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O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?

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Sexta-feira<br />

29 Abril 2011<br />

www.ipsilon.pt<br />

O país <strong>de</strong> <strong>poetas</strong> per<strong>de</strong>u o <strong>medo</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>ser</strong> <strong>um</strong> país <strong>de</strong> <strong>narradores</strong>?<br />

David Machado e a sua geração<br />

RUI GAUDÊNCIO ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 7684 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE<br />

MichelangeloFrammartinoLeonardoPaduraOliveira JPSimõesAfonsoPaisTiagoSousa


DIA MUNDIAL<br />

DA DANÇA<br />

29 ABRIL<br />

DIRECÇÃO ARTÍSTICA<br />

LUÍSA TAVEIRA<br />

UMA COISA<br />

EM FORMA DE<br />

Estreia Absoluta<br />

ASSIM<br />

COREOGRAFIA<br />

CLARA ANDERMATT, FRANCISCO CAMACHO,<br />

BENVINDO FONSECA, RUI LOPES GRAÇA,<br />

RUI HORTA, PAULO RIBEIRO, OLGA RORIZ,<br />

MADALENA VICTORINO, VASCO WELLENKAMP<br />

MÚSICA E INTERPRETAÇÃO<br />

BERNARDO SASSETTI (PIANO)<br />

DESENHO DE LUZ CELESTINO VERDADES<br />

LISBOA,<br />

TEATRO CAMÕES<br />

ABRIL 2011<br />

dias 28, 29 e 30 às 21h<br />

dia 30 às 16h (Tar<strong>de</strong> Família)<br />

MAIO 2011<br />

dias 06 e 07 às 21h<br />

dia 08 às 16h (Tar<strong>de</strong> Família)<br />

ESCOLAS dia 05 <strong>de</strong> Maio às 15h<br />

BILHETES €5 A €20<br />

TEATRO CAMÕES DIAS DE ESPECTÁCULO // 21 892 34 77<br />

TEATRO NACIONAL DE SÃO CARLOS SEGUNDA A SEXTA DAS 13H ÀS 19H // 21 325 30 45 / 6<br />

TICKETLINE WWW.TICKETLINE.PT // 707 234 234<br />

LOJAS ABREU, FNAC, WORTEN, EL CORTE INGLÉS, C.C.DOLCE VITA<br />

Fotografia © Cláudia Varejão<br />

www.cnb.pt<br />

facebook.com/cnbportugal<br />

Apoios à divulgação:<br />

M/6


Flash<br />

S<strong>um</strong>ário<br />

David Machado 6<br />

À frente <strong>de</strong> <strong>um</strong>a geração <strong>de</strong><br />

<strong>narradores</strong>?<br />

Leonardo Padura 12<br />

Detective atrás <strong>de</strong> Tróstki, e<br />

<strong>de</strong> Ramón Merca<strong>de</strong>r<br />

Pedro Mexia 16<br />

O poeta invisível<br />

Michelangelo<br />

Frammartino 20<br />

O cinema reencarna em “As<br />

Quatro Voltas”<br />

Manoel <strong>de</strong> Oliveira 24<br />

Ao espelho em “O Estranho<br />

Caso <strong>de</strong> Angélica”<br />

Julião Sarmento 32<br />

Ensaio sobre o <strong>de</strong>sejo<br />

Afonso Pais e JP Simões 36<br />

Juntos em “On<strong>de</strong> Mora o<br />

Mundo”<br />

Peter Brook 39<br />

Um teatro encantado<br />

Tânia Machado 41<br />

Multiplicada por 20<br />

Ficha Técnica<br />

Directora Bárbara Reis<br />

Editor Vasco Câmara,<br />

Inês Nadais (adjunta)<br />

Conselho editorial Isabel<br />

Coutinho, Nuno Crespo, Cristina<br />

Fernan<strong>de</strong>s, Vítor Belanciano<br />

Design Mark Porter,<br />

Simon Esterson, Kuchar Swara<br />

Directora <strong>de</strong> arte Sónia Matos<br />

Designers Ana Carvalho,<br />

Carla Noronha, Mariana Soares<br />

Editor <strong>de</strong> fotografia<br />

Miguel Ma<strong>de</strong>ira<br />

E-mail: ipsilon@publico.pt<br />

Filme <strong>de</strong> Banksy<br />

vem com <strong>de</strong>bates,<br />

exposição e “site”<br />

A sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> continua por<br />

revelar, mas isso não o impe<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>ser</strong> <strong>um</strong> dos mais conhecidos artistas<br />

britânicos. Em “Banksy – Pinta a<br />

Pare<strong>de</strong>!”, o doc<strong>um</strong>entário que<br />

estreia em Portugal a 26 <strong>de</strong> Maio,<br />

este activista político que tem<br />

lutado para que os “graffiti” não<br />

sejam vistos como actos <strong>de</strong><br />

vandalismo, mas como formas <strong>de</strong><br />

expressão artística e <strong>de</strong><br />

participação cívica, segue vários<br />

artistas para contar parte da<br />

história da “street culture”.<br />

Banksy começa por focar a câmara<br />

em Thierry Guetta, <strong>um</strong> imigrante<br />

francês que ganha a vida em Los<br />

Angeles com <strong>um</strong>a pequena loja <strong>de</strong><br />

roupa “vintage” e que se <strong>de</strong>ixa<br />

fascinar pelos “graffiters” e o seu<br />

mundo nocturno ao <strong>de</strong>scobrir que<br />

o seu primo é Inva<strong>de</strong>r, <strong>um</strong> famoso<br />

“street artist”, através do qual virá a<br />

conhecer <strong>um</strong> vasto grupo <strong>de</strong> que<br />

fazem parte Monsieur André, Zevs,<br />

Shepard Fairey, Neck Face, Swoon e<br />

Borf.<br />

Habituado a criticar a exclusão<br />

social, a perseguição aos imigrantes<br />

ou a violência israelita na Faixa <strong>de</strong><br />

Gaza, por vezes com <strong>um</strong> incrível<br />

sentido <strong>de</strong> h<strong>um</strong>or, Banksy fez <strong>de</strong><br />

“Exit Through the Gift Shop” (título<br />

original) mais <strong>um</strong> manifesto em que<br />

se reflecte sobre o valor da arte e o<br />

seu papel.<br />

Em Portugal, a estreia <strong>de</strong>ste filme,<br />

premiado no festival <strong>de</strong> cinema<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Sundance em<br />

2010 e nomeado para o Oscar <strong>de</strong><br />

Melhor Doc<strong>um</strong>entário já este ano,<br />

vai estar associada a <strong>um</strong> ciclo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>bates nas livrarias Fnac <strong>de</strong> Lisboa<br />

e do Porto e contará ainda com a<br />

proximida<strong>de</strong> da exposição “A Rua<br />

Continua” (Galeria <strong>de</strong> Arte Urbana<br />

da Câmara Municipal <strong>de</strong> Lisboa),<br />

paralelamente à qual <strong>ser</strong>á lançado o<br />

“site” www.galeriaurbana.pt, que<br />

propõe <strong>um</strong> roteiro da arte urbana<br />

<strong>de</strong> Lisboa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o 25 <strong>de</strong> Abril até à<br />

actualida<strong>de</strong>.<br />

O doc<strong>um</strong>entário<br />

<strong>de</strong> Banksy chega<br />

a 26 <strong>de</strong> Maio<br />

Figura frágil em contramão<br />

na pop dos anos 80,<br />

autoproclamado profeta<br />

do quarto sexo, vegetariano<br />

furioso, rei <strong>de</strong> todas as<br />

ambiguida<strong>de</strong>s: Morrissey<br />

é <strong>um</strong> livro em branco<br />

que ele próprio irá preencher<br />

A autobiografia <strong>de</strong> Morrissey<br />

vem a caminho.<br />

Vamos saber mais sobre ele?<br />

Johnny Rogan tentou e<br />

Morrissey passou a odiá-lo.<br />

“Pessoalmente, espero que<br />

Johnny Rogan acabe os seus<br />

dias muito em breve n<strong>um</strong><br />

aci<strong>de</strong>nte em ca<strong>de</strong>ia na M3<br />

[<strong>um</strong>a auto-estrada<br />

inglesa]”, disse o vocalista<br />

dos Smiths, a propósito da<br />

biografia não autorizada<br />

publicada em 1993. Outros<br />

tentaram e continua a<br />

saber-se pouco, muito<br />

pouco, sobre este<br />

aglutinador <strong>de</strong> contrários:<br />

figura frágil em contramão<br />

na pop triunfante dos anos<br />

1980; tímido venerado por<br />

milhares; figura nem<br />

masculina, nem feminina,<br />

nem abertamente gay,<br />

autoproclamado “profeta<br />

do quarto sexo”; livro em<br />

branco para <strong>ser</strong><br />

preenchido.<br />

O mistério sempre<br />

circundou a vida e as<br />

múltiplas e contraditórias<br />

“personas” <strong>de</strong> Steven<br />

Patrick Morrissey (o<br />

vegetariano furioso, o<br />

<strong>de</strong>sbocado que às vezes soa<br />

como <strong>um</strong> racista <strong>de</strong>clarado,<br />

o rei <strong>de</strong> todas as<br />

ambiguida<strong>de</strong>s). E eis que<br />

Morrissey anuncia que está<br />

quase a acabar a<br />

autobiografia que começou<br />

a escrever há três anos –<br />

virá daí luz para <strong>de</strong>sfazer a<br />

br<strong>um</strong>a?<br />

À BBC Radio 4, o cantor<br />

explicou em que ponto vai:<br />

“Atingi o segundo rascunho,<br />

estou na fase dos<br />

melhoramentos”. No<br />

próximo ano o livro já<br />

po<strong>de</strong>rá estar nas bancas.<br />

À sua maneira, já afirmou<br />

que – suprema lata <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

gigante – quer que o livro<br />

seja lançado na série<br />

“Classics” da Penguin (on<strong>de</strong><br />

está publicada gente como<br />

James Joyce, Platão, Mark<br />

Twain, Émile Zola, Charles<br />

Dickens e muitos outros<br />

nomes consensuais). Mas<br />

avisa, também,<br />

mi<strong>ser</strong>abilista, que o texto<br />

– que já vai em 660 páginas<br />

– po<strong>de</strong> não <strong>ser</strong> assim tão<br />

brilhante (isto quando há<br />

milhares <strong>de</strong> fãs a contar os<br />

dias até porem as mãos no<br />

livro). “Eu não sou assim<br />

tão interessante, por isso<br />

não sei por que é que<br />

escrevi tanto”, disse à BBC.<br />

“Abor<strong>de</strong>i toda a minha vida.<br />

Questiono-me se 660<br />

páginas não <strong>ser</strong>ão<br />

<strong>de</strong>masiadas para as pessoas<br />

suportarem. E, <strong>de</strong>pois,<br />

sento-me e penso se seis<br />

páginas não <strong>ser</strong>ão já<br />

<strong>de</strong>masiadas. Não sei.<br />

Confuso”.<br />

Em 2008, também à BBC,<br />

quando anunciou que ia<br />

pôr as suas memórias em<br />

livro, enunciou os seus<br />

objectivos. “Há tanta<br />

porcaria a <strong>ser</strong> escrita sobre<br />

mim e, às vezes, é difícil<br />

viver com isso porque tudo<br />

se fun<strong>de</strong> e se transforma no<br />

que és, no teu legado”,<br />

disse, como se não tivesse a<br />

mínima responsabilida<strong>de</strong><br />

pela nuvem <strong>de</strong> mistério em<br />

seu torno.<br />

A batalha pela edição da<br />

obra já está em curso há<br />

alg<strong>um</strong> tempo. No ano<br />

passado, <strong>um</strong> editor da<br />

Faber disse que lançar o<br />

livro preencheria o seu<br />

“sonho <strong>de</strong> editor mais<br />

persistente”. Mas o coração<br />

<strong>de</strong> Morrissey está na<br />

Penguin: “Gostaria que<br />

fosse lançado pela Penguin,<br />

mas só se eles o publicarem<br />

como Clássico. (…) Não vejo<br />

porque não – <strong>um</strong> clássico<br />

contemporâneo”. Pedro<br />

Rios<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 3


Flash<br />

Os Grateful Dead vão ressuscitar n<strong>um</strong> álb<strong>um</strong> com versões <strong>de</strong> Bon Iver, Fleet Foxes, Steve Reich...<br />

Os<br />

National<br />

adoram<br />

os Grateful<br />

Dead e vão<br />

prová-lo<br />

Senhoras e senhores, meninos e<br />

meninas, os National estão a<br />

preparar <strong>um</strong> regresso em gran<strong>de</strong> - e<br />

não, não se trata <strong>de</strong> <strong>um</strong> álb<strong>um</strong><br />

novo. Gente solidária, responsável<br />

há <strong>um</strong> par <strong>de</strong> anos por “Dark Was<br />

The Night”, compilação produzida<br />

pelos gémeos Aaron e Bryce<br />

Dessner (baixista e guitarrista da<br />

banda) que contou com a<br />

colaboração <strong>de</strong> Feist, Decemberists,<br />

Arca<strong>de</strong> Fire ou Spoon e cujos lucros<br />

reverteram para associações <strong>de</strong> luta<br />

contra a sida, os National reinci<strong>de</strong>m<br />

Desta vez, não se trata apenas <strong>de</strong><br />

juntar <strong>um</strong>a série <strong>de</strong> amigos <strong>de</strong> bom<br />

gosto impoluto e chamá-los a<br />

oferecer os seus talentos à<br />

beneficência. Os National estão a<br />

tratar, novamente em conjunto com<br />

a associação Red Hot, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

compilação, preparem-se, <strong>de</strong>dicada<br />

exclusivamente aos Grateful Dead,<br />

banda fulcral do psica<strong>de</strong>lismo <strong>de</strong><br />

São Francisco, banda fulcral, <strong>de</strong>pois<br />

disso, no renascimento da música<br />

<strong>de</strong> raízes norte-americana mas,<br />

causa directa do seu péssimo<br />

posicionamento na escala <strong>de</strong><br />

“coolness” da música popular,<br />

também responsável pelo<br />

nascimento <strong>de</strong> <strong>um</strong>a seita <strong>de</strong> freaks e<br />

hippies reunida sob a <strong>de</strong>signação<br />

“Deadheads”, bem como pela<br />

fundação <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong><br />

aborrecidíssimas bandas <strong>de</strong> jam<br />

como os conhecidos Phish.<br />

O baixista Scott Devendorf<br />

confirmou à “Spinner” que o<br />

trabalho está a começar e que,<br />

neste momento, a gran<strong>de</strong> questão<br />

que se coloca aos National é<br />

escolher correctamente a canção<br />

dos Dead em que pegar – tendo em<br />

conta o tom <strong>de</strong> voz <strong>de</strong> Matt<br />

Berninger, Devendorf diz que estão<br />

a apontar para “Box of rain”,<br />

canção <strong>de</strong> “American Beauty” que<br />

marca o início da viragem dos Dead<br />

para a folk e country.<br />

O álb<strong>um</strong> só estará pronto daqui a<br />

cerca <strong>de</strong> <strong>um</strong> ano, mas os National já<br />

sabem o que querem. Nada <strong>de</strong><br />

bandas <strong>de</strong> jam tricotando solos<br />

intermináveis. Depois <strong>de</strong> inquiridos<br />

alguns amigos para <strong>de</strong>scobrir se<br />

têm discos dos Grateful Dead<br />

escondidos em casa, já há alg<strong>um</strong>as<br />

confirmações: os Fleet Foxes estão<br />

entusiasmados, Bon Iver também.<br />

O compositor Steve Reich, amigo <strong>de</strong><br />

Phil Lesh, baixista dos autores <strong>de</strong><br />

“Box of rain”, também já foi<br />

“intimado” a participar. E<br />

Devendorf preten<strong>de</strong> atrair bandas<br />

inesperadas: “Seria incrível ter os<br />

Crystal Castles”, exclamou à<br />

“Spinner”.<br />

Taschen completa<br />

edição mon<strong>um</strong>ental<br />

<strong>de</strong>dicada a Lloyd<br />

Wright<br />

Frank Lloyd<br />

Wright<br />

(1867-1959)<br />

Com o lançamento, a 15 <strong>de</strong> Maio, <strong>de</strong><br />

“Frank Lloyd Wright (1985-1916)”, a<br />

Taschen culminará a sua<br />

mon<strong>um</strong>ental edição, em três<br />

vol<strong>um</strong>es, <strong>de</strong>dicada à obra daquele<br />

que é consi<strong>de</strong>rado por muitos o<br />

mais influente arquitecto<br />

americano <strong>de</strong> todos os tempos.<br />

Centrado no período inicial da<br />

longa carreira <strong>de</strong> Wright, este<br />

primeiro vol<strong>um</strong>e – o terceiro na<br />

or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> publicação – abarca <strong>um</strong>a<br />

década <strong>de</strong>cisiva no percurso <strong>de</strong><br />

Lloyd Wright; os anos que vão <strong>de</strong><br />

1896 a 1906, quando concebeu e<br />

<strong>de</strong>senvolveu o conceito da “prairie<br />

house”, que viria a exercer <strong>um</strong>a<br />

profunda influência em muitos<br />

arquitectos europeus.<br />

Escrito por Bruce Brooks Pfeiffer,<br />

director dos Arquivos Frank Lloyd<br />

Wright, o livro, editado para a<br />

Taschen por Peter Gössel, passa<br />

minuciosamente em revista todos<br />

os projectos do arquitecto, quer os<br />

mais <strong>de</strong> 500 que foram<br />

efectivamente construídos, quer os<br />

que nunca chegaram a sair do<br />

papel, e que são sensivelmente<br />

outros tantos.<br />

Lloyd Wright (1867-1959) <strong>de</strong>fendia<br />

<strong>um</strong>a concepção orgânica da<br />

arquitectura, que resultasse n<strong>um</strong>a<br />

relação harmónica entre a<br />

habitação h<strong>um</strong>ana e o mundo<br />

natural, <strong>um</strong>a missão que só julgava<br />

possível levar a cabo se o arquitecto<br />

interviesse não apenas no <strong>de</strong>senho<br />

das estruturas, mas também no<br />

interior das casas – <strong>de</strong>senhando,<br />

por exemplo, o mobiliário – e no<br />

espaço que as ro<strong>de</strong>ia. O exemplo<br />

mais flagrante <strong>de</strong>sta ambição <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a arquitectura perfeitamente<br />

integrada na natureza é a sua<br />

célebre “Casa da Cascata”,<br />

projectada nos anos 30 do século<br />

XX.<br />

A casa, enquanto sítio on<strong>de</strong> se<br />

mora e trabalha no dia-a-dia,<br />

esteve sempre no centro das<br />

preocupações <strong>de</strong> Lloyd Wright,<br />

mas o arquitecto projectou todo<br />

o tipo <strong>de</strong> edifícios, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> escolas,<br />

bibliotecas e museus a igrejas,<br />

hotéis e pontes. E tanto se<br />

entusiasmava em projectar a<br />

pequena casa i<strong>de</strong>al para <strong>um</strong><br />

trabalhador remediado como <strong>um</strong><br />

edifício público tão grandioso e<br />

arrojado como o Museu<br />

Guggenheim <strong>de</strong> Nova Iorque.<br />

N<strong>um</strong> inquérito nacional lançado em<br />

1991, nos EUA, pelo American<br />

Institute of Architects, Frank Lloyd<br />

Wright foi consi<strong>de</strong>rado “o maior<br />

arquitecto americano <strong>de</strong> todos os<br />

tempos”, e a sua “Casa da Cascata”,<br />

construída na Pensilvânia, foi eleita<br />

“a melhor obra <strong>de</strong> sempre da<br />

arquitectura americana”.<br />

Palácio <strong>de</strong> Belém<br />

edita poesia<br />

A Presidência da República vai<br />

editar em CD a sessão <strong>de</strong> poesia que<br />

o Palácio <strong>de</strong> Belém acolheu a 21 <strong>de</strong><br />

Março do ano passado e que reuniu,<br />

entre outros, as actrizes Eunice<br />

Muñoz (lendo a “Tabacaria” <strong>de</strong><br />

Álvaro <strong>de</strong> Campos) e Emília<br />

Silvestre (que interpretou “A Carta<br />

da Corcunda para o Serrano”, <strong>de</strong><br />

Fernando Pessoa), o escritor Vasco<br />

Graça Moura (em “Nocturno”, <strong>de</strong><br />

David Mourão-Ferreira) e a fadista<br />

Carminho (n<strong>um</strong>a passagem do<br />

“Livro do Desassossego”, do<br />

heterónimo Bernardo Soares). O<br />

disco regista ainda as intervenções<br />

<strong>de</strong> Filipa Leal (que diz o seu poema<br />

“Hoje Também os Carros<br />

Dançam”), Tiago Torres Silva (“Vou<br />

N<strong>um</strong> Rio”), Ricardo Ribeiro, Ana<br />

Sofia Varela e Lara Li, que tal como<br />

Amália Rodrigues em tempos, canta<br />

“Barco Negro” <strong>de</strong> David Mourão-<br />

Ferreira.<br />

Os lucros da venda do CD<br />

reverterão para <strong>um</strong>a causa social<br />

escolhida por Maria Cavaco Silva. A<br />

sessão po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> vista, em formato<br />

ví<strong>de</strong>o, na página oficial da<br />

Presidência da República.<br />

Carminho<br />

canta <strong>um</strong>a<br />

passagem<br />

do “Livro do<br />

Desassossego”<br />

no CD<br />

DANIEL ROCHA<br />

João Tabarra<br />

“big in” Coreia<br />

João Tabarra continua o seu<br />

périplo por terras orientais.<br />

Depois do Japão, é a vez da<br />

Coreia do Sul. O artista<br />

português vai participar com o<br />

filme “SEA ©” no 12º Festival<br />

Internacional <strong>de</strong> Cinema <strong>de</strong><br />

Jeonju, integrado na secção<br />

“Focus on Portuguese<br />

Cinema”, que também inclui<br />

obras <strong>de</strong> António Reis e<br />

Margarida Cor<strong>de</strong>iro, António<br />

da Cunha Telles, Fernando<br />

Lopes, António Campos,<br />

Manoel <strong>de</strong> Oliveira, João César<br />

Monteiro, entre outros<br />

cineastas nacionais. O festival,<br />

que começou ontem e encerra<br />

a 5 <strong>de</strong> Maio, é <strong>um</strong> dos mais<br />

importantes do Extremo<br />

Oriente na divulgação <strong>de</strong><br />

cinema in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e <strong>de</strong><br />

autor (Apichatpong<br />

Weerasethakul, Suwa<br />

Nobuhiro ou Denis<br />

Coté foram alguns<br />

dos vencedores da<br />

competição<br />

internacional).<br />

Mas Tabarra não se<br />

fica pela sala do<br />

cinema. Na mesma<br />

cida<strong>de</strong>, na<br />

JIFFtheque, <strong>um</strong><br />

espaço <strong>de</strong> arte e<br />

cinema, mostra ví<strong>de</strong>o<br />

e fotografia, no<br />

âmbito das<br />

comemorações dos 50 anos<br />

das relações diplomáticas<br />

entre Portugal e a Coreia do<br />

Sul. A exposição chama-se “I<br />

could live here” e é partilhada<br />

com o artista coreano Park<br />

Chang-Kyong, que venceu <strong>um</strong><br />

Urso <strong>de</strong> Ouro no Festival <strong>de</strong><br />

Berlim com a curta-metragem<br />

“Night Fishing”, assinada a<br />

meias com o irmão, Park Chan-<br />

Wook, o realizador <strong>de</strong><br />

“Oldboy” (2003) e “Thirst”<br />

(2009).<br />

O autor <strong>de</strong> “O encantador <strong>de</strong><br />

Serpentes” (2007) vai<br />

conduzir, ainda, <strong>um</strong>a<br />

conferência e <strong>um</strong> “workshop”,<br />

a 13 <strong>de</strong> Maio, na Universida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Artes da Coreia, em Seul,<br />

com o professor japonês<br />

Atsushi Sugita, da<br />

Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Arte e Design<br />

<strong>de</strong> Joshibi. Este convite<br />

surgiu no seguimento <strong>de</strong><br />

“The age of microvoyage”,<br />

a colectiva em<br />

que participou em<br />

2010 ao lado <strong>de</strong> Pedro<br />

Costa, Miguel Palma e<br />

Maria Lusitano, no<br />

Museu <strong>de</strong> Arte <strong>de</strong><br />

Joshibi, no Japão. José<br />

Marmeleira<br />

João Tabarra leva<br />

<strong>um</strong> flme, ví<strong>de</strong>o e fotografia<br />

ao Extremo Oriente<br />

PEDRO CUNHA<br />

4 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


AGENDA CULTURAL<br />

FNAC<br />

ENTRADA LIVRE<br />

LANÇAMENTOS EXPOSIÇOES<br />

APRESENTAÇÕES MÚSICA AO VIVO<br />

MÚSICA AO VIVO<br />

NICOLE EITNER<br />

I am You<br />

Um disco em forma <strong>de</strong> diário, mas sem factos, com canções inspiradas no amor entre<br />

as pessoas. Alexandre Frazão na bateria, Miguel Menezes no contrabaixo, Viviena<br />

Tupikova ao violino e piano e voz pela própria Nicole Eitner.<br />

29/04 SEX 21H00 ALFRAGIDE<br />

30/04 SÁB 21H30 COLOMBO<br />

01/05 DOM 17H00 CASCAISHOPPING<br />

MÚSICA AO VIVO<br />

VIVIANE<br />

13/05 SEX 18H00 STA. CATARINA<br />

13/05 SEX 22H00 GAIASHOPPING<br />

14/05 SÁB 17H00 GUIMARÃESHOPPING<br />

14/05 SÁB 22H00 BRAGA<br />

15/05 DOM 17H00 NORTESHOPPING<br />

As Pequenas Gavetas do Amor<br />

Uma viagem pelo Universo do Fado, do Musette e da Chanson, com convidados especiais<br />

como António Zambujo, Luís Varatojo e Custódio Castelo.<br />

29/04 SEX 22H00 GAIASHOPPING<br />

30/04 SÁB 17H00 CHIADO<br />

01/05 DOM 17H00 COLOMBO<br />

14/05 SÁB 22H00 COIMBRA<br />

15/05 DOM 17H00 LEIRIASHOPPING<br />

MÚSICA AO VIVO<br />

SINDICATO DO CREDO<br />

Alba Só<br />

Nos 10 anos da morte <strong>de</strong> Sebastião Alba, o Sindicato do Credo - colectivo<br />

multidisciplinar <strong>de</strong> performances poéticas - homenageia o poeta bracarense através <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong> espectáculo que evoca o seu percurso incondicionalmente livre e insubmisso.<br />

30/04 SÁB 16H00 STA. CATARINA<br />

MÚSICA AO VIVO<br />

X-WIFE<br />

Infectious Affectional<br />

Um álb<strong>um</strong> carregado <strong>de</strong> elementos <strong>de</strong> herança Disco cruzados <strong>de</strong> forma irrepreensível<br />

com a sua leitura única do universo do pós-Punk.<br />

02/05 SEG 18H00 STA. CATARINA<br />

02/05 SEG 22H00 NORTESHOPPING<br />

LANÇAMENTO<br />

MISTÉRIOS DE LISBOA<br />

Filme <strong>de</strong> Raúl Ruiz<br />

A adaptação do romance homónimo <strong>de</strong> <strong>um</strong> dos nomes maiores da literatura portuguesa<br />

é apresentado por João Lopes, com a presença <strong>de</strong> Paulo Branco e dos actores Maria<br />

João Bastos, Adriano Luz, Albano Jerónimo, Joana <strong>de</strong> Verona e Luís Arrais.<br />

05/05 QUI 19H30 CHIADO<br />

apoio:<br />

Consulte a AGENDA FNAC também em:<br />

www.culturafnac.pt


“Irrita-me que em<br />

Portugal as histórias<br />

sejam postas <strong>de</strong> parte”<br />

“Deixem Falar as Pedras”, o segundo romance <strong>de</strong> David<br />

Machado, é talvez o momento mais conseguido <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

nova geração <strong>de</strong> escritores portugueses que confia<br />

fortemente no po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>um</strong>a boa história. Depois <strong>de</strong><br />

termos sido <strong>um</strong> país <strong>de</strong> <strong>poetas</strong>, teremos perdido o <strong>medo</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>ser</strong> <strong>um</strong> país <strong>de</strong> <strong>narradores</strong>? João Bonifácio<br />

Não se <strong>de</strong>ve subestimar o po<strong>de</strong>r do<br />

tempo e da mudança. Há dois anos,<br />

quando David Machado lançou o seu<br />

segundo livro para adultos e primeiro<br />

<strong>de</strong> contos, confessava que se via mais<br />

como escritor <strong>de</strong> histórias curtas e<br />

precisas, mas que era complicado<br />

convencer <strong>um</strong>a editora a apostar nesse<br />

género. Se for preciso <strong>um</strong> exemplo<br />

para corroborar esta i<strong>de</strong>ia, o escritor<br />

e crítico Pedro Mexia, com quem falámos<br />

sobre a nova vaga <strong>de</strong> <strong>narradores</strong><br />

portugueses, oferece-a <strong>de</strong> bom<br />

grado: “Olha-se para a obra do João<br />

Aguiar, que escreve romances históricos<br />

e escreveu <strong>um</strong> livro <strong>de</strong> contos,<br />

e vemos nas cintas publicitárias ‘segunda<br />

edição, terceira edição, quarta<br />

edição’. Depois chega o livro <strong>de</strong> contos<br />

e diz só ‘livro <strong>de</strong> contos’, porque<br />

nunca foi reeditado. Ninguém compra”.<br />

Aparentemente, por cá, aquilo a<br />

que os americanos chamam “short<br />

story”, e que <strong>ser</strong>ve <strong>de</strong> preâmbulo a<br />

empreitadas maiores, não parece ter<br />

cultores.<br />

Pelo que acaba por fazer sentido<br />

que, ao terceiro livro, Machado diga,<br />

entre goles <strong>de</strong> chá e <strong>um</strong>a gripe mal<br />

curada, que gosta “muito <strong>de</strong> escrever<br />

contos”, mas o romance “tem <strong>um</strong>a<br />

exigência em termos <strong>de</strong> estrutura que<br />

é muito <strong>de</strong>safiante”: perante o inevitável<br />

(ter <strong>de</strong> escrever romances), nada<br />

melhor do que olhar para a tarefa<br />

como <strong>um</strong> <strong>de</strong>safio.<br />

Por estes dias, Machado tem dois<br />

livros para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r e não podiam<br />

estar mais afastados entre si: “A Mala<br />

Voadora” é o seu quinto livro para<br />

crianças, “Deixem Falar as Pedras” é<br />

o seu segundo romance.<br />

A violência do romance não encontra<br />

– obviamente – eco no livro infantil.<br />

Machado – que mais mês menos<br />

mês irá <strong>ser</strong> pai pela segunda vez – convive<br />

há muito com esta dicotomia entre<br />

a escrita para miúdos e para graúdos<br />

e não menoriza minimamente a<br />

primeira. “Tem coisas extremamente<br />

recompensadoras”, diz este economista<br />

<strong>de</strong> formação que começou a<br />

escrever a tempo inteiro quando per<strong>de</strong>u<br />

o emprego: “De certa forma, foi<br />

a melhor coisa que me aconteceu,<br />

porque me permitiu concentrar-me<br />

exclusivamente na escrita”.<br />

José Riço Direitinho, extraordinário<br />

escritor português cujo regresso à<br />

edição começa a ass<strong>um</strong>ir proporções<br />

sebastiânicas e que fez o prefácio ao<br />

livro <strong>de</strong> contos <strong>de</strong> Machado, confirma<br />

esse lado laborioso, intenso, do trabalho<br />

<strong>de</strong> Machado: “O David é escritor<br />

a sério. Ele fica <strong>de</strong> manhã à noite a<br />

escrever e reescrever, todos os dias.<br />

É isso que <strong>um</strong> escritor faz”.<br />

É pelo menos isso que permite que<br />

David, sem gran<strong>de</strong>s mecanismos publicitários<br />

ao seu redor, sobreviva<br />

praticamente só da escrita ou dos<br />

seus, chamemos-lhe, <strong>de</strong>rivados: além<br />

dos livros dá aulas <strong>de</strong> escrita criativa<br />

<strong>de</strong> Literatura Infantil n<strong>um</strong>a escola<br />

chamada Escrever Escrever, traduz e<br />

faz idas a escolas, escreve para crianças.<br />

“Com as idas a escolas acontecem<br />

coisas extraordinárias”, como “ir a<br />

Abrantes, falar para 700 miúdos que<br />

põem perguntas e no fim dar 150 autógrafos”,<br />

conta. “Isto nunca aconteceria<br />

com os meus livros para adultos.<br />

Quando muito estariam quatro pessoas<br />

na sala”, diz, ass<strong>um</strong>indo sem<br />

peias que há, na alegria da miudagem,<br />

<strong>um</strong>a massagem ao ego do escritor que<br />

lhe é benéfica.<br />

A massagem ao ego tem, além disso,<br />

<strong>um</strong>a vantagem para a carteira:<br />

“Pagam-me 250 euros por ida. Não é<br />

nada mau, pois não? Eu não acho<br />

mau”, continua, com <strong>um</strong> à vonta<strong>de</strong><br />

que é raro nas letras portuguesas: ele<br />

é <strong>um</strong> daqueles casos que surgem apenas<br />

muito <strong>de</strong> vez em quando e em que<br />

não se sente pose, em que cada palavras<br />

dita parece correspon<strong>de</strong>r exclusivamente<br />

ao que quer dizer em vez<br />

<strong>de</strong> obe<strong>de</strong>cer a <strong>um</strong> guião. O que lhe<br />

permite dizer coisas como: “O que<br />

acho mais interessante na literatura<br />

é que po<strong>de</strong>mos contar <strong>um</strong>a história<br />

<strong>de</strong> infinitas maneiras” com <strong>um</strong> maravilhamento<br />

expectável n<strong>um</strong> principiante,<br />

mas não em alguém que já<br />

ac<strong>um</strong>ulou <strong>um</strong> certo repertório.<br />

Com a mesma abertura explica-nos<br />

ainda como funciona o mundo da edição<br />

infantil – os seus quatro livros infantis<br />

anteriores ven<strong>de</strong>ram 20 mil<br />

exemplares, mas o que retira <strong>de</strong>les é<br />

menos do que o que retira dos romances,<br />

porque tem <strong>de</strong> dividir os direitos<br />

com o ilustrador. E – acrescenta – o<br />

preço <strong>de</strong> capa é bastante menor. “Se<br />

o preço por unida<strong>de</strong> fosse o mesmo<br />

eu ficaria bastante satisfeito”, ass<strong>um</strong>e.<br />

Um salto e a maturida<strong>de</strong><br />

Talvez fosse a isto, a este não-estarcom-merdas,<br />

que Riço Direitinho se<br />

referia quando falava em <strong>ser</strong>ieda<strong>de</strong><br />

– <strong>um</strong>a <strong>ser</strong>ieda<strong>de</strong> que é certamente<br />

responsável pelo salto admirável em<br />

termos <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong> que encontramos<br />

em “Deixem Falar as Pedras”,<br />

quando comparado com “O Fabuloso<br />

Teatro do Gigante” com que se estreou<br />

na ficção para maiores <strong>de</strong> 12<br />

anos, ou mesmo quando comparado<br />

com “Histórias Possíveis”, a acima<br />

mencionada colectânea <strong>de</strong> 16 histórias<br />

curtas que publicou no início <strong>de</strong><br />

2009.<br />

A maturação visível que Machado<br />

alcança com “Deixem Falar as Pedras”<br />

não é <strong>um</strong> caso insólito, mas é talvez<br />

– <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá da opinião <strong>de</strong> cada <strong>um</strong><br />

– o momento mais conseguido <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

geração <strong>de</strong> escritores que confia fortemente<br />

na narração, <strong>um</strong>a geração<br />

que teve em José Luís Peixoto o seu<br />

primeiro ícone e que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então viu<br />

surgir nomes tão díspares como João<br />

Tordo, Hugo Gonçalves, Vasco Luís<br />

Curado, Francisco Camacho ou valter<br />

hugo mãe, este mais dado a lirismo.<br />

No caso <strong>de</strong> Machado, essa maturida<strong>de</strong><br />

vem a par <strong>de</strong> <strong>um</strong>a ligeira mudança<br />

tonal: on<strong>de</strong> antes havia <strong>um</strong>a<br />

espécie <strong>de</strong> véu reminiscente do fantástico,<br />

agora encontramo-lo bem<br />

mais atreito ao real. “Eu gosto do<br />

O livro<br />

tinha <strong>de</strong><br />

<strong>ser</strong> narrado<br />

por alguém<br />

que não<br />

tivesse muita<br />

consciência<br />

do passado,<br />

alguém<br />

que ainda<br />

acreditasse<br />

que o passado<br />

po<strong>de</strong> <strong>ser</strong><br />

vasculhado e<br />

que com isso<br />

algo po<strong>de</strong><br />

mudar<br />

6 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


RUI GAUDÊNCIO<br />

David Machado, economista<br />

<strong>de</strong> formação, tornou-se escritor<br />

a tempo inteiro <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter<br />

ficado sem emprego: “De certa<br />

forma, foi a melhor coisa<br />

que me aconteceu”<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 7


VASCO LUÍS CURADO<br />

Psicólogo <strong>de</strong> 38 anos, foi finalista do Prémio Leya.<br />

Editou recentemente “A Vida Verda<strong>de</strong>ira” - livro com<br />

o qual não concorreu ao Prémio Leya. Especialista<br />

em criação <strong>de</strong> ambientes.<br />

JOÃO TORDO<br />

Escritor, guionista e tradutor, nasceu em Lisboa em<br />

1975, e é autor <strong>de</strong> quatro romances, o mais recentes<br />

dos quais “O Bom Inverno”. O seu romance <strong>de</strong> 2008,<br />

“As Três Vidas”, valeu-lhe o Prémio Saramago.<br />

Especialista em enredos.<br />

HUGO GONÇALVES<br />

Nascido em 1976, foi jornalista da “Focus” antes <strong>de</strong><br />

sair <strong>de</strong> Portugal e encetar <strong>um</strong>a série <strong>de</strong> colaborações<br />

com várias publicações, a mais recente das quais<br />

<strong>um</strong>a crónica diária no jornal “i”. Tem três romances<br />

editados, todos <strong>de</strong>vedores <strong>de</strong> <strong>um</strong>a escrita limpa e<br />

urbana, o mais recente dos quais “Fado, Samba e<br />

Beijos com Língua”. Não se sabe se é especialista<br />

nesta última categoria.<br />

AFONSO CRUZ<br />

Ilustrador e realizador <strong>de</strong> filmes <strong>de</strong> animação, nasceu<br />

na Figueira da Foz em 1971. O seu livro “Enciclopédia<br />

da Estória Universal” granjeou-lhe o Prémio <strong>de</strong> Conto<br />

Camilo Castelo Branco. Leva cinco livros publicados.<br />

Especialista em pequenos quadros auto-limitados.<br />

NUNO OLIVEIRA/ ARQUIVO<br />

MIGUEL MANSO<br />

RUI GAUDÊNCIO<br />

Narrar<br />

ou não<br />

narrar, eis<br />

a geração<br />

Contar histórias terá sido mal visto em<br />

Portugal em tempos idos, mas parece <strong>ser</strong><br />

<strong>um</strong>a mais-valia para a geração <strong>de</strong> escritores<br />

que tem entre 30 e 40 anos.<br />

Não terá sido por acaso que a<br />

apresentação do último romance<br />

<strong>de</strong> David Machado esteve a<br />

cargo <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Carvalho, <strong>um</strong><br />

dos mais exímios <strong>narradores</strong><br />

nacionais. “Deixem Falar as<br />

Pedras” exibe qualida<strong>de</strong>s que<br />

certamente agradarão ao autor<br />

<strong>de</strong> “Era Bom que Trocássemos<br />

Umas I<strong>de</strong>ias Sobre o Assunto”:<br />

controlo dos tempos da<br />

narrativa, sub-narrativas bemenjorcadas,<br />

<strong>de</strong>senho cuidado<br />

das personagens secundárias.<br />

São marcas que, mais do que<br />

<strong>um</strong> estilo, <strong>de</strong>finem, pelo labor<br />

e pelo brio, <strong>um</strong> tipo <strong>de</strong> escritor:<br />

o narrador, o contador <strong>de</strong><br />

histórias – mesmo que no caso<br />

<strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Carvalho isso venha<br />

acompanhado cada vez mais <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong> extenuante trabalho sobre a<br />

linguagem.<br />

Ser <strong>um</strong> contador <strong>de</strong> histórias<br />

terá ou não sido mal visto neste<br />

território em tempos idos – as<br />

opiniões divi<strong>de</strong>m-se –, mas<br />

parece <strong>ser</strong> <strong>um</strong>a mais-valia em<br />

tempos mais recentes ou para<br />

as gerações mais recentes, pelo<br />

menos a que tem entre 30 a 40<br />

anos.<br />

Uma série <strong>de</strong> escritores<br />

fez do cuidado com a trama e<br />

dos tempos da revelação da<br />

informação o seu “métier”:<br />

JoãoTordo, diz o crítico Pedro<br />

Mexia, “é o que mais pratica<br />

essa fé”, n<strong>um</strong>a “versão mais<br />

sofisticada <strong>de</strong> narração”, com<br />

<strong>um</strong> lado “metanarrativo forte,<br />

<strong>de</strong> explicação da própria<br />

narração ou dos mecanismos da<br />

narração”.<br />

Não é caso único: José Luís<br />

Peixoto talvez seja o mais<br />

famoso <strong>de</strong>les, mas nomes<br />

como Vasco Luís Curado, Hugo<br />

Gonçalves, mesmo Francisco<br />

Camacho (se bem que o autor<br />

<strong>de</strong> “Niassa” seja una anos<br />

mais velho) <strong>ser</strong>ão, em última<br />

instância, consi<strong>de</strong>rados<br />

<strong>narradores</strong> puros. A questão<br />

que se põe é: houve ou não<br />

<strong>um</strong> preconceito em relação à<br />

narração pura e há ou não nesta<br />

nova geração <strong>um</strong> <strong>de</strong>spudor face<br />

aos mecanismos clássicos da<br />

regra e do esquadro narrativo?<br />

As respostas, como sempre,<br />

divergem. José Riço Direitinho,<br />

escritor cujo tempo <strong>de</strong><br />

procriação está alinhado pelo<br />

cometa Halley, e crítico do<br />

Ípsilon, diz que “há <strong>um</strong> certo<br />

regresso à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> narração,<br />

8 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


sim”, “mas também nunca<br />

se saiu por completo <strong>de</strong> lá”.<br />

Direitinho vai <strong>um</strong> pouco mais<br />

longe afiançando que “nunca<br />

sequer houve <strong>um</strong> mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

romance português – mesmo o<br />

Eça copiava muito”.<br />

(Embora aqui fosse útil<br />

acrescentar que, não recuando<br />

muito no tempo, Camilo, Raul<br />

Brandão e João Araújo Correia<br />

– nos contos – são certamente<br />

mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> <strong>um</strong>a certa escrita<br />

tremendamente portuguesa.)<br />

Sugerimos a Mexia que esta<br />

geração <strong>de</strong> escritores talvez<br />

procure a narrativa por reacção<br />

ao duplo espartilho Saramago-<br />

Lobo-Antunes, escritores que<br />

tiveram o condão <strong>de</strong> secar tudo<br />

à sua volta, inclusive o seu<br />

próprio talento. Ou então por<br />

reacção a toda <strong>um</strong>a geração<br />

<strong>de</strong> escritores-Maio-<strong>de</strong>-68-<br />

experimentalistas.<br />

O crítico consi<strong>de</strong>ra <strong>ser</strong><br />

“excessivo dizer que houve<br />

<strong>um</strong>a vaga experimentalista<br />

em Portugal”. “Só há quatro<br />

ou cinco nomes relevantes<br />

experimentalistas. E não<br />

eram particularmente<br />

inovadores – apesar <strong>de</strong> <strong>ser</strong>em<br />

gran<strong>de</strong>s escritores, o Ruben<br />

A ou o Nuno Bragança não<br />

fizeram experiências que já<br />

não tivessem sido feitas lá<br />

fora. E estavam longe <strong>de</strong> <strong>ser</strong> o<br />

‘mainstream’”.<br />

Mas Mexia conce<strong>de</strong> que<br />

hoje há <strong>um</strong> bom número <strong>de</strong><br />

“romances com <strong>um</strong> enredo<br />

muito bem <strong>de</strong>lineado” e que<br />

“isso [ao contrário do que<br />

acontecia antigamente] já não<br />

dá má fama”. Acima <strong>de</strong> tudo,<br />

diz Mexia, “hoje os jovens<br />

ficcionistas falam <strong>de</strong> <strong>um</strong>a forma<br />

mais <strong>de</strong>sinibida e frontal <strong>de</strong><br />

narração”. Ou isso ou, diz, são<br />

influenciados pela melopeia <strong>de</strong><br />

Lobo Antunes, como no caso <strong>de</strong><br />

Pedro Vieira, cujo ouvido Mexia<br />

gabou recentemente, ao mesmo<br />

tempo que lhe diagnosticava<br />

problemas na criação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

estrutura romanesca.<br />

Uma geração mais livre<br />

Esta opinião tem pontos<br />

<strong>de</strong> encontro com a <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

personagem fundamental no<br />

<strong>de</strong>sabrochar <strong>de</strong> <strong>um</strong>a série <strong>de</strong><br />

nomes <strong>de</strong>sta nova geração,<br />

Maria do Rosário Pedreira.<br />

Para a editora, “havia qualquer<br />

coisa contra a história com agá<br />

pequeno”. Pedreira consi<strong>de</strong>ra<br />

que estes autores, “por já terem<br />

crescido n<strong>um</strong> mundo livre,<br />

mais <strong>de</strong>scomprometido”, não<br />

sentem “a obrigação <strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer<br />

literatura engajada”, <strong>um</strong> tipo <strong>de</strong><br />

literatura que marcou as letras<br />

portuguesas até à ascensão<br />

<strong>de</strong> Lobo Antunes. (Porque é<br />

impossível não ver Saramago<br />

como <strong>um</strong> moralista engajado.)<br />

Mas Maria do Rosário recusa<br />

que a narrativa seja “o foco<br />

<strong>de</strong>stes novos autores”: “Nem<br />

todos são <strong>narradores</strong> no sentido<br />

<strong>de</strong> contarem <strong>um</strong>a história”,<br />

diz, dando o exemplo <strong>de</strong> valter<br />

hugo mãe, em cujos livros não<br />

está em causa “a história, mas a<br />

forma como ele conta a história”.<br />

Mexia também realça “<strong>um</strong> certo<br />

embalo <strong>de</strong> linguagem” na obra<br />

do escritor que, diz, “mais do<br />

que <strong>de</strong> <strong>um</strong>a narrativa, consiste<br />

<strong>de</strong> pequenas cenas, por vezes<br />

quase ínfimas”.<br />

“Havia qualquer<br />

coisa contra<br />

a história com agá<br />

pequeno. Os novos<br />

autores não sentem a<br />

obrigação <strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer<br />

literatura engajada”<br />

Maria do Rosário<br />

Pedreira<br />

A ter <strong>de</strong> reduzir todo o escritor<br />

nascido na geração <strong>de</strong> 70 n<strong>um</strong><br />

<strong>de</strong>nominador com<strong>um</strong>, talvez<br />

ele seja aquilo a que Maria<br />

do Rosário Pedreira chama<br />

“liberda<strong>de</strong> para escrever sobre o<br />

que qui<strong>ser</strong>em”.<br />

Liberda<strong>de</strong> para escrever<br />

sobre o que qui<strong>ser</strong>em, usando<br />

linguagem enxuta, <strong>de</strong> gente<br />

que anda no mundo, ou então o<br />

oposto: no último caso teríamos<br />

a “história da narrativa em<br />

miniatura” que caracteriza<br />

Afonso Cruz, ou os jogos lógicos<br />

<strong>de</strong> Gonçalo M. Tavares; no<br />

primeiro, teríamos as dúvidas<br />

metafísico-sexuais <strong>de</strong> Mónica<br />

Marques (que está muito longe<br />

<strong>de</strong> <strong>ser</strong> <strong>um</strong>a narradora no sentido<br />

estrito do termo) ou – e aqui sim,<br />

temos alguém que procura <strong>ser</strong><br />

<strong>um</strong> narrador – a “escrita urbana,<br />

preocupada com a legibilida<strong>de</strong>”<br />

<strong>de</strong> Hugo Gonçalves, a quem<br />

Mexia chama “o anti Gonçalo M.<br />

Tavares”.<br />

Esta é <strong>um</strong>a geração que, ao<br />

contrário das que a prece<strong>de</strong>ram,<br />

“abraça a cultura anglófona”<br />

e tem <strong>um</strong>a forte “influência e<br />

cultura <strong>de</strong> cinema e <strong>de</strong> séries <strong>de</strong><br />

televisão”, para usar os termos<br />

<strong>de</strong> Maria do Rosário Pedreira,<br />

que lembra que no seu tempo<br />

“havia dois canais e <strong>um</strong> filme<br />

por semana” e que “todos estes<br />

filmes e séries <strong>de</strong> hoje têm <strong>um</strong>a<br />

cultura narrativa muito forte”.<br />

Pegando por essa ponta<br />

– a <strong>de</strong> <strong>um</strong> certo <strong>de</strong>splante<br />

–, Mexia lembra que houve<br />

pre<strong>de</strong>cessores, lembrando que<br />

“Mário <strong>de</strong> Carvalho e Luísa Costa<br />

Gomes levaram as brinca<strong>de</strong>iras<br />

com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> narrar mais longe<br />

e trouxeram <strong>um</strong>a dimensão<br />

lúdica ao romance português”.<br />

“Esse sim”, continua, “talvez<br />

tenha sido <strong>um</strong> momento<br />

essencial”. Uma posição que<br />

não <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>sagradar a Riço<br />

Direitinho, para quem estes<br />

novos escritores, na maior parte<br />

dos casos, “fazem livros que são<br />

fáceis <strong>de</strong> ler”. Já não se trata<br />

tanto <strong>de</strong> criadores, no termo<br />

antigo do termo, mas <strong>de</strong> “gente<br />

que tem <strong>de</strong> escrever <strong>um</strong> livro<br />

<strong>de</strong> dois em dois anos”. “Há <strong>um</strong>a<br />

pressão dos editores e <strong>de</strong>les<br />

próprios para o fazer. Sabes<br />

quando po<strong>de</strong>s esperar <strong>um</strong> novo<br />

romance do José Luís Peixoto<br />

porque já passou <strong>um</strong> certo<br />

tempo”.<br />

Ou seja: haverá <strong>de</strong> novo <strong>um</strong>a<br />

instituição da figura-escritor,<br />

mas agora <strong>de</strong> forma mais<br />

mundana. O que, diz, Direitinho,<br />

“é positivo, excepto se se<br />

estabelecer a bitola da gran<strong>de</strong><br />

literatura por aqui”. Porque,<br />

diz, “<strong>um</strong>a coisa é escrever,<br />

outra coisa é escrever com<br />

as tripas”. J.B.<br />

Não ouvi<br />

estas<br />

histórias [<strong>de</strong><br />

violência]<br />

a ninguém.<br />

Vi filmes<br />

americanos<br />

suficientes<br />

para <strong>ser</strong><br />

capaz <strong>de</strong><br />

escrever estas<br />

cenas<br />

fantástico”, diz, como que a esclarecer<br />

que o autor <strong>de</strong> “Histórias Possíveis”<br />

não <strong>de</strong>sapareceu, “mas no sentido<br />

em que faz parte da nossa metáfora<br />

colectiva: as lendas, os mitos,<br />

etc”.<br />

Curiosamente, “Deixem Falar as<br />

Pedras” também tem o seu quê <strong>de</strong><br />

lendas e mitos, ainda que abordadas<br />

<strong>de</strong> outra forma: em vez <strong>de</strong> lendas e<br />

mitos colectivos, temos <strong>um</strong> homem<br />

cuja vida é lendária, vida cujos factos<br />

foram mitificados (por ele e pelos outros<br />

outros).<br />

“Deixem Falar as Pedras” é a rocambolesca<br />

história <strong>de</strong> Nicolau Manuel,<br />

<strong>um</strong> homem que, no dia do seu casamento,<br />

foi tomado como cúmplice <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong> agrupamento <strong>de</strong> guerrilheiros espanhóis<br />

e injustamente preso – após<br />

o que é <strong>de</strong>sterrado, torturado, ensur<strong>de</strong>cido<br />

a tiro <strong>de</strong> pistola, provando todos<br />

os pães que o diabo conseguia<br />

amassar neste território chamado Portugal<br />

no tempo da outra senhora.<br />

É curioso que o livro narre a história<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> homem que é surdo, pormenor<br />

quase h<strong>um</strong>orístico mas que,<br />

diz Machado, “dá mais profundida<strong>de</strong><br />

e verosimilhança à personagem”. Entre<br />

outras razões, pelo menos justifica<br />

o facto <strong>de</strong> o velho estar sempre a<br />

berrar, para sofrimento da família.<br />

“Quando se <strong>de</strong>fine alguém com algo<br />

muito específico”, diz, “dá-se-lhe credibilida<strong>de</strong>.<br />

Quando as qualida<strong>de</strong>s são<br />

pouco <strong>de</strong>finidas, o leitor assimila-as<br />

mas elas não marcam. Assim tornamse<br />

reais”.<br />

Mas o que torna o livro raro é o facto<br />

<strong>de</strong> a história <strong>ser</strong> narrada pelo neto<br />

<strong>de</strong> Nicolau Manuel, n<strong>um</strong> diário em<br />

que escreve não só as memórias do<br />

avô como o processo que o leva a contar<br />

essas memórias à noiva que ele<br />

per<strong>de</strong>u. As memórias, verda<strong>de</strong>iras ou<br />

falsas, que o avô lhe transmite (e que<br />

mais ninguém quis ouvir) fazem eco<br />

na solidão <strong>de</strong> Val<strong>de</strong>mar, <strong>um</strong> rapaz<br />

anafado, perdido <strong>de</strong> amores pela vizinha<br />

anoréctica, que recorre não<br />

raras vezes à violência para resolver<br />

os seus problemas. Em certo sentido,<br />

Val<strong>de</strong>mar herda a dor do avô – como<br />

adolescente revê-se nesse homem<br />

idoso que é <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> marginal.<br />

