Samoieda,

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Comportamento Nem só de dinheiro é feito o tempo O conceito de que tempo é dinheiro, como em várias outras oportunidades, migrou para a ficção e ganhou as telas dos cinemas, em 2011, com o instigante e inesquecível filme O Preço do Amanhã, dirigido por Andrew Niccol e brilhantemente protagonizado por Justin Timberlake. O enredo mostra uma sociedade do futuro na qual a ciência conseguiu interromper o processo de envelhecimento aos 25 anos de idade e que substituiu a moeda pelo tempo. Assim, os pobres trabalhavam em troca de horas e dias de vida e os ricos podiam acumular tempo até a suposta possibilidade de viver eternamente. Ali, poder-se-ia empregar ao pé da letra a expressão “ganhar tempo”. O filme faz pensar não apenas nas desigualdades sociais mas, também, no valor do tempo. A diferença é que os personagens podiam prolongar seu tempo de vida, nós não. Nosso tempo é limitado e jamais se repe- 26 Leitura de Bordo | Março 2015 | www.leituradebordo.com.br

Comportamento tirá. A mesma coisa feita duas vezes jamais será a mesma coisa e o tempo que se perdeu não pode ser recuperado. Tudo tem fim, inclusive o nosso tempo. E é a noção de fim que nos chama à responsabilidade de usarmos nossos recursos com consciência. A cada novo dia ganhamos novas oportunidades. Um dia bem vivido tem o doce sabor de que a vida vale a pena. Conta-se que alguém perguntou a Galileu Galilei quantos anos ele tinha. Oito ou dez, foi a resposta, apesar da idade avançada e dos cabelos brancos. Explicou ao interlocutor que, na verdade, presumia que esses seriam os anos que lhe restavam de vida, já que os anos vividos, não os tinha mais. E o que dizer do pensamento de Maria Julia Paes de Silva para quem “o valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem”. “Por isso”, conclui, “existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”. Em sua extraordinária sensibilidade poética, Mário Quintana lembra que o tempo não para; só a saudade é que faz as coisas pararem no tempo. O tempo não para, não retrocede e não pode ser estendido. Cada dia é único, cada hora é preciosa e cada minuto foi feito para ser vivido plenamente. Por isso, é um desrespeito roubar tempo de outras pessoas. Fazê-los esperar por respostas que poderiam ser dadas de imediato ou obrigar os outros a aguardar sua chegada como exercício de vaidade tem, antes de mais nada, uma pitada de arrogância. O casamento está marcado para as oito horas, mas a noiva acredita que, se chegar às nove, todos a acharão mais bela, mais imponente, como os súditos da Idade Média aguardavam pela chegada do rei. O que a educação não deixa demonstrar é o cansaço, o desagrado e a chateação da espera de tantas pessoas que gostariam de estar usando aquele tempo para tantas outras coisas totalmente diferentes de apenas aguardar um espetáculo matrimonial. E o que dizer dos amigos que ligam dizendo: “Estou passando aí”, mas chegam duas horas depois. Estar em casa simplesmente esperando também é incômodo. A expectativa de alguém que prometeu passar em quinze minutos impede que façamos inúmeras outas coisas – um bolo, um telefonema para um velho amigo, lavar louças, estudar para uma prova. Agora, pior que tudo, são as filas, as malditas filas! Manter pessoas por longos períodos, de pé, às vezes debaixo do sol quente, aguardando atendimento, é desrespeitoso, desumano. Há poucos dias, foi divulgada a notícia de pessoas que precisavam esperar até cinco horas em filas para pedir o seguro-desemprego. Será que partiram do pressuposto de que o desempregado tem tempo de sobra e, por isso, pode-se abusar de seu tempo, ou seria o fato de que está precisando do seguro para sobreviver e, portanto, deve sujeitar-se à longa espera? Pior que isso, só as filas dos hospitais onde o doente precisa esperar sua vez, às vezes, por um tempo que se torna muito mais longo e penoso por causa de seu estado de saúde. Felizmente, já existem leis criadas para coibir esse abuso. Em muitos lugares, sobretudo bancos, as senhas e cadeiras para espera amenizam um pouco esse desconforto. O legislador já começa atentar para isso, mas ainda falta muito para que as pessoas sejam realmente tratadas com dignidade. Falta mudar a cultura da fila – e dos que furam a fila. Esses conseguem ser mais desrespeitosos com o tempo alheio do que todos os outros. Comenta Glória Kalil que furar fila, sem motivo justo, é o cúmulo da prepotência e a da falta de educação. O tempo de cada um, tal como seus bens, não deveria ser roubado. E nem desperdiçado. Estar no aqui e no agora talvez seja forma mais proveitosa de viver bem nosso tempo. Em primeiro lugar, deve vir o hoje. Depois, pensemos no futuro, como projetos e busca de dias melhores. Por fim, o passado, como boas lembranças, realizações e aprendizado. E aprendamos a respeitar o tempo – o dos outros e também o nosso, pois ele, de fato, é um recurso limitado. www.leituradebordo.com.br | Março 2015 | Leitura de Bordo 27

