta da obra” <strong>de</strong> Rubem<br />
Fonseca. Mas sobre<strong>tudo</strong> com vonta<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> conhecer mais: “Acho que é preciso<br />
ser muito insensível para não querer<br />
conhecer mais”, diz. De resto, é<br />
uma pena que o escritor seja tão pouco<br />
conhecido em Portugal: “Falta intercâmbio<br />
entre real entre as duas<br />
culturas [a portuguesa e a brasileira]”,<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, notando que, em todos os<br />
espectáculos, se manteve a maioria<br />
das expressões brasileiras.<br />
Os temas que marcam o universo<br />
<strong>de</strong> Rubem Fonseca – o dia-a-dia das<br />
gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, a violência física e<br />
psicológica, o sexo, a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
comunicação entre as pessoas, a morte,<br />
a indiferença, o crime, a riqueza,<br />
o trabalho, a pobreza – cruzam-se nos<br />
três espectáculos, ainda que seja possível<br />
ver em “José” a violência como<br />
fio condutor, em “Rubem” a sexualida<strong>de</strong>,<br />
e em “Fonseca” a solidão.<br />
Em “José”, por exemplo, há sangue<br />
e morte em vários contos. E, mesmo<br />
naqueles em que a violência não se<br />
manifesta <strong>de</strong> forma explícita, como<br />
“Agora você” (ou “José e seus irmãos”),<br />
ela está lá. É o caso <strong>de</strong> “Hil<strong>de</strong>te”<br />
que, para António Augusto Barros,<br />
é “um dos contos mais violentos”.<br />
Mesmo sem tiros e facas, fala sobre<br />
uma outra violência, cada vez mais<br />
visível nas socieda<strong>de</strong>s contemporâneas<br />
e mediatizadas: a violência <strong>de</strong><br />
fabricar e <strong>de</strong> expor, através <strong>de</strong> manobras<br />
<strong>de</strong> marketing, a vida das pessoas.<br />
Há ainda “Raimundinha”, que não<br />
sabe reconhecer os inimigos que se<br />
aproveitam da sua ingenuida<strong>de</strong>. E um<br />
homem, em “A Escolha”, que se divi<strong>de</strong><br />
entre uma ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> rodas e uma<br />
<strong>de</strong>ntadura. É um dos <strong>de</strong>s<strong>de</strong>ntados do<br />
universo <strong>de</strong> Rubem Fonseca. Os pobres<br />
não têm dinheiro para arranjar<br />
os <strong>de</strong>ntes.<br />
Mas uma das personagens mais<br />
marcantes <strong>de</strong> “José” é o Cobrador (do<br />
conto homónimo), um homem que<br />
cobra dívidas à socieda<strong>de</strong>, sobre<strong>tudo</strong><br />
aos que pertencem às classes mais<br />
abastadas. Devem-lhe a dignida<strong>de</strong>,<br />
argumenta: “Tão me <strong>de</strong>vendo colégio,<br />
namorada, aparelho <strong>de</strong> som, respeito,<br />
sanduíche <strong>de</strong> morta<strong>de</strong>la no botequim<br />
da rua Vieira Fazenda, gelado, bola<br />
<strong>de</strong> futebol”, diz. Com o Cobrador, sim,<br />
há morte e sangue em palco. Como<br />
na vida.<br />
Ver agenda <strong>de</strong> espectáculos pág. 38<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 35
Dança<br />
Ela anda há mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos a <strong>de</strong>ixarse<br />
ir aon<strong>de</strong> a levam os ví<strong>de</strong>os <strong>de</strong> Daniel<br />
Blaufuks – e os ví<strong>de</strong>os <strong>de</strong> Daniel<br />
Blaufuks levaram-na a sair (“Vooum”,<br />
<strong>de</strong> 1999) e a entrar (“No Fly Zone”, <strong>de</strong><br />
2000), a sair e a entrar constantemente,<br />
como se não houvesse vida on<strong>de</strong><br />
não há viagem (muito <strong>de</strong>pois disso,<br />
em 2007, o Teatro Nacional S. João<br />
voltou a olhar para essas peças, juntou-as<br />
num ciclo e chamou-lhes “movimentantes”:<br />
parecia óbvio). Agora<br />
há vida outra vez, em “a praça”, a nova<br />
criação <strong>de</strong> Né Barros que tem hoje<br />
estreia na Culturgest, em <strong>Lisboa</strong>: vida<br />
em todos os centímetros da Djemaa<br />
El-Fnaa, a praça <strong>de</strong> carne e osso que<br />
Daniel Blaufuks filmou numa cida<strong>de</strong><br />
mais velha do que o mundo, Marraquexe,<br />
e vida em todos os centímetros<br />
da praça virtual que a coreógrafa<br />
constrói em palco, organizando, <strong>de</strong>sorganizando<br />
e reorganizando os corpos<br />
dos quatro bailarinos (Ángel Montero<br />
Vázquez, Joana Castro, Katja Juliana<br />
Geiger e Pedro Rosa), enquanto<br />
a banda sonora criada <strong>de</strong> raiz por Alexandre<br />
Soares e Jorge Queijo fala pelo<br />
menos tantas línguas quantas as<br />
que ouviríamos se andássemos por<br />
aí, sem parar, e o mundo inteiro fosse<br />
o sítio a que chamamos casa.<br />
Casa é isso, diz Né Barros: andar<br />
por aí. “‘a praça’ vem na sequência<br />
“Estar no meio<br />
<strong>de</strong> uma praça faz-nos<br />
ser qualquer coisa.<br />
É o tipo <strong>de</strong> sítio<br />
que está sempre<br />
preparado para<br />
que algo aconteça”<br />
Né Barros<br />
dos outros trabalhos que eu fiz com<br />
o Daniel Blaufuks, muito centrados<br />
na i<strong>de</strong>ia da viagem, da paisagem, do<br />
humano enquanto paisagem, do nomadismo<br />
vivido quase como condição<br />
e motor existencial”, explica. Tal<br />
como os movimentantes que habitavam<br />
as suas criações anteriores, e que<br />
agora regressam, a praça on<strong>de</strong> <strong>tudo</strong><br />
isto se passa é um lugar ambulante:<br />
“[Atravessar uma praça] não é como<br />
atravessar uma rua (...). Quando estamos<br />
na praça <strong>de</strong>ambulamos. Derivamos<br />
(...). Representamos também”,<br />
escreveu a coreógrafa no programa<br />
que acompanha a peça. Viu vários<br />
ví<strong>de</strong>os <strong>de</strong> Daniel Blaufuks antes <strong>de</strong><br />
fazer “pause” a estes, e <strong>de</strong> querer ficar<br />
por ali, na Djemaa El-Fna, a praça<br />
das praças, entre marroquinas às<br />
compras, turistas <strong>de</strong> máquina fotográfica,<br />
cegos vindos dos relatos <strong>de</strong><br />
Elias Canetti, contadores <strong>de</strong> histórias,<br />
encantadores <strong>de</strong> serpentes, cozinheiros<br />
<strong>de</strong> branco, miúdos da escola, no<br />
ponto exacto on<strong>de</strong> o Oci<strong>de</strong>nte se passa<br />
para o lado <strong>de</strong> lá, explica ao Ípsilon:<br />
“É uma praça muito particular,<br />
porque tem uma diversida<strong>de</strong> cultural<br />
extremamente evi<strong>de</strong>nte. Há marcas<br />
muito evi<strong>de</strong>ntes das diferenças culturais<br />
nestas imagens. Havia outras<br />
hipóteses, outras imagens que o Daniel<br />
tinha feito na Índia, ou em Nova<br />
Iorque, mas todas essas outras viagens,<br />
acabam por estar ali”.<br />
A praça é a própria viagem.<br />
Barulhos <strong>de</strong> fundo<br />
Também houve outra coisa que se<br />
tornou evi<strong>de</strong>nte à medida que a praça<br />
ganhou vida, nos ensaios: a praça,<br />
enquanto lugar <strong>de</strong> representação social,<br />
é uma metáfora do palco (ou então<br />
é o palco que é uma metáfora da<br />
praça, <strong>de</strong> qualquer praça). “Estar no<br />
meio <strong>de</strong> uma praça faz-nos ser qualquer<br />
coisa. É o tipo <strong>de</strong> sítio que está<br />
sempre preparado para que algo<br />
aconteça. Exactamente como um palco.<br />
O [filósofo francês] Michel Serres<br />
fala disso, da praça como um corpo<br />
nu, à espera <strong>de</strong> ser construído”, sublinha<br />
Né Barros.<br />
Depois <strong>de</strong> ter visto as imagens da<br />
praça, repetidamente, trabalhou sozinha<br />
em cima <strong>de</strong>las. Mais do que um<br />
cenário, o ví<strong>de</strong>o <strong>de</strong> Daniel Blaufuks<br />
é <strong>de</strong> certa forma o coração do espectáculo:<br />
“O ví<strong>de</strong>o interessou-me por<br />
esse lado mais abstracto da praça como<br />
sítio on<strong>de</strong> <strong>tudo</strong> está em potência,<br />
mas também pelo concreto do que<br />
lá se passa – aquela passagem incessante,<br />
aquela frequência, aquela afluência<br />
sem objectivo”. Há elementos<br />
disso no espectáculo – Né Barros andou<br />
sozinha pelas ruas do Porto, a<br />
fotografar bandos <strong>de</strong> pássaros, porque<br />
eles são como a multidão da Djemaa<br />
El-Fnaa: às vezes parecem coreografados<br />
– e cenas que funcionam<br />
quase como uma extensão ou um<br />
contraponto das narrativas sugeridas<br />
pelo ví<strong>de</strong>o, ainda que “a praça” não<br />
pretenda ser um duplo da Djemaa<br />
El-Fna.<br />
Po<strong>de</strong>mos imaginar “mil histórias”<br />
para toda aquela gente, e ela imaginou<br />
algumas: a história da banda <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte,<br />
por exemplo, que criou para<br />
que o grupo <strong>de</strong> turistas amontoado<br />
<strong>de</strong>ntro do ví<strong>de</strong>o tivesse um espelho<br />
ao qual se pu<strong>de</strong>sse olhar. Po<strong>de</strong>mos<br />
imaginar “mil histórias”, dizíamos,<br />
mas não po<strong>de</strong>mos fixar-nos em nenhuma.<br />
“a praça” está viva, e vai em<br />
todas as direcções ao mesmo tempo.<br />
Tudo o que vemos são barulhos <strong>de</strong><br />
fundo: pessoas <strong>de</strong> passagem, conversas<br />
apanhadas a meio, noutras línguas,<br />
mundos paralelos. “As personagens<br />
falam, mas não dizem nada.<br />
São só vozes. Um dos livros <strong>de</strong> que<br />
chegámos a falar foi ‘As Vozes <strong>de</strong> Marraquexe’,<br />
do Elias Canetti”, nota Né<br />
Barros.<br />
Há uma parte nesse livro, mesmo<br />
antes <strong>de</strong> acabar, em que Canetti conta<br />
como “ao anoitecer” se punha a<br />
caminho da Djemaa El-Fna à procura<br />
<strong>de</strong> “uma pequena trouxa castanha”<br />
que emitia “um ‘a-a-a-a-a-a-a’ profundo,<br />
contínuo”, perceptível “entre as<br />
mil vozes e gritos da praça”: “Nunca<br />
a via apanhar as moedas que lhe atiravam.<br />
Poucas, porque nunca lá estavam<br />
mais <strong>de</strong> duas ou três. Talvez<br />
não tivesse braços para apanhar as<br />
moedas. Talvez não tivesse língua para<br />
dizer todos os sons <strong>de</strong> ‘Alá’, reduzindo<br />
o nome <strong>de</strong> Deus a ‘a-a-a-a-a-a-a’!<br />
Mas vivia, e com total entrega e perseverança<br />
dizia o único som que podia<br />
dizer, e dizia-o durante horas e<br />
horas, até se tornar o único <strong>de</strong> todo<br />
aquele imenso lugar, o som que, afinal,<br />
sobrevivia a todos os outros”.<br />
A-a-a-a-a-a-a. Se escutarmos com<br />
atenção, também o ouvimos aqui.<br />
Po<strong>de</strong>mos<br />
imaginar mil<br />
histórias para<br />
toda a gente<br />
que se cruza<br />
na Djemaa El-<br />
Fna, mas não<br />
po<strong>de</strong>mos<br />
fixar-nos em<br />
nenhuma: são<br />
barulhos <strong>de</strong><br />
fundo,<br />
conversas<br />
apanhadas a<br />
meio<br />
Ver agenda <strong>de</strong> espectáculos pág. 38.<br />
A praça<br />
está viva<br />
Né Barros <strong>de</strong>ixou-se ir até Marraquexe nos ví<strong>de</strong>os <strong>de</strong> Daniel Blaufuks e fez “pause” à Djemaa<br />
El-Fna, a praça das praças. É o tipo <strong>de</strong> sítio on<strong>de</strong> <strong>tudo</strong> po<strong>de</strong> acontecer - exactamente como<br />
esta peça, com estreia hoje em <strong>Lisboa</strong>, na Culturgest. Inês Nadais<br />
36 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
The<br />
Divine<br />
Comedy<br />
Ninguém faz Neil<br />
Hannon melhor<br />
que Neil Hannon.<br />
Eis “Bang Goes<br />
The Knighthood”<br />
Pág. 52<br />
The National O<br />
problema é quando “High Violet”<br />
acaba: volta-se à vida. Pág. 52<br />
Mathias Énard<br />
Escreveu “Zona”, uma epopeia<br />
contemporânea. Cabe <strong>tudo</strong><br />
numa viagem nocturna <strong>de</strong><br />
comboio. Pág. 46<br />
“Líbano” Um “tour <strong>de</strong><br />
force”, a guerra na primeira pessoa.<br />
Pág. 42<br />
13ª edição<br />
Termina em 15 <strong>de</strong> Maio o prazo para a recepção das obras <strong>de</strong>stinadas à 13ª edição<br />
do Prémio Literário Fernando Namora. A este prémio no valor <strong>de</strong> 25 mil euros,<br />
po<strong>de</strong>m concorrer autores portugueses, individualmente, através das editoras<br />
ou <strong>de</strong> outras entida<strong>de</strong>s.<br />
Mais informações www.casino-estoril.pt<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 37
Teatro/Dança<br />
Antes-<br />
treia<br />
Nós somos<br />
o rei<br />
Um clássico do absurdo<br />
na Comuna, “O Rei Está a<br />
Morrer, <strong>de</strong> Ionesco, sobre<br />
a maior certeza da vida: a<br />
morte. Clara Campanilho<br />
Barradas<br />
O Rei Está a Morrer<br />
De Eugène Ionesco. Encenação:<br />
João Mota. Com Carlos Paulo, Ana<br />
Lúcia Palminha, Tânia Alves, Rui<br />
Neto, Alexandre Lopes, Mia Farr.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro da Comuna. Pç. Espanha. Até 27/06.<br />
4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h. Tel.: 217221770. 5€.<br />
O título já dá uma i<strong>de</strong>ia. Mas, nos<br />
primeiros momentos da peça, a<br />
dúvida, se a houver, logo se dissipa.<br />
Somos informados – e o próprio<br />
também – <strong>de</strong> que, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> hora e<br />
meia, Bérenger, o rei, estará morto.<br />
É o absurdo <strong>de</strong> um mestre do<br />
Teatro do Absurdo, em cena na<br />
Comuna – Teatro <strong>de</strong> Pesquisa, até 27<br />
<strong>de</strong> Junho. O essencial <strong>de</strong> “O Rei está<br />
a morrer”, do romeno Eugène<br />
Ionesco (1909-1994), é “a angústia da<br />
morte, o pavor da morte”, resume<br />
João Mota, o encenador.<br />
O Rei Bérenger – ditador,<br />
autoritário, arrogante – chefia um<br />
reino <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte. A sua hora<br />
aproxima-se. A primeira rainha,<br />
Margarida, confronta-o com a sua<br />
inevitável morte, que ele não quer<br />
aceitar. A segunda rainha, Maria,<br />
também não aceita. O médico<br />
garante que já nada há a fazer. É<br />
inevitável, o rei vai mesmo morrer.<br />
Ele é ditador, mas “a gran<strong>de</strong><br />
ditadora é a morte”.<br />
Para João Mota, este rei<br />
representa todos nós. “Há um lado<br />
na peça <strong>de</strong> que eu gosto muito: cada<br />
um <strong>de</strong> nós é rei do seu reino. E<br />
quando morremos, o mundo acaba.<br />
E nós esquecemos isso durante a<br />
vida. Fala-se pouco sobre a morte”.<br />
É “difícil passar para o outro lado”,<br />
A estreia oficial é no dia<br />
21, em <strong>Lisboa</strong>, no Centro<br />
Cultural <strong>de</strong> Belém, mas até<br />
lá os Artistas Unidos vão<br />
andar a apresentar o seu<br />
novo espectáculo, dupla<br />
investida em<br />
Harold Pinter,<br />
um pouco<br />
por todo o<br />
país. Depois<br />
<strong>de</strong> uma<br />
primeira<br />
Depois do absurdo <strong>de</strong> Beckett, o absurdo<br />
<strong>de</strong> Ionesco na temporada da Comuna<br />
apresentação ontem,<br />
“Comemoração” e “A<br />
Nova Or<strong>de</strong>m Mundial”<br />
regressam hoje, às<br />
21h45, ao palco do Teatro<br />
Aveirense, <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />
seguem para o Teatro<br />
<strong>Municipal</strong> da Guarda<br />
(quinta-feira, dia 13, às<br />
21h30) e para o Teatro<br />
da Terra, em Ponte <strong>de</strong><br />
Sôr (sexta-feira, dia 14, e<br />
sábado, dia 15, às 21h30).<br />
“Comemoração” é a última<br />
por isso, temos <strong>de</strong> saber encarar o<br />
facto <strong>de</strong> que vamos morrer: “O Rei<br />
diz uma frase que eu acho genial:<br />
‘Porque é que eu nasci, se foi para<br />
morrer? Malditos pais.’ É uma frase<br />
horrível”, e portanto “é bom saber<br />
viver com alegria, com energia, para<br />
po<strong>de</strong>r passar a ponte”, diz o<br />
encenador.<br />
O próprio Ionesco tinha pavor da<br />
morte. “Todos nós temos, em parte.<br />
Mas nunca pensamos nela. Por isso é<br />
que vivemos erradamente. Se<br />
convivêssemos melhor com a morte,<br />
éramos todos muito mais felizes”.<br />
As duas rainhas são dois lados da<br />
mesma moeda. O rei Bérenger “é<br />
bígamo. Tem duas mulheres: a<br />
morte e a vida”.<br />
É a primeira vez que João Mota se<br />
aventura pelos textos <strong>de</strong> Ionesco.<br />
“Este ano, abrimos com Samuel<br />
Beckett, numa encenação do Álvaro<br />
Correia [“A Felicida<strong>de</strong>, Amanhã...”].<br />
Ora, se fizemos um mestre do<br />
absurdo, Beckett, tínhamos <strong>de</strong> fazer<br />
também o outro, o Ionesco”. Beckett<br />
e Ionesco (“eu gosto muito dos dois”,<br />
diz Mota) “têm sempre um lado<br />
cómico, eles são todo o absurdo.<br />
Quase que po<strong>de</strong>mos dizer que [esta<br />
peça] é uma comédia. Trágica, mas é<br />
uma comédia”, diz Mota.<br />
A encenação – ao contrário das<br />
indicações típicas na dramaturgia <strong>de</strong><br />
Ionesco – é <strong>de</strong>spida, leve. “Foi para<br />
que cada espectador se sinta com<br />
aquele problema. Para pensar como<br />
é que a gente acorda amanhã,<br />
porque é que a gente vive”, justifica<br />
o encenador. “Valoriza o texto e o<br />
que está por trás <strong>de</strong>le. Penso que se<br />
o Ionesco visse este espectáculo,<br />
gostava!”.<br />
As pessoas não se levantam, no<br />
final da peça. “Ficam paradas, até<br />
falam baixinho. É preciso dizer:<br />
‘pronto, acabou’. Gosto do silêncio<br />
que fica, é sinal <strong>de</strong> que a pessoa<br />
interiorizou coisas que eu penso que<br />
são muito importantes”, conta João<br />
Mota.<br />
“O Rei Está a Morrer” é “uma peça<br />
que dá para pensar muito”. Como<br />
Bérenger, “todos nós somos<br />
bígamos”.<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
Agenda<br />
peça que o dramaturgo<br />
britânico, Nobel da<br />
Literatura em 2005,<br />
escreveu - uma guerra <strong>de</strong><br />
palavras que anuncia o<br />
capitalismo maiz feroz,<br />
possivelmente a “Nova<br />
Or<strong>de</strong>m Mundial” que dá<br />
título à peça curta com<br />
que os Artistas Unidos<br />
encerram esta nova visita<br />
a Harold Pinter.<br />
Teatro<br />
Estreiam<br />
Keskusteluja<br />
De e com Ville Walo, Kalle<br />
Hakkarainen.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> Maria Matos. Av. Frei<br />
Miguel Contreiras, 52. De 07/05 a 08/05. 6ª e Sáb.<br />
às 21h30. Tel.: 218438801. 5€ a 12€.<br />
FIMFA LX10 - Festival Internacional<br />
<strong>de</strong> Marionetas e Formas Animadas.<br />
Ver texto na pág. 32 e segs.<br />
Continuam<br />
Olá e A<strong>de</strong>usinho<br />
De Athol Fugard. Encenação <strong>de</strong><br />
Beatriz Batarda. Com Catarina<br />
Lacerda e Dinarte Branco.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro do Bairro Alto. R. Tenente Raul<br />
Cascais, 1 A. Até 06/05. 3ª a Sáb. às 21h. Dom. às<br />
16h. Tel.: 213961515. 7,5€ a 15€.<br />
Ver texto na pág. 34.<br />
José. Rubem. Fonseca.<br />
A partir <strong>de</strong> Rubem Fonseca. Pela<br />
CTB - Companhia <strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Braga<br />
e Escola da Noite. Encenação <strong>de</strong><br />
António Augusto Barros. Com<br />
António Jorge, Carlos Feio, Igor<br />
Lebreaud, Rogério Boane, Solange<br />
Sá, entre outros.<br />
Braga. Theatro Circo - Pequeno Auditório. Av. da<br />
Liberda<strong>de</strong>, 697. De 8/05 a 22/05. 3ª a Dom. às<br />
21h30. Tel.: 253203800. 5€ a 10€.<br />
Ver texto na pág. 35.<br />
Salto.Lamento<br />
<strong>Lisboa</strong>. Museu da Marioneta. R. da Esperança, 146<br />
- Convento das Bernardas. Até 07/05. 5ª e 6ª às<br />
21h30. Tel.: 213942810.<br />
FIMFA Lx10 - Festival Internacional<br />
<strong>de</strong> Marionetas e Formas Animadas.<br />
Ver texto na pág. 32 e segs.<br />
Paisagens em Trânsito<br />
De e com Patrick Murys.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Museu da Marioneta. R. da Esperança, 146<br />
- Convento das Bernardas. Dia 12/05. 4ª às 21h30.<br />
Tel.: 213942810.<br />
FIMFA LX10 - Festival Internacional<br />
<strong>de</strong> Marionetas e Formas Animadas.<br />
Won<strong>de</strong>rland<br />
A partir <strong>de</strong> Lewis Carroll. Pelo Teatro<br />
<strong>de</strong> Marionetas do Porto. Encenação<br />
<strong>de</strong> João Paulo Seara Cardoso. Com<br />
Edgard Fernan<strong>de</strong>s, Sara Henriques,<br />
Sérgio Rolo, Shirley Resen<strong>de</strong>.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> Maria Matos. Av. Frei<br />
Miguel Contreiras, 52. De 11/05 a 12/05. 3ª e 4ª às<br />
21h30. Tel.: 218438801. 5€ a 12€.<br />
FIMFA LX10 - Festival Internacional<br />
<strong>de</strong> Marionetas e Formas Animadas.<br />
Agora a Sério<br />
De Tom Stoppard. Encenação: Pedro<br />
Mexia. Com Ana Brandão, João Reis,<br />
São José Correia, entre outros.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro Aberto - Sala Azul. Pç. Espanha. Até<br />
31/12. 4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h. Tel.:<br />
213880089. 7,5€ a 15€.<br />
Troilo & Créssida<br />
De Shakespeare. Pela Companhia <strong>de</strong><br />
Teatro <strong>de</strong> Almada, ACTA,<br />
Companhia <strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Braga.<br />
Encenação <strong>de</strong> Joaquim Benite. Com<br />
André Silva, Luís Vicente, Mário<br />
Spencer, entre outros.<br />
Almada. Teatro <strong>Municipal</strong>. Av. Professor Egas<br />
Moniz. Até 16/05. 4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h.<br />
Tel.: 212739360. 6€ a 13€.<br />
Jardim Suspenso<br />
De Abel Neves. Encenação: Alfredo<br />
Brissos. Com Carla Chambel, Simone<br />
<strong>de</strong> Oliveira, entre outros.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro Nacional D. Maria II - Sala-Estúdio.<br />
Pç. D. Pedro IV. Até 30/05. 4ª, 5ª, 6ª e Sáb. às<br />
21h45. Dom. às 16h15. Tel.: 213250835. 12€.<br />
Fo<strong>de</strong>r e Ir às Compras<br />
De Mark Ravenhill. Encenação <strong>de</strong><br />
Gonçalo Amorim. Com Pedro<br />
Carmo, Carla Maciel, Carloto Cotta,<br />
Pedro Gil, Romeu Costa.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> S. Luiz. R. Antº Maria<br />
Cardoso, 38-58. Até 09/05. 4ª a Sáb. às 21h. Dom.<br />
às 17h30. Tel.: 213257650. 15€.<br />
A Rainha da Beleza <strong>de</strong> Leenane<br />
De Martin McDonagh. Pelo Teatro<br />
Meridional. Encenação <strong>de</strong> Nuria<br />
Mencía. Com Almeno Gonçalves,<br />
Elisa <strong>Lisboa</strong>, José Mata, Natália Luíza.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro Meridional. R. do Açucar, 64 - Poço<br />
do Bispo. Até 30/05. 4ª a Sáb. às 21h45. Dom. às<br />
17h. Tel.: 218689245.<br />
Miserere<br />
A partir <strong>de</strong> Gil Vicente. Pelo Teatro da<br />
Cornucópia. Encenação <strong>de</strong> Luis<br />
Miguel Cintra. Com João Grosso, José<br />
Airosa, Luis Miguel Cintra, Rita<br />
Blanco, entre outros.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro Nacional D. Maria II - Sala Garrett.<br />
Pç. D. Pedro IV. Até 23/05. 4ª, 5ª, 6ª e Sáb. às<br />
21h30. Dom. às 16h. Tel.: 213250835.<br />
Relativamente<br />
De Alan Ayckbourn. Encenação <strong>de</strong><br />
João Lagarto. Com António Pedro<br />