O que chega ao leitor já não é a verda<strong>de</strong>ira<br />

história <strong>de</strong> Nicolau Manuel,<br />

mas essa história filtrada pela memória<br />

<strong>de</strong> Nicolau e pelas eventuais distorções<br />

<strong>de</strong> Val<strong>de</strong>mar – o que torna<br />

“Deixem Falar as Pedras” n<strong>um</strong> trabalho<br />

sobre a memória e a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />

“A memória é falível, permeável,<br />

sofre acrescentos e subtracções”, vai<br />

dizendo Machado. “Nunca é a verda<strong>de</strong>”.<br />

Contrapor passado<br />

e presente<br />

É essa ambiguida<strong>de</strong> da memória, na<br />

impossibilida<strong>de</strong> que temos <strong>de</strong> viver<br />

sem ela mas também na impossibilida<strong>de</strong><br />

que temos <strong>de</strong> não a alterar, que<br />

explica o nascimento da personagem<br />

do neto adolescente: “Não é importante<br />

saber se o que o puto conta é<br />

verda<strong>de</strong> ou não”, diz Machado. O que<br />

importa é que “o facto <strong>de</strong> <strong>ser</strong> o neto<br />

a contar a história enfatiza o po<strong>de</strong>r<br />

da memória”, que é, <strong>de</strong> certo modo,<br />

a personagem central do romance.<br />

“O miúdo”, vai dizendo Machado,<br />

“tem <strong>um</strong>a série <strong>de</strong> conflitos e só tem<br />

<strong>um</strong>a relação aberta com o avô”. A voz<br />

<strong>de</strong>ste rapaz foi o gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio do<br />

romance, “a coisa mais difícil <strong>de</strong> conseguir”.<br />

“Foi difícil não cair em clichés”,<br />

ass<strong>um</strong>e, até porque a verosimilhança<br />

da personagem era essencial<br />

para contar a história como<br />

Machado queria: “O livro tinha <strong>de</strong> <strong>ser</strong><br />

narrado por alguém que não tivesse<br />

muita consciência do passado, tinha<br />

<strong>de</strong> <strong>ser</strong> alguém que ainda acreditas-<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 9


se que o passado po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> vasculhado<br />

e que com isso algo po<strong>de</strong> mudar”.<br />

Des<strong>de</strong> que lhe surgiu a i<strong>de</strong>ia para o<br />

romance que havia <strong>um</strong> objectivo principal:<br />

“Contrapor passado e presente”,<br />

através do jogo entre o avô e o<br />

neto, o campo e a cida<strong>de</strong>.<br />

Este é <strong>um</strong> dos aspectos centrais <strong>de</strong><br />

“Deixem Falar as Pedras”, porque<br />

permite contrapor dois países, <strong>um</strong><br />

país rural sob o jugo do fascismo e<br />

outro país urbano afectado por múltiplas<br />

maleitas <strong>de</strong> nomes menos grandiosos<br />

do que “fascismo”, mas ainda<br />

assim ten<strong>de</strong>ntes a <strong>um</strong> “mal <strong>de</strong> vivre”<br />

simbolizado pela anorexia da miúda,<br />

pela disfunção da família, pela gordura<br />

e pela violência <strong>de</strong> Val<strong>de</strong>mar.<br />

O país rural do romance situa-se em<br />

Lagares, lugar imaginário que já tinha<br />

<strong>ser</strong>vido como cenário ao primeiro<br />

romance. É inspirado em Ruivães, “a<br />

al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem a família do lado<br />

da mãe”, mas não surge por vonta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> criar <strong>um</strong> território só seu (não há<br />

nada <strong>de</strong> Faulkner em Machado), nem<br />

por obsessão <strong>de</strong> <strong>um</strong> escritor urbano<br />

com a província, muito menos por<br />

estilização, antes pela mais simples<br />

das razões: era <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> resolver<br />

<strong>um</strong> problema. “Usei Lagares porque<br />

havia <strong>um</strong> grupo <strong>de</strong> guerrilheiros espanhóis,<br />

e tinha <strong>de</strong> ter <strong>um</strong> lugar bem<br />

<strong>de</strong>finido para eles”.<br />

O grupo <strong>de</strong> guerrilheiros espanhóis<br />

– que po<strong>de</strong> ou não <strong>ser</strong> <strong>um</strong> grupo <strong>de</strong><br />

guerrilheiros espanhóis – é <strong>um</strong> dos<br />

achados e <strong>um</strong>a muito bem conseguida<br />

incursão na (por assim dizer) história<br />

paralela da violência em território<br />

nacional. Essa parte do livro passase<br />

quando Nicolau Manuel está noivo<br />

e vai casar e nos arrabal<strong>de</strong>s da al<strong>de</strong>ia<br />

acampam uns espanhóis que se diz<br />

andarem fugidos da Guerra Civil <strong>de</strong><br />

Espanha.<br />

David não só apanha bem esse lado<br />

português do diz-que-an<strong>de</strong>m-fugidos,<br />

como o usa para iniciar a tremenda<br />

queda <strong>de</strong> Nicolau Manuel: ele é apontado<br />

à polícia como apoiante da causa<br />

terrorista, n<strong>um</strong>a confusão i<strong>de</strong>ntitária<br />

com o seu irmão. Um truque literário<br />

que lembra Adolfo Bioy<br />

Casares, que David Machado aliás traduziu.<br />

Quando se dá o 25 <strong>de</strong> Abril, Nicolau<br />

Manuel continua a <strong>ser</strong> perseguido.<br />

“Achei tremendamente divertida essa<br />

i<strong>de</strong>ia”, diz Machado – e ficamos a pensar<br />

que Bioy Casares também acharia.<br />

Toda a parte “espanhola” do livro,<br />

antes da saga <strong>de</strong> torturas infernais a<br />

que Nicolau Manuel é sujeito, tem simultaneamente<br />

<strong>um</strong> lado revelador (a<br />

já mencionada relação escondida que<br />

a nação tem com a violência) e lúdico.<br />

O curioso é que o autor não reclama<br />

nenh<strong>um</strong>a portugalida<strong>de</strong> na criação<br />

<strong>de</strong>ssas cenas específicas. Antes pelo<br />

contrário: “Isto basicamente são histórias<br />

<strong>de</strong> índios e cowboys na <strong>ser</strong>ra”.<br />

Apesar do valor que atribui ao trabalho<br />

duro <strong>de</strong> escrita, Machado diz<br />

não ter precisado <strong>de</strong> falar com ninguém<br />

que tenha presenciado histórias<br />

semelhantes: “Não ouvi estas histórias<br />

a ninguém. Vi filmes americanos suficientes<br />

para <strong>ser</strong> capaz <strong>de</strong> escrever estas<br />

cenas. Doc<strong>um</strong>entei-me com livros<br />

e o resto inventei. Tive <strong>de</strong> me doc<strong>um</strong>entar<br />

porque a história passa-se n<strong>um</strong>a<br />

época que não vivi. Mas isto não é<br />

<strong>um</strong> romance histórico. Não era importante<br />

contar <strong>um</strong>a história tal como<br />

aconteceu durante a ditadura”.<br />

“Deixem Falar<br />

as Pedras”<br />

resulta do<br />

confronto da<br />

escrita <strong>de</strong><br />

David<br />

Machado com<br />

o trabalho <strong>de</strong><br />

edição <strong>de</strong><br />

Maria do<br />

Rosário<br />

Pedreira, que<br />

ele contactou<br />

através do<br />

Facebook<br />

Acabo <strong>um</strong>a<br />

versão e fico<br />

frustrado. Só<br />

duas semanas<br />

<strong>de</strong>pois é que<br />

me apetece<br />

voltar a pegar<br />

naquilo. Mas<br />

a frustração<br />

é importante,<br />

é o que faz<br />

voltar lá e<br />

tentar outra<br />

vez<br />

A saga <strong>de</strong> <strong>um</strong>a obsessão<br />

Para <strong>um</strong> livro sobre as consecutivas<br />

<strong>de</strong>sgraças <strong>de</strong> <strong>um</strong> homem que sofre<br />

tudo, contado por <strong>um</strong> neto que sofre<br />

bastante, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> <strong>ser</strong> curioso que<br />

nada disso tenha sido o que surgiu<br />

primeiro. “O que surgiu primeiro foi<br />

o alfaiate, que se quer matar sem morrer”.<br />

O alfaiate é o homem que <strong>de</strong>nuncia<br />

Nicolau, o homem que almeja<br />

ficar-lhe com a noiva. “Comecei a<br />

construir a história do avô a partir<br />

daí”. O que se segue é <strong>um</strong>a saga: não<br />

a <strong>de</strong> Nicolau mas a <strong>de</strong> David, a procurar<br />

o próprio livro.<br />

“Escrevi o primeiro capítulo 18 ou<br />

19 ou 20 vezes”, confessa, sem que<br />

pareça haver no seu discurso qualquer<br />

resquício daqueles lobo-antunismos<br />

literários (“ai, a mão”, “ai, o<br />

trabalho”, “ai, a mão que trabalha”):<br />

“Comecei a contar do ponto <strong>de</strong> vista<br />

do alfaiate, do ponto <strong>de</strong> vista do avô,<br />

do ponto <strong>de</strong> vista do miúdo”.<br />

O primeiro capítulo era – como<br />

muitas vezes é, na literatura, como<br />

<strong>um</strong> primeiro plano o é no cinema, ou<br />

<strong>um</strong>a primeira canção na música popular<br />

– <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> obsessão, não<br />

apenas porque marca do encontro do<br />

leitor com as páginas mas também<br />

porque “<strong>de</strong> alg<strong>um</strong>a forma o primeiro<br />

capítulo é o último capítulo, o livro é<br />

circular, o último encerra elementos<br />

do primeiro”.<br />

As 18 versões do primeiro capítulo<br />

<strong>de</strong>moraram-lhe “nove meses”. “O resto<br />

<strong>de</strong>morou <strong>um</strong> ano”. Um ano <strong>de</strong> tentativa<br />

e erro, mas não <strong>um</strong> ano estrito<br />

<strong>de</strong> escrita diária: “Acabo hoje <strong>um</strong>a<br />

versão e fico frustrado, pelo que só<br />

duas semanas <strong>de</strong>pois é que me apetece<br />

voltar a pegar naquilo”, confessa.<br />

“Mas a frustração é importante, é o<br />

que faz voltar lá e tentar outra vez”.<br />

Machado, que só se senta para escrever<br />

quando tem “<strong>um</strong>a série <strong>de</strong><br />

momentos chave para [se] orientar”,<br />

é <strong>um</strong> sujeito notoriamente metódico:<br />

no seu livro anterior todos os contos<br />

tinham o mesmo exacto número <strong>de</strong><br />

páginas. Neste também é preciso: “todos<br />

os capítulos têm, mais coisa menos<br />

coisa, 25 páginas”.<br />

E o mesmo se po<strong>de</strong> dizer do seu<br />

método <strong>de</strong> trabalho, pelo menos nas<br />

alturas em que está a escrever diariamente:<br />

“Acordo <strong>de</strong> manhã cedo, leio<br />

qualquer coisa e escrevo até às seis<br />

horas”.<br />

Mas <strong>de</strong>sta feita ele tinha alguém a<br />

quem se reportar, <strong>um</strong> eco que lhe <strong>de</strong>volvia<br />

<strong>um</strong>a visão menos engajada do<br />

progresso do romance: Maria do Rosário<br />

Pedreira, conhecida por <strong>ser</strong> a<br />

editora portuguesa mais próxima do<br />

que os anglo-saxónicos chamam “editor”:<br />

alguém que, <strong>de</strong> facto, edita.<br />

Rosário Pedreira não teve <strong>de</strong> correr<br />

atrás <strong>de</strong> Machado para trabalhar com<br />

ele. Bastou-lhe dizer o que pensava<br />

da sua escrita n<strong>um</strong>a rádio.<br />

“No programa do Carlos Vaz Marques,<br />

ele perguntou à Maria do Rosário<br />

Pedreira se havia alg<strong>um</strong> escritor<br />

que lhe tivesse escapado e ela disse o<br />

meu nome. Fui ao Facebook, encontrei-a<br />

e man<strong>de</strong>i-lhe <strong>um</strong>a mensagem.<br />

Nessa altura já tinha o romance bem<br />

encaminhado”.<br />

O que <strong>de</strong>scobriu <strong>de</strong>pois foi que Rosário<br />

Pedreira “edita mesmo”, o que<br />

para ele foi <strong>um</strong>a alegria: “Sempre achei<br />

que <strong>um</strong> livro <strong>de</strong>via <strong>ser</strong> trabalhado assim”.<br />

“Ela não resolve problemas, põete<br />

a pensar sobre eles. Pergunta ‘O que<br />

é que preten<strong>de</strong>s com isto?’. E eu é que<br />

tenho <strong>de</strong> resolver o problema. E nunca<br />

diz ‘Este final não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong>’. Se eu<br />

achar que <strong>um</strong>a coisa tem mesmo <strong>de</strong><br />

ficar assim, fica assim”.<br />

Talvez o acima mencionado salto<br />

<strong>de</strong> maturida<strong>de</strong> na escrita <strong>de</strong> Machado<br />

venha <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong>ssa companhia,<br />

<strong>de</strong>sse olhar <strong>de</strong> fora que pergunta “Para<br />

que é que isto <strong>ser</strong>ve?”. Ou então é<br />

o simples crescimento <strong>de</strong> <strong>um</strong> escritor<br />

que acredita em contar histórias:<br />

“Irrita-me que em Portugal as histórias<br />

sejam postas <strong>de</strong> parte”.<br />

E que em vez <strong>de</strong> chorar sobre o leite<br />

<strong>de</strong>rramado, foi à procura da teta<br />

da vaca.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> livros na pág. 48 e segs.<br />

RUI GAUDÊNCIO<br />

10 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


JOSEF NADJ<br />

Les Corbeaux<br />

CCVF Guimarães 11 Mai, 22:00<br />

Teatro <strong>de</strong> Vila Real 13 Mai, 22:00<br />

Theatro Circo Braga 16 Mai, 21:30<br />

TeCA Porto 18+19 Mai, 21:30<br />

TEATRO DO MUNDO<br />

PETER BROOK<br />

Une Flûte<br />

Enchantée<br />

CCVF Guimarães 5 Mai, 22:00<br />

TeCA Porto 8+9 Mai, 21:30<br />

W.A. Mozart | Théâtre <strong>de</strong>s Bouffes du Nord França<br />

PINA BAUSCH<br />

Bamboo Blues<br />

TNSJ Porto 6+7 Mai, 21:30<br />

Sweet Mambo<br />

TNSJ Porto 11-13 Mai, 21:30<br />

Tanztheater Wuppertal Pina Bausch Alemanha<br />

SANJA MITROVIĆ<br />

Will You Ever Be<br />

Happy Again?<br />

CCVF Guimarães 9 Mai, 22:00<br />

TeCA Porto 13+14 Mai, 21:30+16:00<br />

A Short History<br />

of Crying<br />

Theatro Circo Braga 11 Mai, 21:30<br />

TeCA Porto 14 Mai, 21:30<br />

Stand Up Tall Productions | Center for Cultural<br />

Decontamination Holanda/Sérvia<br />

Centre Chorégraphique National d’Orléans França<br />

YAEL RONEN<br />

Third Generation<br />

Theatro Circo Braga 20 Mai, 21:30<br />

TNSJ Porto 21+22 Mai, 21:30+16:00<br />

Schaubühne am Lehniner Platz | Habima<br />

National Theatre Alemanha/Israel<br />

MATTHEW<br />

LENTON<br />

Saturday Night<br />

MSBV Porto 20 Mai, 18:00<br />

TNSJ Porto 15-17 Set, 21:30;<br />

18 Set, 16:00<br />

CCVF Guimarães 30 Set, 22:00<br />

Compagnia Teatrale Europea<br />

Itália/Escócia/Portugal<br />

JEAN-LOUIS<br />

MARTINELLI<br />

Médée<br />

Arcos Miragaia Porto 20-22 Mai,<br />

21:30<br />

Max Rouquette | Théâtre Nanterre-Amandiers<br />

França<br />

MOUSSA SANOU<br />

Je t’appelle <strong>de</strong> Paris<br />

TeCA Porto 21+22 Mai, 16:00<br />

Théâtre Nanterre-Amandiers França<br />

FRANK VAN<br />

LAECKE |<br />

ALAIN PLATEL<br />

Gar<strong>de</strong>nia<br />

CCVF Guimarães 27 Mai, 22:00<br />

les ballets C <strong>de</strong> la B Bélgica<br />

ANTUNES FILHO<br />

Policarpo Quaresma<br />

TNSJ Porto 28 Mai - 11 Jun, 21:30;<br />

29 Mai, 16:00<br />

Lima Barreto | Centro <strong>de</strong> Pesquisa Teatral/<br />

SESC São Paulo Brasil<br />

EMERSON DANESI<br />

Lamartine Babo<br />

TeCA Porto 4-11 Jun; 4, 5, 10 e 11,<br />

16:00; 6+7, 21:30<br />

Antunes Filho | Centro <strong>de</strong> Pesquisa Teatral/<br />

SESC São Paulo Brasil<br />

Auditório <strong>de</strong> Serralves<br />

UCI Arrábida 7-9 Mai<br />

Pina Bausch: filmes<br />

Anne Linsel, Rainer Hoffman | Wim Wen<strong>de</strong>rs |<br />

Fundação <strong>de</strong> Serralves | Midas Filmes<br />

MSBV Porto 30 Abr - 20 Mai,<br />

qua-dom 14:00-20:00<br />

Roupas <strong>de</strong> Cena<br />

João Tuna | Bernardo Monteiro | Teatro Nacional<br />

São João Portugal<br />

CCVF, TNSJ, Theatro<br />

Circo 25 Abr - 22 Mai<br />

Laboratórios<br />

criativos<br />

ORGANIZAÇÃO<br />

TNSJ, Centro Cultural<br />

Vila Flor, Theatro Circo,<br />

Teatro <strong>de</strong> Vila Real<br />

COLABORAÇÃO<br />

União dos Teatros da Europa<br />

INFORMAÇÕES<br />

www.tnsj.pt<br />

www.ccvf.pt<br />

www.theatrocirco.com<br />

www.teatro<strong>de</strong>vilareal.com<br />

imagem David R<strong>um</strong>sey Map Collection, www.davidr<strong>um</strong>sey.com <strong>de</strong>sign Joana Monteiro<br />

imagem David R<strong>um</strong>sey Map Collection, www.davidr<strong>um</strong>sey.com <strong>de</strong>sign Joana Monteiro<br />

APOIO INSTITUCIONAL<br />

O TNSJ É MEMBRO DA<br />

MECENAS TNSJ<br />

CO-FINANCIAMENTO ODISSEIA<br />

PARCEIROS MEDIA


Padura<br />

e o homem<br />

que gostava<br />

<strong>de</strong> cães<br />

Leonardo Padura escreveu <strong>um</strong><br />

romance sobre <strong>um</strong> homem que<br />

fez História, Trótski, e <strong>um</strong> homem<br />

que entrou na História porque<br />

o matou, Ramón Merca<strong>de</strong>r.<br />

Ao contar esta história real,<br />

por on<strong>de</strong> passa a perversão<br />

da utopia socialista pelo<br />

estalinismo, o povo cubano<br />

nunca lhe saiu do pensamento.<br />

Isabel Coutinho<br />

12 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


MANUEL ROBERTO<br />

Na última Feira do Livro <strong>de</strong> Cuba,<br />

que <strong>de</strong>correu em Fevereiro, em diversos<br />

locais <strong>de</strong> Havana, o novo romance<br />

<strong>de</strong> Leonardo Padura, “O Homem<br />

que Gostava <strong>de</strong> Cães”, esgotou.<br />

Uma multidão esteve horas na fila<br />

para conseguir <strong>um</strong> exemplar. E nos<br />

dias seguintes, em várias livrarias da<br />

cida<strong>de</strong>, houve <strong>um</strong> papel colado nas<br />

portas a dizer: “Já não temos livros<br />

do Padura”.<br />

O romance que trata do assassinato<br />

<strong>de</strong> Trótski e da história do seu assas-<br />

sino saiu primeiro em Espanha, em<br />

2009. Apesar do preço, muito alto<br />

para <strong>um</strong> cubano o po<strong>de</strong>r comprar (22<br />

euros, que é mais ao menos o que ganha<br />

n<strong>um</strong> mês <strong>um</strong> médico na ilha <strong>de</strong><br />

Fi<strong>de</strong>l), muitas pessoas conseguiram<br />

ter o livro, enviado por alg<strong>um</strong> amigo<br />

ou por outra via. “Muita gente tinha<br />

lido o livro, outros tinham notícias<br />

<strong>de</strong>le, e foi criada muita expectativa”,<br />

explica o escritor cubano que esteve<br />

no festival LeV- Literatura em Viagem,<br />

em Matosinhos, a lançar o romance.<br />

Foi assim que uns 200 ou 300 exemplares<br />

da edição espanhola circularam<br />

em Cuba antes <strong>de</strong> o livro ter <strong>um</strong>a<br />

edição cubana <strong>de</strong> quatro mil exemplares,<br />

vendidos a 30 pesos (cerca <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong> euro, que é ainda <strong>um</strong> preço alto<br />

para <strong>um</strong> país on<strong>de</strong> o salário médio<br />

ronda os 450 pesos).<br />

Muitas das pessoas que em Cuba<br />

têm lido o romance agra<strong>de</strong>cem ao escritor<br />

tê-lo escrito. Leonardo Padura<br />

tem <strong>um</strong>a explicação para este sentimento:<br />

“Conta <strong>um</strong>a história que<br />

tem muito a ver com os cubanos,<br />

mas que é muito <strong>de</strong>sconhecida<br />

para nós. Sobretudo quando<br />

aborda a perversão estalinista<br />

do i<strong>de</strong>al socialista:<br />

sabia-se em linhas gerais<br />

como tinha <strong>de</strong>corrido todo<br />

o processo, mas não<br />

se sabiam <strong>de</strong>talhes.<br />

Por isso foi-se<br />

criando <strong>um</strong>a expectativa<br />

em relação<br />

a esta<br />

obra.”<br />

“Ainda que as<br />

histórias se passem<br />

no século XIX ou<br />

em outros lugares,<br />

como na Turquia,<br />

país on<strong>de</strong> Trótski<br />

esteve exilado, tudo<br />

na minha literatura<br />

tem a ver com a vida<br />

em Cuba, com<br />

o presente em Cuba,<br />

com a minha<br />

experiência como <strong>ser</strong><br />

h<strong>um</strong>ano em Cuba e,<br />

sobretudo, com<br />

a experiência<br />

da minha geração”<br />

Padura escreve sempre em primeiro<br />

lugar para os leitores cubanos,<br />

porque os consi<strong>de</strong>ra o seu “público<br />

natural”. Neste romance isso aconteceu-lhe<br />

mais do que em qualquer<br />

outro. “Ainda que as histórias se passem<br />

no século XIX ou em outros lugares,<br />

como na Turquia, país on<strong>de</strong><br />

Trótski esteve exilado, tudo na minha<br />

literatura tem a ver com a vida em<br />

Cuba, com o presente em Cuba, com<br />

a minha experiência como <strong>ser</strong> h<strong>um</strong>ano<br />

em Cuba e, sobretudo, com a experiência<br />

da minha geração. É sempre<br />

<strong>um</strong>a literatura focada no que foi<br />

o sonho e no que têm sido as frustrações<br />

da minha geração”, afirma.<br />

Desta vez, Padura criou <strong>um</strong>a história<br />

que se passa em cenários muito<br />

diferentes e com personagens muito<br />

pouco conhecidas em Cuba. “No momento<br />

<strong>de</strong> escrever, eu não podia <strong>de</strong>-<br />

dicar-me a ficcionar cionar e, <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>a maneira,<br />

também tinha <strong>de</strong> explicar a <strong>um</strong><br />

potencial leitor cubano quem<br />

foram<br />

estas personagens: quem foi Trótski,<br />

o que se passou sou na disputa entre<br />

Trótski e Estaline, o que se passou no<br />

estalinismo dos anos 30. O leitor<br />

cubano viveu todos os estes anos voltado<br />

<strong>de</strong> costas para essa informação. As<br />

Surpresas durante<br />

a investigação<br />

A investigação que Leonardo Padura<br />

foi obrigado a fazer para conseguir<br />

escrever este livro foi muito complicada.<br />

“A primeira complicação é que<br />

em Cuba não existe bibliografia sobre<br />

estas personagens ou sobre estes temas.<br />

Por isso, parti <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>de</strong>sconhecimento<br />

absoluto.”<br />

Na época em que Leonardo Padura<br />

andou na universida<strong>de</strong>, era como se<br />

Trótski não existisse; <strong>de</strong> Ramón Merca<strong>de</strong>r,<br />

o seu assassino, não se sabia<br />

nada. Foi só nos anos 90 que o escritor,<br />

que ficou mundialmente conhecido<br />

por causa dos seus romances<br />

policiais com o <strong>de</strong>tective Mario Con<strong>de</strong>,<br />

começou a ter <strong>um</strong> pouco mais <strong>de</strong><br />

informação sobre Trótski e soube que<br />

Ramón Merca<strong>de</strong>r tinha vivido quatro<br />

anos em Cuba, <strong>de</strong> 1974 a 1978, e que<br />

tinha morrido em Havana. “Com estes<br />

conhecimentos, em alg<strong>um</strong>a parte da<br />

minha cabeça começou a formar-se<br />

a possível i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> fazer <strong>um</strong> romance.<br />

Passei dois anos a investigar, não fazia<br />

mais nada. Li muito, sistematizei o<br />

meu conhecimento e quando já tinha<br />

capacida<strong>de</strong> para po<strong>de</strong>r movimentar<br />

as personagens na história comecei a<br />

escrever. Isso aconteceu três anos antes<br />

<strong>de</strong> terminar o romance.” Mas durante<br />

o tempo que <strong>de</strong>morou a escrita<br />

nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> investigar: “É <strong>um</strong>a<br />

história praticamente nova que estamos<br />

a ler, porque, embora conheçamos<br />

os pontos fundamentais, todo o<br />

interior <strong>de</strong>ssa história esteve oculto<br />

durante muitos anos nos arquivos <strong>de</strong><br />

Moscovo. Uma parte importante <strong>de</strong>sses<br />

doc<strong>um</strong>entos foi sendo trabalhada,<br />

divulgada e publicada. Mas como não<br />

leio russo tinha <strong>de</strong> esperar que a informação<br />

fosse publicada em inglês<br />

ou em espanhol para po<strong>de</strong>r consultar<br />

os livros. Esse processo também me<br />

atrasou a escrita porque tive <strong>de</strong> rectificar<br />

muitos elementos ou a<strong>um</strong>en-<br />

pessoas em Cuba agra<strong>de</strong>cem-me por-<br />

que lhes ensinei <strong>um</strong>a história <strong>de</strong> que<br />

eles fazem parte e que lhes foi escon-<br />

dida durante muitos anos.”<br />

“O Homem que<br />

Gostava <strong>de</strong> Cães”<br />

preten<strong>de</strong> explicar<br />

<strong>um</strong> dos episódios<br />

que evi<strong>de</strong>nciam a perversão da utopia<br />

socialista. “Creio que o assassinato <strong>de</strong><br />

Trótski tem <strong>um</strong> carácter simbólico<br />

muito gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da perda <strong>de</strong>ssa<br />

utopia socialista. O<br />

meu livro mostra<br />

como a União Soviética, a partir da<br />

época <strong>de</strong> Estaline, sofreu <strong>um</strong> acelera-<br />

do processo <strong>de</strong> dogmatização, <strong>de</strong> per-<br />

versão, que acabou por converter o<br />

país n<strong>um</strong>a autocracia aci on<strong>de</strong> só Estali-<br />

ne <strong>de</strong>cidia. Não <strong>de</strong>cidia só o que acon-<br />

tecia na União Soviética, <strong>de</strong>cidia o que<br />

acontecia no resto<br />

dos partidos co-<br />

munistas do mundo. Quem não cor-<br />

respondia a essa ortodoxia ficava <strong>de</strong><br />

fora”, acrescenta o<br />

escritor cubano.<br />

“O sentido <strong>de</strong> perda <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong> perda <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência, en <strong>de</strong> perda<br />

<strong>de</strong> espaço para se po<strong>de</strong>r pensar, para<br />

se po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>cidir, é<br />

<strong>um</strong> dos elementos<br />

mais dramáticos <strong>de</strong>sta perversão da<br />

utopia socialista,<br />

que tinha como<br />

princípio criar <strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

houvesse o máximo<br />

<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> com<br />

o máximo <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia. Digo o mais<br />

dramático porque<br />

não <strong>de</strong>vo dizer o<br />

mais terrível; o mais terrível é o que<br />

matou mais <strong>de</strong> 20 milhões <strong>de</strong> pessoas.<br />

Entre <strong>um</strong> escritorr ou <strong>um</strong> pensador<br />

que tem <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar<br />

<strong>de</strong> escrever ou <strong>de</strong><br />

pensar e <strong>um</strong>a pessoa que morre, é<br />

muito mais dramática a morte. Mas<br />

não foi só <strong>um</strong>a pessoa, so foram milhões<br />

<strong>de</strong> pessoas, por isso<br />

há <strong>um</strong>a diferença<br />

importante”, sublinha. Além <strong>de</strong> mos-<br />

trar como se perverteu essa utopia,<br />

“O Homem que Gostava <strong>de</strong> Cães”<br />

mostra também a<br />

experiência <strong>de</strong><br />

Cuba<br />

quando adoptou o mo<strong>de</strong>lo so-<br />

viético. “O mo<strong>de</strong>lo<br />

o soviético <strong>de</strong>sapa-<br />

rece<br />

nos<br />

anos 90, mas Cuba manteve-<br />

o e continua a mantê-lo até hoje. Nes-<br />

te momento, hoje mesmo [a<br />

entrevista evis<br />

ta foi<br />

realizada no dia 16 <strong>de</strong><br />

Abril], o Partido Comunista Cubano<br />

trata <strong>de</strong> afastar-se do que significou<br />

esse mo<strong>de</strong>lo, trata <strong>de</strong> propor <strong>um</strong> mo<strong>de</strong>lo<br />

social e económico diferente.<br />

Como vão conseguir fazê-lo, e se a<br />

burocracia vai permitir que esse afastamento<br />

seja possível ou não, é algo<br />

que só o futuro dirá. Mas é evi<strong>de</strong>nte<br />

que mesmo os mais altos dirigentes<br />

cubanos se <strong>de</strong>ram conta <strong>de</strong> que tinham<br />

cometido <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> erro ao<br />

importar <strong>um</strong> sistema que já vinha doente,<br />

que já estava pervertido.”<br />

Trótski foi<br />

assassinado<br />

pela picareta<br />

<strong>de</strong> Ramón<br />

Merca<strong>de</strong>r em<br />

Agosto <strong>de</strong><br />

1940<br />

Na época em que Padura<br />

estudou na universida<strong>de</strong>, era<br />

como se Trótski não existisse:<br />

esta é <strong>um</strong>a história<br />

completamente nova para os<br />

cubanos<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 13


A abertura<br />

dos arquivos<br />

<strong>de</strong> Moscovo<br />

permite agora<br />

reler<br />

acontecimentos<br />

como a<br />

Guerra Civil<br />

Espanhola: as<br />

novida<strong>de</strong>s, diz<br />

Padura, são<br />

surpreen<strong>de</strong>ntes<br />

“O assassinato<br />

<strong>de</strong> Trótski tem <strong>um</strong><br />

carácter simbólico<br />

muito gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro<br />

da perda da utopia<br />

socialista. O meu livro<br />

mostra como a União<br />

Soviética, a partir <strong>de</strong><br />

Estaline, sofreu <strong>um</strong><br />

acelerado processo<br />

<strong>de</strong> dogmatização”<br />

tá-los, já que estava a trabalhar<br />

n<strong>um</strong> romance histórico.”<br />

À medida que ia investigando, Leonardo<br />

Padura foi surpreendido por<br />

três coisas. Primeiro, os números. Sabia<br />

que Estaline tinha <strong>de</strong>portado muitas<br />

pessoas e que nos campos <strong>de</strong> trabalho<br />

muitos tinham morrido, mas<br />

sentiu-se horrorizado porque os números<br />

se iam multiplicando e eram<br />

cada vez mais: mil, centenas <strong>de</strong> milhar,<br />

milhões <strong>de</strong> vítimas. A segunda<br />

coisa que o surpreen<strong>de</strong>u foi sentir, em<br />

todas as personagens <strong>de</strong>sta história,<br />

<strong>um</strong> sentimento <strong>de</strong> terror, que consi<strong>de</strong>ra<br />

ter sido <strong>um</strong> dos elementos que<br />

Estaline utilizou para aglutinar e governar<br />

a União Soviética. E a terceira,<br />

talvez “o mais importante <strong>de</strong> tudo”,<br />

foi <strong>um</strong>a mudança total da visão que<br />

o escritor cubano tinha do que aconteceu<br />

na Guerra Civil Espanhola. “Eu<br />

tinha <strong>um</strong>a visão muito particular da<br />

Guerra Civil Espanhola escrita pelo<br />

lado republicano, pelos comunistas<br />

do lado republicano. Quando se revela<br />

<strong>um</strong>a série <strong>de</strong> doc<strong>um</strong>entos, fica<br />

a enten<strong>de</strong>r-se como é que estes comunistas<br />

espanhóis foram manipulados,<br />

governados, dirigidos pelos<br />

assessores soviéticos e pelos assessores<br />

da Internacional Comunista.”<br />

Ficção e dramatismo<br />

No romance histórico que Leonardo<br />

Padura acabou por escrever existem<br />

três personagens, protagonistas <strong>de</strong><br />

cada <strong>um</strong>a das histórias: Trótski (conta-se<br />

a sua vida no exílio até à morte),<br />

Ramón Merca<strong>de</strong>r (o homem que preparou<br />

e cometeu o assassinato <strong>de</strong><br />

Trótski) e <strong>um</strong>a personagem completamente<br />

inventada por Padura, <strong>um</strong><br />

cubano que se chama Iván e que reúne<br />

todos os elementos <strong>de</strong>sta história<br />

e a entrega ao leitor. Estas três personagens<br />

têm <strong>um</strong> carácter completamente<br />

distinto. Trótski é <strong>um</strong>a personagem<br />

com <strong>um</strong>a biografia muito<br />

conhecida e todos os acontecimentos<br />

<strong>de</strong> que se fala no livro partem <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

investigação histórica: os incêndios,<br />

a morte dos filhos, os lugares on<strong>de</strong><br />

viveu, é tudo real. No caso <strong>de</strong> Ramón<br />

Merca<strong>de</strong>r, em “O Homem que Gostava<br />

<strong>de</strong> Cães” está contada praticamente<br />

toda a sua história conhecida.<br />

Mas como aquilo que se conhece sobre<br />

este homem não era suficiente<br />

para criar a personagem, Padura integrou<br />

no livro <strong>um</strong>a série <strong>de</strong> elementos<br />

<strong>de</strong> ficção (por exemplo, o momento<br />

em que ele é preparado para<br />

cometer o assassinato). E quanto a<br />

Iván, o cubano aspirante a escritor,<br />

é <strong>um</strong>a personagem <strong>de</strong> ficção mas correspon<strong>de</strong><br />

a <strong>um</strong>a realida<strong>de</strong>, a <strong>um</strong>a<br />

história, à história possível <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

cidadão cubano que quis <strong>ser</strong> escritor<br />

nos anos 70 e 80.<br />

Leonardo Padura é fundamentalmente<br />

<strong>um</strong> escritor, apesar <strong>de</strong> fazer<br />

investigações históricas e literárias.<br />

Gosta <strong>de</strong> utilizar a História como<br />

componente da ficção porque acredita<br />

que “a ficção é capaz <strong>de</strong> realçar<br />

a parte mais dramática da História”.<br />

“É muito complicado escrever romances<br />

históricos no sentido em que<br />

os acontecimentos da realida<strong>de</strong> têm<br />

a sua própria dramaturgia e os acontecimentos<br />

da literatura têm <strong>de</strong> ter a<br />

sua – que é diferente. Têm leis diferentes.<br />

A realida<strong>de</strong> é realida<strong>de</strong>, a ficção<br />

é ficção, e comportam-se <strong>de</strong> maneiras<br />

dramaticamente diferentes. É<br />

complicado tratar o romance histórico<br />

tentando ter <strong>um</strong> respeito pelos<br />

factos reais.”<br />

Por isso recorreu a<br />

<strong>um</strong> recurso romanesco<br />

para contar<br />

a História.<br />

“A História<br />

ocorre paralelamente.<br />

Enquanto<br />

acontece<br />

<strong>um</strong>a coisa<br />

em Portugal, está a acontecer outra<br />

coisa no Líbano e há <strong>um</strong> congresso<br />

a <strong>de</strong>correr em Cuba em que se<br />

está a <strong>de</strong>cidir qual vai <strong>ser</strong> o futuro do<br />

país. No romance, este recurso das<br />

histórias paralelas tem a função <strong>de</strong><br />

suster o <strong>de</strong>senvolvimento dramático<br />

e estrutural <strong>de</strong> <strong>um</strong>a história que tem<br />

para o escritor <strong>um</strong> problema fundamental:<br />

é que o eixo mais importante<br />

do livro é o assassinato <strong>de</strong> Trótski.<br />

E antes <strong>de</strong> começares a ler o livro já<br />

sabes que Trótski foi assassinado no<br />

México por Ramón Merca<strong>de</strong>r. Eu tinha<br />

que fazer com que isto resultasse<br />

interessante para o leitor. Por isso<br />

utilizei vários recursos literários, entre<br />

eles essa estrutura paralela para<br />

que o leitor sinta que a informação<br />

não lhe chega toda ao mesmo tempo<br />

e que tem <strong>de</strong> continuar a ler para<br />

conseguir chegar a ela.”<br />

Na primeira versão que Leonardo<br />

Padura escreveu <strong>de</strong> “O Homem que<br />

Gostava <strong>de</strong> Cães”, todas as linhas relativas<br />

a Trótski estavam na primeira<br />

pessoa. “Queria que o leitor se sentisse<br />

o mais próximo possível <strong>de</strong>sta<br />

personagem histórica tão complicada<br />

e tão esquiva. Depois <strong>de</strong> ter escrito<br />

mais <strong>de</strong> 200 páginas, <strong>de</strong>i-me conta<br />

<strong>de</strong> que realmente era incapaz <strong>de</strong> expressar<br />

o pensamento <strong>de</strong> <strong>um</strong> revolucionário<br />

russo do princípio do século,<br />

<strong>um</strong> homem fanático pelas suas<br />

i<strong>de</strong>ias políticas, <strong>um</strong> homem <strong>de</strong> cultura<br />

judaica e europeia, que viveu <strong>um</strong>a<br />

época e situações históricas diferentes<br />

das minhas. Ao narrá-lo na primeira<br />

pessoa, não ia conseguir expressar<br />

quem era Trótski. Portanto<br />

tive <strong>de</strong> refazer tudo e mudar a sua voz<br />

para a terceira pessoa.”<br />

No caso <strong>de</strong> Ramón Merca<strong>de</strong>r, encontrou<br />

a solução mais rapidamente.<br />

“Merca<strong>de</strong>r não po<strong>de</strong> contar a sua história.<br />

Tem <strong>de</strong> contar a sua história a<br />

alguém e é por isso que há <strong>um</strong> narrador.<br />

Como é <strong>um</strong>a história que originalmente<br />

está contada pelo próprio<br />

Ramón Merca<strong>de</strong>r, utilizei <strong>um</strong>a linguagem<br />

mais próxima do espanhol da<br />

Península Ibérica. No caso <strong>de</strong> Iván,<br />

o homem que reúne toda esta história<br />

e que a expressa, a primeira<br />

pessoa pareceu-me a mais a<strong>de</strong>quada.<br />

E para mim era muito fácil,<br />

porque era <strong>um</strong> pouco como se eu<br />

estivesse a escrever sobre<br />

mim.”<br />

O lado h<strong>um</strong>ano<br />

do assassino<br />

Esta é <strong>um</strong>a história é feita por homens,<br />

mas as personagens femininas, ainda que<br />

secundárias, são <strong>de</strong>terminantes nas suas<br />

escolhas. “É muito difícil que <strong>um</strong> homem<br />

possa executar alg<strong>um</strong>a coisa se não tiver<br />

a seu lado <strong>um</strong>a mulher. Muitas vezes, ao<br />

contarmos a história, esquecemo-nos<br />

disso. Nos romances policiais <strong>de</strong>senvolveu-se<br />

muito o herói solitário que vai<br />

pela cida<strong>de</strong>, já meio escura, e a percorre<br />

com a solidão às costas. A mim interessame<br />

muito a relação dos homens com<br />

<strong>de</strong>terminadas mulheres, como estas os<br />

influenciam, como os ajudam.”<br />

Neste caso, historicamente, houve duas<br />

mulheres que tiveram <strong>um</strong>a importância<br />

muito forte na formação <strong>de</strong> Ramón<br />

Merca<strong>de</strong>r. De <strong>um</strong> lado, a sua mãe, Caridad<br />

<strong>de</strong>l Río, “<strong>um</strong>a personagem fascinante,<br />

<strong>de</strong>testável, admirável, repudiante”.<br />

De outro, África <strong>de</strong> las Heras, cuja relação<br />

com Merca<strong>de</strong>r está exagerada romanescamente.<br />

Mas ela existiu realmente, participou<br />

na Guerra Civil Espanhola e foi<br />

durante anos agente do KGB.<br />

No caso <strong>de</strong> Trótski, a companhia da<br />

mulher, Natália, foi fundamental em<br />

todo o processo do exílio, e houve outras<br />

que entraram na sua vida, como<br />

Frida Kahlo. No caso <strong>de</strong> Iván, é quando<br />

conhece Ana que <strong>de</strong>scobre que a felicida<strong>de</strong><br />

é possível no meio da maior<br />

pobreza e da maior miséria.<br />

Que todos os assassinos têm <strong>um</strong> lado<br />

h<strong>um</strong>ano não é novida<strong>de</strong>. Quem leu<br />

“A Sangue Frio”, <strong>de</strong> Tr<strong>um</strong>an Capote,<br />

não escapa a <strong>um</strong>a certa compaixão<br />

por <strong>um</strong> homem que matou a sangue<br />

frio quatro pessoas. E o título “O Homem<br />

que Gostava <strong>de</strong> Cães” foi “roubado”<br />

por Leonardo Padura <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

conto escrito por Raymond Chandler<br />

on<strong>de</strong> há <strong>um</strong> assassino a soldo que ama<br />

os cães. “Chandler escolhe este elemento<br />

para dizer que <strong>um</strong> assassino é<br />

capaz <strong>de</strong> fazer festas a <strong>um</strong> cão e <strong>de</strong><br />

amar esse cão. Utilizo-o como metáfora<br />

da possível união <strong>de</strong>stas três personagens<br />

tão diferentes <strong>um</strong>as das outras:<br />

<strong>um</strong> homem que fez a História<br />

[Trótski], <strong>um</strong> homem que entrou na<br />

História porque o matou [Ramón<br />

Merca<strong>de</strong>r] e <strong>um</strong> homem que<br />

sofre a História [Iván].”<br />

Ver crítica <strong>de</strong> livros<br />

pág. 48 e segs.<br />

MANUEL ROBERTO<br />

14 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


CINEMATECA PORTUGUESA<br />

MUSEU DO CINEMA<br />

150 ANOS<br />

RABINDRANATH TAGORE<br />

Alto Patrocínio da Embaixada da Índia em Portugal<br />

6 filmes <strong>de</strong> Satyajit Ray | 19 a 25 <strong>de</strong> Maio<br />

COM O INDIE LISBOA<br />

JULIO BRESSANE<br />

6 a 14 <strong>de</strong> Maio<br />

DIE FREMDE<br />

“O Estrangeiro”<br />

<strong>de</strong> Feo Aladag<br />

Alemanha, 2009 - 119 min<br />

9 Maio | 21:30<br />

NÃO<br />

20 filmes que ensinam a dizer “não”<br />

2 a 31 <strong>de</strong> Maio<br />

OHAYO, JAPÃO<br />

“O Outono da Família Kohayagawa”<br />

<strong>de</strong> Yasujiro Ozu<br />

Japão, 1961 - 103 min<br />

6 <strong>de</strong> Maio | 19:00<br />

apoio<br />

• Horário da bilheteira da Cinemateca: das 14:30 às15:30 e das 18:00 às 22:00 •<br />

• Não há lugares marcados • Informação diária sobre a programação: Tel. 21 359 62 66 •<br />

• Transportes: Metro: Marquês <strong>de</strong> Pombal, Avenida • Bus: 2, 9, 36, 44, 45, 90, 91, 732, 746 •<br />

• Rua Barata Salgueiro, 39 em Lisboa • Consulte a programação <strong>de</strong> Maio em www.cinemateca.pt •


PEDRO CUNHA<br />

Pedro Mexia<br />

“Menos por Menos” reúne cem poemas escolhidos por Pedro Mexia a partir dos seis livros<br />

que editou até hoje. Retrato do escritor enquanto velho (“Não me lembro <strong>de</strong> <strong>ser</strong> novo”) n<strong>um</strong>a<br />

entrevista em que dá à escrita o que é da escrita e à vida o que é da vida. Anabela Mota Ribeiro<br />

