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Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes 88 cinema, a “argila” (sua matéria-prima) do cineasta é o tempo. Para ele, todo o processo de montagem de um filme molda o tempo. Por exemplo, uma bomba-relógio cujo contador conta regressivamente cinco segundos, os cortes para o rosto tenso do desmontador da bomba, do mostrador de tempo, das vítimas, o som... estes cinco segundos podem durar mais de um minuto na tela. Por outro lado, uma passagem de tempo de anos, se faz através de um corte de uma cena pra outra, numa fração de segundos. Juntando todos estes pensadores, de Aristóteles a Vogler, muito me encanta o conflito, os personagens (arquétipos) e sua relação temporal, afinal isso elabora psicologias dos personagens e do espectador. Hoje o cinema se encontra em crise, não somente pela pirataria, mas tanto o cinema quanto a televisão, rádio ou jornais. São modelos que irradiam, em mão única, o conteúdo ao espectador que só tem o poder de mudar de canal, ou sair da sala, mas não pode interagir diretamente. A televisão tem buscado através do uso de telefones, votações, criar alternativas. Mas ainda tateamos no escuro. Por falar no escuro, me lembrei daquele contador, ao redor da fogueira (engraçado como ela nos hipnotiza, né), contando e ouvindo histórias, onde a via de interlocução é de mão dupla. Ali o espectador interage diretamente, seja de maneira mais agressiva, interferindo, emendando, contando também, ou de maneira mais sutil, com seu olhar, sua reação ou sua concentração. Quando fui realizar o filme Histórias me deparei com o seguinte problema: Como fazer um documentário sobre este assunto (contar histórias) que é subjetivo e imaterial Porque num documentário sobre uma cidade, uma fábrica, ou uma pessoa, há o objeto do documentário ali presente, seja por imagens que produzamos, ou por fotos, pinturas, etc. A representação pura e simples das histórias contadas não seria correto, pois há diferença entre a narração e a interpretação, que se dá no jogo de imaginação proposto. Uma peça de teatro apresenta a princesa, enquanto a narração da princesa dá ao ouvinte o papel criador de imaginar esta princesa. Mais, não sou um conhecedor teórico do assunto, afinal sou diretor de vídeo/cinema, o que sabia sobre contar histórias e seus contadores eram as referências familiares, da escola, etc. Nunca podia
imaginar que alguém vivesse disso, ou estudasse o assunto com tanta profundidade. Mãos à obra. Fui contratado, tinha que me virar. Primeira conclusão óbvia: eu não estava realizando uma narrativa oral, eu estava realizando um filme. Graças a Deus! Isso muda tudo. Era um filme sobre a narrativa oral, mas era um filme, com suas regras próprias da cinegrafia, seus códigos e truques. Ah sim, não acreditem os contadores que nós do cinema, só porque não temos o recurso presencial simultâneo – o que permite ao ator teatral ou ao contador sentir a plateia e assim utilizar interjeições, mis-en-scènes, improvisações, olhares e até (e por que não) modificar a história – não somos capazes de manipular (no bom sentido, né gente) o nosso público. Senti-lo e com ele interagir. O meu primeiro privilégio enquanto diretor é justamente o de ser o espectador número um do meu trabalho. Enquanto estou editando o filme, eu sou também plateia. Gente, não esqueçamos que o meu objeto é totalmente diferente do de um narrador oral. A minha matéria-prima são o tempo, as imagens e os sons que eu produzo. Imagens captadas por uma câmera, onde eu escolho o enquadramento, o que significa que são imagens descritivas mas também críticas da cena. É como se eu escrevesse um livro, onde eu leio e releio o quanto for necessário ou possível (há um fator econômico limitador envolvido no processo) a minha obra. Mas se a escrita é um ato individual (como conclui Boniface Ofogo) no filme Histórias, o cinema é uma experiência coletiva, o que o difere em muito da televisão, do computador, da leitura (se alguém lê em voz alta para uma plateia, o livro deixa de ser o veículo de interlocução, este papel cabe ao leitor, sendo o livro ali, sua matéria-prima). O cinema contém em si um processo ritualístico e também da oferta do mito. Uma plateia cinematográfica respira junto, criam-se laços de sintonia, onde, quando um ri, contagia os outros, é como num berçário, onde um bebê dispara o choro coletivo. A sala de cinema remete às fogueiras do passado, toda escura, as chamas bruxuleiam da tela, pra onde se voltam todas as atenções. Esse elemento é fundamental na compilação de um roteiro que vai pro cinema ou pra televisão. Nesta última, a atenção é disputada com a tensão do dedo sobre o controle remoto, o parente na cozinha, o vizinho na Paulo Siqueira 89
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cinema, a “argila” (sua matéria-prima) do cineasta é o tempo. Para ele, todo o processo<br />
de montagem de um filme molda o tempo. Por exemplo, uma bomba-relógio cujo<br />
contador conta regressivamente cinco segundos, os cortes para o rosto tenso do desmontador<br />
da bomba, do mostrador de tempo, das vítimas, o som... estes cinco segundos<br />
podem durar mais de um minuto na tela. Por outro lado, uma passagem de tempo<br />
de anos, se faz através de um corte de uma cena pra outra, numa fração de segundos.<br />
Juntando todos estes pensadores, de Aristóteles a Vogler, muito me encanta o<br />
conflito, os personagens (arquétipos) e sua relação temporal, afinal isso elabora psicologias<br />
dos personagens e do espectador.<br />
Hoje o cinema se encontra em crise, não somente pela pirataria, mas tanto o<br />
cinema quanto a televisão, rádio ou jornais. São modelos que irradiam, em mão<br />
única, o conteúdo ao espectador que só tem o poder de mudar de canal, ou sair da<br />
sala, mas não pode interagir diretamente. A televisão tem buscado através do uso de<br />
telefones, votações, criar alternativas. Mas ainda tateamos no escuro. Por falar no<br />
escuro, me lembrei daquele contador, ao redor da fogueira (engraçado como ela nos<br />
hipnotiza, né), contando e ouvindo histórias, onde a via de interlocução é de mão<br />
dupla. Ali o espectador interage diretamente, seja de maneira mais agressiva, interferindo,<br />
emendando, contando também, ou de maneira mais sutil, com seu olhar,<br />
sua reação ou sua concentração.<br />
Quando fui realizar o filme Histórias me deparei com o seguinte problema: Como<br />
fazer um documentário sobre este assunto (contar histórias) que é subjetivo e imaterial<br />
Porque num documentário sobre uma cidade, uma fábrica, ou uma pessoa, há o<br />
objeto do documentário ali presente, seja por imagens que produzamos, ou por fotos,<br />
pinturas, etc. A representação pura e simples das histórias contadas não seria correto,<br />
pois há diferença entre a narração e a interpretação, que se dá no jogo de imaginação<br />
proposto. Uma peça de teatro apresenta a princesa, enquanto a narração da princesa<br />
dá ao ouvinte o papel criador de imaginar esta princesa. Mais, não sou um conhecedor<br />
teórico do assunto, afinal sou diretor de vídeo/cinema, o que sabia sobre contar<br />
histórias e seus contadores eram as referências familiares, da escola, etc. Nunca podia