Cer<strong>de</strong>ira, Isabel Montellano, João<br />
Lagarto, Patrícia Tavares.<br />
Caldas da Rainha. Centro Cultural e Congressos. R.<br />
Doutor Leonel Sotto Mayor. De 07/05 a 08/05. 6ª e<br />
Sáb. às 21h30. Tel.: 262889650. 12,5€.<br />
O Vampiro <strong>de</strong> Belgrado<br />
De Gonçalo M. Tavares. Pelo Teatro<br />
Bruto. Encenação <strong>de</strong> Miguel Cabral.<br />
Com Isabel Nunes, Pedro Mendonça.<br />
Porto. Fundação Escultor José Rodrigues. R. da<br />
Fábrica Social. Até 22/05. 5ª a Sáb. às 22h. Tel.:<br />
220109020. 5€ a 7€.<br />
Dança<br />
Estreiam<br />
“Relativamente”<br />
chega às Caldas<br />
da Rainha na<br />
encenação <strong>de</strong><br />
João Lagarto<br />
A Praça<br />
De Né Barros. Com Ángel Montero<br />
Vázquez, Joana Castro, Katja Juliana<br />
Geiger, Pedro Rosa. Alexandre<br />
Soares, Jorge Queijo.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Culturgest. R. Arco do Cego - Edifício da<br />
CGD. De 07/05 a 08/05. 6ª e Sáb. às 21h30. Tel.:<br />
217905155. 5€ a 18€.<br />
Ver texto na pág. 36.<br />
Local Geographic<br />
De Rui Horta.<br />
<strong>Lisboa</strong>. CCB - Sala <strong>de</strong> Ensaio. Praça do Império. De<br />
11/05 a 16/05. 3ª a 6ª às 21h (excepto à 5ª). Sáb. e<br />
Dom. às 19h. Tel.: 213612400. 12€.<br />
Béjart Ballet Lausanne<br />
<strong>Lisboa</strong>. Coliseu dos Recreios. R. Portas St. Antão,<br />
96. De 13/05 a 16/05. 5ª e 6ª às 21h30. Sáb. às 16h30<br />
e 21h30. Dom. às 16h. Tel.: 213240580. 25€ a 47€.<br />
“Local Geographic”, <strong>de</strong> Rui Horta<br />
38 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
Exposições<br />
Os prodígios<br />
do Uno<br />
Uma exposição alquímica<br />
<strong>de</strong> Raquel Feliciano.<br />
Óscar Faria<br />
Matéria Prima<br />
De Raquel Feliciano.<br />
Porto. Tabacaria. Rua Pinto Bessa, 170, r/c<br />
traseiras, 122 armazém 4/5. Tel.: 220938372. Até<br />
22/05. 3ª a Sáb. das 14h às 20h.<br />
Fotografia. Escultura.<br />
ADRIANO MIRANDA<br />
mmmmn<br />
Design<br />
português<br />
No antigo Egipto, um dos elementos<br />
constituintes do humano era o “ba”,<br />
que po<strong>de</strong> ser traduzido pela palavra<br />
“alma” – ao corpo, no momento da<br />
sua mo<strong>de</strong>lação pelo <strong>de</strong>us khnum na<br />
sua roda <strong>de</strong> oleiro, unia-se uma<br />
outra substância, o “ka”, uma<br />
<strong>de</strong>signação para a energia vital <strong>de</strong><br />
um ser. Depois da morte, o “ka”,<br />
representado por uns braços<br />
erguidos na direcção do céu, e o<br />
“ba”, figurado por um falcão com<br />
cabeça humana, unem-se no “akh”,<br />
uma força luminosa. A crença na<br />
vida além da morte era<br />
acompanhada pela <strong>de</strong>posição <strong>de</strong><br />
estatuetas junto da múmia: estas<br />
<strong>de</strong>viam ser alimentadas pelos vivos<br />
através <strong>de</strong> oferendas. E, enquanto o<br />
“ka” habitava o <strong>de</strong>funto, o “ba”<br />
abandonava o corpo no momento da<br />
sua extinção, tendo então a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> revisitar os lugares<br />
conhecidos pelo morto ou <strong>de</strong> viajar<br />
até às estrelas; con<strong>tudo</strong>, à noite, o<br />
“ba” entregava ao “ka” a energia<br />
acumulada nas dádivas entregues<br />
nesse dia pelos vivos.<br />
Em “Matéria Prima”, Raquel<br />
Feliciano (Caldas da Rainha, 1983)<br />
Depois <strong>de</strong> países como<br />
a Finlândia, o Brasil<br />
e o Japão, Portugal é<br />
finalmente o país-tema<br />
do Destination: Design<br />
Series, um projecto<br />
do MoMA (Museum<br />
of Mo<strong>de</strong>rn Art) que<br />
tem vindo a fazer<br />
uma cartografia das<br />
tendências actuais do<br />
revela um trabalho intitulado<br />
precisamente “ba”, uma fotografia<br />
em que se observa uma “alma”<br />
<strong>de</strong>sfocada – a imagem foi captada na<br />
secção <strong>de</strong> antiguida<strong>de</strong>s egípcias <strong>de</strong><br />
um museu. A evocação dos<br />
elementos primordiais é uma<br />
constante da exposição: há uma<br />
espécie <strong>de</strong> alquimia que atravessa os<br />
trabalhos apresentados; a<br />
transmutação operada durante o<br />
processo fotográfico po<strong>de</strong> ser<br />
mesmo lida como uma metáfora<br />
para essa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontrar a<br />
pedra filosofal. As imagens visíveis<br />
na Tabacaria – um dos novos<br />
espaços situados nas imediações da<br />
Estação <strong>de</strong> Campanhã, no Porto –<br />
são todas provas <strong>de</strong> brometo <strong>de</strong><br />
prata em papel baritado, uma<br />
escolha que acentua essa<br />
proximida<strong>de</strong> a uma essência para<br />
além do real.<br />
A exposição organiza-se<br />
sobre<strong>tudo</strong> através <strong>de</strong> fotografias que<br />
nos indicam essa proximida<strong>de</strong> à<br />
natureza. A primeira imagem<br />
intitula-se “chama” e o díptico que<br />
se lhe segue “a guia” – na verda<strong>de</strong>,<br />
estes instantâneos mostram uma<br />
águia nos seus movimentos<br />
ascen<strong>de</strong>nte e <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte,<br />
compondo-se assim uma trajectória<br />
virtual; um eco <strong>de</strong>ste voo po<strong>de</strong> ser<br />
lido em dois outros trabalhos,<br />
“<strong>de</strong>scida (nascente)” e “subida<br />
(recomeço)”, que traduzem<br />
igualmente uma reflexão acerca da<br />
paisagem. A água, a terra, o fogo e o<br />
ar atravessam estas obras,<br />
recordando uma síntese realizada<br />
por Empédocles <strong>de</strong> Agrigento: para<br />
este filósofo pré-socrático, o nascer e<br />
o morrer não existiam, porque eram<br />
apenas instantes <strong>de</strong> junção ou<br />
separação das quatro substâncias<br />
que estão na origem <strong>de</strong> todas as<br />
outras.<br />
Um objecto, uma caixa em<br />
As imagens <strong>de</strong> “Matéria Prima”, provas <strong>de</strong> brometo <strong>de</strong> prata em papel baritado,<br />
acentuam a proximida<strong>de</strong> a uma essência para além do real<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
<strong>de</strong>sign em vários países<br />
do mundo. A partir <strong>de</strong> dia<br />
13, e até ao final <strong>de</strong> Junho,<br />
estarão à venda na loja do<br />
MoMA, em Nova Iorque,<br />
diversos produtos <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>signers portugueses<br />
- incluindo estes<br />
“Montaditos” <strong>de</strong> António<br />
Azevedo, entre outros<br />
objectos que revisitam<br />
ma<strong>de</strong>ira com imagens <strong>de</strong> diversas<br />
proveniências – “O Nascimento <strong>de</strong><br />
Vénus”, <strong>de</strong> Sandro Botticelli, uma<br />
estátua renascentista <strong>de</strong> um<br />
Mercúrio alado da autoria <strong>de</strong><br />
Giambologna, uma fotografia da lua,<br />
um fragmento <strong>de</strong> uma gravura <strong>de</strong><br />
um sol, um escultura do <strong>de</strong>us Ares,<br />
etc. –, dá outras pistas relativamente<br />
à dimensão alquímica da mostra.<br />
Para além <strong>de</strong> o trabalho ser<br />
elaborado a partir construção<br />
geométrica do rectângulo <strong>de</strong> ouro,<br />
nele dá-se corpo à máxima “ce qui<br />
est en haut est comme ce qui est en<br />
bas.” A frase faz parte da “Tábua <strong>de</strong><br />
Esmeralda” (“Tabula Smaragdina”),<br />
atribuída a Hermes Trismegisto, cuja<br />
representação mística era associada<br />
a um faraó lendário – a actual<br />
datação do texto é situada entre os<br />
séculos VI e VIII d.C., sendo o “três<br />
vezes altíssimo” uma combinação<br />
helenística dos <strong>de</strong>uses Hermes<br />
(Grécia) e Thot (Egipto).<br />
“Na verda<strong>de</strong>, na verda<strong>de</strong>, sem<br />
dúvidas e incertezas:/ o que está em<br />
baixo assemelha-se ao que está em<br />
cima, e o que está em cima ao que<br />
está em baixo, para realizar os<br />
prodígios do Uno./ E como todas as<br />
coisas emanam do Uno, da<br />
meditação do Uno, assim também<br />
todas as coisas nasceram <strong>de</strong>sse Uno<br />
por adaptação. / O Sol é o pai, a Lua<br />
a mãe; o Vento transportou-o no seu<br />
ventre e a Terra é a sua ama”, lê-se<br />
na “Tábua <strong>de</strong> Esmeralda.” A<br />
exposição, com uma montagem<br />
rigorosa, espelha esta unida<strong>de</strong>. Dois<br />
exemplos: “seca/ húmida” – areia e<br />
água, em permanentes trocas,<br />
<strong>de</strong>finem a imagem <strong>de</strong> um mundo<br />
gerado pela “força <strong>de</strong> todas as<br />
forças” – e “rotação da terra”, uma<br />
escultura apresentada recentemente<br />
no Museu Geológico, em <strong>Lisboa</strong>, que<br />
põe <strong>tudo</strong> a funcionar à sua volta. É o<br />
motor da mostra.<br />
as artes e os ofícios <strong>de</strong><br />
gerações passadas,<br />
como acessórios <strong>de</strong><br />
moda em cortiça e jóias<br />
contemporâneas <strong>de</strong><br />
filigrana. Em Portugal,<br />
será a Loja <strong>de</strong> Serralves,<br />
parceira da MoMA Design<br />
Store neste projecto, a<br />
comercializar a colecção.<br />
O paraíso<br />
à mão <strong>de</strong><br />
semear<br />
Escultura e <strong>de</strong>senho <strong>de</strong><br />
Gabriela Albergaria no<br />
Pavilhão Branco.<br />
Luísa Soares <strong>de</strong> Oliveira<br />
Térmico<br />
De Gabriela Albergaria.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Museu da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>. Campo Gran<strong>de</strong>,<br />
245. Tel.: 217513200. Até 13/06. 3ª a Dom. das 10h às<br />
18h.<br />
Desenho, Escultura.<br />
mmmmn<br />
O Pavilhão Branco, estrutura<br />
mo<strong>de</strong>rna inserida nos jardins<br />
barrocos e românticos do conjunto<br />
do Museu da Cida<strong>de</strong>, é <strong>de</strong>certo um<br />
dos lugares i<strong>de</strong>ais para uma artista<br />
como Gabriela Albergaria realizar<br />
uma exposição. A escultora, que<br />
tem dividido a sua activida<strong>de</strong> entre<br />
<strong>Lisboa</strong> e Berlim, elege como tema<br />
da sua obra a reflexão sobre o<br />
jardim: simultaneamente<br />
microcosmo (porque concentra<br />
<strong>de</strong>ntro dos seus limites um número<br />
vasto <strong>de</strong> espécies), museu (porque<br />
as cataloga, classifica e expõe), e<br />
espelho, já que em teoria se propõe<br />
revelar a essência <strong>de</strong> um eu<br />
supostamente afastado da sua<br />
verda<strong>de</strong>ira natureza pelas<br />
vicissitu<strong>de</strong>s da vida<br />
contemporânea. Longe da paisagem<br />
romântica, que é sempre<br />
consi<strong>de</strong>rada como a representação<br />
da natureza indomável, o jardim<br />
concretiza o espaço da natureza à<br />
escala do humano. Mesmo quando,<br />
nos tempos medievais, ele<br />
pretendia traduzir uma<br />
representação possível do paraíso<br />
celeste.<br />
Daqui <strong>de</strong>corre que a concepção<br />
do jardim, como os diversos<br />
significados que lhe atribuímos, é<br />
i<strong>de</strong>ológica e estritamente<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> dado contexto<br />
histórico, económico ou social.<br />
Gabriela Albergaria sabe-o. E nesta<br />
exposição, como noutras que já<br />
realizou, estabelece pontes visuais<br />
entre a natureza e a cultura, entre o<br />
espaço exterior, domado e<br />
civilizado pelo homem, e a força da<br />
natureza que irrompe nas peças<br />
expostas.<br />
No rés-do-chão estão duas<br />
esculturas <strong>de</strong> realização muito<br />
recente. A primeira é uma árvore<br />
trazida para uma das salas,<br />
ocupando invasoramente quase<br />
todo o espaço disponível. O caule,<br />
no lugar do corte, ostenta uma<br />
ponta <strong>de</strong> metal que justifica o nome:<br />
“Árvore com parafuso”. A peça<br />
invoca a impossível hipótese do<br />
retorno à terra, a mesma que se<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 39
Exposições<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
“Nenhum Lugar”,<br />
<strong>de</strong> André Príncipe,<br />
na Galeria Arthobler, Porto<br />
Ana Hatherly<br />
encontra-se com Manuel<br />
Poppe na Arte Contempo<br />
Steffan Brüggemann<br />
na Kunsthalle Lissabon<br />
amontoa, por camadas, na<br />
segunda escultura, “couche sour<strong>de</strong>”:<br />
um corte <strong>de</strong> terra <strong>de</strong> estufa<br />
interrompido por camadas <strong>de</strong><br />
plantas que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a inauguração da<br />
exposição, germinam teimosamente.<br />
Esta peça, que convoca o objecto<br />
minimalista pela ru<strong>de</strong>za do material,<br />
as dimensões importantes e o modo<br />
como interfere eficazmente no<br />
espaço, é aquela que mais<br />
surpreen<strong>de</strong> em toda a exposição e<br />
melhor interpela o pensamento do<br />
visitante.<br />
No piso superior situam-se<br />
<strong>de</strong>senhos mais antigos. O <strong>de</strong>senho<br />
<strong>de</strong> Gabriela Albergaria apropria-se<br />
sempre do traço clássico, mas<br />
insere-o numa exploração da folha<br />
<strong>de</strong> papel que se confun<strong>de</strong> com a<br />
ocupção do espaço que as suas<br />
esculturas realizam. Num <strong>de</strong>stes<br />
<strong>de</strong>senhos, intitulado “Un jardin à<br />
ma façon”, os signos que figuram<br />
rochas, folhas, árvores e arbustos<br />
<strong>de</strong>cantam-se progressivamente<br />
para se transformarem numa<br />
quadrícula evocadora <strong>de</strong> um<br />
revestimento arquitectónico, que<br />
Gabriela Albergaria<br />
elegeu como tema da sua obra<br />
a reflexão sobre o jardim<br />
termina, <strong>de</strong>certo não por acaso,<br />
numa das janelas <strong>de</strong> tijolo <strong>de</strong> vidro<br />
do edifício. Este, que funciona<br />
como uma estufa, permite a<br />
migração do olhar entre o interior<br />
e o exterior, entre a natureza<br />
domesticada para gozo <strong>de</strong> uns e a<br />
arte que reflecte sobre esse<br />
processo para estímulo <strong>de</strong> outros.<br />
Assim, os jardins <strong>de</strong> Gabriela<br />
Albergaria são sempre produto <strong>de</strong><br />
contaminações entre a natureza e o<br />
espaço da arte. Contaminações essas<br />
que sempre existiram, mas que<br />
também quase sempre estiveram<br />
ocultas <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> um discurso<br />
histórico que as justificava e<br />
ocultava: o jardim, esse lugar <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>leite e encontro com a verda<strong>de</strong>ira<br />
essência do homem <strong>de</strong> que<br />
falávamos no início, foi sempre a<br />
tradução <strong>de</strong> uma apropriação que<br />
confortava e tranquilizava. Ele não é<br />
o lugar do selvagem, do<br />
<strong>de</strong>sconhecido, do Outro que nos<br />
po<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir; ou, visto <strong>de</strong> modo<br />
diverso, não é a rua urbana on<strong>de</strong> se<br />
manifesta a mudança política e<br />
social. Oásis e paraíso: na sua<br />
diversida<strong>de</strong> e mesmo na aclimatação<br />
<strong>de</strong> espécies exóticas, este é o local<br />
on<strong>de</strong> se encontram refúgio e<br />
tranquilida<strong>de</strong>. Tudo o que a arte já<br />
<strong>de</strong>u, e hoje não po<strong>de</strong> <strong>de</strong> maneira<br />
nenhuma dar. Gabriela Albergaria<br />
merecia ser melhor conhecida em<br />
Portugal.<br />
Agenda<br />
Inauguram<br />
Cornelius Car<strong>de</strong>w e a Liberda<strong>de</strong><br />
da Escuta<br />
De Hanne Boenisch, Luke Fowler,<br />
Nicolas Tilly, Lore Gablier.<br />
Porto. Culturgest. Avenida dos Aliados, 104 -<br />
Edifício da CGD. Tel.: 222098116. De 08/05 a 26/06.<br />
2ª a 6ª e Sáb. das 10h às 18h. Inaugura 8/5 às 16h.<br />
Ví<strong>de</strong>o, Fotografia, Outros.<br />
Ver texto na pág. 20 e segs.<br />
Correspondência #2<br />
De Ana Hatherly, António Poppe.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Arte Contempo. Rua dos Navegantes, 46A.<br />
Tel.: 213958006. Até 12/06. 5ª a Sáb. das 14h30 às<br />
19h30. Inaugura 7/5 às 19h.<br />
Desenho, Outros.<br />
Memória é uma Ilha <strong>de</strong> Edição<br />
De Sérgio Fernan<strong>de</strong>s.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Galeria Arte Periférica. Praça do Império -<br />
Centro Cultural <strong>de</strong> Belém, Loja 3. Tel.: 213617100.<br />
Até 03/06. 2ª a 6ª, Sáb. e Dom. das 10h às 20h.<br />
Inaugura 8/5 às 15h30.<br />
Pintura.<br />
Espelho (Meu)<br />
De Catarina Saraiva.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Módulo - Centro Difusor <strong>de</strong> Arte. Calçada<br />
dos Mestres, 34A/B. Tel.: 213885570. Até 05/06. 3ª a<br />
6ª e Sáb. das 15h às 20h. Inaugura 8/5 às 18h.<br />
Instalação, Outros.<br />
Dentro Do Labirinto - Pierre<br />
Coulibeuf<br />
De Pierre Coulibeuf.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Museu Colecção Berardo. Praça do Império.<br />
Tel.: 213612878. Até 21/06. Sáb. das 10h às 22h. 2ª a<br />
6ª, Dom. e Feriados das 10h às 19h.<br />
Instalação, Outros. Inaugura 10/5 às<br />
19h30.<br />
Continuam<br />
41º 52’ 59’’ Latitu<strong>de</strong> N / 8º 51’ 12’’<br />
Longitu<strong>de</strong> O<br />
De Jorge Barbi.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Centro <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna - José <strong>de</strong> Azeredo<br />
Perdigão. Rua Dr. Nicolau Bettencourt. Tel.:<br />
217823474 . De 06/05 a 11/07. 3ª a Dom. das 10h às<br />
18h.<br />
Fotografia, Outros.<br />
A Matéria Negra da Luz dos<br />
Media<br />
De Dara Birnbaum.<br />
Porto. Museu <strong>de</strong> Serralves. Rua Dom João <strong>de</strong> Castro,<br />
210. Tel.: 226156500. Até 04/07. 3ª a 6ª das 10h às<br />
17h. Sáb., Dom. e Feriados das 10h às 20h.<br />
Ví<strong>de</strong>o, Outros.<br />
O Dia Pela Noite<br />
De Gabriel Abrantes, Vasco Araújo,<br />
Pedro Barateiro, João Pedro Vale,<br />
entre outros.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Lux Frágil. Av. Infante D. Henrique,<br />
Armazém A. Tel.: 218820890. Até 26/02. 5ª a Sáb.<br />
das 23h às 06h.<br />
Instalação, Outros.<br />
This Is My Condition<br />
De Ryan McGinley, Ryan McNamara,<br />
Ryan Trecartin, Slater Bradley, Jack<br />
Pierson.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Galeria Filomena Soares. Rua da<br />
Manutenção, 80. Tel.: 218624122. Até 11/09. 3ª a<br />
Sáb. das 10h às 20h.<br />
Pintura, Ví<strong>de</strong>o, Instalação,<br />
Fotografia, Escultura, Outros.<br />
Show Titles<br />
De Stefan Brüggemann.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Kunsthalle Lissabon. R. Rosa Araújo, 7-9.<br />
Tel.: 918156919. Até 06/06. 5ª, 6ª e Sáb. das 15h às<br />
19h.<br />
Instalação.<br />
Lour<strong>de</strong>s Castro e Manuel<br />
Zimbro: A Luz da Sombra<br />
Porto. Museu <strong>de</strong> Serralves. Rua Dom João <strong>de</strong> Castro,<br />
210. Tel.: 226156500. Até 13/06. 3ª a 6ª das 10h às<br />
17h. Sáb., Dom. e Feriados das 10h às 22h.<br />
Escultura, Outros.<br />
Sem Re<strong>de</strong><br />
De Joana Vasconcelos.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Museu Colecção Berardo. Praça do Império.<br />
Tel.: 213612878. Até 18/05. Sáb. das 10h às 22h. 2ª a<br />
6ª, Dom. e Feriados das 10h às 19h.<br />
Instalação, Outros.<br />
Sub Rosa<br />
De Nuno Ramalho.<br />
Porto. Espaço Fundação. R. do Bonjardim, 951.<br />
Tel.: 919059992. De 30/04 a 29/05. Sáb. das 16h às<br />
20h.<br />
Desenho.<br />
Recanto do Oceano<br />
De Luís Viegas Belchior, Colecção<br />
Alcídia.<br />
Porto. Centro Português <strong>de</strong> Fotografia. Campo<br />
Mártires da Pátria. Tel.: 222076310. De 02/05 a<br />
22/05. 2ª a 6ª das 10h às 18h. Sáb., Dom. e Feriados<br />
das 10h às 19h.<br />
Fotografia.<br />
Sussuro<br />
De Henrique Silva.<br />
Porto. Centro Português <strong>de</strong> Fotografia. Campo<br />
Mártires da Pátria. Tel.: 222076310. De 02/05 a<br />
25/07. 2ª a 6ª das 10h às 18h. Sáb., Dom. e Feriados<br />
das 10h às 19h.<br />
Fotografia.<br />
Mystic Diver<br />
De Catarina Dias.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Museu da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> - Pavilhão Preto.<br />
Campo Gran<strong>de</strong>, 245. Tel.: 217513200. Até 13/06. 3ª a<br />
Dom. das 10h às 18h.<br />
Desenho, Performance, Objectos,<br />
Outros.<br />
O Ofício <strong>de</strong> Viver<br />
De Daniel Blaufuks.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Carlos Carvalho - Arte Contemporânea.<br />
Rua Joly Braga Santos, Lote F - r/c. Tel.: 217261831.<br />
Até 15/05. 2ª a 6ª das 10h30 às 19h30. Sáb. das 12h<br />
às 19h30.<br />
Fotografia, Ví<strong>de</strong>o.<br />
Viagem Ao Meio<br />
De Alexandre Estrela.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Galeria Zé dos Bois. Rua da Barroca, 59 -<br />
Bairro Alto. Tel.: 213430205. Até 29/05. 4ª a Sáb.<br />
das 15h às 23h.<br />
Vi<strong>de</strong>o, Outros.<br />
Em Nenhum Lugar<br />
De André Silva.<br />
Porto. Galeria Arthobler. R. Miguel Bombarda, 624.<br />
Tel.: 226084448. De 17/04 a 17/05. 3ª a Sáb. das 15h<br />
às 19h30.<br />
Pintura, Desenho, Instalação,<br />
Escultura.<br />
The Absent Space<br />
De José María Yturral<strong>de</strong>.<br />
Braga. Galeria Mário Sequeira - Parada <strong>de</strong> Tibães.<br />
Quinta da Igreja (Parada <strong>de</strong> Tibães). Tel.:<br />
253602550. Até 29/05. 2ª a 6ª das 13h às 19h. Sáb.<br />
das 15h às 19h.<br />
Pintura.<br />
Soft Theraphy<br />
De Santiago Villanueva.<br />
Braga. Galeria Mário Sequeira - Parada <strong>de</strong> Tibães.<br />
Quinta da Igreja (Parada <strong>de</strong> Tibães). Tel.:<br />
253602550. Até 29/05. 2ª a 6ª das 13h às 19h. Sáb.<br />
das 15h às 19h.<br />
Escultura, Outros.<br />
40 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
Cinema<br />
série ípsilon II<br />
Sexta-feira,<br />
dia 14 <strong>de</strong> Maio,<br />
o DVD “A Estação”,<br />
<strong>de</strong> Thomas McCarthy<br />
Todas as sextas,<br />
por €1,95.<br />
20<br />
anos<br />
Merecidíssimo Leão <strong>de</strong> Ouro em Veneza 2009, é uma experiência cinemática <strong>de</strong> cortar o fôlego<br />
Estreiam<br />
Sentir<br />
a guerra<br />
Um extraordinário “tour<strong>de</strong>-force”<br />
que, mais do<br />
que mostrar a guerra, faznos<br />
sentir a guerra. Jorge<br />
Mourinha<br />
Líbano<br />
Lebanon<br />
De Samuel Maoz,<br />
com Yoav Donat, Itay Tiran, Oshri<br />
Cohen. M/16<br />
MMMMn<br />
<strong>Lisboa</strong>: CinemaCity Campo Pequeno Praça <strong>de</strong><br />
Touros: Sala 7: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª 14h05, 16h20,<br />
19h15, 21h45, 00h15 Sábado Domingo 12h, 14h05,<br />
16h20, 18h30, 21h45, 00h15; CinemaCity Classic<br />
Alvala<strong>de</strong>: Sala 3: 5ª 2ª 3ª 4ª 13h50, 15h45, 17h40,<br />
19h35, 21h30 6ª 13h50, 15h45, 17h40, 19h35, 21h30,<br />
00h10 Sábado 11h50, 13h50, 15h45, 17h40, 19h35,<br />
21h30, 00h10 Domingo 11h50, 13h50, 15h45, 17h40,<br />
19h35, 21h30; Me<strong>de</strong>ia Monumental: Sala 4 - Cine<br />
Teatro: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h, 16h,<br />