Pedro Mexia já não é aquele que adopta<br />

o verso <strong>de</strong> Camões “Foi-me tão cedo<br />

a luz do dia escura” como primeira<br />

linha <strong>de</strong> <strong>um</strong> auto-retrato. O poema<br />

vai para 20 anos. Entretanto acabou<br />

o curso <strong>de</strong> Direito (alguém o imagina<br />

n<strong>um</strong> escritório?), apresentou nos blogues<br />

a personagem Pedro Mexia (o<br />

público não compreen<strong>de</strong> porque razão<br />

é auto-<strong>de</strong>preciativo), passou a<br />

escrever crónicas e crítica literária<br />

nos jornais. Às vezes, também confissões<br />

sobre o <strong>medo</strong> e a angústia. Agora,<br />

edita em “Menos por Menos” cem<br />

poemas escolhidos dos seis livros <strong>de</strong><br />

poesia que lançou até ao momento.<br />

O primeiro é <strong>de</strong> 1999, o último <strong>de</strong><br />

2007. Ele acha que ninguém os leu.<br />

Quando é que começou a<br />

envelhecer?<br />

Não me lembro <strong>de</strong> <strong>ser</strong> novo. Não tenho<br />

nenh<strong>um</strong>a memória <strong>de</strong> me sentir<br />

na força da vida, ou no vigor da ida<strong>de</strong>,<br />

ou nos anos dourados. Mesmo<br />

quando era adolescente. Nesse sentido,<br />

sempre fui bastante velho. Já fui<br />

mais velho do que sou hoje. Sobretudo<br />

porque não tinha sentido <strong>de</strong> h<strong>um</strong>or.<br />

Ou, pelo menos, hoje acho que<br />

não tinha sentido <strong>de</strong> h<strong>um</strong>or. Isso ajudava<br />

a que fosse mais pesada a minha<br />

maneira <strong>de</strong> viver as coisas. Ter ganho<br />

ironia e h<strong>um</strong>or atenuou isso.<br />

A ironia cria <strong>um</strong>a certa<br />

distância, <strong>um</strong>a membrana.<br />

Sim. Isso não aconteceu por <strong>um</strong>a razão<br />

estritamente voluntária. Tem a<br />

ver com os autores que leio, os <strong>de</strong><br />

língua inglesa, e os ingleses em particular,<br />

nos quais a auto-ironia – <strong>um</strong><br />

elemento não-óbvio na cultura portuguesa<br />

– está muito presente. Senti<br />

isso como muito natural para mim,<br />

para o meu discurso. Coinci<strong>de</strong> com<br />

o momento em que comecei a escrever<br />

crónicas e o blogue, 2002. Essa<br />

dimensão irónica é sucessivamente<br />

referida e colada a mim, e bem. Eu<br />

era <strong>ser</strong>iíssimo no pior sentido da palavra<br />

quando tinha 20 anos.<br />

Levava-se muito a sério?<br />

Não era tanto levar-me muito a sério.<br />

Era levar as coisas muito a sério. Era<br />

tudo muito pesado.<br />

Há em alguns poemas <strong>um</strong> fundo<br />

nostálgico. Em especial quando<br />

faz <strong>um</strong>a dissecação dos retratos<br />

<strong>de</strong> família, <strong>de</strong> memórias.<br />

I<strong>de</strong>ntifica-se e incorpora-se<br />

nesses retratos, como se fosse<br />

também aqueles que evoca.<br />

Existiu <strong>um</strong> tempo em que se<br />

sentiu o menino <strong>de</strong>sta ca<strong>de</strong>ia<br />

familiar?<br />

Há <strong>um</strong> livro que acho importante no<br />

percurso <strong>de</strong>stes seis livros; hesito em<br />

dizer se é o melhor ou não, nem me<br />

cabe a mim dizê-lo. Chama-se “Em<br />

Memória” (2000). Concentra os poemas<br />

sobre a família e sobre a memória,<br />

enquanto mecanismo, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />

Foram escritos <strong>de</strong>pois da morte<br />

da minha avó, em 1993. São, portanto,<br />

muito anteriores à publicação.<br />

Significou <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> apocalipse<br />

familiar. Era na casa dos meus avós<br />

– o meu avô já tinha morrido – que a<br />

família se reunia no Natal, na Páscoa,<br />

essas coisas. A morte da minha avó<br />

acabou por <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar <strong>um</strong>a reflexão<br />

sobre a família e o <strong>de</strong>slaçamento.<br />

Eu estou sempre no retrato. Embora<br />

não tenha muitas memórias <strong>de</strong> infância<br />

(aliás, tenho muito má memória),<br />

tive <strong>um</strong>a infância muito feliz e <strong>um</strong><br />

começo <strong>de</strong> adolescência bastante feliz.<br />

Esses anos familiares, vejo-os com<br />

nostalgia. A perda iminente <strong>de</strong>ssa<br />

correia, <strong>de</strong>sse legado foi tra<strong>um</strong>ática.<br />

Alguns poemas são até violentos. Depois<br />

não aconteceu exactamente assim.<br />

As relações mudam <strong>de</strong> natureza,<br />

as pessoas encontram formas <strong>de</strong> relacionamento<br />

diferentes.<br />

Esse tempo da infância e do<br />

começo da adolescência parece<br />

<strong>ser</strong> anterior à cicatriz. Nesse<br />

tempo era novo.<br />

Era criança. Eu fui criança. Não tenho<br />

é noção <strong>de</strong> ter sido jovem. Saltei <strong>de</strong><br />

criança para velho muito rapidamente.<br />

Não velho. Mas mais velho do que<br />

sou. Nesses anos, as minhas memórias<br />

são boas e não creio que sentisse<br />

<strong>um</strong> <strong>de</strong>sfasamento [em relação à minha<br />

ida<strong>de</strong>]. Continuo a <strong>ser</strong> <strong>um</strong>a pessoa<br />

introvertida, pouco social, etc. Já<br />

era na altura. Claro que não formulava<br />

as coisas nestes termos, mas apesar<br />

<strong>de</strong> tudo estava mais integrado.<br />

Não havia nem <strong>medo</strong> nem<br />

angústia, que são palavras<br />

recorrentes do seu discurso.<br />

E palavras essenciais n<strong>um</strong>a<br />

das suas autoras <strong>de</strong> eleição,<br />

Agustina. Não por acaso<br />

organizou e prefaciou os<br />

ensaios <strong>de</strong> “Contemplação<br />

Carinhosa da Angústia”. Um<br />

dos aforismos mais famosos<br />

<strong>de</strong> Agustina: “Nasci adulta,<br />

morrerei criança”. Parece fazer<br />

o movimento contrário…<br />

Que é o movimento natural da espécie.<br />

Não é <strong>um</strong> movimento unívoco.<br />

Em três ou quatro momentos sinto<br />

que me tornei mais velho ou mais<br />

novo do que era antes. O livro não<br />

tem nenh<strong>um</strong> poema posterior a 2007.<br />

Há <strong>um</strong> hiato sobre o qual não escrevi.<br />

Isto não interessa nada ao leitor. Interessa-me<br />

a mim, enquanto organização,<br />

até mental, da minha vida<br />

através dos poemas. O livro acompanha<br />

este percurso. Não <strong>de</strong> <strong>um</strong>a forma<br />

cronológica. Progri<strong>de</strong> por avanços e<br />

recuos.<br />

No poema Avó Leonor, há versos<br />

sobre ela: “… sabendo tudo,<br />

sofrendo tudo, como se fosse<br />

<strong>um</strong> alimento. (…)… Essa mistura<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a aceitação cristã, <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a nobreza que não mostra<br />

o que vai na alma”. E isto: “<strong>um</strong><br />

coração atento e em t<strong>um</strong>ulto”.<br />

Podiam <strong>ser</strong> sobre si?<br />

Não sei bem. Haverá similitu<strong>de</strong>s. A<br />

minha avó é retratada com fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong><br />

como <strong>um</strong>a pessoa muito re<strong>ser</strong>vada,<br />

fechada. Eu sou muito re<strong>ser</strong>vado e<br />

fechado pessoalmente, mas no que<br />

escrevo sou muito confessional.<br />

Mas essa não é a personagem<br />

Pedro Mexia, que criou, e que<br />

lhe permite relacionar-se com<br />

muitos?<br />

As regras que valem para as relações<br />

sociais não valem necessariamente<br />

para a escrita daquilo que pres<strong>um</strong>o<br />

<strong>ser</strong> literatura. E assim como dificilmente<br />

teria conversas íntimas com<br />

alguém que não fosse do meu círculo<br />

<strong>de</strong> amigos mais próximo, na literatura,<br />

naquilo a que insisto em chamar<br />

literatura – boa ou má –, é o contrário.<br />

Não escrever <strong>de</strong> forma intimista <strong>ser</strong>ia<br />

batota em relação ao que me interessa<br />

na escrita. Interessa-me falar do<br />

<strong>medo</strong> e da angústia. Não só, mas para<br />

pegar nessas duas palavras. O único<br />

cuidado que é preciso é eliminar<br />

tudo aquilo que possa <strong>ser</strong> informativo<br />

e que constitua bisbilhotice. Por<br />

respeito pelas pessoas sobre as quais<br />

se escreve. Mesmo as coisas obscenamente<br />

pessoais que escrevi, ninguém,<br />

ao ler aquilo, saberá sobre<br />

quem são. Não há nenh<strong>um</strong>a razão<br />

para que as regras [a ob<strong>ser</strong>var na vida<br />

social e na escrita] sejam as mesmas.<br />

Daí tanta gente ficar surpreendida,<br />

perplexa, quando encontra <strong>um</strong><br />

escritor que é muito diferente daquilo<br />

que ele escreveu. Isso é, para mim,<br />

<strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ia banal.<br />

Mas há <strong>um</strong>a personagem Pedro<br />

Mexia.<br />

Se não criarmos algo que se pareça<br />

com <strong>um</strong>a personagem quando somos<br />

figuras públicas, quando escrevemos<br />

no espaço público, somos <strong>de</strong>vorados.<br />

Não po<strong>de</strong>mos <strong>ser</strong> 100 por cento nós<br />

mesmos. Há <strong>um</strong> fenómeno <strong>de</strong> distanciação.<br />

É verda<strong>de</strong> que nos emails que<br />

recebo, as pessoas (amigos e <strong>de</strong>sconhecidos)<br />

sentem-se incomodadas<br />

com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aquilo po<strong>de</strong>r<br />

não <strong>ser</strong> <strong>um</strong>a personagem. Por exemplo,<br />

incomoda muito que escreva<br />

recorrentemente sobre o tema do<br />

fracasso. Também para essas pessoas,<br />

é mais confortável dizer que é ficção,<br />

que é <strong>um</strong> boneco. Eu não me<br />

sinto obrigado a dizer o que é ficção<br />

e o que não é.<br />

É <strong>um</strong>a das regras da literatura.<br />

É. Outra coisa que incomodava muito<br />

as pessoas (agora nem tanto, mas<br />

quando escrevia crónicas mais pessoais)<br />

era o tom auto-<strong>de</strong>preciativo. É<br />

<strong>um</strong> género <strong>de</strong> que gosto muito.<br />

Há imensas coisas que diz <strong>de</strong><br />

si próprio no livro, ou que<br />

julgamos que são <strong>de</strong> si, que não<br />

são propriamente abonatórias.<br />

“Destroço”. Fala sobre o seu<br />

corpo n<strong>um</strong> poema que tem por<br />

título “Ferro-Velho”. N<strong>um</strong> dos<br />

primeiros poemas fala <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

tronco <strong>de</strong>cepado; a seguir não<br />

sabemos se o tronco vai <strong>ser</strong><br />

usado como jangada ou caixão.<br />

Nesta fase, há muitos poemas<br />

com referência a árvores.<br />

Nos poemas familiares, as árvores<br />

representam o campo. Mesmo na experiência<br />

urbana, a mim, que não sou<br />

<strong>um</strong> amante da natureza, as árvores<br />

ten<strong>de</strong>m a chamar a atenção. Tenho<br />

que ir ler o dicionário <strong>de</strong> símbolos<br />

quando chegar a casa. Nesse poema,<br />

não pensei nisso. O poema nasceu da<br />

experiência concreta <strong>de</strong> ver <strong>um</strong>a árvore<br />

a <strong>ser</strong> transplantada para o contexto<br />

urbano. Claro que po<strong>de</strong> ter todas<br />

as leituras alegóricas, mas não<br />

diria que se trata do corpo.<br />

Do seu corpo. De <strong>um</strong> “imenso<br />

totem <strong>de</strong>cepado”, como está em<br />

“Sinal”.<br />

Admito a leitura, mas nunca pensei<br />

nisso <strong>de</strong>ssa maneira. Como em todos<br />

os poemas: a distância entre a intenção<br />

que se teve ao escrevê-lo e a leitura<br />

possível é enorme.<br />

Isto a propósito das coisas auto<strong>de</strong>preciativas<br />

que diz <strong>de</strong> si nos<br />

poemas.<br />

Nos poemas também? Mais nas crónicas<br />

e nos blogues.<br />

Nos poemas aparece <strong>um</strong>a autocontemplação<br />

<strong>de</strong>sesperançada,<br />

rasgada. Menos irónica e mais<br />

sofrida.<br />

Sim. Por razões que não sei exactamente<br />

explicar, e que admito que<br />

tenham a ver com <strong>um</strong>a certa (a palavra<br />

é má…) sacralização da poesia,<br />

refreio-me mais no uso da ironia. Embora<br />

exista <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> ironia,<br />

muito contida, nalguns poemas. Alguns<br />

poemas, pela situação que <strong>de</strong>screvem<br />

ou encenam, são mais <strong>de</strong>nsos,<br />

mais trágicos. No livro sobre<br />

Lisboa (“Eliot e Outras Ob<strong>ser</strong>vações”,<br />

2003) há mais anotações irónicas sobre<br />

a cida<strong>de</strong> e os comportamentos.<br />

Há dois poemas terríveis, sem<br />

sombra <strong>de</strong> ironia, no livro <strong>de</strong><br />

Não me lembro <strong>de</strong> <strong>ser</strong> novo. Não tenho nenh<strong>um</strong>a memória <strong>de</strong> me sentir<br />

na força da vida, ou no vigor da ida<strong>de</strong>, ou nos anos dourados. Mesmo quando<br />

era adolescente. Nesse sentido, sempre fui bastante velho (...). Eu fui criança.<br />

Não tenho é noção <strong>de</strong> ter sido jovem. Saltei <strong>de</strong> criança para velho<br />

muito rapidamente (...). [Mas] não é <strong>um</strong> movimento unívoco<br />

16 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


transitivo e confessável<br />

“Menos por<br />

Menos” junta<br />

poemas que<br />

Pedro Mexia<br />

escreveu<br />

entre 1999<br />

e 2007 - e que,<br />

ao contrário<br />

do que<br />

aconteceu<br />

com a prosa<br />

que vem<br />

publicando<br />

entre jornais<br />

e blogues,<br />

o autor acha<br />

que “ninguém<br />

leu”<br />

2007, “Senhor Fantasma. O<br />

Auto-retrato com Versos <strong>de</strong><br />

Camões” e “A Esperança entre<br />

as Urtigas”. O título do segundo<br />

já diz quase tudo.<br />

São poemas do começo dos anos 90,<br />

recuperados no livro <strong>de</strong> 2007. O excesso<br />

<strong>de</strong> “pathos” cria <strong>um</strong> efeito contrário<br />

ao que se preten<strong>de</strong>, poeticamente<br />

não é interessante. Mas nalguns<br />

momentos não há como<br />

fugir-lhe. Não há ironia nenh<strong>um</strong>a no<br />

livro “Avalanche” (2001), o dos poemas<br />

<strong>de</strong> amor. São poemas mais ou<br />

menos escritos em directo. Não tinham<br />

aquela coisa que o Wordsworth<br />

recomendava: as emoções recordadas<br />

na tranquilida<strong>de</strong>. Talvez seja a<br />

maneira i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> escrever poesia. O<br />

investimento biográfico estraga os<br />

poemas. Tenho a noção <strong>de</strong> que há<br />

poemas que consi<strong>de</strong>ro muito importantes<br />

mas que não são interessantes,<br />

em termos <strong>de</strong> objecto verbal. Quando<br />

se escreve sobre acontecimentos – o<br />

Dr<strong>um</strong>mond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> recomendava<br />

que não se escrevesse sobre acontecimentos<br />

–, a distância protege, do<br />

ponto <strong>de</strong> vista literário. Os poemas<br />

do “Avalanche” são o contrário do<br />

“Em Memória”. São escritos no momento.<br />

Ainda o incómodo que os<br />

leitores sentem quando faz<br />

comentários auto-<strong>de</strong>preciativos,<br />

ou escreve sobre o fracasso…<br />

Mas esse incómodo é em relação à<br />

prosa. A poesia ninguém leu.<br />

A audiência do Pedro Mexiacronista<br />

fica <strong>de</strong> fora da poesia?<br />

Completamente. Não é por <strong>ser</strong> eu.<br />

Muito pouca gente lê poesia. Há muita<br />

gente que segue o que escrevo e<br />

que sabe vagamente que escrevo poesia.<br />

Esta selecção é publicada, em<br />

parte, porque dos seis livros que a<br />

compõem quatro são praticamente<br />

impossíveis <strong>de</strong> encontrar. Mas tenho<br />

a noção <strong>de</strong> que, <strong>de</strong> tudo o que fiz,<br />

isto é o mais obscuro.<br />

Fala do “amor intransitivo e<br />

inconfessável”. Parece <strong>um</strong>a<br />

condição dos seus amores.<br />

É <strong>um</strong>a expressão oxímora. Os po-<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 17


PEDRO CUNHA<br />

A minha experiência do amor é a <strong>de</strong> que é castigo e recompensa<br />

ao mesmo tempo. A minha visão do amor é como a <strong>de</strong> quase tudo: por mais<br />

que conceptualizemos, nasce da nossa experiência (...). Como nunca tive <strong>um</strong>a<br />

visão lúdica do amor - tenho <strong>um</strong>a visão não necessariamente<br />

trágica, mas muito séria -, não consigo encará-lo <strong>de</strong> <strong>um</strong> modo mais leve<br />

emas do “Avalanche” são bastante<br />

transitivos e confessáveis! [riso]<br />

É <strong>um</strong> verso do poema “Bad<br />

Songs”.<br />

É sobre as paixonetas do liceu, que<br />

não são nada, não têm sequer espessura.<br />

Puras fantasias. Intransitivos e<br />

inconfessáveis, sim. Ao contrário dos<br />

poemas da família, que incluem <strong>um</strong><br />

gran<strong>de</strong> elenco, e dos da cida<strong>de</strong>, que<br />

incluem <strong>de</strong>sconhecidos, nos poemas<br />

do “Avalanche” só existem duas pessoas.<br />

Uma coisa reinci<strong>de</strong>nte, sempre<br />

que falo da temática amorosa, é que<br />

é <strong>um</strong>a temática totalmente não-social.<br />

Não existe o mundo. É bastante transitivo,<br />

mesmo que seja, como acontece<br />

na maioria <strong>de</strong>sses casos, infeliz.<br />

Existe <strong>um</strong>a relação. O que nem<br />

sempre acontece nos poemas <strong>de</strong><br />

outros livros.<br />

Nos poemas sobre Lisboa, é inquietante<br />

o facto <strong>de</strong> haver tão poucas relações.<br />

As pessoas relacionam-se por<br />

razões práticas, utilitárias. É <strong>um</strong>a visão<br />

da vida urbana <strong>de</strong>solada.<br />

Nesses poemas, existem você, os<br />

intermináveis domingos à tar<strong>de</strong><br />

e os terraços vazios.<br />

Exactamente. No “Avalanche” uso o<br />

“tu”, o poema é dirigido a alguém.<br />

São os poemas mais relacionais n<strong>um</strong>a<br />

poesia que não é muito relacional.<br />

Um par amoroso que convoca:<br />

Paolo e Francesca. Amantes<br />

adúlteros da “Divina Comédia”.<br />

Porquê este par?<br />

Tem a ver com <strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> retribuição<br />

metafísica a que eles são sujeitos.<br />

Como têm <strong>um</strong> amor tempestuoso em<br />

vida, no outro mundo têm <strong>um</strong> castigo<br />

e <strong>um</strong>a recompensa misturados.<br />

Por <strong>um</strong> lado estão juntos, abraçados,<br />

mas no meio <strong>de</strong> <strong>um</strong> vórtice. Estão<br />

n<strong>um</strong> permanente turbilhão. A i<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong> que há <strong>um</strong> castigo e <strong>um</strong>a recompensa,<br />

juntos, no amor, interesso<strong>um</strong>e<br />

quando li a “Divina Comédia”.<br />

Linda visão que tem do amor. (E<br />

isto é <strong>um</strong>a provocação…)<br />

Já lá vou. Ten<strong>de</strong>mos a arr<strong>um</strong>ar muito<br />

bem o castigo e a recompensa. O<br />

amor, tenho mais dificulda<strong>de</strong> em<br />

arr<strong>um</strong>á-lo n<strong>um</strong>a <strong>de</strong>ssas categorias. A<br />

minha experiência do amor é a <strong>de</strong><br />

que é castigo e recompensa ao mesmo<br />

tempo. A minha visão do amor é<br />

como a <strong>de</strong> quase tudo: por mais que<br />

conceptualizemos, nasce da nossa<br />

experiência. Aquele verso do Camões:<br />

“Segundo o amor tiver<strong>de</strong>s,<br />

tereis o entendimento dos meus versos”.<br />

Como nunca tive <strong>um</strong>a visão lúdica<br />

do amor – tenho <strong>um</strong>a visão não<br />

necessariamente trágica, mas muito<br />

séria –, não consigo encará-lo <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

modo mais leve.<br />

Agora parece Kierkegaard a<br />

falar <strong>de</strong> Regina Olsen.<br />

Muito obrigado!, há muito tempo que<br />

não tinha <strong>um</strong> elogio <strong>de</strong>sses. O Kierkegaard<br />

é <strong>um</strong> dos autores que mais leio,<br />

<strong>de</strong> que mais gosto. A maneira terrível<br />

como fala do amor… Uma categoria<br />

que escapa ao mundano, ao trivial –<br />

sempre me reconheci nisso. Não acho<br />

que seja <strong>um</strong> tema social. Por isso há<br />

<strong>um</strong>a distância muito gran<strong>de</strong> entre<br />

todos os temas da vida em socieda<strong>de</strong><br />

e o amor (que são duas pessoas abraçadas<br />

n<strong>um</strong>a espiral, na eternida<strong>de</strong>).<br />

É mesmo verda<strong>de</strong> que escreveu<br />

n<strong>um</strong> blogue que <strong>um</strong>a mulher<br />

que gostasse <strong>de</strong> si não era digna<br />

<strong>de</strong> <strong>ser</strong> amada?<br />

É possível, eu já escrevi coisas bastante<br />

palermas. Essa frase, que não<br />

sei a que contexto pertence, tem <strong>um</strong><br />

carácter lúdico. Claramente não me<br />

estou a referir ao amor. Admito que<br />

apareça a tal i<strong>de</strong>ia da personagem.<br />

Há muitas coisas que escrevo que são<br />

frases <strong>de</strong> efeito. Essa é <strong>um</strong>a frase para<br />

chamar a atenção. Não tem a ver<br />

com isto <strong>de</strong> que estamos a falar.<br />

Outro par da “Divina Comédia”,<br />

Dante e Beatriz. Inspira-o?<br />

Sim, mas não foi <strong>de</strong>sses que falei.<br />

Sempre me pareceu <strong>um</strong> par amoroso,<br />

ainda que no contexto bíblico não<br />

seja <strong>um</strong> par amoroso, a mulher <strong>de</strong><br />

Ló, que se transforma em sal, olhando<br />

para trás. É verda<strong>de</strong> que tendo a<br />

transformar todos os pares, homem<br />

e mulher, em pares amorosos.<br />

Obsessão. É <strong>um</strong> “flor <strong>de</strong><br />

obsessão”, que era como Nelson<br />

Rodrigues se chamava.<br />

Outra gran<strong>de</strong> referência para mim.<br />

Com todas as distâncias tropicais. Há<br />

<strong>um</strong>a presença muito maior da sexualida<strong>de</strong><br />

nas coisas que ele escreve.<br />

Eu quase só falo da sexualida<strong>de</strong> em<br />

registo irónico.<br />

Usa n<strong>um</strong> poema a expressão<br />

“foda kitsch”. Muito<br />

inesperada.<br />

É verda<strong>de</strong>. Não é <strong>um</strong> dos meus temas,<br />

na poesia. Na prosa é, enquanto ob<strong>ser</strong>vador.<br />

É <strong>um</strong> tema divertido porque<br />

é o gran<strong>de</strong> impulso por trás daquilo<br />

que as pessoas fazem. Sou <strong>um</strong><br />

freudiano <strong>de</strong> estrita ob<strong>ser</strong>vância.<br />

N<strong>um</strong> dos poemas usa <strong>um</strong>a<br />

expressão <strong>de</strong> Dante citada<br />

por Bau<strong>de</strong>laire: “vita nuova”.<br />

Já antes, o nome <strong>de</strong> <strong>um</strong>a das<br />

suas crónicas remetia para<br />

o “spleen” <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire.<br />

Surpreen<strong>de</strong> quando sabemos<br />

que é <strong>um</strong> autor <strong>de</strong> filiação<br />

anglo-saxónica.<br />

O meu universo estilístico é muito<br />

anglo-saxónico. Mas o Bau<strong>de</strong>laire é<br />

<strong>um</strong>a óbvia referência para quem quer<br />

escrever sobre a colmeia da cida<strong>de</strong> e<br />

a vida contemporânea. Tem essa personagem<br />

do “flâneur” – a pessoa que<br />

passa e que ob<strong>ser</strong>va. Mas o que escrevo,<br />

do ponto <strong>de</strong> vista formal, não<br />

tem nada a ver com a poesia do Bau<strong>de</strong>laire.<br />

Outro autor que aparece e<br />

que é <strong>um</strong> dos seus preferidos:<br />

Tchékhov. Esse poema chamase,<br />

com ironia, “Futuro<br />

Radioso”.<br />

A imagem central da peça “O Cerejal”<br />

é a imagem final, do cerejal a <strong>ser</strong> abatido.<br />

18 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


“Auto-Retrato<br />

com Versos<br />

<strong>de</strong> Camões”<br />

é, diz Mexia,<br />

o seu melhor<br />

poema, e dos<br />

mais autobiográficos:<br />

nenh<strong>um</strong> verso<br />

foi escrito<br />

por ele...<br />

Outra árvore a <strong>ser</strong> cortada.<br />

Sim. Na peça significa o fim <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

época, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a certa or<strong>de</strong>m social.<br />

Nesse poema significa o fim <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

família. Cortar aquilo que lá esteve<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre. N<strong>um</strong> certo sentido,<br />

quase todos os poemas são sobre<br />

<strong>um</strong>a coisa que acabou. Há muito poucos<br />

poemas sobre coisas que estão a<br />

começar. Essencialmente, o que faço<br />

são elegias. Nem todos os poemas são<br />

episódios autobiográficos, embora<br />

sejam todos biográficos. Como não<br />

tenho imaginação, é <strong>um</strong>a transposição<br />

<strong>de</strong> coisas que vi, ouvi, conheci.<br />

Tenho dificulda<strong>de</strong> em criar do nada.<br />

Por isso é que não escrevo ficção.<br />

Como é que concilia essa<br />

<strong>de</strong>sesperança, essa ausência<br />

<strong>de</strong> futuro radioso, com o seu<br />

catolicismo?<br />

É a pergunta que mais me fazem. São<br />

horizontes diferentes. Não sou niilista,<br />

não acho que a vida não tenha<br />

sentido, que tudo seja arbitrário.<br />

Acredito n<strong>um</strong> sentido da existência<br />

que o cristianismo dá. Mas o horizonte<br />

do cristianismo ultrapassa o limite<br />

da nossa existência física, tal como a<br />

conhecemos. Projecta-nos para <strong>um</strong>a<br />

realida<strong>de</strong> sobre a qual não temos<br />

meio <strong>de</strong> falar. Mesmo quem acredita<br />

na eternida<strong>de</strong> não sabe o que é isso.<br />

Escapa à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> verbalizar. O<br />

catolicismo existe nos poemas como<br />

educação, como visão do mundo. Os<br />

poemas têm a ver com o para cá da<br />

morte, e não com o para lá da morte.<br />

Não que a metafísica não me interesse,<br />

mas não saberia escrever sobre<br />

isso. É intransitivo e inconfessável.<br />

Não é incompatível porque a minha<br />

<strong>de</strong>sesperança tem a ver com o horizonte<br />

da nossa vida.<br />

Um poema tem por título<br />

“Vencido do Catolicismo”. Mas<br />

o mais forte vem a seguir: “sem<br />

plural”. É <strong>um</strong> modo <strong>de</strong> falar da<br />

sua solidão? E contraria outra<br />

das premissas do catolicismo: o<br />

<strong>de</strong> <strong>ser</strong> em rebanho.<br />

É verda<strong>de</strong>. Mas tem <strong>um</strong> contexto específico,<br />

<strong>um</strong> poema do Ruy Belo que<br />

fala da <strong>de</strong>silusão <strong>de</strong> <strong>um</strong>a geração em<br />

relação ao catolicismo. Quis falar <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a relação meramente individual<br />

com o catolicismo. Não po<strong>de</strong>ria usar<br />

esse plural que o Ruy Belo usa. Pertenço<br />

a <strong>um</strong>a geração para quem o<br />

catolicismo é <strong>um</strong> traço arcaico. Em<br />

tudo, e também na religião, as coisas<br />

fragmentaram-se. Além do mais, sou<br />

<strong>um</strong> individualista.<br />

É <strong>um</strong> solitário, além <strong>de</strong><br />

individualista.<br />

Não sei se é a palavra. Voltemos ao<br />

Kierkegaard: a religião é <strong>um</strong>a experiência<br />

totalmente subjectiva. Envolve<br />

<strong>um</strong>a relação directa entre o sujeito<br />

e aquilo em que ele acredita. Valorizo<br />

a relação directa, a vida em<br />

comunida<strong>de</strong> vem mais tar<strong>de</strong>.<br />

Nos poemas, no que escreve,<br />

os seus pais, que são pessoas<br />

centrais na sua vida, quase não<br />

aparecem. Alg<strong>um</strong>a coisa<br />

do que vem dizendo nesta<br />

entrevista <strong>ser</strong>á <strong>um</strong>a surpresa<br />

para eles?<br />

Não creio. O meu universo está muito<br />

circunscrito. Os temas que vêm à<br />

baila são os mesmos, há muito tempo.<br />

A não <strong>ser</strong> que houvesse <strong>um</strong>a inflexão<br />

gran<strong>de</strong> do que digo ou do que<br />

me interessa… Controlo bastante<br />

aquilo que digo. Não dou entrevistas<br />

sem trazer o superego. Mesmo sem<br />

superego, <strong>um</strong> con<strong>ser</strong>vador não tem<br />

coisas bombásticas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a última<br />

vez [risos].<br />

Faz <strong>um</strong> “Auto-retrato com<br />

Versos <strong>de</strong> Camões”. Muito<br />

escuro, <strong>de</strong>sesperançado.<br />

São quatro versos <strong>de</strong> Camões, <strong>de</strong> poemas<br />

diferentes. É <strong>um</strong> retrato fiel ao<br />

momento em que foi tirado (início<br />

dos anos 90). Estou muito mais bem<br />

disposto! A partir do momento em<br />

que está escrito, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> estar sujeito<br />

à nossa confirmação a cada momento.<br />

Todos nós já escrevemos coisas<br />

que não subscrevemos. Se escreveria<br />

este poema hoje? Não. Mas<br />

gosto muito do poema. É o poema <strong>de</strong><br />

que gosto mais – nenh<strong>um</strong> dos versos<br />

é meu.<br />

Está a fazer género.<br />

Não, é literal.<br />

Tem <strong>um</strong>a escrita ecléctica.<br />

Tanto escreve sobre o Morrissey<br />

como sobre o George W. Bush.<br />

Nos poemas o universo é muito mais<br />

<strong>de</strong>limitado. Se pensar nas coisas que<br />

são fundamentais para mim, estão<br />

todas neste livro.<br />

Por <strong>ser</strong> crítico é mais difícil<br />

editar poesia?<br />

Estou <strong>de</strong>masiado perto daquilo que<br />

escrevo para ter a distância que é necessária<br />

para a crítica. Um crítico<br />

escreve sobre <strong>um</strong> texto e não sobre<br />

<strong>um</strong> autor – o autor nunca percebe<br />

isto. Exercer a faculda<strong>de</strong> crítica em<br />

causa própria é impossível. Daí também<br />

haver tantos poemas maus. Espero<br />

que não nestes cem escolhidos.<br />

Faz diferença quando, ao fim <strong>de</strong> muitos<br />

anos a ler e a escrever sobre poesia,<br />

tenho <strong>um</strong>a maior percepção do<br />

que é <strong>um</strong> mau poema. Ter <strong>um</strong> discurso<br />

crítico incorporado ajuda. “Estas<br />

duas imagens não funcionam”. “Estas<br />

palavras são <strong>de</strong> diferentes áreas vocabulares”.<br />

Coisas que vêm com a<br />

prática. Uma das frases que mais gostei<br />

que me tivessem dito, n<strong>um</strong>a sessão<br />

literária: “Gosto muito do que<br />

você escreve, mas não me interessa<br />

nada a sua vida”. A minha esperança<br />

é que isso seja o sentimento da maior<br />

parte das pessoas. A minha vida interessa-me<br />

muito a mim. Percebo<br />

que, por <strong>um</strong> lado voyeurista, interessa<br />

<strong>um</strong> bocadinho a alg<strong>um</strong>as pessoas.<br />

Se for como eu gostava que fosse a<br />

literatura, a vida que está por trás não<br />

é radicalmente diferente das outras.<br />

Toda a gente tem família, toda a gente<br />

se apaixonou, toda a gente tem <strong>um</strong><br />

percurso.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 19


No caso do milagre cinematográfico,<br />

é preciso ver para crer. Por exemplo,<br />

aquele plano-sequência, em “As Quatro<br />

Voltas”/“Le Quattro Volte”, que<br />

se segue à morte do pastor que o pó<br />

das igrejas que ele dissolvia na água<br />

para acalmar a tosse não salvou, em<br />

que <strong>de</strong>corre a encenação da morte <strong>de</strong><br />

Jesus. N<strong>um</strong>a al<strong>de</strong>ia da Calábria, Itália,<br />

encena-se a Via Sacra, gladiadores<br />

romanos <strong>de</strong>scem a rua em procissão.<br />

Um homem morreu, o povo passa<br />

com a cruz, Jesus vai morrer também<br />

e <strong>um</strong> cão trabalha para o <strong>de</strong>saparecimento<br />

dos h<strong>um</strong>anos. Chama-se Vuk<br />

o pequeno exemplar que sorrateiramente<br />

toma conta do ecrã – cuidado<br />

com este cão: Prémio Especial do Júri<br />

da 10ª edição do alternativo Palmarés<br />

canino Palme Dog, em Cannes<br />

2010. A operação <strong>de</strong> sabotagem que<br />

ele comanda, <strong>um</strong>a carrinha, <strong>um</strong>a pedra<br />

a <strong>ser</strong>vir <strong>de</strong> travão e o travão que<br />

ele tira à carrinha, é triunfante.<br />

E lá se vão os h<strong>um</strong>anos, varridos para<br />

fora do enquadramento. E é também<br />

o triunfo das cabras, que inva<strong>de</strong>m a<br />

partir daí o ecrã. Nós é que ficamos<br />

boquiabertos, sem saber o que se passou<br />

ali ou como se passou ali: coreografia<br />

orquestrada n<strong>um</strong> microcosmos<br />

à Jacques Tati, espera paciente por<br />

qualquer coisa <strong>de</strong> milagroso a que o<br />

milagre respon<strong>de</strong>u afirmativamente<br />

ou mesmo, e para <strong>ser</strong>mos <strong>de</strong>stemidos<br />

na invocação, a mão Deus, que, aqui,<br />

é o realizador <strong>de</strong> cinema Michelangelo<br />

Frammartino?<br />

O cineasta quase se engasga, ao telefone,<br />

quando invocamos o divino a<br />

propósito do belíssimo (<strong>de</strong>s)equilíbrio<br />

que existe em “As Quatro Voltas” entre<br />

a espera pela manifestação da “realida<strong>de</strong>”<br />

e o empurrão que o cinema<br />

dá, com a manipulação, com a coreografia.<br />

“Essa sequência foi repetida 20 vezes”,<br />

conta-nos Frammartino, 43<br />

anos. “Eu tinha-a <strong>de</strong>senhado. Tinha<br />

mesmo feito <strong>um</strong> filme <strong>de</strong> animação.<br />

Para a concretizarmos, contratámos<br />

<strong>um</strong> treinador <strong>de</strong> cães, aqueles que<br />

preparam os cães para competições.<br />

É <strong>um</strong> tipo extraordinário: pensa como<br />

<strong>um</strong> cão. Isso para mim foi importante<br />

para esse plano-sequência. Não<br />

podia conceber <strong>um</strong>a cena absurda e<br />

obrigar <strong>um</strong> cão a fazê-la. Tinha <strong>de</strong> estar<br />

à altura das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

cão. E o treinador fez <strong>um</strong> milagre,<br />

conseguiu que o cão tomasse conta<br />

do território, conseguiu que ele memorizasse<br />

o lugar e que reagisse a<br />

quem entrasse nele. E eu tive <strong>de</strong> pensar<br />

n<strong>um</strong> acordo entre as várias presenças<br />

nessa sequência: há h<strong>um</strong>anos,<br />

há <strong>um</strong> animal, há <strong>um</strong>a pedra, há árvores.<br />

Eu <strong>de</strong>via <strong>ser</strong> <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> tudo.”<br />

O realizador pensa como <strong>um</strong> cão.<br />

Logo a seguir o espectador sente-se<br />

como <strong>um</strong>a cabra – eis a proposta <strong>de</strong><br />

“As Quatro Voltas”, filme que mexe<br />

na nossa natureza. Frammartino diz<br />

que esse plano-sequência (quem não<br />

for convertido por ele é incrédulo sem<br />

remédio, não vale a pena andar então<br />

à procura <strong>de</strong> milagres) é <strong>um</strong>a súmula<br />

concentrada do seu projecto: o <strong>de</strong>saparecimento<br />

da hierarquia que coloca<br />

a figura h<strong>um</strong>ana (e os diálogos) no<br />

topo da pirâmi<strong>de</strong>, a maravilhosa contradição,<br />

que anima o filme, entre o<br />

realizador controlador e o realizador<br />

à mercê.<br />

“Em outros episódios – por exemplo,<br />

naquele do nascimento da cabra<br />

–, a minha possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> controlo<br />

tornou-se menor. Não podia pedir<br />

mais às coisas. O meu po<strong>de</strong>r pô<strong>de</strong> libertar-se<br />

mais na cena do cão, mas<br />

nos outros episódios tornou-se mais<br />

débil, sem eu po<strong>de</strong>r fazer nada – ainda,<br />

por exemplo, a cena da festa da<br />

árvore – a não <strong>ser</strong> ob<strong>ser</strong>var. O homem<br />

O ano em que<br />

e homem, e mineral, e vegetal...<br />

Há milagre na al<strong>de</strong>ia. E como é preciso ver para crer, vamos todos em procissão em<br />

E em que o realizador, Michelangelo Frammartino,<br />

20 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


“O meu acesso<br />

ao invisível foi feito<br />

através do cinema:<br />

a imagem como meio<br />

<strong>de</strong> assinalar algo <strong>de</strong><br />

maior, <strong>um</strong>a presença.<br />

A minha igreja<br />

foi o cinema”<br />

<strong>de</strong>saparece narrativamente, mas também<br />

o realizador.”<br />

Eis a contradição, que Frammartino<br />

acolhe, mesmo que se tenha engasgado<br />

quando lhe falámos na (sua)<br />

mão <strong>de</strong> Deus: e então a montagem,<br />

que estabelece <strong>um</strong> acordo entre os<br />

vários segmentos das cenas da vida<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a al<strong>de</strong>ia da Calábria? E então<br />

essa linha “narrativa” <strong>de</strong> sucessivas<br />

– quatro – vidas e reencarnações que<br />

liga o h<strong>um</strong>ano, o animal, o vegetal e<br />

o mineral, e que começa no carvão e<br />

com os carvoeiros e ao carvão faz tudo<br />

regressar, “ashes to ashes”?<br />

“É verda<strong>de</strong>, e ainda por cima a<br />

montagem mudou muito o filme e<br />

<strong>de</strong>morou <strong>um</strong> ano, porque fomos filmando<br />

ao longo <strong>de</strong> três anos em condições<br />

diversas, em alguns dos casos<br />

sem dinheiro nenh<strong>um</strong>, e ficámos com<br />

material heterogéneo, o que se tornou<br />

complicado... Mas não sei como respon<strong>de</strong>r<br />

a essa questão. Procurei – e<br />

espero não estar a <strong>ser</strong> arrogante – respeitar<br />

a realida<strong>de</strong>. Deixá-la falar. O<br />

conflito que habitualmente se tem<br />

com a realida<strong>de</strong> quando se filma, tentei<br />

perdê-lo. É claro que, quando filmo<br />

as cabras, elas não são apenas<br />

cabras. Que quando filmo o homem,<br />

ele não é apenas o homem. Como se<br />

houvesse <strong>um</strong>a concepção da realida<strong>de</strong><br />

como <strong>um</strong>a superfície que cobre<br />

algo, outra coisa, como <strong>um</strong> vestido.<br />

Mas ao mesmo tempo posso permitir<br />

que as coisas aconteçam. Um Deusrealizador<br />

é aquele que constrói tudo<br />

meticulosamente. Em vez disso eu<br />

aqui não sou forte. Este filme <strong>de</strong>ixa<br />

muito espaço ao espectador, <strong>de</strong>ixa<br />

que ele tome posse da imagem. Não<br />

lhe diz tudo.”<br />

A igreja é o cinema<br />

Frammartino nasceu em Milão, no<br />

Norte <strong>de</strong> Itália. A Calábria é a terra da<br />

família. Ali realizou o seu primeiro<br />

filme, “Il Dono” (2002). É <strong>um</strong> “espaço<br />

<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>” para Michelangelo: “filmes<br />

sem dinheiro, sem arg<strong>um</strong>ento”<br />

ali po<strong>de</strong>m fazer-se, na Calábria.<br />

Um amigo, fotógrafo, falou-lhe dos<br />

carvoeiros. Frammartino foi ob<strong>ser</strong>válos.<br />

Depois ob<strong>ser</strong>vou <strong>um</strong> ritual, a festa<br />

da árvore. E <strong>de</strong>pois juntou-se aos<br />

pastores <strong>de</strong> cabras.<br />

“E sem saber bem o que fazer com<br />

este ‘material’... mas foi então que<br />

tive <strong>um</strong>a il<strong>um</strong>inação: percebi que estas<br />

quatro coisas para que eu estava<br />

a olhar, o h<strong>um</strong>ano, o mineral, o vegetal<br />

e o animal, tinham <strong>um</strong>a conexão<br />

imprevista. E lembrei-me da presença<br />

<strong>de</strong> Pitágoras [filósofo e matemático<br />

grego] na Calábria e das suas teorias<br />

sobre a transmigração das almas, e<br />

lembrei-me das tradições animistas<br />

daquela região, <strong>um</strong>a coisa muito forte.<br />

Disse a mim próprio: ‘a reencarnação<br />

não me interessa’, e por isso<br />

resisti. Mas acabei por ce<strong>de</strong>r. É <strong>um</strong><br />

filme que me chegou, portanto, <strong>de</strong><br />

fora.”<br />

Filho <strong>de</strong> <strong>um</strong>a família calabresa que<br />

se dividiu em duas – o lado da mãe,<br />

O animal,<br />

o vegetal,<br />

o h<strong>um</strong>ano,<br />

o mineral sem<br />

priorida<strong>de</strong>s<br />

n<strong>um</strong>a<br />

hierarquia:<br />

“As Quatro<br />

Voltas”<br />

Michelangelo<br />

Frammartino<br />

passou anos<br />

a ob<strong>ser</strong>var<br />

<strong>um</strong>a al<strong>de</strong>ia da<br />

Calábria<br />

fomos cabra,<br />

direcção a “As Quatro Voltas”. O filme em que somos homem, animal, mineral e vegetal.<br />

, teve <strong>de</strong> pensar como <strong>um</strong> cão. Vasco Câmara<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 21


Al<strong>de</strong>ia antes<br />

da procissãoe<br />

da entrada em<br />

cena <strong>de</strong> Vuk,<br />

o cão (prémio<br />

do júri da<br />

alternativa<br />

Palme Dog,<br />

prémio canino<br />

durante<br />

Cannes 2010)<br />

camponês, muito religioso; o lado<br />

do pai, comunista e revolucionário –,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> jovem partilhou a crença paterna<br />

<strong>de</strong> que “a religião é o ópio do<br />

povo”.<br />

“Sempre fugi da religião. Foi através<br />

do cinema, e da pintura, que comecei<br />

a sentir a transcendência do<br />

invisível. O meu acesso ao invisível foi<br />

feito através do cinema: a imagem<br />

como meio <strong>de</strong> assinalar algo <strong>de</strong> maior,<br />

<strong>um</strong>a presença. A minha igreja foi o<br />

cinema.”<br />

(Fizemos aqui <strong>um</strong> parêntesis para<br />

invocar, a<strong>de</strong>quadamente, o santo nome<br />

<strong>de</strong> Roberto Rossellini: “Muito importante<br />

para mim. Lembro-me da<br />

primeira vez que vi ‘Viagem a Itália’,<br />

muito comovente. Um gran<strong>de</strong> sentido<br />

<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>. Comove-me. Um enormíssimo<br />

realizador”; já Pasolini “é<br />

mais difícil”: “Não consigo amar o seu<br />

cinema, mesmo se li muito dos seus<br />

escritos, era alguém muito atento nos<br />

<strong>de</strong>bates dos anos 70”.)<br />

Frammartino, como disse, resistiu,<br />

até que aquilo que viu na Calábria se<br />

lhe impôs e o atirou para <strong>um</strong> filme. É<br />

assim que as coisas se passam com<br />

ele. É por isso que este arquitecto <strong>de</strong><br />

formação e professor só tem duas<br />

longas-metragens na sua “carreira” e<br />

entre <strong>um</strong>a e outra distam sete anos.<br />

“Preciso <strong>de</strong> tempo para compreen<strong>de</strong>r<br />

que é importante fazer aquele<br />

filme. Como disse, antes <strong>de</strong> me <strong>de</strong>cidir<br />

por ‘As Quatro Voltas” resisti du-<br />

“Percebi que estas<br />

quatro coisas para<br />

que eu estava a olhar,<br />

o h<strong>um</strong>ano, o mineral,<br />

o vegetal e o animal,<br />

tinham <strong>um</strong>a conexão<br />

imprevista. E lembreime<br />

da presença <strong>de</strong><br />

Pitágoras [filósofo<br />

e matemático grego]<br />

na Calábria e das<br />

suas teorias sobre<br />

a transmigração das<br />

almas, e lembrei-me<br />

das tradições<br />

animistas daquela<br />

região, <strong>um</strong>a coisa<br />

muito forte”<br />

rante <strong>um</strong> ano. Não basta ter <strong>um</strong>a boa<br />

i<strong>de</strong>ia”.<br />

Desenha os projectos em vez <strong>de</strong> os<br />

escrever – quer dizer, escreve-os só<br />

no momento do produtor e do financiamento.<br />

“Quando penso n<strong>um</strong>a imagem,<br />

sinto que o esforço <strong>de</strong> escrita é<br />

<strong>de</strong> natureza diversa, sinto que vou<br />

contra a imagem; pelo contrário,<br />

quando faço esboços, porque não são<br />

propriamente <strong>de</strong>senhos, sinto que<br />

estou na mesma zona do cérebro, que<br />

isso não modifica o que tenho na cabeça.”<br />

Frammartino esperou muito tempo<br />

para o filme. Não esperou só pela imposição,<br />

<strong>de</strong>nto <strong>de</strong> si, <strong>de</strong>sse filme. Antes<br />

<strong>de</strong> o <strong>de</strong>senhar, passou anos em<br />

contacto com o que filmaria <strong>de</strong>pois.<br />

“Existem as intenções estéticas e as<br />

inevitabilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>um</strong> ‘set’. Quer dizer:<br />

eu queria colocar a câmara à espera<br />

do que pu<strong>de</strong>sse acontecer, mas<br />

não podia fazer tudo como queria,<br />

porque não tinha película para isso.<br />

Mas as coisas ‘aconteceram’ antes.<br />

Estive dois anos a ob<strong>ser</strong>var aquela<br />

al<strong>de</strong>ia. Passei meses com os pastores.<br />

Ou seja, pu<strong>de</strong> prever. Coloquei-me<br />

muito antes n<strong>um</strong>a situação <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>.<br />

Sabia, por exemplo, que se chovesse,<br />

as cabras fariam <strong>de</strong>terminada<br />

coisa” – mas é <strong>um</strong>a experiência nova<br />

para o espectador ficar a ver o que<br />

<strong>um</strong>a cabra po<strong>de</strong> fazer e como <strong>um</strong>a<br />

cabra po<strong>de</strong> tomar conta <strong>de</strong> <strong>um</strong> ecrã.<br />

“Tudo o que acontece no filme eu vi<br />

antes. Limitei-me a colocá-lo n<strong>um</strong>a<br />

<strong>de</strong>terminada parte do filme.” Ou seja,<br />

belíssima contradição final: o que parece<br />

<strong>ser</strong> <strong>um</strong> doc<strong>um</strong>entário <strong>de</strong> ob<strong>ser</strong>vação<br />

é, no fim <strong>de</strong> contas, algo que<br />

se aproxima mais <strong>de</strong> <strong>um</strong>a reconstituição<br />

daquilo que se ob<strong>ser</strong>vou.<br />

Há <strong>um</strong> milagre nesta al<strong>de</strong>ia. E como<br />

é preciso ver para crer, vamos todos<br />

em procissão em direcção a “As Quatro<br />

Voltas”.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> filmes págs. 52 e segs.<br />

Frammartino<br />

passou meses<br />

com os pastores;<br />

quando<br />

filmou pô<strong>de</strong><br />

prever o que<br />

<strong>um</strong>a cabra<br />

faria em<br />

<strong>de</strong>terminada<br />

situação - e<br />

esperou que<br />

ela o fizesse<br />

para a câmara<br />

22 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


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PAULO PIMENTA<br />

Nos anos<br />

50 Oliveira<br />

fotografou <strong>um</strong><br />

familiar<br />

morto: “Entrei<br />

em casa e ela<br />

estava no<br />

meio <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

sala escura,<br />

<strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

can<strong>de</strong>eiro<br />

e ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong><br />

uns senhores,<br />

<strong>de</strong>itada com<br />

o vestido<br />

<strong>de</strong> noiva<br />

n<strong>um</strong>a ‘chaise<br />

longue’ azul<br />

clara. Parecia<br />

sorrir,<br />

não parecia<br />

morta.”<br />

É a origem<br />

<strong>de</strong>ste filme<br />

24 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


“O cinema<br />

é o espelho da vida,<br />

não temos outro”<br />

“O Estranho<br />

Caso <strong>de</strong><br />

Angélica”<br />

(2010) e<br />

“Francisca”<br />

(1981): a vida<br />

fantomática ,<br />

sonâmbula,<br />

das<br />

personagens<br />

Após <strong>um</strong> extenso percurso internacional<br />

— Cannes, Toronto, Nova Iorque,<br />

São Paulo ou Viena —, com especial<br />

atenção dos EUA, cuja imprensa<br />

colocou o filme nas listas dos melhores<br />

<strong>de</strong> 2010, “O Estranho Caso <strong>de</strong> Angélica”<br />

chega às salas portuguesas. O<br />

caso angelical <strong>de</strong> Manoel <strong>de</strong> Oliveira.<br />

“Falei com o Dalai<br />

Lama e pus-lhe essa<br />

questão: se a pessoa<br />

morre e a alma passa<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> h<strong>um</strong>ano para<br />

<strong>um</strong>a fera, não per<strong>de</strong><br />

a evolução<br />

do raciocínio?”<br />

“O Estranho Caso <strong>de</strong> Angélica” é<br />

<strong>um</strong> filme cujo projecto remonta<br />

aos anos 50, inspirado n<strong>um</strong> caso<br />

pessoal.<br />

Sim, <strong>um</strong>a senhora na família da minha<br />

mulher adoeceu com o nascimento<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> filho. Fomos visitá-la, e a sua<br />

irmã mais velha, muito religiosa, disse-me:<br />

“A mãe gostava muito que fizesse<br />

<strong>um</strong>a fotografia.” Chocou-me<br />

muito, pois fazia muitas fotografias a<br />

vivos mas não a mortos, era <strong>de</strong>sagradável<br />

fotografar a morte. Entrei em<br />

casa e ela estava no meio <strong>de</strong> <strong>um</strong>a sala<br />

escura, <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> <strong>um</strong> can<strong>de</strong>eiro e<br />

ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> uns senhores, <strong>de</strong>itada<br />

com o vestido <strong>de</strong> noiva n<strong>um</strong>a “chaise<br />

longue” azul clara. Parecia sorrir, não<br />

parecia morta. O sorriso vem à superfície<br />

<strong>de</strong>pois da morte por se ver livre<br />

do sofrimento <strong>de</strong> <strong>um</strong>a doença.<br />

Peguei na máquina e apontei, <strong>um</strong>a<br />

Leica que, naquele tempo, duplicava<br />

a fotografia. Ao focar, fiz a experiência<br />

<strong>de</strong> ter <strong>um</strong>a parte do corpo a sair <strong>de</strong><br />

outra. Assim, estava morta e o espírito<br />

soltava-se, e foi esta i<strong>de</strong>ia que, mais<br />

tar<strong>de</strong>, me fez fazer o filme. Passava-se<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1946, quando os ju<strong>de</strong>us fugiam<br />

para Portugal para apanhar o<br />

avião para a América. A história tinha<br />

também, portanto, <strong>um</strong> ju<strong>de</strong>u que tinha<br />

fugido, intelectual e fotógrafo. E<br />

esse ju<strong>de</strong>u é convidado a ir fazer a<br />

fotografia.<br />

Há <strong>um</strong> trabalho <strong>de</strong> actualização,<br />

o contexto actual, o da crise.<br />

Mas há pormenores <strong>de</strong>sse outro<br />

tempo, a questão judaica.<br />

Em toda a fotografia e arte pictural é<br />

preciso que os artistas sejam cultos,<br />

as fotografias e os quadros representam-se<br />

a eles próprios, mas não falam<br />

nem se explicam. O mesmo po<strong>de</strong><br />

acontecer com o cinema: é preciso<br />

<strong>um</strong> certo estado <strong>de</strong> coisas que faça<br />

compreen<strong>de</strong>r. Tinha <strong>um</strong>a versão on<strong>de</strong><br />

colocava a questão: porque é que<br />

o ju<strong>de</strong>u é assim perseguido? Hoje já<br />

não valia a pena, basta a palavra “ju<strong>de</strong>u”<br />

para ass<strong>um</strong>ir <strong>um</strong> significado. Na<br />

altura, era Hitler quem os perseguia,<br />

mas hoje também são perseguidos<br />

quando se diz que é necessário <strong>de</strong>struir<br />

Israel. Daí a actualização, pois o<br />

que se passava n<strong>um</strong>a <strong>de</strong>terminada<br />

circunstância passa-se hoje noutra.<br />

Bastava o nome “Isaac” para dar o seu<br />

tom.<br />

Por outro lado, era difícil con<strong>ser</strong>var<br />

o filme à época. Tinha facilida<strong>de</strong> em<br />

filmar na mesma casa, mas quando<br />

antes havia <strong>um</strong>a só ponte da vista sobre<br />

o rio, hoje há três. A fisionomia<br />

da cida<strong>de</strong> mudou. Retornar à época<br />

passada <strong>ser</strong>ia horrível. De resto, é tudo<br />

<strong>um</strong>a situação enigmática, nada é<br />

verda<strong>de</strong>iramente explicado. Toda a<br />

arte se baseia no “supõe-se”, no “crêse<br />

que”.<br />

Neste filme diz-se: “apenas<br />

muda a circunstância do<br />

homem.” Mas várias outras<br />

coisas mantêm-se: a paixão que<br />

move os sentimentos, a morte<br />

que termina com os impulsos.<br />

Essa inevitabilida<strong>de</strong> é algo que<br />

percorre as suas obras.<br />

Nos filmes, como em qualquer obra<br />

<strong>de</strong> arte, há sempre <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> parte<br />

do subconsciente do artista do qual<br />

ele não se dá conta. Por isso, as obras<br />

enriquecem com o tempo, a crítica<br />

vai <strong>de</strong>scobrindo partes mais ignoradas<br />

e as obras ficam mais ricas do que<br />

quando saem. Na verda<strong>de</strong>, o homem<br />

não mudou, apenas aquilo que fez: o<br />

progresso. A natureza do homem é a<br />

mesma: a inveja, a vingança, as paixões<br />

ou o amor são manifestações da<br />

natureza do homem que não mudaram<br />

nada. Há pessoas que, às vezes,<br />

mudam <strong>de</strong> partido. Eu pergunto: também<br />

mudam <strong>de</strong> natureza? Ela é a mesma,<br />

e é nela que está todo o bem e o<br />

mal do homem.<br />

Nas suas obras, a natureza<br />

intervém nos momentos<br />

<strong>de</strong>cisivos. Neste filme, Isaac<br />

parece mover-se pela paixão,<br />

para além da racionalida<strong>de</strong>.<br />

Espinoza disse: “Supomo-nos livres<br />

porque ignoramos as forças obscuras<br />

que nos comandam.” Somos movidos<br />

por impulsos que ignoramos da natureza:<br />

o ódio, o amor, a paixão, a<br />

bonda<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong>-se quase perguntar se<br />

somos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes porque ninguém<br />

nasceu por vonta<strong>de</strong> própria. Seremos<br />

verda<strong>de</strong>iramente responsáveis pelos<br />

nossos actos? Temos a justiça que nos<br />

torna responsáveis e a evolução que<br />

o homem tem engendrado, mas não<br />

somos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. Somos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />

das circunstâncias, e por isso<br />

cito Ortega y Gasset no filme. Tornamo-nos<br />

responsáveis perante a lei e<br />

pela justiça, mas na verda<strong>de</strong> somos<br />

<strong>um</strong> joguete do <strong>de</strong>stino.<br />

A paixão <strong>de</strong> Isaac revela-se pela<br />

lente do fotógrafo, quando ele<br />

tenta captar o in<strong>de</strong>cifrável - a<br />

morte -, algo que tem também a<br />

ver com a função do cinema.<br />

Porque o cinema tem tudo a ver com<br />

a vida, tal como a arte. José Régio,<br />

gran<strong>de</strong> poeta português, dizia que a<br />

originalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong>a obra <strong>de</strong> arte está<br />

na personalida<strong>de</strong> do artista que a<br />

faz. Na Renascença, os pintores pintavam<br />

todos o mesmo: as Madonnas,<br />

o Menino Jesus e Nosso Senhor. Mas<br />

eram todos diferentes.<br />

Quando Isaac chega à cida<strong>de</strong><br />

e vê o trabalho dos homens na<br />

terra, parece dividido entre essa<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> corpo e o <strong>de</strong>sejo pelo<br />

absoluto <strong>de</strong> Angélica. Em certas<br />

alturas, está no quarto a pensar<br />

no seu espírito mas ouvimos os<br />

homens a trabalhar.<br />

Será <strong>um</strong> contraste entre a paixão e a<br />

libertação em que me pergunto se<br />

Isaac <strong>ser</strong>á, ou não, <strong>um</strong> apaixonado.<br />

Ou seja, se haverá <strong>um</strong> espírito que o<br />

liberte do pesa<strong>de</strong>lo que são os ca-<br />

Na estreia <strong>de</strong> “O Estranho Caso <strong>de</strong> Angélica”, <strong>um</strong>a conversa com o cineasta sobre as paixões<br />

por trás dos seus filmes. Francisco Valente<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 25


