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Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes 96 vam desconfiando de um outro vizinho, que não me cabe aqui revelar o nome, mas carregava a má fama de ter uma certa dificuldade com a nossa ortografia. As meninas nunca quiseram namorar com ele, entre outras coisas, porque ele escrevia errado. Eu não. Eu escrevia correto. Mas elas também não queriam nada comigo. Anos mais tarde, quando eu cursava o segundo grau – atual ensino médio – cobrava para escrever cartas de amor para as namoradas de alguns amigos meus. Não cobrava caro não. Um lanche na cantina do colégio bastava. Na verdade eu nem gostava de escrever tais cartas, mas atendia aos apelos dos amigos mais chegados. O engraçado foi quando uma das namoradas de um destes amigos foi estudar no mesmo colégio que eu. Na mesma turma, aliás. O camarada ficou enciumado. Passou a sentar no fundo da sala. Não deixava a menina se relacionar com ninguém e parou de falar comigo. Quase um Cyrano de Bergerac. Ao mesmo tempo que escrevia cartas de amor para a minha namorada ou para as namoradas dos amigos, eu também gostava de escrever poesias e pequenas histórias. Até hoje guardo com carinho um caderno com meus primeiros escritos. Ganhei da Verinha, uma prima do meu pai, quando fiz 12 anos. Talvez ela nunca tenha se dado conta da importância que aquele presente teve na minha vida. De capa dura, cor de laranja, pautado, grosso. Bonito mesmo. Este caderno acompanhou toda a minha trajetória na tentativa de me tornar escritor e aprendiz de poeta. Ainda não existia internet e os computadores eram máquinas enormes, complicadíssimas e de difícil acesso. Hoje está tudo diferente. Tudo mais rápido. Vivemos conectados numa vida cada vez mais segmentada, única. E é realmente preciso surfar nesta onda para acompanharmos a evolução humana e tudo o que envolve este processo. Porque como disse o poeta, “o tempo não para” e, com ele, os meios de comunicação, a linguagem, a oralidade, as palavras, as rimas, as histórias. Talvez por isso eu ainda me surpreenda quando eu leio o que eu escrevia no meu antigo caderno. Durante muitos anos este caderno foi o meu melhor amigo. Ninguém sabia da sua existência. Ficava escondido. Só na faculdade resolvi revelar que ele existia e tudo o que estava ali escrito virou material de um trabalho que tive de entregar num dos
primeiros períodos. Tirei dez e minha autoestima foi às alturas. Meus amigos também gostaram e para muitos deles foi uma surpresa saber que eu escrevia poesias. E escrevia no meu caderno. Computadores ainda eram raros. Lá se vão quase duas décadas e desde então eu perdi a conta das poesias e das histórias que escrevi em todos estes anos. Formado em jornalismo, já fiz de tudo na área da comunicação social. Hoje sou repórter de um grande jornal, mas já experimentei o audiovisual, fiz uma centena de vídeos institucionais, alguns curtas-metragens, sabe-se lá quantos roteiros e um documentário que me levou a Cuba. Foi com este documentário, por sinal, que pude conhecer mais de perto o universo dos contadores de histórias e pude me dar conta da importância da tradição oral para o desenvolvimento da humanidade. Entre as poucas certezas que eu tenho nesta vida, uma é que é primordial preservar nossas histórias. E contá-las a quem quer que seja. Porque uma boa história faz bem para todo mundo. Atualmente mantenho um blog chamado “Eu sei cozinhar” (www.euseicozinhar. blogspot.com), onde as minhas poesias, memórias e os fatos do cotidiano servem de ingredientes para incrementar a receita do que eu escrevo. Se a cozinha é lugar de experimentar novas receitas, o meu blog é meu lugar de experimentação. Eu tenho a sorte de ter alguns leitores fiéis, ou seguidores, como são conhecidos os leitores de blog, que fazem lá seus comentários, sejam críticas ou elogios. É uma ferramenta que me deu novo fôlego e estímulo para continuar a escrever. Se antes o meu caderno ficava escondido, fechado numa gaveta, meu blog é literalmente um livro aberto. Qualquer um pode ler, esteja onde estiver. E isso me fascina na comunicação virtual. É um terreno fértil e promissor, pois nada mais estimulante do que saber que seus textos, suas poesias, suas histórias, estão na rede e que qualquer pessoa de qualquer parte do mundo pode ter acesso a elas. E me fascina mais ainda poder interagir com estas pessoas, trocar ideias, fazer amigos do outro lado do mundo e então perceber que esta é a verdadeira globalização, a globalização das palavras e da perpetuação das histórias. Nestas horas eu volto ao caderno laranja de capa dura que ficava escondido. Era o Marcio Allemand 97
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vam desconfiando de um outro vizinho, que não me cabe aqui revelar o nome, mas<br />
carregava a má fama de ter uma certa dificuldade com a nossa ortografia. As meninas<br />
nunca quiseram namorar com ele, entre outras coisas, porque ele escrevia errado. Eu<br />
não. Eu escrevia correto. Mas elas também não queriam nada comigo.<br />
Anos mais tarde, quando eu cursava o segundo grau – atual ensino médio –<br />
cobrava para escrever cartas de amor para as namoradas de alguns amigos meus. Não<br />
cobrava caro não. Um lanche na cantina do colégio bastava. Na verdade eu nem<br />
gostava de escrever tais cartas, mas atendia aos apelos dos amigos mais chegados. O<br />
engraçado foi quando uma das namoradas de um destes amigos foi estudar no mesmo<br />
colégio que eu. Na mesma turma, aliás. O camarada ficou enciumado. Passou a sentar<br />
no fundo da sala. Não deixava a menina se relacionar com ninguém e parou de falar<br />
comigo. Quase um Cyrano de Bergerac.<br />
Ao mesmo tempo que escrevia cartas de amor para a minha namorada ou para as<br />
namoradas dos amigos, eu também gostava de escrever poesias e pequenas histórias.<br />
Até hoje guardo com carinho um caderno com meus primeiros escritos. Ganhei da<br />
Verinha, uma prima do meu pai, quando fiz 12 anos. Talvez ela nunca tenha se dado<br />
conta da importância que aquele presente teve na minha vida. De capa dura, cor de<br />
laranja, pautado, grosso. Bonito mesmo. Este caderno acompanhou toda a minha<br />
trajetória na tentativa de me tornar escritor e aprendiz de poeta. Ainda não existia<br />
internet e os computadores eram máquinas enormes, complicadíssimas e de difícil<br />
acesso. Hoje está tudo diferente. Tudo mais rápido. Vivemos conectados numa vida<br />
cada vez mais segmentada, única. E é realmente preciso surfar nesta onda para acompanharmos<br />
a evolução humana e tudo o que envolve este processo. Porque como<br />
disse o poeta, “o tempo não para” e, com ele, os meios de comunicação, a linguagem,<br />
a oralidade, as palavras, as rimas, as histórias. Talvez por isso eu ainda me surpreenda<br />
quando eu leio o que eu escrevia no meu antigo caderno.<br />
Durante muitos anos este caderno foi o meu melhor amigo. Ninguém sabia da<br />
sua existência. Ficava escondido. Só na faculdade resolvi revelar que ele existia e tudo<br />
o que estava ali escrito virou material de um trabalho que tive de entregar num dos