18h, 20h, 22h, 00h30; UCI Cinemas - El Corte<br />
Inglés: Sala 5: 5ª 6ª Sábado 2ª 3ª 4ª 14h, 16h30,<br />
19h, 21h35, 00h20 Domingo 11h30, 14h, 16h30, 19h,<br />
21h35, 00h20; ZON Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª<br />
Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h, 16h40, 19h, 22h,<br />
00h15;<br />
Porto: Arrábida 20: Sala 14: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 14h30, 16h55, 19h25, 21h50, 00h15 3ª<br />
4ª 16h55, 19h25, 21h50, 00h15;<br />
Vamos, por um momento, esquecer<br />
que “Líbano” se passa <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um<br />
tanque israelita durante a primeira<br />
invasão do Líbano em Junho <strong>de</strong> 1982.<br />
É difícil, sabemos, até porque<br />
Samuel Maoz nunca escamoteou que<br />
o filme se inspira nas suas<br />
experiências como artilheiro num<br />
tanque <strong>de</strong> guerra, e porque sempre<br />
que as palavras “Médio Oriente”<br />
vêm ao <strong>de</strong> cima há uma imagem que<br />
se instala para nunca mais sair.<br />
Mas a verda<strong>de</strong> é que o filme <strong>de</strong><br />
Maoz não é tanto sobre o Líbano (ou<br />
sobre o estado constantemente “em<br />
guerra” <strong>de</strong> Israel) como é sobre a<br />
guerra, “tout court”, e sobre o modo<br />
como o homem a vive (ou apren<strong>de</strong> a<br />
vivê-la). Para isso, o cineasta arrisca<br />
um “tour <strong>de</strong> force” na corda bamba,<br />
tanto mais arriscado quanto estamos<br />
a falar <strong>de</strong> um primeiro filme: fazer o<br />
espectador sentir a guerra na<br />
primeira pessoa, restringi-lo ao<br />
espaço confinado <strong>de</strong> um tanque,<br />
fechá-lo durante hora e meia com os<br />
quatro homens da tripulação e com<br />
o modo como cada um <strong>de</strong>les<br />
enfrenta a sua primeira experiência<br />
<strong>de</strong> combate e <strong>de</strong>scobre algo sobre si<br />
próprio no processo.<br />
E ganha a aposta em toda a linha.<br />
Muito se tem falado sobre o<br />
“voyeurismo” ou o “mau gosto” <strong>de</strong><br />
algumas cenas vistas através do<br />
“periscópio” do tanque, mais<br />
violentas ou <strong>de</strong>sconfortáveis, com a<br />
mira telescópica a <strong>de</strong>ixar no campo<br />
tanto quanto fica <strong>de</strong> fora. Mas o que<br />
Maoz está a fazer é apenas reduzir a<br />
experiência da guerra, mesmo que<br />
mediada por um dispositivo tão<br />
cinemático como este (o periscópio<br />
é, literalmente, a lente da câmara, o<br />
olho que vê sem conseguir parar <strong>de</strong><br />
ver), à sua essência urgente, à<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir agora, já,<br />
imediatamente, sucumbindo ou<br />
resistindo ao instinto primal <strong>de</strong><br />
sobrevivência, tornando tangível o<br />
conflito entre a moral e o instinto.<br />
Como quem diz: é <strong>de</strong>masiado fácil<br />
olhar para as coisas <strong>de</strong> fora,<br />
portanto venham vê-las <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro.<br />
Fechados num esquife <strong>de</strong> metal<br />
on<strong>de</strong> só se mata ou se morre. Sem<br />
heroísmos hollywoodianos nem<br />
finais felizes <strong>de</strong> filme <strong>de</strong> guerra,<br />
“Líbano” dá corpo aos suores frios,<br />
ao cheiro a pólvora e metal e sangue<br />
<strong>de</strong> um modo que raros filmes<br />
conseguiram fazer.<br />
Merecidíssimo Leão <strong>de</strong> Ouro em<br />
Veneza 2009, é uma experiência<br />
cinemática <strong>de</strong> cortar o fôlego que<br />
po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ser lida como<br />
complemento ao excelente e<br />
Oscarizado “Estado <strong>de</strong> Guerra”<br />
(2008) <strong>de</strong> Kathryn Bigelow. E bem<br />
merecia um programa duplo com a<br />
“Valsa com Bashir” <strong>de</strong> Ari Folman<br />
(2008) ou com o (inédito por cá)<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
“Z32” <strong>de</strong> Avi Mograbi (2008), para<br />
perceber como o cinema israelita já<br />
é capaz <strong>de</strong> olhar para os seus<br />
conflitos <strong>de</strong> modos muito diferentes<br />
e igualmente estimulantes.<br />
Tanto<br />
sentimento!<br />
Será que Andrew e Ben vão<br />
mesmo filmar-se num porno<br />
gay? Isso, em “Humpday”,<br />
é como o “McGuffin” <strong>de</strong><br />
Hitchcock: está ali para<br />
distrair. Vasco Câmara<br />
Humpday - Deu para o torto<br />
Humpday<br />
De Lynn Shelton,<br />
com Mark Duplass, Joshua Leonard,<br />
Alycia Delmore. M/16<br />
MMMnn<br />
<strong>Lisboa</strong>: Castello Lopes - Londres: Sala 1: 5ª<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 14h, 16h30, 19h, 21h30 6ª<br />
Sábado 14h, 16h30, 19h, 21h30, 24h; Me<strong>de</strong>ia<br />
Monumental: Sala 2: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />
3ª 4ª 13h30, 15h30, 17h30, 19h30, 21h30, 24h; UCI<br />
Cinemas - El Corte Inglés: Sala 2: 5ª 6ª Sábado 2ª<br />
3ª 4ª 14h15, 16h40, 19h05, 21h45, 00h20 Domingo<br />
11h30, 14h15, 16h40, 19h05, 21h45, 00h20;<br />
Porto: Arrábida 20: Sala 11: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 14h15, 16h45, 19h05, 21h30, 00h10 3ª<br />
4ª 16h45, 19h05, 21h30, 00h10;<br />
Se alguém, por facilida<strong>de</strong>, resumir<br />
“Humpday” a “uma história <strong>de</strong> dois<br />
amigos heterossexuais que resolvem<br />
participar num filme porno gay”, o<br />
filme que se “vê” (com a ajuda da<br />
tradução portuguesa: “Deu para o<br />
torto”) será algo próximo da<br />
comédia que lança personagens aos<br />
leões para gáudio do espectador nas<br />
bancadas. Mas “Humpday” não é<br />
isso, sendo que é a história <strong>de</strong> dois<br />
heterossexuais, Ben (Mark Duplass)<br />
e Andrew ( Joshua Leonard), que<br />
resolvem participar num filme<br />
porno gay.<br />
Não se viam há muito e<br />
(tipicamente) não podiam ser mais<br />
diferentes: Ben está casado,<br />
assentou, Andrew vai enviando, <strong>de</strong><br />
tempos a tempos, postais do seu<br />
périplo. Um dia Andrew entra na<br />
conjugalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ben; regressa a<br />
Ben. Tanto sentimento!<br />
Na comunida<strong>de</strong> liberal e colorida<br />
on<strong>de</strong> vive Ben, organiza-se um<br />
festival <strong>de</strong> filme pornográfico. E é<br />
assim que estes trintões liberais<br />
querem contribuir com a sua<br />
criativida<strong>de</strong>. Sai <strong>de</strong> Ben e Andrew o<br />
<strong>de</strong>safio: em nome da arte, filmaremse<br />
num porno gay.<br />
Por esta altura no filme já se<br />
percebeu que “Humpday” não é a<br />
comédia javarda do costume. É<br />
<strong>de</strong>masiado tagarela. Há nestas<br />
personagens um voluntarismo que<br />
as torna mais próximas dos<br />
estrategas (con<strong>de</strong>nados ao falhanço,<br />
hélas...) que são os homens e<br />
mulheres dos filmes <strong>de</strong> Rohmer. As<br />
personagens <strong>de</strong> “Humpday” são<br />
menos teimosas, é verda<strong>de</strong>. São<br />
mais doces na forma como se<br />
interrogam, como se <strong>de</strong>ixam sabotar<br />
pelas suas certezas. Ou como se<br />
aventuram por lugares para on<strong>de</strong><br />
não estão preparadas para ir – não,<br />
não são figuras olímpicas capazes <strong>de</strong><br />
ultrapassar limites...<br />
Mas tanto sentimento! Não<br />
abunda no cinema americano actual<br />
esta abundância – pelo menos <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
o cinema <strong>de</strong> John Cassavetes, em<br />
que as personagens eram,<br />
literalmente, <strong>de</strong>rrubadas pelo que<br />
sentiam. O que titila em “Humpday”<br />
é a utopia <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> fusão<br />
– sentimental. E um olhar tão<br />
melancólico sobre uma geração e as<br />
suas impossibilida<strong>de</strong>s...Sendo<br />
verda<strong>de</strong> que não há aqui nenhum<br />
Cassavetes ou Rohmer atrás da<br />
câmara e que o filme não está<br />
É verda<strong>de</strong> que até ao fim o espectador se pergunta: Andrew<br />
e Ben vão mesmo fazê-lo num quarto <strong>de</strong> hotel? Mas isso, em<br />
“Humpday”, é como o “McGuffin” <strong>de</strong> Hitchcock...
Reencontro<br />
Passaram<br />
21 anos<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />
Antonio<br />
Ban<strong>de</strong>ras<br />
participou<br />
num filme<br />
<strong>de</strong> Pedro<br />
Almodóvar. Os dois vão<br />
voltar a trabalhar juntos<br />
em “La Piel que Habito”.<br />
O filme, que começa a ser<br />
rodado este Verão em<br />
Espanha, baseia-se no<br />
livro <strong>de</strong> Thierry Jonquet<br />
“Tarantula”. Almodóvar<br />
disse ao “El País” que o<br />
filme “será <strong>de</strong> terror, mas<br />
sem gritos ou sustos. É<br />
difícil <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir e embora<br />
se aproxime do género<br />
– algo que me interessa<br />
porque nunca fiz –, não<br />
vou respeitar nenhuma<br />
das regras. É o filme mais<br />
duro que já escrevi e a<br />
personagem <strong>de</strong> Ban<strong>de</strong>ras<br />
é brutal. Um homem<br />
que encarna o abuso do<br />
po<strong>de</strong>r mais absoluto, sem<br />
nenhum escrúpulo”.<br />
propriamente virado para a<br />
transgressão (ou não é capaz <strong>de</strong>la),<br />
Lynn Shelton está, como cineasta<br />
(também é uma das actrizes,<br />
interpreta Monica), totalmente<br />
metida com as personagens. Esta<br />
serena promiscuida<strong>de</strong> parece ser a<br />
natureza da coisa. Ppromiscuida<strong>de</strong> é<br />
também um dos dados <strong>de</strong>ste novo<br />
naturalismo do “indie” americano a<br />
que chamam “mumblecore”<br />
(algumas indicações: poucos meios,<br />
diálogos atrás <strong>de</strong> diálogos, exposição<br />
dos sentimentos, improvisação,<br />
actores que também são<br />
realizadores envolvidos nos filmes<br />
dos amigos e envolvendo-se com os<br />
amigos...)<br />
É verda<strong>de</strong> que até ao fim o<br />
espectador se pergunta: será que<br />
Andrew e Ben vão mesmo fazê-lo<br />
num quarto <strong>de</strong> hotel? Isso, em<br />
“Humpday”, é como o “McGuffin”<br />
<strong>de</strong> Hitchcock: está ali só para<br />
distrair.<br />
Sem <strong>de</strong>sejo<br />
Como Desenhar um Círculo<br />
Perfeito<br />
How to Draw a Perfect Circle<br />
De Marco Martins,<br />
com Rafael Morais, Joana <strong>de</strong> Verona,<br />
Daniel Duval, Beatriz Batarda. M/16<br />
MMnnn<br />
<strong>Lisboa</strong>: Me<strong>de</strong>ia Saldanha Resi<strong>de</strong>nce: Sala 7: 5ª 6ª<br />
Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h20, 16h50, 19h20,<br />
21h50, 00h20; ZON Lusomundo Alvaláxia: 5ª 6ª<br />
Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h, 16h15, 18h35, 22h,<br />
00h15; ZON Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 12h50, 15h10, 17h50, 21h,<br />
23h20; ZON Lusomundo Almada Fórum: 5ª 6ª<br />
Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 15h50, 18h15,<br />
21h, 23h50;<br />
Porto: Me<strong>de</strong>ia Cida<strong>de</strong> do Porto: Sala 2: 5ª 6ª<br />
Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h20, 16h50, 19h20,<br />
21h50; ZON Lusomundo Dolce Vita Porto: 5ª 6ª<br />
Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h05, 15h40, 18h20,<br />
21h10, 23h50;<br />
“Como Desenhar um Círculo<br />
Perfeito” dá sequência a “Alice”, o<br />
filme com que Marco Martins se<br />
estreou na longa-metragem. Dá<br />
sequência, e não apenas numérica:<br />
reconhecem-se alguns<br />
apontamentos estilísticos e/ou<br />
“atmosféricos” que parecem criar<br />
uma continuida<strong>de</strong> com “Alice”. Por<br />
exemplo, o <strong>de</strong>senho da cida<strong>de</strong> feito<br />
<strong>de</strong> pura meteorologia invernal –<br />
húmida, escura, cinzenta – e o modo<br />
como os interiores (<strong>de</strong> que se diria<br />
serem mais predominantes aqui do<br />
que em “Alice”), preservando essas<br />
características, não estabelecem<br />
uma fronteira clara com os<br />
exteriores, como se fossem eles<br />
próprios dominados pela invernia<br />
citadina. Evi<strong>de</strong>ntemente, entre o<br />
clima e a <strong>de</strong>finição psicológica das<br />
personagens as coincidências são<br />
<strong>tudo</strong> menos casuais, como se<br />
também para a dramaturgia as<br />
questões a resolver fossem, digamos,<br />
“nórdicas”.<br />
Nesta disposição para a bruma há<br />
alguma singularida<strong>de</strong> em “Como<br />
“Como Desenhar...”<br />
revela incapacida<strong>de</strong><br />
para encontrar<br />
a intensida<strong>de</strong> à altura<br />
da profundida<strong>de</strong><br />
psicológica<br />
que quer exprimir<br />
Desenhar um Círculo Perfeito”, a<br />
mesma que havia em “Alice”. Mas<br />
“Alice” tinha, porventura, uma<br />
narrativa mais coesa, ou pelo menos<br />
um centro narrativo mais forte.<br />
“Como Desenhar…” tem uma<br />
estrutura mais vaga, ainda que<br />
plenamente <strong>de</strong>terminada – pois se o<br />
filme mostra, <strong>de</strong> facto, “como<br />
<strong>de</strong>senhar um círculo perfeito”, a<br />
perfeição circular é a figura que mais<br />
se ajusta à evolução e ao <strong>de</strong>senlace<br />
do principal eixo da narrativa (a<br />
história dos dois irmãos). Narrativa<br />
<strong>de</strong> passagem (à ida<strong>de</strong> adulta) e <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>scoberta, “Como Desenhar…”<br />
joga-se sobre<strong>tudo</strong> na cabeça das<br />
personagens, em particular na do<br />
adolescente protagonista e na<br />
relação com os outros –<br />
especialmente a irmã e o pai (que,<br />
interpretado pelo granítico Daniel<br />
Duval, actor <strong>de</strong> Garrel e <strong>de</strong> Haneke,<br />
é a presença mais forte do filme). É<br />
aí que “Como Desenhar” revela<br />
alguma incapacida<strong>de</strong> para, além <strong>de</strong><br />
uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> atmosfera, encontrar a<br />
intensida<strong>de</strong> – a intensida<strong>de</strong><br />
narrativa, mas também a<br />
intensida<strong>de</strong> visual: as imagens, os<br />
planos – que esteja à altura da<br />
profundida<strong>de</strong> psicológica que<br />
parece querer exprimir.<br />
Fica-se com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um filme<br />
controlado, até <strong>de</strong>masiado<br />
controlado, que espera até ao fim<br />
por um momento libertador, por um<br />
gesto que o rasgue, que vire do<br />
avesso o seu torpor <strong>de</strong>scritivo, que<br />
faça aparecer um <strong>de</strong>sejo – não “o<br />
<strong>de</strong>sejo”, nem um <strong>de</strong>sejo qualquer,<br />
mas o <strong>de</strong>sejo do próprio filme.<br />
O fado é que instrói?<br />
A Religiosa Portuguesa<br />
De Eugène Green,<br />
com Leonor Baldaque, Francisco<br />
Mozos, Diogo Dória. M/12<br />
A<br />
<strong>Lisboa</strong>: Me<strong>de</strong>ia King: Sala 2: 5ª Domingo 3ª 4ª<br />
13h30, 15h30, 17h40, 19h45, 21h45 6ª Sábado 2ª<br />
13h30, 15h30, 17h40, 19h45, 21h45, 00h15; UCI<br />
Cinemas - El Corte Inglés: Sala 11: 5ª 6ª Sábado 2ª<br />
3ª 4ª 14h, 16h35, 19h10, 21h45, 00h20 Domingo<br />
11h30, 14h, 16h35, 19h10, 21h45, 00h20; ZON<br />
Lusomundo Alvaláxia: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />
3ª 4ª 14h, 17h, 21h35, 00h25;<br />
Porto: Arrábida 20: Sala 5: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />
2ª 13h45, 16h25, 19h10, 21h55, 00h35 3ª 4ª 16h25,<br />
19h10, 21h55, 00h35;<br />
Muita curiosida<strong>de</strong> girava à volta da<br />
estreia <strong>de</strong> “A Religiosa Portuguesa”<br />
<strong>de</strong> Eugène Green, talvez <strong>de</strong>vido à<br />
atávica mania lusitana <strong>de</strong> que os<br />
nossos mitos e paisagens interiores<br />
ganham novas e mais ricas<br />
dimensões quando percepcionadas<br />
<strong>de</strong> fora. Foi assim com “A Cida<strong>de</strong><br />
Branca” <strong>de</strong> Alain Tanner, com<br />
“Lisbon Story” <strong>de</strong> Wim Wen<strong>de</strong>rs,<br />
com os romances <strong>de</strong> António<br />
Tabucchi (e respectivas adaptações<br />
cinematográficas), para nomear<br />
apenas uns poucos exemplos. Ora,<br />
<strong>de</strong>sta vez a almejada montanha<br />
pariu um minúsculo rato: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as<br />
primeiras imagens nos apercebemos<br />
que estamos confrontados com uma<br />
sequência <strong>de</strong>scontrolada <strong>de</strong> bilhetespostais<br />
ilustrados <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>, sem<br />
tom nem som, presos a um fascínio<br />
aleatório da imagem, mas esvaziados<br />
<strong>de</strong> formas, jogados como<br />
estereótipos para cima da tela.<br />
A estratégia <strong>de</strong> um cinema autoreflexivo,<br />
embora pareça<br />
acrescentar mais-valias, possui<br />
riscos graves, capazes <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar um perverso<br />
mecanismo <strong>de</strong> distanciamento<br />
<strong>de</strong>strutivo: a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> transpor a<br />
história da suposta freira <strong>de</strong> Beja,<br />
Sóror Mariana Alcoforado,<br />
ficcionada por um exotismo francês<br />
do século XVII, para um processo <strong>de</strong><br />
filmagens na <strong>Lisboa</strong> mo<strong>de</strong>rna, com<br />
actores que macaqueiam os estados<br />
<strong>de</strong> alma (e os seus próprios<br />
problemas metafísicos e outros <strong>de</strong><br />
Uma caricatura?<br />
Cinemateca Portuguesa R. Barata Salgueiro, 39 <strong>Lisboa</strong>. Tel. 213596200<br />
Sexta, 07<br />
Desapareceu Um dos Nossos<br />
Aviões<br />
One of Our Aircraft Is Missing<br />
De Michael Powell, Emeric<br />
Pressburger. Com Godfrey Tearle,<br />
Eric Portman, Hugh Williams. 106<br />
min. M12.<br />
15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
To Sir, with Love II<br />
De Peter Bogdanovich. Com Sidney<br />
Poitier, Christian Payton, Dana<br />
Eskelson. 92 min.<br />
19h - Sala Félix Ribeiro<br />
Somewhere in Between +<br />
Magnetic Cinema<br />
De Pierre Coulibeuf. 70 min.<br />
19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Ninguém Sabe<br />
Dare mo Shiranai<br />
Nobody Knows<br />
De Hirokazu Koreeda. Com Yûya<br />
Yagira, Ayu Kitaura, Hiei Kimura. 141<br />
min. M12.<br />
21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Correspondances + Les Signes +<br />
Le Nom Du Feu<br />
De Eugène Green. Com François<br />
Rivière, Delphine Hecquet, Christelle<br />
Prot.<br />
22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Sábado, 08<br />
O Falsário<br />
The Impostor<br />
De Julien Duvivier. Com Jean Gabin,<br />
Richard Whorf, Ellen Drew. 92 min.<br />
15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
A Loira Explosiva<br />
Will Sucess Spoil Rock Hunter?<br />
De Frank Tashlin. Com Jayne<br />
Mansfield, Betsy Drake, Tony<br />
Randall. 95 min. M12.<br />
19h - Sala Félix Ribeiro<br />
Crise<br />
Kris<br />
De Ingmar Bergman. Com Dagny<br />
Lind, Stig Olin, Allan Bohlin,<br />
Marianne Lofgren. 88 min. M16.<br />
19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Teorema + O Noivo, a Actriz e o<br />
Proxeneta<br />
De Pier Paolo Pasolini. Com Massimo<br />
Girotti, Silvana Mangano, Terence<br />
Stamp. 95 min. M16.<br />
21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
O Monte dos Vendavais<br />
Abismos <strong>de</strong> Pasión<br />
De Luis Buñuel. Com Irasema Dilián,<br />
Jorge Mistral, Lilia Prado. 90 min.<br />
22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Segunda, 10<br />
O Vale era Ver<strong>de</strong> e<br />
How Green Was My Valley<br />
De John Ford. Com Anna<br />
Lee, Maureen O Hara,<br />
Walter Pidgeon.<br />
118 min. M12.<br />
15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Belle Toujours<br />
De Manoel <strong>de</strong> Oliveira.<br />
Com Michel Piccoli,<br />
Bulle Ogier, Ricardo Trepa. 68 min.<br />
M12.<br />
19h - Sala Félix Ribeiro<br />
Os Treze<br />
Trinadtsat<br />
De Mikhail Romm. 90 min.<br />
19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Quando Passam as Cegonhas<br />
Letjat Zhuravli<br />
De Mikhail Kalatozov. Com Aleksei<br />
Batalov, Tatyana Samojlova, Vasili<br />
Merkuryev. 97 min.<br />
21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
No Quarto da Vanda<br />
De Pedro Costa. Com Lena Duarte,<br />
Vanda Duarte, Zita Duarte . 179 min.<br />
M16.<br />
22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Quarta, 12<br />
O Extravagante Sr. Ruggles<br />
Ruggles of Red Gap<br />
De Leo McCarey. Com Charles<br />
Laughton, Charles Ruggles, Mary<br />
Boland. 91 min. M12.<br />
15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Do Outro Lado<br />
Auf <strong>de</strong>r An<strong>de</strong>ren Seite<br />
De Fatih Akin. Com Baki Davrak,<br />
Tuncel Kurtiz, Nurgül Yesilçay. 122<br />
min. M12.<br />
19h – Sala Félix Ribeiro<br />
A Barreira Invisível<br />
The Thin Red Line<br />
De Terrence Malick. Com George<br />
Clooney, Nick Nolte, Sean Penn. 170<br />
min. M16.<br />
21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Welcome<br />
De Philippe<br />
Lioret. Com<br />
Vincent<br />
Lindon, Firat<br />
Ayverdi,<br />
Audrey Dana.<br />
110 min. M12.<br />
22h - Sala Luís <strong>de</strong><br />
Pina<br />
“Belle Toujours”<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 43
Cinema<br />
As estrelas do público<br />
Jorge<br />
Mourinha<br />
Luís M.<br />
Oliveira<br />
Mário<br />
J. Torres<br />
Vasco<br />
Câmara<br />
Aquário mmmmn nnnnn nnnnn mmnnn<br />
Como <strong>de</strong>senhar um círculo perfeito mnnnn mmnnn nnnnn mnnnn<br />
Ervas Daninhas nnnnn mmmnn mmmmm mmmmn<br />
Eu Amo-te Philip Morris mmnnn nnnnn mmnnn mmnnn<br />
Fantasia Lusitana mmmnn mmmnn mmmmn mmmnn<br />
Greenberg mmmmn mmmnn nnnnn nnnnn<br />
Humpday mmmnn nnnnn nnnnn mmmnn<br />
Líbano mmmmn nnnnn nnnnn mmmmn<br />
9 mmmnn nnnnn nnnnn nnnnn<br />
A Religiosa Portuguesa A nnnnn A mnnnn<br />
relevância contemporânea) das<br />
personagens, revela-se <strong>de</strong> uma<br />
inutilida<strong>de</strong> confrangedora e encaixa<br />
num patético sonambulismo que<br />
pouco acrescenta seja ao que for.<br />
Uma actriz luso-francesa, como<br />
convém (Mónica Baldaque, em<br />
registo <strong>de</strong> zombie, como se quisesse<br />
citar Oliveira e o mundo oliveiriano<br />
se reduzisse àquele olhar oco para a<br />
câmara), chega à Albergaria da<br />
Senhora do Monte, visivelmente<br />
escolhida para iniciar um catálogo<br />
<strong>de</strong> miradouros sobre a cida<strong>de</strong>,<br />
<strong>de</strong>bita sem convicção nem tom, <strong>de</strong><br />
olhos esbugalhados, os mais<br />
inacreditáveis diálogos <strong>de</strong> que nos<br />
recordamos e prepara-se para rodar,<br />
sob a batuta <strong>de</strong> um realizador<br />
internacional (Eugène Green, ele<br />
próprio), uma versão congelada dos<br />
amores <strong>de</strong>scabelados da religiosa do<br />
título.<br />
Por aqui, não viria gran<strong>de</strong> mal ao<br />
mundo das letras, nem pelo facto <strong>de</strong><br />
<strong>Lisboa</strong> não funcionar como o lugar<br />
histórico i<strong>de</strong>al, nem pelo travesti<br />