Isaac:<br />

o conflito<br />

entre o corpo<br />

e o <strong>de</strong>sejo<br />

<strong>de</strong> absoluto<br />

“A natureza<br />

do homem é a mesma:<br />

a inveja, a vingança,<br />

as paixões ou o amor<br />

são manifestações da<br />

natureza do homem<br />

que não mudaram<br />

nada. Há pessoas que,<br />

às vezes, mudam <strong>de</strong><br />

partido. Eu pergunto:<br />

também mudam<br />

<strong>de</strong> natureza? Ela<br />

é a mesma, e é nela<br />

que está todo o bem<br />

e o mal do homem”<br />

vadores e que é a nossa vida em<br />

<strong>de</strong>terminadas circunstâncias. Em<br />

“Guerra e Paz” [Lev Tolstói], há <strong>um</strong><br />

nobre que está moribundo, sabe que<br />

vai morrer e pergunta-se o que é a<br />

morte. A certa altura, olha para <strong>um</strong><br />

canto do seu quarto on<strong>de</strong> se encontra<br />

<strong>um</strong>a porta. E aí vê: a morte é <strong>um</strong>a<br />

porta. É algo que me ficou sempre<br />

comigo, acho extraordinário.<br />

É <strong>um</strong>a imagem <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

simplicida<strong>de</strong>.<br />

Mas muito enigmática, porque toda<br />

a porta que dá para <strong>um</strong>a saída, dá<br />

para <strong>um</strong>a entrada. Na vida material<br />

on<strong>de</strong> vivemos sabemos para on<strong>de</strong> dá<br />

a porta quando morremos: o cemitério.<br />

Espiritualmente, a morte é absoluta<br />

ou pen<strong>de</strong>nte? No filme, o espírito<br />

leva Isaac e salva-o da situação<br />

angustiosa em que vivia. Mas é difícil<br />

explicar as coisas que não têm explicação.<br />

Sentem-se, percebem-se, nada<br />

mais.<br />

A morte é <strong>um</strong> dos maiores<br />

mistérios. Mas neste filme<br />

filma-a, <strong>de</strong> facto, ou o seu<br />

espírito.<br />

Sim, o espírito. Tem a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que<br />

toda a matéria é imóvel? Toda ela se<br />

move na vida pela força do espírito,<br />

é este que a anima. E quando a pessoa<br />

morre, o espírito solta-se.<br />

Quando estava no colégio <strong>de</strong> jesuítas,<br />

em Espanha, diziam-nos que,<br />

<strong>de</strong>pois da morte, as almas vão para o<br />

purgatório. Cheguei à conclusão, na<br />

ingenuida<strong>de</strong> dos meus 16 anos, que<br />

o mundo era <strong>um</strong>a fábrica <strong>de</strong> almas.<br />

Hoje, penso n<strong>um</strong>a imagem muito certa:<br />

os rios. Têm <strong>um</strong>a vida e passam<br />

por ela torturados, e quando <strong>de</strong>saguam<br />

no mar, per<strong>de</strong>m a sua personalida<strong>de</strong><br />

pois juntam-se ao absoluto.<br />

Depois, vem o calor, a evaporação e<br />

as chuvas que caem sobre a terra. A<br />

fonte renasce e o rio continua. Vamos<br />

sempre para o absoluto, e <strong>de</strong>pois <strong>um</strong><br />

retorno que gera continuida<strong>de</strong>. Para<br />

os budistas, quando morre <strong>um</strong>a pessoa,<br />

a alma sai e po<strong>de</strong> instalar-se n<strong>um</strong><br />

gato. Falei com o Dalai Lama e pus-lhe<br />

essa questão: se a pessoa morre e a<br />

alma passa <strong>de</strong> <strong>um</strong> h<strong>um</strong>ano para <strong>um</strong>a<br />

fera, não per<strong>de</strong> a evolução do raciocínio?<br />

Disse-me que não, pois o que<br />

conta é o esforço. Percebi que a vida,<br />

em si mesmo, é <strong>um</strong> esforço enorme<br />

em tudo que fazemos. Mas é ele que<br />

activa a imaginação.<br />

Jean Renoir foi à Índia filmar “O<br />

Rio Sagrado” (1951).<br />

O rio é <strong>um</strong>a crença da Índia. Tomam<br />

banho nele, purificam-se naquela<br />

água. Mas é também <strong>um</strong>a personalida<strong>de</strong>.<br />

O mar é que não, tem <strong>um</strong> nome<br />

mas recebe água <strong>de</strong> todos os lados,<br />

anula esse pensamento. Não se sabe<br />

que bocado vem <strong>de</strong> que rio, abstraise.<br />

Isaac comporta-se como <strong>um</strong><br />

sonâmbulo, vive focado no<br />

sonho <strong>de</strong> Angélica. Sobre<br />

“Francisca” (1981), João<br />

Bénard da Costa escreveu: “o<br />

comportamento fantomático e<br />

errático dos seus personagens<br />

é muito mais <strong>de</strong>terminado<br />

por quem os visita durante a<br />

noite e o sono, <strong>de</strong> que pelos<br />

acontecimentos ocorridos à<br />

luz do dia. Nesse sentido, os<br />

personagens <strong>de</strong> Oliveira (...)<br />

são sonâmbulos, separados do<br />

mundo, embora continuando<br />

nele.” E em relação à<br />

personagem <strong>de</strong> “Benil<strong>de</strong> ou a<br />

Virgem Mãe” (1975): “ela própria<br />

é sonâmbula (...) e todo o seu<br />

comportamento é <strong>de</strong>terminado<br />

pelo que durante esses sonhos<br />

se possa ter passado e <strong>de</strong> que<br />

não guarda — acordada —<br />

qualquer memória.”<br />

Parece-me bem, explica “Angélica”.<br />

Eu também preciso <strong>de</strong> explicações...<br />

Não vejo tudo e a vida está construída<br />

<strong>de</strong>ssa forma. Vivemos n<strong>um</strong> segredo<br />

que nos é vedado. Há várias crenças,<br />

e admiro muito a figura <strong>de</strong> Cristo, divina<br />

ou não, já não importa, mas que<br />

reconhece que a natureza h<strong>um</strong>ana é<br />

fraca. É ele que abre o campo da tolerância<br />

para a fraqueza do homem,<br />

que é capaz <strong>de</strong> fazer coisas terríveis.<br />

Essa convicção é interessante na figura<br />

<strong>de</strong> Cristo por <strong>ser</strong> extraordinária,<br />

não vejo que em parte nenh<strong>um</strong>a tenha<br />

sido ultrapassada.<br />

A fraqueza do homem, neste<br />

filme, faz com que o que era<br />

amor, para Isaac, se torne<br />

também n<strong>um</strong> vício.<br />

Na Bíblia, há <strong>um</strong>a passagem on<strong>de</strong> se<br />

interroga Cristo: “alguém que casou<br />

três vezes, quando morrer e for para<br />

o céu, qual <strong>ser</strong>á a sua mulher?” E Cristo<br />

respon<strong>de</strong>: “No céu, as coisas são<br />

diferentes.” Mas caímos sempre na<br />

dúvida. No livro <strong>de</strong> São Paulo, que diz<br />

que o espírito é como o ar que se respira,<br />

lê-se: “se Cristo não ressuscitou,<br />

toda a nossa fé é vã.” É <strong>um</strong>a palavra<br />

terrível.<br />

Vendo como Isaac procura<br />

o absoluto, é isso que busca,<br />

quando diz que Angélica atenua<br />

ou elimina as suas angústias na<br />

terra.<br />

Por isso, quando Angélica o leva,<br />

juntam-se. Já não é <strong>um</strong>a pessoa, é espírito.<br />

Está limpo da vingança, malda<strong>de</strong><br />

e bonda<strong>de</strong>. O cadáver fica e ele<br />

junta-se aos outros espíritos. Tanto<br />

<strong>de</strong>sisti <strong>de</strong> fazer este filme que foi o<br />

produtor que me pediu para fazê-lo,<br />

porque partia do princípio que o cinema<br />

não filma sonhos nem pensamentos.<br />

Mas provoca-os.<br />

Sim, mas não os filma. O sonho, no<br />

mudo, não tinha nem som, nem palavra.<br />

Não há barulhos no sonho, logo<br />

o cinema mudo era bastante onírico.<br />

Quando ganhou a palavra e a cor,<br />

tornou-se mais realista.<br />

Há <strong>um</strong>a homenagem a Georges<br />

Méliès neste filme.<br />

Com certeza. Todo o cinema ficou<br />

inventado <strong>de</strong> entrada: L<strong>um</strong>ière <strong>de</strong>u<br />

o realismo, Méliès a fantasia e Max<br />

Lin<strong>de</strong>r o cómico. Está tudo lá, não há<br />

mais nada.<br />

A sua essência não muda para<br />

além da evolução tecnológica.<br />

Porque todos os efeitos especiais pertencem<br />

à técnica, não à arte. Para<br />

além disto, sugerimos o inacreditável.<br />

On<strong>de</strong> po<strong>de</strong>mos ir mais longe do que<br />

aquilo que somos? Li <strong>um</strong> realizador<br />

dizer que quando apresentava <strong>um</strong><br />

filme novo, se ouvia que era o filme<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> realizador, ficava triste.<br />

Mas se ouvia que era <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> filme,<br />

ficava contente. Isto é evi<strong>de</strong>nte: o realizador<br />

não <strong>de</strong>ve mostrar-se. Mostra<br />

o inconcebível, mas não se mostra a<br />

ele próprio.<br />

Sobre o seu espólio a dar à<br />

cida<strong>de</strong> do Porto ainda não se<br />

encontrou solução?<br />

Está-se a estudar, mas é difícil e a crise<br />

dificulta mais. Gostava <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar<br />

<strong>um</strong>a reportagem familiar. É para a<br />

memória, assim sempre fica.<br />

Quanto à nossa memória, a<br />

vida da Cinemateca está a<br />

estrangular-se, não chegam<br />

autorizações para os seus<br />

<strong>ser</strong>viços.<br />

É <strong>um</strong> crime. Basta <strong>um</strong>a inundação ou<br />

<strong>um</strong> incêndio para <strong>de</strong>saparecer tudo.<br />

A nossa memória está nos livros, nas<br />

pinturas e nos filmes. Dizia Arturo<br />

Ripstein, <strong>um</strong> realizador mexicano,<br />

que os governos <strong>de</strong>viam ajudar os realizadores<br />

não por favor mas por obrigação,<br />

porque o cinema é o espelho<br />

da vida, não temos outro.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> filmes págs. 52 e segs.<br />

26 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


SÃO<br />

LUIZ<br />

MAI ~11<br />

APOIO<br />

Encenação<br />

Gonçalo Amorim<br />

Adaptação<br />

Emília Costa<br />

Assistência<br />

<strong>de</strong> encenação<br />

e Dramaturgia<br />

Ana Bigotte Vieira<br />

Assistência<br />

<strong>de</strong> encenação<br />

e Movimento<br />

Vânia Rovisco<br />

Cenografia<br />

Rita Abreu<br />

Assistência<br />

<strong>de</strong> cenografia<br />

Raquel Albino<br />

Figurinos<br />

e A<strong>de</strong>reços<br />

Ana Limpinho<br />

Maria João Castelo<br />

Música original<br />

Paulo Furtado<br />

Rita Redshoes<br />

Desenho <strong>de</strong> luz<br />

José Manuel Rodrigues<br />

Sonoplastia<br />

Sérgio Milhano<br />

Ví<strong>de</strong>o<br />

Fre<strong>de</strong>rico Lobo<br />

Intérpretes<br />

António Fonseca<br />

Carla Galvão<br />

Carla Maciel<br />

Duarte Guimarães<br />

Iris Cayatte<br />

Joana <strong>de</strong> Verona<br />

João Villas Boas<br />

Mónica Garnel<br />

Nicolas Brites<br />

Raquel Castro<br />

Romeu Costa<br />

Vânia Rovisco<br />

14<br />

15<br />

episódios 1 e 2<br />

Quarta às 21h00<br />

episódios 3 e 4<br />

Quinta às 21h00<br />

todos os episódios<br />

Sexta a Domingo às 18h00<br />

sessão com interpretação<br />

em língua gestual<br />

portuguesa:<br />

domingo, 15 mai<br />

SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />

RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA<br />

GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT; TEL: 213 257 640<br />

BILHETES À VENDA EM WWW.TEATROSAOLUIZ.PT,<br />

WWW.BILHETEIRAONLINE.PT E ADERENTES<br />

BILHETEIRA DAS 13H00 ÀS 20H00<br />

TEL: 213 257 650 / BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />

www.teatrosaoluiz.pt<br />

SÃO<br />

LUIZ<br />

MAI ~11<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

& Five Elements<br />

Astronomical/Astrological<br />

Music Project<br />

www.casadamusica.com | www.casadamusica.tv · T 220 120 220<br />

APOIO<br />

INSTITUCIONAL<br />

PATROCINADOR OFICIAL<br />

PAÍS TEMA<br />

PATROCINADOR PRINCIPAL<br />

PAÍS TEMA<br />

MECENAS CICLO JAZZ MECENAS CASA DA MÚSICA APOIO INSTITUCIONAL MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICA<br />

SEJA UM DOS PRIMEIROS A APRESENTAR HOJE ESTE JORNAL COMPLETO NA CASA DA MÚSICA E GANHE UM CONVITE DUPLO PARA ESTE<br />

CONCERTO. OFERTA LIMITADA AOS PRIMEIROS 10 LEITORES E VÁLIDA APENAS PARA UM CONVITE POR JORNAL E POR LEITOR.


A vida<br />

no lixo<br />

Um fim do fim: Jardim Gramacho, arredores do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, a maior lixeira do mundo. O artista plástico Vik<br />

Muniz quis trabalhar aqui e isso <strong>de</strong>u <strong>um</strong> doc<strong>um</strong>entário<br />

que se estreou esta semana em Portugal, “Lixo<br />

Extraordinário”. Alexandra Lucas Coelho, no Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

Sim, Rivaldo ouviu falar vagamente<br />

do Jardim Gramacho. Muitos brasileiros<br />

ouviram falar vagamente do<br />

Jardim Gramacho, mais ainda <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que o artista plástico Vik Muniz <strong>de</strong>cidiu<br />

usá-lo na sua obra, e isso <strong>de</strong>u <strong>um</strong><br />

doc<strong>um</strong>entário candidato ao Oscar:<br />

“Lixo Extraordinário”. Não ganhou,<br />

mas já ganhara prémios do público<br />

nos festivais <strong>de</strong> Sundance e Berlim,<br />

e continua a correr mundo. Terçafeira<br />

abriu o FESTin, no Cinema São<br />

Jorge, em Lisboa, com a presença <strong>de</strong><br />

Muniz e <strong>de</strong> <strong>um</strong> dos realizadores, João<br />

Jardim, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ontem está em exibição<br />

nas salas portuguesas.<br />

Disto, Rivaldo, o taxista carioca, não<br />

ouviu falar. Só sabe que Jardim Gramacho<br />

não é nenh<strong>um</strong> jardim. “É <strong>um</strong><br />

lixão, não?”, pergunta, crucifixo a balouçar<br />

no espelho do carro, Cristo<br />

Re<strong>de</strong>ntor atrás das costas, enquanto<br />

avançamos cada vez mais para Norte.<br />

Um lixão, sim. Mais exactamente, a<br />

maior lixeira do mundo: nove mil toneladas<br />

<strong>de</strong> lixo por dia, 60 milhões <strong>de</strong><br />

toneladas já ac<strong>um</strong>uladas. Vamos pela<br />

Linha Vermelha, a via rápida que vai<br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro ao aeroporto internacional.<br />

Só que <strong>de</strong>pois do aeroporto<br />

continuamos, e continuamos, até Duque<br />

<strong>de</strong> Caxias, na Baixada Fl<strong>um</strong>inense.<br />

Nem duques nem jardins. Fábricas,<br />

favelas, <strong>de</strong>solação, violência.<br />

Tião tinha dito: primeira rua <strong>de</strong>pois<br />

da Volvo. Tião, ou seja Sebastião Santos,<br />

o catador protagonista <strong>de</strong> “Lixo<br />

Extraordinário”. Um catador é aquele<br />

que cata aquilo que se po<strong>de</strong> reciclar,<br />

e portanto ven<strong>de</strong>r. No Jardim<br />

Gramacho trabalham 1200 catadores.<br />

Vik Muniz encenou os retratos <strong>de</strong> al-<br />

guns<br />

<strong>de</strong>les, trabalhou as fotografias,<br />

e o doc<strong>um</strong>entário — realizado por<br />

Lucy Walker, João Jardim e Karen<br />

Harley — acompanhou<br />

todo o processo: idas à lixeira,<br />

escolha das personagens,<br />

trabalho em estúdio,<br />

leilões internacionais, a alte-<br />

ração das vidas<br />

dos catadores<br />

protagonis-<br />

tas.<br />

O resultado emociona: plateias a<br />

chorar. Mas é possível alterar realmente<br />

aquelas vidas? E se for, é legítimo?<br />

Quem ganha com isso? O artista?<br />

Os catadores? O filme? Debates<br />

que o próprio filme esboça.<br />

Além <strong>de</strong> dinheiro para <strong>um</strong>a casa<br />

nova, Tião viu-se em Londres e nos<br />

Oscars. Tem planos para melhorar a<br />

vida dos catadores e para projectos<br />

ecológicos.<br />

Entretanto, no Jardim Gramacho,<br />

o <strong>de</strong>bate é mais acerca da sobrevivência.<br />

O segurança<br />

“Não <strong>de</strong>u nem para mim ver o filme”,<br />

diz José, negrão <strong>de</strong> tronco nu, cercado<br />

por sacos <strong>de</strong> lixo já escolhido. É o<br />

segurança da Cooperativa <strong>de</strong> Catadores<br />

li<strong>de</strong>rada por Tião. E Tião, que<br />

combinou com o Ípsilon aqui? “Veio<br />

e foi”, diz José.<br />

Rivaldo, o taxista, está boquiaberto,<br />

braços apoiados na porta do táxi.<br />

Olha o lixo, respira o cheiro, adivinha<br />

o resto.Depois da fábrica da Volvo lá<br />

dobrámos à direita, baldios com gente<br />

<strong>de</strong> tronco nu caminhando no calor.<br />

O cheiro cada vez mais próximo: pesado,<br />

<strong>de</strong>nso, podre.<br />

Se há <strong>um</strong> fim do fim, é aqui.<br />

Tião não aten<strong>de</strong> o telemóvel. A mulher,<br />

em casa, aten<strong>de</strong> e promete encontrá-lo.<br />

No telefonema seguinte<br />

explica que a mãe <strong>de</strong> Tião está no<br />

hospital e que ele teve <strong>de</strong> ir vê-la.<br />

Não, não vai <strong>ser</strong> possível estar com<br />

Tião hoje.<br />

José vai continuar sozinho pela manhã.<br />

Está com 55 anos. “Catei até ao<br />

ano opassado. Mas <strong>de</strong>pois adoeci e não<br />

fui mais, não.” O lixo em <strong>de</strong>composição<br />

produz gás. “A minha pressão<br />

piorou muito.” Como muitos dos catadores,<br />

veio <strong>de</strong> fora, neste caso <strong>de</strong><br />

Minas Gerais. Catou durante 25<br />

anos.<br />

“Tu-<br />

do o que vê aqui já catei”,<br />

diz, apontando os sacos<br />

encardidos. “Al<strong>um</strong>ínio, papelão, frascos,<br />

plástico fino, sucata…” Por cada<br />

<strong>um</strong> que sai, há <strong>um</strong> que vem. “É <strong>um</strong><br />

rodízio, noite e dia, homem e mulher,<br />

só não tem menor. Mas no<br />

Verão, ali no meio do lixo, é <strong>um</strong><br />

calor…”<br />

À beira da cooperativa<br />

sempre está mais<br />

tranquilo, embora<br />

<strong>de</strong>sarmado. “Eu e<br />

Deus.”<br />

As peças<br />

construídas<br />

com os<br />

<strong>de</strong>tritos<br />

ac<strong>um</strong>ulados<br />

na maior<br />

lixeira do<br />

mundo têm<br />

por base os<br />

retratos <strong>de</strong><br />

alguns dos<br />

1200<br />

catadores que<br />

trabalham no<br />

Jardim<br />

Gramacho<br />

Vik Muniz, o<br />

artista<br />

plástico que<br />

“Lixo<br />

Extraordi-<br />

nário”<br />

acompanhou<br />

A montanha<br />

Para chegar à entrada da lixeira, há<br />

que atalhar por caminhos <strong>de</strong> terra<br />

cheios <strong>de</strong> barracos, e <strong>de</strong>pois caminhos<br />

<strong>de</strong> asfalto, mas ainda com barracos.<br />

Entre os barracos, em vez <strong>de</strong><br />

hortas, animais ou tralha, há lixo. Sacos<br />

<strong>de</strong> lixo para ven<strong>de</strong>r, Contentores<br />

a transbordar, e em volta os restos que<br />

não se ven<strong>de</strong>m. Lixo, lixo, lixo.<br />

Não é a lixeira, ainda. É o entorno<br />

da lixeira. A al<strong>de</strong>ia-satélite dos que<br />

vivem do lixo e no lixo. Crianças correm<br />

e saltam no lixo, como se fosse<br />

terra ou erva. E há placas a anunciar<br />

sorvetes e açaí. Rapazes em motas.<br />

Bebés em triciclos.<br />

Mais perto da entrada oficial, <strong>um</strong>a<br />

Igreja Mundial do Po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus,<br />

anunciando o seu Templo dos Milagres.<br />

Um ônibus 016 Duque <strong>de</strong> Caxias-<br />

Jardim Gramacho. Camiões do lixo<br />

saindo. Ao fundo a placa: Aterro Metropolitano<br />

do Jardim Gramacho.<br />

Além da placa, <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> montanha<br />

ondulante, cor-<strong>de</strong>-barro.<br />

“O lixo está todo ali por baixo”, diz<br />

o segurança Marco, nor<strong>de</strong>stino do Rio<br />

Gran<strong>de</strong>. “É tipo <strong>um</strong>a balança. A terra<br />

é jogada em cima ao fim <strong>de</strong> dois, três


inteligentes. E tinha <strong>de</strong> procurar os<br />

lixeiros ignorantes, sem cultura, do<br />

jeito <strong>de</strong>les mesmo.”<br />

Passa <strong>um</strong> homem com <strong>um</strong> prato<br />

cheio <strong>de</strong> puré e <strong>um</strong>a coxinha. Aqui<br />

se come e se dorme, dinheiro no bolso.<br />

“Um dia <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> catador é<br />

<strong>de</strong> 100 reais para lá”, diz Maneco. “E<br />

sem esforço”, reforça <strong>um</strong> jovem Ramon<br />

que acaba <strong>de</strong> chegar.<br />

A catar o quê? “Al<strong>um</strong>ínio, papelão,<br />

plástico fino…”, aponta o veterano.<br />

“Hoje em dia o material está todo em<br />

alta. Al<strong>um</strong>ínio é o que dá mais dinheiro.<br />

Vem daqui: latinha, panela…”<br />

Pega para mostrar.<br />

Depois pergunta: “Quer ouvir minha<br />

história do lixo?” E lá vai: “Eu vim<br />

da Lixeira do Cajú. Menino já estava<br />

no lixo. Meu pai era dono <strong>de</strong> ferrovelho.<br />

Ele dizia: ‘O dinheiro que arr<strong>um</strong>ei<br />

é meu. Vocês se qui<strong>ser</strong>em façam<br />

por on<strong>de</strong>.’ Então como todo o mundo<br />

ganhava dinheiro do lixo, fui catar<br />

lixo com 13 anos. Até hoje, quando<br />

está ruim aqui, eu vou e cato. Quando<br />

a maré está brava, a gente arregaça<br />

as mangas e vai trabalhar.”<br />

É <strong>um</strong>a vida sem melhora. “Moro<br />

aqui mesmo, n<strong>um</strong> barraquinho <strong>de</strong><br />

ma<strong>de</strong>ira. Milhares <strong>de</strong> pessoas estão<br />

morando aqui. Cearenses, paraibanos,<br />

baianos, mineiros, pernambucanos,<br />

cariocas mesmo…”<br />

E doença, não tem? “Tem em qualquer<br />

lugar, não tem? A gente bota<br />

<strong>um</strong>a luva, <strong>um</strong>a bota, <strong>um</strong> chapéu para<br />

tapar do sol. A gente não vai com o<br />

corpo aberto. A coisa é dura, mas é<br />

por isso que ganha dinheiro. Se fosse<br />

fácil, a gente não ganhava.”<br />

“Mas quando teve o incêndio a gente<br />

per<strong>de</strong>u tudo”, resmunga <strong>um</strong> rapaz<br />

sujo e tatuado. Chama-se Cleverson.<br />

Veio pequeno da Paraíba, lá no Nor<strong>de</strong>ste.<br />

“Veio <strong>de</strong> lá comendo farinha!!!”,<br />

zombam os outros.<br />

“Tudo o que vê aqui<br />

já catei”, diz José,<br />

segurança<br />

da Cooperativa<br />

<strong>de</strong> Catadores<br />

do Jardim Gramacho,<br />

apontando os sacos<br />

encardidos.<br />

“Al<strong>um</strong>ínio, papelão,<br />

frascos, plástico fino,<br />

sucata… É <strong>um</strong> rodízio,<br />

noite e dia, homem<br />

e mulher, só não tem<br />

menor. Mas no Verão,<br />

ali no meio do lixo,<br />

é <strong>um</strong> calor…”<br />

O fim <strong>de</strong> Gramacho<br />

Maneco, cavalheiro, <strong>de</strong>scompõe <strong>um</strong><br />

dos rapazes que entretanto <strong>de</strong>ixa cair<br />

<strong>um</strong> saco sujo ao pés da repórter. Quer<br />

mostrar disciplina. Mas estamos perante<br />

<strong>um</strong> fim anunciado. Ontem mesmo<br />

começaram a chegar os camiões<br />

que lentamente vão transferir o lixo<br />

do Jardim Gramacho para o novo<br />

Centro <strong>de</strong> Tratamento <strong>de</strong> Seropédica,<br />

a bem da ecologia, anunciam as autorida<strong>de</strong>s.<br />

“Estamos encerrando <strong>um</strong><br />

crime ambiental que a cida<strong>de</strong> do Rio<br />

vem cometendo contra a Região Metropolitana<br />

e a Baía <strong>de</strong> Guanabara há<br />

anos”, disse o prefeito do Rio, Eduardo<br />

Paes. Mais: “Esta é a maior vitória<br />

ambiental da cida<strong>de</strong> em toda a sua<br />

história.”<br />

Vai <strong>de</strong>morar, mas já começou.<br />

“Eles estão querendo tirar o lixo<br />

daqui, dizendo que não está suportando<br />

mais, mas se o lixo acabar isso<br />

aqui vai virar <strong>um</strong>a Indonésia!”, proclama<br />

Maneco. “A maioria das pessoas<br />

vai passar fome! Muita gente <strong>de</strong>ixou<br />

<strong>de</strong> ter <strong>um</strong>a profissão lá fora.”<br />

Diz “lá fora” como se Gramacho<br />

fosse <strong>um</strong> mundo.<br />

E mostra o relógio no pulso, os<br />

anéis nos <strong>de</strong>dos. “Aqui no Jardim Gramacho,<br />

com tudo se ganha dinheiro.<br />

Está vendo? Tudo isso é do lixo. Vai<br />

<strong>de</strong>sperdiçar?”<br />

Cleverson abre <strong>um</strong>a lata <strong>de</strong> at<strong>um</strong><br />

com o bico negro <strong>de</strong> <strong>um</strong> facalhão,<br />

espeta pedaços e mete à boca.<br />

“Ouro, dinheiro, jóias”, prossegue<br />

Maneco. “Você acha tudo aqui… A<br />

vida é assim mesmo.”<br />

“É boa”, comenta Cleverson, mastigando<br />

mais <strong>um</strong> naco.<br />

“É muito dura”, corrige Maneco.<br />

“Mas a gente se acost<strong>um</strong>a.” Depois<br />

irrita-se com Cleverson por ele estar<br />

ali a comer como se tivesse tirado do<br />

lixo. “Depois vão dizer que a gente<br />

come do lixo. Eu não vivo <strong>de</strong> comida<br />

do lixo! Come besteira do lixo quem<br />

é burro!”<br />

Cleverson mastiga impávido.<br />

É avô, Maneco. E antes disso pai <strong>de</strong><br />

14 filhos, nada menos. On<strong>de</strong> estão?<br />

“Variado”, atalha ele. Filhos <strong>de</strong> várias<br />

mães. “O importante é que <strong>de</strong>i audiência<br />

para todos eles. Quando a gente<br />

é novo, tem os <strong>de</strong>ntes todos, a pele<br />

lisinha, arr<strong>um</strong>ar namorada é fácil…”<br />

Isto para dizer que agora está sozinho.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> filmes págs. 52 e segs.<br />

dias, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o lixo secar.” No filme<br />

vêem-se as gran<strong>de</strong>s pilhas acabadas<br />

<strong>de</strong> chegar, antes <strong>de</strong> <strong>ser</strong>em soterradas.<br />

Marco também não viu o filme, mas<br />

acha que “alg<strong>um</strong>a gente fica rica e os<br />

catadores [ficam] na miséria”. Aponta<br />

as barracas em fila, até à entrada:<br />

“Eles moram ali.”<br />

Maneco na esquina<br />

N<strong>um</strong> dos barracos, mulatos <strong>de</strong> tronco<br />

nu fazem <strong>de</strong>senhos com cabelo, rapando<br />

partes do crânio.<br />

À esquina, há <strong>um</strong> veterano sentado,<br />

<strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> rei. Um sofá esventrado<br />

e imundo faz as vezes <strong>de</strong> trono. “A<br />

minha história no lixo é longa…”, avisa<br />

o veterano. Chamam-lhe Maneco.<br />

Chega <strong>um</strong> rapaz, <strong>de</strong> lixo ao ombro.<br />

Maneco conta <strong>um</strong>as notas e paga-lhe.<br />

Já catou muito, agora compra o que<br />

outros catam.<br />

E viu o filme, sim senhor. “O Tião<br />

é muito meu amigo, mas eu não gostei<br />

do que ele fez. Porque ele só envolveu<br />

pessoas novas, que chegaram há pouco<br />

tempo. Fez <strong>um</strong>a coisa boa em valorizar<br />

a nossa imagem lá fora, mas<br />

tinha <strong>de</strong> pegar as pessoas antigas. Ele<br />

procurou pessoas mais cultas, mais<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 31


A lei do<br />

<strong>de</strong>sejo<br />

“Distancias Cortas / Close Distance”<br />

é Julião Sarmento, <strong>um</strong> dos<br />

acontecimentos mais significativos<br />

da arte contemporânea portuguesa,<br />

na Casa Encendida, em Madrid.<br />

Nuno Crespo, em Madrid<br />

Ele está ao fundo da sala, perto <strong>de</strong> <strong>um</strong> rádio...<br />

“Distancias Cortas / Close Distance”<br />

(até 5 <strong>de</strong> Junho na Casa Encendida,<br />

em Madrid) não é <strong>um</strong>a exposição antológica,<br />

nem preten<strong>de</strong> <strong>ser</strong> <strong>um</strong>a revisão<br />

dos principais momentos <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

carreira intensa que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década<br />

<strong>de</strong> 70 do século XX, se vem afirmando<br />

como <strong>um</strong> dos acontecimentos mais<br />

significativos da arte contemporânea<br />

portuguesa. Ass<strong>um</strong>e-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo,<br />

como escreve o comissário da exposição,<br />

o britânico Adrian Searle, como<br />

<strong>um</strong>a visão das “dualida<strong>de</strong>s — e talvez<br />

dialécticas — entre intimida<strong>de</strong> e distância,<br />

ausência e presença, coisas<br />

ditas e coisas silenciadas, ambiguida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> diferentes tipos e imagens altamente<br />

carregadas” que caracterizam<br />

o “modus operandi” <strong>de</strong> Julião<br />

Sarmento.<br />

Mais do que <strong>um</strong>a retrospectiva, a<br />

exposição <strong>de</strong> Madrid é <strong>um</strong>a visão <strong>de</strong><br />

conjunto: “Cada sala <strong>de</strong> La Casa Encendida”,<br />

diz Searle, “po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> entendida<br />

como <strong>um</strong>a pequena exposição<br />

individual dos diferentes trabalhos<br />

do artista”, contrapondo “diferentes<br />

atmosferas, diferentes tipos <strong>de</strong> confronto<br />

— entre escuridão e a l<strong>um</strong>inosida<strong>de</strong>,<br />

o fílmico e o físico, a imagem<br />

e o objecto; e, sobretudo, entre a proximida<strong>de</strong><br />

e a distância, a intimida<strong>de</strong><br />

e a estranheza”.<br />

“Distancias Cortas / Close Distance”<br />

apresenta-se, assim, não como<br />

<strong>um</strong>a aproximação à varieda<strong>de</strong> do trabalho<br />

<strong>de</strong> Sarmento, correndo em todas<br />

as direcções exploradas pelo artista,<br />

mas como tentativa <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação<br />

dos seus elementos centrais.<br />

Não existe <strong>um</strong>a tese, nem se propõe<br />

<strong>um</strong> elemento <strong>de</strong> união e coerência<br />

entre todos os trabalhos: esta exposição<br />

<strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> vista como <strong>um</strong>a espécie<br />

<strong>de</strong> recriação das experiências eriências mentares que alimentam cada<br />

ele-<br />

trabalho e que, segundo Searle,<br />

constituem <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> lugar<br />

on<strong>de</strong> o artista regressa mente. Aqui, também m o espectador<br />

po<strong>de</strong> participar nessas<br />

experiências, ass<strong>um</strong>indo<br />

<strong>um</strong> lugar próximo do do<br />

continua-<br />

artista e, <strong>de</strong>sta forma,<br />

vendo abolidas as habituais<br />

distâncias sujeitoobjecto.<br />

A esta distância, cur-<br />

RUI GAUDÊNCIO<br />

ta, as peças <strong>de</strong> Julião Sarmento não<br />

são objectos n<strong>um</strong>a exposição: são cenas<br />

vivas.<br />

Cometa<br />

O confronto corpo-a-corpo proposto<br />

pela exposição da Casa Encendida<br />

implica levar o espectador para o interior<br />

das cenas que se imagina po<strong>de</strong>rem<br />

ter estado na origem <strong>de</strong> cada<br />

obra <strong>de</strong> Sarmento, para o momento<br />

fundador cujos vestígios se po<strong>de</strong>m<br />

<strong>de</strong>tectar nas pinturas, nos <strong>de</strong>senhos<br />

e nas esculturas. Essas cenas configuram<br />

histórias <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, sedução, sexualida<strong>de</strong>:<br />

<strong>um</strong> <strong>de</strong>sejo que expressa<br />

<strong>um</strong>a fome h<strong>um</strong>ana e que não se po<strong>de</strong><br />

saciar; só é possível encontrar soluções<br />

temporárias, porque ele regressa<br />

incessantemente, impondo-se como<br />

<strong>um</strong>as das mais enérgicas forças<br />

em activida<strong>de</strong> e tomando a dianteira<br />

face a todas as outras <strong>de</strong>liberações.<br />

O <strong>de</strong>sejo, as pulsões e o movimento<br />

irrecusável do corpo são as energias<br />

que inva<strong>de</strong>m todos os trabalhos<br />

<strong>de</strong> Julião. É certo que a sexualida<strong>de</strong>,<br />

com todos os seus jogos <strong>de</strong> perversão,<br />

po<strong>de</strong>r e violência, emerge continuamente,<br />

mas o que lhe interessa é <strong>de</strong>screver<br />

a fisiologia do <strong>de</strong>sejo. O artista<br />

sabe que o <strong>de</strong>sejo é <strong>um</strong>a forma h<strong>um</strong>ana<br />

que só conhece imagens (as con-<br />

A tensão que percorre<br />

o trabalho <strong>de</strong> Julião<br />

Sarmento<br />

é a expectativa<br />

<strong>de</strong> ficar mais perto<br />

<strong>de</strong> qualquer coisa<br />

<strong>de</strong> que se estará<br />

sempre distante<br />

Julião<br />

Sarmento<br />

é <strong>um</strong> caso<br />

<strong>de</strong> sucesso<br />

a nível<br />

internacional<br />

... ela, aparentemente distante e indiferente, começa a dançar...<br />

“Cometa”, performance que po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> vista até 5 <strong>de</strong> Junho na Casa Encendida, sintetiza<br />

a reflexão <strong>de</strong> Julião Sarmento sobre a natureza insaciável do <strong>de</strong>sejo: não há inocência<br />

nem <strong>de</strong>vassidão, mas sucessivas tentativas <strong>de</strong> acalmar o <strong>de</strong>sejo, <strong>de</strong> se livrar da fome<br />

32 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


cretizações dos <strong>de</strong>sejos) provisórias.<br />

A cada passo, o <strong>de</strong>sejo renova-se e é<br />

como se não houvesse história: o <strong>de</strong>sejo<br />

<strong>de</strong> pão renova-se todas as manhãs,<br />

o do amor a cada novo amor, o<br />

do dia a cada noite. Esta sua natureza<br />

obriga a que só seja possível conhecer<br />

o <strong>de</strong>sejo através do modo como cada<br />

<strong>um</strong> se comporta na tentativa <strong>de</strong> o satisfazer<br />

os seus <strong>de</strong>sejos. E é esta <strong>de</strong>scrição<br />

fisiológica que Julião Sarmento<br />

ensaia em muitos dos seus trabalhos.<br />

“Cometa”, performance que po<strong>de</strong><br />

<strong>ser</strong> vista em Madrid, sintetiza todos<br />

estes aspectos. Uma sala fechada para<br />

a qual só po<strong>de</strong>m entrar poucas<br />

pessoas <strong>de</strong> cada vez: é preciso intimida<strong>de</strong><br />

e solidão. No interior, <strong>um</strong> homem<br />

e <strong>um</strong>a mulher sentados em vulgares<br />

ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira. A atmosfera<br />

é tensa, o ar abafado, quente, o<br />

ver<strong>de</strong> das pare<strong>de</strong>s electriza tudo e<br />

todos. Ele ao fundo da sala, perto <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong> rádio que passa Legendary Tiger<br />

Man. Ela, aparentemente distante e<br />

indiferente, começa a dançar. Todos<br />

os gestos são meticulosos e expressam<br />

<strong>um</strong>a força natural, sem mediação,<br />

livre <strong>de</strong> qualquer contexto social,<br />

cultural, icónico: é a pura animalida<strong>de</strong><br />

a querer expressar-se. Ele forte,<br />

alto, viril, as mãos pousadas sobre o<br />

sexo, com os olhos fixos sobre o corpo<br />

da mulher morena. E ela sozinha<br />

a percorrer a sala com os visitantes<br />

encostados à pare<strong>de</strong>. A dança solitária<br />

<strong>de</strong>pressa se transforma n<strong>um</strong> encontro:<br />

<strong>um</strong> corpo contra o outro, as<br />

mãos a percorrerem o corpo alheio;<br />

tocam-se, agarram-se, procuram-se.<br />

Não há inocência, nem <strong>de</strong>vassidão,<br />

mas sucessivas tentativas <strong>de</strong> <strong>ser</strong> com<br />

o outro, <strong>de</strong> acalmar o <strong>de</strong>sejo, <strong>de</strong> se<br />

livrar da fome.<br />

É <strong>um</strong>a dança sem fim: há momentos<br />

tranquilos, mas eles estão con<strong>de</strong>nados<br />

a voltar repetidamente ao principio<br />

sem nunca realizar a acção re<strong>de</strong>ntora.<br />

Facilmente se imagina o artista Julião<br />

Sarmento a assistir a esta cena, a<br />

tirar fotografias, a fazer <strong>de</strong>senhos, a<br />

fixar os pormenores e as particularida<strong>de</strong>s<br />

do modo como ele percorre o<br />

corpo <strong>de</strong>la e como ela se entrega ao<br />

corpo <strong>de</strong>le. Não se trata <strong>de</strong> <strong>um</strong>a cena<br />

iniciática, mas <strong>de</strong> <strong>um</strong>a matriz que é<br />

possível reconhecer em muitos dos<br />

seus trabalhos, que parecem doc<strong>um</strong>entos<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a expressão habitualmente<br />

inaudível. Os movimentos —<br />

anímicos, imaginativos, oníricos —<br />

que Sarmento materializa n<strong>um</strong> ví<strong>de</strong>o,<br />

n<strong>um</strong>a pintura, n<strong>um</strong> <strong>de</strong>senho ou n<strong>um</strong>a<br />

escultura são os que normalmente<br />

disfarçamos, enjaulamos, constrangemos<br />

à invisibilida<strong>de</strong>.<br />

O esforço feito por Julião tem como<br />

objectivo reconhecer a tensão própria<br />

da vonta<strong>de</strong> e da animalida<strong>de</strong>, que está<br />

sempre a retomar. A tensão estabelecida<br />

entre o <strong>de</strong>sejo e os seus objectos<br />

sempre provisórios e instáveis.<br />

É assim que a repetição surge como<br />

<strong>de</strong>stino ao qual não se po<strong>de</strong> escapar;<br />

e surgem as mesmas palavras, as mesmas<br />

situações, os mesmos sentimentos.<br />

Film Noir<br />

A impossibilida<strong>de</strong> da concretização<br />

do <strong>de</strong>sejo, que em “Cometa” surge<br />

tão claramente, introduz outro aspecto<br />

essencial da obra <strong>de</strong> Sarmento: a<br />

solidão. As figuras, quase sempre sem<br />

rosto, surgem isoladas, distantes <strong>de</strong><br />

tudo e <strong>de</strong> todos. As tentativas que<br />

fazem <strong>de</strong> <strong>ser</strong> com o outro são fracassadas:<br />

chega-se perto do outro, mas<br />

o <strong>ser</strong> n<strong>um</strong> outro (que a experiência<br />

sexual parece prometer) é sempre<br />

fracassado. As mulheres <strong>de</strong> Sarmento<br />

(os homens quando surgem são<br />

instr<strong>um</strong>entalizados pela fome feminina<br />

<strong>de</strong> se exce<strong>de</strong>r) são sempre magníficas<br />

e l<strong>um</strong>inosas, mas isso não lhes<br />

chega para estabelecer contacto com<br />

o que está fora <strong>de</strong> si. A escultura/instalação<br />

“Film Noir” apresenta esta<br />

outra experiência-matriz. Um corpo<br />

translúcido que parece irradiar luz<br />

própria está <strong>de</strong> pés <strong>de</strong>scalços sobre<br />

<strong>um</strong> tapete. Encapuçada com <strong>um</strong> gorro<br />

preto, portanto sem expressão,<br />

sem rosto ou individuação. É <strong>um</strong> puro<br />

corpo, fechado sobre si próprio,<br />

perdido n<strong>um</strong> sítio negro e escuro. A<br />

posição é a <strong>de</strong> quem está espera <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong> acontecimento, mas nada acontece.<br />

O paradoxo é o <strong>de</strong> estar sobre<br />

<strong>um</strong> palco e não <strong>ser</strong> capaz <strong>de</strong> agir por<br />

não se <strong>ser</strong> capaz <strong>de</strong> chegar ao exterior,<br />

mas esta imobilida<strong>de</strong> é expressiva<br />

e enérgica.<br />

Também aqui se torna presente a<br />

tensão que percorre o trabalho <strong>de</strong><br />

Julião Sarmento. A expectativa é a <strong>de</strong><br />

ficar mais perto <strong>de</strong> qualquer coisa <strong>de</strong><br />

que se estará sempre distante; os trabalhos<br />

do artista surgem como formas<br />

<strong>de</strong> abreviar distâncias e provocar<br />

aproximações, mas são ao mesmo<br />

tempo gestos conscientes <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>rem<br />

fazer mais do que gerar figuras,<br />

<strong>de</strong>senhar contornos, sugerir palavras.<br />

Gestos conscientes <strong>de</strong> que<br />

nunca nada disso <strong>ser</strong>á suficiente e<br />

que, portanto, <strong>ser</strong>á sempre necessário<br />

voltar ao princípio e retomar a<br />

i<strong>de</strong>ia, repetir a palavra, procurar a<br />

satisfação.<br />

De Madrid a Long Island<br />

Julião Sarmento nasceu<br />

em Lisboa em 1948 e expõe<br />

regularmente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1976.<br />

Estudou Arquitectura na<br />

ESBAL em Lisboa, curso que<br />

nunca terminou, e passou<br />

por Londres entre 1964 e<br />

1965. Não trabalha sobre<br />

nenh<strong>um</strong> meio exclusivo;<br />

utiliza abundantemente ví<strong>de</strong>o,<br />

fotografia, performance,<br />

pintura, gravura.<br />

Tem <strong>um</strong>a carreira <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

reconhecimento internacional.<br />

Participou nas Doc<strong>um</strong>entas<br />

7 e 8 (em 1982 e 1987,<br />

respectivamente), e na Bienal<br />

<strong>de</strong> Veneza em 1997(como<br />

representante oficial<br />

português) e em 2001 (com<br />

<strong>um</strong> trabalho em colaboração<br />

com Atom Egoyan). Teve<br />

exposições individuais em<br />

Nova Iorque, Londres, Paris,<br />

Munique, Washington,<br />

Tóquio, entre muitas outras<br />

cida<strong>de</strong>s.<br />

Recentemente, a Tate<br />

Mo<strong>de</strong>rn em Londres fez <strong>um</strong>a<br />

apresentação <strong>de</strong> <strong>um</strong> conjunto<br />

significativo <strong>de</strong> trabalhos<br />

seus. Presentemente, e além <strong>de</strong><br />

“Distancias Cortas” em Madrid,<br />

tem <strong>um</strong>a exposição no Parrish<br />

Art Muse<strong>um</strong> em Long<br />

Island (EUA), intitulada<br />

“Artistas e Escritores / A casa<br />

e o lar”. N.C.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 33


RUI GAUDÊNCIO<br />

Há <strong>um</strong> mistério qualquer, indiscernível,<br />

nas fotografias que ocupam a sala<br />

do Museu da Electricida<strong>de</strong>, em<br />

Lisboa. Gabinetes vazios, salas abandonadas<br />

aos seus objectos, espelhos<br />

que abrem outras imagens na superfície<br />

da imagem, lugares que não sabemos<br />

se são públicos ou privados.<br />

Se ainda existem ou se já morreram.<br />

O mistério diminui, quase <strong>de</strong>saparece,<br />

quando o seu autor, Paulo Catrica,<br />

vem ao nosso auxílio erevela a origem<br />

do que vemos. Entre 2005 e 2009,<br />

<strong>de</strong>ambulou pelo Teatro São Carlos,<br />

explorando camarins, oficinas, bocas<br />

<strong>de</strong> cena, “tropeçando” em mesas, veludos,<br />

talhas douradas, espelhos. O<br />

resultado <strong>de</strong>sta pesquisa foi baptizado<br />

<strong>de</strong> “TNSC - A Prospectus Archive”<br />

e traz para primeiro plano a intimida<strong>de</strong><br />

do teatro. Ou seja, os seus bastidores.<br />

Está resolvido o mistério. Ou<br />

não?<br />

Benigna, a intrusão do artista foi<br />

recebida pacificamente, o que <strong>de</strong>terminou<br />

a natureza das imagens fotográficas:<br />

“Nos últimos anos já ninguém<br />

dava por mim. Andava sozinho,<br />

ia on<strong>de</strong> queria. Bastava-me pedir autorização<br />

para fotografar os lugares e<br />

como aparecia durante as férias, muitos<br />

gabinetes e salas estavam <strong>de</strong>socupados.<br />

Apercebi-me que podia pensar<br />

melhor as fotografias. Escolher os<br />

dias, a luz, os lugares, sem a presença<br />

das pessoas”. O projecto começara<br />

como <strong>um</strong>a encomenda da direcção<br />

do Teatro, motivada pela vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

registar o São Carlos antes da realização<br />

<strong>de</strong> obras importantes, mas Catrica<br />

<strong>de</strong>cidiu prolongar a relação.<br />

Tal como noutras séries, “TNSC - A<br />

Prospectus Archive” doc<strong>um</strong>enta <strong>um</strong><br />

espaço <strong>de</strong>finido, o espaço <strong>de</strong> <strong>um</strong>a instituição.<br />

Mas ao contrário das escolas<br />

(que o artista fotografa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os finais<br />

dos anos 90) ou do Palácio <strong>de</strong> Belém<br />

(motivo <strong>de</strong> “A Republica e o Palácio<br />

<strong>de</strong> Belém”, <strong>de</strong> 2008), aqui a evocação<br />

dos objectos e das pessoas é mais<br />

afectuosa. N<strong>um</strong>a fotografia, vê-se o<br />

gabinete vazio do então director Paolo<br />

Pinamonti, noutra a sala das costureiras,<br />

em cuja mesa se visl<strong>um</strong>bram<br />

sacos <strong>de</strong> plástico e <strong>um</strong> par <strong>de</strong> óculos.<br />

Noutra, ainda, a sala <strong>de</strong> ensaio do Coro<br />

on<strong>de</strong> cada músico tem (por motivos<br />

insondáveis) a sua ca<strong>de</strong>ira. “Interessou-me<br />

o contraponto entre espaços<br />

públicos e privados, bem como<br />

as distinções entre os lugares. E explorar<br />

o teatro como <strong>um</strong> sítio sedimentado,<br />

feito <strong>de</strong> várias camadas. Por<br />

isso, este trabalho tem menos arquitectura,<br />

e nele os objectos fazem parte<br />

da história”.<br />

A história “TNSC - A Prospectus Archive”<br />

conta-se a partir <strong>de</strong> dois “enredos”.<br />

O dos dourados postiços e dos<br />

mármores que não faziam parte da<br />

traça original e que terão sido introduzidos<br />

nos anos 40 ou 50 do século<br />

passado. E o do trabalho manual, inscrito<br />

na carpintaria, nos armazéns,<br />

na sala das costureiras, sítios que sofreram<br />

remo<strong>de</strong>lações, mudaram <strong>de</strong><br />

lugar ou <strong>de</strong>sapareceram. Como que<br />

a duplicar estes tempos e cenários,<br />

encontramos os espelhos, sujeitos<br />

centrais <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>as fotografias. Vemo-los<br />

no camarim do maestro, no<br />

gabinete do director, a reflectir coisas<br />

diferentes (como <strong>um</strong>a pintura <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a fotografia), no camarote, sob<br />

<strong>um</strong> can<strong>de</strong>labro <strong>de</strong>sfeito, a criar <strong>um</strong>a<br />

espécie <strong>de</strong> “mise en-abyme” (<strong>um</strong> teatro<br />

<strong>de</strong>ntro da imagem do teatro).<br />

“Alguns [espelhos] pertenciam a<br />

espaços públicos do Teatro e foram<br />

levados há décadas, tal como os lustres<br />

e certo mobiliário, para sítios<br />

mais resguardados. Criam <strong>um</strong> compósito<br />

<strong>de</strong> diferentes tempos. Estão<br />

ligados por <strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> brilho e <strong>de</strong>cadência.<br />

Gosto <strong>de</strong> sítios que têm<br />

marcas do tempo, mas que estão vivos”.<br />

Fotografias habitáveis<br />

A <strong>de</strong>ixa vem em boa altura para <strong>um</strong><br />

pequeno confronto. O que separa e<br />

aproxima o olhar <strong>de</strong> Paulo Catrica da<br />

fotografia <strong>de</strong> <strong>um</strong>a Candida Höffer ou<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> Thomas Struth? “A Escola da<br />