Comportamento<br />

tirá. A mesma coisa feita duas vezes jamais será<br />

a mesma coisa e o tempo que se perdeu não<br />

pode ser recuperado. Tudo tem fim, inclusive o<br />

nosso tempo. E é a noção de fim que nos chama<br />

à responsabilidade de usarmos nossos recursos<br />

com consciência.<br />

A cada novo dia ganhamos novas oportunidades.<br />

Um dia bem vivido tem o doce sabor de<br />

que a vida vale a pena. Conta-se que alguém perguntou<br />

a Galileu Galilei quantos anos ele tinha.<br />

Oito ou dez, foi a resposta, apesar da idade avançada<br />

e dos cabelos brancos. Explicou ao interlocutor<br />

que, na verdade, presumia que esses seriam<br />

os anos que lhe restavam de vida, já que os anos<br />

vividos, não os tinha mais. E o que dizer do pensamento<br />

de Maria Julia Paes de Silva para quem<br />

“o valor das coisas não está no tempo que elas<br />

duram, mas na intensidade com que acontecem”.<br />

“Por isso”, conclui, “existem momentos inesquecíveis,<br />

coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”.<br />

Em sua extraordinária sensibilidade poética,<br />

Mário Quintana lembra que o tempo não para; só<br />

a saudade é que faz as coisas pararem no tempo.<br />

O tempo não para, não retrocede e não<br />

pode ser estendido. Cada dia é único, cada hora<br />

é preciosa e cada minuto foi feito para ser vivido<br />

plenamente. Por isso, é um desrespeito roubar<br />

tempo de outras pessoas. Fazê-los esperar por<br />

respostas que poderiam ser dadas de imediato<br />

ou obrigar os outros a aguardar sua chegada<br />

como exercício de vaidade tem, antes de mais<br />

nada, uma pitada de arrogância. O casamento<br />

está marcado para as oito horas, mas a noiva<br />

acredita que, se chegar às nove, todos a acharão<br />

mais bela, mais imponente, como os súditos<br />

da Idade Média aguardavam pela chegada<br />

do rei. O que a educação não deixa demonstrar<br />

é o cansaço, o desagrado e a chateação da espera<br />

de tantas pessoas que gostariam de estar<br />

usando aquele tempo para tantas outras coisas<br />

totalmente diferentes de apenas aguardar<br />

um espetáculo matrimonial. E o que dizer dos<br />

amigos que ligam dizendo: “Estou passando aí”,<br />

mas chegam duas horas depois. Estar em casa<br />

simplesmente esperando também é incômodo.<br />

A expectativa de alguém que prometeu passar<br />

em quinze minutos impede que façamos inúmeras<br />

outas coisas – um bolo, um telefonema<br />

para um velho amigo, lavar louças, estudar para<br />

uma prova. Agora, pior que tudo, são as filas, as<br />

malditas filas!<br />

Manter pessoas por longos períodos, de<br />

pé, às vezes debaixo do sol quente, aguardando<br />

atendimento, é desrespeitoso, desumano. Há<br />

poucos dias, foi divulgada a notícia de pessoas<br />

que precisavam esperar até cinco horas em filas<br />

para pedir o seguro-desemprego. Será que partiram<br />

do pressuposto de que o desempregado<br />

tem tempo de sobra e, por isso, pode-se abusar<br />

de seu tempo, ou seria o fato de que está precisando<br />

do seguro para sobreviver e, portanto,<br />

deve sujeitar-se à longa espera? Pior que isso,<br />

só as filas dos hospitais onde o doente precisa<br />

esperar sua vez, às vezes, por um tempo que se<br />

torna muito mais longo e penoso por causa de<br />

seu estado de saúde.<br />

Felizmente, já existem leis criadas para coibir<br />

esse abuso. Em muitos lugares, sobretudo bancos,<br />

as senhas e cadeiras para espera amenizam um<br />

pouco esse desconforto. O legislador já começa<br />

atentar para isso, mas ainda falta muito para que<br />

as pessoas sejam realmente tratadas com dignidade.<br />

Falta mudar a cultura da fila – e dos que furam<br />

a fila. Esses conseguem ser mais desrespeitosos<br />

com o tempo alheio do que todos os outros. Comenta<br />

Glória Kalil que furar fila, sem motivo justo, é<br />

o cúmulo da prepotência e a da falta de educação.<br />

O tempo de cada um, tal como seus bens, não deveria<br />

ser roubado. E nem desperdiçado.<br />

Estar no aqui e no agora talvez seja forma<br />

mais proveitosa de viver bem nosso tempo. Em<br />

primeiro lugar, deve vir o hoje. Depois, pensemos<br />

no futuro, como projetos e busca de dias melhores.<br />

Por fim, o passado, como boas lembranças,<br />

realizações e aprendizado. E aprendamos a respeitar<br />

o tempo – o dos outros e também o nosso,<br />

pois ele, de fato, é um recurso limitado.<br />

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