<strong>de</strong>scontextualizado <strong>de</strong> um barroco<br />
<strong>de</strong> pacotilha, uma vez que o texto<br />
original se reveste <strong>de</strong> características<br />
obviamente mistificadoras. O caldo<br />
começa a entornar-se quando as<br />
i<strong>de</strong>ias feitas <strong>de</strong> uma <strong>Lisboa</strong> turística,<br />
composta <strong>de</strong> luzinhas tremeluzentes<br />
e da acumulação <strong>de</strong> monumentos a<br />
granel (das ruínas do convento do<br />
Carmo à Torre <strong>de</strong> Belém, da Alfama<br />
das escadinhas <strong>de</strong> Santo Estêvão à<br />
ermida da Senhora do Monte)<br />
<strong>de</strong>scamba para a fancaria <strong>de</strong> um<br />
imaginário possidónio <strong>de</strong> guia para<br />
<strong>de</strong>slumbrado visitante francês (ou<br />
<strong>de</strong> qualquer outra origem, tanto faz),<br />
<strong>de</strong>ambulando sem Norte (nem Sul)<br />
por painéis <strong>de</strong> azulejos (por acaso<br />
quase todos do século XVIII), que<br />
servem <strong>de</strong> fundo a telediscos <strong>de</strong><br />
Fados – o fado podia lá faltar nesta<br />
concepção <strong>de</strong> um Portugal folclórico<br />
– cantados por Camané e Aldina<br />
Duarte, o melhor do filme, embora<br />
com função <strong>de</strong>corativa.<br />
Não contente com tal disparate<br />
acumulativo, “A Religiosa<br />
Portuguesa” não resiste a inscrever<br />
na ficção <strong>de</strong>ntro da ficção (<strong>de</strong>ntro da<br />
ficção) um Duque (ou é Con<strong>de</strong>?) <strong>de</strong><br />
Viseu, suicidário, entregue a Diogo<br />
Dória (irónico ou a levar-se a sério?)<br />
que se diz originário <strong>de</strong> um romance<br />
russo (dá para acreditar?), pretexto<br />
para invocar os fantasmas do 25 <strong>de</strong><br />
Abril (claro que o 25 <strong>de</strong> Abril não<br />
podia faltar), <strong>de</strong> olho em alvo e<br />
habitando um palácio, também ele<br />
fantasmático à luz <strong>de</strong> velas. Mas, se<br />
julgam que os amorosos romances<br />
reflectores da actriz-freira se ficam<br />
por aqui, <strong>de</strong>senganem-se, pois o<br />
melhor está para vir: envolve-se,<br />
como também é <strong>de</strong> cartilha, com o<br />
actor francês com quem contracena,<br />
feliz no casamento mas a precisar <strong>de</strong><br />
estímulos sexuais, e <strong>de</strong>scobre numa<br />
discoteca um jovem <strong>de</strong> impecável<br />
cachecol branco que toma pela<br />
reencarnação <strong>de</strong> D. Sebastião (claro<br />
que faltava o D. Sebastião!),<br />
“tornado heterossexual” por séculos<br />
<strong>de</strong> espera (não estamos a inventar,<br />
faz parte integrante dos mimosos<br />
diálogos), voltando a encontrá-lo por<br />
acaso em Alfama, quando faz as<br />
“démarches” para adoptar o<br />
rapazinho órfão que encontrara<br />
num dos primeiros planos do filme.<br />
Este episódio proletário serve ainda<br />
para expor uma das maiores actrizes<br />
do cinema português, Beatriz<br />
Batarda, brilhante como sempre,<br />
numa rábula inconsequente, e para<br />
mostrar os azulejos da interior da<br />
casa, caricatura (haverá alguma<br />
coisa no filme que não funcione em<br />
registo <strong>de</strong> caricatura?) dos azulejos<br />
barrocos das capelas e das<br />
sequências fadistas, numa das quais<br />
<strong>de</strong>sfila a equipa <strong>de</strong> produção, como<br />
convém à auto-reflexivida<strong>de</strong><br />
dominante.<br />
Mas não é <strong>tudo</strong>: no interior da<br />
capela, passa as noites uma<br />
misteriosa freira (pobre Ana<br />
Moreira, outra das remissões para o<br />
cinema português que se preten<strong>de</strong><br />
“homenagear”?), uma espécie <strong>de</strong><br />
duplo da protagonista, com a qual<br />
ela troca mais alguns dos<br />
imperdíveis diálogos <strong>de</strong> recorte<br />
metafísico, não escapando nem<br />
sequer referências aos êxtases<br />
místicos <strong>de</strong> Santa Teresa <strong>de</strong> Ávila e<br />
às várias componentes do amor.<br />
Para o final, fica o mais<br />
inacreditável dos planos do filme,<br />
aquele em que ondulam ao vento as<br />
ban<strong>de</strong>iras do Benfica e do Sporting<br />
(propositadamente encenadas ou<br />
simplesmente revelando o “bom<br />
gosto” da câmara inclusiva?) e não<br />
resistimos a lembrar a frase feita,<br />
apropriada a um filme todo feito <strong>de</strong><br />
clichés: “O vinho é que induca, o<br />
fado é que instrói e quem não é do<br />
Benfica (ou do Sporting, para o caso)<br />
não é bom chefe <strong>de</strong> família”.<br />
E fica-nos a dúvida ingente: tratase<br />
<strong>de</strong> uma comédia voluntária, um<br />
irrisório, “chunga”, quase<br />
insultuoso, olhar sobre a<br />
portugalida<strong>de</strong>, ou comédia<br />
involuntária, a força <strong>de</strong> tanto se<br />
querer homenagear o cinema<br />
português? O tom sério,<br />
contemplativo e laudatório leva-nos<br />
a inclinarmo-nos para a segunda,<br />
mas lá ficam dúvidas, lá isso<br />
ficam. Mário Jorge Torres<br />
9<br />
De Shane Acker,<br />
com Christopher Plummer, Martin<br />
Landau, John C. Reilly, Elijah Wood.<br />
MMMnn<br />
<strong>Lisboa</strong>: UCI Cinemas - El Corte Inglés: Sala 10: 5ª 6ª<br />
Sábado 2ª 3ª 4ª 14h15, 16h20, 18h15, 20h10, 22h,<br />
23h50 Domingo 11h30, 14h15, 16h20, 18h15, 20h10,<br />
22h, 23h50; ZON Lusomundo Alvaláxia: 5ª 6ª<br />
Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h40, 15h40, 17h40,<br />
19h40, 21h45, 23h50; ZON Lusomundo Amoreiras:<br />
5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h15, 15h20,<br />
17h30, 19h40, 21h50, 23h50; ZON Lusomundo<br />
CascaiShopping: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª<br />
13h30, 16h10, 18h50, 21h40, 23h50; ZON<br />
Lusomundo Colombo: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />
3ª 4ª 12h55, 15h15, 17h20, 19h30, 21h40,<br />
23h50; ZON Lusomundo Dolce Vita Miraflores: 5ª<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 15h30, 17h30, 19h30, 21h30 6ª<br />
Sábado 15h30, 17h30, 19h30, 21h30, 23h30; ZON<br />
Lusomundo Odivelas Parque: 5ª 2ª 3ª 4ª 15h40,<br />
18h20, 21h40 6ª 15h40, 18h20, 21h40, 24h Sábado<br />
13h10, 15h40, 18h20, 21h40, 24h Domingo 13h10,<br />
15h40, 18h20, 21h40; ZON Lusomundo Oeiras<br />
Parque: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h05,<br />
15h10, 17h20, 19h30, 21h40, 00h05; ZON<br />
Lusomundo Vasco da Gama: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 15h25, 17h30, 19h30, 21h40,<br />
23h45; ZON Lusomundo Almada Fórum: 5ª 6ª<br />
Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h10, 15h25, 18h, 21h,<br />
23h30;<br />
Porto: Arrábida 20: Sala 4: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />
2ª 14h05, 16h05, 18h10, 20h10, 22h15, 00h25 3ª 4ª<br />
16h05, 18h10, 20h10, 22h15, 00h25; ZON<br />
Lusomundo GaiaShopping: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª 13h,<br />
15h, 17h, 19h, 21h20, 24h Sábado Domingo 10h55,<br />
13h, 15h, 17h, 19h, 21h20, 24h; ZON Lusomundo<br />
Marshopping: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª<br />
13h40, 16h10, 19h, 21h50, 00h40; ZON Lusomundo<br />
NorteShopping: 5ª 6ª Sábado 2ª 3ª 4ª 13h, 15h10,<br />
17h15, 19h30, 21h40, 23h50 Domingo 10h40, 13h,<br />
15h10, 17h15, 19h30, 21h40, 23h50; ZON Lusomundo<br />
Parque Nascente: 5ª 6ª Sábado 2ª 3ª 4ª 13h, 15h,<br />
17h10, 19h30, 21h40, 23h50 Domingo 11h, 13h, 15h,<br />
17h10, 19h30, 21h40, 23h50; ZON Lusomundo<br />
Fórum Aveiro: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 13h50, 16h20,<br />
18h45, 21h10 6ª Sábado 13h50, 16h20, 18h45, 21h10,<br />
23h50;<br />
O nome do produtor <strong>de</strong> “9” não<br />
engana quanto ao facto <strong>de</strong> este não<br />
ser um filme <strong>de</strong> animação para<br />
miúdos – Tim Burton, nem mais nem<br />
menos, que se associou ao<br />
realizador azeri Timur<br />
Bekmambetov (“Guardiões da<br />
Noite” e “Procurado”) para<br />
apadrinhar a primeira longa do<br />
animador americano Shane Acker,<br />
“versão longa” <strong>de</strong> uma curta <strong>de</strong><br />
2005 nomeada para um Óscar. Mas<br />
não se espere <strong>de</strong> “9” um<br />
“pastiche”/“ersatz” <strong>de</strong> Burton –<br />
apesar da presença <strong>de</strong><br />
colaboradores habituais do autor <strong>de</strong><br />
“Eduardo Mãos-<strong>de</strong>-Tesoura” (Pamela<br />
Pettler, argumentista <strong>de</strong> “A Noiva<br />
Cadáver”, ou o compositor Danny<br />
Elfman), o filme <strong>de</strong> Acker é um<br />
objecto autónomo, um equivalente<br />
animado das distopias tecnológicas<br />
das séries “Matrix” ou<br />
“Exterminador Implacável”<br />
transposto para um ambiente retrofuturista<br />
“steampunk”. Um boneco<br />
<strong>de</strong> trapos vem a si numa cida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>struída on<strong>de</strong> nada se mexe, a não<br />
ser outros como ele e uma<br />
misteriosa “besta” mecânica, únicos<br />
sobreviventes <strong>de</strong> uma guerra sem<br />
quartel entre a extinta raça humana<br />
e um cérebro electrónico que,<br />
inadvertidamente, acaba <strong>de</strong> ser<br />
reacordado. Não convém <strong>de</strong>ixaremse<br />
enganar pelo aspecto “fofinho”<br />
dos bonecos <strong>de</strong> trapos, nove ao<br />
todo, cada um <strong>de</strong>les reproduzindo<br />
uma faceta emocional do seu<br />
criador, com as vozes entregues a<br />
Elijah Wood, Jennifer Connelly,<br />
Christopher Plummer, John C. Reilly<br />
ou Martin Landau. A intensida<strong>de</strong> da<br />
acção coloca “9” muito mais do lado<br />
da ficção científica ou do fantástico<br />
adultos, lança o filme para uma<br />
bizarra “terra <strong>de</strong> ninguém”<br />
<strong>de</strong>masiado madura para os miúdos e<br />
insuficientemente sólida para os<br />
graúdos. Mas isso não po<strong>de</strong> servir <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sculpa para menorizar a pequena<br />
surpresa que este filme constitui,<br />
pela invenção visual <strong>de</strong> que faz<br />
prova, pela a<strong>de</strong>quação entre estilo,<br />
concepção e história, pela ousadia<br />
<strong>de</strong> propor um objecto<br />
<strong>de</strong>liberadamente fora das fronteiras<br />
tradicionais do que <strong>de</strong>ve ser uma<br />
animação. J.M.<br />
44 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
Projecto<br />
Um<br />
contracto to<br />
entre a<br />
Universal<br />
e a Hasbro,<br />
empresa<br />
produtora ra<br />
<strong>de</strong> jogos <strong>de</strong> tabuleiro,<br />
vai permitir que seis<br />
realizadores <strong>de</strong>senvolvam<br />
projectos<br />
cinematográficos<br />
baseados em jogos <strong>de</strong><br />
socieda<strong>de</strong>. Já foram<br />
divulgados os nomes<br />
dos cineastas e os jogos:<br />
Ridley Scott (Monopólio),<br />
Gore Verbinski (Cluedo),<br />
Peter Berg (Touché),<br />
Kevin Lima (Candy Land)<br />
e Michael Bay (Ouija).<br />
Ainda não é conhecida<br />
a data <strong>de</strong> lançamento <strong>de</strong><br />
nenhum dos filmes.<br />
“Greenberg”: uma carta <strong>de</strong> amor a Los Angeles<br />
Continuam<br />
Greenberg<br />
De Noah Baumbach,<br />
com Ben Stiller, Greta Gerwig, Jennifer<br />
Jason Leigh. M/12<br />
MMMMn<br />
<strong>Lisboa</strong>: Castello Lopes - Londres: Sala 2: 5ª<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 14h15, 16h45, 19h15, 21h45 6ª<br />
Sábado 14h15, 16h45, 19h15, 21h45, 00h15; UCI<br />
Cinemas - El Corte Inglés: Sala 14: 5ª 6ª Sábado 2ª<br />
3ª 4ª 14h15, 16h40, 19h05, 21h35, 24h Domingo<br />
11h30, 14h15, 16h40, 19h05, 21h35, 24h; ZON<br />
Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />
3ª 4ª 13h40, 16h20, 18h40, 21h40, 24h; ZON<br />
Lusomundo CascaiShopping: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 13h15, 15h50, 18h40, 21h05,<br />
23h40; ZON Lusomundo Colombo: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 3ª 12h45, 15h25, 18h15, 21h35, 00h10<br />
4ª 12h45, 15h25, 18h15, 00h10; ZON Lusomundo<br />
Almada Fórum: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª<br />
12h55, 15h25, 18h, 21h05, 23h40;<br />
Porto: Arrábida 20: Sala 2: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />
2ª 14h10, 16h45, 19h15, 21h50, 00h30 3ª 4ª 16h45,<br />
19h15, 21h50, 00h30; ZON Lusomundo<br />
NorteShopping: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª<br />
12h30, 17h50, 21h20;<br />
Um neurótico quarentão que nunca<br />
fez a transição para o mundo adulto<br />
aterra em Los Angeles para passar<br />
algumas semanas em casa do irmão<br />
e embarca num romance<br />
<strong>de</strong>sastrado com a governanta –<br />
posto <strong>de</strong>sta maneira, “Greenberg” é<br />
uma comédia romântica, só que<br />
não é bem comédia e é ainda menos<br />
romântica. O neurótico é Ben Stiller<br />
forçando a sua imagem pública ao<br />
limite, personagem quezilenta,<br />
narcisista e misantropa, a<br />
governanta, gémeo inseguro e sem<br />
rumo <strong>de</strong> Stiller, é a encantadora<br />
Greta Gerwig, revelação <strong>de</strong>ste filme<br />
inteligente e <strong>de</strong>sconfortável sobre<br />
gente à procura <strong>de</strong> si própria sem o<br />
saber. Mistura da flânerie curiosa <strong>de</strong><br />
Eric Rohmer, dos novos hipernaturalistas<br />
do movimento<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte “mumblecore” e do<br />
cinema americano da década <strong>de</strong><br />
1970, “Greenberg” é também<br />
uma enorme carta <strong>de</strong> amor a Los<br />
Angeles e um dos melhores<br />
filmes americanos dos últimos<br />
anos. J.M.<br />
Fantasia Lusitana<br />
De João Canijo . M/12<br />
MMMMn<br />
<strong>Lisboa</strong>: CinemaCity Campo Pequeno Praça <strong>de</strong><br />
Touros: Sala 6: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª 14h, 16h15, 17h50,<br />
19h10, 21h40, 23h, 00h25 Sábado Domingo 16h15,<br />
17h50, 19h10, 21h40, 23h, 00h25;<br />
Porto: Nun`Álvares: Sala 1: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />
2ª 3ª 4ª 19h;<br />
Cineclubes para mais informações consultar www.fpcc.pt<br />
Cine-Teatro S. Pedro<br />
Largo S. Pedro- Abrantes<br />
Ágora<br />
De Alejandro Amenabar, 2009, M/12<br />
12/5, 21.30h<br />
Cinema Teixeira <strong>de</strong><br />
Pascoaes<br />
Centro Comercial Santa Luzia - Amarante<br />
Indie <strong>Lisboa</strong> – Filmes Premiados<br />
7/5, 21.30h<br />
My Childhood + My Ain’ Folk<br />
De Bill Douglas, 1972 e 1973 8/5, 21.30h<br />
Auditório Soror<br />
Mariana<br />
Rua Diogo Cão, 8 – Évora<br />
Ruínas + Canções <strong>de</strong><br />
Amor e Saú<strong>de</strong><br />
De Manuel Mozos, 2009<br />
+ João Nicolau, 2009 12/5,<br />
21h30<br />
Auditório do<br />
IPJ (Faro)<br />
“Um Homem Singular “<br />
Rua da PSP - Faro<br />
Um dia <strong>de</strong> cada vez<br />
De Mike Leigh, 2008, M/12 10/5, 21.30h<br />
Casa das Artes <strong>de</strong> Vila<br />
Nova <strong>de</strong> Famalicão<br />
Parque <strong>de</strong> Sinçães – Famalicão<br />
Estrela Cintilante<br />
De Jane Campion, 2009, M/12 13/5,<br />
21.30h - Pequeno Auditório<br />
Centro Cultural Vila<br />
Flor<br />
Av. D. Afonso Henriques, 701 - Guimarães<br />
Um Homem Singular<br />
De Tom Ford, 2009, M/16 9/5, 21.45h -<br />
Pequeno Auditório<br />
Cinemas Ria Shoping<br />
Estrada Nacional 125, 100 - Olhão<br />
Consultórios <strong>de</strong> Deus<br />
De Claire Simon, 2008, M/16 11/5, 21.30h<br />
Cine-Teatro António<br />
Pinheiro<br />
R. Guilherme Gomes Fernan<strong>de</strong>s, 5 - Tavira<br />
Precious<br />
De Lee Daniels, 2009, M/16 9/5, 21.30h<br />
Quatro Noites Com Anna<br />
De Jerzy Skolimovski, 2008, M/16<br />
13/5, 21.30h<br />
Cinema Ver<strong>de</strong> Viana<br />
Praça 1º <strong>de</strong> Maio, Centro Comercial - Viana do<br />
Castelo<br />
X Encontros <strong>de</strong> Viana<br />
Até 9 <strong>de</strong> Maio<br />
Consultar www.ao-norte.com<br />
2010_x_encontros.htm<br />
Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong><br />
Vila do Con<strong>de</strong><br />
Av. João Canavarro - Vila do Con<strong>de</strong><br />
Deixa Chover<br />
De Agnès Jaoui, 2008, M/12<br />
9/5, 16.00h e 21.00h<br />
Auditório do IPJ<br />
(Viseu)<br />
R. Dr. Aresti<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa Men<strong>de</strong>s, 33 - Viseu<br />
Um homem singular<br />
De Tom Ford, 2009, M/16 11/5, 21.45h<br />
“9”: não convém <strong>de</strong>ixarem-se<br />
enganar pelo aspecto “fofinho”<br />
dos bonecos <strong>de</strong> trapos<br />
Um filme todo feito <strong>de</strong> colagens <strong>de</strong><br />
colagens <strong>de</strong> documentários do<br />
Estado Novo, embora com a<br />
inteligente intromissão <strong>de</strong> uma<br />
textualida<strong>de</strong> exterior, que os<br />
recontextualiza <strong>de</strong> modo<br />
contemporâneo, po<strong>de</strong>rá possuir<br />
limites evi<strong>de</strong>ntes, mas o resultado é<br />
estimulante, porque Canijo enten<strong>de</strong><br />
os materiais com que trabalha e se<br />
apercebe da sua <strong>de</strong>sgarrada<br />
eloquência. Por isso, “Fantasia<br />
Lusitana” ultrapassa a soma das suas<br />
partes constituintes e traça um dos<br />
olhares mais negros sobre o<br />
“fascismo português” e, sem sombra<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>magogia, mostra como os anos<br />
40, neste “jardim à beira mar<br />
plantado”, po<strong>de</strong>m funcionar<br />
enquanto chave para enten<strong>de</strong>r a<br />
nossa presente “apagada e vil<br />
tristeza”. M.J.T.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 45
Livros<br />
Quando “Zona” foi publicado em França houve<br />
quem dissesse que há muto não se via nas letras<br />
francesas um projecto tão <strong>de</strong>smesurado e audaz<br />
Ficção<br />
Viagem ao<br />
fim da noite<br />
Inventivo e ambicioso,<br />
Mathias Énard compôs uma<br />
epopeia contemporânea por<br />
on<strong>de</strong> passa a violência da<br />
história do século XX. José<br />
Riço Direitinho<br />
Zona<br />
Mathias Énard<br />
(traduzido por Pedro Tamen)<br />
Dom Quixote<br />
MMMMM<br />
Há dois anos a “rentrée” literária<br />
francesa foi surpreendida por um<br />
livro ambicioso, “Zona”; houve<br />
quem dissesse que<br />
não se via nas letras<br />
francesas um<br />
projecto tão<br />
<strong>de</strong>smesurado e<br />
audaz <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />
publicação do<br />
alucinado romance<br />
<strong>de</strong> Olivier Rolin “A<br />
Invenção do Mundo” (ASA, 1997). O<br />
autor, Mathias Énard (n. 1972), não<br />
era um estreante: “La Perfection du<br />
Tir”, a história <strong>de</strong> um “sniper” na<br />
guerra do Líbano, tinha já chamado<br />
a atenção dos leitores e dos críticos<br />
havia cinco anos.<br />
“Zona” é uma récita em jeito <strong>de</strong><br />
confissão, uma epopeia<br />
contemporânea que, entre outras<br />
coisas, narra a história bélica da<br />
Europa e do Médio-Oriente durante<br />
o último século, mas sem nunca<br />
per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista os <strong>de</strong>uses antigos e<br />
os heróis míticos da “Íliada”, a<br />
viagem <strong>de</strong> Ulisses, a cólera <strong>de</strong><br />
Aquiles e a guerra <strong>de</strong> Tróia, como<br />
que a querer justificar o verso <strong>de</strong><br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
Apollinaire no poema homónimo: “À<br />
la fin tu es las <strong>de</strong> ce mon<strong>de</strong> ancien”.<br />
O romance é uma espécie <strong>de</strong> fresco<br />
que se vai completando, <strong>de</strong><br />
palimpsesto erudito composto por<br />
24 partes (mais uma vez, à<br />
semelhança dos 24 Cantos da<br />
“Ilíada”) on<strong>de</strong> se juntam <strong>de</strong> maneira<br />
inventiva a história antiga e a<br />
contemporânea, a literatura, a<br />
geografia, a ciência das armas e a<br />
arte da guerra, e ainda reflexões<br />
sobre o amor e as contradições da<br />
natureza humana, <strong>tudo</strong> isto numa<br />
única frase <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 400 páginas<br />
– interrompida poucas vezes para<br />
nela se intrometer uma história<br />
pungente <strong>de</strong> dois amantes libaneses<br />
– e em que a pontuação (vírgulas)<br />
apenas serve para marcar o ritmo,<br />
que vai sofrendo alterações.<br />
Toda a narração é feita durante a<br />
viagem <strong>de</strong> um comboio nocturno<br />
que atravessa parte <strong>de</strong> Itália, entre<br />
Milão e Roma. O viajante, a caminho<br />
do “fim do mundo” como um Ulisses<br />
mo<strong>de</strong>rno a caminho da re<strong>de</strong>nção, é<br />
um agente dos serviços secretos,<br />
“homem da sombra”, na sua última<br />
missão: entregar em Roma, a um<br />
representante papal, uma maleta<br />
(qual caixa <strong>de</strong> Pandora!) com as<br />
informações coligidas durante os<br />
últimos anos sobre terroristas;<br />
receber uma importante maquia <strong>de</strong><br />
dinheiro, e “<strong>de</strong>saparecer mais ou<br />
menos <strong>de</strong>finitivamente”. Francis<br />
Servain Mirkovi, o narradorconfessor<br />
que viaja sob o falso nome<br />
Yvan Deroy, é um franco-croata com<br />
um passado <strong>de</strong> militante na extremadireita,<br />
antes <strong>de</strong> fazer “todas as<br />
preparações militares possíveis” e<br />
<strong>de</strong> combater em sucessivas guerras<br />
na ex-Jugoslávia, “pela Croácia livre<br />
e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, e <strong>de</strong>pois pela<br />
Herzegovina livre e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e<br />
finalmente pela Bósnia croata livre e<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”. Depois torna-se<br />
agente secreto a trabalhar na “Zona”<br />
(o Médio-Oriente, da Argélia ao<br />
Egipto, passando pelo Líbano, Síria e<br />
Israel). Nos intervalos das missões,<br />
dá largas à sua imo<strong>de</strong>rada paixão<br />
pelo álcool sempre pontuada por<br />
sucessivas histórias com mulheres. É<br />
em Alexandria, “um belo sítio para<br />
esperar pelo fim do mundo<br />
comendo peixe frito sob um gran<strong>de</strong><br />
Sol <strong>de</strong> Inverno aninhado no céu<br />
limpo pelo vento”, que se encontra<br />
com Marianne, a primeira das três<br />
mulheres que surgem <strong>de</strong> maneira<br />
recorrente nas suas memórias. E<br />
também a encontra em Veneza,<br />
on<strong>de</strong> num bar conhece um<br />
misterioso sírio que “era muito<br />
religioso, rezava, jejuava e nunca<br />
bebia do álcool que servia aos<br />
clientes, o seu fraco eram as<br />
raparigas, sobre<strong>tudo</strong> as putas, coisa<br />
que ele justificava dizendo que o<br />
Profeta tivera cem mulheres”.<br />
Énard vai-se servindo da violência<br />
da história do século XX (da<br />
Primeira Guerra Mundial, à Guerra<br />
Civil <strong>de</strong> Espanha, aos campos <strong>de</strong><br />
concentração nazis, à guerra do<br />
Líbano, e mais recentemente às<br />
guerras nos Balcãs) para fazer uma<br />
erudita reflexão literária (on<strong>de</strong> não<br />
faltam as vozes mo<strong>de</strong>rnas <strong>de</strong> Ezra<br />