Düsseldorf é importantíssima e a Candida<br />

Höffer é <strong>um</strong>a artista fantástica,<br />

mas está muito preocupada em associar<br />

à arquitectura aspectos simbólicos<br />

e políticos ou em a limpar arquitectura<br />

da vida. A mim interessa-me<br />

a vida, as pessoas que andam nestes<br />

“Quero que as minhas<br />

fotografias possam<br />

<strong>ser</strong> não somente<br />

visitáveis, mas<br />

também habitáveis.<br />

Que possam<br />

construir histórias,<br />

que sugiram<br />

ao espectador que<br />

ele já esteve ali”<br />

sítios, que fazem estes sítios. Nesse<br />

sentido, as minhas referências são as<br />

da fotografia italiana, do Luigi Ghirri,<br />

do Gabriele Basilico.”<br />

A obra fotográfica do artista nunca<br />

<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> lidar com a trepidação do<br />

quotidiano, mais popular e colorido<br />

na série <strong>de</strong>dicadas aos campos <strong>de</strong> futebol<br />

dos subúrbios (“Stadia”, <strong>de</strong><br />

2004), mais circunspecto e frio, nas<br />

fotografias das escolas. Curiosamente,<br />

não se visl<strong>um</strong>bram pessoas em “TNSC<br />

- A Prospectus Archive” (ausência que<br />

não é rara na sua fotografia). “Talvez<br />

tenha alg<strong>um</strong> pudor em representálas”,<br />

sugere o artista, “mas são muito<br />

importantes. Estão naquela hera que<br />

<strong>de</strong>cora o escritório, naquele verso do<br />

relógio, na organização que fazem do<br />

espaço”. Só é preciso olhar com atenção,<br />

po<strong>de</strong>ríamos acrescentar.<br />

“Quero que as minhas fotografias<br />

possam <strong>ser</strong> não somente visitáveis,<br />

mas também habitáveis. Que possam<br />

construir histórias, que sugiram ao<br />

espectador que ele já esteve ali. Coloco-o<br />

no meu ponto <strong>de</strong> vista, mas<br />

espero que também possa ver pormenores,<br />

<strong>de</strong>scobrir <strong>de</strong>talhes que eu próprio<br />

não encontrei. Gosto <strong>de</strong>sse jogo<br />

entre o trabalho analítico que a fotografia<br />

estimula, <strong>de</strong> que já falava o Walter<br />

Benjamin, e a contemplação”<br />

O jogo não é <strong>de</strong>ixado apenas o espectador.<br />

Serviu como motor <strong>de</strong><br />

““TNSC - A Prospectus Archive”. “Esta<br />

exposição nasceu <strong>de</strong> coisas que me<br />

interessam ou me interrogam. Mas<br />

também nasceu <strong>de</strong> <strong>um</strong>a sedimentação.<br />

O Freud contava que o olhar das<br />

pessoas sobre as ruínas romanas mudava<br />

consoante o seu grau <strong>de</strong> informação<br />

ou conhecimento. Muitas <strong>de</strong>ssas<br />

fotografias nascem <strong>de</strong> <strong>um</strong> encontro<br />

com as coisas, mas também são<br />

consequência <strong>de</strong> quatros anos <strong>de</strong> trabalho.<br />

A partir <strong>de</strong> <strong>um</strong>a dada altura<br />

sabia o que queria e estava a fotografar,<br />

para além da atracção visual dos<br />

sítios e dos objectos”. Podia compor<br />

<strong>um</strong> teatro vivo, <strong>de</strong> espelhos e memórias.<br />

A vida do teatro<br />

contada pelos espelhos da fotografia<br />

Depois <strong>de</strong> quatro anos a explorar os lugares mais recônditos do São Carlos,<br />

Paulo Catrica compôs “TNSC - A Prospectus Archive”, exposição <strong>de</strong>dicada a <strong>um</strong> espaço e às<br />

pessoas que o construíram. No Museu da Electricida<strong>de</strong>, até 22 <strong>de</strong> Maio. José Marmeleira<br />

Entre 2005<br />

e 2009,<br />

explorou<br />

camarins,<br />

oficinas,<br />

“tropeçou”<br />

em mesas,<br />

veludos,<br />

talhas<br />

douradas,<br />

espelhos<br />

34 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


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o cineasta alemão Werner Herzog, Requiem<br />

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dos filmes The Wild Blue Yon<strong>de</strong>r e The<br />

White Diamond, acompanhados ao vivo por<br />

<strong>um</strong> ensemble que une sonorida<strong>de</strong>s do mundo.<br />

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O que a música <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

faz pelas letras<br />

O guitarrista Afonso Pais, percurso feito no jazz, e JP Simões, homem d<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> po<strong>de</strong>ria fazer pelas letras do outro. O resultado é a<br />

“On<strong>de</strong> Mora o Mundo”? O <strong>de</strong>les, <strong>de</strong><br />

JP Simões e Afonso Pais morou no<br />

isolamento <strong>de</strong> <strong>um</strong> retiro. Em Tavira,<br />

primeiro, e <strong>de</strong>pois n<strong>um</strong>a das al<strong>de</strong>ias<br />

<strong>de</strong> xisto da Lousã. Aí nasceram as canções<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> álb<strong>um</strong> que não é sucessor<br />

<strong>de</strong> “1970”, a muito e justamente celebrada<br />

estreia a solo <strong>de</strong> JP Simões, que<br />

não é simplesmente passo seguinte<br />

no percurso do guitarrista Afonso<br />

Pais, músico com carreira feita no jazz<br />

e que, director musical <strong>de</strong> JP nos<br />

últimos anos, sentiu <strong>um</strong> chamamento<br />

do passado, o das canções que cresceu<br />

a ouvir e a admirar: as da música<br />

brasileira <strong>de</strong> Chico Buarque ou Edu<br />

Lobo, as da portuguesa <strong>de</strong> José Mário<br />

Branco ou Vitorino – não por acaso,<br />

marcas musicais que também reconhecemos<br />

em JP Simões.<br />

“On<strong>de</strong> Mora o Mundo”, que inaugura<br />

o renascimento da mítica Orfeu,<br />

casa editorial <strong>de</strong>, entre outros, José<br />

Afonso, é o resultado <strong>de</strong> <strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ia<br />

com três anos. A mais óbvia das i<strong>de</strong>ias<br />

que po<strong>de</strong> surgir a dois músicos que<br />

convivem em estúdio, em concerto,<br />

em sala <strong>de</strong> ensaios: “Temos coisas em<br />

com<strong>um</strong>, vamos tentar juntá-las”. A<br />

explicação da coisa óbvia é dada por<br />

JP e Afonso n<strong>um</strong>a esplanada ameaçada<br />

pelo “vai não vai” da chuva <strong>de</strong> Abril.<br />

Não choveu e a conversa avançou sobre<br />

<strong>um</strong> álb<strong>um</strong> que é <strong>um</strong>a colaboração<br />

( JP e Afonso insistem neste ponto, sabedores<br />

da tendência inevitável do<br />

público se focar no mais reconhecível).<br />

Avançou sobre estas <strong>de</strong>z canções em<br />

que Simões versa os temas <strong>de</strong> sempre,<br />

os únicos (o amor que nos assombra<br />

e glorifica, os <strong>de</strong>mónios que nos tormentam,<br />

os po<strong>de</strong>rezinhos que nos<br />

castram), em música que se faz híbrida<br />

Tem <strong>um</strong> sabor<br />

doce este<br />

disco outonal<br />

em que JP<br />

Simões e<br />

Afonso Pais<br />

nos dizem<br />

basicamente<br />

isto: assim<br />

continua o<br />

mundo<br />

“Mais que <strong>um</strong> híbrido<br />

da minha música<br />

e das letras <strong>de</strong>le,<br />

a i<strong>de</strong>ia foi que <strong>um</strong>a<br />

coisa condicionasse<br />

a outra”, Afonso Pais<br />

cisava <strong>de</strong> <strong>um</strong>a figura paternal”, sorri<br />

JP Simões. Afonso Pais complementa:<br />

“Actualmente, é tão raro ver pessoas<br />

que fazem música com riqueza e sofisticação<br />

e que, ainda assim, tenham<br />

<strong>um</strong>a certa simplicida<strong>de</strong> e facilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> leitura musical, que me parece que<br />

isso [as comparações feitas com Chico<br />

Buarque] acontece por as pessoas<br />

quererem a toda a força etiquetar”.<br />

Chico não é figura tutelar em “On<strong>de</strong><br />

Mora o Mundo”, mas não é por<br />

isso que esta colaboração com Afonso<br />

Pais protege JP Simões. Protege-o<br />

porque este é verda<strong>de</strong>iro e consequente<br />

trabalho <strong>de</strong> partilha, porque<br />

a primeira pessoa <strong>de</strong> JP Simões é também<br />

a <strong>de</strong> Afonso Pais, que “<strong>de</strong>u <strong>um</strong><br />

presente” a si mesmo e canta em alg<strong>um</strong>as<br />

canções. Assim, o JP Simões<br />

exposto como se fosse totalmente as<br />

suas canções e aquilo que canta, sur-<br />

Depois<br />

<strong>de</strong> “1970”,<br />

e da exposição<br />

pessoal,<br />

JP SImões<br />

é agora mais<br />

autor que<br />

actor das<br />

suas canções<br />

<strong>de</strong> mancha sonora jazzística e abandono<br />

ao balanço brasileiro, composta<br />

por Afonso Pais e interpretada por <strong>um</strong><br />

notável conjunto <strong>de</strong> músicos, como o<br />

baterista Alexandre Frazão e o contra-<br />

baixista Carlos Barreto ou o saxofonis-<br />

ta espanhol Perico Sambeat, resgatado<br />

em Lisboa para oferecer <strong>um</strong> solo a<br />

“Conversa <strong>de</strong> esquina”. Uma benção,<br />

tal companhia: “A música é suficien-<br />

temente complexa para que não soas-<br />

se simples, se não tivesse sido tocada<br />

por músicos daquele calibre”, elogia<br />

Afonso Pais. “Tem<br />

<strong>um</strong> série <strong>de</strong> tensões<br />

<strong>de</strong> conceitos e <strong>um</strong>a certa recusa <strong>de</strong><br />

mol<strong>de</strong>s reconhecíveis”, explica JP Si-<br />

mões, “mas ao mesmo tempo, como<br />

estávamos a apontar para o formato<br />

canção, houve naturalmente a vonta-<br />

<strong>de</strong> que as coisas fossem comunicáveis,<br />

que houvesse<br />

ali <strong>um</strong> lado funcio-<br />

nal”.<br />

Não sendo parte daquilo que em<br />

português técnico se apelida <strong>de</strong> plano<br />

<strong>de</strong> gestão <strong>de</strong> carreira ( JP, diletante<br />

profissional da música, não tem certamente<br />

<strong>um</strong>), talvez este “On<strong>de</strong> Está<br />

o Mundo” seja o álb<strong>um</strong> que ele precisava<br />

<strong>de</strong> fazer <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> “1970”<br />

(2007) e do ao vivo “Boato” (2009).<br />

Porque, <strong>de</strong> certa forma, o protege.<br />

A estreia a solo <strong>de</strong>stacou-o como<br />

<strong>um</strong> dos mais inspirados e as<strong>ser</strong>tivos<br />

cantores e compositores portugueses.<br />

Minuciosamente, <strong>de</strong> forma sentida e<br />

dorida, expondo sem pudor, vimonos<br />

reflectidos ali (nós e as nossas<br />

inquietações, nós, a geração nascida<br />

neste país na década <strong>de</strong> 1970), naquelas<br />

canções com Chico Buarque como<br />

anjo tutelar sorrindo em aprovação<br />

do outro lado do Atlântico, on<strong>de</strong> é<br />

mais quente e on<strong>de</strong> o samba se dança<br />

a sério. “Já percebi que na altura pre-<br />

36 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


do outro<br />

das canções, <strong>de</strong>scobrem o que a música<br />

admirável. Mário Lopes<br />

ge mais como autor, e menos como<br />

actor, das narrativas que criou.<br />

Regressemos a “1970”. “Quando<br />

saiu, estava implantado em mim como<br />

<strong>um</strong> trabalho que quase roçava a pornografia.<br />

Era <strong>de</strong>masiado pessoal. O<br />

que aconteceu com o disco, essa viragem<br />

para sugerirem que po<strong>de</strong>ria dar<br />

voz a outras pessoas e a outras circunstâncias<br />

foi <strong>um</strong>a coisa exterior da minha<br />

fabricação. Já há muito tempo que<br />

optei por viver em paz com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />

que, para estudar a H<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>,<br />

estudo-me a mim”. Se houve <strong>um</strong>a a<strong>de</strong>são<br />

colectiva às suas palavras e à sua<br />

música, naturalmente que isso lhe<br />

agrada – “como qualquer artista, tento<br />

quebrar a inevitável e instransponível<br />

distância que existe entre as pessoas,<br />

e entre as pessoas e si mesmas”<br />

-, mas não lhe ponham em cima o fardo<br />

<strong>de</strong> <strong>ser</strong> alguém que fala <strong>de</strong> nós, para<br />

nós, com todos os eus que o ouvem<br />

a sobrelotarem-lhe a mente. Sobre<br />

“1970”, e para fechar a porta sobre<br />

“1970”: “Nunca pretendi, <strong>de</strong> modo<br />

alg<strong>um</strong>, fazer <strong>um</strong>a música <strong>de</strong> exaltação<br />

colectiva. Fiz como sempre, peguei<br />

n<strong>um</strong> assunto e trabalhei o seu lado<br />

doloroso com bastante auto-ironia”.<br />

Entre a criança e o oráculo<br />

“On<strong>de</strong> Mora o Mundo” não representou<br />

para Afonso e JP fazer como sempre.<br />

Obrigaram-se a <strong>um</strong> retiro em<br />

Tavira e n<strong>um</strong>a al<strong>de</strong>ia na Lousã e frente<br />

a frente, forçaram-se a trabalhar e<br />

a dar resposta aos estímulos, aos acor<strong>de</strong>s<br />

e às palavras <strong>um</strong> do outro. Afonso<br />

Pais, percurso feito no jazz, com passagem<br />

prolongada por Nova Iorque,<br />

on<strong>de</strong> estudou e on<strong>de</strong> se apresenta<br />

regularmente, amante das canções<br />

(em “Subsequências”, o seu álb<strong>um</strong><br />

<strong>de</strong> 2008, gravou com Edu Lobo e recebeu<br />

<strong>de</strong>le todos os elogios), procurou<br />

em JP Simões, percurso feito nas<br />

canções e amante do jazz, <strong>um</strong> parceiro<br />

musical que lhe conduzisse a <strong>um</strong><br />

lugar novo. “Mais que <strong>um</strong> híbrido da<br />

minha música e das letras <strong>de</strong>le, a i<strong>de</strong>ia<br />

foi que <strong>um</strong>a coisa condicionasse a outra”,<br />

diz Afonso. “O curioso”, aponta<br />

JP Simões, “foi ver estas duas pessoas<br />

colocadas voluntariamente n<strong>um</strong>a situação<br />

<strong>de</strong> ‘vamo-nos mandar para ali<br />

e ver o que acontece’. Há <strong>um</strong>a série<br />

<strong>de</strong> tensões que [nessa situação] funcionam<br />

a favor da música ou <strong>de</strong> qualquer<br />

arte”.<br />

A disciplina <strong>de</strong> trabalho em isolamento,<br />

o ter que respon<strong>de</strong>r ao outro,<br />

em vez <strong>de</strong> prestar contas a si mesmos,<br />

representou algo <strong>de</strong> diferente para JP<br />

Simões e Afonso Pais e a música, cada<br />

canção <strong>um</strong> micro-cosmos reflectindo<br />

as empatias dos dois criadores, reflecte-o.<br />

Mas há coisas que não mudam<br />

(nem é suposto que mu<strong>de</strong>m). Como<br />

isto que, a <strong>de</strong>terminado momento,<br />

nos diz JP Simões: “Os artistas utilizam<br />

o discurso para procurar coisas<br />

que estão atrás do discurso. Vivem<br />

entre <strong>um</strong> estado <strong>de</strong> sonho e <strong>de</strong> vigília,<br />

porque dão importância aos sinais. É<br />

<strong>um</strong> trabalho entre a criança e o oráculo.<br />

Tentar potenciar a intuição com<br />

a sensibilida<strong>de</strong> aberta ao máximo,<br />

como só as crianças têm”<br />

Chegamos então a “On<strong>de</strong> Mora o<br />

Mundo” e <strong>de</strong>paramo-nos com os sinais.<br />

Coisas intemporais como a “Dorinha<br />

(pequena dor)” que não é mulher nenh<strong>um</strong>a,<br />

que “fala sobre a afinida<strong>de</strong><br />

amorosa que as pessoas po<strong>de</strong>m ter<br />

com a tristeza, o que é <strong>um</strong> assunto bem<br />

português”. Coisas muito do agora,<br />

<strong>de</strong>ste preciso momento em que o FMI<br />

já anda por aí, em que os partidos se<br />

atarefam em afã pré-eleitoral, em que<br />

as pessoas, o povo, pá, exaspera: em<br />

“A marcha dos implacáveis”, <strong>um</strong> homem,<br />

sr. Primeiro ou sr. Presi<strong>de</strong>nte,<br />

tem <strong>um</strong> pesa<strong>de</strong>lo, vê sangue chover no<br />

Rossio, vê <strong>de</strong>sempregados e velhos e<br />

crianças marcharem sobre São Bento,<br />

“mata, esfola, mata, esfola”, e ele aterrorizado,<br />

a acordar ensopado em suor:<br />

“a culpa, a culpa, a culpa”. Chegamos<br />

a “On<strong>de</strong> More o Mundo”, repetimos, e<br />

<strong>de</strong>paromo-nos com coisas <strong>de</strong> JP Simões:<br />

ele, melancólico, pedindo “fica<br />

<strong>um</strong> pouco mais, fica até que eu fique<br />

em paz” sem que haja paz ao fundo do<br />

túnel. É <strong>um</strong> traço <strong>de</strong> carácter e res<strong>um</strong>ese<br />

nesta insanável insatisfação <strong>de</strong> que<br />

nos fala: “elaboramos o que é para nós<br />

a felicida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>finimos a meta e <strong>de</strong>pois,<br />

como dizia o Bowie [em ‘Changes’],<br />

‘the taste was not so sweet’”.<br />

A música afaga, aplaca, sublima<br />

esse <strong>de</strong>sconforto. E por isso tem <strong>um</strong><br />

sabor doce este disco outonal em que<br />

JP Simões e Afonso Pais nos dizem<br />

basicamente isto: assim continua o<br />

mundo.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> discos págs. 46 e 47<br />

O Projecto Improvisações/Colaborações realiza-se entre Março e Outubro 2011.<br />

Programa integral e informação regularmente actualizada em www.<strong>ser</strong>ralves.pt<br />

Apoio Institucional<br />

Co-financiado por<br />

Patrocinador da<br />

Programação <strong>de</strong> Música<br />

Apoio à Divulgação<br />

Fundação <strong>de</strong> Serralves / Rua D. João <strong>de</strong> Castro, 210 / 4150-417 Porto / Informações: 808 200 543<br />

Siga-nos em www.facebook.com/fundacao<strong>ser</strong>ralves<br />

Mecenas Exclusivo do Museu e do Projecto<br />

Improvisações/Colaborações<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 37


Inspirado por Beethoven,<br />

Mozart, Chopin ou Debussy,<br />

o percurso <strong>de</strong> Tiago fez-se<br />

primeiro nas fileiras dos<br />

batalhões pop/rock dos<br />

Goodbye Toulouse ou Jesus,<br />

the Misun<strong>de</strong>rstood<br />

como motes criativos, não preten<strong>de</strong>ndo<br />

no entanto realizar quaisquer estudos<br />

sobre a obra <strong>de</strong>stes autores. No<br />

fundo, quer encontrar-se nos outros,<br />

para <strong>de</strong>pois se projectar <strong>de</strong> novo no<br />

mundo, passando a incorporar i<strong>de</strong>ias<br />

e reflexões trazidas ou inspiradas por<br />

este ou aquele – “É <strong>um</strong>a necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> tornar aquilo também meu, <strong>um</strong>a<br />

afirmação também minha”.<br />

Sétimo andar<br />

com Thoreau<br />

Fundador da netlabel Merzbau, Tiago Sousa tornou-se, aos poucos, n<strong>um</strong><br />

caso singular da música portuguesa: <strong>um</strong> piano sem morada certa (nem<br />

clássica, nem jazz) que se inspirou em Thoreau para o disco que promete<br />

(fora <strong>de</strong> portas) tornar o seu nome finalmente invulgar. Gonçalo Frota<br />

Durante dois anos, <strong>um</strong>a mesma i<strong>de</strong>ia:<br />

a <strong>de</strong> que o retiro n<strong>um</strong>a cabana junto<br />

a Wal<strong>de</strong>n Pond, <strong>um</strong> lago no Massachusetts,<br />

conduzisse a <strong>um</strong>a <strong>de</strong>claração<br />

<strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência pessoal, a <strong>um</strong>a<br />

experiência reveladora <strong>de</strong> como o<br />

homem vive em socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> como<br />

cada <strong>um</strong> <strong>de</strong>ve bastar-se a si mesmo<br />

na sua sobrevivência e na sua construção<br />

individual. E <strong>de</strong>pois, então,<br />

oferecer-se ao mundo como produto<br />

semi-acabado, mantendo sempre as<br />

características da permeabilida<strong>de</strong> e<br />

da mutabilida<strong>de</strong>. Mas sem que isso,<br />

em momento alg<strong>um</strong>, comprometesse<br />

as suas fundações – nada <strong>de</strong> traições<br />

com a subtileza <strong>de</strong> <strong>um</strong> hara-kiri. Dessa<br />

experiência, o filósofo Henry David<br />

Thoreau fez nascer o livro “Wal<strong>de</strong>n<br />

ou a Vida nos Bosques”.<br />

Durante dois anos, <strong>um</strong>a mesma<br />

i<strong>de</strong>ia: a <strong>de</strong> que o retiro artístico n<strong>um</strong><br />

sétimo andar no Barreiro, junto ao<br />

piano oferecido anos antes pela avó,<br />

e sob a influência da leitura <strong>de</strong> Thoreau,<br />

conduzisse a <strong>um</strong> espelho musical<br />

da <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência<br />

do autor norte-americano, como se<br />

as palavras <strong>de</strong> <strong>um</strong> e as notas extraídas<br />

ao piano pelo outro fossem dois lados<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a mesma moeda <strong>de</strong> libertação.<br />

Depois, então, oferecer ao mundo<br />

<strong>um</strong>a música que embarca no mesmo<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> simplicida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>scoberta.<br />

Dessa experiência, o músico português<br />

Tiago Sousa fez nascer o álb<strong>um</strong><br />

“Wal<strong>de</strong>n Pond’s Monk”.<br />

Mas o exercício <strong>de</strong> Tiago Sousa, diznos<br />

o próprio, é puramente estético:<br />

“Pegando na filosofia e na literatura<br />

do Thoreau, tentei ir buscar os elementos<br />

que mais me diziam e com os<br />

quais me i<strong>de</strong>ntificava, fazendo <strong>um</strong>a<br />

apropriação <strong>de</strong>sses valores e transformando-os<br />

n<strong>um</strong>a obra musical”.<br />

Não adianta, por isso, procurar <strong>um</strong>a<br />

narrativa em “Wal<strong>de</strong>n Pond’s Monk”,<br />

nem procurar correspondências directas<br />

entre palavras e notas. Nas linhas<br />

e nas entrelinhas <strong>de</strong> Thoreau,<br />

Tiago <strong>de</strong>scobriu-se “em questões como<br />

a emancipação individual e a necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> nos centrarmos em nós<br />

próprios para causarmos modificações<br />

na socieda<strong>de</strong>”.<br />

O grito emancipador e <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência<br />

não se queda pela filosofia e<br />

tem, na vida artística <strong>de</strong> Tiago Sousa,<br />

<strong>um</strong>a aplicação prática na adopção <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a postura que lhe garanta, a cada<br />

passo e a cada segundo, duas coisas<br />

simples <strong>de</strong> nomear (mas nem sempre<br />

tão simples assim <strong>de</strong> pre<strong>ser</strong>var): total<br />

liberda<strong>de</strong> artística e necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

trabalhar <strong>de</strong> acordo com <strong>um</strong> ritmo<br />

criativo próprio, sem as urgências habitualmente<br />

impostas por terceiros.<br />

Das águas <strong>de</strong> Wal<strong>de</strong>n Pond, Tiago<br />

Sousa sorveu ainda <strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>de</strong>spojamento<br />

que se liga naturalmente<br />

ao vocabulário que explora no piano.<br />

Des<strong>de</strong> “Insónia” que faz <strong>de</strong> <strong>um</strong>a carregada<br />

melancolia minimalista a sua<br />

dama <strong>de</strong> ocasião, recorrendo às obras<br />

<strong>de</strong> Thoreau ou William Burroughs<br />

“Tenho perfeita noção<br />

<strong>de</strong> que <strong>um</strong> professor<br />

<strong>de</strong> con<strong>ser</strong>vatório que<br />

vá ouvir os meus<br />

discos vai ficar<br />

arrepiado. Não é por<br />

aí que me rejo.<br />

Preocupa-me tocar<br />

pessoas que não estão<br />

preocupadas com<br />

o formalismo mas que<br />

querem simplesmente<br />

experienciar alg<strong>um</strong>a<br />

coisa”<br />

Erudito? Não, aci<strong>de</strong>ntal<br />

Tiago Sousa, receptor <strong>de</strong> <strong>um</strong>as quantas<br />

aulas <strong>de</strong> piano dadas pela avó, não<br />

gosta <strong>de</strong> grilhetas. E, portanto, torceu<br />

o nariz e franziu o sobrolho ao aca<strong>de</strong>mismo<br />

bafiento e aos manuais pejados<br />

<strong>de</strong> regras, contra-regras e pancadas<br />

na mão para corrigir o ângulo do cotovelo<br />

em relação ao teclado, às oito<br />

horas por dia <strong>de</strong> corcunda na tentativa<br />

<strong>de</strong> domar o instr<strong>um</strong>ento com exercícios<br />

<strong>de</strong> repetição. “Queria simplesmente<br />

partir à aventura, correndo os<br />

riscos inerentes. Tenho perfeita noção<br />

<strong>de</strong> que <strong>um</strong> professor <strong>de</strong> con<strong>ser</strong>vatório<br />

que vá ouvir os meus discos vai ficar<br />

arrepiado”, diz-nos sem remorsos.<br />

“Não é por aí que me rejo. Preocupame<br />

tocar pessoas que não estão preocupadas<br />

com o formalismo mas que<br />

querem simplesmente experimentar<br />

alg<strong>um</strong>a coisa; se consigo transmitir<br />

essa experiência através da música,<br />

tanto melhor. E sempre me liguei muito<br />

mais a <strong>um</strong>a lógica do acaso e da<br />

experiência empírica”. O problema,<br />

no seu enten<strong>de</strong>r, começa no método<br />

<strong>de</strong> aprendizagem das escolas, que<br />

“conduz a <strong>um</strong> certo embrutecimento,<br />

no sentido <strong>de</strong> não inspirar criativamente<br />

nem estimular o sentido crítico”.<br />

Tiago queria procurar as suas<br />

respostas, não as do colega do lado.<br />

Inspirado por Beethoven, Mozart,<br />

Chopin ou Debussy – “<strong>um</strong> património<br />

que não foi conquistado por <strong>um</strong>a qualquer<br />

erudição, mas essencialmente<br />

por <strong>um</strong> aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> percurso” – a verda<strong>de</strong><br />

é que o percurso <strong>de</strong> Tiago fez-se<br />

primeiro nas fileiras dos batalhões<br />

pop/rock dos Goodbye Toulouse ou<br />

Jesus, the Misun<strong>de</strong>rstood. Daí que,<br />

apesar das referências primordiais e<br />

daquilo que em “Wal<strong>de</strong>n Pond’s<br />

Monk” se ouve, não se reconheça em<br />

qualquer catalogação <strong>de</strong> música erudita.<br />

“O meu método não é erudito,<br />

está muito mais próximo da música<br />

popular – na qual o rock se po<strong>de</strong>rá<br />

integrar e mesmo até alg<strong>um</strong>a música<br />

experimental a partir dos anos 70 e<br />

80. Não é minha pretensão escrever<br />

<strong>um</strong>a sinfonia para <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> orquestra<br />

ou escrever peças <strong>de</strong> piano para<br />

<strong>um</strong> intérprete <strong>de</strong>pois tocar. Faço música<br />

para eu tocar com músicos com<br />

os quais queira fazê-lo, e nesse sentido<br />

o método é muito mais ligado a essa<br />

facção rock”. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> lhe cair no<br />

colo <strong>um</strong>a encomenda para <strong>um</strong> quarteto<br />

<strong>de</strong> cordas não cabe, <strong>de</strong> todo, no<br />

mundo que criou para a sua música.<br />

“Wal<strong>de</strong>n’s Pond Monk” não quer<br />

doutrinar, “não obriga que todas as<br />

pessoas que oiçam o disco <strong>de</strong>pois<br />

leiam o livro ou vão viver para as montanhas”.<br />

E não se entrega a algo em<br />

voga nos últimos tempos: perda <strong>de</strong><br />

soberania. Editado pela norte-americana<br />

Immune, Sousa diz que tentará<br />

sempre que o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>cisório nunca<br />

lhe salte das mãos. Por mais troikas<br />

que venham.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> discos págs. 46 e segs.<br />

38 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


O teatro como no princípio<br />

Peter Brook, <strong>um</strong> dos maiores encenadores europeus, abre na próxima quinta-feira o festival Odisseia:<br />

Teatros do Mundo com a sua leitura <strong>de</strong> “Une Flûte Enchantée”, <strong>de</strong> Mozart. É <strong>um</strong> exercício <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scoberta ao qual ce<strong>de</strong>mos sem temor, e <strong>um</strong> dos acontecimentos do ano. Tiago Bartolomeu Costa<br />

Peter Brook, figura <strong>de</strong> referência das<br />

artes cénicas europeias do século XX,<br />

nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ver o teatro como<br />

espaço <strong>de</strong> socialização e os seus espectáculos<br />

continuam, até hoje, a<br />

trabalhar para o entendimento entre<br />

o que é mostrado e aqueles a quem<br />

é mostrado. A sua versão <strong>de</strong> “Une<br />

Flûte Enchantée”, <strong>de</strong> Mozart, que<br />

abre na próxima quinta-feira o festival<br />

Odisseia: Teatros do Mundo (dia<br />

5 no Centro Cultural Vila Flor, Guimarães;<br />

dias 8 e 9 no Teatro Carlos<br />

Alberto, Porto), resulta precisamente<br />

<strong>de</strong>ssa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> transformar o<br />

teatro n<strong>um</strong> “terreno com<strong>um</strong>” e <strong>de</strong><br />

gerir o difícil equilíbrio entre projecção,<br />

metáfora e memória.<br />

“Começámos a trabalhar sem qualquer<br />

cenário, e a partir da música.<br />

Fomo-nos perguntando como conseguiríamos<br />

fazê-la sentir, sem o peso<br />

e a solenida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> ópera.<br />

E sempre com <strong>um</strong> espírito lúdico”,<br />

explicou Brook quando “Une Flûte<br />

Enchantée” se estreou, em Novembro,<br />

no Théâtre <strong>de</strong>s Bouffes du Nord,<br />

que dirigiu <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1979 e que, com<br />

esta peça, abandona. Situado n<strong>um</strong>a<br />

zona dura, cinzenta, <strong>de</strong> fins <strong>de</strong> avenidas,<br />

on<strong>de</strong> os sapatos altos e as peles<br />

parecem sempre fora do lugar, é <strong>um</strong><br />

teatro <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sfeitas, vermelhos<br />

carregados, filas apertadas. Um<br />

teatro circular, como <strong>um</strong>a verda<strong>de</strong>ira<br />

comunida<strong>de</strong>.<br />

Brook abordou a ópera <strong>de</strong> Mozart<br />

como se ali tivesse acabado <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir<br />

<strong>um</strong>a narrativa contemporânea:<br />

“Quis sempre <strong>um</strong>a relação directa<br />

com o público.Uma relação actual”.<br />

Aquilo que vemos – e sobretudo o que<br />

escutamos – é efectivamente <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

limpi<strong>de</strong>z a toda a prova, n<strong>um</strong>a obra<br />

que reduz ao que há <strong>de</strong> mais íntimo<br />

na partitura original: “Mozart reinventava-se<br />

a cada instante, e nesse<br />

sentido, respeitando profundamente<br />

o essencial [do que compôs], trabalhámos<br />

intuitivamente, sem escon<strong>de</strong>r<br />

ou mo<strong>de</strong>rnizar, mas fazendo aparecer...”.<br />

Esta i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> aparição, vinda do<br />

negro, transformou sempre as suas<br />

personagens em fantasmas e os espectadores<br />

em objectos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo. O<br />

teatro <strong>de</strong> Peter Brook é <strong>um</strong> teatro <strong>de</strong><br />

espelhos, em que a disposição espacial<br />

<strong>ser</strong>ve quem vê, e os actores nunca<br />

se coíbem <strong>de</strong> interpelar directamente<br />

o corpo dos espectadores.<br />

“Une Flûte Enchantée” não é diferente:<br />

Brook explora, com <strong>um</strong>a eficácia<br />

dramatúrgica ímpar, a complexida<strong>de</strong><br />

da ópera <strong>de</strong> Mozart, plena <strong>de</strong><br />

símbolos maçónicos e significados<br />

duplos tão complexos que a extracção<br />

<strong>de</strong> sentidos se torna normalmente<br />

inglória. Queria, explicou, “estar<br />

o mais próximo possível <strong>de</strong> Mozart”.<br />

Amores cruzados, equívocos, <strong>um</strong>a<br />

Rainha da Noite que tudo controla,<br />

passagens temporais anacrónicas,<br />

<strong>ser</strong>pentes empl<strong>um</strong>adas e pássaros<br />

alados combinam-se harmoniosamente.<br />

PASCAL VICTOR PASCAL VICTOR<br />

William Nadylam, que já foi<br />

o “Hamlet” <strong>de</strong> Peter<br />

Brook, regressa aqui<br />

ao trabalho com<br />

o encenador<br />

“Fomo-nos<br />

perguntando como<br />

conseguiríamos fazer<br />

sentir a música, sem<br />

o peso e a solenida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> ópera.<br />

E sempre com<br />

<strong>um</strong> espírito lúdico”<br />

Peter Brook<br />

Brook abordou a ópera<br />

<strong>de</strong> Mozart como se ali tivesse<br />

acabado <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir <strong>um</strong>a<br />

narrativa contemporânea<br />

Amor-ódio<br />

Nas encenações que fez para ópera,<br />

Brook apostou sempre n<strong>um</strong> mo<strong>de</strong>lo<br />

próximo das suas leituras abertas <strong>de</strong><br />

textos teatrais tão diferentes como<br />

“Marat/Sa<strong>de</strong>” (1964), <strong>de</strong> Peter Weiss,<br />

em que colocou os espectadores como<br />

visitantes da cela on<strong>de</strong> os loucos<br />

encenavam, sob a direcção do Marquês<br />

<strong>de</strong> Sa<strong>de</strong>, o assassinato do <strong>de</strong>putado<br />

jacobino amigo <strong>de</strong> Robespierre,<br />

no calor da Revolução Francesa. Ou<br />

da mítica encenação do poema indiano<br />

“Mahabharata”, que fez na pedreira<br />

<strong>de</strong> Boulbon em 1985, e que durava<br />

oito longas e inebriantes horas. Ou<br />

ainda da transformação em ópera <strong>de</strong><br />

câmara do secreto texto “Mo<strong>de</strong>rato<br />

Cantabile”, <strong>de</strong> Marguerite Duras, em<br />

1959. Tal como pu<strong>de</strong>mos comprovar<br />

com as recentes passagens em Portugal<br />

<strong>de</strong> “Sizwe Banzi est mort”, <strong>de</strong><br />

Athol Fugard (Festival <strong>de</strong> Almada,<br />

2007) e “Fragments”, <strong>de</strong> Beckett<br />

(Centro Cultural Vila Flor, Guimarães,<br />

e Teatro Viriato, Viseu, 2009), – é<br />

sempre o mesmo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> confluência<br />

entre o ritual pagão e a ascece,<br />

materializados na palavra dita, que<br />

se joga em Peter Brook. “Nunca acreditei<br />

n<strong>um</strong>a verda<strong>de</strong> única. Nem na<br />

minha, nem na dos outros. Eu sempre<br />

acreditei que todas as escolas e<br />

todas as teorias po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> úteis a <strong>de</strong>terminada<br />

altura. Mas <strong>de</strong>scobri que<br />

alguém só po<strong>de</strong> viver se se apaixonar,<br />

e se i<strong>de</strong>ntificar com <strong>um</strong> ponto <strong>de</strong> vista”,<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>.<br />

A sua relação com a ópera tem sido,<br />

<strong>de</strong> resto, <strong>um</strong>a relação <strong>de</strong> amor-ódio.<br />

“Une Flûte Enchantée” foi <strong>um</strong>a reaproximação<br />

imprevista, <strong>de</strong>pois da<br />

ruptura nos anos 50: “Tinha abandonado<br />

a ópera, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muitos anos<br />

<strong>de</strong> experiência no Covent Gar<strong>de</strong>n [em<br />

Londres] e na Metropolitan Opera <strong>de</strong><br />

Nova Iorque, com <strong>um</strong> ódio absoluto<br />

por <strong>um</strong>a forma rígida – não apenas<br />

pelo ‘objecto ópera’, mas também<br />

pelas ‘instituições operáticas’, ‘o sistema<br />

operático’, que bloqueia tudo...<br />

Cheguei à conclusão <strong>de</strong> que era <strong>um</strong>a<br />

perda <strong>de</strong> energia: no teatro não-operático<br />

po<strong>de</strong>mos ir muito mais longe<br />

com a mesma energia – por isso, para<br />

quê agastarmo-nos com <strong>um</strong> mo<strong>de</strong>lo<br />

tão rígido? Abandonei a ópera nos<br />

anos 50, e para sempre”.<br />

Nessa altura, já Brook tinha encenado<br />

“La Bohéme” (1948), “Boris<br />

Godounov” (1948), “The Olympians”<br />

(1949) e “Salomé” (1949, com cenários<br />

<strong>de</strong> Dalí) para o Covent Gar<strong>de</strong>n, e<br />

“Faust” (1953) e “Eugene Onegin”<br />

(1957) para o Metropolitan <strong>de</strong> Nova<br />

Iorque. Mas o modo como o tinha tido<br />

<strong>de</strong> fazer, gerindo os complexos<br />

calendários das casas <strong>de</strong> ópera, impedia-o<br />

<strong>de</strong> trabalhar exactamente<br />

como pretendia. “Une Flûte Enchantée”<br />

era <strong>um</strong>a ambição com 25 anos.<br />

“Devíamos <strong>ser</strong> livres <strong>de</strong> a adaptar como<br />

quiséssemos”, res<strong>um</strong>e, “não para<br />

mo<strong>de</strong>rnizar ou fazer mo<strong>de</strong>rno,<br />

mas para nos <strong>de</strong>sembaraçarmos <strong>de</strong><br />

todas as convenções impostas pela<br />

forma durante anos e anos. Era preciso<br />

colocar a música e os cantores<br />

n<strong>um</strong>a relação directa com o público,<br />

sem fosso <strong>de</strong> orquestra, para que a<br />

presença das personagens se exprimisse<br />

através do canto”. E, na base<br />

<strong>de</strong> tudo, “a improvisação”.<br />

O que vamos ver agora em Guimarães<br />

e no Porto é o resultado <strong>de</strong>sse<br />

percurso <strong>de</strong> pesquisa e <strong>de</strong> permanente<br />

limpeza. O terreno com<strong>um</strong> que<br />

ainda persegue é o <strong>de</strong> <strong>um</strong> teatro sem<br />

fronteiras, aberto e infinito.<br />

Ver agenda <strong>de</strong> espectáculos pág. 51<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 39


Destruir-se, diz ela<br />

Uma das mais importantes coreógrafas da cena contemporânea, Tânia Carvalho, estreia<br />

<strong>um</strong>a peça para 20 intérpretes, verda<strong>de</strong>iro teste às linhas principais do seu trabalho: rigor,<br />

<strong>de</strong>struição, forma. Um discurso marginal que hoje e amanhã está na Culturgest, em Lisboa, e,<br />

na semana que vem em Paris. Tiago Bartolomeu Costa<br />

MIGUEL MANSO<br />

Depois da<br />

Culturgest,<br />

Tânia abrirá<br />

os Rencontres<br />

<strong>de</strong> Seine-<br />

Saint-Denis,<br />

na região<br />

parisiense, o<br />

festival para o<br />

qual todos os<br />

olhares se<br />

dirigem<br />

quando se fala<br />

<strong>de</strong> experimentação<br />

em<br />

dança<br />

Há <strong>um</strong> momento, que corre o risco<br />

<strong>de</strong> se per<strong>de</strong>r por entre a massa <strong>de</strong> bailarinos<br />

que forma o elenco <strong>de</strong> “Icosahedron”:<br />

<strong>um</strong>a linha preta atravessa<br />

os 20 corpos que se digladiam por<br />

<strong>um</strong>a só i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. O que então vemos,<br />

escondido pela sombria luz e<br />

pela rigi<strong>de</strong>z dos corpos, é apenas <strong>um</strong>a<br />

das chaves para a mais recente coreografia<br />

<strong>de</strong> Tânia Carvalho (n. 1976),<br />

feita <strong>de</strong> aglomerados <strong>de</strong> sentidos, <strong>de</strong><br />

gestos, <strong>de</strong> frases que parecem <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

outro tempo, imaterial apesar da ari<strong>de</strong>z<br />

do que fazem.<br />

A estreia hoje, na Culturgest, é só a<br />

primeira data <strong>de</strong> <strong>um</strong>a digressão que a<br />

levará, dias <strong>de</strong>pois, a abrir os Rencontres<br />

<strong>de</strong> Seine-Saint-Denis, na região<br />

parisiense, o mais importante festival<br />

<strong>de</strong> dança contemporânea do início da<br />

temporada e para o qual todos os olhares<br />

se dirigem quando se fala <strong>de</strong> experimentação<br />

em dança.<br />

Tânia Carvalho chega agora, ano<br />

<strong>de</strong> todas as crises, com <strong>um</strong>a peça para<br />

20 intérpretes, quando as massas<br />

parecem ter perdido o lugar na cena<br />

contemporânea europeia. E, no entanto,<br />

ela, que sempre foi <strong>um</strong>a coreógrafa<br />

do gesto implicado, resolveu<br />

respon<strong>de</strong>r a essa dificulda<strong>de</strong> com<br />

<strong>um</strong>a peça on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>smultiplica noutros<br />

corpos, mas não noutros olhares.<br />

São 20 como podiam <strong>ser</strong> só <strong>um</strong>, materializando<br />

a complexa construção<br />

<strong>de</strong>ssa figura geométrica, o icosaedro,<br />

<strong>de</strong> 20 faces iguais. “São todas projecções<br />

minhas”, diz-nos no fim <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

ensaio em Montemor-o-Novo, on<strong>de</strong> a<br />

companhia esteve em residência. “São<br />

projecções com funções diferentes”,<br />

acrescenta. E a cada corpo <strong>um</strong>a função,<br />

a cada função <strong>um</strong> conjunto, em<br />

cada conjunto “a sua limitação”.<br />

Sobrevivência<br />

O percurso <strong>de</strong> Tânia Carvalho é feito<br />

disso, <strong>de</strong> permanentes projecções e<br />

conflitos. “Tenho <strong>um</strong>a relação <strong>de</strong><br />

amor-ódio com a dança”, diz. Quando<br />

nos confessa que a acha pirosa, incompleta,<br />

imperfeita, nunca sabemos<br />

se está a ironizar ou se está a falar a<br />

sério. Nunca sabemos porque se percebe<br />

no movimento dado a fazer a<br />

cada bailarino <strong>um</strong>a limitação que <strong>de</strong>riva<br />

“da impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aquilo <strong>ser</strong><br />

feito”. São assim as suas peças: no limite<br />

do dizível. E, no entanto, <strong>de</strong>las<br />

retiramos sempre a exigência <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

movimento seco, áspero, que pe<strong>de</strong><br />

que os intérpretes sejam mais mecânicos<br />

e funcionais do que fluidos e<br />

abrangentes. E, em res<strong>um</strong>o, é isso que<br />

são: objectos que pairam na cena coreográfica<br />

europeia sem par, que perturbam<br />

a lógica linear e integrada da<br />

dança actual, que reconstroem permanentemente<br />

<strong>um</strong> mesmo caminho,<br />

através da repetição, da insistência,<br />

da pesquisa profunda, da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ficar a olhar para <strong>um</strong> mesmo movimento<br />

até ele se <strong>de</strong>formar por si, até<br />

ele passar a <strong>ser</strong> outra coisa, outro movimento,<br />

outra i<strong>de</strong>ia.<br />

Contudo, o modo como trabalha é<br />

muito rigoroso e formal: “Passo-lhes<br />

[aos bailarinos] o que quero que façam,<br />

até não lhes conseguir explicar.<br />

O que fazem, mesmo que tenha procurado<br />

integrar alg<strong>um</strong>as das suas ‘habilida<strong>de</strong>s’,<br />

<strong>ser</strong>ve <strong>um</strong>a mesma i<strong>de</strong>ia”.<br />

Essa i<strong>de</strong>ia não é líquida e não é perceptível.<br />

Não tem <strong>de</strong> <strong>ser</strong>. Peças como<br />

“De mim não posso fugir, paciência!”<br />

(2008) ou “Orquéstica” (2006)”, trabalhos<br />

<strong>de</strong> grupo, mostram o que já se<br />

tinha visto nos solos, como “Explodir<br />

em Silêncio Nunca Chega a <strong>ser</strong> Perturbador”<br />

(2005) ou “Uma lentidão<br />

que parece <strong>um</strong>a velocida<strong>de</strong>” (2007),<br />

obras <strong>de</strong> <strong>um</strong>a intensida<strong>de</strong> limite, como<br />

se cada movimento esgotasse a<br />

sua razão. “Eu sei sempre o quero que<br />

seja feito”, diz-nos, antes <strong>de</strong> explodir<br />

n<strong>um</strong>a gargalhada que disfarça a sua<br />

permanente dificulda<strong>de</strong> em explicar,<br />

exactamente, o que quer.<br />

Ao longo dos anos, o que tem apresentado<br />

é <strong>um</strong> trabalho on<strong>de</strong> o corpo,<br />

sendo a matéria-prima da qual parte,<br />

<strong>ser</strong>ve <strong>um</strong>a função: <strong>de</strong>struir-se. É <strong>um</strong><br />

corpo que não se resolve, que não se<br />

conforma, que “tenta ter <strong>um</strong>a forma”.<br />

Em “Icosahedron”, estes 20 corpos,<br />

escolhidos em audição e com evi<strong>de</strong>ntes<br />

formações distintas, <strong>ser</strong>vem <strong>um</strong><br />

“Tenho <strong>um</strong>a relação<br />

<strong>de</strong> amor-ódio<br />

com a dança”<br />

propósito: perceber se, juntos, po<strong>de</strong>m<br />

criar <strong>um</strong>a massa. As imagens que<br />

criam, dialogando com <strong>um</strong>a surpreen<strong>de</strong>nte<br />

banda-sonora <strong>de</strong> Diogo Alvim,<br />

feita dos mesmos rasgos, cortes<br />

e amplificações metálicas do movimento,<br />

<strong>de</strong>formam-se ao mesmo tempo<br />

que se constroem. São bichos, são<br />

homens, são monstros, são geométricos,<br />

são tudo ao mesmo tempo, primeiro<br />

a solo, <strong>de</strong>pois em grupo, primeiro<br />

no chão, <strong>de</strong>pois erguendo-se,<br />

como se cada metamorfose fosse <strong>um</strong>a<br />

nova hipótese <strong>de</strong> sobrevivência.<br />

Sobrevivência é a palavra mais forte<br />

para respon<strong>de</strong>r aos <strong>de</strong>safios lançados<br />

por Tânia Carvalho, que insiste<br />

n<strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrota, <strong>de</strong> h<strong>um</strong>ilhação,<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>struição. “Tenho essa i<strong>de</strong>ia<br />

da dança”, diz. Os rostos dos bailarinos,<br />

na primeira parte impassíveis,<br />

na segunda perturbadores, grotescos,<br />

“ridículos”, são a sua forma <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r<br />

às exigências <strong>de</strong> formatação<br />

do corpo, do sentido, do gesto, da<br />

imagem. São, no limite, o seu próprio<br />

fantasma.<br />

Ver agenda <strong>de</strong> espectáculos pág. 51<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 41


Para Bernardo Sassetti é <strong>um</strong>a estreia<br />

– ter <strong>um</strong> par <strong>de</strong> bailarinos a dançar<br />

com o seu piano enquanto ele toca é<br />

<strong>um</strong> cenário completamente novo, mas<br />

nem por isso <strong>de</strong>sconcertante. O músico<br />

parece estar no seu elemento, mesmo<br />

quando a coreografia que Clara<br />

An<strong>de</strong>rmatt <strong>de</strong>senhou para os corpos<br />

<strong>de</strong> Irina Oliveira e Shang-Jen Yuan implica<br />

contacto entre os intérpretes e o<br />

homem que está sentado ao piano.<br />

A estreia <strong>de</strong> Sassetti não foi a única<br />

a marcar a noite <strong>de</strong> ontem, no Teatro<br />

Camões, em Lisboa, nem a mais importante.<br />

É que, para a Companhia<br />

Nacional <strong>de</strong> Bailado (CNB), juntar nove<br />

coreógrafos portugueses n<strong>um</strong> mesmo<br />

programa em que só cabem originais<br />

também é novida<strong>de</strong>. Se quiséssemos<br />

<strong>ser</strong> dramáticos po<strong>de</strong>ríamos até<br />

dizer que o momento é histórico sem<br />

nos enganarmos.<br />

“Uma coisa em forma <strong>de</strong> assim” é<br />

<strong>um</strong> dos primeiros projectos <strong>de</strong> Luísa<br />

Taveira enquanto directora da CNB e,<br />

explica ao Ípsilon esta ex-bailarina e<br />

programadora, c<strong>um</strong>pre na perfeição<br />

o seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> abertura da companhia<br />

aos criadores portugueses e à<br />

contemporaneida<strong>de</strong>. “É maravilhoso<br />

po<strong>de</strong>r ter aqui estas gerações <strong>de</strong> coreógrafos<br />

e <strong>um</strong> compositor como o Bernardo<br />

Sassetti a mexer na companhia.<br />

É muito importante que os bailarinos<br />

se exponham a linguagens diferentes<br />

daquelas a que estão habituados e que<br />

haja <strong>um</strong>a sensação <strong>de</strong> risco à nossa<br />

volta.” A proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong> três dos coreógrafos<br />

- Olga Roriz, Rui Lopes Graça<br />

e Vasco Wellenkamp, que antece<strong>de</strong>u<br />

Taveira como director <strong>de</strong>sta formação<br />

- é evi<strong>de</strong>nte, mas com os<br />

restantes - Paulo Ribeiro, Rui Horta,<br />

Francisco Camacho, Madalena Victorino,<br />

Clara An<strong>de</strong>rmatt e Benvindo<br />

Fonseca - a colaboração é mais esporádica<br />

ou até nunca tinha existido.<br />

Apesar <strong>de</strong> Olga Roriz e Paulo Ribeiro<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rem que o programa é <strong>de</strong><br />

risco – “tanta gente para peças tão pequenas”,<br />

diz ela, “bonito abrir assim<br />

a companhia, mas potencialmente<br />

perigoso”, acrescenta ele -, Luísa Taveira<br />

diz que foi con<strong>ser</strong>vadora e que<br />

<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> fora criadores da mesma<br />

geração (Vera Mantero e João Fia<strong>de</strong>iro<br />

não aceitaram participar) ou mais novos<br />

que gostaria <strong>de</strong> ter incluído. “Queria<br />

ter sido mais corajosa, mas o grupo<br />

<strong>de</strong> coreógrafos que reunimos permitiu<br />

fazer aquilo que planeámos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

início – trabalhar algo novo a partir da<br />

técnica e da fisicalida<strong>de</strong> dos bailarinos,<br />

que assim se sentiriam mais à<br />

vonta<strong>de</strong> para arriscar.”<br />

Uma diva à saída do teatro<br />

“Risco” é <strong>um</strong>a palavra que parece estar<br />

longe do solo que Roriz criou para<br />

Ana Lacerda, rosto da CNB nos últimos<br />

anos. Tudo porque quando vemos<br />

esta bailarina principal mover-se<br />

no seu longo casaco <strong>de</strong> peles temos a<br />

sensação <strong>de</strong> que a coreógrafa <strong>de</strong>senhou<br />

sobre aquele corpo magro que<br />

nos habituámos a ver dançar em pontas<br />

ou <strong>de</strong>scalça, na piscina <strong>de</strong> “Pedro<br />

e Inês”. “Construí o solo no meu corpo<br />

e <strong>de</strong>pois passei-o para o <strong>de</strong>la. Mas<br />

a Ana estava sempre na minha cabeça<br />

enquanto trabalhava e é por isso que<br />

há <strong>um</strong>a certa recorrência <strong>de</strong> poses<br />

clássicas nestes breves minutos.”<br />

Os tutus são trocados por <strong>um</strong> negligé<br />

suave, as sapatilhas <strong>de</strong> pontas por<br />

sapatos pretos <strong>de</strong> salto alto, mas Lacerda<br />

não chega a per<strong>de</strong>r a pose que<br />

a caracteriza, garante Roriz. “Há <strong>um</strong>a<br />

força muito gran<strong>de</strong> na sua fragilida<strong>de</strong>.<br />

Tudo nela é muito especial. Como se<br />

na sua leveza houvesse sempre algo<br />

<strong>de</strong> muito pesado, indizível.” Pesado é<br />

o casaco <strong>de</strong> peles – “quase mais pesado<br />

do que a Ana” – que ajudou Roriz<br />

a transformar a bailarina n<strong>um</strong>a personagem.<br />

“Gosto sempre <strong>de</strong> transformar<br />

os bailarinos em <strong>ser</strong>es <strong>de</strong> ficção.<br />

Para esta personagem tinha muito<br />

presente a i<strong>de</strong>ia da diva à saída do teatro,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>um</strong> espectáculo. Quando<br />

penso nele lembro-me da Margot<br />

Fonteyn a sair do São Carlos.”<br />

Trabalhar com Ana Lacerda n<strong>um</strong><br />

espectáculo que marca o no Dia Mundial<br />

da Dança, que hoje se celebra,<br />

“É muito importante<br />

que os bailarinos<br />

se exponham a<br />

linguagens diferentes<br />

daquelas a que estão<br />

habituados e que haja<br />

<strong>um</strong>a sensação<br />

<strong>de</strong> risco à nossa volta”<br />

Luísa Taveira<br />

era também <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> homenagear<br />