Pound, Céline, Conrad, Genet ou W.<br />
G. Sebald, entre outras) sobre a<br />
complexida<strong>de</strong> das contradições da<br />
natureza humana e da<br />
“aleatorieda<strong>de</strong>” da História, que é<br />
sempre escrita pelos vencedores.<br />
Neste sentido, o narrador, que<br />
também terá a sua conta <strong>de</strong> “crimes<br />
contra a Humanida<strong>de</strong>”, não po<strong>de</strong>ria<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ir a Haia, num dos seus<br />
intervalos entre missões (<strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
um <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro copo bebido num bar<br />
a olhar o pôr-do-sol em Jerusalém),<br />
assistir incógnito ao julgamento <strong>de</strong><br />
um general bósnio no Tribunal Penal<br />
Internacional, on<strong>de</strong> os juízes<br />
procuram averiguar, à luz do Direito<br />
Internacional, “em que momento<br />
uma bala na cabeça era legítima e<br />
em que momento constituía uma<br />
grave infracção ao direito e aos<br />
costumes da guerra”.<br />
De facto, “<strong>tudo</strong> é mais difícil<br />
46 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
Edição<br />
O novo<br />
livro do jornalista e<br />
historiador José<br />
Milhazes, “Samora<br />
Machel – Atentado ou<br />
Aci<strong>de</strong>nte?”, cruza três<br />
fontes soviéticas e<br />
conclui que o avião on<strong>de</strong><br />
seguia o Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />
Moçambique em 19 <strong>de</strong><br />
Outubro <strong>de</strong> 1986 caiu<br />
por <strong>de</strong>sleixo da tripulação<br />
e não por ser alvo <strong>de</strong><br />
atentado. A partir <strong>de</strong> hoje<br />
nas livrarias.<br />
quando se é homem feito” (frase<br />
recorrente no romance), mas a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção nunca<br />
nos abandona, ao contrário dos<br />
<strong>de</strong>uses, nem que seja num comboio<br />
para o fim do mundo. Numa viagem<br />
ao fim da noite.<br />
Vidas sem<br />
futuro<br />
No ano em que se<br />
completam 60 anos da<br />
publicação original, nova<br />
tradução <strong>de</strong> uma das obras<br />
mais importantes do século<br />
XX. Eduardo Pitta<br />
O Coração é um Caçador Solitário<br />
Carson McCullers<br />
(Trad. Marta Mendonça)<br />
Presença<br />
MMMMM<br />
Se tivermos <strong>de</strong> citar<br />
ícones da literatura,<br />
a escritora<br />
americana Carson<br />
McCullers (1917-<br />
1967) tem lugar<br />
cativo na primeira<br />
meia dúzia. O livro<br />
<strong>de</strong> estreia, “O<br />
Coração é um Caçador Solitário”,<br />
publicado em 1940, não foi um fogo<br />
fátuo. Obras posteriores, como<br />
“Reflections in a Gol<strong>de</strong>n Eye”,<br />
romance <strong>de</strong> 1941, ou os contos<br />
reunidos em “The Ballad of the Sad<br />
Café” (1951), para só citar algumas<br />
das que o cinema popularizou,<br />
confirmaram o fôlego <strong>de</strong>sta mulher<br />
que fala <strong>de</strong> <strong>de</strong>solação e esperança<br />
sem beliscar a tessitura da voz.<br />
Em Portugal, “The Heart is a<br />
Lonely Hunter” foi traduzido em<br />
1958, nada menos que por José<br />
Rodrigues Miguéis, com o título<br />
“Coração Solitário Caçador”. Agora,<br />
Marta Mendonça fez nova tradução,<br />
alinhando o título português com o<br />
das edições brasileiras. No ano em<br />
que se completam 60 anos da<br />
publicação original, é importante<br />
que esta reedição tenha sido feita.<br />
Tudo se passa numa cida<strong>de</strong>zinha<br />
da Geórgia, durante a Gran<strong>de</strong><br />
Depressão (a recessão económica<br />
dos anos 1930). A história é contada<br />
a partir do ponto <strong>de</strong> vista das<br />
diferentes personagens: John Singer,<br />
ju<strong>de</strong>u surdo-mudo, confi<strong>de</strong>nte dos<br />
outros todos; Mick Kelly, adolescente<br />
<strong>de</strong> 14 anos que gosta <strong>de</strong> Beethoven;<br />
Jake Blount, agitador “marxista” em<br />
permanente estado <strong>de</strong> embriaguês;<br />
Biff Brannon, dono do New York<br />
Café; Benedict Copeland, médico<br />
negro em luta com a injustiça e as<br />
humilhações do racismo (ao<br />
contrário dos quatro filhos). Não foi<br />
por acaso que a autora centrou o<br />
“plot” na Geórgia, o Estado que a viu<br />
nascer. Na cultura americana, o Sul<br />
foi sempre o território<br />
idiossincrático por excelência.<br />
Lendo Eudora Welty, Truman<br />
Capote, Flannery O’Connor e outros,<br />
percebemos porquê. McCullers tem<br />
a seu favor uma inesperada<br />
humanida<strong>de</strong> que dispensa o<br />
naturalismo clássico <strong>de</strong> Welty, a bílis<br />
<strong>de</strong> Capote e o catolicismo<br />
apocalíptico <strong>de</strong> O’Connor. Aqui, o<br />
“gótico sulista” sublinha a<br />
inescapável e geral<br />
incomunicabilida<strong>de</strong>.<br />
Assim que foi publicado, “O<br />
Coração é um Caçador Solitário” foi<br />
rotulado <strong>de</strong> “anti-fascista”.<br />
McCullers, então com 23 anos, vivia<br />
já em Nova Iorque, on<strong>de</strong> frequentava<br />
com dificulda<strong>de</strong> a Julliard School of<br />
Music e um curso <strong>de</strong> escrita criativa<br />
em Columbia. A rapariga frágil cuja<br />
débil saú<strong>de</strong> impedira <strong>de</strong> prosseguir<br />
es<strong>tudo</strong>s, estava prestes a divorciar-se<br />
<strong>de</strong> Reeves McCullers quando<br />
surpreen<strong>de</strong>u toda a gente com esse<br />
violento libelo (escrito antes dos vinte<br />
anos) contra o modo <strong>de</strong> vida sulista.<br />
Na realida<strong>de</strong>, é mais uma polifonia a<br />
cinco vozes que um libelo. Num<br />
ápice, a autora tornou-se famosa. E<br />
<strong>de</strong>pressa engrossou o número <strong>de</strong><br />
membros da comuna <strong>de</strong> Brooklyn<br />
Heights que abrigava Erika Mann,<br />
com quem teve uma relação<br />
amorosa, W. H. Au<strong>de</strong>n, Benjamin<br />
Britten, Peter Pears, Gipsy Rose Lee,<br />
Jane e Paul Bowles.<br />
Relato do quotidiano dos<br />
<strong>de</strong>sapossados do Dustbowl,<br />
McCullers ilumina com pudor e<br />
sensibilida<strong>de</strong> essas vidas sem futuro.<br />
A ligação <strong>de</strong> natureza homossexual<br />
entre Singer e o grego Antonapoulos<br />
é <strong>de</strong>scrita com subtileza. No dia em<br />
que Antonapoulos vai para o<br />
hospício, por <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> um primo<br />
que não queria “problemas”, a vida<br />
<strong>de</strong> Singer muda. A cena em que os<br />
dois (ambos mudos) por fim se<br />
reencontram, é <strong>de</strong> antologia:<br />
“Antonapoulos! Assim que entraram<br />
na enfermaria, Singer avistou logo o<br />
amigo. [...] Vestia um roupão<br />
vermelho e um pijama <strong>de</strong> seda<br />
ver<strong>de</strong>. [...] A exuberância da<br />
indumentária <strong>de</strong> Antonapoulos<br />
<strong>de</strong>ixou-o perplexo. Enviara-lhe<br />
aquelas peças <strong>de</strong> roupa em ocasiões<br />
separadas, sem a intenção <strong>de</strong> que<br />
fossem usadas em simultâneo. [...]<br />
Singer ergueu timidamente as mãos<br />
e começou a falar. Os seus <strong>de</strong>dos<br />
fortes e experientes <strong>de</strong>ram forma às<br />
palavras com uma precisão <strong>de</strong>licada.<br />
[...] Os seus gestos eram cada vez<br />
mais rápidos. Antonapoulos acenava<br />
com a cabeça, <strong>de</strong>vagar.<br />
Entusiasmado, Singer aproximou-se<br />
mais, respirou fundo e os seus olhos<br />
estavam cheios <strong>de</strong> lágrimas.”<br />
O dinheiro (melhor dito: a falta<br />
<strong>de</strong>le) é o móbil da intriga. Os<br />
protagonistas têm duas coisas: fome<br />
e dívidas. À doença reservam<br />
parcimónia: “o médico extraiu-lhe<br />
um tumor do tamanho <strong>de</strong> um<br />
Carson McCullers: uma <strong>de</strong>senraizada na sua própria terra<br />
recém-nascido.” O horizonte é <strong>de</strong><br />
chumbo. McCullers dá vida a<br />
personagens que po<strong>de</strong>m parecer<br />
excessivas no traço grosso do<br />
retrato, como suce<strong>de</strong> com Portia, a<br />
filha do médico: “Eu cá não sou<br />
mulher <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s alaridos. Faço<br />
parte da Igreja Presbiteriana e nós<br />
não costumamos atirar-nos pró chão<br />
[...] nem chafurdamos todos juntos.”<br />
O <strong>de</strong>samparo comum mantém as<br />
suas vidas em equilíbrio.<br />
É difícil esquecer a mulher que<br />
está por trás <strong>de</strong>ste livro. Carson<br />
McCullers foi uma <strong>de</strong>senraizada na<br />
sua própria terra, a doença minou-a<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo (morreu hemiplégica),<br />
viveu <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do álcool, tentou<br />
o suicídio, casou duas vezes com o<br />
mesmo homem (Reeves era<br />
bissexual; em 1953, suicidou-se em<br />
Paris, on<strong>de</strong> o casal vivia) e manteve<br />
várias ligações lésbicas. Deixou uma<br />
obra impressiva, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>staca “O<br />
Coração é um Caçador Solitário”.<br />
Não por acaso, nos últimos 60 anos,<br />
todas as listas incluem o livro entre<br />
as obras mais importantes<br />
do século XX.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 47
Livros<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
Isabel<br />
Coutinho<br />
Ciberescritas<br />
Nunca mais me esqueci. Foi há anos num<br />
colóquio em sobre Machado <strong>de</strong> Assis, em<br />
<strong>Lisboa</strong>, que o professor <strong>de</strong> Literatura<br />
Brasileira na Universida<strong>de</strong> Nova <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>,<br />
Abel Barros Baptista, disse que “Memórias<br />
Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas” era “uma obra extravagante em<br />
qualquer parte do mundo”. Sabe-se que Machado <strong>de</strong> Assis<br />
(1839-1908) frequentou o Real Gabinete Português <strong>de</strong><br />
Leitura, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, que servia também <strong>de</strong> <strong>de</strong>pósito<br />
legal, todos os autores portugueses estavam ali<br />
disponíveis. Aos 13 e 14 anos já por lá andava e leu aqueles<br />
que para o professor e filólogo brasileiro Evanildo<br />
Bechara, são “incontestavelmente os gran<strong>de</strong>s mestres da<br />
ilustração da língua”. Na impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> irmos<br />
também passar os nossos dias no Real Gabinete Português<br />
<strong>de</strong> Leitura po<strong>de</strong>mos navegar na Internet e encontrar as<br />
obras <strong>de</strong>ste filho <strong>de</strong> um escravo mulato (pintor <strong>de</strong> tectos<br />
<strong>de</strong> casas e igrejas) e <strong>de</strong> uma portuguesa açoriana que<br />
passou a infância no “morro” do Livramento, no Rio do<br />
Janeiro, mas frequentava o mundo dos ricos na “chacra”<br />
do Livramento, a casa <strong>de</strong> Dona Maria José <strong>de</strong> Mendonça<br />
Barroso, sua madrinha. Fez carreira como funcionário<br />
público no Ministério da Agricultura e só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter<br />
casado, em 1869, com Carolina, uma portuguesa, culta,<br />
mais velha do que ele, é que começou a produzir as obras<br />
que lhe trouxeram a posterida<strong>de</strong>.<br />
É um divertimento ler a obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis em<br />
hipertexto no “site” lançado pela Fundação Casa <strong>de</strong> Rui<br />
Barbosa. Ainda não está disponível o famoso “Memórias<br />
Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas” mas já estão acessíveis os seus<br />
primeiros romances “Ressurreição”, “A mão e a luva”,<br />
“Helena” e “Iaiá Garcia”. De que se trata? Estamos a ler<br />
o romance e vamos clicando nas palavras sublinhadas.<br />
São “links” para explicações mais aprofundadas do que<br />
ali se passa. Para enten<strong>de</strong>rmos <strong>tudo</strong>. Na introdução, a<br />
investigadora Marta <strong>de</strong> Senna explica: “Nesta edição,<br />
preparada com o cuidado<br />
É um divertimento ler<br />
a obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong><br />
Assis em hipertexto<br />
Machado <strong>de</strong><br />
Assis em linha<br />
http:<br />
/www.machado<strong>de</strong>assis.net/<br />
Obra completa<br />
em PDF<br />
http:<br />
/machado.mec.<br />
gov.br<br />
Para que não restem<br />
dúvidas<br />
necessário para torná-la<br />
fi<strong>de</strong>digna, o leitor po<strong>de</strong>rá não<br />
apenas <strong>de</strong>sfrutar o romance<br />
em si, mas também achar,<br />
nas notas em forma <strong>de</strong> ‘links’,<br />
explicações sobre todas as<br />
citações e alusões do texto:<br />
tanto as <strong>de</strong> natureza simbólica (autores, obras <strong>de</strong> arte,<br />
personagens, fatos históricos referidos por Machado <strong>de</strong><br />
Assis), como as menções a lugares e instituições nãoficcionais<br />
(bairros e ruas da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
lojas, teatros, cafés que as personagens machadianas<br />
frequentam).”<br />
Também no “site” Machado <strong>de</strong> Assis.net, lançado<br />
pela Fundação Casa <strong>de</strong> Rui Barbosa, está disponível o<br />
número 4 da revista electrónica <strong>de</strong> es<strong>tudo</strong>s machadianos,<br />
“Machado <strong>de</strong> Assis em linha”. A revista é semestral e<br />
esta edição tem um ensaio da tradição crítica escrito por<br />
Lucia Miguel Pereira, pioneira dos es<strong>tudo</strong>s sobre o autor<br />
no Brasil e um artigo inédito do académico Alfredo Bosi.<br />
Para quem ainda não sabe: no Portal Domínio Público - a<br />
biblioteca digital do Ministério da Educação brasileiro,<br />
estão disponíveis em PDF, para serem <strong>de</strong>scarregados<br />
para o computador ou leitores <strong>de</strong> e-books, as obras<br />
machadianas : “Ressurreição” (1872), “A Mão e a Luva”<br />
(1874), “Helena” (1876), “Iaiá Garcia” (1878), “Memórias<br />
Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas (1881), “Casa Velha” (1885),<br />
“Quincas Borba” (1891), “Dom Casmurro” (1899), “Esaú e<br />
Jacó” (1904) e “Memorial <strong>de</strong> Aires” (1908). Gratuitamente.<br />
isabel.coutinho@publico.pt<br />
(Ciberescritas é um blogue<br />
http://blogs.publico.pt/ciberescritas)<br />
Poesia<br />
Se vier<br />
socorro<br />
A melhor estreia <strong>de</strong> uma<br />
poeta portuguesa nas<br />
últimas décadas. Pedro<br />
Mexia<br />
Mulher ao Mar<br />
Margarida Vale <strong>de</strong> Gato<br />
Mariposa Azual<br />
MMMMM<br />
Margarida Vale <strong>de</strong><br />
Gato (n. 1973) é<br />
uma das nossas<br />
melhores<br />
tradutoras, como<br />
se comprova<br />
lendo as suas<br />
versões <strong>de</strong> Lewis<br />
Carroll, Christina<br />
Rossetti, Wil<strong>de</strong>, Yeats, Melville,<br />
James, Char, Michaux, Sarraute,<br />
Dickens ou Poe. Há muito que<br />
também publica poemas em<br />
revistas, mas só agora editou a<br />
primeira colectânea. A espera valeu<br />
a pena, pois<br />
“Mulher ao<br />
Mar” é<br />
PAULA MESQUITA<br />
Margarida Vale <strong>de</strong> Gato escreve uma poesia<br />
relacional, em constante diálogo com pessoas<br />
que passaram, que são passado, que não estão<br />
ultrapassadas, em geral homens que <strong>de</strong>ixaram<br />
um agudo sentimento <strong>de</strong> orfanda<strong>de</strong> ou <strong>de</strong>cepção.<br />
Na Aca<strong>de</strong>mia<br />
Brasileira <strong>de</strong><br />
Letras<br />
http:<br />
/www.machado<strong>de</strong>assis.org.br/<br />
possivelmente a melhor estreia <strong>de</strong><br />
uma poeta portuguesa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> “Um<br />
Jogo Bastante Perigoso” (Adília<br />
Lopes, 1985).<br />
A escritora assume a “condição<br />
feminina” em praticamente todos os<br />
poemas. Especialmente a condição<br />
feminina portuguesa. Os textos têm<br />
ecos da “Menina e Moça”, donzelas<br />
prendadas do Estado Novo, raparigas<br />
que ficavam em casa enquanto os<br />
homens tratavam da política, esposas<br />
<strong>de</strong>dicadas, irmãs pacientes, freiras<br />
sofridas, legiões compulsoriamente<br />
dóceis, pacientes, esperando,<br />
costurando, virgens e putas,<br />
<strong>de</strong>gredadas filhas <strong>de</strong> Eva.<br />
Em vez <strong>de</strong> “homem ao mar” gritase<br />
“mulher ao mar” nestes poemas,<br />
e não é a mesma coisa. Eis o poema<br />
que dá título ao livro: “MAYDAY<br />
lanço, porque a guerra dura / e está<br />
vazio o vaso em que parti / e ce<strong>de</strong><br />
ao fundo on<strong>de</strong> a vaga fura, / suga a<br />
fissura, uma falta – não / um tarro<br />
<strong>de</strong> cortiça que vogasse; / especifico:<br />
é terracota e fractura, / e eu sou<br />
esparsa, e a liqui<strong>de</strong>z maciça. /<br />
Tar<strong>de</strong>, sei, será, se vier socorro: / se<br />
transluz pouco ao escuro este sinal,<br />
/ e a água não prevê qualquer<br />
escritura / se jazo aqui: rasura<br />
apenas, branda / a costura, fará a<br />
onda em ponto / lento um manto<br />
sobre o afogamento”<br />
(pág. 8). A<br />
mulher <strong>de</strong>stes poemas, que é<br />
arquétipo mas também sujeito<br />
concreto e vivido, herda toda uma<br />
carga cultural, e procura uma<br />
linguagem em que encontre a sua<br />
autonomia. O “eu” <strong>de</strong>stes poemas é<br />
rigoroso e esquivo, sexual e cultista,<br />
vulnerável e orgulhoso. Nos últimos<br />
anos, nenhum livro <strong>de</strong> poemas<br />
autobiográficos evitou com tal<br />
mestria as armadilhas da primeira<br />
pessoa, do cabotinismo ao<br />
prosaísmo, da trivialida<strong>de</strong> ao<br />
<strong>de</strong>rrame sentimental.<br />
A mulher que cai ao mar, ou se<br />
lançou, ou a ele regressou, fazendo<br />
o caminho inverso <strong>de</strong> Vénus,<br />
quem é? É uma mulher<br />
<strong>de</strong>terminada pelos seus<br />
<strong>de</strong>sejos, pela<br />
maternida<strong>de</strong>, pela<br />
experiência <strong>de</strong> uma<br />
domesticida<strong>de</strong><br />
agreste ou azeda,<br />
muitas vezes<br />
sarcástica:<br />
“Costumes que<br />
frequentamos: / o<br />
arame da loiça, os<br />
panos dos pratos,<br />
os ganchos e as<br />
linhas / do<br />
estendal, a vinha<strong>de</strong>-alhoso<br />
alguidar,<br />
guardamos os<br />
o fogão, /<br />
restos, torcemos /<br />
os trapos, os<br />
nossos recados, os<br />
nossos sacos, / os<br />
nossos ovos” (pág.<br />
45). O livro é ao<br />
mesmo tempo<br />
afirmação e luto, gémeos<br />
incindíveis.<br />
Alheia a todo o solipsismo,<br />
Margarida Vale <strong>de</strong> Gato escreve uma<br />
poesia relacional, em constante<br />
diálogo com pessoas que passaram,<br />
que são passado, que não estão<br />
ultrapassadas, em geral homens que<br />
<strong>de</strong>ixaram um agudo sentimento <strong>de</strong><br />
orfanda<strong>de</strong> ou <strong>de</strong>cepção. A amargura<br />
cultíssima e vagamente niilista<br />
nunca impe<strong>de</strong> momentos a que<br />
po<strong>de</strong>mos chamar “românticos”, <strong>de</strong><br />
entrega confiada e apaixonada. É o<br />
caso um notável poema chamado<br />
“Intercida<strong>de</strong>s”, no qual a tristeza do<br />
mundo e a inquietação individual é<br />
atravessada pelo comboio que<br />
engole eucaliptos na paisagem<br />
portuguesa. Mas há também uma<br />
constante queda no “bathos”<br />
quotidiano, feito <strong>de</strong> segundas<br />
escolhas e <strong>de</strong> quedas conscientes e<br />
sem culpabilida<strong>de</strong>: “Foi como amor<br />
aquilo que fizemos / ou acto tácito?<br />
– os dois carentes / e sem manhã<br />
sujeitos ao presente; / foi logro<br />
aceite quando nos fo<strong>de</strong>mos // Foi<br />
circo ou cerco, gesto ou estilo / o<br />
acto <strong>de</strong> abraçarmos? foi candura / o<br />
termos juntos sexo com ternura /<br />
num clima <strong>de</strong> aparato e <strong>de</strong> sigilo. //<br />
Se virmos bem ninguém foi iludido /<br />
<strong>de</strong> que era a coisa em si – só o<br />
placebo / com algum excesso que<br />
acelera a libido. // E eu, palavrosa,<br />
injusta <strong>de</strong>sconcebo / o zelo <strong>de</strong> que<br />
nada fosse dito / e quanto quis tocar<br />
em estado líquido” (pág. 23).<br />
A sensação <strong>de</strong> catástrofe é<br />
omnipresente neste conjunto, e tem<br />
tradução numa espessura verbal<br />
quase visceral ou quase maneirista<br />
(mas apenas quase).O discurso é por<br />
isso <strong>de</strong>nso, propenso à surpresa<br />
sintáctica ou vocabular, às vezes<br />
enigmático. Os textos, no entanto,<br />
nunca são herméticos ou<br />
<strong>de</strong>sajeitadamente subjectivos, e isso<br />
<strong>de</strong>ve-se ao domínio da linguagem e da<br />
tradição cultural. Estes poemas são<br />
<strong>tudo</strong> menos precipitados ou frouxos,<br />
e talvez a estreia tardia tenha<br />
contribuído para a notória <strong>de</strong>puração,<br />
incomum em primeiras obras. Esse<br />
investimento na palavra amadurecida<br />
é acompanhado por uma espécie <strong>de</strong><br />
sumário civilizacional, que evoca<br />
como aliadas artistas que<br />
interrogaram a sua condição através<br />
da criação. E reparem que nenhuma<br />
<strong>de</strong>las é puro espírito, todas viveram<br />
carnalmente, na solidão, na cama, na<br />
maternida<strong>de</strong>, na doença. O martírio<br />
<strong>de</strong>ssas mulheres é resumido em<br />
versos percutidos, zangados: “Se há<br />
uma falha um abalo / Dickinson Plath<br />
Woolf Kahlo / on<strong>de</strong> foram estavam<br />
loucas / queriam coisas eram ocas /<br />
queriam chique eram pedras /<br />
queriam arte eram merdas / tentando<br />
o voo eram estacas / punho em riste<br />
eram farpas / fornos hortos seu<br />
<strong>de</strong>lírio / nunca foi santo martírio”<br />
(pág. 50). É a partir <strong>de</strong>ssas histórias,<br />
contra essas histórias, que esta<br />
mulher se lança ao mar, e assim se<br />
salva.<br />
48 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
Edição<br />
“Os Íntimos”, novo<br />
romance <strong>de</strong> Inês<br />
Pedrosa, será<br />
apresentado<br />
no dia 10,<br />
segunda-<br />
feira,<br />
18h30, no restaurante<br />
do piso 7 do El Corte<br />
Inglês, em <strong>Lisboa</strong><br />
(Av. António Augusto<br />
<strong>de</strong> Aguiar, 31).<br />
Participação especial<br />
dos Jograis- U...Tópico.<br />
Biografia<br />
Horror<br />
ao po<strong>de</strong>r<br />
A vida <strong>de</strong> Eric Blair e a obra<br />
do seu pseudónimo George<br />
Orwell, cuja grandiosida<strong>de</strong><br />
se <strong>de</strong>via mais à imaginação<br />
do que às teias i<strong>de</strong>ológicas<br />
em que se enredou. Rui<br />
Catalão<br />
George Orwell –<br />
Uma biografia<br />
política<br />
John Newsinger<br />
(Trad. Fernando<br />
Gonçalves)<br />
MMMMM<br />
Livros & Cigarros<br />
George Orwell<br />
(trad. Paulo Faria)<br />
Antígona<br />
MMMMM<br />
M M<br />
John Newsinger inicia o primeiro<br />
capítulo <strong>de</strong>sta biografia política,<br />
originalmente publicada em 1999,<br />
com uma frase que se revelará<br />
edipiana: “Eric Blair foi um filho do<br />
Império”. A vida <strong>de</strong> Eric Blair (1903-<br />
1950) e a obra do seu pseudónimo<br />
George Orwell foram uma<br />
caminhada até à extinção das<br />
colónias britânicas em que nasceu e<br />
cresceu. Quanto às suas restantes<br />
lutas e opções políticas, per<strong>de</strong>u ou<br />
enganou-se em todas. Só nos últimos<br />
anos o activista político se ren<strong>de</strong>u ao<br />
escritor, cuja grandiosida<strong>de</strong> se <strong>de</strong>via<br />
mais à imaginação do que às teias<br />
i<strong>de</strong>ológicas em que se enredou.<br />
O seu anti-imperialismo teve<br />
origem na Birmânia, on<strong>de</strong> nasceu e<br />
foi polícia (experiência que <strong>de</strong>u<br />
origem a “Os Dias da Birmânia” e a<br />
um dos seus mais belos ensaios,<br />
“Shooting an elephant”). É já na<br />
Europa que <strong>de</strong>senvolve uma versão<br />
politizada e comprometida daquilo a<br />
que hoje se chama “jornalismo<br />
literário”, com Orwell a preferir o<br />
papel <strong>de</strong> agente infiltrado ao <strong>de</strong><br />
repórter:<br />
“A i<strong>de</strong>ia era escrever a partir <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ntro, acerca do modo como vivem<br />
os pobres, mas tendo por alvo o<br />
público da classe média. Como seria<br />
<strong>de</strong> esperar, este projecto não estava<br />
isento <strong>de</strong> problemas; as suas<br />
incursões não passavam disso<br />
mesmo, raids temporários entre os<br />
sem-abrigo, efectuados por<br />
alguém tão distante nas suas<br />
origens e educação que mais<br />
parecia <strong>de</strong> outro mundo. Este<br />
exercício continha,<br />
inevitavelmente, uma dimensão<br />
colonial: Orwell andava a explorar<br />
o lado negro da Inglaterra (e <strong>de</strong><br />
Paris), regressando <strong>de</strong>pois à<br />
civilização com histórias exóticas<br />
para contar”.<br />
Esta técnica <strong>de</strong> recolher material a<br />
partir do interior da realida<strong>de</strong><br />
abordada foi utilizada em “Na<br />
penúria em Paris e em Londres”<br />
(sobre mendigos e <strong>de</strong>sempregados),<br />
“O caminho para Wigan Pier” (sobre<br />
os mineiros no norte <strong>de</strong> Inglaterra),<br />
“Homenagem à Catalunha” (tema a<br />
que haveria <strong>de</strong> voltar no ensaio<br />
“Recordando a guerra civil<br />
espanhola”). Acumula-se nele<br />
o anti-<br />
imperialista, o socialista, o socialista-<br />
revolucionário, anti-estalinista:<br />
“Tudo o que escrevi <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
1936<br />
foi escrito, directa ou<br />
indirectamente, contra<br />
o totalitarismo e a<br />
favor do<br />
socialismo<br />
<strong>de</strong>mocrá-<br />
tico”.<br />
Para Orwell não existia literatura <strong>de</strong>sligada da política<br />
Com o surgimento da Segunda<br />
Guerra Mundial, vê a oportunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> operar-se na Inglaterra a<br />
revolução socialista, mas aquele que<br />
sonhava em “construir um socialista<br />
sobre o esqueleto <strong>de</strong> um patriota<br />
empe<strong>de</strong>rnido”, <strong>de</strong>senterra o<br />
patriota em si e abdica da revolução,<br />
que troca por um “trotskismo<br />
literário”.<br />
“Como explicou Orwell o fracasso<br />
dos seus anseios revolucionários?”,<br />
pergunta Newsinger. Na “carta <strong>de</strong><br />
Londres” que assina para a revista<br />
norte-americana “Partisan Review”,<br />
“faz um notável pedido <strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpas<br />
pelas suas ‘muitas previsões erradas’<br />
(...) a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a guerra e a<br />
revolução era inseparáveis revelarase<br />
‘um erro tremendo’”.<br />
Com a febre revolucionária a<br />
baixar, um analista mais pon<strong>de</strong>rado<br />
sobreveio. “À medida que as<br />
esperanças <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrube<br />
revolucionário do capitalismo se<br />
<strong>de</strong>svaneciam”, escreve Newsinger,<br />
“assim Orwell se afastava da<br />
i<strong>de</strong>ologia revolucionária”, sem<br />
abandonar a sua “hostilida<strong>de</strong> para<br />
com o comunismo soviético, uma<br />
brutal tirania mascarada <strong>de</strong><br />
socialismo”.<br />
“A quinta dos animais” era uma<br />
sátira à revolução soviética “com um<br />
sentido mais amplo”. Qualquer<br />
“revolução conspiratória violenta<br />
conduzida por gente<br />
inconscientemente faminta <strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>r” teria como resultado “a mera<br />
troca <strong>de</strong> amos”; com “Mil<br />
novecentos e oitenta e quatro”<br />
Orwell “conseguiu fixar, com<br />
enorme êxito, a sua particular e<br />
sinistra visão <strong>de</strong> um regime<br />
totalitário no imaginário popular”.<br />
Mas “para gran<strong>de</strong> surpresa <strong>de</strong>le, a<br />
obra foi largamente apreciada<br />
enquanto ataque ao socialismo em si<br />
mesmo”. Orwell vê-se na obrigação<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o livro contra os seus...<br />
<strong>de</strong>fensores <strong>de</strong> direita! Tal como as<br />
crianças que, na fase edipiana, não<br />
dominam o pai e entram na fase <strong>de</strong><br />
latência, seria Orwell “um<br />
conservador latente”?<br />
Newsinger, historiador socialista,<br />
preten<strong>de</strong> encaminhar o seu leitor<br />
para outra questão. A recusa da<br />
esquerda em reconhecer o que se<br />
passava na Rússia estalinista<br />
permitiu o uso <strong>de</strong> “Mil novecentos e<br />
oitenta e quatro” contra a própria<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> socialismo. O estalinismo<br />
“levou os melhores e mais corajosos<br />
intelectuais, activistas e militantes<br />
socialistas a fazerem a apologia <strong>de</strong><br />
uma ditadura criminosa, talhando a<br />
respectiva activida<strong>de</strong> política à<br />
medida dos interesses da política<br />
externa e das ambições imperiais<br />
<strong>de</strong>ssa ditadura, e fazendo da<br />
<strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong> política um modo <strong>de</strong><br />
vida para os que mantiveram o<br />
mesmo rumo. Os danos que esta<br />
atitu<strong>de</strong> infligiu à causa socialista são<br />
incalculáveis.”<br />
O seu maior erro foi não ter dado<br />
maior ênfase ao imaginário do<br />
po<strong>de</strong>r, por oposição à análise<br />
política. Mas, para Orwell, não<br />
existia literatura <strong>de</strong>sligada da<br />
política: “A literatura é um esforço<br />
para influenciar o ponto <strong>de</strong> vista dos<br />
nossos contemporâneos, registando<br />
as nossa experiências”, escreveu em<br />
“A prevenção da literatura”<br />
(publicado em 1946 e incluído na<br />
colectânea <strong>de</strong> ensaios “Livros &<br />
Cigarros”, igualmente publicado<br />
pela Antígona), on<strong>de</strong> também<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a “imaginação, à<br />
semelhança <strong>de</strong> certos animais<br />
selvagens, não vinga em cativeiro”.<br />
Dos sete textos incluídos na<br />
colectânea, cinco foram escritos<br />
<strong>de</strong>pois da Segunda Guerra Mundial e<br />
o único que foi escrito durante alu<strong>de</strong><br />
a memórias anteriores à Primeira<br />
Gran<strong>de</strong> Guerra! “Tenho <strong>de</strong><br />
reconhecer que não houve nada no<br />
<strong>de</strong>curso da guerra que me tenha<br />
emocionado tanto como a perda do<br />
Titanic (…) o que mais me<br />
impressionou foi o facto <strong>de</strong>, no<br />
<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro momento, o Titanic se ter<br />
elevado subitamente na vertical (…)<br />
as pessoas agarradas à popa foram<br />
erguidas no ar (…) Isto causava-me<br />
na barriga uma impressão <strong>de</strong><br />
afundamento que ainda hoje consigo<br />
sentir, ou quase. Nada do sucedido<br />
na guerra alguma vez me causou a<br />
mesma sensação.”<br />
Orwell é um escritor<br />
espantosamente vívido em imagens<br />
subjectivas. Uma simples palavra<br />
(margarina) basta para dar i<strong>de</strong>ia do<br />
“horrível egoísmo das crianças”,<br />
indiferentes à guerra, mas não ao<br />
estômago. Em “Assim morrem os<br />
pobres”, memória <strong>de</strong> uma estadia<br />
num hospital em Paris, um pai,<br />
internado, e uma filha, <strong>de</strong> visita,<br />
reencontram-se para o aguardado<br />
gesto da “rapariga a ajoelhar junto<br />
da cama” e “a mão do velho<br />
pousando-lhe na cabeça”. “Em vez<br />
disso, porém, ele limitou-se a<br />
esten<strong>de</strong>r-lhe o urinol, que ela lhe<br />
tomou prontamente das mãos e<br />
esvaziou para <strong>de</strong>ntro do<br />
receptáculo.”<br />
O seu olhar mordaz sobre as<br />
riquezas da pobreza mantém intacta<br />
a vivacida<strong>de</strong> expedita da juventu<strong>de</strong> e<br />
atinge o limite da sua maestria em<br />
“Ah, ledos, ledos dias”, sobre os<br />
anos <strong>de</strong> internato em Cyprian’. Nele<br />
se revela como se molda um ser às<br />
necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um império, e<br />
como, criando um eu alternativo,<br />
germina uma semente <strong>de</strong> rebelião:<br />
“uma criança aceita os códigos <strong>de</strong><br />
conduta que lhe apresentam,<br />
mesmo quando os viola. Des<strong>de</strong> os<br />
oito anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, ou antes até, a<br />
consciência do pecado nunca me<br />
abandonou por completo. Se<br />
procurava parecer insensível e<br />
<strong>de</strong>safiador, tratava-se apenas <strong>de</strong> uma<br />
fina película a cobrir uma amálgama<br />
<strong>de</strong> vergonha e <strong>de</strong>sânimo. Ao longo<br />
<strong>de</strong> toda a minha meninice, habituoume<br />
a profunda convicção <strong>de</strong> que não<br />
prestava, <strong>de</strong> que estava a<br />
<strong>de</strong>sperdiçar o meu tempo, a<br />
esbanjar os meus dotes, a dar<br />
mostras <strong>de</strong> uma monstruosa<br />
loucura, malda<strong>de</strong> e ingratidão – e<br />
não havia forma <strong>de</strong> escapar a isto,<br />
parecia-me, porque vivia ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong><br />
leis que eram absolutas, como a lei<br />
da gravida<strong>de</strong>, mas a que não me era<br />
possível obe<strong>de</strong>cer.”<br />
Fernando Gonçalves traduziu<br />
Newsinger; Paulo Faria traduziu<br />
Orwell. Trabalho impecável <strong>de</strong><br />
ambos, tal como a parte gráfica.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 49
Concertos<br />
Cesária Évora vai ter Bonga<br />
com ela no Coliseu dos Recreios<br />
DANIEL ROCHA<br />
Parece que foi ontem. Um<br />
hiperactivo rapaz escanzelado, com<br />
cabelo aos caracóis, entrava-nos<br />
pelos ouvidos a gritar, em falsete,<br />
que podia ser <strong>de</strong> várias cores. “Grace<br />
Kelly”, o tema que apresentou ao<br />
mundo o anglo-libanês Mika, conta<br />
quão difícil foi ser aceite pelas<br />
editoras discográficas que, ávidas <strong>de</strong><br />
encontrar figuras icónicas como a<br />
<strong>de</strong>saparecida actriz norte-<br />
Minidigressão<br />
Pop<br />
Encontro<br />
<strong>de</strong> gigantes<br />
Cesária Évora encontra<br />
Bonga no Coliseu dos<br />
Recreios. Mário Lopes<br />
Cesária Évora + Bonga<br />
<strong>Lisboa</strong>. Coliseu dos Recreios. R. Portas St. Antão, 96.<br />
Amanhã, às 21h30. Tel.: 213240580. 15€ a 50€.<br />
Será noite <strong>de</strong> gala. E seria noite <strong>de</strong><br />
gala se tivéssemos apenas Cesária<br />
Évora a apresentar o seu último<br />
álbum, “Nha Sentimento”, que ela<br />
pensou primeiro como colecção <strong>de</strong><br />
mornas mas acabou com<br />
alinhamento com doses generosas<br />
<strong>de</strong> cola<strong>de</strong>ras, para dar um pouco <strong>de</strong><br />
movimento à anca (a nossa).<br />
Acontece que não temos apenas<br />
Cesária Évora. Afinal, o espectáculo<br />
<strong>de</strong> amanhã no Coliseu dos Recreios<br />
tem por título “Encontro das Vozes”.<br />
Noite <strong>de</strong> gala, repetimos pela última<br />
vez. Cesária Évora, nome maior da<br />
música cabo-verdiana, encontra<br />
Bonga, representante inigualável da<br />
música angolana. Dia gran<strong>de</strong> para a<br />
música lusófona.<br />
Puxando do cliché, po<strong>de</strong>mos<br />
apontar que Bonga cantou “Soda<strong>de</strong>”<br />
primeiro, no impressionante<br />
“Angola 74”, álbum que<br />
com o seu<br />
antecessor, “Angola 72”,<br />
transformou a música do seu país<br />
em ecos do passado apontando um<br />
novo futuro – em som e palavra.<br />
Cesária Évora celebrizou-a <strong>de</strong>pois,<br />
quando <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser “apenas”<br />
a gran<strong>de</strong> voz <strong>de</strong> Cabo Ver<strong>de</strong><br />
para se transformar numa<br />
das cantoras mais<br />
respeitadas e celebradas da<br />
Agenda<br />
Sexta 7<br />
David Viner é inglês<br />
mas fala blues e<br />
folk, <strong>de</strong>vidamente<br />
adaptados da terra<br />
mãe, os Estados<br />
Unidos. Parceiro<br />
musical <strong>de</strong> Soledad<br />
Brothers ou<br />
Von Bondies,<br />
companheiro <strong>de</strong><br />
digressão dos<br />
White Stripes<br />
A Naifa<br />
Barreiro. Auditório <strong>Municipal</strong> Augusto<br />
Cabrita. Estrada Fuzileiros Navais, às<br />
21h30. Tel.: 212147400. 10€.<br />
Ver texto na pág. 16.<br />
Rufus Wainwright<br />
<strong>Lisboa</strong>. Aula Magna. Alam.<br />
Universida<strong>de</strong>, às 21h. Tel.:<br />
217967624. 32,5€ a 45€.<br />
Gotan Project<br />
<strong>Lisboa</strong>. Coliseu dos Recreios.<br />
R. Portas St. Antão, 96, às 22h.<br />
Tel.: 213240580. 27,5€ a 30€.<br />
B Fachada<br />
Portalegre. Centro <strong>de</strong> Artes do<br />
Espectáculo - Café-Concerto.<br />
Praça da Republica, 39, às<br />
23h. Tel.:<br />
245307498. 3€.<br />
João Coração<br />
Faro. Teatro Lethes. R.<br />
Portugal, 58, às 21h30.<br />
Tel.: 289820300. 7€.<br />
Norberto Lobo<br />
Guarda. Teatro<br />
chamada “world music”.<br />
Recorrendo à objectivida<strong>de</strong>:<br />
antecipa-se noite <strong>de</strong> mornas e<br />
cola<strong>de</strong>ras, <strong>de</strong> sembas <strong>de</strong> bom<br />
balanço e <strong>de</strong> dikanza (que não é reco<br />
reco) a marcar o ritmo da dança.<br />
Noite grandiosa, para resumir <strong>tudo</strong><br />
muito resumido.<br />
Viagem<br />
telúrica<br />
Os britânicos The Unthanks<br />
levam Braga, Espinho e<br />
Sintra a Northumberland.<br />
Luís Carlos Soares<br />
The Unthanks<br />
Braga. Theatro Circo - SalaPrincipal. Av. Liberda<strong>de</strong>,<br />
697. Amanhã, às 23h59. Tel.: 253203800. 8€.<br />
MUSA - Ciclo no Feminino.<br />
Espinho. Auditório <strong>de</strong> Espinho. Rua 34, 884. Dom.,<br />
9, às 21h30. Tel.: 227340469. 15€.<br />
Sintra. Centro Cultural Olga Cadaval - Auditório<br />
Jorge Sampaio. Pç. Dr. Francisco Sá Carneiro. 2ª,<br />
10, às 21h30. Tel.: 219107110. 20€ a 25€.<br />
Há dois meses, celebrámos o<br />
terceiro disco dos Galandum<br />
Galundaina. Vem isto a propósito<br />
porque, tal como os miran<strong>de</strong>ses, os<br />
Unthanks são um colectivo que vive<br />
na raia nor<strong>de</strong>stina do país –<br />
Inglaterra, neste caso - e têm na<br />
etnografia da região pão para a boca<br />
das letras das suas canções telúricas.<br />
Novamente em paralelo aos<br />
Galundaina, este quinteto britânico<br />
tem andado a apresentar o terceiro<br />
disco – a apresentação ao nosso país<br />
passará, nos próximos três dias, por<br />
Braga, Espinho e Sintra.<br />
“Here’s The Ten<strong>de</strong>r Coming” é o<br />
sucessor <strong>de</strong> “The Bairns” (2007),<br />
disco que foi nomeado para melhor<br />
álbum folk nos Mercury Music Prize<br />
<strong>Municipal</strong> da Guarda - Pequeno Auditório. Rua<br />
Batalha Reis, 12, às 21h30. Tel.: 271205241. 5€.<br />
Pedro Jóia e Ricardo Ribeiro<br />
<strong>Lisboa</strong>. Onda Jazz. Arco <strong>de</strong> Jesus, 7 - ao Campo das<br />
Cebolas, às 22h30. Tel.: 919184867. 15€.<br />
Rodrigo Leão & Cinema Ensemble<br />
Alcanena. Cine-Teatro São Pedro. Avenida 25 <strong>de</strong><br />
Abril, às 22h. Tel.: 249889115. 12€.<br />
Katia Guerreiro<br />
Barcelos. Auditório São Bento Menni. Av. Paulo<br />
Felisberto, às 22h. Tel.: 253808210. 10€.<br />
Subscuta.<br />
Deolinda<br />
Ílhavo. Centro Cultural <strong>de</strong> Ílhavo - Auditório.<br />
Avenida 25 <strong>de</strong> Abril, às 22h. Tel.: 234397260.<br />
15€.<br />
Sofia Ribeiro<br />
Espinho. Auditório <strong>de</strong> Espinho. Rua 34,<br />
884, às 21h30. Tel.: 227340469. 7€.<br />
Sábado 8<br />
em 2007, Viner,<br />
impecável classicista,<br />
contador <strong>de</strong> histórias<br />
irrepreensível, estará<br />
em Portugal em<br />
Maio para um minidigressão:<br />
dia 20 no<br />
Teatro <strong>de</strong> Vila Real,<br />
dia 21 no Salão Brazil<br />
(Coimbra), e dia 22 no<br />
Cine-Teatro Rio Maior.<br />
A Naifa<br />
Cartaxo. Centro Cultural do Cartaxo. Rua 5<br />
<strong>de</strong> Outubro, às 21h30. Tel.: 243701600. 8€.<br />
Ver texto na pág. 16.<br />
As irmãs Unthank trazem as canções<br />
da terra do seu terceiro álbum<br />
e entrou na lista <strong>de</strong> melhores discos<br />
da década da “Uncut”. Perante os<br />
elogios, os britânicos não criaram<br />
uma fórmula. Aliás, por via da<br />
aproximação <strong>de</strong> Becky Unthank aos<br />
microfones domados pela irmã mais<br />
velha, Rachel, o nome Rachel<br />
Unthank And The Winterset <strong>de</strong>u<br />
lugar a The Unthanks.<br />
Num disco com um quinteto a<br />
vaguear entre instrumentos tão<br />
distintos como o piano, o violino, o<br />
ukelele, o acor<strong>de</strong>ão, a marimba, a<br />
auto-harpa e até gongos chineses,<br />
“Here’s The Ten<strong>de</strong>r Coming”<br />
incorpora, pela primeira vez, o<br />
baixo e a bateria nos arranjos<br />
cuidados e <strong>de</strong>licados da banda. Tudo<br />
a postos para a viagem, portanto:<br />
vamos com as irmãs Unthank até às<br />
paisagens do condado <strong>de</strong><br />
Northumberland.<br />
Mika (menos)<br />
efusivo<br />
Mika<br />
<strong>Lisboa</strong>. Praça <strong>de</strong> Touros do Campo Pequeno. Campo<br />
Pequeno. 3ª, 11, às 22h. Tel.: 217820575. 30€ a 35€.<br />
Gotan Project<br />
Porto. Coliseu do Porto. R. Passos Manuel, 137, às<br />
22h. Tel.: 223394947. 27,5€ a 32,5€.<br />
Cansei <strong>de</strong> Ser Sexy + José Cid + Os<br />
<strong>Homens</strong> da Luta + The Doups<br />
<strong>Lisboa</strong>. Estádio do Restelo. Av. do Restelo, às 19h. Tel.:<br />
213032653. 10€ a 12€.<br />
XXVI Semana Académica <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>.<br />
Coro Gulbenkian<br />
Direcção Musical <strong>de</strong> Jorge Matta.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Igreja <strong>de</strong> São Roque. Lg. Trinda<strong>de</strong> Coelho, às<br />
21h. Tel.: 213235383. 15€.<br />
Ciclo <strong>de</strong> Música Antiga.<br />
Orquestra Nacional do Porto<br />
Direcção Musical <strong>de</strong> Martin André.<br />
Com Piia Komsi (soprano).<br />
Porto. Casa da Música - Sala<br />
Suggia. Pç. Mouzinho <strong>de</strong><br />
Albuquerque, às 18h. Tel.:<br />
220120220. 16€.<br />
Obras <strong>de</strong><br />
Sibelius,<br />
Tinoco,<br />
Saariaho ariaho e<br />
Braga Santos.<br />
Jon Rose em Serralves<br />
americana, pretendiam moldar o<br />
seu trabalho. Após ter conseguido<br />
ven<strong>de</strong>r o seu peixe a uma editora<br />
multinacional, o ritmo efusivo do<br />
álbum <strong>de</strong> estreia, “Life In Cartoon<br />
Motion” (2006), espalhou as<br />
canções <strong>de</strong> Mika por todo o lado, e o<br />
hino “feelgood” “Relax take it easy”<br />
tornou-se um dos temas mais<br />
samplados <strong>de</strong> 2007, presença<br />
assídua nas “playlists” <strong>de</strong> DJ um<br />
pouco por todo o mundo.<br />
Após o impacto da estreia, o<br />
segundo álbum, “The Boy Who<br />
Knew Too Much”, lançado no ano<br />
passado, mostrava um Mika<br />
menos efusivo, ainda<br />
que não <strong>de</strong>scartasse<br />
totalmente a<br />
jovialida<strong>de</strong> do<br />
antecessor. Na era<br />
dos singles, “We are<br />
gol<strong>de</strong>n” é o tema<br />
mais festejado do<br />
disco a apresentar<br />
neste concerto - o<br />
segundo em<br />
Portugal -, que<br />
substitui uma data<br />
cancelada por<br />
causa da nuvem<br />
vulcânica<br />
proce<strong>de</strong>nte da<br />
Islândia. L.C.S.<br />
As cinzas do vulcão<br />
islandês adiaram o concerto:<br />
Mika tarda mas não falha<br />
Deolinda<br />
Guimarães. Centro Cultural Vila Flor - Gran<strong>de</strong><br />
Auditório. Avenida D. Afonso Henriques, 701, às<br />
22h. Tel.: 253424700. 15€.<br />
Domingo 9<br />
Orquestra Barroca Casa da<br />
Música<br />
Direcção Musical <strong>de</strong> Laurence<br />
Cummings.<br />
Porto. Casa da Música - Sala Suggia. Pç. Mouzinho<br />
<strong>de</strong> Albuquerque, às 18h. Tel.: 220120220. 11€.<br />
Áustria 2010. Serenatas Nocturnas:<br />
obras <strong>de</strong> Schmelzer, Biber, Muffat,<br />
Mozart e Bach.<br />
Segunda 10<br />
Patrícia Vasconcelos<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> S. Luiz<br />
- Jardim <strong>de</strong> Inverno. R. Antº Maria Cardoso<br />
38-58, às 19h. Tel.: 213257650. 10€.<br />
Gotan Project<br />
nos Coliseus<br />
Martin André<br />
dirige a ONP<br />
NELSON GARRIDO/ PÚBLICO<br />
50 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
Donny McCaslin abre o Ciclo<br />
Internacional <strong>de</strong> Jazz <strong>de</strong> Oeiras<br />
Emanuel Ax a solo<br />
e com a Orquestra Gulbenkian,<br />
a partir <strong>de</strong> terça-feira<br />
Xavier Phillips vai<br />
ao Centro Cultural <strong>de</strong> Belém<br />
Clássica<br />
Um pianista<br />
multifacetado<br />
Emanuel Ax traz à<br />
Gulbenkian um aliciante<br />
programa <strong>de</strong>dicado às<br />
Sonatas <strong>de</strong> Beethoven<br />
e Schubert.<br />
Cristina Fernan<strong>de</strong>s<br />
Emanuel Ax<br />
<strong>Lisboa</strong>. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian<br />
- Gran<strong>de</strong> Auditório. Avenida <strong>de</strong> Berna, 45A. 3ª, 11,<br />
às 19h. Tel.: 217823700. 15€ a 30€.<br />
Ciclo <strong>de</strong> Piano.<br />
Obras <strong>de</strong> Beethoven e Schubert.<br />
Emanuel Ax e Orquestra<br />
Gulbenkian<br />
Direcção Musical <strong>de</strong> Bernhard Klee.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian<br />
- Gran<strong>de</strong> Auditório. Avenida <strong>de</strong> Berna, 45A. 5ª, 13,<br />
às 21h. Tel.: 217823700. 10€ a 20€.<br />
Obras <strong>de</strong> Beethoven,<br />
Webern e Haydn.<br />
Para a sua actuação no Ciclo<br />
<strong>de</strong> Piano da Fundação<br />
Gulbenkian no próximo dia 11,<br />
Emanuel Ax escolheu um<br />