“<strong>um</strong>a artista que tem aproximado<br />

o público da companhia e que a<br />

tem transformado, tal como Dominique<br />

Mercy moldou a i<strong>de</strong>ia que temos<br />

do trabalho <strong>de</strong> Pina Bausch e nos faz<br />

suspen<strong>de</strong>r a respiração sempre que<br />

aparece em palco”. Quando Lacerda<br />

dança, conclui Roriz, o tempo também<br />

fica por vezes suspenso, mesmo<br />

n<strong>um</strong>a peça breve como esta (as nove<br />

criações <strong>de</strong> “Uma coisa em forma <strong>de</strong><br />

assim” têm na sua maioria quatro minutos).<br />

Levar os bailarinos da companhia<br />

a explorar outros métodos <strong>de</strong> trabalho<br />

foi <strong>um</strong> dos <strong>de</strong>safios que Taveira<br />

quis promover com este programa<br />

assinado por nove coreógrafos e <strong>um</strong><br />

compositor. Roriz, por exemplo, sabia<br />

que não podia compor o solo <strong>de</strong> Lacerda<br />

com base na improvisação, mas<br />

foi muito importante para alguns bailarinos<br />

o contacto em estúdio com<br />

coreógrafos como Paulo Ribeiro ou<br />

Francisco Camacho.<br />

T-shirts e calças <strong>de</strong> ganga em bailarinos<br />

mais habituados a malhas e<br />

collants n<strong>um</strong> dueto que se concentra<br />

nas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r é o que propõe<br />

Camacho. Dois homens – <strong>um</strong> que manipula<br />

e outro que é manipulado – hão<strong>de</strong><br />

trocar <strong>de</strong> papéis, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se terem<br />

adaptado ao corpo <strong>um</strong> do outro, como<br />

bonecos feitos <strong>de</strong> plasticina.<br />

Paulo Ribeiro, por seu lado, <strong>de</strong>cidiu<br />

coreografar <strong>um</strong> quarteto a partir da<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> reencontro. “São dois pares<br />

e, com eles, faço <strong>um</strong>a brinca<strong>de</strong>ira à<br />

volta das pessoas que não conseguem<br />

separar-se ou que, apesar <strong>de</strong> tudo o<br />

que lhes acontece na vida, não <strong>de</strong>ixam<br />

<strong>de</strong> estar <strong>um</strong>as com as outras.”<br />

Para este criador que também dirige<br />

o Teatro Viriato, em Viseu, e que está<br />

a colaborar pela primeira vez com a<br />

CNB, este programa começou por <strong>ser</strong><br />

<strong>um</strong> convite inesperado e, pouco a<br />

pouco, transformou-se n<strong>um</strong>a surpresa<br />

boa. “Não sabia que os bailarinos<br />

eram tão generosos, atentos e abertos.<br />

Não fazia a mínima i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que<br />

estavam tão dispostos a experimentar.”<br />

Luísa Taveira quer que se mantenham<br />

“assim”.<br />

Ver agenda <strong>de</strong> espectáculos pág. 51<br />

RICARDO BRITO<br />

Arriscar<br />

em quatro minutos<br />

Um compositor, nove coreógrafos, <strong>um</strong>a companhia. O<br />

programa com que a Companhia Nacional <strong>de</strong> Bailado<br />

festeja hoje o Dia Mundial da Dança quer abrir as<br />

portas do Teatro Camões, em Lisboa – ao público e aos<br />

criadores nacionais –, com “Uma coisa em forma <strong>de</strong><br />

assim”. Lucinda Canelas<br />

O solo que Olga Roriz criou<br />

para Ana Lacerda é <strong>um</strong>a<br />

homenagem à bailarina que,<br />

diz a coreógrafa, “tem<br />

transformado” a companhia<br />

42 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


SUSANNA SÁEZ<br />

PAULO PIMENTA<br />

Tiago Sousa<br />

Surpresa musical<br />

<strong>de</strong> 2011. Pág. 46<br />

Paul<br />

Verhoeven<br />

Desconstrói Jesus<br />

Cristo, em livro.<br />

Pág. 49<br />

Michelangelo<br />

Frammartino<br />

Dá mais vidas<br />

ao cinema.<br />

Pág. 52<br />

Manoel<br />

Oliveira<br />

Abre as<br />

portas aos<br />

fantasmas.<br />

Pág. 52<br />

Aloe<br />

Blacc<br />

Agora que<br />

precisamos<br />

<strong>de</strong> uns dólares ele<br />

chega a Lisboa.<br />

Pág. 44<br />

O Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís<br />

<strong>de</strong>stina-se a distinguir, anualmente, <strong>um</strong> romance inédito <strong>de</strong> autor<br />

português, premiando-o com <strong>um</strong> prémio <strong>de</strong> 25 mil euros<br />

e a edição do romance. O prazo <strong>de</strong> recepção<br />

dos originais termina no próximo dia 14 <strong>de</strong> Maio.<br />

Mais informações: www.casino-estoril.com | www.casino-lisboa.com<br />

Contactos: Tel: 21 466 78 20 | 21 466 78 98 | 21 466 77 91<br />

Fax: 21 466 79 90 | e-mail: gabimprensa.casinoestoril@estoril-sol.com<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 43


Concertos<br />

ENTRADA LIVRE<br />

AO VIVO<br />

COCHAISE<br />

06/05 SEX 22H00 LEIRIASHOPPING<br />

Pop<br />

Blacc music<br />

Agora que realmente<br />

precisamos <strong>de</strong> uns dólares,<br />

Aloe Blacc chega a Lisboa.<br />

Gonçalo Frota<br />

Aloe Blacc + Maya Jupiter<br />

Lisboa. Aula Magna. Alam. Universida<strong>de</strong>. 4ª, 4, às<br />

22h. Tel.: 217967624. 28€ a 40€.<br />

Há quem precise <strong>de</strong> complexos<br />

programas <strong>de</strong> ajuda externa <strong>de</strong><br />

milhares <strong>de</strong> milhões <strong>de</strong> euros. E há<br />

quem, como Aloe Blacc, precise<br />

apenas <strong>de</strong> <strong>um</strong> dólar. Não espanta.<br />

Aloec Blacc, 31 anos <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

revelação notável no domínio da<br />

música soul, é homem que aparece<br />

como voz popular <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

dispensado das reuniões <strong>de</strong><br />

engravatados, é homem que se<br />

preocupa com aquilo que lhe vale na<br />

dispensa <strong>um</strong>a nota <strong>de</strong> dólar na mão,<br />

é homem que <strong>de</strong>cidiu <strong>de</strong>dicar-se por<br />

inteiro à música enquanto não se<br />

acabava o dinheiro. Aloe Blacc é, por<br />

assim dizer, microeconomia,<br />

finanças a <strong>um</strong>a escala h<strong>um</strong>ana, voz<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a América a contas com as<br />

contas que faz à vida, e por isso<br />

mesmo visto (e autoproclamado)<br />

como <strong>um</strong> her<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> nomes<br />

maiores como Marvin Gaye ou Bill<br />

Withers, gente que usava a canção<br />

para dizer alg<strong>um</strong>a coisa com isso e<br />

não apenas para promover o<br />

Os MGMT<br />

chegam à<br />

Queima do<br />

Porto já com o<br />

novo disco na<br />

cabeça<br />

Se não fosse<br />

a crise, Aloe<br />

Blacc nunca<br />

teria <strong>de</strong>spido<br />

o seu fato <strong>de</strong><br />

executivo<br />

e vestido<br />

a roupa do<br />

músico que<br />

precisa <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong> dólar<br />

encontro <strong>de</strong> corpos n<strong>um</strong>a pista <strong>de</strong><br />

dança.<br />

Não por acaso, “I need a dollar”, o<br />

sucesso que o tirou repentinamente<br />

do anonimato, tem como pano <strong>de</strong><br />

fundo o <strong>de</strong>spedimento do próprio<br />

Blacc. Ele que era consultor junto <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a daquelas empresas cuja<br />

gran<strong>de</strong>za se me<strong>de</strong> pela quantida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> &s que separam os apelidos dos<br />

seus sócios, foi vítima <strong>de</strong> <strong>um</strong>a das<br />

palavras mais populares das últimas<br />

décadas. O “downsizing” entrou<br />

pela porta gran<strong>de</strong>, Aloe saiu pela<br />

pequena, mas com isso fez <strong>um</strong>a<br />

canção maior do que qualquer<br />

hierarquia laboral. Não houvesse<br />

recessão e Aloe Blacc nunca teria<br />

provavelmente <strong>de</strong>spido o seu fato <strong>de</strong><br />

executivo e vestido a roupa do<br />

músico. Teria gravado <strong>um</strong> par <strong>de</strong><br />

canções para oferecer aos colegas no<br />

jantar <strong>de</strong> Natal da empresa. Não<br />

mais do que isso.<br />

“Good Things”, segundo álb<strong>um</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong> talento que andou <strong>de</strong>masiado<br />

adormecido por mais <strong>de</strong> <strong>um</strong>a década,<br />

traz <strong>um</strong>a injecção <strong>de</strong> eficácia letal: o<br />

hip-hop, por on<strong>de</strong> se andou a passear<br />

durante anos (no duo Emanon),<br />

fornece-lhe a <strong>de</strong>streza rítmica, e<br />

<strong>de</strong>pois há soul em estado puro. Do<br />

resto, encarrega-se o momento<br />

actual: a música soul sempre se<br />

alimentou dos tempos difíceis para se<br />

impor e funcionar como analgésico<br />

para almas hemorrágicas. Nessas<br />

alturas, aparece sempre alguém que,<br />

com a sua voz, ajuda a estancar e a<br />

dar <strong>um</strong> sentido à dor que se ouve nas<br />

ruas. Aloe Blacc, muito bem-vindo,<br />

agora é a tua vez.<br />

aMa<strong>um</strong>MedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito Me<br />

BommmmmmExcelente<br />

Realeza<br />

britânica<br />

Divine Comedy e Sue<strong>de</strong> são<br />

nomes fortes da Queima das<br />

Fitas do Porto. Pedro Rios<br />

Noites da Queima<br />

Porto. Parque da Cida<strong>de</strong>. Av. Boavista/ Estrada da<br />

Circunvalação. De dom., 1, a sáb., 7, às 22h. Tel.:<br />

226076370. 7€ a 14€.<br />

“Give us some Pixies and some<br />

Roses and some Valentines — Give us<br />

some Blur, and some Cure, and some<br />

Wannadies”, canta Neil Hannon em<br />

“At the indie disco”, o primeiro<br />

“single” do seu último disco, “Bang<br />

Goes the Knighthood”. É possível<br />

que, na cabeça <strong>de</strong> Hannon, nas<br />

discotecas indie ainda se ouçam<br />

apenas discos com pó e que não<br />

existam coisas como Arca<strong>de</strong> Fire ou<br />

Vampire Weekend, mas na verda<strong>de</strong><br />

nada disso interessa: Hannon podia<br />

muito bem <strong>ser</strong> <strong>um</strong> eremita que a sua<br />

música continuaria a mesma, imune à<br />

passagem do tempo e às modas.<br />

Pu<strong>de</strong>ra: o senhor Divine Comedy<br />

(é o único membro constante do<br />

grupo formado em 1989 e que já vai<br />

no décimo álb<strong>um</strong>) sabe on<strong>de</strong> ir<br />

beber e é tudo matéria clássica: pop<br />

orquestral, Scott Walker, Burt<br />

Bacharach, Jacques Brel, alg<strong>um</strong>a<br />

música indie, tudo com a<br />

sensibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> “dandy”<br />

aristocrata que é também <strong>um</strong>a<br />

estrela pop.<br />

Os Divine Comedy abrem, na<br />

passagem <strong>de</strong> amanhã para domingo,<br />

pela 1h, a Queima das Fitas do Porto,<br />

que este ano soube guarnecer-se<br />

com alguns nomes interessantes. É o<br />

caso dos MGMT, que actuam quartafeira,<br />

dia 4 (na mesma noite há<br />

X-Wife, a mostrar o novo “Infectious<br />

Affectional”). Os americanos, que<br />

<strong>de</strong>ixaram meio mundo espantado<br />

com as aventuras psicadélicas que<br />

seguiram no seu segundo álb<strong>um</strong>,<br />

“Congratulations” (e outro a abrir a<br />

boca n<strong>um</strong> bocejo), regressam a<br />

Portugal n<strong>um</strong>a altura em que já<br />

começam a pensar n<strong>um</strong> sucessor.<br />

Sabe-se apenas que <strong>ser</strong>á <strong>um</strong> “disco<br />

alegre” e “divertido” - garantias <strong>de</strong><br />

Andrew VanWyngar<strong>de</strong>n à edição<br />

“online” da “Esquire”.<br />

Até dia 7, a Queima re<strong>ser</strong>va ainda<br />

outro nome gran<strong>de</strong> (sexta, dia 6,<br />

com Os Pontos Negros): os Sue<strong>de</strong> .<br />

Sim, a aventura “britpop” do<br />

vocalista Brett An<strong>de</strong>rson (foram<br />

talvez a primeira banda <strong>de</strong> rock<br />

alternativo a furar no “mainstream”<br />

britânico nos anos 90 – o “Melody<br />

Maker” chamou-lhes a melhor nova<br />

banda britânica) e companhia ainda<br />

mexe – regressaram aos palcos em<br />

2010, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>um</strong> silêncio <strong>de</strong> sete<br />

anos, em regime nostálgico “best<br />

of”. Voltaram com An<strong>de</strong>rson <strong>de</strong><br />

pazes feitas com Bernard Butler<br />

(guitarrista e fundador, que <strong>de</strong>ixou<br />

os Sue<strong>de</strong> <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> “Dog Man<br />

Star”), que, ainda assim, não<br />

regressou ao grupo. N<strong>um</strong>a<br />

entrevista recente a <strong>um</strong> blogue da<br />

BBC americana, An<strong>de</strong>rson afirmou<br />

que a banda está a compor material<br />

novo, mas que não é certo que o<br />

edite. “Se ficar bom, as pessoas vão<br />

ouvi-lo. Se não, não há qualquer<br />

<strong>de</strong>sejo nosso em lançar <strong>um</strong> disco<br />

abaixo do que os Sue<strong>de</strong> já fizeram<br />

só para lançar mais <strong>um</strong> álb<strong>um</strong>. Não<br />

tenho a certeza se isso <strong>de</strong>ixaria o<br />

legado intacto”. Talvez possamos<br />

ouvir alg<strong>um</strong>a <strong>de</strong>ssas novas canções<br />

em primeira mão no Porto, mas é<br />

certo que a nostalgia falará mais<br />

alto.<br />

Viagem à infância<br />

com os Clã<br />

Clã<br />

Lisboa. Centro Cultural <strong>de</strong> Belém - Gran<strong>de</strong><br />

Auditório. Pç. Império. Amanhã, às 21h. Tel.:<br />

213612400. 12,5€ a 27,5€.<br />

Porto. Casa da Música - Sala Suggia. Pç. Mouzinho<br />

<strong>de</strong> Albuquerque. 4ª, 4, às 21h30. Tel.: 220120220.<br />

20€.<br />

O “Disco Voador” são os Clã a<br />

brincar à pop para meninas e<br />

meninos, mas não são os Clã a<br />

brincar ao circo (on<strong>de</strong> o mestre-<strong>de</strong>cerimónias,<br />

diz-nos a memória,<br />

apresenta <strong>de</strong>ssa forma o palhaço<br />

pobre e o palhaço rico: “meninas e<br />

meninos, blá, blá, blá”, e por aí<br />

fora).<br />

“Disco Voador” é, à superfície das<br />

melodias e dos arranjos, como que<br />

<strong>um</strong> álb<strong>um</strong> clássico da banda <strong>de</strong><br />

“Kazoo”, com as suas melodias<br />

escorreitas e os arranjos com<br />

teclados <strong>de</strong> fantasia – mas <strong>de</strong>pois, há<br />

ali “kazoo” e flautas, há amores<br />

inocentes, cães a olhar para o dono<br />

<strong>de</strong>itado no sofá, “gu-gu dá-dás” ou<br />

guloseimas irresistíveis. Este disco<br />

que começou como espectáculo<br />

encomendado pelo Projecto<br />

Estaleiro, que se propõe promover<br />

em Vila do Con<strong>de</strong>, ao longo <strong>de</strong> 20<br />

meses, 20 concertos, 20 ateliers e 20<br />

filmes, é <strong>um</strong> objecto diferente no<br />

percurso dos Clã: <strong>um</strong> álb<strong>um</strong> para<br />

crianças, ou melhor, <strong>um</strong> álb<strong>um</strong> que<br />

fala daquilo que as crianças falam<br />

sem infantilizar o discurso e<br />

acolhendo o adulto sem <strong>medo</strong> da<br />

infância perdida lá atrás – a música é<br />

dos Clã, as letras <strong>de</strong> Regina<br />

Guimarães.<br />

Apresentado dia 14 <strong>de</strong> Janeiro em<br />

Vila <strong>de</strong> Con<strong>de</strong>, transformou-se em<br />

disco, editado há três dias, e anda a<br />

<strong>ser</strong> apresentado em várias escolas<br />

do país. Nos próximos dias, o<br />

espectáculo, com cenografia<br />

a<strong>de</strong>quada ao público-alvo<br />

preferencial (são bonitos os sonhos<br />

infantis), chega a outro tipo <strong>de</strong><br />

instituição. Amanhã, ouviremos “Paf<br />

e puf”, “Chocolatando” ou “Loja do<br />

Mestre Hermeto” no Centro Cultural<br />

<strong>de</strong> Belém, em Lisboa. Quarta-feira, o<br />

“Disco Voador” aterra na Casa da<br />

Música. Mário Lopes<br />

44 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


Gilad Karni<br />

com a<br />

Orquestra<br />

Metropolitana<br />

<strong>de</strong> Lisboa<br />

ANA LUANDINA<br />

Os Clã para o menino<br />

e para a menina em<br />

Lisboa e no Porto<br />

Clássica<br />

Revoluções<br />

americanas<br />

A Orquestra Sinfónica do<br />

Porto e o Remix Ensemble<br />

cruzam John Zorn e Frank<br />

Zappa com Varèse e John<br />

Cage. Cristina Fernan<strong>de</strong>s<br />

Remix Ensemble e Orquestra<br />

Sinfónica do Porto<br />

Direcção Musical <strong>de</strong> Jonathan<br />

Stockhammer, Emilio Pomàrico.<br />

Porto. Casa da Música - Sala Suggia. Pç. Mouzinho<br />

<strong>de</strong> Albuquerque. Hoje, às 21h. Tel.: 220120220. 10€.<br />

Porto. Casa da Música - Sala Suggia. Pç. Mouzinho<br />

<strong>de</strong> Albuquerque. Amanhã, às 18h. Tel.: 220120220.<br />

10€.<br />

No ano em que os EUA são o paístema<br />

da Casa da Música, o ciclo<br />

Música e Revolução não podia <strong>de</strong>ixar<br />

passar em branco o contributo<br />

americano nas transformações das<br />

linguagens musicais do século XX.<br />

Espaço privilegiado do cruzamento<br />

<strong>de</strong> géneros e tendências diversas, a<br />

América foi para muitos<br />

compositores <strong>um</strong> símbolo <strong>de</strong><br />

liberda<strong>de</strong>, <strong>um</strong> território por explorar<br />

sem os constrangimentos do peso da<br />

tradição europeia. No texto<br />

introdutório ao ciclo, o director<br />

artístico da Casa da Música, António<br />

Jorge Pacheco, recorda <strong>um</strong> episódio<br />

bem emblemático <strong>de</strong>ssa atitu<strong>de</strong>.<br />

Quando <strong>um</strong> compositor europeu<br />

disse a John Cage que <strong>de</strong>via <strong>ser</strong><br />

“muito difícil compor na América,<br />

estando tão longe dos centros <strong>de</strong><br />

tradição”, este retorquiu: “Deve <strong>ser</strong><br />

muito difícil compor na Europa,<br />

estando tão perto dos centros <strong>de</strong><br />

tradição!”<br />

Depois das actuações <strong>de</strong> Ursula<br />

Oppens e <strong>de</strong> Elliot Sharp, a Orquestra<br />

Sinfónica do Porto (dirigida por<br />

Emilio Pomàrico) e o Remix<br />

Ensemble (sob a batuta <strong>de</strong> Jonathan<br />

Stockhammer) apresentam este fim<strong>de</strong>-semana<br />

dois programas que<br />

culminam com a estreia em Portugal<br />

da versão <strong>de</strong> 1922 <strong>de</strong> “Amériques”, <strong>de</strong><br />

Edgard Varèse, a primeira obra<br />

criada pelo compositor francês em<br />

território americano e <strong>um</strong> exemplo<br />

<strong>de</strong>ssa metáfora <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e da<br />

exploração <strong>de</strong> novos mundos.<br />

Frank Zappa<br />

Destinada a <strong>um</strong>a formação<br />

instr<strong>um</strong>ental <strong>de</strong> dimensões<br />

<strong>de</strong>scomunais, a peça exige a<br />

participação <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 145 músicos.<br />

Varèse teve <strong>um</strong>a influência<br />

marcante no percurso dos<br />

fundadores da Escola <strong>de</strong> Nova<br />

Iorque, nomeadamente em John<br />

Cage e Morton Feldman, e foi<br />

também <strong>um</strong> ídolo para Frank Zappa<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua juventu<strong>de</strong>. Por seu<br />

turno, Feldman <strong>de</strong>ixou a sua marca<br />

em John Zorn. A música <strong>de</strong>stes vários<br />

autores cruza-se hoje (às 21h) e<br />

amanhã (às 18h) n<strong>um</strong> mosaico<br />

fascinante <strong>de</strong> c<strong>um</strong>plicida<strong>de</strong>s. No<br />

concerto <strong>de</strong>sta noite, o Remix<br />

interpreta “For Your Eyes Only”, <strong>de</strong><br />

Zorn, em conjunto com alguns<br />

excertos <strong>de</strong> “Yellow Shark”, <strong>de</strong> Frank<br />

Zappa, e a Sinfonia nº2, <strong>de</strong> George<br />

Brecht (1926-2008), irreverente<br />

músico e artista plástico americano<br />

que muito admirava Cage. Na<br />

segunda parte, a Sinfónica do Porto<br />

apresenta “Coptic Light”, <strong>de</strong><br />

Feldman, e volta a subir ao palco<br />

amanhã para interpretar<br />

“Amériques”, <strong>de</strong> Varèse, após duas<br />

obras <strong>de</strong> John Cage (“Credo in US” e<br />

“Concerto para piano preparado e<br />

orquestra <strong>de</strong> câmara”, com Rolf Hind<br />

como solista) a cargo do Remix.<br />

Reflexões<br />

para viola <strong>de</strong> arco<br />

Gilad Karni e Orquestra<br />

Metropolitana <strong>de</strong> Lisboa<br />

Direcção Musical <strong>de</strong> Lior<br />

Shambadal.<br />

Lisboa. Reitoria da Universida<strong>de</strong> Nova. Campus <strong>de</strong><br />

Campoli<strong>de</strong>. Hoje, às 21h. Tel.: 213715600.<br />

Mafra. Palácio Nacional <strong>de</strong> Mafra - Sala Elíptica.<br />

Terreiro <strong>de</strong> Dom João V. Amanhã, às 22h. Tel.:<br />

261817550.<br />

Obras <strong>de</strong> Mozart, Britten, H<strong>um</strong>mel e<br />

Men<strong>de</strong>lssohn<br />

O programa dos próximos concertos<br />

da Orquestra Metropolitana <strong>de</strong><br />

Lisboa (OML) combina <strong>um</strong>a obra<br />

célebre do repertório oitocentista (a<br />

Sinfonia n.º 3, Op. 56, “Escocesa”, <strong>de</strong><br />

Men<strong>de</strong>lssohn) com <strong>um</strong>a série <strong>de</strong><br />

páginas mais raramente ouvidas, não<br />

obstante as suas inspiração musical e<br />

qualida<strong>de</strong> artística. Os primeiros<br />

andamentos da música <strong>de</strong> bailado da<br />

ópera “Idomeneo”, <strong>de</strong> Mozart —<br />

frequentemente suprimidos nas<br />

actuais apresentações cénicas —<br />

prece<strong>de</strong>m duas peças <strong>de</strong> épocas<br />

diferentes em que a viola <strong>de</strong> arco<br />

ass<strong>um</strong>e o papel protagonista: a<br />

inspirada Fantasia em Sol menor,<br />

<strong>de</strong> Jan Nepomuk H<strong>um</strong>mel,<br />

compositor e pianista virtuoso<br />

contemporâneo <strong>de</strong> Beethoven,<br />

e “Lachrymae: reflexões sobre<br />

<strong>um</strong>a canção <strong>de</strong> John Dowland”,<br />

op. 48, <strong>de</strong> Benjamin Britten. Esta<br />

última é constituída por <strong>um</strong>a<br />

série <strong>de</strong> variações livres sobre a<br />

canção “If my complaints could<br />

passions move”, mas apresenta a<br />

também citações <strong>de</strong> outras<br />

melodias célebres <strong>de</strong> Dowland como<br />

é o caso <strong>de</strong> “Flow My Tears”. Escrita<br />

em 1950 n<strong>um</strong>a versão para viola e<br />

piano e <strong>de</strong>dicada ao gran<strong>de</strong> violetista<br />

William Primrose, <strong>ser</strong>ia orquestrada<br />

por Britten em 1976, cerca <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

quarto <strong>de</strong> século <strong>de</strong>pois da estreia.<br />

No concerto da OML <strong>ser</strong>á solista o<br />

violetista Gilad Karni, actual chefe <strong>de</strong><br />

naipe da Orquestra da Tonhalle <strong>de</strong><br />

Zurique e <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> <strong>um</strong>a bemsucedida<br />

carreira internacional que<br />

inclui n<strong>um</strong>erosas actuações a solo,<br />

com orquestra e no domínio da<br />

música <strong>de</strong> câmara. A direcção<br />

musical estará a cargo do maestro e<br />

compositor israelita Lior Shambadal,<br />

titular da Orquestra Sinfónica <strong>de</strong><br />

Berlim <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1997 e director musical<br />

da Orquestra Filarmónica <strong>de</strong> Bogotá<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2009. C.F.<br />

Agenda<br />

Sexta 29<br />

Tim Hecker<br />

Lisboa. Galeria Zé dos Bois. R. Barroca, 59,<br />

às 23h. Tel.: 213430205.<br />

Sábado 30<br />

Loveless feat. Nana Kita<strong>de</strong><br />

Lisboa. MusicBox. R. Nova do Carvalho, 24,<br />

às 23h. Tel.: 213430107. 18€.<br />

Peixe: Avião<br />

Famalicão. Casa das Artes - Gran<strong>de</strong> Auditório.<br />

Pq. <strong>de</strong> Sinçães, às 21h30. Tel.: 252371297. 8€.<br />

Domingo 1<br />

Requiem for a Dying Planet<br />

Direcção <strong>de</strong> Ernst Reijseger.<br />

Porto. Casa da Música. Pç. Mouzinho <strong>de</strong><br />

Albuquerque, às 19h. Tel.: 220120220. 5€.<br />

Quarta 4<br />

Chain & The Gang<br />

Lisboa. MusicBox. R. Nova do Carvalho, 24,<br />

às 22h30. Tel.: 213430107. 8€.<br />

Abe Vigoda + Evols<br />

Porto. Plano B. R. Cândido dos Reis, 30, às 23h.<br />

Tel.: 222012500. 10€ a 12€.<br />

Quinta 5<br />

Paolo Conte Band<br />

Lisboa. Centro Cultural <strong>de</strong> Belém. Pç. Império,<br />

às 21h. Tel.: 213612400. 15€ a 60€.<br />

Yann Tiersen<br />

Lisboa. LX Factory. Rua Rodrigues Faria, 103,<br />

às 21h30. Tel.: 213143399. 25€.<br />

Vladislav Delay Quartet<br />

Lisboa. Teatro Maria Matos. Av. Frei Miguel<br />

Contreiras, 52, às 22h. Tel.: 218438801. 6€ a 12€.<br />

Ursula Rucker<br />

Lisboa. MusicBox. R. Nova do Carvalho, 24,<br />

às 23h. Tel.: 213430107. 12€.<br />

Gala Drop + Jamie XX<br />

Lisboa. Lux Frágil. Av. Infante D. Henrique -<br />

Armazém A, às 23h. Tel.: 218820890. 12€.<br />

Abe Vigoda + The<br />

Glockenwise<br />

Lisboa. Galeria<br />

Zé dos Bois.<br />

R. Barroca, 59,<br />

às 22h. Tel.:<br />

213430205.<br />

8€.<br />

Yann Tiersen<br />

Paolo Conte<br />

produção<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

co-produção<br />

apoio<br />

© invisible<strong>de</strong>sign.pt | © fotografia Jesús Peña<br />

MARIONETAS<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

MOSTRA DA<br />

MARIONETA<br />

‘11<br />

MARIONETA‘11<br />

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65 MIN. S/ INTERVALO M/16 ANOS<br />

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Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 45


Discos<br />

Uma das<br />

melhores<br />

surpresas do<br />

2011 musical<br />

Pop<br />

O sítio certo<br />

Longe das aca<strong>de</strong>mias e das<br />

cantorias, vinca com firmeza<br />

o seu percurso vagamente<br />

insólito. Gonçalo Frota<br />

Tiago Sousa<br />

Wal<strong>de</strong>n Pond’s Monk<br />

Immune; distri. Mbari<br />

mmmmn<br />

Um piano nas<br />

mãos <strong>de</strong> <strong>um</strong> leigo<br />

é, regra geral,<br />

visto como <strong>um</strong><br />

elemento<br />

potencialmente<br />

hostil. Ou se trata<br />

<strong>de</strong> alguém <strong>de</strong>vidamente validado<br />

para lhe percorrer as teclas – e para<br />

isso existem escolas clássicas e <strong>de</strong><br />

jazz – ou então o instr<strong>um</strong>ento é visto<br />

quase como capricho <strong>de</strong> cantores<br />

com egos obesos, inebriados pela<br />

formulação matemática que diz que<br />

sentarem-se naquele banco preto e<br />

pousarem as mãos no teclado<br />

confere automaticamente prestígio,<br />

<strong>ser</strong>ieda<strong>de</strong> e relevância. É quase<br />

como <strong>um</strong> atestado <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> e<br />

maiorida<strong>de</strong> musical: tocar piano é<br />

sinal <strong>de</strong> distinção, e ninguém po<strong>de</strong><br />

alegadamente <strong>ser</strong> medíocre <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> por ali passar até a canção mais<br />

tenebrosa do mundo.<br />

O novo disco <strong>de</strong> Tiago Sousa –<br />

longe das aca<strong>de</strong>mias e das cantorias<br />

– vinca com firmeza o seu percurso<br />

vagamente insólito.<br />

Compositor tardio ao<br />

piano, Tiago não<br />

escon<strong>de</strong> as<br />

referências da<br />

música erudita<br />

ao<br />

mesmo<br />

tempo que<br />

parece her<strong>de</strong>iro<br />

do universo<br />

experimental<br />

do rock –<br />

quando as<br />

bandas<br />

percebem que<br />

po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong><br />

ambiciosas nas<br />

suas intenções <strong>de</strong><br />

composição<br />

sem com<br />

isso<br />

tratarem as guitarras como se<br />

pu<strong>de</strong>ssem fazer as vezes <strong>de</strong> toda<br />

<strong>um</strong>a orquestra. Foi <strong>um</strong>a virtu<strong>de</strong> do<br />

rock menos alinhado nas duas<br />

últimas décadas: <strong>de</strong>u a sensação <strong>de</strong><br />

que estava a crescer até esbarrar e<br />

assimilar/<strong>ser</strong> assimilado pelas gentes<br />

clássicas. Mas aquilo que Tiago<br />

Sousa faz não é rock. Não é tão fácil<br />

assim <strong>de</strong> explicar.<br />

Entra o piano em modo circular,<br />

ouvidos à escuta para <strong>de</strong>cidir se é<br />

erudito ou popular, <strong>um</strong>a melancolia<br />

fina que não ajuda à categorização e<br />

que exige <strong>um</strong>a audição impoluta,<br />

sem que etiquetas <strong>de</strong> uso corrente<br />

criem ruído e distraiam do essencial.<br />

E Tiago Sousa vai alimentando estes<br />

círculos até se transformarem<br />

noutros, trazendo à baila Debussy,<br />

mas também Bernardo Sassetti (<strong>de</strong><br />

“Ascent”), em temas instr<strong>um</strong>entais<br />

<strong>de</strong>sacelerados, belos e dolentes, e<br />

até em hipnóticas evocações<br />

indianas. Depois vêm clarinete e<br />

percussões, camadas que se vão<br />

avol<strong>um</strong>ando sem que a música<br />

ganhe peso ou robustez. Permanece<br />

<strong>de</strong>licada e tímida, ao mesmo tempo<br />

que exigente e segura. Tiago Sousa<br />

faz isto como se não pu<strong>de</strong>sse fazer<br />

outra coisa, como se a música não<br />

pu<strong>de</strong>sse <strong>ser</strong> senão esta, como se<br />

cada nota tivesse <strong>de</strong>morado vários<br />

anos a procurar o melhor sítio on<strong>de</strong><br />

se enfiar e daí se recusasse a sair.<br />

Com isso, concretize-se,<br />

ganhámos <strong>um</strong>a das melhores<br />

surpresas do 2011 musical. E não<br />

custa a imaginar que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

editado internacionalmente pela<br />

norte-americana Immune, em Maio,<br />

o nome vulgar <strong>de</strong> Tiago Sousa passe<br />

a equivaler a <strong>um</strong> exótico sinónimo<br />

<strong>de</strong> música obrigatória <strong>um</strong> pouco por<br />

todo o mundo – on<strong>de</strong> houver <strong>um</strong><br />

piano e não existir <strong>um</strong>a pauta.<br />

Um encontro<br />

admirável<br />

Afonso Pais / JP Simões<br />

On<strong>de</strong> Mora o Mundo<br />

Orfeu; distri. Movieplay<br />

mmmmn<br />

“On<strong>de</strong> Mora o<br />

Mundo” é o<br />

álb<strong>um</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

encontro<br />

anunciado.<br />

Afonso Pais,<br />

músico jazz que<br />

não po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> etiquado “apenas”<br />

como tal, e director musical <strong>de</strong> JP<br />

Simões nos últimos anos, e JP<br />

Simões ele mesmo, o homem da<br />

palavra arguta e melancolicamente<br />

acutilante que nos ofereceu em<br />

“1970”, e no “Exílio” do Quinteto<br />

Tati, e nos Belle Chase Hotel antes<br />

<strong>de</strong> tudo isso, <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> olhar o<br />

país e o mundo em volta como<br />

poucos fizeram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos<br />

gloriosos da década <strong>de</strong>,<br />

precisamente, 1970.<br />

aMa<strong>um</strong>MedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

A marca<br />

autoral <strong>de</strong><br />

JP Simões<br />

<strong>de</strong>scobre em<br />

Afonso Pais<br />

<strong>um</strong> parceiro<br />

que o <strong>ser</strong>ve da<br />

melhor forma<br />

possível<br />

“On<strong>de</strong> Mora o Mundo”, encontro<br />

entre dois amantes do jazz e do<br />

balanço cheio <strong>de</strong> vida da bossa e do<br />

samba como explicado por Buarque<br />

ou Jobim, é <strong>um</strong> disco fascinante. A<br />

sensibilida<strong>de</strong>, justiça e liberda<strong>de</strong><br />

musical <strong>de</strong> Afonso Pais, reunida à<br />

sabedoria que tudo enriquece <strong>de</strong><br />

Carlos Barreto e Alexandre Frazão (a<br />

secção rítmica), <strong>ser</strong>vindo as palavras<br />

e a capacida<strong>de</strong> para pôr em cena <strong>de</strong><br />

JP Simões, cantor “da melancolia /<br />

do abandono / que nos diz que o<br />

amor só é aqui / na poesia” (ouvimolo<br />

em “Canção <strong>de</strong> Esquina”,<br />

marcada pela leveza tocante do sax<br />

soprano <strong>de</strong> Perico Sambeat, sopro<br />

capaz <strong>de</strong> nos reconciliar com a vida).<br />

“On<strong>de</strong> Mora o Mundo” é JP Simões<br />

cantando do mesmo lugar. Versando<br />

o amor que teima em não se<br />

concretizar como o romantismo<br />

exige, a criminosa cruelda<strong>de</strong> do<br />

mundo dos nossos dias, <strong>de</strong>sta vez<br />

em modo pesa<strong>de</strong>lo regenerador (há<br />

<strong>um</strong>a “Marcha dos implacáveis”<br />

caminhando sobre São Bento, <strong>um</strong><br />

“carnaval <strong>de</strong> horrores” gritando<br />

“mata, esfola, mata, esfola”) e<br />

cantando-se a si próprio como só os<br />

gran<strong>de</strong>s o sabem fazer: ou seja,<br />

incluindo-nos naquilo que canta,<br />

tornando-nos reconhecíveis no<br />

“Caro comparsa”, dueto vocal com<br />

Afonso Pais, que é esse outro <strong>de</strong> nós<br />

que “h<strong>um</strong>ilha o meu amor” e que<br />

“vilipendia a minha paz”, que “faz<br />

tudo o que não sou capaz”. A<br />

direcção musical <strong>de</strong> Afonso Pais<br />

transforma esse lugar em algo<br />

diverso, com as cordas caindo em<br />

lamento romântico nessa “Dorinha<br />

(Pequena dor)” que quase diríamos<br />

música <strong>de</strong> câmara para o bala<strong>de</strong>iro<br />

amante da dor <strong>de</strong> viver, com o<br />

contraponto dos metais que dão<br />

riqueza jazz a “On<strong>de</strong> mora o<br />

mundo”, com o aroma brasileiro que<br />

inspira esse “Caro comparsa” que<br />

não é brasileiro, que é Afonso Pais e<br />

JP Simões encontrando-se em voz e<br />

em música n<strong>um</strong>a das melhores<br />

canções do álb<strong>um</strong>.<br />

Aquelas são as primeiras três<br />

canções do álb<strong>um</strong>, porta <strong>de</strong> entrada<br />

perfeita n<strong>um</strong> disco em que a marca<br />

autoral <strong>de</strong> JP Simões, aquilo que o<br />

tornou <strong>um</strong> imprescindível na música<br />

portuguesa da última década,<br />

<strong>de</strong>scobre <strong>um</strong> parceiro que o <strong>ser</strong>ve da<br />

melhor forma possível: inscrevendo<br />

também a sua assinatura, in<strong>de</strong>lével,<br />

em música que reflecte, sem<br />

subterfúgios e tão crente na poesia,<br />

no amor e no sonho, quanto na<br />

impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tudo isso, o correr<br />

<strong>de</strong>stes e <strong>de</strong> todos os dias. M.L.<br />

O regresso do<br />

agitador Svenonius<br />

Chain & The Gang<br />

Music’s Not For Everyone<br />

K Records; distri. Popstock<br />

mmmmn<br />

A proclamação é<br />

forte porque se<br />

está a borrifar<br />

para o<br />

politicamente<br />

correcto. A<br />

proclamação tem<br />

impacto porque não segue as regras<br />

oficiais do protesto. Ian Svenonius, o<br />

guru <strong>de</strong>salinhado do un<strong>de</strong>rground<br />

rock’n’roll americano, o provocador<br />

que criou o “13-Point Plan to Destroy<br />

America” em 1991, nos Nation Of<br />

Ulysses, e que utilizou o palco como<br />

púlpito <strong>de</strong> on<strong>de</strong> gritava o “gospel ye<br />

ye” dos Make Up, banda fulcral da<br />

segunda meta<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> 1990,<br />

este Ian Svenonius <strong>de</strong> fato sempre<br />

elegante e verve inflamada, fundou<br />

<strong>de</strong>pois dos Make Up os Weird War,<br />

combo rock progressista por on<strong>de</strong><br />

passou Neil Michael Hagerty, ele dos<br />

Royal Trux, e chegou agora a isto:<br />

aos Chain & The Gang que<br />

proclamaram primeiro “Down With<br />

Liberty” (falavam tanto da liberda<strong>de</strong><br />

exportada em bombar<strong>de</strong>iros para o<br />

Iraque e para o Afeganistão, como<br />

da liberda<strong>de</strong> totalitária exposta em<br />

multiplexes enxameados <strong>de</strong><br />

blockbusters) e que, dois anos<br />

<strong>de</strong>pois, em 2011, se lançam em nova<br />

46 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


provocação: “Music’s Not For<br />

Everyone”. Porque não é.<br />

Tal como Svenonius enten<strong>de</strong> a<br />

música e a cultura popular, o<br />

rock’n’roll <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> algo que tenha<br />

verda<strong>de</strong>iro impacto e que revele <strong>um</strong><br />

qualquer potencial transformador,<br />

<strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> mais que comodida<strong>de</strong><br />

assemelhada ao micro-ondas e ao<br />

plasma exibido com orgulho na sala.<br />

E por isso Svenonius, cantor<br />

intempestivo, homem da palavra<br />

falada sardónica, canta “It’s a hard<br />

job keeping everybody high” (e é<br />

novamente da “exportação <strong>de</strong><br />

liberda<strong>de</strong>” que fala), canta que “Bo<br />

Diddley” e “Duke Ellington” e<br />

“Ludwig Van Beethoven” não são<br />

para toda a gente. Fá-lo nuns Chain<br />

& The Gang on<strong>de</strong> o espírito<br />

contestatário do punk <strong>de</strong><br />

Washington (Calvin Johnson,<br />

fundador da K Records, é produtor<br />

do álb<strong>um</strong>) é vertido em r&b agreste,<br />

fá-lo em diatribes musicais<br />

vociferadas em garage elegante, em<br />

dueto rapaz/rapariga com com <strong>um</strong><br />

título brilhante como “For pratical<br />

reasons (I love you)” ou em mantras<br />

psicadélicos danificados (“Music’s<br />

not for everyone”).<br />

Na entrevista que nos <strong>de</strong>u, e que<br />

<strong>ser</strong>á publicada no P2 no dia do<br />

concerto que trará os Chain & The<br />

Gang ao Musicbox, em Lisboa, no<br />

dia 4 <strong>de</strong> Maio, o vocalista/agitador<br />

Ian Svenonius, rei da metáfora<br />

inflamada, comparava o impacto da<br />

sua música com a “punchline” <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong> bom comediante “stand up”<br />

(lembrámo-nos <strong>de</strong> Bill Hicks). Não<br />

pelo potencial cómico, entenda-se<br />

mas pela capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apresentar<br />

<strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>um</strong> ponto <strong>de</strong> vista<br />

surpreen<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong>sligado da<br />

castradora moralida<strong>de</strong>zinha que<br />

subverte o verda<strong>de</strong>iro diálogo e<br />

impe<strong>de</strong> a provocação.<br />

Em “Music’s<br />

Not For<br />

Everyone”, a<br />

banda mais<br />

inspirada<br />

Ian Svenonius, o herói<br />

un<strong>de</strong>rground, reencontra<br />

o equilíbrio perfeito entre<br />

<strong>um</strong> discurso activista único<br />

e música<br />

<strong>de</strong> Svenonius <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os<br />

imprescindíveis Make Up, Ian<br />

Svenonius, o herói un<strong>de</strong>rground,<br />

reencontra o equilíbrio perfeito<br />

entre <strong>um</strong> discurso activista único e<br />

música que é tanto acto <strong>de</strong><br />

resistência como urgência<br />

irreprimível. Não, não é para todos.<br />

M.L.<br />

Clássica<br />

A jovem<br />

consagração<br />

Equilíbrio é a palavra <strong>de</strong><br />

or<strong>de</strong>m n<strong>um</strong>a interpretação<br />

neo-clássica <strong>de</strong><br />

Rachmaninoff, na qual Yuja<br />

Wang alcança a consagração<br />

sob a direcção <strong>de</strong> Claudio<br />

Abbado. Rui Pereira<br />

Rachmaninoff<br />

Variações sobre <strong>um</strong> tema <strong>de</strong><br />

Paganini; Concerto nº 2<br />

Yuja Wang, piano<br />

Claudio Abbado, direcção musical<br />

Mahler Chamber Orchestra<br />

DG<br />

mmmmn<br />

Esqueçam o Lang<br />

Lang e os seus<br />

malabarismos<br />

inconsequentes.<br />

Yuja Wang está<br />

n<strong>um</strong> outro<br />

campeonato <strong>de</strong><br />

qualida<strong>de</strong> artística e sofisticação<br />

interpretativa, dando provas <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

novo patamar na evolução da<br />

<strong>de</strong>streza técnica h<strong>um</strong>ana. Com<br />

apenas 23 anos, a pianista chinesa<br />

lança o seu terceiro álb<strong>um</strong> para a<br />

prestigiada Deutsche Grammophon.<br />

Após dois impressionantes registos a<br />

solo, os quais revelaram <strong>um</strong>a técnica<br />

estonteante e capaz <strong>de</strong> levar<br />

<strong>um</strong> melómano a questionar a<br />

sua consciência do possível,<br />

Wang veio agora confirmar a<br />

sua mestria ímpar n<strong>um</strong>a<br />

gravação ao vivo <strong>de</strong> duas<br />

obras-primas <strong>de</strong><br />

Rachmaninoff, as<br />

Variações sobre o tema<br />

Paganini e o 2º<br />

concerto para Piano e<br />

Orquestra.<br />

Foi Claudio Abbado<br />

que a escolheu e o<br />

célebre maestro já só grava<br />

na companhia <strong>de</strong> raros<br />

eleitos. Isso já é revelador<br />

do reconhecimento <strong>de</strong>sta<br />

jovem pianista que não só<br />

conquistou o exigente<br />

público do Festival <strong>de</strong><br />

Verbier bem como os<br />

artistas que lá se<br />

apresentam e a sua<br />

directora artística, Martha Argerich,<br />

que querem fazer música com Yuja<br />

Wang. Com <strong>um</strong>a agenda<br />

preenchidíssima, até pelo recente<br />

regresso aos palcos da China que já<br />

não pisava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que tinha partido<br />

há largos anos para estudar nos<br />

EUA, Yuja Wang tem também <strong>um</strong><br />

vasto repertório a solo, em música<br />

<strong>de</strong> câmara e com orquestra.<br />

O público <strong>de</strong> Lisboa já teve a<br />

oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a escutar no<br />

Gran<strong>de</strong> Auditório da Gulbenkian,<br />

em 2010, e quem qui<strong>ser</strong> <strong>ser</strong><br />

confrontado com a sua <strong>de</strong>streza<br />

ímpar po<strong>de</strong> ir ao youtube ver e ouvir<br />

a sua interpretação ao vivo do “Voo<br />

do moscardo”, tocado como encore<br />

em Verbier. No presente CD, Yuja<br />

Wang oferece <strong>um</strong>a interpretação<br />

electrificante das obras <strong>de</strong><br />

Rachmaninoff, mostrando<br />

originalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamento sem o<br />

tipo <strong>de</strong> excentricida<strong>de</strong> com que<br />

alguns pianistas <strong>de</strong>stroem o sentido<br />

musical. N<strong>um</strong> pianismo cintilante,<br />

cristalino e muito dinâmico, o que<br />

mais impressiona é a sintonia com<br />

<strong>um</strong>a Orquestra <strong>de</strong> Câmara Mahler<br />

coesa e com <strong>um</strong>a sonorida<strong>de</strong><br />

envolvente e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> coesão entre<br />

naipes. Alcançando <strong>um</strong> equilíbrio<br />

mais neo-clássico do que <strong>um</strong> furor<br />

romântico que geralmente<br />

se associa a estas obras,<br />

esta é <strong>um</strong>a boa<br />

escolha n<strong>um</strong><br />

repertório, apesar<br />

<strong>de</strong> tudo, saturado<br />

<strong>de</strong> boas<br />

propostas.<br />

Wang confirma a sua<br />

mestria ímpar n<strong>um</strong>a<br />

gravação ao vivo<br />

<strong>de</strong> duas obras-primas<br />

<strong>de</strong> Rachmaninoff<br />

Jazz<br />

O jogador<br />

<strong>de</strong> xadrez<br />

Registo focado nos tempos<br />

lentos e nas baladas, “Before<br />

the Rain” é <strong>um</strong> enorme<br />

triunfo na arte <strong>de</strong> tocar<br />

com contenção e elegância.<br />

Rodrigo Amado<br />

Noah Preminger<br />

Before the Rain<br />

Palmetto<br />

mmmmn<br />

O saxofonista<br />

tenor Noah<br />

Preminger tem<br />

apenas vinte e<br />

poucos anos, mas<br />

as ondas<br />

provocadas pelo<br />

seu talento já se fazem sentir <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

2008, altura em que gravou e editou<br />

o primeiro álb<strong>um</strong>, “Dry Bridge<br />

Road”. Consi<strong>de</strong>rado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então <strong>um</strong><br />

dos nomes a seguir da nova<br />

geração <strong>de</strong> jazzmen norte-<br />

americanos,<br />

aborda este<br />

segundo registo com o<br />

espírito <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong><br />

experiente jogador <strong>de</strong><br />

xadrez; imaginação,<br />

perspicácia e toda a<br />

calma do mundo.<br />

Depurou<br />

o som e<br />

conceito<br />

anteriormente<br />

apresentados e focou-<br />

se na essência das<br />

Noah<br />

Preminger:<br />

imaginação,<br />

perspicácia e<br />

toda a calma<br />

do mundo<br />

canções. Não satisfeito, tornou as<br />

coisas ainda mais difíceis e escolheu<br />

apenas tempos médios/lentos para<br />

os temas a tocar. Para o<br />

acompanhar, escolheu três músicos<br />

superlativos, bem mais experientes<br />

do que ele: o pianista Frank<br />

Kimbrough, o contrabaixista John<br />

Hébert e o baterista Matt Wilson. O<br />

resultado – <strong>um</strong> jazz simultaneamente<br />

clássico e aberto, muito elegante e<br />

invulgarmente contido - seduz-nos<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras notas,<br />

afirmando-se como paradigma <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong> cool jazz para este novo século.<br />

Ecos <strong>de</strong> Joe Hen<strong>de</strong>rson ou Dewey<br />

Redman (som e fraseado)<br />

relembram-nos a relevância dos<br />

clássicos criativos na história do jazz<br />

– músicos que realizam <strong>um</strong><br />

equilíbrio vibrante entre a tradição e<br />

os valores da contemporaneida<strong>de</strong>.<br />

N<strong>um</strong> extremo oposto à “fire music”,<br />

aqui tudo parece metodicamente<br />

pon<strong>de</strong>rado. Tão pon<strong>de</strong>rado e<br />

<strong>de</strong>liberado que acabamos por retirar<br />

enorme prazer dos <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong> cada<br />

nota, <strong>de</strong> cada movimento musical.<br />

Com <strong>um</strong> elevado rácio <strong>de</strong><br />

comunicação colectiva, intensa e<br />

bem calibrada (Hébert e Wilson<br />

acompanham <strong>de</strong> perto o<br />

saxofonista, não <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong><br />

realizar a sua própria “dança”),<br />

“Before the Rain” arranca com<br />

enorme eloquência, n<strong>um</strong>a versão <strong>de</strong><br />

apenas dois minutos <strong>de</strong> “Where or<br />

When”, tema clássico <strong>de</strong> Rodgers<br />

and Hart. Quando os músicos<br />

atacam “Quickening”, da autoria <strong>de</strong><br />

Kimbrough, já a música nos<br />

envolveu por completo – e ainda<br />

estaria para vir, entre quatro<br />

originais <strong>de</strong> Preminger, <strong>um</strong> outro <strong>de</strong><br />

Kimbrough e duas versões, a<br />

brilhante metamorfose <strong>de</strong> “Toy<br />

dance”, <strong>de</strong> Ornette Coleman.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 47