aliciante programa centrado<br />
nas Sonatas <strong>de</strong> Beethoven e<br />
Schubert, ilustrativo <strong>de</strong><br />
diferentes períodos criativos<br />
<strong>de</strong>stes compositores. De<br />
Beethoven interpreta as Sonatas<br />
op. 2, nº3, e op.81a (“Les<br />
Adieux”), e <strong>de</strong> Schubert as Sonatas<br />
op. 42 e op. 120. O pianista polaco<br />
apresenta também nos dias 13 e 14,<br />
com a Orquestra Gulbenkian, o<br />
Concerto para Piano nº5<br />
(“Imperador”), <strong>de</strong> Beethoven, e na<br />
semana seguinte estará na Casa da<br />
Música, no Porto, para mais um<br />
recital a solo.<br />
Admirado pelo seu lirismo poético<br />
e pela sua técnica brilhante,<br />
Emanuel Ax é <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> um<br />
repertório amplo, que se esten<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Bach a figuras tão diversificadas da<br />
música do século XX como Michael<br />
Tippett, Hans Werner Henze, Paul<br />
Hin<strong>de</strong>mith ou Astor Piazolla,<br />
passando pelas gran<strong>de</strong>s páginas do<br />
classicismo e do romantismo.<br />
Nascido em 1949, em Lvov (Polónia),<br />
começou a estudar piano aos seis<br />
anos em Varsóvia. A sua família<br />
mudou-se em 1961 para a América<br />
do Norte, permitindo-lhe continuar<br />
a sua formação na prestigiada<br />
Juilliard School <strong>de</strong> Nova Iorque.<br />
Estreou-se em 1969, mas foi apenas a<br />
partir <strong>de</strong> 1974 — ano em que foi o<br />
vencedor da primeira edição do<br />
Concurso Internacional <strong>de</strong> Piano<br />
Arthur Rubinstein, em Telavive —<br />
que Ax começou a sua carreira<br />
internacional. Artista exclusivo da<br />
editora Sony <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1987, Emmanuel<br />
Ax possui uma vast discografia que<br />
inclui, por exemplo, os concertos <strong>de</strong><br />
Liszt, Schönberg e Brahms, tangos<br />
<strong>de</strong> Astor Piazzolla, sonatas para<br />
piano <strong>de</strong> Haydn (distinguidas com<br />
um Grammy), o Concerto para Piano<br />
“Century Rolls”, <strong>de</strong> John Adams, ou<br />
“Red Silk Dance” <strong>de</strong> Bright Sheng.<br />
Apresentou-se também numerosas<br />
vezes em quarteto com o falecido<br />
Isaac Stern, Jaime Laredo e Yo-Yo Ma<br />
— uma frutuosa colaboração da qual<br />
resultaram também várias discos na<br />
Sony, com obras <strong>de</strong> Brahms, Fauré,<br />
Beethoven, Schumann e Mozart.<br />
O violoncelo em<br />
ascensão <strong>de</strong> Xavier<br />
Phillips<br />
Orquestra Metropolitana<br />
<strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong><br />
Direcção Musical <strong>de</strong> Mark Stringer.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Centro Cultural <strong>de</strong> Belém - Gran<strong>de</strong><br />
Auditório. Praça do Império. Dom., 9, às 17h.<br />
Tel.: 213612400. 5€ a 15€.<br />
Obras <strong>de</strong> Beethoven,<br />
Schostakovich e Schubert.<br />
Antigo aluno <strong>de</strong> Paul Tortelier e <strong>de</strong><br />
Mstislav Rostropovitch, dois gigantes<br />
do violoncelo do século XX, o jovem<br />
instrumentista francês Xavier<br />
Phillips (n. 1971) tem <strong>de</strong>senvolvido<br />
nos últimos uma bem sucedida<br />
carreira internacional, que inclui<br />
vários prêmios da crítica<br />
discográfica. Em paralelo com<br />
recitais a solo, tem tocado com<br />
orquestras europeias e americanas<br />
como a Orquestra <strong>de</strong> Paris, a<br />
Orquestra Nacional <strong>de</strong> França, a<br />
Filarmónica <strong>de</strong> Nova Iorque e as<br />
Sinfónicas <strong>de</strong> Berlim, Chicago,<br />
Houston, Seattle e Bamberg, entre<br />
outras. A sua gravação <strong>de</strong>dicada à<br />
música <strong>de</strong> câmara <strong>de</strong> Alberic<br />
Magnard foi distinguida com o<br />
“Grand Prix du Disque” e o seu disco<br />
com o pianista turco Hüseyin<br />
Sermet, <strong>de</strong>dicado às Sonatas <strong>de</strong><br />
Schnittke, Chostakovitch e<br />
Prokofiev, recebeu um “Choc” na<br />
revista “Le Mon<strong>de</strong> <strong>de</strong> la Musique”.<br />
Registou ainda com sucesso o<br />
Concerto para Violoncelo, <strong>de</strong> Lalo, e<br />
um CD <strong>de</strong>dicado a Kodaly com Jean-<br />
Marc Phillips-Varjabédian.<br />
No próximo domingo, Xavier<br />
Phillips apresenta-se no Centro<br />
Cultural <strong>de</strong> Belém com a Orquestra<br />
Metropolitana <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> na<br />
interpretação do Concerto para<br />
Violoncelo nº1, op. 107, <strong>de</strong><br />
Chostakovich. O programa, dirigido<br />
pelo maestro Mark Stringer, inclui<br />
ainda a Abertura “Rei Estevão”, op.<br />
117, <strong>de</strong> Beethoven, e a Sinfonia nº 8,<br />
em Dó Maior, D. 944, “A Gran<strong>de</strong>”, <strong>de</strong><br />
Schubert. Esta última obra, a mais<br />
extraordinária partitura orquestral<br />
do compositor austríaco, é também<br />
conhecida por alguns melómanos e<br />
citada em obras <strong>de</strong> referência como<br />
a Nona Sinfonia <strong>de</strong> Schubert,<br />
<strong>de</strong>vendo-se essa divergência a<br />
diferentes critérios <strong>de</strong> catalogação<br />
usados ao longo do tempo. C.F.<br />
Jazz<br />
Donny<br />
McCaslin<br />
e outras<br />
surpresas<br />
Quatro diferentes visões do<br />
jazz actual na edição 2010<br />
do Ciclo Internacional <strong>de</strong><br />
Jazz <strong>de</strong> Oeiras.<br />
Rodrigo Amado<br />
Som da Surpresa 2010<br />
Com Donny McCaslin Trio (hoje),<br />
Don Byron Ivey Divey Trio<br />
(amanhã), Edward Simon Trio (dia<br />
21) e Jamie Baum Septet (dia 22).<br />
Oeiras. Auditório <strong>Municipal</strong> Eunice Muñoz. Rua<br />
Mestre <strong>de</strong> Aviz. Hoje e amanhã, às 22h. Tel.:<br />
214408411. 7,5€.<br />
Começa hoje a edição 2010 do Som<br />
da Surpresa, Ciclo Internacional <strong>de</strong><br />
Jazz <strong>de</strong> Oeiras, com as honras <strong>de</strong><br />
abertura a caberem ao trio <strong>de</strong> Donny<br />
McCaslin, um saxofonista que tem<br />
construido uma percurso brilhante e<br />
que se tornou um dos solistas mais<br />
requisitados da actualida<strong>de</strong>.<br />
Colaborações com a Big Band <strong>de</strong><br />
Maria Schnei<strong>de</strong>r ou o quinteto <strong>de</strong><br />
Dave Douglas, entre muitos outros,<br />
transformaram um relativo<br />
aca<strong>de</strong>mismo <strong>de</strong> início <strong>de</strong> carreira<br />
numa po<strong>de</strong>rosa versatilida<strong>de</strong><br />
musical. Com ele, estarão em palco<br />
Scott Colley (contrabaixo) e Antonio<br />
Sanchez (bateria).<br />
Amanhã, sábado, é a vez do trio<br />
Ivey Divey, do clarinetista e (agora)<br />
saxofonista Don Byron, um dos<br />
notáveis sobreviventes da geração<br />
Knitting Factory. Consi<strong>de</strong>rado um<br />
dos gran<strong>de</strong>s mestres do clarinete<br />
jazz, Byron combina elementos tão<br />
diversos como o klezmer, o funk, o<br />
hip-hop ou o blues, para <strong>de</strong>stilar um<br />
estilo profundamente pessoal que,<br />
aqui, presta homenagem a Lester<br />
Young. De <strong>de</strong>stacar ainda a presença<br />
<strong>de</strong> Uri Caine, no piano.<br />
No fim-<strong>de</strong>-semana seguinte, é a vez<br />
<strong>de</strong> subir ao palco o trio <strong>de</strong> Edward<br />
Simon, pianista <strong>de</strong> origem<br />
venezuelana que tem vindo a<br />
conquistar uma crescente, e<br />
merecida, notorieda<strong>de</strong>. Integrando<br />
actualmente os SF Jazz Collective,<br />
Simon brilha particularmente num<br />
contexto <strong>de</strong> trio, formação que<br />
permite observar <strong>de</strong> perto todas as<br />
subtilezas do seu estilo. Para<br />
terminar, apresenta-se o septeto da<br />
flautista e compositora Jamie Baum,<br />
música norte-americana que esteve já<br />
por diversas vezes no nosso país com<br />
o seu jazz <strong>de</strong> câmara, sofisticado e<br />
pleno <strong>de</strong> swing.<br />
Terça 11<br />
PerKool Quartet<br />
Porto. Casa da Música - Sala 2. Pç. Mouzinho <strong>de</strong><br />
Albuquerque, às 19h30. Tel.: 220120220. 7,5€.<br />
Obras <strong>de</strong> Mário Laginha, Fusté-<br />
Lambezat, Carlos Azevedo.<br />
Patrícia Vasconcelos<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> S. Luiz - Jardim <strong>de</strong><br />
Inverno. R. Antº Maria Cardoso, 38-58, às 19h. Tel.:<br />
213257650. 10€.<br />
Quarta 12<br />
Biel Ballester Trio<br />
Matosinhos. Cine-Teatro Constantino Nery. Avenida<br />
Serpa Pinto, às 21h30. Tel.: 229392320. Entrada<br />
gratuita.<br />
Matosinhos em Jazz 2010 - Festival<br />
Internacional <strong>de</strong> Jazz <strong>de</strong> Matosinhos.<br />
Sofia Ribeiro<br />
Caldas da Rainha. Centro<br />
Cultural e Congressos - Gran<strong>de</strong><br />
Auditório. Rua Doutor Leonel<br />
Sotto Mayor, às 21h30. Tel.:<br />
262889650. 5€ a 10€.<br />
Ricardo Ribeiro O<br />
junta-se a Pedro Jóia O<br />
RUI GAUDÊNCIO<br />
Quinta 13<br />
Vashti Bunyan + B Fachada<br />
<strong>Lisboa</strong>. Lux Frágil. Av. Infante D. Henrique, Armazém<br />
A, às 22h. Tel.: 218820890. 12 €.<br />
Ver texto na pág. 12.<br />
A Naifa<br />
Faro. Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> Faro. Horta das Figuras<br />
- EN125, às 21h30. Tel.: 289888100. 12€.<br />
Ver texto na pág. 16.<br />
Jon Rose<br />
Porto. Auditório <strong>de</strong> Serralves. Rua Dom João o <strong>de</strong><br />
Castro, 210, às 22h. Tel.: 226156500. 3,75€ a 7,5€.<br />
Ciclo Documente-se! 2010. “Violino<br />
Escravo - a true story of a slave<br />
violinist”.<br />
Orquestra <strong>de</strong> Jazz <strong>de</strong> Matosinhos<br />
Direcção Musical <strong>de</strong> Carlos Azevedo,<br />
Cansei <strong>de</strong> Ser Sexy em <strong>Lisboa</strong><br />
Pedro Gue<strong>de</strong>s.<br />
Leça da Palmeira. Exponor, às 21h30. Tel.:<br />
229981300. 10€.<br />
Matosinhos em Jazz 2010 - Festival<br />
Internacional <strong>de</strong> Jazz <strong>de</strong> Matosinhos.<br />
A Silent Film<br />
<strong>Lisboa</strong>. Aula Magna. Alam. Universida<strong>de</strong>, às 21h30.<br />
Tel.: 217967624. 19€ a 24€.<br />
Sofia Ribeiro Quarteto<br />
<strong>Lisboa</strong>. Onda Jazz. Arco <strong>de</strong> Jesus, 7 - ao Campo das<br />
Cebolas, às 22h30. Tel.: 919184867. 7€.<br />
Deolinda<br />
em digressão<br />
nacional<br />
RITA CARMO<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 51
Discos<br />
Pop<br />
Está <strong>tudo</strong><br />
bem, foi <strong>tudo</strong><br />
perdoado<br />
Os National resistem à<br />
tentação <strong>de</strong> se tornarem<br />
os U2 e em vez disso<br />
resolveram mostrar que<br />
são os únicos homens<br />
crescidos a fazer música.<br />
Impressionante. João<br />
Bonifácio<br />
The National<br />
High Violet<br />
4Ad; distri. Popstock<br />
mmmmm<br />
Até certo ponto<br />
sabemos como<br />
funcionam as<br />
canções dos<br />
National: Matt<br />
Berninger, o<br />
vocalista, primeiro sussurra <strong>de</strong>pois<br />
berra quase-aforismos<br />
grandiloquentes, em que o universo<br />
do americano médio é transformado<br />
em épico semi-patético. Ao redor da<br />
voz <strong>de</strong> barítono há uma segunda<br />
melodia dividida entre as duas<br />
guitarras; quando uma linha <strong>de</strong><br />
guitarra se repete, a linha <strong>de</strong> baixo<br />
altera-se; quando o ritmo se repete,<br />
as frases das guitarras fogem do seu<br />
lugar; e em fundo, a percussão, mais<br />
que marcar o tempo, amplia a<br />
“emoção”<br />
que a voz<br />
procura.<br />
Como com todos os discos dos National, entra-se nisto com um encolher <strong>de</strong> ombros<br />
e acaba-se, um mês <strong>de</strong> escutas <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong> braços levantados para os céus<br />
Sequela<br />
No entanto, a fórmula resulta em<br />
objectos radicalmente diferentes. Em<br />
“Alligator” (2005) tínhamos o fim da<br />
juventu<strong>de</strong> retratada em indie-rock<br />
explosivo e ébrio, enquanto em<br />
“Boxer” (2010) tínhamos a entrada<br />
na ida<strong>de</strong> adulta em registo <strong>de</strong><br />
câmara. Agora temos o “lá fora”, o<br />
mundo, e, musicalmente, um<br />
cruzamento exponenciado dos<br />
universos dos dois discos<br />
prece<strong>de</strong>ntes: voltam as guitarras e os<br />
ritmos mais acelerados, mas os<br />
arranjos são ainda mais<br />
proeminentes – coros, metais,<br />
cordas, há <strong>de</strong> <strong>tudo</strong> e por todo o lado.<br />
É admirável como esse improvável<br />
ponto <strong>de</strong> encontro entre “Alligator” e<br />
“Boxer” é encontrado em canções<br />
lindíssimas como “Bloodbuzz Ohio”<br />
(guitarras à frente e metais por cima,<br />
a agigantá-la), a magnífica “Terrible<br />
love” (toalhas <strong>de</strong> guitarras que<br />
terminam num crescendo e o baixo<br />
marcado no piano), “Van<strong>de</strong>rlyle<br />
crybaby geeks” (piano lento, arrepio<br />
<strong>de</strong> cordas, coros, um hossana para a<br />
classe média como Nick Cave nunca<br />
foi capaz <strong>de</strong> escrever), a<br />
extraordinária “Afraid of everyone”<br />
(um comovente ensaio sobre o medo<br />
da paternida<strong>de</strong>) ou “Anyone’s ghost”,<br />
noir <strong>de</strong> guitarras para almas <strong>de</strong><br />
predação nocturna .<br />
Mas, nesta última, atentem nos<br />
coros em fundo, no cuidado posto<br />
nos sombreados <strong>de</strong> oboés e, na<br />
ponte, no pontilhismo dos<br />
violoncelos. E em “Afraid of<br />
everyone” notem o truque da<br />
segunda frase melódica começar a<br />
ser feita pela guitarra para ser<br />
completada por um oboé, antes da<br />
entrada dos metais à medida que a<br />
intensida<strong>de</strong> aumenta. Notem o<br />
trabalho <strong>de</strong> harmonia dos coros.<br />
São nano-<strong>de</strong>talhes que só à<br />
enésima<br />
audição se<br />
revelam<br />
em toda<br />
Um dos álbuns<br />
históricos do hip-hop<br />
vai ter um segundo<br />
capitulo. GZA está a<br />
trabalhar em “Liquid<br />
Swords II”, sequela<br />
do disco, <strong>de</strong> 1995,<br />
a sua grandiosida<strong>de</strong> e que servem<br />
não apenas para embelezar mas sim<br />
causar – por régua e esquadro –<br />
emoção, e através <strong>de</strong>sta pôr as gentes<br />
a olhar para as suas vidinhas e, por<br />
mais que isso aí ao espelho moa e<br />
doa, fazê-las encontrar algum<br />
conforto na sua sarjeta privada.<br />
Como com todos os discos dos<br />
National, entra-se nisto com um<br />
encolher <strong>de</strong> ombros e acaba-se, um<br />
mês <strong>de</strong> escutas <strong>de</strong>pois, com um vago<br />
sentimento adolescente, <strong>de</strong> braços<br />
levantados para os céus como se isto<br />
fosse a última alegria antes <strong>de</strong><br />
voltarmos para o cárcere da gordura<br />
no fogão, felizes por existirmos na<br />
mesma época que estes tipos, por<br />
po<strong>de</strong>rmos admirar isto antes <strong>de</strong> o<br />
cuidado com a carreira, com a<br />
meticulosa falsa poli<strong>de</strong>z dos sorrisos<br />
diários, nos levarem <strong>de</strong> vez o pouco<br />
<strong>de</strong> humanida<strong>de</strong> e dignida<strong>de</strong> que nos<br />
resta. E não há mais ninguém neste<br />
mundo cheio <strong>de</strong> vencedores, <strong>de</strong><br />
gente bonita e séria, que nos faça<br />
lembrar o lixo todo que fizemos – e o<br />
faça com um abraço.<br />
Como canta Berninger a fechar o<br />
disco: “Man, it’s all been fogiven”.<br />
Está <strong>tudo</strong> bem, gente boa. Não se<br />
esqueçam é que <strong>de</strong>pois acaba o disco<br />
e volta-se à vida.<br />
Mudar para<br />
quê?<br />
Décimo Divine Comedy traz<br />
Neil Hannon <strong>de</strong> volta ao seu<br />
melhor. Luís Maio<br />
The Divine Comedy<br />
Bang Goes The Knighthood<br />
Divine Comedy Records E<strong>de</strong>l<br />
mmmmn<br />
Neil Hannon na<br />
banheira vestido só<br />
com um laço, um<br />
chapéu <strong>de</strong> coco e<br />
um cachimbo, a<br />
dar banho ao cão,<br />
acompanhado por uma garrafa <strong>de</strong><br />
champanhe e no canto inferior<br />
direito, quase a sair da fotografia, o<br />
inevitável pato <strong>de</strong> borracha. A capa é<br />
o perfeito epítome visual do que tem<br />
sido a carreira <strong>de</strong> Hannon/Divine<br />
Comedy, revista e actualizada em<br />
gran<strong>de</strong> estilo neste seu décimo<br />
álbum <strong>de</strong> estúdio.<br />
Antes houve discos conceptuais e<br />
introspectivos, inflexões eléctricas e<br />
electrónicas, álbuns <strong>de</strong> versões e<br />
canções para outras vozes. Hannon<br />
nunca <strong>de</strong>ixou, porém, <strong>de</strong> fazer o que<br />
sempre fez melhor: canções<br />
narrativas, retratos irónicos mas<br />
generosos da socieda<strong>de</strong> britânica,<br />
em formato pop e arranjos<br />
sinfónicos, na linha <strong>de</strong> Jacques Brel e<br />
Scott Walker. Agora, em “Bang Goes<br />
The Knighthood”, as experiências<br />
dos Wu-Tang Clan.<br />
Apesar <strong>de</strong> se tratar <strong>de</strong><br />
um projecto a solo, o<br />
disco contará com a<br />
produção <strong>de</strong> RZA, outro<br />
dos elementos do grupo<br />
nova-iorquino.<br />
The Divine Comedy: um<br />
triunfo no capítulo das<br />
sinfonias pop que comentam<br />
a vida <strong>de</strong> todos os dias<br />
passam para segundo plano, para<br />
dar lugar a uma nova celebração do<br />
que é vocação e o verda<strong>de</strong>iro talento<br />
<strong>de</strong> Hannon. Não será a sua obraprima,<br />
não porque seja inferior,<br />
simplesmente porque antes houve<br />
“Promena<strong>de</strong>”, “Casanova” ou “Fin<br />
<strong>de</strong> Siècle”.<br />
Todas as canções oferecem<br />
melodias trauteáveis e arranjos<br />
sofisticados, não há em 12 títulos um<br />
só que seja <strong>de</strong>scartável. Desta feita,<br />
no entanto, as canções que primam<br />
pelo humor são as que mais se<br />
<strong>de</strong>stacam. “At the indie disco”, o<br />
primeiro single, invoca os posters <strong>de</strong><br />
Morrissey com ramos <strong>de</strong> flores ou os<br />
ritmos <strong>de</strong> “Blue Monday” dos New<br />
Or<strong>de</strong>r para pintar a cena rock<br />
alternativa, num misto <strong>de</strong>licioso <strong>de</strong><br />
ironia e <strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong>. Tanto ou<br />
mais vai dar que falar “The complete<br />
banker”, <strong>de</strong>lirante sátira ao mundo<br />
da alta finança, escrita do ponto <strong>de</strong><br />
vista dos banqueiros viciados em<br />
especulação, responsáveis pela<br />
actual crise mundial. Corre o risco<br />
<strong>de</strong> ser banida em Wall Street a não<br />
ser que os corretores da bolsa<br />
ganhem um insuspeito sentido <strong>de</strong><br />
humor (ou <strong>de</strong> arrependimento).<br />
Há, <strong>de</strong>pois, canções sobre gente<br />
que aposta o que tem e não tem no<br />
jogo (“Bang goes the knighthood”),<br />
sobre raparigas que ganham a vida<br />
como amantes <strong>de</strong> hora <strong>de</strong> almoço<br />
(“Neapolitan girl”). Mas a piada<br />
musical mais excêntrica acaba por<br />
ser a mais inócua: chama-se “Can<br />
you stand upon one leg” e prova que<br />
Hannon consegue estar a cantar a<br />
mesma nota <strong>de</strong> um único sopro,<br />
durante meio minuto. Pelo meio há<br />
um par <strong>de</strong> celebrações do romance e<br />
do easy listening (“Island life”,<br />
“Have you ever been in love”), outro<br />
par <strong>de</strong> épicos sinfónico-humanistas<br />
(“Down in the street below” e<br />
“When a man cries”), que também<br />
recriam território familiar aos fãs <strong>de</strong><br />
Divine Comedy. É claro que não há<br />
novida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> maior em lado<br />
52 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
Nice Nice: respeito, senhoras<br />
e senhores, muito respeito<br />
nenhum, que <strong>tudo</strong> não passa <strong>de</strong> uma<br />
revisão actualizada da matéria dada<br />
ao longo <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> álbuns.<br />
Não é menos certo que são um<br />
triunfo no capítulo das sinfonias pop<br />
que comentam a vida <strong>de</strong> todos os<br />
dias. Ou que ninguém faz Neil<br />
Hannon melhor que Neil Hannon.<br />
Caos perfeito<br />
Iggy And The Stooges<br />
Raw Power<br />
Columbia/Legacy; distri. Sony Music<br />
mmmmm<br />
Se um álbum<br />
começa com estes<br />
versos, “I’m a street<br />
walking cheetah<br />
with a heart full of<br />
napalm / I’m a<br />
runaway son of the nuclear a-bomb /<br />
I am a world’s forgotten boy / The<br />
one who searches and <strong>de</strong>stroys”,<br />
exige-se que a música o traduza<br />
<strong>de</strong>vidamente. Po<strong>de</strong> parecer<br />
estranho, no ano da Graça <strong>de</strong> 2010,<br />
37 passados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a edição <strong>de</strong> “Raw<br />
Power”, escrever a frase anterior.<br />
Afinal, crescemos com “Raw Power”<br />
e têmo-lo por garantido. Sabemos<br />
que aquela letra não existe sem a<br />
música visceral que a acompanha,<br />
qual granada atirada ao coração do<br />
rock’n’roll para o regenerar<br />
<strong>de</strong>finitivamente.<br />
No entanto, ouvindo novamente<br />
“Raw Power” nesta reedição que ao<br />
álbum original acrescenta um<br />
concerto em Atlanta, registado em<br />
1973 (existe também uma versão<br />
<strong>de</strong>luxe, em edição limitada, que<br />
inclui ainda um CD <strong>de</strong> outtakes e<br />
rarida<strong>de</strong>s e um “making of” em<br />
DVD), percebe-se como o terceiro<br />
álbum dos Stooges só existe<br />
enquanto corpo e verbo,<br />
inseparáveis. Porque a raiva e a<br />
vertigem auto<strong>de</strong>strutiva <strong>de</strong> Iggy Pop<br />
“Raw Power” é um disco <strong>de</strong><br />
sexo e violência, é um disco<br />
violentamente sexy e inspirador<br />
encontra tradução perfeita nos<br />
Stooges, máquina rock’n’roll em que<br />
a <strong>de</strong>crepitu<strong>de</strong> é manifesto urgente e<br />
a ilusão do <strong>de</strong>scontrolo o auge da<br />
sofisticação – algo acentuado pela<br />
mistura escolhida, a original <strong>de</strong><br />
David Bowie. Não é por acaso que,<br />
no concerto, ouvimos uma miúda<br />
lamentar-se (“I don’t think he likes<br />
us”) quando terminam os oito<br />
minutos <strong>de</strong> “Head on”, um violento<br />
triturar <strong>de</strong> Jagger e Morrison, dos<br />
The Who e do “Hey Joe” – é a mesma<br />
voz que, <strong>de</strong>pois, há-<strong>de</strong> berrar uma e<br />
outra vez “Iggy, I want your body!”<br />
enquanto Iggy vocifera “it’s time to<br />
search and <strong>de</strong>stroy cause all this<br />
gotta go”, enquanto Iggy pergunta<br />
“Can anybody hear me?” para se<br />
irritar logo a seguir: “I didn’t mean<br />
with your ears! Oh, you ignorant<br />
mother…”<br />
“Raw Power” é um disco <strong>de</strong> sexo e<br />