Livros<br />

RUI GAUDÊNCIO<br />

David<br />

Machado<br />

retrata em<br />

“Deixem Falar<br />

as Pedras”<br />

<strong>um</strong> país que<br />

talvez não<br />

tenha tempo<br />

nem paciência<br />

para olhar com<br />

atenção para<br />

o seu retrato<br />

Ficção<br />

O buraco<br />

da memória<br />

Mais do que <strong>um</strong>a boa<br />

história, <strong>um</strong> livro que se<br />

arrisca pelo passado do país.<br />

João Bonifácio<br />

Deixem Falar as Pedras<br />

David Machado<br />

Dom Quixote<br />

mmmnn<br />

De cada vez que<br />

pegamos n<strong>um</strong><br />

romance, é<br />

sabido,<br />

estabelecemos <strong>um</strong><br />

acordo tácito com<br />

o autor:<br />

suspen<strong>de</strong>mos a<br />

<strong>de</strong>scrença e<br />

aceitamos o faz<strong>de</strong>-conta.<br />

Pelo que as melhores<br />

aberturas são, por norma, aquelas<br />

em que nem sequer nos lembramos<br />

<strong>de</strong> que há esse acordo e<br />

simplesmente avançamos.<br />

Nisso, “Deixem Falar as Pedras”,<br />

terceira obra e segundo romance <strong>de</strong><br />

David Machado, é exemplar: à<br />

primeira frase – <strong>um</strong> simples “As<br />

minhas<br />

mãos apertam o pescoço do<br />

António<br />

com força e imediatamente<br />

me lembro <strong>de</strong> <strong>um</strong>a das histórias do<br />

meu avô” – suc<strong>um</strong>bimos à tentação<br />

normalmente atribuída apenas a<br />

porteiras mas omnipresente na raça<br />

h<strong>um</strong>ana: saber o que está a acontecer<br />

na vida dos outros.<br />

Reparem na seguinte sequência. A<br />

terceira<br />

frase do primeiro parágrafo<br />

é: “Sinto o sangue do António vibrar-<br />

me nos <strong>de</strong>dos, da mesma forma que<br />

<strong>um</strong> dia o inspector Dias sentiu o<br />

sangue<br />

grosso do meu avô pulsar-lhe<br />

através<br />

da pele”. No segundo<br />

parágrafo, o narrador afiança que<br />

“nem<br />

sequer <strong>de</strong>via estar” ali,<br />

porque regra geral àquela hora vai<br />

“ao<br />

quiosque em frente da escola<br />

consultar as páginas da<br />

necrologia nos jornais”,<br />

justificando assim o hábito:<br />

“Depois daquilo que<br />

aconteceu ao meu avô (por<br />

minha causa) é o mínimo<br />

que posso fazer”.<br />

Percebemos que a voz é <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong> adolescente, queremos<br />

saber por que raio está a<br />

apertar o pescoço ao António e o<br />

que é que isso tem a ver com o avô e<br />

porque é que o narrador diz que o<br />

que aconteceu ao avô é culpa sua.<br />

A primeira gran<strong>de</strong> mais-valia <strong>de</strong><br />

“Deixem Falar as Pedras” resi<strong>de</strong> aqui:<br />

<strong>um</strong>a consciência apurada dos efeitos<br />

<strong>de</strong> narrativa e do “timing” <strong>de</strong><br />

distribuição da informação, do valor<br />

das micro-histórias e do respeito<br />

Doação<br />

U<strong>de</strong>rzo, o criador, com<br />

Goscinny, das aventuras<br />

<strong>de</strong> Astérix, doou à<br />

Biblioteca Nacional <strong>de</strong><br />

França (BNF) <strong>um</strong> conjunto<br />

<strong>de</strong> 120 originais daquela<br />

banda-<strong>de</strong>senhada.<br />

Apresentado ao mundo em<br />

1959, o guerreiro gaulês<br />

pelas personagens secundárias –<br />

visível quando, mais à frente, <strong>um</strong><br />

homem garantir que escapou três<br />

vezes à morte porque tem garganta<br />

<strong>de</strong> tubarão.<br />

Estas qualida<strong>de</strong>s <strong>ser</strong>iam suficientes<br />

para contar <strong>um</strong>a boa história, mas o<br />

livro arrisca pela memória do país<br />

a<strong>de</strong>ntro e gradualmente vai-se<br />

tornando <strong>um</strong> trabalho sobre a<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, a memória, a distância<br />

entre o país rural e o país urbano, o<br />

pré e o pós-25 <strong>de</strong> Abril.<br />

Narrado por <strong>um</strong> adolescente<br />

obeso, enamorado <strong>de</strong> <strong>um</strong>a vizinha<br />

anoréctica que partilha com ele o<br />

amor por bandas aproximadas do<br />

metal, o romance começa a<br />

convencer ao conseguir encontrar<br />

<strong>um</strong>a voz credível para este moço.<br />

Intuímos que por trás dos seus<br />

<strong>de</strong>mónios está <strong>um</strong>a fractura que<br />

resi<strong>de</strong> na família – Machado, com<br />

maturida<strong>de</strong>, não mostra a “falha”<br />

familiar <strong>de</strong> forma pornográfica, antes<br />

ac<strong>um</strong>ula pequenos indícios.<br />

A narrativa principal surge por<br />

elipse, quando o miúdo recorda a<br />

vinda do avô paterno <strong>de</strong> Lagares para<br />

Lisboa, contra a vonta<strong>de</strong> do próprio<br />

pai. O avô é o elemento disruptor:<br />

tem <strong>de</strong>dos a menos n<strong>um</strong>a mão, diz<br />

palavrões, não respeita as regras da<br />

casa, conta histórias <strong>de</strong> sangue e<br />

terror. Este avô exerce <strong>um</strong> imenso<br />

fascínio sobre o neto, que ass<strong>um</strong>e a<br />

dor que este carrega. Quando o avô<br />

<strong>de</strong>siste da sua vingança e passa os<br />

dias a ver telenovelas (<strong>de</strong>licioso<br />

h<strong>um</strong>or cruel), o neto está pronto a,<br />

por assim dizer, dar à narrativa do<br />

avô <strong>um</strong> fim digno.<br />

Tudo se reporta ao tempo da outra<br />

senhora, na altura em que o avô<br />

estava noivo. Na madrugada do seu<br />

casamento, acorda com o barulho <strong>de</strong><br />

tiros – <strong>um</strong> suposto (é essencial notar<br />

que tudo neste romance é “suposto”)<br />

bando <strong>de</strong> guerrilheiros da Guerra<br />

Civil <strong>de</strong> Espanha que se havia<br />

acantonado junto à sua al<strong>de</strong>ia estava<br />

a <strong>ser</strong> atacado pela polícia. O irmão do<br />

avô passara a noite com <strong>um</strong>a das<br />

raparigas do ajuntamento, facto que<br />

foi transmitido às autorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

forma <strong>de</strong>liberadamente <strong>de</strong>turpada –<br />

e em vez do irmão é ele que é<br />

enclausurado. Este é apenas o<br />

primeiro <strong>de</strong> <strong>um</strong> conjunto <strong>de</strong> acasos<br />

rocambolescos (quando não<br />

doentios) que atiram o avô para <strong>um</strong><br />

vida <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraças consecutivas.<br />

Machado, escritor consciente das<br />

tramóias da arte da narrar, sabe que<br />

tem <strong>de</strong> haver <strong>um</strong>a justificação para o<br />

neto nos contar a história do avô,<br />

pelo que cria <strong>um</strong> “motivo”, o mais<br />

óbvio e eficaz <strong>de</strong>les: a necessida<strong>de</strong><br />

que o neto sente <strong>de</strong> reportar a<br />

verda<strong>de</strong> à ex-noiva do avô. Ao contar<br />

o passado do avô, o neto dá-nos, para<br />

cada facto, as várias versões que<br />

correram na época: a do avô, as que<br />

iam na boca do povo, as que ficaram<br />

registadas em livros oficiais (como os<br />

da polícia).<br />

É aqui que o livro se torna maior: o<br />

neto “herda” a maldição do avô,<br />

aMa<strong>um</strong>MedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

torna-a sua. No entanto, o que ele<br />

toma como seu é <strong>um</strong> pedaço <strong>de</strong><br />

história visto pelos olhos do avô (que<br />

po<strong>de</strong>m muito bem distorcer o real).<br />

Pelo que nunca sabemos<br />

exactamente on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> a verda<strong>de</strong>.<br />

Há <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> moral triste<br />

nisto: a nossa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é o rosto<br />

que as nossas memórias <strong>de</strong>senham; e<br />

no entanto somos capazes <strong>de</strong><br />

escolhê-las, distorcê-las ou até <strong>de</strong><br />

“viver” as dos outros e assim<br />

transformar os contornos do Eu.<br />

(Se isto fosse geometria<br />

po<strong>de</strong>ríamos chegar a <strong>um</strong> corolário:<br />

qualquer vitória que obtenhamos<br />

sobre o passado é <strong>um</strong>a vitória<br />

ilusória; a vitória só <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong><br />

procurada em nome do futuro. Mas,<br />

curiosamente, isto não é geometria.)<br />

Há algo <strong>de</strong> profundamente<br />

h<strong>um</strong>ano nesta história <strong>de</strong> pi<strong>de</strong>s e<br />

fascismos, <strong>de</strong> amores e azares, <strong>de</strong><br />

como se per<strong>de</strong> <strong>um</strong>a vida lá on<strong>de</strong> as<br />

cabras pastam e tantos anos <strong>de</strong>pois<br />

se influencia o futuro <strong>de</strong> <strong>um</strong> neto.<br />

Algo que está para lá <strong>de</strong> técnicas <strong>de</strong><br />

escrita, algo que – temo – o país que<br />

aqui está retratado não terá tempo<br />

nem paciência para olhar com<br />

atenção.<br />

A história<br />

do renegado<br />

Padura nunca per<strong>de</strong> <strong>de</strong> vista<br />

a realida<strong>de</strong>. Unindo várias<br />

pontas soltas, sobra pouca<br />

ficção. Eduardo Pitta<br />

O Homem que Gostava <strong>de</strong> Cães<br />

Leonardo Padura<br />

(Trad. Helena Pitta)<br />

Porto Editora<br />

mmmmn<br />

viria a protagonizar 32<br />

aventuras. As pranchas<br />

agora <strong>de</strong>positadas na<br />

BNF dizem respeito às<br />

duas primeiras, “Astérix,<br />

o Gaulês” e “A Foice <strong>de</strong><br />

Ouro”, assim como ao<br />

último álb<strong>um</strong> produzido<br />

a quatro mãos antes<br />

“O Homem que<br />

Gostava <strong>de</strong> Cães”<br />

são três homens:<br />

Leon Trótski,<br />

Ramón Merca<strong>de</strong>r<br />

e Leonardo<br />

Padura. Trótski<br />

(1879-1940), o<br />

po<strong>de</strong>roso<br />

Comissário <strong>de</strong><br />

Guerra que Estaline expulsou do<br />

Partido em Outubro <strong>de</strong> 1927.<br />

Merca<strong>de</strong>r (1914-1978), o catalão que<br />

assassinou Trótski a soldo da polícia<br />

secreta soviética. Padura (n. 1955), o<br />

cubano que escreveu este épico <strong>de</strong><br />

recorte contemporâneo.<br />

Padura é conhecido em todo o<br />

mundo como criador do <strong>de</strong>tective<br />

Mário Con<strong>de</strong>, protagonista <strong>de</strong><br />

novelas policiais <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> sucesso.<br />

Em Portugal estão traduzidas todas:<br />

a tetralogia “Cuatro estaciones”<br />

(1991-1998) e duas posteriores. Mas é<br />

também o autor <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

extraordinária biografia do poeta<br />

José María Heredia, “Romance da<br />

da morte <strong>de</strong> Goscinny,<br />

“Astérix entre os Belgas”.<br />

A biblioteca já anunciou<br />

que irá festejar a<br />

doação com <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong><br />

exposição <strong>de</strong>dicada a<br />

Astérix.<br />

Minha Vida” (2005). Agora, com “O<br />

Homem que Gostava <strong>de</strong> Cães”, título<br />

que foi buscar a Chandler, refaz a<br />

história <strong>de</strong> <strong>um</strong> dos crimes mais<br />

hediondos do século XX. Nada<br />

menos do que <strong>um</strong>a viagem ao fundo<br />

da perversão da gran<strong>de</strong> utopia<br />

comunista. Nem sequer é o primeiro<br />

a interessar-se pelas circunstâncias<br />

da morte do fundador do Exército<br />

Vermelho e, em particular, pela<br />

enigmática figura do seu assassino.<br />

Um bom prece<strong>de</strong>nte é “A Segunda<br />

Morte <strong>de</strong> Ramón Merca<strong>de</strong>r”, que o<br />

espanhol Jorge Semprún publicou<br />

em 1969. Pela mão <strong>de</strong> Losey, o<br />

cinema também pegou no tema.<br />

Sem per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista a realida<strong>de</strong>,<br />

Padura manipula a ficção <strong>de</strong> modo a<br />

unir as pontas soltas da narrativa<br />

histórica, oficial ou oficiosa, do<br />

assassinato. Para tanto, intercala o<br />

tempo discursivo: prisão, <strong>de</strong>sterro,<br />

fuga e exílio do dissi<strong>de</strong>nte<br />

bolchevique (Cazaquistão, Turquia,<br />

França, Noruega e México); o plano<br />

da NKVD, a po<strong>de</strong>rosa polícia <strong>de</strong><br />

Estaline, para o eliminar; bem como<br />

o “work in progress” do manuscrito<br />

<strong>de</strong> Iván Cár<strong>de</strong>nas Maturell (o<br />

narrador), síntese das confidências<br />

que Jaime López (o homem que<br />

gostava <strong>de</strong> cães) lhe fez durante 14<br />

anos. Resultado: <strong>um</strong>a “história<br />

revulsiva <strong>de</strong> ódio, engano e morte”,<br />

tendo como balizas Alma-Ata e<br />

Coyoacán.<br />

É esse livro-a-haver que permite<br />

estabelecer o fio da intriga. Ao<br />

mesmo tempo que dá espessura à<br />

personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Merca<strong>de</strong>r, faz luz<br />

sobre a biografia do próprio Padura:<br />

“Lembro-me <strong>de</strong> que saí daquele<br />

gabinete com <strong>um</strong>a mistura imprecisa<br />

e pastosa <strong>de</strong> sentimentos (confusão,<br />

<strong>de</strong>sassossego e muito <strong>medo</strong>) mas,<br />

sobretudo [...] o que aconteceu na<br />

realida<strong>de</strong> foi que me lixaram para o<br />

resto da minha vida, porque [...] saí<br />

dali profundamente convencido <strong>de</strong><br />

que o meu conto nunca <strong>de</strong>via ter sido<br />

escrito, que é o pior que po<strong>de</strong>m levar<br />

<strong>um</strong> escritor a pensar.”<br />

Contrariamente a Trótski, objecto<br />

<strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> estudos, a vida do<br />

seu assassino continua marcada por<br />

zonas <strong>de</strong> sombra. Para ace<strong>de</strong>r a <strong>um</strong>a<br />

parte da verda<strong>de</strong>, “O Homem que<br />

Gostava <strong>de</strong> Cães” exigiu muitos anos<br />

<strong>de</strong> “reflexão, leitura, investigação,<br />

discussão e, sobretudo, <strong>de</strong> assombro<br />

e horror”. Marxistas ortodoxos e<br />

anticastristas cre<strong>de</strong>nciados uniramse<br />

na geral con<strong>de</strong>nação <strong>de</strong>sta saga<br />

<strong>de</strong> amor, loucura e morte. Não é<br />

difícil perceber o incómodo. O livro<br />

é <strong>um</strong> permanente jogo <strong>de</strong> espelhos<br />

entre a URSS dos anos 1920-30 e a<br />

falência do mo<strong>de</strong>lo cubano,<br />

ilustrada <strong>de</strong> forma eloquente pelo<br />

fracasso da Apanha da Cana <strong>de</strong> 1970.<br />

A quota autobiográfica irrita<br />

sobremaneira os <strong>de</strong>tractores <strong>de</strong><br />

Padura.<br />

E Trótski com isto? O rival <strong>de</strong><br />

Estaline, o renegado dos catecismos,<br />

não viveu em Cuba, mas no México,<br />

on<strong>de</strong> <strong>de</strong>sembarcou em Janeiro <strong>de</strong><br />

48 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


MANUEL ROBERTO<br />

1937, mesmo sabendo que “o perigo<br />

que a sua vida correria nesse país<br />

<strong>ser</strong>ia tão gran<strong>de</strong> como o <strong>de</strong> dormir<br />

nu na costa do fior<strong>de</strong> gelado <strong>de</strong><br />

Hur<strong>um</strong>.” Ali fez amiza<strong>de</strong> com Diego<br />

Rivera, amou Frida Kahlo e criou os<br />

fundamentos da IV Internacional.<br />

Quem <strong>de</strong> facto viveu em Cuba foi<br />

Merca<strong>de</strong>r. Após 20 anos <strong>de</strong> prisão na<br />

Cida<strong>de</strong> do México, foi a Moscovo<br />

(1961) receber a medalha <strong>de</strong> Herói da<br />

União Soviética, radicando-se no<br />

ano seguinte em Havana.<br />

Terá sido para evitar querela<br />

historiográfica que Padura meteu a<br />

biografia <strong>de</strong> Trótski (e, por extensão,<br />

a <strong>de</strong> Merca<strong>de</strong>r; ou, se preferirmos,<br />

<strong>de</strong> Jacques Mornard, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

que ass<strong>um</strong>ia perante conhecidos e<br />

autorida<strong>de</strong>s) n<strong>um</strong> romance sobre a<br />

revolução cubana? Facto é que o<br />

extenso inventário <strong>de</strong> peripécias<br />

biográficas em torno <strong>de</strong> Trótski e<br />

Merca<strong>de</strong>r obnubila a ficção. O<br />

mesmo se diga do perfil da mãe do<br />

assassino: drogas, prostituição,<br />

militância política, etc. Na estrutura<br />

narrativa, Caridad é a pista dos<br />

avanços e recuos dos antifranquistas<br />

(e, em consequência, <strong>de</strong> como<br />

Estaline <strong>de</strong>ixou cair a República<br />

espanhola).<br />

Sob a crosta da História, n<strong>um</strong>a<br />

hábil “ac<strong>um</strong>ulação <strong>de</strong> lembranças e<br />

<strong>de</strong> culpas”, Padura escreve o guião<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a vingança pessoal. Rindo do<br />

veredicto da Comissão Dewey, que<br />

consi<strong>de</strong>rou fraudulentos os<br />

processos <strong>de</strong> Moscovo (assim<br />

absolvendo Trótski), Estaline, que<br />

não tinha pressa, esperou pelo dia<br />

em que Merca<strong>de</strong>r fizesse o que o<br />

mandaram fazer. Em Coyoacán, no<br />

dia 21 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 1940, a picareta<br />

do filho <strong>de</strong> Caridad abriu o crânio <strong>de</strong><br />

Trótski em dois.<br />

Biografia<br />

De Deus,<br />

só a palavra<br />

O realizador <strong>de</strong> “Robocop”,<br />

Paul Verhoeven, dá-nos <strong>um</strong><br />

Jesus h<strong>um</strong>ano, <strong>de</strong>masiado<br />

h<strong>um</strong>ano. Rui Catalão<br />

Jesus <strong>de</strong> Nazaré<br />

Paul Verhoeven<br />

(Trad. Arie Pos)<br />

Guerra e Paz<br />

mmmmm<br />

Leonardo Padura refaz a<br />

história <strong>de</strong> <strong>um</strong> dos crimes<br />

mais hediondos do século XX,<br />

e com isso refaz também a<br />

história da União Soviética e<br />

da Guerra Civil Espanhola<br />

Paul Verhoeven<br />

(Amesterdão,<br />

1938) <strong>de</strong>ve a sua<br />

notorieda<strong>de</strong> ao<br />

período em que<br />

trabalhou em<br />

Hollywood, on<strong>de</strong><br />

realizou três<br />

filmes <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

sucesso<br />

(“Robocop”, “Instinto Fatal”,<br />

“Desafio Total”), duas superproduções<br />

(“Soldados do Universo”,<br />

“O Homem Transparente”) e <strong>um</strong><br />

filme <strong>de</strong> culto (“Showgirls”). Em<br />

1986, começou a assistir às<br />

conferências do Jesus Seminar,<br />

constituído por 77 professores<br />

catedráticos <strong>de</strong> teologia, filosofia,<br />

linguística e história da bíblia.<br />

Tornou-se membro com direito <strong>de</strong><br />

voto e participou nas reuniões<br />

durante 20 anos. O objectivo inicial<br />

era preparar-se para fazer <strong>um</strong> filme<br />

sobre o Jesus histórico – afinal<br />

escreveu este livro, em colaboração<br />

com o seu biógrafo, Rob van<br />

Scheers.<br />

Segundo Verhoeven, no cinema<br />

“não houve ninguém que quisesse<br />

retratar Jesus apenas como homem”.<br />

Pasolini “encontrou <strong>um</strong>a solução<br />

simpática” entre <strong>um</strong>a interpretação<br />

literal do evangelho <strong>de</strong> Mateus e <strong>um</strong><br />

olhar marxista; quanto ao “filme <strong>de</strong><br />

terror” <strong>de</strong> Mel Gibson, “conta-nos<br />

tudo sobre Mel Gibson, mas<br />

absolutamente nada sobre Jesus”.<br />

“Jesus <strong>de</strong> Nazaré” resulta <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

trabalho <strong>de</strong> <strong>de</strong>puração entre o que é<br />

o material histórico e o material<br />

teológico-político-literáriolinguístico<br />

encontrado nos<br />

evangelhos. As suas fontes, a sua<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> arg<strong>um</strong>entação e <strong>de</strong><br />

fundamentação e o seu raciocínio<br />

céptico são clarificadores, mas é a<br />

<strong>de</strong>sconstruir e a remontar a<br />

narrativa que tem maior<br />

credibilida<strong>de</strong>. Nela, Verhoeven<br />

apresenta <strong>um</strong> Jesus mais<br />

transparente e realista.<br />

O seu “apego à realida<strong>de</strong> visível”<br />

exerce <strong>um</strong> efeito <strong>de</strong> gravida<strong>de</strong> que<br />

<strong>de</strong>volve a história ao plano terreno.<br />

Verhoeven compara a rebeldia <strong>de</strong><br />

Jesus à <strong>de</strong> Che Guevara e a sua visão<br />

à <strong>de</strong> Van Gogh, encontrando <strong>um</strong>a<br />

série <strong>de</strong> paralelismos com o político<br />

e o artista. O enquadramento<br />

sociopolítico da Palestina ocupada<br />

em que Jesus se moveu faz enten<strong>de</strong>r<br />

melhor a agressivida<strong>de</strong> da sua<br />

actuação e das suas ilusões quanto<br />

ao papel <strong>de</strong> Deus na transformação<br />

do mundo, mas a gran<strong>de</strong> conquista<br />

<strong>de</strong> Verhoeven é a forma como<br />

encena o roteiro <strong>de</strong> Jesus a partir <strong>de</strong><br />

cenas que nos Evangelhos se<br />

encontram em elipse ou trocadas (o<br />

Evangelho não sinóptico <strong>de</strong> João é o<br />

que lhe fornece mais dados<br />

geográficos).<br />

Quem <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do sagrado para<br />

crer em Jesus encontrará neste livro<br />

o calvário da sua fé: Maria passa <strong>de</strong><br />

virgem a grávida em resultado <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a violação, <strong>de</strong> <strong>um</strong> adultério ou <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong> engate; a ascendência <strong>de</strong> Jesus<br />

<strong>de</strong>scrita por Mateus revela heroínas<br />

judaicas adúlteras ou promíscuas;<br />

ele relaciona-se com prostitutas…<br />

Entre o pacifista que se julgava o<br />

mensageiro da vinda do reino <strong>de</strong><br />

Deus, a figura angustiada com <strong>um</strong>a<br />

missão escatológica, e o rebel<strong>de</strong> que<br />

passou a acreditar na luta armada,<br />

aquele que Verhoeven mais valoriza<br />

é o pregador inspirado <strong>de</strong> parábolas<br />

que “abre janelas” para a presença<br />

<strong>de</strong> Deus na terra, e que “foi ocultado<br />

do pensamento cristão”.<br />

No capítulo “Jesus, o exorcista”, a<br />

iconografia cristã começa a ficar <strong>de</strong><br />

pernas para o ar. Jesus revela-se<br />

irado, severo; bufa, rosna, berra,<br />

cospe nos olhos dos cegos para curálos,<br />

“expele os <strong>de</strong>mónios à<br />

pancada”. “O comportamento <strong>de</strong><br />

Jesus nos exorcismos é <strong>de</strong> tal modo<br />

extremo, que a sua família pensava<br />

que tinha enlouquecido”. A forma<br />

como Verhoeven reinterpreta à luz<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> ritual indiano <strong>um</strong>a história no<br />

evangelho <strong>de</strong> Marcos, <strong>de</strong> como Jesus<br />

tratou <strong>um</strong> paralítico que entrou pelo<br />

telhado, é outra maravilha <strong>de</strong><br />

engenho interpretativo.<br />

A popularida<strong>de</strong> do exorcista e<br />

orador messiânico fê-lo antipático.<br />

Criou inimigos. Alguns <strong>de</strong>sses<br />

inimigos, que excluiu do reino <strong>de</strong><br />

Deus, ainda estão vivos. São os ricos.<br />

“Muitos cristãos tentaram inventar<br />

<strong>um</strong>a interpretação que atenuasse a<br />

sua essência. Porém, não po<strong>de</strong>m<br />

existir dúvidas sobre a autenticida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>stas palavras <strong>de</strong> Jesus: a hipérbole<br />

do camelo que tem <strong>de</strong> passar pelo<br />

fundo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a agulha é tipicamente<br />

Jesus, é a sua ‘propriíssima voz’,<br />

ipsissima vox.”<br />

O capítulo <strong>de</strong>dicado a Lázaro é o<br />

mais original e comovente.<br />

Visualizamos o filme que Verhoeven,<br />

com 73 anos, dificilmente fará. A sua<br />

tese é que não houve milagre <strong>de</strong><br />

ressurreição. Sendo informado <strong>de</strong><br />

que “aquele que amava” tinha sido<br />

capturado, Jesus, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

crise <strong>de</strong> confiança que durou dois<br />

dias, <strong>de</strong>cidiu entregar-se para evitar<br />

que Lázaro fosse torturado.<br />

Acreditava que a sua morte era <strong>um</strong><br />

plano <strong>de</strong> Deus, mas “a sua confiança<br />

inabalável <strong>de</strong> que o Reino <strong>de</strong> Deus se<br />

espalhasse a curto prazo por Israel<br />

tinha sido <strong>de</strong>smentida pelos factos”.<br />

Foi neste contexto que se <strong>de</strong>u a<br />

última ceia com os 12 discípulos.<br />

Lázaro morreu e Jesus ficou sem<br />

razão para entregar-se. “O ‘sinal’ que<br />

Jesus pensara enxergar nunca<br />

existiu”, “estava abandonado à sua<br />

sorte. Tinha <strong>de</strong> encarar a dura<br />

realida<strong>de</strong> apenas como <strong>ser</strong> h<strong>um</strong>ano.<br />

Deus mantinha o silêncio.” Jesus<br />

a<strong>de</strong>riu à luta armada. Por pouco<br />

tempo.<br />

A traição <strong>de</strong> Judas é interpretada<br />

como <strong>um</strong>a invenção que cita o<br />

Samuel do Antigo Testamento, com<br />

Jesus no papel <strong>de</strong> David e Judas no<br />

<strong>de</strong> Aitofel (o papel do traidor teria<br />

sido <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> os evangelistas se<br />

vingarem por Judas ter renegado a fé<br />

em Cristo; teria sido ainda <strong>um</strong>a<br />

solução <strong>de</strong> economia narrativa, já<br />

que se <strong>de</strong>sconhecia quem entregou<br />

Jesus às autorida<strong>de</strong>s).<br />

Quanto aos 12 discípulos, nenh<strong>um</strong><br />

o acompanhava na noite em que foi<br />

capturado! Estava com outros<br />

seguidores, armados, e todos foram<br />

crucificados. As últimas palavras <strong>de</strong><br />

Cristo é outro mito que rejeita: “É<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 49


PUB<br />

Colecção <strong>de</strong> autores premiados pelo tempo<br />

Livros<br />

aMa<strong>um</strong>MedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

Reedição<br />

A Penguin vai reeditar,<br />

em capa dura, 17 obras<br />

<strong>de</strong> Evelyn Waugh<br />

(1903-1966), autor,<br />

entre outros romances,<br />

novelas e livros <strong>de</strong><br />

viagens, do popular<br />

“Reviver o Passado<br />

em Bri<strong>de</strong>shead”. O<br />

primeiro lote, que<br />

inclui títulos como<br />

“A Handful of Dust”,<br />

estará nas livrarias já<br />

em Maio; o segundo<br />

chega em Agosto.<br />

Próximo mês:<br />

Mark Twain Um Americano 5 Mai<br />

na Corte do Rei Artur<br />

Anton Tchékhov A Estepe 12 Mai<br />

Machado <strong>de</strong> Assis D. Casmurro<br />

19 Mai<br />

Malcolm Lowry Ultramarina 26 Mai<br />

Todas as Quintas com o PÚBLICO<br />

Uma<br />

po<strong>de</strong>rosa<br />

fantasia<br />

O escritor norte-americano Mark Twain nasceu em 1835, ano que<br />

assinalou mais <strong>um</strong>a passagem do cometa Halley, e morre aos 74<br />

anos, quando o insólito astro se aproxima novamente da Terra.<br />

“Terei a maior <strong>de</strong>cepção da minha vida se não me for embora com o<br />

cometa”, terá dito, com aguçado sentido <strong>de</strong> h<strong>um</strong>or, <strong>um</strong> ano antes da<br />

sua morte.<br />

Na sua vasta obra, Um Americano na Corte do Rei Artur <strong>de</strong>staca-se<br />

pela sua po<strong>de</strong>rosa fantasia. A história começa nos Estados Unidos,<br />

no século XIX, com o inventivo Hank Morgan, o superinten<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> fábrica, paradigma da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, em que se criam<br />

todos os tipos <strong>de</strong> máquinas. Um dia, Hank envolve-se n<strong>um</strong>a rixa e é<br />

agredido na cabeça, sendo transportado para o século XIII e para o<br />

mítico reino <strong>de</strong> Camelot, on<strong>de</strong> convive com os cavaleiros da Távola<br />

Redonda e, claro, com o rei Artur, Merlim, Lancelot e Guinevere.<br />

Insatisfeito com a or<strong>de</strong>m estabelecida e nostálgico dos pequenos<br />

confortos do mundo mo<strong>de</strong>rno, Hank começa a subverter Camelot,<br />

reproduzindo ali alguns dos i<strong>de</strong>ais sociais e maravilhas técnicas<br />

do seu século. Depois <strong>de</strong> fabulosas peripécias, que continuam a<br />

encantar jovens e adultos, o engenhoso americano regressa ao seu<br />

tempo. Mark Twain cresceu no Missouri, que <strong>ser</strong>viria <strong>de</strong> inspiração<br />

e cenário para obras como Tom Sawyer e Huckleberry Finn. Foi<br />

tipógrafo, colunista, mineiro,<br />

piloto <strong>de</strong> barcos a vapor e<br />

jornalista. Após a publicação<br />

dos seus diários <strong>de</strong> viagem,<br />

<strong>de</strong>scobre-se como escritor,<br />

tendo tido <strong>um</strong>a vida tranquila<br />

e próspera, não isenta <strong>de</strong> altos<br />

e baixos, como as águas nem<br />

sempre tranquilas dos rios em<br />

que navegou.<br />

VÍTOR QUELHAS,<br />

JORNALISTA E CRÍTICO<br />

Depoimento sobre o livro <strong>de</strong>sta semana<br />

feito a pedido do PÚBLICO<br />

Mark Twain<br />

<strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ia absurda que alguém,<br />

durante <strong>um</strong> dos mais terríveis<br />

suplícios que o homem alg<strong>um</strong>a vez<br />

inventou, tenha sido sequer capaz<br />

<strong>de</strong> proferir <strong>um</strong>a frase inteira.”<br />

Haverá crentes que encontram<br />

neste tipo <strong>de</strong> investigações <strong>um</strong>a<br />

heresia. Ignoram que o maior<br />

milagre <strong>de</strong> Jesus foi o uso que <strong>de</strong>u à<br />

palavra. É esse dom que faz<br />

Verhoeven <strong>de</strong>plorar a veracida<strong>de</strong> da<br />

ressurreição <strong>de</strong> Cristo. As frases por<br />

ele proferidas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> morrer<br />

nada têm a ver com o orador<br />

inspirado: “On<strong>de</strong> está a acutilância<br />

das suas palavras, a perspicácia das<br />

suas ob<strong>ser</strong>vações, o h<strong>um</strong>or das suas<br />

hipérboles inteligentes? Será este o<br />

mesmo homem que inventou as<br />

belas parábolas, que se esforçava<br />

por <strong>um</strong>a renovação radical da ética<br />

judaica? ‘A paz esteja convosco…?<br />

Põe a mão nas minhas feridas…? Isto<br />

parece mais <strong>um</strong> zombie do que <strong>um</strong>a<br />

pessoa viva.”<br />

Há ainda <strong>um</strong> apêndice hilariante,<br />

<strong>de</strong>dicado ao “Evangelho secreto <strong>de</strong><br />

Marcos”, em que Verhoeven aborda<br />

<strong>um</strong> doc<strong>um</strong>ento <strong>de</strong>scoberto em 1958<br />

que dá a conhecer <strong>um</strong> Jesus gay, que<br />

ensina o reino <strong>de</strong> Deus a <strong>um</strong> jovem<br />

que passou a noite com ele. O<br />

doc<strong>um</strong>ento provavelmente era falso,<br />

a falsificação é <strong>de</strong>liciosa.<br />

Viagens<br />

Antropologia<br />

impura<br />

Uma excelente introdução a<br />

outros escritores-viajantes.<br />

Gustavo Rubim<br />

As Ilhas Desconhecidas:<br />

Notas e Paisagens<br />

Raul Brandão<br />

Quetzal<br />

mmmmm<br />

Paul<br />

Verhoeven<br />

escreve nesta<br />

surpreen<strong>de</strong>nte<br />

biografia <strong>de</strong><br />

Jesus alg<strong>um</strong>as<br />

das cenas<br />

do filme que<br />

provavelmente<br />

nunca<br />

realizará<br />

Se for <strong>um</strong> género,<br />

a literatura <strong>de</strong><br />

viagens é o género<br />

i<strong>de</strong>al para quem<br />

tem a paixão do<br />

híbrido. Mas<br />

também se po<strong>de</strong><br />

dizer<br />

simplesmente que<br />

não é <strong>um</strong> género e<br />

que “literatura <strong>de</strong> viagens” é <strong>um</strong>a<br />

metonímia com que <strong>de</strong>signamos<br />

livros <strong>de</strong>masiado diferentes uns dos<br />

outros e, afinal, também diferentes<br />

<strong>de</strong> si mesmos.<br />

Ainda assim, “As Ilhas<br />

Desconhecidas” é <strong>um</strong> dos poucos<br />

livros portugueses que se<br />

candidatam a <strong>ser</strong> a realização<br />

perfeita <strong>de</strong>sse género inexistente.<br />

Raul Brandão é aqui <strong>um</strong> narrador<br />

exímio, o itinerário da viagem está<br />

claramente circunscrito — Ma<strong>de</strong>ira e<br />

Açores — e a experiência da<br />

diversida<strong>de</strong> é dada tão intensamente<br />

que, no fim, chegando à baía <strong>de</strong><br />

Cascais, o viajante escreve, com o<br />

alívio <strong>de</strong> quem regressa <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

inóspito país estrangeiro, a última<br />

palavra do texto: “Portugal!...”<br />

Publicado em 1926 (a viagem fezse<br />

entre Junho e Agosto <strong>de</strong> 1924),<br />

tinha Raul Brandão 58 ou 59 anos,<br />

este é, juntamente com “Os<br />

Pescadores” (<strong>de</strong> 1923), <strong>um</strong> dos livros<br />

do autor do “Húmus” com que a<br />

crítica portuguesa tem lidado pior.<br />

Sobrecarregando o escritor com o<br />

lugar-com<strong>um</strong> que lhe confere a<br />

honra dúbia <strong>de</strong> her<strong>de</strong>iro ou<br />

discípulo <strong>de</strong> Dostoiévski, quase não<br />

há críticos capazes <strong>de</strong> reconhecer<br />

em Brandão o seu espírito <strong>de</strong><br />

antropólogo.<br />

Basta contudo ler <strong>um</strong> dos<br />

capítulos mais famosos <strong>de</strong>sta viagem<br />

(o segundo, sobre a ilha do Corvo)<br />

para pesar o interesse com que<br />

Brandão se confronta com este<br />

estranho microcosmos h<strong>um</strong>ano<br />

on<strong>de</strong> não há memória <strong>de</strong> ter havido<br />

“<strong>um</strong> assassínio ou <strong>um</strong> roubo”, on<strong>de</strong><br />

o maior proprietário da ilha não tem<br />

chave na porta, on<strong>de</strong> os vizinhos<br />

abrem a cova e carregam o caixão <strong>de</strong><br />

SUSANNA SÁEZ<br />

quem morre. Daí a síntese: “Nunca<br />

vi como nesta ilha tão extraordinário<br />

sentimento <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>. O Corvo é<br />

<strong>um</strong>a <strong>de</strong>mocracia cristã <strong>de</strong><br />

lavradores.”<br />

Trata-se, admito, d<strong>um</strong>a modalida<strong>de</strong><br />

impura <strong>de</strong> antropologia, muito<br />

embora Brandão não se esqueça <strong>de</strong><br />

ob<strong>ser</strong>var tudo o que <strong>um</strong> bom<br />

etnógrafo <strong>de</strong>ve ob<strong>ser</strong>var: economia,<br />

religião, ritos funerários, modos <strong>de</strong><br />

habitação, vida familiar, relação com<br />

o ambiente, linguagem, etc. Não<br />

admira: a antropologia foi sempre<br />

impura ou, por outras palavras, foi<br />

sempre (continua a <strong>ser</strong>) literária. E<br />

aquilo a que chamamos literatura,<br />

por sua vez, nunca existiu nem se<br />

pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>finir sem a curiosida<strong>de</strong><br />

extrema pelo sentido da experiência<br />

h<strong>um</strong>ana. Esse sentido que tanto se<br />

exprime nas palavras transcritas do<br />

Banzeca da ilha das Flores, “velho<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong>ntado e alegre (…) com a língua<br />

salgada como a água do mar” que<br />

narra a sua vida <strong>de</strong> pescador <strong>de</strong><br />

bacalhau nas costas da América,<br />

como em duas páginas notáveis sobre<br />

os jardins <strong>de</strong> Ponta Delgada ou no<br />

magnífico capítulo “O Atlântico<br />

Açoriano”, que começa com a<br />

personificação: “Este oceano tem<br />

<strong>um</strong>a fisionomia concentrada e séria.”<br />

O que há <strong>de</strong> radical na<br />

antropologia <strong>de</strong> Brandão é esta<br />

condução da escrita ao extremo dos<br />

seus po<strong>de</strong>res interpretativos.<br />

Nenh<strong>um</strong>a timi<strong>de</strong>z retórica a falso<br />

pretexto <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong><br />

científica ou, menos ainda,<br />

jornalística. Por isso mesmo, ler<br />

estas “Notas e Paisagens” po<strong>de</strong> <strong>ser</strong><br />

<strong>um</strong>a excelente introdução para a<br />

<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> escritores-viajantes<br />

como Ferreira <strong>de</strong> Castro, Nemésio,<br />

Michaux, Segalen, Gauguin, Natália<br />

Correia, Jack London ou Jan Morris,<br />

na fascinante miría<strong>de</strong> das suas<br />

diferenças. Mas também <strong>de</strong>veria <strong>ser</strong>,<br />

para os editores e intelectuais<br />

portugueses, <strong>um</strong>a ocasião para<br />

finalmente traduzir as obras dos<br />

gran<strong>de</strong>s antropólogos-escritores<br />

como Malinowski, Raymond Firth,<br />

Evans-Pritchard, Margaret Mead,<br />

Pierre Clastres ou Philippe Descola.<br />

Para já, quando se anuncia que<br />

outra narrativa <strong>de</strong> Brandão foi<br />

adaptada a teatro (por João Brites, o<br />

que só faz temer o pior do pior),<br />

saboreie-se esta bela reedição das<br />

parcialíssimas “Ilhas<br />

Desconhecidas” que o viajante<br />

<strong>de</strong>dicou aos seus amigos dos Açores,<br />

pres<strong>um</strong>e-se que por achar a Ma<strong>de</strong>ira<br />

“<strong>um</strong> cenário e pouco mais (…) com<br />

<strong>de</strong>sprezo absoluto por tudo que lhe<br />

não cheira a inglês”. Talvez a<br />

Ma<strong>de</strong>ira já não seja hoje esse “país<br />

<strong>de</strong> turismo” que repugnou a<br />

Brandão; talvez já nem existam hoje,<br />

como escreveu algures Joaquim<br />

Manuel Magalhães, os Açores <strong>de</strong><br />

Brandão. Mas justamente o que <strong>ser</strong>á<br />

viajar, para nós, mo<strong>de</strong>rnos, se não<br />

for captar da h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> nem que<br />

seja <strong>um</strong> flash do seu imparável<br />

<strong>de</strong>saparecimento?<br />

50 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


Teatro<br />

“O Jogador” no São Luiz, Lisboa<br />

“Concerto à La Carte”<br />

no Theatro Circo, Braga<br />

Agenda<br />

Teatro<br />

Estreiam<br />

La Flûte Enchantée<br />

De Mozart. Encenação <strong>de</strong> Peter Brook.<br />

Com Betsabée Haas, Virgile Frannais,<br />

William Nadylam, entre outros.<br />

Guimarães. CC Vila Flor - Gran<strong>de</strong> Auditório. Av. D.<br />

Afonso Henriques, 701. Dia 05/05. 5ª às 22h. Tel.:<br />

253424700. 7,5€ a 15€.<br />

Odisseia: Teatro do Mundo.<br />

Ver texto na pág. 39.<br />

O Jogador<br />

De Dostoiévski. Encenação <strong>de</strong> Gonçalo<br />

Amorim. Com António Fonseca, Carla<br />

Galvão, Romeu Costa, entre outros.<br />

Lisboa. Teatro Municipal <strong>de</strong> S. Luiz - Sala Principal.<br />

R. Antº Maria Cardoso, 38-58. De 05/05 a 21/05. 4ª<br />

às 21h (episódio 1 e 2). 5ª às 21h (episódio 3 e 4). 6ª,<br />

Sáb. e Dom. às 18h (todos os episódios). Tel.:<br />

213257650. 5€ a 15€.<br />

Continuam<br />

A Morte do Palhaço<br />

A partir <strong>de</strong> Raul Brandão. Pelo Teatro O<br />

Bando. Encenação <strong>de</strong> João Brites. Com<br />

Ana Brandão, Guilherme Noronha, Paulo<br />

Castro.<br />

Porto. Mosteiro <strong>de</strong> São Bento da Vitória. R. S. Bento<br />

da Vitória. Até 15/05. 4ª a Dom. às 21h30. Tel.:<br />

222007283. 5€ a 15€.<br />

Odisseia: (A)Mostra.<br />

Azáleas<br />

para o 7 <strong>de</strong><br />

Outubro<br />

A Seiva Trupe tira esqueletos<br />

do armário da Europa<br />

com <strong>um</strong> texto <strong>de</strong> Thomas<br />

Bernhard, “À Beira do Fim”.<br />

Inês Nadais<br />

À Beira do Fim - Comédia da<br />

alma alemã<br />

De Thomas Bernhard. Encenação <strong>de</strong><br />

Júlio Cardoso. Com Lur<strong>de</strong>s<br />

Norberto, Mário Jacques, Paula<br />

Gue<strong>de</strong>s.<br />

Porto. Teatro do Campo Alegre. R. das Estrelas, s/n.<br />

De 29/04 a 29/05. 4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h.<br />

Tel.: 226063000. 10€ a 12,5€.<br />

As azáleas já estão n<strong>um</strong>a jarra em<br />

cima do piano a que Vera (Paula<br />

Gue<strong>de</strong>s) se atira quando o silêncio<br />

em casa se torna barulhento <strong>de</strong><br />

mais, <strong>de</strong>finitivo <strong>de</strong> mais. São “as<br />

flores favoritas <strong>de</strong> Rudolf” (Mário<br />

Jacques), o ex-nazi que teve <strong>um</strong>a<br />

segunda vida, <strong>de</strong>pois da guerra,<br />

como euro<strong>de</strong>putado e presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong> tribunal, e que esta noite festeja<br />

secretamente, na casa on<strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

irmã, Vera, nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> o<br />

esperar e outra irmã, Clara (Lur<strong>de</strong>s<br />

Norberto), nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> o<br />

<strong>de</strong>sesperar, o aniversário <strong>de</strong><br />

Heinrich Himmler. Vai haver<br />

champanhe, como em todas as<br />

festas, como em todas as guerras:<br />

para esta família, 1945 nunca existiu.<br />

“À Beira do Fim”, texto a que o<br />

Exactamente Antunes<br />

De Jacinto Lucas Pires. Encenação <strong>de</strong><br />

Cristina Carvalhal, Nuno Carinhas. Com<br />

Jorge Mota, Lígia Roque, entre outros<br />

Porto. Teatro Nacional São João. Pç. Batalha. Até<br />

30/04. 5ª a Sáb. às 21h30. Tel.: 223401910. 7,5€ a<br />

16€.<br />

Odisseia: (A)Mostra.<br />

Rua Gagarin<br />

De Gregory Burke. Encenação <strong>de</strong> Marcos<br />

Barbosa. Com André Teixeira, António<br />

Jorge, entre outros.<br />

Guimarães. Espaço Oficina. Av. D. João IV, 1213<br />

Cave. Dia 30/04. Sáb. às 16h. Tel.: 253424700.<br />

Entrada gratuita.<br />

Odisseia: (A)Mostra.<br />

Concerto à la Carte<br />

De Franz-Xavier Kroetz. Pela Companhia<br />

<strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Braga. Encenação <strong>de</strong> Rui<br />

Ma<strong>de</strong>ira. Com Ana Bustorff.<br />

Braga. Theatro Circo - Sala Principal. Av. Liberda<strong>de</strong>,<br />

697. Dia 30/04. Sáb. às 21h30. Tel.: 253203800. 6€ a<br />

12€.<br />

Odisseia: (A)Mostra.<br />

As Três Irmãs<br />

De Tchékhov. Encenação <strong>de</strong> Nuno<br />

Cardoso. Com Isabel Abreu, Maria do Ceú<br />

Ribeiro, entre outros.<br />

Lisboa. Teatro Nacional D. Maria II - Sala Garrett.<br />

Pç. D. Pedro IV. Até 22/05. 4ª a Sáb. às 21h30. Dom.<br />

às 16h. Tel.: 213250835. 7,5€ a 16€.<br />

Anúncio <strong>de</strong> Morte 2: Sete<br />

Espelhos no Quarto <strong>de</strong> Dormir<br />

De Heiner Müller. Encenação <strong>de</strong> Mónica<br />

Paula Gue<strong>de</strong>s, Lur<strong>de</strong>s Norberto e Mário Jacques<br />

protagonizam esta “comédia da alma alemã”<br />

austríaco Thomas<br />

Bernhard (1931-1989) <strong>de</strong>u o subtítulo<br />

“Uma comédia da alma alemã”, é<br />

<strong>um</strong> inventário dos esqueletos (para<br />

não dizermos dos mortos-vivos) no<br />

armário do século XX europeu. A<br />

partir <strong>de</strong> hoje, a Seiva Trupe põe<br />

esses esqueletos em cima do palco,<br />

confrontando-se, e confrontandonos,<br />

com a besta negra do nazismo,<br />

e com a maneira insidiosa, quase<br />

“natural”, como dominou a<br />

Alemanha até à capitulação e,<br />

nalguns casos, mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>la.<br />

Nesta casa, o armário abre-se a cada<br />

7 <strong>de</strong> Outubro, dia em que, ano após<br />

ano, Vera prepara azáleas,<br />

champanhe e ban<strong>de</strong>iras nazis para<br />

Heinrich Himmler, como nos “bons<br />

velhos tempos” em que o mundo<br />

não caminhava para o caos, as<br />

crianças não eram selvagens e os<br />

ju<strong>de</strong>us não estavam “incrustados em<br />

todo o sítio, por toda a parte”, a<br />

<strong>de</strong>struir impunemente a Alemanha.<br />

Só Clara respira mal ali (a própria<br />

Lur<strong>de</strong>s Norberto respira mal ali: “A<br />

Clara diz muito pouco, mas o<br />

Calle. Com Ana Ribeiro.<br />

Lisboa. Casa Conveniente. R. Nova do Carvalho, 11.<br />

Até 08/05. 2ª a Dom. das 20h00 às 0h. Tel.:<br />

963511971. 7€.<br />

Agamémnon - Vim do<br />

Supermercado e <strong>de</strong>i Porrada no<br />

Meu Filho<br />

De Rodrigo García. Encenação <strong>de</strong> John<br />

Romão. Com Gonçalo Waddington.<br />

Lisboa. Teatro Municipal <strong>de</strong> S. Luiz - Jardim <strong>de</strong><br />

Inverno. R. Antº Maria Cardoso, 38-58. Até 30/04.<br />

5ª a Sáb. às 23h30. Tel.: 213257650. 10€.<br />

Dança<br />

Estreiam<br />

Icosahedron<br />

De Tânia Carvalho.<br />

Lisboa. Culturgest - Gran<strong>de</strong> Auditório. R. Arco do<br />

Cego. De 29/04 a 30/04. 6ª e Sáb. às 21h30. Tel.:<br />

217905155. 5€ a 15€.<br />

Ver texto na pág. 41.<br />

Continuam<br />

Uma Coisa em Forma <strong>de</strong> Assim<br />

De Benvindo Fonseca, Clara An<strong>de</strong>rmatt,<br />

Francisco Camacho, Madalena Vitorino,<br />

Olga Roriz, Paulo Ribeiro, Rui Horta, Rui<br />

Lopes Graça, Vasco Wallenkamp. Pela<br />

Companhia Nacional <strong>de</strong> Bailado.<br />

Lisboa. Teatro Camões. Pq. Nações. Tel.: 218923470.<br />

5€ a 20€.<br />

Ver texto na pág. 42.<br />

aMa<strong>um</strong>MedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

silêncio<br />

<strong>de</strong>la é toda <strong>um</strong>a revolta. Eu<br />

própria me sinto revoltada, embora<br />

ditadura <strong>um</strong> bocado saloia,<br />

passe muito tempo calada durante o<br />

espectáculo, coisa que nunca tinha<br />

feito no teatro: normalmente eu sou<br />

a personagem que fala”, confessa ao<br />

Ípsilon), sentada na ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> rodas<br />

a que <strong>um</strong> bombar<strong>de</strong>amento aliado<br />

(“terrorista”, corrige Rudolf ) a<br />

con<strong>de</strong>nou; quando não está a dobrar<br />

peúgas, ou a ler “mentiras” em<br />

livros que Rudolf <strong>de</strong>saprova e que<br />

queimaria, se queimar livros<br />

<strong>de</strong>generados ainda estivesse em<br />

vigor, escreve cartas para os jornais,<br />

SOS sem resposta até <strong>um</strong> dia, este<br />

dia, em que a or<strong>de</strong>m familiar parece<br />

ter <strong>de</strong> <strong>de</strong>sabar.<br />

Mário Jacques, o Rudolf <strong>de</strong> “À<br />

Beira do Fim”, lê a sua personagem<br />

como “<strong>um</strong> alerta”: “Se pensarmos<br />

que a Alemanha hoje volta a<br />

dominar a Europa, já não política e<br />

militarmente, mas economicamente,<br />

se pensarmos que nós também<br />

tivemos 48 anos <strong>de</strong> ditadura (<strong>um</strong>a<br />

mas <strong>um</strong>a ditadura), teremos <strong>de</strong><br />

perguntar-nos quantos <strong>de</strong>sses<br />

fantasmas não andam aí a mexer-se<br />

outra vez”. O momento, sublinha, é<br />

aliás o i<strong>de</strong>al para voltar a Thomas<br />

Bernhard: “Estão aí à porta <strong>um</strong>as<br />

eleições que não vão <strong>ser</strong>vir para<br />

coisa nenh<strong>um</strong>a, porque quem vai<br />

<strong>de</strong>cidir como vai <strong>ser</strong> a nossa vida são<br />

os três senhores que acabaram <strong>de</strong><br />

chegar. Mas mesmo assim vamos<br />

empenhar-nos gloriosamente nessas<br />

eleições”.<br />

Encenar este texto, agora, com a<br />

recessão e o FMI em cima, é “<strong>um</strong><br />

acto <strong>de</strong> resistência”, diz o<br />

encenador, Júlio Cardoso: “O teatro<br />

<strong>de</strong>ve ir ao encontro da verda<strong>de</strong>,<br />

sobretudo agora que estamos nesta<br />

vulcanida<strong>de</strong> e tudo o que é falso é<br />

que é verda<strong>de</strong>iro. Não se fala a não<br />

<strong>ser</strong> da crise, mas tem <strong>de</strong> haver<br />

alguém a estrebuchar. É o que<br />

estamos a fazer aqui”.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 51


Cinema<br />

Do que se trata, então? Não<br />

da fixação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a visão<br />

do mundo, mas <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escuta<br />

Estreiam<br />

Zona <strong>de</strong><br />

contacto<br />

Entremos. Procissão. “As<br />

Quatro Voltas” é zona <strong>de</strong><br />

contacto. Vasco Câmara<br />

As Quatro Voltas<br />

Le Quattro Volte<br />

De Michelangelo Frammartino,<br />

com Giuseppe Fuda, Nazareno<br />

Timpano , Bruno Timpano. M/12<br />

mmmmm<br />

DVD<br />

Lisboa: Me<strong>de</strong>ia King: Sala 1: 5ª Domingo 3ª 4ª 14h,<br />

16h, 18h, 20h, 22h 6ª Sábado 2ª 14h, 16h, 18h, 20h,<br />

22h, 00h30<br />

Momento 2, no 2011 português, do<br />

percurso <strong>de</strong> libertação do espectador<br />

e <strong>de</strong> apuramento dos sentidos:<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> “O Tio Boonmee que<br />