violência, é um disco violentamente<br />
sexy e inspirador. E é um álbum<br />
impossível <strong>de</strong> reproduzir porque,<br />
apesar <strong>de</strong> se pressupor alguém do<br />
outro lado a reagir a toda a fúria e<br />
<strong>de</strong>sconforto, <strong>tudo</strong> nele nasce <strong>de</strong> uma<br />
quase assustadora intimida<strong>de</strong>. É a<br />
música que emanou daqueles quatro<br />
músicos (Iggy Pop, James<br />
Williamson, Ron e Scott Asheton),<br />
naquele momento específico.<br />
Sozinhos perante o mundo,<br />
escolheram atirar-se à jugular do<br />
conforto a serem engolidos por ele.<br />
O paraíso não existe e só o perigo e o<br />
excesso, só a <strong>de</strong>struição po<strong>de</strong>m<br />
regenerar-nos.<br />
“Penetration” e “Raw power”:<br />
“Gimme danger, little stranger”.<br />
Nunca o caos foi tão perfeito. Mário<br />
Lopes<br />
Somos todos Monks!<br />
The Monks<br />
Black Monk Time<br />
Light In The Attic; distri. Flur<br />
mmmmm<br />
Nada aqui é<br />
inocente. Não o é a<br />
produção, que<br />
procurou a forma<br />
exacta <strong>de</strong> transpôr<br />
para disco uma<br />
i<strong>de</strong>ia sónica, pensada como<br />
verda<strong>de</strong>iro ataque aos sentidos. Não<br />
o é o banjo em que Dave Day<br />
colocou cordas <strong>de</strong> guitarra eléctrica,<br />
resultando num “clang clang”<br />
mecânico que transforma um<br />
instrumento tradicional em<br />
matraquear <strong>de</strong> música industrial.<br />
Não o é a guitarra eléctrica <strong>de</strong> Gary<br />
Burger, que potencia o tom<br />
paranóico da sua voz, que é toda ela<br />
ritmo e dissonância <strong>de</strong> feedbacks<br />
infernais. Não o é o órgão <strong>de</strong> Larry<br />
Clark, que não ilumina nem pontua,<br />
que atravessa as canções em<br />
“flashadas” que cegam,<br />
incan<strong>de</strong>scentes. E não o é a secção<br />
rítmica <strong>de</strong> Roger Johnston, baterista<br />
The Monks: o ponto on<strong>de</strong> todo um futuro <strong>de</strong> marginalida<strong>de</strong>,<br />
confronto, acção e invenção bebeu algo<br />
<strong>de</strong> precisão tensa, marcial (<strong>tudo</strong><br />
timbalões e tarola, nada <strong>de</strong> pratos),<br />
e Eddie Shaw, o baixista do “fuzz”<br />
en<strong>de</strong>moninhado. Não, nada em<br />
“Black Monk Time” é inocente.<br />
Justíssima premonição a daqueles<br />
que, em 1966, disseram a cinco exsoldados<br />
americanos a viver na<br />
Alemanha que a sua banda era o<br />
som do futuro. “Black Monk Time”,<br />
único e inesgotável, continua a sê-lo<br />
em 2010. Não acreditem quando um<br />
arauto new-age ou um rapaz cheio<br />
<strong>de</strong> boas intenções com guitarra<br />
acústica a tiracolo vos cantar ao<br />
ouvido que o yoga conduz à salvação<br />
e que um pôr-do-sol na Arrábida<br />
po<strong>de</strong> conduzir uma vida <strong>de</strong><br />
beatitu<strong>de</strong>. Conce<strong>de</strong>mos com<br />
mo<strong>de</strong>rada relutância que até po<strong>de</strong><br />
suce<strong>de</strong>r assim - nos intervalos.<br />
Quanto ao resto, quanto à vida ela<br />
mesma, ouçam-se os Monks.<br />
Não, não está <strong>tudo</strong> bem: “Alright,<br />
my name’s Gary. Let’s go, it’s beat<br />
time, it’s hop time, it’s monk time!<br />
You know we don’t like the army.<br />
What army? Who cares what army?”<br />
Não, não está <strong>tudo</strong> bem: “Stop it<br />
stop it, I don’t like it… stop it! It’s too<br />
loud for my ears.” No início era isto,<br />
“Monk time”: garage para <strong>de</strong>struir<br />
salões nobres e danças hedonistas<br />
sem sentido. Depois, a canção <strong>de</strong><br />
ódio para acabar com as canções <strong>de</strong><br />
amor, paranóia violenta que inventa<br />
os Stooges sem os Stooges o<br />
saberem: “I hate you with a passion<br />
baby, yeah I do! (But call me!)”; e<br />
<strong>de</strong>pois a paranóia que é já neurose<br />
quando chegamos a “Complication”<br />
e a natureza humana se revela em<br />
todo o seu tenebroso esplendor:<br />
“People cry / Complication! / People<br />
die for you. / People kill /<br />
Complication! / People will for you. /<br />
People run / Complication / Ain’t it<br />
fun for you?”<br />
Verda<strong>de</strong>iramente impressionante<br />
o alcance <strong>de</strong> “Black Monk Time”,<br />
incrível <strong>tudo</strong> aquilo que contém <strong>de</strong><br />
invenção, <strong>de</strong> prenúncio <strong>de</strong> futuro. A<br />
sôfrega inocência dos Beatles<br />
tornada intervenção dadaísta em<br />
“We do wie du”, a gravilha sónica<br />
dos Velvet <strong>de</strong> “White light, white<br />
heat” antecipada na guitarra <strong>de</strong><br />
“Higgle-dy – piggle-dy” (“way down<br />
to heaven, Yeah!”). O pôr em cena<br />
do pós-punk no tom repetitivo,<br />
insistente, <strong>de</strong> “Blast Off!” e o<br />
nonsense da <strong>de</strong>smontagem pop <strong>de</strong><br />
“Cuckoo”, que po<strong>de</strong>mos jurar que<br />
David Byrne terá ouvido antes <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>cidir tornar-se vocalista <strong>de</strong> uma<br />
banda chamada Talking Heads.<br />
Os Monks <strong>de</strong> “Black Monk Time”<br />
são supostamente heróis do “garage<br />
rock” <strong>de</strong> 1960 que reedições como<br />
esta (que ao álbum original<br />
acrescentam um par <strong>de</strong> singles<br />
posteriores ou uma canção ao vivo)<br />
transformaram em culto bem<br />
alimentado ao longo dos anos. Grave<br />
erro. São o elo perdido da história<br />
do rock’n’roll, o ponto on<strong>de</strong> todo<br />
um futuro <strong>de</strong> marginalida<strong>de</strong>,<br />
confronto, acção e invenção bebeu<br />
algo.<br />
Escapar-lhes não é uma<br />
possibilida<strong>de</strong>: “You’re a monk, I’m a<br />
monk, we’re all monks!”. Estamos<br />
todos comprometidos. M.L.<br />
WWW.TEATROSAOLUIZ.PT<br />
APOIOS<br />
SÃO<br />
LUIZ<br />
MAI~1O<br />
SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />
RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA<br />
GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT / T: 213 257 640<br />
Maravilhosa<br />
alucinação<br />
Nice Nice<br />
Extra Wow<br />
Warp; distri. Symbiose<br />
mmmmn<br />
O apreço, ou<br />
melhor, a obsessão<br />
que Jason Buehler e<br />
Mark Shirazi têm<br />
pela repetição está<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo inscrita<br />
no nome da banda. Nice? Nice! O<br />
apreço, corrijamos, a obsessão<br />
1O E 11 MAI<br />
PATRÍCIA<br />
VASCONCELOS<br />
LET’S DO IT,<br />
LET’S FALL<br />
IN LOVE<br />
SEGUNDA E TERÇA ÀS 19H30<br />
JARDIM DE INVERNO M/3<br />
CONVIDADOS<br />
BENVINDO FONSECA<br />
CAMANÉ<br />
LÚCIA MONIZ<br />
BILHETEIRA DAS 13H ÀS 20H<br />
T: 213 257 650; BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />
BILHETES À VENDA NA TICKETLINE E NOS LOCAIS HABITUAIS<br />
© Carlos Ramos<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 53
Discos<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
que têm pelo po<strong>de</strong>r do som, som<br />
simplesmente, <strong>de</strong>scarregado em<br />
doses cavalares sobre os nossos<br />
ouvidos, está por sua vez inscrito no<br />
nome do álbum. Um tipo chega<br />
muito <strong>de</strong>scontraído a casa, olha para<br />
a simplicida<strong>de</strong> da capa que vêm<br />
acima e, inadvertidamente, sem<br />
qualquer protecção, põe a rodar a<br />
peça. Cinquenta e tal minutos<br />
<strong>de</strong>pois o diagnóstico, sem hipótese<br />
<strong>de</strong> erro, é precisamente aquele:<br />
“Wow! Extra Wow!”<br />
A <strong>de</strong>scrição do novo álbum da<br />
banda <strong>de</strong> Portland, formada por um<br />
baterista e um guitarrista e,<br />
principalmente, pela imaginação<br />
transbordante que os leva a<br />
sobrepor camadas e camadas <strong>de</strong><br />
instrumentos, <strong>de</strong> ruídos, <strong>de</strong> fitas<br />
manipuladas, nunca fará justiça ao<br />
que aqui se ouve. Falar-se-á <strong>de</strong><br />
violenta trip shoegaze, daquela que<br />
liquefaz o cérebro até que nada reste<br />
senão o zumbido <strong>de</strong> um mantra<br />
eléctrico, <strong>de</strong> doses elevadas <strong>de</strong><br />
motorika e kozmische tal como<br />
explicado por Neu! e Harmonia,<br />
falar-se-á do rock que é já outra coisa<br />
dos Battles, da África vista por olhos<br />
oci<strong>de</strong>ntais que se vai <strong>de</strong>senhando<br />
em lofts <strong>de</strong> Brooklin, do<br />
psica<strong>de</strong>lismo da década <strong>de</strong> 1970,<br />
esse <strong>de</strong> rigorosíssima dieta <strong>de</strong><br />
cogumelos seleccionados, ou das<br />
maquinações electrónicas que o<br />
magnífico Dan Deacon vem<br />
orquestrando lá para os lados <strong>de</strong><br />
Baltimore. Po<strong>de</strong>remos falar <strong>de</strong> <strong>tudo</strong><br />
isto, citar <strong>tudo</strong> isto, mas <strong>de</strong>pois<br />
chegamos a “Extra Wow” e tal<br />
revela-se <strong>de</strong>veras insuficiente.<br />
Montado como um contínuo<br />
musical, praticamente sem pausas,<br />
“Extra Wow” é um OVNI que tinha<br />
<strong>tudo</strong> para correr mal – com esta<br />
salgalhada <strong>de</strong> referências, o mais<br />
provável seria transformar-se num<br />
“District 9” on<strong>de</strong> sobreviveriam,<br />
perante a fraca tolerância da<br />
população, juntamente com toda a<br />
vasta lista <strong>de</strong> armados ao pingarelho<br />
que tentam mostrar-se mais espertos<br />
do que são realmente. Mas, “arrojo!,<br />
audácia!, emoção!”, nada corre mal<br />
em “Extra Wow”, um verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>iro<br />
tratado em alucinações pop, sem<br />
fronteiras <strong>de</strong>finidas e sem outro<br />
propósito que não sugar o ouvinte<br />
para o coração <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>liciosa e<br />
inebriante “freakalhada”.<br />
Quando, <strong>de</strong>pois das percussões<br />
em loop e das guitarras<br />
cósmicas, <strong>de</strong>pois dos teclados<br />
planando o espaço e <strong>de</strong> todos<br />
aqueles sons que nos assaltam <strong>de</strong><br />
proveniência in<strong>de</strong>finida,<br />
percebemos que isto é o trabalho<br />
<strong>de</strong> dois tipos que actuam como<br />
meticulosos cientistas sónicos<br />
procurando infatigavelmente e o<br />
Santo Graal do psica<strong>de</strong>lismo – algo<br />
que provoque a mesma sensação <strong>de</strong><br />
maravilhamento e euforia <strong>de</strong><br />
“Tomorrow never knows” -, os Nice<br />
Nice ganham uma outra dimensão.<br />
Respeito, senhoras e senhores, es,<br />
muito respeito. M.L.<br />
Delorean: talvez seja tempo <strong>de</strong> reavaliar a forma como olhamos<br />
a pop vinda <strong>de</strong> Espanha<br />
Delorean<br />
Subiza<br />
Mushroom, distri. PopStock<br />
mmmmn<br />
O ano passado,<br />
<strong>de</strong>screvíamos<br />
nestas páginas a<br />
música dos<br />
espanhóis Delorean<br />
como sendo pop<br />
dançante à beira da euforia. O<br />
álbum “Subiza” confirma-o. É uma<br />
obra <strong>de</strong> canções solarengas,<br />
<strong>de</strong>scomprometidas e simples,<br />
assentes em dinâmicas rítmicas<br />
electrónicas, gran<strong>de</strong> acessibilida<strong>de</strong><br />
melódica, vozes entusiásticas e<br />
estruturas ensaiadas em tantas<br />
outras canções pop. À superfície<br />
encontramos um misto <strong>de</strong> exaltação<br />
à Animal Collective, <strong>de</strong> jovialida<strong>de</strong> à<br />
Cut Copy e <strong>de</strong> electrónica<br />
minimalista em crescendo como a<br />
<strong>de</strong>senvolvida por DJs e produtores<br />
como James Hol<strong>de</strong>n. Há uma junção<br />
<strong>de</strong> afectivida<strong>de</strong> pop, rasgos diluídos<br />
<strong>de</strong> rock e um rol infinito <strong>de</strong> camadas<br />
electrónicas, que nos levam a<br />
pensar em discos <strong>de</strong> outros tempos<br />
– <strong>de</strong> “Screama<strong>de</strong>lica” dos Primal<br />
Scream aos New Or<strong>de</strong>r da primeira<br />
meta<strong>de</strong> dos anos<br />
80 – feitos por grupos oriundos do<br />
rock que, <strong>de</strong> repente, se<br />
entusiasmaram com as<br />
proprieda<strong>de</strong>s hipnóticas da música<br />
<strong>de</strong> dança. Depois da magia tropical<br />
<strong>de</strong> El Guincho, eis os Delorean.<br />
Talvez seja tempo <strong>de</strong> reavaliar a<br />
forma como olhamos a pop vinda <strong>de</strong><br />
Espanha. Vítor Belanciano<br />
Sharon Jones & The Dap-Kings<br />
I Learned The Hard Way<br />
Daptone. Distri. Massala<br />
mmmnn<br />
Sharon Jones & The Dap-Kings: o artigo genuíno<br />
“Eu aprendi da<br />
maneira dura” é o<br />
nome do álbum e a<br />
perfeita epígrafe<br />
para o que tem sido<br />
a carreira <strong>de</strong> mais<br />
baixos que altos <strong>de</strong> Sharon Jones.<br />
Nascida na Geórgia, em 1956,<br />
começou por fazer coros para<br />
artistas funk e disco sound, na Nova<br />
Iorque <strong>de</strong> meados dos anos 70. Mas<br />
ninguém a quis assinar em nome<br />
próprio – era <strong>de</strong>masiado velha (ou<br />
seja, mais <strong>de</strong> 20 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>),<br />
<strong>de</strong>masiado gorda, <strong>de</strong>masiado negra,<br />
ou <strong>de</strong>masiado feia - ou pelo menos<br />
foi as <strong>de</strong>sculpas que foi ouvindo.<br />
Decidiu então experimentar<br />
profissões mais<br />
54 • Sexta-feira 7 Maio 2010 • Ípsilon
Meshell N<strong>de</strong>geocello: a cada audição, uma nova <strong>de</strong>scoberta<br />
musculares, passando a ganhar a<br />
vida como segurança em carros<br />
forte e carcereira em prisões novaiorquinas.<br />
A sua sorte começou a<br />
mudar no dia em que o marido<br />
entrou para a editora “familiar”<br />
Daptone e ela se associou à banda <strong>de</strong><br />
virtuosos soul Dap-Kings (2001).<br />
Quando, em meados da década<br />
passada, explodiu a moda das novas<br />
cantoras soul, incluindo Amy<br />
Winehouse e Duffy, as atenções<br />
finalmente convergiram sobre<br />
Sharon, celebrada como uma figura<br />
tutelar <strong>de</strong>las todas. Ela tem, no<br />
entanto, pouco ou nada a ver com<br />
essa vaga <strong>de</strong> artifício pop, diferença<br />
que justamente se comprova neste<br />
seu quarto álbum com os Dap-Kings.<br />
Voz calejada e rugosa, mas nem por<br />
menos acetinada, canta os pequenos<br />
dramas do quotidiano como<br />
tragédias bíblicas, acompanhada por<br />
majestosos arranjos <strong>de</strong> sopros e <strong>de</strong><br />
cordas. Não se vislumbra qualquer<br />
pretensão <strong>de</strong> ser original, ou<br />
minimamente actual. Sharon é o<br />
artigo genuíno, a verda<strong>de</strong>ira diva<br />
soul “velha escola” em todo o seu<br />
esplendor revivalista. A sua<br />
prestação no Meco (18 <strong>de</strong> Julho)<br />
anuncia-se, aliás, como um dos<br />
momentos mais altos do próximo<br />
Super Bock Super Rock. L.M.<br />
Meshell N<strong>de</strong>geocello<br />
Devil’s Halo<br />
Mercer Street, distri. PopStock<br />
mmmnn<br />
Intrigante, como<br />
sempre, Meshell.<br />
Nunca se sabe o que<br />
esperar <strong>de</strong>la a cada<br />
álbum. E já lá vão<br />
nove, ao longo <strong>de</strong><br />
uma carreira com quase vinte anos.<br />
“Devil’s Halo” é mais uma <strong>de</strong>ssas<br />
obras on<strong>de</strong> para além dos géneros –<br />
soul, rock, jazz, funk – expõe sempre<br />
intensida<strong>de</strong> e letras que<br />
complexificam temas <strong>de</strong> sexo,<br />
género, amor, política. Muitas vezes<br />
conotada com o centro do mercado,<br />
por ter sido uma das pioneiras do<br />
mo<strong>de</strong>rno R&B e por ter feito parte<br />
das apostas <strong>de</strong> Madonna na editora<br />
Maverick, a americana é alguém<br />
difícil <strong>de</strong> situar, mais aventureira e<br />
livre do que algumas das figuras<br />
conotadas com linguagens<br />
alternativas. Talvez o nova-iorquino<br />
Carl Hancock Rux seja alguém que<br />
se aproxime <strong>de</strong>la, na forma orgânica<br />
como se relaciona com a música.<br />
Mas mesmo assim nos últimos<br />
álbuns tem ido por outros<br />
territórios, nunca escolhendo<br />
trajectórias fáceis. Seria uma pena se<br />
o novo álbum – agora editado na<br />
Europa, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o ter sido em<br />
Dezembro, nos EUA – passasse<br />
<strong>de</strong>spercebido. Na maior parte das<br />
canções há uma voz profunda, um<br />
som encorpado, que começa por<br />
norma <strong>de</strong> forma subtil, segregando<br />
intimida<strong>de</strong>s, para ser <strong>de</strong>sconstruído<br />
com virulência. É uma obra diversa,<br />
que se <strong>de</strong>senvolve entre a<br />
envolvência jazzistica <strong>de</strong> “Tie one<br />
on” e o rock <strong>de</strong> “Brigh shiny<br />
morning”, <strong>de</strong>ixando entrever a cada<br />
audição uma nova <strong>de</strong>scoberta. V.B.<br />
Clássica<br />
Trio ao rubro<br />
Lang Lang estreia-se na<br />
gravação <strong>de</strong> música <strong>de</strong><br />
câmara ao lado <strong>de</strong> dois<br />
gigantes. Rui Pereira<br />
Tchaikovsky e Rachmaninov<br />
Trios com piano<br />
Lang Lang, Vadim Repin e Mischa<br />
Maisky<br />
DG 4778099<br />
mmmnn<br />
Dizer-se que em<br />
música <strong>de</strong> câmara<br />
os músicos <strong>de</strong>vem<br />
ter a capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> se contagiarem<br />
uns aos outros é,<br />
geralmente, um elogio. No entanto,<br />
quando o foco <strong>de</strong> contágio dá pelo<br />
nome <strong>de</strong> Mischa Maisky, <strong>de</strong>vemos<br />
ter reservas e prescrever uma<br />
quarentena artística ou, então, uma<br />
vacina contra o “ímpeto à flor da<br />
pele”.<br />
O cenário é o seguinte: três<br />
gran<strong>de</strong>s solistas, Lang Lang, Repin e<br />
Maisky, juntos para gravarem<br />
repertório russo. Ao que parece, foi<br />
Lang Lang quem escolheu o<br />
repertório e os músicos. Começaram<br />
a gravação com o Trio elegíaco <strong>de</strong><br />
Rachmaninov, um compositor<br />
maravilhoso mas cuja música já tem,<br />
por si só, um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />
clímaxes. Mischa Maisky é um<br />
músico ímpar e com imensas<br />
Lang Lang<br />
qualida<strong>de</strong>s mas, <strong>de</strong>sculpem-me a<br />
comparação, parece um daqueles<br />
condutores que se põe a acelerar<br />
antes do semáforo passar a ver<strong>de</strong>. A<br />
sua forma <strong>de</strong> tocar é arrebatadora,<br />
disso não restam dúvidas, e até po<strong>de</strong><br />
haver quem fique rendido ao seu<br />
encanto, ou paixão, mas uma outra<br />
forma mais contida <strong>de</strong> passar esse<br />
ímpeto favorece, na maior parte dos<br />
casos, a chamada expressão <strong>de</strong><br />
emoções na música e não se torna<br />
tão cansativa. A música <strong>de</strong><br />
Tchaikovsky, o Trio à memória <strong>de</strong><br />
um gran<strong>de</strong> artista, também tem esse<br />
arrebatamento que os músicos<br />
russos tão bem expressam e, justiça<br />
seja feita, resiste melhor à<br />
interpretação ao rubro <strong>de</strong>ste trio.<br />
O veredicto é o seguinte: um trio<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s solistas ao rubro; quem<br />
gostar <strong>de</strong> arrebatamento total, da<br />
primeira à última nota, <strong>de</strong>ve ir a<br />
correr comprar o disco; quem não<br />
for sensível a esse tipo <strong>de</strong><br />
interpretação e procurar uma<br />
expressão <strong>de</strong> emoções mais contida<br />
<strong>de</strong>ve esquecer que o disco existe.<br />
Jazz<br />
Miguel Amado com<br />
“groove”<br />
Miguel Amado<br />
This is Home<br />
Toneofapitch, distri. Dargil<br />
mmmnn<br />
Além <strong>de</strong> virtuoso<br />
executante no baixo<br />
eléctrico, Miguel<br />
Amado é um<br />
músico<br />
extremamente<br />
versátil, atributos que lhe têm valido<br />
participação regular em projectos<br />
tão distintos quanto o Lisbon<br />
Un<strong>de</strong>rground Music Ensemble<br />
(LUME), o trio/quarteto do<br />
guitarrista Pedro Madaleno, o grupo<br />
sPILL, o quinteto <strong>de</strong> Rodrigo<br />
Gonçalves ou o Septeto do Hot<br />
Clube. Para tocar na maior parte das<br />
faixas <strong>de</strong>ste segundo álbum em seu<br />
nome, Amado reuniu o trompetista<br />
João Moreira, o guitarrista André<br />
Fernan<strong>de</strong>s, o pianista/teclista Ruben<br />
Alves e o baterista Vicky, contando<br />
ainda com a participação especial do<br />
baixista Yuri Daniel e do baterista<br />
Alexandre Frazão numa faixa, do<br />
baterista Bruno Pedroso em duas<br />
faixas e do percussionista João<br />
Ferreira noutras quatro.<br />
Tudo começa bem com “Yellow<br />
box”, tema com um balanço<br />
irresistível e com belíssimas<br />
improvisações por João Moreira e<br />
pelo próprio Miguel Amado. O<br />
melhor do álbum é ouvido ainda em<br />
“The one you know”, “Fatherhood”<br />
(tema que apresenta Amado no<br />
contrabaixo, em<br />
trio com<br />
Pedroso e<br />
Fernan<strong>de</strong>s, n<strong>de</strong>s,<br />
e que soa<br />
como uma<br />
composição osição<br />
do<br />
guitarrista) rista)<br />
e “Five<br />
steps”,<br />
on<strong>de</strong><br />
mais<br />
uma vez<br />
se<br />
<strong>de</strong>staca<br />
João<br />
Moreira ra e<br />
o seu<br />
minucioso ioso<br />
controlo olo dos<br />
pedais <strong>de</strong> efeitos. Outras faixas,<br />
como a mais africana “Mojo dance”<br />
ou o explícito “Rock attempt”,<br />
ambas valorizadas pela prestação <strong>de</strong><br />
André Fernan<strong>de</strong>s, contribuem <strong>de</strong><br />
forma mais mo<strong>de</strong>sta para o sucesso<br />
do disco, sendo bem menos<br />
interessante o que se passa na faixatítulo<br />
e na escusada <strong>de</strong>monstração<br />
<strong>de</strong> virtuosismo <strong>de</strong> Amado e dos<br />
convidados Yuri Daniel e Alexandre<br />
Frazão numa versão <strong>de</strong> “Solar” (<strong>de</strong><br />
Miles Davis, o único não original do<br />
álbum). Absolutamente dispensável<br />
é a faixa <strong>de</strong> encerramento do álbum,<br />
na qual, com gosto bastante<br />
questionável, Amado e Ruben Alves<br />
<strong>de</strong>sfilam os seus instrumentos ao<br />
ritmo <strong>de</strong> quem vai apagar fogo.<br />
“This is Home” po<strong>de</strong>rá não<br />
garantir o interesse da ala mais<br />
purista <strong>de</strong> amantes do jazz, mas não<br />
<strong>de</strong>ixa por isso <strong>de</strong> estar recheado <strong>de</strong><br />
situações capazes <strong>de</strong> seduzir<br />
ouvidos mais sequiosos do<br />
tipo <strong>de</strong> “groove” raramente<br />
presente no tal jazz dito<br />
mais puro. Paulo<br />
Barbosa<br />
Miguel Amado: po<strong>de</strong> não<br />
interessar aos puristas,<br />
mas seduzirá os sequiosos<br />
<strong>de</strong> “groove”<br />
Ípsilon • Sexta-feira 7 Maio 2010 • 55