Recorda as Suas Vidas Anteriores”,<br />

do tailandês Apichatpong<br />

Weerasethakul, “As Quatro Voltas”,<br />

do italiano Michelangelo<br />

Frammartino. On<strong>de</strong> somos também<br />

cabra ou mineral, on<strong>de</strong> não há<br />

diálogos e on<strong>de</strong> a figuração h<strong>um</strong>ana é<br />

empurrada para fora <strong>de</strong> campo por<br />

<strong>um</strong> cão, Vuk, e pelas suas estratégias<br />

terroristas pendulares ao longo da<br />

rua <strong>de</strong> <strong>um</strong>a al<strong>de</strong>ia da Calábria. Há<br />

neste filme hipóteses para várias<br />

vidas <strong>de</strong> <strong>um</strong> espectador.<br />

Antes da encenação da Via Sacra<br />

em procissão pela rua e que o cão<br />

vai sabotar, antes <strong>de</strong>sse<br />

extraordinário plano-sequência<br />

(on<strong>de</strong> não há <strong>um</strong> grama <strong>de</strong><br />

exibicionismo), morreu <strong>um</strong> pastor.<br />

Depois <strong>de</strong>le, e <strong>de</strong>pois do cão, nasce<br />

<strong>um</strong>a cabra, e as cabras inva<strong>de</strong>m o<br />

ecrã, há <strong>um</strong>a árvore, que <strong>ser</strong>ve o<br />

ritual festivo e sacrificial da al<strong>de</strong>ia, e<br />

tudo acaba como carvão,<br />

exactamente por on<strong>de</strong> começara.<br />

Do homem à cabra, <strong>de</strong>sta à árvore<br />

Com a edição <strong>de</strong><br />

“Juventu<strong>de</strong> em<br />

Marcha”, a editora<br />

britânica Masters<br />

of Cinema<br />

(comparada<br />

com a norteamericana<br />

Criterion<br />

na forma como produz<br />

as matrizes e cuida das<br />

edições) inicia <strong>um</strong>a<br />

e <strong>de</strong>sta ao carvão, como se <strong>de</strong><br />

estafetas se tratasse, <strong>um</strong>a vida<br />

suce<strong>de</strong>ndo-se à anterior como outra<br />

possibilida<strong>de</strong>, juntando, e são as<br />

“quatro voltas” do título, o h<strong>um</strong>ano,<br />

o animal, o vegetal e o mineral.<br />

Parece a fixação artificial <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

narrativa <strong>de</strong> reencarnação, e é<br />

verda<strong>de</strong> que o realizador se tem<br />

referido às tradições animistas da<br />

Calábria ou à passagem por ali <strong>de</strong><br />

Pitágoras, filósofo e matemático<br />

grego, autor <strong>de</strong> teorias sobre a<br />

transmigração das almas. Tem-se<br />

referido mas tem-se distanciado<br />

<strong>ser</strong>ena e h<strong>um</strong>il<strong>de</strong>mente – como,<br />

aliás, Apichatpong Weerasethakul<br />

em relação a reencarnação.<br />

Do que se trata, então? Não da<br />

fixação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a visão do mundo,<br />

mas <strong>de</strong> <strong>um</strong>a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escuta.<br />

Até porque n<strong>um</strong> filme sem diálogos<br />

ouve-se melhor – sobretudo quando<br />

esse filme se quer libertar daquilo<br />

que ensur<strong>de</strong>ce e do que já não <strong>de</strong>ixa<br />

ver: é a busca <strong>de</strong> outras vidas para o<br />

cinema, e não é por acaso que isso<br />

se faz (pensamos também no “Tio<br />

Boonmee...”) varrendo a hierarquia<br />

que coloca o homem no topo da<br />

figuração – e é tão aventurosa,<br />

incerta a “performance” <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

cabra. (É, para além do mais, a<br />

busca <strong>de</strong> vidas alternativas para o<br />

cinema italiano, e calha “As Quatro<br />

Voltas” chegar na mesma semana<br />

que “A Solidão dos Números<br />

Primos”: exemplar da “overdose” <strong>de</strong><br />

redundância <strong>de</strong>stes tempos.)<br />

Não se trata da resposta a <strong>um</strong><br />

segredo ou explicação <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

mistério, mas da experiência do<br />

segredo e do mistério – a imagem<br />

cinematográfica como zona <strong>de</strong><br />

contacto. Depois <strong>de</strong> anos <strong>de</strong> convívio<br />

com os pastores e com as cabras,<br />

Frammartino repõe a sua viagem<br />

sensorial através do seu filme (o<br />

cinema é a sua igreja, disse-nos em<br />

entrevista que publicamos neste<br />

suplemento). Muito menos<br />

doc<strong>um</strong>entário <strong>de</strong> ob<strong>ser</strong>vação, como<br />

po<strong>de</strong> parecer à primeira vista, e mais<br />

próximo até <strong>de</strong> <strong>um</strong>a recriação <strong>de</strong><br />

aMa<strong>um</strong>MedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

colaboração<br />

com Pedro Costa<br />

que resultará no<br />

lançamento em DVD<br />

e Blu-Ray <strong>de</strong> vários<br />

filmes do realizador.<br />

Depois <strong>de</strong> “Juventu<strong>de</strong><br />

em Marcha” lançará<br />

“No quarto da Vanda”.<br />

Mas não <strong>ser</strong>á a única<br />

presença <strong>de</strong> filmes<br />

<strong>um</strong>a experiência, “As Quatro Voltas”<br />

é, ele próprio, feito a partir da<br />

harmonização <strong>de</strong> diferentes<br />

naturezas, a doc<strong>um</strong>ental e a ficcional.<br />

Como se só o cinema pu<strong>de</strong>sse<br />

traduzir o invisível, torná-lo<br />

sensorialmente i<strong>de</strong>ntificável,<br />

Frammartino faz-se realizador em<br />

comunhão: quer quando está à<br />

espera (a imprevisibilida<strong>de</strong> previsível<br />

dos animais <strong>de</strong>ntro do<br />

enquadramento; mas que aventura<br />

nova para o espectador...), quer<br />

quando se faz <strong>de</strong> Tati/Keaton,<br />

coreografando <strong>um</strong>a procissão n<strong>um</strong>a<br />

al<strong>de</strong>ia – o tal plano-sequência<br />

pendular, virtuoso, sim, mas<br />

h<strong>um</strong>il<strong>de</strong>, atento à escuta da zona <strong>de</strong><br />

contacto que pressente. Entremos no<br />

templo <strong>de</strong> Michelangelo<br />

Frammartino. Em procissão.<br />

Mundo<br />

fantasma<br />

Os fantasmas da câmara e<br />

os fantasmas da imaginação<br />

têm a mesma natureza. Luís<br />

Miguel Oliveira<br />

O Estranho Caso <strong>de</strong> Angélica<br />

De Manoel <strong>de</strong> Oliveira,<br />

com Ricardo Trêpa, Pilar López <strong>de</strong><br />

Ayala, Leonor Silveira, Luís Miguel<br />

Cintra, Ana Maria Magalhães. M/12<br />

mmmmn<br />

Lisboa: Me<strong>de</strong>ia Mon<strong>um</strong>ental: Sala 3: 5ª 6ª Sábado<br />

Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 15h30, 17h30, 19h30,<br />

21h30, 24h; ZON Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h50, 16h30, 19h10,<br />

21h30, 23h40<br />

Porto: ZON Lusomundo Dolce Vita Porto: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h40, 16h20, 19h,<br />

21h50, 00h25;<br />

Em muitos dos seus filmes, e por<br />

certo em vários dos seus maiores<br />

filmes, Oliveira inventou <strong>um</strong> tempo e<br />

<strong>um</strong>a época, lançando códigos (<strong>de</strong><br />

conduta social, <strong>de</strong> representação, <strong>de</strong><br />

narração) que o senso com<strong>um</strong> daria<br />

por “<strong>de</strong>sactualizados” ao confronto<br />

com aquilo a que o senso com<strong>um</strong><br />

chama a “actualida<strong>de</strong>”. A tensão<br />

gerada por tal confronto nem sempre<br />

é o elemento essencial, mas por<br />

norma é <strong>um</strong> dado <strong>de</strong>terminante, ao<br />

menos no modo como afasta os<br />

filmes <strong>de</strong> <strong>um</strong> naturalismo puramente<br />

mimético e “contemporâneo”. Isto<br />

tem-se a<strong>de</strong>nsado nos últimos anos –<br />

“Belle Toujours”, as “Singularida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a Rapariga Loura” – e “O<br />

Estranho Caso <strong>de</strong> Angélica” também<br />

é assim, dominado pelo “princípio da<br />

incerteza” cronológica. Quando tudo<br />

parece apontar para <strong>de</strong>terminada (e<br />

passada) época, eis que o “nosso<br />

tempo” irrompe, quase como <strong>um</strong><br />

arrepio. Nas “Singularida<strong>de</strong>s” era<br />

po<strong>de</strong>rosíssimo o momento em que,<br />

por entre as incidências queirozianas<br />

da narrativa (era, recor<strong>de</strong>-se, <strong>um</strong>a<br />

adaptação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a história <strong>de</strong> Eça),<br />

<strong>de</strong> Costa no mercado<br />

britânico. Ainda este<br />

ano, e pela Second Run,<br />

que já inclui “O Sangue”<br />

no seu catálogo, ficará<br />

disponível <strong>um</strong>a nova<br />

versão restaurada em<br />

alta-<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> “Casa <strong>de</strong><br />

Lava”, a segunda longa do<br />

realizador.<br />

“O Estranho Caso <strong>de</strong> Angélica”:<br />

a atracção pelo cinema como porta<br />

<strong>de</strong> entrada para <strong>um</strong> mundo<br />

alternativo<br />

alguém vinha falar em “euros”. Na<br />

“Angélica” não faltam momentos<br />

<strong>de</strong>stes.<br />

E porventura com outra<br />

dimensão, <strong>um</strong>a vez que é <strong>um</strong> filme<br />

que pratica o “overlapping”<br />

temporal (passe o anglófono<br />

palavrão) <strong>de</strong> várias maneiras. É, para<br />

começar, baseado n<strong>um</strong> arg<strong>um</strong>ento<br />

que Oliveira escreveu no princípio<br />

dos anos 50 e nunca tinha podido ou<br />

querido filmar até agora: a história<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> fotógrafo que se apaixona<br />

pelo cadáver, jovem e belo, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

rapariga morta subitamente. Depois,<br />

é <strong>um</strong> filme que evoca, através <strong>de</strong>ssa<br />

personagem do fotógrafo (Ricardo<br />

Trepa, mais do que nunca a<br />

interpretar <strong>um</strong> “duplo” do seu avô),<br />

o que parecem <strong>ser</strong> “revisitações” <strong>de</strong><br />

alguns momentos da obra <strong>de</strong><br />

Oliveira, do “Douro” à “Caça”.<br />

Finalmente, é <strong>um</strong> filme que joga, a<br />

partir <strong>de</strong> certa altura a pleno vapor,<br />

com o arcaísmo cinematográfico,<br />

com o “efeito especial” rudimentar<br />

(ou seja: com o “efeito especial”<br />

tornado “efeito poético”), <strong>de</strong><br />

inspiração que podia ter nascido em<br />

Méliès ou em Cocteau.<br />

Apesar <strong>de</strong> toda a tensão criada<br />

pelo choque <strong>de</strong> códigos, ou pelas<br />

conversas on<strong>de</strong> se discute o “mundo<br />

contemporâneo”, este último<br />

aspecto é essencial, porque o<br />

“Estranho Caso <strong>de</strong> Angélica”, no<br />

limite, é <strong>um</strong> filme sobre o cinema,<br />

ou mais especificamente, <strong>um</strong> filme<br />

sobre <strong>um</strong>a atracção (entre a máxima<br />

inocência e máxima perversida<strong>de</strong>)<br />

pelo cinema como porta <strong>de</strong> entrada<br />

para <strong>um</strong> mundo alternativo, on<strong>de</strong><br />

tudo é possível (até <strong>um</strong>a história <strong>de</strong><br />

amor com <strong>um</strong>a rapariga morta).<br />

Talvez não se exagere muito se,<br />

<strong>de</strong>sse ponto <strong>de</strong> vista, se dis<strong>ser</strong> que se<br />

trata dos filmes mais confessionais<br />

<strong>de</strong> Oliveira, e não custa nada<br />

imaginá-lo a escrever este<br />

arg<strong>um</strong>ento nos anos 50, altura em<br />

que estava, na prática,<br />

impossibilitado <strong>de</strong> filmar alg<strong>um</strong>a<br />

coisa com este tipo <strong>de</strong> fôlego. É pela<br />

câmara do fotógrafo que a rapariga<br />

se manifesta, ou que o fotógrafo<br />

52 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


As estrelas do Público<br />

Jorge<br />

Mourinha<br />

Luís M.<br />

Oliveira<br />

Vasco<br />

Câmara<br />

A Cida<strong>de</strong> dos Mortos mmmnn mmnnn mmmnn<br />

O Código Base mmmnn mmnnn nnnnn<br />

O Estranho Caso <strong>de</strong> Angélica mmmnn mmmmn mmnnn<br />

Lixo Extraordinário mmnnn nnnnn mmnnn<br />

Medos mmnnn mmnnn mnnnn<br />

Rio mmmnn nnnnn nnnnn<br />

A Solidão dos Números Primos mmnnn nnnnn mnnnn<br />

48 mmmmm mmmmn mmmmn<br />

As Quatro Voltas mmmmn mmmmn mmmmm<br />

Tournée mmmnn mmmnn mmmmn<br />

imagina que a rapariga se manifesta<br />

– vai dar ao mesmo, porque os<br />

fantasmas da câmara e os fantasmas<br />

da imaginação têm, no fundo, a<br />

mesma natureza. “O Estranho Caso<br />

<strong>de</strong> Angélica” só diz isto. E o que é<br />

que ele faz lembrar que tenha sido<br />

feito em tempos recentes? Apenas “A<br />

Fronteira do Amanhecer”, <strong>de</strong> outro<br />

“arcaico”, Philippe Garrel, para<br />

quem o cinema também é <strong>um</strong>a porta<br />

<strong>de</strong> entrada para <strong>um</strong> mundo que se<br />

liberta do meramente “possível”,<br />

quer dizer, do tristemente “real”.<br />

Mulheres após <strong>um</strong><br />

ataque <strong>de</strong> nervos<br />

Mães e Filhas<br />

Mother and Child<br />

De Rodrigo García,<br />

com Naomi Watts, Annette Bening,<br />

Kerry Washington, Samuel L. Jackson,<br />

Jimmy Smits. M/12<br />

mmmnn<br />

Lisboa: UCI Cinemas - El Corte Inglés: Sala 6: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 21h50, 00h25; UCI<br />

Cinemas - El Corte Inglés: Sala 5: 5ª 6ª Sábado 2ª<br />

3ª 4ª 14h15, 16h50, 19h25 Domingo 11h30, 14h15,<br />

16h50, 19h25; ZON Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 15h40, 18h20,<br />

21h10, 24h; ZON Lusomundo Oeiras Parque: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 12h45, 15h35, 18h25,<br />

21h20, 00h10; ZON Lusomundo Almada Fór<strong>um</strong>: 5ª<br />

6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 12h55, 15h50, 18h45,<br />

21h35, 00h25<br />

Porto: Arrábida 20: Sala 12: 5ª 6ª Sábado<br />

Domingo 2ª 13h45, 16h25, 19h10, 21h55, 00h40 3ª<br />

4ª 16h25, 19h10, 21h55, 00h40; ZON Lusomundo<br />

Dolce Vita Porto: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª<br />

12h55, 15h40, 18h35, 21h35, 00h25<br />

O nome do colombiano Rodrigo<br />

García (filho <strong>de</strong> Gabriel García<br />

Márquez) pouco ou nada dirá aos<br />

cinéfilos portugueses – das suas<br />

quatro longas anteriores, só o<br />

atípico “Passageiros” (2008) chegou<br />

às salas – mas os amadores <strong>de</strong> séries<br />

televisiva recordarão o seu nome<br />

dos genéricos <strong>de</strong> “Sete Palmos <strong>de</strong><br />

Terra” ou “Terapia”, para as quais<br />

dirigiu e escreveu episódios. Essa<br />

herança televisiva, somada ao nome<br />

do polémico cineasta mexicano<br />

Alejandro González Iñarritú na<br />

produção, po<strong>de</strong>rá fazer temer <strong>de</strong><br />

“Mães e Filhas”, se não o pior, pelo<br />

menos algo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sagradável. Mas é<br />

filme que se afadiga a subverter<br />

quaisquer expectativas <strong>de</strong> modo<br />

inteligente, que trabalha o mosaico<br />

narrativo à la “Magnolia” ou “Amor<br />

Cão” a <strong>um</strong> ritmo singularmente<br />

<strong>de</strong>sacelerado e sem preocupação <strong>de</strong><br />

resolver as pontas soltas,<br />

resultando daí <strong>um</strong> melodrama<br />

clássico contado <strong>de</strong> modo seco,<br />

com <strong>um</strong>a atenção especial aos<br />

silêncios.<br />

García cruza três histórias <strong>de</strong><br />

mulheres em Los Angeles à volta da<br />

adopção: <strong>um</strong>a mãe solteirona<br />

(Annette Bening) que vive<br />

atormentada pela filha que teve<br />

menor e <strong>de</strong>u para adopção; <strong>um</strong>a<br />

advogada <strong>de</strong> sucesso (Naomi Watts)<br />

que a sua condição <strong>de</strong> filha adoptiva<br />

endureceu até <strong>um</strong>a <strong>de</strong>terminação<br />

maníaca; e <strong>um</strong>a jovem profissional<br />

(Kerry Washington) incapaz <strong>de</strong> ter<br />

filhos que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> adoptar <strong>um</strong> bebé.<br />

Em rigor, o filme aguentar-se-ia<br />

melhor sem esta última história, a<br />

mais esquemática das três; e apesar<br />

<strong>de</strong> García as fazer confluir no final, o<br />

modo como elas passam o filme a<br />

fazer tangentes <strong>um</strong>as às outras <strong>de</strong><br />

modo quase intangível é bem mais<br />

interessante.<br />

Evitando as armadilhas<br />

lacrimejantes, García <strong>de</strong>ixa às<br />

actrizes o tempo e o espaço para<br />

construirem as personagens e,<br />

sobretudo, para nos fazer<br />

compreen<strong>de</strong>r as escolhas e as<br />

“Mães e Filhas”: três histórias em Los Angeles à volta da adopção<br />

“Lixo Extraordinário”:<br />

as “figuras obrigatórias”<br />

do “caso da vida”<br />

<strong>de</strong> boa consciência liberal<br />

razões <strong>de</strong> mulheres que estão longe<br />

<strong>de</strong> <strong>ser</strong>em imediatamente<br />

simpáticas. Nenh<strong>um</strong>a <strong>de</strong>las é mais<br />

espantosa do que Annette Bening,<br />

que volta a confirmar como é <strong>um</strong>a<br />

das maiores e mais injustamente<br />

ignoradas actrizes americanas<br />

contemporâneas. Jorge Mourinha<br />

Lixo Extraordinário<br />

Waste Land<br />

De Lucy Walker, João Jardim, Karen<br />

Harley,<br />

com . M/12<br />

mmnnn<br />

Lisboa: CinemaCity Classic Alvala<strong>de</strong>: Sala 3: 5ª<br />

Domingo 2ª 3ª 4ª 13h50, 15h50, 17h50, 19h50,<br />

21h50 6ª Sábado 13h50, 15h50, 17h50, 19h50,<br />

21h50, 23h55; ZON Lusomundo Almada Fór<strong>um</strong>: 5ª<br />

6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20, 15h45, 18h20,<br />

21h10, 23h50<br />

Porto: ZON Lusomundo Parque Nascente: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h30, 17h, 19h20,<br />

21h45, 00h10<br />

O artista plástico brasileiro Vik<br />

Muniz <strong>de</strong>cidiu reinvestir na<br />

comunida<strong>de</strong> os proventos da sua<br />

arte, e partiu para a mega-lixeira do<br />

Jardim Gramacho, que recebe 70 por<br />

cento do lixo carioca e cem por<br />

cento do suburbano, para realizar<br />

retratos dos “catadores” que vivem<br />

da reciclagem diária. Usando o<br />

próprio lixo como material da sua<br />

arte, envolveu os catadores na<br />

criação dos retratos e doou os<br />

consi<strong>de</strong>ráveis lucros da sua venda<br />

internacional. O doc<strong>um</strong>entário que a<br />

britânica Lucy Walker tirou do seu<br />

acompanhamento do processo<br />

c<strong>um</strong>pre as “figuras obrigatórias” do<br />

“caso da vida” <strong>de</strong> boa consciência<br />

liberal feito à medida para <strong>um</strong>a<br />

“remake” hollywoodiana. Ao mesmo<br />

tempo, questiona-as certeiramente,<br />

dando a ver as dúvidas do artista e<br />

da sua equipa: estão a ajudar esta<br />

gente ou a instilar expectativas<br />

insustentáveis para o futuro? Estão a<br />

contribuir para a comunida<strong>de</strong> ou a<br />

aproveitar-se <strong>de</strong>la? É <strong>um</strong>a questão<br />

que se po<strong>de</strong> colocar em relação ao<br />

filme, cujas sincerida<strong>de</strong> e boas<br />

intenções nunca estão em causa,<br />

mas cuja construção é tão polida,<br />

cuja estrutura narrativa quase exige<br />

o “final feliz”, que o modo<br />

inteligente como Walker se <strong>de</strong>svia<br />

lentamente do projecto artístico <strong>de</strong><br />

Muniz para se concentrar nos<br />

percursos <strong>de</strong> vida dos catadores<br />

acaba por ficar para segundo plano.<br />

“Lixo Extraordinário” nunca resolve<br />

a contento esse balançar entre a<br />

vibração espontânea do registo <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a comunida<strong>de</strong> fervilhante <strong>de</strong> vida<br />

e a lisura convencional da sua forma,<br />

e é nesse <strong>de</strong>sequilíbrio que o filme se<br />

torna interessante. J. M.<br />

A Solidão dos Números Primos<br />

La Solitudine <strong>de</strong>i N<strong>um</strong>eri Primi<br />

De Saverio Costanzo,<br />

com Alba Rohrwacher, Luca<br />

Marinelli, Isabella Rossellini. M/16<br />

mmnnn<br />

Lisboa: UCI Cinemas - El Corte Inglés: Sala 10: 5ª 6ª<br />

Sábado 2ª 3ª 4ª 14h15, 16h45, 19h25, 21h55, 00h25<br />

Domingo 11h30, 14h15, 16h45, 19h25, 21h55, 00h25<br />

Porto: Arrábida 20: Sala 6: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />

2ª 13h45, 16h20, 19h, 21h40, 00h20 3ª 4ª 16h20,<br />

19h, 21h40, 00h20<br />

Para a sua estreia na distribuição<br />

portuguesa, temos direito ao menos<br />

interessante dos três filmes <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

dos mais interessantes jovens<br />

cineastas transalpinos. Saverio<br />

Costanzo, revelado em 2004 pelo<br />

excelente “Private” (que em Portugal<br />

foi mostrado apenas no Indie) e autor<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> “In Memoria di Me” (inédito<br />

entre nós) <strong>de</strong> boa memória, passa ao<br />

“patamar superior” <strong>de</strong> produção<br />

com esta adaptação do “best-seller”<br />

<strong>de</strong> Paolo Giordano sobre a atracção<br />

elíptica entre dois solitários com<br />

tra<strong>um</strong>as <strong>de</strong> infância, escrita a pensar<br />

no formalismo oblíquo do realizador.<br />

Costanzo filma magnificamente a<br />

inquietação surda que percorre o<br />

quotidiano silencioso e tenso da<br />

fotógrafa Alice e do cientista Mattia,<br />

lidando com famílias sufocantes e<br />

círculos sociais que recusam a sua<br />

diferença. Mas, por excelente que<br />

seja o tratamento formal do filme<br />

(todo em atmosferas sublinhadas<br />

pela selecção musical <strong>de</strong> Mike Patton,<br />

retirada <strong>de</strong> <strong>um</strong>a mão-cheia <strong>de</strong><br />

bandas-sonoras <strong>de</strong> filmes italianos <strong>de</strong><br />

época) e a entrega dos actores<br />

(atenção a Isabella Rossellini), é difícil<br />

afastar a sensação <strong>de</strong> que é essa<br />

atenção formal que salva “A Solidão<br />

dos Números Primos” do<br />

convencionalismo; que, sem a<br />

intensida<strong>de</strong> dos silêncios e da<br />

angústia que transportam a estrutura<br />

propositadamente não-linear, ele não<br />

existiria. O que é mais sintomático do<br />

talento do realizador do que do<br />

interesse do filme em si. J. M.<br />

Continuam<br />

48<br />

De Susana Sousa Dias,<br />

com . M/12<br />

mmmmm<br />

Lisboa: Castello Lopes - Cascais Villa: Sala 5: 5ª<br />

Domingo 2ª 3ª 4ª 21h 6ª Sábado 21h,<br />

23h40; CinemaCity Classic Alvala<strong>de</strong>: Sala 1: 5ª<br />

Domingo 2ª 3ª 4ª 13h35, 15h40, 17h30, 19h25,<br />

21h35 6ª Sábado 13h35, 15h40, 17h30, 19h25, 21h35,<br />

23h45; ZON Lusomundo Almada Fór<strong>um</strong>: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 18h50<br />

Porto: ZON Lusomundo Parque Nascente: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 19h<br />

Como se filma o infilmável? Como se<br />

mostra aquilo <strong>de</strong> que não existem<br />

imagens? A resposta <strong>de</strong> Susana <strong>de</strong><br />

Sousa Dias é simples: com as imagens<br />

que há e dando a palavra àqueles que<br />

viveram a ditadura, <strong>de</strong> <strong>um</strong> modo que,<br />

raiando o experimentalismo<br />

formalista tem o efeito <strong>de</strong> libertar a<br />

emoção, <strong>de</strong> tornar o espectador<br />

simultaneamente testemunha e<br />

participante das experiências que a<br />

realizadora e a sua equipa<br />

recolheram junto <strong>de</strong> <strong>um</strong>a mão-cheia<br />

<strong>de</strong> prisioneiros políticos<br />

encarcerados ou torturados pela<br />

PIDE durante os 48 anos do regime<br />

salazarista. “48” é <strong>um</strong>a assombrosa<br />

lição <strong>de</strong> cinema, que ejecta todas e<br />

quaisquer convenções pela<br />

simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>purada e austera do<br />

seu dispositivo; <strong>um</strong> imenso exercício<br />

<strong>de</strong> história vivida e contada na<br />

primeira pessoam, como se só do<br />

anonimato <strong>de</strong> vozes, da décalage<br />

entre os rostos <strong>de</strong> ontem e as vozes<br />

<strong>de</strong> hoje <strong>de</strong>ste coro popular, pu<strong>de</strong>sse<br />

nascer a intimida<strong>de</strong> que – como diz<br />

<strong>um</strong>a das entrevistadas – é o lugar da<br />

verda<strong>de</strong>. Como se só <strong>de</strong>ste ac<strong>um</strong>ular<br />

anónimo <strong>de</strong> pequenas histórias<br />

pu<strong>de</strong>sse nascer a mais fiel abordagem<br />

à gran<strong>de</strong> história. Não é contraditório<br />

pôr “48” - prodigioso salto em frente<br />

para a sua autora - no mesmo<br />

cal<strong>de</strong>irão <strong>de</strong> cineastas radicais da<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> fílmica como Godard,<br />

Tarr, Van Sant, Costa ou César<br />

Monteiro. Para lá <strong>de</strong> qualquer olhar<br />

político, é <strong>um</strong> filme sobre Portugal.<br />

Para lá <strong>de</strong> qualquer nacionalida<strong>de</strong>, é<br />

<strong>um</strong>a obra-prima. J. M.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 53


Opinião<br />

Modo crítico<br />

Cinema e acto fotográfico<br />

O verda<strong>de</strong>iramente espantoso é que dois filmes, “Angélica” e “48”, por modos tão diversos, colocam<br />

<strong>um</strong>a questão que se afigura das mais importantes: o cinema e “o acto fotográfico”.<br />

As irregularida<strong>de</strong>s da distribuição,<br />

sobretudo <strong>de</strong> filmes portugueses,<br />

colocam-nos neste momento perante<br />

duas obras absolutamente maiores, sem<br />

esquecer o interessantíssimo “A Cida<strong>de</strong><br />

dos Mortos” <strong>de</strong> Sérgio Tréffaut: “48”<br />

<strong>de</strong> Susana Sousa Dias, que chega às salas mais <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

ano <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter obtido o Gran<strong>de</strong> Prémio do Cinéma<br />

du Réel, em Paris, <strong>um</strong> dos mais prestigiados prémios<br />

internacionais <strong>de</strong> doc<strong>um</strong>entarismo, e “O Estranho<br />

Caso <strong>de</strong> Angélica” <strong>de</strong> Manoel <strong>de</strong> Oliveira, quase <strong>um</strong> ano<br />

<strong>de</strong>pois da sua apresentação em Cannes – e creio que a<br />

coincidência só não é por inteiro fortuita, porque não<br />

<strong>de</strong>ve ter sido acaso que “48” tenha estreado uns dias<br />

antes do 25 <strong>de</strong> Abril.<br />

Não <strong>ser</strong>á preciso acentuar que em muito os dois filmes<br />

se distinguem, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo porque <strong>um</strong> é doc<strong>um</strong>ental e<br />

outro ficcional, ainda que não <strong>de</strong>ixem <strong>de</strong> se intersectar<br />

na História, <strong>um</strong> explicitamente, “48”, com prisioneiros<br />

da polícia política da ditadura, a Pi<strong>de</strong><br />

DGS, e o outro implicitamente, na medida que<br />

“Angélica”, projecto que remonta a 1952, é <strong>um</strong> dos vários<br />

que Oliveira, que aliás também esteve preso, não pô<strong>de</strong><br />

realizar durante o salazarismo.<br />

Mas o verda<strong>de</strong>iramente espantoso é que ambos os<br />

filmes, “Angélica” e “48”, por modos tão diversos,<br />

colocam <strong>um</strong>a questão que se afigura das mais<br />

importantes: o cinema e “o acto fotográfico”. Que<br />

entendo por isto? Não os doc<strong>um</strong>entários sobre<br />

fotógrafos, ou os filmes feitos por reconhecidos<br />

fotógrafos, como Robert Frank ou William Klein<br />

(ainda que “Conversation in Vermont” <strong>de</strong> Frank seja<br />

<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar), exceptuados os casos particulares <strong>de</strong><br />

Raymond Depardon (“Les années-déclics”, narração<br />

autobiográfica) e <strong>de</strong> Agnès Varda. Falo <strong>de</strong> outros casos,<br />

em que o acto fotográfico é inscrição fulcral ao filme.<br />

Exemplo maior <strong>de</strong> <strong>um</strong>a fotografia nodal à ficção é<br />

“Blow Up” <strong>de</strong> Antonioni, cineasta que <strong>de</strong> resto várias<br />

vezes fez das suas personagens fotógrafos, e em relação<br />

ao qual, em termos <strong>de</strong> tipologia, se po<strong>de</strong> aproximar<br />

“Angélica”, em que o fotógrafo, Isaac, se torna possuído<br />

pelas fotografias daquela que retratou morta. Há os<br />

filmes em que não são propriamente as fotografias<br />

mas o acto fotográfico em si que é crucial, como<br />

“Janela Indiscreta” <strong>de</strong> Hitchcok ou vários <strong>de</strong> Wen<strong>de</strong>rs,<br />

sobretudo “Alice nas Cida<strong>de</strong>s”. Há os filmes <strong>de</strong> imagens<br />

fixas, fotos portanto, <strong>de</strong> que o arquétipo é o maravilhoso<br />

“La Jetée” <strong>de</strong> Chris Marker, ou ainda “Salut les Cubains”<br />

<strong>de</strong> Varda e o tão pouco lembrado e <strong>de</strong>lirante “Colloque<br />

<strong>de</strong>s Chiens” <strong>de</strong> Raul Ruiz – e “48” aproxima-se <strong>de</strong>stes.<br />

Há <strong>um</strong>a reflexão sobre a fotografia como “Photo et cie”,<br />

<strong>um</strong> dos episódios <strong>de</strong> “Six fois <strong>de</strong>ux” <strong>de</strong> Godard e Anne-<br />

Marie Miéville. Enfim, para citar casos mais isolados,<br />

há o longuíssimo movimento lento que ao final revela<br />

<strong>um</strong>a fotografia, em “Wavelenght” <strong>de</strong> Michael Snow,<br />

ou <strong>um</strong> filme que parte <strong>de</strong> <strong>um</strong> foto-romance, como os<br />

havia até aos anos 60, “O Cheik Branco” <strong>de</strong> Fellini. Creio<br />

que a listagem é suficiente elucidativa da importância<br />

da relação, para além do que, ontologicamente<br />

(na terminologia <strong>de</strong> André Bazin), o cinema <strong>de</strong>ve à<br />

fotografia, da qual é <strong>um</strong>a prossecução técnica.<br />

Abordarei mais em pormenor estas questões, e outras<br />

que também muito me interessam, a propósito <strong>de</strong><br />

“48”. Detenho-me entretanto em “O Estranho Caso <strong>de</strong><br />

Angélica”.<br />

Aconteceu-me escrever que havia <strong>um</strong>a peça capital<br />

da obra <strong>de</strong> Oliveira que...nunca tinha sido filmada:<br />

“Angélica”, justamente. Conhecíamos o projecto pelo<br />

vol<strong>um</strong>e <strong>de</strong> arg<strong>um</strong>entos não concretizados publicado<br />

pela Cinemateca Portuguesa e pela longa narração dos<br />

factos que lhe estiveram na origem que o autor faz no<br />

doc<strong>um</strong>entário que lhe <strong>de</strong>dicou Paulo Rocha.<br />

A matriz doc<strong>um</strong>ental é muito importante no trabalho<br />

<strong>de</strong> Oliveira, mas no pólo oposto ele é também, e até<br />

sobretudo, <strong>um</strong> cineasta assombrado – lembrem-se<br />

os fantasmas dos maridos mortos, que são os que<br />

Vanda sempre prefere, em “O Passado e o Presente”,<br />

Augusto M. Seabra<br />

esse alguém ou entida<strong>de</strong> que engravidou a jovem em<br />

“Benil<strong>de</strong> ou a Virgem-Mãe”, ou o <strong>de</strong>lírio final <strong>de</strong> José<br />

Augusto, como <strong>um</strong> vampiro, perante o cadáver <strong>de</strong><br />

Francisca, no filme homónimo.<br />

Há <strong>um</strong> limiar recorrente no cinema <strong>de</strong> Oliveira:<br />

aproximar-se do infilmável, porque para além da<br />

matéria física, que é “a alma” – e não se trata apenas <strong>de</strong><br />

que “A alma é <strong>um</strong> vício”, célebre frase agustiniana <strong>de</strong><br />

“Francisca”. Nunca Oliveira se aproximou tanto <strong>de</strong>sse<br />

limiar como em “Angélica”, caso em que literalmente<br />

o fantasma daquela se apossa daquele que fotografou<br />

o seu corpo morto, e enfim lhe leva também a alma.<br />

Dizem-nos os antropólogos que havia tribos que temiam<br />

<strong>ser</strong> fotografadas ou filmadas,<br />

pois achavam que a imagem<br />

lhes roubava ao espírito. Em<br />

“Angélica”, a alma, a metafísica,<br />

liberta-se da imagem física<br />

impressa, as fotografias.<br />

É <strong>um</strong> filme belíssimo e <strong>de</strong><br />

facto capital, em eco, muito anos<br />

<strong>de</strong>pois, à famosa “Tetralogia dos<br />

Amores Frustrados” (“O Passado<br />

e o Presente”, “Benil<strong>de</strong>”, “Amor<br />

<strong>de</strong> Perdição” e “Francisca”), à<br />

qual, como projecto, po<strong>de</strong>rá ter<br />

sido no entanto <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong><br />

prelúdio. Afigura-se-me que “O<br />

Estranho Caso <strong>de</strong> Angélica” é o<br />

mais importante filme <strong>de</strong> Oliveira em décadas.<br />

“48” é <strong>um</strong> filme-ensaio po<strong>de</strong>rosíssimo e, ouso dizer,<br />

<strong>um</strong>a obra marcante na História do cinema português.<br />

Não escrevo em maiúscula por acaso: o filme pren<strong>de</strong>-se<br />

directamente com a História dos 48 anos <strong>de</strong> ditadura, por<br />

via dos <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> alguns presos políticos que se<br />

confrontam com fotografias suas quando presos pela Pi<strong>de</strong>.<br />

Eis assim <strong>um</strong> raro exemplo <strong>de</strong> cinema e acto<br />

fotográfico, mas também – e são outras abordagens que<br />

me interessam muito – <strong>de</strong> filme feito a partir <strong>de</strong> materiais<br />

A fotografia “tipo<br />

passe” é parte da nossa<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cívica.<br />

Feitas pela Pi<strong>de</strong>, o<br />

propósito é tentar que,<br />

“confessando”, os <strong>de</strong>tidos<br />

ficassem privados<br />

<strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

“48”: <strong>um</strong> filme-ensaio<br />

po<strong>de</strong>rosíssimo, <strong>um</strong>a obra<br />

marcante na História<br />

do cinema português<br />

<strong>de</strong> arquivo e em constante dialéctica entre o “em<br />

campo” e “fora <strong>de</strong> campo”.<br />

Há <strong>um</strong>a curta-metragem <strong>de</strong> Agnés Varda, “Ulysse”,<br />

<strong>de</strong> 1982, em que ela reencontra, em movimento<br />

cinematográfico, quem era <strong>um</strong>a criança n<strong>um</strong>a foto por<br />

ela feita em 1954, e as pessoas em torno. O pressuposto<br />

<strong>de</strong> “48” é bem mais radical: quase só confrontar as<br />

pessoas em “voz off” - o som em contracampo às<br />

imagens - com as fotos na Pi<strong>de</strong>.<br />

“Lembra-me”, lembro-me, é a primeira palavra<br />

do filme. Há <strong>um</strong> valor testemunhal importantíssimo<br />

no relato das torturas e h<strong>um</strong>ilhações – e salientemse<br />

em particular as mulheres e as várias referências<br />

às h<strong>um</strong>ilhações no período<br />

menstrual. Mas o propósito<br />

afigura-se ainda mais lato.<br />

A fotografia “tipo passe”<br />

é parte da nossa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

cívica. Feitas pela Pi<strong>de</strong>, e com<br />

as subsequentes torturas, o<br />

propósito é o oposto: tentar<br />

que, “confessando”, os <strong>de</strong>tidos<br />

ficassem privados <strong>de</strong>ssa mesma<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cívica. Diria que é<br />

<strong>um</strong> exemplo extremo do que<br />

Barthes escreve em “A Câmara<br />

Clara”: “Quando se <strong>de</strong>fine a<br />

fotografia como <strong>um</strong>a imagem,<br />

isso não quer dizer apenas<br />

que as personagens que representa não se movem.<br />

Isso quer dizer que elas não saem: são anestesiadas<br />

e pregadas, como as borboletas”. “Anestesiadas e<br />

pregadas”, o propósito da Pi<strong>de</strong>.<br />

Barthes ainda: “Recebi <strong>um</strong> dia <strong>de</strong> <strong>um</strong> fotógrafo <strong>um</strong>a<br />

foto minha que, apesar dos meus esforços, não me<br />

conseguia lembrar on<strong>de</strong> tinha sido feita. Olhava para a<br />

gravata, a camisola, para reconhecer as circunstâncias<br />

e era em vão. E, no entanto, porque era <strong>um</strong>a fotografia,<br />

não podia negar que estava lá (mesmo se não sabia<br />

54 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon


Política cultural<br />

O fascínio CSI<br />

A expressão espectacular da portabilida<strong>de</strong> e da <strong>de</strong>slocalização temática, ambas<br />

tão próprias da globalização.<br />

on<strong>de</strong>). Esta distorção entre a certeza e o esquecimento<br />

<strong>de</strong>u-me <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> vertigem, e <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong><br />

angústia policial (o tema <strong>de</strong> ‘Blow Up’ não estava longe).<br />

Eu ia ao reconhecimento como n<strong>um</strong> inquérito, para<br />

apren<strong>de</strong>r enfim o que já não sabia <strong>de</strong> mim próprio”.<br />

Os termos em “48” são diferentes: não <strong>um</strong> “inquérito”<br />

<strong>de</strong> tipo “policial”, mas <strong>um</strong>a indagação sobre como as<br />

pessoas estavam n<strong>um</strong> inquérito policial extremo; mas<br />

não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> haver momentos muito fortes em que as<br />

pessoas não se lembram em que circunstâncias foi feita<br />

a foto, ou o extraordinário momento em que “a filha <strong>de</strong><br />

Stella Piteira Santos”, Maria Antónia Fia<strong>de</strong>iro, explica<br />

porque estava a rir, logo acrescentando: “Vivi muito mal<br />

com esta fotografia durante muito tempo”.<br />

Ocorre-me o conceito freudiano <strong>de</strong> “das Uhmeinlich”,<br />

da “estranheza familiar”: os que testemunham revêemse<br />

no que lhes é mais familiar, o próprio Eu, mas <strong>um</strong><br />

eu que é outro, estranho, dados os registos com que se<br />

confrontam. E é nomeadamente a esse propósito que a<br />

dialéctica da imagem e do som, do “em campo” e “fora<br />

<strong>de</strong> campo” em “48”, parecendo simples, se me afigura<br />

antes relevante.<br />

Escreveu André Bazin: “Os limites do ecrã não são,<br />

como o vocabulário técnico o <strong>de</strong>ixa por vezes enten<strong>de</strong>r,<br />

o enquadramento <strong>de</strong> <strong>um</strong>a imagem mas <strong>um</strong> oculto<br />

que não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>smascarar <strong>um</strong>a parte da realida<strong>de</strong> [e<br />

note-se como isto é pertinente perante “48”]. (…) O<br />

enquadramento é centrípeto, o ecrã é centrífugo”. E<br />

Deleuze: “N<strong>um</strong> caso o fora <strong>de</strong> campo <strong>de</strong>signa o que<br />

existe algures, ao lado ou à volta; no outro caso, o<br />

fora <strong>de</strong> campo <strong>de</strong>signa <strong>um</strong>a presença inquietante [e<br />

no caso isso vale para os sempre referidos mas nunca<br />

apresentados agentes da Pi<strong>de</strong>], da qual não se po<strong>de</strong><br />

mesmo dizer que exista, mas mais que ‘insiste’ ou<br />

‘subsiste’”.<br />

“48” é <strong>um</strong> “doc<strong>um</strong>entário” que se inscreve contudo<br />

entre dois pólos extremos da arte cinematográfica, o<br />

apelo do real e o carácter espectral, don<strong>de</strong>, para além da<br />

importância testemunhal, o seu carácter singularíssimo.<br />

António Pinto Ribeiro<br />

Os<br />

investigadores,<br />

esses, são<br />

simultaneamente<br />

polícias,<br />

<strong>de</strong>tectives,<br />

cientistas, e<br />

cada <strong>um</strong> <strong>de</strong>les<br />

<strong>um</strong> enciclopedista<br />

A<br />

série CSI: Crime Scene Investigation<br />

(em Portugal, Crime sob Investigação<br />

que po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> vista em várias estações)<br />

é da autoria <strong>de</strong> Anthony E. Zuiker,<br />

estreou-se em 2000 nos EUA e <strong>de</strong>corria<br />

originariamente na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Las Vegas.<br />

Dado o gran<strong>de</strong> sucesso da série original CSI Las Vegas<br />

foram criadas duas outras séries her<strong>de</strong>iras e surgiu a<br />

CSI Miami e CSI Nova Iorque. Têm ocorrido alg<strong>um</strong>as<br />

mudanças <strong>de</strong> elencos mas a estrutura permanece.<br />

De <strong>um</strong> modo geral cada episódio é quase sempre<br />

autónomo, havendo contudo personagens ou situações<br />

passadas que são evocadas por aparecerem implicadas<br />

em novos casos <strong>de</strong> homicídio ou por <strong>ser</strong>em fulcrais na<br />

biografia <strong>de</strong>stes cientistas forenses.<br />

E <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>um</strong> tão gran<strong>de</strong> fascínio por esta série<br />

on<strong>de</strong> correm em paralelo narrativas em cada <strong>um</strong>a<br />

das cida<strong>de</strong>s protagonistas? Do seu carácter futurista<br />

no início século XXI, começa por <strong>ser</strong> <strong>um</strong>a série on<strong>de</strong><br />

a sofisticação tecnológica não tem comparação com<br />

outras produções. Acontece mesmo que alg<strong>um</strong>as<br />

tecnologias surgem nas investigações por vezes ainda<br />

antes <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>as <strong>de</strong>ssas ferramentas tecnológicas<br />

<strong>ser</strong>em colocadas no mercado e <strong>de</strong> outras constituírem<br />

protótipos. O mesmo se po<strong>de</strong> dizer<br />

dos métodos <strong>de</strong> análise criminal:<br />

n<strong>um</strong> dos primeiros episódios <strong>de</strong> CSI<br />

Miami, “H” (Horatio), o chefe da<br />

equipa, consegue provar <strong>um</strong> crime<br />

recorrendo a <strong>um</strong> método inédito<br />

<strong>de</strong> análise do ADN n<strong>um</strong>a prova<br />

criminalista, isto no ano seguinte<br />

àquele em que se <strong>de</strong>scobriu a<br />

sequência do genoma h<strong>um</strong>ano.<br />

As instalações <strong>de</strong>stes cientistas<br />

forenses são autênticos laboratórios científicos e nada<br />

têm a ver com as antigas esquadras ou escritórios<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>tectives, o que faz a série <strong>ser</strong> <strong>um</strong>a combinação<br />

<strong>de</strong> ficção científica com ciência forense. Não é<br />

por acaso que Star Trek, <strong>de</strong> Gene Rod<strong>de</strong>nberry, é<br />

abundantemente citada em CSI.<br />

Os investigadores, esses, são simultaneamente<br />

polícias, <strong>de</strong>tectives, cientistas, e cada <strong>um</strong> <strong>de</strong>les <strong>um</strong><br />

enciclopedista, com conhecimentos específicos e<br />

paixões raras, que tanto po<strong>de</strong>m <strong>ser</strong> pela entomologia,<br />

como Grissom (William Petersen), por cabelos e fibras,<br />

Nick Stokes (George Eads), a guerrilha militar, Mac<br />

Taylor (Gary Sinise), a balística, Calleigh Duquesne<br />

(Emily Procter), ou ainda pela anatomopatologia, como<br />

o exímio Dr Albert (Al) Robbins (Robert David Hall).<br />

Finalmente, os episódios têm como cenários as<br />

E em conclusão,<br />

a velocida<strong>de</strong>:<br />

a velocida<strong>de</strong> dos<br />

carros, dos barcos,<br />

da comunicação<br />

cida<strong>de</strong>s futuristas <strong>de</strong> Miami, Las Vegas, Nova Iorque<br />

com a sua arquitectura <strong>de</strong> mega escala: os edifícios<br />

compostos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s superfícies <strong>de</strong> vidro e <strong>de</strong> aço, as<br />

largas avenidas, as gran<strong>de</strong>s e requintadas superfícies dos<br />

espaços nocturnos, as músicas <strong>de</strong> batidas das danças<br />

actuais, entre as quais o dubstep, o uso generalizado<br />

<strong>de</strong> iPhones, iPads, ecrãs LCDs, os bairros elegantes da<br />

classe média americana, o glamour das festas ou, pelo<br />

contrário mas nem por isso menos futuristas, os bairros<br />

sujos n<strong>um</strong>a versão ainda mais suja e mais caótica do que<br />

no filme “Bla<strong>de</strong> Runner” <strong>de</strong> Ridley Scott.<br />

E em conclusão, a velocida<strong>de</strong>: a velocida<strong>de</strong> dos<br />

carros, dos barcos, da comunicação. O facto <strong>de</strong> a série<br />

se conjugar em três cida<strong>de</strong>s, seja com o céu <strong>de</strong> Nova<br />

Iorque em tons mais negros ou mais azulados em<br />

Miami, é a expressão espectacular da portabilida<strong>de</strong><br />

e da <strong>de</strong>slocalização temática, ambas tão próprias da<br />

globalização. A qualida<strong>de</strong> das suas intervenções, essas,<br />

<strong>de</strong>corre <strong>de</strong> eles <strong>de</strong>svendarem crimes e mortes sempre<br />

em condições misteriosas e pouco comuns, o que<br />

obriga e é nuclear das narrativas, para <strong>de</strong>svendar o<br />

enigma, o recurso prioritário aos processo <strong>de</strong> indução<br />

e <strong>de</strong> abdução contra a <strong>de</strong>dução mais tradicional<br />

nas ficções policiais. Os diálogos em que estes dois<br />

processos são exemplificados são<br />

momentos <strong>de</strong> particular gozo<br />

<strong>de</strong> raciocínio. A estes processos<br />

<strong>de</strong> lógica <strong>de</strong>ve acrescentarse<br />

a valorização do <strong>de</strong>talhe,<br />

do insignificante, como nas<br />

melhores utilizações das teorias<br />

da análise literária. Finalmente,<br />

apetece perguntar: porque são<br />

tão raras as vezes em que estes<br />

<strong>de</strong>tectives comem ou bebem? Não<br />

se alimentam? Serão cyborgs? O exemplo do médico<br />

legista Dr. Albert (Al) Robbins, a quem faltam as duas<br />

pernas que foram substituídas por próteses como<br />

acontece na vida real do actor Robert David Hall, é <strong>um</strong><br />

contributo para esta especulação.<br />

Mas o lado físico está presente na fisicalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Eric Delko (Adam Rodriguez) ou na voz sussurrante e<br />

erotizada <strong>de</strong> Calleigh Duquesne (Emily Procter).<br />

E contudo estes mesmos cientistas têm facetas<br />

obscuras ou passados biográficos <strong>de</strong>sviados face<br />

à figura normal do polícia; na verda<strong>de</strong> esta é <strong>um</strong>a<br />

herança e <strong>um</strong>a homenagem à série Hill Street Blues,<br />

a primeira série policial dos anos 80, on<strong>de</strong> os policias<br />

tinham vícios, problemas familiares e angústias. Os<br />

protagonistas <strong>de</strong> CSI já foram bailarinas <strong>de</strong> “strip”,<br />

filhas <strong>de</strong> mães solteiras – Catherine Willows (Marg<br />

Helgenberger) –, viciados no jogo – Warrick Brown<br />

(Gary Dourdan) –, com insónias crónicas <strong>de</strong>pois da<br />

morte da mulher que morreu no ataque às torres<br />

gémeas <strong>de</strong> NI – Gary Sinise (Mac Taylor) – ou amantes<br />

<strong>de</strong> relações sado-masoquistas – Stella Bona<strong>ser</strong>a (Melina<br />

Kanakare<strong>de</strong>s). São, pois, também h<strong>um</strong>anos, <strong>de</strong>masiado<br />

h<strong>um</strong>anos.<br />

As sessões <strong>de</strong> análise dos corpos na morgue pelos<br />

vários anatomopatologistas são lições excelentes <strong>de</strong><br />

todo o espectro da medicina; mesmo no meio <strong>de</strong><br />

expressões <strong>de</strong> h<strong>um</strong>or comuns nestes ambientes os<br />

cadáveres são tratados com respeito, são limpos com<br />

cuidado, tocados com <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, algo <strong>de</strong> recepção<br />

plástica acontece que permite evocar a pintura <strong>de</strong> “A<br />

Lição <strong>de</strong> Anatomia do Dr. Tulp” <strong>de</strong> Rembrandt.<br />

Repetimos que a velocida<strong>de</strong> é <strong>um</strong>a das chaves do<br />

sucesso <strong>de</strong>sta série. Aqui tudo é veloz – da entrada<br />

à exposição do crime e <strong>de</strong>ste à análise. O tempo é<br />

comprimido na montagem e tem como consequência<br />

que em cada episódio o enigma é resolvido do nascer<br />

ao pôr-do-sol, o que nos remete para <strong>um</strong>a dos cânones<br />

mais antigos da representação: o da unida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

tempo. O fascínio da série vem também da sua rara<br />

soli<strong>de</strong>z dramatúrgica. Dir-se-á que esta velocida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

resolução dos crimes é inverosímil. É por isso que CSI<br />

é <strong>um</strong>a série <strong>de</strong> ficção e não <strong>um</strong> doc<strong>um</strong>entário.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 55

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